SUMÁRIO - Edição Atual
Transcrição
SUMÁRIO - Edição Atual
SUMÁRIO O poeta e a câmara lambe-lambe. Aqui são mostradas as relações entre alguns poemas de Oswald de Andrade, onde o poeta, intencionalmente, coloca-se como um fotógrafo lambe-lambe, escrevendo os poemas como se fotografasse praças públicas, animais, pessoas, a cidade em crescimento, com a transformação da paisagem urbana. Por Zenaide Bassi Ribeiro Soares. 24 06 O teatro de Garcia Lorca. Adriana Holstein, aqui, trata do teatro de Garcia Lorca que dava voz a mulheres, homossexuais, desvalidos em geral. Analisa a situação da mulher, da submissão que lhe era imposta, junto com a falta de liberdade e o silêncio. Trata, ainda, do panorama político da época, onde a Falange, grupo partidário ancorado no fascismo, dominava a Espanha. O duplo em Julio Cortázar e Guimarães Rosa é aqui discutido por Solange Delboni, que abre o trabalho mostrando Varrão, que, na Roma antiga, escreveu sobre Bimarcos, o Marcos que tinha dupla personalidade – o mais antigo caso de duplo registrado na literatura ocidental. 1 33 TEMA SUMÁRIO Aqui, Olga Maria Loreto transcreve a auto-crítica de Mário de Andrade, onde o músico e escritor fala do mal estar que a sua vida causava a si próprio, e tece comentários, recolocando a questão. 48 Aqui, Ivo Gonçalves fala sobre Os dez dias que abalaram o mundo, obra prima do jornalismo literário, publicada em 1919. Escrita pelo jornalista norte-americano John Reed, descreve fatos ocorridos na Rússia, em 1917, antes e durante a revolução dirigida por Lenin, revelando grande atualidade, tantos anos mais tarde. A História através da arte. Os retirantes, obra de Cândido Portinari. 42 TEMA 62 2 TEMA Revista de Letras, Artes e História - Nº 4. Ano 2. Vol. II Publicação vinculada ao Centro de Estudos de Letras, Artes e História - Celarth Edição de Maio a Agosto de 1988 Editor Responsável: Zenaide Bassi Ribeiro Soares – MTb 8607. Conselho Editorial: Prof. Dr. Alcides Ribeiro Soares (PUC-SP), Profa. Dra. Alessandra Moreira Lima (USM), Profa. Dra. Maria Lúcia Pimentel de Sampaio Góes (USP), Profa. Dra. Maria Elena Assumpção (USP), Profa. Magali Fialho Linge (FATEMA), Profa. Ms. Mercedes Rosa (FZL), Prof. Ms. Paulo dos Santos (Facsul), Profa. Dra. Rosa Maria Gregory (PUCCAMP), Profa. Dra. Solange Delboni (Universidade São Marcos), Profa. Dra. Urquiza Maria Borges (UNESP), Profa. Zenaide Bassi Ribeiro Soares (FATEMA). Capa e ilustrações: André Santos e Cláudio Barbosa. Diagramação: Miguel de Oliveira Rua Fortunato, 291, cj. 408 Higienópolis - São Paulo - SP 3 TEMA TEMA Letras, Artes e História R.TEMA S.Paulo TEMA nº 04 maio/agosto 1988 P. 64 4 Apresentação A qui trataremos do teatro de Garcia Lorca, que dava voz aos desvalidos, e, principalmente, às mulheres a quem a sociedade espanhola impunha a opressão e o silêncio. A questão do duplo na literatura de Julio Cortázar e de Guimarães Rosa também será abordada, logo após se buscar as origens deste fascinante gênero num passado distante, na Roma antiga, com Varrão, que escreveu Bimarcus. A obra jornalística de John Reed, que escreveu Os dez dias que abalaram o mundo, para contar fatos ocorridos em 1917, durante a revolução russa dirigida por Lenin, é também relembrada, com sua extraordinária força expressiva, além de surpreendente atualidade. E tem muito mais. Oswald de Andrade é reencontrado observando-se as relações entre alguns de seus poema e a máquina fotográfica, quando o poeta, intencionalmente, colocava-se como um fotógrafo ambulante, escrevendo como se usasse uma máquina para fotografar animais, bondes, pessoas, ruas, praças - a cidade de São Paulo em plena transformação urbana. Há, ainda, a fala de Mario de Andrade, onde avisa que o modernismo foi “um toque de alarme” e adverte sobre muitas coisas realmente importantes para o país, além de precioso documento sobre a História através da Arte. Zenaide Bassi Ribeiro Soares Diretora Responsável 5 TEMA Zenaide Bassi Ribeiro Soares* O POETA E A MÁQUINA LAMBE-LAMBE THE POET AND THE LICK-LICK CAMERA N aquele tempo, “São Paulo era batido por todos os ventos da cultura”, explicou Oswald Andrade, o escritor que gostava da poesia das ruas e das praças, que eram o lugar do diverso, do lúdico e do trágico, sempre um ambiente fértil e criativo. O poeta queria atravessar as aparências, tocar o simbólico capturado pela máquina, como fazia o fotógrafo ambulante, que enfiava a cabeça num saco escuro para fotografar e depois lambia um canto do papel-filme para fixar a imagem . Todos se postavam diante desse fotógrafo; Oswald observava que as blusas das moças subiam e desciam, obedecendo os comandos da respiração entrecortada e do coração que pulava de emoção, via a moça esforçando-se para conter o sorriso diante do flash da câmera - porque, * Professora das Faculdades Teresa Martin, onde, também, é coordenadora do CESPAL Centro de Estudos e Pesquisas de Artes e Letras. 6 TEMA de fato, era muito emocionante aquele instante. Percebendo que aquilo era matéria de poesia, passou a escrever como se acionasse uma câmera: Fixador de corações Debaixo das blusas.... ................................. Tua objetiva pisca-pisca Namora Os sorrisos contidos Cada vez mais consciente da importância da máquina fotográfica, que havia chegado para aposentar o pintor da função de retratar, copiando a realidade, para criar um novo tipo de pintura, Oswald sentiu que descobrira nova função para as palavras. Então, transformou seu vocabulário em câmera e retratou o Jardim da Luz: ............................................... Os repuxos desfalecem como velhos Nos lagos Pássaros que ninguém vê nas árvores Instantâneos e cervejas geladas Subverteu a linguagem, fugindo de Aristóteles, que ensinava que a linguagem poética deve ser nobre. Preferia as palavras rejeitadas pelo filósofo, aquelas oriundas da fala vulgar e ainda traz o vulgo como protagonista: o carroceiro, o negro fugido, a mulatinha, o caipira que usa cigarro de palha. Os arranha-céus de São Paulo são imagens preciosas, com sua linguagem arrojada que transfigura a cidade, TEMA 7 apontando para as nuvens. Os automóveis sugerem velocidade, movimentando a cidade que, cada vez mais, não sabe descansar : A felicidade anda a pé Na praça Antonio Prado São dez horas azuis O café vai alto como a manhã de arranha-céus Cigarros Tietê Automoveis A cidade sem mitos Mas se a velocidade está sempre presente na cidade, às vezes se observa que o passado ainda está colado nela, aí aflora o nervosismo dos que têm pressa. É quando a carroça e o cavalo aparecem, atrapalhando o tráfego: O cavalo e a carroça Estavam atravancados no trilho Tematizando o cotidiano, Oswald saiu pelas ruas como um fotógrafo ambulante, registrando flagrantes da cidade, e, de repente, fez um instantâneo, documentando uma cena de violência urbana: O canivete voou E o negro comprado na cadeia Estatelou de costas E bateu coa cabeça na pedra. 8 TEMA As palavras criam imagens visuais que presentificam o ausente, e assim o poeta registra flagrantes como os aqui citados até agora e os coloca num álbum, Postes da Light, parte integrante de seu livro de poemas, intitulado Pau Brasil, publicado em m 1925. Oswald de Andrade olhava os parques e jardins de São Paulo – e lá estava o fotógrafo ambulante, lambendo o canto do papel-filme para verificar, pelo sabor, a qualidade do processo de fixação. Ele queria ser, também, um fotógrafo lambe-lambe para tematizar o cotidiano mostrando a cidade com seus trilhos, bondes, pontes, sinaleiras ou o Jókey Clube, que reunia cavalos de raça e gente da elite, que dançava ao som de orquestra, como gravou no poema Hípica: Saltos records Cavalos da Penha Correm jóqueis de Higienópolis Os magnatas As meninas E a orquestra toca Chá Na sala de cocktails Naquele tempo, as praças eram um espaço democrático, freqüentado por todas as classes sociais. Gente elegante, muito bem vestida, de acordo com a moda - os almofadinhas-, passeavam ao lado de soldados, e de meninas emocionadas, que tiravam fotografias, ou, ainda, de homens que bebiam cervejas geladas - o Jardim da Luz, retratado pelo poeta era, como outras praças, o lugar onde sonhos nasciam ou terminavam os amores, e tudo isso se perderia para sempre se alguém não fotografasse os sentimentos que davam vida TEMA 9 à cidade. E se Oswald se fez fotógrafo desses sentimentos, fotografou com palavras muito lugares, e, principalmente, a alma de São Paulo. Um Jeito Diferente de Fazer Poesia Em 1922, São Paulo se tornou palco da entrada oficial do Brasil na modernidade pelas razões apontadas pelo próprio Oswald de Andrade, que declarou: “Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo, veremos que ele foi consequência de nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria, com sua ansiedade do novo, sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade”. No começo do século XX, os contatos regulares de Oswald com a Europa, especialmente com a cidade de Paris, e os contatos com os movimentos artísticos de vanguarda, haviam mostrado ao brasileiro a necessidade de atualização de nossa cultura diante das mudanças que se operavam no mundo. Vivíamos ainda sob a égide de escolas como o Romantismo e o Parnasianismo, enquanto movimentos como o Cubismo, Expressionismo, Futurismo, Dadaismo sacudiam a Europa, revolucionando concepções estéticas, mostrando outros modos de ver e conceber o mundo. Ao travar conhecimento com o Cubismo, Oswald de Andrade percebeu que êle valorizava um tipo de arte muito 10TEMA praticada no Brasil, mas ao mesmo tempo muito desprezada pelas elites que era a arte chamada de primitiva. Observou que os cubistas procuravam exteriorizar o primitivismo, enquanto que os expressionistas distorciam as imagens para expressar sentimentos profundos da alma, como a dor, o medo, e o Surrealismo, agindo sob certa liberdade psicológica, empreendia estranhas caminhadas pela fantasia, sonhos e pesadelos. Era um mundo fascinante, de que o poeta brasileiro queria participar. Assim, constatados os princípios e linhas de ação desses movimentos, Oswald de Andrade concebeu a poesia pau brasil, criando um novo modo de ver a realidade e de relacionar-se com ela, promovendo uma arte de exportação, em que seriam, porém, preservadas as matrizes brasileiras. Na construção do novo modelo, o sentido ambivalente de rivalidade e identificação marcou a originalidade do poeta, que recorreu sempre a temáticas e expressões nacionais. Nos poemas em que procurou fotografar com palavras, conseguiu a proeza de construir imagens visuais que remetem a outras imagens, provocando um start na memória do leitor que libera um acervo de outras lembranças que se articulam poeticamente com o texto oswaldiano, em magnifico exercício de leitura. A invenção da fotografia provocou uma revolução nas artes pictóricas, como ficou provado pelos impressionistas, que não apenas lidaram magistralmente com a luz, como surpreenderam introduzindo na pintura cortes fotográficos. Traduzida em cores, formas, traços, temas, manchas luminosas, a pintura não se preocupava mais com o retrato de cenas realistas, transferido à fotografia, que, na condição de inovação tecnológica, contribuía para as mudanças que se operavam no modo do ser humano ver e perceber o mundo. TEMA 11 Mas não apenas a pintura foi marcada pela fotografia, a literatura também sofreu o influxo dessa invenção, com o estabelecimento de um novo tipo de relacionamento entre a palavra e a imagem. A plasticidade psíquica do ser humano e sua capacidade de adaptação a novidades introduzidas pela inovação tecnológica, que alteram a sua percepção do mundo, foram postas à prova de modo espetacular a partir de meados do século XlX, com as mudanças operadas pela tecnologia nas noções de velocidade, movimento, espaço, tempo, energia, ou nas sensações, em que se incluíam odores, luzes, cores, brilhos. O século XlX avançava para o seu final, com enormes transformações na Europa, advindas de acentuado processo de urbanização e industrialização, ao lado de grande desenvolvimento científico e tecnológico em que se pode incluir o advento do cinema, que surgiu na última década daquele século, trazendo, ao lado da fotografia, mudanças no modo do cérebro elaborar sínteses das imagens em movimento, ao lado de alterações na percepção do mundo e no modo do homem relacionar-se com ele. A palavra, por sua vez, passava a representar-se a si própria, com novas forças expressivas, já que o papel de reduplicador da natureza e de modelos da antiguidade, como ocorria no período clássico, ficava reservado ao cinema e à fotografia, como recorda Octavio Paz. O século XX chegava, cheio de novidades. As artes floresciam e grandes exposições, na Europa, difundiam informações sobre as mudanças velozes que ocorriam, como o Expressionismo, o Cubismo, o Futurismo com grandes apologias ao progresso e à velocidade. Jornais e revistas expunham fotografias em que se buscavam, além da imagem visual, uma reflexão sobre 12TEMA o que uma cena impressa poderia sugerir. Essas imagens despertavam grande interesse, agudizando a curiosidade dos observadores, seduzindo leitores, encantando escritores e poetas, que logo vislumbravam novos filões para suas obras, com as recentes percepções adquiridas. Na Europa, as vanguardas artísticas quebravam paradigmas, mas no Brasil, o naturalismo apresentava grande solidez. Tentativas de ruptura eram rechaçadas com vigor, como ocorreu com Anita Malfatti, que, em 1917, ao exibir numa exposição a concepção expressionista/fauvista que aprendera na Europa, foi publicamente execrada por Monteiro Lobato, que, apesar de ter sido um homem à frente de seu tempo, na pintura tinha, então, visão conservadora, apreciando, sem admitir outras alternativas, o modelo acadêmico. A mimese, a cópia da natureza já havia sido contestada, no final do século XVlll, por românticos alemães, e nos inícios do século XX a luta pela liberdade de criação artística ganhava fortes contornos, inclusive com Pablo Picasso que explicava a pintura como um ato de usurpação da natureza pelo pintor, cabendo ao artista determinar as cores e formas conforme a sua imaginação. O Cubismo decompunha as formas e recriava as cores e traços, buscando inspiração em expressões primitivas, enquanto o expressionismo desmontava os antigos conceitos de belo, distorcendo as imagens para expressar sentimentos, numa linguagem tão forte e revolucionária que dava conta das amarguras, desesperos, desamparos e outros estados da alma que as artes do passado nunca tinham conseguido expressar. Mudanças no Brasil Era um tempo de grande efervescência no universo cultural do país, e vários artistas brasileiros, após vivenciarem experiências das vanguardas europeias, manifestavam TEMA 13 interesse em movimentar a cultura brasileira, atualizando-a em relação às novas propostas daquelas vanguardas. Entre esses brasileiros, estavam Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Mario de Andrade, Heitor Villa Lobos, Menotti del Picchia, Tarsila do Amaral, e cada um, a seu modo, trazia novas experiências para as exposições e encontros, juntando-se, desse modo, o caldo que alimentaria o movimento modernista, que explodiria em São Paulo em 1922, com a ruidosa Semana de Arte Moderna. Dois anos mais tarde, em 18 de março de 1924, Oswald de Andrade publicou no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, o Manifesto Pau Brasil, onde anunciava a adoção de uma nova concepção poética que expressaria a contemporaneidade, inspirada nas correntes literárias das vanguardas europeias, porém devidamente adaptadas às condições sociais, político-econômicas e culturais do Brasil. Logo em seguida, em 1925, publicou o livro Pau Brasil, de poemas, onde punha em prática a proposta do movimento, adotando uma linguagem inovadora, clara, direta, completamente divorciada dos padrões estéticos do passado. O livro dividia-se em nove partes, com um título geral em cada parte, onde se agrupavam pequenos poemas, cada um sob um título particular. Os títulos gerais, identificando cada parte, eram: História do Brasil, Poemas da colonização, São Martinho, RPI, Carnaval, Secretário dos amantes, Postes da Light, Roteiro de Minas e Loyde Brasileiro. A nova linguagem adotada é objetiva, irônica, bem humorada, e, nessa obra, há poemas que Oswald parece ter escrito usando uma máquina fotográfica. Parece colocarse como um fotógrafo, vagueando pela cidade, registrando flagrantes do cotidiano paulistano, de cidades do interior paulista, da Fazenda São Martinho, de propriedade de Paulo Prado, ou ainda de Minas Gerais. TEMA 14 Nessa época, a cidade de São Paulo iniciava seu rápido processo de industrialização, verticalizando-se, metropolizando-se, afirmando seu caráter cosmopolita. Uma cidade forte, que abria espaço para as mais variadas expressões artísticas, inclusive na sua paisagem arquitetônica. Uma linha de montagem da Ford já estava instalada na cidade, que passava por constantes modificações, com a instalação de novas linhas telegráficas, telefônicas, de transportes, de rede elétrica. A ideologia do consumo já estava estabelecida, incluindo nos sonhos cotidianos tecidos, música, discos, automóveis, cervejas geladas, lazer – grande elenco de novidades prometidas por anúncios impressos e ilustrados, que circulavam em ônibus, paredes, postes, com mensagens ágeis, telegráficas, sedutoras. Oswald de Andrade olhava encantado para a cidade, detendo os olhos em pequenas cenas como se quisesse eternizá-las com uma máquina fotográfica, capturando instantes desse agitado cotidiano, como ocorre com o poema Bengaló, em Postes da Light : Bicos elásticos sob o Jersey Um maxixe escorrega dos dedos morenos De Gilberta Janela Sotas e ases desertaram o céu de estradas de rodagem O piano Fox-trota Domingaliza Um galo canta no território do terreiro TEMA 15 A campainha telefona Cretones O cinema dos negócios Planos de comprar um forde O piano Fox-trota Janela Bondes Cenas diversas são capturadas da cidade pelos olhos do poeta, que as fotografa com palavras, como ocorre com os bicos dos seios da moça que veste uma roupa macia, de jersey, que marca bem a anatomia do peito. Na cidade musicalizada, há sons de maxixe, que invadem as ruas através das janelas abertas; o rádio existe, ainda é muito jovem, e conta com os gramofones, amplamente difundidos tanto no centro como nos bairros, para repetirem os sucessos musicais que ultrapassam fronteiras. Na tranquilidade do domingo, um galo canta no seu território que é o quintal da casa, e a imagem do galo cantante evoca no leitor o não dito pelo poeta, o canto de outros galos, que de seus territórios, nos terreiros vizinhos, realizam sua cantoria circular, tal como ocorre com uma fotografia, que ao ser vista, também evoca o que se sabe, mas não se vê. O telefone chama, dentro de casa, onde para além das janelas, circulam bondes nas ruas cheias de trilhos, e paulistas, como o poeta, sonham em comprar um forde, para rodar na cidade dinâmica, que cada vez mais se enche de veículos. O poeta, com sua caneta-câmara, fotografa tudo, em pequenos flashs, com tomadas isoladas, para compor um álbum, enquanto, longe, um piano foxtrota de um jeito muito TEMA 16 moderno, numa referência do poeta-fotógrafo a uma dança norte-americana, muito em moda na cidade, naquele momento. As janelas são molduras de onde se postam fotografias da cidade, voltadas para fora e para dentro, revelando minúcias do cotidiano externo e interno, que até há pouco morriam escondidas, mas agora vão se eternizando por intermédio dos flashs do poeta. O poeta continua com sua câmara, e agora vai retratar uma cena no Jardim da Luz, onde soldados e gente muito bem vestida passeiam, olhando os lagos, ouvindo pássaros invisíveis que cantam no arvoredo, tirando fotografias com fotógrafos ambulantes que, com máquinas lambe-lambe, trabalham na praça. Ou se divertem, bebendo cervejas geladas que, como novo hábito popular, vão substituindo as gasosas : Jardim da Luz Engaiolaram o resto dos macacos Do Brasil Os repuxos desfalecem como velhos Nos lagos Almofadinhas e soldados Gerações cor de rosa Pássaros que ninguém vê nas árvores Instantâneos e cervejas geladas O poeta não apenas captura instantes, como um fotógrafo, como vai mais longe ainda, no poema Anhangabau, onde simula o desgosto do fotógrafo, TEMA 17 que ao revelar sua fotografia, constata que o flagrante foi prejudicado por um sujeito de meias brancas, que atravessou o espaço, no momento em que acionava a máquina fotográfica: Anhangabau Sentados num banco da América folhuda O cow-boy e a menina Mas um sujeito de meias brancas Passa depressa No viaduto de ferro Mas Oswald de Andrade não para; agora descreve, como um fotógrafo, cenas de uma sala de aula vazia, numa escola rural, situada no Estado de São Paulo, onde estudam crianças pobres, que andam descalças: Escola Rural As carteiras são feitas para anõezinhos De pé no chão Há uma pedra negra Com sílabas escritas a giz A professora está de licença E monta guarda a um canto numa vara A bandeira alvi-negra de São Paulo Enrolada no Brasil A ausência de pontuação, a irregularidade métrica e de rima marcam no texto a busca de liberdade do TEMA 18 poeta. Mas, a fixação de Oswald Andrade por máquina fotográfica retorna no poema Sol, registrado em RPI. Certamente achava maravilhosas aquelas andanças dos fotógrafos ambulantes, que circulavam por onde desejavam, apreendendo imagens com suas câmaras, eternizando instantes breves, fugidios, numa atividade aparentemente livre, que, de tão sedutora, não poderia ser comparada a trabalho, mas sim, a um delicioso “fare niente”, uma saborosa e criativa vagabundagem: Sol Uma vez fui a Guará A Guaratinguetá E agora Nesta hora da minha vida Tenho uma vontade vadia Como um fotógrafo Não fazia tanto tempo que ocorrera o fim da escravidão no Brasil. Suas terríveis marcas estavam ainda impressas na sociedade que se industrializava velozmente, e casos sobre a violência dos proprietários de cativos ainda andavam de boca em boca. Mais uma vez, Oswald de Andrade, como um fotógrafo, imortalizou cenas, usando palavras, desta vez em Poemas da Colonização, como na descrição dessa caçada pelos capitães do mato ou seus sucessores, registrada no poema Negro fugido: Negro Fugido Jerônimo estava numa outra fazenda Socando pilão na cozinha Entraram TEMA 19 Grudaram nele O pilão tombou Ele tropeçou E caiu Montaram nele O amor de mãe, que se expressa na morte, foi exibido como um documento fotográfico legendado, no poema Medo da Senhora. A legenda explicaria as razões do duplo suicídio. A visualidade é explícita, mas a legenda complementa a informação que a fotografia, sozinha, não conseguiria fornecer: Medo da Senhora A escrava pegou a filhinha Nas costas E se atirou no Paraíba Para que a criança não fosse judiada Agora, o rápido registro de uma cena de violência urbana. O nome do poema é Cena, descrito como se a câmara, com seu caráter mecânico, documentasse com agilidade, pertinência e eficácia o breve e dramático instante: Cena O canivete voou E o negro comprado na cadeia Estatelou de costas E bateu coa cabeça na pedra. TEMA 20 Sempre de modo direto, coloquial, sem adornos, Oswald de Andrade, nesse livro, vai fotografando com palavras, além de recolher histórias de fantasmas, que enchiam de horror as noites nas fazendas, onde o trabalho estafante não cessava nunca, tanto para escravos como para trabalhadores livres, nem mesmo depois de suas mortes, como ocorre no lacônico poema Caso: Caso A mulatinha morreu E apareceu Berrando no moinho Socando pilão O laconismo não reduz a densidade poética, nem promove a perda da expressividade da linguagem; e o procedimento do poeta, que constrói seus textos como se fosse um repórter trabalhando em documentários apenas acentua a criatividade do escritor. No poemareportagem não falta, também, a crítica social, com seu poder corrosivo de denúncia, embora o modo casual de falar pretenda dar a impressão de neutralidade no trato do tema abordado. Aí mais um ponto deve ser concedido ao poeta, que captura, no poema, a sempre apregoada pseudoneutralidade do jornalismo. Conclusões A singularidade dessa obra é reforçada pelas próprias afirmações de Oswald de Andrade de que a máquina fotográfica surgiu no bojo de um fenômeno sóciopolítico de democratização estética. Essa democratização transformava em artistas os registradores de instantâneos, TEMA 21 nas praças públicas, onde a fotografia se afirmava como uma espécie de poesia que conseguia ser produzida em grande escala, ou “às dúzias”, como diz ele no poema Fotógrafo Ambulante, onde ainda saúda a máquina, com orgulho: “és a glória”. Ser fotografado também era emocionante, acelerando a pulsação de corações sob as blusas, ou contendo sorrisos encantados sob o mágico pisca-pisca dos flashs, canhões luminosos como um sol instantâneo, que se acende e se apaga em rápidos segundos. Como está descrito, ou pintado, ou fotografado no poema Fotógrafo Ambulante: Fotógrafo Ambulante Fixador de corações Debaixo das blusas Album de dedicatórias Marquereau Tua objetiva pisca-pisca Namora Os sorrisos contidos És a glória Oferenda de poesias às dúzias Tripeça dos logradouros públicos Bicho debaixo da árvore Canhão silencioso do sol No poema Atelier, onde fala da caipirinha paulista, o poeta volta a realizar um flash da cidade, desta vez numa TEMA 22 síntese que resume em apenas três linhas o gigantismo de São Paulo, seu movimento incessante, e o cheiro da boa bebida que é a marca de sua riqueza, e quebra o jejum de todo um povo, que, diariamente, se levanta muito cedo para um renovado e cansativo dia de trabalho: Trecho do Poema Atelier ...................................... Arranha-céus Fordes Um cheiro de café No silêncio emoldurado BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Oswald. Obras completas: do Pau Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1978. CARONE NETTO, Modesto. Metáfora e Montagem. São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates, 1974. GOMBRICH, E. H. A história da arte. São Paulo: Zahar, 1981. SOARES, Zenaide Bassi Ribeiro. O poeta e a máquina lambe-lambe. São Paulo: TEMA revista de letras,artes e história, nº 4, volume ll, edição de maio/agosto de 1988. SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986. TEMA 23 Adriana Holstein* LORCA: O TEATRO E A LIBERDADE LORCA: THE THEATER AND THE FREEDOM N a obra de Garcia Lorca as mulheres têm voz, e Mariana Pineda, Doña Rosita, la soltera, La zapatera prodigiosa questionam a velha moral social vigente na época, a política opressora, a submissão imposta junto com a falta de liberdade e o silêncio. Fala também Yerma, que era casada e queria ter um filho, porque esse era seu desejo e também porque não queria ser apontada como uma mulher “casada–seca”, conforme cantavam as lavadeiras na beira do rio. No teatro, na poesia, falam as mulheres, os ciganos, os negros, os homossexuais, os desvalidos, numa ânsia desesperada de direito; de chances de expressão. O teatro é a parte mais politizada de sua obra, pois segundo êle próprio, esse gênero se prestava a educar o povo, mostrando-lhe as contradições da sociedade, a ação de forças opressoras, as chances de liberdade. Lorca queria um teatro libertário, que negasse o teatro espanhol de sua época onde ricas companhias teatrais apresentavam * Licenciada e Mestranda em História. 24TEMA exclusivamente peças que divertiam o público, que o distraiam, sem promover reflexões. Precisava passar por renovação – e era isso que Lorca buscava com o La Barraca, grupo de teatro mambembe por ele dirigido, que tinha como propósito levar os clássicos espanhóis a todos os que desejassem conhecer boa arte teatral e descobrirem um teatro capaz de estimular o senso crítico. Ao longo de cinco anos, Lorca viajou com seu grupo pelos vilarejos mais distantes, conhecendo de perto as diversas regiões com suas diferentes realidades, observando descontentamentos que se avolumavam, prenunciando rebeliões. A Espanha era um país complexo, dividido por marcantes diferenças econômicas e sociais. Para exemplificar, é conveniente lembrar que a região da Catalunha era mais rica, com áreas verdes de pastagem, gado, indústrias têxteis, além de fábricas de ferro e aço, no País Basco, e explorações de minas na região das Astúrias, não faltando ainda a riqueza histórica de Santander com as cavernas de Altamira. O sul, até meados do século XX apresentava uma economia mal explorada, em que predominavam grandes latifundiários ao lado de camponeses sem terras. No centro também havia pobreza, com as terras distribuídas em pequenas propriedades, pouco rentáveis, ao lado de grandes propriedades sub aproveitadas. Quadro Político e Social da Espanha, Na Época No final do século XlX havia grande inquietação política na Espanha e o século XX chegou sacudido por sucessivas rebeliões populares, - duramente reprimidas, como ocorreu TEMA 25 em 1909, com a “Semana trágica de Barcelona”, quando, no período entre 26 de julho a 2 de agosto daquele ano, houve sangrentas batalhas nas ruas de Barcelona e cidades vizinhas, contra o decreto do governo que exigia o envio de tropas de reservistas para combates no Marrocos. O monarca era Alfonso Xlll, e o primeiro ministro era Antonio Maura, que assinou o ato que determinava o envio de reservistas para reforçarem as tropas espanholas que se encontravam no Marrocos. Maura era do Partido Conservador, no poder desde 1907. A batalha que então se travou foi extremamente sangrenta. As tropas do governo atiravam contra os trabalhadores, que haviam enchido as ruas de barricadas. A luta, que teve inicio com uma greve geral, envolveu Barcelona e cidades vizinhas, como Sabadell, Terrassa, Mataró, Badalona e outras, registrando centenas de mortos, o dobro de feridos, muitos fuzilamentos exemplares promovidos pelo governo, que derrotou os revoltosos com forças vindas de Valência, Burgos, Zaragoza e Pamplona. Na região, várias dezenas de igrejas, colégios e conventos religiosos foram incendiados. Em 1917, greves no sistema de transportes de Valência geraram muita confusão e em 1019, uma greve geral paralisou Barcelona por 44 dias. Em 1923, um golpe militar colocou no poder Primo de Rivera, que iniciou uma ditadura que se estendeu até 1930, quando foi substituída em 14 de abril daquele ano, pela Segunda República Espanhola, eleita pelo povo, que logo promoveu alguma abertura política, valorizou a laicização do ensino, promovendo a separação entre Estado e Igreja, tentou resolver problemas sociais, mas, apesar dos esforços, a situação econômica não mudava, o desemprego na Galícia e em Andaluzia continuavam elevados, e as agitações populares não paravam de ocorrer. 26TEMA Aproveitando a abertura, alguns setores conservadores formaram a CEDA - Confederação Espanhola de Direitas Autônomas, com a intenção de derrotar o bloco republicano e ganhar as eleições em 1933. Fora da Espanha, o fascismo e o nazismo cresciam, espalhando-se por toda a Europa. Mussolini governava a Itália e, em 1933, Hitler se tornava o chanceler da República de Weimar, na Alemanha. Dentro da Espanha, em 1933, a Ceda, aglutinando forças de direita, ganhou as eleições, dando início ao que se chamou “biênio negro”, período também chamado “Biênio Radical Cedista” um período de horror e violência, marcado pelo autoritarismo exacerbado, perseguições políticas, adoção de política contra direitos trabalhistas, anulando leis que protegiam os salários dos trabalhadores, trazendo grande retrocesso ao setor, promovendo, ainda, política de reaproximação com a Igreja Católica, restabelecendo e aumentando o valor das subvenções ao clero, devolvendo à Igreja parte de seus bens, e promovendo a volta do ensino religioso a todas as escolas da Espanha. Nesse período, estabeleceu-se a Falange, grupo político de ideologia fascista, que logo passou a buscar o poder, promovendo toda sorte de atrocidades, como invadir universidades, atirar em estudantes, caçar comunistas, socialistas e democratas, promover sublevações em determinadas guarnições do exército. Em pouco tempo, dissolveu-se qualquer resquício de ordem, disseminando-se grande confusão em todo o país. Alegando estado de guerra, todas as noites ocorriam fuzilamentos, aparecendo nas manhãs seguintes, corpos de mortos estendidos pelas ruas, espalhando insegurança e terror. De 1936 a 1939, ocorreu a Guerra Civil Espanhola, que terminou a implantação de pesada ditadura fascista, comandada pelo general Franco. TEMA 27 Nesse quadro conturbado, estavam as obras de Lorca, artista admirado na França, Estados Unidos, Cuba, Argentina, mas que despertava grande ódio da direita espanhola. Por Que Tanto Ódio ? Lorca falava de sua sociedade e de sua época, com obras de grande densidade artística. Não fazia panfletos, escrevia obras que calavam fundo na consciência de seu público, por isso diziam que sua caneta era mais perigosa que uma arma de fogo. Nas suas peças de teatro, as forças da moral, dos costumes, da religião, sobrepujam o indivíduo, silenciam seus desejos, determinam seus destinos, recaindo sobre as mulheres a opressão multiplicada. Deu voz a Mariana Pineda, a que existiu de verdade, amava a república, a liberdade. Vivia em Granada, onde, em 1831 foi presa em sua casa, quando estava bordando uma bandeira com símbolos republicanos. Acusada de ter agido contra o soberano espanhol, foi executada publicamente em Granada. A zapatera prodigiosa é uma farsa. Trata de uma mulher jovem, casada por conveniência com um homem mais velho e que vivia sonhando com amores impossíveis. Lorca gostava de escrever tragédias, onde não faltavam romarias dionísicas e principalmente o coro, que lembrava o teatro grego, com a música enchendo o espetáculo de beleza. Em sua peça Yerma, por exemplo, é clara a tensão entre sociedade e indivíduo, onde o papel a ser desempenhado pela mulher está desenhado desde o seu nascimento, e qualquer tentativa de tentar modificá-lo pode descambar em terríveis tragédias. 28TEMA Yerma vivia em Anadaluzia, é uma mulher jovem, casada e fiel, como mandavam os costumes espanhóis e a Igreja Católica. Só que ela não consegue engravidar e se recusa a ser infiel ao marido. O tempo vai passando e a moça se desespera com a sua situação, recorrendo até a ajuda de uma feiticeira. O marido não se preocupa com filhos. Trabalha muito cuidando dos vinhedos, apenas se preocupa com as contínuas saídas da mulher, porque teme o que a vizinhança possa falar. As cunhadas de Yerma, irmãs de seu marido são solteiras, não têm filhos, nem se preocupam com esse assunto – e essa frieza incomoda Yerma, que, de vez em quando, se lembra de um sonho, com Vitor, que caminhava com um menino no colo, que olhava fixamente para ela. Sente que se tivesse se casado com ele, certamente seria mãe. Recorre a uma procissão pagã, de que participam mulheres que não tinham filhos, e viam ali uma esperança. Uma velha amoral anima Yerma a essa procura, e ela que logo vê que as graças alcançadas pelas mulheres que engravidam não são dádivas divinas, mas decorrem de encontros sexuais com homens férteis. Na procissão, com coro e rituais dionísicos, homens apalpam os seios, os corpos das mulheres, cheios de desejos. O coro segue cantando, anunciando milagres, mas Yerma não quer saber de nenhum homem. A vieja, amoral, oferece a ela seu filho, atlético, bonito, ela se irrita, não quer saber de adultério. Não trai o marido, nunca, menos por ele e mais por si mesma. Quem a impede são as teias invisíveis que a amarram à sua cultura, aos costumes e à moral do local onde vive. Ali predomina a crença de que a mulher nasce para ser mãe e o marido é meio de que ela se vale para cumprir sua missão TEMA 29 reprodutora. O casamento, como a Igreja ensina, é apenas um instrumento de procriação, não há nele prazer. Ela nunca buscou o prazer. Conta que se casou com o homem escolhido por seu pai e ficou muito alegre acreditando que iria ser mãe, mas o tempo vai passando, ela perde a alegria e se torna amarga. As mulheres já sabem que ela é terra fértil na qual não caiu nenhuma semente, mas quando, na beira do rio, as lavadeiras cantam a música da “casada seca”, ela ouve a canção, um poema de grande beleza, que a atinge com arma, fazendo-a sentir-se dilacerada pelo coro. Fica triste, machucada e chega a se sentir de fato seca, a sentir que não é mais uma mulher. As lavadeiras são inocentes, cantam, trabalham, cuidam de seus filhos, porque ter filhos parece a elas uma coisa natural, não haveria por isso nenhuma tragédia. Mas Yerma sente, no peito apertado, uma asfixia que prenuncia tragédias, que o coro das lavadeiras e o coro da romaria parecem confirmar. Sem filhos, sente que perde a condição feminina. Vê a água que enche de vida o campo, mas sente que não tem vida, a secura espanta a vida. Compara a vida dos homens e a vida das mulheres, anotando diferenças. Os homens têm o gado, os vinhedos, as árvores, as longas conversas. As mulheres têm os filhos, as que não tem filhos não têm função no mundo, são inúteis. Ela não consegue se resignar. Não consegue aceitar a sua inutilidade. Seu desespero cresce. Perde-se em sensações asfixiantes: sente sêde e não tem água, quer subir aos montes, mas não tem pés, quer bordar, mas não encontra os fios. 30TEMA Está perdida! O marido não se importa com seu sofrimento, não quer saber de filhos. Diz que sem filhos há menos gastos, sobra mais dinheiro, mas ela não quer ser terreno seco, quer ver a semente crescer na terra úmida, florescer. O marido apenas não quer saber de sua honra manchada, ela sabe que a manutenção dessa honra depende dela e nem se preocupa, porque outras são as amarras que a impedem de dar um passo em falso. A idéia de ser mãe vira forte obsessão. A procissão pagã caminha, com seu coro. O marido está ao lado de Yerma, quer abraça-la, ela não deixa. Haviam bebido vinho, o marido tenta acaricia-la, e ela, o agarra, apertando a sua garganta, até que ele caia morto . Viúva, ela se sente livre. Honra limpa sem nunca ter praticado adultério, sem estar mais presa a um casamento frustrado, seco. A Morte de Garcia Lorca Embora não pertencesse a nenhum partido político, Lorca, por suas manifestações, sua conduta e suas obras era considerado socialista. Foi fuzilado pela ditadura espanhola em 19 de agosto de 1936, quando tinha apenas 38 anos de idade. A ditadura se manteve no poder de 1936 até 1976. O corpo de Lorca nunca foi encontrado. A questão da morte de Lorca foi tabu, durante todos os longos anos da ditadura franquista. Intelectuais de diversos países que cobravam respostas, nunca foram atendidos. TEMA 31 A ditadura procurou jogar uma manta de silêncio sobre o caso, para que o nome de Lorca caísse no esquecimento. Esse esforço foi completamente inútil, porque a admiração pela obra do grande poeta e dramaturgo espanhol cresceu no mundo inteiro. Hoje são milhões de vozes, em todo o mundo, que não silenciam, que querem saber tudo o que aconteceu naquela trágica noite de 1936, quando Lorca foi fuzilado. BIBLIOGRAFIA AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1976. BASSET, Delfin Carbonell. Tres dramas existenciales de F. Garcia Lorca. In Madrid: Cuadernos Hispanoamericanos, nº 190, oct.1965. DOMENECH, Ricardo. La casa de Bernarda Alba y el teatro de Garcia Lorca. Madrid: Cátedra, 1985. LORCA, Federico Garcia. Yerma/La casa de Bernarda Alba. Madrid: Kapelusz, 1986. LORCA, Federico Garcia. Dona Rosita, a solteira. Rio de Janeiro: Agir TEMA 32 Solange Delboni* O DUPLO EM JULIO CORTÁZAR E GUIMARÃES ROSA DOUBLE IN JULIO CORTÁZAR AND GUIMARÃES ROSA U m dos mais antigos textos literários sobre duplo foi escrito por Marcus Terentius Varro, que viveu no período de 116 a 27aC. Escreveu sobre Bimarcus, o Marcos que tinha dupla personalidade, tendo dado à sua obra caráter cômico, imitando Menipo de Gadara, constituindo-se o seu texto uma sátira menipéia. Varro, ou Varrão, conta que Marcus comunica que irá escrever um tratado sobre tropos e figuras, mas não começa nunca a escrever. O segundo Marcus, que é seu duplo ou um desdobramento de si mesmo, começa a cobrálo, lembrando a todo instante que ele precisa realizar esse trabalho. Marcus tenta, mas não consegue se concentrar, então, resolve dedicar-se à leitura de Homero, e logo começa a escrever versos. Varro deu a seu texto um caráter cômico, mas apesar da intenção de fazer humor, influenciou Santo Agostinho, que escreveu Solilóquios, na busca de outro de si para encontrar * Doutora em Letras pela USP. Professora na Universidade São Marcos. 33TEMA Deus. No livro Duas Cidades, Agostinho expõe e comenta a obra de Varrão. Marcus Terentius Varro escreveu várias sátiras menipéias, apresentando representações de cidades simbólicas, viagens imaginárias, cenas grotescas, aventuras impossíveis. Mas ia muito além da imaginação, produzindo obras não ficcionais, escrevendo vários outros trabalhos, em que se incluíam agricultura, geografia, direito, revelando seu vasto conhecimento enciclopédico sobre a produção científica e cultural de sua época. Desde essa época, muitos textos têm sido escrito sobre literatura fantástica, provocando arrepios e enlevo nos seus leitores em todo o mundo. É comum a focalização do duplo, sempre relacionado, e de modo variado, à dicotomia corpo/alma, e essa fragmentação do personagem entre o eu e o outro invariavelmente provoca sobressaltos, estranheza, curiosidade, encantamento nos milhões de aficcionados desse gênero. Grandes escritores têm produzido belas obras nesse campo, entre os quais podemos citar Hoffmann, Allan Poe, Dostoievski, Cortázar, Jorge Luiz Borges, Machado de Assis, Saramago, Oscar Wilde, Guimarães Rosa, entre outros. Hoffmann, que se tornou referência com O homem de areia, escrito no século XVlll, publicou um conto, O pote de ouro, onde ocorre um desdobramento do personagem, o estudante Anselmo, que ao passar por um ritual de iniciação experimenta uma transformação ontológica, que é ascender ao reino de Atlântida, após se distanciar da dimensão terrena. O desdobramento de Anselmo poderia ser entendido como um fenômeno de transgressão, como se diz na literatura, para a descrição de fenômenos referentes ao duplo 34TEMA representado por corpo/alma, e daí a ocorrência de migração de alma, ou, ainda, transferência ou substituição psicológica. A Ilha Ao Meio-dia Julio Cortázar lida com o duplo de um modo poético, que decompõe as certezas cartesianas, recuperando o homem que existia antes dos processos civilizatórios, trazendo de volta um tempo que existia antes da História, quando percepção e fantasia se misturavam sem culpas nem censuras. No caso do conto aqui abordado, o autor descreve um estado de aparente normalidade, ou de realidade plausível, que só é alterado no final, quando elementos estranhos entram no texto, sugerindo um terrível fenômeno de projeção. No conto “La isla a mediodia”, o duplo de Marini, projetado, talvez, pelo fluxo incessante de seu desejo de visitar a ilha, vai realizar pelo Marini real a sonhada viagem, antes da queda do avião, numa narrativa que prima pelo encadeamento lógico, onde nada denuncia o embaralhamento dos dois sujeitos que existem numa mesma pessoa. Cortázar fala sobre Marini, um comissário de bordo que pela janela oval do avião avistava, todas as semanas, uma ilha pequena e solitária, rochosa e deserta, que parecia uma tartaruga ancorada no espesso azul. Sempre que o avião passava sobre a ilha, ao meio-dia, êle fazia o possível para encostar a testa no vidro da janelinha da cauda e ficar, por alguns segundos, olhando para baixo, encantado. Até se esquecia dos passageiros, olhando, sonhando em visitar a ilha. Começou a juntar dinheiro para fazer a viagem, marcou que iria nas férias, mas conseguiu um empréstimo 35TEMA e antecipou a viagem. Era uma viagem difícil, que exigia vários trajetos, mas foi cumprindo as etapas, até chegar a Rynos e lá contratou um velho barco, cujo capitão levou-o até a ilha e lá apresentou-o Klaio, um velho pescador que parecia ser o patriarca da ilha. Este estava em companhia de seus dois filhos, todos deram boas vindas a Marini e depois foram cuidar de seus barcos. Era ainda muito cedo, Marini estava contente, reconhecendo a ilha, vinte habitantes, cinco casas, polvos, redes de pesca. Marini foi caminhando pela ilha, sentiu que desejava ficar ali para sempre, poderia aprender a pescar, ajudar os pescadores. Na caminhada, percebeu que duas mulheres olharam para ele com assombro, correndo a se esconderem – mas não se importou, continuando o passeio. Mergulhou no mar, sentindo a água deliciosa, recostou-se nas pedras mornas para se enxugar, sentindose extremamente feliz. Era quase meio dia, quando Marini ouviu o zumbido do motor e entendeu que o avião estava caindo. Saiu correndo no sentido da praia, viu, na distância, que a cauda do avião afundava. Nadou procurando ajudar, até que viu uma mão fora da água, e avançou, agarrando pelos cabelos um homem que também se agarrava a êle, e assim, devagar, veio conduzindo esse homem que respirava com dificuldade, até que conseguiu tomá-lo nos braços. O homem estava vestido de branco, o pescoço tinha um corte profundo, por onde o sangue jorrava. Quando Klaio, seus dois filhos e outros moradores da ilha chegaram, viram o cadáver de olhos abertos, com marcas fundas de ferimentos e ficaram sem compreender como aquele homem tão ferido tinha conseguido, sozinho, nadar até chegar à praia. Espantados, cuidaram de fechar os olhos do morto, sem conseguir entender sua presença TEMA 36 na areia. Aquele corpo era a única novidade que chegara à ilha; antes dele, mais nada, nem ninguém. O Fantástico em Guimarães Rosa : Tutaméia No livro Tutaméia, há um conto, Estória nº 3, que fala de Joãoquerque, um sujeito medroso e covarde, “avergado homenzarrinho, que ora se gelava em azul angústia, retomando os beiços, mas branco de laranja descascada, pálido de a ela (Mira) lembrar os mortos”. Esse homenzarrinho era namorado de Mira, e, na casa dela, enquanto a moça fritava bolinhos, conversavam amenidades, quando foram surpreendidos com a chegada de Ipanemão, um valentão que gostava de Mira, homem “cruel como brasa mandada, matador de homens, violador de mulheres, incontido e impune como o rol de flagelos”. Apavorado, e sob a proteção de Mira, Joãoquerque foge pela porta dos fundos, e, no escuro, imagina que está perto dos capangas de Ipamenão, que não tem saída, então decide morrer, procurando convencer-se de que morrer é sossegado, vale a pena. A oposição de Ipamenão a Joãoquerque já começava pelo nome: Ipamenão deriva de Panema, que aparece no Dicionário Aurélio com os seguintes significados: Panema. Do tupi pa’ nema. Adj. 1. Que ou quem é infeliz na caça e/ou na pesca. 2. Que ou quem é infeliz na vida, azarado, caipora. 3. Que ou quem é vítima de feitiço. Considerando-se o enredo, verifica-se que qualquer um dos significados registrados pelo dicionário, ou mesmo todos, pode ser aplicado a Ipanemão, que, além disso, apresenta, pelo sufixo ão o aumentativo de suas qualidades. 37TEMA O texto caracteriza esse personagem de modo bastante coerente com a sua significação lexical. Além das descrições já citadas, o narrador ainda apresenta outras: “Ipanemão, rompedor de harmonia, demoniático”. “Ipanemão, cão, seguro em enredo de maldade da cobra grande, dele ninguém se livrava, nem por forte acaso”. Ao contrário do homenzarrão Ipanemão, Joãoquerque não passava de um homenzarrinho que, de tão medroso, quando se viu ameaçado por Itapemão não teve sequer iniciativa para fugir. Precisou ser “empurrado pois, Mira, mesma mandou-o ir-se”. Além de medroso, destituído de iniciativas, Joãoquerque era ainda desajeitado, tendo encontrado dificuldades quando tentou fugir: “custou-lhe rodar a tramela”. E quando corria entre árvores: “nelas topava ou relava, às tortas de labirinto”. Mas ao sentir que pode mesmo ser morto e já, percebe que medo e coragem fazem parte de uma mesma coisa, e decide mudar de lado, “então se representou sem ser do jeito de vítima”. E avistando um machado, e “no raro estado pendente, exilando-se de si”, pega esse machado e parte para enfrentar Itapemão. “Ao exilar-se de si” êle descobre que é o outro, e, ao vê-lo, Itapemão treme, “pendeu o rosto, desditado”. Joãoquerque havia realizado o reconhecimento de si no outro, e nessa inversão de papéis, Itapemão se descobre vítima, diante de um valente que tem “cara de cão que não rosna”. Ao assumir o outro, Joãoquerque surpreendeu a todos, como diz o texto. “Desreconheceram o vindo Joãoquerque, por contra que tanto sabido e visto. Mais o viam desvirado convertido. Foi aliás de modo imoderado que êle chegou”. O reconhecimento de Joãoquerque de si no outro, ocorreu de repente e de um modo que ele não esperava. 38TEMA Aconteceu quando fugia e, em estado de pânico, sentiu que seria morto porque ninguém escapava de Itapemão “nem por forte acaso”. Entregou-se à idéia de morrer, tentando convencer-se de que esse sossego valia a pena. Pensou em Mira, seus olhos, e neles enxergava invertido. Itapemão invertido era covarde, fraco, medroso. Expeliu de si essas más qualidades, para o outro, para livrar-se delas. Pensava essas coisas, “estava deitado de costas, conforme num buraco analfabeto para as estrelinhas. Foi nessa altura que êle não caiu em si. Tenho tempo, se disse. Teve o esquecimento, máquinas nos ouvidos”. Foi o instante da revelação. “O medo depressa se gastava? – caía nas garras do incompreensível. Foi quando viu o machado. “Então, se levantou, e virou volta”. Encontrou Itapemão assando carne na frente da casa de Mira. O valentão vira-lhe as costas para evitar a presença e o olhar. “Olhe!” ordena Joãoquerque, que agora é o outro, o antigo Itapemão – e quer que o outro, antes de ser golpeado, veja o machado que tem nas mãos. Conclusões Já Platão falava sobre a punição de Zeus, imposta aos humanos, que separou seus corpos, que eram duplos, com uma espada, e até hoje cada um vive angustiado a procura de sua metade perdida. Isto é dito aqui apenas para lembrar que a questão do duplo é, de fato, muito antiga. Além da necessidade de se tornar uma unidade, a partir do encontro do amor, que lhe devolveria sua metade perdida, desde tempos imemoriais o homem admite ser constituído de corpo/alma, e essa unidade pode se desfazer, com o deslocamento da alma, que se destaca do corpo, automatizando-se a partir desse deslocamento – e isso é motivo de terror, pois a outra metade é fluida, intocável, 39TEMA ameaçadora, aterrorizante, e vagueia sem consciência de sua situação real, podendo fazer malefícios incalculáveis àqueles com que se defronta. A morte também promoveria a separação corpo/alma e os vivos, receosos, criaram rituais para harmonizar as relações entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, tentando evitar a interferência desses duplos nas suas vidas. Esse longo histórico, cheio de suspenses e inquietações, tornou-se, é claro, importante tema a ser tratado pela literatura e o cinema. O modo de tratar o duplo apresenta variações, como multiplicação, divisão física ou psíquica, identidade dos contrários, predominando geralmente a busca da alteridade através da ambivalência, a hesitação entre o real e o imaginário, a quebra de um ritmo ordeiro, tranqülo pela irrupção de algo inadmissível, que provoca sobressaltos. Quando o texto é de Julio Cortázar, invariavelmente o leitor terá diante de si a poetização de um discurso aberto à imaginação; o retorno do espaço mítico, onde o cotidiano é marcado por um corpo-a-corpo entre o real e o imaginário, como ocorre no conto “A ilha ao meio-dia”. Neste conto, enquanto o Marini real permanecia no avião a projeção de seu duplo para a ilha teria sido impulsionada pelo fluxo incessante de seu forte desejo de visitar aquela porção de terra, “pequena e solitária”, “rochosa e deserta” que parecia “uma tartaruga ancorada no espesso azul” . Em Tutaméia, no Conto Nº 3, Guimarães Rosa lida com um eu que se desencontra de si e encarna o outro. É o que acontece com Joãoquerque, que, ao alcançar o reconhecimento de si no outro, assume o seu contrário e destrói o corpo que o ameaçava. Neste texto, entendo que tanto no caso de Varrão, Hoffmann, Cortázar e outros grandes autores, vale a palavra 40TEMA de Freud, quando afirmou: “O escritor imaginativo tem, entre muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo de representação, de modo que este possa coincidir com as realidades que nos são familiares ou afastar-se delas o quanto desejar”. BIBLIOGRAFIA CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos fogo. Rio de Janeiro: Record,1969. CORTÁZAR, Julio. Final de juego. Buenos Aires: Sudamericana,1969. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,1978. PLATÃO. O banquete. Rio de Janeiro: Difusão Européia do Livro,1986. RAMA, Angel (org.). Os primeiros contos de dez mestres da narrativa latino-americana. Rio de Janeiro :Paz e Terra.1978 ROSA, Guimarães. Tutaméia (Primeiras histórias). Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. 41TEMA Olga Maria Loreto* O DESGOSTO DE MÁRIO DE ANDRADE MÁRIO DE ANDRADE IN DEGUST E m 1942, a Casa do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro, resolveu comemorar os vinte anos de aniversário da Semana de Arte Moderna, e convidou Mario de Andrade para realizar uma palestra sobre o Movimento Modernista. O evento ocorreu no auditório da Biblioteca do Itamarati, em 30 de abril de 1942. O grande escritor discorria sobre o tema, quando mudou de tom, surpreendendo a atenta platéia. Começou a inventariar a sua vida, para falar de seu desgosto, do mal estar que a sua vida causava a si próprio. Aqui vamos transcrever sua cruel auto-crítica, para depois tecermos alguns comentários. A Fala de Mário: Marchem com as Multidões “Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, muitas coisas! E no entanto me sobra agora a * Professora na FZL. Mestranda em Letras. 42TEMA sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de meus companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou repisando o que já disse a um moço... E outra coisa senão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos se fazendo, não me levaria a essa confissão bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a insuficiência do abstencionismo. Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas obras uma caducidade de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Devíamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma vez só pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz. Não me imagino político de ação. Mas nós estamos vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um Amador Bueno qualquer, falando “não quero” e me isentando da atualidade por detrás das portas contemplativas de um TEMA 43 convento. Também não me desejaria escrevendo páginas explosivas, brigando a pau por ideologias e ganhando os louros fáceis de um xilindró. Tudo isso não sou eu nem é pra mim. Mas estou convencido de que deveríamos ter nos transformado de especulativos em especuladores. Há sempre jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, no embaçado duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condições atuais do mundo. Não. Viramos abstencionistas abstêmio e transcendentes. Mas por isso mesmo que fui sinceríssimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com todas as minhas cartas à vista, alcanço agora esta consciência de que fomos bastante inatuais. Vaidade, tudo vaidade... Tudo o que fizemos... Tudo o que eu fiz foi especialmente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em que vivemos. É aliás o que, com decepção açucarada, explica historicamente. Nós éramos os filhos de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre. E já mostrei que o movimento modernista foi destruidor. Muitos porém ultrapassamos essa fase destruidora, não nos deixamos ficar no seu espírito e igualamos nosso passo, embora um bocado turtuveante, ao das gerações mais novas. Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiram a minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que não terei passeado apenas, me iludindo de existir?... É certo que eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgraças dos homens. É certo que pretendi regar a minha obra de orvalhos mais generosos, sujá-la nas impurezas da dor, sair do limbo “ne trista ne lieta” da minha felicidade pessoal. Mas pelo próprio exercício da felicidade, mas pela própria altivez sensualíssima do individualismo, não me era 44TEMA possível renegá-los como um erro, embora eu chegue um pouco tarde à convicção de sua mesquinhez. A única observação que pode trazer alguma complacência para o que eu fui, é que eu estava enganado. Julgava sinceramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei, ninguém não imagina o quanto, a minha obra - o que não quer dizer que se não fizesse isso, ela seria melhor... Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, beleza divina. Mas eis que chego a este paradoxo irrespirável: Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado. Mudar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou na rampa dos cinquenta anos e que os meus gestos agora já são todos... memórias musculares?... Ex omnibus bonis quae homini tribuit natura, nullum melius esse tempestiva morte... O terrível é que talvez ainda nos seja mais acertada a discreção, a virarmos por aí cacoeteiros de atualidade, macaqueando as atuais aparências do mundo. Aparências que levarão o homem por certo a maior perfeição de sua vida. Me recuso a imaginar na inutilidade das tragédias contemporâneas. O Homo Imbecilis acabará entregando os pontos à grandeza do seu destino. Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase TEMA 45 integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão “momentâneo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar para depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amelhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade. Se de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões. Aos espiões nunca foi necessária essa “liberdade” pela qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem?... Será que o direito é uma bobagem?... A vida humana é que é alguma coisa a mais que as ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há-de vir”. Comentários Um olhar sobre a trajetória humana e intelectual de Mario de Andrade logo evidencia que ele jamais ficou sentado à beira do caminho espiando a multidão passar. Mas, sem dúvida, é oportuno que alerte, que recomende às pessoas, e, em especial, aos intelectuais que não sejam espiões da vida, camuflados de técnicos, vendo a multidão passar. É excelente a exortação para que “Marchem Com as Multidões”, porque o sentido dessa marcha, segundo ele próprio, é o “amelhoramento político e social do homem”. 46TEMA É importante observar em sua autocrítica ao seu aristocracismo à tomada de consciência de que se vivia uma idade política do homem e era a isso que devia servir, uma lição para que as novas gerações reflitam sobre o papel do intelectual brasileiro. Para que seja banida da intelectualidade a crença na neutralidade da “inteligência brasileira”, que muito longe de ser “neutra” presta-se a antiga indiferença das camadas senhoriais perante os imensos contingentes populacionais do país, cujo padrão de vida situa-se nos limites inferiores ao mínimo necessário à sobrevivência digna de um ser humano. TEMA 47 Ivo Gonçalves* OS DEZ DIAS QUE ABALARAM O MUNDO: OBRA PRIMA DO JORNALISMO LITERÁRIO TEN DAYS THAT SHOOK THE WORDL: MASTERPIECE OF LITERARY JOURNALISM É comum dizer que o jornalismo tem vôo curto, a matéria publicada morre no dia seguinte. Mas quem pensa assim, com certeza desconhece textos como os de John Reed, que escrevia no mais puro estilo do jornalismo literário. Quem quiser, pode ler hoje Os dez dias que abalaram o mundo, encantar-se com a beleza de seu relato e surpreender-se com a imensa atualidade de uma obra escrita em 1917 e publicada nos Estados Unidos em 1919. Esse tipo de jornalismo foi chamado por Gabriel Garcia Marques de jornalismo narrativo. Foi ainda denominado de new jounalism e periodismo de narración. Para ampliar a carga expressiva dos relatos, vale-se de técnicas de produção de textos ficcionais, para narrar fatos verdadeiros, completamente divorciados de qualquer ficção. Basta observar a descrição do comportamento dos diferentes grupos sociais envolvidos na questão russa, antes e durante a revolução que estourou em Petrogrado, ou * Mestre em Ciências Sociais, doutorando em Antropologia. 48TEMA as descrições da lutas entre os argumentos e ações usados pelos adeptos de Lenin e de Kerensk, para que o leitor se sinta como participante de uma grande e movimentada aventura. Reed narra as várias faces da população russa, naqueles dramáticos momentos, ressaltando os teatros lotados de elegantes frequentadores, festas luxuosas, passeios, como se nada estivesse acontecendo, enquanto ocorria a ação de especuladores que se aproveitavam da desorganização total, para amontoarem fortunas, que eram dispendidas em fantásticas orgias, ou no suborno de altos funcionários do governo, enquanto trabalhadores se organizavam para a grande luta. Nesse quadro, entre os pobres, a fome crescia, ao mesmo tempo que gêneros de primeira necessidade e alimentícios iam desaparecendo, armazenados clandestinamente ou exportados para a Suécia. Força Descritiva A beleza e precisão do texto de John Reed fica bem evidente na descrição que faz do belo edifício de três andares, que ostentava na fachada enorme e insolente brasão colonial, talhado na pedra em alto relevo. Ali havia sido usado pelos filhos da nobreza como escola, mas fora depois ocupado por operários e soldados. A reportagem descreve os novos usos adotados, semanas antes da revolução, como mostra a transcrição seguinte: “O Instituto Smólni, quartel-general Comitê Central dos Sovietes de Petrogrado, do Tsik e do Soviete de Petrogrado, encontrava-se a vários quilômetros da cidade, às margens do Nievá. Tomei um bonde lotado, que serpenteava e gemia, afundando-se no barro. No fim da linha, elevavam-se as elegantes cúpulas azuis do Smólni, grande edifício de três andares, com fachada de 49TEMA quartel, de duzentos metros de comprimento. Ostentava, sobre a porta de entrada, enorme e insolente brasão imperial, talhado na pedra, em alto-relevo. As organizações revolucionárias de operários e de soldados tinham-se apossado do Instituto, que, no antigo regime, fora convento-escola para os filhos da nobreza russa, patrocinado pela própria czarina. No interior, havia para mais de cem quartos e salas, brancos e vazios. Placas esmaltadas, no alto das portas, indicavam os visitantes que ali ficava a Sala de aulas número 4, mais adiante a Sala dos professores, etc. Pedaços de cartão, em lugar de placas, com letreiros mal desenhados, recentemente afixados nas portas, revelavam, no entanto, que o edifício tinha novas funções: “Comitê Central dos Sovietes de Petrogrado”, “Tsik”, “Departamento das Relações Exteriores”, “União dos Soldados Socialistas”, “Comitê Central Pan-Russo dos Sindicatos”, “Comitês de Fábricas”, “Comitê Central do Exército”. Em outras salas, realizavam-se as sessões dos departamentos centrais e as reuniões dos partidos políticos. Através dos corredores, iluminados por lâmpadas colocadas aqui e acolá, passava uma multidão apressada de operários e soldados. Alguns vinham curvados sob o peso de grandes maços de jornais e de manifestos, isto é, de material de propaganda de toda espécie. O ruído das grossas botas sobre o assoalho lembrava um trovão surdo. Pelos cantos, viam -se cartazes com os seguintes dizeres: “Camaradas! No interesse da sua própria saúde, cuidem da higiene!” Em cada andar, no alto das escadas, haviam sido colocadas mesas para a venda de folhetos e publicações políticas. No grande refeitório de teto baixo, do andar térreo, estava instalado o restaurante. Comprei por dois rublos um talão dando direito a uma refeição. Entrei na fila de milhares de pessoas que esperavam a vez, encaminhando-se para 50TEMA o balcão onde vinte homens e mulheres serviam sopa de verduras, pedaços de carne, montanhas de cacha (mingau de aveia) que tiravam de imensos caldeirões, e pedaços de pão preto. Por cinco copeques (moeda divisionária, centésima parte do rublo) podia-se tomar uma xícara de chá. Cada pessoa, depois de receber o prato, apanhava uma colher de madeira no interior de um cesto sujo de gordura. Os bancos, ao lado das mesas, estavam repletos de proletários famintos, que comiam trocando impressões, forjando planos ou dizendo gracejos mais ou menos pesados. No primeiro andar havia outro restaurante, reservado ao Tsik, mas onde todo mundo entrava. Nele, qualquer um podia servir-se de chá à vontade, distribuído em grandes bules, e de pão com manteiga. No segundo andar, na ala sul do edifício, ficava o antigo salão de baile, transformado agora na grande sala de sessões. Era enorme, de teto alto e paredes brancas, iluminado por centenas de lâmpadas elétricas pendentes de candelabros de cristal e dividido ao meio por dois grandes lustres de vários braços, atrás do que se via uma moldura de ouro, de onde fora retirado o retrato do czar. Nos dias solenes, brilhavam nessa sala os reluzentes uniformes dos oficiais, as vestes eclesiásticas...Havia até um lugar especial reservado às grã-duquesas... Do outro lado do corredor, justamente em frente ao grande salão de sessões, instalara-se o Comitê de Credenciais do Soviete, no qual se apresentavam os delegados: soldados fortes e barbudos operários de blusas pretas, alguns camponeses com longa cabeleira caída sobre os ombros. A moça encarregada do serviço, membro do grupo Plekhânov sorria desdenhosamente: - Não se parecem nada com os delegados do primeiro congresso - disse-me ela. - Veja que fisionomias abrutalhadas e que expressões de ignorância! Que gente inculta! 51TEMA E não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as entranhas. Os que se achavam nas maiores profundidades é que estavam agora vindo à superfície. O Comitê de Credenciais, nomeado pelo Tsik, procurava impugnar o mandato de cada delegado, inventando motivos para declará-lo sem valor, alegando quase sempre que as eleições tinham sido ilegais, etc. Karakan, membro do Comitê Central Bolchevique, limitava-se a sorrir, dizendo aos delegados: - “Não se assustem. Quando chegar o momento, faremos vocês ocuparem seus lugares. Não se preocupem”. O Rabótchi i Soldai escrevia a respeito: “Chamamos a atenção dos novos delegados do Congresso Pan-Russo para o fato seguinte: certos membros do Comitê de Organização, desejando impedir a realização do congresso, andam dizendo que ele não mais se reunirá e aconselhando os delegados a embarcar de regresso. Não dêem importância a esse amontoado de mentiras. Grandes dias se aproximam”. Era evidente que o quorum não seria atingido ainda a 2 de novembro. Por isso, foi necessário transferir a abertura do congresso para o dia 7. Mas o país estava grandemente excitado. Os mencheviques e socialistas revolucionários, percebendo que iam ser derrotados, mudaram repentinamente de tática. Começaram a telegrafar às organizações das províncias, aconselhando-as a eleger o maior número possível de socialistas moderados. Além disso, o Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses resolveu convocar, urgentemente, 52TEMA um congresso camponês, para o dia 13 de dezembro, a fim de anular todas as resoluções adotadas pelo Congresso dos Sovietes de Operários e Soldados. Que iriam fazer os bolcheviques? Corria o boato de que os operários e soldados estavam preparando uma demonstração armada. A imprensa burguesa e reacionária profetizava uma insurreição e aconselhava o governo a prender o Soviete de Petrogrado ou, ao menos, a impedir a reunião do congresso. Alguns jornais, como o Novata Russ, preconizavam a matança geral dos bolcheviques. O jornal de Górki, Nóvaia Jizn, concordava com os bolcheviques na afirmação de que os reacionários se esforçavam por destruir a revolução e achava que, caso fosse necessário , os primeiros deveriam resistir pela força e pelas armas, porém, todos os partidos da democracia revolucionária deveriam formar uma frente única. “Enquanto a democracia não tiver organizado suas forças mais importantes e encontrar ainda forte resistência, não haverá vantagens em atacar. Mas, se os elementos hostis recorrerem à força, então a democracia revolucionária deverá travar a luta para tomar o poder e nesse empreendimento será sustentada pelas camadas mais profundas do povo.” Górki assinalou que as duas imprensas, a reacionária e a governista, incitavam os bolcheviques à violência. Acrescentava, outrossim, que uma insurreição abriria o caminho para o advento de um novo Kornilov. Por isso, aconselhava os bolcheviques a desmentirem os boatos que circulavam. Petressov, no Dien (O Dia), órgão menchevique, publicou um artigo sensacional, acompanhado de um mapa que, segundo ele, revelava o plano secreto da insurreição bolchevique. Como por encanto, as paredes encheram-se de avisos, manifestos, convites, etc, dos comitês centrais 53TEMA dos moderados e conservadores, assim como do Tsik, atacando qualquer “manifestação” e pedindo aos soldados e operários que não dessem ouvidos aos agitadores. Eis, por exemplo, a proclamação da seção militar do Partido Socialista Revolucionário: Novamente, circulam boatos a respeito de um golpe de força que estaria sendo planejado. Qual é a origem desses boatos? Que organização consente que seus agitadores preguem a insurreição? Os bolcheviques, interrogados pelo Tsik, afirmaram que não preparam nenhuma sublevação. Entretanto, corremos perigo, porque essas notícias estão se espalhando. É possível que alguns exaltados, contrariando os sentimentos e a vontade da maioria, procurem excitar os operários, os soldados e os camponeses, e arrastálos à insurreição. Nos momentos graves, como o que presentemente atravessa a Rússia revolucionária, qualquer levante pode desencadear uma guerra civil de conseqüências funestas, que seria talvez a destruição total de todas as organizações que o proletariado construiu com enormes sacrifícios. Os conspiradores contra-revolucionários desejam a insurreição para exterminar a revolução, abrir caminho para Guilherme II e impedir a convocação da Assembléia Constituinte. “Ninguém deve abandonar o seu posto! “Abaixo a insurreição!” Num dos corredores do Smólni, a 28 de outubro, falei com Kamenev, homem baixinho, de barba ruiva e atitudes de latino. Ainda não sabia ao certo se os delegados já eram em número suficiente para a abertura do congresso. - Se o congresso se realizar - disse-me ele - será a expressão da vontade de esmagadora maioria do povo. Se a maioria estiver do lado dos bolcheviques, como espero, exigiremos que todo o poder passe aos sovietes. 54TEMA Desse modo, o Governo Provisório desaparecerá. Volodarski, jovem, alto, pálido, de óculos, aspecto doentio, disse-me categoricamente: - Lieber, Dan e os demais oportunistas estão sabotando o congresso. Caso consigam impedir sua realização, seremos suficientemente realistas para passarmos por cima. Nos meus apontamentos, com a data de 29 de outubro, encontro os seguintes trechos dos jornais do dia: “Moguilev (Quartel-General): Concentraram-se aqui os regimentos leais da Guarda, a Divisão Selvagem, os cossacos e os Batalhões da Morte. “Os junkers (rapaz nobre, aluno oficial) das escolas militares de Pavlóvski, Tsárskoie-Tseló e Peterhof receberam ordens do governo para se aprontarem a fim de, ao primeiro sinal, marcharem sobre Petrogrado. Os junkers de Oranienbaum já estão na capital. “Parte da divisão de carros blindados foi concentrada no Palácio de Inverno. Mediante uma ordem assinada por Trótski, a fábrica de armas de Sastroretsk entregou aos delegados dos operários de Petrogrado muitos milhares de fuzis. “Numa reunião da guarda municipal, no bairro do Baixo-Liteinii, aprovou-se uma moção, pedindo a transferência de todo o poder aos sovietes.” Tais notas dão uma idéia exata da confusão reinante nesses dias febris. Todos sentiam que alguma coisa ia acontecer, mas ninguém sabia o quê. Na noite de 30 de outubro, numa sessão do Soviete de Petrogrado, no Smólni, Trótski repeliu com desprezo as afirmações da imprensa burguesa. 55TEMA Os jornais burgueses diziam que o Soviete considerava a insurreição armada como uma tentativa dos reacionários paradesacreditar e provocar a falência do congresso. O Soviete de Petrogrado - disse Trótski - não está preparando nenhuma demonstração armada. Mas, se for necessário, nós a faremos, e teremos ao nosso lado a guarnição de Petrogrado. O governo prepara a contra-revolução. A nossa resposta será uma ofensiva implacável e decisiva. De fato, o Soviete de Petrogrado não ordenara qualquer demonstração. Mas o Comitê Central do Partido Comunista estudava a insurreição. Passou a noite do dia 23 reunido. Estavam presentes todos os intelectuais do Partido, os dirigentes e os delegados dos operários e da guarnição de Petrogrado”. Posição dos Intelectuais É impressionante a riqueza de detalhes com que John Reed descreve as divergências de posicionamentos e alinhamentos naquele momento. Os prós e os contras a revolução iam se definindo. Como se fosse uma obra ficcional, o jornalista descreve os acontecimentos, ao mesmo tempo que faz com palavras uma fotografia do prédio onde os eventos se desenrolavam, sua beleza arquitetônica, e os contrastes entre a nobreza dos salões e o novo público que os frequentavam, bem como a simplicidade das refeições disponíveis. “Entre os intelectuais, só Lênin e Trótski eram pela insurreição. Os próprios militares manifestavam-se contra. Passou-se à votação. Os partidários da insurreição ficaram em minoria. Levantou-se, então, um trabalhador, de aspecto rude, terrivelmente indignado, furibundo: - Falo em nome dos proletários de Petrogrado - disse brutalmente. - Somos pela 56TEMA insurreição. Vocês façam o que bem entenderem. Mas eu os previno: se deixarem que os sovietes sejam destruídos, vocês morrerão para nós. Alguns soldados o apoiaram. A questão foi novamente posta em votação. E venceu! A ala direita dos bolcheviques, contudo, dirigida por Riaza nov, Kamenev e Zinoviev, continuou a bater-se contra a sublevação armada. O Rabótchi Vut, a 31 de outubro, pela manhã, começou a publicar a “Carta a meus camaradas” de Lênin, um dos mais audaciosos escritos de agitação política de todos os tempos. Lênin defendia a insurreição, rebatendo as objeções formuladas por Kamenev e Riazanov. “Ou renunciamos à nossa palavra de ordem ‘Todo o poder aos sovietes’ “, escrevia, “ou fazemos a insurreição. Não há outra alternativa.” Nesse mesmo dia, à tarde, Miliukov, dirigente dos cadetes, pronunciou brilhante e violento discurso no Conselho da República. Apontou o nacaz de Skobeliev como documento germanófilo, e declarou que a democracia revolucionária estava levando a Rússia à ruína. Ridicularizou Terestchenko e chegou a dizer que preferia a diplomacia a lemã à russa. Na bancada da esquerda houve tumulto. Mas o governo, por seu lado, não podia ignorar o efeito da propaganda bolchevique. No dia 29, uma comissão mista de representantes do governo e o Conselho da República redigiu apressadamente dois projetos de lei. Um deles entregava a terra temporariamente aos camponeses. O outro lançava as bases de uma enérgica política de paz. No dia 30, Kerenski aboliu a pena de morte no Exército. Nesse 57TEMA mesmo dia, à tarde, realizou-se, com a maior solenidade, a sessão inaugural da nova Comissão para o Fortalecimento do Regime Republicano e para a Luta contra a Anarquia e a Contra-Revolução,que, aliás, não deixaria nenhum vestígio na história. No dia seguinte, pela manhã, em companhia de um grupo de jornalistas, entrevistei Kerenski. Foi sua última entrevista, como chefe do governo: - O povo russo - disse, com amargura - sofre em virtude do esgotamento econômico e está desiludido com os Aliados. O mundo pensa que a Revolução Russa está terminando. Engana-se. A Revolução Russa mal começou... Essas palavras foram bem mais proféticas do que o próprio Kerenski supunha. A reunião do Soviete de Petrogrado, que durou toda a noite de 30, foi agitadíssima. Eu estava presente. Socialistas moderados, intelectuais, oficiais, membros dos comitês do Exército e do Tsik, em grande número, assistiam à sessão. Os operários, camponeses e soldados, na sua linguagem simples, levantavam-se contra eles atacando-os com veemência. Um camponês referiu-se às desordens de Tvier, causadas, segundo disse, pelas prisões dos comitês agrários. - Esse Kerenski nada mais é que um testa-de-ferro dos grandes proprietários - gritou. - Sabem que na Assembléia Constituinte nós lhes arrebataremos as terras. É por isso que tentam dissolvê-la. Um mecânico da fábrica Putilov disse que os diretores estavam fechando as seções da fábrica, uma por uma, sob o pretexto de que não havia mais combustível nem matériasprimas. Mas o comitê da fábrica descobria, escondida, grande quantidade de combustível e de matérias-primas. 58TEMA - Estamos sendo provocados - acrescentou. - Querem aniquilar-nos pela fome e obrigar-nos a agir violentamente. Outro orador, soldado, começou assim: - Camaradas! Trago-lhes as saudações daqueles que, nas trincheiras, estão cavando as próprias sepulturas. Em seguida, ergueu-se outro soldado, moço, alto, porém alquebrado, e de olhos relampejantes. Foi recebido por uma tempestade de aplausos. Era Tchudnovski, que passava por morto desde os combates de julho e que, agora, ressuscitava. - As massas do Exército não têm mais nenhuma confiança nos oficiais. Os próprios comitês do Exército, que se opuseram à reunião do nosso soviete, também nos traíram. Os soldados querem que a Assembléia Constituinte se reúna na data fixada! E ai daqueles que procurarem transferi-la! Não é uma ameaça platônica o que afirmo, porque o Exército tem canhões”! Falou, depois, da campanha eleitoral, em pleno desenvolvimento no 5° Exército. - Os oficiais, principalmente os mencheviques e os socialistas revolucionários, trabalham sistematicamente pela derrota dos bolcheviques. Nossos jornais não podem circular livremente nas trincheiras. Nossos oradores são presos.. . - Por que não menciona a falta de pão? - gritou outro soldado. - Não se vive só de pão - respondeu Tchudnovski, rispidamente...” Assim, Reed continua contando com detalhes tudo o que ocorreu, e o leitor avança com êle nesses dias tumultuados 59TEMA que mudaram a história do mundo, mostrando a emergência de um novo tipo de sociedade - a socialista. Porque após a vitória de Lênin, nem o capitalismo conseguiu se manter como era. Nem o Estado de Bem Estar Social teria surgido. Os dez dias que abalaram o mundo é uma obra que além de fornecer informações precisas sobre a revolução russa, vai mais longe, constituindo-se numa bela obra de arte. 60TEMA Documento : A História Através da Arte 61TEMA 62TEMA A História Através da Arte OS RETIRANTES - Portinari 63TEMA 64TEMA