SUMÁRIO - Edição Atual

Transcrição

SUMÁRIO - Edição Atual
SUMÁRIO
O poeta e a câmara lambe-lambe. Aqui
são mostradas as relações entre alguns
poemas de Oswald de Andrade, onde o
poeta, intencionalmente, coloca-se como
um fotógrafo lambe-lambe, escrevendo os
poemas como se fotografasse praças públicas,
animais, pessoas, a cidade em crescimento,
com a transformação da paisagem urbana. Por
Zenaide Bassi Ribeiro Soares.
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O teatro de Garcia Lorca. Adriana Holstein,
aqui, trata do teatro de Garcia Lorca que dava
voz a mulheres, homossexuais, desvalidos
em geral. Analisa a situação da mulher, da
submissão que lhe era imposta, junto com a
falta de liberdade e o silêncio. Trata, ainda, do
panorama político da época, onde a Falange,
grupo partidário ancorado no fascismo,
dominava a Espanha.
O duplo em Julio Cortázar e Guimarães Rosa é
aqui discutido por Solange Delboni, que abre
o trabalho mostrando Varrão, que, na Roma
antiga, escreveu sobre Bimarcos, o Marcos
que tinha dupla personalidade – o mais
antigo caso de duplo registrado na literatura
ocidental.
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33
TEMA
SUMÁRIO
Aqui, Olga Maria Loreto transcreve a auto-crítica
de Mário de Andrade, onde o músico e escritor fala
do mal estar que a sua vida causava a si próprio, e
tece comentários, recolocando a questão.
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Aqui, Ivo Gonçalves fala sobre Os dez dias
que abalaram o mundo, obra prima do
jornalismo literário, publicada em 1919. Escrita
pelo jornalista norte-americano John Reed,
descreve fatos ocorridos na Rússia, em 1917,
antes e durante a revolução dirigida por Lenin,
revelando grande atualidade, tantos anos mais
tarde.
A História através da arte.
Os retirantes, obra de Cândido Portinari.
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TEMA
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TEMA
Revista de Letras, Artes e História - Nº 4. Ano 2. Vol. II
Publicação vinculada ao Centro de Estudos de Letras, Artes e História - Celarth
Edição de Maio a Agosto de 1988
Editor Responsável:
Zenaide Bassi Ribeiro Soares – MTb 8607.
Conselho Editorial:
Prof. Dr. Alcides Ribeiro Soares (PUC-SP), Profa. Dra. Alessandra Moreira
Lima (USM), Profa. Dra. Maria Lúcia Pimentel de Sampaio Góes (USP), Profa.
Dra. Maria Elena Assumpção (USP), Profa. Magali Fialho Linge (FATEMA),
Profa. Ms. Mercedes Rosa (FZL), Prof. Ms. Paulo dos Santos (Facsul),
Profa. Dra. Rosa Maria Gregory (PUCCAMP), Profa. Dra. Solange Delboni
(Universidade São Marcos), Profa. Dra. Urquiza Maria Borges (UNESP), Profa.
Zenaide Bassi Ribeiro Soares (FATEMA).
Capa e ilustrações:
André Santos e Cláudio Barbosa.
Diagramação:
Miguel de Oliveira
Rua Fortunato, 291, cj. 408
Higienópolis - São Paulo - SP
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TEMA
TEMA Letras, Artes e História
R.TEMA
S.Paulo
TEMA
nº 04
maio/agosto 1988
P. 64
4
Apresentação
A
qui trataremos do teatro de Garcia Lorca, que
dava voz aos desvalidos, e, principalmente, às
mulheres a quem a sociedade espanhola impunha a
opressão e o silêncio.
A questão do duplo na literatura de Julio Cortázar e
de Guimarães Rosa também será abordada, logo após se
buscar as origens deste fascinante gênero num passado
distante, na Roma antiga, com Varrão, que escreveu
Bimarcus.
A obra jornalística de John Reed, que escreveu
Os dez dias que abalaram o mundo, para contar fatos
ocorridos em 1917, durante a revolução russa dirigida
por Lenin, é também relembrada, com sua extraordinária
força expressiva, além de surpreendente atualidade.
E tem muito mais. Oswald de Andrade é reencontrado
observando-se as relações entre alguns de seus poema e
a máquina fotográfica, quando o poeta, intencionalmente,
colocava-se como um fotógrafo ambulante, escrevendo
como se usasse uma máquina para fotografar animais,
bondes, pessoas, ruas, praças - a cidade de São Paulo
em plena transformação urbana.
Há, ainda, a fala de Mario de Andrade, onde avisa que
o modernismo foi “um toque de alarme” e adverte sobre
muitas coisas realmente importantes para o país, além de
precioso documento sobre a História através da Arte.
Zenaide Bassi Ribeiro Soares
Diretora Responsável
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TEMA
Zenaide Bassi Ribeiro Soares*
O POETA E A MÁQUINA LAMBE-LAMBE
THE POET AND THE LICK-LICK CAMERA
N
aquele tempo, “São Paulo era batido por todos
os ventos da cultura”, explicou Oswald Andrade,
o escritor que gostava da poesia das ruas e das
praças, que eram o lugar do diverso, do lúdico e do trágico,
sempre um ambiente fértil e criativo.
O poeta queria atravessar as aparências, tocar o
simbólico capturado pela máquina, como fazia o fotógrafo
ambulante, que enfiava a cabeça num saco escuro para
fotografar e depois lambia um canto do papel-filme para
fixar a imagem .
Todos se postavam diante desse fotógrafo; Oswald
observava que as blusas das moças subiam e desciam,
obedecendo os comandos da respiração entrecortada e do
coração que pulava de emoção, via a moça esforçando-se
para conter o sorriso diante do flash da câmera - porque,
* Professora das Faculdades Teresa Martin, onde, também, é coordenadora do CESPAL Centro de Estudos e Pesquisas de Artes e Letras.
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TEMA
de fato, era muito emocionante aquele instante. Percebendo
que aquilo era matéria de poesia, passou a escrever como
se acionasse uma câmera:
Fixador de corações
Debaixo das blusas....
.................................
Tua objetiva pisca-pisca
Namora
Os sorrisos contidos
Cada vez mais consciente da importância da máquina
fotográfica, que havia chegado para aposentar o pintor da
função de retratar, copiando a realidade, para criar um novo
tipo de pintura, Oswald sentiu que descobrira nova função
para as palavras. Então, transformou seu vocabulário em
câmera e retratou o Jardim da Luz:
...............................................
Os repuxos desfalecem como velhos
Nos lagos
Pássaros que ninguém vê nas árvores
Instantâneos e cervejas geladas
Subverteu a linguagem, fugindo de Aristóteles, que
ensinava que a linguagem poética deve ser nobre. Preferia
as palavras rejeitadas pelo filósofo, aquelas oriundas da fala
vulgar e ainda traz o vulgo como protagonista: o carroceiro,
o negro fugido, a mulatinha, o caipira que usa cigarro de
palha.
Os arranha-céus de São Paulo são imagens preciosas,
com sua linguagem arrojada que transfigura a cidade,
TEMA
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apontando para as nuvens. Os automóveis sugerem
velocidade, movimentando a cidade que, cada vez mais,
não sabe descansar :
A felicidade anda a pé
Na praça Antonio Prado
São dez horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automoveis
A cidade sem mitos
Mas se a velocidade está sempre presente na cidade, às
vezes se observa que o passado ainda está colado nela, aí
aflora o nervosismo dos que têm pressa. É quando a carroça
e o cavalo aparecem, atrapalhando o tráfego:
O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
Tematizando o cotidiano, Oswald saiu pelas ruas como
um fotógrafo ambulante, registrando flagrantes da cidade,
e, de repente, fez um instantâneo, documentando uma cena
de violência urbana:
O canivete voou
E o negro comprado na cadeia
Estatelou de costas
E bateu coa cabeça na pedra.
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TEMA
As palavras criam imagens visuais que presentificam o
ausente, e assim o poeta registra flagrantes como os aqui
citados até agora e os coloca num álbum, Postes da Light,
parte integrante de seu livro de poemas, intitulado Pau
Brasil, publicado em m 1925.
Oswald de Andrade olhava os parques e jardins de São
Paulo – e lá estava o fotógrafo ambulante, lambendo o canto
do papel-filme para verificar, pelo sabor, a qualidade do
processo de fixação. Ele queria ser, também, um fotógrafo
lambe-lambe para tematizar o cotidiano mostrando a cidade
com seus trilhos, bondes, pontes, sinaleiras ou o Jókey
Clube, que reunia cavalos de raça e gente da elite, que
dançava ao som de orquestra, como gravou no poema Hípica:
Saltos records
Cavalos da Penha
Correm jóqueis de Higienópolis
Os magnatas
As meninas
E a orquestra toca
Chá
Na sala de cocktails
Naquele tempo, as praças eram um espaço democrático,
freqüentado por todas as classes sociais. Gente elegante,
muito bem vestida, de acordo com a moda - os almofadinhas-,
passeavam ao lado de soldados, e de meninas emocionadas,
que tiravam fotografias, ou, ainda, de homens que bebiam
cervejas geladas - o Jardim da Luz, retratado pelo poeta
era, como outras praças, o lugar onde sonhos nasciam ou
terminavam os amores, e tudo isso se perderia para sempre
se alguém não fotografasse os sentimentos que davam vida
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à cidade. E se Oswald se fez fotógrafo desses sentimentos,
fotografou com palavras muito lugares, e, principalmente, a
alma de São Paulo.
Um Jeito Diferente de Fazer Poesia
Em 1922, São Paulo se tornou palco da entrada oficial do
Brasil na modernidade pelas razões apontadas pelo próprio
Oswald de Andrade, que declarou:
“Se procurarmos a explicação do porquê o
fenômeno modernista se processou em São
Paulo, veremos que ele foi consequência de
nossa mentalidade industrial. São Paulo era de
há muito batido por todos os ventos da cultura.
Não só a economia cafeeira promovia os
recursos, mas a indústria, com sua ansiedade
do novo, sua estimulação do progresso, fazia
com que a competição invadisse todos os
campos de atividade”.
No começo do século XX, os contatos regulares de
Oswald com a Europa, especialmente com a cidade de
Paris, e os contatos com os movimentos artísticos de
vanguarda, haviam mostrado ao brasileiro a necessidade
de atualização de nossa cultura diante das mudanças que
se operavam no mundo.
Vivíamos ainda sob a égide de escolas como o
Romantismo e o Parnasianismo, enquanto movimentos
como o Cubismo, Expressionismo, Futurismo, Dadaismo
sacudiam a Europa, revolucionando concepções estéticas,
mostrando outros modos de ver e conceber o mundo.
Ao travar conhecimento com o Cubismo, Oswald de
Andrade percebeu que êle valorizava um tipo de arte muito
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praticada no Brasil, mas ao mesmo tempo muito desprezada
pelas elites que era a arte chamada de primitiva. Observou
que os cubistas procuravam exteriorizar o primitivismo,
enquanto que os expressionistas distorciam as imagens
para expressar sentimentos profundos da alma, como a
dor, o medo, e o Surrealismo, agindo sob certa liberdade
psicológica, empreendia estranhas caminhadas pela
fantasia, sonhos e pesadelos. Era um mundo fascinante, de
que o poeta brasileiro queria participar.
Assim, constatados os princípios e linhas de ação
desses movimentos, Oswald de Andrade concebeu a poesia
pau brasil, criando um novo modo de ver a realidade e de
relacionar-se com ela, promovendo uma arte de exportação,
em que seriam, porém, preservadas as matrizes brasileiras.
Na construção do novo modelo, o sentido ambivalente
de rivalidade e identificação marcou a originalidade do poeta,
que recorreu sempre a temáticas e expressões nacionais.
Nos poemas em que procurou fotografar com palavras,
conseguiu a proeza de construir imagens visuais que
remetem a outras imagens, provocando um start na memória
do leitor que libera um acervo de outras lembranças que
se articulam poeticamente com o texto oswaldiano, em
magnifico exercício de leitura.
A invenção da fotografia provocou uma revolução nas
artes pictóricas, como ficou provado pelos impressionistas,
que não apenas lidaram magistralmente com a luz, como
surpreenderam introduzindo na pintura cortes fotográficos.
Traduzida em cores, formas, traços, temas, manchas
luminosas, a pintura não se preocupava mais com o retrato
de cenas realistas, transferido à fotografia, que, na condição
de inovação tecnológica, contribuía para as mudanças que
se operavam no modo do ser humano ver e perceber o mundo.
TEMA
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Mas não apenas a pintura foi marcada pela fotografia,
a literatura também sofreu o influxo dessa invenção, com o
estabelecimento de um novo tipo de relacionamento entre a
palavra e a imagem.
A plasticidade psíquica do ser humano e sua capacidade de
adaptação a novidades introduzidas pela inovação tecnológica,
que alteram a sua percepção do mundo, foram postas à prova
de modo espetacular a partir de meados do século XlX, com as
mudanças operadas pela tecnologia nas noções de velocidade,
movimento, espaço, tempo, energia, ou nas sensações, em que
se incluíam odores, luzes, cores, brilhos.
O século XlX avançava para o seu final, com enormes
transformações na Europa, advindas de acentuado processo
de urbanização e industrialização, ao lado de grande
desenvolvimento científico e tecnológico em que se pode
incluir o advento do cinema, que surgiu na última década
daquele século, trazendo, ao lado da fotografia, mudanças
no modo do cérebro elaborar sínteses das imagens em
movimento, ao lado de alterações na percepção do mundo
e no modo do homem relacionar-se com ele. A palavra,
por sua vez, passava a representar-se a si própria, com
novas forças expressivas, já que o papel de reduplicador
da natureza e de modelos da antiguidade, como ocorria no
período clássico, ficava reservado ao cinema e à fotografia,
como recorda Octavio Paz.
O século XX chegava, cheio de novidades. As artes
floresciam e grandes exposições, na Europa, difundiam
informações sobre as mudanças velozes que ocorriam,
como o Expressionismo, o Cubismo, o Futurismo com
grandes apologias ao progresso e à velocidade.
Jornais e revistas expunham fotografias em que se
buscavam, além da imagem visual, uma reflexão sobre
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o que uma cena impressa poderia sugerir. Essas imagens
despertavam grande interesse, agudizando a curiosidade dos
observadores, seduzindo leitores, encantando escritores e
poetas, que logo vislumbravam novos filões para suas obras,
com as recentes percepções adquiridas.
Na Europa, as vanguardas artísticas quebravam
paradigmas, mas no Brasil, o naturalismo apresentava grande
solidez. Tentativas de ruptura eram rechaçadas com vigor,
como ocorreu com Anita Malfatti, que, em 1917, ao exibir numa
exposição a concepção expressionista/fauvista que aprendera
na Europa, foi publicamente execrada por Monteiro Lobato,
que, apesar de ter sido um homem à frente de seu tempo, na
pintura tinha, então, visão conservadora, apreciando, sem
admitir outras alternativas, o modelo acadêmico.
A mimese, a cópia da natureza já havia sido contestada,
no final do século XVlll, por românticos alemães, e nos inícios
do século XX a luta pela liberdade de criação artística ganhava
fortes contornos, inclusive com Pablo Picasso que explicava
a pintura como um ato de usurpação da natureza pelo pintor,
cabendo ao artista determinar as cores e formas conforme a
sua imaginação.
O Cubismo decompunha as formas e recriava as cores
e traços, buscando inspiração em expressões primitivas,
enquanto o expressionismo desmontava os antigos conceitos
de belo, distorcendo as imagens para expressar sentimentos,
numa linguagem tão forte e revolucionária que dava conta das
amarguras, desesperos, desamparos e outros estados da alma
que as artes do passado nunca tinham conseguido expressar.
Mudanças no Brasil
Era um tempo de grande efervescência no universo
cultural do país, e vários artistas brasileiros, após vivenciarem
experiências das vanguardas europeias, manifestavam
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interesse em movimentar a cultura brasileira, atualizando-a
em relação às novas propostas daquelas vanguardas.
Entre esses brasileiros, estavam Oswald de Andrade, Victor
Brecheret, Anita Malfatti, Mario de Andrade, Heitor Villa Lobos, Menotti del Picchia, Tarsila do Amaral, e cada um, a
seu modo, trazia novas experiências para as exposições e
encontros, juntando-se, desse modo, o caldo que alimentaria
o movimento modernista, que explodiria em São Paulo em
1922, com a ruidosa Semana de Arte Moderna.
Dois anos mais tarde, em 18 de março de 1924, Oswald
de Andrade publicou no jornal Correio da Manhã, do Rio
de Janeiro, o Manifesto Pau Brasil, onde anunciava a
adoção de uma nova concepção poética que expressaria a
contemporaneidade, inspirada nas correntes literárias das
vanguardas europeias, porém devidamente adaptadas às
condições sociais, político-econômicas e culturais do Brasil.
Logo em seguida, em 1925, publicou o livro Pau
Brasil, de poemas, onde punha em prática a proposta do
movimento, adotando uma linguagem inovadora, clara,
direta, completamente divorciada dos padrões estéticos
do passado. O livro dividia-se em nove partes, com um
título geral em cada parte, onde se agrupavam pequenos
poemas, cada um sob um título particular. Os títulos gerais,
identificando cada parte, eram: História do Brasil, Poemas
da colonização, São Martinho, RPI, Carnaval, Secretário dos
amantes, Postes da Light, Roteiro de Minas e Loyde Brasileiro.
A nova linguagem adotada é objetiva, irônica, bem
humorada, e, nessa obra, há poemas que Oswald parece ter
escrito usando uma máquina fotográfica. Parece colocarse como um fotógrafo, vagueando pela cidade, registrando
flagrantes do cotidiano paulistano, de cidades do interior
paulista, da Fazenda São Martinho, de propriedade de Paulo
Prado, ou ainda de Minas Gerais.
TEMA
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Nessa época, a cidade de São Paulo iniciava seu
rápido processo de industrialização, verticalizando-se,
metropolizando-se, afirmando seu caráter cosmopolita.
Uma cidade forte, que abria espaço para as mais variadas
expressões artísticas, inclusive na sua paisagem
arquitetônica.
Uma linha de montagem da Ford já estava instalada
na cidade, que passava por constantes modificações, com
a instalação de novas linhas telegráficas, telefônicas, de
transportes, de rede elétrica. A ideologia do consumo já
estava estabelecida, incluindo nos sonhos cotidianos
tecidos, música, discos, automóveis, cervejas geladas,
lazer – grande elenco de novidades prometidas por anúncios
impressos e ilustrados, que circulavam em ônibus, paredes,
postes, com mensagens ágeis, telegráficas, sedutoras.
Oswald de Andrade olhava encantado para a cidade,
detendo os olhos em pequenas cenas como se quisesse
eternizá-las com uma máquina fotográfica, capturando
instantes desse agitado cotidiano, como ocorre com o
poema Bengaló, em Postes da Light :
Bicos elásticos sob o Jersey
Um maxixe escorrega dos dedos morenos
De Gilberta
Janela
Sotas e ases desertaram o céu de estradas de
rodagem
O piano Fox-trota
Domingaliza
Um galo canta no território do terreiro
TEMA
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A campainha telefona
Cretones
O cinema dos negócios
Planos de comprar um forde
O piano Fox-trota
Janela
Bondes
Cenas diversas são capturadas da cidade pelos olhos
do poeta, que as fotografa com palavras, como ocorre com
os bicos dos seios da moça que veste uma roupa macia,
de jersey, que marca bem a anatomia do peito. Na cidade
musicalizada, há sons de maxixe, que invadem as ruas
através das janelas abertas; o rádio existe, ainda é muito
jovem, e conta com os gramofones, amplamente difundidos
tanto no centro como nos bairros, para repetirem os
sucessos musicais que ultrapassam fronteiras.
Na tranquilidade do domingo, um galo canta no seu
território que é o quintal da casa, e a imagem do galo
cantante evoca no leitor o não dito pelo poeta, o canto de
outros galos, que de seus territórios, nos terreiros vizinhos,
realizam sua cantoria circular, tal como ocorre com uma
fotografia, que ao ser vista, também evoca o que se sabe,
mas não se vê.
O telefone chama, dentro de casa, onde para além
das janelas, circulam bondes nas ruas cheias de trilhos, e
paulistas, como o poeta, sonham em comprar um forde, para
rodar na cidade dinâmica, que cada vez mais se enche de
veículos. O poeta, com sua caneta-câmara, fotografa tudo,
em pequenos flashs, com tomadas isoladas, para compor um
álbum, enquanto, longe, um piano foxtrota de um jeito muito
TEMA
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moderno, numa referência do poeta-fotógrafo a uma dança
norte-americana, muito em moda na cidade, naquele momento.
As janelas são molduras de onde se postam fotografias
da cidade, voltadas para fora e para dentro, revelando
minúcias do cotidiano externo e interno, que até há pouco
morriam escondidas, mas agora vão se eternizando por
intermédio dos flashs do poeta.
O poeta continua com sua câmara, e agora vai
retratar uma cena no Jardim da Luz, onde soldados e
gente muito bem vestida passeiam, olhando os lagos,
ouvindo pássaros invisíveis que cantam no arvoredo,
tirando fotografias com fotógrafos ambulantes que,
com máquinas lambe-lambe, trabalham na praça. Ou
se divertem, bebendo cervejas geladas que, como novo
hábito popular, vão substituindo as gasosas :
Jardim da Luz
Engaiolaram o resto dos macacos
Do Brasil
Os repuxos desfalecem como velhos
Nos lagos
Almofadinhas e soldados
Gerações cor de rosa
Pássaros que ninguém vê nas árvores
Instantâneos e cervejas geladas
O poeta não apenas captura instantes, como um
fotógrafo, como vai mais longe ainda, no poema
Anhangabau, onde simula o desgosto do fotógrafo,
TEMA
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que ao revelar sua fotografia, constata que o flagrante
foi prejudicado por um sujeito de meias brancas, que
atravessou o espaço, no momento em que acionava a
máquina fotográfica:
Anhangabau
Sentados num banco da América folhuda
O cow-boy e a menina
Mas um sujeito de meias brancas
Passa depressa
No viaduto de ferro
Mas Oswald de Andrade não para; agora descreve,
como um fotógrafo, cenas de uma sala de aula vazia, numa
escola rural, situada no Estado de São Paulo, onde estudam
crianças pobres, que andam descalças:
Escola Rural
As carteiras são feitas para anõezinhos
De pé no chão
Há uma pedra negra
Com sílabas escritas a giz
A professora está de licença
E monta guarda a um canto numa vara
A bandeira alvi-negra de São Paulo
Enrolada no Brasil
A ausência de pontuação, a irregularidade métrica
e de rima marcam no texto a busca de liberdade do
TEMA
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poeta. Mas, a fixação de Oswald Andrade por máquina
fotográfica retorna no poema Sol, registrado em RPI.
Certamente achava maravilhosas aquelas andanças dos
fotógrafos ambulantes, que circulavam por onde desejavam,
apreendendo imagens com suas câmaras, eternizando
instantes breves, fugidios, numa atividade aparentemente
livre, que, de tão sedutora, não poderia ser comparada
a trabalho, mas sim, a um delicioso “fare niente”, uma
saborosa e criativa vagabundagem:
Sol
Uma vez fui a Guará
A Guaratinguetá
E agora
Nesta hora da minha vida
Tenho uma vontade vadia
Como um fotógrafo
Não fazia tanto tempo que ocorrera o fim da escravidão
no Brasil. Suas terríveis marcas estavam ainda impressas
na sociedade que se industrializava velozmente, e casos
sobre a violência dos proprietários de cativos ainda
andavam de boca em boca. Mais uma vez, Oswald de
Andrade, como um fotógrafo, imortalizou cenas, usando
palavras, desta vez em Poemas da Colonização, como na
descrição dessa caçada pelos capitães do mato ou seus
sucessores, registrada no poema Negro fugido:
Negro Fugido
Jerônimo estava numa outra fazenda
Socando pilão na cozinha
Entraram
TEMA
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Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu
Montaram nele
O amor de mãe, que se expressa na morte, foi exibido
como um documento fotográfico legendado, no poema
Medo da Senhora. A legenda explicaria as razões do
duplo suicídio. A visualidade é explícita, mas a legenda
complementa a informação que a fotografia, sozinha, não
conseguiria fornecer:
Medo da Senhora
A escrava pegou a filhinha
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada
Agora, o rápido registro de uma cena de violência
urbana. O nome do poema é Cena, descrito como se a
câmara, com seu caráter mecânico, documentasse com
agilidade, pertinência e eficácia o breve e dramático instante:
Cena
O canivete voou
E o negro comprado na cadeia
Estatelou de costas
E bateu coa cabeça na pedra.
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Sempre de modo direto, coloquial, sem adornos, Oswald
de Andrade, nesse livro, vai fotografando com palavras,
além de recolher histórias de fantasmas, que enchiam de
horror as noites nas fazendas, onde o trabalho estafante
não cessava nunca, tanto para escravos como para
trabalhadores livres, nem mesmo depois de suas mortes,
como ocorre no lacônico poema Caso:
Caso
A mulatinha morreu
E apareceu
Berrando no moinho
Socando pilão
O laconismo não reduz a densidade poética, nem
promove a perda da expressividade da linguagem; e o
procedimento do poeta, que constrói seus textos como
se fosse um repórter trabalhando em documentários
apenas acentua a criatividade do escritor. No poemareportagem não falta, também, a crítica social, com seu
poder corrosivo de denúncia, embora o modo casual de
falar pretenda dar a impressão de neutralidade no trato
do tema abordado. Aí mais um ponto deve ser concedido
ao poeta, que captura, no poema, a sempre apregoada
pseudoneutralidade do jornalismo.
Conclusões
A singularidade dessa obra é reforçada pelas próprias
afirmações de Oswald de Andrade de que a máquina
fotográfica surgiu no bojo de um fenômeno sóciopolítico de democratização estética. Essa democratização
transformava em artistas os registradores de instantâneos,
TEMA
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nas praças públicas, onde a fotografia se afirmava como
uma espécie de poesia que conseguia ser produzida em
grande escala, ou “às dúzias”, como diz ele no poema
Fotógrafo Ambulante, onde ainda saúda a máquina, com
orgulho: “és a glória”.
Ser fotografado também era emocionante, acelerando
a pulsação de corações sob as blusas, ou contendo
sorrisos encantados sob o mágico pisca-pisca dos flashs,
canhões luminosos como um sol instantâneo, que se acende
e se apaga em rápidos segundos. Como está descrito, ou
pintado, ou fotografado no poema Fotógrafo Ambulante:
Fotógrafo Ambulante
Fixador de corações
Debaixo das blusas
Album de dedicatórias
Marquereau
Tua objetiva pisca-pisca
Namora
Os sorrisos contidos
És a glória
Oferenda de poesias às dúzias
Tripeça dos logradouros públicos
Bicho debaixo da árvore
Canhão silencioso do sol
No poema Atelier, onde fala da caipirinha paulista, o
poeta volta a realizar um flash da cidade, desta vez numa
TEMA
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síntese que resume em apenas três linhas o gigantismo de
São Paulo, seu movimento incessante, e o cheiro da boa
bebida que é a marca de sua riqueza, e quebra o jejum de
todo um povo, que, diariamente, se levanta muito cedo para
um renovado e cansativo dia de trabalho:
Trecho do Poema Atelier
......................................
Arranha-céus
Fordes
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Oswald. Obras completas: do Pau Brasil à antropofagia e às utopias.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1978.
CARONE NETTO, Modesto. Metáfora e Montagem. São Paulo: Perspectiva, Coleção
Debates, 1974.
GOMBRICH, E. H. A história da arte. São Paulo: Zahar, 1981.
SOARES, Zenaide Bassi Ribeiro. O poeta e a máquina lambe-lambe. São Paulo:
TEMA revista de letras,artes e história, nº 4, volume ll, edição de maio/agosto de 1988.
SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986.
TEMA
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Adriana Holstein*
LORCA: O TEATRO E A LIBERDADE
LORCA: THE THEATER AND THE FREEDOM
N
a obra de Garcia Lorca as mulheres têm voz,
e Mariana Pineda, Doña Rosita, la soltera, La
zapatera prodigiosa questionam a velha moral
social vigente na época, a política opressora, a submissão
imposta junto com a falta de liberdade e o silêncio. Fala
também Yerma, que era casada e queria ter um filho,
porque esse era seu desejo e também porque não queria
ser apontada como uma mulher “casada–seca”, conforme
cantavam as lavadeiras na beira do rio.
No teatro, na poesia, falam as mulheres, os ciganos,
os negros, os homossexuais, os desvalidos, numa ânsia
desesperada de direito; de chances de expressão.
O teatro é a parte mais politizada de sua obra, pois
segundo êle próprio, esse gênero se prestava a educar o
povo, mostrando-lhe as contradições da sociedade, a ação
de forças opressoras, as chances de liberdade. Lorca
queria um teatro libertário, que negasse o teatro espanhol
de sua época onde ricas companhias teatrais apresentavam
* Licenciada e Mestranda em História.
24TEMA
exclusivamente peças que divertiam o público, que o
distraiam, sem promover reflexões.
Precisava passar por renovação – e era isso que Lorca
buscava com o La Barraca, grupo de teatro mambembe por
ele dirigido, que tinha como propósito levar os clássicos
espanhóis a todos os que desejassem conhecer boa arte
teatral e descobrirem um teatro capaz de estimular o
senso crítico.
Ao longo de cinco anos, Lorca viajou com seu grupo
pelos vilarejos mais distantes, conhecendo de perto
as diversas regiões com suas diferentes realidades,
observando descontentamentos que se avolumavam,
prenunciando rebeliões.
A Espanha era um país complexo, dividido por marcantes
diferenças econômicas e sociais. Para exemplificar, é
conveniente lembrar que a região da Catalunha era mais
rica, com áreas verdes de pastagem, gado, indústrias
têxteis, além de fábricas de ferro e aço, no País Basco, e
explorações de minas na região das Astúrias, não faltando
ainda a riqueza histórica de Santander com as cavernas de
Altamira. O sul, até meados do século XX apresentava uma
economia mal explorada, em que predominavam grandes
latifundiários ao lado de camponeses sem terras. No
centro também havia pobreza, com as terras distribuídas
em pequenas propriedades, pouco rentáveis, ao lado de
grandes propriedades sub aproveitadas.
Quadro Político e Social da
Espanha, Na Época
No final do século XlX havia grande inquietação política
na Espanha e o século XX chegou sacudido por sucessivas
rebeliões populares, - duramente reprimidas, como ocorreu
TEMA
25
em 1909, com a “Semana trágica de Barcelona”, quando,
no período entre 26 de julho a 2 de agosto daquele ano,
houve sangrentas batalhas nas ruas de Barcelona e cidades
vizinhas, contra o decreto do governo que exigia o envio de
tropas de reservistas para combates no Marrocos. O monarca
era Alfonso Xlll, e o primeiro ministro era Antonio Maura,
que assinou o ato que determinava o envio de reservistas
para reforçarem as tropas espanholas que se encontravam
no Marrocos. Maura era do Partido Conservador, no poder
desde 1907.
A batalha que então se travou foi extremamente
sangrenta. As tropas do governo atiravam contra os
trabalhadores, que haviam enchido as ruas de barricadas.
A luta, que teve inicio com uma greve geral, envolveu
Barcelona e cidades vizinhas, como Sabadell, Terrassa,
Mataró, Badalona e outras, registrando centenas de mortos,
o dobro de feridos, muitos fuzilamentos exemplares
promovidos pelo governo, que derrotou os revoltosos com
forças vindas de Valência, Burgos, Zaragoza e Pamplona.
Na região, várias dezenas de igrejas, colégios e conventos
religiosos foram incendiados.
Em 1917, greves no sistema de transportes de Valência
geraram muita confusão e em 1019, uma greve geral
paralisou Barcelona por 44 dias.
Em 1923, um golpe militar colocou no poder Primo de
Rivera, que iniciou uma ditadura que se estendeu até 1930,
quando foi substituída em 14 de abril daquele ano, pela
Segunda República Espanhola, eleita pelo povo, que logo
promoveu alguma abertura política, valorizou a laicização
do ensino, promovendo a separação entre Estado e Igreja,
tentou resolver problemas sociais, mas, apesar dos
esforços, a situação econômica não mudava, o desemprego
na Galícia e em Andaluzia continuavam elevados, e as
agitações populares não paravam de ocorrer.
26TEMA
Aproveitando a abertura, alguns setores conservadores
formaram a CEDA - Confederação Espanhola de Direitas
Autônomas, com a intenção de derrotar o bloco republicano
e ganhar as eleições em 1933.
Fora da Espanha, o fascismo e o nazismo cresciam,
espalhando-se por toda a Europa. Mussolini governava a
Itália e, em 1933, Hitler se tornava o chanceler da República
de Weimar, na Alemanha. Dentro da Espanha, em 1933, a
Ceda, aglutinando forças de direita, ganhou as eleições,
dando início ao que se chamou “biênio negro”, período
também chamado “Biênio Radical Cedista” um período de
horror e violência, marcado pelo autoritarismo exacerbado,
perseguições políticas, adoção de política contra direitos
trabalhistas, anulando leis que protegiam os salários
dos trabalhadores, trazendo grande retrocesso ao setor,
promovendo, ainda, política de reaproximação com a
Igreja Católica, restabelecendo e aumentando o valor das
subvenções ao clero, devolvendo à Igreja parte de seus
bens, e promovendo a volta do ensino religioso a todas as
escolas da Espanha.
Nesse período, estabeleceu-se a Falange, grupo
político de ideologia fascista, que logo passou a buscar o
poder, promovendo toda sorte de atrocidades, como invadir
universidades, atirar em estudantes, caçar comunistas,
socialistas e democratas, promover sublevações em
determinadas guarnições do exército.
Em pouco tempo, dissolveu-se qualquer resquício
de ordem, disseminando-se grande confusão em todo o
país. Alegando estado de guerra, todas as noites ocorriam
fuzilamentos, aparecendo nas manhãs seguintes, corpos
de mortos estendidos pelas ruas, espalhando insegurança
e terror. De 1936 a 1939, ocorreu a Guerra Civil Espanhola,
que terminou a implantação de pesada ditadura fascista,
comandada pelo general Franco.
TEMA
27
Nesse quadro conturbado, estavam as obras de Lorca,
artista admirado na França, Estados Unidos, Cuba, Argentina,
mas que despertava grande ódio da direita espanhola.
Por Que Tanto Ódio ?
Lorca falava de sua sociedade e de sua época, com
obras de grande densidade artística. Não fazia panfletos,
escrevia obras que calavam fundo na consciência de seu
público, por isso diziam que sua caneta era mais perigosa
que uma arma de fogo.
Nas suas peças de teatro, as forças da moral, dos
costumes, da religião, sobrepujam o indivíduo, silenciam
seus desejos, determinam seus destinos, recaindo sobre
as mulheres a opressão multiplicada. Deu voz a Mariana
Pineda, a que existiu de verdade, amava a república, a
liberdade. Vivia em Granada, onde, em 1831 foi presa em sua
casa, quando estava bordando uma bandeira com símbolos
republicanos. Acusada de ter agido contra o soberano
espanhol, foi executada publicamente em Granada.
A zapatera prodigiosa é uma farsa. Trata de uma mulher
jovem, casada por conveniência com um homem mais velho
e que vivia sonhando com amores impossíveis.
Lorca gostava de escrever tragédias, onde não
faltavam romarias dionísicas e principalmente o coro,
que lembrava o teatro grego, com a música enchendo o
espetáculo de beleza.
Em sua peça Yerma, por exemplo, é clara a tensão entre
sociedade e indivíduo, onde o papel a ser desempenhado
pela mulher está desenhado desde o seu nascimento, e
qualquer tentativa de tentar modificá-lo pode descambar em
terríveis tragédias.
28TEMA
Yerma vivia em Anadaluzia, é uma mulher jovem, casada
e fiel, como mandavam os costumes espanhóis e a Igreja
Católica. Só que ela não consegue engravidar e se recusa
a ser infiel ao marido. O tempo vai passando e a moça se
desespera com a sua situação, recorrendo até a ajuda de
uma feiticeira.
O marido não se preocupa com filhos. Trabalha muito
cuidando dos vinhedos, apenas se preocupa com as
contínuas saídas da mulher, porque teme o que a vizinhança
possa falar.
As cunhadas de Yerma, irmãs de seu marido são solteiras,
não têm filhos, nem se preocupam com esse assunto – e essa
frieza incomoda Yerma, que, de vez em quando, se lembra
de um sonho, com Vitor, que caminhava com um menino no
colo, que olhava fixamente para ela. Sente que se tivesse se
casado com ele, certamente seria mãe.
Recorre a uma procissão pagã, de que participam
mulheres que não tinham filhos, e viam ali uma esperança.
Uma velha amoral anima Yerma a essa procura, e ela que
logo vê que as graças alcançadas pelas mulheres que
engravidam não são dádivas divinas, mas decorrem de
encontros sexuais com homens férteis. Na procissão,
com coro e rituais dionísicos, homens apalpam os seios,
os corpos das mulheres, cheios de desejos. O coro segue
cantando, anunciando milagres, mas Yerma não quer saber
de nenhum homem. A vieja, amoral, oferece a ela seu filho,
atlético, bonito, ela se irrita, não quer saber de adultério.
Não trai o marido, nunca, menos por ele e mais por si
mesma. Quem a impede são as teias invisíveis que a amarram
à sua cultura, aos costumes e à moral do local onde vive. Ali
predomina a crença de que a mulher nasce para ser mãe e
o marido é meio de que ela se vale para cumprir sua missão
TEMA
29
reprodutora. O casamento, como a Igreja ensina, é apenas
um instrumento de procriação, não há nele prazer.
Ela nunca buscou o prazer. Conta que se casou com
o homem escolhido por seu pai e ficou muito alegre
acreditando que iria ser mãe, mas o tempo vai passando,
ela perde a alegria e se torna amarga.
As mulheres já sabem que ela é terra fértil na qual não
caiu nenhuma semente, mas quando, na beira do rio, as
lavadeiras cantam a música da “casada seca”, ela ouve
a canção, um poema de grande beleza, que a atinge com
arma, fazendo-a sentir-se dilacerada pelo coro. Fica triste,
machucada e chega a se sentir de fato seca, a sentir que não
é mais uma mulher.
As lavadeiras são inocentes, cantam, trabalham,
cuidam de seus filhos, porque ter filhos parece a elas uma
coisa natural, não haveria por isso nenhuma tragédia. Mas
Yerma sente, no peito apertado, uma asfixia que prenuncia
tragédias, que o coro das lavadeiras e o coro da romaria
parecem confirmar.
Sem filhos, sente que perde a condição feminina. Vê a
água que enche de vida o campo, mas sente que não tem
vida, a secura espanta a vida. Compara a vida dos homens
e a vida das mulheres, anotando diferenças.
Os homens têm o gado, os vinhedos, as árvores, as longas
conversas. As mulheres têm os filhos, as que não tem filhos
não têm função no mundo, são inúteis. Ela não consegue se
resignar. Não consegue aceitar a sua inutilidade.
Seu desespero cresce. Perde-se em sensações
asfixiantes: sente sêde e não tem água, quer subir aos
montes, mas não tem pés, quer bordar, mas não encontra
os fios.
30TEMA
Está perdida!
O marido não se importa com seu sofrimento, não quer
saber de filhos. Diz que sem filhos há menos gastos, sobra
mais dinheiro, mas ela não quer ser terreno seco, quer ver a
semente crescer na terra úmida, florescer.
O marido apenas não quer saber de sua honra manchada,
ela sabe que a manutenção dessa honra depende dela e nem
se preocupa, porque outras são as amarras que a impedem
de dar um passo em falso.
A idéia de ser mãe vira forte obsessão. A procissão
pagã caminha, com seu coro. O marido está ao lado de
Yerma, quer abraça-la, ela não deixa. Haviam bebido vinho,
o marido tenta acaricia-la, e ela, o agarra, apertando a sua
garganta, até que ele caia morto .
Viúva, ela se sente livre. Honra limpa sem nunca ter
praticado adultério, sem estar mais presa a um casamento
frustrado, seco.
A Morte de Garcia Lorca
Embora não pertencesse a nenhum partido político,
Lorca, por suas manifestações, sua conduta e suas obras era
considerado socialista. Foi fuzilado pela ditadura espanhola
em 19 de agosto de 1936, quando tinha apenas 38 anos de
idade. A ditadura se manteve no poder de 1936 até 1976. O
corpo de Lorca nunca foi encontrado.
A questão da morte de Lorca foi tabu, durante todos os
longos anos da ditadura franquista. Intelectuais de diversos
países que cobravam respostas, nunca foram atendidos.
TEMA
31
A ditadura procurou jogar uma manta de silêncio sobre
o caso, para que o nome de Lorca caísse no esquecimento.
Esse esforço foi completamente inútil, porque a admiração
pela obra do grande poeta e dramaturgo espanhol cresceu
no mundo inteiro.
Hoje são milhões de vozes, em todo o mundo, que não
silenciam, que querem saber tudo o que aconteceu naquela
trágica noite de 1936, quando Lorca foi fuzilado.
BIBLIOGRAFIA
AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1976.
BASSET, Delfin Carbonell. Tres dramas existenciales de F. Garcia Lorca. In Madrid: Cuadernos Hispanoamericanos, nº 190, oct.1965.
DOMENECH, Ricardo. La casa de Bernarda Alba y el teatro de Garcia Lorca.
Madrid: Cátedra, 1985.
LORCA, Federico Garcia. Yerma/La casa de Bernarda Alba. Madrid: Kapelusz, 1986.
LORCA, Federico Garcia. Dona Rosita, a solteira. Rio de Janeiro: Agir
TEMA
32
Solange Delboni*
O DUPLO EM JULIO CORTÁZAR E
GUIMARÃES ROSA
DOUBLE IN JULIO CORTÁZAR AND GUIMARÃES ROSA
U
m dos mais antigos textos literários sobre duplo
foi escrito por Marcus Terentius Varro, que
viveu no período de 116 a 27aC. Escreveu sobre
Bimarcus, o Marcos que tinha dupla personalidade, tendo
dado à sua obra caráter cômico, imitando Menipo de Gadara,
constituindo-se o seu texto uma sátira menipéia.
Varro, ou Varrão, conta que Marcus comunica que
irá escrever um tratado sobre tropos e figuras, mas não
começa nunca a escrever. O segundo Marcus, que é seu
duplo ou um desdobramento de si mesmo, começa a cobrálo, lembrando a todo instante que ele precisa realizar esse
trabalho. Marcus tenta, mas não consegue se concentrar,
então, resolve dedicar-se à leitura de Homero, e logo começa
a escrever versos.
Varro deu a seu texto um caráter cômico, mas apesar da
intenção de fazer humor, influenciou Santo Agostinho, que
escreveu Solilóquios, na busca de outro de si para encontrar
* Doutora em Letras pela USP. Professora na Universidade São Marcos.
33TEMA
Deus. No livro Duas Cidades, Agostinho expõe e comenta a
obra de Varrão.
Marcus Terentius Varro escreveu várias sátiras menipéias,
apresentando representações de cidades simbólicas,
viagens imaginárias, cenas grotescas, aventuras impossíveis.
Mas ia muito além da imaginação, produzindo obras não
ficcionais, escrevendo vários outros trabalhos, em que se
incluíam agricultura, geografia, direito, revelando seu vasto
conhecimento enciclopédico sobre a produção científica e
cultural de sua época.
Desde essa época, muitos textos têm sido escrito sobre
literatura fantástica, provocando arrepios e enlevo nos seus
leitores em todo o mundo.
É comum a focalização do duplo, sempre relacionado, e de
modo variado, à dicotomia corpo/alma, e essa fragmentação
do personagem entre o eu e o outro invariavelmente provoca
sobressaltos, estranheza, curiosidade, encantamento nos
milhões de aficcionados desse gênero.
Grandes escritores têm produzido belas obras nesse
campo, entre os quais podemos citar Hoffmann, Allan Poe,
Dostoievski, Cortázar, Jorge Luiz Borges, Machado de Assis,
Saramago, Oscar Wilde, Guimarães Rosa, entre outros.
Hoffmann, que se tornou referência com O homem de
areia, escrito no século XVlll, publicou um conto, O pote
de ouro, onde ocorre um desdobramento do personagem, o
estudante Anselmo, que ao passar por um ritual de iniciação
experimenta uma transformação ontológica, que é ascender
ao reino de Atlântida, após se distanciar da dimensão terrena.
O desdobramento de Anselmo poderia ser entendido
como um fenômeno de transgressão, como se diz na
literatura, para a descrição de fenômenos referentes ao duplo
34TEMA
representado por corpo/alma, e daí a ocorrência de migração
de alma, ou, ainda, transferência ou substituição psicológica.
A Ilha Ao Meio-dia
Julio Cortázar lida com o duplo de um modo poético,
que decompõe as certezas cartesianas, recuperando o
homem que existia antes dos processos civilizatórios,
trazendo de volta um tempo que existia antes da História,
quando percepção e fantasia se misturavam sem culpas
nem censuras.
No caso do conto aqui abordado, o autor descreve um
estado de aparente normalidade, ou de realidade plausível,
que só é alterado no final, quando elementos estranhos
entram no texto, sugerindo um terrível fenômeno de projeção.
No conto “La isla a mediodia”, o duplo de Marini,
projetado, talvez, pelo fluxo incessante de seu desejo
de visitar a ilha, vai realizar pelo Marini real a sonhada
viagem, antes da queda do avião, numa narrativa que
prima pelo encadeamento lógico, onde nada denuncia
o embaralhamento dos dois sujeitos que existem numa
mesma pessoa.
Cortázar fala sobre Marini, um comissário de bordo que
pela janela oval do avião avistava, todas as semanas, uma
ilha pequena e solitária, rochosa e deserta, que parecia uma
tartaruga ancorada no espesso azul. Sempre que o avião
passava sobre a ilha, ao meio-dia, êle fazia o possível para
encostar a testa no vidro da janelinha da cauda e ficar, por
alguns segundos, olhando para baixo, encantado. Até se
esquecia dos passageiros, olhando, sonhando em visitar
a ilha. Começou a juntar dinheiro para fazer a viagem,
marcou que iria nas férias, mas conseguiu um empréstimo
35TEMA
e antecipou a viagem. Era uma viagem difícil, que exigia
vários trajetos, mas foi cumprindo as etapas, até chegar a
Rynos e lá contratou um velho barco, cujo capitão levou-o
até a ilha e lá apresentou-o Klaio, um velho pescador que
parecia ser o patriarca da ilha. Este estava em companhia
de seus dois filhos, todos deram boas vindas a Marini e
depois foram cuidar de seus barcos.
Era ainda muito cedo, Marini estava contente,
reconhecendo a ilha, vinte habitantes, cinco casas, polvos,
redes de pesca. Marini foi caminhando pela ilha, sentiu que
desejava ficar ali para sempre, poderia aprender a pescar,
ajudar os pescadores. Na caminhada, percebeu que duas
mulheres olharam para ele com assombro, correndo a
se esconderem – mas não se importou, continuando o
passeio. Mergulhou no mar, sentindo a água deliciosa,
recostou-se nas pedras mornas para se enxugar, sentindose extremamente feliz.
Era quase meio dia, quando Marini ouviu o zumbido
do motor e entendeu que o avião estava caindo. Saiu
correndo no sentido da praia, viu, na distância, que a
cauda do avião afundava. Nadou procurando ajudar, até
que viu uma mão fora da água, e avançou, agarrando pelos
cabelos um homem que também se agarrava a êle, e assim,
devagar, veio conduzindo esse homem que respirava
com dificuldade, até que conseguiu tomá-lo nos braços.
O homem estava vestido de branco, o pescoço tinha um
corte profundo, por onde o sangue jorrava.
Quando Klaio, seus dois filhos e outros moradores
da ilha chegaram, viram o cadáver de olhos abertos, com
marcas fundas de ferimentos e ficaram sem compreender
como aquele homem tão ferido tinha conseguido, sozinho,
nadar até chegar à praia. Espantados, cuidaram de fechar
os olhos do morto, sem conseguir entender sua presença
TEMA
36
na areia. Aquele corpo era a única novidade que chegara à
ilha; antes dele, mais nada, nem ninguém.
O Fantástico em
Guimarães Rosa : Tutaméia
No livro Tutaméia, há um conto, Estória nº 3, que fala
de Joãoquerque, um sujeito medroso e covarde, “avergado
homenzarrinho, que ora se gelava em azul angústia,
retomando os beiços, mas branco de laranja descascada,
pálido de a ela (Mira) lembrar os mortos”.
Esse homenzarrinho era namorado de Mira, e, na
casa dela, enquanto a moça fritava bolinhos, conversavam
amenidades, quando foram surpreendidos com a chegada
de Ipanemão, um valentão que gostava de Mira, homem
“cruel como brasa mandada, matador de homens, violador
de mulheres, incontido e impune como o rol de flagelos”.
Apavorado, e sob a proteção de Mira, Joãoquerque
foge pela porta dos fundos, e, no escuro, imagina que está
perto dos capangas de Ipamenão, que não tem saída, então
decide morrer, procurando convencer-se de que morrer é
sossegado, vale a pena.
A oposição de Ipamenão a Joãoquerque já começava
pelo nome: Ipamenão deriva de Panema, que aparece no
Dicionário Aurélio com os seguintes significados:
Panema. Do tupi pa’ nema. Adj. 1. Que ou quem é infeliz
na caça e/ou na pesca. 2. Que ou quem é infeliz na vida,
azarado, caipora. 3. Que ou quem é vítima de feitiço.
Considerando-se o enredo, verifica-se que qualquer
um dos significados registrados pelo dicionário, ou mesmo
todos, pode ser aplicado a Ipanemão, que, além disso,
apresenta, pelo sufixo ão o aumentativo de suas qualidades.
37TEMA
O texto caracteriza esse personagem de modo bastante
coerente com a sua significação lexical.
Além das descrições já citadas, o narrador ainda
apresenta outras: “Ipanemão, rompedor de harmonia,
demoniático”. “Ipanemão, cão, seguro em enredo de
maldade da cobra grande, dele ninguém se livrava, nem por
forte acaso”.
Ao contrário do homenzarrão Ipanemão, Joãoquerque
não passava de um homenzarrinho que, de tão medroso,
quando se viu ameaçado por Itapemão não teve sequer
iniciativa para fugir. Precisou ser “empurrado pois, Mira,
mesma mandou-o ir-se”.
Além de medroso, destituído de iniciativas, Joãoquerque
era ainda desajeitado, tendo encontrado dificuldades quando
tentou fugir: “custou-lhe rodar a tramela”. E quando corria
entre árvores: “nelas topava ou relava, às tortas de labirinto”.
Mas ao sentir que pode mesmo ser morto e já, percebe que
medo e coragem fazem parte de uma mesma coisa, e decide
mudar de lado, “então se representou sem ser do jeito de
vítima”. E avistando um machado, e “no raro estado pendente,
exilando-se de si”, pega esse machado e parte para enfrentar
Itapemão. “Ao exilar-se de si” êle descobre que é o outro, e, ao
vê-lo, Itapemão treme, “pendeu o rosto, desditado”.
Joãoquerque havia realizado o reconhecimento de
si no outro, e nessa inversão de papéis, Itapemão se
descobre vítima, diante de um valente que tem “cara de
cão que não rosna”.
Ao assumir o outro, Joãoquerque surpreendeu a todos,
como diz o texto. “Desreconheceram o vindo Joãoquerque,
por contra que tanto sabido e visto. Mais o viam desvirado
convertido. Foi aliás de modo imoderado que êle chegou”.
O reconhecimento de Joãoquerque de si no outro,
ocorreu de repente e de um modo que ele não esperava.
38TEMA
Aconteceu quando fugia e, em estado de pânico, sentiu que
seria morto porque ninguém escapava de Itapemão “nem
por forte acaso”. Entregou-se à idéia de morrer, tentando
convencer-se de que esse sossego valia a pena.
Pensou em Mira, seus olhos, e neles enxergava invertido.
Itapemão invertido era covarde, fraco, medroso. Expeliu de
si essas más qualidades, para o outro, para livrar-se delas.
Pensava essas coisas, “estava deitado de costas, conforme
num buraco analfabeto para as estrelinhas. Foi nessa altura
que êle não caiu em si. Tenho tempo, se disse. Teve o
esquecimento, máquinas nos ouvidos”.
Foi o instante da revelação. “O medo depressa se
gastava? – caía nas garras do incompreensível. Foi quando
viu o machado. “Então, se levantou, e virou volta”.
Encontrou Itapemão assando carne na frente da casa de
Mira. O valentão vira-lhe as costas para evitar a presença e
o olhar. “Olhe!” ordena Joãoquerque, que agora é o outro, o
antigo Itapemão – e quer que o outro, antes de ser golpeado,
veja o machado que tem nas mãos.
Conclusões
Já Platão falava sobre a punição de Zeus, imposta aos
humanos, que separou seus corpos, que eram duplos, com
uma espada, e até hoje cada um vive angustiado a procura
de sua metade perdida. Isto é dito aqui apenas para lembrar
que a questão do duplo é, de fato, muito antiga.
Além da necessidade de se tornar uma unidade, a
partir do encontro do amor, que lhe devolveria sua metade
perdida, desde tempos imemoriais o homem admite ser
constituído de corpo/alma, e essa unidade pode se desfazer,
com o deslocamento da alma, que se destaca do corpo,
automatizando-se a partir desse deslocamento – e isso é
motivo de terror, pois a outra metade é fluida, intocável,
39TEMA
ameaçadora, aterrorizante, e vagueia sem consciência de
sua situação real, podendo fazer malefícios incalculáveis
àqueles com que se defronta.
A morte também promoveria a separação corpo/alma e os
vivos, receosos, criaram rituais para harmonizar as relações
entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, tentando
evitar a interferência desses duplos nas suas vidas.
Esse longo histórico, cheio de suspenses e inquietações,
tornou-se, é claro, importante tema a ser tratado pela
literatura e o cinema.
O modo de tratar o duplo apresenta variações, como
multiplicação, divisão física ou psíquica, identidade
dos contrários, predominando geralmente a busca da
alteridade através da ambivalência, a hesitação entre o real
e o imaginário, a quebra de um ritmo ordeiro, tranqülo pela
irrupção de algo inadmissível, que provoca sobressaltos.
Quando o texto é de Julio Cortázar, invariavelmente o
leitor terá diante de si a poetização de um discurso aberto à
imaginação; o retorno do espaço mítico, onde o cotidiano é
marcado por um corpo-a-corpo entre o real e o imaginário,
como ocorre no conto “A ilha ao meio-dia”. Neste conto,
enquanto o Marini real permanecia no avião a projeção de
seu duplo para a ilha teria sido impulsionada pelo fluxo
incessante de seu forte desejo de visitar aquela porção de
terra, “pequena e solitária”, “rochosa e deserta” que parecia
“uma tartaruga ancorada no espesso azul” .
Em Tutaméia, no Conto Nº 3, Guimarães Rosa lida
com um eu que se desencontra de si e encarna o outro.
É o que acontece com Joãoquerque, que, ao alcançar o
reconhecimento de si no outro, assume o seu contrário e
destrói o corpo que o ameaçava.
Neste texto, entendo que tanto no caso de Varrão,
Hoffmann, Cortázar e outros grandes autores, vale a palavra
40TEMA
de Freud, quando afirmou: “O escritor imaginativo tem, entre
muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo
de representação, de modo que este possa coincidir com
as realidades que nos são familiares ou afastar-se delas o
quanto desejar”.
BIBLIOGRAFIA
CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos fogo. Rio de Janeiro: Record,1969.
CORTÁZAR, Julio. Final de juego. Buenos Aires: Sudamericana,1969.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,1978.
PLATÃO. O banquete. Rio de Janeiro: Difusão Européia do Livro,1986.
RAMA, Angel (org.). Os primeiros contos de dez mestres da narrativa latino-americana.
Rio de Janeiro :Paz e Terra.1978
ROSA, Guimarães. Tutaméia (Primeiras histórias). Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
41TEMA
Olga Maria Loreto*
O DESGOSTO DE MÁRIO DE ANDRADE
MÁRIO DE ANDRADE IN DEGUST
E
m 1942, a Casa do Estudante do Brasil, no Rio
de Janeiro, resolveu comemorar os vinte anos
de aniversário da Semana de Arte Moderna, e
convidou Mario de Andrade para realizar uma palestra sobre
o Movimento Modernista. O evento ocorreu no auditório da
Biblioteca do Itamarati, em 30 de abril de 1942.
O grande escritor discorria sobre o tema, quando
mudou de tom, surpreendendo a atenta platéia. Começou
a inventariar a sua vida, para falar de seu desgosto, do mal
estar que a sua vida causava a si próprio.
Aqui vamos transcrever sua cruel auto-crítica, para
depois tecermos alguns comentários.
A Fala de Mário:
Marchem com as Multidões
“Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a
minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do
meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas,
fiz coisas, muitas coisas! E no entanto me sobra agora a
* Professora na FZL. Mestranda em Letras.
42TEMA
sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus
feitos derivaram duma ilusão vasta. E eu que sempre me
pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor
humano, chego no declínio da vida à convicção de que
faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu.
Minhas intenções me enganaram.
Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas
minhas obras, e também nas de meus companheiros, uma
paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não
tem. Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em
muitos de nós. Estou repisando o que já disse a um moço...
E outra coisa senão o respeito que tenho pelo destino dos
mais novos se fazendo, não me levaria a essa confissão
bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a
insuficiência do abstencionismo.
Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas
obras uma caducidade de combate. Estava certo, em
princípio. O engano é que nos pusemos combatendo
lençóis superficiais de fantasmas. Devíamos ter inundado a
caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia
do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez:
fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio,
ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade
na cultura.
E se agora percorro a minha obra já numerosa e que
representa uma vida trabalhada, não me vejo uma vez só
pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece.
Quando muito, fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim,
não me satisfaz.
Não me imagino político de ação. Mas nós estamos
vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que
servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um Amador
Bueno qualquer, falando “não quero” e me isentando da
atualidade por detrás das portas contemplativas de um
TEMA
43
convento. Também não me desejaria escrevendo páginas
explosivas, brigando a pau por ideologias e ganhando os
louros fáceis de um xilindró.
Tudo isso não sou eu nem é pra mim. Mas estou
convencido de que deveríamos ter nos transformado
de especulativos em especuladores. Há sempre jeito de
escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores,
no embaçado duma lágrima que avolumem ainda mais o
insuportável das condições atuais do mundo. Não.
Viramos abstencionistas abstêmio e transcendentes.
Mas por isso mesmo que fui sinceríssimo, que desejei ser
fecundo e joguei lealmente com todas as minhas cartas à
vista, alcanço agora esta consciência de que fomos bastante
inatuais. Vaidade, tudo vaidade...
Tudo o que fizemos... Tudo o que eu fiz foi especialmente
uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em que
vivemos. É aliás o que, com decepção açucarada, explica
historicamente. Nós éramos os filhos de uma civilização
que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer
individual represa as forças dos homens sempre que uma
idade morre. E já mostrei que o movimento modernista
foi destruidor. Muitos porém ultrapassamos essa fase
destruidora, não nos deixamos ficar no seu espírito e
igualamos nosso passo, embora um bocado turtuveante, ao
das gerações mais novas.
Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiram
a minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que
não terei passeado apenas, me iludindo de existir?... É certo
que eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as
desgraças dos homens. É certo que pretendi regar a minha
obra de orvalhos mais generosos, sujá-la nas impurezas da
dor, sair do limbo “ne trista ne lieta” da minha felicidade
pessoal. Mas pelo próprio exercício da felicidade, mas pela
própria altivez sensualíssima do individualismo, não me era
44TEMA
possível renegá-los como um erro, embora eu chegue um
pouco tarde à convicção de sua mesquinhez.
A única observação que pode trazer alguma
complacência para o que eu fui, é que eu estava enganado.
Julgava sinceramente cuidar mais da vida que de mim.
Deformei, ninguém não imagina o quanto, a minha obra - o
que não quer dizer que se não fizesse isso, ela seria melhor...
Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um
homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é
que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor
utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa
mais terrestre que ficção, prazer estético, beleza divina.
Mas eis que chego a este paradoxo irrespirável: Tendo
deformado toda a minha obra por um anti-individualismo
dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que
um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar
assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de
si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu
passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do
meu passado.
Mudar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou
na rampa dos cinquenta anos e que os meus gestos agora
já são todos... memórias musculares?... Ex omnibus bonis
quae homini tribuit natura, nullum melius esse tempestiva
morte... O terrível é que talvez ainda nos seja mais acertada
a discreção, a virarmos por aí cacoeteiros de atualidade,
macaqueando as atuais aparências do mundo. Aparências
que levarão o homem por certo a maior perfeição de sua
vida. Me recuso a imaginar na inutilidade das tragédias
contemporâneas. O Homo Imbecilis acabará entregando os
pontos à grandeza do seu destino.
Eu creio que os modernistas da Semana de Arte
Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas
podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase
TEMA
45
integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi
tão “momentâneo” como agora. Os abstencionismos e os
valores eternos podem ficar para depois. E apesar da nossa
atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade,
uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não
participamos: o amelhoramento político-social do homem.
E esta é a essência mesma da nossa idade.
Se de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a
insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem
assim na beira do caminho, espiando a multidão passar.
Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas
não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em
técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com
as multidões.
Aos espiões nunca foi necessária essa “liberdade” pela
qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do
indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de
florescer. Será que a liberdade é uma bobagem?... Será que
o direito é uma bobagem?... A vida humana é que é alguma
coisa a mais que as ciências, artes e profissões. E é nessa
vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens.
A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há-de vir”.
Comentários
Um olhar sobre a trajetória humana e intelectual de
Mario de Andrade logo evidencia que ele jamais ficou
sentado à beira do caminho espiando a multidão passar.
Mas, sem dúvida, é oportuno que alerte, que recomende
às pessoas, e, em especial, aos intelectuais que não sejam
espiões da vida, camuflados de técnicos, vendo a multidão
passar. É excelente a exortação para que “Marchem Com
as Multidões”, porque o sentido dessa marcha, segundo ele
próprio, é o “amelhoramento político e social do homem”.
46TEMA
É importante observar em sua autocrítica ao seu
aristocracismo à tomada de consciência de que se vivia
uma idade política do homem e era a isso que devia servir,
uma lição para que as novas gerações reflitam sobre o
papel do intelectual brasileiro. Para que seja banida da
intelectualidade a crença na neutralidade da “inteligência
brasileira”, que muito longe de ser “neutra” presta-se a
antiga indiferença das camadas senhoriais perante os
imensos contingentes populacionais do país, cujo padrão
de vida situa-se nos limites inferiores ao mínimo necessário
à sobrevivência digna de um ser humano.
TEMA
47
Ivo Gonçalves*
OS DEZ DIAS QUE ABALARAM O MUNDO:
OBRA PRIMA DO JORNALISMO LITERÁRIO
TEN DAYS THAT SHOOK THE WORDL: MASTERPIECE OF LITERARY JOURNALISM
É
comum dizer que o jornalismo tem vôo curto, a
matéria publicada morre no dia seguinte. Mas
quem pensa assim, com certeza desconhece
textos como os de John Reed, que escrevia no mais puro
estilo do jornalismo literário. Quem quiser, pode ler hoje Os
dez dias que abalaram o mundo, encantar-se com a beleza
de seu relato e surpreender-se com a imensa atualidade de
uma obra escrita em 1917 e publicada nos Estados Unidos
em 1919.
Esse tipo de jornalismo foi chamado por Gabriel Garcia
Marques de jornalismo narrativo. Foi ainda denominado de
new jounalism e periodismo de narración.
Para ampliar a carga expressiva dos relatos, vale-se
de técnicas de produção de textos ficcionais, para narrar
fatos verdadeiros, completamente divorciados de qualquer
ficção. Basta observar a descrição do comportamento dos
diferentes grupos sociais envolvidos na questão russa,
antes e durante a revolução que estourou em Petrogrado, ou
* Mestre em Ciências Sociais, doutorando em Antropologia.
48TEMA
as descrições da lutas entre os argumentos e ações usados
pelos adeptos de Lenin e de Kerensk, para que o leitor
se sinta como participante de uma grande e movimentada
aventura.
Reed narra as várias faces da população russa, naqueles
dramáticos momentos, ressaltando os teatros lotados de
elegantes frequentadores, festas luxuosas, passeios, como
se nada estivesse acontecendo, enquanto ocorria a ação
de especuladores que se aproveitavam da desorganização
total, para amontoarem fortunas, que eram dispendidas em
fantásticas orgias, ou no suborno de altos funcionários do
governo, enquanto trabalhadores se organizavam para a grande
luta. Nesse quadro, entre os pobres, a fome crescia, ao mesmo
tempo que gêneros de primeira necessidade e alimentícios
iam desaparecendo, armazenados clandestinamente ou
exportados para a Suécia.
Força Descritiva
A beleza e precisão do texto de John Reed fica bem
evidente na descrição que faz do belo edifício de três
andares, que ostentava na fachada enorme e insolente
brasão colonial, talhado na pedra em alto relevo. Ali havia
sido usado pelos filhos da nobreza como escola, mas fora
depois ocupado por operários e soldados. A reportagem
descreve os novos usos adotados, semanas antes da
revolução, como mostra a transcrição seguinte:
“O Instituto Smólni, quartel-general Comitê Central dos
Sovietes de Petrogrado, do Tsik e do Soviete de Petrogrado,
encontrava-se a vários quilômetros da cidade, às margens
do Nievá. Tomei um bonde lotado, que serpenteava e gemia,
afundando-se no barro.
No fim da linha, elevavam-se as elegantes cúpulas azuis
do Smólni, grande edifício de três andares, com fachada de
49TEMA
quartel, de duzentos metros de comprimento. Ostentava,
sobre a porta de entrada, enorme e insolente brasão imperial,
talhado na pedra, em alto-relevo.
As organizações revolucionárias de operários e de
soldados tinham-se apossado do Instituto, que, no antigo
regime, fora convento-escola para os filhos da nobreza
russa, patrocinado pela própria czarina. No interior, havia
para mais de cem quartos e salas, brancos e vazios. Placas
esmaltadas, no alto das portas, indicavam os visitantes que
ali ficava a Sala de aulas número 4, mais adiante a Sala dos
professores, etc. Pedaços de cartão, em lugar de placas,
com letreiros mal desenhados, recentemente afixados nas
portas, revelavam, no entanto, que o edifício tinha novas
funções: “Comitê Central dos Sovietes de Petrogrado”,
“Tsik”, “Departamento das Relações Exteriores”, “União
dos Soldados Socialistas”, “Comitê Central Pan-Russo dos
Sindicatos”, “Comitês de Fábricas”, “Comitê Central do
Exército”. Em outras salas, realizavam-se as sessões dos
departamentos centrais e as reuniões dos partidos políticos.
Através dos corredores, iluminados por lâmpadas
colocadas aqui e acolá, passava uma multidão apressada
de operários e soldados. Alguns vinham curvados sob o
peso de grandes maços de jornais e de manifestos, isto é,
de material de propaganda de toda espécie. O ruído das
grossas botas sobre o assoalho lembrava um trovão surdo.
Pelos cantos, viam -se cartazes com os seguintes dizeres:
“Camaradas! No interesse da sua própria saúde, cuidem da
higiene!”
Em cada andar, no alto das escadas, haviam sido
colocadas mesas para a venda de folhetos e publicações
políticas. No grande refeitório de teto baixo, do andar térreo,
estava instalado o restaurante. Comprei por dois rublos um
talão dando direito a uma refeição. Entrei na fila de milhares
de pessoas que esperavam a vez, encaminhando-se para
50TEMA
o balcão onde vinte homens e mulheres serviam sopa de
verduras, pedaços de carne, montanhas de cacha (mingau
de aveia) que tiravam de imensos caldeirões, e pedaços
de pão preto. Por cinco copeques (moeda divisionária,
centésima parte do rublo) podia-se tomar uma xícara de chá.
Cada pessoa, depois de receber o prato, apanhava uma
colher de madeira no interior de um cesto sujo de gordura. Os
bancos, ao lado das mesas, estavam repletos de proletários
famintos, que comiam trocando impressões, forjando
planos ou dizendo gracejos mais ou menos pesados.
No primeiro andar havia outro restaurante, reservado ao
Tsik, mas onde todo mundo entrava. Nele, qualquer um podia
servir-se de chá à vontade, distribuído em grandes bules, e
de pão com manteiga.
No segundo andar, na ala sul do edifício, ficava o
antigo salão de baile, transformado agora na grande sala
de sessões. Era enorme, de teto alto e paredes brancas,
iluminado por centenas de lâmpadas elétricas pendentes de
candelabros de cristal e dividido ao meio por dois grandes
lustres de vários braços, atrás do que se via uma moldura
de ouro, de onde fora retirado o retrato do czar. Nos dias
solenes, brilhavam nessa sala os reluzentes uniformes dos
oficiais, as vestes eclesiásticas...Havia até um lugar especial
reservado às grã-duquesas...
Do outro lado do corredor, justamente em frente ao grande
salão de sessões, instalara-se o Comitê de Credenciais do
Soviete, no qual se apresentavam os delegados: soldados
fortes e barbudos operários de blusas pretas, alguns
camponeses com longa cabeleira caída sobre os ombros.
A moça encarregada do serviço, membro do grupo
Plekhânov sorria desdenhosamente:
- Não se parecem nada com os delegados do primeiro
congresso - disse-me ela. - Veja que fisionomias abrutalhadas
e que expressões de ignorância! Que gente inculta!
51TEMA
E não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as
entranhas. Os que se achavam nas maiores profundidades
é que estavam agora vindo à superfície.
O Comitê de Credenciais, nomeado pelo Tsik, procurava
impugnar o mandato de cada delegado, inventando motivos
para declará-lo sem valor, alegando quase sempre que
as eleições tinham sido ilegais, etc. Karakan, membro do
Comitê Central Bolchevique, limitava-se a sorrir, dizendo
aos delegados:
- “Não se assustem. Quando chegar o momento, faremos
vocês ocuparem seus lugares. Não se preocupem”.
O Rabótchi i Soldai escrevia a respeito:
“Chamamos a atenção dos novos delegados do
Congresso Pan-Russo para o fato seguinte: certos
membros do Comitê de Organização, desejando
impedir a realização do congresso, andam dizendo
que ele não mais se reunirá e aconselhando os
delegados a embarcar de regresso. Não dêem
importância a esse amontoado de mentiras.
Grandes dias se aproximam”.
Era evidente que o quorum não seria atingido ainda a
2 de novembro.
Por isso, foi necessário transferir a abertura do
congresso para o dia 7.
Mas o país estava grandemente excitado. Os
mencheviques e socialistas revolucionários, percebendo
que iam ser derrotados, mudaram repentinamente de tática.
Começaram a telegrafar às organizações das províncias,
aconselhando-as a eleger o maior número possível de
socialistas moderados. Além disso, o Comitê Executivo dos
Sovietes Camponeses resolveu convocar, urgentemente,
52TEMA
um congresso camponês, para o dia 13 de dezembro, a fim
de anular todas as resoluções adotadas pelo Congresso
dos Sovietes de Operários e Soldados.
Que iriam fazer os bolcheviques? Corria o boato de
que os operários e soldados estavam preparando uma
demonstração armada. A imprensa burguesa e reacionária
profetizava uma insurreição e aconselhava o governo a
prender o Soviete de Petrogrado ou, ao menos, a impedir a
reunião do congresso. Alguns jornais, como o Novata Russ,
preconizavam a matança geral dos bolcheviques.
O jornal de Górki, Nóvaia Jizn, concordava com os
bolcheviques na afirmação de que os reacionários se
esforçavam por destruir a revolução e achava que, caso
fosse necessário , os primeiros deveriam resistir pela força
e pelas armas, porém, todos os partidos da democracia
revolucionária deveriam formar uma frente única.
“Enquanto a democracia não tiver organizado suas
forças mais importantes e encontrar ainda forte resistência,
não haverá vantagens em atacar. Mas, se os elementos hostis
recorrerem à força, então a democracia revolucionária deverá
travar a luta para tomar o poder e nesse empreendimento
será sustentada pelas camadas mais profundas do povo.”
Górki assinalou que as duas imprensas, a reacionária
e a governista, incitavam os bolcheviques à violência.
Acrescentava, outrossim, que uma insurreição abriria
o caminho para o advento de um novo Kornilov. Por
isso, aconselhava os bolcheviques a desmentirem os
boatos que circulavam. Petressov, no Dien (O Dia),
órgão menchevique, publicou um artigo sensacional,
acompanhado de um mapa que, segundo ele, revelava o
plano secreto da insurreição bolchevique.
Como por encanto, as paredes encheram-se de
avisos, manifestos, convites, etc, dos comitês centrais
53TEMA
dos moderados e conservadores, assim como do Tsik,
atacando qualquer “manifestação” e pedindo aos soldados
e operários que não dessem ouvidos aos agitadores.
Eis, por exemplo, a proclamação da seção militar do
Partido Socialista Revolucionário:
Novamente, circulam boatos a respeito de um golpe de
força que estaria sendo planejado. Qual é a origem desses
boatos? Que organização consente que seus agitadores
preguem a insurreição? Os bolcheviques, interrogados pelo
Tsik, afirmaram que não preparam nenhuma sublevação.
Entretanto, corremos perigo, porque essas notícias estão se
espalhando. É possível que alguns exaltados, contrariando
os sentimentos e a vontade da maioria, procurem excitar
os operários, os soldados e os camponeses, e arrastálos à insurreição. Nos momentos graves, como o que
presentemente atravessa a Rússia revolucionária, qualquer
levante pode desencadear uma guerra civil de conseqüências
funestas, que seria talvez a destruição total de todas as
organizações que o proletariado construiu com enormes
sacrifícios. Os
conspiradores contra-revolucionários
desejam a insurreição para exterminar a revolução, abrir
caminho para Guilherme II e impedir a convocação da
Assembléia Constituinte.
“Ninguém deve abandonar o seu posto!
“Abaixo a insurreição!”
Num dos corredores do Smólni, a 28 de outubro, falei
com Kamenev, homem baixinho, de barba ruiva e atitudes
de latino. Ainda não sabia ao certo se os delegados já eram
em número suficiente para a abertura do congresso.
- Se o congresso se realizar - disse-me ele - será a
expressão da vontade de esmagadora maioria do povo. Se
a maioria estiver do lado dos bolcheviques, como espero,
exigiremos que todo o poder passe aos sovietes.
54TEMA
Desse modo, o Governo Provisório desaparecerá.
Volodarski, jovem, alto, pálido, de óculos, aspecto
doentio, disse-me categoricamente:
- Lieber, Dan e os demais oportunistas estão sabotando
o congresso.
Caso consigam impedir sua realização, seremos
suficientemente realistas para passarmos por cima.
Nos meus apontamentos, com a data de 29 de outubro,
encontro os seguintes trechos dos jornais do dia:
“Moguilev (Quartel-General): Concentraram-se aqui os
regimentos leais da Guarda, a Divisão Selvagem, os cossacos
e os Batalhões da Morte.
“Os junkers (rapaz nobre, aluno oficial) das escolas
militares de Pavlóvski, Tsárskoie-Tseló e Peterhof receberam
ordens do governo para se aprontarem a fim de, ao primeiro
sinal, marcharem sobre Petrogrado. Os
junkers
de
Oranienbaum já estão na capital.
“Parte da divisão de carros blindados foi concentrada
no Palácio de Inverno. Mediante uma ordem assinada por
Trótski, a fábrica de armas de Sastroretsk entregou aos
delegados dos operários de Petrogrado muitos milhares
de fuzis. “Numa reunião da guarda municipal, no bairro
do Baixo-Liteinii, aprovou-se uma moção, pedindo a
transferência de todo o poder aos sovietes.”
Tais notas dão uma idéia exata da confusão reinante
nesses dias febris.
Todos sentiam que alguma coisa ia acontecer, mas
ninguém sabia o quê.
Na noite de 30 de outubro, numa sessão do Soviete de
Petrogrado, no Smólni, Trótski repeliu com desprezo as
afirmações da imprensa burguesa.
55TEMA
Os jornais burgueses diziam que o Soviete considerava
a insurreição armada como uma tentativa dos reacionários
paradesacreditar e provocar a falência do congresso. O
Soviete de Petrogrado - disse Trótski - não está preparando
nenhuma demonstração armada. Mas, se for necessário,
nós a faremos, e teremos ao nosso lado a guarnição de
Petrogrado. O governo prepara a contra-revolução. A nossa
resposta será uma ofensiva implacável e decisiva.
De fato, o Soviete de Petrogrado não ordenara qualquer
demonstração.
Mas o Comitê Central do Partido Comunista estudava
a insurreição. Passou a noite do dia 23 reunido. Estavam
presentes todos os intelectuais do Partido, os dirigentes e
os delegados dos operários e da guarnição de Petrogrado”.
Posição dos Intelectuais
É impressionante a riqueza de detalhes com que John Reed
descreve as divergências de posicionamentos e alinhamentos
naquele momento. Os prós e os contras a revolução iam se
definindo. Como se fosse uma obra ficcional, o jornalista
descreve os acontecimentos, ao mesmo tempo que faz
com palavras uma fotografia do prédio onde os eventos se
desenrolavam, sua beleza arquitetônica, e os contrastes entre
a nobreza dos salões e o novo público que os frequentavam,
bem como a simplicidade das refeições disponíveis.
“Entre os intelectuais, só Lênin e Trótski eram pela
insurreição. Os próprios militares manifestavam-se contra.
Passou-se à votação. Os partidários da insurreição ficaram
em minoria. Levantou-se, então, um trabalhador, de aspecto
rude, terrivelmente indignado, furibundo: - Falo em nome dos
proletários de Petrogrado - disse brutalmente. - Somos pela
56TEMA
insurreição. Vocês façam o que bem entenderem. Mas eu
os previno: se deixarem que os sovietes sejam destruídos,
vocês morrerão para nós.
Alguns soldados o apoiaram. A questão foi novamente
posta em votação.
E venceu!
A ala direita dos bolcheviques, contudo, dirigida por
Riaza nov, Kamenev e Zinoviev, continuou a bater-se contra
a sublevação armada.
O Rabótchi Vut, a 31 de outubro, pela manhã, começou
a publicar a “Carta a meus camaradas” de Lênin, um dos
mais audaciosos escritos de agitação política de todos os
tempos.
Lênin defendia a insurreição, rebatendo as objeções
formuladas por Kamenev e Riazanov.
“Ou renunciamos à nossa palavra de ordem ‘Todo o
poder aos sovietes’ “, escrevia, “ou fazemos a insurreição.
Não há outra alternativa.”
Nesse mesmo dia, à tarde, Miliukov, dirigente dos
cadetes, pronunciou brilhante e violento discurso no
Conselho da República. Apontou o nacaz de Skobeliev
como documento germanófilo, e declarou que a democracia
revolucionária estava levando a Rússia à ruína. Ridicularizou
Terestchenko e chegou a dizer que preferia a diplomacia
a lemã à russa. Na bancada da esquerda houve tumulto.
Mas o governo, por seu lado, não podia ignorar o efeito da
propaganda bolchevique. No dia 29, uma comissão mista
de representantes do governo e o Conselho da República
redigiu apressadamente dois projetos de lei. Um deles
entregava a terra temporariamente aos camponeses. O
outro lançava as bases de uma enérgica política de paz. No
dia 30, Kerenski aboliu a pena de morte no Exército. Nesse
57TEMA
mesmo dia, à tarde, realizou-se, com a maior solenidade, a
sessão inaugural da nova Comissão para o Fortalecimento
do Regime Republicano e para a Luta contra a Anarquia e a
Contra-Revolução,que, aliás, não deixaria nenhum vestígio
na história.
No dia seguinte, pela manhã, em companhia de um
grupo de jornalistas, entrevistei Kerenski. Foi sua última
entrevista, como chefe do governo:
- O povo russo - disse, com amargura - sofre em
virtude do esgotamento econômico e está desiludido com
os Aliados. O mundo pensa que a Revolução Russa está
terminando. Engana-se. A Revolução Russa mal começou...
Essas palavras foram bem mais proféticas do que o
próprio Kerenski supunha.
A reunião do Soviete de Petrogrado, que durou toda a
noite de 30, foi agitadíssima. Eu estava presente. Socialistas
moderados, intelectuais, oficiais, membros dos comitês do
Exército e do Tsik, em grande número, assistiam à sessão. Os
operários, camponeses e soldados, na sua linguagem simples,
levantavam-se contra eles atacando-os com veemência.
Um camponês referiu-se às desordens de Tvier, causadas,
segundo disse, pelas prisões dos comitês agrários.
- Esse Kerenski nada mais é que um testa-de-ferro dos
grandes proprietários - gritou. - Sabem que na Assembléia
Constituinte nós lhes arrebataremos as terras. É por isso
que tentam dissolvê-la.
Um mecânico da fábrica Putilov disse que os diretores
estavam fechando as seções da fábrica, uma por uma, sob o
pretexto de que não havia mais combustível nem matériasprimas. Mas o comitê da fábrica descobria, escondida,
grande quantidade de combustível e de matérias-primas.
58TEMA
- Estamos sendo provocados - acrescentou. - Querem
aniquilar-nos pela fome e obrigar-nos a agir violentamente.
Outro orador, soldado, começou assim:
- Camaradas! Trago-lhes as saudações daqueles que,
nas trincheiras, estão cavando as próprias sepulturas.
Em seguida, ergueu-se outro soldado, moço, alto,
porém alquebrado, e de olhos relampejantes. Foi recebido
por uma tempestade de aplausos. Era Tchudnovski, que
passava por morto desde os combates de julho e que, agora,
ressuscitava.
- As massas do Exército não têm mais nenhuma
confiança nos oficiais.
Os próprios comitês do Exército, que se opuseram à
reunião do nosso soviete, também nos traíram. Os soldados
querem que a Assembléia Constituinte se reúna na data
fixada! E ai daqueles que procurarem transferi-la! Não é
uma ameaça platônica o que afirmo, porque o Exército tem
canhões”!
Falou, depois, da campanha eleitoral, em pleno
desenvolvimento no 5° Exército.
- Os oficiais, principalmente os mencheviques e os
socialistas revolucionários, trabalham sistematicamente
pela derrota dos bolcheviques.
Nossos jornais não podem circular livremente nas
trincheiras. Nossos oradores são presos.. .
- Por que não menciona a falta de pão? - gritou outro soldado.
- Não se vive só de pão - respondeu Tchudnovski,
rispidamente...”
Assim, Reed continua contando com detalhes tudo o que
ocorreu, e o leitor avança com êle nesses dias tumultuados
59TEMA
que mudaram a história do mundo, mostrando a emergência
de um novo tipo de sociedade - a socialista. Porque após
a vitória de Lênin, nem o capitalismo conseguiu se manter
como era. Nem o Estado de Bem Estar Social teria surgido.
Os dez dias que abalaram o mundo é uma obra que além
de fornecer informações precisas sobre a revolução russa,
vai mais longe, constituindo-se numa bela obra de arte.
60TEMA
Documento :
A História Através da Arte
61TEMA
62TEMA
A História Através
da Arte
OS RETIRANTES - Portinari
63TEMA
64TEMA