Sub-registro: pessoas invisíveis para a gestão pública

Transcrição

Sub-registro: pessoas invisíveis para a gestão pública
inclusão
Sub-registro: pessoas invisíveis
para a gestão pública
Iúri Moreira e Mariângela Moraes
Q
uando uma criança nasce, uma das primeiras
providências que devem
ser tomadas pelos pais é o seu
registro civil . É através da Certidão de Nascimento que o futuro
cidadão brasileiro terá acesso a
todos os outros documentos
necessários para o exercício da
sua cidadania. Sem a certidão, a
pessoa fica impossibilitada de
exercer direitos básicos, como
se matricular em escolas, tirar
RG, CPF ou qualquer outro documento pessoal, além de não ter
acesso a programas sociais e até
a ser contabilizado nos índices
do governo, tornando-se virtualmente invisível.
No Brasil, a instituição
do registro com intenção de comprovar nascimentos, casamentos e óbitos data de março de
1888. Para o Estado, os dados
são de fundamental importância
para a implantação de políticas
públicas, tanto do ponto de vista
sanitário quanto social ou econômico. Nos estudos de população, por exemplo, as estatísticas
são utilizadas para determinar o
crescimento natural demográfico ou vegetativo, traduzido pelo
excesso de nascimentos sobre
os óbitos. No campo da saúde, o
número de nascidos vivos em
um determinado ano é importante para qualquer planejamento materno-infantil e para o
cálculo de vários coeficientes,
entre eles o de mortalidade
infantil, um dos índices mais
sensíveis das condições de
saúde de um povo.
Em 2012, as Estatísticas
do Registro Civil, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que o
número de nascimentos sem
registro despencou no Brasil.
Em apenas um ano, o percentual
caiu de 8,2%, em 2011 para 6,7%,
em 2012. Desde 2002 (20,3%), a
queda foi de 13,6 pontos percentuais. Ainda assim, existem
cerca de 600 mil crianças de até
10 anos de idade que ainda não
possuem registro nascimento no
Brasil. O sociólogo Claudio Crespo, coordenador de População e
Indicadores Sociais do instituto,
atribui a queda a um conjunto de
ações da gestão pública, que
tiveram continuidade ao longo
da década. “As ações de combate
ao sub-registro se espalharam
por meio dos governos federal,
estadual e municipal. Houve
instalação de cartórios em
ESTIMATIVAS DE SUB-REGISTRO DE NASCIMENTOS
20,3
18,8
17,6
14,6
15,4
15,5
12,9
12,7
11,5
8,2
6,7
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
FONTES: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Projeção da
População do Brasil por sexo e idade para o período 2000-2006; Estatísticas do registro Civil 2002-2012
2011
2012
É um
direito das
crianças
serem
registradas
ao nascer”
Claudio Crespo
Coordenador de População e
Indicadores Sociais do IBGE
maternidades, especialmente
nas públicas, mas certamente
os programas sociais exigindo o
registro de nascimento para
concessão de benefícios tiveram
um papel significativo”, explica.
Segundo o pesquisador
do IBGE, é considerado subregistro o nascimento não registrado no ano de sua ocorrência
ou até o primeiro trimestre do
ano seguinte. “A redução do subregistro de nascimento é, sem
dúvida, uma informação relevante. É um direito das crianças
serem registradas ao nascer”.
Os dados, entretanto, são estimativas estatísticas e não revelam todos os casos de pessoas
ainda não registradas ou que não
têm sua certidão em seu poder.
Na prática, a população atingida
pela falta de registro é composta, ainda, por aqueles que vivem
em entidades de abrigo, pela
população de rua, por pessoas
com transtorno mental, as situações de partos domiciliares, a
migração populacional e a população migratória que chega à
região de destino sem documentação e não consegue registrar
os filhos.
Além da desigualdade
sócio-econômica como principal
causa, o IBGE aponta outros motivos, como as distâncias dos cartórios; custos de deslocamento;
desconhecimento da importância do registro; ausência de cartórios em alguns municípios;
dificuldades de implementação
de políticas de fundos compensatórios para os atos gratuitos
do registro civil e, por fim, casos
de mães que adiam o registro de
filhos pois não têm o reconhecimento inicial ou espontâneo da
paternidade. Vale lembrar que
desde dezembro de 1997, a partir
da lei 9.534, o registro de nascimento passou a ser gratuito no Brasil.
O combate ao subregistro não é uma exclusividade
brasileira. Segundo o Fundo das
Nações Unidas para a Infância
(Unicef), globalmente, o nascimento de 230 milhões de crianças com menos de 5 anos nunca
foi registrado. A Ásia é a casa de
mais da metade delas (59%), e
uma em cada três crianças não
registradas vive na Índia. Os
dados são do relatório “O Direito
ao Nascer de Cada Criança: Desigualdades e Tendências no
Registro de Nascimento”, no
qual a Unicef aponta que, em
2012, apenas 60% de todos os
bebês nascidos no mundo foram
registrados. Segundo o estudo,
os países com maior número de
crianças não registradas são
Índia (71 milhões), Nigéria (17
milhões), Paquistão (16
milhões), Etiópia (13 milhões) e
Bangladesh (10 milhões).
O Fundo ainda estima
que 10% das crianças de até
cinco anos não sejam registradas na América Latina. No Brasil, o Censo 2010 indica uma porcentagem bem menor, de 2,67%.
Além da gratuidade garantida
por lei, o Unicef ainda atribui os
baixos índices brasileiros a iniciativas como o programa Mãe
Coruja, que permite o registro já
nas maternidades e à política
Lembro-me de ir ao hospital ou
clube de passeio e ser
identificado pelos documentos
da minha mãe. Existia no Peru
um documento equivalente a
Certidão de Nascimento aqui do
Brasil, mas era como se ele não
tivesse valor para todos os
serviços, pois não era exigido”
Carlos Nonone
Analista de Suporte e
residente há 25 anos no Brasil
nacional, estabelecida em 2007,
com o intuito de promover a colaboração entre as autoridades de
registro civil e o setor da saúde.
Nossos vizinhos também não
estão parados, e têm lançado mão
de diferentes alternativas para
tentar diminuir o fosso estatístico.
Um exemplo é o Peru.
Quando uma criança se perdia
ou aparecia morta, era difícil
localizar a família e – em muitos
casos –, identificá-la. Foi assim
que o peruano Carlos Nonone,
analista de suporte e residente
há 25 anos no Brasil, descreveu a
situação do seu país antes da
implantação do Documento Nacional de Identidade (DNI) - Juvenil. “Lembro-me de ir ao hospital ou clube de passeio e ser identificado pelos documentos da
minha mãe. Existia no Peru um
documento equivalente a Certidão de Nascimento aqui do Brasil, mas era como se ele não
tivesse valor para todos os serviços, pois não era exigido”, conta
Nonone. O cenário peruano
antes do DNI para as crianças
era preocupante, com altos índices de tráfico de menores e subregistro. A falta de identificação
impactava no exercício dos direitos humanos deles, dificultando
o acesso a serviços públicos e
programas sociais do Governo.
Morando desde os 13
anos no Brasil, Carlos (atualmente com 38) lembra que apenas os adultos possuíam documento de identidade. Somente a
partir de 2002, quando o DNI
Juvenil começou a ser implantado, foi que os menores passaram
a ter mais uma identificação,
além da “Partida de Nacimiento”, obrigatória para a retirada
do Documento Nacional de Identidade. “O DNI contém todas as
informações do cidadão, incluindo a impressão digital, nomes
dos pais, endereço, estado civil e
dados eleitorais. Ele tem o formato de um cartão de crédito e
código de barras. Os novos já
estão saindo com chip para dificultar a falsificação”, explica. De
acordo com Nonone, em fevereiro deste ano fez uma década que
a antiga identidade foi abolida e o
DNI passou a ser adotado como o
principal documento do Peru, contando com 15 itens de segurança.
Criado pelo Registro
Nacional de Identificação e
Estado Civil (Reniec), o objetivo
do DNI Juvenil era aumentar a
distribuição dos benefícios sociais, garantir o direito à identidade e a proteção dos cidadãos
menores. Em 2012, depois de dez
anos de implantação, mais de 94%
das crianças peruanas já tinham o
documento. No ano passado, a
iniciativa conquistou o 1º lugar no
Concurso Mundial de Serviços
Públicos, promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Com a premiação, o Reniec se
tornou a primeira entidade da
América Latina e do Caribe a
obter o reconhecimento de
maior prestígio do serviço público concedido a nível mundial. A
importância do DNI Juvenil é
constatada com um simples
PAÍSES COM MAIOR
NÚMERO DE CRIANÇAS
NÃO REGISTRADAS
PAQUISTÃO
16 milhões
BANGLADESH
10 milhões
ETIÓPIA
13 milhões
NIGÉRIA
17 milhões
ÍNDIA
71 milhões
dado: antes de sua criação, apenas 0,1% das crianças tinham
identificação.
Iniciativa pernambucana Desde 2008, a capital pernambucana abriga um projeto semelhante e que também vem dando
certo. O Programa Minha Certidão, organizado pela Secretaria
de Desenvolvimento Social, Criança e da Juventude, do Governo
do Estado de Pernambuco, foi
idealizado para combater o subregistro de menores. Criado
para viabilizar o acesso à certidão de nascimento dos pequenos antes mesmo de eles saírem
do hospital, a iniciativa resultou
em 78.315 certidões emitidas
até o final do ano passado. Hoje,
com 77 maternidades conveniadas, o programa conta com unidades interligadas aos cartórios
de Registro Civil de Pessoas
Naturais e de forma online emite
os registros. “A implantação do
serviço nas maternidades públicas é responsabilidade do estado, que equipa a unidade interligada com computador, impressora, mobiliário e internet. Já nas
maternidades privadas, repassamos a ferramenta que possibilita
a emissão do registro civil de
forma online, o Sistema Estadual
de Registro Civil (Serc)”, esclarece a coordenadora do Programa
Minha Certidão, Maria Cristina
Cavalcanti Cabral. De acordo com
ela, o próximo passo é finalizar a
implantação nas 91 unidades de
saúde do estado.
Entre as maternidades
do Recife beneficiadas com o
Minha Certidão estão o Instituto
Materno Infantil de Pernambuco
(Imip), o Hospital Agamenon
Magalhães, o Hospital Barão de
Lucena, a Unidade Mista Profes-
Estamos reformando a
maternidade e resolvemos aderir
ao programa, agregando qualidade
no nosso atendimento. Afinal, o
investimento é muito pequeno se
comparado à prestação de serviço
oferecida aos pais”
Antonio Areias
Assessor da Diretoria do Hospital Português
sor Barros Lima, a Policlínica e
Maternidade Arnaldo Marques e
o Centro Integrado de Saúde
Amaury Medeiros. Executado
em parceria com a Corregedoria
Geral da Justiça de Pernambuco, a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen)
e a Agência Estadual de Tecnologia da Informação (ATI), a ação já
está colhendo os frutos e começa a despertar o interesse das
maternidades particulares. É o
caso do Hospital Português, um
dos maiores do estado, que procurou a gerência do Minha Certidão por iniciativa própria, para
implantar o sistema. “Estamos
reformando a maternidade e
resolvemos aderir ao programa,
agregando qualidade no nosso
atendimento. Afinal, o investimento é muito pequeno se comparado à prestação de serviço
oferecida aos pais”, explicou o
assessor da diretoria Antonio
Areias. Ele acrescentou ainda
que o hospital também acaba
sendo beneficiado com a iniciativa, pois em vez de fornecer um
papel com os dados do bebê para
ser levado ao cartório, agora
passa a disponibilizar um documento legal.
Para a coordenadora do
Programa Minha Certidão, a
ação – que proporciona ao indivíduo a oficialização da sua existência, garantindo o exercício da
cidadania –, é possível também
graças à parceria com o Programa Mãe Coruja, iniciativa pernambucana que é referência
internacional no combate à mortalidade infantil e materna e que
já foi apresentada em Cabo Verde, Peru, Paraguai e México.
Lançado em outubro de 2007 no
sertão do Araripe (PE), região
que detinha os piores indicadores de saúde o Estado (631 km do
Recife), o programa cobre atualmente todos os 103 municípios
q u e p o ss u e m m o r ta l i d a d e
materno-infantil acima de 25
mortes para cada mil nascidos e
atua por meio de ações integradas de oito secretarias: Saúde;
Educação; Desenvolvimento Social e Direitos Humanos; Criança e
Juventude; Especial da Mulher;
Qualificação, Trabalho e Empreendedorismo; Agricultura e
Reforma Agrária e Planejamento.