Sem t.tulo-1

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Sem t.tulo-1
FUNDAMENTOS
DE
ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=1439102
Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=1439102
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
FUNDAMENTOS DE
ANTROPOLOGIA
BIOÉTICA
Centro de Documentação e Informação do Pólis Instituto de
Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais
A687
Araújo, Antonio Fábio Medrado de
Fundamentos de antropologia bioética. / Antonio Fábio
Medrado de Araújo -- São Paulo : Annablume, 2004.
156 p.
ISBN 85-7419-454-9
1. Bioética. 2. Antropologia Filosófica. 3. Pesquisa
Biomédica. I. Título.
CDU 17:575.1
CDD 573
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
Coordenação editorial
Joaquim Antonio Pereira
Produção
Maria Augusta Mota - Paginação
Capa
Flávio Soledade
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Gilberto Mendonça Teles
Maria de Lourdes Sekeff
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Jacobi
Gilberto Pinheiro Passos
Eduardo Alcântara de Vasconcellos
1ª edição: agosto de 2004
© Antonio Fábio Medrado de Araújo
ANNABLUME editora . comunicação
Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros
05427-100 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-9727
http://www.annablume.com.br
AGRADECIMENTOS
São tantos, e tão especiais que não creio seja possível relacionálos com a parcimônia amiúde em anotações deste tipo.
Repassando as pessoas e instituições que estiveram
comprometidas, de uma forma mais íntima, com o presente
estudo, logo me vem a imagem do Núcleo de Pesquisa e Educação
Transdisciplinar em Bioética (NETBio), vinculado ao
Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual
de Feira de Santana (DCBio / UEFS), que, de várias maneiras,
fez-me pensar bioeticamente.
Também aqui, ocorre-me a lembrança sempre marcante do
Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Estadual de Oncologia
(CEP / CICAN), onde co-testemunhei uma práxis bioética
verdadeiramente digna.
Recordo-me, ainda, da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e
da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP / CNS – MS),
cujo empenho burocrático quanto à decência das pesquisas científicas
em humanos realizadas neste país tenho como autêntica inspiração.
Dentre minhas reminiscências, não poderia furtar-me à menção
da Pontificia Universitas Lateranensis e, sobretudo, do Pontificium
Institutum Ioannes Paulus II, cuja seção brasileira, para além do
desígnio secular e acadêmico de formar mestres, forjou-me humanista,
sendo o refúgio e alento a reanimar minha vocação cristã.
E, fechando o ciclo institucional que resultou neste
opúsculo, encontro a editora Annablume e a Ordem dos
Advogados do Brasil, ambas responsáveis por minha inserção no
mercado editorial-acadêmico brasileiro.
No entanto, muito do reconhecimento sincero que dedico a
tais entidades reflete, em verdade, a profunda admiração e respeito
que cultivo em relação a certos profissionais que as personificam.
Refiro-me, por certo, a Libonatti, Stefano Volani, bem assim
aos demais queridos colegas mestrandos, com os quais mantive uma
convivência intelectual fecunda; a geneticista e bioeticista Eliane Elisa
de Souza e Azevêdo: por vezes mestra e irmã; n’outras, mãe e amiga
(não fosse seu rigor meigo e constante incentivo, sequer teria
ultrapassado os capítulos iniciais desta publicação); a Giancarlo
Petrini, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e orientador da dissertação que
originou a presente obra: um docente formidável, cuja paciência,
zelo e rigor acadêmico margearam nossa intenção monográfica,
conferindo-lhe densidade formal; aos insignes professores de
Metafísica I e Ética do Perdão do nosso Mestrado em Ciências da
Família, respectivamente Gabriel François Germain Hibon (doutor
em Filosofia pela Université Paris I, Sorbonne e prof. de Metafísica
da Université Libre des Sciences de l’Homme) e Jean Laffite (doutor
em Teologia Moral e prof. de Ética da Pontificia Universitas
Lateranensis / Pontificium Institutum Ioannes Paulus II), os quais
cedo estimei pela acuidade de vossos ensinamentos; a Paulo Eduardo
Matias Lessa, mestre em Administração pela Universidade de
Extremadura, cuja leitura amiga e inestimáveis críticas a este trabalho
imprimiram-lhe rumo e gravidade.
Enfim, devo mencionar minha gratidão a José Roberto Barreto
Lins e Joaquim Antonio, respectivos editor e coordenador editorial,
que souberam alcançar, com talento e bom senso, o equilíbrio entre
as rijas exigências da linguagem e o respeito pela teimosia do
pensamento incuravelmente idiossincrático deste autor.
A todos, muitíssimo obrigado.
A meu semelhante, implorando vosso perdão.
A Simaia, minha colombina às avessas. Nestes quase oito anos
de matrimônio, aprendi a olhar-me através de seus olhos, a
animar-me com o sorriso que verte fácil de sua alma, a
sofrer com as desventuras de seu espírito impetuoso e bom...
Aprendi a tê-la como minha consorte, a melhor parte de mim!
A Beatriz (ou simplesmente “bibia”, como prefiro chamá-la),
hoje com dois aninhos. Filha querida: contigo, todo e cada instante
de minha vida são consagrados em elogio a nosso Pai, por
ter-me concedido a dádiva de ser teu pai. Rogo a Deus forças
a fim de, em comunhão com sua mãe, educar-lhe, de um
modo exemplar e inteligente, para o amor e o perdão.
É no vosso dom que repousamos. Nele gozaremos em Vós. É o
nosso descanso, é o nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata e que
o Espírito Santo levanta o nosso abatimento desde as portas da morte.
Na vossa boa vontade, temos a paz. O corpo, devido ao peso, tende para
o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas
também para o lugar que lhe é próprio. Assim o fogo se encaminha para
cima e a pedra para baixo. Movem-se segundo o seu peso. Dirigem-se
para o lugar que lhes compete. O azeite derramado sobre a água aflora à
superfície; a água vertida sobre o azeite submerge debaixo deste: movem-se
segundo o seu peso e dirigem-se para o lugar que lhes compete. As coisas
que não estão no próprio lugar agitam-se; mas, quando o encontram,
ordenam-se e repousam. O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte
que vá, é ele que me leva. O vosso dom inflama-nos e arrebata-nos para
o alto. Ardemos e partimos. Fazemos ascensões no coração e cantamos o
cântico dos degraus (...) Regozijei-me com aquilo que me disseram:
Iremos para a casa do Senhor. Lá nos colocará a boa vontade para que
nada mais desejemos senão permanecer ali eternamente.
Agostinho
Dêem-lhe todas as satisfações econômicas
de maneira que não faça mais nada senão dormir,
devorar pastéis e esforçar-se por prolongar a história universal;
cumulem-no de todos os bens da terra e
mergulhem-no em felicidade até a raiz dos cabelos:
à superfície de tal felicidade como à tona de água
virão rebentar bolhas pequeninas.
Dostoiévski
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................... 11
INTRODUÇÃO GERAL ............................................................ 15
CAPÍTULO I – PREMISSAS TEÓRICAS E ITINERÁRIO
DE PESQUISA ..................................................................... 17
DISPOSIÇÕES E PARÂMETROS DO PRESENTE ESTUDO ..................... 19
OBJETO E METODOLOGIA DE ABORDAGEM ................................... 20
CAPÍTULO II – CENÁRIO HISTÓRICO-CULTURAL
DA BIOÉTICA ....................................................................... 23
BIOÉTICA INTERTEMPORAL E CONCEITUAL .................................... 25
A BIOÉTICA E A VIDA DAS BIOÉTICAS ........................................... 39
CAPÍTULO III – MODELOS EXPLICATIVOS
DA BIOÉTICA ....................................................................... 45
PANORAMAS BIOÉTICOS: RECENSEAMENTO E DECODIFICAÇÃO ....... 47
MODELO DOS PRINCÍPIOS OU PRINCIPIALISMO ............................... 48
Princípio da autonomia ..................................................... 50
Princípio da beneficência................................................... 53
Princípio da não-maleficência ........................................... 54
Princípio da justiça ............................................................ 54
MODELO CASUÍSTICO ................................................................. 56
MODELO COERENTISTA .............................................................. 57
MODELO TERNÁRIO ................................................................... 57
MODELO AUTONOMISTA ............................................................. 59
MODELO DA VIRTUDE ................................................................ 59
MODELO DO CUIDADO .............................................................. 60
MODELO COMUNITÁRIO ............................................................. 61
MODELO CONTEMPORÂNEO DO DIREITO NATURAL ...................... 61
MODELO CONTRATUALISTA ......................................................... 63
MODELO PERSONALISTA .............................................................. 65
O MONOPÓLIO BIOMÉDICO ....................................................... 67
CAPÍTULO IV – O AMOR-PHILIA COMO
BASE DA PRÁXIS BIOÉTICA ............................................. 71
O QUE É O AMOR DE AMIZADE .................................................. 75
APLICABILIDADE DO AMOR-PHILIA À BIOÉTICA .............................. 82
CAPÍTULO V – POR UMA BIOÉTICA
DA AMIZADE ....................................................................... 93
CONSTERNAÇÃO EM TUSKEGEE .................................................... 95
EFETIVIDADE DO PRIMEIRO CICLO BIOÉTICO .............................. 100
PHILIA BIOÉTICA: UMA ATIVIDADE MORAL DIGNA ..................... 115
CONCLUSÃO: ESTATUTO PRÓPRIO
DA PHILIA BIOÉTICA ...................................................... 119
BIBLIOGRAFIA ....................................................................... 135
PRESENTACIÓN
La medicina ha conocido en los útimos decenios un crecimiento
sin igual que ha reportado grandes beneficios a la humanidad, pero
que también ha producido grandes inquietudes y malestar.
Esta inquietud se refiere al uso invasivo de la tecnología
que pone en entredicho la misma subjetividad del hombre. De
fondo, este uso invasivo de la tecnología refleja una triple
reducción en la práctica médica:
•
•
en primer lugar se trata de la reducción de la persona al yo
espiritual, en donde se mostraría la especificidad del hombre
con respecto a los demás seres vivos: esto es, su conciencia y
libertad. Pero ello se hace dejando aparte el cuerpo del
constitutivo de la persona, por lo que el cuerpo viene a ser
concebido desde un punto de vista meramente orgánico, sin
relación con el alma y la persona toda. Esta pérdida del sentido
personal del cuerpo implica una segunda pérdida, que es la
perdida del sentido global que implica el concepto vida, ya que
ahora viene a ser reducida a la vida meramente corporal, orgánica,
por lo que se la puede tratar como un material manipulable ya
que en sí misma no tiene una referencia personal.
en segundo lugar se encuentra la reducción de la persona al
individuo, dejando aparte las relaciones que le son constitutivas
y en donde encuentra su sentido humano. No es que con ello
se prescinda de la familia del enfermo, lo cual sería un
despropósito en cualquier terapia, ya que sin la colaboración
de la familia se hace insostenible la recuperación de muchos
enfermos; pero esta atención a la familia es vista de una forma
meramente utilitaria. El problema de fondo es que no se tiene
en cuenta el carácter relacional del hombre al que se dirige el
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•
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
arte medico, esto es, de un hombre que se considera a sí mismo,
gracias a su corporeidad, formando parte de un conjunto de
relaciones en las que su propia vida adquiere sentido, y sin las
cuales se hace inhumana la existencia. Esto implica que el medico
reduce el horizonte de su arte, restringiéndolo a la mera solución
de los problemas de salud orgánica de esta persona.
por fin, se encuentra la reducción del mismo arte medico,
que es visto como una ciencia técnica, en sí misma indiferente
éticamente. La valoración ética de las prácticas que implica, se
derivaría de la intención subjetiva con la cual el profesional
actuase, o de las consecuencias que se produjesen de su actuar
en el enfermo y en la sociedad o de la aplicación de unos
principios morales abstractos. Pero en sí mismas serían neutras.
Estas tres reducciones han llevado al peligro de una gran
manipulación de la persona humana en su corporeidad, especialmente
de aquellos cuya existencia se encontraba en una gran debilidad y
falta de apoyo familiar. Se veía cada vez con más urgencia la necesidad
de aclarar el poder del hombre en el uso de la técnica y sus límites
intrínsecos. Por ello nació la bioética, con el ánimo de combinar los
conocimiento biológicos con los conocimientos de los valores
humanos, cuya ruptura ponía en juego el entero ecosistema vital del
hombre. Era preciso establecer puentes entre ambos.
El modo como se ha llevado a cabo este trabajo, sin embargo, ha
ido mostrando la dificultad de fondo. Esta se sitúa precisamente en una
concepción de la ética reducida a ciencia de las normas. Tal concepción,
al entrar en contacto con el mundo clínico y su modo práctico de
resolución de problemas por la aplicación de principios, motiva que se
busquen principios morales universales aplicables a los diversos casos y
gracias a los cuales se puedan resolver los problemas en cuestión.
Antonio Fábio Medrado manifiesta con fuerza en su
investigación los éxitos y los límites que las diversas corrientes de
reflexión han supuesto para la bioética. De fondo, se aprecia cómo un
problema mal presentado es dificilmente resoluble. La raiz última de
la dificultad de la reflexión bioética se sitúa en la falta de clarificación
de lo que es el bien de la persona, sea del enfermo que recibe una
ayuda, como del profesional sanitario que con su acción se dirige a él.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
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Por esta razón, se aprecia cómo la bioética se encuentra
actualmente en un momento de búsqueda de una fundamentación
que le permita abordar en toda su amplitud la cuestión del sentido
y finalidad de la práctica médica y de la investigación.
Es aquí, precisamente, donde se puede ver todo el valor de la
propuesta del autor del presente trabajo. La bioética se funda no en
unos principios abstractos, ni en un cálculo de consecuencias, sino
en una especial relación entre médico y enfermo, en una amistad
singular que podríamos llamar de alianza terapéutica. Gracias a ella
es como es posible reconocer en cada enfermo una persona humana
con un destino singular. La superación de las reducciones
mencionadas se hace ahora posible desde esta singular relación de
amistad: y es amistad, no porque exista una relación afectiva, lo cual
complicaría la labor del médico, sino porque en ella se PUEDE
comunicar un bien a otra persona: el bien de la salud. Se hace ahora
posible redimensionar la técnica médica, que deja de ser concebida
como un conocimiento meramente instrumental y técnico para pasar
a ser un conocimiento propiamente humano al servicio de la persona
en su integralidad gracias a la relación personal que lo funda.
Saber presentar un problema, dar con la formulación adecuada,
es ya el principio de poder resolverlo. Pero aún queda mucho camino
que realizar. Esperamos que este trabajo pueda ser el inicio de este
camino al que sigan otros estudios.
JOSÉ NORIEGA BASTOS
Pontificio Instituto Juan Pablo II
Roma, 11 de febrero 2004
INTRODUÇÃO GERAL
O estudo ora publicado pela Editora Annablume, ressalvadas
algumas adaptações ao grande público, corresponde à dissertação
apresentada ao Mestrado em Ciências da Família – ênfase em bioética
(área de concentração) – da Pontificia Universitas Lateranensis e
Pontificium Institutum Ioannes Paulus II, ambos situados na Cidade
do Vaticano, aprovada com distinção por sua banca examinadora.
A construção do aludido texto observou três momentos. O
primeiro deles consistiu na revisão dos conceitos fundamentais da
bioética, o que resultou na conformação daquilo que chamei de
primeiro ciclo bioético ou bioética BASP (Branca, Anglo-Saxônica e
Protestante), enquanto referência ideológica para o desenvolvimento
do sistema bioético erigido a partir de 1970.
O segundo momento se ateve ao inventário dos principais
modelos da bioética, visando demonstrar a profunda especialização do
seu pensar-agir e, por conseguinte, a sua precariedade como instância
de regulação ética das pesquisas científicas em humanos, cuja
bioeticidade, perquiriu-se afinal, reivindica uma bioética fundada na
philia aristotélica (amor de amizade), a perfazer nossa proposta específica.
Inserta no âmbito da antropologia filosófica clássico-medieval
(JAEGER, 1995; GARDEIL, 1967; VAZ, 1991: 27-76), a presente
investigação concluiu que a bioética tradicional, desde meados do
século passado, expandiu os horizontes de nossa civilização, rasgando
o manto intangível das pesquisas biomédicas. E, perante nossos olhos,
irrompeu uma realidade então insuspeita, muitas vezes hedionda.
No entanto, uma bioética que se pretende lúcida deveria,
preliminarmente, discernir, por um lado, o que depende das
transformações tecno-científicas e econômicas (fatos que, em si mesmos,
não são bons nem maus), ensejadas pelas pesquisas científicas em
humanos e, por outro, as diversas ideologias gestadas nesse cenário, mas
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
dele distintas, à medida que tais ideologias implicam todo um juízo de
valor, ainda que distorcido, sobre a pessoa humana e seu destino.
Incorporando a metáfora potteriana (POTTER, 1971), o
primeiro ciclo bioético, enquanto bridge to the future, repercute uma
inquietação legítima no tocante à poluição de nossos mares, da
atmosfera e, em breve, de toda a Terra, realçando a premência da
questão ecológica (conquanto seja a sobrevivência biológica da espécie
humana que se encontra cada vez mais em causa).
Não obstante, a proposta que estou a defender, enquanto bridge
to the present, pretende, desde a práxis condizente às pesquisas
científicas em humanos, sublinhar uma inquietação algo mais sutil,
quanto à poluição do ambiente cultural, tão nociva ao espírito dos
homens, à sua inteligência e capacidade de amar.
Daí porque, face às pesquisas científicas em seres humanos, tem-se
que o amor de amizade é um fundamento adequado ao seu agir (bio)ético.
Concluiu-se, ademais, que nos encontramos numa conjuntura
favorável à implementação de uma bioética consolidada na amizade,
enquanto antropologia epistemológica, transdisciplinar e
espiritualizada, pois nos consentimos descer muito baixo; e, estando
no fundo do poço, já quase não podemos descer algo mais.
***
A dissertação que culminou nesta obra sofreu um significativo
processo de reformulação editorial, cujo intuito fora, nas palavras de
José Roberto Barreto Lins (editor), “eliminar certas formalidades do
texto acadêmico”, oferecendo ao público “uma obra de referência,
mas de leitura agradável, pois um livro não é uma tese, tampouco
seu leitor um argüidor numa banca”.
Assim, ousei dialogar mais diretamente com o prezado leitor;
busquei apresentar-lhe minhas idéias e sustentar meus pontos de
vista com o mesmo entusiasmo de quando descobri a bioética.
E fi-lo procurando compartilhar, com quem quer que venha a
honrar-me com a leitura destas mal traçadas linhas, um pensamento
articulado em palavras, o desejo de querer saber o que é a bioética e
qual sua finalidade, através de um livro agradável, que não perdesse,
obviamente, em conteúdo, originalidade e rigor expositivo.
CAPÍTULO I
PREMISSAS TEÓRICAS E
ITINERÁRIO DE PESQUISA
DISPOSIÇÕES
E
PARÂMETROS
DO
PRESENTE ESTUDO
Pretendo, inicialmente, traçar um roteiro de estudo, ao qual os
leitores deste trabalho deverão ater-se, visando, com isso, contribuir
com a organicidade do presente texto, tornando-o algo mais acessível.
O desenvolvimento desta obra se perfaz ao longo de quatro
partes ou capítulos, dispostos conforme o arranjo a seguir esboçado:
•
•
•
o capítulo II traz uma revisão dos conceitos que, desde 1970,
permeiam a conformação da bioética. Em seguida, tal revisão
é situada em um contexto maior, de cunho ideológico-cultural,
o que resultou na configuração daquilo que designei primeiro
ciclo bioético (paradigma tradicional) e, dentro dele, na
classificação dessas mesmas definições, segundo o grau de
afinidade intraparadigmática (Figuras 5 e 6);
ato contínuo, tem-se o capítulo III, no qual identifico e
comento, ainda que de modo um tanto conciso, os principais
modelos explicativos veiculados pela literatura bioética,
complementando o liame expositivo inaugurado desde o
capítulo II e, conseqüentemente, finalizando o preparo do
terreno no qual procuro semear, a partir do capítulo IV,
minha proposta específica;
integralizando o desenvolvimento desta pesquisa, discorrem
os capítulos IV e V sobre a plausibilidade de uma práxis
bioética fundada naquilo que Aristóteles (1985 a), outrora,
proclamou como amor de amizade ou philia.
Enfim, proponho uma conclusão. Nela, indagou-se acerca
da pertinência de minha proposta em face do grande desafio da
bioética: a manutenção da dignidade do homem nas pesquisas
científicas em humanos.
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Tanto quanto possível, tentei responder a tais indagações; filo, no entanto, sem olvidar o fato de que a bioética, conquanto exista
há cerca de três décadas, encontra-se ainda em gestação (não faltando,
inclusive, quem advogue sua invalidade, pretendendo abortá-la1), o
que faz desta investigação um percurso sobremodo desafiador.
OBJETO
E
METODOLOGIA
DE
ABORDAGEM
Por meio deste estudo, procurei delinear e introduzir no
cenário bioético a possibilidade de uma prática baseada no amorphilia (objeto central).
Consistiu, pois, meu problema de pesquisa em demonstrar,
segundo as disposições descritas no item anterior, a pertinência
teórica e exeqüibilidade de um pensar-agir bioético pautado,
efetivamente, no amor-philia entre os sujeitos envolvidos numa
pesquisa científica em humanos, distinguindo-o em face do primeiro
ciclo bioético ou bioética tradicional.
Dessa forma, espero não apenas contribuir com a gradual e
autêntica humanização das pesquisas científicas em seres humanos, para
que se tornem ambientes verdadeiramente éticos (objetivo primário),
mas, também, contrapor ao primeiro ciclo bioético uma legítima opção
paradigmática (objetivo secundário), qual seja: a philia bioética.
Uma tal abordagem se justifica, fundamentalmente,
enquanto tarefa de moralização do trabalho afeito às pesquisas
científicas em humanos2, pelo amor de amizade entre os sujeitos
nela engajados. Isso, aliás, aponta o caminho e delimita a finalidade
desta exposição, cuja escolha e o modo de considerá-los não pleiteiam
justificação especial.
Prescindiu-se, ademais, do delineamento prévio de hipóteses de
pesquisa. Em seu lugar, optei pelo modelo concebido por Tenório (1991;
1998), adotado em Araújo e Lessa (1998) - apesar de vir a repensá-lo
1. Refiro-me, aqui, a um Marie-Dominique Philippe (filósofo e teólogo francês, radicado na
Universidade de Friburgo), para quem a bioética é um bom exemplo da enorme confusão,
engendrada pela modernidade, sobre o que é a ética, à medida que ela não passa de uma
ética especializada e, portanto, natimorta (cf. PHILIPPE, 1996 a). Tal perspectiva será
oportunamente retomada no item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V).
2. Todas elas, e não apenas as pesquisas biomédicas lato sensu, tese que sustento, de forma
mais específica, no item “O monopólio biomédico” (capítulo III).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
21
logo depois (ARAÚJO, 2000) -, que consiste na elaboração de certas
questões (operacionais) ao problema de pesquisa, cujas respostas se
tornarão o próprio desenvolvimento da investigação realizada.
A interrogação representa para o filósofo o mesmo que a
hipótese para o cientista. Considerando suas formas mais elementares,
ambas exprimem, exclusivamente, aquele apetite natural inerente à
inteligência que pretende compreender, de um modo progressivo, o
que há de essencial quanto ao objeto pesquisado.
Mas, enquanto idéia a priori, a hipótese é um delineamento
ou realização modal do possível, que, afinal, será ou não ratificada
pelos resultados da pesquisa. A interrogação, por sua vez, viabiliza
um diálogo direto com o objeto de estudo, permitindo que o
pesquisador dele se afaste momentaneamente, a fim de, em seguida,
conhecê-lo de uma forma mais adequada e penetrante (desde que
rejeite, em sua origem, todo e qualquer a priori).
Daí, porque, neste ensaio, cada capítulo do desenvolvimento
textual corresponde, em verdade, a respostas articuladas às
seguintes questões: no capítulo II, quais os conceitos fundamentais
da bioética e qual o contexto histórico e ideológico-cultural desses
conceitos; no capítulo III, quais os modelos explicativos da
bioética; nos capítulos IV e V, é plausível fundamentar a prática
bioética no amor de amizade e o que é a philia.
***
Finalmente, quanto à revisão bibliográfica - que subsidiou o
processo impelido e orientado pelas questões operacionais -, ela
concerne aos capítulos subseqüentes, sendo-lhes um propósito.
CAPÍTULO II
CENÁRIO HISTÓRICOCULTURAL DA BIOÉTICA
BIOÉTICA INTERTEMPORAL
E
CONCEITUAL
O recorte histórico-epistemológico que me infligi retroage à
segunda metade do século XX. Potter3 advertia desde 1970, que:
Nós temos uma grande necessidade de uma ética da terra, uma
ética para a vida selvagem, uma ética de populações, uma ética do
3. Bioquímico e pesquisador na área de oncologia vinculado ao laboratório McArdle, pertencente
à Universidade de Wisconsin, Van Rensselaer Potter se ocupava não apenas da questão ambiental,
mas também das implicações quanto ao modelo desenvolvimentista que marcou a década de
60. O seu pensamento esteve sob a influência de Aldo Leopold, que também havia lecionado
na Universidade de Wisconsin, e de Albert Schweitzer. Pois bem, Leopold (1887-1948)
nascera em Burlington, Iowa. Engenheiro florestal graduado pela Universidade de Yale, ele
concluiu seu mestrado em 1909, trabalhando, desde então, no serviço florestal dos EUA. Em
1933, assumiu a disciplina de manejo de caça na Universidade de Wisconsin, onde permaneceu até a sua morte. Publicou cerca de 350 artigos científicos, sendo considerado a figura mais
proeminente no que diz respeito à conservação da vida selvagem norte-americana. Editado em
1949, Sand County Almanac... é, ao lado de The Land Ethic, seu texto de maior projeção
acadêmica, no qual Leopold estabelece os fundamentos da ética ecológica ou ecoética: “A mais
importante característica de um organismo é a sua auto-renovação interna conhecida como
saúde” (LEOPOLD, 1989: 194); “Ética é a diferenciação da conduta social da anti-social para
o bem comum” (Id. Ibid.: 238); “As obrigações não têm sentido sem consciência, e o problema
com que nos defrontamos é a extensão da consciência social das pessoas para com a terra” (Id.
Ibid.: 246); “A ética da terra simplesmente amplia as fronteiras da comunidade para incluir o
solo, a água, as plantas e os animais, ou, coletivamente, a terra. Isto parece simples: nós já não
cantamos nosso amor e nossa obrigação para com a terra da liberdade e lar dos corajosos? Sim,
mas quem e o que propriamente amamos? Certamente não o solo, o qual nós mandamos
desordenadamente rio abaixo. Certamente não as águas, que assumimos que não tem função
exceto para fazer funcionar turbinas, flutuar barcaças e limpar os esgotos. Certamente não as
plantas, as quais exterminamos, comunidades inteiras, num piscar de olhos. Certamente não
os animais, dos quais já extirpamos muitas das mais bonitas e maiores espécies. A ética da terra
não pode, é claro, prevenir a alteração, o manejo e o uso destes ‘recursos’, mas afirma os seus
direitos de continuarem existindo e, pelo menos em reservas, de permanecerem em seu estado
natural” (Id. Ibid.: 204). Schweitzer, por sua vez, permaneceu entre nós de 1875 a 1965,
tendo sido agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1952. Nesse mesmo ano, proferiu uma
conferência na Academia Francesa de Ciências, cujo tema fora “O problema da ética na evolução
do pensamento”, durante a qual expôs algumas idéias que, combinadas às de Leopold, influenciaram Potter na formulação semântica do neologismo “Bioethics” (POTTER, 1970): “Uma ética
que nos obrigue somente a preocupar-nos com os homens e a sociedade não pode ter esta
significação. Somente aquela que é universal e nos obriga a cuidar de todos os seres nos põe, de
verdade, em contato com o Universo e a vontade nele manifestada” (SCHWEITZER, 1964: 17).
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
consumo, uma ética urbana, uma ética internacional, uma ética
geriátrica e assim por diante... Todas elas envolvem a bioética, [...].
Esta nova ética pode ser chamada de ética interdisciplinar, definindo
interdisciplinaridade de uma maneira especial para incluir tanto a
ciência como as humanidades, mas este termo é rejeitado, pois não
é auto-evidente (POTTER, 1970: 12).
Salvo revisão conceitual mais precisa, esse foi o primeiro texto4
a utilizar o neologismo bioética.
Em 1970, Potter vislumbra, no artigo Bioethics, the science
of survival. Perspectives in biology and medicine, uma bioética
enquanto ciência ética interdisciplinar aplicada à vida, cuja nitidez
plena só é alcançada com a sua definição acerca da bioética
profunda (POTTER, 1998).
No bimestre seguinte, Hellegers (1970) não apenas
diverge da perspectiva potteriana de uma bioética abrangente,
arrogando-lhe um sentido diverso e contido, qual seja, o de
ética aplicada às ciências biológicas do humano (SGRECCIA,
1996: 25-33; WALTERS, 1984: 6-8), mas também
institucionaliza o pensar bioético contra-potteriano, criando
aquele que é o berço ou o símbolo maior da bioética
reducionista: o “The Joseph and Rose Kennedy Institute for
the Study of Human Reproduction and Bioethics”, cuja
ideologia implícita é a protestante:
Nesses mesmos anos em que nascia o Hastings Center, chegava a
Georgetown University de Washington (DC) André E. Hellegers, um
obstetra e ginecologista holandês que se dedicava à fisiologia fetal.
Transferia-se ele para essa universidade com o intuito preciso de dar
início a um programa de pesquisa interdisciplinar em bioética. Para
essa mesma finalidade, Hellegers convidou, em 1968 e em 1969, o
teólogo moralista protestante Paul Ramsey para que desse alguns cursos
na faculdade de medicina da Georgetown University. Desses cursos de
4. Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine: artigo adaptado do
capítulo I do livro Bioethics: bridge to the future, que, em 1970, encontrava-se no prelo,
vindo a ser publicado no ano seguinte.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
27
moral, nasceram dois volumes, “The patient as person” e “Fabricated
man”, ambos de 1970, que podem muito bem ser consideradas as
primeiras publicações que lançaram a bioética na América. Precisamente
nesse período, a família Kennedy decidia financiar algumas pesquisas
sobre a prevenção dos deficientes mentais congênitos. As implicações
dessa pesquisa, até mesmo as éticas, estimularam Hellegers a apresentar
a proposta de fundar um instituto que se ocupasse tanto da fisiologia da
reprodução como da bioética. Nasce, assim, em 1971, o “The Joseph
and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and
Bioethics”, ou seja, o primeiro centro que ostentava formalmente o
nome de instituto de bioética. Depois da morte de Hellegers, em 1979,
a instituição tomou o nome, que permaneceu, de “Kennedy Institute of
Ethics”, e foi oficialmente anexada à Georgetown University. Por vários
anos, seu diretor foi E. D. Pellegrino. Atualmente, o diretor do Kennedy
Institute é R. M. Veatch. Dentro do Kennedy Institute, está sediado o
“Center for Bioethics” com um diretor próprio, que é hoje Leroy Walters
(SGRECCIA, 1996: 26-27).
O perfil protestante do “Kennedy Institute of Ethics”, a propósito,
não antagoniza com a identidade jesuíta da Georgetown University:
O Center for Bioethics e o Kennedy Institute estão sediados numa
universidade, a Georgetown University [founded in 1789, the same
year the U.S. Constitution took effect, Georgetown University is the
nation’s oldest Catholic and Jesuit university], a qual, por constituição, é aberta a estudantes e pesquisadores de qualquer confissão
religiosa; tem como finalidade principal a pesquisa com uma
metodologia interdisciplinar [...] e tem preferência pelas áreas da
filosofia e da teologia moral, com um confronto inter-religioso e
ecumênico (SGRECCIA, 1996: 27).
Aos poucos se entendeu que, apesar de semeada por Potter, a
bioética germinou, floresceu e, enfim, deu seus primeiros frutos sob
a égide hellegeriana; o que é compreensível, porquanto a abstração
material de Potter acena, de fato, com uma incompatibilidade latente
em relação a traços característicos da experiência cultural norteamericana, eminentemente pragmática.
28
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Propiciou-se, assim, a reação de Hellegers, orientada para o
desenvolvimento de uma bioética que fosse, em seus fundamentos,
coerente com o perfil sociocultural dos Estados Unidos.
Já em 1971, o mesmo Potter, em Bioethics: bridge to the future,
atribui ao seu insight 5 original acerca da bioética, antevisto em
Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine
um caráter menos abstrato, conferindo-lhe o status de ponte (Figura
1) entre as ciências biológicas e os valores próprios da pessoa humana,
considerados indispensáveis à coexistência global (em um contexto
marcado pela emergência de desafios ecológicos):
Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois
componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria,
que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e
valores humanos (POTTER, 1971: 2).
5.
Em 1970, o termo bioética representava, tão-somente, uma conjetura semântica, cuja
definição, em termos formais, deu-se alguns meses depois daquele insight potteriano,
com Hellegers (1970). Tal entendimento, no entanto, contraria boa parte da literatura
especializada (CLOUSER, 1977; BERNARD, 1989; GRACIA, 1989; VIAFORA, 1989;
MAINETTI, 1990; BERLINGUER, 1995; DURANT, 1995; SGRECCIA, 1996),
que elege Potter (1971) como o primeiro a definir, formalmente, o que é a bioética.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
29
Uma vez finalizado o biênio (1970-71) de fundação da
bioética, restaram definidos ambos os seus eixos-motrizes, a síntese e
a antítese de sua dialética. Desde então, os atores da trama bioética
encenam, não raro com talento e alguma originalidade, ou o
protagonismo de Potter, ou o antagonismo de Hellegers (Figura 2):
O esboço acima (Figura 2), aliás, fez-me perquirir sobre
a efetiva contribuição do filósofo Daniel Callahan e do
psiquiatra Wilard Gaylin à constituição desse recém-criado
campo do saber. Ora, são eles freqüentemente considerados
pioneiros ou precursores da bioética, o que é verdade, se
fundador for quem concebe o termo ou designativo aclamado
pela comunidade acadêmica.
No entanto, se o bioeticista define a si próprio por uma
intenção-ação específica, que visa à subsunção da pesquisa
científica em humanos à ética, então Callahan e Gaylin são cofundadores da bioética, tanto quanto Potter e Hellegers.
30
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Digressões à parte, nos idos de 1978, Reich e Walters
propõem um conceito pragmático e restritivo6 de bioética, que a
encerra nas áreas da saúde e da pesquisa biomédica em seres
humanos. Para os autores em questão, a bioética é o estudo
sistemático da conduta humana dentro das ciências da vida e de
atenção à saúde, enquanto tal conduta é examinada à luz dos
princípios e valores morais (cf. REICH, 1978: 116).
No ano seguinte, em 1979, Roy7 defende que a bioética é o
estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas para
uma administração responsável da vida humana, tendo em vista o
avanço rápido e complexo do saber e das tecnologias biomédicas
(cf. ROY, 1979: 59-75).
Decorridos quase vinte anos desde a elaboração, em 1971, de
sua definição original sobre a bioética ponte, Potter (1988) deixa os
bastidores da formação conceitual da bioética, dessa vez para,
retornando à ética ecológica de Leopold (1989), denunciar o
estreitamento da proposição que concebera no biênio 1970-71.
Não obstante, Potter parece evitar um confronto direto com
os adeptos dessa tendência mais limitativa da bioética, inicialmente
protagonizada por Hellegers, assumindo uma postura de
complementaridade (motivada, talvez, por um instinto de
autoconservação), que visa conciliar ambas as perspectivas teóricas
ora abordadas, em favor da proteção à dignidade da pessoa humana:
Bioética é a combinação da biologia com conhecimentos
humanísticos diversos, constituindo uma ciência que estabelece
um sistema de prioridades médicas e ambientais para a sobrevivência aceitável (POTTER, 1988: 9).
O advento da bioética global (POTTER, 1988), entretanto,
suscitou reações de vozes conceituadas, como as de Campbel (1998)
6. Sobretudo quando comparada à bioética ponte, imaginada por Potter (1971).
7. David J. Roy, diretor do Centro de Bioética da Universidade de Montreal, fora um
pioneiro quanto ao enfoque do progresso tecnológico (aplicado à saúde) como motivador
da reflexão ética. Mas há, aqui, uma distinção sutil: a originalidade de Roy (1979) consiste
no approach ao progresso tecnológico em si, e não às implicações ideológicas de algum
paradigma desenvolvimentista.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
31
e Benatar (1998), que interpretaram o termo “global” não como
abrangente-interdisciplinar compartilhado, sentido efetivamente
adotado por Potter (1988), mas significando uma proposta
homogeneizante em termos universais.
Em 1989, respaldado pela assertiva de Childress (1988),
segundo a qual o conflito é inevitável no terreno da ética, Durant
elabora um conceito utilitarista de bioética que, mantendo-se fiel
ao pragmatismo de Reich (1978), introduz a problemática
condizente à resolução de conflitos8: “A Bioética é a pesquisa de
soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção
biomédica” (DURANT, 1995: 22).
Mesmo em Potter (1971), penso, a solução de conflitos já era
tida como uma instância bioética, uma sua preocupação sistêmica,
mas não a própria bioética - qual ocorre em Durant (1995).
Daí porque Potter (1971), amparado em sua notável
coerência semântica, sempre considerou a bioética não apenas como
instância preditiva e preventiva, mas como uma corregedoria
científica, uma ciência encarregada de propor soluções de cunho
ético (MELINA, 1996: 7-8; SCOLA, 1998 b: 77), capazes de
dirimir o que ele mesmo apontara como sendo os quatro mais graves
bioconflitos da humanidade: degradação ambiental, explosão
demográfica, saúde precária e desnutrição.
Nessa mesma época, Sass (1991) aduz que a medicina, porque
mantém um vínculo constante com aspectos essenciais da existência
humana, não deve prescindir de sua natural relação com o
fundamento ético. Sass responde pela deontologização do pensar
bioético, situando-o, em termos de abrangência conceitual, um
nível abaixo da abordagem casuística e dois níveis aquém da ética
aplicada (Figura 5, coluna 3).
8. A recomendação nº 1.160 da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa, editada
em 28 de junho de 1991, traz consigo uma declaração que retrata, com bastante nitidez,
a influência direta das formulações conceituais propostas por Roy (1979), particularmente quanto ao enfoque do progresso tecnológico como motivador da reflexão ética, e
por Durant (1995) e sua bioética de solução de conflitos: “Os problemas universais
ocasionados pela aplicação da Biologia, Bioquímica e Medicina exigem soluções que
propiciaram a nova disciplina denominada Bioética. Com as expectativas suscitadas
pelo progresso nessas ciências, entremeiam, por vezes, as inquietudes referentes aos
direitos mais importantes da pessoa humana”.
32
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Bioeticistas mais criteriosos, a exemplo de D’Assunção (1996),
Beauchamp e Childress (1994), Clotet (1994) e o próprio Sass
(1991), costumam distinguir, ainda que implicitamente, a ética
aplicada da deontológica, bem assim da casuística:
Tradicionalmente a ética aplicada tem sido exercitada sob o aspecto
do denominado casuísmo ou casuística como o estudo ou análise de
uma situação particular sob o prisma moral. É importante lembrar
que uma das raízes clássicas do casuísmo é Aristóteles na sua explanação do conceito de “epiquéia”. A ética aplicada, porém, tem um caráter mais amplo do que o simples casuísmo. A ética aplicada pode
também ser examinada sob a consideração da denominada ética profissional, que é um dos componentes mais importantes da mesma. A
ética profissional trata dos problemas éticos vinculados à prática ou
exercício de determinada profissão [...] A ética aplicada é bem mais
abrangente do que a ética profissional. A ética profissional, também
chamada de deontologia profissional, tem, entretanto, uma importância cada vez maior na sociedade hodierna (CLOTET, 1994: 105).
Se para Durant (1995) a bioética é, tão-somente, um processo
orientado à solução de conflitos morais na seara biomédica, em
Engelhardt (1998), a constrição da bioética atinge seu grau máximo,
a ponto de ela equivaler a uma mera ferramenta de negociação: “A
Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um
instrumento para a negociação pacífica das instituições morais”
(ENGELHARDT, 1991: 19).
A definição sugerida por Engelhardt inova ao identificar
como uma característica fundamental da bioética, o pluralismo
contratualista, que se viabiliza sob os auspícios de um pretenso
ecumenismo 9 ético.
Em 1991, Rothman descreve a bioética como um movimento
em defesa dos direitos humanos (cf. ROTHMAN, 1991), que se
9. Tal ecumenismo contratualista é, de fato, uma contradição em termos, conquanto se dá,
não raro, em desfavor da parte hipossuficiente. Isso porque Engelhardt prioriza, em sua
abordagem bioética, o negociado - em detrimento de uma eventual predisposição ou
pretensão ecumênica.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
33
insurge contra certas atrocidades praticadas durante o século XX,
convenientes ao progresso técnico-científico no campo das pesquisas
biomédicas, e em desfavor do modelo decisório comum aos
profissionais médicos, tradicional expressão da ética hipocrática.
Rothman adere àquela mesma visão pragmático-utilitarista
da bioética enquanto instância voltada à solução de conflitos
morais, ensejados pelo planejamento, desenvolvimento e quase
irrestrita disseminação da tecnologia biomédica, sobretudo nos
grandes centros urbanos.
O aludido escritor favoreceu, outrossim, a expansão da
abordagem hellegeriana, ao propor uma (sócio)bioética que relativiza
valores e normas, cuja fonte é a ética descritiva - de orientação
historicista e sociológica.
No biênio 1993-94, o brasileiro Joaquim Clotet 10 publica
Por que Bioética? e, logo em seguida, Bioética: uma ética aplicada em
10. Ph.D. em bioética e professor vinculado ao núcleo de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Joaquim Clotet protagonizou uma
abordagem empírica da bioética, enquanto modalidade daquilo que se entende por ética
aplicada. Com efeito, em Bioética: uma ética aplicada em destaque, Clotet (1994: 115129) sustenta que, considerada de um modo amplo, a ética aplicada consiste no estudo
dos aspectos morais próprios de um conflito individual ou coletivo, que se realiza na
deliberação acerca desses mesmos aspectos, pensados em vista das implicações pessoais e/
ou comunitárias passíveis de manifestação no cotidiano da humanidade, o que nos desperta para a emergência de certos conflitos sócio-individuais, que condicionam o bem-estar e
a coexistência digna da pessoa humana, a exemplo da discriminação racial e sexual, da
responsabilidade pelo equilíbrio ambiental, etc. Em face de uma apreciação mais restrita,
no entanto, a ética aplicada considera e avalia uma determinada conduta a partir de regras,
princípios, valores, ideais, razões e/ou sentimentos que sirvam de alicerce e orientação
(padrão moral de comportamento) ao agir reto. E, partindo do conceito de ética aplicada,
como incidência dos princípios morais sobre um conflito específico, a bioética seria uma
peculiar abordagem dos problemas éticos, suscitada pelo avanço extraordinário da
tecnociência em sua expressão biológica, bioquímica e biomédica. Em Por que Bioética?,
por sua vez, o mesmo Clotet (1993: 13-19) adverte que, na segunda metade do século
XX, particularmente nas décadas de 70 e 80, uma variedade sem precedentes de conflitos ou dilemas éticos, ensejados pela tecnologia biomédica, eclodiu em nossa sociedade
de um modo concomitante e bastante intenso, o que provocou uma revisão defensiva das
formas tradicionais do fazer-decidir biomédico. Desde então, o principal desafio colocado à ética (aplicada) contemporânea consiste, basicamente, em constituir um padrão
moral comum, capaz de solucionar as controvérsias alavancadas pela biotecnociência de
vanguarda, cabendo à bioética, enquanto imagem ou expressão paradigmática da ética
médica hodierna, a formulação deste padrão ético global. Daí, infere-se que Clotet,
embora seja um autêntico neo-hellegeriano, conquanto reconhece a bioética como ética
aplicada ao vasto campo da saúde, não deixa de acolher certos aspectos suscitados por
Reich (1978), Durant (1995) e Engelhardt (1991), que representam o tripé fundamental do paradigma reducionista pós-Hellegers.
34
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
destaque, a partir dos quais reelabora a definição subscrita por Reich
(1978), fazendo-o dentro de uma acepção hellegeriana pura, na qual
classifica a bioética como uma espécie de ética aplicada, cuja natureza
é epistemológica.
Para Clotet (1994), a bioética é, inescusavelmente, uma ética
aplicada11 stricto sensu; e seu objeto, os conflitos morais ensejados
pelo avanço inconseqüente da biotecnologia.
Também em 1994, o Bioethicsline, serviço de informação
bibliográfica on line mantido pelo “Center for Bioethics” da
Georgetown University, ratifica o conceito engendrado por Clotet,
aduzindo que a “Bioética é um ramo da ética aplicada que estuda as
implicações de valor das práticas e desenvolvimentos das ciências da
vida e da medicina” (BIOETHICSLINE, 1994).
Os artigos escritos por Clotet (1993; 1994; 1995; 1997)
sinalizam a influência de Gracia (1989: 11), para quem “a Bioética
constitui o novo semblante da ética científica”; ou seja, “ética científica”
no sentido (epistemológico) de uma ética biomédica aplicada, e não
de uma ciência ética (POTTER, 1998) que imporia, numa perspectiva
potteriana, limites morais à sociedade tecno-industrial pela adoção de
valores ecológicos nela tidos como não prioritários.
Ao discorrer sobre o fim precípuo da bioética enquanto ética
biomédica aplicada, Clouser esclarece que a mesma não se destina à
busca de princípios, mas ao esgotamento de todas as implicações
relevantes (cf. CLOUSER, 1978).
Tem-se, ademais, a visão evolutiva de Jonsen (1993)12, segundo
a qual a bioética amadureceu qual uma forma menor da filosofia
moral concernente à práxis médica. Quanto ao enunciado de Jonsen,
o adjetivo “menor” não é depreciativo da bioética. Antes, restringea, delimita-lhe um campo próprio de ação, enquanto expressão
pontual da ética aplicada.
11. Sobre a bioética enquanto ética aplicada, ver Beauchamp e Childress (1994: 44-119), Neves
(1996: 7-16), Reich (1995), Gracia (1989), Clouser (1978) e Bellino (1997: 47-56).
12. Íntegra da conferência “The Birth of Bioethics” (1992), proferida por Jonsen em Seatle,
durante simpósio comemorativo do trigésimo aniversário do artigo They decide who lives,
who dies, veiculado pela Life (prestigiado semanário da mass-media que, em 1962, trouxe
a público fatos hediondos, alusivos à triagem seletiva daqueles que usufruiriam os benefícios terapêuticos da máquina de hemodiálise, recém-criada pelo Dr. Belding Scribner
em 1961, na cidade de Seatle).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
35
Faden (1986) é outro a advertir que, partindo do estágio
civilizatório hodierno e de suas mais variadas manifestações culturais, a
compreensão das necessidades e vicissitudes contextuais da bioética, bem
assim sua justificação, reivindicam uma “linguagem dos direitos”
(FADEN, 1986: 6), algo que o dueto Crispell e Gomez (1977: 74-80)
percebera desde os primeiros anos que sucederam a fundação da bioética.
De fato, ao enfrentar o delicado tema do acesso à saúde a
partir de uma abordagem sociojurídica, Crispell e Gomez (1977)
apontam a defasagem entre os serviços sanitários prestados nas zonas
urbana e rural, enfatizando o direito inalienável dos cidadãos norteamericanos campesinos à saúde de vanguarda praticada nos centros
urbanos, e sugerindo, inclusive, medidas - quanto à alocação de
recursos - afeitas à salvaguarda de tais direitos.
Crispell e Gomez (1977) denunciam, no que diz respeito à
democratização do acesso à saúde, que o suposto progresso tecno-científico
intervém como fator de exclusão social das comunidades rurícolas.
Resgatando a questão da interdisciplinaridade (POTTER,
1971; ROY, 1979), além de aspectos outros ligados à sistematização
das dimensões morais, Reich (1995) reformula o conceito que havia
definido em 1978, argumentando que a...
... Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo
visão moral, decisões, conduta e políticas - das ciências da vida e
atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em
um cenário interdisciplinar (REICH, 1995: xxi).
Comte-Sponville afirma, em 1997, que a bioética “não é uma
parte da Biologia; é uma parte da Ética, é uma parte de nossa
responsabilidade simplesmente humana; deveres do homem para
com outro homem, e de todos para com a humanidade” (COMTESPONVILLE, 1997: 61).
Em termos conceituais, Comte-Sponville se encontra entre a
utopia potteriana e a tradição utilitarista iniciada por Hellegers. E,
embora possua um caráter abrangente que tenderia a Potter, sua
definição acerca da bioética, porque adstrita à pessoa humana em si
(em detrimento do seu ecossistema), aproxima-se da perspectiva
hellegeriana, ainda que nela não se coadune.
36
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Assim, levando-se em conta o esforço taxonômico que realizo
no item subseqüente - “A bioética e a vida das bioéticas” -, talvez seja
mais apropriado posicionar o referido autor na honrosa companhia
de Rothman (1991), pois, também, é possível apreender em ComteSponville aquela mesma abordagem sócio-descritiva subjacente à
bioética movimento (Figuras 5 e 6).
Reconhecido por sua estatura intelectual e tenacidade
incomuns, Potter anuncia, em 1998, sua hipervisão de uma bioética
profunda13, “... como nova ciência ética que combina humildade,
responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural
e que potencializa o senso de humanidade” (POTTER, 1998: 05).
Malgrado o ativismo de Potter, a primazia hellegeriana parece
inabalável, devido a uma vantagem institucional habitualmente
negligenciada. Com efeito, a proposta de Hellegers, além de co-natural
ao pragmatismo norte-americano, serve-se, desde seu advento, de um
diferencial estratégico em relação a Potter: o significativo respaldo logístico
e financeiro proporcionado pelo “Kennedy Institute” (Figura 3).
13. Potter defendeu, em 1998, a tese segundo a qual a bioética se encontra em seu terceiro estágio
evolutivo, ao qual designou de bioética profunda, correspondendo o primeiro estágio a
bioética ponte (POTTER, 1971), assim denominada em razão de sua base interdisciplinar,
e o segundo, a bioética global (POTTER, 1988), que reitera, inclusive, a definição potteriana
original (1971). A nota fundamental, aqui, diz respeito à evidência de que os estágios
bioéticos identificados por Potter constituem, de fato, um liame conceitual uníssono, cujas
constantes são abrangência, pluralismo, interdisciplinaridade, abertura sistêmica, que permitem a incorporação crítica de novos conhecimentos (constantes potterianas).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
37
Em todo caso, a bioética profunda adveio da noção de ecologia
profunda14, concebida pelo filósofo norueguês Arne Naess em 1973, a fim
de ressaltar a importância da reflexão ético-ambiental. O Quadro 1 confronta
as propostas de Naess (1973) e as do então paradigma ecológico hegemônico:
14. A ecologia profunda, diferentemente da ecologia rasa, apresenta-se como uma alternativa
ao paradigma dominante sobre o manejo dos recursos naturais, resgatando a urgência de uma
reflexão ecoética de cunho holístico (cf. CAPRA, 1986: 26-27). Acrescente-se que Naess
(1973), enquanto precursor da ecologia profunda, filia-se à ética da terra proposta por Leopold
(1989). Também na década de 1970, o Brasil testemunhara a consolidação do pensamento de
José Lutzemberger (ecólogo gaúcho que desencadeou o movimento ecológico brasileiro, sobremodo a partir da criação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - AGAPAN),
cujas idéias, amplamente influenciadas pelos estudos de Schweitzer (1964), têm uma relação
estreita com a ecologia profunda, interagindo ambas dentro de um mesmo quadro teórico: “Só
uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é
nosso maravilhoso planeta vivo” (LUTZENBERGER, 1990: 93).
38
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Em que pese a revisão bibliográfica ora estruturada, que se adstringe
à literatura acadêmica, há algumas outras definições sufragadas por
dicionários e enciclopédias, cujo referimento se justifica pela possibilidade
de verificação, no que é pertinente à bioética, daquele seu significado e
abrangência veiculados nessas obras de consulta geral (Quadro 2):
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
39
Clotet lamentava que, “Se procurarmos o verbete bioética num
dicionário ou enciclopédia, teremos, provavelmente, a desagradável
surpresa de não achá-lo” (1993: 5). Porém, o que já foi um comentário
oportuno, logo se esvaiu ante a notória popularização da bioética,
rapidamente disseminada para além dos círculos acadêmicos.
A tal respeito, Drane (1990: 02) escreve que, “em poucas décadas, a
Bioética chegou a ser uma preocupação maior em todo mundo e continuará
refletindo o Ethos da civilização tecnológica dos séculos XX e XXI”.
Portanto, a bioética profunda idealizada por Potter (1998)
delimita o primeiro ciclo bioético - do qual trato a seguir -, que
ele próprio iniciara em 1970, caracterizado por um intenso
dualismo intraparadigmático (Figura 2).
A BIOÉTICA
E A
VIDA
DAS
BIOÉTICAS
Apesar do seu estilo pouco apropriado aos ditames
academicistas, o subtítulo deste item quis ressaltar a complexidade
do primeiro ciclo bioético, o politeísmo ético (para utilizarmos uma
terminologia weberiana) da parábola bioética.
A parte inicial - do mencionado subtítulo - sugere uma abordagem
sistêmica; já sua parte final, reporta-se à decodificação e mapeamento
das formas de expressão da bioética tradicional (Figuras 5 e 6).
Rabisquei, então, um esboço da estrutura funcional-decisória a perfazer
o primeiro ciclo bioético, delineando o fluxograma alusivo à Figura 4:
40
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Do quanto exposto na Figura 4, depreende-se:
•
•
•
•
•
•
coluna A - a interrogação representa o conflito ético ocorrido
na pesquisa biomédica, suscitando questionamentos sobre
possíveis violações à dignidade dos sujeitos nela envolvidos;
coluna B - o feixe de tensão conflitante representa o objeto
elaborado, ou seja, o conflito bioético delimitado;
coluna C - o prisma corresponde ao sistema bioético
propriamente dito, o qual denomino bioética BASP (Branca Anglo-Saxônica - Protestante), vertente cultural que se apossa
do primeiro ciclo bioético, controlando-o;
coluna D - o espectro de soluções concerne à triagem, pelo
prisma cultural, de possíveis direcionamentos ao conflito
bioético, que refletem a incidência das diferentes expressões
da bioética BASP (Figura 5);
coluna E - traduz a síntese relacional dos níveis de aplicação
da bioética BASP, mediada pela lógica inerente a um
pluralismo de interesses: a da negociação15;
coluna F - o estágio final de todo o processo, onde se dá a
resolução (negociada) do conflito submetido ao processo
decisório.
Quanto aos níveis de aplicação do primeiro ciclo bioético, é
possível classificá-los de acordo com o grau de afinidade
intervencionista, razão pela qual proponho, a partir da genealogia
antevista no item “Bioética intertemporal e conceitual” deste capítulo,
as representações dispostas a seguir (Figuras 5 e 6):
15. De cujas implicações trato no item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V).
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FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
43
A par d’outras incursões nesse sentido, Sgreccia (1996: 46)
subdivide a bioética em geral, especial e clínica. Garrafa (1999: 14)
a classifica em bioética das situações persistentes e bioética das
situações emergentes. Berlinguer (1995) se refere às bioéticas de
fronteira e do cotidiano: a primeira, relativa aos “avanços da
tecnociência e a outra [...] que se preocupa com a fome, a miséria, a
exclusão social, o racismo etc.” (AZEVÊDO, 2000: 77).
Todavia, malgrado a autoridade desses bioeticistas e a despeito
da habitual propriedade de vossos tirocínios, eles negligenciam, em
suas categorizações, a tessitura ideológico-cultural subjacente à
conformação histórica da bioética.
Essa é, além do mais, uma constatação intrigante, conquanto
seja o próprio Sgreccia (1996: 26-27) que, no primeiro volume do
seu enciclopédico Manual de Bioética, consigna, mesmo sem qualquer
intenção aparente de fazê-lo, o fato histórico e teleológico, por assim
dizer, de que o protestantismo consubstancia a reminiscência capital
do ciclo bioético aqui isolado16.
***
Respondidas as questões operacionais do presente capítulo,
reviso em seguida (capítulo III) os principais modelos descritos pela
literatura bioética, procurando discernir as concepções que orientam
o pensar-agir dos bioeticistas.
16. De qualquer sorte, além de possivelmente despretencioso, tal argumento é secundário no
referido texto de Sgreccia, passando quase desapercebido. Retomo o vértice gnosiológico e crítico - em discussão, da bioética tradicional enquanto expressão da ética protestante, no
item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V).
CAPÍTULO III
MODELOS EXPLICATIVOS
DA BIOÉTICA
PANORAMAS BIOÉTICOS:
RECENSEAMENTO E DECODIFICAÇÃO
A bioética (leia-se o primeiro ciclo bioético), desde seu advento,
assistiu à dispersão de vários modelos teóricos - muitos dos quais
importados, de forma um tanto precária, d’outras áreas de
conhecimento 17 -, que alicerçam as proposições de diferentes
linhagens de bioeticistas.
Reviso aqui, os onze modelos mais citados pela bibliografia
consultada18, que delimitam um horizonte conceitual à intervenção
bioética em nosso cotidiano.
17. Embora a deslocação de conceitos possa constituir um meio valioso, profícuo e legítimo de
formulação teórica, pode muito facilmente degenerar-se numa extrapolação conceitual
inapropriada (cf. RAMOS, 1989: 69-71; CASSIRER, 1951: 210; MERTON, 1967:
108; SCHÖN, 1963 a; 1963 b: 53 - para quem “A emergência de conceitos pode decorrer
da deslocação de velhos conceitos para novas situações”). Com efeito, a transvalidação inadequada de conceitos se dá quando a extensão de um modelo teórico do fenômeno x ao y não
se justifica, porque o fenômeno y pertence a um contexto peculiar, cujos caracteres específicos
correspondem, apenas parcialmente, ao contexto do fenômeno x. Expõe-se, então, com
alguma freqüência, à sedução de estender conceitos injustificadamente (ao empreender o
esforço de elaboração teórica), porque, diria Kaplan (1964: 266), “Não há duas coisas no
mundo completamente iguais, de modo que toda analogia, por mais estreita que seja, pode
ser levada a um extremo exagerado; por outro lado, não há duas coisas que sejam completamente dessemelhantes, de modo que sempre é possível estabelecer uma analogia, se nos
decidirmos a fazer isso. A questão a ser considerada, em todos os casos, é se há ou não alguma
coisa mais a apreender nessa analogia, se nos decidirmos a estabelecê-la”. Assim, ao deslocar
um conceito (ou simplesmente tentá-lo), pode-se incorrer em um “estiramento conceptual”
enganoso (SARTORI, 1970), cair em uma “cilada intelectual” (NAGEL, 1961: 115).
Escreve Nagel (1961: 108): “O que existe de similar entre o novo e o velho é, muitas vezes,
apenas vagamente apreendido, sem ser cuidadosamente articulado. Além disso, pouca - se é
que alguma - atenção é dada, em geral, aos limites entre os quais é válida essa similitude.
Sendo assim, quando noções familiares são estendidas a assuntos novos, à base de similaridades não analisadas, graves erros podem ser facilmente cometidos”.
18. Sgreccia (1996: 65-81), nessa seara, condensa o pluralismo bioético, mencionando
apenas quatro modelos: o sociobiológico, que, de cunho descritivo, traça um paralelo entre
as evoluções aos níveis biológicos e das relações sociais (darwinismo social), de tal modo
que o impulso evolutivo, traduzido em o egoísmo biológico ou instinto de autoconservação,
procura sempre desenvolver novas formas de adaptabilidade, cujas expressões culturais
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
A esse respeito, Beauchamp e Childress (1994: 14-47)
contabilizam a existência de três modelos: o principialismo (ou
dedutivista), o casuístico (ou indutivista) e o coerentista.
Maria do Céu Patrão Neves propôs um rol mais criterioso, no
qual relacionou oito modelos explicativos. Integram a lista de Neves
(1996: 7-16) o principialismo, o modelo autonomista, o da virtude,
o casuístico, o do cuidado, o contemporâneo do direito natural, o
contratualista e o personalista.
Bellino (1997: 215-217) também noticia um novo modelo,
o ternário. Enfim, o site da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (www.ufrgs.br/HCPA/gppg) faz alusão ao modelo comunitário
(cf. GOLDIM, 2001).
Em seqüência, passo a examinar individual e sucintamente os
modelos sobreditos, apontando-lhes os caracteres nucleares, sendo que a
profundidade e o cuidado dispensados a cada um deles são, reconheço,
diretamente proporcionais a sua projeção na literatura bioética referida.
MODELO
DOS
PRINCÍPIOS
OU
PRINCIPIALISMO
Idealizado, em 1978, por Beauchamp e Childress (1994) - não
obstante o termo “principlism” tenha sido criado em 1990, por Clouser
e Gert (1990: 219-236) -, o principialismo, cujo referencial teórico
primário é Frankena (1981), deriva do utilitarismo19 anglo-americano.
são o direito e a moral cambiantes; o liberal-subjetivista, donde a moral “não pode se fundar
nem sobre os fatos nem sobre os valores objetivos ou transcendentais, mas apenas sobre a
‘escolha’ autônoma do sujeito” (não-cognitivismo da Lei de Hume - SGRECCIA, 1996:
67-71); o pragmático-utilitarista, que, fundado no “quality of life”, orienta-se por uma
política do mal-menor, pelo cálculo utilitário-casuístico das conseqüências de uma ação,
segundo a fórmula custo-benefício; enfim, o personalista (adotado pelo referido autor),
voltado à resolução das antinomias próprias dos modelos anteriores, pela consagração da
objetividade de valores e normas (cognitivismo). Ora, o modelo pragmático não passa de
uma adaptação evolutiva do modelo liberal puro, isto é, de uma evolução da ética individualista à ética pública de grupos majoritários. Sgreccia (1996: 73-74) mal dissimula tal
fato, à medida que reconhece o modelo pragmático, comum aos “países anglo-saxões, qual
uma espécie de subjetivismo da maioria”. Ademais, o não-cognitivismo inerente aos
modelos liberal-subjetivista e pragmático-utilitário dá-lhes um teor laico, cuja expressão
bioética maior é o descritivismo sociobiológico.
19. Concebido por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, o utilitarismo é, consoante Busse
(1934: 233) e Urmson (1994: 377-378), a teoria empírica segundo a qual o valor das
ações depende das conseqüências positivas ou negativas que trazem consigo. Desse modo,
uma ação é correta, se as implicações dela advindas são, de fato, melhores que as de
qualquer outra porventura realizada em seu lugar (MILL, 1909).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
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Trata-se de um modelo dedutivista, individualista e linear, que,
em vista de um conflito moral, decide-o a partir de princípios éticos
previamente definidos. Em outras palavras, o principialismo consiste
num padrão bioético assentado no uso de princípios, enquanto
balizador hermenêutico e de resolução dos conflitos morais, sobretudo
quanto às pesquisas biomédicas.
Um dos célebres ensaístas desse arquétipo, William Frankena
propôs, em 1963, dois princípios que, enquanto “deveres prima facie”
(ROSS, 1930: 19-36; BELLINO, 1997: 201), tipificariam ações
corretas e obrigatórias: o princípio da beneficência e o da justiça
(FRANKENA, 1981: 61-73).
Sobreveio, então, o Relatório Belmont, publicado em 1978,
o qual menciona três princípios ou referenciais éticos concernentes
às pesquisas em seres humanos: respeito às pessoas, beneficência e
justiça (BELMONT REPORT, 1978).
Também em 1978, Tom Beauchamp e James Childress, ambos
vinculados ao “Kennedy Institute of Ethics”, publicaram Principles
of Biomedical Ethics, obra que consagrou a incidência de quatro
princípios na abordagem de conflitos bioéticos: autonomia,
beneficência, não-maleficência e justiça.
O sistema de princípios erigido por Beauchamp e Childress
(1994) é tido, freqüentemente, como o vigamento do principialismo,
tamanha a notoriedade e a aceitação alcançadas na literatura bioética.
Eliane Azevêdo adverte, contudo, que “A elegante elaboração teórica
desses princípios no Primeiro Mundo ecoa distante da realidade daqueles
que nem sequer têm noção de mundo” (AZEVÊDO, 1994: 9).
Há, outrossim, quem profetize, de forma um tanto apressada,
o declínio do principialismo (cf. EMANUEL, 1995), ensejado por
contradições e lacunas que o neutralizam enquanto modelo decisório
voltado à solução de conflitos no campo biomédico.
Questiona o aludido bioeticista se o arcabouço propedêutico
concebido por Beauchamp e Childress é, de fato, suficiente e
adequado à proposta de uma moralidade comum 20 , vindo a
20. Na edição publicada em 1994 de Principles of Biomedical Ethics, Beauchamp e Childress
abandonam o termo “principlism” (principialismo), passando a designar seu modelo de
“common morality” (moralidade comum).
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
retorquir, ainda, se outros valores, a exemplo da solidariedade
deveriam ser incorporados ao rol daqueles já contemplados pelo
modelo principialista (EMANUEL, 1995: 37-38).
Princípio da autonomia
Quanto ao preceito em questão, sua referência primária é o
individualismo de John Stuart Mill, para quem “sobre si mesmo, sobre
seu corpo e sua mente o indivíduo é soberano” (MILL, 1909: 5).
Ilustra bem uma tal perspectiva o caso Schloendorff
(CARDOZO, 1914). Em 1911, a senhora Schloendorff fora internada
às pressas no “Society of New York Hospital”, apresentando dores
intensas decorrentes de uma massa abdominal não diagnosticada.
O médico responsável pelo atendimento de Schloendorff
(paciente), após exaurir as possibilidades de diagnóstico não invasivo
disponíveis à época, solicitou sua autorização para realizar uma
laparotomia exploratória.
A paciente lhe consentiu o procedimento invasivo, desde que para
fins diagnósticos. Logo, toda e qualquer medida terapêutica deveria ser
previamente aprovada por ela própria, anuída de modo livre e esclarecido.
O profissional médico, então, realizou a laparotomia
exploratória, quando se deparou com um tumor abdominal
encapsulado, que poderia ser inteiramente removido, vindo a fazê-lo
(intervenção cirúrgica além da extensão autorizada pela paciente).
E, quando a senhora Schloendorff recobrou a consciência, seu
médico noticiou e justificou-lhe o ocorrido, asseverando que não
poderia desperdiçar o ato cirúrgico para extrair o tumor, pois as
condições operatórias eram amplamente favoráveis.
Indignada com o que supunha um descomedimento e abuso
terapêutico do cirurgião, que transgrediu o seu consentimento
prévio (apenas para fins diagnósticos), a senhora Schloendorff
recorreu ao Poder Judiciário, ali expondo sua pretensão indenizatória
- julgada procedente, afinal, pelo juiz Cardozo (1914) -, que
acolheu a tradição anglo-americana relativa ao princípio da
autonomia, argumentando que todo ser humano em idade adulta,
a gozar de plena consciência, tem o direito de decidir o que pode
ou não ser feito em seu próprio corpo.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
51
De filiação pragmática, o caso Schloendorff nos oferece um
bom exemplo de ação tipicamente paternalista. Ora, o paternalismo,
enquanto negação de um agir autônomo, é na acepção da Georgetown
University, a “colocação de limites à autonomia individual, com o
objetivo de beneficiar uma pessoa, cuja autonomia esteja limitada,
ou prevenir um dano” (BIOETHICSLINE, 1994).
De modo análogo, escrevem Beauchamp e Childress (1994:
271-274): “quando a beneficência não atenta à autonomia das pessoas
gera ações paternalistas”.
Feinberg subdivide o paternalismo em forte e fraco, fazendo-o
em vista do sujeito passivo da ação paternalista. Segundo o referido
autor, o paternalismo fraco se manifesta em desfavor daquelas pessoas
cuja autonomia21 esteja limitada, quer por uma restrição parcial e/ou
temporária, quer devido a uma privação integral e/ou presumivelmente
definitiva. O paternalismo forte, porém, volta-se contra pessoas
plenamente autônomas (cf. FEINBERG, 1971: 105-124).
O modelo principialista sugere que o paternalismo médico,
quando inevitável, deve implicar uma prática motivada, cuja
justificação cabe a seu agente (cf. BEAUCHAMP e CHILDRESS,
1994: 277); ou seja, para justificar uma ação paternalista, ter-se-ia
que indagar preliminarmente: “é algo que o paciente claramente
consentiria se estivesse informado e fosse plenamente capaz?”
(CHARLESWORTH, 1996: 148).
Para Florencia Luna, no entanto, o paternalismo é autojustificável
e, por vezes, eticamente necessário, naquelas hipóteses envolvendo analfabetos, recém-nascidos, pessoas comatosas... (LUNA, 1995: 283-290).
Beauchamp e Childress (1994: 283) defendem a
legitimidade do paternalismo forte, desde que concorram quatro
circunstâncias justificadoras:
•
•
paciente em risco e danos previsíveis;
ação paternalista como conditio sine qua non de prevenção
a danos;
21. A par dos subsídios da ciência jurídica nessa área, observo que a autonomia, enquanto
atributo da personalidade humana, não se trata de algo passível de restrição, o que só é
possível em relação à capacidade, respeitante ao exercício - pessoal (imediato) ou mediante
terceiro - da autonomia (DINIZ, 1998; 2001).
52
•
•
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
os benefícios da ação paternalista devem exceder eventuais danos;
escolha da ação paternalista que implique menor restrição à
autonomia.
Malgrado esse pró-paternalismo excepcional, há a objeção suscitada
por Pellegrino e Thomasma (1988: 68), que contra-argumentam:
... o paternalismo médico é falho porque anula um elemento essencial
na ética deontológica da medicina, o respeito à pessoa. É necessário
purificar a degeneração paternalista que tomou conta da tradição
hipocrática. O núcleo da relação com o paciente é o bem.
O Relatório Belmont (1978: 06), que instituiu certos
parâmetros morais alusivos às pesquisas realizadas em território norteamericano, prescreve que a autonomia...
... incorpora, pelo menos, duas convicções éticas: a primeira, que os
indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos; e, a segunda, que as pessoas com autonomia diminuída devem ser protegidas.
Desta forma, divide-se em duas exigências morais separadas: a exigência do reconhecimento da autonomia e a exigência de proteger
aqueles com autonomia reduzida.
Guardando semelhanças com o pensamento bioético de Azevêdo
(1994; 2000), Charlesworth traz à baila uma abordagem da autonomia
individual que, de certa forma, confunde-se com a noção de cidadania:
Ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e sentir-se autônomo, se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se vive desprovido da ordem pública. Da mesma forma,
a assistência à saúde básica é uma condição para o exercício da autonomia (CHARLESWORTH, 1996: 131).
Acrescente-se que, ao publicar, em 1996, a segunda edição de
sua célebre obra Fundamentos da Bioética, Tristram Engelhardt
rebatizou o princípio da autonomia, referindo-se-lhe, desde então,
como princípio do consentimento - numa acepção historicista:
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
53
... rebatizei o “princípio da autonomia” como o “princípio do consentimento” para indicar melhor que o que está em jogo não é algum valor
possuído pela autonomia ou pela liberdade, mas o reconhecimento de
que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum. O princípio do consentimento
coloca em destaque a circunstância de que, quando Deus não é ouvido
por todos do mesmo modo (ou não é de maneira alguma ouvido por
ninguém), e quando nem todos pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida, e desde que a razão não descubra uma
moralidade canônica concreta, então a autorização ou autoridade moral, secularmente justificável, não vem de Deus, nem da visão moral de
uma comunidade particular, nem da razão, mas do consentimento dos
indivíduos. Nessa surdez a Deus e no fracasso da razão, os estranhos
morais encontram-se como indivíduos (ENGELHARDT, 1998: 17).
Princípio da beneficência
Dentre os princípios ora estudados, o da beneficência talvez
seja o mais intuitivo. Tanto que, nessas ilações acerca do modelo
principialista, não posso considerá-lo senão um princípio-síntese,
muito embora haja quem entenda, a exemplo de sir David Ross,
que, se houver conflito entre os princípios da não-maleficência e da
beneficência, há de prevalecer o primeiro (ROSS, 1930: 21-22).
Frankena (1981: 61-73) escreve que...
... o Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o
mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se
manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em relação ao mal.
E o Relatório Belmont (1978) parece ter assimilado o ponto
de vista frankeniano, à medida que preceitua duas regras características
da ação beneficente: não causar o mal e maximizar os benefícios,
inclusive minimizando os danos.
Beauchamp e Childress (1994: 260) distinguem a beneficência
da não-maleficência, atribuindo àquela idoneidade para constituir
uma obrigação moral orientada a um agir em proveito alheio.
54
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Sobressai, por fim, a lição de Pellegrino e Thomasma (1988:
58-60), que vêem a beneficência, no contexto biomédico, como o
dever de agir em prol do paciente. Sendo assim, não haveria conflito
entre a autonomia e a beneficência, mas entre aquela e o paternalismo.
Princípio da não-maleficência
A não-maleficência é, penso, o princípio mais obscuro dos quatro
aqui estudados. A tal ponto que alguns bioeticistas tratam-no, repetidas
vezes, qual um aspecto do princípio da beneficência, pois, ao evitar
danos, estaríamos em verdade, beneficiando alguém. Logo, a discussão
acerca da autonomia conceitual do princípio da não-maleficência seria
“um exemplo de falso problema” (BERNARD, 1998: 42).
Entrementes, a despeito dessa controvérsia, o princípio da nãomaleficência, cuja reminiscência, quanto à deontologia médica, é o
axioma primum non nocere (cf. BEAUCHAMP e CHILDRESS, 1994:
189), institui a obrigação moral objetiva de não infligir danos:
Se, numa intervenção difícil e arriscada, um cirurgião se distraísse
momentaneamente e, em razão disso, se desse a morte da pessoa, ele
poderia ser subjetivamente não imputável, mas a objetividade da perda de uma vida humana continua sendo um fato que deve determinar
o esforço do cirurgião para não voltar a se descuidar no futuro. No
momento do juízo íntimo sobre a ação, prevalece a avaliação da subjetividade, mas, no momento normativo e deontológico, prevalece o
valor objetivo, ao qual é preciso adequar cada vez melhor a atitude
subjetiva (SGRECCIA, 1996: 80-81).
Princípio da justiça
De um modo geral, a bioética se vale da noção liberalprotestante de justiça, cujos fundamentos são o individualismo e o
distributivismo (LORENZO, 1998: 23-26).
De fato, os bioeticistas de primeira geração (Figura 3), mormente
os de orientação anglo-saxônica - que, afinal, fundaram a bioética,
imprimindo-lhe sua visão de mundo -, privilegiam, no que diz respeito
ao princípio da justiça, uma abordagem distributiva à compensatória.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
55
Em 1963, Frankena (1981) se debruça sobre o princípio ora
examinado, em sua feição distributiva ou quantitativa22, indagando:
Quem deve receber os benefícios da pesquisa e os riscos que ela acarreta? Esta é uma questão de justiça, no sentido de “distribuição justa”
ou “o que é merecido”. Uma injustiça ocorre quando um benefício que
uma pessoa merece é negado sem uma boa razão, ou quando algum
encargo lhe é imposto indevidamente. Uma outra maneira de conceber o Princípio da Justiça é que os iguais devem ser tratados igualmente. Entretanto, esta proposição necessita uma explicação. Quem é
igual e quem é não-igual? Quais considerações justificam afastar-se da
distribuição igual? [...] Existem muitas formulações amplamente aceitas de como distribuir os benefícios e os encargos. Cada uma delas faz
alusão a algumas propriedades relevantes sobre as quais os benefícios
e encargos devam ser distribuídos. Tais como as propostas de que: a
cada pessoa uma parte igual; a cada pessoa de acordo com a sua
necessidade; a cada pessoa de acordo com o seu esforço individual; a
cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada
pessoa de acordo com o seu mérito. [...] Quais são os critérios ou
princípios de justiça? Estamos falando de justiça distributiva, justiça
na distribuição do bem e do mal. [...] A justiça distributiva é uma
questão de tratamento comparativo de indivíduos. Teríamos o padrão
de injustiça, se ele existe, num caso em que, havendo dois indivíduos
semelhantes, em condições semelhantes, o tratamento dado a um
fosse pior, ou melhor, do que o dado ao outro. [...] O problema por
solucionar é saber quais as regras de distribuição ou de tratamento
comparativo em que devemos apoiar nosso agir. Numerosos critérios
foram propostos, tais como: a justiça considera, nas pessoas, as virtudes ou méritos; a justiça trata os seres humanos como iguais, no
sentido de distribuir igualmente entre eles, o bem e o mal, exceto,
talvez, nos casos de punição; trata as pessoas de acordo com suas
necessidades, suas capacidades ou tomando em consideração tanto
umas quanto outras (FRANKENA, 1981: 49-62).
22. Beauchamp e Childress (1994: 326-329), Drane (1990) e Gracia (1989) se filiam à
abordagem frankeniana.
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
MODELO CASUÍSTICO
Tal qual o principialismo, o modelo casuístico se perfaz a quatro
mãos através d’outra célebre co-autoria, dessa vez entre Albert Jonsen
e Stephen Toulmin, que, em 1988, editaram The Abuse of Casuistry:
a history of moral reasoning.
Esse modelo propõe, basicamente, a adoção de casos
simbólicos, enquanto padrões analógicos e consuetudinários que
orientam o processo decisório inerente ao conflito que venha a
manifestar-se (cf. JONSEN e TOULMIN, 1988).
Não haveria, nisso, uma autêntica transposição, dirigida à
bioética, daquele modelo judiciário anglo-americano alicerçado em
precedentes jurisprudenciais? Não seriam tais padrões ou universais
casuísticos inspirados naqueles precedentes judiciários23? E, nesse
caso, tornar-se-iam os bioeticistas juízes da práxis ética relativa às
pesquisas científicas em humanos?
Provocações à parte, os bioeticistas da Europa continental
tendem a divergir do modelo sob análise, alegando que a seleção
verticalizada de referenciais casuísticos encerra, em si mesma, um
vigoroso artifício ideológico (BERNARD, 1998: 69-82), o qual
despreza qualquer viés etnográfico.
23. O cammon law é o direito elaborado in judicando, feito por juízes - daí o brocardo judge
made law. Os países que o adotaram, não obstante divirjam radicalmente da escola racionalista,
que inspirou a codificação francesa, acolhem o fetichismo dos textos e a função mecânica da
atividade judicial. Escreve Diniz (1998: 55): “O ponto de vista convencional que prevalecia no cammon law, em meados do século XIX, era o de que o direito constituía-se por um
conjunto de normas permanentes, que só podiam ser modificadas pelo legislador. Os juízes
não podiam alterá-las, mas apenas aplicá-las. A função judicial era descobrir e não criar
direito novo, como dizia Blackstone. Quando um tribunal se afastava da doutrina consagrada em sentenças anteriores, não estava criando um novo direito, mas liberando o velho
direito de uma interpretação errônea. Observa Beale que esse direito constava de leis, de
normas declaradas (não elaboradas) nos precedentes judiciais e de princípios científicos
aceitos como critérios fundamentais da jurisprudência”. A ciência do direito, então, deveria
estudar, mediante esquemas lógico-formais, apenas a legislação vigente, enquanto direito
positivo emanado do poder soberano, não se atendo às questões éticas. “A escola histórica do
direito, que influenciava os países do cammon law, reconhecendo que o direito positivo não
é algo criado definitivamente e que permanece estático, mas que se desenvolve lentamente,
conforme a evolução social e as necessidades do povo, acabou por endeusar o passado, dando
origem ao fetichismo do precedente e das ordenações tradicionais. Esta atitude analítica
conduziu a um legalismo contrário ao espírito do direito inglês. A simbiose entre o
dogmatismo exegético e o historicismo do cammon law, ao consagrar como absoluto o velho
direito, fez resultar, nestes países, a petrificação do direito” (DINIZ, 1998: 56).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
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MODELO COERENTISTA
Concebido por Arras (1991: 29-51), em cuja obra é marcante
a influência de Rawls (1971), propõe-se, aqui, o emprego de ambos
os modelos precedentes (principialista e casuístico) a partir de uma
complementaridade recíproca.
Sendo assim, o modelo em discussão preconiza, quanto
ao desfazimento de conflitos bioéticos, um equilíbrio
interativo e não prioritário entre princípios - ou deveres prima
facie - e referenciais casuísticos. O vocábulo “coerentista”,
no entanto, adveio algo mais tarde por iniciativa de
Beauchamp e Childress (1994: 20).
MODELO TERNÁRIO
O propósito nuclear do modelo ternário equivaleria ao do
coerentista, não fosse pela introdução de um terceiro elemento, que
Guillen (1990: 293-294) denominou de obrigações morais.
Segundo Bellino (1997: 215-17), o modelo ternário visa à
composição de conflitos éticos nos moldes de uma bioética clínica, o
que se daria ao longo de três estágios seqüenciais24:
24. A estrutura processual do modelo guilleniano se perfaz em dois momentos: o principialista
e, ato contínuo, o conseqüencialista. Por conseguinte, a fim de julgar eticamente qualquer
ação concreta, é preciso “fazer dois tipos de análise: uma retrógrada, comparando-a com os
princípios éticos, e outra ante-retrógrada, avaliando suas possíveis conseqüências. Os
princípios são sempre universais e as conseqüências, sempre particulares” (BELLINO,
1997: 215). Guillen (1990) menciona um duplo contraste - no ato empírico - entre o
critério “U”, ou universal, e o critério “P”, ou particular, formulando-os dessa forma:
“Critério ‘U’: para que uma ação possa se considerar moral ou correta deve ser
universalizável, de maneira que não vá contra o respeito devido a todos e a cada um
dos indivíduos. Critério ‘P’: a fim de que as decisões concretas possam-se considerar
responsáveis e boas, devem ter em conta as condições particulares dos fatos e avaliar as
conseqüências de que possam derivar” (GUILLEN, 1990: 293). Portanto, o critério
“U” dita a norma, o dever prima facie; o critério “P”, por sua vez, permite-nos
justificar, em casos concretos, as exceções à regra. Mas Guillen introduz, ainda, o
(terceiro) critério “C”, que “colabora na realização das condições de aplicação de ‘U’,
tendo em conta a situação contingente” (Id. Ibid.: 294). O critério “C”, então, serve
para estabelecer quando podemos apelar a “P”, que justifica a exceção à norma optando
pelo mal menor. Partindo dos critérios supracitados, Guillen concebe um modelo
analítico dos problemas morais, esquematizando-o em três momentos: 1) dever prima
facie: norma moral + critério “U”; 2) prudência: exceção à norma + critério “P”; 3)
obrigação moral: tomada de decisão + critério “C”.
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
universal ou “U” - concerne à interpretação do conflito bioético, a
partir daquelas quatro proposições definidas pelo modelo
principialista, cujo intuito é a delimitação da norma moral aplicável;
particular ou “P” - diz respeito à análise do conflito em si e de
suas circunstâncias, a fim de verificar preventivamente, em vista
do caso concreto, as possíveis exceções à norma moral aplicável;
contingente ou “C” - nessa fase, ocorre a resolução do conflito
bioético pré-definido, através do cumprimento de uma
obrigação moral, resultante da interação entre ambos os
estágios precedentes.
O modelo ternário apresenta, porém, um contra-senso
insuperável. É que Guillen (1990) considera absolutos os princípios
da não-maleficência e da justiça, estando o princípio da beneficência
sempre relativo ao da autonomia. Mas, considerando-os absolutos,
aquele autor contradiz seu próprio modelo, que os tem como deveres
prima facie. Chamo a isso de paradoxo de Guillen:
Na bioética clínica, os critérios “U” e “P” constituem um sistema de
princípios, que, no primeiro caso, são os princípios de “não-maleficência”
e de “justiça”, e, no segundo, os de “autonomia” e “beneficência”. Os
primeiros têm caráter “absoluto”, para Guillen, enquanto os segundos são
“relativos”. Não podemos jamais fazer mal a uma pessoa, mesmo se ela nos
pede isso, mas não podemos fazer o bem a outras contra a vontade delas,
já que, neste mesmo momento, o presumido bem se converte em mal
(exceto nos casos de perda de capacidade ou competência: crianças, enfermos mentais, etc.). A beneficência é sempre relativa à autonomia, enquanto a não-maleficência prescinde da vontade do sujeito que recebe a ação.
O mesmo acontece com a justiça que impõe não fazer discriminação
alguma entre seres humanos, senão em benefício dos menos favorecidos.
A não-maleficência e a justiça são as condições prévias e irrenunciáveis
porque a relação médico-paciente não é só “não causar dano” (nãomaleficência) e não só não discriminar pessoas (justiça), mas fazer, também, todo o bem possível [...] a relação médico-paciente “consiste sempre
de uma maneira ou de outra em uma negociação entre a autonomia do
paciente e a beneficência do médico, na procura do ótimo possível em
cada uma situação concreta” (BELLINO, 1997: 216-217).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
59
MODELO AUTONOMISTA
O autonomismo não chega a constituir um modelo teórico,
sendo mais o ícone, na área bioética, do ideário do establishment
liberal-individualista.
Expondo um julgamento muito pessoal e algo iconoclasta,
entendo que a opinião ou crença autonomista é claramente panfletária,
além de inefável quanto as suas entrelinhas e propósitos; vide, nesse
sentido, um Engelhardt (1998), cuja leitura do princípio da autonomia
ecoa o pragmatismo anglo-americano e sua lógica de mercado, a reduzir
o ser humano a um objeto de índole consensual, de negociação:
Baseado filosoficamente na tradição liberalista americana, a obra The
Foundations of Bioethics [...] trata, por exemplo, os órgãos humanos
como propriedades privadas e, por isso, passíveis de negociação em
respeito à autonomia de seus proprietários. Exclui da sua noção de
pessoa os embriões e fetos humanos, por não possuírem “consciência
de si...” (LORENZO, 1998: 17).
MODELO DA VIRTUDE
Expoentes do modelo em foco, Pellegrino e Thomasma (1988)
sugerem, revolvendo uma perspectiva tendencialmente estóica, que
o agir bioético esteja fundado na - e finalizado pela - ética da virtude.
Lorenzo (1998: 18), a quem cito uma vez mais, alega que
ambos os sobreditos autores...
... centram-se na responsabilidade dos profissionais da saúde,
sem deixar de integrar a vontade do paciente no desenvolvimento
de suas decisões médicas. Como a virtude se aperfeiçoa pela prática, os autores ressaltam a importância da educação médica para
a prática do bem.
Joaquim Clotet se mostra convicto de que a virtude é uma
forma adequada de agir comunitário, capaz de aprimorar a pessoa
humana, sendo o vício seu avesso (cf. CLOTET, 1993).
60
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
MODELO DO CUIDADO
Os traços característicos desse modelo foram estruturados por
uma tríade de bioeticistas - Gilligan (1982), Noddings (1984) e
Baier (1987) -, que se dispuseram a oferecer...
... como noção fundamental para o desenvolvimento da ação moral
médica o princípio do cuidado, que é defendido como de expressão
mais humana e acentuadamente feminina, em contraponto com a
noção de justiça que seria masculina e de certa forma burocrática.
Patrão Neves comenta ainda que a “intencionalidade personalista”
deste modelo tem sido realçada como elemento positivo para combater a tecnicidade para a qual tem caminhado a medicina
(LORENZO, 1998: 18).
Creio haver, nessa opção, um recrudescimento do
principialismo. É que Noddings (1984) faz da beneficência uma
hiper realidade propedêutica, a absorver os demais princípios,
relativizando-os.
O ter-cuidado, cuja expressão mais apropriada, segundo
Noddings, dar-se-ia no exercício da enfermagem, seria, portanto, a
essência do pensar-agir bioético, bastando a si próprio:
A noção de cuidado é tudo que é necessário para a ética [...] Sendo
que as enfermeiras cuidam, não há necessidade de regras e princípios
universais, não há necessidade de se preocupar com as idéias
tradicionais de imparcialidade e justiça (NODDINGS, 1984: 76).
Dentre os vários críticos do presente modelo, sobressai
Barbara Appelbaum, em seu artigo Is Caring Inherently Good?
(apud DINIZ, 2001); ou, ainda, Beauchamp e Childress
(1994: 91), que o entreviram como uma proposta teórica
inacabada e sectária.
Partidária da bioética feminista, Sherwin (1992: 49-50)
afirma que o modelo do cuidado revigora o servilismo histórico
das mulheres, que, alijadas de poder decisório, tornar-se-iam meras
executoras de cuidados.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
61
MODELO COMUNITÁRIO
Na vanguarda do modelo em epígrafe, pondera Emanuel
(1991) que a bioética comunitária pressupõe, quanto à sociedade
norte-americana, sua silhueta pluralista, cujo potencial agregador
é frustrado pelo - e contrasta com o - coeficiente ínfimo de valores
nela compartilhados.
De acordo com Emanuel (1991), o baixíssimo nível de coesão
axiológica inviabiliza, naquela sociedade, a organização espontânea
de uma teia moral abrangente, apta a conciliar os diversos atores e
segmentos comunitários, e, por conseguinte, a compor um contexto
favorável à discussão, verdadeiramente pluralista, sobre os conflitos
(bio)éticos emergentes.
Daí porque os artífices desse modelo, em meio aos quais
encontramos um Callahan (1996), ensinam que a restauração de
uma hierarquia de valores comuns é, por certo, condição indispensável
ao diálogo autêntico com o outro.
E ao reestruturar, nesses termos, o arranjo organizacional que
lhe é próprio, a comunidade garantiria aos seus o livre acesso a bens
e serviços, através de pequenos centros comunitários onde o trabalho
solidário incitaria a comunhão de valores que, por seu turno,
humanizaria as soluções compartilhadas pelo grupo.
O modelo comunitário desenvolve, exponencialmente, a
moralidade comum antevista pelo principialismo, embora o faça
de um modo provinciano, considerando, apenas, o contexto sóciocultural dos EUA.
MODELO CONTEMPORÂNEO
DO
DIREITO NATURAL
Finnis (1980) é, provavelmente, o seu mais expressivo
representante, de cuja leitura se deduz a influência de Grotius e
Locke, formuladores de um jusnaturalismo sociomórfico25.
25. É bastante incomum a sobrevida histórica do jusnaturalismo, face às vicissitudes que se
lhe deparam desde o empirismo exegético e suas concepções mecânico-legalistas (o exegetismo
francês, a escola analítica inglesa e o pandectismo alemão) de interpretação e aplicação do
direito, alcançando os críticos dos exegetas (dentre os quais sublinho o utilitarismo de
Bentham, o teleologismo de Ihering, o empirismo de Holmes, a livre investigação cientí-
62
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
O modelo enunciado incidiria sobre o plano bioético
imprimindo-lhe, enquanto marca fundamental, uma ética dos direitos
naturais persuasiva quanto à necessidade de certos valores conhecimento, vida estética, vida lúdica, razão prática, religiosidade
e amizade - que nele finalizariam o agir moral (cf. FINNIS, 1980).
Ao que tudo indica, Lorenzo admite - e fá-lo parafraseando
Neves (1996) - esse entendimento:
Cito, também, John Finnis em “Natural Law and Natural Rights”
onde o autor estabelece os seguintes valores como fundamentais em si
mesmos: o conhecimento; a vida; a estética; o lazer; a racionalidade
prática; a religiosidade; a amizade. Eles seriam fins e não meios, não se
organizam hierarquicamente, e toda a ação na direção deles poderia
ser considerada moralmente certa (LORENZO, 1998: 18).
fica de Gény, a ofensiva sociologista de Ehrlich, a escola de direito livre, a jurisprudência
de interesses, a jurisprudência sociológica norte-americana, a lógica experimental de Dewey,
a teoria interpretativa de Dualde, o realismo jurídico norte-americano e escandinavo, a
teoria de Hart, a teoria geral da interpretação de Betti e a concepção raciovitalista do
direito), bem assim o historicismo casuístico, o positivismo jurídico, o racionalismo
dogmático ou normativismo jurídico de Kelsen e o culturalismo jurídico (no qual se pode
distinguir a teoria cultural objetiva, o egologismo existencial de Cossio, a teoria de Lask e
o tridimensionalismo jurídico de Reale). Com efeito, prevalecia durante a Idade Média a
concepção de um direito natural objetivo e material, de espírito aristotélico, que estabelecia
“... o valor moral da conduta pela consideração da natureza do respectivo objeto...”
(DINIZ, 1998: 36). Tem-se, outrossim, o jusnaturalismo escolástico, que concebia o
direito natural como um arcabouço normativo-propedêutico, integrado por princípios
morais primeiros (o princípio fundamental seria fazer o bem), delimitados pela inteligência
a partir da natureza própria das coisas e do homem. No entanto, com o recrudescimento da
secularização (intensificado no séc. XVII), a concepção escolástica do direito natural fora,
desde o séc. XIII, gradativamente superada pelo jusnaturalismo formalista, que, desprezando as raízes teológicas de seu predecessor, funda-se na razão humana, enquanto instância
lógico-matemática de dedução propositiva das normas de conduta. Neste último caso, a
natureza própria do homem é tida ou como genuinamente social (por Grotius, Pufendorf e
Locke), ou como originalmente individualista (por Hobbes, Spinoza e Rousseau). Mas é em
Kant que o racionalismo é levado às últimas conseqüências, organizando-se uma ciência
do direito pura e rigorosamente lógica. De fato, Kant realiza, em sua teoria do direito
racional, a separação formal entre moral e direito, tendo-se em vista o motivo pelo qual
se cumprem as respectivas normas. Daí a autonomia da vontade dos enunciados jurídico-naturais, anterior à coercitibilidade dos preceitos jurídico-estatais. Grotius havia
estabelecido um direito natural dependente do conceito de sociabilidade; Kant, entretanto, fá-lo depender da idéia de liberdade, enquanto autonomia da vontade. Há,
modernamente, uma retomada do jusnaturalismo, sob o influxo antijuspositivista. Os
mais notáveis expoentes do moderno direito natural são Stammler, que advoga um
jusnaturalismo relativo, determinado por circunstâncias espaço-temporais, e Del Vecchio,
cujo neocriticismo formalista se apóia na teleologia da natureza humana, radicada na
inteligência autônoma (cf. ENGISCH, 1989).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
63
Marie-Dominique Philippe acredita, todavia, que é impossível
fundar uma moral sobre a lei natural, porque dela não se tem
experiência imediata: “... ela [moral] deve se fundar sobre uma
experiência. Qual é a experiência humana típica que me permite
fundar uma ética? Essa é a grande questão” (PHILIPPE, 1996 a:
45), inclusive quanto ao presente estudo26.
MODELO CONTRATUALISTA
Tendo em Veatch (1981) sua principal referência, o modelo
ora descrito defende um novo pacto deontológico27, propenso a
conferir uma densidade contratualista28 à relação médico-paciente,
o que pressupõe a ruptura com o paternalismo hipocrático.
O usuário se despojaria, então, de sua tradicional passividade,
tornando-se autônomo, engajado e participativo. E, ao exercitar sua
autonomia, rejeita o status de “paciente”, encenando, doravante, o
papel de consumidor de health care, de serviços prestados por
profissionais da área de saúde:
Os médicos, quando recrutam pacientes como sujeitos de ensaios
clínicos, defrontam-se com um dilema: eles têm o dever de escolher o
que é o melhor para os seus pacientes, porém um ensaio randomizado
26. Consultar o capítulo IV.
27. Tal proposta ratifica a deontologização da bioética, a encerrá-la numa abordagem estritamente ético-profissional, negando-lhe um espaço cognitivo próprio - que, em minha
acepção, é o da pesquisa científica em humanos. Diniz (2001: 13) escreve que “A bioética
deverá ser um estudo deontológico, que proporcione diretrizes morais para o agir humano
diante dos dilemas levantados pela biomedicina...”.
28. Em seu primoroso artigo Desigualdades justas e igualdade complexa, apresentado durante
o workshop internacional “Justiça, Desigualdades e Direitos”, em novembro de 1998 no
IFCS / UFRJ, Kerstenetzky (1998: 8) explica: “Caracterizarei o campo contratualista com
a proposição de que os arranjos sociais mais estáveis são os fundados em sólido acordo
quanto a princípios de justiça. Desse ponto de vista, justiça é vista como a condição de
possibilidade da própria ordem social”. Tal assertiva encontra em Rawls (1971: 6) uma
evidência textual: “In the absence of a certain measure of agreement on what is just and
unjust, it is clearly more difficult for individuals to coordinate their plans efficiently in
order to insure that mutually beneficial arrangements are maintained. Distrust and
resentment corrode the ties of civility, and suspicion and hostility tempt men to act in
ways they would otherwise avoid. So while the distinctive role of conceptions of justice
is to specify basic rights and duties and to determine the appropriate distributive
shares, the way in which a conception does this is bound to affect the problems of
efficiency, coordination and stability”.
64
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
expõe os sujeitos a um tratamento escolhido de forma aleatória. Tradicionalmente, este dilema tem sido resolvido apelando-se para a
eqüipolência avaliada por um médico individualmente ou pela comunidade médica. Uma proposta de aleatorização é moralmente adequada, se um médico individualmente, ou melhor, a comunidade médica,
avalia, como igualmente aceitáveis, os riscos e os benefícios do tratamento padrão e da alternativa experimental. Entretanto, nós percebemos atualmente que esta justificação é falha porque os sujeitos da
pesquisa podem ter preferências razoáveis por um dos tratamentos,
mesmo quando o médico ou a comunidade médica acham que as duas
opções são igualmente aceitáveis. Esta conferência irá propor a “indiferença dos sujeitos” como uma fundamentação moral alternativa para
a justificativa da aleatorização. Isto significa que, mesmo que um
médico ou a comunidade médica ache as situações eqüipolentes, a
aleatorização é normalmente inadequada, desde o ponto de vista ético, se o sujeito potencial tem uma preferência razoável por uma das
opções. Com algumas exceções, deveria ser dado aos pacientes o tratamento que eles preferirem, quando eles têm uma preferência racionalmente formada. Por outro lado, se, após ser adequadamente informado, o sujeito é indiferente entre as duas opções, a aleatorização
pode ser eticamente adequada, mesmo quando o médico ou a comunidade médica não caracterizem a eqüipolência. Esta justificativa resolve
uma série de problemas no campo da ética dos ensaios clínicos
randomizados: (1) Ela resolve o problema da discriminação contra os
sujeitos “pró-inovação” (aqueles sujeitos que se beneficiariam com o tratamento padrão podem obter o seu tratamento preferido, enquanto aqueles
que se beneficiariam com o tratamento experimental não); (2) Isto resolve
o problema da inabilidade em completar ensaios clínicos devido à perda
da eqüipolência do investigador (os sujeitos que, por razões pessoais,
mantêm-se indiferentes, podem ser aleatorizados, mesmo quando os pesquisadores não são mais indiferentes entre os tratamentos). A moralidade
do uso de incentivos para manipular zonas de indiferença também serão
discutidos (VEATCH apud CLOTET, 2001: 40-41).
Assim, o processo decisório, antes unilateral, impõe que a
prescrição médica seja, agora, referendada pelo destinatário final
(bilateralidade), o que atenua e reescreve não apenas a dicção, mas
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
65
também clássicas prerrogativas médico-funcionais, adstritas, por força
desse modelo, a quatro princípios: beneficência, proibição de matar,
dizer a verdade e manter as promessas (cf. VEATCH, 1981).
Nesse contexto, é factível que, uma vez transposto à bioética,
o modelo contratualista reduza ou equipare o vínculo entre
pesquisador e sujeito de pesquisa a um mero negócio jurídico, no
qual há uma reciprocidade de direitos e obrigações, contraídos
de modo supostamente equânime.
MODELO PERSONALISTA
Quanto ao modelo em lume, Viafora (1989) distingue três grandes
orientações: o personalismo relacional, o hermenêutico e o ontológico.
Ressalto, a propósito, o magistério de Sgreccia (1996: 78-79):
No significado relacional-comunicativo ressalta-se, sobretudo, o valor da subjetividade e da relação intersubjetiva, como vimos também
em Apel e Habermas; no significado hermenêutico, sublinha-se o
papel da consciência subjetiva ao interpretar - reportamo-nos a
Gadamer - a realidade segundo a própria “pré-compreensão”; no
significado ontológico, sem negar a relevância da subjetividade
relacional e da consciência, deseja-se sublinhar que, como fundamento da própria subjetividade, está uma existência e uma essência
constituída na unidade corpo-espírito.
O próprio Sgreccia, aliás, grifa sua opção por um personalismo
clássico ou ontológico:
O personalismo a que nos referimos não deve ser confundido com o
individualismo subjetivista, concepção na qual se sublinha como
constitutiva da pessoa quase exclusivamente a capacidade de
autodecisão e de escolha; é esta uma ótica muito difundida no mundo
protestante e existencialista, e muito influente também em correntes
de teologia americana. O personalismo clássico de tipo realista e
tomista, sem negar esse componente existencial, ou capacidade de
escolha, em que consiste o destino e o drama da pessoa, quer afirmar
também, e prioritariamente, um estatuto objetivo e existencial
66
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
(ontológico) da pessoa. A pessoa é, antes de tudo, um corpo
espiritualizado, um espírito encarnado, que vale por aquilo que é e
não somente pelas escolhas que faz. Antes, em toda escolha, a pessoa
empenha aquilo que é, a sua existência e a sua essência, o seu corpo e
o seu espírito; em toda escolha, existe não apenas o exercício da
escolha, a faculdade de escolher, mas também um contexto da escolha:
um fim, meios, valores (SGRECCIA, 1996: 80).
E arremata:
Na perspectiva personalista, julgamos que se possa situar uma
exigência, presente em alguns pensadores de origem anglo-saxão,
que tende a reavaliar a “ética das virtudes”, sentida como contraposta,
ou de qualquer forma prioritária, em relação à “ética dos princípios”.
Estamos convencidos de que não apenas o momento da aplicação do
juízo ético exige determinadas capacidades adquiridas para encarnar
os valores, mas a própria sensibilidade ao sentido e ao valor da
pessoa nasce de um hábito de consciência inspirado pela virtude.
Todavia, mesmo levando em consideração o modelo personalista, é
necessária uma integração entre o momento do esclarecimento e da
fundação dos valores e das normas e o momento de sua correta e
coerente aplicação (SGRECCIA, 1996: 81).
O personalismo bioético de Sgreccia enuncia, ainda, alguns
“... princípios relativos à intervenção do homem sobre a vida humana
no campo biomédico” (SGRECCIA, 1996: 157-166). São eles: o
princípio da defesa da vida física, os princípios da liberdade e da
responsabilidade, o da totalidade ou princípio terapêutico, o princípio
da socialidade e o da subsidiaridade29.
Inspirado em Karl Otto Appel e Emanuel Lévinas (cf.
VIAFORA, 1989), o personalismo infundiu três importantes
abordagens ao debate bioético: a singularidade e universalidade da
29. O princípio da subsidiaridade, que fora proposto pela carta encíclica Quadragesimo
anno (tendo sido retomado, inclusive, pelo Conc. Vat. II, em sua Const. Past.
Gaudium et Spes) é, certamente, um dos mais significativos aspectos da doutrina
social da igreja católica.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
67
pessoa humana, a alteridade30 (o outro é anterior ao eu) e o sociointeracionismo relacional (via ação comunicativa habermasiana)31.
E, ao fazê-lo, instigou a discussão formal sobre o papel do
“outro” no processo decisório e, por conseguinte, a adoção de
regras adequadas à troca de informações entre os sujeitos que
estejam envoltos por conflitos bioéticos.
O MONOPÓLIO BIOMÉDICO
Durante a defesa pública da dissertação que redundou nesta
obra, fui argüido a certa altura por Ana Cecília de Sousa Bastos32,
que perquiriu sobre o motivo de eu me referir aos arquétipos elencados
no presente capítulo como sendo exclusivamente teóricos.
Expliquei que minha intenção é expô-los como sistemas incipientes,
cuja validade, enquanto modelo, cinge-se (proselitismo) àqueles requisitos
- simplicidade, clareza, coerência, completude, poder explicativo, poder
justificativo, poder resolutivo, praticabilidade - discriminados por
Beauchamp e Childress (1994: 45-47), neutralizando a operacionalização
efetiva da bioética tradicional, posto que lhes falta o critério por excelência:
assunção da pesquisa à bioeticidade33.
Também argumentei que o primeiro ciclo bioético é
tautológico; nele, os modelos antevistos se altercam numa postura
ora principialista, ora contra-principialista (circularidade), sendo já
30. Comentando-a, escreve Descamps (1991: 85) que “a relação com o Outro é a base de uma
co-presença ética”. E Maffesoli (1996: 223) depõe a seu favor, quando ressalta o ímpeto
estético da alteridade.
31. Segundo Habermas (1986), são dois os pressupostos éticos da ação comunicativa: as
pretensões de validade das normas têm um sentido cognitivo, devendo ser tratadas como
pretensões de verdade; a fundamentação de normas e ordens exige a realização de um
discurso efetivo, no qual haja uma interação entre os sujeitos. Focado nessa terceira geração
da Escola de Frankfurt, Freitag (1992: 238-242) leciona que a teoria da ação comunicativa
possui três regras básicas: a da inclusão (qualquer sujeito capaz de agir e falar pode
participar de discursos), a da participação (os participantes de um discurso podem
problematizar e/ou introduzir novas afirmações, além de exprimir suas necessidades,
desejos e convicções) e a regra da comunicação livre de violência e coação (nenhum
interlocutor pode ser impedido, por forças internas ou externas ao discurso, de fazer uso
pleno de seus direitos assegurados em ambas as regras anteriores).
32. Integrante da banca examinadora e doutora em psicologia pela Universidade de Brasília /
UnB.
33. Através da qual a philia bioética se divorcia desse viés dicotômico, superando o binômio
teoria prática. Vide o tópico “Aplicabilidade do amor-philia à bioética” (capítulo IV).
68
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
um truísmo dizer que a bioética tradicional se mobiliza ao ritmo de
uma dialética de espessura pragmática.
Foi cheio de sentido o esforço dos homens e mulheres
revisitados neste capítulo, todos autores consagrados, tentando
infundir padrões que dessem alguma funcionalidade à bioética.
Todavia, a aludida circularidade dos modelos por mim
relacionados, refletindo o intraparadigma (hellegeriano)
preponderante na bioética tradicional, promove a reificação da
biomedicina como seu domínio próprio.
De mais a mais, o percurso histórico da bioética assevera que
ela descende, em linha reta, da “reflexão ética na medicina”
(SGRECCIA, 1996: 35-36), o que encoraja a compressão de seu
ambiente conceitual dentro da área biomédica34 (pouco antes de
findar o capítulo subseqüente, terei evidenciado que a bioética da
amizade escapa dessa imanência historicista).
Para Onora O’Neall, diretora do Newnham College Cambridge / UK:
Bioética não é uma disciplina, nem mesmo uma nova disciplina; eu
duvido se ela será mesmo uma disciplina. Ela se tornou um campo de
encontro para numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidos com dilemas levantados por questões éticas, legais e sociais
trazidas pelos avanços da medicina, ciência e biotecnologia
(O’NEALL, 2002: 1).
Em que pese tamanha ascendência da biomedicina, entendo
não haver razão para que ela subsista, pois a natureza epistemológica35
da bioética é um seu fator de legitimação perante a ciência em geral,
o que, no entanto, ensejaria um óbvio conflito de interesses com a
(disciplina) epistemologia.
Toda essa gama de variáveis levou, de minha parte, à
reconceitualização antropológica de um campo de ação unificado e
34. Em seu Fundamentos de bioética, Gracia (1989) “parte de um exame histórico-filosófico
da evolução dos conceitos éticos no campo biomédico desde a escola hipocrática até os
nossos dias e esboça, na evolução do pensamento filosófico, os fundamentos do juízo ético
no campo biomédico” (SGRECCIA, 1996: 29).
35. Ver o item “Estatuto próprio da philia bioética” (capítulo V).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
69
específico para a bioética (a investigação científica em seres
humanos)36, de modo a torná-la operacional quanto à dignidade dos
sujeitos de pesquisa lato sensu.
***
No capítulo IV, demonstrarei a plausibilidade da philia bioética.
Mas não sem antes destacar que a finalidade do presente capítulo:
•
•
não passa pela análise pormenorizada (individual e
comparativa) dos vários modelos aqui considerados;
diz respeito ao exame da intensa especialização da bioética,
assim como das implicações negativas dessa mesma
especialização à efetividade do seu primeiro ciclo37.
36. O capítulo IV, mais especificamente a parte inicial do item “Aplicabilidade do amor-philia
à bioética”, é decisivo à compreensão desse enfoque.
37. Ver o item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V).
CAPÍTULO IV
O AMOR-PHILIA COMO
BASE DA PRÁXIS BIOÉTICA
Pretendo, no transcorrer deste capítulo, mostrar uma parte
da riqueza e profundidade do amor-philia, apreendendo-o de forma
gradativa e, daí, revelando muitos dos grandes aspectos da ética,
enquanto experiência propriamente humana, que, em nosso cotidiano,
ultrapasse o ponto de vista da moral do dever.
Isso porque o dever ou se apóia na fé - e, nesse caso,
teríamos uma teologia moral (BALTHASAR, 1985) -, ou, então,
pressupõe alguém que nos ama ou algum estranho, ao qual se
deve respeitar objetivamente.
Há quem indague, contudo, por que se deve respeitar um
desconhecido e, a partir daí, amá-lo por ele mesmo e não por sua
eventual utilidade. Eis o que procuro responder a seguir: de um
modo geral, no item “O que é o amor de amizade”; e, num segundo
momento, quanto às pesquisas científicas em humanos, já aqui no
item “Aplicabilidade do amor-philia à bioética”.
Por ora, antecipo que o fato de participarmos todos, enquanto
irmãos, de uma mesma humanidade é a evidência crucial da resposta
que proponho, amparado naquilo que nos diz o filho da Macedônia
e pai de Nicômaco:
Os progenitores parecem sentir uma afeição natural por sua
prole e a prole pelos progenitores, não somente entre os homens, mas também entre os pássaros e a maioria dos animais;
ela é sentida mutuamente pelas criaturas da mesma raça, especialmente pelas de raça humana, razão pela qual louvamos os
homens que amam seus semelhantes (ARISTÓTELES, 1985 a:
VIII, 1, 1155 a 16-21).
Particularmente sensível à relação de amizade, o que há de
maior na filosofia de Aristóteles são as homilias, compiladas sobremodo
74
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
em Ética a Nicômacos38, acerca da contemplação (a pressupor, aliás,
toda sua filosofia primeira, que, mais tarde, tornar-se-ia conhecida
por metafísica) e sobre o amigo.
Ambas são, segundo Aristóteles, as duas grandes finalidades
do homem: a contemplação (theoria) e a amizade (philia). No entanto,
longe de isolar-se em sua solidão contemplativa, Aristóteles não ignora,
enquanto filósofo, nossa condição humana, que nos faz viver em
comunidade política e de benevolência.
A finalidade primeira é a contemplação39 e, nisso, Aristóteles é
muito profundamente discípulo de Platão, um aluno que, ao invés de
subestimar aquilo que seu mestre lhe ensinara, coloca-o em plena luz.
De fato, Aristóteles havia recebido de Platão o que ele tinha
de mais significativo: uma sede de contemplação, que o animava
intimamente. No que atine à capacidade de relação amigável do
homem, entretanto, Aristóteles se afasta e supera seu mestre.
Ética a Nicômacos explicita a filosofia humana de Aristóteles,
que distingue duas orientações: a filosofia teorética ou contemplativa,
que tende à verdade perquirida e amada por ela própria
(conaturalização); e a filosofia prática, toda ela comandada pela ação.
O gênio de Aristóteles repercute, dessa forma, a tensão que
caracteriza intrinsecamente o homem; tensão entre o desejo de
solidão contemplativa e o anseio de experimentar uma vida humana,
numa comunidade humana através de relações pessoais de amizade.
Afinal, “O solitário é ou uma besta ou um deus” (ARISTÓTELES,
1985 b: I, 2, 1253 a 29).
Acabo de tocar aquilo que é, para Aristóteles, a circunstância
peculiar do homem que cultiva o que há de mais divino nele: o nous
(trata-se da inteligência que implica o amor; do espírito, que, sendo
em nós o que há de mais pessoal, eleva-nos ao Absoluto). “La
definición del amor es: habitudo ad perfectum”, que se “puede traducir
como inclinación a lo perfecto” (MÉNDEZ, 1990: 87).
38. Razão pela qual não considerei mais detidamente, em minha pesquisa, sua Ética a Eudemo,
que é anterior à referida obra, nela perfazendo-se.
39. Aristóteles precisa, com raro discernimento, o Absoluto, que ele chama de Deus, apreendendo-o qual um ser totalmente em ato, um ser perfeito cuja vida é toda ela contemplativa.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
O QUE
É O
AMOR
DE
75
AMIZADE
O amor de amizade é o cerne de um agir ético que, finalizado
pelo homem, ultrapassa, qual disse há pouco, a moral do dever. Dentre
as experiências fundamentais da pessoa humana, o amor-philia...
... é o fundamento de toda a filosofia ética. Objetar-se-á que o amor de
amizade é raro - e isso é verdade. Os filósofos gregos já diziam: uma
amizade verdadeira é uma coisa muito rara. Mas, de outro lado, no
desejo que temos de encontrar alguém que possa ser um amigo verdadeiro, não é esta experiência algo comum a todos os homens? Todos os
homens procuraram, na vida, alguém em quem eles pudessem confiar
[...] E temos necessidade de descobrir alguém em quem nos possamos
apoiar (porque a responsabilidade é mútua). Logo, mesmo se a amizade na sua perfeição é rara, essa sede de amizade está, entretanto,
presente no coração de todos os homens. Então, não tocamos o fundamento profundo da ética nessa experiência ou nesse desejo do amor
de amizade? (PHILIPPE, 1996 a: 46).
Mas de que modo podemos experimentar um tal amor em
nosso cotidiano - inclusive o funcional, haja vista que a pesquisa
científica é uma das possibilidades de trabalho (intelectual) humano?
A amizade, desde que autêntica, pode revelar-nos o que é o
amigo, ou seja, alguém que é para mim o meu bem pessoal capaz
de aperfeiçoar-me, de revelar-me quem sou porque, simplesmente,
é meu amigo e que, por isso mesmo, ama-me, não de uma forma
unilateral e utilitária, mas recíproca, pois também sou seu bem
pessoal. “Porque cuando digo amo a éste, estoy diciendo quiero el
bien para él: quia cum dico Diligo istum, dico volo bonum ei”
(CORRAL, 2001: 73).
Essa experiência não é essencialmente interior; tampouco
podemos dizer que seja uma experiência objetiva pura. O amor de
amizade concilia as dimensões objetiva e subjetiva do real, conquanto
não se trata apenas do meu amor por outrem, mas também da
experiência do amigo, de seu amor por mim.
Se, quando amamos, vivemos uma experiência interior, pois
estamos cônscios desse amor, a experiência do amigo, de outra
76
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
maneira, reclama uma vivência intersubjetiva (cf. GAUTHIER,
1958), um juízo de existência daquele que me ama, atraindo-me
para além de minha própria subjetividade e, por conseguinte,
ensejando o despertar de minha pessoa.
De acordo com Juan-José Pérez-Soba Díez del Corral, em
seu extenso trabalho intitulado Amor es nombre de persona. Estudio
de la interpersonalidad en el amor en Santo Tomás de Aquino, “La
irreductibilidad del ‘Amato’ es nuestro instrumento de análisis
de la estructura del amor como una relación intersubjetiva”
(CORRAL, 2001: 99).
A experiência do amor de amizade, em sua completitude,
provoca no homem uma atitude de admiração. Contudo, embora
seja possível, bastante comum inclusive, descrever o amor, acomodarse com a exposição do que suscita na pessoa amada, ou mesmo
satisfazer-se ao narrar o modo como aproxima dois amigos, deve-se
ir cada vez mais longe, avançando, gradualmente, na compreensão
de sua intimidade.
Coloquei-me, portanto, a seguinte questão: o que é esse amor
pelo amigo? O que é o amor de amizade? “De este modo el mismo
amor se nos convierte em uma pergunta [...] Así presenta un sentido
existencial como el que encontamos em S. AUGUSTINUS,
Confessiones, 4, 4, 9 (CCSL 27, 44): Factus eram ipse mihi magna
questio” (CORRAL, 2001: 11).
O ponto de partida, aqui, é a experiência objetiva do amigo,
daquele que me ama. Apenas desse jeito, considerando o outro antes
de nós mesmos, é possível conhecer o amor em seu sentido mais
intrínseco (cf. PHILIPPE, 1999: 56-74).
Platão40 (1986) já havia compreendido que o amor-eros é, em
qualquer ocasião, desejo de algo. Todavia, porque seu ponto de vista era
acentuadamente descritivo, ele não soube distinguir o amor do desejo,
tarefa da qual se incumbiu Aristóteles, que ousou discerni-los um do
40. Na filosofia de Platão, o “eros é um amor fundamental”, ou, se quisermos, um grande
impulso do amor. “É ele que dá a toda a visão platônica do homem sua última significação.
O homem não pode atingir aquilo para que ele é feito sem esse amor. É perfeito o homem
que está possuído por esse amor; então, ele é capaz de ultrapassar-se, de contemplar...”
(PHILIPPE, 1999: 17-18). Ver Lísis, um dos mais graciosos diálogos menores de Platão,
além de o Banquete e Fedro - as grandes obras de sua maturidade.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
77
outro, revelando seus matizes: “Parece que nem tudo é amado, mas
somente aquilo que é amável [fileton], e isto é o que é bom, ou agradável,
ou útil” (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 18-19).
Ao discernir o amável tal como nos aparece e se pode atingi-lo
e amá-lo, Aristóteles nos diz que é possível amar um bem por ele
mesmo (devido ao seu valor e bondade próprios), ou pelo gozo que
nos proporciona, ou ainda como um meio útil.
Se se interroga sobre o bem amável que lhe atrai, o filósofo pode
distinguir o amor de concupiscência (ou passional), o de benevolência e
o amor de amizade (no qual o bem pessoal é amado por si mesmo).
No amor passional, o bem é amado não para que seja bom,
mas pelo deleite que o acompanha: é por mim mesmo que amo a
Sinfonia nº 4 em fá menor de Piotr Ilitch Tchaikovsky, ou degusto o
vinho de Pinot Noir, produzido nos vinhedos das encostas do Vosges,
na Alsácia, ou mesmo aprecio a bela Carmen, ópera francesa - em
quatro atos - do século XIX, de Georges Bizet.
A benevolência (eunoia) consiste, adversamente, em amar o
outro por ele mesmo. Relativo à pessoa humana, esse amor é, então,
espiritual e desinteressado, capaz de ultrapassar o amor de
concupiscência, que sempre contém algum resquício de egoísmo.
“El amado con amor de amistad no puede ser encerrado em el
círculo de mis intereses$. Cfr. II Sent., d. 3, q. 4, a. 1: Ergo in corde
amantis praeponderat bonum amatum omnibus utilitatibus vel
dilectionibus quae consequuntur ex amato” (CORRAL, 2001: 214).
Apõe Miron (1939: 39): “Disinterestedness, the very essence
of true love, is necessary before love can be recompensed”. Para Geiger
(1952: 72-73), “L’amour désintéressé ne s’obtient donc pas par
l’exclusion simplement de toute considération relative au sujet, à
son intérêt et aux moyens utiles”.
Além disso, Aristóteles elucida que amar o outro por ele mesmo
não é, em si, a amizade, mas generosidade ou bondade. A generosidade
autêntica nos faz dizer (e agir em proveito de outrem): amo-te por ti
mesmo; assim, como devo servir-te? Porém, ainda não é o amorphilia, que não prescinde da reciprocidade (ARISTÓTELES, 1985
a: VIII, 2, 1155 b 34-1156 a 1s).
Enquanto amor espiritual ou voluntário que nos torna receptivo
ao outro (nosso bem pessoal), a amizade reivindica, destarte, a união
78
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
mútua entre dois amores de benevolência. E no que diz respeito ao
significado próprio dessa reciprocidade, Aristóteles se ocupa em
demonstrar seu caráter objetivo: “ama-se o amigo por ele mesmo,
em primeiro lugar, e é primeiramente por nós mesmos que o amigo
nos ama” (PHILIPPE, 1999: 64).
A philia se anima a partir de um desejo, que, graças ao amor
recíproco entre dois amigos, desabrocha em algo mais profundo. Tal
passagem da filosofia aristotélica é esclarecedora no tocante ao
fundamento radical da amizade: a irmandade com nosso semelhante,
a comunidade de natureza realizada pela geração.
Pelo seu enraizamento natural, a amizade retira o homem da
solidão comunitária, permitindo-lhe (re)descobrir seus irmãos, ir-lhes
de encontro e amá-los (em um movimento no qual a pessoa ultrapassa
o egoísmo, o arqueamento afetivo sobre si, que nada tem de natural).
Nesse caso, a amizade não possui apenas um conteúdo
utilitário; tem, ademais, uma nobreza, fazendo-nos compreender que
ela é um fim em si mesma:
A amizade não é somente necessária; ela também é nobre (Kalon), pois
louvamos as pessoas amigas de seus amigos e pensamos que uma das
coisas mais nobres é ter muitos amigos; além disto, há quem diga que
a bondade e a amizade se encontram nas mesmas pessoas
(ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 1, 1155 a, 28-31).
Sendo algo bom, nobre e belo, a amizade finaliza o homem,
permitindo-lhe extrapolar a si próprio, em direção ao outro. Não se
deve, pois, servir-se de um amigo, mas amá-lo em coexistência; amase-lhe por ele mesmo em reciprocidade.
Por outro lado, o que determina o amor não é o conhecimento
de um bem, mas o bem conhecido. Apesar da ciência sobre o outro
ser condição necessária à eclosão do amor, sua fonte é o bem em si.
Eu suscito o amor de meu amigo por mim, atraindo-o e
conaturalizando-nos reciprocamente.
Um amigo ama seu semelhante por ele mesmo, e não em
virtude de seus predicados, que, embora possam ensejar a amizade,
não a especificam. O amor-philia é imediatamente determinado pelo
amigo em sua bondade pessoal.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
79
Aristóteles chega a cogitar que o amigo é caridade que reune
suas qualidades próprias, bem como seu amor benevolente, recíproco
e atual pelo outro. De fato, poder-se-ia chamar de caridade o amor
entre amigos, que os finaliza mutuamente, dando-lhes a verdadeira
bondade (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 34 - 1156 a 1s).
O efeito disso é que a amizade faculta ao homem exceder a si
próprio, a fim de, inclinando-se para seu amigo, orientar-se
inteiramente a um bem pessoal. Subentende-se, nessa alocução, que
o amor é extático41, à medida que faz um amigo despertar para o
outro, saindo de si e ordenando-se ao bem que lhe atrai e finaliza-o.
Tal êxtase não se realiza ao nível substancial ou metafísico,
mas intencionalmente, enquanto operação vital. Além do mais, se o
amor é extático, implica, de ambas as partes, uma profunda capacidade
de acolhimento, porquanto um amigo que esteja completamente
ordenado para o outro também o aceita por inteiro.
Nesse sentido, o êxtase do amor-philia proporciona uma nova
interioridade (fala-se amiúde em reencantamento), vale dizer, uma
propensão para atrair aquele que se ama.
De qualquer sorte, “Ninguém deseja viver sem amigos, mesmo
dispondo de todos os outros bens; achamos até que as pessoas ricas e as
ocupantes de altos cargos e as detentoras do poder são as que mais
necessitam de amigos” (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 1, 1155 a 4-6).
Aristóteles havia se deparado com a quinta-essência da philia:
se possuímos riqueza e poder, a amizade nos permite compartilhálos com nossos amigos; se, contrariamente, estivermos imersos em
infortúnio e pobreza (o que muitas vezes testemunhei42 em pesquisas
na área de oncologia, atreladas ao desenvolvimento de fármacos), a
amizade se torna nosso derradeiro refúgio.
O amor de amizade se cumpre numa escolha mútua, onde os
amigos elegem uns aos outros conscientemente, fazendo-o segundo
um critério não linear de predileção. Tal significa que a philia exige
uma reciprocidade (relacionamento) livre e esclarecida; ou, então,
não há amor, sequer uma escolha que lhe seja própria.
41. O mesmo que extasiado. Não confundir com estático, que significa imóvel.
42. Enquanto coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Estadual de Oncologia
(CEP / CICAN), ligado à Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB).
80
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
E, uma vez eleitos reciprocamente em seu amor, os amigos
têm a intenção de se amarem mais e mais...
Convicto da plausibilidade e, sobretudo, das implicações de
minha proposta, reitero, concluindo o que tenho dito neste item,
que “rótulos” do tipo comunidades vulneráveis e termo de
consentimento livre e esclarecido, tão assíduos e aclamados pela
literatura bioética (KIRBY, 1994; SAUNDERS et al., 1994; HALL,
1993; FADEN e BEAUCHAMP, 1986; MAZUR, 1986),
evidenciam, cada vez mais, a insuficiência de uma abordagem
demasiadamente utilitária e formalista, no que atine à preservação
da dignidade nas pesquisas científicas em humanos.
Daí a urgência de uma bioética, enquanto ato de amor, que, antes
de caracterizar uma iniciativa abstrata e ingênua, destina-se à concretização
de hábitos éticos, cujo escopo é a emancipação autêntica do homem.
Um primeiro passo nessa direção consiste em superar certas
iniqüidades, donde a noção de comunidades vulneráveis daria lugar
às circunstâncias de vulnerabilidade; do termo de consentimento,
evoluiríamos para o relacionamento livre e esclarecido43. Azevêdo
(apud GARRAFA e PESSINI, 2003: 325-326) redigiu páginas
memoráveis sobre o que estou a dizer, embora não chegue à mesma
conclusão e divirja quanto ao referencial teórico:
Em princípio, no Brasil, assim como em muitos outros países, a inclusão
de qualquer pessoa em projetos de pesquisa depende de uma consulta
esclarecedora seguida de aceitação livre, consciente e autônoma, através
de trâmite, entre pesquisador e pessoa pesquisada, de um documento
específico, denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) (Res. 196 / 96). A autonomia do paciente, para decisão
consciente, é exigência fundamental na aplicação do TCLE [...] Nas
situações de decisões em circunstâncias de pobreza, o princípio de
respeito à autonomia do paciente torna-se, para médicos e
pesquisadores, uma prática de auto-ilusão. A aplicação do TCLE às
pessoas reconhecidamente sem o menor poder de escolha tem profundo
43. Concebi e expus tais idéias ao longo da disciplina MED 733 (bioética) - ministrada
no último trimestre de 2000 -, que faz parte do doutorado em medicina interna da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da qual participei como aluno especial e
debatedor convidado.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
81
impacto na moralidade de médicos e pesquisadores.
Conseqüentemente, solicitar consentimento para participação em
pesquisa de ensaios clínicos, genéticos ou não, a pacientes em evidentes
circunstâncias de pobreza impõe sérias complexidades aos princípios
de respeito à autonomia, beneficência e justiça. Quanto maior a
pobreza, maior o poder da oferta. Quanto maior a desigualdade de
poderes entre pesquisador e paciente, maior a probabilidade de violência
à dignidade do mais fraco [...] Em Ortega y Gasset, as circunstâncias
de vida constituem a realidade básica. Para ele, a vida é um diálogo
constante entre a pessoa e suas circunstâncias. Em seu livro A revolta
das massas (6), Ortega y Gasset demonstra que a vida é feita de dois
elementos fundamentais: circunstâncias e decisões [...] Para as pessoas
vivendo em pobreza, as circunstâncias nas quais as decisões são tomadas
anulam qualquer possibilidade de exercício da autonomia [...] Se, por
um lado, médicos e pesquisadores estão conscientes das circunstâncias
de pobreza de seus pacientes, o novo desafio ético é desenvolver a
capacidade para percepção do que realmente significa ser sujeito de
direitos, de justiça e de beneficência no mundo cultural dos pobres.
A julgar por sua obra, Eliane Azevêdo anuncia uma bioética
da vulnerabilidade, que respira a atmosfera sociocultural dos países
em desenvolvimento. Receio, entretanto, que tal visão possa servir,
involuntariamente, à “ideologia serialista e ocidentalizante” (RAMOS,
1989: 39) sob a égide do Iluminismo44.
44. De acordo com Ramos (1989: 39-41), “A noção de que a história revela seu significado
através de uma série de estágios empírico-temporais é comum ao acadêmico liberal de tipo
padrão, tanto quanto aos teóricos marxistas e neomarxistas. Contido nessa noção comum,
está um conceito de tempo peculiar ao Iluminismo, e que continua a prevalecer nas formas
ocidentais contemporâneas de pensamento. Nos escritos dos epígonos do Iluminismo, o
tempo em que supostamente a natureza humana se atualiza é essencialmente serializado.
Através de distintos graus qualitativos de atualização que correspondem a diferentes degraus existentes numa espécie ascendente e seriada de tempo, a natureza humana muda sua
estrutura. Além disso, nessa perspectiva iluminista, existe um momento histórico culminante, em que a natureza humana alcança seu estágio final e perfeito. Sem dúvida, a visão
serialista da existência humana na história tem implicações comparativas diacrônicas e
sincrônicas [...] Por exemplo, a noção de Terceiro Mundo reflete a visão serialista da
história de hoje, já que pressupõe o segundo e o primeiro [...] Continuam ainda enredados na metaideologia desse tipo de mentalidade disfarçada como funcionalismo estrutural,
dialética hegeliana, marxismo e neomarxismo, e como as diferentes combinações dessas
tendências com fenomenologia e - ou - existencialismo [...] Na realidade, tais critérios são
armadilhas epistemológicas e ideologias disfarçadas, que fomentam uma errada compre-
82
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Seja como for, Beecher (1966) assegura, verbalizando o
pragmatismo dogmático imposto à bioética, que o consentimento
informado é o substrato moral da experimentação em seres
humanos. A impressão que tenho, outrossim, é que Maria do
Céu Patrão Neves externou opinião análoga durante o VI Congresso
Mundial de Bioética, realizado em Brasília entre 30 de outubro e
3 de novembro de 2002: “O ‘consentimento’ é, sem dúvida, um
[...] paradigma privilegiado da bioética” (NEVES apud GARRAFA
e PESSINI, 2003: 487).
Mantendo-me à margem da polêmica quanto ao seu alcance
(informado, na tradição anglo-americana e esclarecido, na revisão
etimológica feita pela Europa latina), creio que a natureza do
consentimento seja a de um contrato de adesão45, o que denota uma
ascendência jurídica.
Ora, ainda que simbolicamente, recuso-me a tê-lo, ao lado do
homem, qual um “paradigma privilegiado” da bioética, pois o meio
não está nivelado com o fim ao qual se ordena; ou seria moralmente
possível que os fins justificassem os meios.
Penso até que o consentimento, enquanto instrumento jurídico,
condiciona o amparo à dignidade ao formalismo estratégico e
ambivalente da normatização estatal, relativizando-se como garantia
aos sujeitos de pesquisa. Mesmo porque, reconheça-se, a (bio)ética
transcende os sobressaltos e vicissitudes dos textos legais.
APLICABILIDADE
DO
AMOR-PHILIA
À
BIOÉTICA
A tentativa de fundamentar a bioética no amor-philia tem
duas implicações práticas relevantes:
ensão dessas sociedades e que as desviam de seu imperativo crítico de auto-reconstrução.
As políticas emanadas desses critérios funcionam, na prática, no sentido da escalada da
ocidentalização do mundo todo. Um dos resultados desse processo, em que estão presas as
chamadas nações do Terceiro Mundo, é a degradação de suas estruturas internas. O
sentimento de privação relativa, que contamina de modo especial os setores intermediários
dessas nações, é um dos fatores primordiais a lhes dificultar a auto-reconstrução [...] Essa
mentalidade adventista, mais do que a escassez de recursos, constitui o obstáculo fundamental à auto-articulação cultural, política e econômica dessas nações”.
45. De acordo com Orlando Gomes, o contrato de adesão é aquele em que “uma das partes tem
que aceitar, em bloco, as cláusulas estabelecidas pela outra, aderindo a uma situação
contratual que se encontra definida em todos os seus termos” (GOMES, 1998: 109).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
•
•
83
delimita-lhe um domínio ou campo de ação exclusivo: o da
pesquisa científica em humanos, já que, na natureza, apenas
o homem tem a nota distintiva da amabilidade espiritual,
sendo capaz de amar e ser amado em um nível mais profundo
que o instintivo;
enseja a retomada de uma ética enquanto tarefa de amor ao
próximo, nosso semelhante: amans amato bonum velit (amamos
àquele ao qual queremos algum bem).
Note que o estudo científico em humanos, porque viabiliza a
consecução de uma obra em comum entre pesquisadores e sujeitos
de pesquisa, é um contexto propício ao cultivo do amor de amizade
e de sua intencionalidade própria.
É que essa intenção (amistosa) fomenta uma interseção ou
identificação de vontades, que, para aperfeiçoar-se, reclama que dois
amigos compartilhem não só uma vida, mas a feitura de um trabalho.
D’outro modo, a philia perde seu realismo, tende a idealizar-se
(PHILIPPE, 1996 a: 46-48; 1996 b: 21-27; 1999: 68-71).
A amizade da qual cuido, segundo a virtude46, dá a entender
uma atividade mútua (estando no limiar dessa exigência a inerência
46. Aristóteles nos mostra a necessidade da virtude, que é adquirida - e não primeira. As
virtudes, enquanto meios, não se confundem com a felicidade, que diz respeito ao fim
último da atividade moral, que é atividade finalizada. Eis o ponto de divergência que afasta
a ética aristotélica da estóica: os estóicos crêem que a virtude finaliza, porque por ela é
possível ser mestre de si. Aristóteles, entretanto, diz que a virtude é uma necessidade-meio,
da qual a pessoa deve servir-se a fim de ascender à felicidade (abdiquem os homens das
virtudes, e serão reduzidos ao governo de seus instintos e de suas paixões). Para que o
humano brote do passional e do instintivo, devemos cultivar (humanizar) a “terra” que nos
é dada. Ora, cultivar nossas paixões e instintos, sem destruí-los (graças às virtudes), consiste
em permitir-lhes evoluir o quanto possível, evitando que se oponham ao desenvolvimento
do espírito. Mas a amizade, diria Aristóteles (1985 a: VIII, 1, 1155 a 1-2), não é uma
virtude, porque enquanto esta última é um ter, aquel’outra não o é. De fato, a virtude é algo
possuído e, por isso mesmo, conhece-se bem o singular esforço sem o qual não se lhe
adquire. Não pretendo, no entanto, estagnar ao nível da virtude - qual o faz aquele modelo
concebido por Pellegrino e Thomasma (ver o capítulo III) -, uma vez que não se trata ela de
um bem absoluto, de nossa felicidade (que se põe ao nível do amor espiritual e da inteligência), cuja fonte é uma atividade humana finalizada e, portanto, ética. É preciso ultrapassar a
virtude, se se quiser descobrir por que ela existe; ou seja, se desejo entender que seu papel é
permitir-nos alcançar a felicidade de um modo mais eficaz e deleitável. Daí porque, em
Aristóteles, a amizade é uma das superações da virtude. E ele nos traz, ainda, mais uma
distinção, dessa vez entre perfeição e bondade (alcançadas, respectivamente, através da
virtude e da philia). Assim, a perfeição é, em uma palavra, integridade (no sentido de
completitude). A bondade, por outro lado, é algo mais; é o que nos faz capazes de atrair os
outros.
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
recíproca da philia), que permita ao ser humano confiar
paulatinamente em seu amigo: o “mais belo estado de vida é a
dependência livre e voluntária, e como seria ela possível sem amor?”
(GOETHE, 1992: 31).
Por isso que o amor-philia requer a estabilidade, a duração
característica do vivente. É preciso conviver longamente junto ao
outro, tê-lo ao lado nas desventuras, antes de nele ter um amigo alguém que experimenta minhas aflições, fazendo-as suas também.
Nutro a convicção de que o amor entre dois amigos,
aprimorado num trabalho em parceria, arrasta-os a uma co-vivência
uníssona e cooperada (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 4, 1156 b
26s; IX, 12), enquanto comunicação vital (koinonia) que, longe de
sufocar o outro, motiva-o a se manifestar em suas qualidades mais
íntimas, vindo a acolhê-lo qual de fato é.
En Aristóteles, como ya adelantábamos, se pueden distinguen
dos sentidos propios de “ Κ ο ιν ω ν ία ” : 1º “sociedad”, entendida
como intercambio social: el sentido del libro VIII de la Ética
Nicomaquea, y en el libro de la Política. 2º “συζήν” , convivencia
en la intimidad: el sentido propio del libro IX de la Ética
Nicomaquea (CORRAL, 2001: 371).
A koinonia ou κοινωνία aristotélica é um fruto e uma disposição,
um meio que não se equipara à philia, pois se a vida em comum é
confundida com a própria amizade, ou seja, se o afluente é igualado à
fonte, o amor espiritual (princípio da atividade ética) termina por claudicar
e esgotar-se.
Sendo assim, a bioeticidade da pesquisa científica em humanos
se perfaz, tão somente, quando o relacionamento livre e esclarecido ou relação pessoal de amizade - nela iniciado ultrapassa o tempo da
investigação, subsistindo-a.
No Brasil, por exemplo, o item III.3, alínea “m”, da resolução
196 / 96 preceitua “... que as pesquisas em comunidades, sempre
que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a
se fazer sentir após sua conclusão...”. Não se tem, aqui, uma semente
- inusitada, é bem verdade - da philia bioética que proponho? O que
não significa, absolutamente, que se deva substituir a volição
autônoma da amizade pela regência e coerção legais.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
85
A ética, enquanto conduta propriamente humana e a bioética,
projeção dessa mesma atitude dentro das pesquisas científicas em
humanos, implicam a responsabilidade e a relação pessoal; e, sendolhes a expressão mais perfeita, o amor-philia é a experiência-chave à
plenitude do agir (bio)ético.
A responsabilidade, no que ela tem de mais forte e eficaz, nasce da
experiência do amor de amizade. Ela pressupõe todo o resto. Se,
então, eu reduzo a moral a isso, eu passo por cima de tudo que está
antes, e não sei mais sobre o que repousa a minha moral. A moral
repousa no amor. Um amor aceito, um amor consentido, um amor
que finaliza a minha vida (PHILIPPE, 1996 a: 48).
Diferentemente da pesquisa científica em si, a (bio)ética deve
consubstanciar-se, desde sua origem, no amor voluntário a um bem
pessoal. Eis sua legitimação singular, que finaliza os enunciados
principialistas (beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça),
dando-lhes uma idoneidade humanista real.
O amor-philia consolida a (bio)ética em sua plenitude, uma
vez que o fim preeminente - e premente - do homem é buscar tornarse amigo do bem pessoal amado47, concretizando uma unidade-dual,
cume da fecundidade espiritual48 entre amigos.
47. Do outro (próximo) amado por ele mesmo, simplesmente porque é nosso semelhante.
Na raiz dessa assertiva, encontra-se a pedra fundamental da ética cristã: amar a Deus acima
de todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo - São Mateus, 22: 37-39 (BÍBLIA...,
1994: 1902).
48. Porque oportuno, devo confrontar as noções de eficácia e de fecundidade. De acordo com
Aristóteles, a fecundidade está radicalmente ligada à vida: “É preciso que o vivente seja
perfeito para ser fecundo” (ARISTÓTELES, 1980: II, 4, 415 a 27-28), ou seja, para ser
plenamente fonte de um outro vivente. Portanto, a fecundidade é a comunicação da vida,
pertencendo à ordem da substância, do bem, da finalidade. A eficácia, por sua vez, atémse à dominação da matéria pelo trabalho, a fim de realizar uma obra, obter um resultado,
permanecendo na ordem do útil e da transformação das formas. Dito isso, o que mais
impressiona em nossa civilização é o quão estamos, constantemente, ao nível das condições
e da eficácia, cujo primado obscurece a fecundidade (sobretudo a espiritual, concernente
ao amor de amizade), produzindo um agrupamento de autômatos. Enfatizando a índole
procedimental dessa primazia da eficácia, Philippe (1999: 172) cogita que “estamos na era
dos métodos”, acrescentando, de modo provocativo e verossímil: “Antigamente, quando se
trabalhava como filósofo, consideravam-se os objetos; agora, procuram-se os métodos”
(Id. Ibid., 1999: 173). Ora, num mundo de exasperação tecnológica, é normal, na
perspectiva da rápida expansão tecno-científica, que a fecundidade espiritual entre amigos
esteja suplantada pela reivindicação cartesiana, a confundir eficácia e fecundidade: “Pelo
86
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Cá está a única maneira pela qual a bioética se conaturaliza
com seu desígnio: resguardar a decência daqueles que tomam parte
de pesquisas científicas em humanos.
Escutai e inferis que o amor dedicado ao amigo é o gérmen da
intencionalidade (bio)ética, que enxerga o bem pessoal amado como
fim e, também, princípio relativista e de ordenação d’outros bens
secundários, quais os da pesquisa científica em si.
... deve-se dizer que, como o fim corresponde ao princípio, por esse
motivo se prova que o último fim é o primeiro princípio do existir,
no qual está toda a perfeição do existir. Assemelharem-se a este
todos desejam, cada um em seu grau. Uns, somente segundo o existir, outros segundo o existir vivente; finalmente, outros, segundo o
existir inteligente e bem aventurado. Mas isto é de poucos (TOMÁS
DE AQUINO, 1980: I-II, q. 2, a. 5).
Uma última questão: levando-se em conta que o exercício
irmanado de um trabalho é vital ao amor-philia, a pesquisa científica
em humanos, qual se nos apresenta hoje, tendencialmente constrange
ou alia-se ao fazer bioético destas linhas?
Deparei-me, repetidas vezes, com a ortodoxia e obscurantismo
que imprimem à investigação científica moderna seu caráter ou eixo
principal: o auto-referenciamento da inteligência do pesquisador,
que, imbuído de racionalismo, atribui a si mesmo sua determinação,
materializando os sujeito-estatísticas de pesquisa.
apetite espiritual que está em nós, temos a possibilidade de viver em um nível propriamente voluntário. Mas, quando falamos de ‘voluntário’, é preciso compreender bem que
a vontade é, antes de tudo, uma capacidade de amar. Ela não é primeiramente uma
capacidade de eficiência, contrariamente ao que afirma um bom número de filósofos no
seguimento de Descartes [onde] O amor é considerado apenas [...] um sentimento” (Id.
Ibid., 1999: 179). Essa é a grande tentação do homem moderno: procurar, antes de mais
nada, um certo bem-estar (quality of life), não se preocupando, porém, com a verdadeira
finalidade humana (haja vista que a eficácia, estando na ordem dos meios, não finaliza). A
pura eficácia, então, é mera embriaguez, capaz de monopolizar todas as energias do ser
humano, impedindo-o de descobrir seu verdadeiro bem. Assim, é na fecundidade (biológica e espiritual), e não na eficácia, que o homem se faz pleno, conservando e comunicando por completo a sua humanidade. Quero esclarecer que não se trata de negar a eficácia,
que é, em seu domínio próprio (o do trabalho), absolutamente necessária, até o dia em que
rivaliza com a fecundidade, pois, nesse momento, o mundo se materializa e conduz nossa
civilização a encruzilhadas terríveis.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
87
Como resultado dessa autodeterminação, a inteligência do
pesquisador, no que diz respeito a ele próprio, converte-se em fonte
do significado imediato das possibilidades técnicas que conhece. A
inteligência meramente racional já sabe, não ama mais!
Salta aos olhos o delicado problema das relações entre amor e
inteligência. Haveria entre ambos uma antinomia ou é possível uma
aliança profunda? Freqüentemente, a realidade do amor se eleva,
incognoscível, acima da inteligência e da razão.
O amor nos põe além da reflexão, do cogito, da análise...
Racionalizá-lo equivale, portanto, a matá-lo sempre um pouco mais,
suprimindo o que há de mais elevado em nós mesmos, em nossa
experiência humana.
Acredito que o grande desafio seja alcançar algum equilíbrio
em meio ao desenvolvimento da inteligência-que-pesquisa e a
capacidade de amar, o qual se deve retomar constantemente (já que
não se consegue tal equilíbrio de uma vez por todas), através do
perdão autêntico (LAFFITTE, 1999)49; do contrário, o amor se torna
um compromisso vazio.
Apenas, nesses termos, é possível viabilizar, quanto às pesquisas
científicas em humanos, uma bioética pautada na verdade.
O esclarecimento acerca da pesquisa científica envolve,
igualmente, a distinção entre inteligência e razão, renegada a partir
de Descartes (que se preocupou antes com a ratio, isto é, com o
entendimento, enquanto raciocínio ou deliberação), para quem tudo
repousa sobre a experiência do valor infinito da liberdade:
49. Tem-se, aqui, uma obra fundamental, ainda mais nesses dias incertos, nos quais o perdão
é confundido com um valor abstrato qualquer, uma utopia destituída de essencialidade.
Pondera Laffitte (1999) que, desde as origens de nossa civilização, a pessoa humana, no
rastro de Caim, transformou-se em assassino de seu irmão: as ofensas físicas, afetivas,
intelectuais, morais e espirituais dividem os homens, as famílias e as nações. E, quando
uma ofensa intervém, seja ela individual ou coletiva, voluntária ou involuntária, cria uma
situação nova, altera uma relação entre ofensor e ofendido, que só pode ser sanada mediante
o perdão, cuja espessura é antropológica. Mas, se a ofensa atinge um certo nível de
gravidade, quando a vítima inocente não mais existe, o perdão - já tão difícil em nosso
quotidiano - torna-se humanamente impossível. Em relação à fascinante tese desenvolvida
por Jean Laffitte, interessa-me, de uma forma imediata, a parte introdutória de O perdão
transfigurado, onde se dá “uma análise antropológica do perdão, da sua consistência, da
dialética ofensor-ofendido à qual ele pretende pôr um termo, da sua dimensão moral e,
também, das suas aporias” (LAFFITTE, 1999: 13), sobretudo quanto à gênese do perdão
humano (Id. Ibid., 1999: 58-64).
88
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
... eu verifico que ela [a vontade] não é limitada por nenhuma fronteira
[...] Nenhuma das outras coisas se encontra em mim tão perfeita e
grande que eu possa concebê-la mais perfeita ou maior [...] Só há a
vontade que eu verifico ser tão grande em mim que não concebo a
idéia de qualquer coisa maior, de modo que é principalmente por ela
que compreendo que trago em mim uma certa imagem e semelhança
de Deus (DESCARTES, 1988: 170-171).
De um modo geral, os pesquisadores celebram a razão,
negligenciando a opção por uma convivência inteligente, a
responder pelo que existe de mais sublime em nosso espírito. Eles
ignoram que o raciocínio é o condicionamento humano da
inteligência. E o que é a inteligência, afinal?
Tomás de Aquino, citando Isidoro de Sevilha, propõe a seguinte
etimologia latina: intelligere é intus legere (TOMÁS DE AQUINO,
1980: II-II, q. 8, a. 1). Ser inteligente é conhecer a realidade do interior.
Habituamo-nos, porém, a olhar de fora para o real, não vendo
senão o que nele é acidental; muito embora se contentar em descrever
a realidade experimentada signifique descer o rio, sucumbindo-lhe
deliberadamente, desobrigando-se de entrever o que é essencial.
O que importa, então, é progredir em nossa inteligência-quepesquisa, superando a correnteza do rio. Mas isso demanda tempo,
além de perseverança, visto como a inteligência é o que remonta à
fonte, que a tudo explica e não é dado imediatamente.
Costumo refletir sobre o que Platão (1941: 514 a-521 b) diz
em seu mito da caverna: nesse mundo, cerram-se os olhos a tudo o
que escapa às sombras da realidade, de sorte que é preciso sair da
caverna, a fim de caída a máscara da teatralidade, vê-la o semblante
(o do mundo das formas ideais).
Inquietante e comovente, a aludida fábula platônica
impressiona por sua densidade lírico-filosófica. Ou a inteligência
das sombras, que se recusa a buscar o “fundo das aparências”
(MAFFESOLI, 1996), não jaz errante numa caverna fria, cortesã em
um labirinto de tentativa e erro?
A inteligência consiste em discernir, o que extrapola o azo
analítico. Ora, toda análise pressupõe um discernimento (krinein),
que a supera, no entanto, ao realizar-se num juízo.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
89
De minha parte, é ínsito ao ato perfeito da inteligência habilitar
o ser humano a discernir (cf. ARAÚJO, 2000), avaliar de dentro de
maneira a ultimar-se na contemplação50.
O raciocínio e a análise, todavia, não se coadunam na
contemplação, embora possam servi-la. Logo, conquanto
pressuponha a ratio, o agir contemplativo precisa ir além dela, porque
se presta a algo maior, a um olhar pleno acerca do outro e,
finalmente, sobre Deus.
Quanto aos princípios, a inteligência não os contempla,
apesar de compreendê-los - sendo esse o modo pelo qual se torna
mais penetrante. Conseqüentemente, ela pode valer-se de
princípios ao produzir ciência, mas tal conhecimento não finaliza
a vida da inteligência:
Igualmente, é preciso compreender bem que, se nossa inteligência é
capaz de refletir sobre suas próprias atividades, criticando-as, ela
não é feita primeiramente para essa atividade reflexiva, que não é
senão secundária: ela é feita para a contemplação, sua verdadeira
finalidade. Prestemos atenção, quando dizemos que a inteligência é
feita para a verdade (PHILIPPE, 1999: 143).
A vocação da inteligência é contemplar a pessoa humana,
não se satisfazendo em apreender a verdade, por si só uma atitude
egocêntrica. Faço a seguinte distinção: a inteligência é perfeita, se
apreende o que é verdadeiro, cuja posse, entretanto, não a perfaz.
A inteligência há de ser verdadeira para contemplar e,
contemplando, é ela verdadeira.
Afora esses pleonasmos, sobreponho que a inteligência não
contempla sua verdade, mas o ser humano. Inclina-se, pois, a conhecer
o outro e a desvendá-Lo; e não consigo imaginar algo mais inteligente
que se dispor a entender a fonte absoluta.
Em suma, declama Aristóteles (1969: α, 993 b 9) que a
inteligência filosófica é como a ave noturna que, fascinada e atraída
pela luz, gira em torno dela.
50. Remeto-vos à introdução deste capítulo.
90
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Não é o necessário que pode finalizar e definir a inteligência: o necessário define a lógica e a ciência. Mas a inteligência ultrapassa o necessário
para descobrir sua fonte. A inteligência não é feita ultimamente para
descobrir a ordem, mas para conhecer a fonte da ordem, e para descobrir, além da harmonia, a fonte da harmonia (PHILIPPE, 1999: 145).
Nada obstante, a volubilidade moral do homem o leva a
desviar-se, livremente, do bem espiritual que o finaliza, assim
como dos meios que se lhe ordenam, escolhendo outros bens que
melhor enaltecem, à guisa de exemplo, sua argúcia e sensibilidade
tecnocientífica.
Acabo de cotejar o vasto drama da falta, do voluntarioso que,
indiferente ao bem pessoal amável, alteia e prosta-se ante o
materialismo imediato, louvando a si mesmo. Eis o elogio da loucura,
malgrado a sátira improvisada por Erasmo de Rotterdam:
Talvez haja pessoas que, à falta de tais passatempos, limitem toda a
sua felicidade às relações com verdadeiros amigos, repetindo sem
cessar que a doçura de uma terna e fiel amizade ultrapassa todos os
outros prazeres, sendo tão necessária à vida como o ar, a água, o
fogo. - Tão agradável é a amizade, - acrescentam, - que afastá-la do
mundo equivaleria a afastar o sol; em suma, é ela tão honesta (vocábulo sem significado para mim) que os próprios filósofos não hesitam em incluí-la entre os principais bens da vida. - Mas, que se dirá,
quando eu provar que sou também a única fonte criadora de semelhante bem? Vou, pois, demonstrá-lo, não com sofismas, nem com
caprichosos argumentos tão ao gosto de retóricos, mas à boa maneira e com toda a clareza. Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir,
fechar os olhos aos defeitos dos amigos, ao ponto de apreciar e
admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da loucura? (2002: 17).
Exaltando a si próprio, o pesquisador se abstém de
procurar, em sua conjuntura laboral, o bem que lhe aperfeiçoa e
transcende, preferindo a exasperação do seu ego. Diria “Ofélia”,
a surpreendente filha de “Polônio” (camareiro-mor na tragédia
shakespeareana Hamlet):
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
91
Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e
o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o
próprio exemplo da educação, o espelho da elegância, o alvo dos
descontentes, tudo em nada! E eu, a mais desgraçada das mulheres,
que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa admirável
razão perder o som, qual sino velho, essa forma sem par, a flor da
idade, fanada pela insânia! Ó dor sem fim! Ter já visto o que vi, e vê-lo
assim! (SHAKESPEARE, 1982: 83).
Na falta, porque denota auto-suficiência e inconstância moral,
o homem realiza, voluntária e autonomamente, o absenteísmo ou
ausência premeditada de vosso semelhante - e fá-lo em seu
(conveniente) juízo, do qual se torna a medida imediata -, depondo
contra sua liberdade ética, que embota a não ser dentro de um amor
espiritual (cf. PHILIPPE, 1999: 158-163).
Conclui Eliane Azevêdo, com sabedoria:
... o destino da humanidade vem sendo escrito por poderosas forças
sociais, econômicas e científicas que, geradas pelos próprios seres humanos, agigantaram-se em suas mentes e passaram da condição de
conduzidas para a de condutoras [...] Mesmo neste final de século,
quando a questão da ética, dos direitos humanos e da dignidade humana tornaram-se tema de discussão nos quatro cantos do mundo, a
produção de saberes em áreas afins, como Bioética, persiste, com raras
exceções, desvinculada da dignidade, da ética e dos direitos da maioria
empobrecida (AZEVÊDO, 2000: 86-87).
***
No próximo capítulo, confronto o primeiro ciclo à philia
bioética, inferindo-lhes a textura e, com isso, delimitando o arcabouço
propositivo deste opúsculo.
CAPÍTULO V
POR UMA BIOÉTICA
DA AMIZADE
Faço alusão, inicialmente (estratégia expositiva), a um
dado experimento, quiçá o mais aviltante já realizado em pessoas
humanas, averbado na literatura especializada como o caso
tuskegee, o que servirá de referência sobre um conflito ético
capaz de ilustrar, qual proponho, a plausibilidade de uma bioética
fundada no amor-philia.
CONSTERNAÇÃO
EM
TUSKEGEE
Tuskegee é o espectro - the ghost - perceptível do pensar-agir
bioético. Trata-se de um evento emblemático (KATZ, 1972;
ROTHMAN, 1991), da idéia-força básica, do ponto central de sua
auto-afirmação fenomenológica.
Com efeito, de 1932 a 1972, o serviço de saúde pública dos
EUA conduziu um certo estudo, de cujos protocolos jamais se teve
notícia. Compunham sua amostra seiscentas pessoas negras
domiciliadas em Macon, Alabama, dentre as quais trezentas e noventa
e nove portavam sífilis (BRANDT, 1978).
Ostentando o nome do centro de saúde onde fora
implementado, o experimento tuskegee pretendia observar a evolução
natural da sífilis sem que houvesse intervenção terapêutica nos sujeitos
infectados (SHAFER et al., 1954).
Entrementes, já haviam sido publicados, em 1929, os
resultados de um outro estudo desenvolvido na Noruega, que relatava
o progresso in natura da sífilis em cerca de dois mil indivíduos,
nenhum deles submetidos a tratamento (CLARK e DANBOLT,
1955; GJESTLAND, 1955).
Os sujeitos contaminados da pesquisa tuskegee não
souberam que tinham sífilis, tampouco os efeitos dessa patologia.
O diagnóstico apresentado era “bad blood” (sangue ruim), o
mesmo usado pelos eugenistas norte-americanos, nos idos de
96
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
1928, a fim de justificar a esterilização dos portadores de
deficiências psicossomáticas (ROTHMAN, 1982).
Uma vez integrados ao projeto, os sujeitos passivos da aludida
investigação recebiam, em contrapartida, acompanhamento médico,
refeição (fornecida, tão-somente, por ocasião das consultas e exames)
e o pagamento de suas despesas funerárias. Outrossim, distribuíramse prêmios em dinheiro, cujo propósito era evitar deserções
(THOMAS e OVINN, 1991).
A inadequação do estudo tuskegee, em sua fase inaugural, adveio
não tanto da omissão terapêutica em relação aos infectados, pois a
década de 1930 desconhecera um tratamento comprovadamente
eficaz contra a sífilis, mas da sonegação deliberada do diagnóstico
feito e do prognóstico esperado.
Nos anos 40, porém, sobreveio a cura da citada enfermidade.
Não obstante, todos os pesquisados em questão continuaram, de
maneira premeditada, excluídos de qualquer terapia, a ponto de as
instituições de saúde norte-americanas receberem uma lista contendo
seus respectivos nomes, com isso evitando-lhes o acesso, n’outro local
que não o da pesquisa, ao “tratamento” apropriado (BRANDT, 1978).
Tuskegee seguiu, portanto, o padrão “slippery slope”
(SCHAUER, 1985: 361-383), no qual uma ação em princípio
irrelevante, sobretudo se desvencilhada de seu contexto sociocultural,
agrava-se progressivamente, gerando malefícios supervenientes e não
previstos (espiral negativa).
Por volta de meados do século XX, os EUA editaram, via
Associação Médica Americana, algumas regras domésticas acerca
das pesquisas científicas (ROBINSON, 1944). Segue-se-lhes o
tratado de Nuremberg - micro-sistema de direito internacional
público -, cuja redação é atribuída ao lord of the war, sendo parte
da sentença exarada pelo Tribunal de Nuremberg, uma corte militar
de exceção pós-holocausto.
Em que pese o advento desses atos normativos, a comunidade
acadêmica norte-americana sequer questionou os resultados parciais
do estudo tuskegee, vindo, inclusive, a disseminá-los sem qualquer
restrição (cf. VIEIRA e HOSSNE, 1998). No entanto, os EUA
arcariam com o pesado ônus do aforismo “faça o que eu digo, mas
não faça o que eu faço”, que lhe é tão caro.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
97
A imprensa nova-iorquina veiculou, em 1969, notícia sobre a
consumação de vinte e oito mortes durante o mencionado projeto,
então vigente. Nesse mesmo ano, o historiador James H. Jones
encontrou vários documentos alusivos à pesquisa tuskegee (JONES,
1993: 1-11), mas não lhes deu importância porque a julgou sobrestada.
Só depois que a repórter Jean Heller publicou no The New
York Times, em 26 de julho de 1972, uma matéria denunciando a
barbárie perpetrada em tal pesquisa, o estudo tuskegee se tornou o
caso tuskegee, ensejando intensa convulsão social e política.
A repercussão negativa sobre o caso tuskegee, deflagrada pelo
furo jornalístico subscrito por Heller, pôs fim a quarenta anos do
estudo tuskegee, ao longo dos quais apenas setenta e quatro
sobreviveram, e mais de cem vieram a falecer em decorrência da sífilis
ou de complicações oriundas dessa patologia.
A most important phase of the study was to follow as many patients as
possible to postmortem examination, in order to determine the prevalence
and severity of the syphilitic disease process. Cooperation of patients
with this plan was sought by offering burial assistance (through a private
philanthropy, the Milbank Memorial Fund) on condition that permission
be granted for autopsy. For the majority of these poor farmers such
financial aid was a real boon, and often it was the only “insurance” they
could hope for. The Federal Government offered physical examinations
and incidental medication, such as tonics and analgesics, but was unable
to provide financial assistance on a continuous basis. The Milbank
Memorial Fund burial assistance made it possible to obtain a higher
percentage of permissions for postmortem examinations than otherwise
would have been granted (RIVERS et al., 1953: 392)51.
51. A enfermeira Eunice Rivers, contratada como assistente de pesquisa, e o doutor Eugene H.
Dibble, ambos negros, foram incorporados ao grupo para serem facilitadores na integração
com a comunidade. Até 1952, tinham sido concluídos quatro grandes relatórios sobre o
andamento dessa pesquisa (VONDERLEHR et al., 1936: 260-265; HELLER et al.,
1946: 34-38; DEIBERT et al., 1946: 301-314; PESARE et al., 1950: 201-213).
Contendo as diretrizes metodológicas do aludido estudo, o artigo Twenty Years of Followup Experience in a Long-Range Medical Study (RIVERS et al., 1953) descreve, ainda, fatos
bastante elucidativos de seu caráter antiético. Por exemplo, as condições econômicas dos
sujeitos pesquisados eram extremamente precárias, a ponto de ser-lhes irresistível a oferta
de um prato de comida quente a cada consulta (daí porque não agiam autonomamente).
Não obstante, os participantes de tal experimento tiveram boa adesão ao projeto,
98
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Perto do fim, o projeto tuskegee esteve sob a tutela do Centro
de Controle de Doenças (CDC) de Atlanta. Até 1997, eram
apenas oito os remanescentes desse vergonhoso genocídio racial...
Recordai-vos a advertência imortalizada nos Caprichos de Goya:
“El sueño de la razón produce monstruos” (apud BORNHEIM
et al., 1996: 310) (Gravuras 1 e 2)52.
muito em função do contato sistemático e continuado com a enfermeira Rivers. Ela os
buscava em sua residência, usando um automóvel especialmente alocado para a pesquisa.
Uma evidência dessa boa relação: dentre os 146 óbitos (até 1952), foram obtidas autorizações para realização de 145 necrópsias. Em 1936, saiu publicado Untreated syphilis in
the male Negro. A comparative study of treated and untreated cases (VONDERLEHR et al.,
1936: 260-65), que apresenta os registros consolidados sobre o transcurso da investigação em foco. Essa publicação gerou alguma polêmica, porém logo superada. A partir de
1945, já havia terapêutica estabelecida contra a sífilis, utilizando penicilina. Em 1947, o
serviço de saúde pública norte-americano criou “centros de tratamento rápido” para os
pacientes com sífilis, aos quais, entretanto, não tiveram acesso os sujeitos incluídos no
estudo tuskegee - por decisão formal de seus pesquisadores responsáveis. De 1947 a
1962, cerca de 127 alunos (negros) de medicina participaram do citado experimento.
Publicou-se, finalmente, em 1961, outro memorial sobre a referida investigação, dessa
vez com os dados relativos a 30 anos de seu monitoramento técnico: The Tuskegee study of
untreated syphilis: the 30th year of observation (ROCKWELL et al., 1961: 792-98).
52. O gênio artístico de Goya se situa numa encruzilhada entre a crença na razão, engendrada
pelo Iluminismo, e a violência da guerra, trazida pelo invasor francês: barbárie instituída
em nome dessa mesma razão. Estiraçada ainda entre os prazeres sensuais e um corpo
gradativamente tomado por enfermidades dolorosas, sua arte constitui, decerto, uma das
mais aprofundadas reflexões sobre o projeto de racionalidade para o mundo, concebido
pelo século XVIII. “Goya não faz a crítica, ou a condenação desse projeto, como os
românticos o puderam fazer. A partir da dramática experiência vivida, da consciência do
corpo, da descrença política, por meio da prática da pintura, da gravura, do desenho, mas
sobretudo servindo-se da melancolia como ponto crítico, ele vai além - estabelece os
limites angustiantes dos poderes da razão e instaura o irracional como universo ilimitado.
Devemos, no entanto, partir de um Goya avesso às trevas e sedento de luzes. Esquecemos
freqüentemente o quanto ele foi um artista que aderiu às idéias de reforma do mundo
surgidas no seu tempo. Suas relações com o Iluminismo foram convictas [...] Goya
acreditou na liberdade, ele acreditou na razão presidindo os destinos do mundo”
(BORNHEIM et al., 1996: 301). Goya é um pintor que celebra e eleva a razão; e os
testemunhos disso são numerosos em sua obra. Em 1799, cria uma série de gravuras
intitulada Caprichos, o que significa obras concebidas por uma imaginação solta, dentre as
quais se encontra A enfermidade da razão (Gravura 1), onde a aristocracia inútil, aprisionada em seus brasões, é alimentada por alguns personagens, num espaço de arquitetura
ampla, que evoca um castelo. Esse desenho é preparatório para a gravura central da série em
epígrafe, a mais célebre de todas, e a única que comporta uma inscrição: El sueño de la razón
produce monstruos (Gravura 2).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
Gravura 1. Goya, A
enfermidade da razão (1797-8);
bico-de-pena sobre papel,
23,6 x 16,1 cm. Museu del
Prado, Madri, Espanha.
Gravura 2. Goya, Caprichos,
prancha 43: El sueño de la razón
produce monstruos
(primeira edição: 1799);
água-tinta, 21,5 x 15 cm.
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
De resto, tuskegee é o reverso da bioética, ainda mais porque
envolveu pesquisadores supostamente insuspeitos (BEAUCHAMP,
1996), cuja hediondez, à frente dessa empresa, fora encoberta pela
cumplicidade do meio acadêmico e de organismos governamentais.
EFETIVIDADE
DO
PRIMEIRO CICLO BIOÉTICO
A profusão de modelos explicativos, muitos deles
comprometidos com aspectos pontuais da ética aplicada à
biomedicina, evidencia que o primeiro ciclo bioético é, enquanto
unidade histórica e ideológico-cultural, tendencialmente
especializado - embora tendência não seja destino!
E, à medida que se especializa sobre uma faixa tão estreita, perdese a visão de conjunto. Poder-se-ia, então, formular a seguinte hipótese:
quanto mais especializado for o primeiro ciclo bioético, mais evasivo
ele será em relação a todo o resto, que é sempre a maior parte.
A especialização53, diria Weber (2002), é um elemento do
espírito capitalista, ao lado de sua lógica expansionista-mercantil,
cuja inspiração ética é o protestantismo anglo-saxão:
53. A especialização é, para Karl Marx, a fonte de todas as alienações: “Estropia o trabalhador
e faz dele uma espécie de monstro”; favorece, “como numa estufa, o desenvolvimento de
habilidades parciais, suprimindo todo um mundo de instintos e capacidades”. “Os
conhecimentos, a inteligência e a vontade que o camponês ou o trabalhador independente
desenvolvem, ainda que em modesta escala”, são tirados do operário e confiscados pelo
capital, que os concentra nas suas máquinas, na sua organização do trabalho, na sua
tecnologia: “As forças intelectuais do processo material de produção” se voltam, assim,
contra o operário, “como uma propriedade exterior a ele, uma força que o domina”. Tal
cisão entre o trabalho manual e o intelectual “faz do operário um trabalhador estropiado e
parcial”; e da ciência, “uma força produtiva independente do trabalho”, posta “a serviço do
capital” (MARX apud GORZ, 1996: 09). É possível apreender a coincidência da alienação aqui definida (resultante da apropriação das forças produtivas, e não apenas dos meios
de produção, o que convém ressaltar, pois, em Marx, o termo apropriação tem um sentido
forte, para muito além de seu significado jurídico), totalmente isenta de essencialismo
antropológico, com a que Sartre desenvolve na Critique de la raison dialectique, “em termos
de atividades serializadas, unificadas pelo campo material em prático-inércia e voltando
contra cada um, como sua negação pelos outros” (GORZ, 1996: 16). Discípulo de
Ferguson, Adam Smith expôs, em A Riqueza das Nações, as (in)conseqüências, por assim
dizer, da fragmentação capitalista-manufatureira do trabalho, indicando-a, logo no início
da referida obra, como origem das desigualdades sociais. Ferguson chega a dizer: “A arte
de pensar, num período em que tudo está separado, pode formar em si mesma um ofício
à parte” (apud GORZ, 1996: 27). A divisão manufatureira do trabalho, inerente ao
modo de produção capitalista, pressupõe, cada vez mais, “um abuso de maquinaria para
tornar o operário, desde pequeno, elemento de uma máquina parcial” (MARX apud
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
101
O ascetismo cristão, que de início se retirava do mundo para a solidão,
já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro, e
por mais da Igreja. Mas no geral, tinha deixado intacto o caráter
naturalmente espontâneo da vida laica no mundo. Agora avançava
para o mercado da vida, fechando atrás de si a porta do mosteiro;
tentou penetrar justamente naquela rotina de vida diária, com sua
metodicidade, para amoldá-la a uma vida laica, embora não para e
nem deste mundo [...] De acordo com a tendência puritana para as
interpretações pragmáticas, o propósito providencial da divisão do
trabalho é para ser reconhecido pelos seus frutos. Sobre isso Baxter se
expressa em termos que, mais de uma vez, relembram a conhecida
apoteose da divisão do trabalho de Adam Smith. A especialização das
ocupações leva, uma vez que possibilita o desenvolvimento das habilidades, a uma melhora qualitativa e quantitativa da produção, servin-
GORZ, 1996: 31). Adam Smith e Karl Marx sustentam que a divisão do trabalho
decorreu, essencialmente, de sua superioridade tecnológica; segundo Smith, a vantagem
quanto à sua repartição em tarefas sempre mais especializadas e parceladas é limitada, tão
só, pela dimensão do mercado (cf. GORZ, 1996: 43). Em primoroso ensaio, o doutor
Stephen A. Marglin - economista da Harvard University - rejeita a tese supracitada,
demonstrando que não fora, em verdade, “por razões de superioridade técnica que os
patrões adotaram as duas medidas decisivas que despojaram os trabalhadores do controle
sobre o produto e sobre o processo de produção: 1.º) o desenvolvimento da divisão
parcelada do trabalho que caracteriza o putting-out system, (‘baseado na distribuição da
matéria-prima aos artesãos a quem se compra o produto acabado’, in Roland Marx, ‘La
Révolution Industrielle en Grande-Bretagne’, A. Colin, Paris, 1970, p. 124); 2.º) o
desenvolvimento da organização centralizada, que caracteriza o sistema de fábrica (factory
system). Ao invés de aumentar a produção sob fatores constantes, essas inovações na
organização do trabalho foram introduzidas a fim de que o capitalista receba uma fatia
maior do bolo. A organização hierárquica do trabalho não tem como função social a eficácia
técnica, mas a acumulação. Interpondo-se entre o produtor e o consumidor, a organização
capitalista permite gastar, para a expansão das instalações e melhoria dos equipamentos,
muito mais do que fariam os indivíduos, se pudessem controlar o ritmo de acumulação do
capital. Tais idéias [...] podem ser agrupadas [...] 1. A divisão capitalista do trabalho [...]
foi adotada não pela sua superioridade tecnológica, mas porque garantia ao empresário um
papel essencial no processo de produção: o de coordenador que, combinando os esforços
separados dos seus operários, obtém um produto mercante (dividir para reinar). 2. Do
mesmo modo, a origem e o sucesso da fábrica não se explicam por uma superioridade
tecnológica, mas pelo fato dela despojar o operário de qualquer controle e de dar ao capitalista
o poder de prescrever a natureza do trabalho e a quantidade a produzir...” (apud GORZ,
1996: 40-41). A lúcida análise de Marglin é corroborada por André Gorz: “A tecnologia
capitalista e a divisão capitalista do trabalho não se desenvolveram, portanto, por causa da sua
eficácia produtiva em si, mas em razão da sua eficácia no contexto do trabalho alienado e
forçado; ou seja, trabalho dominado por um objetivo que lhe era desconhecido [...] A
história da tecnologia capitalista pode ser interpretada, no conjunto, como a história da
desqualificação dos agentes diretos da produção [...] desqualificação (ou desvalorização)
social de qualquer trabalho enquanto força produtiva” (GORZ, 1996: 83-85).
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ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
do assim ao bem comum, que é idêntico ao bem do maior número
possível. Até este ponto, a motivação é puramente utilitária e estritamente relacionada com o ponto de vista habitual de boa parte da
literatura secular da época [...] seu ethos era, numa palavra, o do
capitalismo... (WEBER, 2002: 112-120).
Habermas and the dialectic of reason (a principal sinótica angloamericana da obra de Habermas desde 1978, ano em que foi
publicado A teoria crítica de Jürgen Habermas - estudo pioneiro de
Thomas McCarthy) trouxe ao leitor de língua inglesa uma introdução
acessível e, no entanto, crítica à diferenciação racional weberiana:
O poder de explicação da ciência é apenas a manifestação mais brilhante
da especialização e da diferenciação racional. Como ele observa, engenhosamente: “Onde quer que o conhecimento empírico racional provocou,
de forma consistente, o desencantamento do mundo e sua transformação
num mecanismo causal, surge uma pressão definitiva contra as reivindicações dos postulados éticos de que o mundo é ordenado divinamente, isto
é, de que é um cosmos, com algum sentido ético” [...] Diante da demanda
científica pela justificação racional, todos os valores, inclusive os da própria ciência, perdem significado e valor. Weber está convencido de que
[...] essa perda de valor resulta do conflito entre a reivindicação racional e
a realidade, entre a ética racional e os valores que são em parte racionais,
em parte irracionais. Não é nada surpreendente que a principal vítima
dessa perda de valor seja a ética da responsabilidade e seu princípio de
reciprocidade universal. A extensão do número dos nossos “irmãos” para
abranger toda a humanidade já foi solapada pelo impulso racional-propositado da ética protestante (INGRAM, 1994: 73-77).
Sabe-se, ademais, que a especialização é alienante, coerência
peremptória que leva ao fatalismo, crença tão perigosa à ação, segundo
a qual, o que quer que façamos, um acontecimento ou se produzirá
necessariamente, ou não ocorrerá de modo algum.
O fatalista é um suicida moral, alguém que deixa funcionar
em si as regras do discurso, olvidando-lhes o sentido. Não se trata,
aqui, de defender o fatalismo, buscando exceções às regras, tampouco
de enfraquecer a lógica, mas de situá-la adequadamente.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
103
Desejar-se-ia que a necessidade lógica fosse a da existência,
quando é apenas a do possível. E o fatalismo não passa de um
exemplo intrigante desse contra-senso: a regra das contraditórias
significa não que o que é dito por uma inevitavelmente existe, e
o que é dito pela outra, não; mas que se uma das duas é
verdadeira, a outra é falsa:
Que o que é seja, quando é, e que o que não é não seja, quando não
é, eis o que é verdadeiramente necessário. Mas isso não significa que
tudo o que é deva necessariamente existir e que tudo o que não é
deva necessariamente não existir; porque não é a mesma coisa dizer
que todo ser, quando é, é necessariamente, e dizer, de modo absoluto, que é necessariamente. Dá-se o mesmo quanto a tudo o que não
é. É a mesma distinção que se aplica às proposições contraditórias.
Cada coisa, necessariamente, é ou não é, será ou não será, e, contudo, se são enfocadas separadamente estes ramos da alternativa, não
se pode dizer qual dos dois é necessário. Dou um exemplo. Necessariamente, haverá amanhã uma batalha naval ou não haverá; mas
não é necessário que haja amanhã uma batalha naval, nem necessário
que não haja. Mas que haja ou que não haja amanhã uma batalha
naval, eis o que é necessário. E posto que as proposições são verdadeiras, enquanto se conformam às próprias coisas, resulta evidentemente que, se estas últimas se comportam de modo indeterminado e
são em potência contrárias, dar-se-á necessariamente o mesmo quanto às proposições contraditórias correspondentes. É bem isso o que
se passa quanto aos seres que não existem sempre ou que não são
sempre não-existentes. É preciso, então, necessariamente, que uma
das duas proposições contraditórias seja verdadeira e a outra falsa,
mas não forçosamente que seja esta mais que aquela; com efeito, é
não importa qual e, embora uma seja verossimilmente mais verdadeira que a outra, não é, no momento, verdadeira ou falsa. Em
conseqüência, não é evidentemente necessário que de duas proposições opostas entre si, como a afirmação e a negação, uma seja verdadeira e a outra falsa. Com efeito, não é ao modo das coisas que
existem que se comportam as que, não existindo ainda, estão somente com possibilidade de ser ou de não ser, mas é do modo que
acabamos de explicar (ARISTÓTELES, 1997: 39).
104
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Ora, a lógica não autoriza a dizer que haverá futuramente
um clone humano. Diz somente que, se houver amanhã um
clone, nesse caso, a outra possibilidade, que não haja, estará
por certo excluída.
A necessidade inoculada pela regra das contraditórias é
hipotética, não absoluta. Isso porque o discurso nunca evoca senão
os possíveis; não força a existir ou a inexistir. Só o uso efetivo das
técnicas de clonagem permitirá que haja um clone humano, e deixar
de empregá-las é que o impedirá.
O fatalismo genético54 em voga, contudo, dedica-se ao como
(eficácia) clonar uma pessoa, antes mesmo de perguntar se deve
fazê-lo 55 , de indagar sobre o seu por quê (finalidade) - o que
demandaria uma nova moratória científica (cf. AZEVÊDO, 1995).
Em 1974, um colóquio reuniu os especialistas de engenharia genética em
Asilomar, cidadezinha do oeste dos Estados Unidos. Um grande acontecimento se deu então. Esses homens de ciência tomam coletivamente consciência de sua responsabilidade - uma responsabilidade difícil de assumir
54. As pesquisas nesse campo visam à manipulação de gens ou de gen-tes?! Insigne bioeticista
francês, Jean Bernard denuncia, a tal respeito, que “Importantes empresas americanas
propuseram recentemente registrar de antemão a marca do genoma humano, ou seja,
tornarem-se proprietárias de diversos elementos do genoma humano que se descobrirem
pouco a pouco. Essa propriedade poderia, em seguida, permitir explorações variadas,
grandes lucros. Certas autoridades oficiais americanas parecem absolutamente dispostas a
conceder essas marcas registradas. [...] É muito importante distinguir a invenção da
descoberta. O aparelho inventado ou a técnica nova que permite conhecer melhor os
glóbulos brancos e o genoma podem ser objetos de marcas registradas. Entretanto, os
glóbulos brancos e o genoma descobertos pela técnica não podem ter marcas registradas”
(BERNARD, 1998: 52).
55. O que nos arrasta até veleidades extremas, qual aquela apontada por Jean Bernard: “A
fertilização ‘in vitro’ (FIV) custa muito caro e pode acarretar pesados gastos para toda a
coletividade. Suas indicações devem ser cuidadosamente estudadas e estritamente limitadas. É necessário [...] preparar numerosos embriões. Quando a gravidez está em processo,
quando a criança nasce, os embriões não utilizados ficam no laboratório. São chamados
embriões supranumerários ou remanescentes. Seu destino levanta para o biólogo e para o
moralista graves problemas. Como se deve tratá-los? Guardá-los para uma outra gravidez
do mesmo casal? E, se assim, durante quantos anos? Doá-los a outro casal - suscitando
assim questões legais incertas, com o risco de tráfico clandestino, de mercado negro?
Utilizá-los para a pesquisa? [...] a quase totalidade das pesquisas sobre embriões podem
utilizar embriões animais. Matá-los? A morte desses embriões supranumerários algumas
vezes foi considerada como mal menor. Na verdade, não existem atualmente soluções
satisfatórias. Devemos esperar progressos da pesquisa que permitam o congelamento dos
óvulos, o que não tornaria mais necessária a preparação de vários embriões e faria desaparecer esse problema doloroso e insolúvel” (BERNARD, 1998: 37).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
105
plenamente no início de pesquisas cujas conseqüências ainda não chegamos
a perceber. Foi assim que, pela primeira vez, se estabeleceu uma moratória,
a partir de uma decisão tomada em comum. Durante dois anos, todas as
pesquisas sobre engenharia genética seriam suspensas em todos os laboratórios; esse prazo permitiria uma apreciação justa dos riscos, das relações entre
o tipo de experiência e o risco, e permitiria também que se estabelecessem
as proteções necessárias... (BERNARD, 1998: 49).
O século XX, aliás, é uma testemunha indelével do quanto é
preciso inverter nossa agenda de prioridades, pois o tempo de
maturação ética do homem difere, drasticamente, da celeridade
tecnológica. Hobsbawm (1995) acentua sem condescendências as
atrocidades e extremos de uma humanidade que, desconfio, põe-se a
quedar os olhos longe de tão notória discrepância.
Imcompreendida ou não, pouco importa, é legítima, de
qualquer sorte, a preocupação externada por Philippe (1996 a)
quando se refere à bioética como vestígio da enorme confusão,
engendrada pela modernidade, acerca do que é a ética, porquanto
representa um seu simulacro especializado e, por conseguinte,
irresponsável (MORIN, 1996).
... a hiper especialização [...] produz irresponsabilidade generalizada.
Estamos na era da irresponsabilidade generalizada. Eichmann dizia:
“Eu obedecia a ordens”, falando dos massacres em Auschwitz. Hannah
Arendt disse muito justamente que Eichmann não era um monstro
excepcional, era um homem extraordinariamente banal, era um homem comum, era um burocrata normal, que veio a encontrar-se em
circunstâncias excepcionais (BELLINO, 1997: 106-107).
Portanto, a especialização de um primeiro ciclo bioético indexado
ao tecnicismo anglo-americano faz com que ele se comporte, de inúmeras
formas, como uma presença holográfica e residual. No Brasil...
... estudos conduzidos por Lorenzo e Azevêdo (1998), sobre perspectivas atuais e tendências da Bioética neste país, revelaram conspícua
influência ideológica da Bioética anglo-americana. No período de 1982
a 1977, 44% das publicações brasileiras indexadas, apresentavam,
106
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
como tema principal, questões da tecnociência, enquanto a preocupação com os problemas sociais, econômicos e culturais estava presente
em apenas 16% dessas mesmas publicações (AZEVÊDO, 2000: 77).
Em outras palavras, voltemos uma vez mais ao caso tuskegee, e
a tudo que dele foi dito, para concluir que a especialização da bioética
tradicional implica o seu déficit de efetividade no que é pertinente a
indignidades d’outra ordem, ligadas à raça, miserabilidade,
analfabetismo etc.
Como pensar na justiça de igual acesso aos bens de saúde, se muitos
nascem, adoecem e morrem sem assistência médica? Como falar de
autonomia àquelas pessoas que sequer têm autonomia para administrar
a própria fome e são destruídos por ela? Como zelar pela beneficência
quando o próprio ser biológico das pessoas, principalmente crianças, é
atestado vivo da maleficência social? [...] Será hipocrisia não reconhecer
que, à margem da grandeza dos princípios em Bioética, existem multidões de pessoas cuja indigência não permitiu ao imaginário a construção
de uma auto-imagem dos próprios direitos. E se a proposta da Bioética
é de autêntico respeito a qualquer ser humano, seja ele quem for, ignorar
as inter-relações entre os princípios da Bioética e a pobreza é negar a
própria ética dos princípios (AZEVÊDO, 2000: 78).
Quais seriam, no entanto, as razões histórico-ideológicas da
especialização da bioética?
Naquilo que concerne à inovação utilitária (WIGLEY, 1996;
KUHN, 1997), nada é tão desenvolto quanto a pesquisa científica.
Nada! O que não significa, em absoluto, algo bom e ético (cf.
FOUREZ, 1995).
A representação de um princípio objetivo, enquanto este princípio
é obrigatório para uma vontade, chama-se de comando (da razão)
e a fórmula do comando se chama de IMPERATIVO. Todos os
imperativos são expressos pelo verbo dever e indicam por isso a
relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade que, segundo sua constituição subjetiva, não é necessariamente determinada
por esta lei (uma obrigação) [...] Todas as ciências têm uma parte
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
107
prática, consistindo em problemas que supõem que algum fim é
possível para nós e em imperativos que enunciam como este fim
pode ser atingido. Esses imperativos podem, pois, ser chamados
em geral de imperativos da HABILIDADE. Que o fim seja razoável ou bom, não é absolutamente disso que se trata aqui, mas
somente do que é preciso fazer para atingi-lo. As prescrições que o
médico deve seguir para curar radicalmente seu paciente, as que um
envenenador deve seguir para matar com certeza são de igual valor,
enquanto lhes servem, umas e outras, para cumprir perfeitamente
seus propósitos (KANT, 1997: 173-175).
E o (neo)liberalismo, de inspiração anglo-saxônica e protestante
(WEBER, 2002), é o regente dessa voracidade inovadora do
conhecimento científico de ponta56, que instiga não o consumo da
produção, e, sim, a “produção do consumo” (CAMPBELL, 2001:
57) - através da obsolescência programada ou antecipada -,
intensificando a degradação de nosso ecossistema (ALTVATER, 1995;
JAMESON, 1996; DREIFUSS, 1996; RIFKIN, 1996).
Curiosidade e desconhecimento designam um só e mesmo comportamento global a respeito do real, comportamento generalizado e sistematizado pela prática das comunicações de massa e, portanto, característico da nossa sociedade de consumo: trata-se da recusa do real,
baseada na apreensão ávida e multiplicada dos seus signos. A propósito, podemos também já definir o lugar do consumo: é a vida cotidiana.
Esta não é apenas a soma dos factos e gestos diários, a dimensão da
banalidade e da repetição; é um sistema de interpretação. A quotidianidade
constitui a dissociação de uma práxis total numa esfera transcendente,
autônoma e abstracta (do político, do social e cultural) e na esfera
56. Embora o pleito liberal não tenha a universalidade e homogeneidade que preconiza
(BORÓN, 1996). Quando observada, em escala mundial, a aplicação das políticas
liberais de reconstrução do tecido sócio-econômico, infere-se, após três qüinqüênios de
hegemonia desse paradigma, que elas foram implementadas notadamente em alguns
países europeus, sobretudo os anglo-saxões, nos Estados Unidos, no Canadá e na América
Latina. Segundo Weber, “Os defensores extremados do livre-comércio... concebiam (a
economia pura) como um retrato adequado da realidade ‘natural’, isto é, da realidade não
perturbada pela estupidez humana - e prosseguiam visando a estabelecê-la como um
imperativo moral, como um válido ideal normativo -, enquanto que ela é apenas um tipo
conveniente, a ser usado na análise empírica” (WEBER, 1969: 44).
108
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
imanente, fechada e abstrata, do privado. O indivíduo reorganiza o
trabalho, o lazer, a família, as relações, de modo involutivo, aquém do
mundo e da história, num sistema coerente fundado no segredo do
privado, na liberdade formal do indivíduo, na apropriação protectora
do ambiente e no desconhecimento. A quotidianidade, para o olhar
objectivo da totalidade, é pobre e residual: por outro lado, porém,
mostra-se triunfante e eufórica no esforço de autonomização total e
de reinterpretação do mundo para uso interno. Aí se situa o conluio
profundo e orgânico [...] da quotidianidade como enclausuramento, o
que seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma
participação no mundo. Tem necessidade de alimentar-se das imagens
e dos signos multiplicados da vertigem da realidade e da história
(BAUDRILLARD, 1995: 25-26).
Convém ressaltar a exploração conjuntural da pesquisa científica
pelo mercado liberal globalizado57, uma vez que a lucratividade se
encontra atrelada, numa curvatura ascendente, à produção e uso
constantes de inovações tecnológicas.
O ethos da ciência contemporânea é inovador porque neoliberal
(BELLAMY, 1994), reverberando, assim, uma conexão profana: para
inovar, tem-se que a tudo desfazer (LYOTARD, 1990; INGRAM,
57. Se o Iluminismo é a expressão moderna do modelo civilizatório posto (cf. ROUANET,
1998: 97), o liberalismo é, por sua vez, a expressão econômica do signo iluminista; e a
globalização, o reflexo da expansão hodierna do capitalismo liberal: “... a globalização não
é nada mais, nada menos do que a continuação do sistema capitalista [...] A vocação do
capitalismo é sua expressão universal, revolucionando os outros sistemas. Mudando todos
os demais sistemas, submetendo-os. Isso é Marx [...] O que há de novo, nesse mesmo
processo, hoje? Muita coisa. Primeiro, o que você mencionou: comunicação. Comunicação
instantânea, em tempo real [...] Segundo, temos a informática dentro do sistema produtivo.
Ela permite a distribuição espacial da produção de uma maneira nunca pensada antes [...]
Isso vem com as multinacionais [...] O que temos hoje é a interligação dos mercados e a
interligação do sistema produtivo [...] Isso é um aspecto da globalização. O aspecto da
produção [...] Mas há um outro aspecto, que é o financeiro, o capitalismo financeiro [...] A
riqueza virtual somou-se à globalização da produção e à interligação dos mercados. Os anos
70 e 80 não eram assim. Inclusive, os bancos deixam de ter a função principal nesse sistema,
cedendo lugar aos fundos de pensão e fundos de especulação [...] o virtual passou a
comandar o real. A especulação pode acabar comandando o processo produtivo [...] Porque,
como tudo passou a ser expectativa, os gestores da economia, no mundo inteiro, funcionam
olhando para o que chamam de ‘mercado’, e o que chamam de mercado é isso [...] No limite,
o que está acontecendo, em conseqüência dessa globalização, é que você não tem mais
autoridade. Nenhum banco central tem [...] Precisamos, colocando as coisas utopicamente,
de um governo mundial” (CARDOSO, 1998: 81-87). Há semelhante análise em Cardoso
e Faletto (1979), Fishlow e Haggard (1992), Furtado (1993) e Drucker (1997).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
109
1994; BOURDIEU, 1996). Eis o paradoxo do homem que não
pode inventar, cotidianamente, sua desconstrução radical (SANTOS,
1988; 1995), apesar de desejá-lo.
O liberalismo fez do saber científico seu discurso (ou capital)
e do método, a própria ciência, o instrumento de sua lógica
utilitária-mercantil. Conseqüentemente, esta última perdeu o
interesse por conteúdos, atolando a si mesma em rituais
metodológicos que anseiam superá-los.
A ciência pré-moldada é o flautista de Hamelin dos contos infantis;
um valor carente de postulações éticas, a omitir sua tática espoliativa
(GIDDENS, 1991; ANDERSON, 1992; MORIN, 1996).
Consumida qual um valor de troca, em detrimento de seu valor
de uso - no processo de formação ético-cultural da pessoa humana -,
os cânones e procedimentos científicos se definem como a nómisma
capitalista, cujo formalismo intrínseco (AGLIETTA e ORLÉAN, 1990;
GIRARD, 1990; QUADROS, 1993) serve mais à exploração alheia,
do que ao atendimento das necessidades materiais da sociedade.
A moeda torna-se, por assim dizer, em virtude de uma convenção,
meio de troca para o que nos faz falta. É por isso que se deu a ela o
nome de nómisma, porque ela é de instituição não natural, mas legal
(nómos: lei), e está ao nosso alcance, seja mudá-la, seja decretar que
ela não servirá mais (ARISTÓTELES, 1997: 33).
Pondera Lyotard (1998: 7):
... as novas tecnologias, pelo fato de tornarem os dados úteis às
decisões (portanto, aos meios de controle) ainda mais instáveis e
sujeitas à pirataria, não podem senão exigir urgência de seu reexame.
Em vez de serem difundidos em virtude de seu valor “formativo” ou
de sua importância política [...], pode-se imaginar que os conhecimentos sejam postos em circulação segundo as mesmas redes da
moeda, e que a clivagem pertinente a seu respeito deixa de ser
saber/ignorância para se tornar, como no caso da moeda, “conhecimentos de pagamento/conhecimentos de investimento” [...] Neste
caso, tratar-se-ia tanto da transparência como do liberalismo. Este
não impede que nos fluxos de dinheiro uns sirvam para decidir,
110
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
enquanto outros não sejam bons senão para pagar. Imaginam-se,
paralelamente, fluxos de conhecimento passando pelos mesmos
canais e de mesma natureza, mas dentre os quais alguns serão reservados aos “decisores”, enquanto outros servirão para pagar a dívida
perpétua de cada um relativa ao vínculo social.
Experimentando uma ideologização crescente, a ciência
moderna se vê reduzida a um fator metodológico inquisitivo - cuja
marca é a da provisoriedade -, que inova a fim de permanecer igual,
conservando seu status quo: a visão triunfante da ciência não é apenas
laudatória; é, antes de tudo, ideológica.
Por outro lado, o elogio ao método-ciência tende a filtrar
conteúdos (maniqueísmo), visto como não está “em jogo” somente a
análise pura, neutra e imparcial da realidade, mas um inconfessável
olhar seletivo acerca do objeto pesquisado.
A investigação científica, de fato, simula a neutralidade de
seus interesses, muitas vezes sem perceber que toma partido ao fazêlo. Ou não seria a indefinição um posicionamento, conquanto a não
posição seja inexeqüível? A imparcialidade da ciência é panfletária;
um compromisso sistemático, não um fim tangível.
Logo, a ciência emancipa o cotidiano enquanto sofisma,
legitimando a demagogia de um progresso tecnológico que, na
contramão da história, dá ensejo a novas formas de ignorância.
Dentre as cem melhores obras de seu gênero, lê-se em A estrutura
das revoluções científicas:
... os primeiros estágios do desenvolvimento da maioria das ciências têm-se caracterizado pela contínua competição entre diversas
concepções de natureza distintas [...] Ao examinar a ciência normal [...] buscaremos descrever essa forma de pesquisa como uma
tentativa vigorosa e devotada de forçar a natureza a esquemas
conceituais fornecidos pela educação profissional [...] A ciência
normal [...] é baseada no pressuposto [arbitrário] de que a comunidade científica sabe como é o mundo [...] A competição entre
segmentos da comunidade científica é o único processo histórico
que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de
outra... (KUHN, 1997: 23-27).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
111
Obviamente, a pesquisa científica tira proveito dessa
ignorância, prenunciando uma metanarrativa tecnicamente possível,
embora não sustentável, porque arrancada da estonteante degradação
humana e ambiental.
Parte significativa da controvérsia ora examinada pressupõe a
espantosa fragmentação da ciência, que a desvincula de qualquer
centralidade ou autoridade externa, restando-lhe a autotranscendência,
a oportunidade de constituir-se por e a si mesma, refletindo a lógica
do mercado auto-regulado (POLANYI, 1980).
Lyon (1998) assevera que esse auto-referenciamento da ciência
fora viabilizado com a quebra da aliança entre a razão e a tradição
filosófica pré-cartesiana, levada a termo pelo Iluminismo58:
58. Adorno e Horkheimer encaram o Iluminismo como um processo de ruptura entre o
conhecimento racional e sua herança clássica. Para Horkheimer, há uma teoria da razão
objetiva, oriunda do legado platônico-aristotélico e passando através dos escolásticos, que
“... não focaliza a coordenação de comportamento e propósito, mas conceitos - não importa
o quanto nos pareçam hoje mitológicos - sobre a idéia do bem maior, sobre o problema do
destino humano e sobre a maneira de serem atingidos os objetivos últimos”
(HORKHEIMER, 1947: 5). O Iluminismo transforma pensamento em matemática,
qualidades em funções, conceitos em fórmulas, e a verdade em freqüências estatísticas de
médias; n’outras palavras, “o pensamento se transforma em mera tautologia” (Id. Ibid.:
97), e o desconhecido perde seu transcendente significado clássico, tornando-se alguma
coisa relativa às capacidades de cálculo disponíveis: “A redução do pensamento a um
aparelho matemático esconde a sanção do mundo como seu próprio instrumento de
mensuração. O que parece ser o triunfo da [...] racionalidade, a sujeição da realidade toda
ao formalismo lógico, é pago pela obediente submissão da razão ao que é dado diretamente.
O que é abandonado é a total reivindicação e abordagem do conhecimento: a compreensão
do que é dado como tal [...] A factibilidade ganha o dia...” (ADORNO e HORKHEIMER,
1985: 26-27). A despeito das proclamações dialéticas de Karl Marx, que pretendeu ter
despojado o racionalismo do século XVIII de qualquer ímpeto mecanicista, seu conceito
de razão está profundamente radicado na tradição iluminista, à medida que ele supunha o
processo histórico das forças de produção como algo racional em si mesmo e, portanto,
emancipatório (Marx jamais percebeu que, na sociedade moderna, as forças produtivas
haviam conquistado seu próprio impulso institucional independente, subordinando,
desse modo, toda a vida humana a metas que nada têm a ver com a emancipação humana).
Habermas, como nenhum outro, ocupou-se crítica e sistematicamente de uma tal questão.
Em todo caso, a “liquidação” da razão, enquanto “fator de compreensão ética, moral e
religiosa” (HORKHEIMER, 1947: 18), não teria sido consumada no decurso dos últimos séculos não fosse a concomitante desnaturação das linguagens filosóficas e dos negócios cotidianos. Divorciando palavras e conceitos de seu conteúdo intrínseco, o Iluminismo
desencadeou um “processo de corrupção da fala” (RAMOS, 1989: 10), que conduziu à
decadência cultural. Ensina Horkheimer que “A linguagem foi reduzida a mais um
instrumento no gigantesco aparelho de produção, na sociedade moderna. Toda sentença
que não equivale a uma operação parece ao leigo tão desprovida de significado quanto é
assim considerada pelos semânticos contemporâneos, que entendem que aquilo que é
puramente simbólico e operacional, quer dizer, a sentença puramente sem sentido, faz
112
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
O afastamento da razão com relação ao medievalismo e à tradição
levou muitos a acreditar que os poderes humanos podiam promover
um avanço maior e mais rápido [...] Mas, com o destaque ao papel da
razão e com a depreciação da intervenção divina, foram lançadas as
sementes para uma variante secular da Providência, a idéia de Progresso [...] A fé no progresso [...] tornou a reviver artificialmente através de
um desenvolvimento científico e tecnológico enorme e de uma explosão de consumo sem precedentes (LYON, 1998: 14-15).
O apelo emancipatório da intervenção científica encobre um
projeto de auto-suficiência, de bastar-se a si própria. E se houver a
Salvação, à ciência incumbirá discipliná-la: o cientificismo que nega
o pontífice faz-se papa (cf. DEMO, 1998).
A tal respeito, Portocarrero (1996) afirma, seguindo os passos
de Foucault (1980), que a história da verdade científica tem sido a
de sua imposição. A ciência implica o poder, e vice-versa; tanto que
compreendê-la significa entendê-lo.
sentido [...] Na medida em que as palavras não são usadas com o propósito evidente de
calcular tecnicamente probabilidades importantes, ou para outros objetivos práticos, entre
os quais se inclui o relaxamento, correm elas o risco de se tornarem suspeitas [...] porque
a verdade não constitui um fim em si mesma” (HORKHEIMER, 1947: 22). Horkheimer
descreve o homem moderno qual um “ego contraído”, prisioneiro de um presente efêmero,
“esquecendo-se de usar as funções intelectuais pelas quais foi capaz, um dia, de transcender
sua efetiva posição na realidade” (Id. Ibid.: 22). O indivíduo moderno perdeu a capacidade de usar a linguagem para transmitir significações, sendo capaz, preferentemente, de
exprimir interesses em jogo. Por conseguinte, o referido autor se recusa a aceitar o usual
comportamento das pessoas (casuísmo), na sociedade moderna, como base para decidir o
significado da racionalidade, tanto que “A denúncia daquilo que é hoje chamado de razão
é o maior serviço que a razão pode prestar” (Id. Ibid.: 47 e 187). Em uma das mais agudas
e expressivas passagens da sociologia frankfurtiana, Horkheimer nos diz que, “Gradualmente, o homem tornou-se menos dependente de padrões absolutos de conduta, de idéias
vinculadoras em termos universais. Considera-se tão completamente livre que não precisa
de nenhum padrão, exceto o seu próprio. No entanto, paradoxalmente, esse aumento de
independência conduziu a um aumento paralelo de passividade. Sagazes como se tornaram as estimativas individuais no que se refere aos meios ao alcance do homem, a escolha
que ele fez de seus fins, que anteriormente se correlacionavam à crença numa verdade
objetiva, passou a ser desprovida de argúcia: o indivíduo, expurgado de todos os resquícios de mitologias, incluindo a mitologia da razão objetiva, reage automaticamente, de
acordo com os padrões gerais de adaptação. Forças econômicas e sociais tomam o caráter
dos cegos poderes naturais que o homem, para a preservação de si mesmo, precisa
dominar, ajustando-se a elas. Como resultado final do processo, temos de um lado a
pessoa, o ego abstrato despojado de toda a substância, exceto de sua tentativa de transformar tudo que existe no céu e na terra em meios de autopreservação e, de outro lado, uma
natureza vazia, degradada à condição de mero material, mera matéria prima a ser dominada, sem outro propósito que o da sua pura dominação pelo ser humano” (Id. Ibid.: 97).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
113
Contendo uma das abordagens mais fecundas da vida
acadêmica, a história da verdade expõe a ideologia dos saberes,
delatando os laços simbióticos entre as relações de poder e a produção
de veridicidades científicas, pois “seu próprio discurso, enquanto
revelava uma determinada verdade, descobria relações políticas onde
normalmente elas não eram percebidas” (FOUCAULT, 1979: 70).
Prometéica, a ciência de tudo e do todo é, também, a ciência
do descartável, cuja “opacidade” (OMNÉS, 1996: 104), quem diria,
acarreta uma certeza: quanto mais sabemos, menos compreendemos.
Um ponto sobre o qual muitos estão de acordo é que a pesquisa
científica não produz conhecimento e, sim, informação (dados). Em
meio a tudo isso, o paradigma por ela construído acaba sendo algum
labirinto impenetrável, um esquema de suspensão do real onde a
“experimentação com seres humanos está destinada a ocupar o lugar
da experiência natural...” (JONAS, 1994: 117).
Após denúncias como as do caso tuskegee, porém, a ciência
vem postulando a validação ética de seu ímpeto inovador. E o
protestantismo anglo-saxão, tendo se apropriado do pensamento
científico, assimila agora a bioética, ideologizando-a e, ato contínuo,
terceirizando-a enquanto instância de legitimação ético-científica (daí
porque a batizei de bioética BASP, um cavalo de tróia da ciência liberal).
Parece que a enunciada - e furtiva - “terceirização” da bioética
se dá mediante a desnaturação de sua índole epistemológica,
tornando-a uma epistemologia aplicada.
Explico: ao confrontar o pensamento científico em incontáveis
frações ideais, tal epistemologia se capilariza proporcionalmente à
diferenciação da ciência (cf. BELLINO, 1997: 57), que, por conta
disso, assenhorea-se do ato epistemológico-aplicado, seu espelho
de improviso 59 - talvez isso exponha as razões de se atribuir à
bioética o status de ciência.
O problema é que, para usarmos bem o espelho, precisamos, antes de
mais nada, saber que temos um espelho à nossa frente (condição essencial,
também nos estágios lacanianos, para que o espelho não seja simples
59. No sentido de “Produto intelectual inspirado na ocasião em que é feito” (ROCHA, 1996: 332).
114
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
ilusão ou experiência alucinatória). Tendo apurado que o que percebemos é uma imagem especular, partimos sempre do princípio de que
o espelho “diga a verdade” (ECO, 1989: 17).
Na condição (hegemônica dentro do primeiro ciclo bioético)
de epistemologia aplicada, a bioética se perfaz à imagem e semelhança
da ciência - a qual deveria inspirar -, delineando um sistema
tendencialmente factual, capaz de promover uma reflexão tão figurativa
quanto inconclusiva, porque segmentada, da eficácia científica em si.
Nietzsche (1997: 262) reivindica a morte de Deus e a ciência
liberal, a da epistemologia. “O Deus que via tudo, mesmo o homem: esse
Deus devia morrer! O homem não suporta que tal testemunha viva”.
Do que vai dito acima, a bioética BASP recrudesce o
historicismo de um Heráclito, que constrange o homem à imanência
de uma práxis mutante, secular e imorredoura, onde se alastra o
relativismo ontológico e ético (cf. SCOLA, 1998 a: 113), “cujo
verdadeiro rosto é o niilismo” (PETRINI, 2003: 47).
Em trabalho eloqüente e de leitura agradabilíssima, Lyon
(1998: 18) comenta que o niilismo...
... é o conceito nietzscheano que mais de perto corresponde a este
sentido de realidade fluida e oscilante. Quando a irrequieta atitude de
dúvida da razão moderna se volta para a razão em si, o resultado é o
niilismo. Quer na arte e na filosofia, quer na ciência, a racionalidade é
atacada pelo niilismo. Os assim chamados sistemas de razão, afirma
Nietzsche, são na verdade sistemas de persuasão.
O romancista político Ivan Turguêniev associa o niilismo
à crença no progresso científico, que, segundo ele, emerge de
um arraigado pessimismo sócio-cultural. Em Pais e Filhos, obra
de estilo afável (que contrasta com as de seus contemporâneos
Tolstoi e Dostoiévski, pontuadas por som e fúria), Turguêniev
fala de uma situação comum à Rússia pré-revolucionária, na
qual a ciência e um bom sapateiro seriam mais úteis que a religião
e a poesia de Goethe.
A paixão da humanidade pela ciência custa-lhe o niilismo,
donde se precisa antes de sapatos...
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
115
- O que Bazárov é? - sorriu Arkádi.
- Tio, o senhor quer que eu lhe diga?
- Faça-me esse favor, meu sobrinho.
- É um niilista.
- Como? - perguntou Nikolai Petróvitch.
- Ele é um niilista - repetiu Arkádi.
- Niilista - disse Nikolai Petróvitch. - Vem do latim nihil, nada, até
onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que... que
não admite nada?
- Digamos: que não respeita nada - emendou Pável Petróvitch.
- Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico - observou
Arkádi.
- E não é a mesma coisa? - indagou Pável Petróvitch.
- Não, não é. O niilista é uma pessoa que não admite nenhum princípio sem provas (TURGUÊNIEV, 2004: 56).
PHILIA BIOÉTICA: UMA ATIVIDADE MORAL DIGNA
É provável que a bioética da amizade seja, equivocadamente,
considerada uma utopia, cuja idéia fundamental, a impelir
revolucionários, visionários..., consiste numa energia inexaurível, que
açoita a história consumada e em andamento: embora soe demasiado
estranho, a utopia participa da realidade sendo irrealizável, ou deixa
de sê-la (MANNHEIM, 1939; SZACHI, 1972; DUMONT, 1975;
MORUS, 1985; LUIZZETTO, 1987; CERTEAU, 1994).
A bioética tradicional, contudo, não compreende - porque
também ela é apaixonada pela racionalização científica - que as
pesquisas em seres humanos se baseiam no amor-paixão ao formalismo
autônomo (algo que o longa-metragem O óleo de Lorenzo retrata
fidedignamente), eclipsado entre a semiologia e o fetiche de seu
pretenso discurso racional-estóico.
Ora, discutir a paixão científica pressupõe uma reflexão sobre
alguns aspectos essenciais do amor-paixão; e muitos se dispuseram a
conhecê-lo: Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Spinoza,
Hume, Kant, Freud, Scheler, Ricoeur (MONDIN, 1980: 120).
Mas optei por concentrar-me no eixo aristotélico-tomista,
devido à similitude com minha proposta de uma philia bioética.
116
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Assim, tento explicar o amor-paixão invocando o que Tomás de
Aquino dele nos diz ao longo das questões 22 a 48 da “Prima
secundae” de sua Suma teológica.
Encontrando abrigo nos textos aristotélicos60, o que Tomás de
Aquino escreve sobre as paixões em sua teologia científica há de ser
retomado filosoficamente, pois, ao tratar do amor-paixão, o tomismo
desenvolve uma antropologia filosófica que precisa ser redescoberta.
Se o teólogo Tomás de Aquino impõe a si mesmo o problema das
paixões, é porque deseja estudar a pessoa do Cristo adequadamente. Não
esqueçamos que antes do Angélico, os Padres da Igreja estiveram sob a
influência dos estóicos, que condenavam a paixão, considerando-a nociva.
Os estóicos pregavam um extremismo voluntarista: o
autocontrole, enquanto domínio pleno de si, deve ofuscar as
paixões, a fim de que no homem não haja mais que a sua vontade
(EPICTETO, 1964: § 1º).
O compromisso seletivo dos estóicos é filtrar a pessoa, retendo
as paixões e, desse modo, o impulso do amor. Mas em si, a paixão
não é má; pelo contrário: é ela uma riqueza. O condenável é a paixão
excessiva, que subjuga todo o resto na pessoa humana, impedindo-a
de orientar sua vida de maneira espiritualizada.
As paixões são um tipo de apetite ou orientação; são
capacidades de amar ao nível de nosso conhecimento e sensibilidade
(situa-se em seu devir), sendo em nós o que reclama mais ser educado
e enobrecido, elevando-se do sensível ao espiritual.
60. De acordo com Aristóteles, o que determina a amizade é a amabilidade própria do amigo:
A ama B - com um amor espiritual - por ele mesmo (objetividade), e não porque B ama A;
e vice-versa. Essa é a peculiar reciprocidade da philia: desde que saibamos que alguém nos
ama por nós mesmos, nosso amor pode, então, despertar recíproca e verdadeiramente. Se
amarmos o outro porque ele nos ama, amá-lo-emos por nós e não por ele mesmo, o que seria
mísero e egoísta. No amor de amizade, ama-se o outro porque ele é amável; porque ele se
apresenta qual um bem pessoal, capaz de atrair-me por suscitar em mim um amor. Tal
reciprocidade, outrossim, é condicionada por uma exigência de lucidez: a paixão não é
espiritualizada senão quando lúcida. Amo o outro porque não apenas ele é meu bem, mas
também o tenho escolhido. Contudo, se se quer livre (ultrapassando o ardor da paixão), a
referida escolha só pode realizar-se na lucidez, cuja plenitude reivindica que o outro amado
nos ame também, e que o saibamos. Destarte, a philia é o nó que amarra, um ao outro, dois
amores de benevolência, sendo, por isso, a mais perfeita expressão do amor pessoal
(ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 34 - 1156 a 1s). Tanto que na amizade, vejome através do amor do outro; e, assim, posso olhar-me de uma forma mais apropriada, pois
aquele que me dedica seu amor espiritual, vem comunicar-me o olhar que possui a meu
respeito, um olhar mais penetrante em relação àquele que poderia ter sobre mim mesmo.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
117
Em verdade, as paixões não têm em si nenhum desígnio,
tampouco nos fazem atingir nosso fim ou bem espiritual, posto que
seu domínio é anárquico e indissociavelmente ligado ao imaginário
(PHILIPPE, 1999: 92-95), precisando ser ultrapassadas.
Sem embargo, cada amor ou apetite corresponde a um bem, e
no ser humano (co)existem diversos apetites: o bem natural diz
respeito ao amor instintivo; o sensível concerne à paixão ou amor
passional; e o bem espiritual, ao amor de amizade, que procede de
um julgamento livre, sendo nossa vontade de amar espiritualmente.
E, depois de evidenciar a diversidade de nossos apetites, santo
Tomás (1980: I-II, q. 26, a. 1) conclui: “Em cada um desses [...] o
amor é o princípio do movimento que tende para o fim amado”.
O amor nasce graças a uma conaturalidade entre o amante e o
bem que ele ama. Simultaneamente, é o próprio amor que me
conaturaliza com o bem que amo, seja em relação ao apetite natural, seja
no que é pertinente ao sensível, quer ainda quanto ao apetite espiritual.
Creio que o amor transforma o homem no bem que lhe
atrai. Se alguma coisa me seduz, é porque suscita em mim um
certo amor, ou seja, é porque existe um “parentesco” radical entre
esse bem e minha pessoa.
“Santo Tomás expresa la originalidad del ‘amado’ humano con
una fórmula aristotélica: el amado es ‘alter ipse’ [ετεροζ αυτοζ]: ‘El
virtuoso se relaciona con el amigo como a sí mismo, porque el amigo de
algún modo es otro yo’” (CORRAL, 2001: 313). Hedwig (1990: 253)
ensina: “Die Begriffe der Intersubjektivität und des alter ego, die vor
allem für die Phänomenologie durch den Rückgang in die Einsamkeit
des transzendentalen Subjektes zum Problem wurden, sind zwar
terminologisch neu, aber der Sache nach weniger modern, als es scheint”.
Intermediário entre o apetite instintivo e o amor espiritual,
“A paixão é o efeito do agente (agentis) no paciente (in patiente) [...]
O apetecível (appetibile) move o apetite, introduzindo-se-lhe (faciens
se), por assim dizer, na sua intenção, e o apetite tende para o
apetecível...” (TOMÁS DE AQUINO, 1980: I-II, q. 26, a. 2, c.).
O efeito de um bem sobre aquele que o ama não é outra coisa
senão o apetite. Portanto, a causa específica do amor é o bem que se
ama. Quanto à paixão, cujo efeito acarreta uma captura mútua, é ela
um amor de cobiça.
118
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
O amor passional se bifurca em duas modalidades: o
concupiscível e o irascível. Naquele, oriento-me ao bem sensível
imediato, amando-o espontaneamente. Já no apetite irascível (sempre
a serviço do concupiscível), amo o bem ao alcance de meus sentidos
à medida da dificuldade para conquistá-lo: percebe-se, aqui, um
elemento intelectual, tão presente nas pesquisas científicas.
No amor-paixão não há gratuidade; o bem sensível é amado
não por ele mesmo, mas por nós. O pesquisador se apaixona pelo
sujeito de pesquisa em razão, sobretudo, de sua utilidade - e viceversa -, sendo que “o voluntário supõe conhecimento. Ora, a
concupiscência corrompe o conhecimento, segundo o Filósofo no
livro VI da Ética: ‘O prazer ou a concupiscência do prazer corrompem
a ponderação da prudência’. Logo, a concupiscência causa o
involuntário” (Id. Ibid., 1980: I-II, q. 6, a. 7, 3).
Suponho que haja uma ambigüidade perturbadora quando o
objeto da paixão é um ser humano, posto que significa amá-lo não
enquanto pessoa, gratuitamente, mas como um bem sensível e útil.
Através das paixões, busca-se a si próprio, o que explica as
indignidades praticadas no caso tuskegee, típico exemplo de paixão
científica levada ao extremo num contexto de pesquisa. Em O LivreArbítrio, a patrística agostiniana lembra que a essência do pecado é a
submissão da razão às paixões. Declara o Bispo de Hipona: “O mal
provém da paixão interior [...] é claro que em todas as espécies de
ações más é a paixão que domina” (AGOSTINHO, 1995: I, 1, 3, 8).
A paixão enseja um egocentrismo extraordinário... Recorrendo
à psicologia, penso que ela se opõe, diametralmente, ao amor oblativo.
Entretanto, insisto que a paixão enquanto tal não é má, embora deva
ser ultrapassada e espiritualizada, subsistindo como enraizamento
passional do amor em sua plenitude.
***
Afinal, a conclusão.
CONCLUSÃO
ESTATUTO PRÓPRIO
DA PHILIA BIOÉTICA
Uma das teses centrais do presente estudo consiste em
demonstrar que o primeiro ciclo bioético transpira modernidade. O
background de tal coerência é a sua formalização, na qual a observância
de regras, modelos, termos de consentimento (TCLE) substitui a
preocupação com padrões éticos.
Não por acaso, o filósofo e teólogo canadense Jean-François
Malherbe, titular da cátedra de ética aplicada da Universidade de
Sherbrooke, define a bioética como o estudo das normas que devem
reger nossa ação no domínio da intervenção técnica do homem sobre
a sua própria vida (cf. MALHERBE, 1979).
A profissionalização da bioética, com seu viés deontológico,
representa o eixo dessa formalização, que converte o bom no funcional,
moldando “especialistas sem espírito [Fachmenschen ohne Geist],
sensualistas sem coração [Genussmenschen ohne Herz]” (WEBER, 2002:
182) prontos a desempenhar papéis convenientes. Profissionais
travestidos de bioeticistas conservam a indiferença de seu know-how e,
independentemente de ser uma fonte real de graciosidade, [a indiferença] traz consigo outra vantagem. É que, seja qual for a ação que acompanhe, não importa quão trivial, ela não só demonstra a habilidade da
pessoa que a pratica, mas também, muitas vezes, faz com que a mesma
seja considerada bem mais importante do que realmente é. E isso porque leva os observadores a crer que um homem que age bem com tanta
facilidade deve ser possuidor de uma habilidade ainda maior do que a
que de fato tem, e que se quisesse se dar a maiores trabalhos e esforços,
poderia fazer as coisas melhor ainda (CASTIGLIONE, 1976: 70)61.
61. Baldesar Castiglione coloca a si mesmo na companhia de Cícero. Entretanto, a leitura
cuidadosa de De Officiis tende a demovê-lo de tal pretensão, pois o referido orador romano
se ateve, no que tange às normas de conduta, àquilo que é bom de modo geral, e não
episódico: “Muito embora [a] excelência moral [de uma conduta humana] não seja de
modo geral enaltecida, ainda assim é digna de respeito; e, por sua própria natureza, merece
louvor, muito embora não seja louvada por ninguém” (CÍCERO, 1975: 17).
122
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Ingram (1994: 75) acredita que...
... o aspecto racional-valorativo de uma ética de princípios seria eclipsado pelas demandas racional-propositadas do vocacionalismo ético.
“A limitação do trabalho especializado, com a renúncia à universalidade faustiana do homem que envolve, é uma condição para qualquer
trabalho valioso no mundo moderno; por isso as ações e a renúncia se
acompanham necessariamente”. A perda de liberdade trazida por tal
renúncia é mais evidente para o burocrata profissional, que “não passa
de mera engrenagem num mecanismo de movimento perpétuo que lhe
prescreve uma rotina essencialmente fixa”.
À guisa de exemplo, cito a estrutura multicêntrica de ensaios
clínicos que, supostamente descentralizados, implementam uma
especialização periférica, excluindo muitos pesquisadores do processo
decisório central.
Ao invés de promover sua descentralização, a pesquisa científica,
assim organizada, realiza, quando muito, uma desconcentração
funcional de tarefas, na qual os pseudocentros, sobretudo aqueles
localizados em países de menor projeção tecno-científica, ficam
subordinados a um ou, se quiser, alguns poucos núcleos de comando.
Por conseguinte, a bioética, relacionada aos trabalhos
desenvolvidos em “centros” marginais de investigação científica, afigurase, quase sempre, tão ou mais especializada (e alienada) que eles próprios.
Mas há uma distinção importante: a bioética BASP relativa ao
staff da ciência moderna é utilitária por opção ideológica; quanto a
nós, somos meros convidados de seu banquete.
De maneira paradoxal, a conformação de uma bioética
protocolar ou ritualista se deve, presumo, à sua formalização legalabstrata, cujo intento é dar-lhe efetividade coercitiva e,
conseqüentemente, poder de controle.
E o biodireito, refletindo uma possível instância heterônoma
de resolução, via legislatório estatal, inclusive daqueles conflitos
tidos como bioéticos, ilustra bem tal processo - conduzido pela
mão invisível do Leviatã e seu pulso liberal: “tudo aquilo que nosso
século chama de liberalismo tende para a visão social do Estado”
(von TREITSCHKE, 1963: 29).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
123
Legalizar a bioética, por assim dizer, até que reste apenas o
positivismo dos códigos, à maneira de Auguste Comte. A propósito,
Zygmunt Bauman comenta, em releitura a Jeremy Bentham - pensador
responsável, mais do que qualquer outro, pela agenda da moderna
filosofia ética -, “que ‘os seres humanos têm deficiência de altruísmo e
por isso precisam da ameaça de coerção para encorajá-los a buscar os
interesses da maioria antes que os próprios’” (BAUMAN, 1997: 77).
A proverbial heteronomia ética de Bentham se encaixa, numa
tradução livre, aos imperativos externos de que trata Alberto
Guerreiro Ramos em sua “teoria substantiva da vida humana
associada”, totens da dicotomia entre valores e fatos, cujo efeito
colateral é a síndrome comportamentalista:
O comportamento é uma forma de conduta que se baseia na
racionalidade funcional ou na estimativa utilitária das conseqüências,
uma capacidade - como assinalou corretamente Hobbes - que o ser
humano tem em comum com os outros animais. Sua categoria mais
importante é a conveniência. Em conseqüência, o comportamento é
desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo de conduta
mecanomórfica, ditada por imperativos exteriores. Pode ser avaliado
como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo
determinado apenas por causas eficientes. Em contraposição, a ação
é própria de um agente que delibera sobre coisas porque está
consciente de suas finalidades intrínsecas. Pelo reconhecimento dessas
finalidades, a ação constitui uma forma ética de conduta. A eficiência
social e organizacional é uma dimensão incidental e não fundamental
da ação humana [...] A síndrome comportamentalista é uma
disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas
quando estas confundem as regras e normas de operação peculiares
a sistemas sociais episódicos com regras e normas de sua conduta
como um todo [...] Exposto a um mundo infiltrado de relativismo
moral, o indivíduo egocêntrico sente-se alienado da realidade e, para
superar essa alienação, entrega-se a tipos formalistas de
comportamento (RAMOS, 1989: 50-52, 59).
Ainda há pouco, por ocasião de uma das muitas visitas que
fiz à biblioteca do Pontifício Instituto João Paulo II, deparei-me
124
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
com trechos de duas notáveis documentações sobre o homem
ocidental, ambas de Bernard Mandeville: The fable of the bees e A
search into the nature of society (publicadas em 1714 e 1723,
respectivamente), sendo o último um ensaio voltado à justificação
teórica daquela fábula.
Embora discorde de Mandeville (apud RAMOS, 1989)
quando sugere que a virtude está além da capacidade humana,
devo confessar que sua metáfora da colméia social ofereceu-me o
argumento básico para entender a falsa piedade, diria Lucrécio
(1997: 46-48), que se apodera da bioética enquanto epistemologia
aplicada e formalista 62.
Com efeito, se a comunidade de interesses - ou de instintos é o critério ordenador da existência humana (transavaliação social),
então vício e injustiça se transmutam em virtudes do cotidiano.
Daí porque a ordem das pesquisas científicas e, portanto, da
bioética tradicional só é possível à medida que seus integrantes, a
partir de uma estimativa utilitária, regulam e limitam as próprias
paixões, de modo a não ameaçarem os interesses prenunciados no
TCLE: os valores humanos se tornam áxios econômicos, no sentido
moderno, e todos os fins se equivalem.
Poder-se-ia dizer, então, que o eu-bioético é feito em pedaços
pela referida transavaliação, cuja racionalidade desempenha um
“cálculo utilitário de conseqüências” (HOBBES, 1974: 41), ditada
por uma orientação que se apossa do mundo na ante-sala da ciência,
induzindo o bioeticista a fixar-se naqueles aspectos suscetíveis de
expressão quantitativa e controle.
Parafraseando Whitehead (1967: 51), o formalismo
bioético recai na “falácia da concretidade mal colocada”; seu
raciocínio silogístico-baconiano equipara o verdadeiro ao útil, o
que exerce um impacto desfigurador sobre a dignidade dos
sujeitos de pesquisa: “aquilo que é o mais útil na operação, é o
mais verdadeiro no conhecimento [...] [e] conhecimento é poder”
(BACON, 1968: 122).
62. Se bem que, muito antes de Mandeville, Aristóteles (1985 b: 1253 a, § 10) já havia elucidado
a natureza do formalismo: “um homem é destinado à associação política, num nível superior
àquele em que as abelhas ou outros animais gregários jamais poderão estar associados”.
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
125
... com algumas exceções, prevalecem, na definição de objetivos da
pesquisa, interesses outros, distantes dos reais interesses de saúde da
população. A rede de forças que define as políticas científicas e, conseqüentemente, os objetivos de determinada pesquisa estão cada vez
mais influenciados pelo poder de mercado, pelos interesses das indústrias farmacêuticas e de alimentos, pela competitiva busca de prestígio
entre os próprios cientistas, entre outras razões menos explícitas. Neste
cenário de gigantes, os mais urgentes problemas de saúde das populações pobres, demandando pesquisas e ações, surgem com pouco poder
de influência no direcionamento do tipo de pesquisa a ser priorizada
[...] Os projetos multicêntricos de pesquisa em genética médica raramente estudam problemas que interessem à população na qual a pesquisa é desenvolvida [...] DNA-poder. A possibilidade de revelação do
código genético de pessoas, povos e nações [por outro lado] é o centro
das preocupações éticas na pesquisa em genética humana. Conhecer o
DNA de pessoas, povos e nações significa ter acesso ao conhecimento
de vulnerabilidades e de resistências a microrganismos, a agentes químicos e físicos, a respostas e reações a drogas e medicamentos e,
possivelmente, a inferências sobre comportamentos. Ainda que haja
exageros teóricos induzidos por possibilidades de investimentos no
mercado pertinente, a apropriação da informação genética de pessoas,
povos e nações reveste-se de real poder científico, político, estratégico
e bélico (AZEVÊDO apud GARRAFA e PESSINI, 2003: 326-327).
Ora, haja vista que a formalização da bioética legitima o autoreferenciamento científico - desde sua fragmentariedade
tecnologicamente induzida -, aos bioeticistas restam apenas dois papéis:
•
o de instrumentador, que substitui as causas finais pelas eficientes,
imaginando o mundo qual um encadeamento mecânico de
antecedentes e conseqüentes: “Uma causa final não tem lugar
senão naquelas coisas que têm senso e vontade e isso também
provarei [...] ser causa eficiente” (HOBBES, 1840: 132). No
universo mecanomórfico de Hobbes (Ibid.: 246-274),
vivazmente encenado por Charles Chaplin em Tempos Modernos,
a ética é secundária e a criatividade, não existe; Deus e os homens
não agem, comportam-se! A filosofia civil de...
126
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
... Hobbes afirmaria que a ciência social é, necessariamente, física
social de determinado tipo, e que o problema da ordem nos negócios
humanos só admite uma solução mecânica. Uma vez que as noções de
bem e de mal, e todas as virtudes e sentimentos pertencentes ao
domínio da ética assumem o caráter de qualidades secundárias, o
planejamento de uma boa sociedade equivale ao planejamento de um
sistema mecânico, em que os indivíduos são engrenados, por instigações exteriores, para suportar as regras de conduta necessárias para
manutenção da estabilidade desse sistema (RAMOS, 1989: 64).
•
o de lúdico-calculista, pois os riscos que se mesclam às forças
tecnológicas produzidas pelo homem conheceram, durante a
modernização, um alargamento vertiginoso e sem precedentes;
a tal ponto que a lógica inerente à produção de riqueza precisou
dividir espaço com a lógica da previsão-neutralização de riscos63.
Atento ao que diz Beck (1992: 19-20), Bauman (1997: 227)
vê a “sociedade de risco [como] última posição da tecnologia
[...] [cujas] determinações são baseadas em probabilidades
matemáticas”. Nessas circunstâncias, a finalidade da bioética
tradicional se limita a predizer e minimizar os perigos
sistematicamente engendrados através da ciência liberal. José
Roberto Goldim escreve sobre a bioética de risco:
O Bioethics Thesaurus caracteriza risco como sendo a probabilidade
de ocorrência de um evento desfavorável. A definição de risco engloba
uma variedade de medidas de probabilidades incluindo aquelas baseadas em dados estatísticos [...] Risco, de acordo com a Resolução
CNS 196 / 96, é a possibilidade de danos à dimensão física, psíquica,
63. Bauman (1997: 236) lembra que uma “revista recentemente lançada, dedicada à administração de risco (Journal of contingencies and crisis management), pensada especificamente, como o folheto de publicidade anuncia, ‘para administradores executivos, criadores de políticas [...] e pesquisadores acadêmicos’, promete fornecer instruções para ‘recuperação e manejo controlado’, e advoga em seus artigos a ‘necessidade de disciplinadas
capacidades consultivas’. Uma larga camada de novas profissões especializadas rapidamente se envolve no presente reconhecimento do caráter endêmico dos riscos e na apreciação permanentemente enraizada nos quadros da ação. A especialização em riscos está a
ponto de se tornar ramo importante do mundo profissional, convertendo-se ela própria
em grande negócio”. Sobre a questão do risco nas pesquisas científicas, recomendo a leitura
de Shrader-Frechette (1994: 105) e Lloyd (et al., 2001: 141-149).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
127
moral, intelectual, social, cultural ou espiritual do ser humano, em
qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente. Caberia distinguir a
noção de risco-processo da de risco-produto. Risco-processo é aquele
a que estão expostos os participantes de uma pesquisa, os próprios
pesquisadores e os trabalhadores envolvidos, é aquele risco que ocorre
ao longo do projeto. Risco-produto é o risco decorrente do projeto, é
aquele que atinge a sociedade de forma indistinta. É o risco que resulta
dos rejeitos ou de outras formas de contaminação ambiental, por exemplo. As pesquisas com risco maior que o mínimo ou com uma distribuição não eqüitativa dos riscos devem ter uma justificativa adequada [...]
O cálculo de probabilidades ainda não existia. A noção matemática de
risco, de acordo com os estudos realizados por Bernstein, é relativamente recente na história da humanidade. Este conceito foi introduzido por
Blaise Pascal em 1654, a partir de suas correspondências com o grande
matemático Pierre de Fermat [...] Desta proposta surge, posteriormente,
a noção de utilidade. Este também novo conceito revolucionou a teoria
da tomada de decisão, introduzindo a possibilidade de se avaliar a relação
risco-benefício ou custo-benefício. Uma importante questão que deve
sempre ser discutida é a do risco percebido pelo paciente. Muitas vezes o
risco é superestimado ou subestimado. Em situação de pesquisa, em uma
amostra de participantes brasileiros, o item menos recordado, entre procedimentos, benefícios e riscos, foi o risco. Uma explicação possível para
esta ocorrência pode ser a característica cultural brasileira de evitar incertezas, de não saber conviver com riscos, paradoxalmente à realidade. Em
um estudo sobre riscos assistenciais, realizado na Inglaterra, os pacientes
superestimaram um risco cirúrgico real de 2% para até 65%. Estes dados
reforçam a idéia de que como é importante explicar adequadamente o
risco associado a procedimentos assistenciais e de pesquisa. Como é fundamental verificar o grau de compreensão das informações prestadas aos
pacientes ou voluntários (GOLDIM, 1997).
Pois bem, em meio a esse processo de corrupção ideológica do
primeiro ciclo bioético, opera a impressionante reivindicação
cartesiana, cujo substrato é a primazia da idéia - penso (ou racionalizo
a dignidade nas pesquisas científicas), logo existo (bioeticamente) -,
relegando o amor a um plano secundário, se ouso dizer. Tamanho
ímpeto atinge seu apogeu na filosofia hegeliana.
128
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Apesar do jovem teólogo Georg Wilhelm Friedrich Hegel
pregar o amor, desde que adquire o domínio de seu método dialético,
ele se recusa a fazê-lo, visto como ou ignora tudo aquilo que não se
pode reduzir ao cogito, ou simplesmente o idealiza.
Suponho, no entanto, que a idéia acerca do amor não seja o
próprio, e as múltiplas reações contra Hegel (1969) repousam, em
boa parte, sobre o que acabo de dizer. De fato, entre as diversas
correntes da filosofia contemporânea muitas são apelos para algo mais
fundamental, anterior a ratio.
Evidentemente, neo-hegelianos como Brunschvicg reafirmam
o primado absoluto do raciocínio, contrapondo-se-lhe, porém, um
Kierkegaard e os existencialistas.
Kierkegaard nos propõe o famoso “salto”, demonstrando que
a fé e a fidelidade, ambas exigências do amor, não se explicam pela
razão. Bergson descobre na intuição do “impulso vital” um desejo
que se estende além do conhecimento lógico-abstrato, qual o thumos
descrito em Parmênides. Freud revela, analogamente, a intenção de
ultrapassar a nítida consciência da idéia, ainda que tal vontade
permaneça imperfeita nele. Nietzsche e Sartre querem transcender a
metafísica racional, para eles a suprema mentira...
Essas objeções têm em comum o anseio de remontar à fonte
de nossa intencionalidade moral. Também a bioética, inicialmente.
Entretanto, porque se manteve numa atitude de reação aplicada, o
primeiro ciclo bioético consumou seu auto-engano, tornou-se
instância reguladora da ciência liberal e de seus riscos, sendo um dos
grandes eufemismos do conhecimento moderno.
A lógica do conhecimento moderno reforça a propensão recorrente de
tratamento “desumano” da realidade [...] para estudar o homem, é
mister decompô-lo64 (DEMO, 1998: 121).
Por sua vez, a bioética da amizade fala grego! Ela traduz uma
“pneumatologia” - pneuma significa espírito, amor (PHILIPPE, 1996:
64. Sobre a intervenção científica no cotidiano: Marcuse (1967), Lévi-Strauss (1976),
Abramczuk (1981), Bazarian (1985), Adorno e Horkheimer (1985), Capra (1986),
Bombassaro (1992), Einstein (1994), Barrow (1994) e Botomé (1996).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
129
30) - da pesquisa científica, ou seja, uma filosofia do homem encarado
por inteiro, mormente em sua capacidade de amar.
O que proponho nestas linhas constitui o nervo de uma
bioética, enquanto força educadora, pois quando...
... a comunidade sofre de uma doença orgânica que lhe afeta o conjunto
ou é destruída, a obra de sua reconstrução só pode partir de um grupo
reduzido, mas fundamentalmente são, de homens com idênticas idéias,
o qual sirva de célula germinal para um novo organismo; é sempre este
o significado da amizade (ϕιλια) para Platão (JAEGER, 1995: 718).
Em outras palavras, procurei lançar as bases de uma
antropologia bioética, cuja fonte é a experiência intersubjetiva do
amor de amizade nas pesquisas científicas em humanos. O cerne de
tal orientação antropológica é a epistemologia transdisciplinar-realista
(ARAÚJO, 2000: 17-20), que experimenta, quanto ao trabalho
verdadeiramente humano, a prioridade do sujeito em relação à técnica,
desmoralizando a autoprodigalidade da pesquisa científica.
... o primeiro fundamento do valor do trabalho é o mesmo homem, o
seu sujeito. E relaciona-se com isto imediatamente uma conclusão
muito importante de natureza ética: embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao trabalho, contudo, antes de mais
nada, o trabalho é “para o homem” e não o homem “para o trabalho”
(JOÃO PAULO II, 1999: 16-24).
Presumo que uma tal perspectiva guarde semelhanças com os
trabalhos de restauração ungidos por Eric Voegelin, para quem o
esquecimento dos textos clássicos deformou a psique humana 65,
causando-lhe o “descarrilamento [e] a sistemática confusão da razão”
(VOEGELIN, 1961: 284).
65. Observou lorde Keynes que o desenvolvimento econômico decorreu da avareza, da usura,
da precaução - tudo coisas que ele dizia desprezar. Não obstante, concluiu Keynes que, “por
mais algum tempo”, tais atributos deveriam continuar “a ser os nossos deuses”, porque
“somente elas nos podem fazer sair do túnel da necessidade econômica”. Enfim, asseverou que
se “fizesse de conta, para nós mesmos e para todo mundo, que o certo é errado e o errado é certo,
porque o errado é útil e o certo não é” (KEYNES, 1932: 372). Lyon (1998: 14-15) segue
130
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
De mais a mais, o exercício da philia bioética permite que a
investigação científica constitua, espontaneamente, uma família de
propósitos, na qual o indivíduo contemporâneo, enquanto indigenteético refugia-se da “matrix”, do mimetismo entre a ideologia liberal
e o espetáculo das transformações técnicas, científicas, econômicas,
de consumo...66, emancipando-se-lhe.
Como nos versos de Hölderlin (1980: 37), “lá, onde está o
perigo, também cresce o que salva”, muito embora...
um outro caminho; ele defende que “O afastamento da razão com relação ao medievalismo e
à tradição levou muitos a acreditar que os poderes humanos podiam promover um avanço
maior e mais rápido [...] Mas, com o destaque ao papel da razão e com a depreciação da
intervenção divina, foram lançadas as sementes para uma variante secular da Providência,
a idéia de Progresso [...] A fé no progresso [...] tornou a reviver artificialmente através de
um desenvolvimento científico e tecnológico enorme e de uma explosão de consumo sem
precedentes”. Há muito exposta por Löwith (1949), essa última visão fora impugnada
por Blumenberg (1983), para quem o progresso “reocupou” o espaço deixado pela
providência, o que legitimaria a modernidade auto-referida. A erudição de Blumenberg é
impressionante. Contudo, seu opinativo sobre a obra de Löwith oculta o fato de que o
progresso é uma crença, um artigo de fé.
66. Lyotard (1998), Lyon (1998) e o sociólogo francês Jean Baudrillard: “No amontoamento
consumista, que estimula a salivação fantástica, há algo mais que a soma dos produtos: a
evidência do excedente, a negação mágica e definitiva da rareza, a presunção materna e
luxuosa da terra da promissão [...] E semelhante discurso metonímico, repetitivo, da
matéria a consumir, da mercadoria, transforma-se, graças à grande metáfora colectiva e por
meio do próprio excesso, na imagem do dom, da prodigalidade inesgotável e espetacular,
que é peculiar à festa. Além do amontoamento, que é a forma mais rudimentar e também
a mais plena da abundância, os objectos organizam-se em panóplia ou em colecção [...] é
o modelo aristocrático e luxuoso dos conjuntos que não evocam tanto a superabundância
da substância quanto um leque de objectos seleccionados e complementares, entregues à
escolha, mas também à reacção psicológica em cadeia do consumidor que os percorre e
inventoria, os apreende como categoria total. Raros são os objectos que hoje se oferecem
isolados, sem o contexto de objectos que os exprimam. Transformou-se a relação do
consumidor ao objecto: já não se refere a tal objecto na sua utilidade específica, mas ao
conjunto de objectos na sua significação total [...] Não vamos pensar que a cultura se
prostitui no seu interior; seria demasiado simples. Culturaliza-se. Ao mesmo tempo, a
‘mercadoria’ se culturaliza igualmente, porque surge transformada em substância lúdica e
distintiva, em acessório de luxo, em elemento no meio de outros elementos da panóplia
geral dos bens de consumo [...] Porque, apesar da abundância se tornar quotidiana e
banal, continua a viver-se como milagre do diário, na medida em que se revela, não como
produzida, arrancada e conquistada, no termo de um esforço histórico e social, mas como
dispensada por uma instância mitológica benéfica, de que somos os herdeiros legítimos: a
Técnica, o Progresso, o Crescimento etc. [...] Todo o discurso sobre as necessidades
assenta numa antropologia ingênua: a da propensão natural para a felicidade. Inscrita em
caracteres de fogo por detrás da menor publicidade para as Canárias, a felicidade constitui
a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico
da salvação. Mas, que felicidade é esta, que assedia com tanta força ideológica a civilização
moderna? A Revolução do Bem-Estar é a herdeira, a testamenteira da Revolução Burguesa
ou simplesmente de toda a revolução que erige em princípio a igualdade dos homens sem
a poder (ou sem a conseguir) realizar a fundo” (BAUDRILLARD, 1995: 16-48).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
131
... a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente
humano, [esteja] se afundando em uma nova espécie de barbárie [...]
O que se torna problemático é não apenas a atividade, mas o sentido
da ciência [...] Se se tratasse apenas dos obstáculos resultantes da
instrumentação desmemoriada da ciência, o pensamento sobre questões sociais poderia, pelo menos, tomar como ponto de partida as
tendências opostas à ciência oficial. Mas também estas são presas do
processo global de produção. Elas não se modificaram menos do que
a ideologia à qual se referiam [...] A técnica é a essência desse saber,
que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas
o método, a utilização do trabalho de outros, o capital. As múltiplas
coisas que, segundo Bacon, ele ainda encerra nada mais são do que
instrumentos: [...] o controle remoto, que é uma bússola mais confiável
[...] O que os homens querem aprender da natureza é como empregála para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só
o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro
para destruir os mitos. Diante do atual triunfo da mentalidade factual,
até mesmo o credo nominalista de Bacon seria suspeito de metafísica e
incorreria no veredicto de vacuidade que proferiu contra a escolástica.
Poder e conhecimento são sinônimos. Para Bacon, como para Lutero, o
estéril prazer que o conhecimento proporciona não passa de uma espécie de lascívia. O que importa não é aquela satisfação que, para os
homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o procedimento eficaz
[...] Não deve haver nenhum mistério, mas tampouco o desejo de sua
revelação (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 11-20).
Neste anoitecer, onde “todos os gatos são pardos” (JAEGER, 1995:
19), vivemos a mercê de “individualidades fluidas” (HAUSER, 1965:
49), desirmanadas e avulsas, entregues ao perspectivismo intelectual67,
que é um elemento autobiográfico do primeiro ciclo bioético.
67. A fluidez da individualidade é uma característica do maneirismo, estágio inicial da arte
moderna. Ela antecipou a tendência que, séculos mais tarde, transformou-se numa “síndrome
psicológica das sociedades capitalistas” (RAMOS, 1989: 53). Criados pelo homem, os
valores não seriam “perpétuos, imutáveis e inequívocos [...] a natureza humana é fraca e
inconstante, num estado de eterno fluxo, suspensa entre diferentes estados, inclinações,
132
ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO
Constrangida por uma modernidade global em seu alcance, atéia
em suas intenções e rude em seus métodos, a pesquisa científica avança tão
célere e imprudente quanto admissível, desvencilhada não apenas de algum
pretenso fundamento (bio)ético, mas também de qualquer outra fundação.
Daí a sacralização do factual, que, segundo Hannah Arendt,
torna os homens supérfluos (ARENDT, 1989: 510), “vítimas de
um feitiço que nos permite realizar o ‘impossível’” (ARENDT apud
BELLINO, 1997: 85), desde que “percamos a capacidade de fazer o
possível; de fazer coisas fantasticamente extraordinárias, desde que
não sejamos mais capazes de ocuparmo-nos adequadamente de nossas
coisas cotidianas” (BELLINO, 1997: 85).
Os progressos realizados pela ciência não têm nada a ver com o que
queremos; eles seguem as próprias leis inexoráveis, obrigando-nos a
fazer o que podemos, sem levar em conta as conseqüências. O quero
e o posso saíram por aí cada um por conta própria? Tinha razão Valéry
quando há cinqüenta anos dizia: “Pode-se dizer que tudo o que sabemos, quer dizer tudo o que podemos, terminou por se opor ao que nós
somos?” (Id. Ibid.: 85).
disposições, porque está em contínua transição [...] e sua verdadeira natureza não está na
permanência, mas na mudança” (HAUSER, 1965: 49). Ramos (1989: 53-59) sustenta que
“a fluidez da individualidade não poderia ser inteiramente explicada sem que se vincule esse
fenômeno à forma de representação através da qual as sociedades capitalistas legitimam-se a si
mesmas [...] Nas sociedades modernas, a representação é um processo puramente sociomórfico;
já não é mais uma legitimação da verdade da existência comunal sobre fundamentos metahistóricos. É, antes, uma exigência para a pacificação negociada entre os indivíduos, para
habilitá-los a acomodar seus interesses pessoais. A sociedade moderna não se reconhece como
miniatura de um cosmos maior, mas como um contrato amplo entre seres humanos. Assim,
a conduta humana se conforma a critérios utilitários que, a seu turno, estimulam a fluidez da
individualidade. Na verdade, o homem moderno é uma fluida criatura calculista, que se
comporta, essencialmente, de acordo com regras objetivas de conveniência [...] No conceito de
representação consistente com esse ponto de vista, a imparcialidade substitui a verdade [...] Em
tal situação de vácuo meta-histórico, não dispõe o indivíduo do piso firme necessário para que
sua identidade se desenvolva. O homem moderno é o tolo enganado por uma fé mal colocada
[...] Mas já que o centro ordenador de sua vida não está em parte alguma, sua identidade é de
sua própria criação. Essa forma de cultivo da individualidade acaba em narcisismo [...] Em
conseqüência, numa visão fluídica, com a interpretação da sociedade como um sistema de
regras contratadas, o indivíduo é levado a compreender que tanto a sua conduta quanto a
conduta dos outros é afetada por uma perspectiva. Torna-se um perspectivista [...] O
perspectivismo permeia o pensamento de Maquiavel [...] [que] distorce sistematicamente a
linguagem teórica por despojá-la de qualquer substância ética, prática em que Hobbes mais
tarde seria soberbo. Por exemplo, com Maquiavel, a prudência é vazia de conteúdo ético, é mero
cálculo a serviço de interesses...”. Para um maior aprofundamento, sugiro a leitura de Voegelin
(1952) e Whitehead (1967: 201, 240).
FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA
133
Edgar Allan Poe, em O relato de Arthur Gordon Pym; Machado
de Assis, em O alienista; Paul Gauguin, em Antes e depois; Ovídio,
em A arte de amar; Kafka, em O veredicto; Isaac Asimov, em O homem
bicentenário... Em comum, a percuciência de que são tomados de
assalto ao pensar o homem e seu destino, testemunhando-lhe a
palidez ética dos minutos que há pouco se foram. Aproveitei-os ou
não? Porque, como diria Fernando Pessoa, se não sei se os aproveitei,
que saberei de outros minutos?!
Tão surpreendente quanto é a escolha moral de Protágoras:
“Há mais risco em comprar saber do que em comprar comida”
(PLATÃO, 1976: 314 a). Mas gostaria de renunciar a outras tantas
indagações Viajando num carro confortável de Bertold Brecht:
Viajando num carro confortável
Por uma estrada chuvosa do interior
Avistamos ao cair da noite um homem rústico
Solicitando-nos condução com um gesto humilde.
Tínhamos teto e tínhamos espaço e seguimos em frente
E ouvimos a mim dizer num tom de voz árido: “Não,
Não podemos levar ninguém conosco”.
Tínhamos avançado já boa distância, um dia de viagem talvez,
Quando subitamente fiquei chocado com esta voz minha
Com este comportamento meu
E todo este mundo (apud GIANNETTI, 1997: 111).
***
Além do ar que respiro, o melhor presente é a mão que seguro,
a de meu amigo. Dito isso, finalizo reivindicando para estas páginas
um mérito apenas: o da boa-fé; ou, como diria Octavio Paz (apud
HABERMAS, 2000), o da nostalgia de uma presença verdadeira.
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