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FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=1439102 Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=1439102 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA Centro de Documentação e Informação do Pólis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais A687 Araújo, Antonio Fábio Medrado de Fundamentos de antropologia bioética. / Antonio Fábio Medrado de Araújo -- São Paulo : Annablume, 2004. 156 p. ISBN 85-7419-454-9 1. Bioética. 2. Antropologia Filosófica. 3. Pesquisa Biomédica. I. Título. CDU 17:575.1 CDD 573 FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA Coordenação editorial Joaquim Antonio Pereira Produção Maria Augusta Mota - Paginação Capa Flávio Soledade CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Gilberto Mendonça Teles Maria de Lourdes Sekeff Cecilia de Almeida Salles Pedro Jacobi Gilberto Pinheiro Passos Eduardo Alcântara de Vasconcellos 1ª edição: agosto de 2004 © Antonio Fábio Medrado de Araújo ANNABLUME editora . comunicação Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 05427-100 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-9727 http://www.annablume.com.br AGRADECIMENTOS São tantos, e tão especiais que não creio seja possível relacionálos com a parcimônia amiúde em anotações deste tipo. Repassando as pessoas e instituições que estiveram comprometidas, de uma forma mais íntima, com o presente estudo, logo me vem a imagem do Núcleo de Pesquisa e Educação Transdisciplinar em Bioética (NETBio), vinculado ao Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Feira de Santana (DCBio / UEFS), que, de várias maneiras, fez-me pensar bioeticamente. Também aqui, ocorre-me a lembrança sempre marcante do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Estadual de Oncologia (CEP / CICAN), onde co-testemunhei uma práxis bioética verdadeiramente digna. Recordo-me, ainda, da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP / CNS – MS), cujo empenho burocrático quanto à decência das pesquisas científicas em humanos realizadas neste país tenho como autêntica inspiração. Dentre minhas reminiscências, não poderia furtar-me à menção da Pontificia Universitas Lateranensis e, sobretudo, do Pontificium Institutum Ioannes Paulus II, cuja seção brasileira, para além do desígnio secular e acadêmico de formar mestres, forjou-me humanista, sendo o refúgio e alento a reanimar minha vocação cristã. E, fechando o ciclo institucional que resultou neste opúsculo, encontro a editora Annablume e a Ordem dos Advogados do Brasil, ambas responsáveis por minha inserção no mercado editorial-acadêmico brasileiro. No entanto, muito do reconhecimento sincero que dedico a tais entidades reflete, em verdade, a profunda admiração e respeito que cultivo em relação a certos profissionais que as personificam. Refiro-me, por certo, a Libonatti, Stefano Volani, bem assim aos demais queridos colegas mestrandos, com os quais mantive uma convivência intelectual fecunda; a geneticista e bioeticista Eliane Elisa de Souza e Azevêdo: por vezes mestra e irmã; n’outras, mãe e amiga (não fosse seu rigor meigo e constante incentivo, sequer teria ultrapassado os capítulos iniciais desta publicação); a Giancarlo Petrini, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e orientador da dissertação que originou a presente obra: um docente formidável, cuja paciência, zelo e rigor acadêmico margearam nossa intenção monográfica, conferindo-lhe densidade formal; aos insignes professores de Metafísica I e Ética do Perdão do nosso Mestrado em Ciências da Família, respectivamente Gabriel François Germain Hibon (doutor em Filosofia pela Université Paris I, Sorbonne e prof. de Metafísica da Université Libre des Sciences de l’Homme) e Jean Laffite (doutor em Teologia Moral e prof. de Ética da Pontificia Universitas Lateranensis / Pontificium Institutum Ioannes Paulus II), os quais cedo estimei pela acuidade de vossos ensinamentos; a Paulo Eduardo Matias Lessa, mestre em Administração pela Universidade de Extremadura, cuja leitura amiga e inestimáveis críticas a este trabalho imprimiram-lhe rumo e gravidade. Enfim, devo mencionar minha gratidão a José Roberto Barreto Lins e Joaquim Antonio, respectivos editor e coordenador editorial, que souberam alcançar, com talento e bom senso, o equilíbrio entre as rijas exigências da linguagem e o respeito pela teimosia do pensamento incuravelmente idiossincrático deste autor. A todos, muitíssimo obrigado. A meu semelhante, implorando vosso perdão. A Simaia, minha colombina às avessas. Nestes quase oito anos de matrimônio, aprendi a olhar-me através de seus olhos, a animar-me com o sorriso que verte fácil de sua alma, a sofrer com as desventuras de seu espírito impetuoso e bom... Aprendi a tê-la como minha consorte, a melhor parte de mim! A Beatriz (ou simplesmente “bibia”, como prefiro chamá-la), hoje com dois aninhos. Filha querida: contigo, todo e cada instante de minha vida são consagrados em elogio a nosso Pai, por ter-me concedido a dádiva de ser teu pai. Rogo a Deus forças a fim de, em comunhão com sua mãe, educar-lhe, de um modo exemplar e inteligente, para o amor e o perdão. É no vosso dom que repousamos. Nele gozaremos em Vós. É o nosso descanso, é o nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata e que o Espírito Santo levanta o nosso abatimento desde as portas da morte. Na vossa boa vontade, temos a paz. O corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim o fogo se encaminha para cima e a pedra para baixo. Movem-se segundo o seu peso. Dirigem-se para o lugar que lhes compete. O azeite derramado sobre a água aflora à superfície; a água vertida sobre o azeite submerge debaixo deste: movem-se segundo o seu peso e dirigem-se para o lugar que lhes compete. As coisas que não estão no próprio lugar agitam-se; mas, quando o encontram, ordenam-se e repousam. O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele que me leva. O vosso dom inflama-nos e arrebata-nos para o alto. Ardemos e partimos. Fazemos ascensões no coração e cantamos o cântico dos degraus (...) Regozijei-me com aquilo que me disseram: Iremos para a casa do Senhor. Lá nos colocará a boa vontade para que nada mais desejemos senão permanecer ali eternamente. Agostinho Dêem-lhe todas as satisfações econômicas de maneira que não faça mais nada senão dormir, devorar pastéis e esforçar-se por prolongar a história universal; cumulem-no de todos os bens da terra e mergulhem-no em felicidade até a raiz dos cabelos: à superfície de tal felicidade como à tona de água virão rebentar bolhas pequeninas. Dostoiévski SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................... 11 INTRODUÇÃO GERAL ............................................................ 15 CAPÍTULO I – PREMISSAS TEÓRICAS E ITINERÁRIO DE PESQUISA ..................................................................... 17 DISPOSIÇÕES E PARÂMETROS DO PRESENTE ESTUDO ..................... 19 OBJETO E METODOLOGIA DE ABORDAGEM ................................... 20 CAPÍTULO II – CENÁRIO HISTÓRICO-CULTURAL DA BIOÉTICA ....................................................................... 23 BIOÉTICA INTERTEMPORAL E CONCEITUAL .................................... 25 A BIOÉTICA E A VIDA DAS BIOÉTICAS ........................................... 39 CAPÍTULO III – MODELOS EXPLICATIVOS DA BIOÉTICA ....................................................................... 45 PANORAMAS BIOÉTICOS: RECENSEAMENTO E DECODIFICAÇÃO ....... 47 MODELO DOS PRINCÍPIOS OU PRINCIPIALISMO ............................... 48 Princípio da autonomia ..................................................... 50 Princípio da beneficência................................................... 53 Princípio da não-maleficência ........................................... 54 Princípio da justiça ............................................................ 54 MODELO CASUÍSTICO ................................................................. 56 MODELO COERENTISTA .............................................................. 57 MODELO TERNÁRIO ................................................................... 57 MODELO AUTONOMISTA ............................................................. 59 MODELO DA VIRTUDE ................................................................ 59 MODELO DO CUIDADO .............................................................. 60 MODELO COMUNITÁRIO ............................................................. 61 MODELO CONTEMPORÂNEO DO DIREITO NATURAL ...................... 61 MODELO CONTRATUALISTA ......................................................... 63 MODELO PERSONALISTA .............................................................. 65 O MONOPÓLIO BIOMÉDICO ....................................................... 67 CAPÍTULO IV – O AMOR-PHILIA COMO BASE DA PRÁXIS BIOÉTICA ............................................. 71 O QUE É O AMOR DE AMIZADE .................................................. 75 APLICABILIDADE DO AMOR-PHILIA À BIOÉTICA .............................. 82 CAPÍTULO V – POR UMA BIOÉTICA DA AMIZADE ....................................................................... 93 CONSTERNAÇÃO EM TUSKEGEE .................................................... 95 EFETIVIDADE DO PRIMEIRO CICLO BIOÉTICO .............................. 100 PHILIA BIOÉTICA: UMA ATIVIDADE MORAL DIGNA ..................... 115 CONCLUSÃO: ESTATUTO PRÓPRIO DA PHILIA BIOÉTICA ...................................................... 119 BIBLIOGRAFIA ....................................................................... 135 PRESENTACIÓN La medicina ha conocido en los útimos decenios un crecimiento sin igual que ha reportado grandes beneficios a la humanidad, pero que también ha producido grandes inquietudes y malestar. Esta inquietud se refiere al uso invasivo de la tecnología que pone en entredicho la misma subjetividad del hombre. De fondo, este uso invasivo de la tecnología refleja una triple reducción en la práctica médica: • • en primer lugar se trata de la reducción de la persona al yo espiritual, en donde se mostraría la especificidad del hombre con respecto a los demás seres vivos: esto es, su conciencia y libertad. Pero ello se hace dejando aparte el cuerpo del constitutivo de la persona, por lo que el cuerpo viene a ser concebido desde un punto de vista meramente orgánico, sin relación con el alma y la persona toda. Esta pérdida del sentido personal del cuerpo implica una segunda pérdida, que es la perdida del sentido global que implica el concepto vida, ya que ahora viene a ser reducida a la vida meramente corporal, orgánica, por lo que se la puede tratar como un material manipulable ya que en sí misma no tiene una referencia personal. en segundo lugar se encuentra la reducción de la persona al individuo, dejando aparte las relaciones que le son constitutivas y en donde encuentra su sentido humano. No es que con ello se prescinda de la familia del enfermo, lo cual sería un despropósito en cualquier terapia, ya que sin la colaboración de la familia se hace insostenible la recuperación de muchos enfermos; pero esta atención a la familia es vista de una forma meramente utilitaria. El problema de fondo es que no se tiene en cuenta el carácter relacional del hombre al que se dirige el 12 • ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO arte medico, esto es, de un hombre que se considera a sí mismo, gracias a su corporeidad, formando parte de un conjunto de relaciones en las que su propia vida adquiere sentido, y sin las cuales se hace inhumana la existencia. Esto implica que el medico reduce el horizonte de su arte, restringiéndolo a la mera solución de los problemas de salud orgánica de esta persona. por fin, se encuentra la reducción del mismo arte medico, que es visto como una ciencia técnica, en sí misma indiferente éticamente. La valoración ética de las prácticas que implica, se derivaría de la intención subjetiva con la cual el profesional actuase, o de las consecuencias que se produjesen de su actuar en el enfermo y en la sociedad o de la aplicación de unos principios morales abstractos. Pero en sí mismas serían neutras. Estas tres reducciones han llevado al peligro de una gran manipulación de la persona humana en su corporeidad, especialmente de aquellos cuya existencia se encontraba en una gran debilidad y falta de apoyo familiar. Se veía cada vez con más urgencia la necesidad de aclarar el poder del hombre en el uso de la técnica y sus límites intrínsecos. Por ello nació la bioética, con el ánimo de combinar los conocimiento biológicos con los conocimientos de los valores humanos, cuya ruptura ponía en juego el entero ecosistema vital del hombre. Era preciso establecer puentes entre ambos. El modo como se ha llevado a cabo este trabajo, sin embargo, ha ido mostrando la dificultad de fondo. Esta se sitúa precisamente en una concepción de la ética reducida a ciencia de las normas. Tal concepción, al entrar en contacto con el mundo clínico y su modo práctico de resolución de problemas por la aplicación de principios, motiva que se busquen principios morales universales aplicables a los diversos casos y gracias a los cuales se puedan resolver los problemas en cuestión. Antonio Fábio Medrado manifiesta con fuerza en su investigación los éxitos y los límites que las diversas corrientes de reflexión han supuesto para la bioética. De fondo, se aprecia cómo un problema mal presentado es dificilmente resoluble. La raiz última de la dificultad de la reflexión bioética se sitúa en la falta de clarificación de lo que es el bien de la persona, sea del enfermo que recibe una ayuda, como del profesional sanitario que con su acción se dirige a él. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 13 Por esta razón, se aprecia cómo la bioética se encuentra actualmente en un momento de búsqueda de una fundamentación que le permita abordar en toda su amplitud la cuestión del sentido y finalidad de la práctica médica y de la investigación. Es aquí, precisamente, donde se puede ver todo el valor de la propuesta del autor del presente trabajo. La bioética se funda no en unos principios abstractos, ni en un cálculo de consecuencias, sino en una especial relación entre médico y enfermo, en una amistad singular que podríamos llamar de alianza terapéutica. Gracias a ella es como es posible reconocer en cada enfermo una persona humana con un destino singular. La superación de las reducciones mencionadas se hace ahora posible desde esta singular relación de amistad: y es amistad, no porque exista una relación afectiva, lo cual complicaría la labor del médico, sino porque en ella se PUEDE comunicar un bien a otra persona: el bien de la salud. Se hace ahora posible redimensionar la técnica médica, que deja de ser concebida como un conocimiento meramente instrumental y técnico para pasar a ser un conocimiento propiamente humano al servicio de la persona en su integralidad gracias a la relación personal que lo funda. Saber presentar un problema, dar con la formulación adecuada, es ya el principio de poder resolverlo. Pero aún queda mucho camino que realizar. Esperamos que este trabajo pueda ser el inicio de este camino al que sigan otros estudios. JOSÉ NORIEGA BASTOS Pontificio Instituto Juan Pablo II Roma, 11 de febrero 2004 INTRODUÇÃO GERAL O estudo ora publicado pela Editora Annablume, ressalvadas algumas adaptações ao grande público, corresponde à dissertação apresentada ao Mestrado em Ciências da Família – ênfase em bioética (área de concentração) – da Pontificia Universitas Lateranensis e Pontificium Institutum Ioannes Paulus II, ambos situados na Cidade do Vaticano, aprovada com distinção por sua banca examinadora. A construção do aludido texto observou três momentos. O primeiro deles consistiu na revisão dos conceitos fundamentais da bioética, o que resultou na conformação daquilo que chamei de primeiro ciclo bioético ou bioética BASP (Branca, Anglo-Saxônica e Protestante), enquanto referência ideológica para o desenvolvimento do sistema bioético erigido a partir de 1970. O segundo momento se ateve ao inventário dos principais modelos da bioética, visando demonstrar a profunda especialização do seu pensar-agir e, por conseguinte, a sua precariedade como instância de regulação ética das pesquisas científicas em humanos, cuja bioeticidade, perquiriu-se afinal, reivindica uma bioética fundada na philia aristotélica (amor de amizade), a perfazer nossa proposta específica. Inserta no âmbito da antropologia filosófica clássico-medieval (JAEGER, 1995; GARDEIL, 1967; VAZ, 1991: 27-76), a presente investigação concluiu que a bioética tradicional, desde meados do século passado, expandiu os horizontes de nossa civilização, rasgando o manto intangível das pesquisas biomédicas. E, perante nossos olhos, irrompeu uma realidade então insuspeita, muitas vezes hedionda. No entanto, uma bioética que se pretende lúcida deveria, preliminarmente, discernir, por um lado, o que depende das transformações tecno-científicas e econômicas (fatos que, em si mesmos, não são bons nem maus), ensejadas pelas pesquisas científicas em humanos e, por outro, as diversas ideologias gestadas nesse cenário, mas 16 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO dele distintas, à medida que tais ideologias implicam todo um juízo de valor, ainda que distorcido, sobre a pessoa humana e seu destino. Incorporando a metáfora potteriana (POTTER, 1971), o primeiro ciclo bioético, enquanto bridge to the future, repercute uma inquietação legítima no tocante à poluição de nossos mares, da atmosfera e, em breve, de toda a Terra, realçando a premência da questão ecológica (conquanto seja a sobrevivência biológica da espécie humana que se encontra cada vez mais em causa). Não obstante, a proposta que estou a defender, enquanto bridge to the present, pretende, desde a práxis condizente às pesquisas científicas em humanos, sublinhar uma inquietação algo mais sutil, quanto à poluição do ambiente cultural, tão nociva ao espírito dos homens, à sua inteligência e capacidade de amar. Daí porque, face às pesquisas científicas em seres humanos, tem-se que o amor de amizade é um fundamento adequado ao seu agir (bio)ético. Concluiu-se, ademais, que nos encontramos numa conjuntura favorável à implementação de uma bioética consolidada na amizade, enquanto antropologia epistemológica, transdisciplinar e espiritualizada, pois nos consentimos descer muito baixo; e, estando no fundo do poço, já quase não podemos descer algo mais. *** A dissertação que culminou nesta obra sofreu um significativo processo de reformulação editorial, cujo intuito fora, nas palavras de José Roberto Barreto Lins (editor), “eliminar certas formalidades do texto acadêmico”, oferecendo ao público “uma obra de referência, mas de leitura agradável, pois um livro não é uma tese, tampouco seu leitor um argüidor numa banca”. Assim, ousei dialogar mais diretamente com o prezado leitor; busquei apresentar-lhe minhas idéias e sustentar meus pontos de vista com o mesmo entusiasmo de quando descobri a bioética. E fi-lo procurando compartilhar, com quem quer que venha a honrar-me com a leitura destas mal traçadas linhas, um pensamento articulado em palavras, o desejo de querer saber o que é a bioética e qual sua finalidade, através de um livro agradável, que não perdesse, obviamente, em conteúdo, originalidade e rigor expositivo. CAPÍTULO I PREMISSAS TEÓRICAS E ITINERÁRIO DE PESQUISA DISPOSIÇÕES E PARÂMETROS DO PRESENTE ESTUDO Pretendo, inicialmente, traçar um roteiro de estudo, ao qual os leitores deste trabalho deverão ater-se, visando, com isso, contribuir com a organicidade do presente texto, tornando-o algo mais acessível. O desenvolvimento desta obra se perfaz ao longo de quatro partes ou capítulos, dispostos conforme o arranjo a seguir esboçado: • • • o capítulo II traz uma revisão dos conceitos que, desde 1970, permeiam a conformação da bioética. Em seguida, tal revisão é situada em um contexto maior, de cunho ideológico-cultural, o que resultou na configuração daquilo que designei primeiro ciclo bioético (paradigma tradicional) e, dentro dele, na classificação dessas mesmas definições, segundo o grau de afinidade intraparadigmática (Figuras 5 e 6); ato contínuo, tem-se o capítulo III, no qual identifico e comento, ainda que de modo um tanto conciso, os principais modelos explicativos veiculados pela literatura bioética, complementando o liame expositivo inaugurado desde o capítulo II e, conseqüentemente, finalizando o preparo do terreno no qual procuro semear, a partir do capítulo IV, minha proposta específica; integralizando o desenvolvimento desta pesquisa, discorrem os capítulos IV e V sobre a plausibilidade de uma práxis bioética fundada naquilo que Aristóteles (1985 a), outrora, proclamou como amor de amizade ou philia. Enfim, proponho uma conclusão. Nela, indagou-se acerca da pertinência de minha proposta em face do grande desafio da bioética: a manutenção da dignidade do homem nas pesquisas científicas em humanos. 20 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Tanto quanto possível, tentei responder a tais indagações; filo, no entanto, sem olvidar o fato de que a bioética, conquanto exista há cerca de três décadas, encontra-se ainda em gestação (não faltando, inclusive, quem advogue sua invalidade, pretendendo abortá-la1), o que faz desta investigação um percurso sobremodo desafiador. OBJETO E METODOLOGIA DE ABORDAGEM Por meio deste estudo, procurei delinear e introduzir no cenário bioético a possibilidade de uma prática baseada no amorphilia (objeto central). Consistiu, pois, meu problema de pesquisa em demonstrar, segundo as disposições descritas no item anterior, a pertinência teórica e exeqüibilidade de um pensar-agir bioético pautado, efetivamente, no amor-philia entre os sujeitos envolvidos numa pesquisa científica em humanos, distinguindo-o em face do primeiro ciclo bioético ou bioética tradicional. Dessa forma, espero não apenas contribuir com a gradual e autêntica humanização das pesquisas científicas em seres humanos, para que se tornem ambientes verdadeiramente éticos (objetivo primário), mas, também, contrapor ao primeiro ciclo bioético uma legítima opção paradigmática (objetivo secundário), qual seja: a philia bioética. Uma tal abordagem se justifica, fundamentalmente, enquanto tarefa de moralização do trabalho afeito às pesquisas científicas em humanos2, pelo amor de amizade entre os sujeitos nela engajados. Isso, aliás, aponta o caminho e delimita a finalidade desta exposição, cuja escolha e o modo de considerá-los não pleiteiam justificação especial. Prescindiu-se, ademais, do delineamento prévio de hipóteses de pesquisa. Em seu lugar, optei pelo modelo concebido por Tenório (1991; 1998), adotado em Araújo e Lessa (1998) - apesar de vir a repensá-lo 1. Refiro-me, aqui, a um Marie-Dominique Philippe (filósofo e teólogo francês, radicado na Universidade de Friburgo), para quem a bioética é um bom exemplo da enorme confusão, engendrada pela modernidade, sobre o que é a ética, à medida que ela não passa de uma ética especializada e, portanto, natimorta (cf. PHILIPPE, 1996 a). Tal perspectiva será oportunamente retomada no item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V). 2. Todas elas, e não apenas as pesquisas biomédicas lato sensu, tese que sustento, de forma mais específica, no item “O monopólio biomédico” (capítulo III). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 21 logo depois (ARAÚJO, 2000) -, que consiste na elaboração de certas questões (operacionais) ao problema de pesquisa, cujas respostas se tornarão o próprio desenvolvimento da investigação realizada. A interrogação representa para o filósofo o mesmo que a hipótese para o cientista. Considerando suas formas mais elementares, ambas exprimem, exclusivamente, aquele apetite natural inerente à inteligência que pretende compreender, de um modo progressivo, o que há de essencial quanto ao objeto pesquisado. Mas, enquanto idéia a priori, a hipótese é um delineamento ou realização modal do possível, que, afinal, será ou não ratificada pelos resultados da pesquisa. A interrogação, por sua vez, viabiliza um diálogo direto com o objeto de estudo, permitindo que o pesquisador dele se afaste momentaneamente, a fim de, em seguida, conhecê-lo de uma forma mais adequada e penetrante (desde que rejeite, em sua origem, todo e qualquer a priori). Daí, porque, neste ensaio, cada capítulo do desenvolvimento textual corresponde, em verdade, a respostas articuladas às seguintes questões: no capítulo II, quais os conceitos fundamentais da bioética e qual o contexto histórico e ideológico-cultural desses conceitos; no capítulo III, quais os modelos explicativos da bioética; nos capítulos IV e V, é plausível fundamentar a prática bioética no amor de amizade e o que é a philia. *** Finalmente, quanto à revisão bibliográfica - que subsidiou o processo impelido e orientado pelas questões operacionais -, ela concerne aos capítulos subseqüentes, sendo-lhes um propósito. CAPÍTULO II CENÁRIO HISTÓRICOCULTURAL DA BIOÉTICA BIOÉTICA INTERTEMPORAL E CONCEITUAL O recorte histórico-epistemológico que me infligi retroage à segunda metade do século XX. Potter3 advertia desde 1970, que: Nós temos uma grande necessidade de uma ética da terra, uma ética para a vida selvagem, uma ética de populações, uma ética do 3. Bioquímico e pesquisador na área de oncologia vinculado ao laboratório McArdle, pertencente à Universidade de Wisconsin, Van Rensselaer Potter se ocupava não apenas da questão ambiental, mas também das implicações quanto ao modelo desenvolvimentista que marcou a década de 60. O seu pensamento esteve sob a influência de Aldo Leopold, que também havia lecionado na Universidade de Wisconsin, e de Albert Schweitzer. Pois bem, Leopold (1887-1948) nascera em Burlington, Iowa. Engenheiro florestal graduado pela Universidade de Yale, ele concluiu seu mestrado em 1909, trabalhando, desde então, no serviço florestal dos EUA. Em 1933, assumiu a disciplina de manejo de caça na Universidade de Wisconsin, onde permaneceu até a sua morte. Publicou cerca de 350 artigos científicos, sendo considerado a figura mais proeminente no que diz respeito à conservação da vida selvagem norte-americana. Editado em 1949, Sand County Almanac... é, ao lado de The Land Ethic, seu texto de maior projeção acadêmica, no qual Leopold estabelece os fundamentos da ética ecológica ou ecoética: “A mais importante característica de um organismo é a sua auto-renovação interna conhecida como saúde” (LEOPOLD, 1989: 194); “Ética é a diferenciação da conduta social da anti-social para o bem comum” (Id. Ibid.: 238); “As obrigações não têm sentido sem consciência, e o problema com que nos defrontamos é a extensão da consciência social das pessoas para com a terra” (Id. Ibid.: 246); “A ética da terra simplesmente amplia as fronteiras da comunidade para incluir o solo, a água, as plantas e os animais, ou, coletivamente, a terra. Isto parece simples: nós já não cantamos nosso amor e nossa obrigação para com a terra da liberdade e lar dos corajosos? Sim, mas quem e o que propriamente amamos? Certamente não o solo, o qual nós mandamos desordenadamente rio abaixo. Certamente não as águas, que assumimos que não tem função exceto para fazer funcionar turbinas, flutuar barcaças e limpar os esgotos. Certamente não as plantas, as quais exterminamos, comunidades inteiras, num piscar de olhos. Certamente não os animais, dos quais já extirpamos muitas das mais bonitas e maiores espécies. A ética da terra não pode, é claro, prevenir a alteração, o manejo e o uso destes ‘recursos’, mas afirma os seus direitos de continuarem existindo e, pelo menos em reservas, de permanecerem em seu estado natural” (Id. Ibid.: 204). Schweitzer, por sua vez, permaneceu entre nós de 1875 a 1965, tendo sido agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1952. Nesse mesmo ano, proferiu uma conferência na Academia Francesa de Ciências, cujo tema fora “O problema da ética na evolução do pensamento”, durante a qual expôs algumas idéias que, combinadas às de Leopold, influenciaram Potter na formulação semântica do neologismo “Bioethics” (POTTER, 1970): “Uma ética que nos obrigue somente a preocupar-nos com os homens e a sociedade não pode ter esta significação. Somente aquela que é universal e nos obriga a cuidar de todos os seres nos põe, de verdade, em contato com o Universo e a vontade nele manifestada” (SCHWEITZER, 1964: 17). 26 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO consumo, uma ética urbana, uma ética internacional, uma ética geriátrica e assim por diante... Todas elas envolvem a bioética, [...]. Esta nova ética pode ser chamada de ética interdisciplinar, definindo interdisciplinaridade de uma maneira especial para incluir tanto a ciência como as humanidades, mas este termo é rejeitado, pois não é auto-evidente (POTTER, 1970: 12). Salvo revisão conceitual mais precisa, esse foi o primeiro texto4 a utilizar o neologismo bioética. Em 1970, Potter vislumbra, no artigo Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine, uma bioética enquanto ciência ética interdisciplinar aplicada à vida, cuja nitidez plena só é alcançada com a sua definição acerca da bioética profunda (POTTER, 1998). No bimestre seguinte, Hellegers (1970) não apenas diverge da perspectiva potteriana de uma bioética abrangente, arrogando-lhe um sentido diverso e contido, qual seja, o de ética aplicada às ciências biológicas do humano (SGRECCIA, 1996: 25-33; WALTERS, 1984: 6-8), mas também institucionaliza o pensar bioético contra-potteriano, criando aquele que é o berço ou o símbolo maior da bioética reducionista: o “The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics”, cuja ideologia implícita é a protestante: Nesses mesmos anos em que nascia o Hastings Center, chegava a Georgetown University de Washington (DC) André E. Hellegers, um obstetra e ginecologista holandês que se dedicava à fisiologia fetal. Transferia-se ele para essa universidade com o intuito preciso de dar início a um programa de pesquisa interdisciplinar em bioética. Para essa mesma finalidade, Hellegers convidou, em 1968 e em 1969, o teólogo moralista protestante Paul Ramsey para que desse alguns cursos na faculdade de medicina da Georgetown University. Desses cursos de 4. Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine: artigo adaptado do capítulo I do livro Bioethics: bridge to the future, que, em 1970, encontrava-se no prelo, vindo a ser publicado no ano seguinte. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 27 moral, nasceram dois volumes, “The patient as person” e “Fabricated man”, ambos de 1970, que podem muito bem ser consideradas as primeiras publicações que lançaram a bioética na América. Precisamente nesse período, a família Kennedy decidia financiar algumas pesquisas sobre a prevenção dos deficientes mentais congênitos. As implicações dessa pesquisa, até mesmo as éticas, estimularam Hellegers a apresentar a proposta de fundar um instituto que se ocupasse tanto da fisiologia da reprodução como da bioética. Nasce, assim, em 1971, o “The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics”, ou seja, o primeiro centro que ostentava formalmente o nome de instituto de bioética. Depois da morte de Hellegers, em 1979, a instituição tomou o nome, que permaneceu, de “Kennedy Institute of Ethics”, e foi oficialmente anexada à Georgetown University. Por vários anos, seu diretor foi E. D. Pellegrino. Atualmente, o diretor do Kennedy Institute é R. M. Veatch. Dentro do Kennedy Institute, está sediado o “Center for Bioethics” com um diretor próprio, que é hoje Leroy Walters (SGRECCIA, 1996: 26-27). O perfil protestante do “Kennedy Institute of Ethics”, a propósito, não antagoniza com a identidade jesuíta da Georgetown University: O Center for Bioethics e o Kennedy Institute estão sediados numa universidade, a Georgetown University [founded in 1789, the same year the U.S. Constitution took effect, Georgetown University is the nation’s oldest Catholic and Jesuit university], a qual, por constituição, é aberta a estudantes e pesquisadores de qualquer confissão religiosa; tem como finalidade principal a pesquisa com uma metodologia interdisciplinar [...] e tem preferência pelas áreas da filosofia e da teologia moral, com um confronto inter-religioso e ecumênico (SGRECCIA, 1996: 27). Aos poucos se entendeu que, apesar de semeada por Potter, a bioética germinou, floresceu e, enfim, deu seus primeiros frutos sob a égide hellegeriana; o que é compreensível, porquanto a abstração material de Potter acena, de fato, com uma incompatibilidade latente em relação a traços característicos da experiência cultural norteamericana, eminentemente pragmática. 28 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Propiciou-se, assim, a reação de Hellegers, orientada para o desenvolvimento de uma bioética que fosse, em seus fundamentos, coerente com o perfil sociocultural dos Estados Unidos. Já em 1971, o mesmo Potter, em Bioethics: bridge to the future, atribui ao seu insight 5 original acerca da bioética, antevisto em Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine um caráter menos abstrato, conferindo-lhe o status de ponte (Figura 1) entre as ciências biológicas e os valores próprios da pessoa humana, considerados indispensáveis à coexistência global (em um contexto marcado pela emergência de desafios ecológicos): Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos (POTTER, 1971: 2). 5. Em 1970, o termo bioética representava, tão-somente, uma conjetura semântica, cuja definição, em termos formais, deu-se alguns meses depois daquele insight potteriano, com Hellegers (1970). Tal entendimento, no entanto, contraria boa parte da literatura especializada (CLOUSER, 1977; BERNARD, 1989; GRACIA, 1989; VIAFORA, 1989; MAINETTI, 1990; BERLINGUER, 1995; DURANT, 1995; SGRECCIA, 1996), que elege Potter (1971) como o primeiro a definir, formalmente, o que é a bioética. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 29 Uma vez finalizado o biênio (1970-71) de fundação da bioética, restaram definidos ambos os seus eixos-motrizes, a síntese e a antítese de sua dialética. Desde então, os atores da trama bioética encenam, não raro com talento e alguma originalidade, ou o protagonismo de Potter, ou o antagonismo de Hellegers (Figura 2): O esboço acima (Figura 2), aliás, fez-me perquirir sobre a efetiva contribuição do filósofo Daniel Callahan e do psiquiatra Wilard Gaylin à constituição desse recém-criado campo do saber. Ora, são eles freqüentemente considerados pioneiros ou precursores da bioética, o que é verdade, se fundador for quem concebe o termo ou designativo aclamado pela comunidade acadêmica. No entanto, se o bioeticista define a si próprio por uma intenção-ação específica, que visa à subsunção da pesquisa científica em humanos à ética, então Callahan e Gaylin são cofundadores da bioética, tanto quanto Potter e Hellegers. 30 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Digressões à parte, nos idos de 1978, Reich e Walters propõem um conceito pragmático e restritivo6 de bioética, que a encerra nas áreas da saúde e da pesquisa biomédica em seres humanos. Para os autores em questão, a bioética é o estudo sistemático da conduta humana dentro das ciências da vida e de atenção à saúde, enquanto tal conduta é examinada à luz dos princípios e valores morais (cf. REICH, 1978: 116). No ano seguinte, em 1979, Roy7 defende que a bioética é o estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas para uma administração responsável da vida humana, tendo em vista o avanço rápido e complexo do saber e das tecnologias biomédicas (cf. ROY, 1979: 59-75). Decorridos quase vinte anos desde a elaboração, em 1971, de sua definição original sobre a bioética ponte, Potter (1988) deixa os bastidores da formação conceitual da bioética, dessa vez para, retornando à ética ecológica de Leopold (1989), denunciar o estreitamento da proposição que concebera no biênio 1970-71. Não obstante, Potter parece evitar um confronto direto com os adeptos dessa tendência mais limitativa da bioética, inicialmente protagonizada por Hellegers, assumindo uma postura de complementaridade (motivada, talvez, por um instinto de autoconservação), que visa conciliar ambas as perspectivas teóricas ora abordadas, em favor da proteção à dignidade da pessoa humana: Bioética é a combinação da biologia com conhecimentos humanísticos diversos, constituindo uma ciência que estabelece um sistema de prioridades médicas e ambientais para a sobrevivência aceitável (POTTER, 1988: 9). O advento da bioética global (POTTER, 1988), entretanto, suscitou reações de vozes conceituadas, como as de Campbel (1998) 6. Sobretudo quando comparada à bioética ponte, imaginada por Potter (1971). 7. David J. Roy, diretor do Centro de Bioética da Universidade de Montreal, fora um pioneiro quanto ao enfoque do progresso tecnológico (aplicado à saúde) como motivador da reflexão ética. Mas há, aqui, uma distinção sutil: a originalidade de Roy (1979) consiste no approach ao progresso tecnológico em si, e não às implicações ideológicas de algum paradigma desenvolvimentista. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 31 e Benatar (1998), que interpretaram o termo “global” não como abrangente-interdisciplinar compartilhado, sentido efetivamente adotado por Potter (1988), mas significando uma proposta homogeneizante em termos universais. Em 1989, respaldado pela assertiva de Childress (1988), segundo a qual o conflito é inevitável no terreno da ética, Durant elabora um conceito utilitarista de bioética que, mantendo-se fiel ao pragmatismo de Reich (1978), introduz a problemática condizente à resolução de conflitos8: “A Bioética é a pesquisa de soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção biomédica” (DURANT, 1995: 22). Mesmo em Potter (1971), penso, a solução de conflitos já era tida como uma instância bioética, uma sua preocupação sistêmica, mas não a própria bioética - qual ocorre em Durant (1995). Daí porque Potter (1971), amparado em sua notável coerência semântica, sempre considerou a bioética não apenas como instância preditiva e preventiva, mas como uma corregedoria científica, uma ciência encarregada de propor soluções de cunho ético (MELINA, 1996: 7-8; SCOLA, 1998 b: 77), capazes de dirimir o que ele mesmo apontara como sendo os quatro mais graves bioconflitos da humanidade: degradação ambiental, explosão demográfica, saúde precária e desnutrição. Nessa mesma época, Sass (1991) aduz que a medicina, porque mantém um vínculo constante com aspectos essenciais da existência humana, não deve prescindir de sua natural relação com o fundamento ético. Sass responde pela deontologização do pensar bioético, situando-o, em termos de abrangência conceitual, um nível abaixo da abordagem casuística e dois níveis aquém da ética aplicada (Figura 5, coluna 3). 8. A recomendação nº 1.160 da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa, editada em 28 de junho de 1991, traz consigo uma declaração que retrata, com bastante nitidez, a influência direta das formulações conceituais propostas por Roy (1979), particularmente quanto ao enfoque do progresso tecnológico como motivador da reflexão ética, e por Durant (1995) e sua bioética de solução de conflitos: “Os problemas universais ocasionados pela aplicação da Biologia, Bioquímica e Medicina exigem soluções que propiciaram a nova disciplina denominada Bioética. Com as expectativas suscitadas pelo progresso nessas ciências, entremeiam, por vezes, as inquietudes referentes aos direitos mais importantes da pessoa humana”. 32 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Bioeticistas mais criteriosos, a exemplo de D’Assunção (1996), Beauchamp e Childress (1994), Clotet (1994) e o próprio Sass (1991), costumam distinguir, ainda que implicitamente, a ética aplicada da deontológica, bem assim da casuística: Tradicionalmente a ética aplicada tem sido exercitada sob o aspecto do denominado casuísmo ou casuística como o estudo ou análise de uma situação particular sob o prisma moral. É importante lembrar que uma das raízes clássicas do casuísmo é Aristóteles na sua explanação do conceito de “epiquéia”. A ética aplicada, porém, tem um caráter mais amplo do que o simples casuísmo. A ética aplicada pode também ser examinada sob a consideração da denominada ética profissional, que é um dos componentes mais importantes da mesma. A ética profissional trata dos problemas éticos vinculados à prática ou exercício de determinada profissão [...] A ética aplicada é bem mais abrangente do que a ética profissional. A ética profissional, também chamada de deontologia profissional, tem, entretanto, uma importância cada vez maior na sociedade hodierna (CLOTET, 1994: 105). Se para Durant (1995) a bioética é, tão-somente, um processo orientado à solução de conflitos morais na seara biomédica, em Engelhardt (1998), a constrição da bioética atinge seu grau máximo, a ponto de ela equivaler a uma mera ferramenta de negociação: “A Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais” (ENGELHARDT, 1991: 19). A definição sugerida por Engelhardt inova ao identificar como uma característica fundamental da bioética, o pluralismo contratualista, que se viabiliza sob os auspícios de um pretenso ecumenismo 9 ético. Em 1991, Rothman descreve a bioética como um movimento em defesa dos direitos humanos (cf. ROTHMAN, 1991), que se 9. Tal ecumenismo contratualista é, de fato, uma contradição em termos, conquanto se dá, não raro, em desfavor da parte hipossuficiente. Isso porque Engelhardt prioriza, em sua abordagem bioética, o negociado - em detrimento de uma eventual predisposição ou pretensão ecumênica. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 33 insurge contra certas atrocidades praticadas durante o século XX, convenientes ao progresso técnico-científico no campo das pesquisas biomédicas, e em desfavor do modelo decisório comum aos profissionais médicos, tradicional expressão da ética hipocrática. Rothman adere àquela mesma visão pragmático-utilitarista da bioética enquanto instância voltada à solução de conflitos morais, ensejados pelo planejamento, desenvolvimento e quase irrestrita disseminação da tecnologia biomédica, sobretudo nos grandes centros urbanos. O aludido escritor favoreceu, outrossim, a expansão da abordagem hellegeriana, ao propor uma (sócio)bioética que relativiza valores e normas, cuja fonte é a ética descritiva - de orientação historicista e sociológica. No biênio 1993-94, o brasileiro Joaquim Clotet 10 publica Por que Bioética? e, logo em seguida, Bioética: uma ética aplicada em 10. Ph.D. em bioética e professor vinculado ao núcleo de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Joaquim Clotet protagonizou uma abordagem empírica da bioética, enquanto modalidade daquilo que se entende por ética aplicada. Com efeito, em Bioética: uma ética aplicada em destaque, Clotet (1994: 115129) sustenta que, considerada de um modo amplo, a ética aplicada consiste no estudo dos aspectos morais próprios de um conflito individual ou coletivo, que se realiza na deliberação acerca desses mesmos aspectos, pensados em vista das implicações pessoais e/ ou comunitárias passíveis de manifestação no cotidiano da humanidade, o que nos desperta para a emergência de certos conflitos sócio-individuais, que condicionam o bem-estar e a coexistência digna da pessoa humana, a exemplo da discriminação racial e sexual, da responsabilidade pelo equilíbrio ambiental, etc. Em face de uma apreciação mais restrita, no entanto, a ética aplicada considera e avalia uma determinada conduta a partir de regras, princípios, valores, ideais, razões e/ou sentimentos que sirvam de alicerce e orientação (padrão moral de comportamento) ao agir reto. E, partindo do conceito de ética aplicada, como incidência dos princípios morais sobre um conflito específico, a bioética seria uma peculiar abordagem dos problemas éticos, suscitada pelo avanço extraordinário da tecnociência em sua expressão biológica, bioquímica e biomédica. Em Por que Bioética?, por sua vez, o mesmo Clotet (1993: 13-19) adverte que, na segunda metade do século XX, particularmente nas décadas de 70 e 80, uma variedade sem precedentes de conflitos ou dilemas éticos, ensejados pela tecnologia biomédica, eclodiu em nossa sociedade de um modo concomitante e bastante intenso, o que provocou uma revisão defensiva das formas tradicionais do fazer-decidir biomédico. Desde então, o principal desafio colocado à ética (aplicada) contemporânea consiste, basicamente, em constituir um padrão moral comum, capaz de solucionar as controvérsias alavancadas pela biotecnociência de vanguarda, cabendo à bioética, enquanto imagem ou expressão paradigmática da ética médica hodierna, a formulação deste padrão ético global. Daí, infere-se que Clotet, embora seja um autêntico neo-hellegeriano, conquanto reconhece a bioética como ética aplicada ao vasto campo da saúde, não deixa de acolher certos aspectos suscitados por Reich (1978), Durant (1995) e Engelhardt (1991), que representam o tripé fundamental do paradigma reducionista pós-Hellegers. 34 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO destaque, a partir dos quais reelabora a definição subscrita por Reich (1978), fazendo-o dentro de uma acepção hellegeriana pura, na qual classifica a bioética como uma espécie de ética aplicada, cuja natureza é epistemológica. Para Clotet (1994), a bioética é, inescusavelmente, uma ética aplicada11 stricto sensu; e seu objeto, os conflitos morais ensejados pelo avanço inconseqüente da biotecnologia. Também em 1994, o Bioethicsline, serviço de informação bibliográfica on line mantido pelo “Center for Bioethics” da Georgetown University, ratifica o conceito engendrado por Clotet, aduzindo que a “Bioética é um ramo da ética aplicada que estuda as implicações de valor das práticas e desenvolvimentos das ciências da vida e da medicina” (BIOETHICSLINE, 1994). Os artigos escritos por Clotet (1993; 1994; 1995; 1997) sinalizam a influência de Gracia (1989: 11), para quem “a Bioética constitui o novo semblante da ética científica”; ou seja, “ética científica” no sentido (epistemológico) de uma ética biomédica aplicada, e não de uma ciência ética (POTTER, 1998) que imporia, numa perspectiva potteriana, limites morais à sociedade tecno-industrial pela adoção de valores ecológicos nela tidos como não prioritários. Ao discorrer sobre o fim precípuo da bioética enquanto ética biomédica aplicada, Clouser esclarece que a mesma não se destina à busca de princípios, mas ao esgotamento de todas as implicações relevantes (cf. CLOUSER, 1978). Tem-se, ademais, a visão evolutiva de Jonsen (1993)12, segundo a qual a bioética amadureceu qual uma forma menor da filosofia moral concernente à práxis médica. Quanto ao enunciado de Jonsen, o adjetivo “menor” não é depreciativo da bioética. Antes, restringea, delimita-lhe um campo próprio de ação, enquanto expressão pontual da ética aplicada. 11. Sobre a bioética enquanto ética aplicada, ver Beauchamp e Childress (1994: 44-119), Neves (1996: 7-16), Reich (1995), Gracia (1989), Clouser (1978) e Bellino (1997: 47-56). 12. Íntegra da conferência “The Birth of Bioethics” (1992), proferida por Jonsen em Seatle, durante simpósio comemorativo do trigésimo aniversário do artigo They decide who lives, who dies, veiculado pela Life (prestigiado semanário da mass-media que, em 1962, trouxe a público fatos hediondos, alusivos à triagem seletiva daqueles que usufruiriam os benefícios terapêuticos da máquina de hemodiálise, recém-criada pelo Dr. Belding Scribner em 1961, na cidade de Seatle). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 35 Faden (1986) é outro a advertir que, partindo do estágio civilizatório hodierno e de suas mais variadas manifestações culturais, a compreensão das necessidades e vicissitudes contextuais da bioética, bem assim sua justificação, reivindicam uma “linguagem dos direitos” (FADEN, 1986: 6), algo que o dueto Crispell e Gomez (1977: 74-80) percebera desde os primeiros anos que sucederam a fundação da bioética. De fato, ao enfrentar o delicado tema do acesso à saúde a partir de uma abordagem sociojurídica, Crispell e Gomez (1977) apontam a defasagem entre os serviços sanitários prestados nas zonas urbana e rural, enfatizando o direito inalienável dos cidadãos norteamericanos campesinos à saúde de vanguarda praticada nos centros urbanos, e sugerindo, inclusive, medidas - quanto à alocação de recursos - afeitas à salvaguarda de tais direitos. Crispell e Gomez (1977) denunciam, no que diz respeito à democratização do acesso à saúde, que o suposto progresso tecno-científico intervém como fator de exclusão social das comunidades rurícolas. Resgatando a questão da interdisciplinaridade (POTTER, 1971; ROY, 1979), além de aspectos outros ligados à sistematização das dimensões morais, Reich (1995) reformula o conceito que havia definido em 1978, argumentando que a... ... Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar (REICH, 1995: xxi). Comte-Sponville afirma, em 1997, que a bioética “não é uma parte da Biologia; é uma parte da Ética, é uma parte de nossa responsabilidade simplesmente humana; deveres do homem para com outro homem, e de todos para com a humanidade” (COMTESPONVILLE, 1997: 61). Em termos conceituais, Comte-Sponville se encontra entre a utopia potteriana e a tradição utilitarista iniciada por Hellegers. E, embora possua um caráter abrangente que tenderia a Potter, sua definição acerca da bioética, porque adstrita à pessoa humana em si (em detrimento do seu ecossistema), aproxima-se da perspectiva hellegeriana, ainda que nela não se coadune. 36 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Assim, levando-se em conta o esforço taxonômico que realizo no item subseqüente - “A bioética e a vida das bioéticas” -, talvez seja mais apropriado posicionar o referido autor na honrosa companhia de Rothman (1991), pois, também, é possível apreender em ComteSponville aquela mesma abordagem sócio-descritiva subjacente à bioética movimento (Figuras 5 e 6). Reconhecido por sua estatura intelectual e tenacidade incomuns, Potter anuncia, em 1998, sua hipervisão de uma bioética profunda13, “... como nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural e que potencializa o senso de humanidade” (POTTER, 1998: 05). Malgrado o ativismo de Potter, a primazia hellegeriana parece inabalável, devido a uma vantagem institucional habitualmente negligenciada. Com efeito, a proposta de Hellegers, além de co-natural ao pragmatismo norte-americano, serve-se, desde seu advento, de um diferencial estratégico em relação a Potter: o significativo respaldo logístico e financeiro proporcionado pelo “Kennedy Institute” (Figura 3). 13. Potter defendeu, em 1998, a tese segundo a qual a bioética se encontra em seu terceiro estágio evolutivo, ao qual designou de bioética profunda, correspondendo o primeiro estágio a bioética ponte (POTTER, 1971), assim denominada em razão de sua base interdisciplinar, e o segundo, a bioética global (POTTER, 1988), que reitera, inclusive, a definição potteriana original (1971). A nota fundamental, aqui, diz respeito à evidência de que os estágios bioéticos identificados por Potter constituem, de fato, um liame conceitual uníssono, cujas constantes são abrangência, pluralismo, interdisciplinaridade, abertura sistêmica, que permitem a incorporação crítica de novos conhecimentos (constantes potterianas). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 37 Em todo caso, a bioética profunda adveio da noção de ecologia profunda14, concebida pelo filósofo norueguês Arne Naess em 1973, a fim de ressaltar a importância da reflexão ético-ambiental. O Quadro 1 confronta as propostas de Naess (1973) e as do então paradigma ecológico hegemônico: 14. A ecologia profunda, diferentemente da ecologia rasa, apresenta-se como uma alternativa ao paradigma dominante sobre o manejo dos recursos naturais, resgatando a urgência de uma reflexão ecoética de cunho holístico (cf. CAPRA, 1986: 26-27). Acrescente-se que Naess (1973), enquanto precursor da ecologia profunda, filia-se à ética da terra proposta por Leopold (1989). Também na década de 1970, o Brasil testemunhara a consolidação do pensamento de José Lutzemberger (ecólogo gaúcho que desencadeou o movimento ecológico brasileiro, sobremodo a partir da criação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - AGAPAN), cujas idéias, amplamente influenciadas pelos estudos de Schweitzer (1964), têm uma relação estreita com a ecologia profunda, interagindo ambas dentro de um mesmo quadro teórico: “Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo” (LUTZENBERGER, 1990: 93). 38 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Em que pese a revisão bibliográfica ora estruturada, que se adstringe à literatura acadêmica, há algumas outras definições sufragadas por dicionários e enciclopédias, cujo referimento se justifica pela possibilidade de verificação, no que é pertinente à bioética, daquele seu significado e abrangência veiculados nessas obras de consulta geral (Quadro 2): FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 39 Clotet lamentava que, “Se procurarmos o verbete bioética num dicionário ou enciclopédia, teremos, provavelmente, a desagradável surpresa de não achá-lo” (1993: 5). Porém, o que já foi um comentário oportuno, logo se esvaiu ante a notória popularização da bioética, rapidamente disseminada para além dos círculos acadêmicos. A tal respeito, Drane (1990: 02) escreve que, “em poucas décadas, a Bioética chegou a ser uma preocupação maior em todo mundo e continuará refletindo o Ethos da civilização tecnológica dos séculos XX e XXI”. Portanto, a bioética profunda idealizada por Potter (1998) delimita o primeiro ciclo bioético - do qual trato a seguir -, que ele próprio iniciara em 1970, caracterizado por um intenso dualismo intraparadigmático (Figura 2). A BIOÉTICA E A VIDA DAS BIOÉTICAS Apesar do seu estilo pouco apropriado aos ditames academicistas, o subtítulo deste item quis ressaltar a complexidade do primeiro ciclo bioético, o politeísmo ético (para utilizarmos uma terminologia weberiana) da parábola bioética. A parte inicial - do mencionado subtítulo - sugere uma abordagem sistêmica; já sua parte final, reporta-se à decodificação e mapeamento das formas de expressão da bioética tradicional (Figuras 5 e 6). Rabisquei, então, um esboço da estrutura funcional-decisória a perfazer o primeiro ciclo bioético, delineando o fluxograma alusivo à Figura 4: 40 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Do quanto exposto na Figura 4, depreende-se: • • • • • • coluna A - a interrogação representa o conflito ético ocorrido na pesquisa biomédica, suscitando questionamentos sobre possíveis violações à dignidade dos sujeitos nela envolvidos; coluna B - o feixe de tensão conflitante representa o objeto elaborado, ou seja, o conflito bioético delimitado; coluna C - o prisma corresponde ao sistema bioético propriamente dito, o qual denomino bioética BASP (Branca Anglo-Saxônica - Protestante), vertente cultural que se apossa do primeiro ciclo bioético, controlando-o; coluna D - o espectro de soluções concerne à triagem, pelo prisma cultural, de possíveis direcionamentos ao conflito bioético, que refletem a incidência das diferentes expressões da bioética BASP (Figura 5); coluna E - traduz a síntese relacional dos níveis de aplicação da bioética BASP, mediada pela lógica inerente a um pluralismo de interesses: a da negociação15; coluna F - o estágio final de todo o processo, onde se dá a resolução (negociada) do conflito submetido ao processo decisório. Quanto aos níveis de aplicação do primeiro ciclo bioético, é possível classificá-los de acordo com o grau de afinidade intervencionista, razão pela qual proponho, a partir da genealogia antevista no item “Bioética intertemporal e conceitual” deste capítulo, as representações dispostas a seguir (Figuras 5 e 6): 15. De cujas implicações trato no item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 41 42 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 43 A par d’outras incursões nesse sentido, Sgreccia (1996: 46) subdivide a bioética em geral, especial e clínica. Garrafa (1999: 14) a classifica em bioética das situações persistentes e bioética das situações emergentes. Berlinguer (1995) se refere às bioéticas de fronteira e do cotidiano: a primeira, relativa aos “avanços da tecnociência e a outra [...] que se preocupa com a fome, a miséria, a exclusão social, o racismo etc.” (AZEVÊDO, 2000: 77). Todavia, malgrado a autoridade desses bioeticistas e a despeito da habitual propriedade de vossos tirocínios, eles negligenciam, em suas categorizações, a tessitura ideológico-cultural subjacente à conformação histórica da bioética. Essa é, além do mais, uma constatação intrigante, conquanto seja o próprio Sgreccia (1996: 26-27) que, no primeiro volume do seu enciclopédico Manual de Bioética, consigna, mesmo sem qualquer intenção aparente de fazê-lo, o fato histórico e teleológico, por assim dizer, de que o protestantismo consubstancia a reminiscência capital do ciclo bioético aqui isolado16. *** Respondidas as questões operacionais do presente capítulo, reviso em seguida (capítulo III) os principais modelos descritos pela literatura bioética, procurando discernir as concepções que orientam o pensar-agir dos bioeticistas. 16. De qualquer sorte, além de possivelmente despretencioso, tal argumento é secundário no referido texto de Sgreccia, passando quase desapercebido. Retomo o vértice gnosiológico e crítico - em discussão, da bioética tradicional enquanto expressão da ética protestante, no item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V). CAPÍTULO III MODELOS EXPLICATIVOS DA BIOÉTICA PANORAMAS BIOÉTICOS: RECENSEAMENTO E DECODIFICAÇÃO A bioética (leia-se o primeiro ciclo bioético), desde seu advento, assistiu à dispersão de vários modelos teóricos - muitos dos quais importados, de forma um tanto precária, d’outras áreas de conhecimento 17 -, que alicerçam as proposições de diferentes linhagens de bioeticistas. Reviso aqui, os onze modelos mais citados pela bibliografia consultada18, que delimitam um horizonte conceitual à intervenção bioética em nosso cotidiano. 17. Embora a deslocação de conceitos possa constituir um meio valioso, profícuo e legítimo de formulação teórica, pode muito facilmente degenerar-se numa extrapolação conceitual inapropriada (cf. RAMOS, 1989: 69-71; CASSIRER, 1951: 210; MERTON, 1967: 108; SCHÖN, 1963 a; 1963 b: 53 - para quem “A emergência de conceitos pode decorrer da deslocação de velhos conceitos para novas situações”). Com efeito, a transvalidação inadequada de conceitos se dá quando a extensão de um modelo teórico do fenômeno x ao y não se justifica, porque o fenômeno y pertence a um contexto peculiar, cujos caracteres específicos correspondem, apenas parcialmente, ao contexto do fenômeno x. Expõe-se, então, com alguma freqüência, à sedução de estender conceitos injustificadamente (ao empreender o esforço de elaboração teórica), porque, diria Kaplan (1964: 266), “Não há duas coisas no mundo completamente iguais, de modo que toda analogia, por mais estreita que seja, pode ser levada a um extremo exagerado; por outro lado, não há duas coisas que sejam completamente dessemelhantes, de modo que sempre é possível estabelecer uma analogia, se nos decidirmos a fazer isso. A questão a ser considerada, em todos os casos, é se há ou não alguma coisa mais a apreender nessa analogia, se nos decidirmos a estabelecê-la”. Assim, ao deslocar um conceito (ou simplesmente tentá-lo), pode-se incorrer em um “estiramento conceptual” enganoso (SARTORI, 1970), cair em uma “cilada intelectual” (NAGEL, 1961: 115). Escreve Nagel (1961: 108): “O que existe de similar entre o novo e o velho é, muitas vezes, apenas vagamente apreendido, sem ser cuidadosamente articulado. Além disso, pouca - se é que alguma - atenção é dada, em geral, aos limites entre os quais é válida essa similitude. Sendo assim, quando noções familiares são estendidas a assuntos novos, à base de similaridades não analisadas, graves erros podem ser facilmente cometidos”. 18. Sgreccia (1996: 65-81), nessa seara, condensa o pluralismo bioético, mencionando apenas quatro modelos: o sociobiológico, que, de cunho descritivo, traça um paralelo entre as evoluções aos níveis biológicos e das relações sociais (darwinismo social), de tal modo que o impulso evolutivo, traduzido em o egoísmo biológico ou instinto de autoconservação, procura sempre desenvolver novas formas de adaptabilidade, cujas expressões culturais 48 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO A esse respeito, Beauchamp e Childress (1994: 14-47) contabilizam a existência de três modelos: o principialismo (ou dedutivista), o casuístico (ou indutivista) e o coerentista. Maria do Céu Patrão Neves propôs um rol mais criterioso, no qual relacionou oito modelos explicativos. Integram a lista de Neves (1996: 7-16) o principialismo, o modelo autonomista, o da virtude, o casuístico, o do cuidado, o contemporâneo do direito natural, o contratualista e o personalista. Bellino (1997: 215-217) também noticia um novo modelo, o ternário. Enfim, o site da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (www.ufrgs.br/HCPA/gppg) faz alusão ao modelo comunitário (cf. GOLDIM, 2001). Em seqüência, passo a examinar individual e sucintamente os modelos sobreditos, apontando-lhes os caracteres nucleares, sendo que a profundidade e o cuidado dispensados a cada um deles são, reconheço, diretamente proporcionais a sua projeção na literatura bioética referida. MODELO DOS PRINCÍPIOS OU PRINCIPIALISMO Idealizado, em 1978, por Beauchamp e Childress (1994) - não obstante o termo “principlism” tenha sido criado em 1990, por Clouser e Gert (1990: 219-236) -, o principialismo, cujo referencial teórico primário é Frankena (1981), deriva do utilitarismo19 anglo-americano. são o direito e a moral cambiantes; o liberal-subjetivista, donde a moral “não pode se fundar nem sobre os fatos nem sobre os valores objetivos ou transcendentais, mas apenas sobre a ‘escolha’ autônoma do sujeito” (não-cognitivismo da Lei de Hume - SGRECCIA, 1996: 67-71); o pragmático-utilitarista, que, fundado no “quality of life”, orienta-se por uma política do mal-menor, pelo cálculo utilitário-casuístico das conseqüências de uma ação, segundo a fórmula custo-benefício; enfim, o personalista (adotado pelo referido autor), voltado à resolução das antinomias próprias dos modelos anteriores, pela consagração da objetividade de valores e normas (cognitivismo). Ora, o modelo pragmático não passa de uma adaptação evolutiva do modelo liberal puro, isto é, de uma evolução da ética individualista à ética pública de grupos majoritários. Sgreccia (1996: 73-74) mal dissimula tal fato, à medida que reconhece o modelo pragmático, comum aos “países anglo-saxões, qual uma espécie de subjetivismo da maioria”. Ademais, o não-cognitivismo inerente aos modelos liberal-subjetivista e pragmático-utilitário dá-lhes um teor laico, cuja expressão bioética maior é o descritivismo sociobiológico. 19. Concebido por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, o utilitarismo é, consoante Busse (1934: 233) e Urmson (1994: 377-378), a teoria empírica segundo a qual o valor das ações depende das conseqüências positivas ou negativas que trazem consigo. Desse modo, uma ação é correta, se as implicações dela advindas são, de fato, melhores que as de qualquer outra porventura realizada em seu lugar (MILL, 1909). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 49 Trata-se de um modelo dedutivista, individualista e linear, que, em vista de um conflito moral, decide-o a partir de princípios éticos previamente definidos. Em outras palavras, o principialismo consiste num padrão bioético assentado no uso de princípios, enquanto balizador hermenêutico e de resolução dos conflitos morais, sobretudo quanto às pesquisas biomédicas. Um dos célebres ensaístas desse arquétipo, William Frankena propôs, em 1963, dois princípios que, enquanto “deveres prima facie” (ROSS, 1930: 19-36; BELLINO, 1997: 201), tipificariam ações corretas e obrigatórias: o princípio da beneficência e o da justiça (FRANKENA, 1981: 61-73). Sobreveio, então, o Relatório Belmont, publicado em 1978, o qual menciona três princípios ou referenciais éticos concernentes às pesquisas em seres humanos: respeito às pessoas, beneficência e justiça (BELMONT REPORT, 1978). Também em 1978, Tom Beauchamp e James Childress, ambos vinculados ao “Kennedy Institute of Ethics”, publicaram Principles of Biomedical Ethics, obra que consagrou a incidência de quatro princípios na abordagem de conflitos bioéticos: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. O sistema de princípios erigido por Beauchamp e Childress (1994) é tido, freqüentemente, como o vigamento do principialismo, tamanha a notoriedade e a aceitação alcançadas na literatura bioética. Eliane Azevêdo adverte, contudo, que “A elegante elaboração teórica desses princípios no Primeiro Mundo ecoa distante da realidade daqueles que nem sequer têm noção de mundo” (AZEVÊDO, 1994: 9). Há, outrossim, quem profetize, de forma um tanto apressada, o declínio do principialismo (cf. EMANUEL, 1995), ensejado por contradições e lacunas que o neutralizam enquanto modelo decisório voltado à solução de conflitos no campo biomédico. Questiona o aludido bioeticista se o arcabouço propedêutico concebido por Beauchamp e Childress é, de fato, suficiente e adequado à proposta de uma moralidade comum 20 , vindo a 20. Na edição publicada em 1994 de Principles of Biomedical Ethics, Beauchamp e Childress abandonam o termo “principlism” (principialismo), passando a designar seu modelo de “common morality” (moralidade comum). 50 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO retorquir, ainda, se outros valores, a exemplo da solidariedade deveriam ser incorporados ao rol daqueles já contemplados pelo modelo principialista (EMANUEL, 1995: 37-38). Princípio da autonomia Quanto ao preceito em questão, sua referência primária é o individualismo de John Stuart Mill, para quem “sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente o indivíduo é soberano” (MILL, 1909: 5). Ilustra bem uma tal perspectiva o caso Schloendorff (CARDOZO, 1914). Em 1911, a senhora Schloendorff fora internada às pressas no “Society of New York Hospital”, apresentando dores intensas decorrentes de uma massa abdominal não diagnosticada. O médico responsável pelo atendimento de Schloendorff (paciente), após exaurir as possibilidades de diagnóstico não invasivo disponíveis à época, solicitou sua autorização para realizar uma laparotomia exploratória. A paciente lhe consentiu o procedimento invasivo, desde que para fins diagnósticos. Logo, toda e qualquer medida terapêutica deveria ser previamente aprovada por ela própria, anuída de modo livre e esclarecido. O profissional médico, então, realizou a laparotomia exploratória, quando se deparou com um tumor abdominal encapsulado, que poderia ser inteiramente removido, vindo a fazê-lo (intervenção cirúrgica além da extensão autorizada pela paciente). E, quando a senhora Schloendorff recobrou a consciência, seu médico noticiou e justificou-lhe o ocorrido, asseverando que não poderia desperdiçar o ato cirúrgico para extrair o tumor, pois as condições operatórias eram amplamente favoráveis. Indignada com o que supunha um descomedimento e abuso terapêutico do cirurgião, que transgrediu o seu consentimento prévio (apenas para fins diagnósticos), a senhora Schloendorff recorreu ao Poder Judiciário, ali expondo sua pretensão indenizatória - julgada procedente, afinal, pelo juiz Cardozo (1914) -, que acolheu a tradição anglo-americana relativa ao princípio da autonomia, argumentando que todo ser humano em idade adulta, a gozar de plena consciência, tem o direito de decidir o que pode ou não ser feito em seu próprio corpo. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 51 De filiação pragmática, o caso Schloendorff nos oferece um bom exemplo de ação tipicamente paternalista. Ora, o paternalismo, enquanto negação de um agir autônomo, é na acepção da Georgetown University, a “colocação de limites à autonomia individual, com o objetivo de beneficiar uma pessoa, cuja autonomia esteja limitada, ou prevenir um dano” (BIOETHICSLINE, 1994). De modo análogo, escrevem Beauchamp e Childress (1994: 271-274): “quando a beneficência não atenta à autonomia das pessoas gera ações paternalistas”. Feinberg subdivide o paternalismo em forte e fraco, fazendo-o em vista do sujeito passivo da ação paternalista. Segundo o referido autor, o paternalismo fraco se manifesta em desfavor daquelas pessoas cuja autonomia21 esteja limitada, quer por uma restrição parcial e/ou temporária, quer devido a uma privação integral e/ou presumivelmente definitiva. O paternalismo forte, porém, volta-se contra pessoas plenamente autônomas (cf. FEINBERG, 1971: 105-124). O modelo principialista sugere que o paternalismo médico, quando inevitável, deve implicar uma prática motivada, cuja justificação cabe a seu agente (cf. BEAUCHAMP e CHILDRESS, 1994: 277); ou seja, para justificar uma ação paternalista, ter-se-ia que indagar preliminarmente: “é algo que o paciente claramente consentiria se estivesse informado e fosse plenamente capaz?” (CHARLESWORTH, 1996: 148). Para Florencia Luna, no entanto, o paternalismo é autojustificável e, por vezes, eticamente necessário, naquelas hipóteses envolvendo analfabetos, recém-nascidos, pessoas comatosas... (LUNA, 1995: 283-290). Beauchamp e Childress (1994: 283) defendem a legitimidade do paternalismo forte, desde que concorram quatro circunstâncias justificadoras: • • paciente em risco e danos previsíveis; ação paternalista como conditio sine qua non de prevenção a danos; 21. A par dos subsídios da ciência jurídica nessa área, observo que a autonomia, enquanto atributo da personalidade humana, não se trata de algo passível de restrição, o que só é possível em relação à capacidade, respeitante ao exercício - pessoal (imediato) ou mediante terceiro - da autonomia (DINIZ, 1998; 2001). 52 • • ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO os benefícios da ação paternalista devem exceder eventuais danos; escolha da ação paternalista que implique menor restrição à autonomia. Malgrado esse pró-paternalismo excepcional, há a objeção suscitada por Pellegrino e Thomasma (1988: 68), que contra-argumentam: ... o paternalismo médico é falho porque anula um elemento essencial na ética deontológica da medicina, o respeito à pessoa. É necessário purificar a degeneração paternalista que tomou conta da tradição hipocrática. O núcleo da relação com o paciente é o bem. O Relatório Belmont (1978: 06), que instituiu certos parâmetros morais alusivos às pesquisas realizadas em território norteamericano, prescreve que a autonomia... ... incorpora, pelo menos, duas convicções éticas: a primeira, que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos; e, a segunda, que as pessoas com autonomia diminuída devem ser protegidas. Desta forma, divide-se em duas exigências morais separadas: a exigência do reconhecimento da autonomia e a exigência de proteger aqueles com autonomia reduzida. Guardando semelhanças com o pensamento bioético de Azevêdo (1994; 2000), Charlesworth traz à baila uma abordagem da autonomia individual que, de certa forma, confunde-se com a noção de cidadania: Ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e sentir-se autônomo, se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se vive desprovido da ordem pública. Da mesma forma, a assistência à saúde básica é uma condição para o exercício da autonomia (CHARLESWORTH, 1996: 131). Acrescente-se que, ao publicar, em 1996, a segunda edição de sua célebre obra Fundamentos da Bioética, Tristram Engelhardt rebatizou o princípio da autonomia, referindo-se-lhe, desde então, como princípio do consentimento - numa acepção historicista: FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 53 ... rebatizei o “princípio da autonomia” como o “princípio do consentimento” para indicar melhor que o que está em jogo não é algum valor possuído pela autonomia ou pela liberdade, mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum. O princípio do consentimento coloca em destaque a circunstância de que, quando Deus não é ouvido por todos do mesmo modo (ou não é de maneira alguma ouvido por ninguém), e quando nem todos pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida, e desde que a razão não descubra uma moralidade canônica concreta, então a autorização ou autoridade moral, secularmente justificável, não vem de Deus, nem da visão moral de uma comunidade particular, nem da razão, mas do consentimento dos indivíduos. Nessa surdez a Deus e no fracasso da razão, os estranhos morais encontram-se como indivíduos (ENGELHARDT, 1998: 17). Princípio da beneficência Dentre os princípios ora estudados, o da beneficência talvez seja o mais intuitivo. Tanto que, nessas ilações acerca do modelo principialista, não posso considerá-lo senão um princípio-síntese, muito embora haja quem entenda, a exemplo de sir David Ross, que, se houver conflito entre os princípios da não-maleficência e da beneficência, há de prevalecer o primeiro (ROSS, 1930: 21-22). Frankena (1981: 61-73) escreve que... ... o Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em relação ao mal. E o Relatório Belmont (1978) parece ter assimilado o ponto de vista frankeniano, à medida que preceitua duas regras características da ação beneficente: não causar o mal e maximizar os benefícios, inclusive minimizando os danos. Beauchamp e Childress (1994: 260) distinguem a beneficência da não-maleficência, atribuindo àquela idoneidade para constituir uma obrigação moral orientada a um agir em proveito alheio. 54 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Sobressai, por fim, a lição de Pellegrino e Thomasma (1988: 58-60), que vêem a beneficência, no contexto biomédico, como o dever de agir em prol do paciente. Sendo assim, não haveria conflito entre a autonomia e a beneficência, mas entre aquela e o paternalismo. Princípio da não-maleficência A não-maleficência é, penso, o princípio mais obscuro dos quatro aqui estudados. A tal ponto que alguns bioeticistas tratam-no, repetidas vezes, qual um aspecto do princípio da beneficência, pois, ao evitar danos, estaríamos em verdade, beneficiando alguém. Logo, a discussão acerca da autonomia conceitual do princípio da não-maleficência seria “um exemplo de falso problema” (BERNARD, 1998: 42). Entrementes, a despeito dessa controvérsia, o princípio da nãomaleficência, cuja reminiscência, quanto à deontologia médica, é o axioma primum non nocere (cf. BEAUCHAMP e CHILDRESS, 1994: 189), institui a obrigação moral objetiva de não infligir danos: Se, numa intervenção difícil e arriscada, um cirurgião se distraísse momentaneamente e, em razão disso, se desse a morte da pessoa, ele poderia ser subjetivamente não imputável, mas a objetividade da perda de uma vida humana continua sendo um fato que deve determinar o esforço do cirurgião para não voltar a se descuidar no futuro. No momento do juízo íntimo sobre a ação, prevalece a avaliação da subjetividade, mas, no momento normativo e deontológico, prevalece o valor objetivo, ao qual é preciso adequar cada vez melhor a atitude subjetiva (SGRECCIA, 1996: 80-81). Princípio da justiça De um modo geral, a bioética se vale da noção liberalprotestante de justiça, cujos fundamentos são o individualismo e o distributivismo (LORENZO, 1998: 23-26). De fato, os bioeticistas de primeira geração (Figura 3), mormente os de orientação anglo-saxônica - que, afinal, fundaram a bioética, imprimindo-lhe sua visão de mundo -, privilegiam, no que diz respeito ao princípio da justiça, uma abordagem distributiva à compensatória. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 55 Em 1963, Frankena (1981) se debruça sobre o princípio ora examinado, em sua feição distributiva ou quantitativa22, indagando: Quem deve receber os benefícios da pesquisa e os riscos que ela acarreta? Esta é uma questão de justiça, no sentido de “distribuição justa” ou “o que é merecido”. Uma injustiça ocorre quando um benefício que uma pessoa merece é negado sem uma boa razão, ou quando algum encargo lhe é imposto indevidamente. Uma outra maneira de conceber o Princípio da Justiça é que os iguais devem ser tratados igualmente. Entretanto, esta proposição necessita uma explicação. Quem é igual e quem é não-igual? Quais considerações justificam afastar-se da distribuição igual? [...] Existem muitas formulações amplamente aceitas de como distribuir os benefícios e os encargos. Cada uma delas faz alusão a algumas propriedades relevantes sobre as quais os benefícios e encargos devam ser distribuídos. Tais como as propostas de que: a cada pessoa uma parte igual; a cada pessoa de acordo com a sua necessidade; a cada pessoa de acordo com o seu esforço individual; a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada pessoa de acordo com o seu mérito. [...] Quais são os critérios ou princípios de justiça? Estamos falando de justiça distributiva, justiça na distribuição do bem e do mal. [...] A justiça distributiva é uma questão de tratamento comparativo de indivíduos. Teríamos o padrão de injustiça, se ele existe, num caso em que, havendo dois indivíduos semelhantes, em condições semelhantes, o tratamento dado a um fosse pior, ou melhor, do que o dado ao outro. [...] O problema por solucionar é saber quais as regras de distribuição ou de tratamento comparativo em que devemos apoiar nosso agir. Numerosos critérios foram propostos, tais como: a justiça considera, nas pessoas, as virtudes ou méritos; a justiça trata os seres humanos como iguais, no sentido de distribuir igualmente entre eles, o bem e o mal, exceto, talvez, nos casos de punição; trata as pessoas de acordo com suas necessidades, suas capacidades ou tomando em consideração tanto umas quanto outras (FRANKENA, 1981: 49-62). 22. Beauchamp e Childress (1994: 326-329), Drane (1990) e Gracia (1989) se filiam à abordagem frankeniana. 56 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO MODELO CASUÍSTICO Tal qual o principialismo, o modelo casuístico se perfaz a quatro mãos através d’outra célebre co-autoria, dessa vez entre Albert Jonsen e Stephen Toulmin, que, em 1988, editaram The Abuse of Casuistry: a history of moral reasoning. Esse modelo propõe, basicamente, a adoção de casos simbólicos, enquanto padrões analógicos e consuetudinários que orientam o processo decisório inerente ao conflito que venha a manifestar-se (cf. JONSEN e TOULMIN, 1988). Não haveria, nisso, uma autêntica transposição, dirigida à bioética, daquele modelo judiciário anglo-americano alicerçado em precedentes jurisprudenciais? Não seriam tais padrões ou universais casuísticos inspirados naqueles precedentes judiciários23? E, nesse caso, tornar-se-iam os bioeticistas juízes da práxis ética relativa às pesquisas científicas em humanos? Provocações à parte, os bioeticistas da Europa continental tendem a divergir do modelo sob análise, alegando que a seleção verticalizada de referenciais casuísticos encerra, em si mesma, um vigoroso artifício ideológico (BERNARD, 1998: 69-82), o qual despreza qualquer viés etnográfico. 23. O cammon law é o direito elaborado in judicando, feito por juízes - daí o brocardo judge made law. Os países que o adotaram, não obstante divirjam radicalmente da escola racionalista, que inspirou a codificação francesa, acolhem o fetichismo dos textos e a função mecânica da atividade judicial. Escreve Diniz (1998: 55): “O ponto de vista convencional que prevalecia no cammon law, em meados do século XIX, era o de que o direito constituía-se por um conjunto de normas permanentes, que só podiam ser modificadas pelo legislador. Os juízes não podiam alterá-las, mas apenas aplicá-las. A função judicial era descobrir e não criar direito novo, como dizia Blackstone. Quando um tribunal se afastava da doutrina consagrada em sentenças anteriores, não estava criando um novo direito, mas liberando o velho direito de uma interpretação errônea. Observa Beale que esse direito constava de leis, de normas declaradas (não elaboradas) nos precedentes judiciais e de princípios científicos aceitos como critérios fundamentais da jurisprudência”. A ciência do direito, então, deveria estudar, mediante esquemas lógico-formais, apenas a legislação vigente, enquanto direito positivo emanado do poder soberano, não se atendo às questões éticas. “A escola histórica do direito, que influenciava os países do cammon law, reconhecendo que o direito positivo não é algo criado definitivamente e que permanece estático, mas que se desenvolve lentamente, conforme a evolução social e as necessidades do povo, acabou por endeusar o passado, dando origem ao fetichismo do precedente e das ordenações tradicionais. Esta atitude analítica conduziu a um legalismo contrário ao espírito do direito inglês. A simbiose entre o dogmatismo exegético e o historicismo do cammon law, ao consagrar como absoluto o velho direito, fez resultar, nestes países, a petrificação do direito” (DINIZ, 1998: 56). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 57 MODELO COERENTISTA Concebido por Arras (1991: 29-51), em cuja obra é marcante a influência de Rawls (1971), propõe-se, aqui, o emprego de ambos os modelos precedentes (principialista e casuístico) a partir de uma complementaridade recíproca. Sendo assim, o modelo em discussão preconiza, quanto ao desfazimento de conflitos bioéticos, um equilíbrio interativo e não prioritário entre princípios - ou deveres prima facie - e referenciais casuísticos. O vocábulo “coerentista”, no entanto, adveio algo mais tarde por iniciativa de Beauchamp e Childress (1994: 20). MODELO TERNÁRIO O propósito nuclear do modelo ternário equivaleria ao do coerentista, não fosse pela introdução de um terceiro elemento, que Guillen (1990: 293-294) denominou de obrigações morais. Segundo Bellino (1997: 215-17), o modelo ternário visa à composição de conflitos éticos nos moldes de uma bioética clínica, o que se daria ao longo de três estágios seqüenciais24: 24. A estrutura processual do modelo guilleniano se perfaz em dois momentos: o principialista e, ato contínuo, o conseqüencialista. Por conseguinte, a fim de julgar eticamente qualquer ação concreta, é preciso “fazer dois tipos de análise: uma retrógrada, comparando-a com os princípios éticos, e outra ante-retrógrada, avaliando suas possíveis conseqüências. Os princípios são sempre universais e as conseqüências, sempre particulares” (BELLINO, 1997: 215). Guillen (1990) menciona um duplo contraste - no ato empírico - entre o critério “U”, ou universal, e o critério “P”, ou particular, formulando-os dessa forma: “Critério ‘U’: para que uma ação possa se considerar moral ou correta deve ser universalizável, de maneira que não vá contra o respeito devido a todos e a cada um dos indivíduos. Critério ‘P’: a fim de que as decisões concretas possam-se considerar responsáveis e boas, devem ter em conta as condições particulares dos fatos e avaliar as conseqüências de que possam derivar” (GUILLEN, 1990: 293). Portanto, o critério “U” dita a norma, o dever prima facie; o critério “P”, por sua vez, permite-nos justificar, em casos concretos, as exceções à regra. Mas Guillen introduz, ainda, o (terceiro) critério “C”, que “colabora na realização das condições de aplicação de ‘U’, tendo em conta a situação contingente” (Id. Ibid.: 294). O critério “C”, então, serve para estabelecer quando podemos apelar a “P”, que justifica a exceção à norma optando pelo mal menor. Partindo dos critérios supracitados, Guillen concebe um modelo analítico dos problemas morais, esquematizando-o em três momentos: 1) dever prima facie: norma moral + critério “U”; 2) prudência: exceção à norma + critério “P”; 3) obrigação moral: tomada de decisão + critério “C”. 58 • • • ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO universal ou “U” - concerne à interpretação do conflito bioético, a partir daquelas quatro proposições definidas pelo modelo principialista, cujo intuito é a delimitação da norma moral aplicável; particular ou “P” - diz respeito à análise do conflito em si e de suas circunstâncias, a fim de verificar preventivamente, em vista do caso concreto, as possíveis exceções à norma moral aplicável; contingente ou “C” - nessa fase, ocorre a resolução do conflito bioético pré-definido, através do cumprimento de uma obrigação moral, resultante da interação entre ambos os estágios precedentes. O modelo ternário apresenta, porém, um contra-senso insuperável. É que Guillen (1990) considera absolutos os princípios da não-maleficência e da justiça, estando o princípio da beneficência sempre relativo ao da autonomia. Mas, considerando-os absolutos, aquele autor contradiz seu próprio modelo, que os tem como deveres prima facie. Chamo a isso de paradoxo de Guillen: Na bioética clínica, os critérios “U” e “P” constituem um sistema de princípios, que, no primeiro caso, são os princípios de “não-maleficência” e de “justiça”, e, no segundo, os de “autonomia” e “beneficência”. Os primeiros têm caráter “absoluto”, para Guillen, enquanto os segundos são “relativos”. Não podemos jamais fazer mal a uma pessoa, mesmo se ela nos pede isso, mas não podemos fazer o bem a outras contra a vontade delas, já que, neste mesmo momento, o presumido bem se converte em mal (exceto nos casos de perda de capacidade ou competência: crianças, enfermos mentais, etc.). A beneficência é sempre relativa à autonomia, enquanto a não-maleficência prescinde da vontade do sujeito que recebe a ação. O mesmo acontece com a justiça que impõe não fazer discriminação alguma entre seres humanos, senão em benefício dos menos favorecidos. A não-maleficência e a justiça são as condições prévias e irrenunciáveis porque a relação médico-paciente não é só “não causar dano” (nãomaleficência) e não só não discriminar pessoas (justiça), mas fazer, também, todo o bem possível [...] a relação médico-paciente “consiste sempre de uma maneira ou de outra em uma negociação entre a autonomia do paciente e a beneficência do médico, na procura do ótimo possível em cada uma situação concreta” (BELLINO, 1997: 216-217). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 59 MODELO AUTONOMISTA O autonomismo não chega a constituir um modelo teórico, sendo mais o ícone, na área bioética, do ideário do establishment liberal-individualista. Expondo um julgamento muito pessoal e algo iconoclasta, entendo que a opinião ou crença autonomista é claramente panfletária, além de inefável quanto as suas entrelinhas e propósitos; vide, nesse sentido, um Engelhardt (1998), cuja leitura do princípio da autonomia ecoa o pragmatismo anglo-americano e sua lógica de mercado, a reduzir o ser humano a um objeto de índole consensual, de negociação: Baseado filosoficamente na tradição liberalista americana, a obra The Foundations of Bioethics [...] trata, por exemplo, os órgãos humanos como propriedades privadas e, por isso, passíveis de negociação em respeito à autonomia de seus proprietários. Exclui da sua noção de pessoa os embriões e fetos humanos, por não possuírem “consciência de si...” (LORENZO, 1998: 17). MODELO DA VIRTUDE Expoentes do modelo em foco, Pellegrino e Thomasma (1988) sugerem, revolvendo uma perspectiva tendencialmente estóica, que o agir bioético esteja fundado na - e finalizado pela - ética da virtude. Lorenzo (1998: 18), a quem cito uma vez mais, alega que ambos os sobreditos autores... ... centram-se na responsabilidade dos profissionais da saúde, sem deixar de integrar a vontade do paciente no desenvolvimento de suas decisões médicas. Como a virtude se aperfeiçoa pela prática, os autores ressaltam a importância da educação médica para a prática do bem. Joaquim Clotet se mostra convicto de que a virtude é uma forma adequada de agir comunitário, capaz de aprimorar a pessoa humana, sendo o vício seu avesso (cf. CLOTET, 1993). 60 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO MODELO DO CUIDADO Os traços característicos desse modelo foram estruturados por uma tríade de bioeticistas - Gilligan (1982), Noddings (1984) e Baier (1987) -, que se dispuseram a oferecer... ... como noção fundamental para o desenvolvimento da ação moral médica o princípio do cuidado, que é defendido como de expressão mais humana e acentuadamente feminina, em contraponto com a noção de justiça que seria masculina e de certa forma burocrática. Patrão Neves comenta ainda que a “intencionalidade personalista” deste modelo tem sido realçada como elemento positivo para combater a tecnicidade para a qual tem caminhado a medicina (LORENZO, 1998: 18). Creio haver, nessa opção, um recrudescimento do principialismo. É que Noddings (1984) faz da beneficência uma hiper realidade propedêutica, a absorver os demais princípios, relativizando-os. O ter-cuidado, cuja expressão mais apropriada, segundo Noddings, dar-se-ia no exercício da enfermagem, seria, portanto, a essência do pensar-agir bioético, bastando a si próprio: A noção de cuidado é tudo que é necessário para a ética [...] Sendo que as enfermeiras cuidam, não há necessidade de regras e princípios universais, não há necessidade de se preocupar com as idéias tradicionais de imparcialidade e justiça (NODDINGS, 1984: 76). Dentre os vários críticos do presente modelo, sobressai Barbara Appelbaum, em seu artigo Is Caring Inherently Good? (apud DINIZ, 2001); ou, ainda, Beauchamp e Childress (1994: 91), que o entreviram como uma proposta teórica inacabada e sectária. Partidária da bioética feminista, Sherwin (1992: 49-50) afirma que o modelo do cuidado revigora o servilismo histórico das mulheres, que, alijadas de poder decisório, tornar-se-iam meras executoras de cuidados. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 61 MODELO COMUNITÁRIO Na vanguarda do modelo em epígrafe, pondera Emanuel (1991) que a bioética comunitária pressupõe, quanto à sociedade norte-americana, sua silhueta pluralista, cujo potencial agregador é frustrado pelo - e contrasta com o - coeficiente ínfimo de valores nela compartilhados. De acordo com Emanuel (1991), o baixíssimo nível de coesão axiológica inviabiliza, naquela sociedade, a organização espontânea de uma teia moral abrangente, apta a conciliar os diversos atores e segmentos comunitários, e, por conseguinte, a compor um contexto favorável à discussão, verdadeiramente pluralista, sobre os conflitos (bio)éticos emergentes. Daí porque os artífices desse modelo, em meio aos quais encontramos um Callahan (1996), ensinam que a restauração de uma hierarquia de valores comuns é, por certo, condição indispensável ao diálogo autêntico com o outro. E ao reestruturar, nesses termos, o arranjo organizacional que lhe é próprio, a comunidade garantiria aos seus o livre acesso a bens e serviços, através de pequenos centros comunitários onde o trabalho solidário incitaria a comunhão de valores que, por seu turno, humanizaria as soluções compartilhadas pelo grupo. O modelo comunitário desenvolve, exponencialmente, a moralidade comum antevista pelo principialismo, embora o faça de um modo provinciano, considerando, apenas, o contexto sóciocultural dos EUA. MODELO CONTEMPORÂNEO DO DIREITO NATURAL Finnis (1980) é, provavelmente, o seu mais expressivo representante, de cuja leitura se deduz a influência de Grotius e Locke, formuladores de um jusnaturalismo sociomórfico25. 25. É bastante incomum a sobrevida histórica do jusnaturalismo, face às vicissitudes que se lhe deparam desde o empirismo exegético e suas concepções mecânico-legalistas (o exegetismo francês, a escola analítica inglesa e o pandectismo alemão) de interpretação e aplicação do direito, alcançando os críticos dos exegetas (dentre os quais sublinho o utilitarismo de Bentham, o teleologismo de Ihering, o empirismo de Holmes, a livre investigação cientí- 62 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO O modelo enunciado incidiria sobre o plano bioético imprimindo-lhe, enquanto marca fundamental, uma ética dos direitos naturais persuasiva quanto à necessidade de certos valores conhecimento, vida estética, vida lúdica, razão prática, religiosidade e amizade - que nele finalizariam o agir moral (cf. FINNIS, 1980). Ao que tudo indica, Lorenzo admite - e fá-lo parafraseando Neves (1996) - esse entendimento: Cito, também, John Finnis em “Natural Law and Natural Rights” onde o autor estabelece os seguintes valores como fundamentais em si mesmos: o conhecimento; a vida; a estética; o lazer; a racionalidade prática; a religiosidade; a amizade. Eles seriam fins e não meios, não se organizam hierarquicamente, e toda a ação na direção deles poderia ser considerada moralmente certa (LORENZO, 1998: 18). fica de Gény, a ofensiva sociologista de Ehrlich, a escola de direito livre, a jurisprudência de interesses, a jurisprudência sociológica norte-americana, a lógica experimental de Dewey, a teoria interpretativa de Dualde, o realismo jurídico norte-americano e escandinavo, a teoria de Hart, a teoria geral da interpretação de Betti e a concepção raciovitalista do direito), bem assim o historicismo casuístico, o positivismo jurídico, o racionalismo dogmático ou normativismo jurídico de Kelsen e o culturalismo jurídico (no qual se pode distinguir a teoria cultural objetiva, o egologismo existencial de Cossio, a teoria de Lask e o tridimensionalismo jurídico de Reale). Com efeito, prevalecia durante a Idade Média a concepção de um direito natural objetivo e material, de espírito aristotélico, que estabelecia “... o valor moral da conduta pela consideração da natureza do respectivo objeto...” (DINIZ, 1998: 36). Tem-se, outrossim, o jusnaturalismo escolástico, que concebia o direito natural como um arcabouço normativo-propedêutico, integrado por princípios morais primeiros (o princípio fundamental seria fazer o bem), delimitados pela inteligência a partir da natureza própria das coisas e do homem. No entanto, com o recrudescimento da secularização (intensificado no séc. XVII), a concepção escolástica do direito natural fora, desde o séc. XIII, gradativamente superada pelo jusnaturalismo formalista, que, desprezando as raízes teológicas de seu predecessor, funda-se na razão humana, enquanto instância lógico-matemática de dedução propositiva das normas de conduta. Neste último caso, a natureza própria do homem é tida ou como genuinamente social (por Grotius, Pufendorf e Locke), ou como originalmente individualista (por Hobbes, Spinoza e Rousseau). Mas é em Kant que o racionalismo é levado às últimas conseqüências, organizando-se uma ciência do direito pura e rigorosamente lógica. De fato, Kant realiza, em sua teoria do direito racional, a separação formal entre moral e direito, tendo-se em vista o motivo pelo qual se cumprem as respectivas normas. Daí a autonomia da vontade dos enunciados jurídico-naturais, anterior à coercitibilidade dos preceitos jurídico-estatais. Grotius havia estabelecido um direito natural dependente do conceito de sociabilidade; Kant, entretanto, fá-lo depender da idéia de liberdade, enquanto autonomia da vontade. Há, modernamente, uma retomada do jusnaturalismo, sob o influxo antijuspositivista. Os mais notáveis expoentes do moderno direito natural são Stammler, que advoga um jusnaturalismo relativo, determinado por circunstâncias espaço-temporais, e Del Vecchio, cujo neocriticismo formalista se apóia na teleologia da natureza humana, radicada na inteligência autônoma (cf. ENGISCH, 1989). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 63 Marie-Dominique Philippe acredita, todavia, que é impossível fundar uma moral sobre a lei natural, porque dela não se tem experiência imediata: “... ela [moral] deve se fundar sobre uma experiência. Qual é a experiência humana típica que me permite fundar uma ética? Essa é a grande questão” (PHILIPPE, 1996 a: 45), inclusive quanto ao presente estudo26. MODELO CONTRATUALISTA Tendo em Veatch (1981) sua principal referência, o modelo ora descrito defende um novo pacto deontológico27, propenso a conferir uma densidade contratualista28 à relação médico-paciente, o que pressupõe a ruptura com o paternalismo hipocrático. O usuário se despojaria, então, de sua tradicional passividade, tornando-se autônomo, engajado e participativo. E, ao exercitar sua autonomia, rejeita o status de “paciente”, encenando, doravante, o papel de consumidor de health care, de serviços prestados por profissionais da área de saúde: Os médicos, quando recrutam pacientes como sujeitos de ensaios clínicos, defrontam-se com um dilema: eles têm o dever de escolher o que é o melhor para os seus pacientes, porém um ensaio randomizado 26. Consultar o capítulo IV. 27. Tal proposta ratifica a deontologização da bioética, a encerrá-la numa abordagem estritamente ético-profissional, negando-lhe um espaço cognitivo próprio - que, em minha acepção, é o da pesquisa científica em humanos. Diniz (2001: 13) escreve que “A bioética deverá ser um estudo deontológico, que proporcione diretrizes morais para o agir humano diante dos dilemas levantados pela biomedicina...”. 28. Em seu primoroso artigo Desigualdades justas e igualdade complexa, apresentado durante o workshop internacional “Justiça, Desigualdades e Direitos”, em novembro de 1998 no IFCS / UFRJ, Kerstenetzky (1998: 8) explica: “Caracterizarei o campo contratualista com a proposição de que os arranjos sociais mais estáveis são os fundados em sólido acordo quanto a princípios de justiça. Desse ponto de vista, justiça é vista como a condição de possibilidade da própria ordem social”. Tal assertiva encontra em Rawls (1971: 6) uma evidência textual: “In the absence of a certain measure of agreement on what is just and unjust, it is clearly more difficult for individuals to coordinate their plans efficiently in order to insure that mutually beneficial arrangements are maintained. Distrust and resentment corrode the ties of civility, and suspicion and hostility tempt men to act in ways they would otherwise avoid. So while the distinctive role of conceptions of justice is to specify basic rights and duties and to determine the appropriate distributive shares, the way in which a conception does this is bound to affect the problems of efficiency, coordination and stability”. 64 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO expõe os sujeitos a um tratamento escolhido de forma aleatória. Tradicionalmente, este dilema tem sido resolvido apelando-se para a eqüipolência avaliada por um médico individualmente ou pela comunidade médica. Uma proposta de aleatorização é moralmente adequada, se um médico individualmente, ou melhor, a comunidade médica, avalia, como igualmente aceitáveis, os riscos e os benefícios do tratamento padrão e da alternativa experimental. Entretanto, nós percebemos atualmente que esta justificação é falha porque os sujeitos da pesquisa podem ter preferências razoáveis por um dos tratamentos, mesmo quando o médico ou a comunidade médica acham que as duas opções são igualmente aceitáveis. Esta conferência irá propor a “indiferença dos sujeitos” como uma fundamentação moral alternativa para a justificativa da aleatorização. Isto significa que, mesmo que um médico ou a comunidade médica ache as situações eqüipolentes, a aleatorização é normalmente inadequada, desde o ponto de vista ético, se o sujeito potencial tem uma preferência razoável por uma das opções. Com algumas exceções, deveria ser dado aos pacientes o tratamento que eles preferirem, quando eles têm uma preferência racionalmente formada. Por outro lado, se, após ser adequadamente informado, o sujeito é indiferente entre as duas opções, a aleatorização pode ser eticamente adequada, mesmo quando o médico ou a comunidade médica não caracterizem a eqüipolência. Esta justificativa resolve uma série de problemas no campo da ética dos ensaios clínicos randomizados: (1) Ela resolve o problema da discriminação contra os sujeitos “pró-inovação” (aqueles sujeitos que se beneficiariam com o tratamento padrão podem obter o seu tratamento preferido, enquanto aqueles que se beneficiariam com o tratamento experimental não); (2) Isto resolve o problema da inabilidade em completar ensaios clínicos devido à perda da eqüipolência do investigador (os sujeitos que, por razões pessoais, mantêm-se indiferentes, podem ser aleatorizados, mesmo quando os pesquisadores não são mais indiferentes entre os tratamentos). A moralidade do uso de incentivos para manipular zonas de indiferença também serão discutidos (VEATCH apud CLOTET, 2001: 40-41). Assim, o processo decisório, antes unilateral, impõe que a prescrição médica seja, agora, referendada pelo destinatário final (bilateralidade), o que atenua e reescreve não apenas a dicção, mas FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 65 também clássicas prerrogativas médico-funcionais, adstritas, por força desse modelo, a quatro princípios: beneficência, proibição de matar, dizer a verdade e manter as promessas (cf. VEATCH, 1981). Nesse contexto, é factível que, uma vez transposto à bioética, o modelo contratualista reduza ou equipare o vínculo entre pesquisador e sujeito de pesquisa a um mero negócio jurídico, no qual há uma reciprocidade de direitos e obrigações, contraídos de modo supostamente equânime. MODELO PERSONALISTA Quanto ao modelo em lume, Viafora (1989) distingue três grandes orientações: o personalismo relacional, o hermenêutico e o ontológico. Ressalto, a propósito, o magistério de Sgreccia (1996: 78-79): No significado relacional-comunicativo ressalta-se, sobretudo, o valor da subjetividade e da relação intersubjetiva, como vimos também em Apel e Habermas; no significado hermenêutico, sublinha-se o papel da consciência subjetiva ao interpretar - reportamo-nos a Gadamer - a realidade segundo a própria “pré-compreensão”; no significado ontológico, sem negar a relevância da subjetividade relacional e da consciência, deseja-se sublinhar que, como fundamento da própria subjetividade, está uma existência e uma essência constituída na unidade corpo-espírito. O próprio Sgreccia, aliás, grifa sua opção por um personalismo clássico ou ontológico: O personalismo a que nos referimos não deve ser confundido com o individualismo subjetivista, concepção na qual se sublinha como constitutiva da pessoa quase exclusivamente a capacidade de autodecisão e de escolha; é esta uma ótica muito difundida no mundo protestante e existencialista, e muito influente também em correntes de teologia americana. O personalismo clássico de tipo realista e tomista, sem negar esse componente existencial, ou capacidade de escolha, em que consiste o destino e o drama da pessoa, quer afirmar também, e prioritariamente, um estatuto objetivo e existencial 66 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO (ontológico) da pessoa. A pessoa é, antes de tudo, um corpo espiritualizado, um espírito encarnado, que vale por aquilo que é e não somente pelas escolhas que faz. Antes, em toda escolha, a pessoa empenha aquilo que é, a sua existência e a sua essência, o seu corpo e o seu espírito; em toda escolha, existe não apenas o exercício da escolha, a faculdade de escolher, mas também um contexto da escolha: um fim, meios, valores (SGRECCIA, 1996: 80). E arremata: Na perspectiva personalista, julgamos que se possa situar uma exigência, presente em alguns pensadores de origem anglo-saxão, que tende a reavaliar a “ética das virtudes”, sentida como contraposta, ou de qualquer forma prioritária, em relação à “ética dos princípios”. Estamos convencidos de que não apenas o momento da aplicação do juízo ético exige determinadas capacidades adquiridas para encarnar os valores, mas a própria sensibilidade ao sentido e ao valor da pessoa nasce de um hábito de consciência inspirado pela virtude. Todavia, mesmo levando em consideração o modelo personalista, é necessária uma integração entre o momento do esclarecimento e da fundação dos valores e das normas e o momento de sua correta e coerente aplicação (SGRECCIA, 1996: 81). O personalismo bioético de Sgreccia enuncia, ainda, alguns “... princípios relativos à intervenção do homem sobre a vida humana no campo biomédico” (SGRECCIA, 1996: 157-166). São eles: o princípio da defesa da vida física, os princípios da liberdade e da responsabilidade, o da totalidade ou princípio terapêutico, o princípio da socialidade e o da subsidiaridade29. Inspirado em Karl Otto Appel e Emanuel Lévinas (cf. VIAFORA, 1989), o personalismo infundiu três importantes abordagens ao debate bioético: a singularidade e universalidade da 29. O princípio da subsidiaridade, que fora proposto pela carta encíclica Quadragesimo anno (tendo sido retomado, inclusive, pelo Conc. Vat. II, em sua Const. Past. Gaudium et Spes) é, certamente, um dos mais significativos aspectos da doutrina social da igreja católica. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 67 pessoa humana, a alteridade30 (o outro é anterior ao eu) e o sociointeracionismo relacional (via ação comunicativa habermasiana)31. E, ao fazê-lo, instigou a discussão formal sobre o papel do “outro” no processo decisório e, por conseguinte, a adoção de regras adequadas à troca de informações entre os sujeitos que estejam envoltos por conflitos bioéticos. O MONOPÓLIO BIOMÉDICO Durante a defesa pública da dissertação que redundou nesta obra, fui argüido a certa altura por Ana Cecília de Sousa Bastos32, que perquiriu sobre o motivo de eu me referir aos arquétipos elencados no presente capítulo como sendo exclusivamente teóricos. Expliquei que minha intenção é expô-los como sistemas incipientes, cuja validade, enquanto modelo, cinge-se (proselitismo) àqueles requisitos - simplicidade, clareza, coerência, completude, poder explicativo, poder justificativo, poder resolutivo, praticabilidade - discriminados por Beauchamp e Childress (1994: 45-47), neutralizando a operacionalização efetiva da bioética tradicional, posto que lhes falta o critério por excelência: assunção da pesquisa à bioeticidade33. Também argumentei que o primeiro ciclo bioético é tautológico; nele, os modelos antevistos se altercam numa postura ora principialista, ora contra-principialista (circularidade), sendo já 30. Comentando-a, escreve Descamps (1991: 85) que “a relação com o Outro é a base de uma co-presença ética”. E Maffesoli (1996: 223) depõe a seu favor, quando ressalta o ímpeto estético da alteridade. 31. Segundo Habermas (1986), são dois os pressupostos éticos da ação comunicativa: as pretensões de validade das normas têm um sentido cognitivo, devendo ser tratadas como pretensões de verdade; a fundamentação de normas e ordens exige a realização de um discurso efetivo, no qual haja uma interação entre os sujeitos. Focado nessa terceira geração da Escola de Frankfurt, Freitag (1992: 238-242) leciona que a teoria da ação comunicativa possui três regras básicas: a da inclusão (qualquer sujeito capaz de agir e falar pode participar de discursos), a da participação (os participantes de um discurso podem problematizar e/ou introduzir novas afirmações, além de exprimir suas necessidades, desejos e convicções) e a regra da comunicação livre de violência e coação (nenhum interlocutor pode ser impedido, por forças internas ou externas ao discurso, de fazer uso pleno de seus direitos assegurados em ambas as regras anteriores). 32. Integrante da banca examinadora e doutora em psicologia pela Universidade de Brasília / UnB. 33. Através da qual a philia bioética se divorcia desse viés dicotômico, superando o binômio teoria prática. Vide o tópico “Aplicabilidade do amor-philia à bioética” (capítulo IV). 68 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO um truísmo dizer que a bioética tradicional se mobiliza ao ritmo de uma dialética de espessura pragmática. Foi cheio de sentido o esforço dos homens e mulheres revisitados neste capítulo, todos autores consagrados, tentando infundir padrões que dessem alguma funcionalidade à bioética. Todavia, a aludida circularidade dos modelos por mim relacionados, refletindo o intraparadigma (hellegeriano) preponderante na bioética tradicional, promove a reificação da biomedicina como seu domínio próprio. De mais a mais, o percurso histórico da bioética assevera que ela descende, em linha reta, da “reflexão ética na medicina” (SGRECCIA, 1996: 35-36), o que encoraja a compressão de seu ambiente conceitual dentro da área biomédica34 (pouco antes de findar o capítulo subseqüente, terei evidenciado que a bioética da amizade escapa dessa imanência historicista). Para Onora O’Neall, diretora do Newnham College Cambridge / UK: Bioética não é uma disciplina, nem mesmo uma nova disciplina; eu duvido se ela será mesmo uma disciplina. Ela se tornou um campo de encontro para numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidos com dilemas levantados por questões éticas, legais e sociais trazidas pelos avanços da medicina, ciência e biotecnologia (O’NEALL, 2002: 1). Em que pese tamanha ascendência da biomedicina, entendo não haver razão para que ela subsista, pois a natureza epistemológica35 da bioética é um seu fator de legitimação perante a ciência em geral, o que, no entanto, ensejaria um óbvio conflito de interesses com a (disciplina) epistemologia. Toda essa gama de variáveis levou, de minha parte, à reconceitualização antropológica de um campo de ação unificado e 34. Em seu Fundamentos de bioética, Gracia (1989) “parte de um exame histórico-filosófico da evolução dos conceitos éticos no campo biomédico desde a escola hipocrática até os nossos dias e esboça, na evolução do pensamento filosófico, os fundamentos do juízo ético no campo biomédico” (SGRECCIA, 1996: 29). 35. Ver o item “Estatuto próprio da philia bioética” (capítulo V). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 69 específico para a bioética (a investigação científica em seres humanos)36, de modo a torná-la operacional quanto à dignidade dos sujeitos de pesquisa lato sensu. *** No capítulo IV, demonstrarei a plausibilidade da philia bioética. Mas não sem antes destacar que a finalidade do presente capítulo: • • não passa pela análise pormenorizada (individual e comparativa) dos vários modelos aqui considerados; diz respeito ao exame da intensa especialização da bioética, assim como das implicações negativas dessa mesma especialização à efetividade do seu primeiro ciclo37. 36. O capítulo IV, mais especificamente a parte inicial do item “Aplicabilidade do amor-philia à bioética”, é decisivo à compreensão desse enfoque. 37. Ver o item “Efetividade do primeiro ciclo bioético” (capítulo V). CAPÍTULO IV O AMOR-PHILIA COMO BASE DA PRÁXIS BIOÉTICA Pretendo, no transcorrer deste capítulo, mostrar uma parte da riqueza e profundidade do amor-philia, apreendendo-o de forma gradativa e, daí, revelando muitos dos grandes aspectos da ética, enquanto experiência propriamente humana, que, em nosso cotidiano, ultrapasse o ponto de vista da moral do dever. Isso porque o dever ou se apóia na fé - e, nesse caso, teríamos uma teologia moral (BALTHASAR, 1985) -, ou, então, pressupõe alguém que nos ama ou algum estranho, ao qual se deve respeitar objetivamente. Há quem indague, contudo, por que se deve respeitar um desconhecido e, a partir daí, amá-lo por ele mesmo e não por sua eventual utilidade. Eis o que procuro responder a seguir: de um modo geral, no item “O que é o amor de amizade”; e, num segundo momento, quanto às pesquisas científicas em humanos, já aqui no item “Aplicabilidade do amor-philia à bioética”. Por ora, antecipo que o fato de participarmos todos, enquanto irmãos, de uma mesma humanidade é a evidência crucial da resposta que proponho, amparado naquilo que nos diz o filho da Macedônia e pai de Nicômaco: Os progenitores parecem sentir uma afeição natural por sua prole e a prole pelos progenitores, não somente entre os homens, mas também entre os pássaros e a maioria dos animais; ela é sentida mutuamente pelas criaturas da mesma raça, especialmente pelas de raça humana, razão pela qual louvamos os homens que amam seus semelhantes (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 1, 1155 a 16-21). Particularmente sensível à relação de amizade, o que há de maior na filosofia de Aristóteles são as homilias, compiladas sobremodo 74 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO em Ética a Nicômacos38, acerca da contemplação (a pressupor, aliás, toda sua filosofia primeira, que, mais tarde, tornar-se-ia conhecida por metafísica) e sobre o amigo. Ambas são, segundo Aristóteles, as duas grandes finalidades do homem: a contemplação (theoria) e a amizade (philia). No entanto, longe de isolar-se em sua solidão contemplativa, Aristóteles não ignora, enquanto filósofo, nossa condição humana, que nos faz viver em comunidade política e de benevolência. A finalidade primeira é a contemplação39 e, nisso, Aristóteles é muito profundamente discípulo de Platão, um aluno que, ao invés de subestimar aquilo que seu mestre lhe ensinara, coloca-o em plena luz. De fato, Aristóteles havia recebido de Platão o que ele tinha de mais significativo: uma sede de contemplação, que o animava intimamente. No que atine à capacidade de relação amigável do homem, entretanto, Aristóteles se afasta e supera seu mestre. Ética a Nicômacos explicita a filosofia humana de Aristóteles, que distingue duas orientações: a filosofia teorética ou contemplativa, que tende à verdade perquirida e amada por ela própria (conaturalização); e a filosofia prática, toda ela comandada pela ação. O gênio de Aristóteles repercute, dessa forma, a tensão que caracteriza intrinsecamente o homem; tensão entre o desejo de solidão contemplativa e o anseio de experimentar uma vida humana, numa comunidade humana através de relações pessoais de amizade. Afinal, “O solitário é ou uma besta ou um deus” (ARISTÓTELES, 1985 b: I, 2, 1253 a 29). Acabo de tocar aquilo que é, para Aristóteles, a circunstância peculiar do homem que cultiva o que há de mais divino nele: o nous (trata-se da inteligência que implica o amor; do espírito, que, sendo em nós o que há de mais pessoal, eleva-nos ao Absoluto). “La definición del amor es: habitudo ad perfectum”, que se “puede traducir como inclinación a lo perfecto” (MÉNDEZ, 1990: 87). 38. Razão pela qual não considerei mais detidamente, em minha pesquisa, sua Ética a Eudemo, que é anterior à referida obra, nela perfazendo-se. 39. Aristóteles precisa, com raro discernimento, o Absoluto, que ele chama de Deus, apreendendo-o qual um ser totalmente em ato, um ser perfeito cuja vida é toda ela contemplativa. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA O QUE É O AMOR DE 75 AMIZADE O amor de amizade é o cerne de um agir ético que, finalizado pelo homem, ultrapassa, qual disse há pouco, a moral do dever. Dentre as experiências fundamentais da pessoa humana, o amor-philia... ... é o fundamento de toda a filosofia ética. Objetar-se-á que o amor de amizade é raro - e isso é verdade. Os filósofos gregos já diziam: uma amizade verdadeira é uma coisa muito rara. Mas, de outro lado, no desejo que temos de encontrar alguém que possa ser um amigo verdadeiro, não é esta experiência algo comum a todos os homens? Todos os homens procuraram, na vida, alguém em quem eles pudessem confiar [...] E temos necessidade de descobrir alguém em quem nos possamos apoiar (porque a responsabilidade é mútua). Logo, mesmo se a amizade na sua perfeição é rara, essa sede de amizade está, entretanto, presente no coração de todos os homens. Então, não tocamos o fundamento profundo da ética nessa experiência ou nesse desejo do amor de amizade? (PHILIPPE, 1996 a: 46). Mas de que modo podemos experimentar um tal amor em nosso cotidiano - inclusive o funcional, haja vista que a pesquisa científica é uma das possibilidades de trabalho (intelectual) humano? A amizade, desde que autêntica, pode revelar-nos o que é o amigo, ou seja, alguém que é para mim o meu bem pessoal capaz de aperfeiçoar-me, de revelar-me quem sou porque, simplesmente, é meu amigo e que, por isso mesmo, ama-me, não de uma forma unilateral e utilitária, mas recíproca, pois também sou seu bem pessoal. “Porque cuando digo amo a éste, estoy diciendo quiero el bien para él: quia cum dico Diligo istum, dico volo bonum ei” (CORRAL, 2001: 73). Essa experiência não é essencialmente interior; tampouco podemos dizer que seja uma experiência objetiva pura. O amor de amizade concilia as dimensões objetiva e subjetiva do real, conquanto não se trata apenas do meu amor por outrem, mas também da experiência do amigo, de seu amor por mim. Se, quando amamos, vivemos uma experiência interior, pois estamos cônscios desse amor, a experiência do amigo, de outra 76 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO maneira, reclama uma vivência intersubjetiva (cf. GAUTHIER, 1958), um juízo de existência daquele que me ama, atraindo-me para além de minha própria subjetividade e, por conseguinte, ensejando o despertar de minha pessoa. De acordo com Juan-José Pérez-Soba Díez del Corral, em seu extenso trabalho intitulado Amor es nombre de persona. Estudio de la interpersonalidad en el amor en Santo Tomás de Aquino, “La irreductibilidad del ‘Amato’ es nuestro instrumento de análisis de la estructura del amor como una relación intersubjetiva” (CORRAL, 2001: 99). A experiência do amor de amizade, em sua completitude, provoca no homem uma atitude de admiração. Contudo, embora seja possível, bastante comum inclusive, descrever o amor, acomodarse com a exposição do que suscita na pessoa amada, ou mesmo satisfazer-se ao narrar o modo como aproxima dois amigos, deve-se ir cada vez mais longe, avançando, gradualmente, na compreensão de sua intimidade. Coloquei-me, portanto, a seguinte questão: o que é esse amor pelo amigo? O que é o amor de amizade? “De este modo el mismo amor se nos convierte em uma pergunta [...] Así presenta un sentido existencial como el que encontamos em S. AUGUSTINUS, Confessiones, 4, 4, 9 (CCSL 27, 44): Factus eram ipse mihi magna questio” (CORRAL, 2001: 11). O ponto de partida, aqui, é a experiência objetiva do amigo, daquele que me ama. Apenas desse jeito, considerando o outro antes de nós mesmos, é possível conhecer o amor em seu sentido mais intrínseco (cf. PHILIPPE, 1999: 56-74). Platão40 (1986) já havia compreendido que o amor-eros é, em qualquer ocasião, desejo de algo. Todavia, porque seu ponto de vista era acentuadamente descritivo, ele não soube distinguir o amor do desejo, tarefa da qual se incumbiu Aristóteles, que ousou discerni-los um do 40. Na filosofia de Platão, o “eros é um amor fundamental”, ou, se quisermos, um grande impulso do amor. “É ele que dá a toda a visão platônica do homem sua última significação. O homem não pode atingir aquilo para que ele é feito sem esse amor. É perfeito o homem que está possuído por esse amor; então, ele é capaz de ultrapassar-se, de contemplar...” (PHILIPPE, 1999: 17-18). Ver Lísis, um dos mais graciosos diálogos menores de Platão, além de o Banquete e Fedro - as grandes obras de sua maturidade. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 77 outro, revelando seus matizes: “Parece que nem tudo é amado, mas somente aquilo que é amável [fileton], e isto é o que é bom, ou agradável, ou útil” (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 18-19). Ao discernir o amável tal como nos aparece e se pode atingi-lo e amá-lo, Aristóteles nos diz que é possível amar um bem por ele mesmo (devido ao seu valor e bondade próprios), ou pelo gozo que nos proporciona, ou ainda como um meio útil. Se se interroga sobre o bem amável que lhe atrai, o filósofo pode distinguir o amor de concupiscência (ou passional), o de benevolência e o amor de amizade (no qual o bem pessoal é amado por si mesmo). No amor passional, o bem é amado não para que seja bom, mas pelo deleite que o acompanha: é por mim mesmo que amo a Sinfonia nº 4 em fá menor de Piotr Ilitch Tchaikovsky, ou degusto o vinho de Pinot Noir, produzido nos vinhedos das encostas do Vosges, na Alsácia, ou mesmo aprecio a bela Carmen, ópera francesa - em quatro atos - do século XIX, de Georges Bizet. A benevolência (eunoia) consiste, adversamente, em amar o outro por ele mesmo. Relativo à pessoa humana, esse amor é, então, espiritual e desinteressado, capaz de ultrapassar o amor de concupiscência, que sempre contém algum resquício de egoísmo. “El amado con amor de amistad no puede ser encerrado em el círculo de mis intereses$. Cfr. II Sent., d. 3, q. 4, a. 1: Ergo in corde amantis praeponderat bonum amatum omnibus utilitatibus vel dilectionibus quae consequuntur ex amato” (CORRAL, 2001: 214). Apõe Miron (1939: 39): “Disinterestedness, the very essence of true love, is necessary before love can be recompensed”. Para Geiger (1952: 72-73), “L’amour désintéressé ne s’obtient donc pas par l’exclusion simplement de toute considération relative au sujet, à son intérêt et aux moyens utiles”. Além disso, Aristóteles elucida que amar o outro por ele mesmo não é, em si, a amizade, mas generosidade ou bondade. A generosidade autêntica nos faz dizer (e agir em proveito de outrem): amo-te por ti mesmo; assim, como devo servir-te? Porém, ainda não é o amorphilia, que não prescinde da reciprocidade (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 34-1156 a 1s). Enquanto amor espiritual ou voluntário que nos torna receptivo ao outro (nosso bem pessoal), a amizade reivindica, destarte, a união 78 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO mútua entre dois amores de benevolência. E no que diz respeito ao significado próprio dessa reciprocidade, Aristóteles se ocupa em demonstrar seu caráter objetivo: “ama-se o amigo por ele mesmo, em primeiro lugar, e é primeiramente por nós mesmos que o amigo nos ama” (PHILIPPE, 1999: 64). A philia se anima a partir de um desejo, que, graças ao amor recíproco entre dois amigos, desabrocha em algo mais profundo. Tal passagem da filosofia aristotélica é esclarecedora no tocante ao fundamento radical da amizade: a irmandade com nosso semelhante, a comunidade de natureza realizada pela geração. Pelo seu enraizamento natural, a amizade retira o homem da solidão comunitária, permitindo-lhe (re)descobrir seus irmãos, ir-lhes de encontro e amá-los (em um movimento no qual a pessoa ultrapassa o egoísmo, o arqueamento afetivo sobre si, que nada tem de natural). Nesse caso, a amizade não possui apenas um conteúdo utilitário; tem, ademais, uma nobreza, fazendo-nos compreender que ela é um fim em si mesma: A amizade não é somente necessária; ela também é nobre (Kalon), pois louvamos as pessoas amigas de seus amigos e pensamos que uma das coisas mais nobres é ter muitos amigos; além disto, há quem diga que a bondade e a amizade se encontram nas mesmas pessoas (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 1, 1155 a, 28-31). Sendo algo bom, nobre e belo, a amizade finaliza o homem, permitindo-lhe extrapolar a si próprio, em direção ao outro. Não se deve, pois, servir-se de um amigo, mas amá-lo em coexistência; amase-lhe por ele mesmo em reciprocidade. Por outro lado, o que determina o amor não é o conhecimento de um bem, mas o bem conhecido. Apesar da ciência sobre o outro ser condição necessária à eclosão do amor, sua fonte é o bem em si. Eu suscito o amor de meu amigo por mim, atraindo-o e conaturalizando-nos reciprocamente. Um amigo ama seu semelhante por ele mesmo, e não em virtude de seus predicados, que, embora possam ensejar a amizade, não a especificam. O amor-philia é imediatamente determinado pelo amigo em sua bondade pessoal. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 79 Aristóteles chega a cogitar que o amigo é caridade que reune suas qualidades próprias, bem como seu amor benevolente, recíproco e atual pelo outro. De fato, poder-se-ia chamar de caridade o amor entre amigos, que os finaliza mutuamente, dando-lhes a verdadeira bondade (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 34 - 1156 a 1s). O efeito disso é que a amizade faculta ao homem exceder a si próprio, a fim de, inclinando-se para seu amigo, orientar-se inteiramente a um bem pessoal. Subentende-se, nessa alocução, que o amor é extático41, à medida que faz um amigo despertar para o outro, saindo de si e ordenando-se ao bem que lhe atrai e finaliza-o. Tal êxtase não se realiza ao nível substancial ou metafísico, mas intencionalmente, enquanto operação vital. Além do mais, se o amor é extático, implica, de ambas as partes, uma profunda capacidade de acolhimento, porquanto um amigo que esteja completamente ordenado para o outro também o aceita por inteiro. Nesse sentido, o êxtase do amor-philia proporciona uma nova interioridade (fala-se amiúde em reencantamento), vale dizer, uma propensão para atrair aquele que se ama. De qualquer sorte, “Ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros bens; achamos até que as pessoas ricas e as ocupantes de altos cargos e as detentoras do poder são as que mais necessitam de amigos” (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 1, 1155 a 4-6). Aristóteles havia se deparado com a quinta-essência da philia: se possuímos riqueza e poder, a amizade nos permite compartilhálos com nossos amigos; se, contrariamente, estivermos imersos em infortúnio e pobreza (o que muitas vezes testemunhei42 em pesquisas na área de oncologia, atreladas ao desenvolvimento de fármacos), a amizade se torna nosso derradeiro refúgio. O amor de amizade se cumpre numa escolha mútua, onde os amigos elegem uns aos outros conscientemente, fazendo-o segundo um critério não linear de predileção. Tal significa que a philia exige uma reciprocidade (relacionamento) livre e esclarecida; ou, então, não há amor, sequer uma escolha que lhe seja própria. 41. O mesmo que extasiado. Não confundir com estático, que significa imóvel. 42. Enquanto coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Estadual de Oncologia (CEP / CICAN), ligado à Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB). 80 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO E, uma vez eleitos reciprocamente em seu amor, os amigos têm a intenção de se amarem mais e mais... Convicto da plausibilidade e, sobretudo, das implicações de minha proposta, reitero, concluindo o que tenho dito neste item, que “rótulos” do tipo comunidades vulneráveis e termo de consentimento livre e esclarecido, tão assíduos e aclamados pela literatura bioética (KIRBY, 1994; SAUNDERS et al., 1994; HALL, 1993; FADEN e BEAUCHAMP, 1986; MAZUR, 1986), evidenciam, cada vez mais, a insuficiência de uma abordagem demasiadamente utilitária e formalista, no que atine à preservação da dignidade nas pesquisas científicas em humanos. Daí a urgência de uma bioética, enquanto ato de amor, que, antes de caracterizar uma iniciativa abstrata e ingênua, destina-se à concretização de hábitos éticos, cujo escopo é a emancipação autêntica do homem. Um primeiro passo nessa direção consiste em superar certas iniqüidades, donde a noção de comunidades vulneráveis daria lugar às circunstâncias de vulnerabilidade; do termo de consentimento, evoluiríamos para o relacionamento livre e esclarecido43. Azevêdo (apud GARRAFA e PESSINI, 2003: 325-326) redigiu páginas memoráveis sobre o que estou a dizer, embora não chegue à mesma conclusão e divirja quanto ao referencial teórico: Em princípio, no Brasil, assim como em muitos outros países, a inclusão de qualquer pessoa em projetos de pesquisa depende de uma consulta esclarecedora seguida de aceitação livre, consciente e autônoma, através de trâmite, entre pesquisador e pessoa pesquisada, de um documento específico, denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (Res. 196 / 96). A autonomia do paciente, para decisão consciente, é exigência fundamental na aplicação do TCLE [...] Nas situações de decisões em circunstâncias de pobreza, o princípio de respeito à autonomia do paciente torna-se, para médicos e pesquisadores, uma prática de auto-ilusão. A aplicação do TCLE às pessoas reconhecidamente sem o menor poder de escolha tem profundo 43. Concebi e expus tais idéias ao longo da disciplina MED 733 (bioética) - ministrada no último trimestre de 2000 -, que faz parte do doutorado em medicina interna da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da qual participei como aluno especial e debatedor convidado. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 81 impacto na moralidade de médicos e pesquisadores. Conseqüentemente, solicitar consentimento para participação em pesquisa de ensaios clínicos, genéticos ou não, a pacientes em evidentes circunstâncias de pobreza impõe sérias complexidades aos princípios de respeito à autonomia, beneficência e justiça. Quanto maior a pobreza, maior o poder da oferta. Quanto maior a desigualdade de poderes entre pesquisador e paciente, maior a probabilidade de violência à dignidade do mais fraco [...] Em Ortega y Gasset, as circunstâncias de vida constituem a realidade básica. Para ele, a vida é um diálogo constante entre a pessoa e suas circunstâncias. Em seu livro A revolta das massas (6), Ortega y Gasset demonstra que a vida é feita de dois elementos fundamentais: circunstâncias e decisões [...] Para as pessoas vivendo em pobreza, as circunstâncias nas quais as decisões são tomadas anulam qualquer possibilidade de exercício da autonomia [...] Se, por um lado, médicos e pesquisadores estão conscientes das circunstâncias de pobreza de seus pacientes, o novo desafio ético é desenvolver a capacidade para percepção do que realmente significa ser sujeito de direitos, de justiça e de beneficência no mundo cultural dos pobres. A julgar por sua obra, Eliane Azevêdo anuncia uma bioética da vulnerabilidade, que respira a atmosfera sociocultural dos países em desenvolvimento. Receio, entretanto, que tal visão possa servir, involuntariamente, à “ideologia serialista e ocidentalizante” (RAMOS, 1989: 39) sob a égide do Iluminismo44. 44. De acordo com Ramos (1989: 39-41), “A noção de que a história revela seu significado através de uma série de estágios empírico-temporais é comum ao acadêmico liberal de tipo padrão, tanto quanto aos teóricos marxistas e neomarxistas. Contido nessa noção comum, está um conceito de tempo peculiar ao Iluminismo, e que continua a prevalecer nas formas ocidentais contemporâneas de pensamento. Nos escritos dos epígonos do Iluminismo, o tempo em que supostamente a natureza humana se atualiza é essencialmente serializado. Através de distintos graus qualitativos de atualização que correspondem a diferentes degraus existentes numa espécie ascendente e seriada de tempo, a natureza humana muda sua estrutura. Além disso, nessa perspectiva iluminista, existe um momento histórico culminante, em que a natureza humana alcança seu estágio final e perfeito. Sem dúvida, a visão serialista da existência humana na história tem implicações comparativas diacrônicas e sincrônicas [...] Por exemplo, a noção de Terceiro Mundo reflete a visão serialista da história de hoje, já que pressupõe o segundo e o primeiro [...] Continuam ainda enredados na metaideologia desse tipo de mentalidade disfarçada como funcionalismo estrutural, dialética hegeliana, marxismo e neomarxismo, e como as diferentes combinações dessas tendências com fenomenologia e - ou - existencialismo [...] Na realidade, tais critérios são armadilhas epistemológicas e ideologias disfarçadas, que fomentam uma errada compre- 82 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Seja como for, Beecher (1966) assegura, verbalizando o pragmatismo dogmático imposto à bioética, que o consentimento informado é o substrato moral da experimentação em seres humanos. A impressão que tenho, outrossim, é que Maria do Céu Patrão Neves externou opinião análoga durante o VI Congresso Mundial de Bioética, realizado em Brasília entre 30 de outubro e 3 de novembro de 2002: “O ‘consentimento’ é, sem dúvida, um [...] paradigma privilegiado da bioética” (NEVES apud GARRAFA e PESSINI, 2003: 487). Mantendo-me à margem da polêmica quanto ao seu alcance (informado, na tradição anglo-americana e esclarecido, na revisão etimológica feita pela Europa latina), creio que a natureza do consentimento seja a de um contrato de adesão45, o que denota uma ascendência jurídica. Ora, ainda que simbolicamente, recuso-me a tê-lo, ao lado do homem, qual um “paradigma privilegiado” da bioética, pois o meio não está nivelado com o fim ao qual se ordena; ou seria moralmente possível que os fins justificassem os meios. Penso até que o consentimento, enquanto instrumento jurídico, condiciona o amparo à dignidade ao formalismo estratégico e ambivalente da normatização estatal, relativizando-se como garantia aos sujeitos de pesquisa. Mesmo porque, reconheça-se, a (bio)ética transcende os sobressaltos e vicissitudes dos textos legais. APLICABILIDADE DO AMOR-PHILIA À BIOÉTICA A tentativa de fundamentar a bioética no amor-philia tem duas implicações práticas relevantes: ensão dessas sociedades e que as desviam de seu imperativo crítico de auto-reconstrução. As políticas emanadas desses critérios funcionam, na prática, no sentido da escalada da ocidentalização do mundo todo. Um dos resultados desse processo, em que estão presas as chamadas nações do Terceiro Mundo, é a degradação de suas estruturas internas. O sentimento de privação relativa, que contamina de modo especial os setores intermediários dessas nações, é um dos fatores primordiais a lhes dificultar a auto-reconstrução [...] Essa mentalidade adventista, mais do que a escassez de recursos, constitui o obstáculo fundamental à auto-articulação cultural, política e econômica dessas nações”. 45. De acordo com Orlando Gomes, o contrato de adesão é aquele em que “uma das partes tem que aceitar, em bloco, as cláusulas estabelecidas pela outra, aderindo a uma situação contratual que se encontra definida em todos os seus termos” (GOMES, 1998: 109). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA • • 83 delimita-lhe um domínio ou campo de ação exclusivo: o da pesquisa científica em humanos, já que, na natureza, apenas o homem tem a nota distintiva da amabilidade espiritual, sendo capaz de amar e ser amado em um nível mais profundo que o instintivo; enseja a retomada de uma ética enquanto tarefa de amor ao próximo, nosso semelhante: amans amato bonum velit (amamos àquele ao qual queremos algum bem). Note que o estudo científico em humanos, porque viabiliza a consecução de uma obra em comum entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa, é um contexto propício ao cultivo do amor de amizade e de sua intencionalidade própria. É que essa intenção (amistosa) fomenta uma interseção ou identificação de vontades, que, para aperfeiçoar-se, reclama que dois amigos compartilhem não só uma vida, mas a feitura de um trabalho. D’outro modo, a philia perde seu realismo, tende a idealizar-se (PHILIPPE, 1996 a: 46-48; 1996 b: 21-27; 1999: 68-71). A amizade da qual cuido, segundo a virtude46, dá a entender uma atividade mútua (estando no limiar dessa exigência a inerência 46. Aristóteles nos mostra a necessidade da virtude, que é adquirida - e não primeira. As virtudes, enquanto meios, não se confundem com a felicidade, que diz respeito ao fim último da atividade moral, que é atividade finalizada. Eis o ponto de divergência que afasta a ética aristotélica da estóica: os estóicos crêem que a virtude finaliza, porque por ela é possível ser mestre de si. Aristóteles, entretanto, diz que a virtude é uma necessidade-meio, da qual a pessoa deve servir-se a fim de ascender à felicidade (abdiquem os homens das virtudes, e serão reduzidos ao governo de seus instintos e de suas paixões). Para que o humano brote do passional e do instintivo, devemos cultivar (humanizar) a “terra” que nos é dada. Ora, cultivar nossas paixões e instintos, sem destruí-los (graças às virtudes), consiste em permitir-lhes evoluir o quanto possível, evitando que se oponham ao desenvolvimento do espírito. Mas a amizade, diria Aristóteles (1985 a: VIII, 1, 1155 a 1-2), não é uma virtude, porque enquanto esta última é um ter, aquel’outra não o é. De fato, a virtude é algo possuído e, por isso mesmo, conhece-se bem o singular esforço sem o qual não se lhe adquire. Não pretendo, no entanto, estagnar ao nível da virtude - qual o faz aquele modelo concebido por Pellegrino e Thomasma (ver o capítulo III) -, uma vez que não se trata ela de um bem absoluto, de nossa felicidade (que se põe ao nível do amor espiritual e da inteligência), cuja fonte é uma atividade humana finalizada e, portanto, ética. É preciso ultrapassar a virtude, se se quiser descobrir por que ela existe; ou seja, se desejo entender que seu papel é permitir-nos alcançar a felicidade de um modo mais eficaz e deleitável. Daí porque, em Aristóteles, a amizade é uma das superações da virtude. E ele nos traz, ainda, mais uma distinção, dessa vez entre perfeição e bondade (alcançadas, respectivamente, através da virtude e da philia). Assim, a perfeição é, em uma palavra, integridade (no sentido de completitude). A bondade, por outro lado, é algo mais; é o que nos faz capazes de atrair os outros. 84 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO recíproca da philia), que permita ao ser humano confiar paulatinamente em seu amigo: o “mais belo estado de vida é a dependência livre e voluntária, e como seria ela possível sem amor?” (GOETHE, 1992: 31). Por isso que o amor-philia requer a estabilidade, a duração característica do vivente. É preciso conviver longamente junto ao outro, tê-lo ao lado nas desventuras, antes de nele ter um amigo alguém que experimenta minhas aflições, fazendo-as suas também. Nutro a convicção de que o amor entre dois amigos, aprimorado num trabalho em parceria, arrasta-os a uma co-vivência uníssona e cooperada (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 4, 1156 b 26s; IX, 12), enquanto comunicação vital (koinonia) que, longe de sufocar o outro, motiva-o a se manifestar em suas qualidades mais íntimas, vindo a acolhê-lo qual de fato é. En Aristóteles, como ya adelantábamos, se pueden distinguen dos sentidos propios de “ Κ ο ιν ω ν ία ” : 1º “sociedad”, entendida como intercambio social: el sentido del libro VIII de la Ética Nicomaquea, y en el libro de la Política. 2º “συζήν” , convivencia en la intimidad: el sentido propio del libro IX de la Ética Nicomaquea (CORRAL, 2001: 371). A koinonia ou κοινωνία aristotélica é um fruto e uma disposição, um meio que não se equipara à philia, pois se a vida em comum é confundida com a própria amizade, ou seja, se o afluente é igualado à fonte, o amor espiritual (princípio da atividade ética) termina por claudicar e esgotar-se. Sendo assim, a bioeticidade da pesquisa científica em humanos se perfaz, tão somente, quando o relacionamento livre e esclarecido ou relação pessoal de amizade - nela iniciado ultrapassa o tempo da investigação, subsistindo-a. No Brasil, por exemplo, o item III.3, alínea “m”, da resolução 196 / 96 preceitua “... que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão...”. Não se tem, aqui, uma semente - inusitada, é bem verdade - da philia bioética que proponho? O que não significa, absolutamente, que se deva substituir a volição autônoma da amizade pela regência e coerção legais. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 85 A ética, enquanto conduta propriamente humana e a bioética, projeção dessa mesma atitude dentro das pesquisas científicas em humanos, implicam a responsabilidade e a relação pessoal; e, sendolhes a expressão mais perfeita, o amor-philia é a experiência-chave à plenitude do agir (bio)ético. A responsabilidade, no que ela tem de mais forte e eficaz, nasce da experiência do amor de amizade. Ela pressupõe todo o resto. Se, então, eu reduzo a moral a isso, eu passo por cima de tudo que está antes, e não sei mais sobre o que repousa a minha moral. A moral repousa no amor. Um amor aceito, um amor consentido, um amor que finaliza a minha vida (PHILIPPE, 1996 a: 48). Diferentemente da pesquisa científica em si, a (bio)ética deve consubstanciar-se, desde sua origem, no amor voluntário a um bem pessoal. Eis sua legitimação singular, que finaliza os enunciados principialistas (beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça), dando-lhes uma idoneidade humanista real. O amor-philia consolida a (bio)ética em sua plenitude, uma vez que o fim preeminente - e premente - do homem é buscar tornarse amigo do bem pessoal amado47, concretizando uma unidade-dual, cume da fecundidade espiritual48 entre amigos. 47. Do outro (próximo) amado por ele mesmo, simplesmente porque é nosso semelhante. Na raiz dessa assertiva, encontra-se a pedra fundamental da ética cristã: amar a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo - São Mateus, 22: 37-39 (BÍBLIA..., 1994: 1902). 48. Porque oportuno, devo confrontar as noções de eficácia e de fecundidade. De acordo com Aristóteles, a fecundidade está radicalmente ligada à vida: “É preciso que o vivente seja perfeito para ser fecundo” (ARISTÓTELES, 1980: II, 4, 415 a 27-28), ou seja, para ser plenamente fonte de um outro vivente. Portanto, a fecundidade é a comunicação da vida, pertencendo à ordem da substância, do bem, da finalidade. A eficácia, por sua vez, atémse à dominação da matéria pelo trabalho, a fim de realizar uma obra, obter um resultado, permanecendo na ordem do útil e da transformação das formas. Dito isso, o que mais impressiona em nossa civilização é o quão estamos, constantemente, ao nível das condições e da eficácia, cujo primado obscurece a fecundidade (sobretudo a espiritual, concernente ao amor de amizade), produzindo um agrupamento de autômatos. Enfatizando a índole procedimental dessa primazia da eficácia, Philippe (1999: 172) cogita que “estamos na era dos métodos”, acrescentando, de modo provocativo e verossímil: “Antigamente, quando se trabalhava como filósofo, consideravam-se os objetos; agora, procuram-se os métodos” (Id. Ibid., 1999: 173). Ora, num mundo de exasperação tecnológica, é normal, na perspectiva da rápida expansão tecno-científica, que a fecundidade espiritual entre amigos esteja suplantada pela reivindicação cartesiana, a confundir eficácia e fecundidade: “Pelo 86 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Cá está a única maneira pela qual a bioética se conaturaliza com seu desígnio: resguardar a decência daqueles que tomam parte de pesquisas científicas em humanos. Escutai e inferis que o amor dedicado ao amigo é o gérmen da intencionalidade (bio)ética, que enxerga o bem pessoal amado como fim e, também, princípio relativista e de ordenação d’outros bens secundários, quais os da pesquisa científica em si. ... deve-se dizer que, como o fim corresponde ao princípio, por esse motivo se prova que o último fim é o primeiro princípio do existir, no qual está toda a perfeição do existir. Assemelharem-se a este todos desejam, cada um em seu grau. Uns, somente segundo o existir, outros segundo o existir vivente; finalmente, outros, segundo o existir inteligente e bem aventurado. Mas isto é de poucos (TOMÁS DE AQUINO, 1980: I-II, q. 2, a. 5). Uma última questão: levando-se em conta que o exercício irmanado de um trabalho é vital ao amor-philia, a pesquisa científica em humanos, qual se nos apresenta hoje, tendencialmente constrange ou alia-se ao fazer bioético destas linhas? Deparei-me, repetidas vezes, com a ortodoxia e obscurantismo que imprimem à investigação científica moderna seu caráter ou eixo principal: o auto-referenciamento da inteligência do pesquisador, que, imbuído de racionalismo, atribui a si mesmo sua determinação, materializando os sujeito-estatísticas de pesquisa. apetite espiritual que está em nós, temos a possibilidade de viver em um nível propriamente voluntário. Mas, quando falamos de ‘voluntário’, é preciso compreender bem que a vontade é, antes de tudo, uma capacidade de amar. Ela não é primeiramente uma capacidade de eficiência, contrariamente ao que afirma um bom número de filósofos no seguimento de Descartes [onde] O amor é considerado apenas [...] um sentimento” (Id. Ibid., 1999: 179). Essa é a grande tentação do homem moderno: procurar, antes de mais nada, um certo bem-estar (quality of life), não se preocupando, porém, com a verdadeira finalidade humana (haja vista que a eficácia, estando na ordem dos meios, não finaliza). A pura eficácia, então, é mera embriaguez, capaz de monopolizar todas as energias do ser humano, impedindo-o de descobrir seu verdadeiro bem. Assim, é na fecundidade (biológica e espiritual), e não na eficácia, que o homem se faz pleno, conservando e comunicando por completo a sua humanidade. Quero esclarecer que não se trata de negar a eficácia, que é, em seu domínio próprio (o do trabalho), absolutamente necessária, até o dia em que rivaliza com a fecundidade, pois, nesse momento, o mundo se materializa e conduz nossa civilização a encruzilhadas terríveis. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 87 Como resultado dessa autodeterminação, a inteligência do pesquisador, no que diz respeito a ele próprio, converte-se em fonte do significado imediato das possibilidades técnicas que conhece. A inteligência meramente racional já sabe, não ama mais! Salta aos olhos o delicado problema das relações entre amor e inteligência. Haveria entre ambos uma antinomia ou é possível uma aliança profunda? Freqüentemente, a realidade do amor se eleva, incognoscível, acima da inteligência e da razão. O amor nos põe além da reflexão, do cogito, da análise... Racionalizá-lo equivale, portanto, a matá-lo sempre um pouco mais, suprimindo o que há de mais elevado em nós mesmos, em nossa experiência humana. Acredito que o grande desafio seja alcançar algum equilíbrio em meio ao desenvolvimento da inteligência-que-pesquisa e a capacidade de amar, o qual se deve retomar constantemente (já que não se consegue tal equilíbrio de uma vez por todas), através do perdão autêntico (LAFFITTE, 1999)49; do contrário, o amor se torna um compromisso vazio. Apenas, nesses termos, é possível viabilizar, quanto às pesquisas científicas em humanos, uma bioética pautada na verdade. O esclarecimento acerca da pesquisa científica envolve, igualmente, a distinção entre inteligência e razão, renegada a partir de Descartes (que se preocupou antes com a ratio, isto é, com o entendimento, enquanto raciocínio ou deliberação), para quem tudo repousa sobre a experiência do valor infinito da liberdade: 49. Tem-se, aqui, uma obra fundamental, ainda mais nesses dias incertos, nos quais o perdão é confundido com um valor abstrato qualquer, uma utopia destituída de essencialidade. Pondera Laffitte (1999) que, desde as origens de nossa civilização, a pessoa humana, no rastro de Caim, transformou-se em assassino de seu irmão: as ofensas físicas, afetivas, intelectuais, morais e espirituais dividem os homens, as famílias e as nações. E, quando uma ofensa intervém, seja ela individual ou coletiva, voluntária ou involuntária, cria uma situação nova, altera uma relação entre ofensor e ofendido, que só pode ser sanada mediante o perdão, cuja espessura é antropológica. Mas, se a ofensa atinge um certo nível de gravidade, quando a vítima inocente não mais existe, o perdão - já tão difícil em nosso quotidiano - torna-se humanamente impossível. Em relação à fascinante tese desenvolvida por Jean Laffitte, interessa-me, de uma forma imediata, a parte introdutória de O perdão transfigurado, onde se dá “uma análise antropológica do perdão, da sua consistência, da dialética ofensor-ofendido à qual ele pretende pôr um termo, da sua dimensão moral e, também, das suas aporias” (LAFFITTE, 1999: 13), sobretudo quanto à gênese do perdão humano (Id. Ibid., 1999: 58-64). 88 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO ... eu verifico que ela [a vontade] não é limitada por nenhuma fronteira [...] Nenhuma das outras coisas se encontra em mim tão perfeita e grande que eu possa concebê-la mais perfeita ou maior [...] Só há a vontade que eu verifico ser tão grande em mim que não concebo a idéia de qualquer coisa maior, de modo que é principalmente por ela que compreendo que trago em mim uma certa imagem e semelhança de Deus (DESCARTES, 1988: 170-171). De um modo geral, os pesquisadores celebram a razão, negligenciando a opção por uma convivência inteligente, a responder pelo que existe de mais sublime em nosso espírito. Eles ignoram que o raciocínio é o condicionamento humano da inteligência. E o que é a inteligência, afinal? Tomás de Aquino, citando Isidoro de Sevilha, propõe a seguinte etimologia latina: intelligere é intus legere (TOMÁS DE AQUINO, 1980: II-II, q. 8, a. 1). Ser inteligente é conhecer a realidade do interior. Habituamo-nos, porém, a olhar de fora para o real, não vendo senão o que nele é acidental; muito embora se contentar em descrever a realidade experimentada signifique descer o rio, sucumbindo-lhe deliberadamente, desobrigando-se de entrever o que é essencial. O que importa, então, é progredir em nossa inteligência-quepesquisa, superando a correnteza do rio. Mas isso demanda tempo, além de perseverança, visto como a inteligência é o que remonta à fonte, que a tudo explica e não é dado imediatamente. Costumo refletir sobre o que Platão (1941: 514 a-521 b) diz em seu mito da caverna: nesse mundo, cerram-se os olhos a tudo o que escapa às sombras da realidade, de sorte que é preciso sair da caverna, a fim de caída a máscara da teatralidade, vê-la o semblante (o do mundo das formas ideais). Inquietante e comovente, a aludida fábula platônica impressiona por sua densidade lírico-filosófica. Ou a inteligência das sombras, que se recusa a buscar o “fundo das aparências” (MAFFESOLI, 1996), não jaz errante numa caverna fria, cortesã em um labirinto de tentativa e erro? A inteligência consiste em discernir, o que extrapola o azo analítico. Ora, toda análise pressupõe um discernimento (krinein), que a supera, no entanto, ao realizar-se num juízo. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 89 De minha parte, é ínsito ao ato perfeito da inteligência habilitar o ser humano a discernir (cf. ARAÚJO, 2000), avaliar de dentro de maneira a ultimar-se na contemplação50. O raciocínio e a análise, todavia, não se coadunam na contemplação, embora possam servi-la. Logo, conquanto pressuponha a ratio, o agir contemplativo precisa ir além dela, porque se presta a algo maior, a um olhar pleno acerca do outro e, finalmente, sobre Deus. Quanto aos princípios, a inteligência não os contempla, apesar de compreendê-los - sendo esse o modo pelo qual se torna mais penetrante. Conseqüentemente, ela pode valer-se de princípios ao produzir ciência, mas tal conhecimento não finaliza a vida da inteligência: Igualmente, é preciso compreender bem que, se nossa inteligência é capaz de refletir sobre suas próprias atividades, criticando-as, ela não é feita primeiramente para essa atividade reflexiva, que não é senão secundária: ela é feita para a contemplação, sua verdadeira finalidade. Prestemos atenção, quando dizemos que a inteligência é feita para a verdade (PHILIPPE, 1999: 143). A vocação da inteligência é contemplar a pessoa humana, não se satisfazendo em apreender a verdade, por si só uma atitude egocêntrica. Faço a seguinte distinção: a inteligência é perfeita, se apreende o que é verdadeiro, cuja posse, entretanto, não a perfaz. A inteligência há de ser verdadeira para contemplar e, contemplando, é ela verdadeira. Afora esses pleonasmos, sobreponho que a inteligência não contempla sua verdade, mas o ser humano. Inclina-se, pois, a conhecer o outro e a desvendá-Lo; e não consigo imaginar algo mais inteligente que se dispor a entender a fonte absoluta. Em suma, declama Aristóteles (1969: α, 993 b 9) que a inteligência filosófica é como a ave noturna que, fascinada e atraída pela luz, gira em torno dela. 50. Remeto-vos à introdução deste capítulo. 90 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Não é o necessário que pode finalizar e definir a inteligência: o necessário define a lógica e a ciência. Mas a inteligência ultrapassa o necessário para descobrir sua fonte. A inteligência não é feita ultimamente para descobrir a ordem, mas para conhecer a fonte da ordem, e para descobrir, além da harmonia, a fonte da harmonia (PHILIPPE, 1999: 145). Nada obstante, a volubilidade moral do homem o leva a desviar-se, livremente, do bem espiritual que o finaliza, assim como dos meios que se lhe ordenam, escolhendo outros bens que melhor enaltecem, à guisa de exemplo, sua argúcia e sensibilidade tecnocientífica. Acabo de cotejar o vasto drama da falta, do voluntarioso que, indiferente ao bem pessoal amável, alteia e prosta-se ante o materialismo imediato, louvando a si mesmo. Eis o elogio da loucura, malgrado a sátira improvisada por Erasmo de Rotterdam: Talvez haja pessoas que, à falta de tais passatempos, limitem toda a sua felicidade às relações com verdadeiros amigos, repetindo sem cessar que a doçura de uma terna e fiel amizade ultrapassa todos os outros prazeres, sendo tão necessária à vida como o ar, a água, o fogo. - Tão agradável é a amizade, - acrescentam, - que afastá-la do mundo equivaleria a afastar o sol; em suma, é ela tão honesta (vocábulo sem significado para mim) que os próprios filósofos não hesitam em incluí-la entre os principais bens da vida. - Mas, que se dirá, quando eu provar que sou também a única fonte criadora de semelhante bem? Vou, pois, demonstrá-lo, não com sofismas, nem com caprichosos argumentos tão ao gosto de retóricos, mas à boa maneira e com toda a clareza. Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos dos amigos, ao ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da loucura? (2002: 17). Exaltando a si próprio, o pesquisador se abstém de procurar, em sua conjuntura laboral, o bem que lhe aperfeiçoa e transcende, preferindo a exasperação do seu ego. Diria “Ofélia”, a surpreendente filha de “Polônio” (camareiro-mor na tragédia shakespeareana Hamlet): FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 91 Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da educação, o espelho da elegância, o alvo dos descontentes, tudo em nada! E eu, a mais desgraçada das mulheres, que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa admirável razão perder o som, qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade, fanada pela insânia! Ó dor sem fim! Ter já visto o que vi, e vê-lo assim! (SHAKESPEARE, 1982: 83). Na falta, porque denota auto-suficiência e inconstância moral, o homem realiza, voluntária e autonomamente, o absenteísmo ou ausência premeditada de vosso semelhante - e fá-lo em seu (conveniente) juízo, do qual se torna a medida imediata -, depondo contra sua liberdade ética, que embota a não ser dentro de um amor espiritual (cf. PHILIPPE, 1999: 158-163). Conclui Eliane Azevêdo, com sabedoria: ... o destino da humanidade vem sendo escrito por poderosas forças sociais, econômicas e científicas que, geradas pelos próprios seres humanos, agigantaram-se em suas mentes e passaram da condição de conduzidas para a de condutoras [...] Mesmo neste final de século, quando a questão da ética, dos direitos humanos e da dignidade humana tornaram-se tema de discussão nos quatro cantos do mundo, a produção de saberes em áreas afins, como Bioética, persiste, com raras exceções, desvinculada da dignidade, da ética e dos direitos da maioria empobrecida (AZEVÊDO, 2000: 86-87). *** No próximo capítulo, confronto o primeiro ciclo à philia bioética, inferindo-lhes a textura e, com isso, delimitando o arcabouço propositivo deste opúsculo. CAPÍTULO V POR UMA BIOÉTICA DA AMIZADE Faço alusão, inicialmente (estratégia expositiva), a um dado experimento, quiçá o mais aviltante já realizado em pessoas humanas, averbado na literatura especializada como o caso tuskegee, o que servirá de referência sobre um conflito ético capaz de ilustrar, qual proponho, a plausibilidade de uma bioética fundada no amor-philia. CONSTERNAÇÃO EM TUSKEGEE Tuskegee é o espectro - the ghost - perceptível do pensar-agir bioético. Trata-se de um evento emblemático (KATZ, 1972; ROTHMAN, 1991), da idéia-força básica, do ponto central de sua auto-afirmação fenomenológica. Com efeito, de 1932 a 1972, o serviço de saúde pública dos EUA conduziu um certo estudo, de cujos protocolos jamais se teve notícia. Compunham sua amostra seiscentas pessoas negras domiciliadas em Macon, Alabama, dentre as quais trezentas e noventa e nove portavam sífilis (BRANDT, 1978). Ostentando o nome do centro de saúde onde fora implementado, o experimento tuskegee pretendia observar a evolução natural da sífilis sem que houvesse intervenção terapêutica nos sujeitos infectados (SHAFER et al., 1954). Entrementes, já haviam sido publicados, em 1929, os resultados de um outro estudo desenvolvido na Noruega, que relatava o progresso in natura da sífilis em cerca de dois mil indivíduos, nenhum deles submetidos a tratamento (CLARK e DANBOLT, 1955; GJESTLAND, 1955). Os sujeitos contaminados da pesquisa tuskegee não souberam que tinham sífilis, tampouco os efeitos dessa patologia. O diagnóstico apresentado era “bad blood” (sangue ruim), o mesmo usado pelos eugenistas norte-americanos, nos idos de 96 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO 1928, a fim de justificar a esterilização dos portadores de deficiências psicossomáticas (ROTHMAN, 1982). Uma vez integrados ao projeto, os sujeitos passivos da aludida investigação recebiam, em contrapartida, acompanhamento médico, refeição (fornecida, tão-somente, por ocasião das consultas e exames) e o pagamento de suas despesas funerárias. Outrossim, distribuíramse prêmios em dinheiro, cujo propósito era evitar deserções (THOMAS e OVINN, 1991). A inadequação do estudo tuskegee, em sua fase inaugural, adveio não tanto da omissão terapêutica em relação aos infectados, pois a década de 1930 desconhecera um tratamento comprovadamente eficaz contra a sífilis, mas da sonegação deliberada do diagnóstico feito e do prognóstico esperado. Nos anos 40, porém, sobreveio a cura da citada enfermidade. Não obstante, todos os pesquisados em questão continuaram, de maneira premeditada, excluídos de qualquer terapia, a ponto de as instituições de saúde norte-americanas receberem uma lista contendo seus respectivos nomes, com isso evitando-lhes o acesso, n’outro local que não o da pesquisa, ao “tratamento” apropriado (BRANDT, 1978). Tuskegee seguiu, portanto, o padrão “slippery slope” (SCHAUER, 1985: 361-383), no qual uma ação em princípio irrelevante, sobretudo se desvencilhada de seu contexto sociocultural, agrava-se progressivamente, gerando malefícios supervenientes e não previstos (espiral negativa). Por volta de meados do século XX, os EUA editaram, via Associação Médica Americana, algumas regras domésticas acerca das pesquisas científicas (ROBINSON, 1944). Segue-se-lhes o tratado de Nuremberg - micro-sistema de direito internacional público -, cuja redação é atribuída ao lord of the war, sendo parte da sentença exarada pelo Tribunal de Nuremberg, uma corte militar de exceção pós-holocausto. Em que pese o advento desses atos normativos, a comunidade acadêmica norte-americana sequer questionou os resultados parciais do estudo tuskegee, vindo, inclusive, a disseminá-los sem qualquer restrição (cf. VIEIRA e HOSSNE, 1998). No entanto, os EUA arcariam com o pesado ônus do aforismo “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, que lhe é tão caro. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 97 A imprensa nova-iorquina veiculou, em 1969, notícia sobre a consumação de vinte e oito mortes durante o mencionado projeto, então vigente. Nesse mesmo ano, o historiador James H. Jones encontrou vários documentos alusivos à pesquisa tuskegee (JONES, 1993: 1-11), mas não lhes deu importância porque a julgou sobrestada. Só depois que a repórter Jean Heller publicou no The New York Times, em 26 de julho de 1972, uma matéria denunciando a barbárie perpetrada em tal pesquisa, o estudo tuskegee se tornou o caso tuskegee, ensejando intensa convulsão social e política. A repercussão negativa sobre o caso tuskegee, deflagrada pelo furo jornalístico subscrito por Heller, pôs fim a quarenta anos do estudo tuskegee, ao longo dos quais apenas setenta e quatro sobreviveram, e mais de cem vieram a falecer em decorrência da sífilis ou de complicações oriundas dessa patologia. A most important phase of the study was to follow as many patients as possible to postmortem examination, in order to determine the prevalence and severity of the syphilitic disease process. Cooperation of patients with this plan was sought by offering burial assistance (through a private philanthropy, the Milbank Memorial Fund) on condition that permission be granted for autopsy. For the majority of these poor farmers such financial aid was a real boon, and often it was the only “insurance” they could hope for. The Federal Government offered physical examinations and incidental medication, such as tonics and analgesics, but was unable to provide financial assistance on a continuous basis. The Milbank Memorial Fund burial assistance made it possible to obtain a higher percentage of permissions for postmortem examinations than otherwise would have been granted (RIVERS et al., 1953: 392)51. 51. A enfermeira Eunice Rivers, contratada como assistente de pesquisa, e o doutor Eugene H. Dibble, ambos negros, foram incorporados ao grupo para serem facilitadores na integração com a comunidade. Até 1952, tinham sido concluídos quatro grandes relatórios sobre o andamento dessa pesquisa (VONDERLEHR et al., 1936: 260-265; HELLER et al., 1946: 34-38; DEIBERT et al., 1946: 301-314; PESARE et al., 1950: 201-213). Contendo as diretrizes metodológicas do aludido estudo, o artigo Twenty Years of Followup Experience in a Long-Range Medical Study (RIVERS et al., 1953) descreve, ainda, fatos bastante elucidativos de seu caráter antiético. Por exemplo, as condições econômicas dos sujeitos pesquisados eram extremamente precárias, a ponto de ser-lhes irresistível a oferta de um prato de comida quente a cada consulta (daí porque não agiam autonomamente). Não obstante, os participantes de tal experimento tiveram boa adesão ao projeto, 98 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Perto do fim, o projeto tuskegee esteve sob a tutela do Centro de Controle de Doenças (CDC) de Atlanta. Até 1997, eram apenas oito os remanescentes desse vergonhoso genocídio racial... Recordai-vos a advertência imortalizada nos Caprichos de Goya: “El sueño de la razón produce monstruos” (apud BORNHEIM et al., 1996: 310) (Gravuras 1 e 2)52. muito em função do contato sistemático e continuado com a enfermeira Rivers. Ela os buscava em sua residência, usando um automóvel especialmente alocado para a pesquisa. Uma evidência dessa boa relação: dentre os 146 óbitos (até 1952), foram obtidas autorizações para realização de 145 necrópsias. Em 1936, saiu publicado Untreated syphilis in the male Negro. A comparative study of treated and untreated cases (VONDERLEHR et al., 1936: 260-65), que apresenta os registros consolidados sobre o transcurso da investigação em foco. Essa publicação gerou alguma polêmica, porém logo superada. A partir de 1945, já havia terapêutica estabelecida contra a sífilis, utilizando penicilina. Em 1947, o serviço de saúde pública norte-americano criou “centros de tratamento rápido” para os pacientes com sífilis, aos quais, entretanto, não tiveram acesso os sujeitos incluídos no estudo tuskegee - por decisão formal de seus pesquisadores responsáveis. De 1947 a 1962, cerca de 127 alunos (negros) de medicina participaram do citado experimento. Publicou-se, finalmente, em 1961, outro memorial sobre a referida investigação, dessa vez com os dados relativos a 30 anos de seu monitoramento técnico: The Tuskegee study of untreated syphilis: the 30th year of observation (ROCKWELL et al., 1961: 792-98). 52. O gênio artístico de Goya se situa numa encruzilhada entre a crença na razão, engendrada pelo Iluminismo, e a violência da guerra, trazida pelo invasor francês: barbárie instituída em nome dessa mesma razão. Estiraçada ainda entre os prazeres sensuais e um corpo gradativamente tomado por enfermidades dolorosas, sua arte constitui, decerto, uma das mais aprofundadas reflexões sobre o projeto de racionalidade para o mundo, concebido pelo século XVIII. “Goya não faz a crítica, ou a condenação desse projeto, como os românticos o puderam fazer. A partir da dramática experiência vivida, da consciência do corpo, da descrença política, por meio da prática da pintura, da gravura, do desenho, mas sobretudo servindo-se da melancolia como ponto crítico, ele vai além - estabelece os limites angustiantes dos poderes da razão e instaura o irracional como universo ilimitado. Devemos, no entanto, partir de um Goya avesso às trevas e sedento de luzes. Esquecemos freqüentemente o quanto ele foi um artista que aderiu às idéias de reforma do mundo surgidas no seu tempo. Suas relações com o Iluminismo foram convictas [...] Goya acreditou na liberdade, ele acreditou na razão presidindo os destinos do mundo” (BORNHEIM et al., 1996: 301). Goya é um pintor que celebra e eleva a razão; e os testemunhos disso são numerosos em sua obra. Em 1799, cria uma série de gravuras intitulada Caprichos, o que significa obras concebidas por uma imaginação solta, dentre as quais se encontra A enfermidade da razão (Gravura 1), onde a aristocracia inútil, aprisionada em seus brasões, é alimentada por alguns personagens, num espaço de arquitetura ampla, que evoca um castelo. Esse desenho é preparatório para a gravura central da série em epígrafe, a mais célebre de todas, e a única que comporta uma inscrição: El sueño de la razón produce monstruos (Gravura 2). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA Gravura 1. Goya, A enfermidade da razão (1797-8); bico-de-pena sobre papel, 23,6 x 16,1 cm. Museu del Prado, Madri, Espanha. Gravura 2. Goya, Caprichos, prancha 43: El sueño de la razón produce monstruos (primeira edição: 1799); água-tinta, 21,5 x 15 cm. 99 100 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO De resto, tuskegee é o reverso da bioética, ainda mais porque envolveu pesquisadores supostamente insuspeitos (BEAUCHAMP, 1996), cuja hediondez, à frente dessa empresa, fora encoberta pela cumplicidade do meio acadêmico e de organismos governamentais. EFETIVIDADE DO PRIMEIRO CICLO BIOÉTICO A profusão de modelos explicativos, muitos deles comprometidos com aspectos pontuais da ética aplicada à biomedicina, evidencia que o primeiro ciclo bioético é, enquanto unidade histórica e ideológico-cultural, tendencialmente especializado - embora tendência não seja destino! E, à medida que se especializa sobre uma faixa tão estreita, perdese a visão de conjunto. Poder-se-ia, então, formular a seguinte hipótese: quanto mais especializado for o primeiro ciclo bioético, mais evasivo ele será em relação a todo o resto, que é sempre a maior parte. A especialização53, diria Weber (2002), é um elemento do espírito capitalista, ao lado de sua lógica expansionista-mercantil, cuja inspiração ética é o protestantismo anglo-saxão: 53. A especialização é, para Karl Marx, a fonte de todas as alienações: “Estropia o trabalhador e faz dele uma espécie de monstro”; favorece, “como numa estufa, o desenvolvimento de habilidades parciais, suprimindo todo um mundo de instintos e capacidades”. “Os conhecimentos, a inteligência e a vontade que o camponês ou o trabalhador independente desenvolvem, ainda que em modesta escala”, são tirados do operário e confiscados pelo capital, que os concentra nas suas máquinas, na sua organização do trabalho, na sua tecnologia: “As forças intelectuais do processo material de produção” se voltam, assim, contra o operário, “como uma propriedade exterior a ele, uma força que o domina”. Tal cisão entre o trabalho manual e o intelectual “faz do operário um trabalhador estropiado e parcial”; e da ciência, “uma força produtiva independente do trabalho”, posta “a serviço do capital” (MARX apud GORZ, 1996: 09). É possível apreender a coincidência da alienação aqui definida (resultante da apropriação das forças produtivas, e não apenas dos meios de produção, o que convém ressaltar, pois, em Marx, o termo apropriação tem um sentido forte, para muito além de seu significado jurídico), totalmente isenta de essencialismo antropológico, com a que Sartre desenvolve na Critique de la raison dialectique, “em termos de atividades serializadas, unificadas pelo campo material em prático-inércia e voltando contra cada um, como sua negação pelos outros” (GORZ, 1996: 16). Discípulo de Ferguson, Adam Smith expôs, em A Riqueza das Nações, as (in)conseqüências, por assim dizer, da fragmentação capitalista-manufatureira do trabalho, indicando-a, logo no início da referida obra, como origem das desigualdades sociais. Ferguson chega a dizer: “A arte de pensar, num período em que tudo está separado, pode formar em si mesma um ofício à parte” (apud GORZ, 1996: 27). A divisão manufatureira do trabalho, inerente ao modo de produção capitalista, pressupõe, cada vez mais, “um abuso de maquinaria para tornar o operário, desde pequeno, elemento de uma máquina parcial” (MARX apud FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 101 O ascetismo cristão, que de início se retirava do mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro, e por mais da Igreja. Mas no geral, tinha deixado intacto o caráter naturalmente espontâneo da vida laica no mundo. Agora avançava para o mercado da vida, fechando atrás de si a porta do mosteiro; tentou penetrar justamente naquela rotina de vida diária, com sua metodicidade, para amoldá-la a uma vida laica, embora não para e nem deste mundo [...] De acordo com a tendência puritana para as interpretações pragmáticas, o propósito providencial da divisão do trabalho é para ser reconhecido pelos seus frutos. Sobre isso Baxter se expressa em termos que, mais de uma vez, relembram a conhecida apoteose da divisão do trabalho de Adam Smith. A especialização das ocupações leva, uma vez que possibilita o desenvolvimento das habilidades, a uma melhora qualitativa e quantitativa da produção, servin- GORZ, 1996: 31). Adam Smith e Karl Marx sustentam que a divisão do trabalho decorreu, essencialmente, de sua superioridade tecnológica; segundo Smith, a vantagem quanto à sua repartição em tarefas sempre mais especializadas e parceladas é limitada, tão só, pela dimensão do mercado (cf. GORZ, 1996: 43). Em primoroso ensaio, o doutor Stephen A. Marglin - economista da Harvard University - rejeita a tese supracitada, demonstrando que não fora, em verdade, “por razões de superioridade técnica que os patrões adotaram as duas medidas decisivas que despojaram os trabalhadores do controle sobre o produto e sobre o processo de produção: 1.º) o desenvolvimento da divisão parcelada do trabalho que caracteriza o putting-out system, (‘baseado na distribuição da matéria-prima aos artesãos a quem se compra o produto acabado’, in Roland Marx, ‘La Révolution Industrielle en Grande-Bretagne’, A. Colin, Paris, 1970, p. 124); 2.º) o desenvolvimento da organização centralizada, que caracteriza o sistema de fábrica (factory system). Ao invés de aumentar a produção sob fatores constantes, essas inovações na organização do trabalho foram introduzidas a fim de que o capitalista receba uma fatia maior do bolo. A organização hierárquica do trabalho não tem como função social a eficácia técnica, mas a acumulação. Interpondo-se entre o produtor e o consumidor, a organização capitalista permite gastar, para a expansão das instalações e melhoria dos equipamentos, muito mais do que fariam os indivíduos, se pudessem controlar o ritmo de acumulação do capital. Tais idéias [...] podem ser agrupadas [...] 1. A divisão capitalista do trabalho [...] foi adotada não pela sua superioridade tecnológica, mas porque garantia ao empresário um papel essencial no processo de produção: o de coordenador que, combinando os esforços separados dos seus operários, obtém um produto mercante (dividir para reinar). 2. Do mesmo modo, a origem e o sucesso da fábrica não se explicam por uma superioridade tecnológica, mas pelo fato dela despojar o operário de qualquer controle e de dar ao capitalista o poder de prescrever a natureza do trabalho e a quantidade a produzir...” (apud GORZ, 1996: 40-41). A lúcida análise de Marglin é corroborada por André Gorz: “A tecnologia capitalista e a divisão capitalista do trabalho não se desenvolveram, portanto, por causa da sua eficácia produtiva em si, mas em razão da sua eficácia no contexto do trabalho alienado e forçado; ou seja, trabalho dominado por um objetivo que lhe era desconhecido [...] A história da tecnologia capitalista pode ser interpretada, no conjunto, como a história da desqualificação dos agentes diretos da produção [...] desqualificação (ou desvalorização) social de qualquer trabalho enquanto força produtiva” (GORZ, 1996: 83-85). 102 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO do assim ao bem comum, que é idêntico ao bem do maior número possível. Até este ponto, a motivação é puramente utilitária e estritamente relacionada com o ponto de vista habitual de boa parte da literatura secular da época [...] seu ethos era, numa palavra, o do capitalismo... (WEBER, 2002: 112-120). Habermas and the dialectic of reason (a principal sinótica angloamericana da obra de Habermas desde 1978, ano em que foi publicado A teoria crítica de Jürgen Habermas - estudo pioneiro de Thomas McCarthy) trouxe ao leitor de língua inglesa uma introdução acessível e, no entanto, crítica à diferenciação racional weberiana: O poder de explicação da ciência é apenas a manifestação mais brilhante da especialização e da diferenciação racional. Como ele observa, engenhosamente: “Onde quer que o conhecimento empírico racional provocou, de forma consistente, o desencantamento do mundo e sua transformação num mecanismo causal, surge uma pressão definitiva contra as reivindicações dos postulados éticos de que o mundo é ordenado divinamente, isto é, de que é um cosmos, com algum sentido ético” [...] Diante da demanda científica pela justificação racional, todos os valores, inclusive os da própria ciência, perdem significado e valor. Weber está convencido de que [...] essa perda de valor resulta do conflito entre a reivindicação racional e a realidade, entre a ética racional e os valores que são em parte racionais, em parte irracionais. Não é nada surpreendente que a principal vítima dessa perda de valor seja a ética da responsabilidade e seu princípio de reciprocidade universal. A extensão do número dos nossos “irmãos” para abranger toda a humanidade já foi solapada pelo impulso racional-propositado da ética protestante (INGRAM, 1994: 73-77). Sabe-se, ademais, que a especialização é alienante, coerência peremptória que leva ao fatalismo, crença tão perigosa à ação, segundo a qual, o que quer que façamos, um acontecimento ou se produzirá necessariamente, ou não ocorrerá de modo algum. O fatalista é um suicida moral, alguém que deixa funcionar em si as regras do discurso, olvidando-lhes o sentido. Não se trata, aqui, de defender o fatalismo, buscando exceções às regras, tampouco de enfraquecer a lógica, mas de situá-la adequadamente. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 103 Desejar-se-ia que a necessidade lógica fosse a da existência, quando é apenas a do possível. E o fatalismo não passa de um exemplo intrigante desse contra-senso: a regra das contraditórias significa não que o que é dito por uma inevitavelmente existe, e o que é dito pela outra, não; mas que se uma das duas é verdadeira, a outra é falsa: Que o que é seja, quando é, e que o que não é não seja, quando não é, eis o que é verdadeiramente necessário. Mas isso não significa que tudo o que é deva necessariamente existir e que tudo o que não é deva necessariamente não existir; porque não é a mesma coisa dizer que todo ser, quando é, é necessariamente, e dizer, de modo absoluto, que é necessariamente. Dá-se o mesmo quanto a tudo o que não é. É a mesma distinção que se aplica às proposições contraditórias. Cada coisa, necessariamente, é ou não é, será ou não será, e, contudo, se são enfocadas separadamente estes ramos da alternativa, não se pode dizer qual dos dois é necessário. Dou um exemplo. Necessariamente, haverá amanhã uma batalha naval ou não haverá; mas não é necessário que haja amanhã uma batalha naval, nem necessário que não haja. Mas que haja ou que não haja amanhã uma batalha naval, eis o que é necessário. E posto que as proposições são verdadeiras, enquanto se conformam às próprias coisas, resulta evidentemente que, se estas últimas se comportam de modo indeterminado e são em potência contrárias, dar-se-á necessariamente o mesmo quanto às proposições contraditórias correspondentes. É bem isso o que se passa quanto aos seres que não existem sempre ou que não são sempre não-existentes. É preciso, então, necessariamente, que uma das duas proposições contraditórias seja verdadeira e a outra falsa, mas não forçosamente que seja esta mais que aquela; com efeito, é não importa qual e, embora uma seja verossimilmente mais verdadeira que a outra, não é, no momento, verdadeira ou falsa. Em conseqüência, não é evidentemente necessário que de duas proposições opostas entre si, como a afirmação e a negação, uma seja verdadeira e a outra falsa. Com efeito, não é ao modo das coisas que existem que se comportam as que, não existindo ainda, estão somente com possibilidade de ser ou de não ser, mas é do modo que acabamos de explicar (ARISTÓTELES, 1997: 39). 104 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Ora, a lógica não autoriza a dizer que haverá futuramente um clone humano. Diz somente que, se houver amanhã um clone, nesse caso, a outra possibilidade, que não haja, estará por certo excluída. A necessidade inoculada pela regra das contraditórias é hipotética, não absoluta. Isso porque o discurso nunca evoca senão os possíveis; não força a existir ou a inexistir. Só o uso efetivo das técnicas de clonagem permitirá que haja um clone humano, e deixar de empregá-las é que o impedirá. O fatalismo genético54 em voga, contudo, dedica-se ao como (eficácia) clonar uma pessoa, antes mesmo de perguntar se deve fazê-lo 55 , de indagar sobre o seu por quê (finalidade) - o que demandaria uma nova moratória científica (cf. AZEVÊDO, 1995). Em 1974, um colóquio reuniu os especialistas de engenharia genética em Asilomar, cidadezinha do oeste dos Estados Unidos. Um grande acontecimento se deu então. Esses homens de ciência tomam coletivamente consciência de sua responsabilidade - uma responsabilidade difícil de assumir 54. As pesquisas nesse campo visam à manipulação de gens ou de gen-tes?! Insigne bioeticista francês, Jean Bernard denuncia, a tal respeito, que “Importantes empresas americanas propuseram recentemente registrar de antemão a marca do genoma humano, ou seja, tornarem-se proprietárias de diversos elementos do genoma humano que se descobrirem pouco a pouco. Essa propriedade poderia, em seguida, permitir explorações variadas, grandes lucros. Certas autoridades oficiais americanas parecem absolutamente dispostas a conceder essas marcas registradas. [...] É muito importante distinguir a invenção da descoberta. O aparelho inventado ou a técnica nova que permite conhecer melhor os glóbulos brancos e o genoma podem ser objetos de marcas registradas. Entretanto, os glóbulos brancos e o genoma descobertos pela técnica não podem ter marcas registradas” (BERNARD, 1998: 52). 55. O que nos arrasta até veleidades extremas, qual aquela apontada por Jean Bernard: “A fertilização ‘in vitro’ (FIV) custa muito caro e pode acarretar pesados gastos para toda a coletividade. Suas indicações devem ser cuidadosamente estudadas e estritamente limitadas. É necessário [...] preparar numerosos embriões. Quando a gravidez está em processo, quando a criança nasce, os embriões não utilizados ficam no laboratório. São chamados embriões supranumerários ou remanescentes. Seu destino levanta para o biólogo e para o moralista graves problemas. Como se deve tratá-los? Guardá-los para uma outra gravidez do mesmo casal? E, se assim, durante quantos anos? Doá-los a outro casal - suscitando assim questões legais incertas, com o risco de tráfico clandestino, de mercado negro? Utilizá-los para a pesquisa? [...] a quase totalidade das pesquisas sobre embriões podem utilizar embriões animais. Matá-los? A morte desses embriões supranumerários algumas vezes foi considerada como mal menor. Na verdade, não existem atualmente soluções satisfatórias. Devemos esperar progressos da pesquisa que permitam o congelamento dos óvulos, o que não tornaria mais necessária a preparação de vários embriões e faria desaparecer esse problema doloroso e insolúvel” (BERNARD, 1998: 37). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 105 plenamente no início de pesquisas cujas conseqüências ainda não chegamos a perceber. Foi assim que, pela primeira vez, se estabeleceu uma moratória, a partir de uma decisão tomada em comum. Durante dois anos, todas as pesquisas sobre engenharia genética seriam suspensas em todos os laboratórios; esse prazo permitiria uma apreciação justa dos riscos, das relações entre o tipo de experiência e o risco, e permitiria também que se estabelecessem as proteções necessárias... (BERNARD, 1998: 49). O século XX, aliás, é uma testemunha indelével do quanto é preciso inverter nossa agenda de prioridades, pois o tempo de maturação ética do homem difere, drasticamente, da celeridade tecnológica. Hobsbawm (1995) acentua sem condescendências as atrocidades e extremos de uma humanidade que, desconfio, põe-se a quedar os olhos longe de tão notória discrepância. Imcompreendida ou não, pouco importa, é legítima, de qualquer sorte, a preocupação externada por Philippe (1996 a) quando se refere à bioética como vestígio da enorme confusão, engendrada pela modernidade, acerca do que é a ética, porquanto representa um seu simulacro especializado e, por conseguinte, irresponsável (MORIN, 1996). ... a hiper especialização [...] produz irresponsabilidade generalizada. Estamos na era da irresponsabilidade generalizada. Eichmann dizia: “Eu obedecia a ordens”, falando dos massacres em Auschwitz. Hannah Arendt disse muito justamente que Eichmann não era um monstro excepcional, era um homem extraordinariamente banal, era um homem comum, era um burocrata normal, que veio a encontrar-se em circunstâncias excepcionais (BELLINO, 1997: 106-107). Portanto, a especialização de um primeiro ciclo bioético indexado ao tecnicismo anglo-americano faz com que ele se comporte, de inúmeras formas, como uma presença holográfica e residual. No Brasil... ... estudos conduzidos por Lorenzo e Azevêdo (1998), sobre perspectivas atuais e tendências da Bioética neste país, revelaram conspícua influência ideológica da Bioética anglo-americana. No período de 1982 a 1977, 44% das publicações brasileiras indexadas, apresentavam, 106 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO como tema principal, questões da tecnociência, enquanto a preocupação com os problemas sociais, econômicos e culturais estava presente em apenas 16% dessas mesmas publicações (AZEVÊDO, 2000: 77). Em outras palavras, voltemos uma vez mais ao caso tuskegee, e a tudo que dele foi dito, para concluir que a especialização da bioética tradicional implica o seu déficit de efetividade no que é pertinente a indignidades d’outra ordem, ligadas à raça, miserabilidade, analfabetismo etc. Como pensar na justiça de igual acesso aos bens de saúde, se muitos nascem, adoecem e morrem sem assistência médica? Como falar de autonomia àquelas pessoas que sequer têm autonomia para administrar a própria fome e são destruídos por ela? Como zelar pela beneficência quando o próprio ser biológico das pessoas, principalmente crianças, é atestado vivo da maleficência social? [...] Será hipocrisia não reconhecer que, à margem da grandeza dos princípios em Bioética, existem multidões de pessoas cuja indigência não permitiu ao imaginário a construção de uma auto-imagem dos próprios direitos. E se a proposta da Bioética é de autêntico respeito a qualquer ser humano, seja ele quem for, ignorar as inter-relações entre os princípios da Bioética e a pobreza é negar a própria ética dos princípios (AZEVÊDO, 2000: 78). Quais seriam, no entanto, as razões histórico-ideológicas da especialização da bioética? Naquilo que concerne à inovação utilitária (WIGLEY, 1996; KUHN, 1997), nada é tão desenvolto quanto a pesquisa científica. Nada! O que não significa, em absoluto, algo bom e ético (cf. FOUREZ, 1995). A representação de um princípio objetivo, enquanto este princípio é obrigatório para uma vontade, chama-se de comando (da razão) e a fórmula do comando se chama de IMPERATIVO. Todos os imperativos são expressos pelo verbo dever e indicam por isso a relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade que, segundo sua constituição subjetiva, não é necessariamente determinada por esta lei (uma obrigação) [...] Todas as ciências têm uma parte FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 107 prática, consistindo em problemas que supõem que algum fim é possível para nós e em imperativos que enunciam como este fim pode ser atingido. Esses imperativos podem, pois, ser chamados em geral de imperativos da HABILIDADE. Que o fim seja razoável ou bom, não é absolutamente disso que se trata aqui, mas somente do que é preciso fazer para atingi-lo. As prescrições que o médico deve seguir para curar radicalmente seu paciente, as que um envenenador deve seguir para matar com certeza são de igual valor, enquanto lhes servem, umas e outras, para cumprir perfeitamente seus propósitos (KANT, 1997: 173-175). E o (neo)liberalismo, de inspiração anglo-saxônica e protestante (WEBER, 2002), é o regente dessa voracidade inovadora do conhecimento científico de ponta56, que instiga não o consumo da produção, e, sim, a “produção do consumo” (CAMPBELL, 2001: 57) - através da obsolescência programada ou antecipada -, intensificando a degradação de nosso ecossistema (ALTVATER, 1995; JAMESON, 1996; DREIFUSS, 1996; RIFKIN, 1996). Curiosidade e desconhecimento designam um só e mesmo comportamento global a respeito do real, comportamento generalizado e sistematizado pela prática das comunicações de massa e, portanto, característico da nossa sociedade de consumo: trata-se da recusa do real, baseada na apreensão ávida e multiplicada dos seus signos. A propósito, podemos também já definir o lugar do consumo: é a vida cotidiana. Esta não é apenas a soma dos factos e gestos diários, a dimensão da banalidade e da repetição; é um sistema de interpretação. A quotidianidade constitui a dissociação de uma práxis total numa esfera transcendente, autônoma e abstracta (do político, do social e cultural) e na esfera 56. Embora o pleito liberal não tenha a universalidade e homogeneidade que preconiza (BORÓN, 1996). Quando observada, em escala mundial, a aplicação das políticas liberais de reconstrução do tecido sócio-econômico, infere-se, após três qüinqüênios de hegemonia desse paradigma, que elas foram implementadas notadamente em alguns países europeus, sobretudo os anglo-saxões, nos Estados Unidos, no Canadá e na América Latina. Segundo Weber, “Os defensores extremados do livre-comércio... concebiam (a economia pura) como um retrato adequado da realidade ‘natural’, isto é, da realidade não perturbada pela estupidez humana - e prosseguiam visando a estabelecê-la como um imperativo moral, como um válido ideal normativo -, enquanto que ela é apenas um tipo conveniente, a ser usado na análise empírica” (WEBER, 1969: 44). 108 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO imanente, fechada e abstrata, do privado. O indivíduo reorganiza o trabalho, o lazer, a família, as relações, de modo involutivo, aquém do mundo e da história, num sistema coerente fundado no segredo do privado, na liberdade formal do indivíduo, na apropriação protectora do ambiente e no desconhecimento. A quotidianidade, para o olhar objectivo da totalidade, é pobre e residual: por outro lado, porém, mostra-se triunfante e eufórica no esforço de autonomização total e de reinterpretação do mundo para uso interno. Aí se situa o conluio profundo e orgânico [...] da quotidianidade como enclausuramento, o que seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo. Tem necessidade de alimentar-se das imagens e dos signos multiplicados da vertigem da realidade e da história (BAUDRILLARD, 1995: 25-26). Convém ressaltar a exploração conjuntural da pesquisa científica pelo mercado liberal globalizado57, uma vez que a lucratividade se encontra atrelada, numa curvatura ascendente, à produção e uso constantes de inovações tecnológicas. O ethos da ciência contemporânea é inovador porque neoliberal (BELLAMY, 1994), reverberando, assim, uma conexão profana: para inovar, tem-se que a tudo desfazer (LYOTARD, 1990; INGRAM, 57. Se o Iluminismo é a expressão moderna do modelo civilizatório posto (cf. ROUANET, 1998: 97), o liberalismo é, por sua vez, a expressão econômica do signo iluminista; e a globalização, o reflexo da expansão hodierna do capitalismo liberal: “... a globalização não é nada mais, nada menos do que a continuação do sistema capitalista [...] A vocação do capitalismo é sua expressão universal, revolucionando os outros sistemas. Mudando todos os demais sistemas, submetendo-os. Isso é Marx [...] O que há de novo, nesse mesmo processo, hoje? Muita coisa. Primeiro, o que você mencionou: comunicação. Comunicação instantânea, em tempo real [...] Segundo, temos a informática dentro do sistema produtivo. Ela permite a distribuição espacial da produção de uma maneira nunca pensada antes [...] Isso vem com as multinacionais [...] O que temos hoje é a interligação dos mercados e a interligação do sistema produtivo [...] Isso é um aspecto da globalização. O aspecto da produção [...] Mas há um outro aspecto, que é o financeiro, o capitalismo financeiro [...] A riqueza virtual somou-se à globalização da produção e à interligação dos mercados. Os anos 70 e 80 não eram assim. Inclusive, os bancos deixam de ter a função principal nesse sistema, cedendo lugar aos fundos de pensão e fundos de especulação [...] o virtual passou a comandar o real. A especulação pode acabar comandando o processo produtivo [...] Porque, como tudo passou a ser expectativa, os gestores da economia, no mundo inteiro, funcionam olhando para o que chamam de ‘mercado’, e o que chamam de mercado é isso [...] No limite, o que está acontecendo, em conseqüência dessa globalização, é que você não tem mais autoridade. Nenhum banco central tem [...] Precisamos, colocando as coisas utopicamente, de um governo mundial” (CARDOSO, 1998: 81-87). Há semelhante análise em Cardoso e Faletto (1979), Fishlow e Haggard (1992), Furtado (1993) e Drucker (1997). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 109 1994; BOURDIEU, 1996). Eis o paradoxo do homem que não pode inventar, cotidianamente, sua desconstrução radical (SANTOS, 1988; 1995), apesar de desejá-lo. O liberalismo fez do saber científico seu discurso (ou capital) e do método, a própria ciência, o instrumento de sua lógica utilitária-mercantil. Conseqüentemente, esta última perdeu o interesse por conteúdos, atolando a si mesma em rituais metodológicos que anseiam superá-los. A ciência pré-moldada é o flautista de Hamelin dos contos infantis; um valor carente de postulações éticas, a omitir sua tática espoliativa (GIDDENS, 1991; ANDERSON, 1992; MORIN, 1996). Consumida qual um valor de troca, em detrimento de seu valor de uso - no processo de formação ético-cultural da pessoa humana -, os cânones e procedimentos científicos se definem como a nómisma capitalista, cujo formalismo intrínseco (AGLIETTA e ORLÉAN, 1990; GIRARD, 1990; QUADROS, 1993) serve mais à exploração alheia, do que ao atendimento das necessidades materiais da sociedade. A moeda torna-se, por assim dizer, em virtude de uma convenção, meio de troca para o que nos faz falta. É por isso que se deu a ela o nome de nómisma, porque ela é de instituição não natural, mas legal (nómos: lei), e está ao nosso alcance, seja mudá-la, seja decretar que ela não servirá mais (ARISTÓTELES, 1997: 33). Pondera Lyotard (1998: 7): ... as novas tecnologias, pelo fato de tornarem os dados úteis às decisões (portanto, aos meios de controle) ainda mais instáveis e sujeitas à pirataria, não podem senão exigir urgência de seu reexame. Em vez de serem difundidos em virtude de seu valor “formativo” ou de sua importância política [...], pode-se imaginar que os conhecimentos sejam postos em circulação segundo as mesmas redes da moeda, e que a clivagem pertinente a seu respeito deixa de ser saber/ignorância para se tornar, como no caso da moeda, “conhecimentos de pagamento/conhecimentos de investimento” [...] Neste caso, tratar-se-ia tanto da transparência como do liberalismo. Este não impede que nos fluxos de dinheiro uns sirvam para decidir, 110 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO enquanto outros não sejam bons senão para pagar. Imaginam-se, paralelamente, fluxos de conhecimento passando pelos mesmos canais e de mesma natureza, mas dentre os quais alguns serão reservados aos “decisores”, enquanto outros servirão para pagar a dívida perpétua de cada um relativa ao vínculo social. Experimentando uma ideologização crescente, a ciência moderna se vê reduzida a um fator metodológico inquisitivo - cuja marca é a da provisoriedade -, que inova a fim de permanecer igual, conservando seu status quo: a visão triunfante da ciência não é apenas laudatória; é, antes de tudo, ideológica. Por outro lado, o elogio ao método-ciência tende a filtrar conteúdos (maniqueísmo), visto como não está “em jogo” somente a análise pura, neutra e imparcial da realidade, mas um inconfessável olhar seletivo acerca do objeto pesquisado. A investigação científica, de fato, simula a neutralidade de seus interesses, muitas vezes sem perceber que toma partido ao fazêlo. Ou não seria a indefinição um posicionamento, conquanto a não posição seja inexeqüível? A imparcialidade da ciência é panfletária; um compromisso sistemático, não um fim tangível. Logo, a ciência emancipa o cotidiano enquanto sofisma, legitimando a demagogia de um progresso tecnológico que, na contramão da história, dá ensejo a novas formas de ignorância. Dentre as cem melhores obras de seu gênero, lê-se em A estrutura das revoluções científicas: ... os primeiros estágios do desenvolvimento da maioria das ciências têm-se caracterizado pela contínua competição entre diversas concepções de natureza distintas [...] Ao examinar a ciência normal [...] buscaremos descrever essa forma de pesquisa como uma tentativa vigorosa e devotada de forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos pela educação profissional [...] A ciência normal [...] é baseada no pressuposto [arbitrário] de que a comunidade científica sabe como é o mundo [...] A competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra... (KUHN, 1997: 23-27). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 111 Obviamente, a pesquisa científica tira proveito dessa ignorância, prenunciando uma metanarrativa tecnicamente possível, embora não sustentável, porque arrancada da estonteante degradação humana e ambiental. Parte significativa da controvérsia ora examinada pressupõe a espantosa fragmentação da ciência, que a desvincula de qualquer centralidade ou autoridade externa, restando-lhe a autotranscendência, a oportunidade de constituir-se por e a si mesma, refletindo a lógica do mercado auto-regulado (POLANYI, 1980). Lyon (1998) assevera que esse auto-referenciamento da ciência fora viabilizado com a quebra da aliança entre a razão e a tradição filosófica pré-cartesiana, levada a termo pelo Iluminismo58: 58. Adorno e Horkheimer encaram o Iluminismo como um processo de ruptura entre o conhecimento racional e sua herança clássica. Para Horkheimer, há uma teoria da razão objetiva, oriunda do legado platônico-aristotélico e passando através dos escolásticos, que “... não focaliza a coordenação de comportamento e propósito, mas conceitos - não importa o quanto nos pareçam hoje mitológicos - sobre a idéia do bem maior, sobre o problema do destino humano e sobre a maneira de serem atingidos os objetivos últimos” (HORKHEIMER, 1947: 5). O Iluminismo transforma pensamento em matemática, qualidades em funções, conceitos em fórmulas, e a verdade em freqüências estatísticas de médias; n’outras palavras, “o pensamento se transforma em mera tautologia” (Id. Ibid.: 97), e o desconhecido perde seu transcendente significado clássico, tornando-se alguma coisa relativa às capacidades de cálculo disponíveis: “A redução do pensamento a um aparelho matemático esconde a sanção do mundo como seu próprio instrumento de mensuração. O que parece ser o triunfo da [...] racionalidade, a sujeição da realidade toda ao formalismo lógico, é pago pela obediente submissão da razão ao que é dado diretamente. O que é abandonado é a total reivindicação e abordagem do conhecimento: a compreensão do que é dado como tal [...] A factibilidade ganha o dia...” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 26-27). A despeito das proclamações dialéticas de Karl Marx, que pretendeu ter despojado o racionalismo do século XVIII de qualquer ímpeto mecanicista, seu conceito de razão está profundamente radicado na tradição iluminista, à medida que ele supunha o processo histórico das forças de produção como algo racional em si mesmo e, portanto, emancipatório (Marx jamais percebeu que, na sociedade moderna, as forças produtivas haviam conquistado seu próprio impulso institucional independente, subordinando, desse modo, toda a vida humana a metas que nada têm a ver com a emancipação humana). Habermas, como nenhum outro, ocupou-se crítica e sistematicamente de uma tal questão. Em todo caso, a “liquidação” da razão, enquanto “fator de compreensão ética, moral e religiosa” (HORKHEIMER, 1947: 18), não teria sido consumada no decurso dos últimos séculos não fosse a concomitante desnaturação das linguagens filosóficas e dos negócios cotidianos. Divorciando palavras e conceitos de seu conteúdo intrínseco, o Iluminismo desencadeou um “processo de corrupção da fala” (RAMOS, 1989: 10), que conduziu à decadência cultural. Ensina Horkheimer que “A linguagem foi reduzida a mais um instrumento no gigantesco aparelho de produção, na sociedade moderna. Toda sentença que não equivale a uma operação parece ao leigo tão desprovida de significado quanto é assim considerada pelos semânticos contemporâneos, que entendem que aquilo que é puramente simbólico e operacional, quer dizer, a sentença puramente sem sentido, faz 112 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO O afastamento da razão com relação ao medievalismo e à tradição levou muitos a acreditar que os poderes humanos podiam promover um avanço maior e mais rápido [...] Mas, com o destaque ao papel da razão e com a depreciação da intervenção divina, foram lançadas as sementes para uma variante secular da Providência, a idéia de Progresso [...] A fé no progresso [...] tornou a reviver artificialmente através de um desenvolvimento científico e tecnológico enorme e de uma explosão de consumo sem precedentes (LYON, 1998: 14-15). O apelo emancipatório da intervenção científica encobre um projeto de auto-suficiência, de bastar-se a si própria. E se houver a Salvação, à ciência incumbirá discipliná-la: o cientificismo que nega o pontífice faz-se papa (cf. DEMO, 1998). A tal respeito, Portocarrero (1996) afirma, seguindo os passos de Foucault (1980), que a história da verdade científica tem sido a de sua imposição. A ciência implica o poder, e vice-versa; tanto que compreendê-la significa entendê-lo. sentido [...] Na medida em que as palavras não são usadas com o propósito evidente de calcular tecnicamente probabilidades importantes, ou para outros objetivos práticos, entre os quais se inclui o relaxamento, correm elas o risco de se tornarem suspeitas [...] porque a verdade não constitui um fim em si mesma” (HORKHEIMER, 1947: 22). Horkheimer descreve o homem moderno qual um “ego contraído”, prisioneiro de um presente efêmero, “esquecendo-se de usar as funções intelectuais pelas quais foi capaz, um dia, de transcender sua efetiva posição na realidade” (Id. Ibid.: 22). O indivíduo moderno perdeu a capacidade de usar a linguagem para transmitir significações, sendo capaz, preferentemente, de exprimir interesses em jogo. Por conseguinte, o referido autor se recusa a aceitar o usual comportamento das pessoas (casuísmo), na sociedade moderna, como base para decidir o significado da racionalidade, tanto que “A denúncia daquilo que é hoje chamado de razão é o maior serviço que a razão pode prestar” (Id. Ibid.: 47 e 187). Em uma das mais agudas e expressivas passagens da sociologia frankfurtiana, Horkheimer nos diz que, “Gradualmente, o homem tornou-se menos dependente de padrões absolutos de conduta, de idéias vinculadoras em termos universais. Considera-se tão completamente livre que não precisa de nenhum padrão, exceto o seu próprio. No entanto, paradoxalmente, esse aumento de independência conduziu a um aumento paralelo de passividade. Sagazes como se tornaram as estimativas individuais no que se refere aos meios ao alcance do homem, a escolha que ele fez de seus fins, que anteriormente se correlacionavam à crença numa verdade objetiva, passou a ser desprovida de argúcia: o indivíduo, expurgado de todos os resquícios de mitologias, incluindo a mitologia da razão objetiva, reage automaticamente, de acordo com os padrões gerais de adaptação. Forças econômicas e sociais tomam o caráter dos cegos poderes naturais que o homem, para a preservação de si mesmo, precisa dominar, ajustando-se a elas. Como resultado final do processo, temos de um lado a pessoa, o ego abstrato despojado de toda a substância, exceto de sua tentativa de transformar tudo que existe no céu e na terra em meios de autopreservação e, de outro lado, uma natureza vazia, degradada à condição de mero material, mera matéria prima a ser dominada, sem outro propósito que o da sua pura dominação pelo ser humano” (Id. Ibid.: 97). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 113 Contendo uma das abordagens mais fecundas da vida acadêmica, a história da verdade expõe a ideologia dos saberes, delatando os laços simbióticos entre as relações de poder e a produção de veridicidades científicas, pois “seu próprio discurso, enquanto revelava uma determinada verdade, descobria relações políticas onde normalmente elas não eram percebidas” (FOUCAULT, 1979: 70). Prometéica, a ciência de tudo e do todo é, também, a ciência do descartável, cuja “opacidade” (OMNÉS, 1996: 104), quem diria, acarreta uma certeza: quanto mais sabemos, menos compreendemos. Um ponto sobre o qual muitos estão de acordo é que a pesquisa científica não produz conhecimento e, sim, informação (dados). Em meio a tudo isso, o paradigma por ela construído acaba sendo algum labirinto impenetrável, um esquema de suspensão do real onde a “experimentação com seres humanos está destinada a ocupar o lugar da experiência natural...” (JONAS, 1994: 117). Após denúncias como as do caso tuskegee, porém, a ciência vem postulando a validação ética de seu ímpeto inovador. E o protestantismo anglo-saxão, tendo se apropriado do pensamento científico, assimila agora a bioética, ideologizando-a e, ato contínuo, terceirizando-a enquanto instância de legitimação ético-científica (daí porque a batizei de bioética BASP, um cavalo de tróia da ciência liberal). Parece que a enunciada - e furtiva - “terceirização” da bioética se dá mediante a desnaturação de sua índole epistemológica, tornando-a uma epistemologia aplicada. Explico: ao confrontar o pensamento científico em incontáveis frações ideais, tal epistemologia se capilariza proporcionalmente à diferenciação da ciência (cf. BELLINO, 1997: 57), que, por conta disso, assenhorea-se do ato epistemológico-aplicado, seu espelho de improviso 59 - talvez isso exponha as razões de se atribuir à bioética o status de ciência. O problema é que, para usarmos bem o espelho, precisamos, antes de mais nada, saber que temos um espelho à nossa frente (condição essencial, também nos estágios lacanianos, para que o espelho não seja simples 59. No sentido de “Produto intelectual inspirado na ocasião em que é feito” (ROCHA, 1996: 332). 114 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO ilusão ou experiência alucinatória). Tendo apurado que o que percebemos é uma imagem especular, partimos sempre do princípio de que o espelho “diga a verdade” (ECO, 1989: 17). Na condição (hegemônica dentro do primeiro ciclo bioético) de epistemologia aplicada, a bioética se perfaz à imagem e semelhança da ciência - a qual deveria inspirar -, delineando um sistema tendencialmente factual, capaz de promover uma reflexão tão figurativa quanto inconclusiva, porque segmentada, da eficácia científica em si. Nietzsche (1997: 262) reivindica a morte de Deus e a ciência liberal, a da epistemologia. “O Deus que via tudo, mesmo o homem: esse Deus devia morrer! O homem não suporta que tal testemunha viva”. Do que vai dito acima, a bioética BASP recrudesce o historicismo de um Heráclito, que constrange o homem à imanência de uma práxis mutante, secular e imorredoura, onde se alastra o relativismo ontológico e ético (cf. SCOLA, 1998 a: 113), “cujo verdadeiro rosto é o niilismo” (PETRINI, 2003: 47). Em trabalho eloqüente e de leitura agradabilíssima, Lyon (1998: 18) comenta que o niilismo... ... é o conceito nietzscheano que mais de perto corresponde a este sentido de realidade fluida e oscilante. Quando a irrequieta atitude de dúvida da razão moderna se volta para a razão em si, o resultado é o niilismo. Quer na arte e na filosofia, quer na ciência, a racionalidade é atacada pelo niilismo. Os assim chamados sistemas de razão, afirma Nietzsche, são na verdade sistemas de persuasão. O romancista político Ivan Turguêniev associa o niilismo à crença no progresso científico, que, segundo ele, emerge de um arraigado pessimismo sócio-cultural. Em Pais e Filhos, obra de estilo afável (que contrasta com as de seus contemporâneos Tolstoi e Dostoiévski, pontuadas por som e fúria), Turguêniev fala de uma situação comum à Rússia pré-revolucionária, na qual a ciência e um bom sapateiro seriam mais úteis que a religião e a poesia de Goethe. A paixão da humanidade pela ciência custa-lhe o niilismo, donde se precisa antes de sapatos... FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 115 - O que Bazárov é? - sorriu Arkádi. - Tio, o senhor quer que eu lhe diga? - Faça-me esse favor, meu sobrinho. - É um niilista. - Como? - perguntou Nikolai Petróvitch. - Ele é um niilista - repetiu Arkádi. - Niilista - disse Nikolai Petróvitch. - Vem do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que... que não admite nada? - Digamos: que não respeita nada - emendou Pável Petróvitch. - Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico - observou Arkádi. - E não é a mesma coisa? - indagou Pável Petróvitch. - Não, não é. O niilista é uma pessoa que não admite nenhum princípio sem provas (TURGUÊNIEV, 2004: 56). PHILIA BIOÉTICA: UMA ATIVIDADE MORAL DIGNA É provável que a bioética da amizade seja, equivocadamente, considerada uma utopia, cuja idéia fundamental, a impelir revolucionários, visionários..., consiste numa energia inexaurível, que açoita a história consumada e em andamento: embora soe demasiado estranho, a utopia participa da realidade sendo irrealizável, ou deixa de sê-la (MANNHEIM, 1939; SZACHI, 1972; DUMONT, 1975; MORUS, 1985; LUIZZETTO, 1987; CERTEAU, 1994). A bioética tradicional, contudo, não compreende - porque também ela é apaixonada pela racionalização científica - que as pesquisas em seres humanos se baseiam no amor-paixão ao formalismo autônomo (algo que o longa-metragem O óleo de Lorenzo retrata fidedignamente), eclipsado entre a semiologia e o fetiche de seu pretenso discurso racional-estóico. Ora, discutir a paixão científica pressupõe uma reflexão sobre alguns aspectos essenciais do amor-paixão; e muitos se dispuseram a conhecê-lo: Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Spinoza, Hume, Kant, Freud, Scheler, Ricoeur (MONDIN, 1980: 120). Mas optei por concentrar-me no eixo aristotélico-tomista, devido à similitude com minha proposta de uma philia bioética. 116 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Assim, tento explicar o amor-paixão invocando o que Tomás de Aquino dele nos diz ao longo das questões 22 a 48 da “Prima secundae” de sua Suma teológica. Encontrando abrigo nos textos aristotélicos60, o que Tomás de Aquino escreve sobre as paixões em sua teologia científica há de ser retomado filosoficamente, pois, ao tratar do amor-paixão, o tomismo desenvolve uma antropologia filosófica que precisa ser redescoberta. Se o teólogo Tomás de Aquino impõe a si mesmo o problema das paixões, é porque deseja estudar a pessoa do Cristo adequadamente. Não esqueçamos que antes do Angélico, os Padres da Igreja estiveram sob a influência dos estóicos, que condenavam a paixão, considerando-a nociva. Os estóicos pregavam um extremismo voluntarista: o autocontrole, enquanto domínio pleno de si, deve ofuscar as paixões, a fim de que no homem não haja mais que a sua vontade (EPICTETO, 1964: § 1º). O compromisso seletivo dos estóicos é filtrar a pessoa, retendo as paixões e, desse modo, o impulso do amor. Mas em si, a paixão não é má; pelo contrário: é ela uma riqueza. O condenável é a paixão excessiva, que subjuga todo o resto na pessoa humana, impedindo-a de orientar sua vida de maneira espiritualizada. As paixões são um tipo de apetite ou orientação; são capacidades de amar ao nível de nosso conhecimento e sensibilidade (situa-se em seu devir), sendo em nós o que reclama mais ser educado e enobrecido, elevando-se do sensível ao espiritual. 60. De acordo com Aristóteles, o que determina a amizade é a amabilidade própria do amigo: A ama B - com um amor espiritual - por ele mesmo (objetividade), e não porque B ama A; e vice-versa. Essa é a peculiar reciprocidade da philia: desde que saibamos que alguém nos ama por nós mesmos, nosso amor pode, então, despertar recíproca e verdadeiramente. Se amarmos o outro porque ele nos ama, amá-lo-emos por nós e não por ele mesmo, o que seria mísero e egoísta. No amor de amizade, ama-se o outro porque ele é amável; porque ele se apresenta qual um bem pessoal, capaz de atrair-me por suscitar em mim um amor. Tal reciprocidade, outrossim, é condicionada por uma exigência de lucidez: a paixão não é espiritualizada senão quando lúcida. Amo o outro porque não apenas ele é meu bem, mas também o tenho escolhido. Contudo, se se quer livre (ultrapassando o ardor da paixão), a referida escolha só pode realizar-se na lucidez, cuja plenitude reivindica que o outro amado nos ame também, e que o saibamos. Destarte, a philia é o nó que amarra, um ao outro, dois amores de benevolência, sendo, por isso, a mais perfeita expressão do amor pessoal (ARISTÓTELES, 1985 a: VIII, 2, 1155 b 34 - 1156 a 1s). Tanto que na amizade, vejome através do amor do outro; e, assim, posso olhar-me de uma forma mais apropriada, pois aquele que me dedica seu amor espiritual, vem comunicar-me o olhar que possui a meu respeito, um olhar mais penetrante em relação àquele que poderia ter sobre mim mesmo. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 117 Em verdade, as paixões não têm em si nenhum desígnio, tampouco nos fazem atingir nosso fim ou bem espiritual, posto que seu domínio é anárquico e indissociavelmente ligado ao imaginário (PHILIPPE, 1999: 92-95), precisando ser ultrapassadas. Sem embargo, cada amor ou apetite corresponde a um bem, e no ser humano (co)existem diversos apetites: o bem natural diz respeito ao amor instintivo; o sensível concerne à paixão ou amor passional; e o bem espiritual, ao amor de amizade, que procede de um julgamento livre, sendo nossa vontade de amar espiritualmente. E, depois de evidenciar a diversidade de nossos apetites, santo Tomás (1980: I-II, q. 26, a. 1) conclui: “Em cada um desses [...] o amor é o princípio do movimento que tende para o fim amado”. O amor nasce graças a uma conaturalidade entre o amante e o bem que ele ama. Simultaneamente, é o próprio amor que me conaturaliza com o bem que amo, seja em relação ao apetite natural, seja no que é pertinente ao sensível, quer ainda quanto ao apetite espiritual. Creio que o amor transforma o homem no bem que lhe atrai. Se alguma coisa me seduz, é porque suscita em mim um certo amor, ou seja, é porque existe um “parentesco” radical entre esse bem e minha pessoa. “Santo Tomás expresa la originalidad del ‘amado’ humano con una fórmula aristotélica: el amado es ‘alter ipse’ [ετεροζ αυτοζ]: ‘El virtuoso se relaciona con el amigo como a sí mismo, porque el amigo de algún modo es otro yo’” (CORRAL, 2001: 313). Hedwig (1990: 253) ensina: “Die Begriffe der Intersubjektivität und des alter ego, die vor allem für die Phänomenologie durch den Rückgang in die Einsamkeit des transzendentalen Subjektes zum Problem wurden, sind zwar terminologisch neu, aber der Sache nach weniger modern, als es scheint”. Intermediário entre o apetite instintivo e o amor espiritual, “A paixão é o efeito do agente (agentis) no paciente (in patiente) [...] O apetecível (appetibile) move o apetite, introduzindo-se-lhe (faciens se), por assim dizer, na sua intenção, e o apetite tende para o apetecível...” (TOMÁS DE AQUINO, 1980: I-II, q. 26, a. 2, c.). O efeito de um bem sobre aquele que o ama não é outra coisa senão o apetite. Portanto, a causa específica do amor é o bem que se ama. Quanto à paixão, cujo efeito acarreta uma captura mútua, é ela um amor de cobiça. 118 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO O amor passional se bifurca em duas modalidades: o concupiscível e o irascível. Naquele, oriento-me ao bem sensível imediato, amando-o espontaneamente. Já no apetite irascível (sempre a serviço do concupiscível), amo o bem ao alcance de meus sentidos à medida da dificuldade para conquistá-lo: percebe-se, aqui, um elemento intelectual, tão presente nas pesquisas científicas. No amor-paixão não há gratuidade; o bem sensível é amado não por ele mesmo, mas por nós. O pesquisador se apaixona pelo sujeito de pesquisa em razão, sobretudo, de sua utilidade - e viceversa -, sendo que “o voluntário supõe conhecimento. Ora, a concupiscência corrompe o conhecimento, segundo o Filósofo no livro VI da Ética: ‘O prazer ou a concupiscência do prazer corrompem a ponderação da prudência’. Logo, a concupiscência causa o involuntário” (Id. Ibid., 1980: I-II, q. 6, a. 7, 3). Suponho que haja uma ambigüidade perturbadora quando o objeto da paixão é um ser humano, posto que significa amá-lo não enquanto pessoa, gratuitamente, mas como um bem sensível e útil. Através das paixões, busca-se a si próprio, o que explica as indignidades praticadas no caso tuskegee, típico exemplo de paixão científica levada ao extremo num contexto de pesquisa. Em O LivreArbítrio, a patrística agostiniana lembra que a essência do pecado é a submissão da razão às paixões. Declara o Bispo de Hipona: “O mal provém da paixão interior [...] é claro que em todas as espécies de ações más é a paixão que domina” (AGOSTINHO, 1995: I, 1, 3, 8). A paixão enseja um egocentrismo extraordinário... Recorrendo à psicologia, penso que ela se opõe, diametralmente, ao amor oblativo. Entretanto, insisto que a paixão enquanto tal não é má, embora deva ser ultrapassada e espiritualizada, subsistindo como enraizamento passional do amor em sua plenitude. *** Afinal, a conclusão. CONCLUSÃO ESTATUTO PRÓPRIO DA PHILIA BIOÉTICA Uma das teses centrais do presente estudo consiste em demonstrar que o primeiro ciclo bioético transpira modernidade. O background de tal coerência é a sua formalização, na qual a observância de regras, modelos, termos de consentimento (TCLE) substitui a preocupação com padrões éticos. Não por acaso, o filósofo e teólogo canadense Jean-François Malherbe, titular da cátedra de ética aplicada da Universidade de Sherbrooke, define a bioética como o estudo das normas que devem reger nossa ação no domínio da intervenção técnica do homem sobre a sua própria vida (cf. MALHERBE, 1979). A profissionalização da bioética, com seu viés deontológico, representa o eixo dessa formalização, que converte o bom no funcional, moldando “especialistas sem espírito [Fachmenschen ohne Geist], sensualistas sem coração [Genussmenschen ohne Herz]” (WEBER, 2002: 182) prontos a desempenhar papéis convenientes. Profissionais travestidos de bioeticistas conservam a indiferença de seu know-how e, independentemente de ser uma fonte real de graciosidade, [a indiferença] traz consigo outra vantagem. É que, seja qual for a ação que acompanhe, não importa quão trivial, ela não só demonstra a habilidade da pessoa que a pratica, mas também, muitas vezes, faz com que a mesma seja considerada bem mais importante do que realmente é. E isso porque leva os observadores a crer que um homem que age bem com tanta facilidade deve ser possuidor de uma habilidade ainda maior do que a que de fato tem, e que se quisesse se dar a maiores trabalhos e esforços, poderia fazer as coisas melhor ainda (CASTIGLIONE, 1976: 70)61. 61. Baldesar Castiglione coloca a si mesmo na companhia de Cícero. Entretanto, a leitura cuidadosa de De Officiis tende a demovê-lo de tal pretensão, pois o referido orador romano se ateve, no que tange às normas de conduta, àquilo que é bom de modo geral, e não episódico: “Muito embora [a] excelência moral [de uma conduta humana] não seja de modo geral enaltecida, ainda assim é digna de respeito; e, por sua própria natureza, merece louvor, muito embora não seja louvada por ninguém” (CÍCERO, 1975: 17). 122 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Ingram (1994: 75) acredita que... ... o aspecto racional-valorativo de uma ética de princípios seria eclipsado pelas demandas racional-propositadas do vocacionalismo ético. “A limitação do trabalho especializado, com a renúncia à universalidade faustiana do homem que envolve, é uma condição para qualquer trabalho valioso no mundo moderno; por isso as ações e a renúncia se acompanham necessariamente”. A perda de liberdade trazida por tal renúncia é mais evidente para o burocrata profissional, que “não passa de mera engrenagem num mecanismo de movimento perpétuo que lhe prescreve uma rotina essencialmente fixa”. À guisa de exemplo, cito a estrutura multicêntrica de ensaios clínicos que, supostamente descentralizados, implementam uma especialização periférica, excluindo muitos pesquisadores do processo decisório central. Ao invés de promover sua descentralização, a pesquisa científica, assim organizada, realiza, quando muito, uma desconcentração funcional de tarefas, na qual os pseudocentros, sobretudo aqueles localizados em países de menor projeção tecno-científica, ficam subordinados a um ou, se quiser, alguns poucos núcleos de comando. Por conseguinte, a bioética, relacionada aos trabalhos desenvolvidos em “centros” marginais de investigação científica, afigurase, quase sempre, tão ou mais especializada (e alienada) que eles próprios. Mas há uma distinção importante: a bioética BASP relativa ao staff da ciência moderna é utilitária por opção ideológica; quanto a nós, somos meros convidados de seu banquete. De maneira paradoxal, a conformação de uma bioética protocolar ou ritualista se deve, presumo, à sua formalização legalabstrata, cujo intento é dar-lhe efetividade coercitiva e, conseqüentemente, poder de controle. E o biodireito, refletindo uma possível instância heterônoma de resolução, via legislatório estatal, inclusive daqueles conflitos tidos como bioéticos, ilustra bem tal processo - conduzido pela mão invisível do Leviatã e seu pulso liberal: “tudo aquilo que nosso século chama de liberalismo tende para a visão social do Estado” (von TREITSCHKE, 1963: 29). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 123 Legalizar a bioética, por assim dizer, até que reste apenas o positivismo dos códigos, à maneira de Auguste Comte. A propósito, Zygmunt Bauman comenta, em releitura a Jeremy Bentham - pensador responsável, mais do que qualquer outro, pela agenda da moderna filosofia ética -, “que ‘os seres humanos têm deficiência de altruísmo e por isso precisam da ameaça de coerção para encorajá-los a buscar os interesses da maioria antes que os próprios’” (BAUMAN, 1997: 77). A proverbial heteronomia ética de Bentham se encaixa, numa tradução livre, aos imperativos externos de que trata Alberto Guerreiro Ramos em sua “teoria substantiva da vida humana associada”, totens da dicotomia entre valores e fatos, cujo efeito colateral é a síndrome comportamentalista: O comportamento é uma forma de conduta que se baseia na racionalidade funcional ou na estimativa utilitária das conseqüências, uma capacidade - como assinalou corretamente Hobbes - que o ser humano tem em comum com os outros animais. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em conseqüência, o comportamento é desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo de conduta mecanomórfica, ditada por imperativos exteriores. Pode ser avaliado como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo determinado apenas por causas eficientes. Em contraposição, a ação é própria de um agente que delibera sobre coisas porque está consciente de suas finalidades intrínsecas. Pelo reconhecimento dessas finalidades, a ação constitui uma forma ética de conduta. A eficiência social e organizacional é uma dimensão incidental e não fundamental da ação humana [...] A síndrome comportamentalista é uma disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas quando estas confundem as regras e normas de operação peculiares a sistemas sociais episódicos com regras e normas de sua conduta como um todo [...] Exposto a um mundo infiltrado de relativismo moral, o indivíduo egocêntrico sente-se alienado da realidade e, para superar essa alienação, entrega-se a tipos formalistas de comportamento (RAMOS, 1989: 50-52, 59). Ainda há pouco, por ocasião de uma das muitas visitas que fiz à biblioteca do Pontifício Instituto João Paulo II, deparei-me 124 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO com trechos de duas notáveis documentações sobre o homem ocidental, ambas de Bernard Mandeville: The fable of the bees e A search into the nature of society (publicadas em 1714 e 1723, respectivamente), sendo o último um ensaio voltado à justificação teórica daquela fábula. Embora discorde de Mandeville (apud RAMOS, 1989) quando sugere que a virtude está além da capacidade humana, devo confessar que sua metáfora da colméia social ofereceu-me o argumento básico para entender a falsa piedade, diria Lucrécio (1997: 46-48), que se apodera da bioética enquanto epistemologia aplicada e formalista 62. Com efeito, se a comunidade de interesses - ou de instintos é o critério ordenador da existência humana (transavaliação social), então vício e injustiça se transmutam em virtudes do cotidiano. Daí porque a ordem das pesquisas científicas e, portanto, da bioética tradicional só é possível à medida que seus integrantes, a partir de uma estimativa utilitária, regulam e limitam as próprias paixões, de modo a não ameaçarem os interesses prenunciados no TCLE: os valores humanos se tornam áxios econômicos, no sentido moderno, e todos os fins se equivalem. Poder-se-ia dizer, então, que o eu-bioético é feito em pedaços pela referida transavaliação, cuja racionalidade desempenha um “cálculo utilitário de conseqüências” (HOBBES, 1974: 41), ditada por uma orientação que se apossa do mundo na ante-sala da ciência, induzindo o bioeticista a fixar-se naqueles aspectos suscetíveis de expressão quantitativa e controle. Parafraseando Whitehead (1967: 51), o formalismo bioético recai na “falácia da concretidade mal colocada”; seu raciocínio silogístico-baconiano equipara o verdadeiro ao útil, o que exerce um impacto desfigurador sobre a dignidade dos sujeitos de pesquisa: “aquilo que é o mais útil na operação, é o mais verdadeiro no conhecimento [...] [e] conhecimento é poder” (BACON, 1968: 122). 62. Se bem que, muito antes de Mandeville, Aristóteles (1985 b: 1253 a, § 10) já havia elucidado a natureza do formalismo: “um homem é destinado à associação política, num nível superior àquele em que as abelhas ou outros animais gregários jamais poderão estar associados”. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 125 ... com algumas exceções, prevalecem, na definição de objetivos da pesquisa, interesses outros, distantes dos reais interesses de saúde da população. A rede de forças que define as políticas científicas e, conseqüentemente, os objetivos de determinada pesquisa estão cada vez mais influenciados pelo poder de mercado, pelos interesses das indústrias farmacêuticas e de alimentos, pela competitiva busca de prestígio entre os próprios cientistas, entre outras razões menos explícitas. Neste cenário de gigantes, os mais urgentes problemas de saúde das populações pobres, demandando pesquisas e ações, surgem com pouco poder de influência no direcionamento do tipo de pesquisa a ser priorizada [...] Os projetos multicêntricos de pesquisa em genética médica raramente estudam problemas que interessem à população na qual a pesquisa é desenvolvida [...] DNA-poder. A possibilidade de revelação do código genético de pessoas, povos e nações [por outro lado] é o centro das preocupações éticas na pesquisa em genética humana. Conhecer o DNA de pessoas, povos e nações significa ter acesso ao conhecimento de vulnerabilidades e de resistências a microrganismos, a agentes químicos e físicos, a respostas e reações a drogas e medicamentos e, possivelmente, a inferências sobre comportamentos. Ainda que haja exageros teóricos induzidos por possibilidades de investimentos no mercado pertinente, a apropriação da informação genética de pessoas, povos e nações reveste-se de real poder científico, político, estratégico e bélico (AZEVÊDO apud GARRAFA e PESSINI, 2003: 326-327). Ora, haja vista que a formalização da bioética legitima o autoreferenciamento científico - desde sua fragmentariedade tecnologicamente induzida -, aos bioeticistas restam apenas dois papéis: • o de instrumentador, que substitui as causas finais pelas eficientes, imaginando o mundo qual um encadeamento mecânico de antecedentes e conseqüentes: “Uma causa final não tem lugar senão naquelas coisas que têm senso e vontade e isso também provarei [...] ser causa eficiente” (HOBBES, 1840: 132). No universo mecanomórfico de Hobbes (Ibid.: 246-274), vivazmente encenado por Charles Chaplin em Tempos Modernos, a ética é secundária e a criatividade, não existe; Deus e os homens não agem, comportam-se! A filosofia civil de... 126 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO ... Hobbes afirmaria que a ciência social é, necessariamente, física social de determinado tipo, e que o problema da ordem nos negócios humanos só admite uma solução mecânica. Uma vez que as noções de bem e de mal, e todas as virtudes e sentimentos pertencentes ao domínio da ética assumem o caráter de qualidades secundárias, o planejamento de uma boa sociedade equivale ao planejamento de um sistema mecânico, em que os indivíduos são engrenados, por instigações exteriores, para suportar as regras de conduta necessárias para manutenção da estabilidade desse sistema (RAMOS, 1989: 64). • o de lúdico-calculista, pois os riscos que se mesclam às forças tecnológicas produzidas pelo homem conheceram, durante a modernização, um alargamento vertiginoso e sem precedentes; a tal ponto que a lógica inerente à produção de riqueza precisou dividir espaço com a lógica da previsão-neutralização de riscos63. Atento ao que diz Beck (1992: 19-20), Bauman (1997: 227) vê a “sociedade de risco [como] última posição da tecnologia [...] [cujas] determinações são baseadas em probabilidades matemáticas”. Nessas circunstâncias, a finalidade da bioética tradicional se limita a predizer e minimizar os perigos sistematicamente engendrados através da ciência liberal. José Roberto Goldim escreve sobre a bioética de risco: O Bioethics Thesaurus caracteriza risco como sendo a probabilidade de ocorrência de um evento desfavorável. A definição de risco engloba uma variedade de medidas de probabilidades incluindo aquelas baseadas em dados estatísticos [...] Risco, de acordo com a Resolução CNS 196 / 96, é a possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, 63. Bauman (1997: 236) lembra que uma “revista recentemente lançada, dedicada à administração de risco (Journal of contingencies and crisis management), pensada especificamente, como o folheto de publicidade anuncia, ‘para administradores executivos, criadores de políticas [...] e pesquisadores acadêmicos’, promete fornecer instruções para ‘recuperação e manejo controlado’, e advoga em seus artigos a ‘necessidade de disciplinadas capacidades consultivas’. Uma larga camada de novas profissões especializadas rapidamente se envolve no presente reconhecimento do caráter endêmico dos riscos e na apreciação permanentemente enraizada nos quadros da ação. A especialização em riscos está a ponto de se tornar ramo importante do mundo profissional, convertendo-se ela própria em grande negócio”. Sobre a questão do risco nas pesquisas científicas, recomendo a leitura de Shrader-Frechette (1994: 105) e Lloyd (et al., 2001: 141-149). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 127 moral, intelectual, social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente. Caberia distinguir a noção de risco-processo da de risco-produto. Risco-processo é aquele a que estão expostos os participantes de uma pesquisa, os próprios pesquisadores e os trabalhadores envolvidos, é aquele risco que ocorre ao longo do projeto. Risco-produto é o risco decorrente do projeto, é aquele que atinge a sociedade de forma indistinta. É o risco que resulta dos rejeitos ou de outras formas de contaminação ambiental, por exemplo. As pesquisas com risco maior que o mínimo ou com uma distribuição não eqüitativa dos riscos devem ter uma justificativa adequada [...] O cálculo de probabilidades ainda não existia. A noção matemática de risco, de acordo com os estudos realizados por Bernstein, é relativamente recente na história da humanidade. Este conceito foi introduzido por Blaise Pascal em 1654, a partir de suas correspondências com o grande matemático Pierre de Fermat [...] Desta proposta surge, posteriormente, a noção de utilidade. Este também novo conceito revolucionou a teoria da tomada de decisão, introduzindo a possibilidade de se avaliar a relação risco-benefício ou custo-benefício. Uma importante questão que deve sempre ser discutida é a do risco percebido pelo paciente. Muitas vezes o risco é superestimado ou subestimado. Em situação de pesquisa, em uma amostra de participantes brasileiros, o item menos recordado, entre procedimentos, benefícios e riscos, foi o risco. Uma explicação possível para esta ocorrência pode ser a característica cultural brasileira de evitar incertezas, de não saber conviver com riscos, paradoxalmente à realidade. Em um estudo sobre riscos assistenciais, realizado na Inglaterra, os pacientes superestimaram um risco cirúrgico real de 2% para até 65%. Estes dados reforçam a idéia de que como é importante explicar adequadamente o risco associado a procedimentos assistenciais e de pesquisa. Como é fundamental verificar o grau de compreensão das informações prestadas aos pacientes ou voluntários (GOLDIM, 1997). Pois bem, em meio a esse processo de corrupção ideológica do primeiro ciclo bioético, opera a impressionante reivindicação cartesiana, cujo substrato é a primazia da idéia - penso (ou racionalizo a dignidade nas pesquisas científicas), logo existo (bioeticamente) -, relegando o amor a um plano secundário, se ouso dizer. Tamanho ímpeto atinge seu apogeu na filosofia hegeliana. 128 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Apesar do jovem teólogo Georg Wilhelm Friedrich Hegel pregar o amor, desde que adquire o domínio de seu método dialético, ele se recusa a fazê-lo, visto como ou ignora tudo aquilo que não se pode reduzir ao cogito, ou simplesmente o idealiza. Suponho, no entanto, que a idéia acerca do amor não seja o próprio, e as múltiplas reações contra Hegel (1969) repousam, em boa parte, sobre o que acabo de dizer. De fato, entre as diversas correntes da filosofia contemporânea muitas são apelos para algo mais fundamental, anterior a ratio. Evidentemente, neo-hegelianos como Brunschvicg reafirmam o primado absoluto do raciocínio, contrapondo-se-lhe, porém, um Kierkegaard e os existencialistas. Kierkegaard nos propõe o famoso “salto”, demonstrando que a fé e a fidelidade, ambas exigências do amor, não se explicam pela razão. Bergson descobre na intuição do “impulso vital” um desejo que se estende além do conhecimento lógico-abstrato, qual o thumos descrito em Parmênides. Freud revela, analogamente, a intenção de ultrapassar a nítida consciência da idéia, ainda que tal vontade permaneça imperfeita nele. Nietzsche e Sartre querem transcender a metafísica racional, para eles a suprema mentira... Essas objeções têm em comum o anseio de remontar à fonte de nossa intencionalidade moral. Também a bioética, inicialmente. Entretanto, porque se manteve numa atitude de reação aplicada, o primeiro ciclo bioético consumou seu auto-engano, tornou-se instância reguladora da ciência liberal e de seus riscos, sendo um dos grandes eufemismos do conhecimento moderno. A lógica do conhecimento moderno reforça a propensão recorrente de tratamento “desumano” da realidade [...] para estudar o homem, é mister decompô-lo64 (DEMO, 1998: 121). Por sua vez, a bioética da amizade fala grego! Ela traduz uma “pneumatologia” - pneuma significa espírito, amor (PHILIPPE, 1996: 64. Sobre a intervenção científica no cotidiano: Marcuse (1967), Lévi-Strauss (1976), Abramczuk (1981), Bazarian (1985), Adorno e Horkheimer (1985), Capra (1986), Bombassaro (1992), Einstein (1994), Barrow (1994) e Botomé (1996). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 129 30) - da pesquisa científica, ou seja, uma filosofia do homem encarado por inteiro, mormente em sua capacidade de amar. O que proponho nestas linhas constitui o nervo de uma bioética, enquanto força educadora, pois quando... ... a comunidade sofre de uma doença orgânica que lhe afeta o conjunto ou é destruída, a obra de sua reconstrução só pode partir de um grupo reduzido, mas fundamentalmente são, de homens com idênticas idéias, o qual sirva de célula germinal para um novo organismo; é sempre este o significado da amizade (ϕιλια) para Platão (JAEGER, 1995: 718). Em outras palavras, procurei lançar as bases de uma antropologia bioética, cuja fonte é a experiência intersubjetiva do amor de amizade nas pesquisas científicas em humanos. O cerne de tal orientação antropológica é a epistemologia transdisciplinar-realista (ARAÚJO, 2000: 17-20), que experimenta, quanto ao trabalho verdadeiramente humano, a prioridade do sujeito em relação à técnica, desmoralizando a autoprodigalidade da pesquisa científica. ... o primeiro fundamento do valor do trabalho é o mesmo homem, o seu sujeito. E relaciona-se com isto imediatamente uma conclusão muito importante de natureza ética: embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao trabalho, contudo, antes de mais nada, o trabalho é “para o homem” e não o homem “para o trabalho” (JOÃO PAULO II, 1999: 16-24). Presumo que uma tal perspectiva guarde semelhanças com os trabalhos de restauração ungidos por Eric Voegelin, para quem o esquecimento dos textos clássicos deformou a psique humana 65, causando-lhe o “descarrilamento [e] a sistemática confusão da razão” (VOEGELIN, 1961: 284). 65. Observou lorde Keynes que o desenvolvimento econômico decorreu da avareza, da usura, da precaução - tudo coisas que ele dizia desprezar. Não obstante, concluiu Keynes que, “por mais algum tempo”, tais atributos deveriam continuar “a ser os nossos deuses”, porque “somente elas nos podem fazer sair do túnel da necessidade econômica”. Enfim, asseverou que se “fizesse de conta, para nós mesmos e para todo mundo, que o certo é errado e o errado é certo, porque o errado é útil e o certo não é” (KEYNES, 1932: 372). Lyon (1998: 14-15) segue 130 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO De mais a mais, o exercício da philia bioética permite que a investigação científica constitua, espontaneamente, uma família de propósitos, na qual o indivíduo contemporâneo, enquanto indigenteético refugia-se da “matrix”, do mimetismo entre a ideologia liberal e o espetáculo das transformações técnicas, científicas, econômicas, de consumo...66, emancipando-se-lhe. Como nos versos de Hölderlin (1980: 37), “lá, onde está o perigo, também cresce o que salva”, muito embora... um outro caminho; ele defende que “O afastamento da razão com relação ao medievalismo e à tradição levou muitos a acreditar que os poderes humanos podiam promover um avanço maior e mais rápido [...] Mas, com o destaque ao papel da razão e com a depreciação da intervenção divina, foram lançadas as sementes para uma variante secular da Providência, a idéia de Progresso [...] A fé no progresso [...] tornou a reviver artificialmente através de um desenvolvimento científico e tecnológico enorme e de uma explosão de consumo sem precedentes”. Há muito exposta por Löwith (1949), essa última visão fora impugnada por Blumenberg (1983), para quem o progresso “reocupou” o espaço deixado pela providência, o que legitimaria a modernidade auto-referida. A erudição de Blumenberg é impressionante. Contudo, seu opinativo sobre a obra de Löwith oculta o fato de que o progresso é uma crença, um artigo de fé. 66. Lyotard (1998), Lyon (1998) e o sociólogo francês Jean Baudrillard: “No amontoamento consumista, que estimula a salivação fantástica, há algo mais que a soma dos produtos: a evidência do excedente, a negação mágica e definitiva da rareza, a presunção materna e luxuosa da terra da promissão [...] E semelhante discurso metonímico, repetitivo, da matéria a consumir, da mercadoria, transforma-se, graças à grande metáfora colectiva e por meio do próprio excesso, na imagem do dom, da prodigalidade inesgotável e espetacular, que é peculiar à festa. Além do amontoamento, que é a forma mais rudimentar e também a mais plena da abundância, os objectos organizam-se em panóplia ou em colecção [...] é o modelo aristocrático e luxuoso dos conjuntos que não evocam tanto a superabundância da substância quanto um leque de objectos seleccionados e complementares, entregues à escolha, mas também à reacção psicológica em cadeia do consumidor que os percorre e inventoria, os apreende como categoria total. Raros são os objectos que hoje se oferecem isolados, sem o contexto de objectos que os exprimam. Transformou-se a relação do consumidor ao objecto: já não se refere a tal objecto na sua utilidade específica, mas ao conjunto de objectos na sua significação total [...] Não vamos pensar que a cultura se prostitui no seu interior; seria demasiado simples. Culturaliza-se. Ao mesmo tempo, a ‘mercadoria’ se culturaliza igualmente, porque surge transformada em substância lúdica e distintiva, em acessório de luxo, em elemento no meio de outros elementos da panóplia geral dos bens de consumo [...] Porque, apesar da abundância se tornar quotidiana e banal, continua a viver-se como milagre do diário, na medida em que se revela, não como produzida, arrancada e conquistada, no termo de um esforço histórico e social, mas como dispensada por uma instância mitológica benéfica, de que somos os herdeiros legítimos: a Técnica, o Progresso, o Crescimento etc. [...] Todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia ingênua: a da propensão natural para a felicidade. Inscrita em caracteres de fogo por detrás da menor publicidade para as Canárias, a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação. Mas, que felicidade é esta, que assedia com tanta força ideológica a civilização moderna? A Revolução do Bem-Estar é a herdeira, a testamenteira da Revolução Burguesa ou simplesmente de toda a revolução que erige em princípio a igualdade dos homens sem a poder (ou sem a conseguir) realizar a fundo” (BAUDRILLARD, 1995: 16-48). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 131 ... a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, [esteja] se afundando em uma nova espécie de barbárie [...] O que se torna problemático é não apenas a atividade, mas o sentido da ciência [...] Se se tratasse apenas dos obstáculos resultantes da instrumentação desmemoriada da ciência, o pensamento sobre questões sociais poderia, pelo menos, tomar como ponto de partida as tendências opostas à ciência oficial. Mas também estas são presas do processo global de produção. Elas não se modificaram menos do que a ideologia à qual se referiam [...] A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital. As múltiplas coisas que, segundo Bacon, ele ainda encerra nada mais são do que instrumentos: [...] o controle remoto, que é uma bússola mais confiável [...] O que os homens querem aprender da natureza é como empregála para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos. Diante do atual triunfo da mentalidade factual, até mesmo o credo nominalista de Bacon seria suspeito de metafísica e incorreria no veredicto de vacuidade que proferiu contra a escolástica. Poder e conhecimento são sinônimos. Para Bacon, como para Lutero, o estéril prazer que o conhecimento proporciona não passa de uma espécie de lascívia. O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o procedimento eficaz [...] Não deve haver nenhum mistério, mas tampouco o desejo de sua revelação (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 11-20). Neste anoitecer, onde “todos os gatos são pardos” (JAEGER, 1995: 19), vivemos a mercê de “individualidades fluidas” (HAUSER, 1965: 49), desirmanadas e avulsas, entregues ao perspectivismo intelectual67, que é um elemento autobiográfico do primeiro ciclo bioético. 67. A fluidez da individualidade é uma característica do maneirismo, estágio inicial da arte moderna. Ela antecipou a tendência que, séculos mais tarde, transformou-se numa “síndrome psicológica das sociedades capitalistas” (RAMOS, 1989: 53). Criados pelo homem, os valores não seriam “perpétuos, imutáveis e inequívocos [...] a natureza humana é fraca e inconstante, num estado de eterno fluxo, suspensa entre diferentes estados, inclinações, 132 ANTONIO FÁBIO MEDRADO DE ARAÚJO Constrangida por uma modernidade global em seu alcance, atéia em suas intenções e rude em seus métodos, a pesquisa científica avança tão célere e imprudente quanto admissível, desvencilhada não apenas de algum pretenso fundamento (bio)ético, mas também de qualquer outra fundação. Daí a sacralização do factual, que, segundo Hannah Arendt, torna os homens supérfluos (ARENDT, 1989: 510), “vítimas de um feitiço que nos permite realizar o ‘impossível’” (ARENDT apud BELLINO, 1997: 85), desde que “percamos a capacidade de fazer o possível; de fazer coisas fantasticamente extraordinárias, desde que não sejamos mais capazes de ocuparmo-nos adequadamente de nossas coisas cotidianas” (BELLINO, 1997: 85). Os progressos realizados pela ciência não têm nada a ver com o que queremos; eles seguem as próprias leis inexoráveis, obrigando-nos a fazer o que podemos, sem levar em conta as conseqüências. O quero e o posso saíram por aí cada um por conta própria? Tinha razão Valéry quando há cinqüenta anos dizia: “Pode-se dizer que tudo o que sabemos, quer dizer tudo o que podemos, terminou por se opor ao que nós somos?” (Id. Ibid.: 85). disposições, porque está em contínua transição [...] e sua verdadeira natureza não está na permanência, mas na mudança” (HAUSER, 1965: 49). Ramos (1989: 53-59) sustenta que “a fluidez da individualidade não poderia ser inteiramente explicada sem que se vincule esse fenômeno à forma de representação através da qual as sociedades capitalistas legitimam-se a si mesmas [...] Nas sociedades modernas, a representação é um processo puramente sociomórfico; já não é mais uma legitimação da verdade da existência comunal sobre fundamentos metahistóricos. É, antes, uma exigência para a pacificação negociada entre os indivíduos, para habilitá-los a acomodar seus interesses pessoais. A sociedade moderna não se reconhece como miniatura de um cosmos maior, mas como um contrato amplo entre seres humanos. Assim, a conduta humana se conforma a critérios utilitários que, a seu turno, estimulam a fluidez da individualidade. Na verdade, o homem moderno é uma fluida criatura calculista, que se comporta, essencialmente, de acordo com regras objetivas de conveniência [...] No conceito de representação consistente com esse ponto de vista, a imparcialidade substitui a verdade [...] Em tal situação de vácuo meta-histórico, não dispõe o indivíduo do piso firme necessário para que sua identidade se desenvolva. O homem moderno é o tolo enganado por uma fé mal colocada [...] Mas já que o centro ordenador de sua vida não está em parte alguma, sua identidade é de sua própria criação. Essa forma de cultivo da individualidade acaba em narcisismo [...] Em conseqüência, numa visão fluídica, com a interpretação da sociedade como um sistema de regras contratadas, o indivíduo é levado a compreender que tanto a sua conduta quanto a conduta dos outros é afetada por uma perspectiva. Torna-se um perspectivista [...] O perspectivismo permeia o pensamento de Maquiavel [...] [que] distorce sistematicamente a linguagem teórica por despojá-la de qualquer substância ética, prática em que Hobbes mais tarde seria soberbo. Por exemplo, com Maquiavel, a prudência é vazia de conteúdo ético, é mero cálculo a serviço de interesses...”. Para um maior aprofundamento, sugiro a leitura de Voegelin (1952) e Whitehead (1967: 201, 240). FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA BIOÉTICA 133 Edgar Allan Poe, em O relato de Arthur Gordon Pym; Machado de Assis, em O alienista; Paul Gauguin, em Antes e depois; Ovídio, em A arte de amar; Kafka, em O veredicto; Isaac Asimov, em O homem bicentenário... Em comum, a percuciência de que são tomados de assalto ao pensar o homem e seu destino, testemunhando-lhe a palidez ética dos minutos que há pouco se foram. Aproveitei-os ou não? Porque, como diria Fernando Pessoa, se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?! Tão surpreendente quanto é a escolha moral de Protágoras: “Há mais risco em comprar saber do que em comprar comida” (PLATÃO, 1976: 314 a). Mas gostaria de renunciar a outras tantas indagações Viajando num carro confortável de Bertold Brecht: Viajando num carro confortável Por uma estrada chuvosa do interior Avistamos ao cair da noite um homem rústico Solicitando-nos condução com um gesto humilde. Tínhamos teto e tínhamos espaço e seguimos em frente E ouvimos a mim dizer num tom de voz árido: “Não, Não podemos levar ninguém conosco”. Tínhamos avançado já boa distância, um dia de viagem talvez, Quando subitamente fiquei chocado com esta voz minha Com este comportamento meu E todo este mundo (apud GIANNETTI, 1997: 111). *** Além do ar que respiro, o melhor presente é a mão que seguro, a de meu amigo. Dito isso, finalizo reivindicando para estas páginas um mérito apenas: o da boa-fé; ou, como diria Octavio Paz (apud HABERMAS, 2000), o da nostalgia de uma presença verdadeira. BIBLIOGRAFIA ABRAMCZUK, A. A. O mito da ciência moderna. Proposta de análise da física como base de ideologia totalitária. São Paulo: Cortez, 1981. ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. AGLIETTA, M.; ORLÉAN, A. A violência da moeda. São Paulo: Brasiliense, 1990. AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. ALTVATER, E. O preço da riqueza. São Paulo: UNESP, 1995. ANDERSON, P. O fim da História. De Hegel a Fukyama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992. ARAÚJO, A. F. M. 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