a lenda do samurai e a aproximação com Otelo em sua versão

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a lenda do samurai e a aproximação com Otelo em sua versão
INTRODUÇÃO
Kumonosu-jô 1 ‘was perhaps the most successful
Shakespeare film ever made’, even though ‘it had hardly
any words, and none of them by Shakespeare’.
Roger Manvell (IN: HINDLE: 2007, p. 37)
Esta pesquisa de cunho intermidial insere-se dentro do âmbito dos estudos entre
a literatura e as outras artes, mais especificamente, a relação da literatura com o cinema.
Dentro deste amplo contexto, o enfoque desta pesquisa é estabelecer as equivalências
(aproximação e distanciamento) 2 que existem entre o texto-alvo, o filme Trono
manchado de sangue (Kumonosu-jô) do diretor cinematográfico Akira Kurosawa3 (1910,
1998), e o texto-fonte, a tragédia Macbeth de William Shakespeare. Além de ser uma
tradução intermidial, este filme se caracteriza também como uma tradução cultural uma
vez que a peça shakespeariana, ambientada no reino da Escócia é transposta para o
mundo medieval e feudal japonês. Esta pesquisa irá se concentrar na análise dos pontos
fundamentais que embasam estas duas formas de tradução.
O profundo conhecimento que Kurosawa demonstra ter da obra trágica de
William Shakespeare pode não ser imediatamente perceptível à primeira vista para um
leitor de primeiro nível. (ECO: 1994, p. 50-51) Pretende-se nesta pesquisa expandir o
conceito de leitor desenvolvido por Eco para o espectador de cinema. Apesar desta
dificuldade inicial de percepção, a proximidade do diretor japonês com Shakespeare
torna-se evidente nas três realizações fílmicas em que o diretor adaptou a obra do
dramaturgo inglês: Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô, 1957) - baseada na peça
Macbeth; Ran (1985) - baseada na peça Rei Lear e O homem mau dorme bem4 (Warui
yatsu hodo yoku nemuru,1960) – re-criação da peça Hamlet. Estes filmes são bastante
1
A romanização dos termos e nomes japoneses seguiu as regras do Sistema Hepburn. As vogais longas
foram indicadas por meio do sinal circunflexo (ex. â, ô, û) que, nestes casos, não indica a sílaba tônica.
2
Os termos que envolvem o uso dos conceitos de aproximação e distanciamento não se referem à
tentativa de estabelecer uma comparação entre as obras a partir de um critério de fidelidade. Sabe-se que
uma tradução intersemiótica assegura um amplo grau de liberdade e de criatividade para aqueles que
estão envolvidos no processo tradutório. Os conceitos que dizem respeito ao estabelecimento de
equivalências entre os sistemas semióticos estão sendo aplicados no presente estudo conforme a proposta
que é discutida por Thaïs F. N. Diniz. (2003: p. 27-42)
3
Os nomes na sociedade japonesa são invertidos, em relação ao Ocidente, o sobrenome antecede o nome,
porque é essencial para a cultura japonesa uma indicação clara da origem das pessoas. As pessoas tratamse usualmente pelos sobrenomes, por exemplo Kurosawa. O nome é utilizado apenas em situações de
informalidade e intimidade extremas, como no relacionamento em família.
4
O homem mau dorme bem foi listado em terceiro lugar, apesar de ser anterior a Ran, porque ele está
inserido no século XX em vez da época feudal japonesa, como os outros dois filmes. A tradução do título
deste filme para o português não é exata, porque “Warui yatsu hodo yoku nemuru” significa literalmente
“quanto pior o homem, melhor ele dorme”.
1
relevantes na obra deste diretor, não apenas quanto ao fato de serem re-criações de
obras literárias shakespearianas mas também por contribuírem para a formação de uma
linguagem cinematográfica da produção de Kurosawa.
Diretor cinematográfico de origem japonesa de maior visibilidade no cenário do
cinema mundial, Akira Kurosawa teve dificuldades em produzir mais de um de seus
filmes, porque sua linguagem direta de denúncia da cultura e do governo japonês era
agressiva demais para seus compatriotas. Além disso, ele era conhecido por não fazer
concessões ao estúdio Tôho5 para o qual trabalhava, nem quanto ao cenário, nem quanto
ao conteúdo de seus filmes ou quanto aos prazos e custos de filmagem. Ele foi, por
esses motivos, boicotado pela indústria japonesa de cinema6, sendo preciso recorrer a
amigos diretores estrangeiros, George Lucas, Martin Scorsese, Steven Spielberg e como
Francis Ford Coppola, para conseguir custear a produção de algumas obras-primas de
sua filmografia.
Ao considerarmos o objeto de estudo desta pesquisa, Trono manchado de
sangue, é preciso salientar antes de mais nada que o título em japonês pode ser
traduzido como “O Castelo da Teia de Aranha”, sendo que este não é apenas o título do
filme, mas também o nome do feudo onde ele transcorre. Quanto à repercussão do filme,
Maurice Hindle, em sua obra Studying Shakespeare on film, afirma que alguns críticos
classificam-no na categoria de obra-prima. Ao discorrer sobre o universo das adaptações
fílmicas shakespearianas realizadas na mesma época, ele afirma que após a adaptação
do Otelo (1955) pelo russo Sergei Yutkevich, apareceram diversas adaptações em países
de tradição não inglesa. Segundo ele, o filme de Akira Kurosawa se destaca entre elas.
Dentro deste contexto, ele afirma que, afora os filmes Hamlet (1964) e Rei Lear (1971)
baseados em tragédias shakespearianas de Grigori Kozintsev, Trono manchado de
sangue foi o mais aclamado. (HINDLE: 2007, p. 36)
Hindle contrapõe-se, ainda, à opinião de diversos críticos que afirmaram que
Trono manchado de sangue é uma transmutação, um destilamento do tema Macbeth, e
não uma adaptação. Entretanto, ele afirma que se trata de um enredo produzido com
nuances tão dramáticas e de complexidade humana comparáveis às de Shakespeare,
embora pouco ou nada do texto original da peça esteja presente nas falas dos
5
A indústria cinematográfica japonesa apresenta uma conformação diversa da hollywoodiana. Em vez da
dicotomia estúdio X diretores autorais, há diretores autorais trabalhando dentro de estúdios renomados,
um exemplo desta situação foi Akira Kurosawa.
6
O fato de existir uma indústria de cinema consolidada é um ponto de diferenciação com o Brasil, no
qual o cinema vivencia alternâncias entre momentos de estagnação e repentinos ressurgimentos.
2
personagens dentro do filme. (IDEM) Este fato enfatiza o aspecto de que uma tradução
intersemiótica e cultural engloba elementos muitas vezes sutis, como intencionalidades
e motivações internas contidas no texto original, que são transpostos para o contexto
cultural alvo.
Além dos atributos inegáveis que Trono manchado de sangue encerra, o filme
espelha, para Hindle, o mérito de re-trabalhar de uma maneira radical uma peça
shakespeariana para a grande tela a partir de uma cultura e história não-ocidentais. O
resultado não tem paralelos no gênero de filmes shakespearianos. (IBIDEM, p. 99) Esta
afirmação caracteriza o processo da tradução cultural ocorrida no Trono manchado de
sangue. Este filme faz parte da categoria de filmes autorais, ou seja, ele expressa uma
visão muito particular da tragédia shakespeariana da qual partiu.
Ilustração 1 – cartaz em japonês
do filme Trono manchado de sangue7
Informações pertinentes sobre as escolhas feitas por Kurosawa para elaborar a
tradução intersemiótica e cultural de Macbeth trouxeram um novo olhar para o objeto de
estudo desta pesquisa. Esclarecimentos sobre o processo de realização fílmica do
próprio diretor foram incorporados à pesquisa e enriqueceram a compreensão sobre a
forma como ele entendia o cinema, as diversas etapas do processo de realização fílmica
e, igualmente, o seu papel como artista e realizador.
Com o intuito de embasar esta pesquisa no que se refere tanto à tradução
intersemiótica quanto à tradução cultural, o principal teórico será Patrice Pavis. Sua
série de textualizações para o processo de tradução para o palco será adaptada e servirá
7
Este cartaz ampliado pode ser melhor visualizado no anexo 1.
3
de ponto de partida para a análise do processo de tradução intermidial e intercultural
para o cinema e igualmente no que se refere ao processo de realização fílmico envolvido.
2 QUESTÕES TEÓRICAS
Translation is not only just a “window open on another
world”, or some such pious platitude. Rather translation
is a channel opened, often not without a certain
reluctance, through which foreign influences can
penetrate the native culture, challenge it, and even
contribute to subverting it.
André Lefevere
A tradução intersemiótica consiste no diálogo entre formas de arte distintas, ou
seja, entre sistemas semióticos diversos. Julio Plaza concebe “a Tradução intersemiótica
da seguinte maneira:
Tradução Intersemiótica como prática crítico-criativa, como metracriação, como ação sobre
estruturas e eventos, como diálogo de signos, como um outro nas diferenças, como síntese e reescritura da história. Quer dizer, como pensamento em signos, como trânsito de sentidos, como
transcriação de formas na historicidade. (PLAZA: 2003, p. 209)
O cinema, que é considerado uma forma de arte recente, apóia-se em outras artes
que lhe foram anteriores: a fotografia e o teatro. Antes de ser narrativo, o cinema
iniciou-se como forma documental, como fotografia em movimento. Do teatro, esta
forma de arte retirou a idéia da dramaturgia e de contar histórias ficcionais. Entretanto,
aos poucos, o cinema foi criando a sua própria linguagem e maneira própria de atuação.
Quando esta linguagem estabeleceu-se, a questão narrativa começou a ser intensamente
pesquisada, tanto no que diz respeito às imagens quanto aos sons. A seguir, a própria
montagem começou a ser elaborada de maneira ideológica com o diretor russo Sergei
Eisenstein, reforçando este caráter narrativo. Ao atingir este ponto ficcional, o cinema
aproximou-se da literatura, à procura de histórias para adaptar. O diretor Stanley
Kubrick, por exemplo, sempre baseava seus roteiros em obras literárias. Isto porque em
seus primeiros roteiros, escritos originariamente para o cinema, ele entendeu que havia
uma falta de densidade tanto nos personagens como nos enredos. O trânsito entre duas
diferentes mídias e linguagens torna-se muito enriquecedor em possibilidades de recriação.
4
A criação artística da contemporaneidade, ainda segundo Plaza se acha
drasticamente influenciada pelos meios de “repro-produção de linguagens. (IBIDEM, p.
206) Há uma profunda e radical transformação cultural devido à dominação dos
sistemas eletrônicos. Os recursos tecnológicos e eletrônicos, estreitamente ligados à arte,
têm íntima relação com o cinema. Na classificação deste autor sobre as formas de arte
em artesanais (do único), industriais (do reproduzível) e eletrônicas (intermídia), o
cinema estaria inserido nesta última categoria. Para ele, o “cotidiano, no caso de
comparação, encontra-se ‘empobrecido’ em relação à imagem ‘enriquecida’ pelos
‘efeitos especiais’ (cor, montagem, cenografia, iluminação, movimentos de câmera,
programas e softwares adequados”. (IBIDEM, p. 207)
A abordagem dada à tradução intersemiótica por Patrice Pavis em Theatre at the
crossroads of culture foi tomada como teoria principal que norteia esta pesquisa por
dois motivos: 1°) O autor enfoca a complexidade da tradução entre mídias distintas; 2°)
Pavis oferece uma reflexão sobre o processo das concretizações textuais desde o textoorigem até a sua percepção no palco.
Para ele, a tradução de um texto para o palco deve prever a mise en scène que se
realiza plenamente a partir da contribuição de todos os envolvidos na realização do
espetáculo: o tradutor, diretor, os atores e demais criadores. Por esse motivo, o
fenômeno da tradução para o palco ultrapassa a tradução interlingual do texto dramático.
(PAVIS: 1992, p. 136)
Ao lidar com as diferentes mídias, o tradutor deve, antes de
tudo, compreender os sistemas sígnicos e também entre as culturas nas quais o textofonte e o texto-alvo, termos utilizados por Pavis (IBIDEM, p. 137) estão inseridos.
Dentro deste contexto, pode-se afirmar que há um entrecruzamento das situações
de enunciação, em que o texto traduzido se torna parte tanto do texto e cultura fonte
como do texto e cultura alvo. É necessário que se proceda a uma adaptação tanto
lingüística quanto cultural. Assume-se, então, que a transferência envolve,
simultaneamente, as dimensões semânticas, rítmicas, sintáticas, sonoras, dentre outras.
Segundo Pavis (IDEM), a tradução para o palco torna-se um processo mais complexo
para o tradutor, pois ele terá que lidar com aspectos que ainda lhe são desconhecidos. A
tradução para o teatro consiste em um ato hermenêutico, após uma ampla compreensão
do significado do texto-fonte, é necessário descobrir a sua significação a partir da
situação final de recepção, do ponto de vista da língua alvo. Ou seja, qual é o seu
significado no contexto cultural alvo?
5
Em Theatre at the crossroads of culture, este autor (IBIDEM: p.138-142)
apresenta uma série de concretizações textuais objetivando facilitar a compreensão das
transformações que um texto dramático sofre desde a sua concepção até a sua mise en
scène e recepção pela audiência:
Texto e Cultura
fonte
T0
Texto e Cultura
alvo
T1
T2
T3
T4
concretização concretização concretização
textual
dramática
para o palco
T0 refere-se ao texto-fonte, o texto ‘original’ que pressupõe as escolhas e formulações
de um escritor. O texto torna-se legível apenas em sua enunciação concreta,
principalmente, em suas dimensões inter e ideotextuais (estudos culturais).
T1 é a concretização textual dentro do processo de tradução, a partir da enunciação
inicial e virtual do T0, bem como da futura audiência (espectadores/leitores). Dentro
deste processo, o tradutor acumula os papéis de leitor e de dramaturgista e deve
empreender escolhas a partir do imenso potencial e indicações implícitas no texto-fonte.
Esta tradução deve incluir uma análise dramatúrgica do universo ficcional que está
incorporado no texto: enredo, personagens, tempo, espaço, atmosfera, tom visão autoral.
A organicidade e a coesão do texto-fonte devem ser examinadas. A tradução para o
teatro deve ainda contemplar a estilística e a cultura. A análise dramatúrgica torna-se
ainda mais necessária quando se trata da tradução de textos clássicos (a tradução será
mais legível que o texto-fonte), devido ao trabalho de adaptação.
T2 Um dramaturgista pode também atuar como intérprete para o tradutor e diretor no T2,
sistematizando escolhas dramatúrgicas úteis à futura mise en scène. Isto pode ser
realizado tanto através de sua leitura da tradução (T1), quanto mediante suas referências
ao original. O dramaturgista empreende um processo de concretização dramatúrgica do
texto fazendo, ao mesmo tempo, uma adaptação e um comentário a ele. A tradução para
o palco é mais do que um ato lingüístico, é um ato dramatúrgico. O tradutor no papel de
dramaturgista deve disponibilizar no texto as informações necessárias para que a
audiência compreenda o enredo, a ação, a caracterização e outros elementos. O tradutor-
6
dramaturgista pode fazer cortes, visando a compreensão imediata do texto pela
audiência. O texto deve ser adaptado às situações, necessidades e intenções no presente.
Desta forma, apaga-se a intenção original que é substituída pela atual.
T3 refere-se à concretização do texto pela sua enunciação no palco, o texto espetacular
ou performance text consiste em um teste no palco do texto inicialmente traduzido para
o T1 e o T2. É a etapa em que a enunciação é finalmente realizada; é formada pela
audiência na cultura alvo que, imediatamente, confirma se o texto é aceitável ou não.
T4 refere-se à concretização receptiva do texto encenado no palco, o T3. Este último
estágio poderia ser chamado a concretização do receptor ou enunciação,ele ocorre
quando o texto fonte atinge o seu destino final: o espectador. Este se apropria do texto
apenas no final do processo de concretizações que reduzem ou ampliam o texto-fonte,
que deve ser sempre redescoberto e reconstituído.
Este mesmo processo que descreve a transformação das sucessivas
textualizações na passagem de um certo texto para o palco, pode também ser aplicado
para a tradução intersemiótica de um texto literário para o cinema. Para a presente
pesquisa, pretende-se adaptar as conceituações de Patrice Pavis para o estudo da
produção fílmica realizada por Akira Kurosawa no Trono manchado de sangue. Dentro
deste processo, foi preciso adaptar a terminologia usada por Pavis para uma produção
fílmica e acrescentar um item aos já estabelecidos por Pavis, que se tornaria o T5. A
justificativa para isso é que o cinema compreende uma etapa adicional entre a
concretização fílmica (T3) e a sua recepção pelo espectador, que consiste da
concretização da edição8.
8
A pós-produção é tida como o momento em que ele se define como linguagem. Este é o momento em
que as cenas, gravadas fora da ordem escrita no roteiro, tomam corpo. É a etapa em que se definem
aspectos ocorridos na filmagem: se uma decisão sobre um enquadramento de câmera funcionou ou não,
se há necessidade de dublagem, e como um diálogo deve ser montado (em plano aberto ou utilizando-se
plano e contra-plano, ou com a alternação dos dois). Cada versão montada do filme é chamada de corte e
é numerada. Na edição, os filmes podem ser refeitos, principalmente nos grandes estúdios, contrariando
ou destruindo a visão do diretor, por decisão dos produtores.
7
Pré-produção
T0
T1
Produção Pós-produção
T2
T3
T4
T5
concretização concretização concretização concretização
textual
do roteiro da filmagem da edição
Texto e Cultura
Fonte
Texto e Cultura
Alvo
T0 corresponde igualmente ao texto-fonte, ou seja, o texto literário que servirá de base
para a adaptação fílmica.
T1 corresponde ao roteiro literário original ou adaptado. Deve-se partir de uma
transposição do texto-fonte em imagens, que prevê anteriormente não apenas a tradução
interlingual como a tradução intercultural, tendo-se como prisma a futura audiência.
Nesta fase, o roteirista e/ou o diretor, iniciarão o estudo de como transpor o enredo para
o cinema, uma vez que a fase que compreende o T1 prevê um estudo aprofundado do
texto-fonte objetivando exaurir o seu potencial de significados para o texto e cultura
alvos, antes da elaboração do roteiro propriamente dito. “O roteiro” literário, segundo
Syd Field, “é uma história contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no
contexto da estrutura dramática” (FIELD: 2001, p. 2)
T2 corresponde ao roteiro técnico. É a fase em que se faz o detalhamento do roteiro
literário segundo decisões técnicas sobre a melhor maneira de contar a história em
imagens. O roteiro técnico segue a ordem do literário, que é dividido em cenas. Porém,
ele subdivide cada cena em takes, detalhando cada imagem com o plano da câmera, o
eixo da cena e a planta-baixa dos espaços. No decorrer desta fase, alguns cineastas e/ou
roteiristas elaboram um storyboard (composto de desenhos detalhados do filme cena a
cena, com cenário, atores, posicionamento de câmera e outros detalhes úteis durante as
filmagens. Assemelha-se visualmente a uma história em quadrinhos, mas é uma
indicação visual das decisões imagéticas tomadas durante o roteiro técnico, acrescidas
da ação e dos diálogos, que são indicados através de legendas). Tendo o roteiro e/ou o
storyboard como base, é elaborado o cronograma de filmagem, que se refere
distribuição das cenas para cada um dos dias de filmagem; e em seguida é feita a
8
decupagem que consiste no detalhamento os aspectos técnicos de cada uma das cenas,
como por exemplo, a luz e o enquadramento de câmera.
T3 corresponde à concretização do processo de gravação do filme, em imagens captadas
no set de filmagem a partir do roteiro T2. As cenas são gravadas de acordo com o que
foi estabelecido no cronograma, fora da seqüência narrativa do filme. As cenas são
registradas em mais de uma versão, as chamadas tomadas. São feitas anotações em uma
ficha de filmagem, com observações concisas (cena bem sucedida, vazamento de som,
falha no diálogo, dentre outras) sobre cada uma das versões numeradas de cada cena,
visando auxiliar o processo de montagem.
T4 corresponde à concretização da edição, à montagem do filme. Somente na fase da
montagem é que um filme deixa de ser um conjunto de fragmentos para ganhar uma
conformidade de todo. Neste momento, logo após a montagem propriamente dita, é feita
a pós-produção de som, que define a atmosfera final do filme9.
T5 corresponde ao momento da recepção pelo espectador nas telas dos cinemas. Apesar
de, hoje em dia, um filme precisar contar com a audiência em DVD (locadoras) e da
televisão, o objetivo final de uma adaptação fílmica é a exibição na grande tela dos
cinemas, em que há a recepção coletiva do filme pelo público. A exibição de grande
parte da filmografia realizada por Kurosawa, foi pensada exclusivamente para a sala de
exibição. Apenas filmes mais recentes, como Sonhos, Rapsódia de Agosto e Madadayo
tiveram que prever outras formas de exibição como complementares à das salas de
cinema10.
A realização fílmica engloba três fases de trabalho distintas e subseqüentes: a
pré-produção, a produção e a pós-produção:
•
A fase de pré-produção inicia-se com a elaboração do roteiro (T2). A partir dele, é elaborado o
roteiro técnico, em que se dá a tradução do enredo em decisões que visem à produção de
9
Um evento recente de pirataria que consistiu na veiculação ilegal e antecipada do filme Tropa de Elite
antes da estréia nos cinemas está diretamente relacionado à montagem e à edição de som no que se refere
à sua primeira recepção. A montagem final do filme exibida nos cinemas exclui uma cena que caracteriza,
possivelmente, os policiais como nazistas. Está sendo cogitado que a exclusão desta cena ocorreu devido
a esta percepção negativa pela platéia “pirata”. Os espectadores ‘piratas’ saíram prejudicados quanto à
edição de som, porque esta versão conta apenas com o resultado da captação direta de som. Esta versão é
anterior à edição de som, na qual é realizado um tratamento de som (inserção de sons gravados, dublagem
e outros elementos enriquecem o som final) quando é feita uma ambiência sonora para o filme que dá ao
filme seu caráter dramático.
10
Havia uma defasagem de alguns anos entre o lançamento nos cinemas e a versão em VHS ou DVD
mesmo nos filmes mais recentes. O prazo extremamente curto, com diferença de poucos meses, entre o
lançamento de um filme nas salas de exibição e sua veiculação nas locadoras e lojas de DVDs é um
fenômeno que se iniciou na última década e, portanto, após a morte de Akira Kurosawa.
9
imagens. Ela também engloba atividades como a preparação dos cenários, a escolha de locações
(o encaminhamento de pedidos de interdição de ruas, por exemplo), a escolha do figurino de
cada um dos personagens, a elaboração dos planos de filmagem do diretor e também das equipes
de fotografia e de som. Outros detalhes anteriores que precisam estar definidos para o momento
da filmagem também são decididos. O calendário dos dias de filmagem e os prazos para iniciar a
pós-produção devem ser estabelecidos já nesta fase. Alguns meses antes da filmagem iniciam-se
também os ensaios com os atores.
•
A fase de produção consiste no momento da filmagem (T3). É o momento de captação das
imagens que se constituirão na pós-produção no produto final: o filme. É feita também a
captação de som direto, que será parcialmente utilizada na edição de som. O set de filmagem,
que não deve ser confundido com a equipe de produção.
•
A fase de pós-produção engloba as edições de imagem e de som (T4) – há também atividades
ligadas à equipe de produção nesta fase, mas não ligadas ao material filmado, mas a questões
como a divulgação (a cargo da equipe de produção ou de uma agência de divulgação), a
distribuição do filme e o agendamento de salas para a estréia. A pós-produção imagem11 é uma
etapa “pouco conhecida do público”, mas atualmente, diz-se que este é o momento em que se
define o produto final. A “atividade do montador é peça fundamental no processo criativo de um
filme. Trabalhando com material recém-filmado ou com material de arquivo, ele é o grande
responsável pelo ritmo da narrativa, entre tantas outras coisas.” A montagem ordena as imagens,
linear ou não linearmente, e lhes dá sentido. Outra atividade primordial é a pós-produção de som
pois ela compõe a ambientação12, que muitas vezes é decisiva para o sucesso ou insucesso de
uma obra fílmica. Ela se constitui da gravação posterior dos sons necessários para dar
significado às imagens (batida de carro, tiro, canto de pássaros); da gravação sincronizada de
sons como passos, chamada foley – feita por um profissional que acompanha exatamente a
imagem do ator e reproduz seus passos e da dublagem efetuada pelos atores em algumas cenas
em que o som direto não pode ser utilizado.
Nesta atividade artística, há dois quadros hierárquicos possíveis para estas
equipes. O primeiro é o existente nos filmes produzidos pelos grandes estúdios, e que
tem na figura do produtor o topo do organograma, abaixo dele o diretor (funcionário do
estúdio), e abaixo deste as demais equipes acima citadas. No segundo, o cinema autoral,
o topo da escala de trabalho consiste na figura do diretor, que tem a seu comando um
11
Um material didático-explicativo sobre esta etapa da realização fílmica é o DVD 2 da nova versão de
King Kong, que contém um documentário extra sobre como se deu o processo de pós-produção do filme.
Guardadas as proporções entre uma mega-produção hollywoodiana e as demais, é assim que o processo
ocorre.
12
Os tiros de cinema por vezes parecem mais autênticos do que os ocorridos na realidade, pois estes
soam secos e rápidos demais para a nossa percepção mais acostumada aos tiros da ficção. Em alguns
filmes, para produzir um som complementar à imagem, a composição utiliza além do som principal de
tiro, fragmentos de sons metálicos para que a impressão final seja mais complexa.
10
produtor executivo (que lida com as adequações financeiras e outros detalhes
burocráticos), e as demais equipes.
Por se constituir em uma atividade essencialmente coletiva, o cinema possui
diversas equipes que devem estar a par do roteiro e possuir uma cópia dele. Estas
equipes constituem-se da direção (composta pelo diretor e por um ou dois assistentes de
direção); da direção de arte (cenografia, figurino, maquiagem); da produção
(alimentação, transporte, materiais, captação de recursos e divulgação); fotografia
(câmera, foquista, maquinista) e captação de som direto (técnico de captação de som
direto). Todas estas equipes devem estar afinadas e conhecer perfeitamente o roteiro.
Todos os profissionais envolvidos no processo de produção de um filme são
primeiramente leitores do T2, e posteriormente re-criadores, cada um segundo sua
função.
A partir dos pressupostos teóricos desenvolvidos anteriormente, ao tratarmos da
transposição fílmica de Trono manchado de sangue (T5), o texto-fonte (T0) é a tragédia
shakespeariana, Macbeth.
Ilustração 2 – Kurosawa pintando cena de storyboard.
Para este diretor, o T2 refere-se não apenas ao roteiro mas, principalmente, a um
storyboard. Ele preparava não apenas um roteiro, mas os pintava antes de todos os seus
filmes, cena a cena. Por ter tido uma formação sólida em pintura, antes de ingressar no
mundo do cinema, seus storyboards são verdadeiras obras de arte. Kurosawa entrou no
cinema quase por acaso, quando estava em uma encruzilhada profissional no campo da
pintura, sem saber ao certo que rumo seguir em sua carreira. Seus storyboards são
muito próximos da imagem final em película, uma vez que seus desenhos são muito
11
detalhados tanto em ambientação quanto no posicionamento e enquadramento de
câmera. Algumas imagens ilustrativas de seus storyboards estão dispostas a seguir:
Existe uma grande proximidade entre as pinturas elaboradas para o storyboard e
a imagem filmada. As duas imagens abaixo ilustram esta proximidade, embora sejam
partes de filmes diferentes13, a pintura faz parte do storyboard do filme Kagemusha
(1980) e a foto é parte do filme Trono manchado de sangue e apresenta o protagonista
após tomar posse do feudo:
Ilustrações 3 – A semelhança entre ambas as imagens faz pensar que se trata do mesmo
personagem.
A formação inicial deste diretor em pintura transparece não apenas na beleza e
no detalhamento dos storyboards, verdadeiras obras de artes, mas no uso diferenciado e
intermidial do contraste e, posteriormente, da cor, em seus filmes. As locações e os
13
As imagens foram relacionadas por sua proximidade imagética e também porque não foi encontrada
nenhuma amostra do storyboard do filme Trono manchado de sangue.
12
cenários dos filmes do cineasta são trabalhados de forma a comporem imagens
semelhantes às da pintura.
Nos filmes PB (preto e branco), por exemplo, o preto e branco era mais do que
apenas um suporte material para a história a ser contada, era tratado como suporte
estético para a criação artística. Eram enfatizadas visualmente as sombras e contrastes e
elementos interessantes como florestas, castelos, choupanas, vilarejos, névoa, vento e
chuva eram elaborados artisticamente, à pintura tradicional a nanquim, suibokuga.
Como enfatizou Donald Richie (RICHIE: 1984, p. 121), um estudioso da obra de
Kurosawa que será retomado ao longo desta pesquisa, em seu estudo sobre o filme
Trono manchado de sangue, “raramente se viu um filme branco e preto tão branco e
preto”. Este aspecto pictórico tem caráter narrativo no filme.
No caso dos filmes coloridos, este aspecto pictórico das cenas14 se fazia presente
de maneira diversa. Esta é uma característica marcante de Kurosawa desde seu primeiro
filme colorido, Dodes’ka-den (1970), que foi comparado à pintura de Mondrian. Outro
exemplo, desta vez diretamente relacionado às adaptações shakespearianas do diretor, é
Ran, que mostra a imensidão do céu azul, pintado com nuvens brancas, e o colorido
tanto da natureza quanto do figurino, representado pelos tecidos dos kimonos dos atores.
Ao analisarmos sua filmografia, percebe-se que Kurosawa produziu o mesmo
número de filmes em preto e branco (PB) e de filmes coloridos, o que evidencia que o
cineasta foi atuante em ambos os momentos históricos, ou seja, antes e depois do
advento da cor (ver filmografia, em anexo).
No momento da montagem15 (T4), uma cena não é cortada apenas no caso de ter
sido mal filmada, uma vez que cenas muito bem realizadas podem se revelar inúteis ao
enredo quando avaliadas durante o T4, acabando por serem descartadas. No caso dos
grandes estúdios hollywoodianos, a figura do produtor pode interferir na montagem do
filme, modificando o produto final.
14
As experiências com a cor começam em 1909. Por volta de 1933, a Technicolor aperfeiçoa um sistema
de três cores, empregado pela primeira vez no Vaidade e beleza, 1935. O primeiro filme em feito
totalmente em cores foi O Ladrão de Bagdad, 1940. A tecnologia dos filmes coloridos era cara,
inviabilizando a utilização em produções modestas. Nos primeiros anos, mesmo os grandes estúdios
continuavam com produções em PB e apenas poucas mega-produções coloridas. Pouco depois da
filmagem de E o vento levou (1939) pela MGM, Alfred Hitchcock, contratado pelo mesmo estúdio,
filmava em PB. Por isso, ele ironizava com a idéia da cor, inserindo nas falas dos atores referências a um
anel verde que o espectador não poderia ver. Nos anos 50, o uso da cor generalizou-se tanto que o PB
ficou praticamente relegado a pequenos filmes.
15
A montagem, ou seja, a edição de imagem tem várias versões, chamadas de cortes, que são numeradas
da mesma maneira que acontece com o roteiro. Elas constituem-se em várias versões do filme, montadas
de tal maneira que um diretor e/ou um produtor possam efetuar a escolha do melhor corte.
13
Um exemplo de uma cena que foi filmada apropriadamente, mas que acabou
sendo descartada durante o processo de edição de imagem ocorreu com Kurosawa
durante a edição do Trono manchado de sangue. Este fato foi testemunhado por Richie,
que o descreveu da seguinte forma:
O cenário atual representava o palácio provinciano do senhor Washizu, o personagem de
Macbeth, e estava-se filmando a chegada de Duncan: soldados, estandartes, cavalos, um javali
empalhado preso em hastes – uma procissão inteira. Quando um assistente deu o sinal, ela
começou a avançar sob o sol do outono tardio.
Acima de nós, numa plataforma, estava Kurosawa e seu câmera. Tínhamos conversado com o
diretor anteriormente, e ele nos explicara seus planos para aquela cena. Agora, o observávamos
em ação. Gastou-se a tarde inteira com as partidas e paradas daquela procissão distante. Partes da
cena estavam sendo filmadas com lentes de foco profundo, depois eram refilmadas várias vezes.
Meio ano mais tarde, quando vimos o filme pronto na sala de projeção, não encontramos
nenhuma daquelas tomadas. Perguntei a Kurosawa por quê. As cenas ficaram boas, mas não
eram realmente necessárias. Ademais, quebravam o fluxo do filme. Joe e eu ficamos estarrecidos.
(RICHIE: 2000, p. 73)
O próprio Kurosawa escreve o que poderia ser uma resposta a esta surpresa
deste autor, no primeiro dos dois trechos abaixo sobre edição:
“O requisito mais importante para a edição é a objetividade. Não importa quanta dificuldade
você encontre para obter determinada tomada, o espectador jamais entenderá isso. Se não for
interessante, simplesmente não será interessante. Você pode ter-se tomado de grande entusiasmo
ao filmar determinada tomada, mas se esse entusiasmo não é transmitido na tela, você deve ser
pragmático o suficiente para cortá-la.” (KUROSAWA: 1990, p. 282)
Editar é um trabalho realmente interessante. Quando os copiões16 chegam, raramente os mostro
à minha equipe exatamente como estão. Em lugar disso, vou para a sala de edição no fim do dia
de filmagem e, com o montador, gasto três horas editando os copiões. Só depois disso mosto os
resultados à equipe. É necessário mostrar esse resultado editado com o objetivo de despertar o
interesse. Algumas vezes eles não entendem o que está sendo filmado ou por que têm de gastar
dez dias numa tomada. Quando eles vêem a película editada e a confrontam com seu trabalho,
tornam-se entusiasmados novamente. E editando da forma que edito, só tenho a montagem de
detalhe a completar, depois de terminar a filmagem. (IDEM)
A recepção do filme pela platéia é realizada apenas no T5, quando o filme tem
sua estréia nas salas de cinema. Antes deste momento que representa o objetivo final de
uma realização fílmica, muitas decisões estéticas e técnicas foram tomadas em todas as
etapas acima explicitadas para que o filme se materialize na tela.
Para criar sua adaptação fílmica da peça shakespeariana Macbeth, Kurosawa
demorou alguns anos a mais do que pretendia para criar sua adaptação fílmica desta
16
Cópias brutas das imagens registradas em película durante as filmagens. Elas formam a base para a
edição linear (em filme, cortando e montando os pedaços um a um) e, posteriormente, para o filme
finalizado. Hoje, com as câmeras digitais, o filme é registrado em DVD ou no disco rígido da câmera, e
depois montado no computador, o que é chamado de edição não-linear.
14
peça shakespeariana, porque outro diretor de renome filmou uma versão no ano de 1948,
a mesma época em que Kurosawa manifestou pela primeira vez esta intenção. Segundo
as próprias palavras do diretor: “Ao terminar Rashomon, eu queria fazer algo com
Macbeth de Shakespeare, mas justamente naquela época foi noticiada a versão de Orson
Welles e, portanto, adiei a minha.” (RICHIE: 1984, p. 116)
Durante o período que decorreu entre o término de Rashomon (finalizado em
1949 e lançado no ano seguinte) e as filmagens de Trono manchado de sangue (filmado
em 1956, lançado no ano seguinte), o diretor pôde amadurecer suas idéias. Ao transpor
a tragédia shakespeariana para o feudalismo japonês, o diretor empreendeu algumas
escolhas como a transformação do protagonista em um valoroso samurai no início do
filme. Esta decisão modifica a personalidade de grande parte dos personagens da
narrativa. Os elementos que contribuíram para a concepção fílmica de Kurosawa estão
explicitados abaixo:
Intertextos
Bushidô
Macbeth
tradução
Concepção
Trono
Shakespear
p/ o Japonês
Kurosawa
Manchado
d e Sangue
História e cultura
japonesa
Teatro Nô.
Esta linha de procedimentos textuais que estabelece uma relação entre o textofonte e o texto-alvo, evidencia a inter-relação de diversos elementos que compõem a
produção fílmica final (T5). A partir desta reflexão, resta lembrar que como todo texto,
tal como percebemos pelo esquema acima, “é composto de escrituras múltiplas,
oriundas de várias culturas que entram em diálogo em paródia e em contestação umas
com as outras”, o leitor e/ou espectador é a entidade que irá ativar toda a duplicidade e
multiplicidade textual objetivando dar-lhes um significado. (MIRANDA: 2005, p. 147)
Como ocorre com todas as obras artísticas, diferentes espectadores terão percepções
diversas de Kumonosu-jô. Ao se tornar um ativador dos textos e intertextos, o leitor e/ou
15
espectador “situa o ‘locus’ do sentido textual dentro da história do próprio discurso”.
(HUTCHEON: 1991, p. 166)
Dentro desses pressupostos, Umberto Eco (ECO: 1994, p. 50-51) vale-se da
Filosofia da Composição de Edgar Allan Poe, para expor a tese de que há diferentes
níveis de leitura para o texto. Há o leitor-modelo um leitor ideal para o qual o texto é
pensado ao ser escrito. Entre os leitores empíricos, os leitores reais a se debruçar sobre o
texto, há um leitor de primeiro nível e um de segundo nível. O leitor de primeiro nível
ocupa-se exclusivamente da trama, da narrativa criada pelo texto. O leitor de segundo
nível esforça-se por desvendar os mecanismos de construção da narrativa, de quais
recursos estilísticos e formais o texto se utiliza para desenvolver sua trama.
Além da intenção do leitor, um conhecimento cultural prévio é indispensável ao
leitor de segundo nível. Em Trono manchado de sangue os aspectos ligados à história e
cultura japonesas são, neste caso, um tanto nebulosos para o espectador do Ocidente,
algumas vezes, mesmo em se tratando de críticos. Dois deles expuseram leituras
equivocadas sobre o assunto: Donald Richie compreendeu que o protagonista Washizu
“não é grandioso. Antes, ele é um possesso desde o início, é compulsivo, tão
profundamente medroso que mata para assegurar-se de não ser morto. É um
homenzinho desprovido de grandeza precisamente por não estar dividido entre duas
vontades”. (RICHIE: 1984, p. 118) Já para Silva Nobre, o senhor feudal do Castelo da
Teia de Aranha “vive numa época em que predomina a lei do mais forte, violenta, sem
escrúpulos, desprovida de proteção policial.” (NOBRE: 1964, p. 94)
Ambas as leituras acima não levam em conta os aspectos sutis que envolvem
uma tradução cultural tal qual é realilzada por Kurosawa, quando transporta o enredo
shakespeariano para a intrincada sociedade feudal japonesa, que retrata a casta guerreira,
em um delicado equilíbrio entre filosofia de vida e comportamento bélico. Tratam-se de
detalhes que, talvez, passem desapercebidos para um espectador ocidental e sem
conhecimentos mais aprofundados sobre a cultura e a filosofia japonesas. Todos estes
aspectos estarão sendo aprofundados ao longo desta pesquisa.
Na linha da tradução intermidial e cultural, o filme de Kurosawa revela-se como
obra de arte ao realizar uma apropriação bastante corajosa de uma obra escrita por um
autor canônico como William Shakespeare que é visto por certos críticos, produtores
e/ou diretores como intocável. Esta adaptação é realizada nos moldes da transescrita,
termo utilizado por Mário Jorge Torres, e que se refere àquela tradução que não é mera
“repetição de esgotados esquemas de transposição do literário, mas o que inova,
16
aceitando a contaminação de linguagens e praticando experiência de transescrita”.
(TORRES: 2000, p. 68) Este é o processo de tradução mais corrente na
contemporaneidade, que é capaz de gerar obras-primas em criatividade a partir de recriações.
O filme tipifica perfeitamente o conceito de relation transmédiale, uma forma
de transposição intersemiótica, termo cunhado por Leo H. Hoek, utilizado aqui em um
sentido mais amplo sugerido por Claus Clüver, que assim incluiria o cinema. O termo
designa uma “transposição de um texto em texto auto-suficiente num sistema sígnico
diferente” (CLÜVER: 1997, p. 44-45).
Como obra-prima que vai além da simples adaptação, o filme Trono manchado
de sangue de Kurosawa estaria, igualmente, em posição de equivalência com o Hamlet
de Grigori Kozintsev que muitos críticos afirmam ser, segundo Maurice Hindle
(HINDLE: 2007, p. 36), um triunfo de Shakespeare em película”. Hindle percebe a
singularidade do filme de Kurosawa entre as adaptações do texto de William
Shakespeare para o cinema, ao afirmar que Trono manchado de sangue se mantém
isolado como a única adaptação fílmica sonora de uma peça shakespeariana que não usa
os atores falando seu texto, ao invés disso contando quase exclusivamente com os
recursos cinemáticos para transmitir o drama. (IBIDEM, p. 37)
2.1 O CINEMA E KUROSAWA
Há algo que deve ser denominado beleza
cinematográfica. Ela só pode ser expressa em um filme,
e deve estar presente em um filme para que ele leve esse
nome. Quando essa beleza é muito bem expressa,
vivencia-se uma emoção particularmente forte enquanto
se assiste ao filme. Creio que essa é a qualidade que
motiva a ida das pessoas ao cinema, e que é a esperança
de obter esse resultado o que inspira o realizador a fazer
a obra, em primeiro lugar. Em outras palavras, creio que
a essência do cinema repousa nessa beleza
cinematográfica.
Akira Kurosawa
O diretor Akira Kurosawa faz algumas reflexões sobre as especificidades da arte
do cinema e também sobre a questão da relação do cinema com outras formas de arte
que são interessantes para introduzirem este capítulo da pesquisa:
17
O que é cinema? A resposta a esta questão não é simples. Há muitos anos, o romancista japonês
Naoya Shiga apresentou uma redação escrita por sua neta como um dos textos mais marcantes de
seu tempo. Ele o publicou numa revista literária. Era intitulado “Meu cachorro” e começava
assim: “Meu cachorro se parece com um urso; também lembra um texugo; também se parece
com uma raposa...” A composição seguia enumerando as características especiais do cão,
comparando cada uma delas com as de outos bichos e desenvolvendo uma lista completa do
reino animal. A redação, entretanto, terminava com um “mas, por ser um cachorro, ele mais se
parece com um cachorro.”
Lembro-me de ter caído na risada ao ler esse texto, mas ele toca num ponto sério. Cinema se
parece com tantas outras artes. Tem muitas características literárias, mas também conserva
especificidades teatrais, revela componentes filosóficos, traz itens de pintura e escultura e
elementos musicais. Ainda assim, cinema, em última análise, é cinema. (KUROSAWA: 1990, p.
274)
Este questionamento sobre as especificidades do cinema e as semelhanças deste
com outras formas de arte é um ponto crucial quando se discute a tradução
intersemiótica, o que é o cinema e como deve ser analisado. No que consiste a sua
linguagem e no que difere de outras formas de arte com a qual compartilha elementos.
Neste capítulo, iremos discorrer sobre o processo de realização fílmica, com o objetivo
de entender melhor estas questões. Qual a sua relação com a literatura, no caso
específico desta pesquisa? Para tentar entender melhor estas questões, faz-se necessário
conhecer o processo de realização fílmica.
Nesta etapa de planejamento do que viria a ser o seu filme (T1), o diretor
decidiu-se por transformar esta tradução intersemiótica e cultural em um exemplo do
gênero que se denomina jidaigeki17 no Japão, filme de época que equivale ao western
americano no apreço que os gêneros gozam com os respectivos públicos. Por ser um
gênero muito popular no Japão, existe uma profusão de títulos comerciais e, por este
mesmo motivo, eles são banalizados como forma narrativa. Kurosawa se ressentia da
utilização
deste
gênero
apenas
como
entretenimento
sem
qualidade
ou
comprometimento histórico e artístico. Segundo suas própria palavras: “Sempre achei
que o jidai japonês era historicamente desinformado. Além disso, esse gênero nunca usa
técnicas cinematográficas modernas. Em Os sete samurais tentamos fazer algo a esse
respeito, e Trono manchado de sangue seguiu a mesma linha.” (RICHIE: 1984, p. 116)
A etapa T1, que envolve a escolha e a formulação de um projeto cinematográfico,
pode partir tanto de uma idéia original do diretor e/ou roteirista ou de uma obra a ser
17
Jidaigeki é o termo que define os filmes de época japoneses, que se referem especificamente à Era
Medieval e se relacionam diretamente com a figura dos samurais (bushis). O sufixo –geki que indica
encenação; o termo define-se por seu prefixo jidai– que significa época.
18
adaptada, o texto-fonte T0. Sobre este assunto, novamente recorremos ao próprio diretor
para que relate a sua experiência:
Quando começo a considerar um projeto cinematográfico, sempre tenho em mente uma porção
de idéias sobre o que gostaria de filmar. De todas elas, há sempre uma que repentinamente
germina e começa a se expandir; essa será a idéia que irei agarrar e desenvolver. Nunca levei
adiante um projeto a mim oferecido por um produtor ou a uma companhia produtora. Meus
filmes emergem de meu próprio desejo de dizer algo em particular, numa época particular. A
raiz de qualquer projeto cinematográfico situa-se, para mim, no desejo interior de expressar algo.
O que nutre essa raiz e a faz prolongar-se em uma árvore é o roteiro. O que faz a árvore produzir
flores e frutos é a direção. (KUROSAWA: 1990, p. 275)
A elaboração do roteiro é um processo contínuo, que prevê a possibilidade de
alterações, principalmente durante o T2. Cada versão do roteiro é chamada de
‘tratamento’ e é numerada. A numeração dos tratamentos começa em 1 e segue até sua
versão final, que pode ser produzida a qualquer momento durante o processo de
filmagem, caso haja necessidade de alterações. Cada alteração no enredo, na ordem das
cenas ou por outro motivo qualquer, gera um novo tratamento. Algumas vezes, o roteiro
pode ser alterado em função da filmagem ou por outros problemas técnicos. Nestes
casos também, o número do tratamento é alterado. Dois trechos do diretor discorrem
sobre o roteiro, um o relaciona com a função da direção, outro com a literatura e com o
teatro:
Com um bom roteiro, um bom diretor pode produzir uma obra-prima; com o mesmo roteiro, um
diretor medíocre pode fazer um filme passável. Mas com um roteiro ruim, mesmo um bom
diretor não tem possibilidade de fazer um bom filme. Para obter a expressão cinematográfica
verdadeira, a câmera e o microfone devem ser capazes de atravessar água e fogo. Um filme
verdadeiro nasce assim. O roteiro deve ser algo com o poder de realizar isso. (IBIDEM, p. 276)
Para escrever roteiros, deve-se antes estudar os grandes romances e as grandes peças teatrais que
o mundo produziu. Deve-se procurar saber por que são grandes. De onde vem a emoção que se
sente ao ler? Que grau de paixão o autor teve de perseguir, que nível de meticulosidade teve de
impor para modelar os personagens e os fatos da maneira que fez? Deve-se ler inteiramente, a
ponto de se compreender todas estas coisas. Deve-se também assistir aos grandes filmes. Devese ler os grandes roteiros e estudar as teorias cinematográficas dos grandes diretores. Se seu
objetivo é tornar-se um diretor, você deve dominar a escrita dos filmes. (IBIDEM, p. 277)
Por esta última linha, depreende-se também que Kurosawa prescindia da figura
do roteirista, porque ele mesmo escrevia seus roteiros e os transformava a seguir em
storyboards de beleza e detalhamento singulares. E este foi o seu processo até 1940,
mas em outro comentário o diretor enfatiza a importância de trabalhar dom mais uma
pessoa na elaboração do roteiro para não cair em dois erros primordiais: a interpretação
19
unilateral de uma pessoa e, para um diretor, a condução do herói e do enredo por um
caminho que seja de maior facilidade de resolução para a direção.
Após a concretização do roteiro e também do storyboard, todas as equipes de
trabalho envolvidas desenvolvem seus trabalhos de acordo com esta abordagem. A
preparação feita em cada uma das áreas deve ser concluída antes da concretização do
texto no momento das filmagens (T3). São feitas reuniões periódicas entre todos os
diretores de cada área, juntamente com o diretor, para que o trabalho seja coeso e todos
estejam cientes do seu andamento. Cada uma das equipes deve se reportar Kurosawa,
pois ele é tido como um realizador que exige perfeição em todos os aspectos.
Antes das filmagens, na fase de pré-produção, o diretor e seus assistentes
também têm decisões a tomar. Eles elaboram o roteiro técnico, empreendendo uma
decupagem das cenas (detalhando os aspectos técnicos de cada uma), decidindo as
questões técnicas e estéticas de como fazer cada uma das cenas. A decisão de filmar
uma determinada cena usando um plano médio ou uma panorâmica, fazer um close ou
se valer de uma câmera subjetiva (vide glossário sobre termos de cinema em anexo),
todas estas decisões são tomadas pelo diretor e seus assistentes. Estabelecem também o
cronograma de filmagem, agrupando as cenas de acordo com os cenários ou locações
utilizados. Kurosawa, nesta fase, preocupa-se também com o som:
Desde o momento em que me tornei um diretor de cinema, penso não somente na música, mas
nos efeitos sonoros que colocarei nos filmes. Mesmo antes de a câmera rodar, juntamente a todos
os itens que considero, decido que tipo de som eu quero. Em alguns de meus filmes, como Os
sete samurais e Yojimbo, uso diferentes temas musicais para cada personagem principal, ou para
grupos diferentes de personagens. (IBIDEM, p. 281)
As decisões sobre a filmagem de cada cena devem ser repassadas para a equipe
de fotografia, para que ela tome as decisões técnicas sobre a filmagem. Um dos
membros desta equipe é o foquista, que é o responsável pelo foco da câmera. Outro
membro essencial é o maquinista, que se encarrega do maquinário necessário para a
gravação de uma determinada cena, como a grua ou o trilho (vide glossário sobre
termos de cinema em anexo). Esta equipe é responsável também pela luz necessária
para a gravação de cada cena. Algumas vezes, o diretor de fotografia pode discordar da
decisão do diretor sobre a forma de capturar uma cena. Esta discordância pode envolver
motivações estéticas ou financeiras, quando a decisão do diretor extrapola os custos de
filmagem.
20
A equipe de direção de arte, de posse do roteiro (T2), divide-se em grupos que
irão preparar, respectivamente, as locações e os cenários18 (Trono manchado de sangue,
segundo os relatos de Richie teve ambos), o figurino, a maquiagem e os objetos de cena.
Para isso, foi feita uma intensa pesquisa de época, segundo relatos do mesmo autor.
Depois que a direção de arte define as locações, por exemplo, a produção
empenha-se em conseguir autorizações de uso dos espaços escolhidos. No caso de
Trono manchado de sangue, uma das locações foi estabelecida no alto do Monte Fuji.
Quando há a necessidade de montar um ou mais cenários, a produção se encarrega
também disso. A verba para a produção de figurinos, compra de objetos de cena e
outros detalhes também é repassada à produção.
No set de filmagem (T3), todos os aspectos decididos na pré-produção devem
estar finalizados, para que a captura das imagens propriamente dita se faça. Os
imprevistos, entretanto, fazem parte do processo. Como Richie bem ilustra ao relatar o
motivo do atraso nas filmagens de Trono manchado de sangue: “Kurosawa se recusava
a usar um cenário já pronto porque tinha sido construído com pregos, e as lentes de foco
profundo que estava usando poderiam revelar as anacrônicas cabeças de prego.”
(RICHIE: 2000, p. 72) O diretor não poderia ceder neste ponto, porque uma de suas
preocupações se relacionava com a falta de veracidade histórica do gênero jidaigeki. E,
neste caso, os pregos indicariam uma falha nesta questão, porque a arquitetura da época
feudal previa apenas o uso de encaixes perfeitos entre as vigas.
Ilustração 4 – Kurosawa e equipe
no set de filmagem.
18
Locações se referem a lugares pré-existentes utilizados durante as filmagens, como um castelo.
Cenários caracterizam-se por se constituírem em estruturas construídas especialmente para o filme, como
a reprodução dos cômodos internos deste castelo recriadas com o intuito de facilitar as filmagens.
21
Durante as filmagens, Kurosawa captava as imagens com três câmeras. Esta
idéia surgiu durante o filme Os sete samurais, porque o posicionamento delas
possibilitaria captar uma gama maior de detalhes e ângulos nas imagens. O diretor
ressalta, todavia, que existem poucos diretores no Japão que se utilizam desta técnica
porque a decisão de como movimentá-las concomitantemente é complexo. Ele discorre
igualmente sobre a iluminação, que consiste em uma atividade em que a criatividade é
essencial, tornando-se imprescindível que o iluminador elabore um plano próprio, que
deverá ser discutido com o cameraman e com o diretor. (KUROSAWA: 1990, p. 280)
Há um outro tipo de imprevisto que deve ser previsto já na etapa de préprodução pelo diretor e seus assistentes. A chamada opção chuva, que consiste na
escolha de uma cena alternativa que pode ser filmada no lugar de outra ao ar livre, no
caso de chover exatamente nesse dia.
Durante as filmagens, um profissional é muito importante, o continuísta. Ele
“canta” para a câmera, ou seja, anuncia em voz alta qual é o número da cena e o número
da tomada desta cena. Depois de gravada cada versão, ele anota resumidamente se ela
foi bem sucedida ou não. No caso de haver algum problema, ele identifica o que
ocorreu: um ônibus entrou na frente da câmera, o foco estava ruim, a imagem ficou
tremida.
Neste estudo sobre o processo de realização fílmica, Akira Kurosawa, através de
seu Relato Autobiográfico, proporcionou um momento de aprendizado único. Além
disso, compreender com um detalhamento maior a sua postura como diretor e re-criador
tornou-se uma forma de nortear a análise sobre o processo de tradução intersemiótica e
cultural criada por ele no filme Trono manchado de sangue.
3 AS ADAPTAÇÕES SHAKESPEARIANAS DE KUROSAWA
Uma boa estrutura para um filme é aquela de uma
sinfonia, com seus três ou quatro movimentos e tempos
diferentes. Ou pode-se usar a estrutura do teatro Nô,
com suas três partes: Jô (introdução), Ha (destruição) e
Kyu (aceleração). Se você se dedica integralmetne ao
Nô, e obtém dele algo de bom, ele emergirá
naturalmente em seus filmes. O Nô é uma forma
verdadeiramente única de arte que não existe em
qualquer outra parte do mundo. Creio que o Kabuki, que
o imita, é uma flor estéril. Mas, em um filme, penso que
22
a estrutura sinfônica pode ser a mais acessível ao
entendimento das pessoas de hoje.
Akira Kurosawa
Trono manchado de sangue (Kumonosu-jô) e Ran são traduções culturais
ambientadas no universo do Japão feudal, o que restringe os enredos de ambas as peças
à disputa de um único feudo. Tem-se em ambos a figura do samurai como elemento
fundamental no processo de tradução cultural em ambas as adaptações. Ran guarda uma
relação de proximidade com Trono manchado de sangue não apenas por serem ambas
adaptações fílmicas shakespearianas, mas porque Ran possui diversos elementos
encontrados na adaptação de Macbeth e que são re-trabalhados de maneira diversa.
Além disso, ambos os filmes são exemplos do gênero jidaigeki, já citado anteriormente.
No Trono manchado de sangue, o conjunto de preceitos de conduta que
deveriam ser seguidos pelo samurai e que estão contidos no Caminho do Guerreiro
(Bushidô) é imprescindível para a compreensão do contexto cultural. No segundo filme,
a divisão do reino entre os filhos do protagonista torna-se o foco para o início da ação
trágica, uma vez que no contexto feudal seria impossível evitar os conflitos mesmo os
de parentesco.
O objeto de estudo desta pesquisa, o filme Trono manchado de sangue, trata-se
tanto de uma tradução intermidial quanto de uma tradução cultural partindo do textofonte, a tragédia shakespeariana Macbeth. Ele se constitui na primeira das adaptações
shakespearianas do diretor Kurosawa. A transposição do enredo shakespeariano para o
universo feudal se dá seguindo estas equivalências abaixo, que são resultados das
decisões relacionadas com a adequação ao contexto da cultura alvo:
Quadro de equivalências entre a tragédia Macbeth
e a adaptação Trono manchado de sangue
Macbeth
Trono manchado de sangue
Duncan, rei da Escócia
Malcolm
Lenox e MacDuff
Macbeth
Lady Macbeth
Banquo
Fleance
3 bruxas
Cawdor
Lord Kuniharu Tsuzuki
Kunimaru Tsuzuki
conselheiro Noriyasu Odagura
capitão Takedori Washizu
Lady Asaji Washizu
capitão Yoshiaki Miki
Yoshiteru Miki, um samurai adulto
1 bruxa
Fujimaki, traidor (personagem apenas
23
Noruega
citado)
Inui, senhor feudal vizinho (apenas
citado)
O conselheiro Noriyasu e o filho de Miki (correspondente a Banquo no filme) dividem o papel de
vingadores das mortes de Tsuzuki e Miki, juntamente com Kunimaru Tsuzuki, o legítimo herdeiro do
feudo.
O filme Trono manchado de sangue, objeto desta pesquisa, foi produzido em
película 35mm, em preto e branco (PB). Esta aparente limitação pictórica da mídia não
foi considerada por ele apenas como um componente técnico, mas primordialmente
como uma questão estética que intensifica o clima sombrio referente à peça. As
tonalidades de preto e acinzentadas permitem uma infinidade de matizes, à semelhança
da pintura a nanquim, que compõem a atmosfera sóbria na qual os personagens atuam.
Uma cena em que este aspecto pictórico do cenário é primordial acontece
quando da visita do senhor feudal Kuniharu Tsuzuki à Mansão do Norte. O quarto
principal é cedido para ele e os servos se dirigem para um outro cômodo da edificação
com a finalidade de arrumá-lo para os protagonistas. Este aposento é o quarto no qual o
antigo senhor a Mansão, o traidor Fujimaki, foi executado. Os servos vislumbram a de
sangue do traidor mancha impregnada na parede, que se assemelha a um quadro de arte
abstrata. Esta visão traz um caráter lúgubre não apenas para esta cena, mas para as
outras subseqüentes: estas cenas estão interligadas não mais unicamente à traição de
Fujimaki, mas se relacionam também à nova traição a ser perpetrada pelo protagonista
Takedori Washizu, sob a influência nefasta de sua esposa Asaji.
Ilustração 5 – A mancha deixada pelo sangue do traidor.
24
Trono manchado de sangue circunscreve o enredo de Macbeth ao espaço mais
restrito da disputa de um feudo, o feudo do Castelo da Teia de Aranha. O feudo do
Castelo da Teia de Aranha, dentro do qual o castelo homônimo se constitui na
construção principal em importância, é composto pelas seguintes edificações19: Forte
número V; Forte número IV; Forte número III; Forte número II, comandado pelo
capitão Yoshiaki Miki (Banquo); Forte número I, comandado pelo capitão Washizu
(Macbeth); Mansão do Norte, comandado pelo traidor Fujimaki; e Castelo da Teia de
Aranha, comandado pelo senhor feudal lord Tsuzuki. O senhor é muitas vezes
denominado apenas por tonosama20 ou simplesmente tono, e constitui-se no governante
de todo o feudo. Estas construções estão listadas em ordem crescente de poder
hierárquico.
V
3
IV
I
Castelo
Floresta
III
II
M
M = Mansão do Norte
Fortes = I, II, III, IV, V
De início, ocorre a traição de Fujimaki a lord Kuniharu Tsuzuki. Esta traição
gera uma revolta, que aparece em uma das cenas iniciais do filme. Esta traição e a
conseqüente revolta têm relação com as profecias feitas para o protagonista Washizu e
19
Os cargos referentes aos postos são Taishosama – posto dos comandantes dos fortes; Tonosama –
utilizado para designar o comandante da Mansão do Norte; Ojôshisama – tratamento formal e cargo
referentes ao senhor feudal. Além destas construções, havia ainda os Fortes III, IV, e V, mas que não
entram diretamente nas disputas hierárquicas de Washizu e Miki. O Forte III aparece apenas na disputa
final pela retomada do feudo, usurpado por Washizu.
20
Tonosama ou tono também pode ser utilizado para o senhor feudal, além de designar o senhor de uma
mansão ou castelo; pode ser traduzido como nobre dignatário. O senhor feudal tinha, por seu caráter
distintivo de importância, a denominação de ôdono, na qual o prefixo ô- significa grande e –dono é a
variação fonética requerida pelo termo tono em função da partícula ô-.
25
Miki pela bruxa. Washizu se tornaria, primeiramente, o senhor da Mansão do Norte e,
posteriormente, o senhor de todo o feudo do Castelo da Teia de Aranha. Miki seria
inicialmente promovido ao posto, atualmente ocupado por Washizu, de comandante do
Forte I e, posteriormente, sua linhagem herdaria o feudo.
A profecia relacionada com Washizu e a realização da primeira parte dela geram
a ambição desmedida de sua esposa, Asaji Washizu. Ela decide concretizar a segunda
parte da profecia não importando os meios de que tenha que se utilizar. Asaji o tenta
com a ambição, mas falha. Então, passa a mentir e a induzir o marido ao engano ao
supor que corre risco de ser traído e morto pelas costas pelo seu senhor. Após a
obtenção do feudo, ela dá o golpe final, relatando sua gravidez ao marido para que este
mate Miki e o filho, Yoshiteru Miki. O motivo destas mortes é que Washizu havia
prometido o feudo ao filho de Miki por não possuir herdeiros.
Trono manchado de sangue também mantém um vínculo estreito de
proximidade com uma outra adaptação shakespeariana feita por Kurosawa, Ran. O
primeiro filme possui toda uma gama de elementos culturais que irão ser retomados e
desenvolvidos pelo diretor com maior profundidade nesta obra posterior, com oito anos
de intervalo. Até mesmo a imagem da(s) flecha(s), tão marcante em Ran, é recorrente,
uma vez que aparece em dois momentos do filme Trono manchado de sangue. O
primeiro momento ocorre logo no começo do filme, quando Washizu considera que foi
profundamente ofendido e ameaçado pela revelação da bruxa e, novamente, na cena
final, em que o protagonista é morto a flechadas. O interessante nesta cena é que ele é
morto por seus subordinados, tendo ao fundo a parede externa do Castelo da Teia de
Aranha.
Ilustração 6 – Imagem da flecha em Ran.
A cor viva e marcante de Ran, que se assemelha a uma sucessão de pinturas em
movimento na tela tem também caráter narrativo. A cor é um ponto de diferenciação em
26
relação ao Trono manchado de sangue. Este filme é considerado solar pelos críticos, por
conter elementos como a imensidão do céu incrivelmente azul, pintado com nuvens
brancas, e o colorido tanto da natureza quanto do figurino, representado pelos tecidos
dos kimonos dos atores.
No filme Ran, enfatizam-se as guerras entre feudos vizinhos e a anexação de
terras pelo vencedor, o protagonista Hidetora. O sacrifício do senhor feudal vencido e
de sua família é efetuada, e uma única mulher de cada um dos dois clãs inimigos ao de
Hidetora (uma das filhas de cada senhor feudal) é poupada para que a paz seja instituída
através do casamento de cada uma delas com os dois primeiros filhos do senhor feudal.
Gera-se com isto a segunda grande vilã de Akira Kurosawa, Kaede. Sedenta de
vingança, ela tem muito da ação trágica do filme em suas mãos.
Esta vilã posterior à Asaji do Trono manchado de sangue, tem para com ela uma
relação de retomada, pois ambas são as únicas grandes vilãs deste diretor, caracterizadas
em ambos os casos ligadas aos três elementos constituintes da tradução cultural ao
Japão Medieval: o feudalismo, o mundo samurai e seu código e o teatro Nô.
Visualmente, Kaede se assemelha muito a Asaji, como se a vilã criada no primeiro filme
fosse transposta para o segundo, realizado com um intervalo de quase três décadas. Em
ambos os casos, há uma ampliação do caráter malévolo destes personagens, que se
tornam vilãs de peso. Ao mesmo tempo, elas se revelam duas exceções no que tange à
representação das mulheres na obra fílmica de Kurosawa, que tende a retratá-las como
personagens melhores do que os homens.
Kaede se torna a articuladora da ação trágica no filme, intensificando as
discórdias dos dois filhos mais velhos com o pai, Hidetora e também destes entre si. As
mortes se sucedem por seu intermédio e uma disputa interna se instaura dentro do feudo.
Apenas o filho mais novo se acha imune aos encantos desta mulher que não mostra
limites no que se refere ao seu objetivo de aniquilar Hidetora e seu feudo.
O filme O homem mau dorme bem completa o conjunto de adaptações fílmicas
shakespearianas de Kurosawa. De acordo com o meu ponto-de-vista, o filme O homem
mau dorme bem poderia ser chamado de adaptação-problema, se tomarmos por
empréstimo a nomenclatura de peça-problema que é utilizada por alguns estudiosos de
Shakespeare para definir algumas peças que não se encaixam bem na classificação
utilizada para separá-las em tragédias, comédias e peças históricas. Por esta obra manter
muitos traços de semelhança com a tragédia Hamlet, seria inapropriado afirmar que se
trata de meras coincidências, apesar de ambas as obras diferirem em muitos aspectos.
27
A abordagem realizada pelo diretor neste terceiro filme é bastante diversa. Ele
ambienta esta trama nos anos 40 do século XX no mundo empresarial japonês com a
intenção clara de revelar a corrupção no mundo dos negócios. Kurosawa retrata de
maneira ácida a corrupção entre as empresas privadas e as estatais do governo japonês.
Neste filme o processo de recriação e apropriação envolve um maior
distanciamento com o texto-fonte e aproximações de caráter mais livre. As relações de
parentesco entre os personagens estão deslocadas: o personagem correspondente a
Claudius (vice-presidente Iwabuchi), além de não ser mais o tio de Hamlet (Koichi
Nishi), é pai dos personagens correspondentes a Ofélia (Yoshiko Iwabuchi) e a Laertes
(Tatsuo Iwabuchi). A ligação de Iwabuchi com o pai do protagonista (chefe-assistente
Furuya) estabeleceu-se no mundo dos negócios e a sua morte, ocorrida cinco anos antes,
foi atribuída a um suicídio. Sua ligação com Nishi não é conhecida por ninguém no
começo do filme. O protagonista torna-se secretário pessoal de Iwabuchi e o filme
inicia-se com o casamento dele com Yoshiko. Este casamento representa o mesmo
envolvimento de Hamlet com a Ofélia na peça shakespeariana, pois Yoshiko torna-se
um joguete de ambos os oponentes, Iwabuchi e Nishi e, ao final, enlouquece.
Outros dois pontos em que a re-criação se intensifica em relação ao texto-fonte
são a figura do fantasma e a peça-dentro-da-peça. O fantasma que aparece no filme é
falso; trata-se de um dos subordinados de Iwabuchi, o chefe-assistente Wada, salvo por
Nishi de se suicidar. Na realidade, o fantasma é um estratagema que se destina a
assustar o superior hierárquico do próprio fantasma, o chefe de departamento Shirai. O
segundo ponto de diferenciação é a peça-dentro-da-peça que se acha substituída por um
dos bolos de casamento, que se apresenta no formato do prédio em que o cadáver do pai
de Nishi foi encontrado e cuja finalidade permanece sendo a de desmascarar e perturbar
os antagonistas, dentre os quais está o diretor administrativo Moriyama.
Pode-se perceber a distância deste filme com o texto-fonte até mesmo pelo fato
de que Kurosawa nunca o relacionou diretamente com a peça shakespeariana. Muito
deste receio mostrado pelo diretor em relacionar seu filme a um cânone vem do fato de
que a noção de re-criação é muito recente e este conceito ainda não havia sido
assimilado, tanto pela maioria dos críticos quanto pelo público, até o início da década de
sessenta. Kurosawa apenas estabeleceu que o filme tratava-se de uma tragédia de
vingança.
Este conjunto de adaptações shakespearianas realizadas por Akira Kurosawa
possui uma riqueza de elementos composicionais complexa demais para ser esgotada
28
em apenas uma pesquisa. Desta forma, os outros dois filmes serão estudados por esta
pesquisadora no futuro próximo, e as duas maiores vilãs da obra fílmica deste diretor
serão analisadas comparativamente durante o mestrado.
4 A TRADUÇÃO CULTURAL EM TRONO MANCHADO DE SANGUE
Like any cultural artifact removed either temporally or
spatially from an originating context, the work of art
becomes […] open to new interpretations as it moves
through time and through different cultural surroundings.
These interpretations infrequently become associated
with the work, affecting subsequent interpretations,
perhaps as much as the work itself.
Marvin Carlson
A elaboração de uma tradução cultural trata-se de um processo cuja
complexidade ultrapassa uma mera transposição de um enredo de uma cultura para
outra. Dentro dos pressupostos já apresentados anteriormente, o texto traduzido
intersemiótica e culturalmente conterá elementos pertencentes tanto à cultura fonte
quanto à cultura alvo. A tradução cultural abrange um contexto mais amplo do que lidar
com diferentes textos ou artes (com seus signos e linguagens distintos), mas também ao
intrincado conjunto de características relacionadas à transposição tanto do texto-fonte
quanto do universo cultural em que ele está inserido para uma língua mais do que tudo
uma cultura totalmente divergente, referente ao texto-alvo.
Nesta primeira adaptação shakespeariana de Kurosawa, Trono manchado de
sangue, ocorre uma transposição da tragédia Macbeth para um contexto que abarca
valores totalmente diversos do ocidental. O texto-alvo guarda aspectos de ambos os
textos, os fatos essenciais aproximam-s intimamente daqueles encontrados no textofonte, Macbeth, enquanto que a caracterização e as motivações dos personagens se
enquadram dentro do universo cultural ligado ao contexto do texto-alvo, ou seja, a Era
Medieval Japonesa. Esse processo de tradução cultural baseia-se em três aspectos
composicionais essenciais: no feudalismo, de caráter histórico; no samurai e seu código
de conduta (bushidô21), de caráter ético e no teatro tradicional japonês Nô, de caráter
estético. Cada um destes elementos composicionais será aprofundado nesta presente
pesquisa.
21
O Caminho do Guerreiro ou Bushidô era o código de conduta dos samurais. Seus valores primordiais
eram: a justiça, a bravura, a benevolência, a cortesia, a veracidade, a honra, a lealdade. Maiores
esclarecimentos no site: http://www.bushido-online.com.br/
29
4.1 O FEUDALISMO JAPONÊS
...a nearly 7000-year period in which the emperor, the
court, and the traditional central government were left
intact, but were largely relegated to ceremonial
functions. Civil, military, and judicial matters were
controlled by the bushi class, the most powerful of
whom was the de facto national ruler.
Ronald E. Dolan and Robert L. Worden (ed.)
Para que seja compreensível a transposição da tragédia shakespeariana Macbeth para o
universo feudal japonês (incorporada à adaptação fílmica a partir de T2), é necessário
um aprofundamento da complexidade política deste país ao longo das eras. O Japão foi
um país governado, a princípio por um império, que consistiu primeiramente em um
matriarcado22 na Era Arcaica23 e depois se consolidou como um império de governantes
varões. Entretanto, a força política da família imperial foi decaindo ao longo dos séculos
até se tornar apenas simbólica durante a Era Medieval. No feudalismo, o arquipélago
era uma profusão de concessões de territórios, cada qual formado por um feudo
governado por um senhor feudal que tinha o título de daimyo, cuja tradução é grande
nome. Os feudos eram independentes entre si e, muitos deles eram também inimigos.
Os senhores feudais (primeiramente constituídos por integrantes de famílias
tradicionais ligadas à nobreza rural e depois substituídos pelos senhores feudais da
classe samurai) possuíam autonomia total sobre seus domínios, o que ocasionava
problemas em regiões de fronteiras, porque as leis de um lado da fronteira não se
aplicavam ao feudo vizinho. Havia, por exemplo, feudos que proibiam a entrada de
‘estranhos’ em suas terras. Estes, caso fossem descobertos, eram punidos com a morte.
As diferenças em relação às moedas eram freqüentes e dificultavam o comércio e a
circulação de mercadorias. Progressivamente, a fragmentação do país possibilitou o
desenvolvimento de diferenças lingüísticas cada vez maiores, que chegaram a originar
alguns dialetos incompreensíveis entre si, em algumas regiões.
O Período Medieval durou aproximadamente setecentos anos e é subdividido em
períodos, cada qual identificado pelo nome de seu governante. Estes governantes foram
22
Há um registro em um livro que trata especificamente dos japoneses da época de Wei (220-265). Nele,
conta-se o relato de dois chineses que viajaram ao Japão no século III e lá encontraram um país chamado
Yamatai ou Yamato governado por um rainha chamada Himiko.
23
A história japonesa divide-se em cinco épocas culturais distintas (eras ou épocas): Era Arcaica, Era
Histórica Primitiva, Era Medieval (também chamada Feudal), Era Pré-moderna e Era Moderna. O objeto
de estudo desta pesquisa abarca a Era Medieval, dividida em Períodos nomeados por seus governantes
(inicialmente constituídos pelos imperadores e, a partir do período Kamakura, constituídos de
governantes da classe samurai denominados bakufu).
30
grandes senhores feudais que conseguiram, com certo grau de sucesso, estabelecer a
centralização do país. Os períodos foram muito diversos entre si em termos políticos e
culturais. A ascensão da classe dos samurais iniciou-se no período Kamakura (1192 –
1333). Kamakura constituiu-se no primeiro governante efetivo da classe samurai do
Japão. Este governante, oficialmente subordinado ao Imperador, recebeu o título de
bakufu. Ele iniciou o feudalismo através da divisão do território japonês para os seus
aliados políticos. O sistema feudal foi se fortalecendo gradativamente até que cada
senhor feudal tivesse independência sobre seus domínios. O feudalismo prosseguiu
durante o período Muromachi (1338 – 1573) e também durante a época de Nobunaga
Oda e de Hideyoshi Toyotomi 1573 – 1600). Este poder dos senhores feudais teve um
enfraquecimento a partir da época do período Tokugawa (1603 - 1868).
A ascensão de Kamakura, um antigo senhor feudal da classe samurai, à posição
de governante (bakufu) instigou os senhores feudais mais poderosos a desejarem
conquistar a mesma posição, tomando-lhe o poder e, deste modo, sucedendo-o no
governo. Muromachi, o governante seguinte, foi bem sucedido nesta empreitada.
Entretanto, tanto Kamakura quanto Muromachi não se constituíram em governantes de
fato. Desde a divisão do território japonês em feudos, o poder se encontrava diluído
entre os inúmeros senhores feudais. O desejo de grandes senhores feudais como
Nobunaga Oda24, Hideyoshi Toyotomi e Ieyasu Tokugawa era não apenas conquistar o
título de bakufu, mas governar o país de fato através de uma nova centralização do
poder na figura do governante. A pretensão destes grandes samurais não era promover a
extinção do sistema feudal, mas apenas o seu enfraquecimento. Tokugawa obteve
sucesso na diluição do poder dos senhores feudais onerando-os através de taxas e de
obrigações financeiras e sociais freqüentes. A sucessão do poder civil após Muromachi
se deu nesta ordem e de maneira bastante significativa para se entender a política da
época.
Oda obtivera um grande poder como senhor feudal através das inúmeras guerras
entre feudos. Por este motivo, ele estava viajando rumo à capital, para receber do
Imperador o título de bakufu e se tornar o sucessor de Muromachi. Durante a viagem,
ele foi emboscado por tropas inimigas e acabou assassinado. Após a morte de Oda, os
demais senhores feudais supostamente seus aliados correram para prestar homenagem
24
Este personagem histórico e seus aliados foram retratados por Akira Kurosawa no filme Kagemusha - a
sombra do guerreiro, já citado anteriormente.
31
ao morto e, assim, sucedê-lo, tomando-lhe o feudo e incorporando suas tropas e seu
poder. Toyotomi e Tokugawa estavam entre eles.
Entre todos eles, Toyotomi foi o primeiro a se manifestar. Inicialmente, ele tomou sob
sua proteção o neto de Oda, herdeiro legítimo do feudo, mas que nunca chegaria a
governá-lo. Outorgou a si mesmo a função de regente até que ele atingisse a maioridade.
Este era apenas o seu discurso, mas a sua pretensão era outra, ou seja, a de usurpar o
poder devido ao herdeiro. Mesmo estando cientes desse fato, os samurais leais a Oda
ficaram, a princípio, hesitantes entre agir ou se omitir, pois não havia provas e quem se
opusesse a Toyotomi macularia automaticamente a memória do antigo senhor, a quem
ele agora representava. Além disso, alguns senhores feudais como Tokugawa tiveram a
mesma intenção, apenas não o fizeram a tempo.
Toyotomi, entretanto, precisava evitar opositores, porque ele não provinha de
uma linhagem de samurais. Sua ascensão foi empreendida por meio do esforço pessoal e
através do apoio de Oda, que como senhor feudal alçou-o à condição de bushi. Com o
intuito de promover alianças, marcou uma reunião secreta com Tokugawa, um senhor
feudal de força militar e raciocínio equivalentes aos de Oda, e de linhagem reconhecida.
Solicitou que ele o apoiasse, através de promessas de favorecimento e de uma postura
servil. Conseguiu a concordância de Tokugawa para que ele efetuasse um ritual de
reverência pública diante de Toyotomi, em sinal de aceitação e lealdade. Tokugawa foi
impelido a esta atitude devido às circunstâncias.
Em retrospectiva, a ascensão destes líderes rumo à centralização do poder se deu
de forma gradativa. Oda estava muito próximo de obter o tenka quando foi eliminado.
Toyotomi instituiu um governo central incontestável pelo período de uma geração. Sua
intenção de estender a sua linhagem de governo foi malograda pelo fato de que seu
único filho era muito novo, quando morreu. Seu sucessor, Tokugawa, procedeu do
mesmo modo que ele no passado, tomando sob suas vistas o filho do seu antecessor e se
auto-nomeando seu tutor. Tokugawa governou plenamente, e seus sucessores somaram
cinco gerações dentro da mesma linhagem, totalizando aproximadamente cem anos,
durante os quais os demais senhores feudais tiveram que se adaptar a uma nova
realidade política.
32
Ilustração 7 – Ieyasu Tokugawa
As personalidades de cada um destes três líderes políticos eram bastante diversas
entre si. Existe uma fábula que relaciona todos eles a um cuco, cujo canto raramente era
ouvido. Os três senhores feudais, devido ao temperamento de cada um, usaram de
métodos diferentes para obter este canto do pássaro: Oda fez com que ele cantasse pela
força; Toyotomi bajulou-o até que cantasse; Tokugawa esperou pacientemente até que o
pássaro cantasse. Da mesma forma que na fábula, Tokugawa recuou um passo e
permitiu que Toyotomi governasse, fortalecendo-se para quando uma chance de tomar o
tenka surgisse novamente. Os japoneses costumam acreditar que as diferenças de
personalidade entre estes líderes influíram no grau de sucesso de cada um deles.
Quanto ao aspecto histórico, o filme Trono manchado de sangue não comporta
identificações precisas nos diálogos que indiquem em qual dos períodos da longa Era
Medieval teria ocorrido a tragédia. A referência visual, embora muito bem caracterizada
historicamente tanto no que se refere às locações e aos cenários quanto no que tange ao
figurino e à maquiagem, não esclarece totalmente o assunto. A inserção do enredo neste
período é um indício que ele se passa após o ano 1192, quando se inaugura a Era
Kamakura. Foi a partir deste ano que o poder dos guerreiros samurais principia a sua
escalada com a ascensão dos mais influentes dentre eles. Neste período, também, o
bushidô ou o caminho do guerreiro fixa-se como forma de conduta.
A Época Medieval e Feudal japonesa finda com o término da Era Tokugawa, em
1868. O enredo do Trono manchado de sangue, todavia, deve ter se passado muito antes
deste período. Isto porque Asaji, esposa de Washizu, faz menção à conquista do reino,
ou tenka, como uma das tentativas de induzir seu marido à ação. Este indício serve
como estreitamento do espaço de tempo que fica diminuído de aproximadamente
33
trezentos anos. A idéia de centralizar o poder do país inscreve a tragédia em algum
ponto anterior a 1568, ano em que Oda inicia o processo de unificação.
Neste momento histórico, um aspecto bastante relevante diz respeito à
distribuição geográfica dos feudos. A delimitação dos feudos seguia um padrão flexível,
visto que os castelos e as terras dos feudos eram anexados ou perdidos por meio de
freqüentes guerras com os feudos vizinhos. A paz era um bem provisório e também era
instituída através de uma imposição feita pelo vencedor, fato que está bem retratado em
Ran, no qual a mobilidade tanto física quanto geográfica entre os feudos é abordada
tanto nos diálogos quanto no aspecto visual (escritos no roteiro T2 e registrados em
película na etapa T3). Este filme e Trono manchado de sangue encontram-se
impregnados deste conteúdo político, devido ao período para o qual as tramas foram
transpostas.
Os casamentos eram regulados pelas questões políticas 25 , como foi visto
anteriormente na abordagem do enredo do filme Ran. Após uma disputa entre feudos
rivais, o vencedor subjugava e por vezes matava o senhor feudal e seus guerreiros. A
filha mais velha do clã derrotado era tomada como esposa de um dos filhos do senhor
feudal do clã vencedor, selando uma paz compulsória. O casamento imposto era uma
prática corriqueira mesmo quando o derrotado era poupado. Selava-se, assim, uma paz
aparente, repleta de intrigas e desconfianças de ambas as partes. Do lado derrotado, a
ordem do clã para esta filha, era para que matasse o seu marido na primeira
oportunidade. Deste modo, um samurai não poderia confiar inteiramente na esposa.
Além de falta de discernimento, Washizu não levou em conta esta característica das
uniões matrimoniais desta sociedade. Foi, assim, duplamente ingênuo e isto gerou a sua
queda trágica.
Já foi mencionado anteriormente que no Trono manchado de sangue, o enredo
original da tragédia fica circunscrita ao domínio político de um feudo, ao invés da
disputa pela coroa da Escócia, na tragédia Macbeth (T0). Este fato remete à questão da
mobilidade geográfica dos feudos nesta obra. Esta questão é representada, no Trono
manchado de sangue, pela pressão política exercida pelo feudo vizinho, governado pelo
senhor feudal Inui. Já nas primeiras cenas do filme esta presença se faz sentir através da
traição de Fujimaki (senhor da Mansão do Norte), que foi acarretada pela interferência
25
Este aspecto não exclui completamente a possibilidade do amor, mas este era um sentimento de caráter
ilícito, houve fugas notórias de casais apaixonados e que muitas vezes cometiam o suicídio jogando-se na
boca de vulcões. Mesmo quando o amor ocorria dentro do casamento, era proibitivo, pois o cônjuge era
antes de tudo um inimigo de seu clã de nascimento.
34
externa desempenhada por Inui. Este outro senhor feudal comete um ato deplorável
quando ocasiona a traição por parte de um dos homens de confiança de Tsuzuki, senhor
do feudo do Castelo da Teia de Aranha. Seu ato mereceria uma represália, que acaba
não se concretizando, devido aos conflitos internos do feudo, inicialmente governado
por Tsuzuki. Estes enfrentamentos se sobrepõem às disputas exteriores entre os dois
feudos.
Devido às indicações do roteiro (T2) espaço em que se dá a tragédia se restringe
a um menor número de locações (escolhidas, como foi exposto anteriormente, pela
direção de arte) do que outras adaptações fílmicas. A mudança mais relevante é a do
encontro do protagonista com a bruxa que não se dá na charneca como na peça
shakespeariana, mas acontece dentro da mesma floresta próxima ao castelo, que figurará
na segunda profecia que ela fará. A ela também se dirige Washizu quando necessita de
uma segunda profecia que o mantenha no poder.
Ilustração 8 - O senhor feudal Tsuzuki ouve os relatos da revolta inicial.
Esta restrição espacial e de poder político, no filme de Kurosawa, faz com que
seja possível que a restauração do equilíbrio se dê por outros meios, ou seja, pela
destruição do castelo em si. Retomemos a cena inicial, em que o coro (em off)26 faz
referência à desgraça que se abateu sobre o castelo que existia no local, desgraça esta
que está intimamente ligada à queda trágica do herói Washizu. Concomitantemente com
ao canto, surge a imagem de um terreno descampado e parcialmente encoberto pela
névoa.
Bem no centro deste espaço de terra devastado encontra-se o único resquício do
castelo que antes havia ali, uma pilastra de madeira feita a partir de um tronco maciço e
26
A fala em off se verifica quando apenas a voz de um personagem e/ou narrador se faz ouvir, sem que a
imagem deste também esteja presente. Outras imagens são mostradas simultaneamente a esta fala.
35
rodeada por uma cerca quadrada de pequeno porte. Ao longo desta pilastra resta uma
inscrição na vertical escrita com ideogramas e que nomeia a construção que inexiste:
Kumonosu-jô (o Castelo da Teia de Aranha), nome do feudo em que acontece a tragédia,
e igualmente o título do filme de Akira Kurosawa no original. A neblina que cobre
subitamente a planície vazia é um recurso visual que indica o retrocesso do tempo. No
momento em que ela se dissipa nesta atmosfera, o Castelo surge e o filme propriamente
dito entra em ação.
Ilustração 9 – Imagem inicial a pilastra.
Após a tragédia estar concluída, esta imagem de desolação completa é retomada
no final do filme. A estrutura do filme ganha, assim, um caráter circular, pois começa e
termina de forma análoga, em que visualmente se remete à destruição do Castelo da
Teia de Aranha e, auditivamente, volta-se a ouvir os motivos que levaram a esta
situação. A falha trágica de Washizu é retomada, através do mesmo canto monocórdio
que se repete, alertando sobre os perigos de se cair “na rede da luxúria do poder.”
A violência encontrada no filme era de fato uma presença constante durante o
período feudal. Stephen Turnbull refere-se a uma espécie de “violência controlada”
praticada pelos samurais, isto porque havia regras para a sua manifestação, tanto em
tempo de guerra quanto em tempo de paz. Um equilíbrio entre a obediência aos
princípios e a sua transgressão em proveito próprio regia no uso da brutalidade,
principalmente em momentos de paz. (TURNBULL: 2006, p. 9)
Um exemplo desta “violência controlada” (que atinge a crueldade em diversos
momentos) pode ser comprovado por um fato histórico que nos remete novamente a
Oda. Ele ordenou a execução do seu primogênito, porque ele se tornou uma ameaça à
continuidade do seu governo. Oda foi o responsável igualmente pelas mortes do
primeiro filho e também da esposa de Tokugawa, devido a uma conspiração insuflada
36
por ela contra ele. Ela foi movida pela vingança, por ser oriunda de um clã inimigo
daquele no qual Oda era o patriarca.
Outra situação ilustrativa quanto à época feudal foi vivenciada por Tokugawa
em sua infância. Ele foi enviado ao clã da esposa para ser criado por eles (yôshi). Ele
não foi adotado por outro feudo, mas incorporado como uma espécie de agregado
oriundo de outro feudo. Na realidade, esta condição significava que a criança se
transformava em uma espécie de refém, hitojichi, dentro de um feudo inimigo. Esta era
uma das maneiras de obrigar o clã perdedor a aceitar a paz, ou impor uma aliança com
algum clã. O casamento de Tokugawa com uma das filhas do patriarca foi ordenado
pelo feudo no qual ele era refém, como uma forma de estreitar a ligação entre as duas
linhagens através dos laços de sangue.
Na realidade, o que sucedeu ao neto de Oda foi semelhante com este fato
ocorrido durante a infância de Tokugawa. Toyotomi criou o menino luxuosamente, mas
isento de qualquer poder político, de maneira a mantê-lo sob controle e impossibilitado
de ameaçar o governo vigente. Toyotomi também impôs que Tokugawa lhe entregasse
seu segundo filho, Hidetada. Até o nome deste filho foi atribuído ao menino pelo
próprio Toyotomi, como uma maneira de reforçar a lealdade e a deferência pública de
Tokugawa, já que o primeiro ideograma de Hidetada é o mesmo do prenome Hideyoshi
Toyotomi.
Devido ao ambiente de hostilidade que reinava entre os feudos, havia uma
inimizade implícita nas uniões matrimoniais como um dado freqüente na sociedade
feudal. Mesmo quando não se tratava de uma distância tão marcada quanto a que foi
retratada no filme Trono manchado de sangue os casamentos eram arranjados segundo
os interesses dos clãs, ou por imposição de algum senhor feudal. Este ponto deve ser
lembrado ao se considerar a maneira como Asaji manipula seu marido, o crédulo
Washizu, tendo em vista apenas a sua ambição desmedida.
37
Ilustração 10 - Washizu e Asaji durante a conversação.
O mundo em que acontece a tragédia japonesa é singular, valores de conduta elevados
conviviam com atos indignos como as traições e os assassinatos. Gerava-se com isto
uma desconfiança generalizada inclusive entre indivíduos com laços consangüíneos,
como indica esta fala de Asaji, que não dista da realidade da época: “Este é um mundo
em que, para benefício próprio, um pai mata um filho e um filho mata um pai”. Esta
declaração é utilizada por ela para distorcer a verdade e tecer uma rede de intrigas que
faz com que Washizu traia os seus princípios. Para ele, fica quase impossível contestar,
porque ela não mente neste ponto de sua argumentação.
A questão da brutalidade como fato usual nesta sociedade é um ponto
fundamental para se entender o universo para o qual a tragédia shakespeariana é
transposta. Asaji afirma, em outro momento, que o senhor feudal atual (Tsuzuki) matou
seu predecessor, o que é um fato incontestável. Washizu argumenta, em contrapartida,
que a motivação de Tsuzuki foi justa, pois sua vida se encontrava ameaçada. Esta
justificativa legitima esta morte segundo o pensamento vigente na sociedade bushi,
assim como acontece com as mortes históricas citadas acima. Asaji irá se utilizar desta
brecha nos princípios de conduta samurai para que seus intentos de conquista sejam
bem sucedidos e a sua ambição se torne real. Fará com que o marido acredite que é alvo
de uma conspiração, e que ele corre um risco mortal.
Em um mundo constantemente embrutecido em que todos almejam o poder,
ninguém é totalmente leal ou confiável em última instância. Mesmo Miki, o amigo de
infância e companheiro de Washizu em batalhas sem conta, pode conspirar contra ele. E,
se não o faz, não é apenas por lealdade, mas porque acredita que irá galgar postos
elevados no encalço dele, como ocorreu logo no início do filme, quando Washizu se
tornou senhor da Mansão do Norte, e Miki o comandante do Forte I. Ele é quem afirma
38
ao relembrar a profecia em conversa informal com o protagonista, seu amigo:
“Qualquer bushi gostaria de ser um senhor feudal”. Frase praticamente igual à proferida
por Asaji durante sua conversação formal com Washizu na sala de conferências, depois
de saber sobre o teor profético grandioso contido nas palavras da bruxa. Miki, ao confiar
nele e apoiá-lo, toma um posicionamento em parte porque tenciona ascender na
hierarquia do feudo no encalço de Washizu.
Além disso, ele acredita no que a bruxa lhe prognosticou, que sua linhagem
herdará o feudo do Castelo da Teia de Aranha no futuro. Ele, como Tokugawa, espera
pacientemente por este momento. O estratagema de seguir Washizu fielmente dá
resultado em um primeiro momento, mas em seguida interferência de Asaji põe tudo a
perder para este personagem entre ingênuo e matreiro. Seu filho Yoshiteru tenta alertálo sobre a temeridade de basear seus atos na profecia de um ser sobrenatural, cuja
natureza e cujas intenções são insondáveis, mas o personagem não o ouve. Devido a
esta credulidade, ele acaba sendo assassinado horas depois deste diálogo.
Apesar da presença constante da violência, o período feudal, que teve a duração
de aproximadamente sete séculos, não era desprovido de valores morais e regras de
conduta. Não se tratava simplesmente de um mundo agressivo e sem escrúpulos em que
prevalece a lei do mais forte, como afirmou Silva Nobre, ao analisar o momento
histórico em que Trono manchado de sangue foi ambientado. O que existia era uma
intrincada organização política e social. Dentro dela, havia um equilíbrio complexo e
frágil entre um rígido código de valores (bushidô) que deveria ser obedecido pelos
samurais e uma disposição bélica advinda da condição guerreira desta classe, em que
valores como retribuição e dívida moral coexistiam com guerras e lutas pelo poder.
Turnbull expressa muito bem esta complexidade ao afirmar que “os samurais
eram lendários guerreiros que no antigo Japão levavam vidas nobres e violentas regidas
pelos ditames da honra, da integridade pessoal e da lealdade.” (TURNBULL: 2006, p.
7) O código de valores de conduta era uma parte do mesmo modo de vida que admitia
as guerras e as disputas pelo poder. Ele nos lembra igualmente que “por trás desses
princípios encontra-se um desejo que sobressai aos ditames impostos pelo serviço a
outrem. Trata-se da necessidade de ser reconhecido”. (IDEM) Este é o ponto
fundamental, determinar os limites entre os deveres para com o senhor e os interesses
pessoais de poder.
39
4.2 BUSHIDÔ, O CÓDIGO DE CONDUTA SAMURAI.
...qualquer que seja o aspecto que examinemos desse
universo, descobriremos um reino multidimensional sob
a constante pressão das demandas conflitantes da
lealdade e da auto-espressão. Em qualquer momento da
história, sempre urgiu buscar uma conciliação entre as
forças da mudança e as da estabilidade. Juntas, elas
moldaram o mundo dos samurais.
Stephen Turnbull
Um aspecto fundamental decorrente deste processo de tradução cultural é a
transformação do protagonista capitão Washizu em um perfeito samurai, desde a
primeira cena do filme. Esta escolha, feita durante o T2, pôde ser escrita já tendo em
mente o ator principal, no caso de Kurosawa, visto que existia uma forte parceria entre
ele e Toshiro Mifune, que já havia interpretado papéis tanto de época quanto
relacionados à atualidade em filmes anteriores do diretor. Esta ligação já vinha de outros
filmes e durou até O barba ruiva (1965). Isto o aproxima novamente de Shakespeare,
desta vez no que diz respeito ao processo de escritura, pois o dramaturgo inglês
elaborava seus textos baseado nos atores de que dispunha em sua companhia.
A parceria entre Kurosawa e Mifune se desfez após uma discussão entre eles,
durante este último filme, porque as filmagens estavam atrasadas e o ator estava com
uma barba ruiva verdadeira e, por isso mesmo, impossibilitado de atuar em outros
filmes nos intervalos. Durante a preparação para as filmagens de Ran, quase vinte anos
depois do rompimento, Richie perguntou a Kurosawa sobre a possibilidade de utilizar
Mifune para o papel principal, ao que o diretor respondeu “bruscamente que não queria
nada com atores que apareciam em filmes como Shogun27.” (RICHIE: 2000, p. 78)
“Um samurai deve antes de tudo ter sempre em mente, dia e noite,
desde a manhã de ano novo, quando pega os palitos para tomar café, até a
noite do último dia do ano, quando paga suas faturas, o fato de que um dia
irá morrer. Essa é a sua principal tarefa”. (Bushido – O Código Do Samurai,
YUZAN, Daidoji. IN http://www.bushido-online.com.br) Esta afirmação
contundente é a essência do código samurai, a prontidão para, em um momento
limítrofe, tirar a própria vida através do suicídio ritual (seppuku), vulgarmente
conhecido como harakiri, que significa desventramento, ou seja, o ato de perfurar o
27
Shogun, filme hollywoodiano baseado no romance de James Clavell e produzido pelo autor. Mostra
uma visão ocidental e em alguns aspectos estereotipada do Japão no final da Era Medieval. Teve uma
série para a televisão que ficou conhecida e foi veiculada também no Brasil.
40
ventre e atravessá-lo horizontalmente da direita para a esquerda, culminando o
movimento com uma rotação da lâmina pelas entranhas.
Durante este ato que consiste em cometer o suicídio ritual era comum a
solicitação de auxílio para um outro samurai que decepava a cabeça do samurai
suicida28 logo que ele efetuasse a rotação. Alguns auxiliares decepavam a cabeça do
suicida um pouco antes, como um ato de benevolência, quando consideravam que o
corte trespassando o ventre já era o suficiente para que o samurai mostrasse seu valor.
Em contraposição com esta forma de morte honrosa e exigida a um samurai que deseje
manter intacta a sua condição, estava a morte indigna, relegada aos traidores,
usurpadores e aos criminosos em geral desta classe. Ela consistia em não permitir que o
samurai iniciasse o ato de morte, cortando-se simplesmente a sua cabeça. Esta sentença
de morte indicava que o samurai havia infringido o código e não era digno de morrer
como um samurai. O traidor Fujimaki teve a sentença de morte decretada e
provavelmente morreu desta segunda maneira.
A descrição do primeiro mandamento do código de conduta samurai é
discrepante com a concepção de um protagonista sem grandiosidade e profundamente
medroso, como é expresso por Richie. (IBIDEM: 1984, 118) Na minha visão, o maior
medo de Washizu era morrer desonrado, atraiçoado, sem a honra que o suicídio ritual ou
a morte em batalha lhe proporcionaria. Este temor inconfessável estava ligado à sua
condição de samurai valoroso no início do filme.
A partir da mudança de personalidade do protagonista para um samurai correto
resulta a necessidade de uma figura sombria desencadeadora da tragédia, que é
representada pela esposa de Washizu, Asaji uma vilã fria e ambiciosa. Ao tomar esta
decisão no T2 e concretizá-la no T3, Kurosawa deu a si mesmo a possibilidade de fazer
uma auto-referência anos mais tarde. O personagem se revela uma estrategista
inescrupulosa que tece, com suas palavras mentirosas, seguidos ardis para fazê-lo ceder
a seus desejos e à sua ambição desmedida. Embora suas artimanhas sejam quase
ingênuas, elas mostram-se eficazes o bastante para mover o até então incorruptível
guerreiro. Estas palavras ditas por Macbeth na peça shakespearianas poderiam ser
atribuídas a ela: “... Para esporar meu alvo eu tenho / Apenas esta imensa ambição que,
salta tanto, / Que cai longe demais.” (SHAKESPEARE: 1995, p. 210 e 211)
28
A diferença de visão entre Ocidente e Oriente sobre este ritual está bem expressa no O último samurai,
o capitão Nathan Algren, interpretado por Tom Cruise, manifesta seu horror diante de um ato que
denomina de bárbaro.
41
Como Macbeth, também Washizu é descrito como um guerreiro de valor, um
aliado leal e um homem bastante rígido em seus valores e ciente de seus deveres. Além
de ser um guerreiro valoroso durante as batalhas, o que é reforçado pelas afirmações
feitas tanto pelo senhor feudal quanto por seus conselheiros em uma das primeiras cenas
do filme. Diferentemente daquele, porém, sua reação à revelação da bruxa é de grande
indignação, que o impele a apontar o arco e flecha em riste na direção da mulher.
Ilustração 11 - Washizu está prestes a atirar a flecha na direção da bruxa.
Diante da indignação do protagonista ao ouvir a profecia, a bruxa zomba:
“Vocês humanos são estranhos, fogem daquilo que na verdade desejam.” Esta criatura
espectral não teme os fortes guerreiros à sua frente, não teme pela vida e nem se sente
ameaçada em momento algum. Sua aparente submissão é bastante teatral e não diminui
o seu aspecto sobrenatural. Apesar disso, Miki intercede em favor dela, impedindo a
mão de Washizu de agir. Sua aparente proteção não é motivada por pena ou bondade,
mas porque o personagem se encontra curioso quanto aos prognósticos que ela poderia
também lhe reservar. Neste ponto, Miki é um homem de menor estatura que o
protagonista, desde o início do enredo.
Ser um samurai implica em seguir um código de conduta chamado Bushidô, que
pode ser traduzido como ‘o caminho do guerreiro’. Por este motivo, as ambigüidades do
caráter29 de Macbeth são deixadas de fora, na caracterização do bravio Washizu. Ele
possui, além disso, um grau de ambição que é condizente com sua posição de bushi
(outra palavra para samurai, que é mais utilizada no idioma japonês).
As armas que o protagonista utiliza também indicam sua condição de samurai,
pois são as modalidades bélicas que um guerreiro de valor deveria dominar tanto
29
Ambigüidades do caráter de Macbeth que estão presentes de maneira significativa em outras duas
adaptações fílmicas, como por exemplo na versão de Orson Welles (1948) e na de Roman Polanski
(1971), em cenas como a do punhal imaginário visto por ele e que o incita ainda mais ao assasssinato de
Duncan, na versão de Polanski.
42
durante uma batalha quanto em seus combates pessoais. Primeiramente Washizu volta o
arco e flecha na direção à bruxa; depois mata o senhor feudal empunhando uma lança;
por fim, executa o assassino de Miki com a espada longa (katana). Esta espada não era
apenas uma arma para o guerreiro, pois ela simbolizava a alma do guerreiro samurai.
Estas ferramentas de combate funcionam também como um símbolo antagônico de sua
queda trágica, visto que cada uma delas, em sua utilização indigna, aproxima-o mais de
sua degradação.
Ilustração 12 - A alma do guerreiro era a sua espada.
Miki tem outro tipo de temperamento entre ingênuo e dissimulado, que pode ser
percebido no momento em que ele olha de soslaio para o protagonista ao receber sua
profecia de que proximamente iria receber o comando do Forte I (comandado até aqui
por Washizu). No rosto de Miki se misturam o desejo e o constrangimento diante de seu
amigo. A bruxa também acrescenta que a sorte dele irá acabar, mas seus filhos obteriam
o feudo ao qual ele serve. Ele lança um novo olhar de soslaio para o companheiro de
profecia ao ver concretizada a primeira parte da profecia, tanto para ele mesmo quanto
para Washizu. Desta vez, há um teor conspiratório neste volver de olhos, não
compartilhado pelo protagonista.
O posicionamento que Miki adota após a morte de lord Tsuzuki inclina-se a um
apoio incondicional a Washizu. Ele nega abrigo ao filho do senhor feudal assassinado e
abre o portão do Castelo da Teia de Aranha para Washizu quando este vem ao seu
encontro com o ataúde em que está o corpo do senhor feudal. No momento em que o
conselho é reunido para indicar como se fará a sucessão, é ele quem sugere o nome de
Washizu ao posto. Esta é uma maneira encontrada por Miki para galgar posições na
hierarquia do feudo sem sujar as mãos e, ao final, obter tudo o que lhe parecia destinado.
Esta atitude é um tanto oportunista para um samurai. Além disso, ele é igualmente
crédulo, pois não percebe os atos hediondos que levaram o amigo ao poder. Além disso,
ele não toma conhecimento dos riscos preconizados pela própria bruxa, quando ela
afirma que a sorte dele findaria antes que a sua linhagem tomasse o poder.
Miki decide acreditar nas afirmações feitas pela bruxa, diferentemente de do
protagonista, que sente de imediato o peso e o risco de desonra implícitos na profecia.
43
Quando o senhor feudal, em uma solenidade repleta de pompa, entrega-lhe o comando
da Mansão do Norte, legando também a Miki o Forte I, até então comandado por ele,
Washizu tem o rosto em forma de uma careta. O destino brinca com ele, e ele vacila e
sofre com isso. Ele chega a contar a profecia à esposa quase como um desabafo, mas
imediatamente volta atrás, considerando toda a história como um pesadelo do qual ele
se sente aliviado por despertar. Antes da conversa, ele sai da sala e contempla o pátio da
Mansão do Norte, ensolarado e em franco contraste com o assunto lúgubre a ser
discutido no cômodo em que Asaji pacientemente o espera. O protagonista olha para
fora contente com tudo o que vê, como um fazendeiro ao ver suas plantações a perder
de vista. Ele dirige então o olhar rapidamente para dentro, para o que o aguarda, e a
tensão volta ao seu rosto.
Na sala de conferências da Mansão, local em que se dão as reuniões de seu
comandante com os subordinados, ele se senta na posição privilegiada destinada ao
senhor da mansão. O cenário indica a formalidade das relações entre marido e mulher,
muito diferentes da cumplicidade e intimidade entre Macbeth e sua esposa, tanto na
peça de Shakespeare. Um tanto de costas para a mulher, não apenas por sua condição
inferior, mas igualmente por suas idéias que se opõem aos seus valores de samurai,
Washizu afirma que nada o fará agir com deslealdade. A transcrição deste trecho do
diálogo, feita a partir da legenda em Português, mostra quando principia o embate entre
as vontades de Washizu e Asaji, que faz as afirmações mais tenebrosas com um falso
tom de cuidado e de submissão:
Asaji: Já decidistes, meu senhor.
Washizu: Sim. Ainda que tenha sido um pesadelo. Perseguia-me um espírito maligno. Porém, se
acabou. (No original, a fala significa além disso não mais vacilarei, não serei tentado). Ser o
senhor do feudo do Castelo da Teia de Aranha? Não posso nem sonhar com uma coisa assim.
(No original, Washizu utiliza o passado daisoreru do verbo, que pode ser traduzido por
audacioso, ambicioso e imprudente).
Asaji: Por que não, meu senhor? Isso não está fora de seu alcance. (No original, não diga que
isto está fora de seu alcance). Qualquer samurai desejaria ser o senhor de um castelo como o das
Teias de Aranha.
Washizu: Eu sei... Porém, estou satisfeito com o que tenho, ficarei nesta mansão e serei leal ao
nosso senhor. Quero seguir vivendo em paz.
Apesar do que diz a última fala de Washizu no trecho acima, esta tradução é
apenas uma simplificação, pois a fala original de Washizu em japonês diz respeito à paz
de espírito, que é o maior valor que se pode pretender na vida, segundo este personagem.
Portanto, a falha trágica do protagonista nesta adaptação fílmica não é a ambição
44
desmedida. A ambição que ele possui se mantém em um nível salutar e apropriado que
não se contrapõe à sua lealdade para com o senhor feudal. Asaji usa de todas as suas
armas para convencê-lo a sucumbir a este defeito trágico, a ambição desmedida, mas
falha. É ela quem detém esta falha trágica além de todas as medidas.
Washizu mantém-se firme em sua posição de samurai impecável e é neste
momento que ela percebe que terá que se utilizar de outro estratagema para convencê-lo,
porque o protagonista não pretende se desonrar. Ela então afirma que a paz que ele tanto
anseia se encontra ameaçada, porque Miki contará sobre a profecia ao senhor feudal,
usando esta informação para se promover. E, a partir desta informação, o senhor feudal
se voltará contra Washizu, exigindo a sua morte. O marido vai se perturbando cada vez
mais, caminhando agitadamente pelo cômodo qual um tigre enjaulado, e os olhos
flamejam diante da ameaça que Asaji faz surgir à sua frente.
Assim, a esposa vai aumentando a intensidade de sua intriga à medida que
Washizu resiste, até que ele sucumba aos desejos que ela malévolos que ela nutre.
Primeiro começa com o armamento leve, a ambição; depois vai ao armamento pesado, a
mentira sobre a ameaça que paira sobre a vida de seu marido.
Quando da visita de Tsuzuki à Mansão do Norte, Washizu apressa-se em ir
saudá-lo e parece ter esquecido as insinuações sobre traição feitas por Asaji durante a
conversa. Tanto que, ao ser convidado pelo senhor feudal para liderar a investida contra
o feudo vizinho, responsável pela guerra interna ocorrida no feudo no início do filme,
Washizu exulta, ri alto e parece aliviado porque o senhor feudal ainda deposita sua fé
nele. Asaji volta então à carga, dizendo que não se trata de confiança, mas apenas de um
pretexto para que os soldados o golpeiem pelas costas, à traição.
Esta imagem que neste momento falsa, é como uma bomba que finaliza a
ofensiva empreendida por Asaji contra as convicções de Washizu. Ele sucumbe e aceita
matar seu senhor, em nome de sua sobrevivência. Embora se trate de uma mentira,
acaba funcionando também como uma previsão do final trágico destinado ao
personagem, após ser dominado pela vontade da esposa.
Washizu representa também imageticamente a figura do samurai através da
fisionomia do ator que o interpreta, Toshiro Mifune, tanto em suas indecisões quanto
em suas tentativas para voltar à ideologia do bushidô ao longo do filme. O protagonista
sofre embates com sua consciência após ter sucumbido às vontades de sua esposa, como
quando demonstra a sua culpa e o seu incômodo após o assassinato de Miki. Na cena
em que recebe do assassino a cabeça de Miki, como era de praxe para comprovar a
45
morte de um inimigo, Washizu impede o soldado de prosseguir no ritual de mostrar o
rosto de seu antigo aliado. O tecido branco dobrado pela metade é novamente fechado.
O confronto com o resultado de seu segundo crime é árduo demais e o samurai se sente
um pouco enojado. Embora esta sensação desagradável não seja suficiente para impedilo de executar o assassino, instigado novamente por Asaji, ao perceber que ele falhou
em matar o filho de Miki.
Na parte final do filme, Washizu e Asaji são punidos pelo destino com a
presença de seu filho natimorto. Washizu, então, ri desvairado da ironia de sua vida
desde a morte de Tsuzuki e inutilidade de seus atos. Asaji enlouquece. Em contraste
com outra adaptação shakespeariana, a de Welles, não se encontra neste filme a
presença do suicídio de Asaji30, visto que o ato encerra significações muito distintas das
do Ocidente na cultura japonesa. O suicídio é um ritual que deve ser executado com
serenidade e em um momento extremo no qual nenhuma outra alternativa se apresente.
Na sociedade samurai, não se trata de um ato tresloucado. Exatamente por isso, o
suicídio ritual é deslocado para esposa de Tsuzuki, que se mata no interior do Castelo da
Teia de Aranha ao receber a notícia da morte do marido à traição. Este ato pode ter duas
interpretações distintas, a primeira como uma prova de afeição e respeito por parte desta
esposa e a segunda como uma indicação de que ela, como esposa do senhor feudal
deposto, não desejaria ficar à mercê do novo governante do feudo. Pode-se cogitar um
contraponto imaginado por Kurosawa entre esta cena e a de Welles, como uma maneira
de expor as diferenças de visão de mundo contidas nos dois atos.
Washizu está finalmente só, mas não livre da influência nefasta da mulher, pois
os atos acarretados pelas intrigas dela tiveram conseqüências trágicas que não podem
ser evitadas. Este momento terrível da perda do filho não gera uma tomada de
consciência para o protagonista. Ele foi longe demais para retroceder e, assim, pretende
manter o poder usurpado a qualquer custo. Com esta vontade em mente, ele se dirige
novamente à floresta em busca de novas profecias. Neste local, Washizu grita aos
fantasmas de guerreiros mortos que sairá vencedor, e que fará correr um rio de sangue
30
O suicídio consistia em um ritual que se diferenciava pelo gênero do suicida. O homem deveria se
matar através do desventramento (seppuku), mas a mulher deveria proceder de modo diverso:
primeiramente, ela deveria conferir se o kimono estava bem ajustado e as golas fechadas. Depois, deveria
se sentar no chão atapetado (tatami) e amarrar as duas pernas juntas. Em seguida, deveriam colocar uma
almofada às costas e se sentar sobre as pernas amarradas. Por fim, deveria perfurar o peito na altura do
coração munida de uma espada curta. Todo este ritual trabalhoso visa conservar o decoro feminino
mesmo após a morte. Algum erro durante a execução do suicídio acabaria por macular a honra não só
dela, mas de todo o seu clã.
46
matando um a um seus inimigos. Recebe a profecia de que estará seguro até que a
floresta se mova e a interpreta erroneamente.
A imagem das flechas, que volta a aparecer maciçamente no momento da morte
de Washizu, remete a um personagem histórico, o samurai Yoshitsune Minamoto 31
(1159-1189), que lutou com seu irmão mais velho Yoritomo pelo comando do feudo do
clã de Taira. Seu homem de confiança era o monge Benkei, um homem de grande força
física e de físico avantajado. Durante a fuga após uma batalha perdida, Benkei ficou
para trás com a finalidade de retardar as tropas inimigas enquanto Yoshitsune e seus
homens fugiam. Os soldados de Yoritomo lançaram mais de quarenta flechas na direção
do monge, sem que ele se movesse ou caísse. A solução para matá-lo foi extrema, os
inimigos incendiaram todo o local, para se certificarem de que o grande guerreiro estava
morto.
Ilustração 13 – Washizu atingido pelas flechas.
A grande falha de Washizu como líder foi ter se descontrolado e perdido a razão,
tingindo de sangue o feudo. O número de mortes que ele provocou foi menor do que as
provocadas por Macbeth na peça shakespeariana, mas demonstraram o seu descontrole e
a sua fraqueza diante de Asaji. O seu crescente nervosismo e também a sua cena de
demência durante o jantar (momento em que se defronta com o fantasma de Miki),
fizeram com que seus homens percebessem todos os atos indignos que ele havia
cometido. As flechas atingiram-no como um julgamento sumário de que Washizu, como
senhor feudal, não era nada além de um usurpador. A indignação infundada do pretenso
senhor feudal nada pode contra as flechas, que atingem seu torso em vários pontos.
Muitas flechas mais se encravam na parede de madeira às suas costas, formando fileiras
31
Este personagem histórico e seus aliados foram retratados por Akira Kurosawa no filme Os homens que
pisaram na cauda do tigre.
47
que o encurralam. A última destas flechas cala os seus últimos protestos, ao se fincar
lateralmente em sua garganta. Esta visão terrível mostra ao espectador uma morte que
ocorre lentamente diante da tela se funde à queda trágica do personagem e põe um
ponto final aos seus vários crimes.
4.3 O TEATRO NÔ
O teatro Nô é o principal elo para a compreensão da
cultura nipônica. Por mais que nos aprofundemos em
tudo quanto diga respeito ao Japão, estaremos perdidos
se não o estudarmos.
Eico Suzuki
O teatro tradicional Nô, segundo Eico Suzuki, desenvolveu-se durante o período
medieval japonês e se constituiu como uma manifestação teatral de caráter “elevado,
culto, elegante, o mais surpreendente de todos os tempos, que por seu valor, mantém,
até hoje, intacta sua estrutura.” (SUZUKI: 1977, p. 38) Dentre as características
principais do teatro Nô estão seu “caráter búdico – xintoísmo e confucionista,
associados numa apresentação solene, simbólica, literária, em voz grave, bem diferente
do folclore japonês” e o “uso de máscara para representar deuses, personagens
femininas e principais, anciãos, seres sobrenaturais, etc. Cada personagem tem máscara
especial, esculpida por artistas de renome.” (IDEM) Segundo a descrição feita por esta
autora, não é utilizado o recurso da maquiagem na encenação, nem são mostradas
expressões fisionômicas distintivas nem tampouco a mímica, a representação é
executada unicamente através de gestos simbólicos. O Nô destaca-se por se encontrar
no limiar entre o sacro e o profano, incorporando a religiosidade milenar japonesa e o
caráter mítico das lendas e fábulas ancestrais à sua representação.
A concepção desta forma teatral dá-se da seguinte maneira, “o texto se constitui de
versos da Era Kamakura”; cujas partes podem ser alternadamente “declamadas e
cantadas – estas, com ou sem compasso”. O canto pode ser interpretado de maneiras
distintas, podendo se dar “em forma de monólogo, dueto, diálogo ou por mais de dois
personagens, além do coro cantado em vozes uniformes.” (IBIDEM, p. 40) A
disposição métrica das letras obedece ao seguinte procedimento: “nas partes cantadas
em compasso, os versos têm, em geral, sete e cinco sílabas, inseridas em compasso de
quatro e quatro com duas variações.” (IDEM) A representação contém um aspecto sutil
quanto à sua apreensão, “insinua-se e não demonstra, obtendo-se o máximo de efeitos
48
com o mínimo de movimentos. O teatro Nô não é estático, flui como se deslizasse. Dá
sete passos onde, na realidade, há dez. É arte abstrata, de dinamização interior.”
(IBIDEM, p. 42)
Ilustração 14 – Asaji curva-se falsamente reverente diante do senhor
feudal, o rosto revela tanta emoção quanto a máscara Nô na imagem ao lado.
A maneira como o personagem Asaji se move durante o filme Trono manchado
de sangue é marcante e caracterizada pela lentidão e pelo comedimento de movimentos.
Esta interpretação diferenciada foi determinada por Kurosawa para compor uma
aproximação premeditada com o teatro tradicional Nô. Sobre este aspecto, Richie
disponibiliza
para
o
espectador/leitor
o
depoimento
do
próprio
diretor:
“Fundamentalmente, sou muito japonês. Gosto da cerâmica japonesa, da pintura
japonesa – mas o que gosto mais é o Nô. Mas é engraçado. Se você realmente gosta de
uma coisa dessas, não a utiliza muito em seus filmes.” (RICHIE: 1984, p. 118)
Kurosawa exprime a seguir sua preferência por esta forma de teatro em comparação
com outra forma de teatro tipicamente japonesa, o Kabuki. Em seguida elucida o motivo
deste seu apreço: “Gosto do Nô porque ele é o verdadeiro coração, o cerne de todo o
teatro japonês. Ele possui um enorme grau de compreensão e é cheio de símbolos, cheio
de sutilezas. É como se os atores e a platéia estivessem empenhados numa espécie de
competição e essa competição envolvesse toda a herança japonesa.” (IDEM)
Esta maneira distintiva de representação altera o ritmo de todas as aparições na
tela de Asaji, que é transformada por Kurosawa no ponto central da ação trágica. As
observações de Richie elucidam alguns pontos da caracterização deste personagem, “é
interessante que no filme os elementos Nô estejam associados em sua maioria a Asaji –
o papel de Lady Macbeth – pois ela é a mais limitada, a mais confinada, a mais dirigida,
a mais má. Ela se move, da cabeça aos pés, como o ator Nô; o formato do rosto de Isuzu
Yamada é usado para sugerir a máscara Nô; as cenas dela com seu marido têm uma
composição de estilo Nô e quando ela lava as mãos trata-se de puro Nô.” (IDEM)
49
A figura de Asaji parece inalterada mesmo quando ela tece suas cogitações
carregadas de veneno. A expressão facial em seu rosto se mostra imutável e repleta de
intenções que ela oculta. Parece realmente que esta mulher porta à frente do rosto uma
máscara Nô. Esta máscara bem poderia ser do tipo Rêijo, destinada à Mulher-Espírito,
um personagem feminino que representa um ser fantasmagórico em uma das peças do
Nô.
Esta semelhança do seu semblante com esta máscara específica, cujo caráter se
revela ambíguo nas representações, reveste o personagem de uma aura de mistério
quanto às suas intenções, pelo menos no que diz respeito aos demais personagens. Para
o público, a manipulação dos fatos posta a termo por Asaji se faz sentir gradativamente.
O caráter ardiloso e manipulador da esposa, definido através deste elemento cênico,
permanece um tanto insondável para o protagonista, Washizu. Ele se sente incomodado
com as afirmações dela, mas que se vê enredado a elas pelo risco iminente que tais
afirmações representam.
Ilustração 15 – As duas máscaras de Asaji.
Além disso, a caracterização formal das cenas que retratam as conversações
entre o casal na sala de conferências da Mansão do Norte intensifica visualmente a
enorme distância verificada entre eles. No plano espacial, Washizu ocupa o assento
central do aposento, que é destinado ao samurai cujo posto hierárquico é superior aos
demais32. Como se não bastasse este seu posicionamento, ele se acomoda quase que
totalmente de costas para a esposa, indicando não apenas a sua situação de
32
Durante a visita inesperada do senhor feudal Tsuzuki à Mansão do Norte, que se na cena subseqüente à
do primeiro diálogo entre os cônjuges Washizu e Asaji, o assento central é cedido por este ao seu senhor,
e os conselheiros se acomodam em duas fileiras, à direita e à esquerda dele. A distância para com o
senhor, o ôdono, é tanto maior quanto inferior é a posição do guerreiro. Washizu e Miki estão sentados
após os conselheiros. Miki um pouco mais afastado do que o companheiro de profecia.
50
superioridade 33 , mas igualmente o seu descontentamento. A característica principal
desta união se dá visualmente pelo espaço que se manifesta entre os cônjuges. Isto não é
de todo surpreendente, visto que a grande maioria dos casamentos no mundo feudal
implicava na já mencionada natureza de inimizade implícita entre os noivos.
Asaji assemelha-se, por seu comedimento, a uma aranha que tece pacientemente
a sua armadilha, envolvendo o marido de forma vagarosa no âmago das intrigas e
mentiras que ela concebe. Esta mulher sem escrúpulos induz Washizu a crer sem
sombra de dúvida que ele corre risco de vida porque o senhor feudal está prestes a matálo à traição. O ponto culminante no que diz respeito às suas manipulações não é, porém,
uma mentira, mas um fato que mudará os desejos interiores do esposo: a gravidez. O
anseio de perpetuação inunda a ambos de novas ambições, mas que não diminuem o
distanciamento existente entre eles. Após o parto mal-sucedido, a revelação do
natimorto põe tudo a perder.
Neste ponto, a significação total dos seus atos atinge Asaji pela primeira vez,
levando-a a um estado de insanidade. Assim, a sua aparição final se dá com a troca de
uma máscara por outra, a indumentária facial de Haishihime (Princesa da Ponte,
utilizada em uma peça em que o personagem vira um demônio devido ao ciúme
excessivo). Nesta cena, já citada por Richie, ela lava compulsivamente as mãos com o
rosto transformado em um rictus de desespero infinito em que se estampa a loucura
final do personagem à semelhança da lady Macbeth da peça shakespeariana.
Ilustração 16 - Asaji sente cheiro de sangue nas mãos.
33
Esta disposição espacial em ângulo reto nem sempre indica distanciamento entre os casais. Concubinas
e segundas esposas sentam-se desta maneira na lateral esquerda de seus maridos, mas sua postura
corporal indica uma intimidade que não é verificada entre Washizu e sua esposa. Desta posição, as
mulheres aconselham seus maridos, fazem seus pedidos e conseguem seus intentos através da mansidão.
51
O motivo da sua loucura, porém, afasta-se muito daquele que leva a esposa de
Macbeth a perder a razão. Asaji em nenhum momento associa Tsuzuki a seu pai, o
senhor feudal é um estranho a que ela, por conveniência, deve fingir submissão como
membro do clã. Um certo receio e, quem sabe, a consciência parcial dos atos ignóbeis a
serem cometidos e/ou arquitetados por ela, aparece em seus gestos no momento em que
ela espera por Washizu, enquanto este mata o senhor feudal. Neste momento, ela olha a
mancha na parede do aposento que foi impressa definitivamente pelo sangue do traidor
Fujimaki. A associação visual sugere todo o conjunto das inquietações do personagem.
Na adaptação empreendida por Kurosawa, o motivo que leva Asaji à loucura é,
antes de tudo, a perda de todas as esperanças de que o sangue de seu clã se perpetue no
poder através deste filho gerado por ela. Tudo o que ela fez teve apenas esta motivação,
de legar o feudo a uma linhagem gerada a partir dela, visto que seu marido Washizu não
é nada mais do que um estranho, uma imposição matrimonial e política e, portanto, um
joguete através do qual ela poderia concretizar os seus desejos. Quando essa
possibilidade de perpetuação lhe é negada, ela finalmente percebe a extensão de seus
crimes e, conseqüentemente, enlouquece.
Outros elementos também relacionam a estética do filme ao teatro Nô, dentre
eles a música, executada por tambores e flauta 34 e canto monocórdio de coro, que
aparece durante os créditos, e faz referência direta a este tipo de teatro. O canto é ouvido
em off durante a cena inicial que mostra o cenário em que anteriormente havia um
castelo.
Ilustração 17 - Instrumentistas do Teatro Nô.
34
Estes são os instrumentos básicos na execução da música utilizada durante as representações do teatro
tradicional Nô.
52
Há uma semelhança entre esta cantoria e os mantras budistas por sua lendidão e
pela linguagem arcaica de sua letra. Visto que há traços também do budismo dentro do
aspecto composicional desta forma teatral, ambas as leituras se complementam. A
preleção moral sobre a falha trágica do personagem Washizu é feita pelas palavras
entoadas na letra, remetendo novamente ao budismo e também ao código de conduta
samurai. Estes dois elementos, teatro Nô e budismo, são re-trabalhados de outro modo
também no filme Ran, juntamente com a figura marcante de uma vilã que conduz o
enredo trágico.
Neste momento de abertura, e igualmente em outros momentos do filme, este
tipo de música característico do teatro Nô irá servir de elemento narrativo. Cantada
apenas na cena inicial, durante o restante do filme a melodia é instrumental, constituída
de tambores e flauta. Esta última sobressai-se em agudos pungentes nos momentos de
tensão. A emoção do protagonista é reforçada por esta trilha sonora que completa a cena.
Outro personagem associado a este gênero teatral tipicamente japonês é a bruxa,
que representa uma fusão das três bruxas da peça Macbeth shakespeariana em um único
personagem. Sobre a bruxa, ele declara que a “Sua maquilagem sugere a máscara de
fantasma usada no Nô. Suas profecias são expressas na voz rouca e sem entonação do
ator Nô e os sons feitos pelas duas mulheres – o guinchar do tabi de Asaji, o arrastar de
seu quimono no chão, o leve barulho da roca de fiar da bruxa, seu farfalhar dentro da
choupana de junco – são sons fortemente associados ao Nô.” Richie compreende que a
ligação entre ela e Asaji se dá através desta caracterização ligada ao Nô e também pela
índole “má” de ambos os personagens. Ele continua sua análise com a asserção de que
“o caráter formal, fechado, ritual, limitado do Nô está, portanto, associado às duas
mulheres do filme.” (RICHIE: 1984, p. 119)
Ilustração 18 - A bruxa canta enquanto gira a roca.
53
A maneira vagarosa com que a velha mulher gira a roca parece confirmar estas
palavras. A lentidão de sua fala dista em muito da de outros personagens, como
Washizu e Asaji. Ela cria um tempo próprio de enunciação a cada frase que pronuncia.
Ela verbaliza os sons e se move como se estivesse em câmera lenta. A sua imagem
espectral e a sua expressão isenta ao falar das características desconcertantes dos seres
humanos, como se ela se dissociasse deles em gênero, também indica uma aproximação
com o conto de terror japonês (kwaidan), um gênero literário trazido da China para o
Japão no século IV e desenvolvido como gênero próprio desde o século VIII. A maneira
súbita como a bruxa desaparece no ar depois da primeira profecia reforça ainda mais
esta ligação. A segunda aparição da bruxa de cabelo solto e levitando um pouco acima
do chão intensifica o caráter sobrenatural do personagem. Os espíritos tanto de Miki
quanto dos guerreiros mortos em conflitos passados, estes últimos relacionados à
segunda profecia feita pela bruxa, completam o quadro ligado ao conto de terror. Os
guerreiros mortos também se assemelham aos personagens do teatro Nô em
indumentária e movimentação de cena. Há, inclusive, figuras sobrenaturais incorporadas
a esta forma teatral, como fantasmas, demônios e outros personagens aparecem nas
peças desta forma teatral, derivada em parte de elementos míticos japoneses.
Ilustração 19 - As duas máscaras da bruxa.
Outro elemento ligado ao teatro Nô é a fisionomia de Washizu quando se acha
tomado pelo desespero e pela fúria. A visão de seu rosto transtornado assemelha-se
igualmente a uma das máscaras do teatro Nô, inicialmente à do personagem Kurohigue,
o bigode preto, nos momentos iniciais de seu descontrole. E, quando Washizu atinge um
ponto sem volta em sua insanidade belicosa, aproxima-se de outra máscara igualmente
fulminante, a do Shikami, de cor vermelha e destinada a representar um “demônio sem
chifres.” (SUZUKI: 1977, p. 82) A própria queda final do personagem é representada
54
por esta segunda máscara. Durante o diálogo que empreende com os espíritos dos
guerreiros do passado que o instigam a derrotar a todos os seus oponentes ele se
assemelha a um demônio. Washizu responde aos espíritos, neste momento, que fará
jorrar “um rio de sangue” se necessário.
Ilustração 20 – As duas máscaras de Washizu.
A figura do coro é outro elemento de aproximação com o teatro Nô e a sua
presença se torna significativa ao longo do filme. Além do momento inicial em que
apenas as vozes dos cantores aparecem em cena, o coro aparece também retratado pelas
conversas entre os servos de Washizu. Os comentários expressos por eles servem de
parâmetro comparativo e igualmente indicam o posicionamento destes personagens
quanto aos rumos que o protagonista toma na condução do feudo. Na cena em que Asaji
aparece pela primeira vez, no salão de reuniões da Mansão do Norte, o comentário dos
servos funciona como um contraponto entre a aparente tranqüilidade da paisagem
circundante e o duelo mental que acontece dentro do cômodo entre Washizu e sua
esposa. Em outras cenas, os servos fazem comentários pertinentes sobre a situação
instável em que se encontra o feudo após a ascensão de Washizu ao posto de senhor
feudal. O coro, um recurso metateatral também utilizado por Shakespeare, faz uma
aproximação com outra adaptação shakespeariana de Kurosawa, O homem mau dorme
bem, no qual a imprensa faz este mesmo papel de esclarecimento de aspectos do enredo
do filme.
O teatro Nô encontra-se estreitamente associado à concepção estilística da
tradução cultural empreendida por Kurosawa a partir da tragédia shakespeariana
Macbeth, o que se comprova por estas afirmações feitas pelo próprio diretor novamente
a Donald Richie, “no Nô, estilo e história tornam-se uma só coisa. Nesse filme, o
problema era como adaptar a história à mentalidade japonesa. A história é bastante
55
compreensível, mas os japoneses tendem a pensar diversamente sobre coisas como
bruxas e fantasmas35.” (RICHIE: 1984, p. 118)
Os elementos composicionais intimamente ligados à história e à cultura
japonesas fizeram com que esta tradução intersemiótica e cultural falasse diretamente à
alma do povo japonês. Ao mesmo tempo em que comoveram e intrigaram as platéias
ocidentais tanto por seu caráter um tanto exótico, quanto pelo fato de este filme conter
um tempo e um ritmo diferenciados quando comparados com a sucessão frenética de
acontecimentos que predomina em muitas produções hollywoodianas.
4 CONCLUSÃO
A percepção de todos os detalhes que envolvem o processo de tradução
intersemiótica e cultural empreendido por Kurosawa impõe, no caso de se tratar de um
leitor de segundo nível, a necessidade de um conhecimento diferenciado quanto à
história e à cultura japonesas. Esta pesquisa pretendeu identificar e analisar os pontos
culturais essenciais nos quais se embasou esta tradução, ou seja, o feudalismo, o
samurai e seu código (bushidô) e o teatro Nô. Esta iniciativa revelou-se mais complexa
do que se imaginou a princípio devido à enorme distância cultural existente e ao
desconhecimento de diversos fatos histórico-culturais referentes ao Japão Medieval pelo
Ocidente.
Ao mesmo tempo, houve uma aproximação pessoal durante a pesquisa com as
informações prévias contidas na ontogênese desta pesquisadora. Fatos históricos
conhecidos desde a infância puderam ser aprofundados e novos estudos vieram a
compor uma somatória com a cultura familiar e ancestral. O aspecto relativo à tradução
cultural foi sendo desvendado a cada nova leitura e a cada novo ato de enfrentamento
com o filme Trono manchado de sangue. Aspectos que antes haviam passado
despercebidos se revelavam.
A vivência prática com o fazer cinematográfico contribuiu para uma nova
dimensão sobre esta arte, antes vista de alguma forma parcialmente através do viés da
literatura. Este aspecto, que não havia sido planejado anteriormente como parte desta
35
Os elementos do sobrenatural vêm muitas vezes em busca de vingança e de reparação para os atos
indignos cometidos pelos homens.
56
pesquisa, foi incorporado tanto como uma complementação do aspecto teórico quanto
como uma maneira de aproximação com o fazer artístico específico do cinema. Detalhes
sobre as fases distintas do processo foram elucidadas pela experiência empírica. Um
exemplo deste esclarecimento obtido foi a percepção da especificidade da escritura de
um roteiro cinematográfico, no qual o enredo deve ser trabalhado de maneira a abranger
o teor multimídia desta forma de arte. A importância do processo de pós-produção de
imagem (edição) e de som foi compreendida também durante esta prática.
Percebeu-se também, durante o desenvolvimento desta pesquisa, que há também
a possibilidade de empreender aproximações entre Trono manchado de sangue e a
tragédia Otelo, no que se refere aos personagens principais das duas obras. De nodo que
Washizu possui características próximas às de Otelo e igualmente que Asaji age como
Iago ao tecer suas intrigas e mentiras. Desta forma, vê-se que a questão da manipulação
feita por Iago e que levou Otelo à queda trágica como herói, na peça Otelo, foi
trabalhada pelo diretor em Trono manchado de sangue. Possivelmente este seja um dos
motivos pelos quais o diretor realizou a tradução intersemiótica e cultural de apenas três
das quatro grandes tragédias de William Shakespeare: Macbeth, Rei Lear e Hamlet.
O aprofundamento do estudo desta nova aproximação possível, entretanto, será
retomado somente no mestrado. Este novo estudo será feito após um espaço de tempo
em que possa ocorrer o amadurecimento da idéia. Este tempo remete a própria história
desta adaptação fílmica de Macbeth realizada por Kurosawa, que dispôs de
aproximadamente sete anos entre a sua idealização e a sua realização de fato.
No intervalo entre a conclusão desta pesquisa e o ingresso no mestrado serão
empreendidos dois outros estudos sobre as adaptações fílmicas shakespearianas
realizadas por Kurosawa. O primeiro será o processo de tradução intersemiótica e
cultural da tragédia Rei Lear no filme Ran, durante a Iniciação Científica. O segundo
consistirá no estudo da recriação da peça Hamlet em O homem mau dorme bem em
outro conjunto de disciplinas monográficas, desta vez referentes à segunda monografia
necessária à conclusão do curso na habilitação dupla em que ingressei.
Ilustração 21 - Ideograma equivalente ao the end.
57
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59
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(legendado em português), preto e branco.
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dorme bem (Warui yatsu hodo yoku nemuru). [Filme-vídeo]. Produção de Tomoyuki
Tanaka e Akira Kurosawa, direção de Akira Kurosawa. Tóquio: Kurosawa films, 1960.
01 DVD, 151 minutos, son., preto e branco.
HARA, Masato; SILBERMAN, Serge. KUROSAWA, Akira. Ran. [Filme-vídeo].
Produção de Serge Silberman e Masato Hara, direção de Akira Kurosawa. Tóquio:
Herald Ace/Nippon Herald Filme/Greenwich Film Production, 1985. 01 DVD, 162
minutos, son. (legendado em português), color.
Sites visitados:
sobre Akira Kurosawa
http://www.adorocinema.cidadeinternet.com.br/personalidades/diretores/akirakurosawa/corpo.asp
sobre os créditos completos do filme Trono manchado de sangue
http://www.imdb.com/title/tt0050613/fullcredits#writers
sobre Bushidô
<http://japanese.about.com/bl50kanji_bushidocodes.htm>, acesso 09 Ago 2007.
<http://www.bushido-online.com.br/> acesso 09 Ago 2007.
<http://japanesekanji.nobody.jp/others/bushido.htm> acesso 09 Ago 2007.
<sobre katana:
<http://www.niten.org.br/penaespada/penaartigos/katana.htm> acesso 23 Out 2007.
60
ANEXOS
1 CARTAZ AMPLIADO DO FILME TRONO MANCHADO DE SANGUE
61
2 ELENCO RESUMIDO DE TRONO MANCHADO DE SANGUE
Elenco resumido36 de Trono manchado de sangue
Personagens
Atores
capitão Takedori Washizu
Lady Asaji Washizu
capitão Yoshiaki Miki
lord Kuniharu Tsuzuki
Kunimaru Tsuzuki
Noriyasu Odagura
Yoshiteru Miki
1 bruxa
Toshirô Mifune
Isuzu Yamada
Minoru Chiaki
Takamaru Sasaki
Yoichi Tachikawa
Takashi Shimura37
Akira Kubo
Chieko Naniya
36
A lista de personagens contida neste recorte do elenco do Trono manchado de sangue é a mesma que
foi elaborada para o quadro de equivalências entre o filme e a peça em que se baseou, a tragédia
shakespeariana Macbeth.
37
Além de Mifune, Akira Kurosawa trabalhou com outros atores regularmente, dentre eles se encontra
Takashi Shimura, que protagonizou o antológico filme Viver, e esteve presente também em outros
clássicos como Rashomon, O anjo embriagado e Os sete samurais.
62
3
FILMOGRAFIA DE AKIRA KUROSAWA
Filmografia
Ano
Título
Direção
Roteiro
(e outras funções)
1943
1944
1945
1945
1946
1946
1947
1948
1949
(Sugata Akira Kurosawa
(edição e edição de
som, ambos com
equipes)
A mais bonita* (Ichiban Akira Kurosawa
utsukushiku)
(produção e edição)
Sanshiro Sugata II (Zoku Sugata Akira Kurosawa
Sanshiro)
(edição)
Os homens que pisaram na Akira Kurosawa
cauda do tigre (Tora no o wo (edição)
fumu otokachi)
Aqueles que constroem o Akira Kurosawa
amanhã* (Asu wo tsukuru Kajiro Yamamoto
hitobito)
Hideo Sekigawa
Juventude sem Arrependimentos Akira Kurosawa
(Waga seishun ni kuinashi)
(edição)
Um belo domingo* (Subarashiki Akira Kurosawa
nichiyôbi)
(edição)
O anjo embriagado (Yoidore Akira Kurosawa
Tenshi)
(edição)
Duelo silencioso (Shizukanaru Akira Kurosawa
ketto)
Sanshiro
Sanshiro)
Sugata
1949
Cão danado (Nora inu)
Akira Kurosawa
1950
Escândalo (Shubun)
1950
Rashomon
Akira Kurosawa
(edição)
Akira Kurosawa
1951
O idiota (Hakuchi)
Akira Kurosawa
1952
Viver (Ikiru)
1954
1955
1957
Akira Kurosawa
(edição)
Os sete samurais (Shichinin no Akira Kurosawa
samurai)
(edição)
Anatomia do medo (Ikimono no Akira Kurosawa
kiroku)
(edição)
Trono manchado de sangue Akira Kurosawa
(Kumonosu-jô)
(produção e edição)
Akira Kurosawa, adaptação do romance
homônimo de Tsuneo Tomita.
Akira Kurosawa (original)
Akira Kurosawa, adaptação do romance
homônimo de Tsuneo Tomita.
Akira Kurosawa, adaptação da peça de
Kabuki Kanjinchô
Kajiro Yamamoto e Yusaku Yamagata
(original)
Akira Kurosawa e Eijiro Hisaita
(original)
Akira Kurosawa e Keisuke Uegusa
(original)
Akira Kurosawa e Keisuke Uegusa
(original)
Akira Kurosawa e Senkichi Taniguchi
adaptação da peça homônima de Kazuo
Kikuta
Akira Kurosawa e Ryuzô Kikushima
(original)
Akira Kurosawa e Ryuzô Kikushima
(original)
Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto
adaptação dos contos Rashomon e Dentro
do bosque de Ryunosuke Akutagawa.
Akira Kurosawa e Eijiro Hisaita
adaptação do romance homônimo (186869) de Fedor Mikhailovich Dostoievski
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni (original)
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni (original)
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni (original)
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni
63
1957
Ralé (Donzoko)
1958
A fortaleza escondida (Kakushi Akira Kurosawa
toride no san-akunin)
(produção e edição)
1960
O homem mau dorme bem Akira Kurosawa
(Warui yatsu hodo yoku nemuru) (produção e edição)
1961
Guarda-costas (Yojimbo)
1962
Sanjuro (Tsubaki Sanjuro)
1963
Céu e inferno (Tengoku to Akira Kurosawa
jigoku)
(produção e edição)
1965
O barba ruiva (Akahige)
1970
Dodes’ka-den (Dodesukaden)
1974
Dersu Uzala
1980
Kagemusha (Kagemusha – a Akira Kurosawa
sombra do samurai)
(produção e edição)
Akira Kurosawa
Ran
(edição)
1985
Akira Kurosawa
(produção e edição)
Akira Kurosawa
(produção e edição)
Akira Kurosawa
(produção e edição)
Akira Kurosawa
(produção e edição)
Akira Kurosawa
(produção executiva)
Akira Kurosawa
1990
Sonhos (Yume)
Akira Kurosawa
1991
Rapsódia em agosto (Hachigatsu Akira Kurosawa
no rapusodi)
(edição)
1993
Ainda não∗ (Madadayo)
Akira Kurosawa
(edição)
adaptação da tragédia Macbeth de
William Shakespeare
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni
adaptação da peça Na dne (1902) de
Maxim Gorky
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni e Ryuzô Kikushima
(original)
Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e
Hideo Ôguni, Eijiro Hisaita e Ryuzô
Kikushima
re-criação 38 da tragédia shakespeariana
Hamlet
Akira Kurosawa, Hideo Ôguni e Ryuzô
Kikushima (original)
Akira Kurosawa, Hideo Ôguni e Ryuzô
Kikushima
Akira Kurosawa, adaptação da biografia
de Tsubaki Sanjuro escrita por Shûgorô
Yamamoto
Akira Kurosawa, Hideo Ôguni, Eijiro
Hisaita e Ryuzô Kikushima
adaptação do romance King’s ransom de
Ed McBain
Akira Kurosawa, Hideo Ôguni, Ryuzô
Kikushima e Masato Ide (original)
Akira Kurosawa, Hideo Ôguni e Shinobu
Hashimoto (original)
Akira Kurosawa e Yuri Nagibin
adaptação do livro Dersu okhotnik de
Vladimir K. Arsenieva
Akira Kurosawa e Masato Ide
(original)
Akira Kurosawa e Masato Ide
adaptação da tragédia Rei Lear de
William Shakespeare
Akira Kurosawa e Ishiro Honda (não
creditado)
Akira Kurosawa e Ishiro Honda
adaptação do romance Nabe-no-kaka de
Kiyoko Murata
Akira Kurosawa e Ishiro Honda
adaptação dos trabalhos literários de
Hyakken Uchida
38
Esta é uma classificação desta pesquisadora, não embasada pela maioria dos livros encontrados ou pelo
diretor.
∗
Traduzidos por esta pesquisadora.
64
4 AS PREMIAÇÕES DE AKIRA KUROSAWA
Premiações internacionais
Prêmio
Título
Rashomon
Os sete samurais (Shichinin no
samurai)
A fortaleza escondida (Kakushi
toride no san-akunin)
ƒ
ƒ
ƒ
Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro39
Leão de Prata no Festival de Cinema de Veneza
1951
1952
1954
ƒ
ƒ
Urso de Prata no Festival de Berlim
Prêmio FIPRESCI (The International Federation of Film
Critics) no Festival de Berlim
Prêmio OCIC, no Festival de Veneza
(Organisation Catholique Internationale du Cinema et de
l’Audiovisuel)
Grand Prix do Festival de Cinema de Moscou
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes
BAFTA (British Academy of Film and Television Arts)
de Melhor Diretor, além de indicação na categoria de
Melhor Filme
Cesar, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro
Leão de Ouro, em homenagem à sua carreira, no Festival
de Cinema de Veneza
Prêmio Especial de Realização no Festival de Cinema de
Cannes, além de indicação à Palma de Ouro
Prêmio Bodil de Melhor Filme Europeu
BAFTA (British Academy of Film and Television Arts)
de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Maquiagem.
Recebeu mais outras 4 indicações, nas categorias de:
Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia, Melhor
Figurino e Melhor Desenho de Produção
Indicação para Oscar de Melhor Diretor
Oscar honorário pelo conjunto de sua obra
1958
1958
O barba ruiva (Akahige)
ƒ
Dersu Uzala
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
Kagemusha (Kagemusha – a
sombra do samurai)
ƒ
ƒ
ƒ
Ran
ƒ
ƒ
Sonhos (Yume)
Ano
ƒ
ƒ
39
A entidade responsável pela concessão desta premiação é denominada Academia de Artes e Ciências
cinematográficas (EUA).
65
1965
1974
1976
1980
1980
1980
1982
1985
1985
1985
1985
1990
Kinema Jumpo’s Award Winners40
Ano
Título(s)
Colocação
(ões)
1947
ƒ
1948
ƒ
1949
ƒ
ƒ
1950
1952
1954
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
1957
ƒ
1958
ƒ
1960
ƒ
1961
1963
ƒ
ƒ
1965
1970
ƒ
ƒ
1980
ƒ
1990
1991
ƒ
ƒ
1993
ƒ
Um belo domingo*
(Subarashiki nichiyôbi)
O anjo embriagado
(Yoidore Tenshi)
Cão danado (Nora inu)
Duelo silencioso
(Shizukanaru ketto)
Rashomon
Escândalo (Shubun)
Viver (Ikiru)
Os sete samurais
(Shichinin no samurai)
Trono manchado de
sangue (Kumonosu-jô)
A fortaleza escondida
(Kakushi toride no sanakunin)
O homem mau dorme
bem (Warui yatsu hodo
yoku nemuru)
Guarda-costas (Yojimbo)
Céu e inferno (Tengoku
to jigoku)
O barba ruiva (Akahige)
Dodes’ka-den
(Dodesukaden)
Kagemusha (Kagemusha
– a sombra do samurai)
Sonhos (Yume)
Rapsódia em agosto
(Hachigatsu no rapusodi)
Ainda não (Madadayo)
6° colocado
1° colocado
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8° colocado
5° colocado
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3° colocado
10° colocado
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Esta premiação consiste em uma votação anual para os dez melhores filmes. Concorrem os filmes de
diretores japoneses realizados no ano corrente.
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5 FILMES INDIRETAMENTE RELACIONADOS A AKIRA KUROSAWA
Filmes indiretamente relacionados a Akira Kurosawa
Título
Ano
Diretor
Filmes póstumos
Depois da Chuva (Ame agaru)
Sob o Olhar do Mar (Umi wa mite ita)
1999
2002
Takashi Koizumi (discípulo)
Ken Kumagai (sob encomenda)
Westerns realizados a partir de roteiros de jidaigeki
Sete homens e um destino (baseado em Os
sete samurais)
Por um punhado de dólares (baseado em
Guarda-costas)
Quatro confissões – o ultraje (baseado em
Rashomon)
1960
John Sturges
1964
Sergio Leone
1964
Martin Ritt
Filmes feitos a partir de roteiro de Kurosawa (modificado)
Runaway Train
1985
Andrei Konchalowski
Filmes com inspiração em obras fílmicas de Kurosawa
blockbuster41 “Guerra nas estrelas”
(inspirado em A fortaleza escondida)
1977 a
2005
Kill Bill I e II (inspirados em A fortaleza
escondida)
2003 e
2004
George Lucas
Quentin Tarantino
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Blockbuster é o termo utilizado pela indústria cinematográfica norte-americana para designar conjuntos
seqüenciais de filmes. Este conjunto específico constitui-se de seis filmes, realizados ao longo de três
décadas.
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IMAGEM DO LIVRO COMPLETO DE STORYBOARDS DE AKIRA
KUROSAWA.
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Documentos relacionados