A independência económica é fundamental para que

Transcrição

A independência económica é fundamental para que
João Marcelino
A independência económica é fundamental
para que possamos resistir às pressões e aos
poderes
Vanda Ferreira
O director do Correio da Manhã à data da entrevista, 50 anos de vida e 31
anos de profissão, entrou na profissão pelo jornal desportivo Record, que
preferiu a um curso de Geologia. «O jornalismo era a possibilidade de fazer
qualquer coisa numa área de que eu gostava muito, mas também uma porta
aberta para ir conhecer o mundo». Orgulhoso de ter criado uma das
redacções mais femininas e na sua maioria com habilitações académicas de
nível superior e na área da Comunicação Social, João Marcelino realça no
jornalismo português das últimas três décadas; a evolução da situação
económica, a melhoria dos meios técnicos e do nível académico e cultural.
Afirma que, quando se faz um jornal, «tem de se ir um pouco ao encontro
das necessidades do mercado». Rejeita quaisquer «aproximações ao poder
político» e preconiza a independência através de relações distanciadas com
as fontes. Pelo seu lado, considera defender-se com “à-vontade” das
pressões que são exercidas sobre o director de um jornal.
Palavras-chave: assessores, computadores, concorrência, director, empresas, grupos
económicos de comunicação, estagiários, formação, independência económica, Internet,
interesses, jornais desportivos, jornalistas mulheres, leitores, poderes, pressões,
públicos, redacção, sindicalismo.
Motivações no Acesso à Profissão
A sua entrada no jornalismo deu-se em 1979; por gosto e através da «velha instituição
portuguesa do “conhecimento”», sem antecedentes na família, nem experiências
anteriores na escola ou entre amigos.
«Queria ser jornalista. Tinha 20 anos e entrei no jornalismo pelo desporto. Estava na
Faculdade, frequentava o curso de Geologia na Faculdade de Ciências de Lisboa, e
gostava muito de futebol. Apareceu a possibilidade de começar a trabalhar num jornal
desportivo, o Record, e foi por aí que comecei… A minha mulher, que conheci na
Faculdade, na altura era fotojornalista e, ao contrário de mim, acabou o curso.
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Eu devorava livros, adorava jornais, gostava muito – e não só de desportivos – já
naquela altura percebia um bocadinho do mundo. Lisboa era uma cidade muito fechada.
Comecei a ler jornais para aí com 10, 12 anos, portanto sabia-se muito pouco. Era uma
cidade mesmo muito primitiva, muito provinciana. Gostava de ler sobre a política
internacional, de saber as coisas do mundo… Tornei-me consumidor de jornais».
Sem nenhum modelo de profissional, a sua vontade era ser jornalista porque gostava de
desporto e queria conhecer o mundo. «O jornalismo, para mim, era a possibilidade de
fazer qualquer coisa numa área de que eu gostava muito, mas também uma porta aberta
para ir conhecer o mundo. O jornalista desportivo era dos que gostavam mais de
futebol, mas também eram os que viajavam mais naquela altura… Acompanhavam os
“benficas”, os “sportings”, as Selecções Nacionais, as “Voltas” em ciclismo, os
Campeonatos do Mundo e, efectivamente eu viria a conseguir isso, ou seja, fiz inúmeros
campeonatos da Europa, do Mundo, Jogos Olímpicos, conheci imenso o mundo e estive
em mais de 50 países, enfim, por causa do jornalismo desportivo. Sem esse estágio
dificilmente estaria aqui».
Curiosamente, o seu primeiro artigo foi publicado na secção desportiva do Correio da
Manhã, tendo depois começado a trabalhar no Record. «Trabalhei, numa época
diferente desta por sinal, nos dois jornais ao mesmo tempo. Até que tive de desistir e
optei pelo Record. Estive lá vários anos, cheguei a director… Depois, já estava um
bocado cansado, surgiu a oportunidade de fazer coisas novas na vida e saí».
A sua passagem de redactor a director do Record concretizou-se em quinze anos e em
2000, quando o desportivo e o Correio da Manhã eram já propriedade da Cofina,
aceitou o convite para a direcção deste último. «Depois lancei a Sábado [de que foi
director ao mesmo tempo do Correio da Manhã]. Na vida, nós não devemos ser cair na
rotina e eu tive essa sorte de poder fazer outras coisas».
Condições de Acesso à Profissão
Dos seus primeiros tempos como jornalista, guarda más memórias da organização do
trabalho e boas recordações da vida quotidiana entre colegas.
«Estive quase a desistir. Porque, enfim, você tem que ver isto à luz do que era a vida em
Portugal há... vinte e cinco anos… Os jornais não tinham condições, lembro-me
perfeitamente que a nossa redacção nem sequer tinha telexes, que era a coisa mais
avançada. Não havia computadores, eram só as máquinas de escrever, tudo era muito
atrasado, não havia arquivos, não havia nada, os jornais copiavam-se muito uns aos
outros, era um meio muito… Você não tem ideia do que é que foi a evolução nestes
vinte anos, foi brutal!
Isto é, eu tinha ido para o jornalismo para mudar o mundo e afinal estava a ser
confrontado com uma realidade que era muito medíocre, muito pequenina. Lembro-me
de chegar a casa e dizer, “vou desistir!”. Acabei por não desistir porque encontrei uma
senhora que lá estava e que achava que eu tinha muitas condições e portanto incentivoume… Já tinha sido jornalista e incentivou-me a continuar. Eu passei aqueles momentos
difíceis e depois tive também a sorte de ser escolhido para começar a ter
responsabilidades. Portanto, fui mudando a vida à minha volta e acabei por ficar».
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Para João Marcelino, há dez anos, e em relação a outros meios, os jornais desportivos
estavam à frente. «Tinham mais meios e estavam mais modernizados em termos de
estrutura de arquivos e de computadores do que o outro jornalismo. Há vinte anos, não
posso fazer uma comparação exacta… Enfim, podia estar um bocadinho atrás dos
grandes jornais da época, mas não estava muito atrás. Mas o meio era muito pobre;
havia pouco investimento… havia pouca cultura, os jornalistas não tinham grandes
instrumentos culturais, nem académicos, hoje a situação é completamente diferente.
Hoje, nas redacções estão pessoas licenciadas, com outra cultura…
À [tradição da] tarimba sobrepunha-se ainda outra realidade… É que os jornalistas
profissionais achavam o desporto uma área menor, quem ia fazer desporto eram
normalmente pessoas até com outra profissão, havia muito pouca gente a viver ainda do
jornalismo. Aliás, essa volta foi dada… A Bola tinha alguma predominância, alguma
qualidade superior, porque tinha exactamente um quadro profissional. Nós demos um
salto no Record quando conseguimos pela primeira vez formar um quadro só de
profissionais a quem era vedado o exercício de outra actividade. Isso permitiu afastar
algumas pessoas que estavam ali a passar uns tempos, para ter um cartão para a bola e
desenvolveu uma entidade absolutamente profissional.
É algo que nunca foi estudado em Portugal, mas o jornalismo desportivo teve uma
grande importância no desenvolvimento do sector. As pessoas não fazem ideia,
digamos, da qualidade profissional… Eu no Record cheguei a ter uma redacção, quando
saí, não havia de certeza mais nenhuma outra no país que tivesse tanta gente com as
mesmas competências. Estamos a falar de cultura, de instrumentos de trabalho, coisas
que hoje em dia já começam a ser comuns. Os jornais já não metem pessoas, enfim, ou
as pessoas têm uma qualidade superior ou não entra ninguém que não seja licenciado e
que tenha um bom currículo. Mas, naquela altura, não era assim».
Por outro lado, recorda que, quando começou a ser jornalista, os relacionamentos eram
mais próximos, o que fez da sua entrada na profissão uma experiência mais humana.
«Senti-me acompanhado do ponto de vista da amizade, sim. Do ponto de vista da
formação profissional, não. Havia pouca escola, claramente… Não havia escola!
Portanto, o meio era muito amador.
Os jornais eram uma espécie de tertúlia… os desportivos, os vespertinos eram todos
assim. Constituíam-se grupos, o jornal era qualquer coisa que acontecia antes e depois
do jantar e havia esse lado humano muito bom. Do ponto de vista profissional às vezes,
deixava um bocado a desejar, mas havia uma componente humana muito mais
acentuada do que há hoje. Não havia telemóveis, não havia uma série de coisas,
portanto nós tínhamos mais tempo. Hoje, tudo se passa a correr… Saíamos para
discotecas, íamos jantar juntos, acabávamos no jornal e depois, se fosse preciso, ainda
íamos para um bar discutir e muitas vezes efectivavam-se relações pessoais… namoros
e alguns casamentos porque as pessoas viviam muito tempo umas com as outras…».
Hoje identifica nas motivações dos aspirantes, um desejo de acesso, por tudo aquilo a
que associam o meio. «A profissão está mais respeitável do que era há 25 anos e há um
grande fascínio em torno da televisão e dos jornais. Há muitos jovens a desejar vir para
a profissão e no meu tempo não era assim tão interessante. Foi para mim, mas eu não
sentia que isso fosse assim…, era muito mais importante para as pessoas serem
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advogados, economistas, hoje vejo muita gente a querer ser jornalista; fascinados pela
profissão e pelas portas que ela abre».
Lembra-se também da reduzida presença de mulheres nas redacções portuguesas de há
trinta anos, e realça o seu próprio contributo. «No início era absolutamente impossível.
Eu lembro-me que quando surgiu a primeira mulher na redacção do Record… Fui eu
que a meti! … Bom! …; “como é que é possível, uma mulher!??…” Não havia essa
dimensão… do futebol ser também reportagem, entrevista, investigação… Uma série de
coisas… É como qualquer área de jornalismo. Como é que se fazia naquela altura? Era
ir à bola e fazia-se o relato, dizia-se que houve um golo, um fora de jogo…
Hoje há muitas [mulheres] e fui precisamente eu que abri essa via. Ainda hoje tenho
aqui na direcção do Correio da Manhã, a Filomena Martins que começou comigo nesse
tempo. Mais do que qualquer outro jornal desportivo, tínhamos mais mulheres,
chegámos a ter 6 ou 7 naquela altura, hoje sei que esse número até subiu, mas se
compararmos com A Bola ou com o meio desportivo… A Bola tinha uma pessoa que era
a Leonor Pinhão; não tinha mais ninguém, nós tínhamos 6, 7. Em termos de
percentagem, provavelmente seriam para aí uns 8 ou 10%, mas era muito naquele
tempo. Hoje em dia, as redacções dos jornais são, no mínimo, fifty-fifty. Até há mais
candidatas mulheres do que homens à profissão». Apesar da mudança, regista que o
equilíbrio ainda não chegou aos cargos dirigentes. «Estamos equiparado na redacção,
mas nos órgãos de chefia. Há [nalguns grupos] mas, estatisticamente, ainda se
encontram mais homens. Não sei explicar porquê, mas é um facto».
Mecanismos Identitários
Quando convidado a traçar um retrato do grupo profissional, que equipara à média do
país, é sobretudo crítico da formação e das motivações dos candidatos. «Acho que o
jornalismo reflecte as virtudes e os defeitos da sociedade portuguesa; não mais, nem
menos. Não é nenhum meio marginal à sociedade portuguesa no pior dos sentidos, nem
também um sector excelência. É um campo de actividade onde temos uma qualidade
média, que é a qualidade média que têm os juízes, professores… Temos coisas muito
boas, coisas muito más. Não me atrevo a dizer muito mais do que isso.
A formação já é muito melhor do que era, mas ainda não é o ideal. As redacções estão
hoje melhores, mas os cursos de comunicação social ainda deixam algo a desejar na
formação dos jovens. Enfim, ainda há algum amadorismo na construção de alguns
currículos, depois produzem pessoas interessadas e, obviamente, com alguns
instrumentos culturais, mas ainda desconhecedoras da realidade concreta do mercado, o
que não faz nenhum sentido. Fazia sentido que esses cursos preparassem as pessoas
teoricamente, mas que também as direccionassem para as coisas concretas da vida e do
exercício da profissão. Zero. Não acontece e portanto é um sector que hoje também
reúne muitos interesses, não é?
Gostaria de pensar que todos os jornalistas vêm para a profissão porque querem ser
jornalistas e veículos de satisfação da curiosidade das pessoas, mas não. Há gente que
vem porque quer ser assessor, quer fazer carreira, quer se aproximar de poderes
económicos e políticos, há isso tudo… Por isso é que eu lhe digo: tem coisas boas, tem
coisas más, mas sobretudo, no plano médio, acho que conserva muitas qualidades e
muitos defeitos da sociedade portuguesa».
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João Marcelino defende que a preocupação com a concorrência é comum aos membros
de qualquer redacção, e em todas as empresas. Sente-se tão jornalista quanto director do
Correio da Manhã, mas antes de responder, faz uma breve hesitação. «Não… 50/50. Eu
sou … Sinto-me um elemento da classe dos jornalistas, mas é evidente que todos nós
depois vestimos a pele da nossa empresa e acho que isso acontece no jornalismo como
numa empresa de sumos ou numa empresa qualquer. É absolutamente normal e até
desejável! Não concebo um jornalista que seja tão insípido e inodoro que não se
preocupe com os interesses que representa. Todos nós gostamos que o “nosso” jornal dê
as melhores notícias e que vença naquele dia a concorrência. Acho que esse sentimento
de vitória e de satisfação profissional é comum a qualquer sector. No jornalismo
também existe, felizmente. Não haveria a qualidade se todos nós não nos
preocupássemos com isso, não haveria excelência…».
Do público português tem uma opinião baseada nas audiências, que concretiza na
organização do seu jornal. «Há uma ligação mais forte, creio eu, entre os compradores
da imprensa – estejamos a falar de jornais generalistas, económicos, desportivos ou
revistas – que advém desse acto; que exprime confiança de pagar pela informação, não é
a mesma coisa que na rádio, na televisão e até na Internet. Há uma ligação mais forte
que também nos torna mais responsáveis, o que significa que, no dia em que não
estivermos à altura das expectativas que o nosso mercado deposita em nós, nós
podemos cair.
O público do jornalismo é um bocadinho heterogéneo; dos jornais, é a classe A, B, B1,
mas sobretudo a classe C. Acho que as elites não consomem tantos jornais como nós
gostaríamos de pensar, consomem informação pelos diversos meios, mas o grande
público dos jornais portugueses ainda vem da classe média, da classe C.
O público mudou; há mais oferta e mais gente a pagar “para”… No que diz respeito aos
jornais diários, acho que não houve tanta mudança, nem se assistiu ao crescimento que
seria desejável. Em Portugal, ainda há muito pouca gente a ler jornais. Nem o Correio
da Manhã, nem o Jornal de otícias, nenhum dos jornais que existe em Portugal vende
tanto quanto os maiores jornais locais da Andaluzia, da Galiza, País Basco, da
Catalunha… Não há!
Conquistou-se poucos leitores… Os jornais diários não cresceram tanto como eu estava
à espera. Em relação aos índices de há 20, 25 anos subiu bastante, mas nos últimos três
anos a circulação tem descido… Gostaria que, por exemplo, uma região como Portugal
tivesse vários jornais acima dos 100 mil diariamente, e não tem, só tem um. E o
Expresso – não sei se o Expresso vai continuar acima dos 100 mil, provavelmente não
vai. Ora, em Espanha, além da imprensa nacional…, [há] jornais regionais com 80, 90,
100 mil».
Questionado sobre se pensa no seu leitor para decidir entre duas notícias: «Não, isso
também não. O jornalismo tem regras e não penso no que o meu leitor gostaria de ler.
Tenho que dar determinada notícia factualmente… A organização integra esse
conhecimento. As pessoas às vezes não gostam muito da minha maneira de falar sobre a
profissão, mas eu vou-lhe dizer: isso é igualzinho num jornal e numa fábrica de sapatos;
tem de se saber um bocadinho do mercado e ir um pouco ao encontro das necessidades
do mercado. Obviamente que isso também passará pelo estilo do jornal, pelo tamanho
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das prosas, pelo espaço das fotografias, pela forma como nós confeccionamos a
informação».
Em sentido inverso, João Marcelino gostaria que o público do Correio da Manhã lhe
reconhecesse o perfil editorial; «a sua vocação para dar mais notícias do que para
veicular textos de opinião. Em relação a grandes discussões nacionais, obviamente que
não tenho qualquer dúvida acerca de onde nós nos situamos e há algumas matrizes, que
assumimos e que são exemplo da forma como tratamos tematicamente as coisas. Por
exemplo – eu nunca escondi isso – o Correio da Manhã é um jornal que assume a
matriz católica da sociedade portuguesa, quando olhamos para os assuntos.
Como director, obrigatoriamente tenho de pensar mais no público do que como
jornalista, mas, ao contrário do que algumas vezes os jornalistas gostam de pensar, não
há independência editorial sem independência económica, portanto os jornais têm de
vender! Eu penso muito nisso e penso em como se podem aumentar as vendas porque
gosto muito de ser independente. Tenho de perceber que, para além da informação que
acho útil dar e que acho que tem interesse dar, também tenho que perceber qual é a
informação que eu penso que, do lado de lá, as pessoas querem. Muitas vezes,
obviamente, também sou ajudado pelas pessoas que trabalham comigo».
No Correio da Manhã, atribui grande importância em corresponder à «realidade
portuguesa», atento às oportunidades de alargar horizontes. «Eu gostaria que ela
consumisse mais jornais, obviamente que sim, mas que se interessasse também com
problemáticas um bocadinho superiores e que nos ajudassem a evoluir. Agora, eu não
posso estar a gastar, por exemplo, muito espaço e muitas páginas com os problemas da
União Europeia – que eu considero importantes – quando eu sei que as pessoas aqui em
Portugal rejeitam e não compram jornais que abordam problemáticas europeias,
relações internacionais…
Gostava que isso evoluísse, mas vou fazendo o jornal para o mercado que tenho, e tanto
quanto possível vou introduzindo outras temáticas no meu jornal: ambiente, saúde,
tecnologia, a ciência, enfim, o caminho faz-se andando. Agora, digo também é que a
qualidade média dos jornais, hoje, é muito superior… Se for à Hemeroteca, dividir em
períodos de 5 em 5 anos e vasculhar os jornais, percebe isso claramente».
No começo de um conjunto de questões sobre a sua situação profissional e a relação
com a empresa e o grupo económico Cofina (proprietário dos vários meios em que
trabalhou; o desportivo Record, a revista semanal Sábado e o popular Correio da
Manhã que dirigia no momento da entrevista), João Marcelino considera-se «bem
pago» e com perspectivas de carreira.
«Não lhe vou dizer quanto. Vamos esclarecer isto: eu sinto-me bem pago… As pessoas
que estão hoje na direcção editorial, na comercial, na de marketing, os editores e alguns
jornalistas também são bem pagos. A profissão deu aí um grande pulo e hoje os níveis
de pagamento já são muito mais agradáveis e aliciantes do que eram há dez, quinze ou
vinte anos, nas empresas que são lucrativas… Agora, o panorama regional não é nada
famoso e nas empresas que não têm sucesso, o clima laboral degrada-se e isso às vezes
cria problemas graves. Ainda há pouco tempo fechou o Independente, antes disso
tinham fechado todos os vespertinos, O Século, que foi um grande jornal português
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também fechou há 20 anos, houve experiências que também não passaram da
adolescência…
Hoje, o Correio da Manhã é o maior jornal português e tem 25 anos…271! As coisas
mudam! Os media tornaram-se num negócio atractivo, a Cofina por exemplo é cotada
no PSI 20, na Bolsa de Lisboa também está a Media Capital e a Impresa do Dr.
Francisco Pinto Balsemão…. Isto era uma realidade impensável, os jornais estarem em
Bolsa há 20 anos, não fazia muito sentido. Os jornais eram qualquer coisa que…
Sobreviviam, mas não havia a dimensão económica nem esses progressos. Hoje existe».
O optimismo em relação à sua carreira é extensivo ao futuro do sector. «O exercício do
jornalismo continua a ser cada vez mais necessário e continua até a encontrar novos
canais para se desenvolver. Jornais gratuitos, a Internet, há pouco tempo as rádios locais
– foi há 10 anos, mas não foi há muito, – o panorama televisivo também está aí para
crescer no cabo e na televisão digital terrestre. É evidente que temos de encontrar novos
modelos de negócio porque os tradicionais podem não corresponder àquilo que é
preciso fazer – e nisso é preciso ter um certo cuidado –, mas, pessoalmente, sinto-me
muito optimista e acho que as novas gerações também se deviam sentir».
Os cinco anos seguintes ao momento da entrevista [2006] são perspectivados por João
Marcelino como de consolidação e aposta nas novas áreas de negócio. «Quero continuar
a fazer um jornal cada vez maior e mais profissional e que se possa também desenvolver
e agradar a novos públicos além dos que já tem, mas é óbvio que eu também desejo
fazer coisas novas na vida, por isso espero que o meu grupo faça para eu poder também
fazer. Fiz a Sábado, que lancei há dois anos e agora é um projecto autónomo. Espero
poder contribuir para mais novos projectos e diversificar outros do grupo na área da
imprensa e não só; na área sobretudo da comunicação. O grupo tem a imprensa, mas
pode um dia destes ter outras coisas. Sinto que posso e quero continuar a fazer coisas
novas. Foi isso que me levou a sair do Record, há cinco anos, continuo a gostar do
jornal, está aqui ao lado, mas saí porque estava a pensar fazer outras coisas e não
precisei de sair para as fazer. A Sábado fiz e não saí».
A relação com o grupo Cofina é encarada com confiança. «Com a hierarquia, como
deve calcular, tenho momentos melhores e piores. Numa empresa coexistem muitos
interesses e à volta de um órgão de comunicação social, … [há] o interesse editorial, o
interesse publicitário, o interesse do marketing e portanto esses interesses muitas vezes
conflituam no dia-a-dia». Um director «é pressionado em todo o lado; pelas pessoas
com quem trabalha, pelos seus jornalistas, pela sua Administração, pelos seus iguais,
pelos outros directores… Sou tão pressionado que me posso dar ao luxo de não ligar
nenhuma e de fazer o que eu quero! “O que eu quero”, não; aquilo que eu acho que é
melhor para a empresa e o que acho que corresponde melhor àquilo que os leitores
esperam de nós. Para mim, tentar ter este desejo cumprido é o fundamental da profissão.
Considero essa conflitualidade uma coisa normal e tenho excelentes relações para cima,
para o lado e para baixo. Como deve compreender, ser director de um jornal é exercer
um cargo de confiança também por parte da Administração e se um dia eu não tivesse
condições com certeza que… Ou eu não quereria continuar ou eles não quereriam que
eu continuasse. É o meio de um triângulo em que no vértice tem a redacção, os
1
O jornal diário Correio da Manhã, concebido pelo jornalista Vítor Direito, foi lançado a 19 de Março de 1979, pela
empresa Presselivre. < http://30anos.correiomanha.xl.pt/historia_cm.php > (Agosto de 2009).
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jornalistas, no vértice principal tem os leitores e no outro vértice tem a Administração e
os seus interesses; de querer rentabilizar o investimento e aí não há saída….».
Relações no Interior da Empresa
Quando questionado sobre se ao ser confrontado com pressões contraditórias, se sente
mais jornalista ou mais director, João Marcelino desvaloriza a diferença. «Ao final de
uns anos isso não é relevante. Estou habituado a lidar com isso portanto, para mim, é
absolutamente normal. Consigo perceber onde é que está a possibilidade de consenso
entre os diversos interesses, faço isso naturalmente. Às vezes pode haver um ou outro
assunto mais delicado, mas pronto, posso lidar bem e depressa com isso, tento
concentrar-me no essencial que é fazer jornalismo. Gosto de escrever, de participar nas
reuniões tanto quanto é possível, embora [para] essa parte mais diária tenho uma
direcção que trata… Lido muito bem com isso, não tenho nenhumas angústias. Todas as
minhas angústias fossem essas! (risos).
[Enquanto director] Estamos mais sujeitos (…) a pressões, mas isso faz parte! O que
também faz parte é saber resistir e muitas vezes percebo que não se resiste tão bem
quanto se deveria… É por isso que o jornal deve estudar o mercado e adaptar-se a ele. A
independência económica é fundamental para que possamos resistir às pressões e aos
poderes internos e externos que se abatem sobre nós… as pessoas defendem sempre os
seus interesses e nós temos de defender sobretudo os interesses do público se quisermos
ter um jornal que venda muito».
Em relação aos mais novos; colaboradores e estagiários, diz tentar manter-se disponível
e atento, sobretudo às motivações para o ofício. «Tento tratar toda a gente por tu. Hoje
não tenho uma relação como quando era chefe de redacção e em que tinha uma ligação
mais próxima com todos os estagiários. Tinha tempo para ensinar. Hoje já não tenho
tanto tempo e esse trabalho é feito pelas pessoas que estão abaixo de mim. Agora, a
minha porta está sempre aberta e as pessoas sabem que quando têm qualquer problema
– pessoal ou profissional – sabem que podem entrar e eu oiço.
Nós temos pelo menos um [estagiário] em cada secção, às tantas estão sempre a rodar, e
alguns deles ficam; os melhores… E eu peço sempre que essa pessoa, que normalmente
tem uma licenciatura, às vezes até com um pedido de estágio, tenha um
acompanhamento sistemático e bem feito. Que se perca tempo com as pessoas, que se
ensine, que se corrijam erros, que o direccione logo para aquilo que é a nossa realidade
e isso tem de ser bem feito. Nalguns casos parece-me que sim, porque nós conseguimos
também fazer um bom aproveitamento.
Para mim, é a principal forma de recrutamento. Interessa-me muito mais recrutar na
base, na escola. Isto é uma prática minha de há muitos anos; estou a falar de pessoas,
com ambição: que querem comprar casa, automóvel, casar, que querem conduzir a sua
vida e não podem fazer isso com maledicência ou com coisas menores. Tenho
presenciado isso, e portanto, isso para mim, é muito bom».
Entre os candidatos a jornalistas, identifica alguns interesses alheios ao jornalismo. «E
quando encontro, estigmatizo. Tento que essas pessoas na minha organização, não
estejam muito tempo». Solicitado a concretizar, relaciona essas motivações com a
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assessoria de comunicação na área política. «Aproximações ao poder… Às vezes são os
próprios jornalistas que só estão aqui porque é isso… É uma coisa que é fácil…
Neste momento, tenho uma pessoa que foi convocada para ser assessor de um ministro e
veio-me pedir – como a Lei obriga – eu disse-lhe que gostava que ela não saísse, mas se
saísse não havia de a dispensar… Se fosse obrigado a cumprir a Lei, cumpriria porque é
a minha obrigação, mas se ela ia dar esse passo, deveria dar, mas não para voltar… Não
acho nada criminoso, atenção! Porque o jornalismo também precisa de ter interlocutores
do outro lado e eu conheço bons assessores! Que fazem, obviamente, o trabalho dos
seus interesses, mas que fazem um trabalho, que devidamente filtrado, é útil para as
redacções dos jornais.
Acho que deve haver um período de nojo na transição “de um para o outro lado”. Não
pode ser tão fácil, porque são interesses contraditórios, não é? Eu [jornalista] sou contra
o poder e procuro saber coisas incómodas, e o poder procura divulgar coisas que acha
boas e tenta esconder as coisas que não quer ver publicadas. Isto desenvolve uma série
de mecanismos e de práticas que chocam. Portanto, não me parece que seja bom, as
pessoas andarem de um lado para o outro».
Alargando a esfera dos relacionamentos às fontes, o então director do Correio da
Manhã destaca as áreas da “economia” e do “desporto” como a origem das pressões
mais activas e intensas. «Obviamente que o jornalismo económico é mais intermediado,
OK? O jornalismo político também já começa a ser, mas não é tanto. O jornalismo
desportivo também já é um bocadinho demasiado intermediado, mas, por exemplo,
felizmente os assuntos de Sociedade, das polícias, tudo isso é uma coisa mais directa.
Também nos outros sectores nós tentamos cortar essas amarras, fugir a isso, fugir à
norma de actuação que nos querem impor, portanto estou sujeito às minhas regras.
Quem está nessa colheita primária da informação são os jornalistas e não é tanto o
director. Eu às vezes também tenho de estar, quando tenho dúvidas sobre alguma
notícia, também faço os meus contactos.
Pressões/ameaças, isso nunca recebi, felizmente. Agora, pressões sistemáticas no
sentido de “sensibilizar” – que é uma palavra muito bonita – é claro que sim. Oiço as
pessoas, tenho a obrigação de as ouvir e a obrigação de publicar aquilo que eu entendo
que deve ser publicado. Não ligo nenhuma a essas coisas das pressões… São pressões
que todos nós recebemos! Eu sei que às vezes as pessoas que estão de fora quando
falam em pressões, estão a falar em ameaças, enfim, de coisas muito turvas e muito
belicosas. Bem, também há disso! Mas as pressões que há mais nos jornais, são as
pressões dos interesses; pessoas que obviamente gostariam que o seu nome não fosse
publicado, ou que não se chamasse a atenção para isso ou tentar dourar, tentar que o seu
ponto de vista seja melhor compreendido pelo jornalista “x” e isso leva a que a
reportagem reflicta o caminho “y”… Portanto, isso eu acho absolutamente normal».
Solicitado a concretizar: «tive tantas no desportivo como tive agora. O desportivo é um
meio muito agressivo, sem dúvida, mas fui sempre independente. No jornalismo
desportivo tive várias, fortes. Tive que cortar relações com clubes, mas vivia bem com
isso porque a minha relação é com o leitor e se tinha de dar determinada notícia
desagradável para um Clube, eu dava. A seguir eles faziam o que tinham a fazer e a
gente fazia aquilo que tinha a fazer. Talvez hoje em dia, os interesses económicos
consubstanciem as pressões mais continuadas, mais frequentes. Um exemplo concreto –
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se uma empresa de águas, de repente tem um azar e uma água provoca um problema a
uma pessoa, é óbvio que ela tem tendência a explicar como é que aquilo aconteceu e nós
temos de dar a notícia; de qualquer forma a pessoa morreu, não podemos dizer que ela
não morreu. Por exemplo, a Sonae lança uma OPA sobre a PT, portanto as duas
empresas; uma a querer conquistar e a outra a defender-se. Portanto, isso pressupõe…,
cada uma tem os seus advogados, a sua empresa de comunicação… Gera-se aqui um
universo noticioso que nós temos de saber gerir, mas temos de saber gerir sem dramas.
Eu acho absolutamente normal que isso aconteça! Sobretudo se os jornalistas cultivarem
a independência em relação às fontes e em relação à frequência de certos meios, as
coisas tornam-se muito mais fáceis».
Para a abordagem jornalística da área política, preconiza a mesma distância de
segurança: «Cumpro, no dia-a-dia, a mesma linha de acção com os partidos políticos,
com os Governos, com as grandes empresas, pequenas e médias. Como toda a gente,
tenho ouvidos para ouvir e se calhar muitas vezes sou sensível a alguns argumentos que
me dão. Já tive, digamos, pessoas a falar com uma voz mais grossa, mas eu, quando é
assim, também faço o mesmo, portanto, as pessoas já sabem que eu tenho mau
feitio…».
João Marcelino defende também que a receptividade a pressões depende muito dos
jornalistas. «Muitas vezes os jornalistas são pressionáveis porque há uma relação muito
próxima e perversa; de proximidade com as fontes. Eu tento manter uma certa distância.
Se nós mantivermos uma certa distância, se nos mantivermos independentes, esse
contacto também se torna mais difícil. Se não dermos visibilidade às nossas relações
pessoais e institucionais também não fica caminho aberto para isso.
Muitas vezes os jornalistas não sabem disciplinar as relações e, às duas por três, aquilo
que julgam que é bom, torna-se muito mau. A promiscuidade nunca é boa. Tento não
estender as relações... Não interligar as relações profissionais com as pessoais, nem fora
nem dentro. Acho que este é um conselho que eu daria à maior parte dos jornalistas e
por maioria de razão a todos aqueles que tivessem cargos de chefia».
Relações com a Técnica e as Tecnologias
A maior revolução que João Marcelino identifica no universo do jornalismo é ligada às
novas tecnologias. O seu maior reconhecimento é para o telemóvel. «Posso fazer um
pequeno texto, tenho acesso aos meus e-mails no meu telemóvel, este telemóvel serveme para tudo e mais alguma coisa! Agora, repare, eu ainda agora fiz uma viagem de
automóvel entre Paris e Pequim, e chegava a parar à beira da estrada para descansar e
beber uma água, e ligava-me ao computador com a minha placa 3G, estava ligado e
navegava dentro da edição do jornal…».
Quanto à Internet; «não mudou o jornal, mudou a vida das pessoas. Como fonte, como
divertimento, a vida. Hoje podemos querer saber qualquer coisa; sobre um sítio onde
vamos, sobre um hotel que podemos descobrir… É a Internet! É uma ferramenta de
trabalho. É óbvio que também na pesquisa de informação, a Internet é fundamental.
Nós fazemos entrevistas por e-mail com muita gente. Aliás pessoas que não aceitariam
fazê-las de outra forma; nacionais e internacionais… Há pessoas que hoje em dia não
respondem de outra forma para nós é uma forma absolutamente válida, e até é melhor,
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porque ali não há qualquer hipótese da pessoa dizer que não disse porque está ali. Isso
também às vezes defende as pessoas, e eu aceito isso. Aceitamos. Agora, anonimato,
não. O anonimato serve como fonte de notícias. E quando falo na Internet, falo nos
blogues e nos blogues circula muita informação…
Aos meios mantidos por cidadãos anónimos, atribui o valor de fonte de informação.
«Hoje a pesquisa de informação deve ser diversificada, é preciso olhar para todo o lado
porque as notícias estão em todo o lado». Quanto ao estatuto dos autores de blogues:
«são “para-jornalistas”. Não têm carteira profissional, não têm a obrigação de seguir as
regras deontológicas, não estão a confrontar a opinião de diversas fontes para dar uma
notícia como um jornalista, mas é um produtor de informação! Edita as suas opiniões e
pode editar notícias de coisas relativas à sua área de proximidade, à sua terra, portanto
todos nós somos emissores de informação e muitas vezes, nesses meios, encontram-se
coisas muito interessantes. Encontram-se colaboradores, pessoas dispostas a colaborar
com os órgãos de informação…».
Ética e Deontologia
Deixou de ser sindicalizado no âmbito do caso off the record, era então director do
Record. «O Conselho Deontológico do Sindicato condenou-me, enfim, é uma decisão
final, que eu não discuto, embora discorde dela, mas condenou-nos sem nos ouvir. Foi
no mesmo dia; às 8 da manhã o Presidente Conselho Deontológico já estava a falar nas
rádios, foi ao Porto falar com o Sr. Pinto da Costa e com o António Oliveira e, a nós, até
hoje, nunca mais nos ouviu.
Nesse dia, eu, o João Manha e muitos jornalistas… o José Manuel Fernandes, que no
outro dia me contou, que nesse mesmo dia imediatamente saiu, portanto, houve muita
gente que saiu.
Nós não fomos ouvidos e eu a partir daí compreendi que já não tinha interesse em estar
sindicalizado. O Sindicato tem uma ligação excessiva ao Partido Comunista, na minha
opinião é um órgão do Partido Comunista, mas podia ser o PSD ou o PS…; é uma
extensão de um partido político, que nem no aspecto deontológico é capaz de ser isento.
Não fazia sentido nenhum eu lá estar, e nem preciso deles para passar a carteira e saí.
Saí há dez anos, e nem eu faço lá falta, nem voltarei enquanto aquela gente lá estiver».
Acredita haver hoje «mais profissionalismo e mais qualidade» no jornalismo português
do que havia dez ou 15 anos, mas «está muitas vezes pior do que aquilo que nós
achávamos que já devia estar. Sobretudo, de vez em quando há episódios que, enfim,
aos verdadeiros jornalistas profissionais, nos constrangem.Há pessoas que dignificam a
profissão e há pessoas que não dignificam a profissão. Talvez num determinado
momento, [os jornalistas] tivessem sido levados a pensar que tudo lhes era admitido
pelo poder que advinha do exercício da profissão. Os jornalistas não são protagonistas,
são intermediários, e têm que se submeter a regras deontológicas muito claras e precisas
se querem continuar a ser jornalistas».
Crítico do Sindicato dos Jornalistas, defende uma Ordem («faz falta uma autoregulação»), com poderes de tutela deontológica. «Acho que faria todo o sentido. Em
Portugal, não é o Sindicato – que tem competências principalmente na área do trabalho
–, que está vocacionado para exercer uma tutela deontológica sobre a profissão. Acho
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que teríamos tudo a ganhar se houvesse um organismo que também disciplinasse a esse
nível do exercício da profissão. Não existe, na minha opinião.
Faz todo o sentido que haja um sindicato, deve haver porque nem todos os jornais são
nacionais, nem são ricos e há sempre que negociar contratos colectivos e coisas
mínimas, mas, para mim, como jornalista, aquilo de que sinto mais falta é que alguém
de dentro da classe guie deontologicamente alguns comportamentos. Não gosto muito
de intervenções exteriores; acho que as deveríamos limitar ao máximo; sejam elas da
antiga Alta Autoridade para a Comunicação Social ou da Entidade Reguladora.
Essa auto-regulação, a ter diversos componentes, uma delas passaria pela Ordem dos
Jornalistas. Agora, é complicado, não é? … Como em todas as profissões, somos muito
desconfiados. Na prática, se nós olharmos para as outras Ordens que existem, elas não
funcionam tão bem. Se você quiser apresentar queixa de um advogado e se você tiver
razão em quanto tempo é que, enfim, consegue…? São anos… Mas de qualquer forma
fazia sentido. Era mais uma baliza e mais um factor dissuasor ao poder dos jornalistas,
que, quanto a mim, quanto mais limitado estiver, melhor para nós, até».
Acredita que «o mundo ter mudado muito», tornou os Conselhos de Redacção
ultrapassados: «acho que há instrumentos muito mais capazes num jornal normal com
um funcionamento democrático como o nosso… Dou muito mais importância a
reuniões de editores, que são diárias… No Conselho de Redacção não são delegados
sindicais! Os delegados sindicais tratam de assuntos de direitos laborais, o Conselho de
Redacção tendia a debruçar-se sobre assuntos do jornal. Nós temos duas reuniões
diárias de editores e mais reuniões dentro de cada secção.
Portanto, uma coisa é o Conselho de Redacção, aparecendo como emanação logo a
seguir ao 25 de Abril, num tempo em que não se discutia nada, nos tempos de hoje há
imensas reuniões, há inúmeros fóruns, muitos momentos em que se discutem as coisas.
Estou-lhe a dizer: todos os dias, nós temos reuniões em que estão 10,12,14,15 editores!
Para lançar o jornal, para fazer a capa… Tudo isso se passa na redacção… A discussão
sobre o jornal, sobre os assuntos de capa, etc., essa é feita no dia-a-dia. Portanto, o papel
do Conselho de Redacção continua a ter importância, mas é menos necessário porque há
outros órgãos que também são importantes…».
Sem nunca ter invocado ou ter recebido recusas ao abrigo da cláusula de consciência,
João Marcelino admite que a aceitaria. «Cada pessoa é uma pessoa e acho que pode
haver incompatibilidades religiosas, comportamentais ou outras e não me custa nada. Se
algum dia alguém a invocasse, só iria ver se era honesto ou não».
Crítico de actividades militantes dos jornalistas, pelo risco de dependência, informa que
o Correio da Manhã não se pronuncia sobre a participação em abaixo-assinados e
admite que os direitos de cidadania se sobrepõem a estas reservas.
«Todas as pessoas têm direitos; associativos, no âmbito político, no âmbito desportista,
em todos os âmbitos! Acho é que o jornalista deve fazer um esforço para se manter o
mais independente possível, de todas as forças políticas, religiosas ou sociais. Não quer
dizer que deixe de ter convicções! Só que pode abdicar de determinado actos que depois
lhe minam a autoridade e a independência quando têm que se pronunciar sobre as
coisas. Todas as pessoas são preconceituosas e portanto um indivíduo que se assume
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como militante de um determinado partido, depois quando está a escrever um artigo é
sempre visto como militante daquele partido. Nem o jornal, nem esse jornalista ganham
com isso, portanto eu não aconselho que as pessoas carimbem muito os logótipos na
testa, mas acho sempre que isso deve fazer parte da consciência de cada um. Eu nunca
assinaria um abaixo-assinado, mas se um jornalista meu assinar num âmbito duma junta
de freguesia, não vejo que venha daí mal algum ao mundo».
Desaconselha também a acumulação de cargos profissionais: «Não me posso pronunciar
contra, quer dizer, a Constituição da República Portuguesa e o exercício da cidadania
livre sobrepõem-se àquilo que eu acho que seria do interesse da profissão, portanto, as
pessoas devem pesar isso e se acharem que isso faz sentido, não posso… A única coisa
que o jornal propõe às pessoas sempre é um regime de exclusividade laboral que diz que
ao exercer esta profissão, não pode exercer outra».
Lazer e Consumos Culturais
A confirmar-se como um dos entrevistados mais contidos, João Marcelino é prudente ao
falar dos seus consumos culturais. Começando pelos jornais e revistas:
«Tenho que ler todos. Portugueses, estrangeiros, obviamente que sim, mas nos
estrangeiros há uns que se lêem mais e outros que se lêem menos, não é? Pessoalmente
gosto muito do Sunday Times, do La República e do El Mundo; são três grandes jornais.
Em Portugal, tenho de ler todos. Não há nenhum que eu não leia. … Seria deselegante
dizer-lhe… Há aqueles que eu compro, logicamente… Não vou estar a dizer isso…».
Assegura que, desde que esteja em Portugal, compra sempre os meios em que trabalhou,
agora todos do grupo Cofina. «Compro religiosamente o Correio da Manhã e a Sábado,
e ainda hoje compro o Record sempre que posso. Às vezes não vale a pena, porque não
tenho tempo para ler, mas ao fim de semana, compro. Acho que não há problema dizer;
compro o Público, sobretudo ao fim de semana e o Expresso. Depois, depende, se vejo
alguma coisa que me interesse mais…».
Para além de media jornalísticos, lê sobretudo livros técnicos e ignora a piada da
entrevistadora que lhe pergunta se está a ler os livros empilhados nas três colunas de
cerca meio metro, em cima da sua secretária.
«Leio coisas ligadas à profissão; que me ajudem a compreender melhor o mundo,
ligadas à economia (quando anda o problema do défice no ar tenho que me instruir
mais), às vezes tenho que ler sobre legislação ligada aos media. Leio coisas mais por
necessidade do que por gosto. Quando é por gosto… gosto muito de reler os clássicos
portugueses e sobretudo romances históricos, que vão para além da relação homemmulher. Hoje encontro-me a ler muito mais coisas de que necessito e às vezes não gosto.
E leio mais ficção. A poesia ficou-me pelo liceu, não sou muito consumidor».
Sobretudo espectador de concertos ao vivo, revela não ter ido ao teatro, mas ter assistido
a uma ópera e visto um filme no cinema nas duas semanas anteriores à entrevista.
«Vejo muito cinema em casa. Quer dizer, a minha mulher gosta muito de cinema.
Depois vejo outros espectáculos; muitos concertos, espectáculos sobretudo musicais.
Sempre que vem cá um grupo, por gosto mesmo ou saudosismo geracional, vou ver. Já
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fui ver os Rolling Stones a Coimbra, ao Pavilhão Atlântico, ali perto de minha casa…
No cinema, como há a possibilidade de vermos em casa, vou muito menos do que ia há
vinte anos, mas gosto muito. Ver cinema no cinema não é a mesma coisa que ver em
casa e eu procuro… Às vezes consigo ir uma vez por mês».
Consome mais televisão por cabo. «Hoje em dia a generalista não tem nada para ver a
não ser futebol e o telejornal. Vejo o AXN, a Sport TV, a SIC Notícias, sobretudo estes
três, e depois a BBC e a CNN. Se houver um grande acontecimento internacional tento
procurar um desses dois, vou alternando… Apesar de tudo, vejo muito o Canal História
e de geografia [National Geographic Channel]…, gosto muito de ver documentários. O
canal que eu gostaria de ter em Portugal era uma súmula entre aquilo que é a SIC
Notícias, o AXN e o desporto».
Nos tempos livres, frequenta o ginásio e pertence a um clube desportivo, que prefere
não identificar. «Tenho, mas não tenho de o dizer (risos). Não tenho vida desse clube.
Mesmo no ginásio o que faço é natação e depois um bocadinho de passadeira…
Antigamente fazia muito mais, jogava futebol, futebol de salão, gostava imenso de fazer
desporto».
Ainda que menos viajado desde que saiu dos jornais desportivos, João Marcelino faz
várias viagens por ano. No ano em que foi realizada a entrevista (de Campeonato
Mundial de Futebol) e que o entrevistado considera especial: «além das férias, fiz um
cruzeiro, estive um mês fora a apanhar sol, agora estive um mês… tive a oportunidade
de fazer, de guiar de Paris a Pequim… Uma coisa pessoal. Fui também à Alemanha por
uma questão apenas de nostalgia, ver a meia-final de Portugal no Campeonato do
Mundo. Depois, vou muitas vezes a Espanha, gosto muito da cultura catalã, vou muitas
vezes a Barcelona, a Madrid, a Sevilha… Agora, estou aqui a falar consigo, mas
provavelmente daqui a bocado vou-me embora para outro lado… passear…».
Quanto à sua competência noutros idiomas: «falo todas as línguas sem falar muito bem.
Sou capaz de falar em espanhol e inglês, sobretudo. Italiano e francês, compreendo e
julgo que me consigo desenrascar com algumas palavras…».
Percurso Ideológico
Sobre a eventual actualidade da distinção “esquerda” e “direita”, João Marcelino revela
que: «o meu percurso ideológico é da “esquerda” para a “direita”, como muita gente.
“Direita” que não considero “direita”; em Portugal é mais o centro onde está tanta
gente… O CDS não tem representação e o PSD não é um partido de “direita”, na minha
opinião. Se olhar para as pessoas que estão nos partidos, vê que o António Guterres
poderia ter sido presidente do PSD; até é católico, porque não!? O Durão Barroso, que
vem da “esquerda”, do MRPP, não podia ter parado no PS? Claro que podia! A ala
“esquerda” do PS, ou seja, Manuel Alegre, Ferro Rodrigues, obviamente essas pessoas
não podiam estar no PSD, assim como o Santana Lopes e mais uma ou duas pessoas
também não podiam estar no PS, mas o grande grosso do PS e do PSD podia estar num
sítio ou noutro.
Isto significa que a diferença ideológica e as posições relativas ao Estado… é tudo
muito de pormenor. Não acho que haja grandes diferenças substantivas na forma como
o PS e o PSD abordam algumas questões. O realismo do Engenheiro José Sócrates tem
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muito pouco a ver com uma governação ideologicamente de esquerda. Se exceptuarmos
as questões relativas ao financiamento da segurança social, acho que podia ter
perfeitamente alguma ligação ao PSD».
Quando o entrevistado se identificava mais com as opções da “esquerda”, recorda que
«era jovem, apanhei o 25 de Abril, puxou-me o coração para as grandes necessidades de
mudança social, depois percebi a utopia e tornei-me muito mais… Normalmente, as
pessoas fazem todas esse percurso; você olha para a política portuguesa – e vê muito
pouca gente a fazer o percurso contrário. E porquê? Porque a generosidade da juventude
tem a ver com os princípios, a maturidade da vida tem a ver com a realidade.
Apanhei o 25 de Abril com 15 anos; na escola, com as reuniões, as assembleias-gerais,
os plenários… De um lado a UEC, o MRPP… Nunca me filiei. Identificava-me mais
com as bandeiras de “esquerda”, sobretudo as do MRPP, utopias… Via o mundo num
plano e, de repente, abriram-se todas aquelas utopias da Rússia, da China; Lenine,
Estaline e Mao Tsé-Tung. Isso são princípios bons, no plano dos princípios; da
distribuição da riqueza, na altura eu era muito sensível a isso, até porque a minha
família… Depois fui crescendo e percebi que aquilo… Hoje, não tenho dúvidas
nenhumas de que essa utopia não trouxe nada de bom ao mundo, antes pelo contrário;
ajudou a retardar alguns passos da evolução do século XX. Mas acho normal que todos
os jovens façam esse percurso».
Das opções ideológicas ao voto, João Marcelino conta ter votado em Mário Soares nas
Eleições Presidenciais de 1986. «Ainda achava que o Professor Freitas do Amaral podia
ser um perigo para a democracia portuguesa. Hoje vejo que não fazia sentido… São
dois democratas, mas na altura vivia-se muito aquela coisa, aquela gente que andava à
volta do Professor Freitas do Amaral, não me inspirava muita confiança… Não
gostando muito, pessoalmente, do Dr. Mário Soares, votei nele porque pensava que era
o melhor para o país. Mas não foi a minha primeira votação».
Sem querer dizer se votou em Salgado Zenha ou em Maria de Lurdes Pintassilgo, recusa
também identificar quais foram as suas opções nas Presidenciais de 1996 e de 2006.
«Não, mas eu tenho uma grande simpatia pelo Dr. Jorge Sampaio. Acho que é um
português absolutamente notável e não sei se votei nele se não (risos), mas posso dizer
que se não votei gostava de ter votado. Digo isso, sobretudo depois do último mandato,
pelo conhecimento pessoal que tive dele naquela altura; uma pessoa fantástica; muito
preocupada com o País, com os problemas do País, com o desenvolvimento, a
competitividade e uma série de assuntos económicos, sociais e políticos, que o
distinguem. Tentou não fazer política à porta fechada e acho pena. Tenho a certeza que
foi o melhor chefe de Estado da democracia portuguesa. Ele e o General Ramalho Eanes
na situação difícil em que teve de gerir a Presidência».
Interessado na «questão ideológica», acha é que «neste momento, é absolutamente
essencial o regresso ao pragmatismo. Não há muito espaço para estarmos a debater –
enquanto não melhorar o estado da economia portuguesa, não melhorarem as condições
de vida das pessoas, não faz muito sentido estar a discutir essas questões que muitas
vezes só atrasam. Neste momento, temos de discutir “competitividade” e
“desenvolvimento”».
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Considera urgente o desenvolvimento económico e o ambiente. «Faz muito sentido a
sensibilização das pessoas para as questões ambientais, para o planeta que temos…
Quando fiz a minha viagem à China, fiquei completamente horrorizado com aquilo que
é o desenvolvimento chinês… É evidente que crescem a dois dígitos, toda a gente abre a
boca de espanto… Quando fui, só via poluição, só via tectos sobre as cidades, chaminés
a céu aberto, quer dizer, está ali um problema gravíssimo a nível mundial. Não é por
acaso que a China e a Índia ficaram fora do protocolo de Quioto… Também os Estados
Unidos, por outras razões… Essa batalha do ambiente e da qualidade de vida… A
“esquerda” e a “direita” responsáveis têm de ter preocupações sociais: combate à
pobreza, à exclusão… as questões da qualidade de vida e do ambiente são neste
momento os problemas fundamentais a nível planetário, mundial».
Confissão Religiosa
Quanto ao papel da Igreja no mundo, sente-se «próximo da forma como os católicos
vêem o mundo», é baptizado, fez a catequese e considera uma das suas
«incongruências» só ter casado pelo registo civil. «Sinto-me católico, mas a verdade é
que não vou à missa, a não ser em funerais e baptizados, mas acredito em Deus… e
sobretudo tenho muito respeito pela Igreja, tirando os desvios comportamentais de
alguns ministros, acho que a mensagem tem muito valor e um grande papel no mundo.
A mensagem da Igreja faz todo o sentido no mundo de hoje».
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