Cifose e Lordose Congênitas - Dr. Alexandre Sadao Iutaka

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Cifose e Lordose Congênitas - Dr. Alexandre Sadao Iutaka
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Cifose e Lordose Congênitas
Alexandre Sadao Iutaka
Marcelo Loquette Damasceno
Guilherme Pereira Corrêa Meyer
sumário
Cifose congênita
Introdução
Diagnóstico diferencial
Classificação
História natural
Tratamento conservador
Tratamento cirúrgico
Lordose congênita
Introdução
Tratamento conservador
Tratamento cirúrgico
Conduta no DOT/FMUSP
Referências bibliográficas
Cifose congênita
Introdução
A coluna cervical apresenta 4 curvaturas no plano sagital: lordose cervical, cifose torácica, lordose lombar e cifose sacrococcígea, todas balanceadas, e sua presença tem
o objetivo de aumentar a resistência mecânica da co-luna
vertebral, incrementando sua capacidade de absorção de
choques e também sua flexibilidade1 (Figura 1).
A cifose congênita é definida como deformidade consequente à presença de uma ou mais vértebras anômalas,
com inclinação da coluna vertebral em sentido anteroposterior, determinando uma deformidade angular com
convexidade posterior2; geralmente apresenta-se como
uma curva estruturada, rígida, limitada à área do defeito
ósseo. Apesar de afecção rara, é a deformidade da coluna
vertebral que mais causa paraplegia3, excluídas as causas
infecciosas (Figura 2).
Sua primeira descrição, datada de 1844, é atribuída a Von Rokitansky4, patologista austríaco. Em 1938,
Lomberd e Le Genissel descreveram o primeiro caso de
paraplegia resultante de compressão medular por cifose
congênita, demonstrada por mielografia5.
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As deformidades congênitas da coluna vertebral
ocorrem no embrião, em torno da 5 a ou 6 a semana,
quando as estruturas anatômicas da coluna se formam
no mesênquima6. Nessa fase, podem ocorrer falhas de
formação de uma ou mais vértebras, bem como falhas
de segmentação, sendo a primeira mais comum. A falha pode ser puramente anterior, resultando em cifose,
ou mais comumente anterolateral com hemivértebra no
canto posterior, resultando em cifoescoliose.
Geralmente, a cifose causada por falha de formação
apresenta pior prognóstico, pois sua progressão aumenta
o ângulo da deformidade, tensionando a medula espinal,
com risco de paraplegia. Esse risco torna-se acentuado
no segmento torácico alto, região de circulação colateral medular mais pobre7. Cifose decorrente de falhas de
segmentação é menos comum e frequentemente acarreta
deformidades localizadas, com pequeno risco de paraplegia (Figura 3).
Anomalias como malformações dos arcos costais,
cardiovasculares8, renais, neurológicas, gastrintestinais
e das extremidades estão presentes.
Diagnóstico diferencial
Doença de Scheuermann, espondilite anquilosante,
tuberculose vertebral, sequela de laminectomia, trauma,
tumores e neurofibromatose são afecções que acarretam
cifose patológica.
O’Brien9 descreveu etiologia infecciosa, causada principalmente por Staphylococcus aureus, que se aloja entre o
espaço discal, e irregularidades da placa terminal.
Síndromes de Goldenhar, Prader-Willi, Jarcho-Levin
e Morquio são associadas com cifose congênita7,10.
Classificação
Van Schrick11, em 1932, classificou a ocorrência de
cifose congênita em dois grupos: com falha de formação
e com falha de segmentação. Em 1973, Winter12 utilizou-se da classificação de Van Schrick para formular
uma nova classificação:
Tipo I: falha de formação do corpo vertebral.
g
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51 Cifose e Lordose Congênitas
Vista anterior
Vista lateral
esquerda
Atlas (C1)
289
Vista lateral
posterior
Atlas (C1)
Áxis (C2)
Áxis (C2)
C7
Vértebras
cervicais
C7
T1
T1
Vértebras
torácicas
T12
T12
L1
L1
Vértebras
lombares
L5
L5
Sacro (S1-5)
Sacro (S1-5)
Sacro
(S1-5)
Cóccix
g
Cóccix
A
g
Cóccix
Fi­gu­ra 1. C
oluna vertebral.
B
Fi­gu­ra 2. A: coluna vertebral normal. B: hipercifose torácica.
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Clínica ortopédica g Ortopedia Pediátrica
Tipo II: falha de segmentação vertebral.
Tipo III: com deformidades mistas.
Mais tarde, McMaster7 adicionou o tipo IV, designando as anomalias não classificáveis.
Os pacientes com falha de formação podem apresentar defeitos parciais ou totais de formação vertebral.
A partir dessa observação, o tipo I foi subdividido em
quatro subgrupos:
Vértebra no quadrante posterior (aplasia anterior
e unilateral).
Hemivértebra posterior (aplasia anterior).
Vértebra em borboleta (fissura sagital, com aplasia
anterior e mediana).
Vértebra com hipoplasia anterior (Figura 4).
g
g
g
g
g
Os elementos posteriores, constituídos de processos
espinosos e pedículos, encontram-se sem alterações estruturais, com crescimento e desenvolvimento normais.
Dessa forma, com o crescimento vertebral diminuído na
porção anterior da vértebra, ocorre a deformidade angular em cifose. Os locais mais acometidos pela falha de
formação são sobretudo o terço médio da coluna torácica
e a transição toracolombar.
Nos casos de cifose congênita em que há falha de
segmentação, a coluna anterior de duas ou mais vértebras adjacentes são fundidas, apresentando-se como uma
barra óssea, sendo sua maior incidência na transição toracolombar.
g
História natural
A
g
B
Fi­gu­ra 3. R
adiografia (A) e ressonância magnética (B) de paciente
com falha de segmentação anterior, acarretando cifose
lombar.
Embora as malformações vertebrais estejam presentes antes mesmo do nascimento, na maioria das vezes as
deformidades clínicas não se mostram evidentes antes do
estirão de crescimento do adolescente.
A maior incidência é observada no sexo feminino12-14;
no que diz respeito aos defeitos congênitos, observa-se
predominância do tipo I (cerca de 2/3 a 3/4 do total, segundo a literatura3,12,14), seguido pelos tipos II e III.
A deformidade do tipo I progride em média de 3 a 7°
por ano, na infância15, enquanto pode alcançar até 10° de
crescimento da deformidade por ano, durante o estirão
de crescimento.
Os pacientes do tipo II apresentam uma taxa de progressão mais lenta, em virtude do efeito da epifisiodese
anterior, comportando-se como uma barra não segmentada, progredindo cerca de 1° por ano antes dos 10 anos
TIPO 2
TIPO 1
Falhas na formação do corpo vertebral
Aplasia anterior e unilateral
Aplasia anterior
g
Falhas na segmentação
do corpo vertebral
Aplasia anterior
Completa
Aplasia anterior e mediana
Parcial
TIPO 3
Deformidades mistas
Barra anterolateral
Fi­gu­ra 4. C
lassificação de cifose congênita.
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de idade, aumentando para 1,5° durante o estirão de
crescimento7.
A cifose congênita do tipo III geralmente apresenta taxa de progressão rápida, produzindo deformidades
mais graves, com acometimento no plano coronal e sagital combinadas, resultando em cifoescoliose.
Tratamento conservador
Não há espaço para tratamento conservador na cifose
congênita, pois sua história natural indica universalmente
um mau prognóstico16.
O emprego de órteses, braces ou coletes diminui
discretamente a taxa de progressão da cifose, e pode inclusive causar deformidade da caixa torácica, quando
empregado na infância17.
Tratamento cirúrgico
A tentativa de correção por meio de tração em halo
craniano apresenta uma alta incidência de paraplegia,
pois como o ápice da cifose é rígido e o cordão espinal
encontra-se tensionado nesse local, a tração medular
contra o osso apical resulta em déficit neurológico. Assim, não há lugar para a tração no tratamento da cifose
congênita.
Como premissa de tratamento, é fundamental o conhecimento da história natural da cifose congênita: o
tratamento cirúrgico dependerá da idade, tipo de cifose,
magnitude da deformidade e status neurológico do paciente. Pacientes que apresentam déficit neurológico em
virtude de compressão medular de qualquer origem devem, obrigatoriamente, ser tratados com descompressão
anterior seguida de artrodese anterior e posterior.
Tipo I (falha de formação)
Artrodese posterior precoce, com extensão para um
nível cranial e caudal normal à área da anomalia, é o procedimento de escolha para tratamento de pacientes com
menos de 3 anos de idade, com cifose de até 55 a 60°. Isso
garante contenção do crescimento da convexidade, com
a correção obtida por meio da parada do crescimento
posterior e continuação do crescimento anterior. No pósoperatório, o paciente deve ser imobilizado em aparelho
gessado em extensão por 3 a 6 meses.
Em pacientes com cifose mais grave (acima de 60°),
o tratamento de escolha é artrodese anterior e posterior,
incluindo toda a extensão da cifose, não se limitando
apenas à região da anomalia. Anteriormente, realiza-se
remoção da cartilagem anômala na área da hemivértebra,
do ligamento longitudinal anterior e do ânulo fibroso,
com preenchimento do espaço discal com enxerto ósseo,
bem como suporte anterior com a colocação de costela
ou fíbula. O pós-operatório deve ser realizado com imobilização com gesso em extensão por 3 a 6 meses, com
posterior utilização de órtese de 12 a 18 meses, até que a
artrodese se torne sólida.
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Tipo II (falha de segmentação)
A escolha do tipo de tratamento depende da magnitude da deformidade e se a correção é desejada. Quando o
defeito é detectado precocemente e o paciente encontrase com deformidade aceitável, em que não há a necessidade de correção, pode-se realizar uma artrodese posterior,
com extensão em níveis cranial e caudal ao defeito da
segmentação, com a artrodese incluindo toda a anormalidade da curva.
Quando a cifose é detectada tardiamente, a abordagem
combinada é a melhor opção: as áreas não segmentadas,
localizadas anteriormente, são osteotomizadas, com secção
do ligamento longitudinal anterior e remoção do conteúdo
discal. A artrodese anterior é realizada com preenchimento
de enxerto nos espaços discais, seguida de fusão posterior.
Lordose congênita
Introdução
Ocorre em razão de uma falha de segmentação posterior, sendo a menos comum dentre as deformidades
congênitas da coluna. A barra segmentada pode ser somente posterior, resultando em uma lordose acentuada,
ou mais comumente apresentar-se posterolateralmente,
levando a uma lordoescoliose.
A falha de segmentação geralmente acomete diversos
níveis, com a força deformante resultando em crescimento anterior, acarretando deformidade progressiva. Esse
consequente aumento da lordose leva a uma diminuição
da distância esternovertebral, com deformidade das costelas e restrição da função respiratória, podendo acarretar
óbito precoce.
Tratamento conservador
Em virtude de sua progressão, não há espaço para o
tratamento conservador.
Tratamento cirúrgico
Quando a lordose congênita necessita de correção, a
melhor opção é a abordagem combinada, com a correção
feita por meio de uma osteotomia da barra não segmentada posteriormente, e a contenção do crescimento pela via
anterior, por meio de uma cunha de fechamento.
Nos casos de apresentação precoce, em que não se
objetiva a correção, a artrodese anterior simples é realizada por excisão discal, remoção da cartilagem e das
placas de crescimento, com colocação de enxerto ósseo
nos espaços discais. Assim, realiza-se uma artrodese anterior, que retira o potencial crescimento, opondo-se à
barra não segmentada posterior18.
Por causa da raridade da doença e da sua apresentação
tardia, com o paciente apresentando uma lordose já acentuada no momento do diagnóstico, são combinadas as vias
anterior e posterior para o tratamento da deformidade.
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Clínica ortopédica g Ortopedia Pediátrica
Conduta no dot/fmusp
Não há um padrão clássico de apresentação clínica,
somente um padrão de evolução da curva, e a cirurgia
deve ser indicada o mais cedo possível, para evitar lesões
neurológicas e deformidades muito acentuadas. A indicação de níveis de artrodese e vias de acesso dependem
de características particulares de cada deformidade.
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