Cardiopatias congénitas no cão: estenose aórtica e pulmonar
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Cardiopatias congénitas no cão: estenose aórtica e pulmonar
16 capa / CARDIOLOGIA Cardiopatias congénitas no cão: estenose aórtica e pulmonar A estenose pulmonar e a aórtica são as cardiopatias congénitas mais frequentes no cão. É muito importante o seu diagnóstico precoce, uma vez que os animais na maioria dos casos são assintomáticos. Carmen Martínez Bernal, José Mª Molleda Carbonell Serviço de Cardiologia do Hospital Clínico Veterinário da Universidade de Córdova Imagens cedidas pelos autores As doenças cardíacas congénitas reconhe cem‑se geralmente em animais jovens, ainda que também se diagnostiquem por vezes em animais adultos. Os defeitos cardíacos mais comuns no cão são o canal arterial persisten‑ te, a estenose pulmonar, a estenose aórtica, o defeito do septo interventricular e a tetra‑ logia de Fallot. A anamnese e o exame clíni‑ co nos cachorros, com uma adequada aus‑ cultação cardíaca são fundamentais para o diagnóstico de cardiopatias congénitas. Estenose pulmonar A estenose pulmonar é uma das anomalias congénitas mais frequentes no cão. Entre as raças mais afetadas estão o Bulldog Francês, o Cocker Spaniel, Boxer, Bull Mastiff, Beagle, Samoyedo, Schnauzer miniatura e West Hi‑ gland White Terrier, entre outros (figura 1). Anatomicamente esta doença consiste na obstrução do trato de saída do ventrículo di‑ reito. A localização da lesão pode ser subval‑ vular, valvular e supravalvular. O tipo mais comum é a estenose pulmonar valvular. Fisiopatologia A estenose pulmonar provoca uma sobre‑ carga de pressão no ventrículo direito. Esta pressão provoca um sobre esforço miocárdi‑ co, para vencer o obstáculo que conduz à hipertrofia do ventrículo e permite assim manter o débito cardíaco. O grau de hiper‑ As doenças cardíacas congénitas reconhecem-se geralmente em animais jovens, ainda que também se diagnostiquem por vezes em animais adultos. trofia varia de acordo com a gravidade da estenose. A capacidade de enchimento do ventrículo reduz‑se, dando assim lugar a uma disfunção diastólica. História clínica Os animais com estenose pulmonar apre‑ sentam um sopro sistólico, o qual se escuta com maior intensidade na base cardíaca (pelo lado esquerdo) e pode irradiar até ao lado direito nos casos mais graves. Caracte riza‑se por um sopro de ejeção com fase cres cente‑decrescente. Nos casos de estenose pulmonar grave, devido à diminuição do débito cardíaco, os animais podem apresentar dispneia, intole‑ rância ao exercício e síncopes. Em pacientes descompensados aparecem sinais de insufi‑ Estenose pulmonar Figura 1. O Bulldog Francês é uma raça com predisposição à estenose pulmonar. 4 ANIMAL CLÍNICA Estenose ligeira gradiente de pressão abaixo de 50 mmHg Estenose moderada gradiente de pressão entre 50-80 mmHg Estenose grave gradiente de pressão acima de 80 mmHg 17 17 Figura 2. ECG Derivação II. Observam-se ondas S profundas. ciência cardíaca direita com ascite, distensão jugular e hepatomegália. Exames de diagnóstico No eletrocardiograma aparecem altera‑ ções apenas nos casos graves, com hiper‑ trofia do ventrículo direito. Podem‑se ob‑ servar ondas S profundas nas derivações I, II e III (figura 2) e deslocamento do eixo cardíaco à direita, assim como arritmias ventriculares. A radiografia torácica proporciona pouca informação acerca da gravidade da estenose. Caracteriza‑se pela existência de um engran‑ decimento do ventrículo direito e uma dila‑ tação pós‑estenótica da artéria pulmonar principal (figura 3). A ecocardiografia é o melhor método de diagnóstico não invasivo e é muito eficaz na determinação da gravidade da estenose pul‑ monar. Através da ecocardiografia bidimen‑ sional deteta‑se com precisão a estenose pulmonar. Pode‑se observar uma hipertrofia de moderada a acentuada do ventrículo di‑ reito (figura 4), assim como os músculos papilares direitos podem estar muito engros‑ sados e nos casos graves observa‑se um achatamento do septo interventricular no lado esquerdo (figura 5). Em alguns casos pode‑se observar uma dilatação da aurícula Figura 3. Radiografia LL. Observa-se um aumento do ventrículo direito e uma dilatação da artéria pulmonar. (Agradece-se a cedência de imagem ao Serviço de Diagnóstico por Imagem do Hospital Clínico Veterinário Complutense). direita. Isto é devido ao aumento da pressão, como consequência da diminuição diastólica do ventrículo direito (secundária à hipertro‑ fia). A ecocardiografia Doppler permite de‑ terminar a gravidade da estenose. A veloci‑ dade do fluxo sanguíneo distal à estenose é maior do que o normal e provoca um padrão de fluxo turbulento (figura 6). Esta velocida‑ de e gradiente de pressão no trato de saída do ventrículo direito determinam a gravidade da estenose. É importante também avaliar a existência de regurgitação tricúspide. Figura 4. Hipertrofia acentuada do ventrículo direito. Tratamento A necessidade de tratamento e o prog‑ nóstico da doença dependem da gravidade da estenose. A decisão de instaurar um tra‑ tamento depende da sintomatologia, da magnitude do gradiente de pressão e do grau de hipertrofia do ventrículo direito. As estenoses ligeiras não necessitam de trata‑ mento. Quando o gradiente de pressão se situa entre os 50‑60 mmHg, pode‑se come‑ çar o tratamento com um β‑bloqueante. Com este fármaco reduz‑se a necessidade de oxigénio e aumenta a perfusão coronária Figura 5. Corte transversal do vértice cardíaco. Observa-se achatamento do septo interventricular. 4 ANIMAL CLÍNICA 18 capa / CARDIOLOGIA Estenose aórtica Estenose ligeira gradiente de pressão abaixo de 50 mmHg Estenose moderada gradiente de pressão entre 50-80 mmHg Estenose grave gradiente de pressão acima de 80 mmHg Estenose aórtica Figura 6. Doppler contínuo transpulmonar. Fluxo turbulento e aumento de velocidade de fluxo (> 4m/s). Observa-se uma insuficiência pulmonar. ao reduzir a frequência cardíaca e a con‑ tractibilidade. O β‑bloqueante de eleição é o atenolol, a uma dose de 0,2 mg/kg, cada 12 horas. Os animais que apresentem um gradien‑ te de pressão elevado (> 80 mmHg), apre‑ sentam um elevado risco de morte súbita e recomenda‑se o tratamento cirúrgico, ainda que o paciente possa ser assintomá‑ tico. A valvuloplastia com balão através de um cateterismo tem sido o tratamento de eleição para as estenoses pulmonares gra‑ ves. Este procedimento, na maioria dos casos, provoca uma descida significativa do gradiente de pressão e consegue uma redução parcial da obstrução. A dilatação valvular cirúrgica é uma técnica invasiva e realiza‑se através de toracotomia. Apenas está indicada naqueles animais em que não se pode colocar um cateter com balão, ou não se dispõe do equipamento de ca‑ teterismo cardíaco. A estenose aórtica consiste num estreita‑ mento no trato de saída do ventrículo esquer‑ do. Observa‑se uma predisposição nas raças Boxer, Rottweiler, Pastor Alemão e Golden Retriever (figura 7). Para além disso, foi de‑ monstrada hereditariedade na raça Terra Nova. Pode‑se classificar em três tipos de acordo com a localização da lesão ao longo do trato de saída do ventrículo esquerdo: estenose subvalvular, valvular e supravalvular. A mais frequente é a subvalvular, também denomi‑ nada por estenose subaórtica. Nos cães, a obstrução pode progredir du‑ rante os primeiros 12 meses de vida. Aos 3‑4 meses de idade, a estenose aórtica ligeira pode evoluir para uma estenose aórtica gra‑ ve, durante o primeiro ano de vida. A história e a exploração clínica nos cachorros, com uma adequada auscultação cardíaca são fundamentais para o diagnóstico de cardiopatias congénitas. Fisiopatologia Figura 7. O Boxer é uma raça com predisposição a sofrer de estenose subaórtica. 4 ANIMAL CLÍNICA Ocorre um aumento da resistência do flu‑ xo de saída do ventrículo esquerdo. O au‑ mento da pós‑carga provoca um incremento da pressão sistólica do ventrículo esquerdo, dando lugar a uma hipertrofia concêntrica do miocárdio. Esta hipertrofia é proporcional à gravidade da obstrução. Dá‑se um aumento na rigidez do ventrículo esquerdo, que é in‑ capaz de encher corretamente, originando uma disfunção diastólica. As coronárias são incapazes de compensar a hipertrofia. Dimi nui‑se a sua perfusão, o que provoca uma isquemia miocárdica que pode originar arrit‑ mias ventriculares. 19 19 Figura 8. ECG Derivações I, II e III. Complexos prematuros ventriculares num cão com estenose subaórtica. História clínica A maior parte dos animais com esta afeção ligeira ou moderada não apresentam sinais clínicos. Nos casos mais graves pode‑se ob‑ servar intolerância ao exercício, síncope ou raramente sinais de insuficiência cardíaca congestiva esquerda. A estenose aórtica manifesta‑se por um sopro sistólico de tipo ejeção que se ausculta com maior intensidade sobre o quarto espa‑ ço intercostal esquerdo, na união costocon‑ dral. Em cães gravemente afetados, auscul tam‑se sopros holosistólicos de grau IV‑VI/ VI, frequentemente com frémito precordial. Figura 9. Doppler contínuo transaórtico. Fluxo turbulento e aumento da velocidade de fluxo (> 4m/s). Exames de diagnóstico O eletrocardiograma pode ser completamen‑ te normal. Nos casos graves podem‑se observar sinais de hipertrofia do ventrículo esquerdo, ondas R altas em derivações II, III e aVF, bem como arritmias ventriculares, complexos pre‑ maturos ventriculares ou inclusive taquicardia ventricular (figura 8). Em animais com esteno‑ se subaórtica moderada recomenda‑se a reali‑ zação de um registo Holter para detetar arrit‑ mias ventriculares que sugerem uma maior probabilidade de morte súbita. Nas radiografias torácicas pode‑se observar uma dilatação do arco aórtico (dilatação pós ‑estenótica) e do ventrículo esquerdo. Há uma tendência para haver um paralelismo entre as alterações radiográficas e a gravidade da estenose. Assim, nos casos ligeiros, as ra‑ diografias torácicas podem ser normais. A ecocardiografia é uma ferramenta essen‑ cial para o diagnóstico e o prognóstico da do‑ ença. A ecocardiografia bidimensional permite ‑nos avaliar a dimensão e a morfologia do annulus aórtico e das cúspides valvulares. Em alguns casos observa‑se uma dilatação pós ‑estenótica da aorta ascendente. Na maioria das vezes observa‑se uma hipertrofia ventricular esquerda e nos casos mais graves e avançados, os músculos papilares tornam‑se hiperecogé‑ nicos devido á isquemia e à fibrose. A ecocardiografia Doppler permite a medi‑ ção da velocidade do fluxo aórtico e propor‑ ciona dados sobre a gravidade do processo. O estudo Doppler sobre o trato de saída do ventrículo esquerdo em animais com uma estenose aórtica, mostra um amplo jet sistó‑ lico turbulento, com velocidades de fluxo elevadas (> 2 m/s) (figura 9). Permite tam‑ bém obter o gradiente de pressão na válvula aórtica e determinar a gravidade da estenose: A necessidade de tratamento e o prognós‑ tico da doença dependem da gravidade da estenose. A necessidade de tratamento e o prognóstico da doença dependem da gravidade da estenose. Frequentemente pode‑se observar uma insuficiência aórtica ligeira, como consequên‑ cia do espessamento e de um enfraqueci‑ mento do tecido da válvula aórtica. Tratamento O tratamento visa principalmente tentar pre‑ venir a morte súbita, assim como reduzir a into‑ lerância ao exercício e os episódios de síncopes. Os fármacos de eleição são os β‑bloque antes, que reduzem a incidência de arritmias ventriculares letais, reduzem a necessidade de oxigénio e aumentam a perfusão coroná‑ ria. O mais utilizado é o atenolol a 0,2 mg/ kg, cada 24 ou 12 horas. Em indivíduos com estenose subaórtica ligeira, pode não ser necessário o tratamento, mas são importantes as revisões periódicas para controlar a evolução da doença. Relativamente à valvuloplastia com balão, não se observou benefício a longo prazo em termos dos tempos de sobrevivência, quando comparamos com animais tratados com ate‑ nolol. Assim, esta técnica não está indicada para o tratamento da estenose subaórtica. Têm sido descritas técnicas de cirurgia, a coração aberto, para a substituição da válvu‑ la e o tratamento com álcool a nível suben‑ docárdico, mas as evidências atuais mostram que geram poucos benefícios paliativos. Os animais em estados avançados que de‑ senvolvam insuficiência cardíaca congestiva necessitarão de um tratamento com IECA e diuréticos, de acordo com o caso. Conclusão Dentro das cardiopatias congénitas mais frequentes no cão, encontram‑se a estenose pulmonar e aórtica. É muito importante o seu diagnóstico precoce, uma vez que na maioria dos casos os animais são assintomáticos. A auscultação cardíaca exaustiva nos cachorros, nos primeiros meses de vida, é um ponto ‑chave para o diagnóstico destes problemas congénitos, fundamentalmente se se auscul‑ tam sopros que não desaparecem nos primei‑ ros 4‑5 meses de vida. Convém sensibilizar os nossos clientes para o facto de se deverem fazer exames aos animais antes de os adquirir, para não terem deceções com cachorros doentes, com os quais rapidamente já estabeleceram laços afe‑ tivos. o 4 ANIMAL CLÍNICA