Revista JuRídica da Faculdade una de contagem

Transcrição

Revista JuRídica da Faculdade una de contagem
Revista Jurídica
da Faculdade
Una de Contagem
Organização
Alessandra Mara de Freitas Silva
Flávio Alves Janones
Revista Jurídica
da Faculdade
Una de Contagem
Volume 1 • Número 1 • Jul/Dez 2014
Belo Horizonte • 2015
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Revista Jurídica da Faculdade Una de Contagem / Organização Alessandra
Mara de Freitas da Silva ; Flávio Alves Janones v.1 n.1 (jul /dez 2014). -- Belo Horizonte,
MG : Letramento : Faculdade de Direito do Centro Universitário UNA Contagem, 2014.
302 p. .; 16x23 cm.
Periodicidade : Semestral
ISSN: 2359-3504
1.
2.
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2. Direito - Brasil.I. Silva, Alessandra Mara de Freitas, org. II. Janones,
Flávio Alves, org.III.Título.
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Revista Jurídica da Faculdade UNA de Contagem - Volume 1, Número 1, Jul/Dez 2014, pp.
1 – 302.
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Sumário
editorial: Uma nova etapa................................................................................................11
DILEMAS DE UM ESTADO (DEMOCRÁTICO) MULTICULTURAL: O direito como reconhecimento
cultural nas sociedades democráticas contemporâneas..................................................13
1. Introdução..............................................................................................................14
2. Multiculturalismo e Pluralidade Cultural...............................................................15
2.1. Compreensão do termo multiculturalismo.................................................................15
2.2. Multiculturalismo e reconhecimento........................................................................20
2.2.1. Do reconhecimento social na contemporaneidade: diversidade
cultural e democracia..........................................................................................20
3. CONCLUSÃO: O DIREITO E O RECONHECIMENTO...................................................................27
REFERÊNCIAS.................................................................................................................30
TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL, POLÍTICA
URBANA E POLÍTICA CULTURAL.............................................................................................33
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................34
2. DEFINIÇÃO E UTILIDADE DO TOMBAMENTO.........................................................................35
3. CRITÉRIOS PARA O TOMBAMENTO.....................................................................................38
4. TOMBAMENTO E PLANEJAMENTO.....................................................................................40
5. PODER PÚBLICO E O PARTICULAR NA MANUTENÇÃO DO PATRIMÔNIO TOMBADO..........................44
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................46
REFERÊNCIAS.................................................................................................................46
AS LEIS DE ANISTIA E AS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS...............................................................48
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................48
2. AS TRÊS ONDAS DE TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA....................................................................49
3. VIOLAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTIAS E HUMANOS..........................................................51
4. PROCESSAR E PUNIR OU PERDOAR E ESQUECER?.................................................................52
5. CONCLUSÃO ...............................................................................................................56
REFERÊNCIAS.................................................................................................................61
ENFRENTAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA CIENTÍFICA “PROCESSO COMO TEORIA DA LEI
DEMOCRÁTICA”, DE AUTORIA DE ROSEMIRO PEREIRA LEAL.........................................................63
1. Considerações iniciais..............................................................................................64
2. Proposição da pesquisa e seu marco teórico: embaraços à compreensão dos
institutos do direito, lei e norma..........................................................................65
3. Metodologia: método crítico.....................................................................................66
4. Lógica......................................................................................................................67
4.1. Lógica geral (formal)............................................................................................69
4.2. Lógica modal......................................................................................................71
4.3. Lógica situacional................................................................................................72
5. Lei: da “Ideia” à Teoria..............................................................................................75
5.1. “Modelos” de Estado e o mito da “sociedade pressuposta”...........................................75
5.1.1. Estado Liberal de Direito...............................................................................75
5.1.2. Estado Social de Direito (Republicano).............................................................77
5.1.3. Estado Democrático de Direito........................................................................82
6. Processo como Teoria da Lei Democrática na perspectiva da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo.........................................................................87
7. Revisitação crítica da dogmática indiscernível do direito, lei e norma........................89
8. Considerações Finais................................................................................................91
Referências.................................................................................................................92
DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE: Memórias de histórias de violações de direitos
humanos durantes as Ditaduras militares no Cone Sul e no Brasil.................................95
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................96
2. O FUNDO CLAMOR........................................................................................................98
3. OS ARQUIVOS DO TERROR..............................................................................................100
4. MEMÓRIAS RESGATADAS................................................................................................101
5. A REPRESSÃO NAS DITADURAS DO CONE SUL......................................................................105
5.1. A Ditadura Militar no Paraguai................................................................................107
5.2. O Regime Militar Brasileiro....................................................................................108
5.3. A Ditadura Argentina............................................................................................111
5.4. A Ditadura Chilena...............................................................................................113
5.5. A Ditadura Civil e Militar no Uruguai........................................................................115
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................117
REFERÊNCIAS ................................................................................................................118
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DISCURSOS DE AUTO-ENTENDIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NO PROCESSO
LEGISLATIVO DEMOCRÁTICO..................................................................................................121
1. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................122
2. TIPOS DE ARGUMENTOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO DEMOCRÁTICO DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO
E DA VONTADE..................................................................................................................123
3. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO LIBERAL ........................................................125
4. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO REPUBLICANA.......................................... 128
5. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TEORIA DO DISCURSO.............................................................131
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................136
REFERÊNCIAS ................................................................................................................137
A NOVA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL: A BOA FÉ OBJETIVA E OUTROS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS......139
INTRODUÇÃO..................................................................................................................140
1. O QUE É PRINCÍPIO?.....................................................................................................141
2. DIRIGISMO CONTRATUAL...............................................................................................143
3. BOA FÉ OBJETIVA E BOA FÉ SUBJETIVA..............................................................................145
3.1. Histórico da Boa-Fé Objetiva..................................................................................146
3.2. Histórico da Boa-Fé Objetiva no Brasil.....................................................................147
3.3. Funções da Boa-Fé Objetiva...................................................................................148
3.3.1. Função Interpretativa........................................................................................148
3.3.2. FUNÇÃO INTERATIVA...........................................................................................149
3.3.3. Função Limitadora............................................................................................150
3.4. Venire Contra Factum Proprium................................................................................150
3.5. Surrectio e Suppressio...........................................................................................150
3.5.1. Requisitos .......................................................................................................151
3.6. Tu Quoque..........................................................................................................152
3.7. Diferenças Entre Venire Contra Factum Proprium, Surrectio, Suprecccio e Tu Quoque.............152
4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS..................................................................152
5. PRINCÍPIO DA REVISÃO OU EQUILÍBRIO CONTRATUAL...........................................................153
CONCLUSÃO...................................................................................................................154
REFERÊNCIAS.................................................................................................................155
DESAFIOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: A INTERNAÇÃO
COMPULSÓRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL............157
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................159
2. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO....160
3. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E A LEI Nº 10.216/2001.........................................................162
3.1. Os Destinatários da Lei..........................................................................................162
3.2. Os Tipos de Internação Previstos e seus Requisitos Legais............................................163
3.3. A Finalidade da Internação Compulsória...................................................................166
4. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL..........................167
4.1. A Dignidade da Pessoa Humana ..............................................................................168
4.2. O Princípio da Legalidade......................................................................................170
4.3. O Direito Deambulatorial.......................................................................................172
5. ASPECTOS RELACIONADOS À CRIMINALIZAÇÃO DAS CONDUTAS...............................................174
5.1. Vedação da Analogia In Malam Partem......................................................................174
6. A EFICÁCIA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE TOXICÔMANOS................................................176
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................178
REFERÊNCIAS.................................................................................................................180
A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL:
ANÁLISE DO REGIME JURÍDICO E IMPORTÂNCIA DE TAIS ENTIDADES À LUZ DO PRINCÍPIO
DA SUBSIDIARIEDADE.........................................................................................................183
1. ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS DO ESTADO PÓS-MODERNO E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE......184
2. DIFERENÇAS ENTRE SERVIÇO PÚBLICO E ATIVIDADE ECONÔMICA.............................................190
3. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA...........................................................................195
4. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA POR SERVIÇOS – A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA...............198
5. O PAPEL DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL..............................................................203
6. DIFERENÇAS ENTRE O REGIME JURÍDICO DE DIREITO PÚBLICO E O REGIME DE DIREITO PRIVADO
NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA ADMINISTRATIVA INDIRETA NO BRASIL..............204
REFERÊNCIAS ................................................................................................................207
DA POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO DE ATOS TERRORISTAS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL......209
1. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................209
2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS...........................................................................................211
2.1. A Instituição dos Tribunais Militares Internacionais....................................................213
2.2. A Instituição Dos Tribunais Ad Hoc Pelo Conselho De Segurança Das Nações Unidas..................218
3. Possibilidade Do Julgamento De Atos Terroristas Pelo Tribunal Penal Internacional........221
3.1. Terrorismo Como Crime De Guerra...........................................................................225
3.2. Terrorismo Como Crime Contra A Humanidade...........................................................228
4. CONCLUSÃO................................................................................................................230
REFERÊNCIAS.................................................................................................................231
POR UMA BIOÉTICA DIALÓGICA E INTERDISCIPLINAR A PARTIR DO HISTÓRICO DE
DESENVOLVIMENTO DA DISCIPLINA........................................................................................233
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................234
2. DESENVOLVIMENTO......................................................................................................235
A) Contexto Social, Político e Científico para o Surgimento da Bioética.................................235
B) Histórico da Bioética..............................................................................................243
3. CONCLUSÃO................................................................................................................249
REFERÊNCIAS.................................................................................................................249
A PROPOSTA DE REFORMA DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS E O
ESTADO BRASILEIRO............................................................................................................252
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................253
2. A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS..............................................................................254
2.1. O Conselho de Segurança da Onu............................................................................255
3. A PROPOSTA DE REFORMA DA ESTRUTUTA DO CSNU, A “DANÇA DAS CADEIRAS” E O BRASIL...........258
4. PONTOS DE DISCUSSÃO.................................................................................................261
5. CONCLUSÃO................................................................................................................263
REFERÊNCIAS.................................................................................................................264
HÁ ALGO REALMENTE IMPERDOÁVEL?.....................................................................................266
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................267
2. A VÍTIMA REALMENTE OCUPA A FUNÇÃO ESSENCIAL? ...........................................................267
3. RAZÕES PARA A IMPERDOABILIDADE SUBJETIVA.................................................................270
4. O INTERESSE EM AFIRMAR A IMPERDOABILIDADE................................................................274
5. REFERÊNCIAS..............................................................................................................277
INSIDER TRADING: O alcance subjetivo da proibição do uso indevido de informação
privilegiada....................................................................................................................280
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................281
1.1. O Insider Trading..................................................................................................281
2. O INSIDER TRADING NO DIREITO BRASILEIRO......................................................................284
2.1. Considerações Iniciais...........................................................................................284
2.2. O Alcance da Proibição à Prática do Insider Trading.....................................................293
3. CONCLUSÃO................................................................................................................299
REFERÊNCIAS ................................................................................................................299
editorial
Uma nova etapa
Há tempos gesta-se, nas mentes e nos corações dos docentes e discentes
do Curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem, o pensamento de uma
revista jurídica, cuja preocupação central fosse a de fornecer à comunidade
acadêmica um espaço amplo e irrestrito para o debate de temas jurídicos,
políticos e filosóficos. A concretização desse ideal se deve a múltiplos esforços, coordenados de forma harmoniosa pela Professora Alessandra Mara de
Freitas Silva e pelo Professor Flávio Alves Janones.
Para além de louros e títulos, o curso de direito da Faculdade UNA de
Contagem tem ultrapassado o árido solo das promessas para se fazer mostrar através de realizações concretas e palpáveis. Com passos serenos e firmes,
o surgimento da primeira edição da revista jurídica da Faculdade UNA de
Contagem abre uma nova época para o curso de direito, ou melhor, trata-se,
sobretudo, de uma renovação: a de empreender a experimentação de uma
vida acadêmica plena.
Nesta primeira edição, contamos com quatorze artigos de fina reflexão
jurídica, cuja contribuição democrática nos põe diante de novos motivos de
investigação. O leitor encontrará nesta edição desde problematizações práticas que buscam refletir o cotidiano jurídico até meditações sobre questões político-filosóficas. Buscando inventar novas formas de estudar o direito, a linha
editorial se mostra, assim, intencionalmente aberta às mais variadas reflexões,
pautada sempre pela ética da alteridade, como ressaltado por Emmanuel
Lévinas – a alteridade pressupõe o respeito pelo Rosto do Outro.
Convidamos o leitor que passeie despreocupadamente em nossas páginas, que ponha o olhar aqui e ali, em um gesto parecido com o do flâneur de
Walter Benjamin, e, quem sabe, encontrar-se-á o fragmento necessário para
se repensar o papel do direito e da justiça.
Professor Doutor Lucas Moraes Martins
Editor-chefe
DILEMAS DE UM ESTADO
(DEMOCRÁTICO) MULTICULTURAL:
O direito como reconhecimento cultural
nas sociedades democráticas contemporâneas
ADRIANO OLINTO MEIRELLES1
RESUMO
A sociedade do século XXI apresenta-se paradoxal, complexa e disforme,
formada por inúmeros grupos identitários que possuem diferenças únicas e
ao mesmo tempo similaridades consistentes, tudo isso dentro de um espaço
territorial delimitado na forma de Estados; os estabelecidos sob uma democracia de direito. O presente artigo tem por objetivo ressaltar a importância
do multiculturalismo na defesa e reconhecimento da diversidade cultural e o
papel do direito, inclusive mediante o incentivo na criação de direitos culturais. Num primeiro momento, busca-se fornecer noções sobre multiculturalismo, para em seguida, ressaltar a importância do reconhecimento da diversidade cultural enquanto objetivo das teorias multiculturais. Numa terceira
etapa, trata-se de demonstrar a importância do reconhecimento da diferença
para a concretização de Estados democráticos e, por fim, a importância do
Direito como instrumento para efetivar o reconhecimento cultural nas sociedades democráticas contemporâneas. Ressalta-se que não será analisada
nenhuma abordagem multicultural específica, mas serão levantadas apenas
questões gerais importantes para incentivar o debate multicultural e o direito.
Palavra-chaves: Multiculturalismo; direito; reconhecimento.
1
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas. Especialista em Filosofia
Política pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e em Ensino pela Universidade Católica
de Brasília. Bacharelado em DIREITO pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Licenciatura
em FILOSOFIA pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor Assistente e Pesquisador
do Centro Universitário UNA. Professor Assistente e Pesquisador do Centro Universitário Unibh.
Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI).
Membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante
dos Grupos de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira
Baracho Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”.
13
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
ABSTRACT
The XXI century society presents itself paradoxical, complex and formless,
formed by numerous identity groups that have unique differences and similarities
while consistent, all within a delimited territorial space as states; those established
under a law of democracy . This article aims to highlight the importance of multiculturalism in the defense and recognition of cultural diversity and the role of
law, including by encouraging the creation of cultural rights. At first, we seek to
provide notions of multiculturalism, to then highlight the importance of recognizing cultural diversity as a goal of multicultural theories. In a third step, it is to
demonstrate the importance of recognizing the difference to the achievement of
democratic states and, finally, the importance of law as an instrument to effect cultural recognition in contemporary democratic societies. It is noteworthy that not
be considered any specific multicultural approach, but will be raised only general
issues important to encourage the multicultural debate and the right.
Keywords: Multiculturalism; right; recognition.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade do século XXI apresenta-se paradoxal, complexa e disforme, formada por inúmeros grupos identitários que possuem diferenças únicas e ao mesmo tempo similaridades consistentes, tudo isso dentro de um
espaço territorial delimitado na forma de Estados; os estabelecidos sob uma
democracia de direito.
A práxis cidadã do Estado (pós) moderno influencia o todo do Estado
democrático através da forma como ele se expressa nas escolhas individuais
e coletivas. A cidadania já não se vislumbra como sendo apenas condição de
uma comunidade que tenha a mesma origem, no sentido de nacionalidade
ou o pertencer a uma determinada comunidade no sentido Aristotélico2 do
2
Para Aristóteles o meio mais adequado de definir o cidadão para os regimes democráticos é
defini-lo como aquele que pertence a um Estado, considerando membro àquele que participa da
vida política e pode ser eleito, “... logo que um homem seja considerado apto para participar nas
magistraturas deliberativas ou judiciais pode ser considerado um cidadão daquele Estado e sempre
que haja um número de tais pessoas, suficientemente grande para assegurar a auto suficiência
política, temos um Estado”. Considera-se, ainda como forma de adquirir a cidadania o nascer sob
o solo de determinado Estado, com genitores daquele mesmo lócus, trazendo assim o fator sanguíneo, sem excluir outras formas aquisitivas derivadas de cidadania. (ver: ARISTÓTELES. A política.
Tradução Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.)
14
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termo, mas sim como sendo uma forma de exercício, dentro da sociedade
democrática, de direitos e deveres na construção de um ambiente que já ultrapassa os limites do Estado tomando como globalizado.
A essa maneira como se juntam a nova sistemática podemos denominar
sociedade ou quem sabe arriscar e chamá-lo de Estado multicultural, baseando na diversidade das demandas e na multiplicidade cultural dentro de um
espaço que se estende além da concepção territorial do Estado Moderno, mas
que ainda cabe uma análise interna como forma de melhor organizarmos as
idéias referentes aos problemas de realização da cidadania dentro desse ambiente diferenciado.
2. MULTICULTURALISMO E PLURALIDADE CULTURAL
2.1. Compreensão do termo multiculturalismo
Stuart Hall (2003) faz uma distinção entre os termos multiculturalismo e
multicultural. Este último conceito, essencialmente qualificativo, compreende
no contexto da sociedade a existência de diversas comunidades culturais que
apresentam características e problemas de governabilidade, as quais pressupõem uma convivência e uma tentativa de construção de uma vida em comum.
O multiculturalismo, por sua vez, é um substantivo, englobando um conjunto
de estratégias e políticas elaboradas e aplicadas em sociedades multiculturais,
que procuram regular e administrar os problemas que estão afetos às questões
vinculadas, à diversidade e multiplicidade. O termo Multiculturalismo é empregado no singular e se traduz numa filosofia ou doutrina que fundamenta as
estratégias multiculturais. Por outro lado, a definição do vocábulo “multicultural”, aplica-se ao que é plural, a exemplo do que ocorre com os diversos tipos
de sociedade multicultural. As sociedades que são culturalmente heterogêneas, por definição são multiculturais. Os Estados Unidos da América e a França
são exemplos de sociedade multiculturais, às quais se distinguem do Estadonação moderno, que é tipicamente constitucional e liberal, que no contexto
Ocidental apresentam como pressuposto básico a homogeneidade cultural,
que estrutura-se a partir de valores universais, individualistas e seculares.
O multiculturalismo não é fenômeno recente. Dentro da sociedade e
do Estado, vem ocorrendo de forma lenta e gradual, com aceleramento crescente nas ultimas décadas. Hall (2003) aponta alguns fatores ou mudanças
15
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históricas decisivas que fizeram diferença para a formação da sociedade em
que hoje vivemos: primeiro, o fim do velho sistema imperial europeu, sendo
a questão multicultural uma questão pós-colonial; segundo, o fim da Guerra
Fria, o fim do comunismo e a tentativa de instalação de uma nova ordem
mundial; terceira a globalização, aqui destacada a globalização contemporânea com a compreensão do espaço/tempo, com tendência cultural homogeneizante e que traz consigo um sistema de conformação da diferença, como
forma de resistência implicando numa concepção de poder mais discursivo
do que normalmente vinha sendo encontrado até então.
A noção de multiculturalismo é hoje cada vez mais utilizada, não somente nos meios acadêmicos e políticos, como no cotidiano, por uma gama
variada de pessoas, estando seu significado associado a diversos sentido, o
que faz com que essa proliferação do termo não contribua para estabilizar ou
esclarecer seu significado.
O termo multiculturalismo pode ter diversas leituras associadas a
contextos específicos e diferenciadas dos Estados, o que vem acarretando a
criação de diferentes interpretações explicativas do termo. Do mesmo modo
como ocorre com as abordagens teóricas da política, da moral, das instituições democráticas, das normas jurídicas, dentre outras, ou seja, em termos
conceptuais, importa notar que o multiculturalismo é um termo polissêmico
e existem, pelo menos, dois sentidos diferentes em que este pode ser utilizado. Uma teoria do multiculturalismo pode tanto privilegiar uma perspectiva
descritiva como também prescritiva3. No primeiro caso, uma teoria multicultural descritiva reporta a um fato da vida humana e social, que é a diversidade
cultural étnica, religiosa, ou seja, um certo cosmopolitismo que atualmente
é fácil de ver em qualquer grande cidade da Europa e da América do Norte,
ao passo que no segundo caso, o objetivo da teoria multicultural é prescrever,
determinar formas concretas ou mais razoáveis, legítimas, associadas às chamadas políticas de reconhecimento da identidade e/ou da diferença que os
poderes públicos prosseguem, ou deveriam prosseguir em nome dos grupos
3
Jean-Claude Forquin (1993; 2000), afirma que o termo multiculturalismo apresenta dois sentidos: um sentido descritivo e um normativo ou prescritivo. Para ele, o multiculturalismo, no sentido
descritivo, designa a situação objetiva de um país onde existem grupos de origem étnica ou geográfica diversa, falando línguas diversas, que não compartilham nem os mesmos modos de vida nem
os mesmos valores. O sentido descritivo reflete a realidade multicultural, multiracial, multi-étnica,
multireligiosa de uma determinada sociedade. Quanto ao segundo sentido do multiculturalismo de
caráter normativo, ou prescritivo, diz respeito às propostas, às políticas utilizadas relacionadas a se
trabalhar a realidade multicultural.
16
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minoritários e/ou “subalternos”, ficando claro que as abordagens teóricas
podem conjugar as duas perspectivas. Nas seções que seguem neste capítulo,
privilegia-se a abordagem teórico-prescritiva do multiculturalismo, mas antes
de adentrar neste viés, é necessário descrever o multiculturalismo como um
fato social para melhor compreender os motivos que irão justificar a necessidade do enfoque teórico.
O multiculturalismo, entendido como a situação de convivência de grupos diferenciados culturalmente sob um mesmo território, não é um fato novo,
mas vem ganhando expressão diante dos processos de deslocamentos humanos, principalmente nestes tempos globais, o que se pode denotar numa serie
de acontecimentos que ocorrem nas sociedades contemporâneas como reflexo desta situação multicultural, tais como a existência de uma pluralidade de
culturas criadas pelos movimentos migratórios que modificam os quadros demográficos culturais dos países, como exemplo, dos Estados Unidos, Canadá;
os movimentos de grupos nacionalistas que reivindicam maior autonomia
ou até mesmo secessão frente a seus Estados como os kurdos, Chechenos4; a
existência de novos movimentos racismos de cunho sociocultural; o crescimento do movimento fundamentalistas que não aceitam diversidade cultural;
a atuação dos novos movimentos sociais em busca de acesso a cultura, política
e ao direito tais como os movimentos feministas, dos homossexuais etc. Em
menor ou maior grau, a questão do multiculturalismo está presente em todos
os países caracterizados por instituições democráticas, por uma população
heterogênea e por uma economia pós-industrial em vias de globalização.
Os grupos (baseados na multiplicidade cultural) que formam o conjunto
social apresentam necessidades diversas, que diante de um Estado enfraquecido (seja por sua crise econômica, moral, política...) e insuficiente na respostas
4
A divisão territorial ou a secessão podem resolver conflitos étnicos, entre povos que não
queiram mais viver juntas, por meio da repartição do espaço nacional. Nem sempre essa divisão
territorial e/ou secessão, com a criação de novos Estados, é uma política de coersão, já que ela
pode se basear no direito à autodeterminação dos povos. É comum, no entanto, que uma divisão
territorial ou uma secessão, ao invés de acalmar a região, acabe por criar conflitos ou originar
migrações de populações, especialmente quando os recursos naturais se tornam escassos em um
dos territórios formados.
É exemplo dessa ação a formação do Bangladesh, que era parte do Paquistão, por imposição britânica durante o domínio colonial da Ásia Meridional, e a URSS, que era formada desde o começo do
século XX por 15 repúblicas, sob hegemonia da Rússia, que se esfacelou a partir de 1990. São também
citados como exemplos modernos de possibilidade de secessão: o Québec, no Canadá, onde predomina a população de origem francesa; os bascos do norte da Espanha; os corsos, na ilha da Córsega,
possessão francesa; os escoceses e galeses da Grã-Bretanha; e o Tibete, na China, dentre outros.
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por demandas mínimas que garantam a dignidade, o que se tem encontrado
em maior quantidade é a exclusão social, a marginalização, o abandono, a
discriminação, vê-se o cidadão cada dia mais distante do Estado e vice-versa.
Em contraposição ao ambiente crítico buscam-se possibilidades não utópicas
de um Estado Democrático que privilegie a participação diversificada e igualitária no dia a dia da comunidade, e que garantam o acesso à realização dos
direitos humanos e fundamentais, e todas as demais nuanças que envolvem a
cidadania ativa e completa.
É diante do fato do multiculturalismo e de suas conseqüências no interior
dos Estados nacionais que se realça a importância das soluções, em termos
normativos, para suas questões, justificando assim, a realização de uma gama
de medidas políticas e estudos acadêmicos frente à proliferação de reivindicações de caráter étnico-cultural resultantes deste convívio sócio-cultural.
Nesse sentido é que o multiculturalismo pode ser compreendido sob um
enfoque teórico de caráter normativo que tem por objetivo prescrever maneiras de solucionar os problemas provenientes da convivência entre as pessoas
e os diferentes grupos culturais existentes nas sociedades plurais que buscam,
na coexistência conjunta, manter suas pautas culturais e sociais. Entretanto,
apesar das diferentes propostas teóricas multiculturais existentes, enfatizam-se apenas as propostas que apresentam como resposta ao gerenciamento
das demandas culturais, caminhos contrários as práticas assimilacionistas,5
segregadoras e até mesmo genocidas postas em práticas pelos Estados nacionais (SILVA, 2006).
A respeito do sentido do termo multiculturalismo, afirma Touraine
(1997) que muitas vezes este é entendido como um nacionalismo agressivo,
mas, para o autor, não há nada mais distante do multiculturalismo que a fragmentação do mundo em espaços culturais que idealizam a homogeneidade
e a pureza e onde um poder comunitário toma o lugar da unidade de uma
cultura. Segundo Touraine (1997), cultura e comunidade não devem ser confundidas porque as sociedades modernas, constantemente abertas a mudanças, não possuem uma unidade cultural total e também porque as culturas
são constantemente renovadas a partir de novos acontecimentos e de novas
5
Entendendo como processo de absorção de uma cultura por outra, recebendo metaforicamente a designação de cadinho de raças. Já o conceito de mosaico étnico (integração de diferentes
peças da sociedade reunidas em um arranjo) é utilizado para designar formas menos arbitrarias de
integração. CASHMORE, Ellis. Verbet: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, tradução de
Dinah Klevej. São Paulo: Summuns, 2000, p. 271-273.
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experiências. Assim, “o multiculturalismo não é nem uma fragmentação sem
limites do espaço cultural, nem um melting pot6 cultural mundial: procura
combinar a diversidade das experiências culturais com a produção e a difusão
de massa dos bens culturais” (TOURAINE, 1997, p. 224-225).
Em sua concepção original, a expressão multiculturalismo designa “a
coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas
diferentes no seio de sociedades ‘modernas’” (SANTOS; NUNES, 2003, p.
26). Considerando as dificuldades de precisão do termo, no entanto, pode-se
afirmar que multiculturalismo se tornou rapidamente um modo de descrever
as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. O termo multiculturalismo, porém, pode continuar a ser associado a projetos e conteúdos
emancipatórios e contra-hegemônicos, baseados em lutas pelo reconhecimento da diferença (SANTOS; NUNES, 2003). Assim,
A ideia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência de
configurações culturais baseadas em contribuições de experiências e de
6
O caldeirão é uma metáfora para uma heterogênea sociedade cada vez mais homogênea,
os diferentes elementos “derretendo juntos” em um todo harmonioso, com uma cultura comum.
É particularmente utilizado para descrever a assimilação de imigrantes para os Estados Unidos; a
metáfora de ponto de fusão juntos foi em uso por década de 1780.
No século XVIII e XIX, a metáfora de um “cadinho “ou” melting pot (s)” foi usado para descrever a
fusão de diferentes nacionalidades, etnias e culturas. Foi utilizado em conjunto com os conceitos
dos Estados Unidos como uma república ideal e uma “cidade sobre uma colina” ou nova terra
prometida. Era uma metáfora para o processo idealizado de imigração e colonização pela qual
diferentes nacionalidades, culturas e “raças” (um termo que pode englobar nacionalidade, etnia e
raça) foram a mistura em uma comunidade nova e virtuosa, e era ligado a utópica visões do surgimento de um “novo homem americano”. Enquanto o “derretimento” era de uso comum o termo
exato “melting pot” entrou em uso geral em 1908, após a estréia da peça The Melting Pot por Israel
Zangwill. Judeu inglês cuja história tem sido esquecido, mas cujo tema central não tem. Sua produção foi intitulada “The Melting Pot” e sua mensagem ainda detém um poder tremendo no imaginário nacional - a promessa de que todos os imigrantes podem ser transformados em americanos,
uma nova liga forjado em um cadinho de democracia, liberdade e responsabilidade cívica.
Em 1908, quando a peça estreou em Washington, nos Estados Unidos estava no meio de absorver o
maior fluxo de imigrantes na sua história - irlandeses e alemães, seguidos pelos italianos e europeus do Leste, católicos e judeus -cerca de 18 milhões de novos cidadãos entre 1890 e 1920.
Hoje, os Estados Unidos está passando por sua segunda grande vaga de imigração, um movimento de pessoas que tem profundas implicações para uma sociedade que por tradição é uma homenagem às suas raízes de imigrantes, ao mesmo tempo em que confronta de forma complexo
e profundamente enraizado divisões étnicas e raciais. Os imigrantes de hoje não vêm da Europa,
mas predominantemente a partir do mundo ainda em desenvolvimento da Ásia e América Latina. Esta mudança, de acordo com os historiadores sociais, demógrafos e outros estudiosos, vão testar
severamente a premissa do melting pot fabuloso, a idéia, tão central para a identidade nacional,
que este país pode transformar as pessoas de todas as cores e fundo em “uma América.” By William
Booth. Washington Post Staff Writer. Sunday, February 22, 1998; Page A1.
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historias distintas tem levado a explorar as possibilidades emancipatórias do multiculturalismo, alimentando os debates e iniciativas sobre
novas definições de direitos, de identidades, de justiça e de cidadania.
(SANTOS; NUNES, 2003, p. 33).
Como lembra Touraine (2004) o reconhecimento do multiculturalismo
ou, mais simplesmente, das minorias e da diversidade cultural só pode ser
intelectualmente fundado se houver o reconhecimento de que o principio de
igualdade não é separável do principio de diferenciação, para tanto, devemos
reconhecer que vivemos numa sociedade multifacetada, que abriga inúmeras
culturas, costumes, formas de vida, e, reconhecê-las com igual peso no momento da tomada de decisões, bem como atribuir igual força a todos pode ser
o primeiro caminho para superar esse déficit, mas o que percebemos é a tomada de um caminho exatamente inverso, qual seja, a tentativa de massificar
a pluralidade, ignorando a diferença.
2.2. Multiculturalismo e reconhecimento
2.2.1. Do reconhecimento social na contemporaneidade: diversidade
cultural e democracia
O multiculturalismo, como ressalta Costa e Werle, visa ao reconhecimento institucional mediante direitos dos diferentes valores e aspectos culturais presentes numa sociedade, ou seja,
O multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço
institucional do Estado democrático de direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o
‘reconhecimento das necessidades particulares’ dos indivíduos enquanto
membros de grupos culturais específicos. Trata de afirmar, como direito
básico e universal que os cidadãos tem necessidade de um contexto cultural seguro para dar significado e orientação a seus modos de conduzir
a vida; que a pertença a uma comunidade cultural é fundamental para
autonomia individual; que a cultura com seus valores e suas vinculações normativas, representa um importante campo de reconhecimento
para os indivíduos e que, portanto, a proteção e respeito às diferenças
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culturais apresenta-se como ampliação do leque de oportunidades de
reconhecimento. (COSTA and WERLE, 2000, p.82)
O pensamento moderno não buscou a negociação de espaços com o
diferente, tornou-se mais fácil ignorá-la, e isso ocorreu não somente nas relações privadas, a venda nos olhos foi mais eficaz na relação horizontal entre
sujeito e Estado e isso pode ser facilmente visto na exemplificação da positivação das normas, que com o projeto de igualdade perante a lei, ignorou a
diferença, e foi lançada na sociedade como se pudesse alcançar a justiça e a
regulação das relações como se todos estivessem em uma situação idêntica o
que, ao fim e ao cabo, impede o exercício dos direitos/deveres não passando
da formalidade estrita.
Uma teoria de direitos corretamente entendida exige uma política de reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos de
vida nos quais sua identidade se forma. Isto não exige um modelo alternativo que corrija o projeto individualista do sistema de direitos através
de outras perspectivas normativas. Tudo o que é exigido é a atualização
consistente do sistema de direitos (HABERMAS, 1994, p. 113)
A ideia de reconhecimento está voltada à busca pela satisfação e valorização das necessidades particulares dos indivíduos, enquanto membros de
grupos culturais específicos (GUTMANN, 1993), ou seja, de seus valores e
diferenças culturais. Ressalta-se que esse tratamento diferenciado somente
ocorre em virtude de serem tais indivíduos parte de uma sociedade maior,
da qual necessitam serem tratados como iguais para poderem participar de
maneira integral e paritária da vida social. Nesse sentido, é estabelecido uma
ideia de reconhecimento que percebe o individuo enquanto membro de uma
comunidade nacional e enquanto membro de um grupo cultural especifico.
É justamente para realização destes preceitos que o termo reconhecimento deve ser vinculado à noção de respeito à diferença indo além da mera
Tolerância. Isto porque a tolerância reflete a aceitação da mais vasta gama de
opiniões e diferenças culturais, enquanto não ameacem e causem danos às
pessoas de forma direta. Já o respeito é muito mais seletivo, embora as pessoas não tenham que estar de acordo com uma posição para respeitar, deve-se
compreender que suas opiniões e diferenças refletem um ponto de vista moral
defensável, que as pessoas podem ou não compartilhar, mas devem por isso
21
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respeitar, desde que sejam desacordos morais respeitáveis, não incluindo o
ódio racial e étnico.
Uma sociedade multicultural vinculada à inclusão de uma vasta gama de
respeitáveis desacordos morais oferece a oportunidade aos indivíduos de
defender suas opiniões perante as demais pessoas com seriedade moral,
mesmo frente àquelas que estão em desacordo e assim ter a oportunidade de apreender com as diferenças. (GUTMANN, 1993, p.40).
Assim, a questão do reconhecimento está ligada (além da questão da
identidade7) a igualdade e a liberdade, e essa igualdade passa pela diversidade, pelo respeito recíproco da diversidade, que por si só garante a liberdade de ação. Esse é pressuposto de um ambiente democrático. Como leciona
Habermas:
A lei é formal, individualista, coercitiva, positiva e aprovada processualmente, mas uma ordem legal somente será legítima quando salvaguardar
a autonomia dos cidadãos a um nível igual, onde os cidadãos somente
serão autônomos quando os dirigentes da lei também se vislumbrarem
como seus autores, por consequência, seus autores são livres apenas enquanto participantes em processos legislativos que são regulados de tal
maneira e tomam lugar em formas de comunicação tais que todas as
pessoas presumirem que os regulamentos aprovados dessa maneira merecem uma aprovação motivada geral e racionalmente, como também
o próprio processo democrático tem de ser legalmente institucionalizado, o princípio da soberania popular exige os direitos fundamentais
antes de tudo, o direito à liberdade de escolha e de ação individual iguais
(HABERMAS, 1994, p. 121-122).
O multiculturalismo prima pela “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência de várias etnias
e/ou raças que edificaram e constituem o espaço público de uma sociedade
multirracial.” (SILVERIO, 1999, p.47).
No entanto, o tipo de diversidades culturais reconhecidas e defendidas
pelas teorias multiculturais são de diferentes formas, o que inclusive acarreta
7
A questão acerca da identidade e reconhecimento será desenvolvida no próximo capítulo
deste trabalho.
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o estabelecimento de diferentes concepções de multiculturalismo8. Dessa maneira, estas teorias podem tanto abarcar reivindicações das minorias nacionais e grupos étnicos, ou ainda, um segundo tipo de reivindicações de grupos
sociais desfavorecidos, que não possuem uma base étnica, política e nacional,
sendo provenientes de movimentos sociais (SEMPRINI, 1999), tais como os
homossexuais e mulheres9.
As minorias, caracterizadas por uma propriedade particular (raça, cor
da pele, orientação sexual etc.) transformam sua fraqueza em força pela
atuação de seus movimentos sociais (negros, mulheres, gays). Questões
tradicionalmente consideradas da esfera privada – economia doméstica, relação homem-mulher – ingressam na esfera pública, tornando-se
questões púbicas. A relevância moral leva à fonte positiva de identificação e, daí, à representação pública, nos casos de eleição de mulheres,
negros ou gays para o parlamento (VIEIRA, 2001, p. 235).
Enquanto elemento central para a temática do multiculturalismo e à justificação da necessidade de reconhecimento, a cultura apresenta um importante papel na vida dos grupos e indivíduos presentes nas sociedades, pois, ela
é entendida como significados interpretativos de um contexto, ou seja, como
teias de significado que o homem tece em seu meio, não sendo vista como
“uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1989, p. 4).
De um modo geral,
a cultura é entendida como uma maneira de um grupo social compreender a vida. Cultura é tudo aquilo que um determinado grupo social
“cultua”, isto é, inclui seus valores e suas tradições. Cada grupo social
detém uma determinada cultura, com diferentes características; entretanto, essa questão também diz respeito à cultura dominante dentro de
um grupo. (MACHADO, 2002, p. 25)
8
Para Adela Cortina, os autênticos problemas multiculturais são estabelecidos quando há
o enfrentamento entre distintas cosmovisões, formas de conceber o sentido da vida e da morte,
diversas formas de organização moral e social. CORTINA, Adela. Ciudadano del mundo, p. 190.
9
Embora haja significantes diferenças entre os tipos de reivindicações realizadas pelas duas
categorias de diversidade cultural, ambas possuem em comum a luta pelo acesso à política de
reconhecimentos de defesa das diferenças que as constituem.
23
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A cultura deve ser concebida desvinculada do mito da cultura pura, “autêntica” (grifo nosso),
que crea sus propios valores, incomunicables para quienes pertenecen a
otro grupo, de forma que a quienes tratan de sali de su grupo social y vivi
en otro, no les queda más remedio que abandonar su visión del mundo y
abrazar la del grupo de destino. Al contrario: no hay cultura sino como
diversidad ( DE LUCAS, 1999, p. 65).
Assim sendo, o enfoque dado pelo multiculturalismo não deve se associar
somente a uma cultura dominante e culta, no sentido estrito do termo, como
entende uma acepção douta da palavra, mediante a qual proporciona a identidade social e estabelece o ordenamento político, jurídico. Como também não,
no significado antropológico do conceito, de acordo com o qual todo o ser humano, enquanto animal falante e simbólico vive num ambiente determinado de
uma cultura. Enfim, o enfoque multiculturalista valoriza outros vários tipos de
culturas, ou pelo menos, os aspectos positivos existentes nas diversas culturas
existentes dentro de uma sociedade. (SARTORI, 2001, p. 69).
Evidentemente, que não é suficiente permanecer numa linha de exclusão do que não pode ser considerado cultura do ponto de vista multicultural.
Também, não há mais o que considerar nessa perspectiva, uma vez que o próprio
prefixo “multi”, do multiculturalismo refere-se a uma multiplicidade de culturas
do ponto de vista qualitativo, bem como a afirmação de que estas culturas são
diversas e de modalidades diferentes. No âmbito do multiculturalismo, a cultura pode ser compreendida como uma identidade lingüística, religiosa, étnica,
sexual, etc. Há, assim, num âmbito do multiculturalismo, uma heterogeneidade
de concepções, sendo que, também, deve-se distinguir, por exemplo, entre diversidade cultural e diversidade étnica. (SARTORI, 2001, p. 70)
A questão da diversidade cultural enquanto elemento principal de constituição do multiculturalismo acaba por se vincular ao debate sobre a transformação da democracia (ROSALES, 2001), constituindo-se num desafio à
própria democracia, já que “como valor universal a ser defendido e garantido”
(PINTO, 1999, p. 56), deve dar respostas ao reconhecimento das diferenças
culturais.
O que se pretende alcançar com o desenvolvimento da prática democrática é a inclusão da diferença que, mediante o viés multicultural, passa a
ser vista de forma positiva, contrariamente à defesa da diferença realizada
24
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pelos grupos fundamentalistas, que buscam o fechamento de seus grupos em
si mesmo, utilizando para isto de atos violentos. Desta forma devem somente
ser asseguradas pelo Direito as diferenças culturais que auxiliem no estabelecimento da igualdade em face das desigualdades.
É justamente o “reconhecimento da condição de diferença que permite
uma profícua reflexão sobre a democracia, através da busca de modelos capazes
de manter o princípio de igualdade entre todos e, ao mesmo tempo, de acolher
as diferenças e necessidades especificas de cada um” (PINTO, 1999, p. 58).
Assim, enfatiza-se que é a partir deste questionamento da democracia
pelo multiculturalismo que desponta a “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência das várias
etnias e/ou raças que edificam e constituem o espaço público de uma sociedade” (SILVÉRIO, 1999, p. 47). Ou seja, a necessidade de reconhecimento da diversidade cultural pelas instituições públicas das sociedades contemporâneas.
No tocante ao reconhecimento da diversidade nas sociedades atuais,
Gutmann (1993) argumenta que é
difícil encontrar una sociedad democrática o democratizadora que no
sea la sede de alguna controvérsia importante sobre si las instituciones
públicas debieran reconocer – y cómo – la identidad de las minorias culturales y en desventaja. ¿ que significa para los ciudadanos con diferente
identidad cultural, a menudo basada en la tenicidad, la raza, el sexo o la
religión, reconocernos como iguales en la forma en que se nos trata en
política? e (...) Reconocer y tratar como iguales a los miembros de ciertos
grupos es algo que hoy parece requerir unas instituciones públicas que
reconozcan, y no que pasen por alto, las particularidades culturales, al
menos por lo que se refiere a aquellos cuja comprensión de si mismos
depende de la vitalidad de su cultura. Este requisito de reconocimiento
político de la particularidad cultural – que se extiende a todos – es compatible con una forma de universalismo que considera entre sus intereses básicos la cultura y el contexto cultural que valoran los indivíduos
(GUTMANN, 1993, p. 13 e 16)
A necessidade de políticas de reconhecimento não pode ser relegada apenas à esfera da cultura, mas coadunada na esfera política, havendo
assim, possibilidades diversas de tratamento político dessas demandas
por diversidade cultural, alem de possibilitar a abertura para a crítica às
25
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instituições políticas e mecanismos econômicos que reproduzem desvantagens (COSTA, 2001).
Neste sentido, o multiculturalismo sugere que o momento da ‘diferença’
é essencial à definição de democracia como um espaço genuinamente heterogêneo. Para tanto,
Deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas nas
quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a
negociar dentro de um horizonte mais amplo. É essencial que esse espaço permaneça heterogêneo e pluralístico e que os elementos de negociação dentro do mesmo retenham sua différance. Eles devem resistir
ao ímpeto de serem integrados por um processo de equivalência formal,
como dita a concepção liberal de cidadania, o que significa recuperar
a estratégia assimilacionista do iluminismo através de um longo desvio
(HALL, 2003, p. 87).
Diante disso, podemos concluir que o multiculturalismo é um conceito
que compreende a diversidade de grupos sociais, respeitando suas diferenças
e particularidades. Que existe, por assim dizer, uma distinção sócio-cultural
entre os grupos, que lutam pelo reconhecimento social e que se afirmam através de uma oposição ao modelo de organização social universalista e igualitário da cidadania no Estado democrático de direito. A pluralidade de valores e
a diversidade cultural são manifestações próprias do multiculturalismo, que
revela a necessidade e a expressão da luta pelo reconhecimento no contexto
institucional da sociedade. Os indivíduos assumem a condição de membros
integrantes dos grupos culturais determinados. Os sujeitos individuais pertencentes aos Novos Sujeitos Coletivos10 participam do processo de afirmação
e luta pelo reconhecimento de seus direitos básicos e das suas necessidades
particulares. Em principio, os cidadãos devem integrar um contexto cultural
estável, que proporciona as significações e a orientação necessária para conduzirem seus modos de encaminhar a vida.
10
Os Novos Sujeitos Coletivos constituem-se em uma categoria que inclui os grupos sociais ou
voluntários que possuem interesses em comum.
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3. CONCLUSÃO: O DIREITO E O RECONHECIMENTO
É interessante ressaltar que as lutas pelo reconhecimento em países democráticos trazem em seu bojo a questão da acomodação dos diversos interesses e grupos dentro dos Estados constitucionais, principalmente mediante
concretização de direitos. Como explicita Rosales (2001, p. 89) “o que está
em jogo no debate multicultural não é somente a tolerância e o respeito da
diferença cultural, mas sim sua defesa como direito.”
Assim sendo, “as demandas por reconhecimento da diferença terminam
por se converter em uma poderosa exigência de reconhecimento da diferença
cultural como direito de grupo” (ROSALES, 2001, p. 81) é neste sentido que
“a experiência do multiculturalismo pode assim, caracterizar-se como resultado de um reequilíbrio constante entre as demandas de reconhecimento que
estabelecem as minorias e a capacidade integradora do sistema político, e em
última instância, do sistema constitucional” (ROSALES, 2001, p. 83).
O que se percebe é que as demandas multiculturais vêm proporcionar
uma crescente ampliação nos direitos constitucionais na maioria dos países
ocidentais.11 Entretanto, não bastam somente as lutas pelo reconhecimento
serem traduzidas em termos normativos constitucionais, mas também em
termos de ações políticas no campo institucional mediante a realização de
políticas públicas que buscam afirmar e administrar as diferenças culturais, e
identitárias utilizando estratégias que contemplem componentes lingüísticos,
sociais, econômicos, educativos, entre outros.12
Fica claro que a democracia contemporânea, diante do já mencionado
11
Podemos verificar tal situação, no caso brasileiro, com a inserção na Constituição de 1988 dos
direitos dos indígenas e dos negros.
12
No Brasil, estas políticas públicas começam a ser visualizadas por exemplo, nas administrações de poderes executivos, que buscam conciliar democracia e diversidade cultural, mediante institucionalização de políticas de cotas para acesso a universidades, tal como ocorrido na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, após a criação de uma lei estadual do ano de 2001; a instalação de
mecanismos de maior participação popular e de redistribuição de riquezas como a instalação do
orçamento participativo na gestão do ex-prefeito Olívio Dutra em Porto Alegre (1989-1992), ou ainda
como no exemplo da Prefeitura de São Paulo, que no ano de 1992 realizou duas exposições que
pretenderam desmistificar a questão indígena e a homogeneidade cultural presente no discurso
da nação: Índio no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo cultura e Pátria Amada Esquartejada,
sob o comando da Prefeita Luiza Erundina e da Secretária da Cultura Municipal Marilena Chauí.Cf.
MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São Paulo, n.
44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e de redistribuição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Disponível em: < http//www.
cfh.ufsc.Br/~dich/Textocaderno47.pdf> Acesso em 13 agosto. 2011.
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fato do multiculturalismo, tem utilizado o Direito como meio de integração
social, de pacificação de conflitos, de efetivação das muitas reivindicações
por demandas ético-culturais, de respeito às diferenças, do reconhecimento das identidades etc., ocorrendo assim um deslocamento do eixo político
para o jurídico.
Nesse sentido, a centralidade do Direito quando relacionada às pautas
multiculturais é vista não somente com um mecanismo de regulação social,
mas também de simetrização das relações interpessoais, apontando para seu
potencial transformador do contexto social. Como explica Semprini (1999, p.
164 e 165) “os multiculturalistas não ignoram a real dimensão da independência entre jurídico e político e à efetiva equidade da justiça”, denotando, porém,
que o direito cumpre um papel ativo, pois ele viabiliza a coalização entre as
esferas privada e pública, melhor dizendo, o Direito é chamado a formalizar e
a regulamentar a incapacidade da esfera privada de acomodar-se à mudança
sociocultural.
Entretanto, é de destacar que as políticas de reconhecimento, sendo em
termos normativos constitucionais ou em termos de políticas públicas apresentam certos dilemas. As demandas particulares que transformam direitos
em diferenças culturais, muitas vezes podem sobrecarregar o Estado com uma
pressão social cuja legitimidade ele não tenha os instrumentos políticos para
aferir (SEMPRINI, 1999). Para Rosales (2001), existem condições materiais
que limitam a modulação dos princípios que regulam no constitucionalismo
liberal o reconhecimento dos direitos, tais como, a falta de recursos para exercício dos direitos, tanto materiais quanto cognitivo; a má distribuição dos direitos no mundo real, além do problema de sua sustentação, já que requerem
custos monetários para práticas políticas.
Outra questão é o fato de que a integração via normativa pode acabar
por minimizar a diferença, transformando-a num pressuposto abstrato que
não valora a diferença por ela mesma, o que faz com que a diferença seja tolerada neste sistema democrático liberal e não valorizada mediante a concretização de direitos, ou ainda receba uma valorização num sentido superficial
e comercial ou de caráter folclórico e pitoresco. O diferente passa a ser visto
como aquele que não tem direito, fazendo com que a cultura seja dissolvida
em propostas abstratas e identificações universalizantes, o que faz perder a dimensão da diferença. Assim, não basta resolver os problemas somente na base
da igualdade de direito, faltando solução no plano de valoração das diferenças
culturais (MONTEIRO, 1996).
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Por fim, como lembra Celi (1999), é necessária para uma real inclusão
uma mudança de poder para que de fato haja maior possibilidade de inclusão
social das minorias desfavorecidas.
Apesar destes dilemas, não se pode olvidar a necessidade de conceber
políticas de reconhecimento dentro de uma teoria crítica do reconhecimento,
que albergue a um só tempo reconhecimento e redistribuição, ou seja, uma teoria que identifique e defenda políticas culturais da diferença que possam ser
combinadas com a política social de igualdade (FRASER, 2001). Isto porque
“no mundo real, cultura e economia política estão sempre imbricadas e virtualmente toda luta contra a injustiça, quando corretamente entendida, implica
demandas por redistribuição e reconhecimento” (FRASER, 2001, p. 248).
Ademais as lutas pelas identidades estão presentes em contextos de
crescentes desigualdades sociais, sendo que nas sociedades contemporâneas se encontram presentes tanto injustiças sócio-econômicas como injustiças
culturais, estando ambas enraizadas em processos e práticas que prejudicam
alguns grupos, devendo por isto serem remediadas (FRASER, 2001).
Para fazer frente a esta situação, Nancy Fraser coloca como necessária
uma noção de justiça social, que por um lado não se restrinja ao eixo da classe,
pois “a contestação abarca agora outros eixos de subordinação, incluindo a diferença sexual, a raça, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade”
(FRASER, 2002, p. 9) e por outro, “não se cinge só a questões de distribuição,
abrangendo agora também questões de representação, identidade e diferença”
(FRASER, 2002, p.9). Ou seja, a nova noção de justiça social deve abarcar as
preocupações da teoria da justiça distributiva e teoria cultural da justiça, que
são difíceis de se relacionar.
Como princípio coadunador entre redistribuição e reconhecimento, a citada autora propõe o princípio de paridade de participação, segundo o qual a
justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros da sociedade
interagir entre si como pares. Para isso é necessário tanto uma distribuição
de recursos materiais que garantam a independência e voz dos participantes
como também padrões institucionalizados de valor cultural que exprimam
igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para
alcançar a consideração social (FRASER, 2002). Assim, tem-se uma visão de
reconhecimento que promove a interação social respeitosa entre as diferenças
e não estimula os enclaves de grupo e a limpeza étnica (FRASER, 2004).
Nessa perspectiva, o que se deve reconhecer (FRASER 2004) é o status
de membro individual de um indivíduo pertencente a um grupo específico,
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enquanto parceiro integral na interação social, sendo a política de reconhecimento voltada à superação da subordinação por meio do estabelecimento da
parte não reconhecida como membro integral da sociedade, capaz de participar como igual da vida social.
Diante do que foi dito, percebe-se que a questão do multiculturalismo,
contemporaneamente, constitui como um dos maiores desafios ao Estado
–Nação no sentido de como gerenciar a diversidade cultural e seus conflitos dentro de um país em busca de uma unidade social, colocando à vista a
necessidade da incorporação dessas diferenças pelos sistemas democráticos
atuais, inclusive em seus ordenamentos jurídico-políticos, bem como de desmistificar uma pretensa homogeneidade cultural construída a partir do mito
da nação, incentivando e respeitando assim, a heterogeneidade. É na seara
deste contexto que surge a necessidade do debate do presente tema e o Direito
servir de instrumento na luta multicultural.
REFERÊNCIAS
1. CORTINA, Adela. Ciudadano Del Mundo: hacia uma teoria de la ciudadania. Madrid:
Alianza Editorial, 2001.
2. CASHMORE, Ellis. Verbete: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais.
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Recebido em: 17/09/2014
Aprovado em: 20/10/2014
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TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE
PRESERVAÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL, POLÍTICA
URBANA E POLÍTICA CULTURAL
TIPPING AS A MEANS OF PRESERVING THE HERITAGE,
URBAN POLICY AND CULTURAL POLICY
ALESSANDRA MARA DE FREITAS SILVA1
JESMAR CÉSAR DA SILVA2
RESUMO
O presente artigo busca analisar o instituto do tombamento a partir do
texto constitucional, que o define como um dos instrumentos que deve ser
utilizado para promover e proteger o patrimônio cultural. Será analisada a
questão da promoção do patrimônio cultural a partir do tombamento, no sentido de se utilizar o patrimônio tombado para melhorar e promover o meio
ambiente urbano e cultural e, por consequência, a educação e o implemento
de uma efetiva política cultural. Apontaremos algumas diretrizes para que o
Tombamento atenda seu fim através de três vertentes, bem como sua definição, sua utilização como política pública e sua relação com os particulares.
Por fim, o texto busca mostrar a relação do tombamento como planejamento urbano e sua importância ressaltada no texto constitucional através das
emenda nº 48 de 2005 e nº 71 de 2012, que trazem a previsão do planejamento
cultural através do Plano Nacional de Cultura.
1
Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade FUMEC. Graduada em
Direito pela Faculdade Milton Campos. MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas
e LLM em Direito pela Fundação Getúlio Vargas. Professora de Direito Administrativo, Deontologia
Jurídica, Ética e Prática Jurídica. Coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitário UNA
Belo Horizonte/Contagem. Professora de Direito Administrativo do Curso MERITUS ON LINE.
Professora de Pós Graduação na Estácio de Sá, IUNIB e diversos cursos para Concursos Públicos.
Professora da Escola de Formação de Soldados da Polícia Militar de Minas Gerais. Advogada
Associada no Escritório de Advocacia Ananias Junqueira Ferraz e Relatora da Comissão de Ética da
Ordem dos Advogados do Brasil. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Direito
Constitucional e Direito Administrativo.
2
Advogado militante, mestrando em Direito Público PUC MG, Pesquisador do NUJUP e Secretário
Geral da OAB Contagem.
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Palavras-chave: meio ambiente; proteção; cultura.
ABSTRACT
This article seeks to analyze the institution of tipping from the Constitution,
which defines it as an instrument that should be used to promote and protect
cultural heritage. The question of the promotion of cultural heritage will be
analyzed from tipping in the direction of using the equity tumbled to enhance
and promote urban and cultural environment and, consequently, education and
implement an effective cultural policy. Consider some guidelines for the Tipping
meets its end through three strands, as well as its definition, its use as a public
policy and its relationship with the individual. Finally, it attempts to show the
relationship of tipping as urban planning and its importance emphasized in the
constitution through the 48th amendment No. 2005 and No. 71 of 2012, bringing the prediction of cultural planning through the National Culture Plan.
Keywords: environment; protection; culture.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar o instituto do tombamento a partir do
texto constitucional, que traz expresso que o tombamento é um dos instrumentos que deve ser utilizado para promover e proteger o patrimônio cultural.
Primeiramente serão expostas a definição e utilidade do Tombamento
tendo por base a legislação brasileira. Em seguida, serão analisados os critérios para o Tombamento. Não será objeto do nosso estudo os procedimentos
para que o mesmo seja constituído.
Ainda, será explicitada a questão da promoção do patrimônio cultural a
partir do tombamento, no sentido de se utilizar o patrimônio tombado para
melhorar e promover o meio ambiente urbano e cultural e, por consequência,
a educação e o implemento de uma efetiva política cultural.
Abordaremos a acepção do Tombamento como Política Pública bem
como sua relação com o particular.
Por fim, o texto buscará mostrar a relação do tombamento como planejamento urbano e sua importância ressaltada no texto constitucional através
da emenda nº 48 de 2005 e emenda nº 71 de 2012, que trazem a previsão do
planejamento cultural através do Plano Nacional de Cultura.
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2. DEFINIÇÃO E UTILIDADE DO TOMBAMENTO
O artigo 216 da Constituição Federal Brasileira define expressamente o
que é patrimônio cultural brasileiro:
Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 2014).
As formas de proteção à cultura estão divididas entre os particulares e
o poder público que deverá, com a colaboração da comunidade, promover
e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação, podendo ser acrescentados todos os meios possíveis
de proteção e preservação da Cultura, desde que em harmonia com o texto
constitucional.
O Decreto-lei 25 de 30 de novembro de 1937 prevê que o patrimônio
histórico e artístico nacional é constituído de bens móveis e imóveis, particulares ou públicos, vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil e
bens de excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico, sendo
de interesse nacional sua conservação.
Destaca-se ainda que os monumentos naturais de feição notável que tenham sido dotados pela natureza ou gerados pela indústria humana devem ser
lançados nos livros tombos e em nenhum caso, podem ser destruídos, demolidos ou mutilados, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional.
Considerando que a norma constitucional recepcionou o decreto 25/37,
fica claro que o respeito à diversidade, aos meios de vida dos povos representa valor para sociedade que o rodeia; o que se produz e se produziu e teve
impacto na vivência histórica de cada indivíduo com relevância emocional
ou técnica artística, valorizando a coletividade o saber e o sentir coletivo; é
classificado como Patrimônio Cultural.
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Nos dizeres de Carlos Magno de Souza Paiva:
[...] a tutela jurídica de um bem cultural deve atender a um biônimo fundamental que deve ser considerado ao se adotar quaisquer das medidas
públicas de salvaguarda: relevância e reciprocidade coletiva. Justamente
por que o papel que o Patrimônio Cultural deveria exercer, enquanto
elemento reflexivo de um povo, hoje, não pode estar subjugado pela importância tecnocentrista. (PAIVA, 2011, p. 5).
Fica claro que o Patrimônio Cultural não se limita ao listado através
de caráter técnico pelos historiadores, antropólogos, arqueólogos ou críticos de arte, mas também decorre da vontade do povo em querer protegê-lo.
O tombamento é procedimento administrativo conduzido pelo executivo
na esfera da administração pública (Municipal, Estadual ou Federal), possibilitando a manifestação do proprietário do bem tombado, a avaliação
técnica do órgão competente, seguida da participação da sociedade por
meio de seus representantes no conselho deliberativo específico do local
do bem tombado.
O texto constitucional traz expresso que o tombamento é um dos instrumentos que devem ser utilizados para promover e proteger o patrimônio
cultural. Ao interpretar e aplicar a lei no que tange ao tombamento deve-se
observar o decreto 25/37 no que não for contrário a Constituição Federal.
Ressalta-se que proteger não é parar o bem no tempo, muito embora o
decreto mencione que em nenhum caso o bem poderá ser destruído, demolido ou mutilado, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. A Constituição Federal de 1988 traz clara a
questão da promoção do patrimônio cultural, que não tem apenas o caráter de
monumentalidade e de excepcionalidade trazido no decreto.
O procedimento do tombamento pode ser via judicial ou legislativa, ou
ainda através do MP ou da sociedade civil. Porém tais procedimentos não
terão aprofundamentos no presente artigo, o que se ressaltará é que patrimônio cultural deve ser promovido, no sentido utilizá-lo para melhorar e promover o meio ambiente urbano e cultural e por consequência a educação e o
bem estar da população.
Merece destaque que o Estatuto da Cidade, no seu art.4°, lista os instrumentos jurídicos do planejamento urbano e refere-se expressamente ao
“tombamento de bens imóveis ou de mobiliário urbano” (inc. V, alínea d). O
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tombamento é aí referido junto com outros institutos jurídicos, listados nas
várias alíneas dos seis incisos do referido art.4°, objetivando, simplesmente,
exemplificar os vários instrumentos que podem ser usados na gestão do planejamento urbano³.
Se não bastasse o tombamento ter sido incluído no Estatuto da Cidade
como instrumento de planejamento urbano, o texto constitucional através
da emenda nº 48 de 2005 traz a previsão do planejamento cultural através
do Plano Nacional de Cultura. O referido instrumento foi fortalecido com a
emenda 71 de 2012, com o objetivo de incentivar o desenvolvimento cultural
do País e a integração do poder público.
Busca-se através do expresso no texto Constitucional articular uma
Política Pública financeira para a defesa e valorização do patrimônio cultural
brasileiro; produção, promoção e difusão de bens culturais, formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões e; por
fim, a democratização do acesso aos bens de cultura. O texto constitucional
traz todas as normas estruturantes do sistema de implementação das políticas
culturais, devendo as políticas culturais observarem tais premissas para serem
efetivamente implementadas nos termos do texto constitucional. Assim, fica
claro que o tombamento por ser instrumento de promoção de cultura e por
estar integrado através do texto constitucional ao sistema Nacional de cultural, é instrumento também de política cultural.
Assim, definindo tombamento, entendemos que temos que romper a
visão do tombamento como limitação de direito de propriedade; trata-se de
instrumento de proteção e promoção ao patrimônio cultural, urbanização das
cidades e dinamização de políticas³.
Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida com Estatuto da Cidade,
regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências culturais, que busca tornar
o patrimônio ambiental urbano tombado um instrumento que pode ser utilizado nas esferas estaduais, municipais e federais para desenvolvimento social.
Merece destaque que a municipalidade origem do tombamento deve ser
valorizada e dada um especial importância face a regionalidade dos valores
culturais.
Outrossim, nos casos em que a norma ativa federal ou estadual for compatível com as normas municipais, ambas devem ser aplicadas, por exemplo,
se a norma municipal for mais restritiva do que a federal (ou estadual), no
sentido de trazer maiores cuidados ao bem tombado, aquela será aplicável.
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3. CRITÉRIOS PARA O TOMBAMENTO
Conforme exposto, o Tombamento é instituto de preservação ao patrimônio cultural, política urbana e política cultural, assim, quando este instituto
for utilizado é devemos ter em mente a viabilidade do atendimento dessas três
vertentes. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, traçaremos aqui algumas
diretrizes para que o Tombamento atenda seu fim.
O diálogo na produção do tombamento é importantíssimo, de nada
adianta a Administração Pública vir através de ato unilateral determinar o
tombamento do bem. É necessário que os cidadãos locais sejam atores principais nesse processo e reconheçam o bem como passível de tombamento.
Conforme dito, o caráter de monumentalidade e excepcionalidade do bem,
não significa o sucesso do tombamento no sentido da promoção do patrimônio cultural.
O bem pode ter monumentalidade, mas sem o envolvimento da sociedade, isso pode significar seu definhamento e não promover políticas urbanas e
culturais. Quanto mais o bem tombado encontrar-se inserido em uma política
cultural e urbana, mais ele será valorizado, visto, respeitado e poderá inclusive
dar retorno financeiro a população do entorno, sendo que no caso de bem
particular o retorno financeiro é direito do seu proprietário. Núcleos urbanos
são organismos dinâmicos e complexos, o acervo cultural preservado pode
abrir possibilidades econômicas de desenvolvimento e indicar alternativas de
sustentabilidade local.
Assim, se o bem tiver apenas o caráter de monumentalidade ou excepcionalidade não será suficiente para o sucesso do tombamento, tem que haver
em conjunto ações públicas e privadas que valorizem o planejamento urbano
do entorno e ainda políticas culturais que valorizem o uso e apropriação do
bem pela população, incluindo trabalho educacional com a população para a
valorização do bem.
Embora o bem possa ser particular, o seu destaque é coletivo e deve ser
valorizado por todos, pois seu tombamento se deu por questões que interessam a toda a sociedade. Surge assim mais um viés do tombamento que é o
educativo, na medida em que a população a partir do tombamento pode se
enriquecer culturalmente e fortalecer sua identidade com o lugar resgatando
vivências importantes.
É recomendável um trabalho educacional e promocional sobre o bem,
informador e formador da população do entorno, pois o poder público corre
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o risco de entregar para a população algo que a população não está preparada
para receber e que por consequência, pode não ser valorizado, pois como já
exposto, deve haver o reconhecimento do bem tombado. Assim, o tombamento realmente atenderia a “função social da propriedade” A identificação do
bem objeto de tombamento deve ser criteriosa.
Nesse sentido observemos que numa época na qual a universalidade das
técnicas de construção e das formas arquitetônicas ameaça provocar uma uniformidade nos assentamentos humanos, a salvaguarda dos complexos históricos tradicionais pode contribuir para o aprofundamento dos valores culturais
e sociais próprios de cada nação, e favorecer o enriquecimento do patrimônio
cultural mundial do ponto de vista. Seguimos o entendimento da Professora
Marinella Machado Araújo sobre a função social da propriedade exposto no
texto abaixo:
[...] a expressão função social da propriedade empregada com sentido de
qualquer limitação ao direito de propriedade tendo em vista um fim de
natureza pública e que em nossa ordem jurídica, em razão do modelo de
Estado Democrático por ela adotado-democrático participativo. E que
o interesse público que justifica a persecução deste fim é compreendido
como todo o interesse privado que se projeta na esfera pública em razão
de racionalidade de seus fundamentos e da necessidade de coerência da
atuação do Poder Público com o princípio a solidariedade característicos
desses modelos arquitetônicos. (FERNANDES, 2010, p. 193)
A preservação não pode ser dissociada da modernização das cidades,
dinâmicas por excelência. Sobre o direito à cidade destacamos:
O direito à cidade é composto por feixe de direitos que incluem o direito
a moradia (implícita a regularização fundiária), à educação, ao trabalho,
à saúde, aos serviços públicos (implícito o saneamento), ao lazer, à segurança, ao transporte público, à preservação do Patrimônio Cultural, histórico e paisagístico, ao meio ambiente construído equilibrado (implícita
a garantia do direito a cidades sustentáveis). (CAVALLAZZI, p. 130).
Se não bastasse o critério técnico (urbanístico, histórico e cultural), a
participação da sociedade civil é imprescindível na elaboração de normas,
principalmente em se tratando da nossa Constituição Federal, que traz como
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fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio democrático e a
soberania popular (art. 1º e art. 14 da CR/88).
A necessidade dessa participação é melhor compreendida na medida em
que reconhecemos os cidadãos como destinatário e coautores das normas.
Essa co-originariedade normativa, traduzida e aplicada à cooperação interinstitucional pode dimensionada em maior responsabilidade e eficiência das
instituições à medida que cada um reconhece a responsabilidade que lhe cabe
e dela se apropria como coator da norma. Principalmente, as normas sobre
planejamento, ordenação e desenvolvimento do solo urbano, uma vez que,
em verdade, cerca de 80% dos brasileiros, segundo o IBGE, vivem em cidades.
Assim, o indivíduo cidadão, além de destinatário da prestação do
Estado, é também corresponsável juntamente com ele pela construção do
que é interesse público informador das ações desenvolvidas pelo Governo/
Administração Pública como políticas públicas, por exemplo.
O interesse público é, então, visto como todo o interesse privado na esfera pública por força da racionalidade do discurso decorrente de relações dialógicas. Essa concepção de construção de interesse público implica mudança
de postura tanto do gestor público, quanto do cidadão. O gestor deve buscar
uma mudança de postura de modo a chamar pra si a responsabilidade pela
eficiência da gestão, e o cidadão deve buscar mecanismos de participação ao
invés de responsabilizar o Estado. A iniciativa de transformação individual
repercute sobre o coletivo (ARAUJO, 2010, p 144).
O Tombamento, dado seu viés cultural, educacional, urbanizador desempenha papel de saneamento social na organização das cidades.
4. TOMBAMENTO E PLANEJAMENTO
Já vimos que o Tombamento é ato administrativo e que pode ter sua
origem no âmbito municipal, estadual ou federal seguindo políticas culturais,
protegendo o patrimônio e privilegiando a evolução das cidades; assim, é imprescindível que o tombamento seja objeto de planejamento.
O tombamento isolado não é suficiente, pois planejamento não é o fim
e sim o meio. É dever formular e executar as políticas culturais. A eficiência
do planejamento administrativo, financeiro e orçamentário depende da adequação à realidade social, econômica, administrativa da unidade federativa e
da legitimidade das ações propostas. Quanto maior o consenso sobre as ações,
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maior a força vinculante da decisão, que só é possível obter por meio da participação popular na gestão pública (ARAUJO, 2010, p. 145).
Considerando que o tombamento é um ato administrativo dentro do
planejamento do poder público é:
O direito que condiciona a criação e execução de soluções, políticas
e programas pela administração Pública. O dever básico do administrativista é trabalhar na ampliação do leque de alternativas para a ação
administrativa encontrar no direito sua base e seus limites, mas sem
comprometer a extensão da função criadora que a administração tiver
recebido da legislação, nos termos constitucionais. A grande missão do
administrativista contemporâneo não é tolher a criação administrativista para defender o espaço do legislador; é assegurar que o direito, em
suas múltiplas formas, influa o espaço de deliberação administrativa,
mas sem monopolizá-lo. (SUNDFELD, 2012, p. 136).
A questão do planejamento nas áreas onde se dará o tombamento deve
ser verificada, o entorno deve garantir que as novas edificações se harmonizem ou complementem as edificações tombadas, deve haver melhorias no
meio ambiente, integração da sinalização, garantia que o trânsito se harmonize com a passagem, instituir benefícios fiscais e estímulos financeiros para
a recuperação das edificações do entorno, educação patrimonial e conscientização histórica, projetos para viabilizar a exposição do bem tombado e sua
exploração econômica no sentido de gerar renda não só para o proprietário,
mas para o entorno. Enfim, o tombamento deve vir acompanhado de uma
série de benefícios para a população e não isolado.
A Professora Marinella Machado Araújo bem destaca a função executiva
para implementar o planejamento e efetivação das ações pelo poder público:
A função executiva, que se desdobra na função política e na função
administrativa, deve ser concebida de forma integrada. Um dos fundamentos da administração pública dialógica é a integração dessas duas
funções: uma não vai abduzir a outra. É preciso pensar a função administrativa de forma articulada com a função política e vice-versa. Como
formulador ou como governante, é preciso pensar naquele que vai aplicar aquela legislação. Esse movimento de integração coloca o governante
na condição de administrador público e vice-versa, criando condições
para uma maior colaboração (ARAUJO, 2010, p. 149).
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Sobre o planejamento especificamente no tocante ao tombamento importante mencionar que, no seio desse debate, vem sendo redefinida a importância do planejamento territorial para a efetividade das políticas de proteção
ao patrimônio cultural, bem como o reconhecimento crescente da necessidade de integração entre órgãos de planejamento urbano, tutela ambiental e órgãos culturais, que gradualmente tem ganhado uma grande importância para
a garantia da gestão de políticas eficientes na tutela do patrimônio cultural
brasileiro (SUNDFELD, 2012, p. 136).
A Secretaria de Cultura ou o órgão responsável pela cultura na
Administração Pública deve ter uma interface planejada com o urbanismo.
Merece atenção o tombamento de conjunto, tombamento de áreas que não
se restringem a apenas um bem. Tais tombamentos não podem ter o condão
de restringir a evolução e a qualidade de vida da área. As possibilidades de
desenvolvimento do conjunto tombado, implicações culturais, sociais, econômicas e políticas devem ser consideradas nestes tombamentos. É necessário
um diálogo permanente entre conservadores urbanistas e gestores culturais,
possibilitando requalificação dos espaços urbanos tombados.
Políticas participativas são necessárias, não envolvendo apenas os moradores das áreas afetadas, mas também associações locais, câmaras de comércio e demais agentes com interesse nas áreas a serem protegidas devem fazer
parte da ação planejadora do tombamento. A inserção de jovens neste processo através da educação e da capacitação profissional é indispensável para
os objetivos do tombamento. O morador não pode crescer distanciado de seu
próprio ambiente, não pode ser afastado aquele que melhor pode conservar e
valorizar o bem tombado.
A Administração Pública deve ser voltada para o futuro. No Estado
contemporâneo, extremamente complexo, seria impensável que a lei sempre determinasse, até os últimos pormenores, qual deveria ser o comportamento e a atuação dos diferentes agentes administrativos. A noção que
a Administração pública é meramente aplicadora das leis e tão anacrônica
e ultrapassada quanto à de que o Direito, seria apenas um limite para o
administrador. Por certo, não prescinde a Administração Pública de uma
base ou de uma autorização legal para agir, mas, no exercício da competência legalmente definida, têm os agentes públicos, se visualizado no estado
globalmente, um dilatado campo de liberdade para desempenhar a função formadora que é hoje universalmente reconhecida ao poder público.
(SUNDFELD, 2012, p. 136).
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A lei fria não garante nada, tem que haver um conjunto de ações e envolvimento no que tange ao tombamento. Não é difícil comprovar essa ideia.
A lei nacional de tombamento (Decreto 25/37) especifica exatamente quais
são as restrições que a administração pode impor ao direito de propriedade.
Segundo a lei, em seu art. 17, as coisas tombadas não poderão, “em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização
especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas”.
A solução normativa parece perfeita pela lógica. Tem quem considera
que o importante é a própria lei quem deve definir as restrições possíveis.
De fato, as restrições estão legalmente definidas, porém não basta apenas a
restrição legal. Na experiência com o tombamento em todo o Brasil, o que
conteve a arbitrariedade administrativa nesses anos todos não foi a densidade
substantiva do art. 17 da lei, mas os aspectos institucionais de que a legislação
cuidou: o tombamento tem de ser feito por processo administrativo, a competência é de um colegiado de especialistas, as competências tem limitações
finalísticas etc. (SUNDFELD, 2012, p. 136).
O planejamento do tombamento deve ser ainda combinado com aspectos de zoneamento e preservação, posturas municipais, isenções fiscais, entre
outros, numa tentativa de se integrar a preservação e planejamento urbano. A
administração pública deve buscar resultados concretos, conforme lição do
prof. Carlos Ari:
O que os administrativistas têm que fazer é trabalhar no aperfeiçoamento tanto teórico como normativo dos outros mecanismos jurídicos
que não a vinculação da administração ao legislador. Precisam contribuir mais na discussão sobre quais são arranjos institucionais administrativos capazes de garantir os valores democráticos e os direitos,
quando da tomada de decisões. Precisam investir suas energias nos
debates sobre as várias classes de processo administrativo, especialmente as audiências e consultas públicas de projetos de regulamento.
(SUNDFELD, 2012, p. 136).
Deve haver a visão global, não se deve ficar restrito a apenas a um órgão
da administração pública. “Muitas ações de planejamento ficam concentradas
no universo do órgão que as concebe em razão da falta de visão global do
planejamento”. (ARAUJO, 2010, p. 148).
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O tombamento como instrumento isolado tem gerado efeitos perversos,
tem congelado a realidade, a história, a dinâmica da vida, tem realizado um
pacto com a fotografia: ao capturar a vida, inviabiliza a continua transformação da paisagem urbana. (CAVALAZZI, 2010, p. 139)
É dever através do tombamento implementar políticas culturais, urbanas,
educacionais e inclusive desenvolvimento econômico.
5. PODER PÚBLICO E O PARTICULAR NA MANUTENÇÃO
DO PATRIMÔNIO TOMBADO
Conforme já exposto é importante que ultrapassemos a visão do tombamento como limitação de propriedade, através de incentivos tais quais a
adoção de medidas compensatórias como isenção de IPTU para o bem que
esteja e bom estado de conservação e com suas características arquitetônicas
e decorativas relevantes respeitadas; isenção de ISS dos serviços de reforma,
reestruturação ou conservação de imóveis de interesse histórico ou cultural
ou de interesse para preservação ambiental, desde que visando a recolocá-los
ou a mantê-los em suas características originais relevantes; isenção da Taxa
de Obras em Áreas Particulares reconhecidas como de interesse histórico,
cultural ou ecológico, desde que visando a recolocá-las ou a mantê-las em
suas características originais relevantes Além de políticas públicas, são instrumentos para que o particular se interesse pela proteção e manutenção do
bem tombado.
Ademais, também existe uma possibilidade de garantir verbas para a
manutenção dos prédios históricos por meio da Lei 8.392, de 2008. Em seu
artigo 5º, a Lei prevê o financiamento de projetos que envolvam os patrimônios históricos e culturais, como as obras de manutenção e restauro dos
mesmos. O proprietário pode apresentar um projeto da obra que vai fazer e
submetê-lo à aprovação como qualquer outro empreendedor que entre com
um projeto na Linc. Ele tem todas as possibilidades de conseguir, desde que a
comissão entenda pela viabilidade da obra. E ainda a Lei Federal de Incentivo
à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), conhecida também por
Lei Rouanet. trás possibilidades de captação de recursos para investimento
em bem tombado.
Outro instrumento de incentivo é a transferência do direito de construir. A partir do momento em que um imóvel é classificado como digno de
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preservação, a possibilidade de eventual construção é eliminada. O proprietário não poderá destruir o bem que se pretende preservar para fazer no empreendimento, porém poderá utilizar-se do potencial construtivo permitido
para a zona em que se situa.
O proprietário não é impedido de exercer seus direitos sobre o bem,
sendo que a restrição imposta é parcial, o que, em regra não garante ao proprietário direito a indenização, salvo se demonstrar que o prejuízo adveio do
tombamento. Não entraremos no mérito se essas compensações, isenções ou
incentivos, são suficientes, porém é importante manter o diálogo e estimular
a participação propositiva para dar contornos mais viáveis para o desenvolvimento econômico e social através do Tombamento.
Transferir unilateralmente a responsabilidade do cidadão para os agentes públicos mascara o problema e dificulta sua solução. Tratar o Estado como
oponente do cidadão indivíduo é um equívoco e leva a cisão entre os papéis
desempenhados pelo gestor público e pelo particular. Sobre a transferência
do Direito de Construir é muito esclarecedor artigo: “Tombamento e transferência do Direito de Construir: Dois institutos que se complementam”. Cap.
9. GASPARINI, Audrey. FERNANDES, Edésio; AFONSIN, Betânia (coord.).
Revisitando o instituto do tombamento . Belo Horizonte: Fórum, 2010. Cidadão
na construção de uma sociedade mais justa e a concorrência entre o interesse
público e privado ( ARAUJO, 2010,p 145).
E continua a Professora Marinella:
A superposição de papéis sociais e políticos leva ao conflito de interesses
e de posturas. Somos cidadãos e gestores, propositores e destinatários de
leis. Como indivíduos, reivindicamos políticas públicas, direitos fundamentais que correspondam cada vez mais às nossas demandas pessoais.
Como gestores, sabemos que limitações econômico-financeiras impõem
barreiras à satisfação desse direitos. Essa percepção de público e privado
vicia processos políticos e contribui para que LUHMANN denomina
acoplamento estrutural dos sistemas político e jurídico e NEVES considera ser das razões para a força simbólica de direitos no Brasil (ARAUJO,
2010, p. 146).
O tombamento deve ser visto como uma oportunidade principalmente para o estímulo ao consumo cultural pela sociedade. A sociedade tem
que consumir mais cultura, gerando renda e ficando mais culta. No caso do
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tombamento, valorizando sua história local, criando maior sensação de pertencimento ao local e um o ambiente urbano sustentável.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Num país tão diverso como o Brasil a regionalidade deve ser respeitada.
O Tombamento isolado não é suficiente par seu fim constitucional, devendo
ser fruto de uma ação planejada promovendo a cultura, o urbanismo, a educação, protegendo realmente o patrimônio cultural como um todo e não apenas
o bem.
Ações educacionais conjuntas ao tombamento são um ganho para a sociedade ao aumentar a sensação de pertencimento dos cidadãos valorizando
o meio ambiente urbano. O Tombamento não pode ser visto pelo particular
como uma punição ou como um instrumento que para seu bem no tempo. O
tombamento deve ser visto como uma oportunidade para desenvolvimento
social na medida em que for implementado com base no que dispõe o texto
constitucional.
Mecanismos de incentivo ao particular para proteger o bem tombado
são fundamentais para a visualização de retorno rápido no que tange ao tombamento. O particular mais pragmático, dono do bem tombado, não enxerga
as políticas públicas como um ganho. A esse particular devem ser dados mais
incentivos, evitando inclusive que o bem perca valor em razão do tombamento, o que geraria indenização e significaria mais ônus para os cofres públicos.
O planejamento por parte do poder público e a efetiva participação da
população é essencial para que o tombamento alcance seu fim constitucional
de ser instrumento de preservação ao patrimônio cultural, política urbana e
política cultural.
REFERÊNCIAS
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cooperação Interinstitucional: construindo administrações dialógicas. In: CASTRO,
Erika de et al. (Org.). Inclusão, colaboração e governança urbana: perspectivas brasileiras. Rio de Janeiro; Observatório das Metrópoles, 2010.
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1998.
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3. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br> Acesso
em: 21 out. 2014.
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de 1988: a autonomia dos direitos Culturais. São Paulo: Revista CPC USP nº 6, p. 21-46,
maio 2008/out. 2008.
5. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília Jurídica, 2000 Cultura e democracia
na Constituição Federal de 1988: a representação de interesses e sua aplicação Programa
Nacional de Apoio à Cultura. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.
6. FERNANDES, Edésio; AFONSIN, Betânia (coord.). Revisitando o instituto do tombamento. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
7. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
8. PAIVA, Carlos Magno de Souza. A tutela Jurídica do Patrimônio Cultural. Contagem.
Revista por dentro da História, ISSN 2177471-4, 2011.
9. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. Editora Malheiros, 2012.
Recebido em: 20/10/2014
Aprovado em: 28/10/2014
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AS LEIS DE ANISTIA E AS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS
ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO1
RESUMO
O presente artigo busca analisar se, na transição de um regime ditatorial
para outro democrático ou para a consolidação democrática, deverão os responsáveis pelas violações de direitos fundamentais serem julgados, ou não.
Para esta análise serão consideradas as três ondas de transição democrática de
Samuel Phillips Huntington bem como a necessidade de serem criadas regras
para se legitimar “a justiça nos processos de transição”.
Palavras-chave: anistia, transições democráticas, justiça de transição.
ABSTRACT
This study aims to examine if in the transition from a dictatorial regime to
a democratic regime or to democratic consolidation, should those responsible for
violations of fundamental rights being judged or not. For this analysis are considered the three waves of democratic transition Samuel Phillips Huntington as
well as the need to create rules to legitimize “ justice in the process of transition.”
Keywords: amnesty, democratic transitions, transitional justice.
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, foi crescente a prática, por parte de alguns Estados,
de outorgar a Anistia a acusados da prática de crimes políticos. O vocábulo “anistia” vem da palavra grega “amnestia”, que significa esquecimento. No
ordenamento jurídico brasileiro Anistia “significa o esquecimento de certas
infrações penais” (DELMANTO, 2010, p. 165).
Ao longo dos últimos 25 anos, muitos países têm recorrido à legislação
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Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Bacharel em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado da União. Professor do UniCEUB - Centro
Universitário de Brasília.
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nacional, de alguma forma, para atenuar a transição de regimes ditatoriais
para governos democráticos. Nos anos 70, devem ser mencionadas anistias
concedidas pelo governo de transição da Espanha, Grécia e Portugal, mas
também a concedida pelo Presidente Ford para beneficiar o seu antecessor
Nixon, o que alguns autores consideram a origem de uma prática indulgente
com a impunidade. Nos anos 80 seguiram anistias concedidas pela Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru
e Uruguai, além de mais de uma dúzia de países Africanos. Nos 90 foram
acrescentadas a esta lista anistias emitidas por El Salvador, Haiti, África do Sul
e a Ex-União Soviética.
Costuma-se afirmar, com certa frequência, que a rejeição à anistia se
dá em razão de que supostas violações dos direitos humanos acabam por se
tornar impunes. Em muitos casos no ordenamento jurídico mundial, essa foi
justamente uma exceção. Há vários exemplos de procedimento de anistia que
foram consideradas pela própria Organização das Nações Unidas (ONU),
como anistias legítimas, por exemplo, no Haiti, Camboja, El Salvador e África
do Sul.
2. AS TRÊS ONDAS DE TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA
Samuel Phillips Huntington, idealizador da chamada teoria das “Três
Ondas”, sustenta a existência de três períodos distintos de transição democrática. Huntington (1991, p.15) define uma “onda de democratização” como
“um conjunto de transições não-democráticas para regimes democráticos que
ocorrem dentro de um período específico de tempo, e que suplantam significativamente transições no sentido inverso ao longo desse tempo.”
A primeira onda de democratização, um longo e lento processo, que
durou quase um século (1828 a 1926), assistiu à transição de regimes não
democráticos em trinta e três países, todos eles situados na Europa, nas
Américas, além dos domínios ultramarinos da Inglaterra.
A segunda fase abrange o período compreendido entre 1943 e 1962,
onde se assistiu ao estabelecimento ou restabelecimento dos regimes democráticos em quarenta países, incluindo, dentre outros, os recém independentes Estados pós-coloniais.
Agora, estar-se-ia durante a terceira onda, que teve início em 1974 com o
recuo dos governos autoritários no sul da Europa (Portugal, Espanha e Grécia)
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e da América Latina, seguidas da recuperação e restauração de democracias
que culminaram com a abertura democrática no leste europeu e nos estados
sucessores da União Soviética, após o seu colapso.
Nesse contexto, pode-se verificar que a maioria das transições na
América Latina, África e Leste europeu ocorreram em uma fase de maior
desenvolvimento do sistema de proteção internacional de direitos humanos,
diante da existência de organismos institucionais efetivos, também na ordem
interna, de proteção aos direitos fundamentais.
Ao mesmo tempo, verificou-se um crescimento no número de denúncias
de violações a tais direitos. O peso da opinião pública, as campanhas públicas
de informação e ações desenvolvidas, sensibilizavam cada vez mais a opinião
pública internacional. Defensores dos direitos humanos, adquiram grande
projeção midiática com a atribuição de prêmios internacionais.
Com a derrocada dos regimes do centro e leste europeu e o fim de uma
série de ditaduras “tradicionais” na África, Ásia e América Latina, muitos regimes viram-se “obrigados” a revelar algumas vulnerabilidades, e a dar pelo
menos uma imagem de transparência e de prestação pública de contas, patrocinando a apresentação de relatórios e inquéritos sobre as mais diversas
matérias de discussão pública.
A análise da informação acima permite concluir algo que já se sabia: nos
países com passado e tradições democráticas, como são os casos, do Uruguai
e Chile, da República Tcheca, ou da Polônia, os processos de transição foram
muito mais fáceis. De fato, com a existência de ONGs, imprensa livre, uma
opinião pública avisada e relatórios (concluídos e esclarecedores), viabilizou-se a progressão do processo político democrático.
Nos países com menor tradição democrática, os relatórios não foram
concluídos, ou não foram tornados públicos, revelando-se a fragilidade das
opiniões públicas, a força dos detentores do poder, ou das forças responsáveis
por grandes abusos. Nesses países pré-democráticos a revelação da verdade é
um elemento fulcral para qualquer transição.
Todo processo de transição é complexo, doloroso, provoca expectativas,
e, frequentemente, também desencantos e frustrações. Há um elemento até
agora novo, associado a todas estas transições democráticas: a importância
atribuída ao conceito de “direitos fundamentais”. E um reforço nos mecanismos de proteção internacional de direitos humanos por parte de novas entidades. Direitos humanos e democracia passaram a constituir termos fundamentais na terminologia política e filosófica contemporânea, base significativa
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das referências, discursos e das agendas políticas, adotados de forma cada vez
mais ampla por mais atores sociais e políticos.
3. VIOLAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTIAS E HUMANOS
Será que a “impunidade” das violações de direitos fundamentais pode
limitar os processos de transição e consolidação democráticos, em um quadro crescentemente transnacionalizado? Em vários ordenamentos jurídicos,
há candentes discussões a respeito da concessão de anistia a vários agentes
públicos, supostamente responsáveis, entre outras violências, pela prática de
homicídio, desaparecimento forçado, tortura e abusos sexuais contra opositores políticos, sob o argumento de que tal “perdão” violaria diversos preceitos
fundamentais.
Haveria algum padrão diferenciador na aplicação da justiça nas transições da “Terceira Onda” de Democratização relativamente ao ocorrido anteriormente? O que se pretende com o presente trabalho é abordar estas questões, naturalmente nos limites de um estudo desta natureza.
Nessa linha de ideias, pode-se afirmar que a transição democrática é o
processo que divide a dissolução de um regime autoritário e a instalação de
um regime democrático. A consolidação democrática corresponde ao período
pós-transitório, ou seja a fase da estruturação do regime democrático através
de mecanismos institucionais estáveis, seguros, reconhecidos e regularmente
exercidos pelos cidadãos. Ou seja, quando, para vencedores e vencidos não há
outra possibilidade de resolução dos seus diferendos, a não ser a democrática.
A questão do que fazer com os violadores de direitos, num sistema de
transição democrática constitui um elemento crucial nesta problemática por
ser um dos elementos mais distintivos da transição entre o “antigo” e o “novo”
regime, e também um elemento estruturador da consolidação democrática.
O questionamento sobre a justiça na transição pode permitir, reduzir, ou
estancar a violência política ou social, valorizar a intervenção da sociedade
civil na denúncia de violação de direitos, definir as relações e as responsabilidades com as instituições políticas (exército, polícias, serviços secretos)
responsáveis pelo regime autoritário etc. A justiça em processos de transição
pode ser, e frequentemente é, um acontecimento tão excepcional que pode
justificar medidas imediatas menos aceitáveis numa democracia consolidada. A ausência de medidas pode até desacreditar um governo ou frustrar
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expectativas. Francisco Panizza (1995, 170) já afirmava que “nos novos regimes democráticos, ou a Justiça vem rapidamente, ou ela não vem”.
Mas também há quem considere, sobretudo em transições “suaves”, que
sendo a imagem da aplicação da justiça um elemento importante para a consolidação democrática é necessário que a justiça nesta fase deva ser coerente e
utilize, desde logo, as regras próprias de uma democracia consolidada: visando o desenvolvimento da sociedade civil, a afirmação da sociedade política, a
dignidade do estado de direito, a credibilidade dos órgãos do Estado, a proteção de interesses econômicos.
4. PROCESSAR E PUNIR OU PERDOAR E ESQUECER?
Na transição, ou para a consolidação democrática, deverão responsáveis
pelas violações de direitos fundamentais ser julgados, ou não? Nesta questão
central há quem coloque o dilema entre “processar e punir” versus “perdoar
e esquecer”.
Os puristas são, em princípio pela realização de julgamentos, contra a
impunidade que desculpa os violadores e abandona as vítimas ao desespero,
vingança ou à violência; traindo a confiança das pessoas na mudança e na
democracia. Os pragmáticos preferem uma anistia, que reconcilie as divisões
existentes, restaure a esperança e não levante receios de novas perseguições.
Uma sociedade consolidada e estável assegurará a confiança nas instituições e
trará consigo a reconciliação. Os dirigentes devem pensar a longo prazo e não
patrocinar novas injustiças, instabilidade e vinganças. Os pragmáticos invocam
ser melhor explorar as possibilidades de qualquer abertura, os puristas tenderão a desconfiar da ausência de mudanças. Os puristas considerarão essencial o
combate aos anti-democratas; os pragmáticos dirão que eles seriam pré-democratas. Os puristas consideram a obtenção da democracia uma vitória política,
que embora se celebre, tem derrotados, e que estes devem perceber isso; os
pragmáticos acham que se trata de uma evolução, em que todos ganharão; para
os puristas a estabilidade e a reconciliação são uma conseqüência do estabelecimento da justiça e do primado da lei, para os pragmáticos a estabilidade e a reconciliação são uma condição da restauração do primado da lei (FEHER, 327).
Também podem ser apresentados outros argumentos a favor ou contra.
A favor de julgamentos: o novo governo tem o dever moral de o fazer, porque
a verdade e a justiça o exigem; é uma obrigação devida às vítimas; deve ser
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feita para prevenir futuras violações; é essencial para estabelecer a viabilidade
da democracia, ou a sua superioridade moral, restabelecendo normas, valores
e confiança; porque se trata de uma pedagógica prestação pública de contas,
que constitui um elemento-chave das sociedades democráticas.
Contra os julgamentos: as divisões do passado devem acabar, a compreensão entre grupos diferentes é importante para a democracia; sendo possível, ou frequente que haja abusos do governo e da oposição, é melhor que
as duas partes se encontrem socialmente reconciliados; os crimes do anterior
“Poder” tinham apoio público, ou foram realizados por razões superiores para
limitar males maiores.
As experiências da “Verdade e Reconciliação” foram iniciadas no Chile,
e aplicadas com sucesso em diversos Estados, como, por exemplo, na África
do Sul, nada obstante esteja a atravessar, atualmente, numerosos processos de
transição traumática. Para José Zalaquett (ROHT-ARRIAZA, p. 206), “punishment is of lesser importance. It is important, but ackowledgement is more
important […] if they ackowledge what happened and their role in it, then you
are ready to forgive. In this context, punishment is an instrument, an important one”. Naomi Roht-Arriaza (p. 206), explicando que os objetivos da justiça
devem ser reparar as violações cometidas e prevenir futuras, refere-se que a
necessária reconstrução moral da sociedade tem que incluir “elements of shaming, truth telling, institution building, punishment, but also of forgiveness, to
the extent that forgiveness is legitimate”.
Nesta perspectiva, o perdão não constituiria um ato gratuito e isolado,
mas antes parte de um processo de restauração de uma ordem moral, em que
o acusado admitiria os seus atos, que a verdade fosse revelada, que foi errado
o que fez, que não voltará a fazê-lo, compensando os prejuízos que provocou.
Os processos de realização de justiça nas transições democráticas do
pós-Guerra caracterizaram-se normalmente pela opção de julgar, acusar e
punir, tendo sido geralmente aplicados processos relativamente expeditos de
execução da justiça, sem excesso de preocupações com os padrões de justiça,
apesar de se ter verificado em sociedades democraticamente consolidadas.
Adotou-se o princípio da excepcionalidade da justiça na transição.
Isso fica patente, por exemplo, nos procedimentos excepcionais que
foram adotados nestes processos. Adoção de prisões ilegais, de processos de
culpa coletiva, adoção de processos com presunção de culpa (em vez de presunção de inocência), escolha selecionada de certos juízes, ausência de direitos de recurso, negociação de pena, legislação retroativa etc.
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As transições posteriores fizeram-se num quadro de maior respeito
pelas regras de justiça, muito dependentes do modo de transição e das circunstâncias políticas (na Grécia com julgamento dos responsáveis militares,
na Espanha anistia sem julgamentos, em Portugal ausência de política nesta
questão). Houve o reconhecimento, em qualquer destes casos, dos princípios
de uma justiça característica de uma sociedade democrática consolidada, ou
um peso relativamente forte de elementos do “antigo regime” na transição.
O conceito de justiça em geral, talvez seja o ponto decisivo para uma
aproximação adequada entre a política e o direito. A idéia do justo fornece legitimidade para o exercício do poder político e a compreensão do direito como
meio para alcançá-la torna possível o liame entre os âmbitos. Coincidência ou
não, é exatamente sobre a noção de justiça que tanto Hobbes quanto Kelsen
mais debruçam seus esforços teóricos.
Consoante Norberto Bobbio (1991) na introdução ao seu livro Thomas
Hobbes, consagrada ao filósofo homônimo:
entre jusnaturalismo e positivismo jurídico, meu Hobbes situa-se mais
do lado do segundo do que do primeiro. (...) A multiplicidade das interpretações – nas quais decerto, não pretendemos desconhecer a contribuição dada a um melhor conhecimento do pensamento hobbesiano
– terminou freqüentemente por obscurecer o núcleo forte desse pensamento, fazendo esquecer que, se há um autor que perseguiu por toda a
vida uma idéia, esse autor foi Hobbes, e que, se há uma obra na qual o
tema dominante é exposto com insistência, quase obstinação, essa é a
obra política do autor do Leviatã, livro que conclui a trilogia dos escritos
políticos. Essa idéia é a seguinte: o único caminho que tem o homem
para sair da anarquia natural, que depende de sua natureza, e para estabelecer a paz, prescrita pela primeira lei natural, é a instituição artificial
de um poder comum, ou seja, do Estado.
Sobre o conceito de justiça em Hobbes como o principal ponto de conexão entre direito e política, Celso Lafer (1991, p. 246) observa que “não há
direitos do indivíduo a não ser o direito à vida, que deriva da própria lógica
do sistema por ele construído, pois o critério do justo e do injusto resulta das
leis promulgadas pelo soberano”.
Thomas Hobbes (2003, p. 225), com objetivos políticos evidentes, concede ao direito um papel de grande relevo. Hobbes pretende evitar com sua
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teoria uma guerra de todos os homens contra todos os homens a qual teria
conseqüências funestas para a humanidade. Para isso, atribui ao direito positivo a função de estabelecer o que é certo e o que é errado de maneira válida
para todos os seus destinatários. Segundo o filósofo, “o conhecimento da lei
civil é de caráter geral e compete a todos os homens”.
A sujeição do homem é unicamente para com o Estado e “ninguém pode
fazer leis a não ser o Estado”. Para subsistir e alcançar seu escopo, o Estado
deve criar meios para que a justiça se efetive e estes são as leis civis que “são
as regras do justo e do injusto”. (HOBBES, 2003, 226). As regras formadoras
do direito positivo, por serem criadas pelo poder soberano – para Hobbes, o
poder soberano pode ser exercido tanto por um monarca quanto uma assembléia –, são dotadas de coerção. Com isso, controlam a conduta dos súditos
que, independentemente de concordarem ou não com seu teor, devem respeitá-las sob o risco da sanção. E o filósofo vai mais além ao afirmar que “onde
não há poder comum não há lei, e onde não há lei, não há injustiça”. Para
Hobbes, antes que dos conceitos de “justo” e “injusto”, é necessária a existência
do Estado que, por sua vez, cria as leis que obrigam os homens a cumprirem
seus pactos sob pena de sofrerem sanções por parte do Deus mortal, o temido,
respeitado e, sobretudo, desejado Leviatã.
Chaïm Perelman (2002, p. 364) nos ensina que “o papel tradicional do direito é organizar, efetivamente e de diversas formas, a dialética entre vontades
e razões humanas, logo imperfeitas” e, talvez justamente por tal característica
é que a filosofia hobbesiana outorgue tamanha importância à esfera jurídica.
Para Kelsen (2003, p. 67), “na medida em que a Justiça é uma exigência
da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre
a Justiça e o Direito”. Para ele (1998, p.3), a justiça é uma característica até
possível, mas não necessária de uma ordem social. O princípio basilar de sua
teoria é o de que as normas jurídicas são completamente independentes das
normas de justiça. Explica que “[...] como todas as virtudes, também a virtude
da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral.”
Especificamente no que tange à justiça, Hobbes (2003, p. 32) acaba por
encontrar uma definição que, como veremos, é decisiva para sua teoria: por
um nome nem sempre se entende, como na gramática, uma só palavra, mas
às vezes, por circunlocução, muitas palavras juntas, pois todas estas palavras
– quem nas suas ações observa as leis de seu país – constituem um só nome,
equivalente a esta simples palavra: justo.
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Segundo Norberto Bobbio (1991, p. 49), cabe ao soberano, e somente ao
soberano, estabelecer – através da emanação das leis civis – o que é torto e o que é
direito; disto deriva que, uma vez constituído o Estado, não existe para os súditos
outros critérios do justo e do injusto além das leis civis. Há inúmeras passagens
onde Hobbes reafirma esse conceito, que faz de sua moral uma das expressões
mais radicais do legalismo ético, ou seja, daquela teoria segundo a qual o soberano (...) não ordena o que é justo, mas é justo o que o soberano ordena.
A partir de tais definições é que se deve prosseguir na investigação da
função das leis e da justiça. Cabe ao poder soberano, primeiramente, preservar o Estado e, posteriormente, fazer com que o Estado cumpra seus fins. Para
o alcance da primeira meta, o poder soberano deve respeitar e fazer respeitar
o rol das leis de natureza – mantendo os pactos – e, a partir disso, buscar a
meta mediata de manutenção da paz e da segurança, essências de sua criação
e seu fim último. Para alcançar os objetivos do Estado, o poder soberano deve
utilizar-se de instrumentos controladores das paixões humanas, tornando efetivamente obrigatória a observância das leis de natureza.
5. CONCLUSÃO
Alguns autores formularam regras para se legitimar “a justiça nos processos de transição”. Afirma Yasmin Naqvi (2003, pp. 616-617), em seu trabalho intitulado “Anistia para os crimes de guerra: A definição dos limites
do reconhecimento internacional”, que devem ser observados os seguintes
critérios cumulativos para uma legitimação da anistia:
(1) a anistia deve ser considerada prescritível e limitar-se a atingir determinados objetivos, notadamente os objetivos dirigidos à garantia das
paz e àqueles voltados a seu aprofundamento ou a uma reconciliação;
(2) a anistia deve sempre vir acompanhada de outras medidas, como a
criação de comissões e organismos de investigação;
(3) a anistia não deve ser auto-proclamada, ou seja, deve ser resultado de
negociação entre os regimes de entrada e saída, ou de um acordo intermediado por outros Estados neutros, ou pelas Nações Unidas; e
(4) a anistia só se aplicaria a militares de baixa patente, ou integrantes de
baixa hierarquia de grupos armados, considerados como aqueles menos
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responsáveis pela perpetração de violação de direitos humanos.
No Chile o Decreto Lei n.º 2.191, de 1978, cuidou da anistia política. No
entanto, o Decreto Lei n.º 2.191/1978 foi duramente criticado pela doutrina
e pelos tribunais chilenos. Humberto Nogueira Alcalá (2005, p. 130), assim
discorre sobre o tema no artigo “Decreto Ley de Amnistía 2.191 de 1978 y su
Armonización Con El Derecho Internacional de Los Derechos Humanos”:
1. El Decreto Ley 2191 de 10 de marzo de 1978 de amnistía debe ser
interpretado conforme al bloque constitucional de derechos y en armonía
con el derecho internacional, por tanto, su interpretación debe realizarse excluyendo los delitos de lesa humanidad y las graves violaciones del
derecho internacional imperativo, ya que es dable presumir que el legislador no ha intentado derogar el derecho internacional consuetudinario
y soslayar el derecho internacional imperativo. En situación de eventual
conflicto entre dicho decreto ley y las normas de ius cogens y derecho
consuetudinario internacional y derecho convencional de los derechos
humanos, deben aplicarse preferentemente estas últimas; por tanto, el
decreto ley no es aplicable a los casos de tortura (apremios ilegítimos),
desapariciones forzadas (secuestro), ejecuciones sumarias u otros delitos
de lesa humanidad o crímenes contra la humanidad. Todo ello en el entendido que el legislador de la época dictó una legislación conforme a sus
obligaciones internacionales, de buena fe y con la voluntad efectiva de
cumplir los compromisos internacionales del Estado. Ello permite salvar
la norma cuestionada y hacerla aplicable sólo a los casos que no correspondan a crímenes de lesa humanidad o delitos contra la humanidad y
que no vulneren gravemente derechos humanos.
Na Argentina, as “Ley de Autoamnistía n.º 22.924/1983”, “Ley de Punto
Final n.º 23.492/1986” e “Ley da Obediencia Debida n.º 23.521/1987”, foram
devidamente revogadas pela “Ley 25.779/2003”.
No Peru, as Leis n.º 26.479 e 26.492, ambas de 1995, proporcionaram à
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) o julgamento do famoso
caso conhecido como “Barrio Altos”. Nessa sentença de 14 de março de 2001,
sustentou a Corte que as auto-anistias, excludentes de responsabilidade por
violações graves dos direitos humanos (como a tortura, as execuções sumárias
e extralegais, o desaparecimento forçado de pessoas), são inadmissíveis e, ao
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impedir o acesso das vítimas e seus familiares à verdade e à Justiça, são violadoras dos artigos 1(1), 2, 8 e 25 da Convenção (parágrafos. 41 e 43).
Em seu Voto Concordante nessa Sentença, o Juiz Antônio Augusto
Cançado Trindade ponderou que a pretendida legalidade no plano do direito
interno dessas auto-anistias, ao levarem à impunidade e à injustiça, encontravam-se em flagrante incompatibilidade com a normativa de proteção do
Direito Internacional dos Direitos Humanos, acarretando violações de jure
dos direitos da pessoa humana, em uma afronta inadmissível à consciência
jurídica da humanidade (parágrafos. 5-6 e 26). Ou seja, as leis de auto-anistia
estariam viciadas de nulidade ex tunc, de nulidade ab initio, carecendo, portanto, de todo e qualquer efeito jurídico.
Verifica-se, portanto, que últimos anos, Argentina e Chile optaram por
revogar suas leis de anistia e darem andamento à punição de alguns dos responsáveis pelos crimes de suas ditaduras. São situações distintas da do Brasil,
onde a magnitude da repressão foi bastante inferior, ainda que não se possa
subestimar a dor das chagas individuais. Nesses países vizinhos, o trauma dos
períodos de exceção foi tão profundo que o clamor por um acerto de contas se
manteve constante. Em relação à Argentina, as leis de anistia vieram depois do
fim da ditadura, como uma maneira de evitar o risco de novos levantes militares. Não houve, como no Brasil, uma transição negociada para a democracia.
No entanto, no caso do Brasil, a Lei n.º 6.683, de 28 de agosto de 1979,
sujeitou-se a questionamento, jurídico e popular, haja vista os debates sobre
a “abertura política”, retomados agora sob a égide do Estado Democrático de
Direito, que culminaram com a propositura da Argüição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n.º 153, ajuizada pelo Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, que questionava justamente a sua
constitucionalidade.
O artigo 1º da Lei n.º 6.683/1979, declara que “é concedida anistia a
todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15
de agosto de 1979, cometeram crime políticos ou conexos com estes”. O parágrafo primeiro desse mesmo artigo esclarece: “Consideram-se conexos, para
efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes
políticos ou praticados por motivação política”.
Fábio Konder Comparato, subscritor da petição inicial da ADPF n.º 130,
assim deixou consignado:
Ressalte-se, em primeiro lugar, que a citada lei foi votada pelo Congresso
Nacional, na época em que seus membros eram eleitos sob o placet dos
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comandantes militares. Sua carência de legitimidade democrática é acentuada quando se recorda que, por força da Emenda “Constitucional” n.º
08, de 14 de abril de 1977, que ficou conhecida como “Pacote de Abril”,
1/3 dos Senadores passaram a ser escolhidos por via de eleição indireta (“Senadores biônicos”), tendo participado do processo legislativo do
qual redundou a aprovação congressual, em 1979, da lei de referência.
Ela foi sancionada por um Chefe de Estado que era General do Exército
e fora guinado a essa posição, não pelo povo, mas pelos seus companheiros de farda.
Em conseqüência, o mencionado diploma legal, para produzir o efeito
de anistia de agentes públicos que cometeram crimes contra o povo, deveria ser legitimado, após a entrada em vigor da atual Constituição, pelo
órgão legislativo oriundo de eleições livres, ou então diretamente pelo
povo soberano, mediante referendo. O que não ocorreu.
Assinale-se, em segundo lugar, que num regime autenticamente republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar
criminalmente, que eles próprios, quer os funcionários que, ao delinqüirem, executaram suas ordens. Tal seria, obviamente, agir não a serviço
do bem comum do povo, mas em seu próprio interesse e benefício.
Vale registrar que a Corte Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Brasil no Decreto Legislativo n.º 89, de dezembro de 1998, já decidiu, em pelo menos 5 (cinco) casos, que é nula e de
nenhum efeito a auto-anistia criminal decretada por governantes”.2
Tem-se, portanto, diversos fundamentos teóricos que sustentam o
problema. Direitos fundamentais e democracia representam fenômenos distintos na esfera política, mesmo se os seus caminhos sempre se
cruzaram.
Nada obstante, o entendimento do STF no julgamento da referida ADPF
foi o seguinte:
A Lei 6.683/79 (Lei da Anistia) é compatível com a Constituição Federal
de 1988 e a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os
2
Petição inicial da ADPF n.º 130, pp. 23-24.
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crimes de qualquer natureza praticados pelos agentes da repressão no
período compreendido entre 2.9.61 e 15.8.79. Com base nesse entendimento, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pelo Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil em que se pretendia fosse declarada
a não recepção pela Constituição Federal de 1988 da Lei 6.683/79 ou
conferido ao § 1º do seu art. 1º interpretação conforme a Constituição,
“de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia
concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende
aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”. Inicialmente, o
Tribunal, por maioria, conheceu da ação, rejeitando todas as preliminares suscitadas. Vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio que assentava
a inadequação da ação. ADPF 153/DF, rel. Min. Eros Grau, 28.4.2010.
No mérito, afastou-se, primeiro, a alegação de que a Lei 6.683/79 não teria
sido recebida pela CF/88 porque a conexão criminal que aproveitaria aos
agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar ofenderia diversos preceitos
fundamentais. Quanto à apontada afronta ao art. 5º, caput, da CF (isonomia em matéria de segurança) — em razão de ter sido estendida a anistia
a classes absolutamente indefinidas de crimes —, afirmou-se, salientando a desigualdade entre a prática de crimes políticos e crimes conexos
com eles, que a lei poderia, sem violar a isonomia, que consiste também
em tratar desigualmente os desiguais, anistiá-los, ou não, desigualmente.
No que se refere à ofensa ao art. 5º, XXXIII, da CF — em virtude de ter
sido concedida anistia a pessoas indeterminadas, o que não permitira o
conhecimento da identidade dos responsáveis pelos crimes perpetrados
contra as vítimas de torturas —, asseverou-se que a anistia teria como
característica a objetividade, porque ligada a fatos, devendo ser mesmo
concedida a pessoas indeterminadas. Ressaltou-se, no ponto, que a Lei
da Anistia não impediria o acesso a informações relativas à atuação dos
agentes da repressão no período compreendido entre 2.9.61 e 15.8.79, e
que romper com a boa-fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 70 que pugnaram por uma
Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita implicaria prejudicar o acesso à
verdade histórica. Acrescentou-se estar pendente de julgamento na Corte
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a ADI 4077/DF, que questiona a constitucionalidade das Leis 8.159/91 e
11.111/2005, sensível para resolver a controvérsia político-jurídica sobre o
acesso a documentos do regime anterior. No que respeita à citada agressão
aos princípios democrático e republicano — ao fundamento de que para
produzir o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram crimes
contra o povo, o diploma legal deveria ser legitimado, depois da entrada em vigor da CF/88, pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres
ou diretamente pelo povo soberano, mediante referendo —, enfatizou-se
que o argumento adotado levaria não só ao afastamento do fenômeno da
recepção do direito anterior à Constituição, mas ao reconhecimento de
que toda a legislação anterior à ela seria, exclusivamente por força dela,
formalmente inconstitucional. No que tange à assertiva de desrespeito à
dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro que não poderia ser
negociada, e que, no suposto acordo político, a anistia aos responsáveis
por delitos de opinião servira para encobrir a concessão de impunidade
aos criminosos oficiais, tendo sido usada a dignidade das pessoas e do
povo como moeda de troca para permitir a transição do regime militar ao
Estado de Direito, reputou-se que se estaria a ignorar o momento talvez
mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da
anistia. Frisou-se que toda gente que conhece a história do Brasil saberia
da existência desse acordo político que resultara no texto da Lei 6.683/79.
Concluiu-se que, não obstante a dignidade não tenha preço, a indignidade
que o cometimento de qualquer crime expressa não poderia ser retribuída
com a proclamação de que o instituto da anistia violaria a dignidade humana. ADPF 153/DF, rel. Min. Eros Grau, 28.4.2010. (ADPF-153).
Dessa forma, embora aparentemente encerrada a discussão no âmbito jurídico interno, o Brasil poderá sofrer consequências e repercussões no
âmbito do direito internacional, notadamente no sistema regional de proteção
dos direitos humanos do qual faz parte.
REFERÊNCIAS
1. ALCALÁ, Humberto Nogueira. Decreto Ley de Amnistía 2.191 de 1978 y su
Armonización Con El Derecho Internacional de Los Derechos Humanos. Rev. derecho
(Valdivia), dic. 2005, vol.18, no.2, ISSN 0718-0950.
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
2. BOBBIO, Norbeto “Premissa” Thomas Hobbes, 1991, p. iv.
3. DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 8 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
4. FEHER, Michel, “Terms of Reconciliation” , Zone Books, p 327.
5. HOBBES, Thomas. Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
6. KELSEN, Hans. O problema da justiça. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
7. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
8. LAFER, Celso. Hobbes visto por Bobbio. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v.34,
9. n.164, p.243-247, 1991.
10. HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth
Century. Norman: University of Oklahoma Press, 1991.
11. NAQVI, Yasmin. Amnesty for war crimes: Defining the limits of international
recognition.
12. International Review of the Red Cross, Vol. 85 nº 851, setembro de 2003.
13. ROHT-ARRIAZA, Naomi, The Need for Moral Reconstruction in the Wake of Past
Human Rights Violations: An Interview with José Zalaquett, Zone Books, p 206.
14. PANIZZA, Francisco, Human Rights in the Process of Transition and Consolidation of
Democracy in Latin America. Political Studies. Volume 43, Issue Supplement 1, pages
168–188, August 1995 p. 170
15. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Recebido em: 20/10/2014
Aprovado em: 28/10/2014
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ENFRENTAMENTOS TEÓRICOS DA
PESQUISA CIENTÍFICA “PROCESSO COMO TEORIA
DA LEI DEMOCRÁTICA”, DE AUTORIA DE
ROSEMIRO PEREIRA LEAL
ANA FLÁVIA SALES1
RESUMO
Em linhas gerais, a proposição da pesquisa científica Processo como
Teoria da Lei Democrática, de autoria de Rosemiro Pereira Leal, é enunciar
um marco teórico para a produção de um direito legítimo e fiscalizável nas
democracias contemporâneas. Para realizar tal intento, o autor testifica a ciência dogmática do direito, tendo como método crítico o falibilismo popperiano e a Teoria Neoinstitucionalista do Processo. A partir dos enunciados
epistemológicos (Técnica-Ciência-Teoria-Crítica), conjectura-se a criação de
um direito pelos princípios autocríticos (contraditório-vida, ampla defesa-liberdade e isonomia-dignidade). O devido processo, na concepção da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo, enquanto marco teórico escolhido (teoria
bem testada), é que caracteriza a produção de um direito democrático; isso
porque os institutos jurídicos (contraditório, ampla defesa e isonomia) que
deram origem à lei são os mesmos que serão utilizados para interpretá-la,
aplicá-la, modificá-la ou extingui-la.
Palavras-chave: Devido processo; marco teórico; direito democrático.
ABSTRACT
In broad lines, the proposition of the scientific research Lawsuit as
Theory of Democratic Law, by Rosemiro Pereira Leal, aims at expressing a theoretical framework for the production of a legitimate and enforceable right in
1
Mestra em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista
em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada – IEC/PUC Minas. Bacharela em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Direito Processual Civil.
Atualmente, leciona na Faculdade Minas Gerais – FAMIG, no Centro Universitário UNA e na Academia
da Polícia Militar de Minas Gerais. Advogada militante. [email protected]
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
contemporary democracies. To accomplish such intention, the actor testifies
the dogmatic science of law, having as critical method the Popperian fallibilism and the Neo-institutionalist Theory of Process. From the epistemological
statements (Technique-Science-Theory-Critique), one conjectured the creation of a law through auto critic principles (contradictory-life, wide defense- freedom and equality-dignity). The due process in the Neo-institutionalist
Theory of Process conception was chosen as theoretical framework (well-tested theory) and characterizes the production of a democratic right, because
the legal institutes (contradictory, wide defense and equality) that gave rise
to law are the same that will be used to interpret, apply, change or abolish it.
Key words: Due process; theoretical framework; democratic right.
1. Considerações iniciais
O presente estudo tem por escopo realizar um apanhado geral da obra
Processo como Teoria da Lei Democrática (LEAL, 2010b), de autoria de Rosemiro
Pereira Leal. Contudo, é imperioso esclarecer que os apontamentos formalizados neste artigo não têm o condão de resumir o conteúdo do livro, e mesmo que
se quisesse fazê-lo, suplicar-se-iam várias leituras, dada a complexidade da pesquisa científica. Portanto, tem como propósito, tão somente, ministrar primeiras noções da obra ao leitor, principalmente para aquele que está iniciando seus
estudos jurídicos na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo.
O intuito da publicação surgiu após a seminarização da pesquisa para a
disciplina de Mestrado em Direito Processual (PUC Minas), “Elementos de
Técnica do Processo de Conhecimento”, lecionada pelo Professor Ronaldo
Brêtas de Carvalho Dias, que recomendou a publicação de uma resenha da
obra apresentada. Desse modo, atendendo ao pedido do Professor, bem como
dos meus dedicados colegas de Mestrado, aceitei o desafio em escrever este
texto, externando algumas (vale ressaltar, poucas) compreensões da pesquisa científica. Saliente-se que o faço com o consentimento e a aprovação do
Professor Rosemiro Pereira Leal, tendo em vista que toda reflexão constante neste artigo advém dos meus insistentes estudos de suas tantas pesquisas
científicas (livros e artigos), bem como de seus elucidativos ensinamentos,
generosamente ofertados nas aulas para os cursos de Mestrado e Doutorado
em Direito Processual (PUC Minas). Confesso que, sem essa base, seria impossível o empreendimento de tal esforço.
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Após essas considerações, importante enunciar o percurso utilizado para
elaboração do presente artigo. Inicialmente, far-se-á uma explanação geral da
obra analisada (Processo como Teoria da Lei Democrática), a fim de expor o
objetivo central da pesquisa (Item 2). Posteriormente, buscar-se-á esclarecer
a metodologia empregada por Rosemiro Pereira Leal, que o guiará na criação
de um novo marco teórico para a produção do direito (Item 3). Antes de se
adentrar no tema central da pesquisa, realizar-se-ão incursões sobre a lógica
clássica (geral e modal), explicitando por que o autor entende que ela desserve
à compreensão de um direito democrático, o que o conduz a acolher uma
nova lógica, a situacional (Item 4). Adentrando o cerne da pesquisa, far-se-á
uma abordagem dos três “modelos” de Estado, com o intuito de demonstrar
por que o autor descarta a teoria habermasiana, principalmente a concepção
proceduralista do Estado Democrático de Direito, o que o leva a criar um
novo paradigma: o co-institucionalista (Item 5). Seguindo-se esse raciocínio,
far-se-á uma explicitação da “teoria da lei”, proposta pelo autor, para a criação
de um direito legítimo e fiscalizável nas democracias contemporâneas (Item
6). Por fim, far-se-á uma revisitação crítica da dogmática indiscernível do direito, lei e norma (Item 7).
Realizadas essas relevantes ponderações, convida-se o leitor a ingressar
na leitura do presente estudo, aguardando-se, sempre, as críticas, tendo-se em
vista serem relevantes para o progresso do conhecimento científico.
2. Proposição da pesquisa e seu marco teórico: embaraços
à compreensão dos institutos do direito, lei e norma
O cerne da proposição da obra é enunciar um marco teórico para a produção do direito no Estado Democrático de Direito. Na apresentação da pesquisa, o autor enfatiza que a ciência do direito sempre esteve atrelada a dois blocos: jusnaturalismo e positivismo. Não havendo uma terceira via para escapar
dessa rotulação, tragédias e incompreensões continuam a entravar a produção
de um direito democrático2. Desse modo e para se esquivar dessa enrascada, o
autor se propõe a enfrentar em sua pesquisa o seguinte problema: “o que é a lei
jurídica na atual concepção linguístico-auto-crítico-construtiva que informa
2
“A confusão entre Direito e Lei atravessa séculos sem inquietar os juristas, tornando-se até
mesmo um tema perigoso, porque o ímpeto de esclarecimento poderia acarretar a radicalização
de uma dicotomia a segregar os estudiosos em duas grandes facções: jusnaturalistas e positivistas
(normativistas), nada mais restando aos que quisessem escapar dessa rotulação” (LEAL, 2010b, p. 15).
65
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a existência de um direito democraticamente aceitável e fiscalizável?” (LEAL,
2010b p, 69-70).
Para enunciação de uma nova teoria, que atenda aos enunciados de uma
epistemologia jurídica contemporânea, que contemple a produção de um direito legítimo, democrático e fiscalizável, Rosemiro Pereira Leal testifica as
teorias da ciência dogmática do direito. Para tanto, escolhe um marco teórico
para direcionar e embasar sua pesquisa: o falibilismo popperiano e a Teoria
Neoinstitucionalista do Processo (teoria de sua própria autoria). Dos estudos
realizados nas principais obras do autor3, além da presente, infere-se que o
marco teórico perfilhado é autocrítico, na medida em que testifica as teorias
da ciência dogmática e, ao mesmo tempo, abre oportunidade para testificar-se
a si próprio. Por isso, não é à toa que o autor compreende que método autocrítico da teoria da lei (conjecturado pelo autor) produz o direito pelos mesmos
princípios em que ele (direito) deve ser interpretado, aplicado, modificado ou
extinto (isto é, pela principiologia de contraditório, ampla defesa e isonomia).
Contudo, antes de se atingir o eixo central da obra Processo como Teoria
da Lei Democrática, imperioso compreender o percurso investigativo da pesquisa científica.
3. Metodologia: método crítico
No introito, é necessário entender o que vem a ser “método crítico” para
a Teoria Neoinstitucionalista do Processo. Sem olvidar seu marco teórico
(Popper), apreende-se que crítica é a “suspensão da crença na razão”. (LEAL,
2010b, p. 170). É por isso que Rosemiro Pereira Leal ataca a ciência jurídica
moderna (dogmática) que trabalha a crença na “busca de verdades absolutas”4.
A metodologia popperiana consiste em “superar teorias menos satisfatórias”,
propondo uma mais resistente (bem testada) para a produção de um conhecimento, que nunca será peremptório (imutável). (LEAL, 2010b, p. 172).
Na contramão de direção, de acordo com o autor, a ciência dogmática jurídica sempre se vinculou à “busca compulsiva de infalibilidade” (LEAL, 2010b,
3
LEAL, 2002; LEAL, 2009b; LEAL, 2005c.
4
“O que Popper deixa explícito é que não existe o ‘método científico’ em termos de critério
seguro e absoluto de descoberta de verdades, mas métodos que, ao significarem teorias explanativas, assumem o caráter de conjunto de enunciados lógico-informativos (asserções), suscetíveis
à refutabilidade, para o aumento de clareza e precisão do conhecimento em face de situações
problemáticas”. (LEAL, 2010b, p. 176).
66
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
p. 177-80), sem possibilitar qualquer abertura para perquirição desse “núcleo
irredutível”. (LEAL, 2010b, p. 58). Essa denúncia apresenta-se pertinente ao citarmos como exemplo a dinâmica dos direitos naturais e do positivismo jurídico.
Na primeira categoria, os direitos são concebidos como válidos e legítimos por
si mesmos. E, por advirem de um recinto sagrado (LEAL, 2004), devem ser
observados (respeitados) por todos os indivíduos, sendo esta equação “poder
x dever” repassada pela tradição: isto é, no presente acolhe-se a regra como
válida porque fora transferida do avô para o pai e deste para o filho e assim
sucessivamente. Num segundo momento, o direito adquire validade e legitimidade simplesmente por estar escrito (positivado). Como se depreende, não
há uma fiscalidade sobre os fundamentos que deram origem a esses direitos. É
por isso que, como demarcação para o conhecimento e para a produção da lei
no Direito Democrático, o autor recepciona a “regra suprema” (LEAL, 2010b,
p. 183-6): “regra de proibição (proíbe-se para permitir) de vedação de liberdade
de tentativa de refutação”. (LEAL, 2009a). Ou seja, todo conhecimento (teoria)
é suscetível de problematização e, por conseguinte, de refutação.
Nessa vertente epistemológica, o devido processo assume as características da regra suprema (LEAL, 2010b, p. 195) por isso compreende-se que o
direito é produzido pelos princípios autocríticos (contraditório, ampla defesa
e isonomia), sendo sempre entregue normativamente à revisitação pelos mesmos princípios que lhe deram causa. É, nesse aspecto, portanto, conjecturado
que o processo é teoria lingüístico-jurídica e auto-ilustrativa.
Portanto, o método (metodologia) escolhido é o crítico: critério proposicional para decidir sobre a resistência teórica entre enunciados (LEAL,
2009a), postos por uma epistemologia quadripartite (LEAL, 2009b, p. 41-75),
aqui considerada “como grandes narrativas (técnica-ciência-teoria-crítica)
em constantes cargas e retrocargas de sentidos a partir do mundo objetivo na
visão de Popper”. (LEAL, 2010b, p. 37).
4. Lógica
Antes, ainda, de realizar incursões sobre o tema central da pesquisa, é necessário compreender “o que é lógica”. Após realizar inferências críticas sobre as
lógicas adotadas pela ciência dogmática do direito, o autor vai compreendê-la,
numa perspectiva contemporânea como epistemologia. (LEAL, 2010b, p. 162).
5
Para o aprofundamento desses estudos, conferir Capítulo VI da obra analisada: p. 169-89.
67
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Mas, antes de apontar para essa noção, faz abordagem da lógica clássica.
De acordo com Rosemiro Pereira Leal6, a ciência dogmática do direito
fora construída pela fusão entre lógica e método, o que é uma agressão conceitual, pois proporciona a produção de um direito de dominação: “direito do
déspota”. Nesse sentido, esclarece que se não discernirmos lógica de método,
não há o ingresso na pós-modernidade, permanecendo, a ciência jurídica, num
“saber moderno e estratificado”, abonando-se mitos, crenças e tecnologias de
dominação (ideologia). (LEAL, 2009a)7.
A Teoria Neoinstitucionalista do Processo, pelo método crítico, realiza
tal distinção metodológica e proporciona a falsificação das lógicas adotadas
pela ciência dogmática do direito e, por demonstrar que desservem para a
compreensão de um direito democrático, uma vez que insuscetíveis de crítica,
refuta-as. Nesse tom, avalizada pelas inferências críticas e conjecturando a
produção de um direito compatível com a Constituição brasileira de 1988, teoriza o estudo da lógica numa perspectiva contemporânea que, nessa vertente
hermenêutica, é concebida como epistemologia8.
Contudo, antes de adentrar numa perspectiva pós-moderna de lógica, a
obra faz incursões nas concepções da lógica clássica, a fim de explicitar porque é
descartada pela Teoria Neoinstitucionalista do Processo, já assinalando que a ciência dogmática do direito tem seus fundamentos no âmbito da lógica clássica9,
que se subdivide em lógica geral (também denominada formal) e lógica modal.
6
Aula expositiva, lecionada por Rosemiro Pereira Leal, em 14 de agosto de 2009, para disciplina de Teoria Processual das Decisões Jurídicas, do curso de Mestrado em Direito Processual da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
7
Remete o leitor às p. 161-2, da obra em análise, momento em que Rosemiro Pereira Leal
realiza incursões no positivismo jurídico de Bobbio, que, para o autor, estuda o método no âmbito
da lógica. Esclarece que, para o positivista, o ordenamento jurídico não apresenta lacunas, pois é
suprido pela interpretação sistemática (o juiz colmata as lacunas da lei). Por isso, essa teoria atua
no âmbito da lógica jurídica (isto é, do julgador). Como se depreende, essa lógica não permite ao destinatário normativo (povo: todo aquele “legitimado ao processo” (LEAL, 2010b, p. 59)) a fiscalização
da lei no âmbito de sua criação, aplicação, interpretação, modificação ou extinção, permanecendo
tais critérios nas mãos da autoridade do julgador, afastando, portanto, a “legitimidade jurídica
(direito fundamental ao exercício irrestrito à refutabiliade argumentativa) que identifica uma sociedade aberta em que as leis podem ser colocadas em debate, modificadas ou extintas, no lugar dos
homens que as fizeram”. (LEAL, 2010b, p. 214).
8
Vide: LEAL, 2010b, p. 162.
9
“A lógica clássica é, em seu percurso histórico, também herdeira da metafísica epistêmica
que veda a pesquisa dos fundamentos (elementos) da causalidade dessa reta razão como inerência
ao pensamento humano dos predestinados a julgar, legislar, administrar, aconselhar, mediar, arbitrar”. (LEAL, 2010b, p. 154.
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4.1. Lógica geral (formal)
A lógica geral (LEAL, 2010b, p. 152-7) firma-se em argumentos autoritários; suas “verdades” são construídas por repetições. Essa lógica é acolhida pela ciência dogmática do direito e rege a praxis dos Tribunais. E isso é
perceptível nas expressões “jurisprudência unânime”, “entendimento uníssono”, “jurisprudência majoritária”, “entendimento sumulado pelo Supremo
Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça”. Sob os enunciados críticos
e epistemológicos da Teoria Neoinstitucionalista do Processo, elucida-se que
essas repetições são veneradas como balizadoras de “verdades absolutas” (nomologia), uma vez que baseadas nessas doxas, permite-se que os tribunais
impeçam o direito-de-ação, através dos entraves jurisprudenciais impostos
por entendimentos solipsistas e verticalizados10. Infere-se, portanto, que os
conteúdos dogmáticos da lógica geral não comprometem com as conquistas
históricas adquiridas pelo Estado de Direito Democrático (locus de criação,
modificação, extinção de direitos no recinto discursivo problemático, em que
há possibilidade de instalação de contraditório, ampla defesa e isonomia).
(LEAL, 2009a).
Com base nos ensinamentos de Rosemiro Pereira Leal (LEAL, 2009a)11,
apreende-se que a lógica geral assenta seus fundamentos nos princípios aristotélicos, verbi gratia: a) Identidade (expressa-se na relação homóloga pensamento-objeto: “A” é “A”. Pode ser vislumbrada, também, como ideia de igualdade absoluta: “A” é igual a “A”); b) Contradição (em Aristóteles, “dois juízos
que se contrapõem não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo”, ou seja, a
conduta jurídica ou é permitida ou proibida: “justo ou injusto”. Esse saber é
10
É muito comum encontrar doutrinas de direito constitucional que acolhem a prerrogativa
privativa do judiciário no controle de constitucionalidade das leis; seja pela via difusa, que permite
“a todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade do
ordenamento jurídico com a Constituição”; seja pelo controle concentrado, em que se atribui ao
Supremo Tribunal Federal a “exclusividade para o exercício do controle judicial de constitucionalidade”. (MORAES, 2004, p. 608 e 626). Contudo, após a Constituição brasileira de 1988, a decisão não
é soberana pelo motivo de ser imposta por autoridades, mas por ser uma construção compartilhada com o destinatário normativo do procedimento instaurado pelo direito-de-ação, que é garantia
constitucionalizada e incondicionada de toda comunidade jurídica (povo), que tem o direito de
realizar escolhas e decidir o seu próprio destino. Conferir: (LEAL, 2002, p. 13-6). Seguindo esse raciocínio, in verbis: “O que se propõe é que a questão do controle jurisdicional de constitucionalidade
e de regularidade do processo de produção da lei, passe por um redimensionamento no sentido de
ser praticado, à efetividade democrática, a partir do devido processo legal no espaço de produção
das leis”. (DEL NEGRI, 2003, p. 100).
11 Vide, também, LEAL, 2010b, p. 153.
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perquirido por Protágoras, que afirma justamente o contrário: “tudo o que
é pode ser dito por dois enunciados contrapostos”, isto é, “mais justo, menos
justo, mais ou menos (in)justo”); c) Terceiro excluído (consolida o princípio
da não contradição: “ser ou não ser”. A terceira hipótese não existe, é excluída12); d) Princípio da razão suficiente (“toda proposição só é verdadeira por
suficientes fundamentos)”; preconiza um saber nomológico (isto é, um saber
baseado em verdades absolutas já contidas nas leis da razão natural). Esclarece
o autor que toda a construção do direito embasou-se nesse princípio, que
fundamentou a “raiz quádrupla da razão suficiente de Arthur Schopenhauer”.
Para essa teoria, o direito apresenta quatro causas: 1ª) Material (isto é, o direito
material, que assegura vida, liberdade, igualdade, propriedade aos cidadãos
patrimonializados13); 2ª) Formal (é o direito processual (adjetivo ou procedimental), utilizado como instrumento de manejo para a concretização do direito material); 3ª) Eficiente (refere-se à eficiência do judiciário em assegurar
(proteger) os direitos de forma célere, rápida e concreta14); 4ª) Final (o direito
é extraído de uma “razão suficiente”, isto é, traz consigo seus próprios e inerentes fundamentos teleológicos).
Como se depreende, esses princípios contemplam verdades absolutas,
que não podem ser investigadas (são imunes à crítica). É por isso que Kelsen,
ao criar sua “Norma Fundamental”15, encaminhou tal concepção pela teoria
pura, isto é, despojada de conteúdos axiológicos e culturais: a norma é válida
por si e em si mesma. Não se indaga de seus fundamentos de origem, existência ou validade; a norma deve ser cumprida, tão somente. De acordo com o
autor, Kelsen tinha horror às pesquisas das causalidades, por isso toda sua teoria é criada sem tal perquirição (LEAL, 2010a): “tudo tem uma razão de ser”,
ou seja, o ordenamento jurídico nunca é obscuro, antinômico ou lacunoso,
12
A lógica apofântica, que é um desdobramento da lógica geral, se enuncia pelos silogismos do
verdadeiro e do falso: “ser ou não ser”, o terceiro é excluído (LEAL, 2009a).
13
Sobre esses estudos, conferir: LEAL, 2005b.
14
Para a escola instrumentalista (ciência dogmática do direito), o processo deve entregar ao
jurisdicionado, tempestivamente, “tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (MARINONI, 2008, p. 28). Chiovenda já assinalava que o Estado, na “atuação da lei no caso
concreto”, deveria fazê-lo de forma eficiente, isto é, o manejo do processo pela atividade jurisdicional “urge impedir que aquele, que se viu na necessidade de servir-se do processo para obter razão,
tenha prejuízo do tempo e da despesa exigidos: a necessidade de servir-se do processo para obter
razão não deve reverter em dano a quem tem razão” (CHIOVENDA, 2000. p. 199).
15
“[...] ponto absurdo de decolagem de validação de um ordenamento jurídico a partir de uma
busca de justificação exteriorizante (esfera público-histórico-cultural) para uma teoria da constituição.” (LEAL, 2010b, p. 45).
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pois essa “razão de ser” sempre será encontrada pelo legislador (locador da lei
[LEAL, 2010b, p. 273]) ou pelo julgador (sublocador do sentido da lei [LEAL,
2010b, p. 273]).
Contudo, conforme enunciados da Teoria Neoinstitucionalista do
Processo (LEAL, 2010b, p. 191), é imperioso testificar esses “princípios (saberes) estratificantes”, isto é, escapar das afirmações peremptórias de verdades ou negações (não investigáveis), que tanto têm banalizado o estudo do
direito na contemporaneidade (LEAL, 2010b, p. 191). É por isso, como antítese aos princípios aristotélicos, que se tornou sedutor o Trilema do Barão de
Münchhausen (LEAL, 2010b, p. 191). Nessa perspectiva, a verdade é impossível de ser obtida, pois pela Petitio-principii não é possível obter um primeiro
fundamento da fundamentação, isto é, uma premissa irretorquível (tudo tem
um “por quê?”). Desse modo, ingressa-se numa “Circularidade”, na medida
em que toda a conclusiva há de ser, também, fundamentada, ocasionando
um “Regresso ad infinitum” que, para um dogmático (aristotélico), o faz a
desistir da fundamentação. De acordo com o autor, isso não acontece com um
popperiano, pois “tudo começa e termina com problemas”: não procura uma
fundamentação dogmática, primeira ou última, com o estacionamento do
conhecimento (LEAL, 2009a), por isso o marco teórico de Popper adota a
“visão protagórica”, que nega as verdades absolutas de Aristóteles. (LEAL,
2010b, p. 37).
Forte nesses argumentos é bem fácil assimilar por que a Teoria
Neoinstitucionalista do Processo enuncia que um direito qualquer, que não
permita o ingresso processual fiscalizatório nos planos instituinte, constituinte e constituído da norma16, desserve à compreensão do direito nas democracias contemporâneas (LEAL, 2009a).
4.2. Lógica modal
As inferências críticas formalizadas pela Teoria Neoinstitucionalista do
Processo esclarecem que a lógica modal LEAL, 2009a17) informa a ciência
dogmática do direito como tecnologia (ideologia), daí ser concebida, pela tradição, como deôntica, na medida em que se enuncia pelos juízos silogísticos
16
Sobre o estudo do direito nesses 03 (três) planos, remete-se o leitor ao “Item 6” do presente
artigo.
17
Remete-se o leitor às p. 154-5 da obra em análise.
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do válido e inválido, trabalhando o dever-ser18.
Ao testificar aludidas lógicas, o Rosemiro Pereira Leal discorre e as problematiza da seguinte forma: ao preconizarem “pretensões de validade universais”, homologam formas de vida já assentadas na pragmática jurídica. Isto
é, a “lógica jurídica” atua no âmbito da mens legislatoris (sentido da lei no momento de sua criação pela livre vontade do legislador) e da mens legis (sentido
da lei, solitariamente achado pelo decisor, no momento de sua aplicação). De
acordo com o autor, a ciência dogmática do direito sustenta uma “lei pronta e
acabada”, isto é, não se investigam os critérios enunciativos de sua elaboração;
aqui há uma prevalência de um esquema de “necessidade e conveniência”, que
é sempre vislumbrado pelo julgador.
Com apoio nessas abordagens críticas, infere-se que a falseabilidade da
ciência jurídica moderna demonstra que o “saber estético” está superado pelo
modelo de sociedade aberta, que atua sob os enunciados da epistemologia
quadripartite, onde há perquirição continuada dos fundamentos de criação,
modificação, interpretação (aplicação) e extinção do direito.
4.3. Lógica situacional
Após a testificação da ciência jurídica dogmática, vislumbra-se que ao
submeter a lógica clássica ao exame crítico da epistemologia quadripartite,
é possível, num primeiro momento, demonstrar a fusão indiscernível entre
lógica e método. Nesse raciocínio, conjectura-se a necessidade de distinguir
um instituto do outro, com a finalidade de se criar um direito despojado de
conteúdos ideológicos (“formas pura de dominação”) e desvinculado de fundamentos míticos de um Estado totalizador.
Posteriormente, ao testificar a lógica tradicional, verificou-se, outrossim,
que seus postulados abonam a crença na razão como verdade irretorquível.
Nesse sentido, por entender (após a problematização de seus conteúdos) que
os argumentos da tradição desservem para a compreensão de uma ciência
18
“A lógica jurídica, apropriando-se, assim, do discurso proposicional para, pelo dever-ser, prover e manejar à sua livre escolha os conteúdos (sentidos) da ‘normatividade’ clássica (acrescendo-se
aqui a vertente clássica da lógica modal pela imposição do necessário, o contingente e o possível),
ampliou, numa expansão considerável, a taxionomia das normas em permissivas, facultativas, prescritivas e até descritivas (princípios gerais de direito não legislativamente tipificados e modalizados
em denotações subjetivas do decisor por proposições modais do apodítico, assertórico e do problemático) pelas quais livremente se decide em juízos do verdadeiro ou do falso, do válido ou não
válido, do possível ou não possível.” (LEAL, 2010b, p.154).
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jurídica aos moldes da Constituição brasileira de 1988, Rosemiro Pereira Leal
conjectura, a partir dos ensinos de Popper19, a proposição de uma nova epistemologia do direito, apta a construção de uma sociedade aberta.
Assim, para escapar da ciência dogmática do direito, a Teoria
Neoinstitucionalista do Processo opta pela conjecturação da “lógica
situacional”20. Sob seus postulados enunciativos, a lógica situacional é compreendida como epistemologia que, formalizada pelas quatro narrativas
(“Técnica-Ciência-Teoria-Crítica”), é método de testificação de teorias. A
problematização do conhecimento jurídico objetivo21 se realiza para testar as
teorias concorrentes e verificar qual delas apresenta compatibilidade com o
paradigma de Estado de Direito Democrático que, na concepção teórica ventilada, é o co-institucionalista22.
Nesse tom, enuncia-se a instituição de um direito que se desvincula do
sincretismo (forma de dominação) para recepcionar uma lei como resultante da escolha teórica, realizada pela comunidade jurídica. A opção por uma
teoria se faz no confronto de teorias rivais, no plano instituinte da normatividade. O Estado brasileiro, através do constituinte originário, realizou sua
preferência e elegeu seu marco teórico: o devido processo, “cujos conteúdos
normativos (...) integram e identificam a lei como obra democrática”. (LEAL,
2010b, p. 84).
No viés epistemológico formalizado, não há falar em direito homologador
19
Conforme Popper, “a lógica pode ser considerada como sistema de investigação científica”.
(POPPER, 1999, p. 122).
20 “Essa ‘lógica situacional’ de um direito a instituir ou instituído é que permitiria afastar a
polissemia de se aceitar o sincretismo normativo de um sistema jurídico como ideologia inevitável
de técnicas de dominação a entravarem fatalmente a implementação de direitos fundamentais nos
Estados de Direito Democrático”. (LEAL, 2010b, p. 162).
21
De acordo com Popper, somente o “conhecimento objetivo é criticável”, sendo que por “objetivo” deve ser compreendido como o pensamento formalizado (escrito). Ou seja, é o “mundo 3”, o
mundo das proposições teóricas (“conteúdos lógicos de livros, bibliotecas, memórias de computador”),
que são submetidas à testes para que haja a eliminação ou refutação de erros. (POPPER, 1999, p.
34-5 e 78).
22 Sobre o estudo do paradigma co-institucionalista, remete-se o leitor ao “Item 5.1.3.2” da presente pesquisa.
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de uma nua realidade23, mas construtor de existências jurídicas, nas quais todos
estão incluídos, inclusive os despatrimonializados, os fora-da-lei. O devido
processo, na concepção da Teoria Neoinstitucionalista, preconiza o “devir a
ser” do direito pela biunivocidade contraditório-vida, ampla defesa-liberdade,
isonomia-dignidade24 e não pelo “due process” da “law of the land” dos Estados
Liberal e Social de Direito25.
O processo é, portanto, teoria linguística (discurso autocrítico), que se
explicita por submeter o conhecimento objetivo (teorias) a cargas e retrocargas
(“Técnica-Ciência-Teoria-Crítica”) de uma epistemologia quadripartite, que
não é técnico-científica (ciência jurídica dogmática), exclusivamente. A partir desses contornos epistemológicos é possível investigar se a lei produzida
possui o atributo da legitimidade democrática, aos moldes da Constituição
23 Eros Roberto Grau, desenvolvendo uma ciência do direito com apoio no “mito do contexto”,
sustenta a existência de direitos postos e pressupostos. De acordo com o autor, o direito pressuposto
é imanente e cultural. É forma jurídica existente no interior da sociedade civil que, no processo legislativo, “condiciona a elaboração do direito posto”. Como se depreende, trabalha-se com uma sociedade pressuposta à existência do direito, que se “pós-ativa” pela articulação ideológico-instrumental da “sociedade civil”, em detrimento dos excluídos da “Sociedade-Jurídico-Político-Econômica”.
(GRAU, 2003, p. 137-8). Vide, também: (LEAL, 2009b, p. 125).
24 “O Estado Democrático, ao se desligar da paidéia grega e do decurso jusnaturalista, neopositivista, histórico-historicista, e se tipificando pelo paradigma do PROCESSO, despoja-se da mítica
reificante do Estado hegeliano (dotado de uma ética imanente) para assumir o status (lugar topológico) de estruturas legais da constitucionalidade processualmente construídas como projeto de vida
advinda do direito fundamental do contraditório (inclusão de todos numa fala teórico-construtiva
de integração social), de liberdade relacionada ao exercício da ampla defesa a permitir a plenitude
dis-cursiva (proposicional) de auto-ilustração sobre os fundamentos da fala defensiva de direitos e da
dignidade a significar a isonomia de igualdade de tempo de fala e simétrica paridade na fundamentalidade de direitos iguais de vida e liberdade a ensejar transações jurídicas autocompositivas não
suscetíveis à transigência em direitos por premências vitais”. (LEAL, 2010b, p. 41-2).
25 Conforme ensino de Rosemiro Pereira Leal, a origem da expressão “due process” em nada se
compara ao instituto do devido processo das democracias contemporâneas, pois sua conceituação
histórica está fundamentada em critérios de julgamento coletados na cultura. O “due process” somente servia a aqueles que estavam em simétrica paridade “sócio-econômico-política”, não sendo
conferida a toda comunidade jurídica, como contempla a Constituição brasileira, que iguala todo o
povo pelos conteúdos isotópicos, isocríticos e isomórficos da isonomia processual. A extensão a qualquer
do povo, no “due process”, somente assegurava que os excluídos da paridade (pessoas desprovidas
de fortunas, títulos, nobrezas – os “despatrimonializados”) seriam julgadas pelos juízes, cidadãos
patrimonializados, sujeitos de direito, que estavam em nível de igualdade, liberdade e de bens hierarquicamente superior aos desafortunados. “Na origem histórica dessa expressão (due process of
law), a concretização do direito pelo ‘devido processo’ (modo de julgamento colegiado) haver-se-ia
de fazer por pessoas (juízes) que estivessem em nível de igualdade em liberdades, costumes e bens
com o ameaçado (acusado) ou lesado em direitos. O pressuposto do exercício e garantia do due
process of law era o acusado ou lesado ser homem livre como seus pares que viessem a proferir o
julgamento”. (LEAL, 2009b, p. 51).
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brasileira de 1988. Ou seja, se os institutos jurídicos do contraditório, ampla
defesa e isonomia são linguisticamente articulados nos planos instituinte,
constituinte e instituído da normatividade; cumprida respectiva exigência
epistemológico-constitucional é possível compreender, conforme pesquisas científicas de Rosemiro Pereira Leal, o “Processo como Teoria da Lei
Democrática”.
5. Lei: da “Ideia” à Teoria
Realizadas tais considerações, é importante, neste momento, compreender o tema central da pesquisa: Processo como Teoria da Lei Democrática.
Inicialmente, o Rosemiro Pereira Leal faz uma abordagem esclarecedora da
lei nos “três ‘modelos’ de Estado”. Problematiza que esses “modelos”, comumente abordados pelos constitucionalistas e, principalmente, por Habermas,
se enunciam por uma sociedade pressuposta (LEAL, 2010b, p. 27). Isto é, antes
da existência do Estado e, por conseguinte, da lei (que nessa vertente decorre do Estado), há uma sociedade pré-existente (comunhão de pessoas) que se
movimenta à instalação de algo que lhe dará “corpo” e “proteção”, ou seja, o
Estado mítico.
5.1. “Modelos” de Estado e o mito da “sociedade pressuposta”
5.1.1. Estado Liberal de Direito
Como primeiro paradigma constitucional, apresenta-se o Estado Liberal
de Direito, que surge “a partir de um pano de fundo historicista de comunhão
prévia de sentido” (LEAL, 2010b, p. 32), tendo como antecedente histórico
uma sociedade civil em que se privilegiam as minorias patrimonializadas,
bem como um sistema estatal reprodutor do modelo de livre mercado, em
que se homologa essa “realidade pressuposta” por um Estado que cria a Lei
(Constituição Liberal) para normatizar a práxis social26.
26 “O Estado, como lugar do MERCADO, atualmente já torna legítima a malha negocial que o
constitui, pouco importando os níveis de aceitação ou repulsa às novas formas de vida que as mercadorias e serviços possam impor aos seus consumidores, uma vez que são estes que, despojados
da condição de decisores-originários, serão os geradores dos créditos tributários estrategicamente
apropriados pelos governantes. Criam-se direitos protetivos desses consumidores para lhes preservar a condição de alienados ao comando de forças anônimas advindas da mítica estratégica do
MERCADO-ESTADO”. (LEAL, 2010b, p. 26).
75
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A Lei, portanto, tem por objetivo assegurar (de forma impositiva: “dever-ser”27) ideais (axiológicos e culturais) já retoricamente assentados, a saber:
igualdade, liberdade e propriedade. Esses direitos são garantidos somente à elite
burguesa, pois é a única capaz de movimentar o sistema “Mercado-Estado”,
por possuir patrimônio. Como se depreende, os direitos somente são assegurados para aqueles que estão em simétrica paridade sócio-histórico-cultural,
sendo excluídos dessa procedimentalidade os despatrimonializados, a quem
deve ser dado (pelos patrimonializados) tratamento desigual na medida de
suas desigualdades28.
Nessa tonalidade, a legalidade (codificação) estabelece a igualdade, que
representa um sistema de livre mercado, onde a liberdade econômica é princípio regente da normatividade. Igualdade, portanto, é o direito assegurado ao
cidadão de, livremente, formalizar contratos, de reger sua vida privada, sem
qualquer tipo de intervenção externa, independentemente se, de um lado,
apresentar um sujeito hipossuficiente e, de outro, uma multinacional.
Assim, caso verificasse uma desigualdade sócio-econômica, ao Estado
era vedado compensá-la como, por exemplo, a impossibilidade de uma das
partes, por insuficiência financeira, de atuar jurisdicionalmente, devidamente representada por um advogado, o que asseguraria a ampla defesa29 e
a “simétrica paridade de armas”30. A ausência de defesa técnica, por um dos
27
Lógica modal – vide Item 4.2.
28 “Essa RAZOABILIDADE na fundamentalidade de direitos vai atuar um esdrúxulo conceito
de isonomia a ser perenizado pelos adeptos dos paradigmas de Estado Liberal e Estado Social de
Direito, como forma de dominação pela pureza noemática da lex-intima (legítima) dos alocutários
privilegiados da juris dictio.” (LEAL, 2010b, p. 69).
29 Conforme Dierle José Coelho Nunes, no Estado Liberal não há “estratégias corretivas” das desigualdades, seja “pela atividade judicial ou pela assistência de advogados subsidiados pelo Estado”.
(NUNES, 2010, p.75).
30 Importante esclarecer que a Lei 9.099/95, em seu artigo 9º, recepcionando um processo aos
moldes liberais, abona a atuação das partes sem a devida representação por um advogado, o que é
inconstitucional, de vez que o artigo 133 da Constituição brasileira de 1988 concebe o advogado como
instituto indispensável à administração da justiça. Assim, para conferir efetividade ao respectivo dispositivo, o artigo 5º, LXXIV, da Lei Constitucional, prescreve que, diante da incapacidade econômica da
parte em arcar com o advogado, o Estado deverá garantir a defesa técnica dos jurisdicionados, o que
assegura a plenitude de defesa, o exaurimento do contraditório e a atuação isonômico-processual pelos princípios institutivos do processo democrático, conforme postulados epistemológicos da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo. Como se depreende, a ciência jurídica dogmática, produtora do
direito contemporâneo, ainda vivencia pré-compreensões de paradigmas despóticos, não contemplados pela constitucionalidade brasileira. Está faltando estudo científico no Brasil, a fim de que se
modifique a concepção de uma legislação liberal para recepcionar um efetivo processo democrático,
que é instituto lógico-jurídico de implementação de direitos fundamentais de toda comunidade jurídica.
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sujeitos procedimentais (desprovido de patrimônio), garante vantagem ao
patrimonializado em face do “fora-da-lei”, pois está interditado de atuar na
lei pelos conteúdos isotópicos, isomênicos e isocríticos da isonomia processual.
Verifica-se, portanto, que o processo preconiza, ao contrário do sustentado
pelo liberalismo, desigualdade perante a lei, desigualdade para interpretar a
lei e desigualdade para elaborar, alterar ou extinguir a lei, respectivamente31.
Nesse tom, a processualidade liberal propicia um “duelo judiciário”32,
onde vence quem apresentar o melhor argumento, capaz de convencer o
julgador. As partes conduzem o procedimento utilizando, na medida de seu
patrimônio, todos os instrumentos necessários para persuadir o juiz. Desta
forma, a igualdade, um dos pilares do paradigma de Estado vigente, suplicou
revisitação, a fim de conferir “proteção ao mais fraco”, necessitando de um
“consenso ético-político” para garantir a igualdade no campo econômico, jurídico, político e social (HABERMAS, 1995, p. 107-21). Essa nova perspectiva
teórico-paradigmática, que preconizou o descarte do liberalismo, se estruturou a partir de movimentos sociais que impulsionaram a elaboração de novas
técnicas legislativas
(...) a enfraquecer o papel das partes e a reforçar o papel dos magistrados,
de forma que a tensão jurídica interna, idealizada com a criação de um
novo modelo processual (socialização processual), surge na busca de um
novo horizonte interpretativo, de modo a suplantar as deficiências do
anterior, mas conduzindo a novos equívocos. (NUNES, 2010, p.77).
5.1.2. Estado Social de Direito (Republicano)
Não diferente do Estado anterior, o Estado Social de Direito também
aparece antecedido por uma fictícia sociedade que, em contraponto ao paradigma liberal, funda a chamada “esfera pública”33 ao debate e implantação de
direitos. Nesse tom, sustenta-se, ideologicamente, que os “fora-da-lei” (os fora
da fruição dos direitos fundamentais) possam reunir-se em “espaços públicos”
31
Sobre “os conteúdos processuais dialógicos da isonomia”, conferir: LEAL, 2009, p. 61.
32 Barbosa Moreira expõe o sistema da common law que, para o autor, preconiza um procedimento duelar entre as partes. O juiz é expectador e as partes são protagonistas ativas, devendo
“tomar todas as providências destinadas a influir no convencimento do julgador”, que somente
pode atuar se impulsionado pelos jurisdicionados. (BARBOSA MOREIRA, 2003, p. 41-51).
33 De acordo com Rosemiro Pereira Leal, a esfera pública é o “lugar criativo de contextos linguísticos singulares ou corretivos das formas de vida sociais ou jurídicas”. (LEAL, 2010b, p. 133).
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(ágora (LEAL, 2004)) a fim de se entenderem, com igualdade de fala, sobre
os melhores rumos da comunidade jurídica. O republicanismo habermasiano,
ao privilegiar essa “esfera pública”, vale-se da crença numa linguagem cultural (contextual) como “comunhão prévia de sentidos” (LEAL, 2010b, p. 27),
dentro da qual todos nascem e pela qual todos podem igualmente alcançar
consensos na formação de direitos, sustentando que o Estado (produtor da
Lei) é o garantidor de uma igualdade material aos sujeitos de direitos. Ou
seja, nesse viés, é necessária a implantação de um Estado que assegure aos
indivíduos, com apoio na autoridade, os ideários de vida, liberdade e propriedade de forma igualitária. O Estado Social de Direito surge, então, para
homologar essa nova “realidade” ideal, dita de todos, e institui a chamada
Constituição Social.
Entrementes, infere-se que a ciência do direito, implantadora da Lei
Constitucional, na perspectiva do Estado Social de Direito, não constrói uma
existência jurídica processual inclusiva de “todos”. Ora, os despatrimonializados continuam excluídos da simétrica paridade procedimental, de vez que
o direito apenas ratifica a praxis político-social34. Assim, os “fora-da-lei”, que
no Estado Liberal estavam excluídos, continuam, no Estado Social, a sê-los.
O que modifica, nesse novo paradigma, é que direitos sociais, antes interditados pelos interesses da burguesia dominante, agora são consensualmente estabelecidos num diálogo (espaço mitificado) de “autolegislação cívica”
(HABERMAS, 1995, p. 110), sendo que, a implementação dos direitos fundamentais não é garantida pela lei, como conjectura a instituição de um direito
processual democrático, mas pela dosagem discricionária do soberano, que
assume o Estado em suas três formas míticas de poder35: legislativo, executivo
e judiciário.
34 “O direito, de seus primórdios até os anos 1970, carente de reflexões crítico-científicas e coerente
com os paradigmas de Estado Liberal e Estado Social, naturalmente se moldou por uma dogmática radical, mimetizando os saberes disciplinares das ciências e artes que mais reforçaram a conservação do
corpo social que era tido como prolongamento do corpo do soberano”. (LEAL, 2010b, p. 109-10).
35 Em suas elucidativas lições, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, apresentando as teorias de
incontáveis autores estrangeiros, esclarece que a ideia de poder, nas democracias contemporâneas, vincula-se ao devido cumprimento à legalidade, por isso não há falar em “poder discricionário” ou em “autoritarismo”, uma vez que incompatível com a principiologia do Estado de Direito
Democrático. Nesse sentido, ensina que o poder é uno, exercido em nome do povo, por meio das
“três fundamentais funções jurídicas, a executiva, a legislativa e a jurisdicional”. Como se depreende, o autor reenuncia a concepção dogmática de poder, visto que a desvincula da compreensão
rígida e inflexível da mítica “repartição de poderes”; interpretação errônea conferida à teoria de
Montesquieu. Sobre esses esclarecimentos, conferir: BRÊTAS, 2010, p. 07-22.
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Assim, ainda que os direitos (sociais) estejam previamente estabelecidos
na pragmática, é do Estado, detentor de todo poder, a decisão de concedê-los ou interditá-los, podendo, inclusive, ditar como devem ser usufruídos,
verbi gratia: em prol da coletividade, no interesse de todos, em atendimento
às políticas estatais ou de acordo com a vontade do soberano36. Como se vê,
os conteúdos da isonomia não são estabilizados no espaço de tempo procedimental (devido processo), mas nas aspirações ideológicas de um paradigma
despótico. Nesse sentido, abre-se uma perspectiva teórica em que o estado
aparece como tutor dos excluídos da paridade procedimental para garantir-lhes direitos fundamentais. Para tanto, imperioso intervir nas esferas privadas e estar presente em todos os setores da “vida humana” (excluindo da comunidade jurídica a possibilidade de “fala teórico-construtiva de integração
social” (LEAL, 2010b, p. 41-2), transformando-se no centro da vida política,
jurídica, social e econômica (BARACHO, 1984, p. 362) de toda a sociedade.
Vislumbra-se, portanto, que o paradigma de Estado Social de Direito
funda um Estado forte e impositivo que, atento aos pleitos da sociedade civil,
se institucionaliza como “um Estado mais dirigista e redistribuidor, ou seja,
um estado do bem-estar social” (HABERMAS, 1997, p. 143). Assim, em decorrência de uma nova sociedade que se estabelece com outras pré-compreensões para o direito, necessário reestruturar a legislação, conferindo maiores
poderes ao Estado que, agora, há de interferir, incisivamente, na vida privada
dos seus cidadãos para conferir-lhes direitos antes denegados pelo capitalismo liberalizante.
Nesse tom, no procedimento jurisdicional, o juiz deve assumir o papel
de defensor dos pobres, hipossuficientes, revogando-se o princípio dispositivo
para instaurar o princípio inquisitivo podendo, assim, atuar ex officio para representação da classe débil, desafortunada. Na pragmática social, o julgador
36 De acordo com Mário Lúcio Quintão Soares, as Constituições Mexicana (1917) e de Weimar
(1919) foram pioneiras em recepcionar as pré-compreensões socialistas em seus textos para permitir a intervenção estatal na esfera econômica e individual, ampliar a participação dos cidadãos
no poder e constitucionalizar direitos materiais. O autor esclarece, ainda, que em 1918, em virtude da Revolução de Bolchevique, fora aprovada a “Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e
Explorado da União Soviética” para reconhecer direitos dos trabalhadores, operários e camponeses.
Além disso, a lei previa a extinção da propriedade privada, a obrigatoriedade do trabalho para todos
os indivíduos, a impossibilidade de exploração do trabalho alheio e o Estado como detentor exclusivo da exploração dos meios de produção. Em 1936, a Constituição Soviética ratificou respectivos direitos, além de ampliar o rol de direitos fundamentais para, inclusive, declará-los como “derivados
da vontade estatal”, por isso deveriam ser exercidos nos limites ditados pelo poder político estatal
e em prol dos interesses coletivos. (SOARES, 2008, p. 200-5).
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avoca para si o dever de educar a sociedade acerca de seus direitos, instruindo
os cidadãos para melhor defesa de seus interesses (NUNES, 2010, p.80), eis que
o Estado Social de Direito sustenta-se na ideologia de proteção dos pobres e
desvalidos, das mulheres, dos trabalhadores, dos menores, ou seja, dos sujeitos, até então, excluídos da fruição de direitos fundamentais.
Como se apreende, o Estado é o dador de direitos fundamentais, de vez
que atua em esfera hierarquicamente superior às demais instituições jurídicas.
É por isso que o processo é instrumento da jurisdição que, uma vez instaurada,
se desenvolve através de um vínculo de subordinação das partes em face dos
juízes, que controlam a relação jurídica processual. Nesse tom, são ampliados
os poderes instrutórios dos magistrados, que os exercem, autoritariamente,
em todo o procedimento, já que o processo é instituição de direito público, isto
é, de propriedade exclusiva do mítico Estado-Juiz. Assim, o julgador pode
apreciar livremente as provas, indeferir diligências que considerar inúteis ou
protelatórias, determinar produção de provas necessária à instrução do seu
processo, pois é ele, juiz, quem deverá ser convencido, conforme disposição
expressa na lei37. Verifica-se, portanto, que essa postura revela o abandono das
perspectivas teóricas e privatísticas de processo, de características específicas
do Estado Liberal de Direito.
Nessa vertente paradigmática, o pleito de igualdade não é efetivado pela
reserva da lei, devidamente acertado no recinto dialógico-procedimental de
fruição de direitos fundamentais pelos princípios autocríticos do contraditório, ampla defesa e isonomia, como propugna os postulados epistemológicos
do direito processual democrático, mas pelo reforço dos poderes do magistrado, que deverá conduzir o processo, influindo no reconhecimento de fatos38
37 Artigos 130 e 131 do Código de Processo Civil – legislação elaborada em 1973, no ápice do
Estado Social de Direito que, conquanto não tenham sido recepcionados pela Constituição brasileira, são, cotidianamente, aplicados na praxis dos tribunais do país, configurando uma prática (interpretação) em colisão com a Lei Constitucional, o que demonstra o despreparo técnico-científico
dos juristas, que não se comprometem com o esclarecimento jurídico-epistemológico, compatível
com a compreensão de um direito processual democrático, até mesmo porque o NCPC repete
concepções de um paradigma despótico, diga-se de passagem, revogado pela Constituição de 1988
– vide artigos 377 e 378. Sobre estudos críticos nesse sentido, conferir: MADEIRA, 2008, p. 107.
38 De acordo com Dierle José Coelho Nunes, o processo, no Estado Social de Direito, “estrutura
um modelo técnico de procedimento oral em que se atribui um reforço dos poderes do juiz, que
deverá participar mais intensamente da direção do processo e, especificamente, influir mais ativamente no acertamento dos fatos”. (NUNES, 2010, p. 85).
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e, encontrando a “verdade real”39, cominará os direitos aos esperançosos
clientes do Estado. Assim, pode justificar seu convencimento em experiências
individuais, em convicções políticas, partidárias e religiosas, nas apreensões
solipsistas daquilo que, na sua ótica, realmente ocorreu na realidade sensível.
À época, não havia dúvida de que o Processo era uma panacéia e, como
tal, possuía a finalidade de promover a “paridade de armas” entre as
Partes processuais, e, dessa forma, parafraseando Rodrigo Rigamonte
Fonseca, todos os problemas (sociais, econômicos, políticos, culturais...)
eram remetidos para o interior do Processo com a finalidade de solução.
Afinal, o Judiciário era a função central do Estado. Foi aí que nasceu a
Teoria da Instrumentalidade do Processo com os seus escopos metajurídicos de pacificação social. Apesar das engenhosas metodologias produtoras de armadilhas ideológicas para entender o direito à igualdade, com
poucas variantes de gênero e também de grau, o discurso infelizmente
ainda é praticamente o mesmo na contemporaneidade (Cf. Cândido
Rangel Dinamarco). (DEL NEGRI, 2009, p. 343).
Nesse tom, as reformas legislativas processuais, comprometidas com
o paradigma eleito, operacionalizam-se no sentido de “ofertar um processo
rápido” à sociedade. Para tanto, institui-se o “discurso do protagonismo
judicial” (NUNES, 2010, p.85-6), a fim de assegurar aos cidadãos uma jurisdição rápida, justa e efetiva, através de dispositivos de lei abertos e retóricos, além de cláusula expressa de vedação do non-liquet. Assim, permite-se o ingresso hermenêutico em recinto extrassistêmico, de livre manejo do
solitário intérprete-decidor, que conduz o procedimento perante uma ordem
39 “(...) denomina-se verdade material aquela a que chega o julgador, reveladora dos fatos tal
como ocorreram historicamente, e não como querem as partes que apreçam realizados”. (SOUZA,
2001p. 256). Contudo, importante esclarecer que, na perspectiva do Estado de Direito Democrático,
o processo não é locus de reconhecimento de “verdades ‘supostamente’ reais”, que devem ser encontradas pelo julgador, que não pode eximir-se de sentenciar (artigo 126 do CPC e 119 do NCPC).
Ora, no direito processual democrático, os autos são os limites hermenêuticos para a fixação da
verdade formal, que se estabelece pelos resultados dos argumentos fático-jurídicos, elaborados em
contraditório, e pelas provas produzidas, em ampla defesa, pelas partes. Nesse tom, não há falar
em esclarecimento real ou absoluto dos fatos, de vez que o procedimento não é recinto mágico, onde
se externa os dons clarividentes do decisor-solipsista. O procedimento é técnica normativa de construção de provimentos, regida pelo devido processo, por isso o instituto da prova é tão importante
para a concepção de um direito democrático, pois somente o que é demonstrado, representado
nos autos do procedimento pode servir de justificativa legítima para embasar a decisão. Sobre o
estudo da prova, no Estado de Direito Democrático, conferir: (LEAL, 2005c, p. 49-56).
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praxista-pragmática, apresentando-se, numa perspectiva contemporânea, totalmente antidemocrática.
É o judiciário, portanto, quem “diz o direito”, por isso o papel do advogado no procedimento é secundário e, até mesmo, desnecessário, eis que o
julgador é o sujeito ativo do procedimento, o único, diga-se de passagem. É o
juiz quem atua na defesa das partes, na aplicação justa da lei, na valoração e
valorização das provas40, conforme seu entendimento e convicção, devendo os
destinatários do provimento assumir “uma postura passiva e espectadora”41.
Porém, esse modelo de processo gerou grandes preocupações nas décadas que o sucedeu, uma vez que o paradigma tirânico mandou a conta e quem
pagou foi o cidadão despatrimonializado que, por ser “fora-da-lei”, só poderia
usufruir dos conteúdos da legalidade se autorizado e aos moldes ditados pelo
soberano. Assim, por ser carente de direitos fundamentais, a comunidade jurídica se viu entregue a “um governo jurisdicional pelas decisões ou votos
majoritários populares” (LEAL, 2002, p. 179), o que não lhe assegurou ser
co-autora do provimento final, mas espectadora de decisões proferidas em
nome do povo que, na maioria das vezes, escondem o interesse da classe dominante, ou seja, o interesse de poucos.
Ora, o pleito de fruição de direitos fundamentais, de forma igualitária,
por todos não pôde ser implementado pelo Estado Social de Direito, pois a
efetivação de políticas públicas fica a cargo do solipsismo jurisdicional, legislativo ou administrativo, que pode se equivocar ou agir na consecução de interesses pessoais. Verificou-se, portanto, que a “sobrecarga ética” (HABERMAS,
1997) é um risco, que muito custou a aqueles que eram obrigados a se submeter à tirania estatal, por isso as concepções teóricas do paradigma socialista necessitou revisitação. Assim, é num contexto histórico de movimentos
contrários ao despotismo do Estado – constitucionalismo – que se projeta a
construção de um novo paradigma de estado, o de direito democrático.
5.1.3. Estado Democrático de Direito
Num ambiente hostil, de entraves à fruição de direitos fundamentais pela
40 “No Estado Social da primeira metade do século XX, a cognição jurisdicional era uma atividade que pertencia exclusivamente ao juiz, que poderia livremente valorar e valorizar as provas, ainda
que em prejuízo das partes, bastando apenas que se apoiasse na mítica idéia de interesse público”.
(MADEIRA, 2008, p. 95).
41
82
Estudos elaborados com base na obra: NUNES, 2010, p. 107-12.
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violência normativa, erigem-se concepções teóricas a testificar os paradigmas
anteriores para conjecturar a criação de um novo marco teórico para a construção do direito, que agora há de ser assegurado a toda comunidade jurídica
pela lei, construída por todo aquele que é legitimado ao processo. Nesse tom, a
concepção de Estado de Direito Democrático é vislumbrada, na perspectiva
da ciência jurídica dogmática, como “proceduralista”, conforme Habermas e,
no viés epistemológico contemporâneo, como co-institucionalista, de conceituação jurídico-científica de Rosemiro Pereira Leal, que formaliza a compreensão paradigmática afinada aos conteúdos principiológico-hermenêuticos
do processo, que é, na Teoria Neoinstitucionalista, instituição jurídica e autocrítica, cujos enunciados se encaminham pelos direitos fundamentais do
contraditório, ampla defesa e isonomia, expressos no texto normativo da
Constituição brasileira de 1988.
5.1.3.1. Proceduralismo habermasiano
Em Habermas, o Estado Democrático de Direito, enquanto paradigma,
emerge da insuficiência dos dois estados que o antecedeu. E, aproveitando os
benefícios de um “horizonte histórico de sentido” de ambos (liberal e republicano), implanta-se uma terceira via, denominada proceduralista. Infere-se,
portanto, que esse novo “gênero” é produto da interação dos paradigmas liberal e social, isto é, das sociedades já pressupostamente existentes42.
Seguindo uma linha de raciocínio, que romperá com a ideia de que o
direito é juridicizante, ou seja, a mimese da realidade43, Rosemiro Pereira Leal
critica o paradigma proceduralista habermasiano.
Inicialmente, esclarece que ao realizar o “giro linguístico” (da filosofia
42 “O que se deduz, nas leituras de vários autores, é que estes estão empenhados em encontrar de
forma límpida, o paradigma do Estado Democrático de Direito como se este, por imanência ou atributo, já trouxesse, em si mesmo, uma característica (‘horizonte histórico de sentido’) a ser decifrada
pelos estudiosos e juristas designativa do paradigma estatal da democracia”. (LEAL, 2010b, p. 28).
43 “O fator da ‘convenção social’ como algo fundado e praticado por uma ‘sociedade’ já pactuada por todos é que cria a mitificação (mistificação) que enseja a sempre alegada e historicamente
assentida (ideologizada) opinião de que todos teriam ‘clara intuição’ (Nélson Hungria) de ser membro de uma ‘comunhão civil’ como o ‘clima ético circundante’ e que a lei expressa apenas ‘o que já
existe ou deve existir na consciência jurídica de cada indivíduo’ (Otto Von Gierke). Aliás, tal fetiche
de um fato social pressuposto e benévolo a criar uma sociedade secularizada para todos é expresso
na ideologia da inocência das forças sociais e da factualidade (faticidade) que, segundo a teoria da
antijuridicidade concreta (Miguel Reale e Miguel Reale Júnior), devem ser ratificadas pelo direito
escrito no itinerário enunciativo e tridimensional do fato-valor-norma”. (LEAL, 2010b, p. 147-8).
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da consciência para a filosofia da linguagem), Habermas estaciona sua teoria
no positivismo sociológico, na medida em que compreende ser a realidade
encaminhadora da existência jurídica (historicismo44). Elucida, outrossim,
que teoria habermasiana contempla a chamada “ação comunicativa”, que, por
se situar num espaço nu, onde não há demarcação jurídico-procedimental-crítica-científica, não consegue sustentar tal “giro linguístico”, o que o faz cair
no denominado “mito do contexto” (LEAL, 2010b, p. 36-9).
De acordo com Rosemiro Pereira Leal, quando Habermas acolhe essa
“sociedade pressuposta” e assim também o faz Rosa Maria Cardoso da
Cunha, o princípio da legalidade, “que deveria ser congênito à própria normatividade legal como conteúdo teórico-construtivo da lei” (LEAL, 2010b,
p. 136), é mera indicação dessa “sociedade” (costumes, jurisprudências,
princípios éticos-morais). A lei, assim, passa a ser um acessório metabólico
dessa sociedade, espelhando a ideologia necessária à sua existência (LEAL,
2010b, p. 135-8). Isso ocorre porque, antes de ser legalizado (positivado:
homologatório da realidade), o princípio já existe na extralegalidade (isto é,
no pacto de sentidos comungado pela sociedade pressuposta), o que o torna
retórico: ora, se decidir é compulsório e é proibido o non liquet, a lacuna
da lei, para o dogmatismo jurídico, é preenchida por equidade, costumes,
princípios gerais, jurisprudências (LEAL, 2010b, p. 136-7). Ou seja, o ordenamento jurídico é compreendido a partir de uma pauta de valores éticos,
culturais e morais (extralegalidade), já assentada nas bases da comunidade
a que se submete o decisor solipsista; o que torna o princípio da legalidade
retórico e, na perspectiva da Constituição brasileira de 1988 (artigo 5°, II),
implantador da “extralegalidade” que, nessa vertente interpretativa e normativa, é inconstitucional (LEAL, 2010b, p. 137).
Em virtude desses apontamentos críticos, o autor entende que a teoria
testada (habermasiana) desserve à compreensão de um direito nas democracias contemporâneas. Desse modo, a partir dos contornos teóricos da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo, propõe a construção de um marco teórico
(paradigma) para a produção de um direito democrático.
44 Nesse momento é importante esclarecer que o historicismo é o mimetismo, o observacionismo, isto é, significa que pela observação é possível criar teorias. Ou seja, entende que a realidade
pode conduzir o homem à paz eterna (ou à criação de uma existência jurídica). Noutro vértice, o
historista não descarta a história, contudo, ela não é condutora do destino dos homens – aceita-se
a história para criticá-la. Popper é historista (LEAL, 2009a). Vide, também: LEAL, 2010b, p. 169-70.
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5.1.3.2. Paradigma co-institucionalista (Rosemiro Pereira Leal)
Como se depreende da análise crítica dos 03 (três) “modelos” de Estado,
vislumbra-se que Rosemiro Pereira Leal se propõe a testificar a ciência jurídica dogmática, mormente, a visão habermasiana de “paradigmas do direito”45.
Ao verificar a inadequação da “razão comunicativa”, de Habermas, aos conteúdos teóricos (institutos e instituições jurídicas) do Estado Democrático de
Direito contemporâneo, principalmente a partir da Constituição brasileira
de 1988, conjectura a criação de um novo marco teórico (paradigma) para
a construção de um direito que, para o autor, faz-se, inicialmente, a partir
do contraponto: “Democracia contemporânea” versus “Paideia grega” (LEAL,
2010b, p. 200).
Conforme se infere dos estudos do autor (LEAL, 2004, p. 02-3), a concepção de democracia na atualidade não se vislumbra a partir dos contornos
míticos da ágora grega46, que contempla a legitimidade democrática através
da presença de pessoas que, associadas uma ao lado da outra, concorrem para
a formação de um entendimento por meio da fala e do convencimento (persuasão) de cada um47. Esclarece que esse “espaço público” não possibilita um
exercício de “paridade argumentativa no discurso processual” (MADEIRA,
2010, p. 424) (isonomia), como é exigido pela Constituição brasileira de 1988,
na medida em que os critérios de discursividade se fazem por uma práxis.
Isto é, a democracia paideica não possui demarcação teórico-jurídico-procedimental (e constitucional); seu exercício se realiza no “espaço nu”, onde a comunicação livre (pauta de valores ético, cultural e moral, previamente assentados na comunidade) entre as pessoas proporciona o entendimento: trata-se,
portanto, do agir comunicativo habermasiano, incisivamente criticado pelo
45 Sobre a compreensão habermasiana de “paradigma”, sugere a leitura das obras: HABERMAS,
1995; HABERMAS, 1997, p. 123-90.
46 Em nota de esclarecimento, oportuna a lição de Dhenis Cruz Madeira, que define ágora como
“um espaço público de deliberação de Assembléia [...] era a praça pública em que se reuniam os
cidadãos gregos que estivessem de posse de seus direitos políticos e tivessem idade superior a vinte
anos”. (MADEIRA, 2008, p. 52).
47 De acordo com Rosemiro Pereira Leal, essa “versão” de democracia é repetida e reafirmada
ao longo dos séculos, sem qualquer esclarecimento crítico-científico. Além disso, apresenta-se totalmente descomprometida com o Texto Constitucional brasileiro (LEAL, 2004).
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autor48, de vez que o senso comum não é portador de estoques teóricos para a
construção de um novo direito, como quer fazer crer Habermas.
Em face do contraponto estabelecido, Rosemiro Pereira Leal conjectura a formalização de um paradigma adequado à constitucionalidade democrática contemporânea: o co-institucionalista. Nesse tom, acolhe a regra
suprema, compreendendo-a como o devido processo49 que, segundo a Teoria
Neoinstitucionalista, permite a criação, recriação e extinção de direitos a partir dos institutos jurídicos autocríticos (contraditório, ampla defesa e isonomia), rompendo, assim, com os “núcleos duros” (LEAL, 2010b, p. 203) paradigmáticos dos Estados Liberal, Social e Proceduralístico habermasiano, que
impõem uma práxis continuada, vedando a fiscalidade.
O paradigma co-institucionalista desvincula-se da praxis social, na qual
consensos já estão previamente estabelecidos antes da instalação do devido
processo, por isso o direito, nesse paradigma, deixa de ser homologador de
realidade para assumir status de construtor de existências jurídicas. Nesse
viés, a concepção de “vida humana” é identificada através do exercício do
contraditório, que permite ao destinatário normativo a liberdade jurídico-argumentativa de escolher (entre teorias bem testadas) as condições para se
viver (humanamente) (LEAL, 2010b, p. 202). A ampla defesa assegura ao legitimado ao processo (povo) liberdade no discurso jurídico-procedimental “sobre
os fundamentos da fala defensiva de direitos” (LEAL, 2010b, p. 42). E, por fim,
a isonomia se identifica com a dignidade, na medida em que significa paridade
de tempo jurídico-argumentativo no espaço-tempo processual e igualdade na
“fundamentalidade de direitos iguais de vida e liberdade” (LEAL, 2010b, p.
42). Forte nesses argumentos, entende-se por que o contraditório, a ampla defesa e a isonomia são isomorfos à vida, liberdade e dignidade, respectivamente,
para Rosemiro Pereira Leal.
48 “[...] essa pragmática linguística habermasiana não é pragmático-teórica nem linguístico-teórica, mas se utiliza da ‘processualização contextual’ (estar os homens livremente falando no
espaço-tempo dos embates (falas-nuas) de suas convicções de senso comum) para decidir sobre
quais normas jurídicas devem adotar, sem pré-deliberarem sobre o marco jurídico-discursivo que
deva assegurar a problematização argumentativa e incessante dos fundamentos dos direitos a serem constituídos e a caracterizarem uma democracia.” (LEAL, 2010b, p. 209).
49 “O devido processo, assim colocado, é isomorfo à regra suprema do teorométodo crítico de
Popper pela proibição de vedação de liberdade para todos indistintamente (comunidade jurídica)
ao exercício processual da ampla defesa, como direito fundamental co-institucionalizado (constitucionalizado), de fruir, praticar, estabilizar, fiscalizar ou reconstruir, preventiva ou comissivamente,
os direitos fundantes de um sistema jurídico perenemente aberto à construção continuada de uma
sociedade democrática (no sentido de Popper).” (LEAL, 2010b, p. 204).
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Infere-se, portanto, que o paradigma co-institucionalista não contempla
somente os patrimonializados (homologando suas realidades), mas, ao contrário, garante, através da instalação do devido processo, direitos aos que estão
excluídos da paridade procedimental (os “fora-da-lei”), assegurando-lhes direitos de vida, liberdade e dignidade. Nesse raciocínio, esse novo paradigma
rompe com a ideia de inercialidade paradigmática kuhniana (“núcleo duro”),
que desenvolve uma ciência do direito estabilizadora de sentidos, em que não
se permite a processual testificação continuada de seus fundamentos: aqui se
trabalha um paradigma científico em colisão com a Constituição brasileira de
1988 (LEAL, 2009a). O paradigma co-institucionalista desvincula-se de um
sistema estático (“verdades absolutas”) para “co-instituir uma SOCIEDADE
ABERTA” (LEAL, 2010b, p. 200), suscetível de refutabilidade sempre, tendo
em vista seu marco teórico (devido processo) que, por não crer em absolutismo do saber e no pragmatismo histórico estacionário, atua pela fiscalização
continuada do direito, na fruição dos princípios autocríticos do contraditório,
ampla defesa e isonomia50.
6. Processo como Teoria da Lei Democrática na perspectiva
da Teoria Neoinstitucionalista do Processo
Fundamentado nos argumentos teóricos, alhures consignados, o
Rosemiro Pereira Leal formaliza o problema central da obra em análise, verbi
gratia: qual teoria (marco teórico) é escolhida para a produção de um direito democrático? (LEAL, 2010b, p. 69-70) A resposta é o devido processo, que
permite a abordagem do direito nos três níveis (LEAL, 2009a): a) Instituinte:
é o plano anterior à produção da lei – momento em que se escolhe a melhor
teoria (bem testada), afastando-se as menos resistentes para encaminhar o
processo legiferativo, contudo, para realizar tal escolha, o intérprete deve ser
portador de teorias. Para o autor, a melhor teoria que se apresenta, na atualidade, é o devido processo, na perspectiva de sua Teoria Neoinstitucionalista;
b) Constituinte: é o constitucionalizar (co-institucionalizar), criar e articular instituições (pelo contraditório, ampla defesa e isonomia). Balizado pela
teoria escolhida, o devido processo, produzir-se-á a lei pelos seus princípios
autocríticos; c) Constituído: é o direito publicado, que presta obediência aos
planos instituinte e constituinte da norma, por isso os direitos fundamentais
50 Sobre a noção de paradigma co-institucionalista, teoria de autoria de Rosemiro Pereira Leal,
sugere-se a leitura das páginas 198-211 da obra em análise.
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são líquidos e certos (LEAL, 2005a, p. 23-32). Como se dessume, os mesmos
princípios que embasam a produção da lei devem ser aplicados para interpretá-la, modificá-la e extingui-la. Avalizado nessa teoria, é possível inferir por
que o devido processo é compreendido como teoria autocrítica.
Com base nesses estudos, infere-se que para a ciência dogmática positivar (“pós-ativar”) é homologar uma realidade; é ratificar situações fáticas,
existentes antes do plano instituinte da norma. Nesse viés, a positivação assegura aos pertencentes da sociedade civil (os patrimonializados) a confirmação legal (legitimidade formal) para fruição de direitos, já, supostamente,
conferidos aos sujeitos pela razão natural. Entrementes, a crítica formalizada
por Rosemiro Pereira Leal, em obra analisada, testifica a legitimidade normativa do direito positivado, pois, na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista
do Processo e da Constituição brasileira de 1988, o simples passar pelo processo legiferativo não confere legitimidade normativa democrática ao direito,
pois em Estados autocráticos também se verifica a existência de uma função
legislativa, e, por conseguinte, um “processo” (leia-se “procedimento”) legislativo. Contudo, o direito produzido não é democrático, tendo em vista que o
paradigma (teoria) escolhido para produção do direito, no plano instituinte da
norma, não é o instituto do processo constitucional democrático. Nesse tom, o
autor problematiza que a história não é condutora da produção do direito (da
“paz eterna” e do “destino dos homens”). Ao contrário, as condições históricas
devem ser problematizáveis, testificáveis por teorias rivais, ágeis à criação de
existências jurídicas que incluem todos, inclusive os despatrimonializados.
Nesse viés, o paradigma instituinte da democracia constitucional contemporânea suplica um desafio: ou ingressar na pós-modernidade ou permanecer nesse saber estratificado e continuar a vivenciar as catástrofes pela
violência normativa (LEAL, 2010b, p. 97-108), que não permite o ingresso
crítico nos níveis de construção-reconstrução da lei, de vez que o paradigma
implantado é despótico. Com base nos ensinos de Popper e fundamentado
na Teoria Neoinstitucionalista de Processo, escolhe-se a primeira opção. Isto
é, acolhe-se a epistemologia quadripartite para a produção do conhecimento
(“Técnica-Ciência-Teoria-Crítica”) para, em oposição à dogmática (“sociedade tribal” (POPPER, 1987, p. 187)), construir uma sociedade aberta.
A partir de então, a refutabilidade não pode ser negada, senão trabalhar-se-á com uma ciência em colisão com paradigma teórico-jurídico adotado: o
devido processo. Nesse locus, o único instituto que se impõe é a regra suprema
(“princípio de demarcação do conhecimento” (LEAL, 2009a)), que é instância
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de argumentação cognitiva, pela oferta de falseabilidade no procedimento
científico de construção do provimento final, segundo uma epistemologia
contemporânea, que não acolhe a episteme grega, mas perquire a ideia de certeza contemplada pela modernidade (LEAL, 2009b, p. 42). Assim, os saberes
doutrinários e jurisprudenciais são submetidos à refutação, pois, o devido
processo abre oportunidade para o apontamento de aporias na estrutura do
conhecimento pelo discurso interenunciativo e autocrítico.
O direito, portanto, não se legitima pela mimese, que o adéqua à realidade fático-social, por um saber jurisprudencial preponderante que se
firma no reforço da “Técnica-Ciência”, que veda as tentativas de refutação.
Na perspectiva da Teoria Neoinstitucionalista do Processo (LEAL, 2009a), “a
refutabilidade é concebida como direito fundamental”, pois é recepcionada
pelo devido processo para estabilizar o sentido da lei e legitimar uma decisão
como democrática, por ser construída sob o viés da regra suprema. É por isso
que a reabertura da “decisão judicial transitada em julgado” somente pode
se realizar pela instalação do devido processo e não pela flexibilização autoritária por uma teoria de processo como instrumento da jurisdição. (LEAL,
2005c, p. 03-22).
Com base nessas inferências, apreende-se que é somente após os ensinos
de Popper e de Rosemiro Pereira Leal que se admite perquirir, pelo destinatário normativo, as motivações pelas quais a lei foi construída, pois é a contrariedade dialógica dos princípios autoilustrativos que se encaminha a compreensão de um direito processual democrático, compatível com os postulados
jurídico-principiológicos da Constituição brasileira de 1988.
7. Revisitação crítica da dogmática indiscernível do
direito, lei e norma
Com apoio no enfrentamento crítico dos estudos apresentados nos tópicos antecedentes, é possível distinguir os institutos do direito, lei e norma.
Hodiernamente, para enunciar a concepção de direito, é imperioso demarcar qual teoria embasa a construção da lei. No caso brasileiro, o devido processo foi a escolha do constituinte originário, fundamentado nos conteúdos
do Estado de Direito Democrático, que inaugura um espaço procedimental
aberto, assecuratório de “autoincludência, legitimado a todos”, com ampla
“possibilidade cognitiva (...) de produção, recriação, afirmação ou destruição
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da lei” (LEAL, 2003, p. 337-8). Infere-se, portanto, que lei é resultante do embate teórico, ocorrido no plano instituinte da normatividade; é o instrumento
gráfico-cartular (LEAL, 2009b, p. 133) de onde se abstrai a escolha teórica,
formalizadora do discurso normativo, criador do direito.
Direito, portanto, pode ser compreendido como instituto lógico-jurídico, inferente crítico do discurso normativo (lei), criador de existências jurídicas includentes de toda comunidade jurídica. Explica-se: é “instituto” por ser
construído-reconstruído pelos conteúdos principiológicos do contraditório,
ampla defesa e isonomia51. “Lógico”, da lógica situacional, é a demarcação
teórico-epistemológica para a criação-recriação do direito. “Jurídico”, dada suas
características institutivas, principiológicas e procedimental. “Inferente crítico”,
tendo em vista ser objeto extraído do discurso normativo, produzido pela lei
democrática. “Criador de existências jurídicas”, pois pelos seus fundamentos institui, altera ou extingue situações jurídicas de um pós-mundo que está
sendo construído e incessantemente testificado. “Includentes de toda comunidade jurídica”, de vez que esse direito acolhe todo o povo, tanto no âmbito
da produção da normatividade, como no plano isonômico-procedimental de
fruição de direitos.
Norma, por sua vez, é produto intelectivo, resultante da interpretação do
texto normativo (direito)52, indicativo do “padrão de licitude adotado pelo
Estado na criação e disciplinação de direitos”53. Essa atividade vincula-se,
hermeneuticamente, ao plano instituinte, pois é nesse nível que se estabiliza o
sentido teórico-normativo enunciativo dos conteúdos processuais para elaboração, interpretação, modificação e extinção da lei. Ou seja, se a comunidade jurídica, no plano instituinte da normatividade, opta pela escolha teórica
51
Conforme esclarecimentos de Rosemiro Pereira Leal, institutos jurídicos “recebe, em nossa
teoria, a acepção de conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo
texto constitucional com a denominação jurídica de processo, cuja característica é assegurar, pelos
princípios do contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infra-constitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal)
como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados”. (LEAL, 2009b, p. 86).
52 Conforme Roberto Eros Grau, “o que em verdade se interpreta são os textos normativos;
da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a
interpretação do texto normativo”. (GRAU, 2003, p. 23).
53 Esclarece Rosemiro Pereira Leal que norma, enquanto gênero, distingue-se em duas espécies:
norma jurídica e norma legal. A primeira é “entendida pelo padrão lógico de licitude adotado no
Ordenamento Jurídico de um Estado-Nação ou Estado-Região (Comunidade de Povos)” e a derradeira, “cujo sentido seria o estrito ao texto específico de um artigo, frase ou trecho oracional de uma
lei”. (LEAL, 2009b, p. 124-5).
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
“ditadura” ou “autocracia”, por exemplo, o direito solipsistamente imposto
ou deposto pelo soberano, nos planos constituinte e constituído é legítimo.
O exercício do poder está legitimado, uma vez que se conforma com a preferência teórica eleita pelo povo. Por outro viés, se a comunidade jurídica,
como é o caso do Brasil, faz opção teórica pelo devido processo e o modo de
produção da lei é procedimento meramente formal (processo legiferativo sem
participação popular), o provimento final se revestirá de “uma legitimidade
enganosa” (DEL NEGRI, 2003, p. 87), explicitando o caráter retórico da legalidade. (CUNHA, 1979).
Oportuno transcrever as lições de Rosemiro Pereira Leal, que esclarece a
confusão dogmática dos institutos do direito, lei e norma:
Em poucas palavras, resumindo a longa digressão que fizemos, em direito democrático não paideico, na perspectiva da minha teoria neoinstitucionalista, a lei é criadora do texto normativo que é o direito. Com
efeito, nessa concepção, a lei há de ter origem, em nível instituinte, numa
teoria linguístico-jurídico-normativa pré-definida (entre teorias do processo) a co-institucionalizar (constitucionalizar), em nível constituinte,
direitos, deveres, faculdades, vedações, permissões e suas estruturas
(proposições) lógico-fundantes e respectivas instrumentalidades operacionais e organizacionais (procedimentos e funções) a se explicitarem,
no nível constituído, com a publicação do provimento legislativo (LEI).
Extingue-se, assim, a secular confusão entre lei, direito e norma, não se
sabendo onde teria começo a existência jurídica: se no “direito”, se na
“lei”, se na “norma”, em acepções stricto e lato sensu, a gerarem a polissemia de sentidos normativos só estabilizáveis pela inteligência solitária
e supostamente iluminada do intérprete-aplicador do direito. (LEAL,
2010b, p. 167).
8. Considerações Finais
Das inferências expostas no presente artigo, apreende-se da obra apresentada que, para Rosemiro Pereira Leal, o processo, hodiernamente, é uma
linguisticidade (discurso autocrítico) que se explicita por teorias submetidas
a cargas e retrocargas (Técnica-Ciência-Teoria-Crítica) de uma epistemologia
não técnico-científica, exclusivamente.
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Nesse tom, segundo o autor, a escolha de uma teoria processual (bem
testada) é o devido processo na concepção de sua Teoria Neoinstitucionalista
que preconiza o “devir” (vir-a-ser54) do direito (lei) pela biunivocidade contraditório-vida, ampla defesa-liberdade, isonomia-dignidade; não pelo “due
process” da “law of the land” dos Estados Liberal e Social de Direito55.
Dessume-se, portanto, que somente a partir dos novos contornos epistemológicos, conferidos ao devido processo, é possível, para o autor, atribuir
legitimidade democrática ao direito. Isso porque, na concepção da Teoria
Neoinstitucionalista do Processo, os institutos jurídicos (contraditório, ampla
defesa e isonomia) que dão origem à lei são os mesmos que serão utilizados para interpretar, aplicar, modificar ou extinguir a lei. De conseguinte, o
Processo é compreendido pelo autor como Teoria da Lei Democrática.
Referências
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1984.
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2000. Vol. I.
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legitimidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2003.
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Fórum, 2009.
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São Paulo: Malheiros, 2003.
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Fortes Almeida e Acir Pimenta Madeira. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo
Horizonte, n. 3. p. 107-121, jan./jun. 1995.
54
“Construtivo, aplicativo, modificativo ou extintivo do direito”.
55 Explicação ofertada por Rosemiro Pereira Leal, em esclarecimentos críticos realizados no
presente artigo.
92
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
10.HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução:
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Vol. II.
11.LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
12. LEAL, Rosemiro Pereira. O garantismo processual e direitos fundamentais líquidos e
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13. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo e Democracia: a ação jurídica como exercício da
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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano 3, n. 1, julho de
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14. LEAL, Rosemiro Pereira. O garantismo processual e direitos fundamentais líquidos e
certos. In: ______. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e
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15. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo Civil e Sociedade Civil. In: Virtuajus: revista eletrônica da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Belo Horizonte, ano 4, n. 2, dezembro de 2005b. Disponível em: <www.fmd.
pucminas.br>.
16.LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005c.
17.LEAL, Rosemiro Pereira. Aulas expositivas, lecionadas pelo Professor Rosemiro Pereira
Leal, no segundo semestre de 2009a, para a disciplina de Teoria Processual das Decisões
Jurídicas, do curso de Mestrado em Direito Processual da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais.
18.LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 8. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2009b.
19.LEAL, Rosemiro Pereira. Aulas expositivas, lecionadas pelo Professor Rosemiro
Pereira Leal, no segundo semestre de 2010a, para a disciplina de Cátedra Lopes da
Costa de Direito Processual, do curso de Doutorado em Direito Processual da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais.
20.LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte:
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21.MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição: uma inserção no Estado
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22.MADEIRA, Dhenis Cruz. Igualdade e isonomia processual. In: THEODORO JÚNIOR,
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23.MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da Tutela. 10. ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2008.
24.MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
25. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. 1. ed. (ano 2008), 2ª
reimpr. Curitiba: Juruá, 2010.
26.POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo: uma abordagem revolucionária.
Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999.
27.SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: nos paradigmas em face da globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
28.SOUZA, Carlos Antônio de. Autos como limite hermenêutico de verdade formal e real
no processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.). Estudos Continuados de Teoria do
Processo. Porto Alegre: Síntese, 2001, v. 2.
Recebido em: 17/09/2014
Aprovado em: 28/10/2014
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DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE:
Memórias de histórias de violações de direitos
humanos durantes as ditaduras militares
no Cone Sul e no Brasil
ANNA FLÁVIA ARRUDA LANNA BARRETO1
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é analisar o conteúdo do Fundo Clamor, localizado no Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e
sua contribuição para o processo de resgate da memória histórica dos casos de
sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes, durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. A metodologia adotada
é a pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através
da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor serão selecionados
documentos cujas informações remetam ao desaparecimento de crianças, à prisão e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da
apreensão e encarceramento, contexto histórico, forças repressoras envolvidas
na operação de prisão, sequestro e/ou tortura das militantes e das crianças e
adolescentes. Além desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental dos
Arquivos do Terror, no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos
Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de Alfredo Stroessner
no Paraguai. O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que
os arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos
Países do Cone Sul, disponíveis no Fundo Clamor, contribuem, de forma significativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a
conquista da cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da implantação da Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul.
Palavras-chaves: Ditadura Cone Sul – Direitos Humanos – Fundo Clamor
1
Professora Adjunta do Curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem. Pós-Doutoranda em
História (UFMG). Doutora e Mestre (UFMG). Email: [email protected].
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
ABSTRACT
This research aims to analyse the contents of Fundo Clamor, located at the
Documentation and Scientific Information Centre – CEDIC, from the Pontifical
Catholic University of São Paulo—SP, between the years of 1970 and 1992, as
well as its contribution to the process of rescuing historical memory of child and
teenager abduction, imprisonment, and torture in the course of military dictatorships in Brazil, Argentina, Uruguay, and Paraguay. The methodology used
is a bibliographical and a descriptive analytic documental research. Through
the consultation and analysis of documents from Fundo Clamor, a compilation
will be made with information regarding the disappearance of children and the
imprisonment and/or abduction of pregnant militants in an attempt to describe
the situation of apprehension and incarceration, the historical context, and the
repression forces involved in the operation of arrest, kidnapping and/or torture
of militants, children, and teenagers. Besides this heritage, a documental research will be made at Terror Archives, the Centre for Documentation and Archives
for the Defence of Human Rights (CDyA) of Paraguay Supreme Justice Court,
which contains a register of Alfredo Stroessner’s thirty-five-year-long military
dictatorship in Paraguay. The main argument in this research states that the
archives from the Committee for the Defence of Refugees Human Rights from
the Southern Cone, available at Fundo Clamor, contribute significantly to the
rescue of historical memory from the dictatorial period and to the achievement
of complete citizenship in these countries, considering that Brazil was the protagonist of the National Security Doctrine implantation process in South America.
Keywords: Southern Cone Dictatorship, Human Rights, Fundo Clamor
1. INTRODUÇÃO
Y unas de los golpes eran los que me marco que no se ni donde ni cuando
me llevan a arriba con la niña en brazo y también me hacen preguntas, y
la niña se pone mal porque me empiezan a pegar estando la niña en mis
brazos. Entonces yo para calmarla a niña le doy el pecho. Es más me dolió
porque para mi más le torturaron a la niña delante de mí.2
2
Depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai,
no dia 11 de novembro de 2006. Arquivo da Comision de Verdad y Justicia do Paraguai.
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O texto acima se refere ao depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de
2006. Ela foi presa e torturada durante a ditadura do general Strossner, junto
com sua filha. Ações como essas eram utilizadas em técnicas de interrogatório para obtenção de informações consideradas essenciais para o Estado de
Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no Brasil.
O avanço de denúncias e pesquisas nessa área apontou para a prática
dessa modalidade de “terrorismo de estado” em outros países do Cone Sul.
Dados do relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Brasil
apontam como saldos das ditaduras do Cone Sul os seguintes números.
No Brasil foram 50 mil pessoas presas, 20 mil torturados, 356 mortos e
desaparecidos, 4 crianças provavelmente sequestradas. No Uruguai foram 166 desaparecidos, 131 mortos, 12 bebês sequestrados, 55 mil detidos. No Paraguai foram de 1 mil a 2 mil mortos e desaparecidos, 1 milhão
de exilados. No Chile foram 1.185 desaparecidos, 2.011 mortos (embora
estatísticas extraoficiais falem em até 10 mil assassinados), 42.486 presos
políticos apenas em 1976. Na Argentina foram 30 mil mortos e desaparecidos e 230 crianças sequestradas (BRASIL, 2009, p.101).
No final dos anos de 1970, quando a ditadura militar brasileira anunciava as primeiras medidas de distensão democrática, os regimes militares dos
países do Cone Sul praticavam medidas de recrudescimento do autoritarismo
e de intensificação do aparato repressivo. Prisões arbitrárias, eliminação sumária de militantes políticos, cassações, exílio, banimentos políticos, invasões
de domicílios, sequestros e desaparecimento de crianças filhas de militantes
políticos ou opositores do regime eram práticas que endossavam a repressão
política nos países do Cone Sul e usurparam os direitos humanos de milhares de brasileiros, chilenos, argentinos, paraguaios e uruguaios. Essas práticas foram denunciadas por sobreviventes, refugiados e familiares de presos
políticos durante os anos de 1970 e 1990, ao Comitê de Defesa dos Direitos
Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor), com sede na cidade de São
Paulo, Brasil.
O objetivo deste artigo é apresentar uma análise dos casos de sequestro,
tortura e desaparecimento de crianças e adolescentes, filhas de militantes políticos durante as ditaduras militares no Cone Sul e Brasil, registrados no Fundo
Clamor, localizado no Centro de Documentação e Informação Científica
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– CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos
de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes,
durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.
A metodologia empregada na realização desta pesquisa3 é composta de
pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através
da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor foram selecionados
documentos cujas informações remetem ao desaparecimento, sequestro e tortura de crianças e adolescentes; à prisão e/ou sequestro de militantes grávidas,
procurando descrever a situação da apreensão e encarceramento, forças repressoras envolvidas na operação de prisão. Além desse acervo, foi realizada
uma pesquisa documental do Arquivo do Terror, no Centro de Documentação
e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de
Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura
militar de Alfredo Stroessner no Paraguai.
O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os
arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos
Países do Cone Sul (CLAMOR), disponíveis no Fundo Clamor e nos Arquivos
do Terror, contribuem, de forma significativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a conquista da cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da implantação da Doutrina de Segurança
Nacional na América do Sul.
2. O FUNDO CLAMOR
O fundo Clamor encontra-se distribuído em 106 caixas arquivo, 28 pastas
para periódicos e 1 pasta para arquiteto. Reúne documentos textuais, orais e
iconográficos. Os documentos foram adquiridos através de doação do Centro
Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEP), em 1993.
Esta documentação foi reunida durante a atuação do Comitê de Defesa
dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul4 (CLAMOR), fundado em
3
Esta pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de História da
Universidade Federal de Minas Gerais, em nível de Pós-Doutorado, com a supervisão da professora
doutora Heloísa Maria Murgel Starling.
4
Organização civil, informal e clandestina, fundada na cidade de São Paulo em 1978 e encerrada em 1991.
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1978 por três pessoas ligadas a defesa dos direitos humanos: Jan Rocha, Luiz
Eduardo Greenhalgh e Jaime Wright. Os três se reuniram em São Paulo para
verificar a possibilidade de divulgação das atrocidades cometidas contra os
direitos humanos dos argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos e brasileiros durante o regime militar desses países. Procuraram o Cardeal Arcebispo
Dom Paulo Evaristo Arns para comunicar a presença no Brasil de refugiados
políticos que relatavam histórias de desrespeito aos direitos humanos. Dom
Paulo acolheu a ideia e solicitou que o Comitê, por motivos de segurança,
permanecesse vinculado a Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos
Humanos e Marginalizados, da Arquidiocese de São Paulo.
O nome “Clamor” foi o nome dado ao boletim do Comitê de Defesa dos
Direitos Humanos para países do Cone Sul, cujo primeiro volume foi publicado em junho de 1978. O nome foi inspirado no Salmo 88,2 – “Ó Senhor,
deus da minha salvação, diante de ti clamo, de dia e de noite. Chegue a minha
oração perante a tua face; inclina teu ouvido a meu clamor”. A intenção dos
fundadores do Comitê era denunciar as contínuas violações dos direitos humanos ocorridas na América Latina.
A imagem que marcava o símbolo do Clamor era um desenho de uma
chama que brilha através das grades de uma prisão, criado pelo ex-preso político Manoel Cirilo de Oliveira Neto, que foi libertado em 1979. Além do
símbolo, o Comitê também possuía um slogan “Direitos Humanos não tem
fronteiras”. Com esse slogan o Comitê percorreu todos os países do Cone Sul
e buscou auxílio financeiro e político junto a organismos internacionais como
o Conselho Mundial das Igrejas, a Anistia Internacional, Nações Unidas e
Banco Mundial.
Segundo correspondências e testemunhos que chegavam ao Clamor, as
principais violências cometidas pelos órgãos da repressão eram assassinatos,
torturas, desaparecimentos e sequestros de familiares de militantes políticos,
sobretudo, de crianças, filhas de militantes grávidas que eram presas pela polícia destes países ou através da ação conjunta das forças repressoras dos países
do Cone Sul, normalmente gerenciada por integrantes da Operação Condor5.
Havia listas de adoções nos presídios para os bebês que viessem a nascer de
mulheres que foram presas grávidas. As mulheres eram torturadas e, após o
5
Ação conjunta das forças repressoras dos países Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai,
Uruguai, criada em 1975. A função principal dessa operação era neutralizar e reprimir os grupos que
se opunham aos regimes militares montados na América do Sul. O nome da operação faz referência
a uma ave andina, símbolo de astúcia na caça às suas presas.
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parto, eram mortas e suas crianças eram entregues para a adoção, muitas delas
para famílias de militares. Ao todo, o Comitê ajudou a localizar vinte e sete
crianças desaparecidas.
Segundo denúncias realizadas por militantes políticos e pelos integrantes do grupo Clamor, o Brasil não só exportou conhecimento de violência
policial e militar como também fazia parte de uma conexão com outros órgãos de repressão situados nos países do Cone Sul. Uma prova disso seria a
existência de computadores com terminais ligados nos principais aeroportos
do continente para seguir a movimentação daqueles que eram considerados
subversivos ou inimigos da Pátria.6
3. OS ARQUIVOS DO TERROR
A base de dados do Arquivo do Terror contém cerca de 60.000 registros
dos documentos localizados no Centro de Documentação e Arquivo para a
Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) do Supremo Tribunal de Justiça do
Paraguai . Esta base de Base de dados foi desenvolvida através do Projeto
Memória Histórica, Democracia e Direitos Humanos (MHDDH), acordo
firmado entre o Supremo Tribunal de Justiça, da Universidade Católica de
Assunção e da ONG The National Security Archive . Cada registro inclui o
código para imagens de microfilme, data do documento, tipo de documento, linha e nome; e se for o caso, a origem, as organizações e localização geográfica. São fichas policiais, listas de entradas e saídas de presos, notas do
chefe de investigações, informes confidenciais, controle de partidos políticos,
publicações periódicas, listas de suspeitos, informações sobre agremiações e
grupos considerados subversivos, controle de sindicatos e objetos como livros
e cédulas de identidade.
Durante a Ditadura Militar do general Alfredo Stroessner, milhares de
paraguaios foram detidos, torturados, exilados e muitos desaparecidos. A ditadura paraguaia (1954-1989) gerou traumas e ressentimentos ainda presentes na população. Como todas as ditaduras latino-americanas, ela violou os
direitos humanos, cerceou liberdades e promoveu mortes e desaparecimentos
de cidadãos em nome da Segurança Nacional.
6
Estas informações foram retiradas de documentos encontrados no Fundo Clamor, Arquivo do
Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e
Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP.
100
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Uma das vítimas da ditadura paraguaia durante o governo do general
Stroessner foi o advogado Martín Almada que, desejoso de conhecer detalhes
das acusações que o colocara preso entre 1974 a 1977 e da morte de sua esposa, solicitou um habeas data às autoridades judiciais paraguaias. Em 1992,
atendendo ao pedido de habeas data7 do advogado, as autoridades encontraram em Lambaré, cidade que fica a vinte quilômetros de Assunção, um acervo
composto de cerca de 60.000 registros de documentos contendo informações
sobre a ditadura do general Stroessner. Entre os documentos encontrados
ressaltam-se os documentos relativos ao funcionamento da Operação Condor
com a ação conjunta dos países Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina.
Segundo López (2010), antes de assumir a presidência, Stroessner se reuniu
secretamente com membros do Comando Sul dos Estados Unidos. Nesta reunião foi assinado um pacto com altos oficiais americanos e brasileiros, como
parte do plano dos aliados anticomunistas durante a Guerra Fria e a Doutrina
de Segurança Nacional, implantada na década de 1960, por meio da ditadura
militar brasileira.
4. MEMÓRIAS RESGATADAS
Dos ninos, (1) Anatole Boris Julien Grisona, nacido em El Uruguay
el 22/09/72, y (2) Eva Lucía Julien Grisona, nacida en la Argentina el
07/05/75, secuestradas el 26/09/76 en Buenos Aires, em una operación
conjunta de las fuerzas policiales uruguayas y argentinas, fueron encontradas en la ciudad de Valparaíso, Chile. Los ninos están bien. Sus padres,
Roger Julien Cáceres (uruguayo) y Victoria Grisona (argentina), secuestrados en esa misma operación, continúan desaparecidos. La familia entera fue secuestrada de su residencia em Partido de San Martín, Provincia
de Buenos Aires8.
7O habeas data assegura o direito de toda pessoa ter acesso a informação e aos dados sobre si
mesma.
8
Boletín de Prensa del 31/07/1979. Fundo Clamor, pasta 1, plástico 60. Arquivo do Comitê de
Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e Informação
Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP.
101
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O texto acima se refere a uma denúncia feita pelo Comitê de Defesa dos
Direitos Humanos para os Países do Cone Sul - CLAMOR9, em 1979, a respeito do desaparecimento das crianças uruguaias Anatole Boris Julien Grisona
(4 anos) e Eva Lucía Victoria Julien Grisona (1 ano e 4 meses) que foram
sequestradas no dia 26 de setembro de 1976 junto com seus pais na Argentina
e deportadas ilegalmente para o Chile. Durante a operação de sequestro, os
pais dessas crianças foram mortos e seus filhos foram levados para centros de
interrogatórios. Posteriormente foram abandonados numa praça, na cidade
de Valparaíso (Chile) e entregues a um orfanato por uma assistente social que
passava no local (LIMA, 2003).
A partir de setembro de 1976 os familiares de Anatole e Eva Lucía iniciaram uma busca desesperada para reencontrar as crianças. Segundo a historiadora Ananda Simões Fernandes, esta prática se trata de uma “modalidade de
Terrorismo de Estado das ditaduras de Segurança Nacional” (FERNANDES,
2011, p. 48), sobretudo na Argentina, que durante a vigência do regime militar
(1976-1983) contou com o alarmante número de 230 crianças sequestradas
(BRASIL, 2009).
No caso argentino, a maioria das crianças sequestradas tinha suas identidades omitidas e eram posteriormente adotadas ilegalmente por famílias
ligadas direta ou indiretamente à repressão. Muitas crianças sequestradas
junto com seus pais foram adotadas por oficiais da repressão. Exemplo dessa
situação é o caso da criança Mariana Zaffaroni, sequestrada quando tinha dezoito meses de idade, junto com seus pais Jorge Roberto Zaffaroni Castilla
e María Emilia Islas de Zaffaroni em Buenos Aires, no dia 27 de setembro
de 1976, por forças da repressão argentina e uruguaia. A partir dessa data
os familiares de Mariana iniciaram uma busca para encontrá-la. No dia 20
de maio de 1983 o jornal argentino “Clarin” de Buenos Aires publicou um
apelo, com a foto da menina, solicitando a quem tivesse qualquer informação de Mariana, que entrasse em contato com as Abuelas da Plaza de Mayo10
ou com o grupo Clamor em São Paulo. Vinte dias após o apelo chegou uma
carta anônima da Argentina enviada ao grupo Clamor. A carta informava que
9
Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul criado em
1977, apoiado pelo Arcebispo de São Paulo - Cardeal Paulo Evaristo Arns e vinculado à Comissão
Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados. Seu objetivo era prestar proteção
e assistência aos refugiados dos países do Cone Sul - Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
10 Organização de direitos humanos argentina, fundada em 1977, que tem como finalidade localizar e restituir às suas famílias legítimas todos os filhos sequestrados e desaparecidos durante a
última ditadura militar argentina (1976-1983).
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Miguel Angel Furci, membro do Serviço de Inteligência do Estado (SIDE),
estaria com Mariana em um subúrbio de Buenos Aires. A menina havia sido
registrada como filha legítima do casal Furci, sendo registrada dois anos após
o seu nascimento (LIMA, 2003).
Casos como esses se tornaram uma política de estado na Argentina e
foram praticados nos demais países do Cone Sul e no Brasil com a cooperação
das forças repressoras desses países. Geralmente as crianças e adolescentes
eram sequestradas junto com seus pais, quando da prisão e/ou sequestro dos
mesmos. Posteriormente eram encaminhadas para centros de detenção e presas juntos com seus pais (QUADRAT, 2003). Exemplo dessa situação é o caso
da brasileira Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, que foi sequestrada em sua residência no dia 13 de dezembro de 1968, dia da promulgação
do Ato Institucional Nº 5 em Pariconha, interior de Alagoas, junto com seus
filhos André (3 anos) e Priscila (2 anos). Ela e seus filhos ficaram presos durante quatro meses (BRASIL, 2009, p.30).
Assim como o caso de Maria Auxiliadora, várias outras crianças e adolescentes foram presos e, algumas vezes, torturados junto com seus pais, como
é o caso do adolescente Ivan Seixas (16 anos) filho do operário paranaense
Joaquim Alencar de Seixas. Ambos foram presos em 16 de abril de 1971 e levados para as dependências da 37ª Delegacia de Polícia e posteriormente para o
Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa
Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP). Ambos militavam no Movimento
Revolucionário Tiradentes (MRT) quando foram presos. Pai e filho foram
torturados juntos e após o assassinato de Joaquim Alencar de Seixas, sua residência foi invadida, sua mulher e filhas foram presas. Ivan passou seis anos
preso sem responder a um julgamento (BRASIL, 2009, p. 44).
No dia 30 de setembro de 1969, Virgílio Gomes da Silva Filho foi preso
junto com sua mãe e mais dois irmãos. No dia anterior seu pai Virgílio
havia caído nas mãos dos agentes da repressão e foi assassinado. Sua mãe
e irmãos foram presos quando estavam hospedados em uma casa praiana
em São Sebastião / SP. Na época, seu irmão mais velho Vlademir tinha oito
anos, Virgílio seis anos e Isabel, sua irmã mais nova, tinha somente quatro
meses. Todos foram detidos na sede da Operação Bandeirantes (OBAN). As
três crianças foram arrancadas de sua mãe Ilda e levadas para o Juizado de
Menores, onde permaneceram por dois meses. Antes disso passaram por vários interrogatórios. Ilda permaneceu presa até o ano de 1979, permanecendo
incomunicável a maior parte do tempo. As crianças foram separadas e cada
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uma delas foi morar com um tio. Às vezes elas se reuniam e ficavam paradas
em frente a um poste onde sua mãe, ainda presa, poderia avistá-los. Após ser
libertada e reunir sua família, Ilda e seus filhos foram morar em Cuba onde
permaneceram até concluírem o curso universitário (PIMENTA, 2009).
A história da prisão de Criméia Schimit de Almeida, mãe de João Carlos
Gradois, revela mais um episódio dessa história de prisão, sequestro, tortura de crianças nos cárceres militares brasileiros. Presa nas dependências da
Operação Bandeirantes em São Paulo quando estava grávida de oito meses
de João Carlos, Criméia foi submetida a espancamentos e choques elétricos.
Após o parto, permaneceu presa com o bebê durante cinquenta e dois dias
(BRASIL, 2009, p. 66).
Em 19 de fevereiro de 2013 morreu em São Paulo Carlos Alexandre
Azevedo, torturado quando tinha apenas um ano e oito meses de vida no
Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), em 1974. Carlos
era filho do jornalista Dermi Azevedo, militante e um dos fundadores do
Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MDNH). No dia 14 de janeiro de
1974, Carlos Alexandre e sua mãe foram levados à sede do Deops paulista, onde
seu pai estava preso. Durante o interrogatório de Dermi, os policiais jogaram
Carlos Alexandre no chão e machucaram sua cabeça. A tortura deixou sequelas
em Carlos que viveu toda a sua vida submetida a tratamentos com antidepressivos e antipsicóticos. No dia 19 de fevereiro de 2013, Carlos Alexandre pôs fim à
sua vida com uma overdose de medicamentos (BECKER, 2013).
Ações como essas eram utilizadas em técnicas de interrogatório para
obtenção de informações consideradas essenciais para o Estado de Segurança
Nacional vigente nos países do Cone Sul e no Brasil. Conforme denúncia do
relatório Nunca Mais da Argentina:
… Por eu responder de forma negativa, começaram a bater na minha
companheira com um cinto, puxavam seus cabelos e davam chutes nos
pequenos Celia Lucía, de 13 anos, Juan Fabián, de oito anos, Verónica
Daniela, de três anos, e Silvina, de somente vinte dias… As crianças eram
empurradas de um lado ao outro e perguntadas se iam amigos à casa.
Depois de maltratar minha companheira, pegaram a neném de somente
vinte dias; pegaram-na pelos pés, de cabeça para baixo, e começaram
a bater nela, gritando à mãe: “… se você não falar, vamos matá-la”. As
crianças choravam e o terror era imenso. A mãe suplicava, gritando, que
não mexessem com a neném. Então decidiram fazer o “submarino” na
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minha companheira na frente das crianças, enquanto me levavam para
outro quarto. Até o dia de hoje não soube nada de minha companheira...
(CONADEP, 1986, p. 230).
Nenhuma das crianças que tiveram os pais assassinados, clandestinos ou
encarcerados teve o direito de desfrutar da convivência familiar, escolar ou
comunitária. Seus relacionamentos eram marcados por restrições e segredos.
Os finais de semana eram passados em cadeias, únicas ocasiões que podiam
visitar seus pais.
Há ainda casos em que militantes grávidas eram sequestradas e após a
ocorrência dos partos, geralmente em centros clandestinos, as crianças eram
retiradas das mães com a falsa informação de que seriam entregues aos avós.
Após a separação, as mães, geralmente, eram executadas (QUADRAT, 2003).
Várias das crianças nascidas em cativeiro continuam desaparecidas. Essa metodologia repressiva foi adotada nos países do Cone Sul da América Latina
como estratégia para dissimular uma cultura do medo e da incerteza, como
recurso para intimidar os opositores dos regimes ditatoriais nos países do
Cone Sul.
O sequestro de crianças filhos de presos políticos e a apropriação de
suas identidades configura-se como crimes de lesa-humanidade e, portanto
são imprescritíveis. Sendo assim, pesquisar essa temática é garantir que arbitrariedades como estas não passem despercebidas pelas sociedades vitimadas
pelos governos ditatoriais, sobretudo onde esses desaparecimentos, prisões
e torturas se fizeram mais frequentes. Estudar esse assunto é garantir aos familiares dos desaparecidos políticos e a sociedade civil desses países o direito
do conhecimento e da memória dos fatos que, de forma, inóspita e brutal,
retiraram do convívio familiar milhares de crianças e adolescentes, vítimas
inocentes desse “terrorismo de estado”.
5. A REPRESSÃO NAS DITADURAS DO CONE SUL
Após anos de desrespeito sumário aos direitos humanos dos povos sul-americanos, sobretudo nos períodos das ditaduras civis e militares, que contaram com diversos golpes de estado e a tomada pela força do poder, com
a prática hedionda da tortura, do desaparecimento, sequestro e ocultação
de identidades de milhares de militantes políticos contrários aos regimes
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instalados, vários cidadãos, familiares de desaparecidos políticos, ainda
aguardam a efetiva igualdade de direitos à memória, ao conhecimento dos
fatos, a identificação dos entes queridos. Naquele contexto, o desrespeito aos
direitos humanos tinha um alvo específico: opositores políticos e ideológicos
das ditaduras instaladas nos países do Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai,
Paraguai) e no Brasil.
A ação das forças repressoras desses países procurou, por meio da manipulação dos meios de comunicação e educação, silenciar qualquer manifestação contrária aos interesses econômicos, políticos e ideológicos dos partidários das ditaduras instaladas após a segunda metade do século XX. Baseado na
ideologia de cunho geopolítico expressa na Doutrina de Segurança Nacional11,
o inimigo era caçado e eliminado. O aparato militar repressivo se voltou para
a população, em especial para os subversivos e a guerrilha urbana. O discurso
progressista e revolucionário da sociedade civil foi progressivamente substituído, ou melhor, “emudecido pelo alarido conservador, pela voz da Ordem,
da Moralidade, da Pátria, da Família” (HOLLANDA, 1985, p. 14). Os golpes
civis e militares nos países do Cone Sul, na segunda metade do século XX,
romperam com as perspectivas revolucionárias dos setores oposicionistas da
sociedade civil que sonhavam com a construção de uma nova sociedade. Os
ânimos socialistas foram silenciados pelo discurso da Ordem e da Segurança
Nacional, da tradição, família e propriedade. Movimentos populares, estudantis e segmentos progressistas da sociedade civil, estupefatos, passaram da
euforia à dúvida, da ofensiva ao recuo12.
Vale ressaltar que o crescente descontentamento da sociedade civil nos
países do Cone Sul e no Brasil estava inserido no contexto da Guerra Fria, em
um mundo marcado pela bipolaridade ideológica entre os blocos liderados
pelos Estados Unidos da América (EUA) que patrocinavam o capitalismo e
pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que defendiam o socialismo. Neste contexto é importante destacar o impacto causado nos EUA
pela Revolução Cubana, em 1959, com a implantação de um regime socialista em um país próximo geograficamente dos EUA. Com a instalação do
socialismo em Cuba, os interesses dos dirigentes dos EUA e dos demais países do Cone Sul são ameaçados por uma ideologia contrária aos interesses
11
A respeito da Doutrina de Segurança Nacional e seu papel no golpe de 64, ver: TOLEDO, 1977;
DREIFUSS, 1981; STARLING, 1986; SODRÉ, 1992.
12
A respeito do grau de radicalização do Regime Militar Brasileiro, entre os anos de 1964 a 1968,
consultar: FON, 1979; ARQUIDIOCESE, 1987; ALVES,1989.
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norte-americanos e militares, cujos princípios socialistas e revolucionários
questionavam os pilares que sustentavam o desenvolvimento econômico desses setores. Os interesses dos EUA na América Latina haviam sido abalados
desde a Revolução Cubana, o que levou a “superpotência considerar a política
interna de cada país da região como extensão de sua própria política externa”
(PADRÓS, 2005, p. 47).
A Guerra Fria entre URSS e EUA que dominou o cenário internacional
na segunda metade do século XX fez com que gerações inteiras se criassem à
sombra de batalhas nucleares globais, que acreditavam que podiam estourar
a qualquer momento e devastar a humanidade. O medo da destruição mútua
inevitável impediria um lado ou outro de dar o sempre pronto sinal para o
planejado suicídio da civilização. A peculiaridade da Guerra Fria era a de que,
em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial.
Para a América Latina, o grande impacto da Guerra Fria não foi às armas
nucleares e nem a corrida armamentista, mas sim a “guerra de contrainsurgência”, baseada na Doutrina de Segurança Nacional, que tinha como objetivo eliminar possíveis revoluções sociais nas áreas de influência ideológica dos EUA.
De acordo com o Secretário do governo Kennedy, Robert Mc Namara, três
tipos de guerras eram consideradas naquele contexto de Guerra Fria: a guerra
atômica, a guerra convencional, a guerra não convencional. O último tipo
de guerra foi interpretado como uma estratégia do Movimento Comunista
Internacional na conquista de adeptos para o socialismo. Nesse sentido, o
novo desafio para o EUA era conter a guerra não convencional ou guerra revolucionária através da instalação da Doutrina de Segurança Nacional e dos
regimes ditatoriais na América do Sul (REIS, 2012, p. 34).
5.1. A DITADURA MILITAR NO PARAGUAI
A instituição de ditaduras nos países do Cone Sul teve início em maio
de 1954, no Paraguai, com o golpe de estado do general Alfredo Stroessner,
apoiado pela Junta de Governo do Partido Colorado e por grande parte da
população, que depôs o presidente Frederico Chávez e nomeou como presidente interino Toman Romero Pereira, para depois convocar eleições. No
mesmo ano, no dia 11 de julho, o general Alberto Stroessner, candidato único
do Partido Colorado, que apoiou o golpe, ganhou as eleições presidenciais.
Em 15 de agosto de 1954, Stroessner tornou-se Presidente do Paraguai. A partir de então, tem-se início, um regime ditatorial unipessoal, que contou com
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práticas de torturas aos seus opositores e com a criação de um sistema de
delação que levou milhares de paraguaios aos cárceres e ao desaparecimento.
Além do Partido Colorado, o general Stroessner contou com o apoio
da oligarquia agropecuária e dos Estados Unidos. A instalação da ditadura
militar no Paraguai fazia parte da “guerra de contrainsurgência”, desencadeada pelos EUA na América Latina e era baseada na Doutrina de Segurança
Nacional. Segundo Miguel López (2010), pouco após Stroessner assumir a
presidência, ele assinou um acordo com os altos oficiais americanos e brasileiros, onde se comprometia a barrar qualquer ameaça ou crescimento de
partidários do comunismo.
Para barrar o avanço do comunismo no Paraguai a ditadura do general Stroessner impôs a filiação partidária ao Partido Colorado como condição primordial para se conseguir acesso aos cargos públicos e ingressar nas
Universidades. Além disso, a exigência de filiação ao Partido Colorado se fez
também por parte das empresas privadas na contratação de pessoal, cujos
proprietários eram aliados do governo. Assim, o Partido Colorado se tornou
a base social da ditadura paraguaia e os partidos, sindicatos e movimentos
estudantis eram formados basicamente por colorados. Esta estratégia deixou
a oposição ao regime cada vez mais debilitada (VERA, 2010).
Com a desaceleração econômica nos anos de 1980, a ditadura militar
paraguaia começou a perder força e apoio. Nos dias 2 e 3 de fevereiro de 1989
um novo golpe, planejado por alguns setores do Partido Colorado, destituiu
Stroessner da presidência.
5.2. O REGIME MILITAR BRASILEIRO
Na sequência de instituição de regimes ditatoriais na América do Sul, o
Brasil foi o próximo país a sofrer um golpe militar que derrubou um presidente
civil eleito democraticamente. Em 31 de março de 1964 o regime militar implantando no Brasil depôs o governo constitucional do presidente João Goulart
e emitiu diversos Atos Institucionais que aumentaram o poder da Presidência
da República e limitaram os direitos individuais dos cidadãos. A imprensa, os
sindicatos e as organizações estudantis ficaram sobre forte censura do Estado.
O período do Regime Militar Brasileiro foi marcado pela influência da
Doutrina de Segurança Nacional e explicitou um conjunto de políticas que,
sob a máxima “desenvolvimento com segurança”, articulou medidas de efetivo
controle social com estratégias econômicas de maior inserção do Brasil na
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ordem capitalista internacional. A realização da lógica “estabilidade e crescimento econômico” só foi possível devido à eliminação pela via da coerção
do conflito no interior da sociedade. Gradativamente, o ciclo de repressão
estendeu-se aos indivíduos considerados suspeitos no interior da esfera do
Estado e, com as manifestações estudantis de 1968, à classe média. Em todo o
Brasil, a repressão aos grupos “subversivos” se fez presente.
As primeiras medidas do regime militar, durante o governo do general
Castelo Branco, apresentaram uma clara intenção de eliminar a oposição ao
regime militar. O governo Castelo fez uso intenso de práticas policiais e militares de detenção em massa com bloqueio de ruas, busca de casa em casa e
checagem individual; de prisões de massa; da prática da tortura como forma
de interrogatório em diversas guarnições militares. Entre os anos de 1964 a
1967 o governo interveio nos sindicatos e nas entidades estudantis, proibiu a
realização de greves, instaurou a censura nos meios de comunicação, criou o
Sistema Nacional de Informações, cassou mandatos e suspendeu por dez anos
os direitos políticos dos parlamentares oposicionistas (ALVES, 1989).
O ano de 1968 foi um marco de ambivalência no regime militar. Neste
ano verificou-se tanto a efervescência dos movimentos oposicionistas como a
intensificação da repressão do Estado13. Em 1968, o governo do general Costa
e Silva, em resposta a eclosão de um amplo movimento social de protesto e
de oposição à ditadura, decretou o Ato Institucional nº 5, considerado, por
muitos autores, como um “golpe dentro do golpe” (ALVES, 1989, p. 51). O
Ato Institucional Nº 5 proibiu as greves, ampliou o poder do executivo para
efetuação de prisões sem mandatos judiciais e promoveu novas cassações.
O fator conjuntural que mais contribuiu para a edição do AI-5 foi a intensificação da contestação ao regime pelos sindicatos e movimento estudantil como também por alguns segmentos do MDB.
Os três fatores utilizados como pretextos pelas Forças Armadas para
desencadearem nova escalada repressiva com o Ato Institucional nº 5,
foram: as denúncias sustentadas dentro do próprio partido de oposição
criado pelo regime, o crescimento das manifestações de rua e o surgimento de grupos de oposição armada, que justificavam sua decisão com
o argumento de que os canais institucionais seriam incapazes de fazer
frente ao poder ditatorial (ARQUIDIOCESE, 1987, p.62).
13
A respeito dos movimentos de oposição ao Regime Militar, consultar: MARTINS, 1987;
GORENDER, 1987; PERRONE, 1988; VENTURA, 1988; REIS E MORAIS, 1988.
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Entre os anos de 1969 a 1973, observou-se a ocorrência das guerrilhas
rural e urbana que acirraram ainda mais a ação repressiva das forças armadas. Inúmeros militantes das organizações de esquerda foram presos e muitas vezes, torturados. Muitos morreram, desapareceram e foram banidos do
país. Grupos da sociedade civil e, principalmente pessoas que lutavam pela
liberdade, pela restauração das garantias constitucionais e por melhorias nas
condições de vida, foram excluídas do cenário político, social e familiar da
sociedade brasileira. Este período marcou a fase de endurecimento do regime
militar brasileiro. Além da repressão física, os grupos de oposição ao Regime
Militar conviviam com uma constante intimidação ideológica e psicológica,
promovida pela campanha de repressão (ALVES, 1989).
Para Ana Vasquez e Ana Araújo (1988), o objetivo da tortura não era
apenas a obtenção de informações, mas, sobretudo, a anulação daquelas pessoas, de forma permanente e definitiva. O principal alvo da repressão eram os
movimentos operários, camponeses, estudantil e organizações de esquerda.
De abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura no
Brasil passou, com o Regime Militar, à condição de “método científico”,
incluído em currículos de formação de militares. O ensino deste método
de arrancar confissões e informações não era meramente teórico. Era
prático, com pessoas realmente torturadas, servindo de cobaias neste
macabro aprendizado (ARQUIDIOCESE, 1987, p. 24).
Em 1974, o desgaste da legitimidade do regime ficou visível na vitória
eleitoral do MDB sobre a ARENA para o Senado Federal, refletindo uma mudança de estratégia dos setores oposicionistas, que passaram a apoiar os partidos de oposição oficial (ALVES, 1989). Mas, o regime militar foi solapado
quando a sociedade civil encontrou condições de manifestar. Nas décadas de
1970 e 1980 as ruas das cidades foram progressivamente tomadas pelos mais
diversos movimentos por liberdades e direitos: sindicais, estudantis, das mulheres, das igrejas, dos negros.
Em 1985, através da realização de eleições indiretas para presidência e a
vitória do civil Tancredo Neves deu-se o fim de vinte e um anos de ditadura
militar no Brasil. Vítima de uma enfermidade aguda, Tancredo faleceu antes
de assumir a presidência do Brasil. Seu vice, José Sarney, um ex-arenista, assume o comando da Presidência da República do Brasil.
Segundo Padrós (2009, p, 17), o Brasil se tornou laboratório de práticas
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repressivas e foco disseminador das mesmas (torturas, esquadrões da morte,
sequestro, desaparecimento de pessoas). Nos países do Cone Sul, depois do
Brasil e do Paraguai de Stroessner, foi a vez da Argentina (1966), Uruguai e
Chile (1973) e novamente a Argentina.
5.3. A DITADURA ARGENTINA
Na Argentina, a repressão foi extremamente violenta. A ditadura teve
duas etapas. A primeira, de 1966 a 1973, que durou sete anos. A segunda,
iniciada em 1976, foi o período que a violência de estado atingiu uma escala
sem precedentes na América Latina. Somente em 1983 o país recuperou a
democracia.
No dia 28 de junho de 1966, o presidente eleito legalmente na Argentina,
Arturo Illia é deposto e o general Juan Carlos Onganía assume a Presidência
da República. Assim como no Brasil, os mentores do golpe denominaram esse
período de tomada de poder como Revolução Argentina. Em seguida, entrou
em vigor no país o Estatuto da Revolução Argentina que procurou legalizar as
atividades dos militares. O objetivo era garantir a permanência dos militares
no poder por tempo indeterminado. Segundo Anthony W. Pereira, a ditadura
argentina expressa uma “quebra radical com a legalidade anteriormente vigente e num ataque em grande medida extrajudicial aos oponentes do regime”
(PEREIRA, 2010, p. 44). A nova “constituição” proibia a atividade dos partidos políticos e cancelava quase todos os direitos civis, sociais e políticos dos
cidadãos, em função de um constante Estado de Sítio.
No final dos anos de 1960 ações armadas dirigidas contra os militares, através de guerrilhas como os Motoneros e o Ejército Revolucionário Del
Pueblo (ERP), tornaram-se alvo de preocupação do governo. Em 1973, com a
saída dos militares do poder e a restauração de um governo peronista, houve a
intensificação da repressão. Primeiro sem Peron, depois com o líder no poder
e posteriormente, após sua morte, no governo de sua terceira esposa, Maria
Estela Martinez de Perón, a violência política continuou através dos grupos
paramilitares. Sob o comando do general José Lopez Rega, teve início uma
guerra suja contra a esquerda armada. Segundo Pereira “o golpe de 1976 foi
em parte provocado pelo desejo dos militares de expandir a guerra suja para
abranger todo o país” (PEREIRA, 2010, p. 61). Sendo assim, diferente do Brasil
e do Chile, a repressão militar na Argentina começou antes da instituição do
regime militar.
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A repressão argentina concentrou-se em Buenos Aires, responsável por
quase metade dos desaparecimentos políticos. Contudo, outras cidades como
Córdoba, La Plata e Mendoza tiveram intensa atuação das forças armadas argentinas nas práticas repressivas. Os principais alvos da repressão eram os sindicalistas, membros do partido peronista, intelectuais, estudantes e jornalistas.
Segundo Samantha Quadrat (2002), a repressão na Argentina se estruturava no modelo de sequestro, desaparecimento e tortura. As pessoas suspeitas
de subversão, inimigos internos ou simpatizantes de governos nacionalistas
eram sequestradas em suas residências ou na saída do trabalho, por grupos
fortemente armados conforme atestam a maior parte dos casos de registros
de desaparecimentos na Argentina, denunciados pelas Madres e Abuelas de
Praza de Mayo. Após sequestrada, a pessoa era conduzida aos centros clandestinos de detenção e tortura que sempre tiveram sua existência negada pelo
governo militar argentino. Segundo informações do Nunca Mais argentino,
da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) na
Argentina, existiam cerca de 340 centros espalhados em todo o território argentino (CONADEP, 1986). Esses locais constituíram na base material indispensável para o desaparecimento em massa de opositores do regime militar
argentino. Um dos mais famosos era a Oficina Orletti, uma antiga oficina mecânica que foi convertida em centro clandestino de detenção e tortura, servindo de cárcere principalmente para prisioneiros argentinos, uruguaios e chilenos. Oficiais uruguaios e chilenos também frequentavam a Oficina Orletti e
participavam das sessões de interrogatórios e tortura contra prisioneiros.
Umas das formas mais brutais da repressão argentina foi o sequestro
de crianças, nascidas geralmente em cativeiros, filhas de mulheres mortas ou
presas pela repressão. Em muitos dos casos, as crianças sequestradas eram
adotadas por oficiais das forças de repressão. O sequestro dos filhos e o desaparecimento dos opositores ao regime tinham um claro propósito, desarticular a família dos militantes políticos – avos, mães, filhos – instalando um
castigo exemplar para aqueles acusados de implantar o caos na Argentina,
castigo que deveria servir de advertência para as gerações futuras.
A intensidade da repressão na Argentina revela que o terrorismo de
Estado lá aplicado não foi proporcional a ação da subversão. O número de
vítimas desse regime reflete a amplitude do genocídio produzido e demonstra
que os objetivos dos militares iam além de reprimir.
Segundo Marcelo Fabián Sain (2000, p. 23) “a derrota político-militar das
Malvinas marcou o início da ruptura do regime militar inaugurado em 1976.
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A crise na qual mergulharam as Forças Armadas e, em particular, o governo
militar converteu-se rapidamente numa crise do regime”. A derrota militar das
forças armada somada a sua fragmentação política colocaram em xeque os pressupostos doutrinários do regime militar argentino e impediu a saída das forças
armadas através das esferas governamentais em parâmetros determinados por
elas ou canalizados a partir de pactos com os dirigentes civis.
Sobre esse aspecto o processo de transição política na Argentina não
ocorreu de forma pactuada como no Brasil, que se desenrolou a partir de uma
conciliação entre civis e militares, tendo como produto final a eleição indireta para presidente da República. Diferente do Brasil, a transição argentina
tratou-se de uma transição por colapso, determinada pela ruptura do regime militar que teve como golpe final a derrota da Argentina na Guerra das
Malvinas (SAIN, 2000, p. 24).
5.4. A DITADURA CHILENA
Nove anos após o início da ditadura militar brasileira, em 1973 o Chile
sofreu um golpe de estado que culminou na execução do presidente de tendência socialista Salvador Allende, democraticamente eleito, dentro do próprio palácio presidencial de La Moneda. O golpe militar chileno foi orquestrado pela justa militar comandada por Augusto Pinochet. Assim como as
demais ditaduras do Cone Sul, o regime militar chileno se caracterizou pela
extrema violência contra seus opositores.
Do ponto de vista da legalidade, os militares chilenos aboliram a
Constituição, estabeleceram um estado de sítio em todo o território e executaram centenas de pessoas sem prévio julgamento. O Exército chileno assumiu
o controle da maior parte do território. A prática da tortura era comum nos
interrogatórios e os acusados eram julgados por tribunais militares “de tempos de guerra”, onde as sentenças eram rapidamente cumpridas, sobretudo
nos casos de pena de morte. Os principais alvos eram as pessoas suspeitas de
apoiar Salvador Allende e membros dos partidos socialistas e comunistas. A
cidade de Santiago foi o principal foco das ações repressivas, mas as mortes e
desaparecimentos ocorreram em todo o território chileno.
Segundo Pereira (2010) o regime militar chileno, se comparado ao
caso brasileiro, estava pouco preocupado com a atuação das forças armadas
dentro dos limites da legalidade, sobretudo nos cinco primeiros anos após
o golpe militar. “Nos primeiros meses após o golpe, o número das pessoas
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sumariamente executadas pelo Exército ou pela política (carabineros) parece ter sido muito superior ao das que receberam algum tratamento judicial”
(PEREIRA, 2010, p. 60). Os julgamentos eram rápidos e as sentenças, embora
severas, eram sumariamente aplicadas. Não havia direito de recurso para os
réus, pois a Suprema Corte se recusava a rever os vereditos dos julgamentos
realizados em tribunais militares.
Após a instituição do golpe militar chileno, foram criados órgãos de inteligência que tinham como objetivo assegurar a permanência do novo regime e
reprimir os grupos opositores ou que poderiam apresentar alguma resistência
ao regime. É nesse contexto que foi criada a Dirección de Inteligencia Nacional
(DINA), em junho de 1974, que funcionou sob o comando do coronel Manuel
Contreras. Tratava-se de um órgão autônomo, centralizado e subordinado diretamente ao governo. O decreto que criou a DINA permitia a Junta Militar
convocar os demais serviços de segurança para participarem das ações do
DINA e dava-lhe poderes, para realizar prisões e buscas de prisioneiros em
todo o país. Vale ressaltar que a CIA, agência de inteligência dos EUA, foi
responsável pelo treinamento de muitos membros da DINA, além da destinação de recursos financeiros para o órgão (ANTUNES, 2008, p. 227). A DINA
mantinha centros de reclusão clandestinos, onde a prática de tortura contra
os prisioneiros era comum. Em 1975 a DINA sediou o sistema da Operação
Condor, cooperação entre os regimes militares do Cone Sul inicialmente integrada pela Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile. Uma delegação
brasileira compareceu ao encontro, mas a integração do Brasil só aconteceu
em 1976.
Durante sua existência, a Operação Condor foi marcada por três fases.
A primeira era dedicada à formação de um banco de dados com informações
sobre pessoas envolvidas com a subversão em todos os países do Cone Sul que
participavam da cooperação. Além disso, na primeira reunião foi prevista a
criação de uma central de comunicações com mensagens criptografadas e telefones com inversores de voz, além da realização de reuniões regulares entre
os chefes de inteligência dos países membros (PRIMERA, 1975).
A segunda fase foi marcada por ações conjuntas realizadas dentro
dos países membros. Tais ações possibilitaram a troca de prisioneiros sem
qualquer registro oficial de entrada ou saída do país, bem como a localização de refugiados no exterior. Após vigiar e capturar os alvos, estes eram
presos e submetidos a interrogatórios, muito vezes com o uso da prática da
tortura. Os interrogatórios eram compartilhados entre os países membros e
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os prisioneiros eram deportados para seus países, onde provavelmente eram
executados (DINGES, 2005, p. 36).
A terceira fase da Operação Condor envolvia a formação de equipes especiais dos países membros que viajavam a qualquer parte do mundo para assassinar “terroristas” ou aqueles que, segundo os órgãos da repressão, apoiassem
organizações “terroristas”. A operação consistia em localizar um terrorista ou
simpatizante no exterior, encaminhar uma equipe especial para vigiar o alvo
e posteriormente, seria enviada uma segunda equipe para executar a “sanção”
contra o mesmo. A ditadura chilena de Pinochet realizou as principais ações
dessa terceira fase da Operação Condor, planejando e executando assassinatos
na Europa e nos Estados Unidos (CHILBOM, 1976).
Além do Chile, outros países realizaram operações de busca e apreensão
de subversivos na Europa e EUA. Um exemplo disso é o Plano Piloto Paris,
orquestrado pela Argentina em cooperação com França em 1977. O plano era
uma combinação de ações repressivas entre os governos argentino e francês.
Os objetivos do plano eram melhorar a imagem da Argentina na Europa, abrir
um espaço político dentro dos meios de comunicação para favorecer o projeto
político de Massera, detectar militantes e dirigentes populares que estivessem
no exterior. O plano era de caráter clandestino e realizava um trabalho paralelo ao do Centro de Difusion Argentino, criado mediante decreto do Ministério
de Relações Exteriores, comandado pelo Vice Almirante Montes. A marinha
controlava a Chancelaria Argentina. Na produção do plano para o Centro de
Difusão de Paris participaram: Vice-Almirante Montes (Ministro de Relações
Exteriores), Capitão Gualter Allara (subsecretário de relações exteriores,
Capitão Perez Froio (Sub-Secretário de Imprensa do Ministro de Relações
Exteriores), Capitão Jorge Acosta (Chefe da GT 3.3/9), Capitão Jorge Perren
(Chefe de Operações da GT 3.3/2), Tenente Pernía (Oficial da Inteligência da
GT 3.3/2)14.
5.5. A DITADURA CIVIL E MILITAR NO URUGUAI
No mesmo ano que se instalou a ditadura militar no Chile, o Uruguai
também sofreu um golpe militar. Assim como as anteriores, a ideologia dominante era a Doutrina de Segurança Nacional que norteou o golpe militar
em 27 de junho de 1973 e depôs o presidente civil Juan Maria Bordaberry.
14
FUNDO CLAMOR – CEDIC – PUC/ SP, caixa 13, plástico 7.
115
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Diferente das demais ditaduras, a ditadura uruguaia teve um aspecto civil e
militar, tendo em vista a proximidade política do presidente civil Bordaberry
com as forças armadas. Naquele ano, com o apoio das forças armadas, o presidente uruguaio fecha o Senado, a Câmara dos Deputados e anuncia a criação
de Conselho de Estado, substituindo o parlamento. O pretexto para a aplicação dessas ações era a necessidade de realizar uma reforma constitucional que
enfatizasse os princípios republicanos e democráticos no Uruguai. Em função
dessa estratégia, a Convenção Nacional dos Trabalhadores foi colocada na ilegalidade e seus dirigentes foram presos.
A ditadura uruguaia se estendeu até 28 de fevereiro de 1985, após um
lento processo de abertura política. Durante os anos de ditadura civil e militar
o Uruguai foi marcado pela proibição dos partidos políticos, a ilegalidade dos
sindicatos, a censura à imprensa, a destruição das organizações sociais e a
perseguição, prisão, sequestro, desaparecimento e eliminação dos opositores
ao regime.
Um dos casos mais famosos de desaparecimento é o sequestro dos uruguaios em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Em novembro de 1978, agentes
do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de Porto Alegre ajudaram oficiais da Companhia de Contra-Informações do Exército do Uruguai
a sequestrarem Universindo Diaz, Lilian Celiberti e seus dois filhos, Camilo
e Francesca. Lilian e Universindo, que eram integrantes de organização de
esquerda no Uruguai, estavam exilados no Brasil, preparando um dossiê de
denúncia sobre violações dos direitos humanos no Uruguai. Os quatros foram
detidos em seu apartamento pela força policial uruguaia, para aguardar a
chegada de outros “supostos” subversivos. A operação de sequestro fracassou
quando dois jornalistas brasileiros chegaram ao apartamento das vítimas e
defrontaram com os policiais e os uruguaios. Os jornalistas denunciaram o
sequestro e com a divulgação do caso na imprensa, o fato ganhou repercussão
nacional e internacional15.
As experiências ditatoriais nos ensinaram a lutar pela aplicação das leis
e regulamentos universais, capazes de proteger os direitos humanos de todos
os cidadãos, de forma indistinta, e de garantir-lhes sua vida, liberdade e propriedade. Como no Brasil, a existência de regimes autoritários no Cone Sul
provocou a existência de repressão, exílios e prisões. Tais acontecimentos levaram à reação das sociedades civis que exprimiram seu descontentamento de
15
116
Sobre esse assunto consultar: PADRÓS, 2005; REIS, 2012.
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
diversas formas, dentre elas: as manifestações de rua, os movimentos estudantis, a luta armada, as organizações de esquerda, os movimentos pela anistia,
os movimentos de familiares e desaparecidos políticos, os movimentos em
defesa dos direitos humanos, as Madres e Abuelas de Praza de Mayo, os integrantes do grupo Clamor.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O motivo que nos leva a realização deste estudo surgiu da constatação de
que, apesar do incentivo do governo federal brasileiro no processo de resgate
da memória histórica, sobretudo do período do Regime Militar Brasileiro,
ainda são muitos os obstáculos e preconceitos que integram o cotidiano de
investigações e pesquisas acadêmicas na área. Acreditamos que o resgate do
conteúdo deste Fundo e de outros semelhantes é crucial para percebermos
a política de cooperação adotada entre os países do Cone Sul e Brasil, bem
como o protagonismo brasileiro nas ações de repressão, troca de prisioneiros
e treinamento em áreas de inteligência e técnicas de interrogatórios.
A repressão militar no Brasil e nos países do Cone Sul consistia na institucionalização da tortura e das técnicas de interrogatório, bem como no desenvolvimento de ações e propagandas que tornavam visível a existência do
aparato repressivo no país. Neste sentido, além da repressão física, os grupos
de oposição aos regimes militares conviviam com uma constante intimidação
ideológica e psicológica, promovida pelas campanhas de repressão.
Na lógica dos regimes ditatoriais implantados no Brasil e nos países do
Cone Sul, ser delator a serviço da ditadura significava ser patriota e defender a
nação. A assimilação da Doutrina de Segurança Nacional pelos militares chegou a adotar o nacionalismo como sinônimo de anticomunismo, como parte
integrante da ideologia capitalista da Guerra Fria promovida pelos Estados
Unidos. A Aliança para o Progresso, firmada nos anos de 1960, pelo presidente John F. Kennedy e os demais países da América do Sul, deu um impulso
econômico para os governos militares desses países, tornando seus governos
aliados imponderáveis dos Estados Unidos.
A originalidade da pesquisa encontra-se na produção de um trabalho acadêmico que busque analisar as informações contidas no Fundo Clamor e no
Arquivo do Terror como contribuição para o resgate da memória histórica do
período de autoritarismo político e militar nos países do Cone Sul e no Brasil,
sobretudo no diz respeito ao sequestro, desaparecimento e apropriação de
117
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
identidades de centenas de crianças e adolescentes, filhas e filhos de opositores
políticos dos regimes ditatoriais instalados nos países do Cone Sul e no Brasil.
Acreditamos que a reconstituição da memória deste período (1970199), permitirá uma pesquisa fundamental para a recuperação de uma história emudecida pelos discursos autoritários dos órgãos da repressão política e militar.
Portanto, se trata de uma pesquisa sobre as razões, paixões e desejos
implícitos na luta de pessoas em defesa dos direitos humanos de refugiados
que, devido as suas convicções políticas, foram usurpados de seus direitos
humanos e de cidadãos, em um período de autoritarismo político. Relatar
essa história é contar casos de lutas em defesa dos direitos humanos, mas também de casos de usurpação desses direitos, com a utilização clandestina, mas
explícita, de métodos de barbárie, de violência física, psicológica e cultural,
capaz de gerar uma cultura do medo alimentada pelo terrorismo de Estado
vigente nesses países. Contar essa história é oferecer às gerações presentes e
futuras a chance de conhecer seu passado, seus dirigentes, sua força armada,
cuja função máxima é a defesa da pátria. Conhecer essa história é garantir o
não esquecimento de fatos que desonraram a humanidade, que alimentaram
o silêncio e a inação política e social. Recordar esses fatos é oferecer à sociedade a chance de conhecer seu passado, aprender com ele e, a partir disso, desenhar o seu futuro. Afinal, segundo a psicóloga Eclea Bosi “um dos mais cruéis
exercícios da opressão é a espoliação das lembranças” (BOSI, 1979, 362).
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A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX – Brasil e América Latina. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.
v. 1. p.393-436.
Recebido em: 17/09/2014
Aprovado em: 28/10/2014
120
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DISCURSOS
DE AUTO-ENTENDIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NO
PROCESSO LEGISLATIVO DEMOCRÁTICO
CAMILA CARDOSO DE ANDRADE1
RESUMO
O artigo estabelece algumas considerações sobre os discursos de auto-entendimento ético-político no processo legislativo democrático e se desenvolve no marco da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen
Habemas. Para tanto, reconstrói argumentos da tradição liberal, que preconiza a autonomia privada, através da ênfase aos direitos humanos. Apresenta a
concepção da tradição republicana que coloca a ênfase na soberania popular,
que através dos direitos de participação política é entendida como a práxis
de auto-determinação dos cidadãos, voltada ao entendimento mútuo e à cooperação social. A Teoria do Discurso pretende superar as teorias liberal e
republicana utilizando elementos de ambas, e combinando-os de tal maneira
que a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos se pressuponham mutuamente, isto é, que a institucionalização jurídica do uso público
das liberdades comunicativas seja cumprida através dos direitos humanos.
Palavras chave: Jürgen Habermas; discursos ético-políticos; processo
legislativo; liberalismo; republicanismo.
ABSTRACT
This paper establishes some considerations on the discourses of ethical-political self understanding in the democratic legislative process. It is developed
under Jurgen Habermas’ Discourse Theory of Law and Democracy. For that, the
paper reconstructs arguments from the liberal tradition which argues in favor of
private autonomy by means of emphasizing human rights. It presents the conception of the republican tradition which puts emphasis on popular sovereignty
1
Mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG (2008). Professora no curso de Direito da Faculdade
UNA de Contagem. e-mail: [email protected]
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which, through the rights of political participation, is understood as the citizen’s
self-determination praxis geared towards mutual understanding and social cooperation. The Discourse Theory aims at overcoming the liberal and republican
theories using elements from both and combining them in such a way that the
private autonomy and the citizens’ public autonomy mutually presupposed each
other. That is to say that the legal institutionalization of the public use of the
communicative freedoms be fulfilled through human rights.
Keywords: Jürgen Habermas; ethical-political discourses; legislative
process; liberalism; republicanism.
1. INTRODUÇÃO
As ordens jurídico-políticas modernas não são mais legitimadas pela religião ou pela tradição, como na pré-modernidade; não existe mais um ethos
herdado e comum a todos os membros da sociedade política que a direciona a
um bem comum compartilhado. O Direito assume, na modernidade, o lugar
anteriormente ocupado pela tradição e pela religião como medium regulador
de comportamentos e promotor de integração social, estabelecendo as condições institucionais para o processo democrático de formação da opinião e da
vontade, no qual os próprios cidadãos atribuem-se reciprocamente as normas
que irão reger seu agir em conjunto.
No entanto, as sociedades democráticas contemporâneas têm como característica o pluralismo das formas de vida e tradições culturais. Os indivíduos dessas sociedades possuem diferentes concepções de mundo (ou acerca
do que consideram uma vida boa), muitas vezes incompatíveis entre si. As
formas de vida e tradições culturais a que os indivíduos pertencem são constitutivas de sua identidade, de sua auto-compreensão como pessoa.
Se essas pessoas estão inseridas em uma mesma sociedade política,
são consideradas livres e iguais e devem ter seu comportamento regido por
normas que sejam estabelecidas por um legislador democrático, no simétrico
interesse de todos. As reivindicações pela igualdade de direitos, que ocorrem
nas arenas políticas, constituem uma luta pelo reconhecimento da dignidade
e da integridade das diferentes formas de vida. Assim, no contexto de sociedades democráticas pluralistas, como compatibilizar as diferentes formas de
122
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
vida de diversos grupos em uma legislação imparcial, que garanta a igualdade
de direitos a todos os cidadãos?
Cabe considerar, de início, que duas tradições modernas do pensamento
político ocidental vieram a adotar enfoques diferentes e por vezes concorrentes quanto à compreensão dos direitos humanos e da democracia, e nesse sentido, adotam perspectivas diferentes no que respeita ao papel que as diversas
compreensões ético-políticas dos membros da sociedade devam representar
na ordem jurídica: a tradição liberal e a tradição republicana.
O presente artigo apresenta, a partir da perspectiva desenvolvida pela
Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habermas, de que
forma as tradições liberal e republicana compreendem o papel dos discursos
de auto-entendimento no processo democrático e de que maneira a teoria
desenvolvida por Habermas pretende superar o excessivo peso conferido pela
tradição republicana aos discursos ético-políticos.
A fim de desenvolver tal empreitada, inicialmente, cumpre apresentar
quais os tipos de argumentos que figuram no processo público político de
formação da opinião e da vontade. Desde já adianta-se que tratam-se de argumentos pragmáticos, éticos e morais, os quais são facilmente distinguidos em
termos analíticos, mas encontram-se imbricados quando se trata da discussão de questões políticas complexas.
Em seguida, serão explicitadas as concepções das tradições de pensamento
liberal e republicana acerca do papel que os discursos relativos ao auto-entendimento ético político dos cidadãos de uma democracia possuem nesse processo.
Após a apresentação dessas concepções, representando uma tentativa de
superação do excessivo peso conferido pela tradição republicana aos discursos de auto-entendimento ético dos cidadãos, o artigo põe em foco a Teoria
Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habermas.
2. TIPOS DE ARGUMENTOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO
DEMOCRÁTICO DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO E DA VONTADE
Interessa aos fins deste trabalho, apresentar os tipos de argumentos que
entram em jogo dos debates públicos de formação da opinião e da vontade. Para tanto, será utilizado como referencial teórico o texto de Jürgen
Habermas “Para o Uso Pragmático, Ético e Moral da Razão Prática” (1989),
no qual o autor desenvolve os tipos de argumentação que fundamentam os
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
diferentes usos que pode-se dar à razão prática. Note-se que, aqui, entende-se razão prática a
capacidade de fundamentar imperativos onde se modifique, conforme
a referência à ação ou o tipo de decisões a serem tomadas, não apenas
o sentido ilocutório do ‘ter de’ ou do ‘dever’ mas também o conceito de
vontade, que deve poder ser determinado a cada momento por imperativos fundamentados racionalmente. (HABERMAS, 1989, p.12)
Assim, argumentos pragmáticos estão relacionados com questões empíricas e questões de escolha racional, ou seja, com o que se deve fazer tendo em
vista determinadas metas ou objetivos, de acordo com os valores e preferências
de quem age. Habermas, explica que “a reflexão prática transcorre aqui no horizonte da racionalidade de fins, com a meta de encontrar técnicas, estratégias ou
programas adequados” (1989, p.6). Essa forma argumentação está relacionada
ao que Habermas chama de “agir estratégico”, em que os agentes assumem uma
perspectiva egocêntrica visando à satisfação de seus próprios interesses.
Argumentos éticos entram em jogo nos questionamentos referentes a
quem determinada pessoa é e quem gostaria de ser. Tal argumentação se refere a valorações que dizem respeito à compreensão de si de uma pessoa, ao
seu caráter, ao tipo de vida que leva, ao que considera ser bom para si ou sua
comunidade. De acordo com Habermas (1989),
questões éticas (...) referem-se ao télos de minha vida. Deste ponto de vista, outras pessoas, outras histórias de vida e esferas de interesse ganham
significado apenas na medida em que estejam unidos ou entrelaçados à
minha identidade, à minha história de vida e à minha esfera de interesse
no âmbito de nossa forma de vida partilhada intersubjetivamente. Meu
processo de formação completa-se num contexto de tradições que partilho com outras pessoas: minha identidade também é marcada pelas
identidades coletivas, e a minha história de vida está inserida em contextos de histórias de vida que se entremeiam. Nessa medida, a vida que é
boa para mim toca também as formas de vida que nos são comuns. (p. 9)
A identidade do sujeito é construída, então, a partir da apropriação crítica de sua própria história de vida, bem como da forma de vida compartilhada
com outros, em que o sujeito adquire consciência de seu esforço por levar
124
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
uma vida autêntica.
A argumentação moral, por sua vez, reclama a imparcialidade na regulamentação de uma vida em comum. Ela é desenvolvida visando estabelecer
o que é justo no simétrico interesse de todos. Essa forma de argumentação remonta a Kant e sua fórmula do imperativo categórico, segundo a qual deve-se
agir de acordo com máximas que possam ser observadas como lei universal
para todos2. Nesse sentido, segundo Habermas (1989),
uma máxima é justa apenas se todos podem querer que ela seja seguida
por cada um em situações comparáveis (...). Apenas uma máxima capaz de
universalização a partir da perspectiva de todos os envolvidos vale como
uma norma que pode encontrar assentimento universal, e nessa medida,
merece reconhecimento, ou seja, é moralmente impositiva.” (p.11)
Habermas, no entanto, dá uma interpretação intersubjetiva ao imperativo categórico kantiano, concebido por Kant, inicialmente, a partir do ponto
de vista monológico do sujeito que age racionalmente. De acordo com a teoria
do discurso, a construção de uma perspectiva que leve em consideração as
perspectivas de todos só pode ser construída
sob os pressupostos comunicativos de um discurso ampliado universalmente, no qual todos os possivelmente envolvidos possam participar e
tomar posição com argumentos numa postura hipotética em vista das pretensões à validade de normas e modos de ação. (HABERMAS, 1989, p.15)
Com isso, os próximos tópicos exporão de forma esquemática, a maneira
pela qual as principais tradições do pensamento político ocidental compreendem o processo político democrático e o papel que os discursos acerca da
auto-compreensão ético-política dos cidadãos representa nesse processo.
3. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TRADIÇÃO LIBERAL
Os liberais, em linhas gerais, entendem que a função do processo democrático é a de programar o Estado, entendido como aparato administrativo,
2
Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2002.
Veja-se especialmente 2ª seção, pp. 39-91.
125
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
para que aja voltado à satisfação dos interesses da sociedade, sendo esta
compreendida como uma rede de interações entre sujeitos privados, organizada sob a forma de mercados. A formação política da vontade dos cidadãos legitima o exercício do poder político reunindo os interesses privados e
encaminhando-os à Administração Pública, “cuja finalidade é utilizar-se do
poder político para atingir os objetivos coletivos majoritários” (CATTONI
DE OLIVEIRA, 2000, p. 62).
Nessa tradição, os direitos fundamentais, incluídos os direitos civis e os
direitos de participação política, objetivam garantir aos indivíduos um espaço
em que possam realizar seus interesses privados, livres de coações externas.
Esses direitos garantem que os indivíduos exerçam sua autonomia privada,
sob o domínio anônimo das leis, ou seja, garantem aos indivíduos esferas de
liberdade individuais intocáveis. A ordem jurídica é responsável por estabelecer quais direitos cabem a cada um.
Para a tradição liberal, no processo político de formação da opinião e da
vontade, os agentes atuam estrategicamente, visando manter ou conquistar o
poder administrativo. Ao eleger seus representantes, os eleitores estão manifestando sua preferência por determinada pessoa ou programa. (HABERMAS,
2002, pp. 278-284).
Os adeptos do liberalismo “propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra, que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que
cada um possa orientar-se por uma concepção própria do que seja bom”
(HABERMAS, 2002, p.241). Ou seja, questões relativas ao que é considerado
justo, têm primazia sobre questões relativas às concepções de vida boa.
Haveria aqui, entretanto, uma distinção estanque entre quais assuntos
são considerados públicos ou privados, sendo que questões sobre a vida boa
estariam relegadas à esfera privada e excluídas dos debates e da regulamentação pública estatal, uma vez que, por se referirem à identidade de determinada pessoa ou grupo, não seriam passíveis de uma regulamentação imparcial.
Assim, nessa perspectiva, de acordo com Habermas (2002), “não se deve permitir ao Estado (...) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser
garantir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus
cidadãos” (p.252).
Dentro da tradição liberal, interessa apresentar, de maneira sucinta, a
perspectiva desenvolvida por John Rawls, que se afasta de uma concepção de
sociedade dirigida ao modelo de mercado, e procura discutir o problema de
como ordenar as sociedades democráticas contemporâneas de forma justa e
126
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
imparcial, levando a sério a existência de um pluralismo razoável de concepções
de mundo e modos de vida. Nos termos expressos por Rawls (2000),
como é possível existir uma sociedade estável e justa de cidadãos livres
e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e
morais razoáveis, embora incompatíveis? Como é possível que doutrinas
abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? (p.24)
Rawls pretende apresentar uma concepção política de justiça que se aplicaria à estrutura básica de uma sociedade democrática moderna, a qual seria
independente de qualquer doutrina compreensiva abrangente e cujo conteúdo estaria expresso em idéias fundamentais de uma cultura política pública
democrática. Essas idéias consistem em considerar a sociedade um sistema
eqüitativo de cooperação de social que se desenvolve de uma geração para
outra, a qual rege-se efetivamente por uma concepção política de justiça, ou
seja é uma sociedade bem-ordenada, que é composta por cidadãos considerados livres e iguais.
De acordo com Cattoni de Oliveira (2005), o conteúdo de tal concepção
política de justiça se caracteriza
primeiro, [pel]o fato de especificar certos direitos, liberdades e oportunidades fundamentais; segundo, [pel]a prioridade especial que atribui a
esses direitos, liberdades e oportunidades, especialmente frente a pretensões do bem geral e a valores perfeccionistas; e terceiro, por estabelecer
meios que assegurem a todos os cidadãos as condições adequadas para o
uso efetivo desses direitos liberdades e oportunidades. ( p. 103)
Rawls vale-se de um procedimento de representação, um experimento
mental, chamado de posição original, através do qual os cidadãos livres e
iguais de uma sociedade democrática bem ordenada estabelecem em comum
acordo, quais serão os termos eqüitativos da cooperação social, ou seja, com
quais princípios de justiça política as partes concordariam, a fim de regular
de forma neutra a estrutura básica da sociedade. Esse acordo deve ser estabelecido sob certas condições que impossibilitem a qualquer cidadão situar-se
em posição mais vantajosa na negociação em relação aos outros. Na posição
127
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
original, as partes ignoram a concepção de bem e a posição social e cultural
que as pessoas que elas representam endossam ou possuem, bem como sua
raça, etnia ou sexo. As partes encontram-se, assim, sob as restrições de um
“véu da ignorância”. (RAWLS, 2003, pp. 20-25)
No entanto, a fim de que as partes possam, na posição original, escolher
os princípios de justiça que regularão sua convivência eqüitativa, elas devem
estar sujeitas às limitações impostas à sua racionalidade (ou à sua capacidade
para ter determinada concepção de vida boa) pelo véu da ignorância. Assim,
elas “abstraem” de suas concepções de mundo, de seu auto-entendimento
ético-político para conseguir estabelecer quais os princípios que regularão de
forma imparcial a convivência de todos. Com esse entendimento, Rawls permanece liberal, pois faz a regulamentação justa e imparcial da convivência de
pessoas diferentes em sociedades democráticas depender de um procedimento que seja livre das questões acerca de concepções ético-políticas.
Nesse sentido, Cattoni de Oliveira (2000) adverte acerca da concepção
de “uso público da razão” (public reason), conforme desenvolvida por Rawls:
ela remete a política e a esfera pública ao Estado e aos seus fóruns oficiais, excluindo de um “uso público da razão” os debates empreendidos
pela sociedade civil, bem como constrange as questões públicas e políticas a uma agenda fechada e pré-definida de temas, que exclui qualquer
questão que esteja relacionada às diversas formas de vida ou modos de
vida presentes na sociedade. (p. 72)
4. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA
TRADIÇÃO REPUBLICANA
Já para a tradição republicana, em linhas gerais, o processo político é
entendido como constitutivo dos processos de socialização, consistindo no
meio pelo qual
os integrantes de comunidades solidárias surgidas de forma natural se
conscientizam de sua interdependência mútua e, como cidadãos, dão
forma e prosseguimento às relações de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma voluntária e consciente em uma associação de
jurisconsortes livres e iguais. (HABERMAS, 2002, p. 278)
128
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Na tradição republicana, aparece a solidariedade, ao lado do mercado e
do poder administrativo como fonte de integração social. Ela constitui uma
base social independente que permite ao poder comunicativo decorrente do
processo político de formação da opinião e da vontade, em meio à esfera pública de caráter político e à sociedade civil, ser integrado à práxis de entendimento mútuo dos cidadãos.
Os republicanos compreendem que os direitos fundamentais são liberdades positivas, que possibilitam a construção de uma identidade3 ético-política comum através da participação dos indivíduos na formação da vontade
política. Os direitos de comunicação e participação política expressam a capacidade de autodeterminação de uma coletividade política, que caracteriza
a soberania popular, e dá corpo à autonomia pública dos cidadãos. O Estado
existe para garantir esse processo, no qual cidadãos livres e iguais chegam a
acordos e compromissos mútuos acerca de quais normas correspondem ao
interesse comum.
O direito, para essa tradição, deve garantir e possibilitar aos cidadãos de
uma ordem jurídica objetiva terem “um convívio eqüitativo, autônomo e fundamentado sobre o respeito mútuo” (HABERMAS, 2002, p.281). A comunidade
deve definir, através do procedimento democrático de sua formação, qual conjunto de leis ou de direitos é mais adequado aos costumes dessa comunidade.
Embora o republicanismo compreenda o processo político de formação da opinião e da vontade, como uma práxis de autodeterminação dos
cidadãos orientada para o entendimento mútuo por comunicativa, ele se
desenvolve, como:
um processo de auto-esclarecimento coletivo acerca de um modo ou
projeto de vida que se pressupõe comum, com base num forte consenso
ético. Assim, embora autores republicanos comunitaristas como Michael
Walzer (1993;1997) e Charles Taylor (1997) se considerem defensores
do pluralismo social e cultural, é preciso lembrar que, para eles, as decisões políticas só se justificam de forma relativa e à luz de valores comunitários prevalecentes, e nunca de forma imparcial. A justiça é, assim,
3
De acordo com Taylor (2000, p. 241), “’identidade’ designa algo como uma compreensão de
quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos. A tese é de
que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência, frequentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros, de modo que uma pessoa ou grupo de
pessoas pode sofrer reais danos, uma real distorção, se as pessoas ou sociedades ao redor deles lhes
devolverem um quadro de si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível”.
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considerada tão somente como um bem coletivo dentre outros, comunitariamente interpretado. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2005, p.104).
que:
É esse tipo de raciocínio que leva, Walzer (2003), por exemplo, a afirmar
os princípios de justiça são pluralistas na forma; que os diversos bens sociais devem ser distribuídos por motivos, segundo normas e por agentes
diversos; e que toda diversidade provém das interpretações variadas dos
próprios bens sociais – o inevitável produto do particularismo histórico
e cultural. (p.5)
Assim, na tradição republicana, a política democrática, para ser feita da
maneira correta, depende das virtudes cívicas dos cidadãos orientados para o
bem comum. Ou seja, os republicanos supõem que há um ethos democrático,
compartilhado por todos, que orienta os cidadãos no processo político a deliberarem e decidirem de acordo com a vontade geral. Os republicanos supõem
que as normas que regem a convivência conjunta desses cidadãos derivam
da reflexão e buscam a realização da identidade de uma comunidade jurídica
concreta.
A vertente comunitarista republicana entende que
uma pessoa não poderia tornar-se consciente de sua co-participação em
uma forma de vida específica e, com isso, de seu vínculo social anterior,
senão em virtude de uma prática política, ou seja, por meio do intercâmbio público com outros que devem suas identidades às mesmas tradições
e a processos formativos semelhantes. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2005,
p.106)
Dessa forma, não seria possível a neutralidade ética do processo político,
uma vez que não haveria um critério neutro, ou imparcial com o qual se avaliasse as questões práticas. Qualquer critério refletiria, em qualquer caso, uma
determinada concepção de vida boa. Isso porque, como pessoas inseridas em
determinada tradição ou cultura, como pessoas situadas no tempo e no espaço, como pessoas que efetivamente endossam determinada concepção de
vida boa, não seríamos capazes de abstrair, de colocar entre parênteses esses
dados ao realizamos nosso auto-governo, ao decidirmos quais as normas que
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
regerão nossa convivência em comum.
5. PERSPECTIVA DESENVOLVIDA PELA TEORIA DO DISCURSO
A Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, desenvolvida por
Jürgen Habermas, é apresentada como uma teoria procedimentalista que
pretende superar os modelos de democracia construídos pelas tradições liberal e republicana, baseando-se nas condições de comunicação presentes no
processo político, as quais dão sustentação à pretensão de racionalidade dos
resultados obtidos nesse processo.
Nesse sentido, Habermas (2002) afirma que
em lugar de uma disputa sobre a melhor forma de assegurar a autonomia
das pessoas do direito – ora por meio das liberdades subjetivas em prol
da concorrência entre as pessoas em particular, ora mediante reivindicações de benefícios garantidas para clientes de burocracias de Estados de
bem-estar social -, o que se apresenta é uma concepção procedimental
do direito, segundo a qual o processo democrático pode assegurar a um
só tempo a autonomia privada e a pública: direitos subjetivos, cuja função é garantir (...) uma organização particular e autônoma da própria
vida, não podem ser formulados de maneira adequada sem que antes os
próprios atingidos possam articular e fundamentar, em discussões públicas, os aspectos relevantes para o tratamento igualitário ou desigual de
casos típicos. (p.245).
A Teoria do Discurso utiliza-se de elementos das teorias liberal e republicana. Da tradição republicana, permanece a centralidade do processo de
formação da opinião de da vontade política, como constitutivo da autonomia pública dos cidadãos, e da tradição liberal, permanece a separação entre
Estado e sociedade e a consideração dos direitos humanos universais como
garantia da autonomia privada dos indivíduos. No entanto, ela entende que
a racionalidade dos resultados obtidos no processo político de formação da
opinião e da vontade não decorre de um auto-entendimento ético de uma
comunidade concreta, como supõe a tradição republicana, nem do arranjo
de interesses de indivíduos voltados para si próprios, como supõe a tradição
liberal. Dessa forma, a teoria do discurso possui conotação normativa mais
forte que o modelo liberal, porém mais fraca que o modelo republicano.
131
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
A política deliberativa se desenvolve, para a Teoria do Discurso, a partir
dos procedimentos comunicativos institucionalizados em corporações parlamentares e do fluxo comunicativo formado pela opinião pública de cunho
político.
Essas comunicações destituídas de sujeito – que acontecem dentro e fora
do complexo parlamentar e de suas corporações – formam arenas nas
quais pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião
e da vontade acerca de matérias relevantes para toda a sociedade e necessitadas de regulamentação. O fluxo comunicacional que serpenteia entre
formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações
legislativas, garante a transformação do poder produzido comunicativamente e da influência adquirida através da publicidade, em poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação. (HABERMAS,
1997, p.22)
Os debates ocorridos em fóruns oficiais e na sociedade civil, que formam
uma esfera pública política mais ampla, são capazes de influenciar e, de certa
forma programar o exercício do poder político, uma vez que neles ocorre a
percepção, a identificação e o tratamento de problemas que dizem respeito a
toda a sociedade.
A idéia da soberania do povo, ou de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma é absorvida por essas formas de comunicação que são institucionalizadas por meio dos princípios do Estado Democrático de Direito.
Os procedimentos comunicativos institucionalizados asseguram, através dos
canais de eleições gerais e de outras formas de participação específicas, que os
resultados obtidos no processo político de formação da opinião e da vontade
tenham a seu favor uma pretensão de racionalidade.
Isso ocorre porque, nesse processo, o Direito é responsável pelo estabelecimento dos procedimentos que possibilitam a formação de consensos ou ao
menos de compromissos sob condições equânimes, na medida em que suas
normas tanto podem ser cumpridas por medo da sanção quanto por respeito
à lei produzida no processo democrático.
É bem verdade que o direito positivo só exige comportamentos legais;
no entanto, ele precisa ser legítimo: embora dê margem aos motivos da
obediência jurídica, deve ser constituído de maneira que também possa
ser cumprido a qualquer momento por seus destinatários, pelo simples
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respeito à lei. Uma ordem jurídica é legítima quando assegura por igual a
autonomia de todos os cidadãos. E os cidadãos só são autônomos quando os destinatários do direito podem ao mesmo tempo entender-se a si
mesmos como autores do direito. E tais autores só são livres como participantes de processos legislativos regrados de tal maneira e cumpridos
sob tais formas de comunicação quando todos possam supor que regras
firmadas desse modo mereçam concordância geral e motivada pela razão. (HABERMAS, 2002, p. 250-51)
A pretensão de racionalidade dos resultados obtidos no processo político democrático fundamenta-se na suposição de que tais resultados fornecem
uma regulamentação imparcial, justa e honesta das questões práticas. Assim,
a imparcialidade dos resultados decorre da exigência de que estes sejam produzidos sob condições que garantam a coexistência em igualdade de direitos
para todos, mantendo-se a integridade das diversas formas de vida; portanto,
devem ser elaborados sob o ponto de vista moral do que é igualmente bom
para todos ou do que é justo, levando-se em consideração o interesse de todos.
Além disso, o procedimento democrático deve garantir que a regulamentação
imparcial da coexistência de todos seja resultado de um acordo mútuo motivado pela razão, ou seja, que ela resulte da força do melhor argumento, e não
da imposição de algum interesse mais forte.
Ao julgar essas questões de justiça, procuramos uma solução imparcial,
em relação à qual todos os participantes (e atingidos) não tivessem saída
senão manifestar sua concordância, depois de muito ponderar sobre ela,
no contexto de um diálogo isento de coerção e mantido sob condições
simétricas de reconhecimento recíproco. (HABERMAS, 2002, p. 315)
Em sociedades democráticas complexas e pluralistas, nas quais diversas
concepções acerca da vida boa coexistem, em que os cidadãos constatam em
sua vida cotidiana diferenças fundamentais entre si, como levar a diante a
exigência de um sistema jurídico igualitário?
De acordo com Habermas, nessas sociedades, não se poderia regrar uma
situação em que haja controvérsias éticas, como no caso da eutanásia ou do
aborto, através uma visão eticamente marcada por uma auto-compreensão
particular, ainda que se trate da auto-compreensão da cultura majoritária.
Mas deve-se procurar uma regulamentação que seja igualmente boa para
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todos, de um ponto de vista moral. A solução moralmente justa, pode, no
entanto, a partir da perspectiva de determinada auto-compreensão ética, ser
considerada condenável. “A ‘nós’ continua se permitindo recriminar eticamente a práxis de outras pessoas, mesmo que a ela se tenha garantido o aval
jurídico” (HABERMAS, 2002, p.322).
Entretanto, exige-se dos cidadãos de sociedades democráticas que sejam tolerantes, a fim de garantir o respeito recíproco entre as pessoas do direito e a manutenção da integridade da identidade das diversas formas de vida coexistentes.
Os participantes de discursos políticos devem ser capazes de assumir,
também, a perspectiva de observadores se desejam chegar a uma solução
“correta” para a regulamentação de sua convivência conjunta. As decisões
acerca de como regulamentar o convívio comum são legitimadas pela regra
da maioria, institucionalizada juridicamente, de tal forma que as decisões tomadas pela maioria formem a base de uma prática obrigatória. A minoria
derrotada pode
aceitar por certo tempo a opinião da maioria como orientação obrigatória para sua ação, desde que o processo democrático lhe reserve a
possibilidade de dar continuidade à discussão interrompida, ou então
retomá-la, bem como a possibilidade de dar continuidade de mudar a situação da maioria em virtude de argumentos (supostamente) melhores.
(Habermas, 2002, p.327)
Ademais, faz-se necessário distinguir, com Habermas, entre diferentes
planos de integração ética. No plano intra-estatal, os conflitos de valor decorrem da existência de diversas formas de vida e subculturas no interior de um
Estado, que embora integradas eticamente em um plano subpolítico, são dominadas por uma cultura majoritária que impede um tratamento igualitário
aos membros dessas coletividades. Noutro plano, vinculando todos os cidadãos do Estado, independentemente de sua auto-compreensão ética, situa-se
o que Habermas chama de “patriotismo constitucional”, que
baseia-se na interpretação das reconhecidas proposições fundamentais
da constituição, que são universalistas, segundo seu teor, e provém do
contexto da respectiva história e tradição nacional. Pois dos cidadãos só
se pode esperar uma lealdade constitucional não coagida juridicamente
e assentada em motivos e estados de consciência moral, se esses mesmos cidadãos forem capazes de conceber, a partir dos próprios contextos
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
históricos, o Estado democrático de direito como uma conquista sua. Tal
patriotismo constitucional só está livre de laivos ideológicos quando os
dois planos da integração ética – a omniestatal e a intra-estatal – puderem ser mantidas separadas. Normalmente é preciso lutar em favor desse
desacoplamento e opor-se com isso à cultura majoritária. Só então surge
um fundamento motivacional propício às exigências de tolerância resultantes das diferenças sustentadas por via jurídica entre as comunidades
eticamente integradas no interior de uma mesma nação. (HABERMAS,
2002,p.329)
O patriotismo constitucional visa à construção de uma identidade política coletiva, que assegura a dignidade de uma pluralidade de formas de
vida, assentando-se sob os princípios do Estado Democrático de Direito,
que garantem a autonomia pública e privada dos cidadãos. Ele busca formar
uma cultura política pluralista através de um processo crítico reflexivo que
se apropria do passado, assumindo a responsabilidade histórica em relação a
ele e assume o compromisso com a construção de um futuro renovado que se
fundamenta no exercício ativo da cidadania, consubstanciada na titularidade
de direitos de participação política garantidos constitucionalmente.
A defesa habermasiana do patriotismo constitucional diz respeito à própria construção, ao longo do tempo, de uma identidade coletiva advinda
de um processo democrático autônomo e deliberativamente constituído
internamente por princípios universalistas, cujas pretensões de validade
vão além, pois, de contextos culturais específicos. Em outras palavras,
trata-se de uma adesão racionalmente justificável, e não somente emotiva, por parte dos cidadãos, às instituições político-constitucionais - uma
lealdade política ativa e consciente à Constituição democrática
(...)
O patriotismo constitucional, que para Habermas envolve justamente a
construção de uma cultura política pluralista com base na Constituição
democrática de uma república de cidadãos livres e iguais, é expressão
de uma forma de integração social, que se dá, pois, através da construção dessa identidade política pluralista e aberta, que pode ser sustentada por formas de vida e identidades ético-culturais diversas e mesmo
divergentes, que convivem entre si, desde que assumam uma postura
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
não-fundamentalista de respeito recíproco, umas com as outras. O que,
do ponto de vista particular de cada uma dessas formas de vida, significa
que se pode ter os mais diversos motivos para se aderir ao universalismo
subjacente ao projeto constituinte do Estado Democrático de Direito,
em cada situação histórica concreta. (CATTONI DE OLIVEIRA In
BARRETO, 2006, p.625)
Dessa forma, embora a teoria do discurso compreenda que a legitimação
da regulamentação da convivência em comum dos cidadãos de um estado democrático de direito deva se dar sob a base de princípios universalistas estabelecidos por acordo mútuo no interesse simétrico de todos, ou seja, que essa
regulamentação só é legitima se assentada sob uma fundamentação moral, ela
reconhece uma dimensão ética, constituída de forma aberta e plural, no Estado
democrático de direito, cujo centro é formado pelo patriotismo constitucional.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na modernidade as idéias que podem fornecer uma justificação pós-convencional ao direito moderno são os direitos humanos e a soberania popular, nas quais se reflete a autonomia dos sujeitos de direito, diferenciada,
por sua vez, em auto-determinação moral e em auto-realização ética.
A tradição liberal coloca ênfase nos direitos humanos e sustenta que
a ordem jurídica deve assegurar iguais direitos a todos, possibilitando-lhes
perseguir cada um sua própria concepção de bem, sendo o processo político
compreendido como o espaço onde agente privados agem pela busca ou manutenção de posições de poder. O Estado deve restringir-se a assegurar que o
livre arbítrio dos indivíduos seja exercido sob o domínio impessoal das leis e,
nesse sentido, não deve adotar nenhuma concepção de bem, isto é, não deve
perseguir quaisquer fins coletivos, mas deve manter-se neutro face às diversas
visões de mundo. Assim, como a ordem jurídica deve ser eticamente neutra,
a pauta de questões públicas exclui qualquer questão relacionada à vida boa,
pois como as visões de mundo são particulares, essas questões não seriam
passíveis de uma regulamentação imparcial.
A tradição republicana coloca a ênfase na soberania popular, que
através dos direitos de participação política é entendida como a práxis de
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auto-determinação dos cidadãos, voltada ao entendimento mútuo e à cooperação social. O processo político deve possibilitar a formação de um auto-entendimento coletivo acerca de uma forma de vida que se pressupõe que seja
compartilhada por todos. Os republicanos supõem a existência de um ethos
democrático que orienta os cidadãos a, no processo democrático, deliberarem
e decidirem de acordo com uma vontade geral já existente.
A Teoria do Discurso pretende superar as teorias liberal e republicana,
utilizando elementos de ambas (respectivamente, a consideração por direitos humanos universais e a centralidade do processo de formação da vontade
política) e combinando-os de tal maneira que a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos se pressuponham mutuamente, isto é, que a
institucionalização jurídica do uso público das liberdades comunicativas seja
cumprida através dos direitos humanos.
A Teoria do Discurso desenvolve um modelo procedimental de democracia no qual a auto-organização da comunidade jurídica esteja apoiada não
no ethos de uma comunidade concreta nem no arranjo de interesses entre indivíduos voltados para si próprios, mas sim em procedimentos comunicativos
institucionalizados que permitam a participação de todos os envolvidos em
igualdade de direitos no processo de formação da vontade política.
Do fluxo comunicativo proveniente da opinião pública e das comunicações institucionalizadas em corpos parlamentares forma-se o poder comunicativo de uma esfera pública ampla que é capaz de articular e fundamentar em
discussões públicas os aspectos relevantes de problemas que dizem respeito
a toda a sociedade. Os procedimentos jurídicos asseguram que nos debates
políticos seja possível a formação de consensos ou, ao menos, compromissos
sob condições equânimes, de forma que os resultados obtidos no processo
político tenham a seu favor uma pretensão de que merecem a concordância
geral racionalmente motivada.
REFERÊNCIAS
1. CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000
2. CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo Andrade. Direito e legitimidade: uma reconstrução
da tensão entre constitucionalismo e democracia nas tradições republicana e liberal do
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
pensamento político moderno à luz da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas. Revista
da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v.8, n. 16, pp.87-121, 2º. sem. 2005.
3. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Patriotismo Constitucional In:
BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo
e Rio de Janeiro: Unisinos e Renovar, 2006, p.623-625.
4. HABERMAS, Jürgen. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Estudos
Avançados, v. 3, n. 7, pp. 4-19, set./ dez. 1989.
5. HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 1997. 2v.
6. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo:
Loyola, 2002.
7. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70,
2002.
8. RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2000.
9. RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
10.TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.
11.WALZER, Michael. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
Recebido em: 18/09/2014
Aprovado em: 28/10/2014
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A NOVA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL:
A BOA FÉ OBJETIVA E OUTROS
PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
CÁSSIO AUGUSTO BARROS BRANT1
RESUMO
Este artigo trata da importância dos princípios que regem as relações
contratuais em decorrência do dirigismo contratual. A ruptura do modelo de
Estado Liberal focado na autonomia da vontade em que o Estado não intervinha nas relações privadas mostra-se superado em decorrência da quebra
de paradigmas. Houve necessidade de promoção da pessoa humana e valores
de cunho social são aplicados na nova sistemática jurídica. Desta forma, a
interferência do poder estatal seja no âmbito legislativo, judiciário ou administrativo demonstra ser fundamental, sobretudo, nas questões patrimoniais
oriundas de obrigações decorrentes de contratos. A nova diretriz em que consagra princípios como a boa-fé objetiva, a função social dos contratos e a possibilidade de revisão contratual são vistas como de fundamental importância
na efetivação da busca da paridade ou equilíbrio das partes nas relações negociais. Percebe-se, portanto, o aparecimento destes princípios no ordenamento
jurídico por meio de criações doutrinárias e jurisprudenciais, mas ganha o
reforço explícito com o advento do Código Civil de 2002.
Palavras-chaves: Dignidade da Pessoa Humana, Negócio Jurídico,
Boa-fé, Contratos, Dirigismo Contratual.
ABSTRACT
This article deals with the importance of the principles that govern the contractual relationship due to contractual dirigisme. The breakdown of the liberal
state model focused on the autonomy of the will in which the state did not intervene
in private affairs is shown to overcome due to the shift in paradigm. There was need
1
Doutorando e Mestre em Direito Privado Pela PUC-MG, especialista em Direito da Empresa e
da Economia pela Fundação Getúlio Vargas. Professor de Direito Civil do Centro Universitário UNA
e do Instituto de Ensino Superior João Alfredo de Andrade.
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for promotion of the human person and values of a social nature are applied to the
new legal systematics. Thus, the interference of state power is the legislative, judicial
or administrative framework proves to be essential, especially coming from the obligations arising from contracts property issues. The new guideline that establishes
principles as objective good faith, the social function of contracts and the possibility
of contractual review are seen as crucial in the effective pursuit of parity or balance
of parties in business relationships. It is clear, therefore, the appearance of these
principles in the legal system through doctrinal and jurisprudential creations, but
gains the explicit reinforcement with the advent of the Civil Code of 2002.
KEY WORDS: Dignity of the Human Person, Business Law, Good faith,
Contracts, Contract Dirigisme.
INTRODUÇÃO
O negócio jurídico é a extrema manifestação da vontade de uma ou
mais pessoas que desejam criar, modificar ou extinguir relações jurídicas de
cunho patrimonial. De um modo geral ocorre por meio do contrato. Este é
o instrumento que atravessa séculos desde as mais antigas civilizações. É por
meio deste que há circulação de riquezas.
A legislação brasileira não define o conceito de contrato, sendo este praticamente sendo uma definição doutrinária e, obviamente, sofre conotações
e sentidos diferentes em dada época. Com uma principiologia nova a qual
são preeminentes o princípio da boa fé objetiva, o princípio da função social
e o princípio da revisão contratual percebe que o intuito é criar condições de
equilíbrio contratual. Verifica-se que o traço marcado pela máxima contratual
decorrente do Estado Liberal em que a clausula pacta sunt servanda era regra
absoluta, ou seja, as partes eram obrigadas a cumprir o que estava no contrato,
torna-se hoje superada. O homem passa a ser o elemento mais importante
do ordenamento e associado ao princípio da dignidade da pessoa humana
verifica-se que a relação contratual não implica somente o que foi estabelecido
entre as partes, mas a sociedade como um todo. A carga patrimonial contida
no contrato não é mais o único enfoque obrigacional, pois qualquer negócio
jurídico deve estar associado à ideia de promoção da pessoa humana.
A intervenção estatal nos negócios jurídicos foi de suma importância
para evitar abusos nas relações contratuais, principalmente, após a primeira
guerra mundial. Neste período os ideais sociais começavam a surgir como é
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
verificado na constituição mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de
1919 na Alemanha que foram depois consideradas como normas de cunho
social inspiradoras para outros países.
A partir da intervenção estatal e o surgimento de novos princípios há
uma nova diretriz contratual, baseada na promoção da dignidade humana
e que conduz as relações jurídicas em limitações decorrentes do dirigismo
contratual efetivado pelo Estado. Neste sentido é necessário fazer uma análise detalhada sobre os principais atributos deste novo modelo contratual e a
busca da aplicação coerente dos princípios que direciona as relações jurídicas
decorrentes deste acordo de vontades.
1. O QUE É PRINCÍPIO?
O cenário atual em que as teorias de Dworkin e Alexy são revistas nas escolas de Direito em todo país é importante invocar as origens dos princípios,
visto a necessidade de compreender o que realmente são e seu funcionamento
no ordenamento jurídico.
Os princípios em termos genéricos são estruturas normativas que fornecem sustentação para determinado ramo do direito ou mesmo do ordenamento jurídico. Estes podem ser positivados no ordenamento jurídico ou
não. A partir dos princípios diversas normas são criadas, em decorrência de
um processo lógico racional por meio do poder legislativo. Infelizmente, se
vê hoje uma sistemática diversa, uma vez que o nosso poder judiciário vem
editando normas, sem nenhuma atribuição legislativa para tal com base no
sistema americano, entretanto, verifica-se que tal situação decorre de uma
inobservância de origem de sistemas. O Brasil adota o sistema Civil Law baseado na escrita e fundamentado nas bases do direito romano, germânico e
canônico, enquanto o americano deriva do Common Law que permite ao judiciário esta atribuição também. De fato há uma incongruência jurídica atribuída pelo Poder Judiciário brasileiro neste sentido.
Para alguns autores não há diferença entre regras e princípios como
Álvaro Ricardo Souza Cruz que entendem isso ser apenas uma formalidade
cujo efeito prático seria o mesmo entre as duas:
Essa dicotomia permanece nos dias atuais essencialmente pela força da
autoridade de autores como Dworkin, Habermas e Alexy, dentre tantos
outros. Com isso, a doutrina parte do pressuposto que existem regras e
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
princípios e que, portanto, é preciso buscar uma solução entre tais espécies. Assim, desde as teorias mais simplistas até a concepção mais sofisticada que procura pela distinção na cisão ontológica entre ser e ente, a
doutrina procura separar regras e princípios. Eis justamente aquilo que
pretendemos opor! E o fazemos lembrando nossa origem franciscana:
“não se multiplicam os entes se não for necessário!”, já dizia Guilherme
de Ockham. Logo, buscamos denunciar que, em nossa opinião, tal distinção se presta na atualidade tão-somente para justificar a técnica de
ponderação de valores (CRUZ, 2007, p. 322)
César Fiuza (2013) não tem o mesmo entendimento. Entende serem os
princípios mais genéricos, assim como, não há prescrição para estes. Além disso,
compreende que os princípios estão no campo abstrato enquanto as regras no
fático. Não bastante, quando há antinomias entre regras, somente, se aplica uma
regra possível, enquanto, há possibilidades nos princípios de atuarem mais de
um. Por fim, define a distinção de regra e princípios de forma precisa:
Os princípios são, portanto, normas com elevado grau de abstração,
enquanto as regras têm abstração reduzida, de maneira que, tendo em
vista os princípios serem extremamente indeterminados e vagos, precisam de intervenções para que possam ser interpretados e concretizados.
As regras por seu turno, podem ser aplicadas diretamente ao fato, pois
incontestavelmente mais precisas e objetivas (FIUZA, 2013, pág. 106)
Lúcio Chalmon (2008) entende que os princípios surgem da prática reinterada constantemente e o direito tem origem nos princípios:
De onde vem o Direito? Do próprio Direito, do desenrolar dessa práxis argumentativa capaz de seriamente assumir seu projeto moderno.
Os princípios, pois, nada mais são que sentidos normativos interpretáveis em consonância com essa prática social em movimento constante
(CHAMON JÚNIOR, 2008, p. 245).
Como se percebe a praxe da sociedade acarreta na formação de princípios que devem servir de fontes norteadoras nas relações jurídicas, inclusive,
nas que tangem obrigações contratuais, sendo indispensáveis para a formação
do ordenamento jurídico e a base da sistemática contratual moderna.
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2. DIRIGISMO CONTRATUAL
O liberalismo econômico marca uma total ruptura do Estado com o seu
intervencionismo na esfera privada. Os ideais dos contratos eram baseados
na autonomia da vontade em que as cláusulas eram baseadas no pacta sunt
servanda. Ocorre que com o crescimento do comércio e da indústria, principalmente com a Revolução Industrial no século XVIII começam a surgir
contratos de massa, ou seja, de adesão em que as partes não podiam se quer
questionar as cláusulas. Desta forma, pela busca de um acúmulo de riquezas
pela classe dominante começam a surgir uma população miserável e oprimida. Desta forma, os abusos cometidos necessitam ser combatidos e houve
necessidade de o Estado intervir para minimar os contrates causados pelo
Estado Liberal. Desta forma, há um dirigismo contratual por parte do Estado
que começa a moldar as formas de contratar para inibir os abusos entre os
hipossuficientes da relação contratual.
Há, portanto, uma ruptura de paradigmas de Estado e os ideais preconizados por Marx começam a ser difundidos e alguns países que percebem
a necessidade de adotar medidas para promover o bem estar social. Nasce,
nesta época, a teoria preceptiva em que os contratos não têm um fim em si
mesmo e, portanto, há refletidos na sociedade. Passam a exercer uma função
social. Desta forma, apresentam-se com caráter econômico e social. Assim
o primeiro entende-se como atribuição de circulação de riqueza enquanto o
segundo na promoção da sociedade, como forma reflexa. O contrato não está
restrito somente as partes, mas toda sociedade.
A autonomia da vontade preconizada pelo Estado Liberal é minimizada,
portanto, e há uma nova roupagem a qual denominam de autonomia privada,
sendo que a liberdade de contratar sofre algumas limitações. Há doutrinadores, como Paulo Lôbo, que entende que o modelo de dirigismo contratual
possui 3 modos de ser exercido: dirigismo por meio da função legislativa,
dirigismo judicial e dirigismo administrativo.
O dirigismo legislativo é decorrente do Estado que consegue através da
edição de normas restrições à liberdade do contrato, inclusive de construção
de modelos de contratos pré-estabelecidos, haja vista, a edição do Código de
Defesa do Consumidor que sofre limitações no que tange a forma de contratar.
O dirigismo judicial é a forma que o estado intervém buscando a justiça contratual, por meio do Estado-Juiz, inclusive verifica-se na teoria da imprevisão em que há a clausula rebus sic stantibus em cabe ao juiz no caso de
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onerosidade excessiva alterar o contrato para estabelecer o equilíbrio.
O dirigismo administrativo sucede no momento que o agente público
para minimizar abusos decorrentes dos contratos edita portarias, resoluções
que podem adotam medidas de tabelamento de preços ou mesmo exercer
uma função fiscalizadora de controle como sucede no Código de Defesa do
Consumidor.
Há também o dirigismo contratual privado. Este ocorre não pelo Estado,
mas pelo próprio capitalismo. As empresas nacionais ou internacionais são
capazes de organizar um sistema com normas próprias condizentes o ordenamento jurídico estatal a fim de promover o equilíbrio contratual.
A intervenção do estado na esfera do contrato é de grande importância
para restabelecer o equilíbrio e minimar os danos sofridos pela parte hipossuficiente no contrato. A partir do modelo de Estado Social percebe-se a promoção da dignidade da pessoa humana como eixo motivador do ordenamento jurídico, o que traz uma nova principiologia contratual em que a boa-fé
objetiva, a função social e a revisão contratual passam a ser norteadores das
relações jurídicas que versam sobre as obrigações decorrente dos contratos.
Fiuza (2013) aponta bem a importância do dirigismo contratual:
Toda essa revolução mexe com a principiologia do Direito Contratual,
os fundamentos da vinculatividade dos contratos não podem mais se
centrar exclusivamente na vontade, segundo o paradigma liberal individualista. Os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos
e sociais. Nasce a teoria preceptiva. Segundo essa teoria, as obrigações
oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes as assumiram,
mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por suas consequências econômicas e sociais. É como se a situação
se desvinculasse dos sujeitos, nos dizeres de Gino Gorla (FIUZA, 2013,
p. 108).
Neste período, surgem as teorias revisionais dos contratos, sendo estas
na verdade bem antigas oriundas do período romano como a cláusula de revisão rebus sic stantibus que confere o poder judiciário de modificar os contratos, no caso de onerosidade excessiva em razão de causas supervenientes,
admitindo inclusive a possibilidade de resolução do contrato, caso não esteja
este equilibrado entre as partes ou mantendo-o com a modificação ou anulação de uma de suas cláusulas que for incompatível com a boa-fé.
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3. BOA FÉ OBJETIVA E BOA FÉ SUBJETIVA
A boa fé subjetiva está ligada ao estado psicológico da pessoa, ou seja,
se está agindo com boa intenção perante a outra pessoa de forma a não prejudicá-la. É vista num sentido interior da pessoa e, portanto, imperceptível
para os outros. É a crença de algo, mas por convicções internas. Há normas
no ordenamento jurídico que permitem o uso da boa-fé subjetiva como a
usucapião ou anulação do negócio jurídico por erro, todavia, nos contratos tal
situação não é possível.
A boa fé objetiva é de ação externa. A pessoa deve demonstrar estar agindo com lealdade, honestidade e transparência com a outra parte contratante.
Deve despertar a confiança no outro. É uma situação fática de demonstração
de confiança mútua entre as partes que tem por fim um dever de agir das partes envolvidas. É conhecida como boa-fé conduta. Marcelo Dickstein (2010)
afirma a importância disso:
Relevante para este estudo é a boa-fé que se traduz na imposição de um
dever de agir de acordo com os padrões socialmente recomendados de
correção, lisura, lealdade, probidade, sempre com o objetivo de se evitar
a frustração da confiança alheia. Também é chamada de cláusula de boa-fé lealdade e boa-fé confiança, a boa-fé objetiva impõe aos contratantes
a obrigatoriedade de observar determinadas condutas, aferidas diante do
caso concreto no interesse da parte contrária, visando ao adimplemento
satisfatório da obrigação (Dickstein, 2010, p.19).
A boa fé é um conceito é um tanto amplo e há certa dificuldade em afirmar o que seria lealdade, honestidade e transparência. Acaba forçando uma
interpretação jurídica no caso concreto pelo juiz. Cláudia Mara de Almeida
Rabelo Viegas (2012) aponta esta questão na sua obra:
De fato, pode ser uma dificuldade determinar com absoluta exatidão o
que vem a ser um comportamento leal, honesto, correto, cabendo ao interprete estabelecer o seu sentido e conteúdo, mas o que vale é verificar
o padrão objetivo da conduta, em determinado momento histórico e
meio social. E é exatamente por isso, que a boa-fé objetiva é considerada
uma cláusula padrão de conduta ou determina o que seja boa-fé. O seu
conteúdo haverá de ser completado e definido casuisticamente pelo juiz,
exigindo-lhe um trabalho a ser cumprido por meio da hermenêutica, da
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interpretação (VIEGAS, 2012, p. 68).
A lei não tratou de definir o que seria boa-fé, ficando a cargo da doutrina
a criação de seu conceito que há dividiu em duas: subjetiva e objetiva. Ambas
estão contidas no ordenamento jurídico, embora, a denominada objetiva é
aplicada nos contratos previsto no Código Civil como nas relações de consumo contidas no Código de Defesa do Consumidor.
Na relação contratual a boa-fé deve ser mantida na fase pré-contratual,
na execução do contrato e na fase pós-contratual.
A boa-fé tem papel importante na efetivação do princípio da dignidade
da pessoa humana porque propicia as partes, dando-lhes limites e impondo
condutas a serem tomadas na busca do equilíbrio contratual.
3.1. HISTÓRICO DA BOA-FÉ OBJETIVA
A origem da boa-fé remonta no direito romano em que havia a figura de
Fides que era uma deusa cuja mão direita representava o símbolo da entrega
da lealdade. Desta forma, a Fides provocava confiança entre os cidadãos romanos. Ocorre que com o aperfeiçoamento do comércio principalmente de
romanos e estrangeiros tal situação foi sendo valorizada progressivamente no
campo dos contratos. Desta forma, os contratos eram considerados de boa-fé
(bona fides) quando empenhados pela palavra de tal forma que exterioriza a
forma de confiança. Havia ações judiciais e os julgadores levavam em conta a
vontade expressa das partes e suas expectativas tácitas e obrigava o demandado a fazer ou não fazer determinada conduta no princípio da boa-fé.
Posteriormente, verifica o princípio da boa-fé no Corpus Iuris Civilis,
entretanto, como estado psicológico para a usucapião, portanto, como boa-fé
subjetiva. Assim também é percebido no Direito Canônico. Claramente, verifica-se que são marcadas pelo contexto da boa-fé subjetiva.
O Código Napoleônico de 1804 faz referência à boa-fé objetiva, entretanto, por apresentar necessidade para sua concretização de uma poder discricionário do julgador. Isso acabou tornando-o ineficaz, visto que na época
utilizava-se o método da escola da exegese que não permitia interpretações.
Mas o Código Napoleônico serviu de influência para outros ordenamentos
como o italiano por exemplo. Outra situação também que tornava impraticável era que os contratos eram vistos dentro da clausula de pacta sunt servada,
ou seja, era só aquilo que estivesse previsto no contrato e não competia fazer
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interpretações diversas. O modelo era altamente de cunho liberal focado no
patrimonialismo, portanto, inviável a aplicação da boa-fé objetiva.
A jurisprudência comercial da Alemanha começou a aplicar a boa-fé objetiva como regra de conduta, embora o BGB, o Código Civil alemão, não fazia
nenhuma referência em relação à boa-fé objetiva. Tal situação só foi possível
após a Primeira Guerra Mundial que acarretou em uma instabilidade social
e houve o surgimento da Constituição de Weimar em 1919. A jurisprudência
começou a interpretar a boa fé objetiva em determinado aspecto do BGB. O
§ 242 dizia que “o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como exija a
boa-fé, consideração pelos costumes e tráfego”
Alguns autores entendem que isso foi de extrema importância porque o
poder judiciário da Alemanha, através destas decisões, pôde influenciar a difusão do princípio da boa-fé em outros sistemas em que havia o direito codificado. Isso sucedeu no século XX nos países como Itália, Portugal e Espanha
que aderiam ao princípio da boa-fé objetiva no seu processo de recodificação
da legislação civil.
3.2. Histórico da boa-fé objetiva no Brasil
No Brasil, a primeira menção sobre boa-fé objetiva se deu no Código
Comercial de 1850, no art. 131, I:
Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:
1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e
ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer
à rigorosa e restrita significação das palavras; (Brasil, Lei 556/1850)
O Código Civil de 1916 não tratou do assunto. Na época, tal fato se explica pelo país passar por uma economia agrária, basicamente de lavoura. Este
modelo econômico permaneceu até a Primeira Guerra Mundial.
Com o aumento do comércio internacional e a abundância da mão de
obra no país houve um processo de industrialização e o inchaço das cidades,
o que acarretou em uma série de desigualdades e houve necessidade de aos
poucos uma intervenção estatal. Neste ponto, percebe-se que o marco inicial foi por meio da criação das leis trabalhistas por Getúlio Vargas. A partir
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daí, o Brasil foi paulatinamente buscando espaço para equilibrar as relações
contratuais.
A boa-fé até então era garantida pela jurisprudência em julgados principalmente do Estado do Rio Grande do Sul. Merece destaque o acórdão da empresa alimentícia Cica que havia confiado a compra da safra de tomates dos
agricultores, o que fazia anualmente, inclusive distribuía sementes. Ocorre
que negou a comprar a produção em determinado ano e houve grande prejuízo dos agricultores. O poder judiciário aplicou a boa-fé objetiva (acórdão nº
591017058 de 06 junho de 1991 da 5ª Câmara Civel do TJRS). Outra decisão
importante foi do STJ que decidiu responsabilizar os estabelecimentos comerciais pelo furto de automóveis em seus estacionamentos, fundamentando na
inobservância do dever de proteção que é baseado na boa-fé objetiva.
O marco importante em que houve positivação do princípio da boa-fé
objetiva está na Lei 8078 de 11 de setembro de 1990 que instituiu o Código
de Defesa do Consumidor. Na verdade, trata-se de um microssistema jurídico
visto tratar em um mesmo texto jurídico normas de cunho civil, administrativo, processual, penal, etc. O art. 4º, III e o art. 51, IV são exemplos claros da
boa-fé objetiva.
Com o advento do Código Civil de 2002, surge o princípio da boa-fé objetiva os quais são mencionados nos art. 113, 187 e 422 que tratam do assunto.
Na verdade, tal situação só veio a positivar o que a jurisprudência já considerava. Além disso, como se trata de um princípio não havia necessariamente
de ter tal disposição expressa no direito brasileiro, visto que segundo Ronald
Dworkin o direito é formado de princípios sendo estes expressos ou não. O
que havia de dificuldade era a busca de um texto legal para apenas atender
aqueles que se fixavam em uma aplicação literal de normas.
A boa-fé se demonstra como princípio de grande importância nas relações contratuais, visto que os deveres de lealdade, transparência e honestidade
são situações que ambas as partes devem demonstrar para a outra a fim da
concretização do negócio jurídico.
3.3. FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA
3.3.1. FUNÇÃO INTERPRETATIVA
A função interpretativa consiste no fato de não deixar incertezas no
contrato no que tange à honestidade, lealdade e transparência. Desta forma,
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havendo dúvidas sobre determinado contrato, o intérprete deve o conduzir
de tal forma que não acarrete sua ilicitude ou a imoralidade, provocando um
desequilíbrio na relação contratual. Desta forma, devem interpretar no sentido que fique mais próximo a boa-fé objetiva.
A hermenêutica interpretativa deverá buscar um significado justo consoante à boa-fé de modo a preservar o máximo a continuidade do contrato.
3.3.2. FUNÇÃO INTERATIVA
Um contrato não é formado somente de uma estrutura. Há sua estrutura primária e outra secundária que impões deveres assessórios ou anexos ao
princípio da boa-fé objetiva. Estas obrigações assessórias não estão necessariamente explícitas no contrato.
Entende-se que a boa-fé acaba possuindo deveres negativos e positivos.
Sendo os negativos, o próprio dever de não lesar ou prejudicar a outra parte
inerente da boa-fé objetiva e os positivos são as condutas ou deveres que
devem ser cumpridos, independente da vontade das partes. Tem se o exemplo,
do fabricante prestar informações claras sobre o produto na sua embalagem.
Judith Martins Costa (1998) descreve alguns deveres anexos decorrente
do princípio da boa-fé objetiva:
a. Dever de cuidado, previdência e segurança;
b. Dever de aviso e esclarecimento;
c. Dever de informação
d. Dever de prestar contas
e. Dever de colaboração e cooperação
f. Dever de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio do
contraparte;
g. Deveres de omissão e de segredo, como dever de guardar sigilo sobre
atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato.
Sabe-se que o descumprimento destes deveres anexos acarreta uma inexecução contratual, em razão de deixar de fazer algo. Vale dizer que pelo disposto no art. 422 do Código Civil a boa-fé objetiva e os deveres anexos devem
ser respeitados tanto na execução do contrato quanto na sua conclusão, inclusive na fase preliminar contratual.
Os deveres anexos não se encontram em posição inferior ao princípio da
boa-fé. Neste sentido, Marcelo Dickstein aponta precisamente:
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Os deveres anexos decorrentes da boa-fé como norma de conduta não
ocupam posição de hierarquia inferior na relação contratual, de modo
que sua violação poderá implicar descumprimento da própria prestação
principal, ensejando a obrigação de indenizar eventuais danos causados
ou até a dissolução do próprio negócio (DICKSTEIN, 2010, p. 77).
3.3.3. FUNÇÃO LIMITADORA
O contrato deve se prevalecer na sua harmonia e equilíbrio, portanto, é
necessária a imposição de limites para regular e estabelecer a boa-fé, servindo
como um limitador da autonomia da vontade baseada no pacta sunt servanda,
coibindo qualquer forma de abusos. Desta forma, alguns institutos como o
venire contra factum proprium, a surrectio, a suppressio e o tu quoque são instrumentos de limitação ao desequilíbrio da função da boa-fé.
3.4. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
É de origem romana e inclusive estava no Corpus Iuris Civilis. É a teoria
dos atos próprios em que há proibição de manter um comportamento contrário durante a execução do contrato. Ainda que este, a princípio, era ilegítimo,
no momento que aderem as partes, ambas de boa-fé, não se pode aquele que
abdicou tacitamente do direito por um comportamento continuo próprio (ato
próprio), alegar prejuízo ou modificar sua postura retornando ao que foi preliminarmente combinado, mas que na prática não se efetivou.
Agindo desta forma, estará frustrando terceiros, ou seja, consequentemente frustra a boa-fé e expectativa do outro. Isso fere nitidamente a confiança existente na relação contratual.
Não há previsão legal no Brasil, mas a jurisprudência vem a utilizando
nos tribunais. Na verdade, é utilizada em um caráter residual, quando há falta
de normas especiais, capazes de resolver o caso concreto. Inclusive, é utilizada
por outros institutos do direito, como o Direito Público.
3.5. SURRECTIO E SUPPRESSIO
Alguns apontam que a surrectio e a suppressio seriam espécies do venire
contra factum propium Surgiu na Alemanha no período de crise após a primeira guerra mundial. Havia nesta época a inflação e os tribunais acabavam
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admitindo a correção monetária mesmo de contratos já cumpridos. Desta
forma, chegava-se a valores exorbitantes. Inclusive os credores fingiam abandonar seus créditos para depois cobrarem, recebendo valores altíssimos devido a inflação. Os tribunais para coibir construíram na jurisprudência de que o
credor não teria direito de cobrar o pagamento da correção monetária por ter
demorado demais para comunicar ao devedor. Desta forma, a demora desleal
no exercício de um direito violava princípio da boa-fé. Entendia que o silêncio
dava entendimento que o direito não seria mais exercido.
A suppressio pode ser definida como a impossibilidade do exercício de
determinado direito, em razão do titular deixar de exercer durante o lapso
do tempo, e, com isso, cria-se na outra parte uma expectativa de não mais se
exigir. Tal fato entende ser boa-fé. Uma pessoa pactua um valor de R$ 100,00
como pagamento de aluguel, mas durante 3 (três) anos aceita receber R$ 70,00
pelos alugueis, não pode querer cobrar a diferença posteriormente.
A surrectio veda o comportamento contraditório decorrente de um direito criado pela conduta constante de uma das partes conforme o estipulado
e que com o decorrer do tempo consolida-se como sendo o verdadeiro pacto
celebrado. Não pode depois o prejudicado alegar que deveria voltar ao estado anterior, inicialmente estipulado, mas que nunca foi cumprido. Isso fere
a transparência e lealdade. É nítida violação da boa-fé. Uma operadora de
cartões de crédito sempre aceitava o recebimento do pagamento atrasado sem
cobrar juros, certo dia resolve não aceitar mais o atraso e cobra multa.
No Brasil, no art. 330 há previsão da aplicação do instituto: “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor, relativamente previsto no contrato”.
3.5.1. REQUISITOS
Os requisitos são praticamente os mesmos do venire contra factum proprium:
a. Conduta inicial reiterada. Na suppressio será uma conduta omissiva
e no surrectio será uma conduta comissiva.
b. Confiança justificada pelo decurso do tempo
c. Comportamento contraditório. É a conduta posterior que contraria
a posição inicialmente adotada.
d. Prejuízo causado. O fato deverá causar perdas e danos a uma das
partes pelo comportamento contraditório que vinha sendo efetivado
pelo decurso do tempo.
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e. Identidade dos sujeitos. Podem ser pessoas naturais ou jurídicas, entretanto, devem ser as mesmas que configuram na relação jurídica
originária.
3.6. TU QUOQUE
A expressão significa “seria justo você”, ou “até tu Brutus”. É uma expressão de espanto diante de um comportamento jamais esperado. Proíbe que
uma parte invoque em seu favor regra ou cláusula que a mesma tenha violado
anteriormente. Veda que uma parte tire proveito da violação de uma norma
que ela mesma violou. Não poderá invocar inadimplemento da outra parte ou
colocar fim ao vínculo contratual para obter indenização.
Este instituto difere do venire contra factum proprium, o surrectio e o
suppreccio porque já há no agente a malícia e deslealdade. Um exemplo seria
o credor que sucessivamente deixa de dar recibo do pagamento de aluguel ao
locatário e numa eventual circunstância cobra deste os aluguéis não pagos
porque não foram apresentados os recibos.
3.7. DIFERENÇAS ENTRE VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM,
SURRECTIO, SUPRECCCIO E TU QUOQUE
A surrectio e a suppreccio são espécies de venire contra factum proprium e
diferem-se entre si no fato de existir uma conduta comissa ou omissiva, assim
como, um prazo. No que tange ao tu quoque nesta modalidade desde o inicio já
existe a malícia e má-fé da parte supostamente prejudicada para obter vantagem.
4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
A função social dos contratos decorre da quebra de paradigmas do
Estado. Desta forma, não pode ser visto apenas no que se refere às partes contratantes tem reflexos na sociedade em geral. Os valores econômicos e sociais
devem estar em equilíbrio. Para o professor César Fiuza, o elemento social
latu sensu engloba o social propriamente dito, o caráter econômico e por fim
o elemento pedagógico. O cunho social é de que o contrato não está ligado
somente às partes contratantes, mas a toda a sociedade e todo contrato produz
reflexos diretamente ou indiretamente na coletividade. O caráter econômico
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está no sentido de que o contrato deve gerar e circular riquezas, isso é de
grande importância porque traz benefícios a toda sociedade. Por fim, diz que
tem o caráter pedagógico porque funciona como um mini-ordenamento jurídico e, desta forma, as partes na celebração do contrato acabam aprendendo
determinadas noções de Direito.
A função social nos contratos é apresentada no art. 421 do Código Civil.
Entretanto, apesar de não expresso nas legislações anteriores não implica sua
utilização nos diversos tribunais brasileiros. Já era consagrado pela jurisprudência. Ao ter dispositivo próprio no código dá o status e maior visibilidade.
Neste sentido Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008) menciona:
O princípio da função social é a mais importante inovação do direito
contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o novo Código Civil. Os
contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser
interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que
inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure
contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função
social (GAMA, 2008, p. 86).
Desta forma, percebe-se na nova principiologia contratual a importância
do princípio da função social do contrato porque busca o equilíbrio contratual e seus efeitos estão em observância à dignidade da pessoa humana, solidariedade e livre iniciativa.
5. PRINCÍPIO DA REVISÃO OU EQUILÍBRIO CONTRATUAL
O princípio da revisão contratual é mais conhecido como cláusula rebus
sic stantibus. Teve sua origem no Direito Canônico da idade média, por Santo
Agostinho, como forma de equilíbrio contratual. Desta forma, os contratos
de trato sucessivo e dependência futura deveriam ser interpretados de acordo
com o que estava ocorrendo no momento de sua execução. É também conhecido como teoria da imprevisão, visto não saber o que poderia ocorrer no
momento futuro da execução do contrato.
É um princípio ou regra que não há necessidade de estar expresso no
contrato para que haja sua aplicação. Neste sentido, Cláudia Mara de Almeida
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Rabelo Viegas (2012) explica melhor:
Trata-se de uma regra que, não há, necessariamente, de estar prevista,
expressamente, no contrato, sendo aplicável, portanto, de pleno direito, quando da ocorrência de modificações no estado de fato, em relação
ao momento de formação do pacto. Que se dizer que se aplica tal regra
quando, nos contratos diferidos no tempo, aqueles em que os momentos
de celebração e de execução não coincidem, houver alteração superveniente das circunstâncias fáticas existentes, capazes de alterar, substancialmente, o cumprimento da obrigação (VIEGAS, 2012, p. 75).
A cláusula rebus sic stantibus protege a parte do contrato que na hipótese
de impossibilidade do cumprimento da obrigação assumida, em decorrência
de uma mudança brusca da situação inicial, em que o contrato se formou.
A revisão contratual obviamente só sucede por meio de ordem judicial
nestes casos. A parte prejudicada, portanto, poderá pedir a revisão, mas se a
outra parte se opor a esse pedido, caberá a extinção do contrato, por motivo
alheio às partes, sem culpa e consequente indenização. Isso sucede porque
ninguém pode sofrer intervenção revisional do contrato caso não queira. O
poder judiciário não pode criar obrigações não pactuadas. Desta forma, caso
uma das partes contratantes não concordar com a revisão judicial, deverá o
juiz declarar resolvido o contrato.
Sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro está no art. 478 do
Código Civil. O princípio é de utilidade principalmente no contexto mundial em que há variações e fatos supervenientes que não podem ser previstos,
portanto, surge como forma de equilíbrio contratual. A grande crítica é que
o dispositivo legal, no momento, que uma das partes não tem interesse na
revisão, só resta, portanto, a resolução do contrato, o que vai de certo modo
contrário ao principio de manutenção dos contratos. Deveria o Código Civil
promover alternativas que reequilibrassem o contrato, sem que houvesse só a
possibilidade de resolução.
CONCLUSÃO
A nova principiologia contratual se deve a intervenção estatal ou dirigismo contratual em que há necessidade de equilíbrio das relações jurídicas
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decorrentes do contrato. A ruptura para um modelo social em que o eixo
motivador do ordenamento jurídico passa a ser a promoção da dignidade da
pessoa humana faz com que os abusos cometidos pelo modelo de contrato
oriundo do Estado Liberal seja rompido.
O ordenamento jurídico brasileiro no que tange ao funcionamento das
relações contratuais segue preceitos de ordem constitucional de solidariedade
que acabam afetando na aplicação de novos princípios jurídicos como o da
boa-fé objetiva, a função social dos contratos e o de revisão contratual.
O Código Civil de 2002 acaba por trazer estes princípios como textos de
cunho de direito privado, embora anteriormente verifica-se que todos estes
princípios ainda não dispunham de textos normativos estavam sendo aplicados pela jurisprudência. De certa forma, o Código Civil atual só veio a reafirmar estes princípios norteadores das relações contratuais que simplesmente se
direcionam para que haja a efetivação do equilíbrio nas relações obrigacionais
em que as partes possam estar em pé de igualdade jurídica e econômica.
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19. SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Breves Reflexões sobre a eficácia atual da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. In TEPEDINO, Gustavo (coord). Problemas
de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
20.VIEGAS, Claudia Mara de Almeida Rabelo. A revisão judicial dos contratos sob a
ótica do Direito Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2012.
Recebido em: 18/09/2014
Aprovado em: 28/10/2014
156
DESAFIOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS NO BRASIL: A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
DE DEPENDENTES QUÍMICOS SOB A ÓTICA DA NOVA
ORDEM CONSTITUCIONAL
CHALLENGES TO THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC
POLICY IN BRAZIL: A MANDATORY DETENTION OF
CHEMICAL DEPENDENT UNDER THE PERSPECTIVE OF
NEW CONSTITUTIONAL ORDER
CRISTIAN KIEFER DA SILVA1
FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO 2
RESUMO
O presente trabalho consiste em uma análise sistemática dos caracteres
jurídicos, políticos e sociais que, na contemporaneidade, conformam um dos
mecanismos centrais de atuação da Administração Pública brasileira voltada à efetivação dos Direitos Fundamentais, sobretudo, dos direitos sociais,
1
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Processo Civil
Aplicado pelo CEAJUFE/IEJA. Bacharel em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Professor Assistente
e Pesquisador em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais. Professor Auxiliar e Pesquisador em Direito da Escola de Direito do Centro
Universitário Newton Paiva. Professor Assistente e Pesquisador em Direito do Centro Universitário
UNA. Professor Adjunto e Pesquisador em Direito da Faculdade de Minas (FAMINAS-BH). Membro
associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro da
Associação Brasileira de Sociologia do Direito e Filosofia do Direito (ABRAFI). Integrante dos Grupos
de Pesquisas: Direito, Constituição e Processo “Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho
Júnior” e Direito, Sociedade e Modernidade “Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi”.
2
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Pós-doutor pela
Universidade da Califórnia-Berkeley (EUA). É professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais e professor colaborador da Faculdade de Direito Milton Campos. Juiz Togado do
Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais e Presidente da Academia Mineira de Direito Militar.
É Diretor-Adjunto da Escola Nacional da Magistratura da AMB (Associação dos Magistrados
Brasileiros). Tem atuação na área de Direito, com ênfase em Hermenêutica Jurídica, Direito Público
e Filosofia do Direito.
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
econômicos e culturais: as políticas públicas. Nesse contexto, a internação
compulsória de dependentes químicos tem sido promovida pelos estados brasileiros como uma aposta dos governos locais para a diminuição do índice
de dependência química e, automaticamente, da criminalidade. A proposta
visa acabar com os grandes centros de tráfico, consumo de drogas e meretrício, popularmente conhecidos como “cracolândias”, utilizando o método que
consiste em internar os toxicômanos em centros de recuperação de dependência química sem sua anuência, sequer de seus familiares. A Administração
Pública vem adotando o procedimento de internação compulsória, previsto
na Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/2001, por analogia, já que na referida lei não há previsão expressa de aplicação para dependentes de tóxicos,
mas, tão somente, para portadores de transtorno mental grave. Neste contexto, o presente trabalho irá abordar os aspectos controversos e as possíveis consequências jurídicas acerca do procedimento de internação compulsória, que
utiliza a Lei nº 10.216/2001 por analogia in malam partem aos dependentes
químicos, sob a ótica constitucional de proteção às liberdades dos indivíduos
(Neoconstitucionalismo).
Palavras-chave: internação compulsória; lei da reforma psiquiátrica;
nova ordem constitucional.
ABSTRACT
This study consists of a systematic analysis of the legal, political and social
characters that contemporarily, conform one of the central mechanisms of action
of the Brazilian Public Administration focused on enforcement of Fundamental
Rights, especially the social, economic and cultural rights: political public. In this
context, compulsory hospitalization of drug addicts has been promoted by the
Brazilian states as a bet of local governments to decrease the rate of chemical
dependency and automatically crime. The proposal aimed at ending the great
centers of trafficking, drug use and prostitution, popularly known as “cracolândias” using the method consisting in hospitalized drug addicts in rehabilitation
centers, addiction without their consent, even their families. The government has
adopted the procedure of compulsory hospitalization, under Law of Psychiatric
Reform Law number 10.216/2001, by analogy, since in that law no express provision for applying for dependent toxic, but merely to carriers with severe mental
illness. In this context, this paper will address the controversial aspects and about
the possible legal consequences of the compulsory hospitalization procedure,
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
which uses the Law number 10.216/2001 by analogy in malam partem for drug
addicts under the perspective of constitutional protection to the liberties of individuals (Neoconstitutionalism).
Keywords: mandatory detention; law reform psychiatric; new constitutional order.
1. INTRODUÇÃO
A partir do século XX, o consumo de drogas aumentou exponencialmente no Brasil, gerando para as entidades estatais um dever de intervenção
efetivo. Em decorrência de tal primordialidade, em março de 2012 começou a
ser implantada nos estados membros brasileiros a proposta de política pública
de internação compulsória temporária de viciados em drogas ilícitas e cujo
estado de dependência estivesse demasiado grave.
A internação compulsória iniciou-se como uma aposta dos governos locais para a diminuição do índice de dependência química e, automaticamente,
da criminalidade em determinadas regiões. Contudo, tal procedimento, como
a própria denominação aponta, prescinde de consentimento do dependente
químico e de seus familiares, sendo previsto no ordenamento pátrio somente na Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/01, que não prevê, expressamente, sua aplicação para casos que não sejam de pessoas portadoras de
transtorno mental grave.
Importante registrar que a administração pública, como fundamento
legal para a prática da internação dos toxicômanos, vem aplicando a referida
lei por analogia, o que é vedado tratando-se de leis restritivas de direitos, o
que, pressupostamente, já aponta para a ilegalidade do procedimento.
A prática é passível, também, de ser declarada inconstitucional quando
analisada sob a ótica do Estado Democrático de Direito em que vivemos. A
Nova Ordem Constitucional, ou Neoconstitucionalismo, prega a limitação até
da aplicação de leis quando estas afrontam direitos fundamentais e axiomas
de justiça (especialmente principiológicos).
Destarte, considerando que sob a égide da Nova Ordem Constitucional
já é possível relativizar até a aplicação de lei, o que se dirá de uma aplicação
analógica em prejuízo à pessoa humana e que, ainda por cima, viola os direitos de primeira dimensão/geração (civis e políticos, como os direitos de
liberdade)?
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
O estudo do tema proposto é, portanto, relevante, já que arbitrariedades
podem estar sendo cometidas pelo Estado ao utilizar a Lei nº 10.216/01 como
instrumento de promover política de saúde pública em detrimento dos preceitos e dispositivos constitucionais.
2. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O surgimento da ideia de pacto social e estado civil foi, prima facie, obra do
filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, em seu livro Du contrat social ou Principes
du droit politique (1762). Nesta obra, o filósofo aponta que a necessidade de constituição de uma agregação social é inerente ao homem natural, que perde a capacidade de subsistência individual. Quando os homens passam a viver em forma
coletiva torna-se imprescindível a figura de um “soberano”, responsável por defender e proteger os bens, direitos e interesses de todos os indivíduos na agregação.
Diversas filosofias e doutrinas, no decorrer dos anos, aprimoraram a
ideia inicial de Rousseau, mas não a alteraram em sua essência. A figura do
“soberano” se concretizou na ficção do Estado, que se organiza a fim de exercer
o seu poder sobre os “súditos”, a sociedade. Com a evolução política e jurídica
verificou-se a necessidade de restrição do poder do Estado, sendo-lhe impostos limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de responsabilização.
O Brasil, como República Federativa, é regido pela Constituição Federal,
pilar do ordenamento jurídico brasileiro e que dispõe a cerca da estrutura
do Estado, dos Poderes e dos direitos fundamentais. A não observância, por
qualquer dos entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios),
dos dispositivos constantes no texto constitucional torna possível a insurgência do prejudicado contra o ato, questionando sua constitucionalidade.
A contextualização histórica supra foi tecida a fim de demonstrar que a
ideia de que cabe ao Estado zelar pelo que convém ser o melhor aos seus súditos foi plantada no século XVI, pelo filósofo Rousseau, e enraizou-se desde
então. Em decorrência disto, o Estado, muitas vezes, esquece-se de respeitar
os limites impostos a sua atuação. São vários os princípios limitadores da atuação estatal, especialmente os denominados direitos de primeira dimensão, ou
geração, que consiste no dever do Estado de respeitar os direitos individuais e
políticos dos cidadãos.
Por serem repressores do poder estatal, os direitos fundamentais de primeira geração são reconhecidos como direitos negativos, liberdades negativas
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
ou direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado (ALEXANDRINO, 2012,
p. 102). Em outras palavras, o Estado assume uma obrigação de “não fazer”,
ou seja, não intervir na esfera individual de seu súdito.
O direito da liberdade de ir e vir está abrangido nesta categoria de direitos fundamentais de primeira geração, cabendo ao Estado não restringi-lo,
ressalvado os casos expressamente previstos (penas restritivas de liberdade,
por exemplo).
Verifica-se a correlação direta entre o breve histórico tecido com o objeto do presente trabalho, a saber, a discussão acerca dos estados brasileiros
promoverem a chamada internação compulsória dos dependentes químicos.
O estado de São Paulo, pioneiro da prática, desde a publicação da Lei nº
10.216, de 06 de abril de 2001, que trouxe as figuras de internação voluntária,
involuntária e compulsória, passou a discutir sobre a possibilidade de aplicação de tais internações também para toxicômanos. Os defensores da proposta
argumentavam, segundo Luiz Loccoman, que um em cada dois dependentes
químicos apresentava algum tipo de transtorno mental, como a depressão.
Tais argumentos são inquestionavelmente de cunho político. A finalidade colimada dos defensores da utilização da Lei nº 10.216/01 por analogia
era revestir de uma aparente legalidade o que algumas autoridades já queriam há muito tempo, mas que lhes é vedado pela Constituição: restringir,
de uma vez, a liberdade das pessoas que se encontram em estado de extrema
dependência química de drogas ilícitas, tirando-as das ruas e privando-as
do convívio social.
A medida, policialesca e simplista, é “vendida” pelas autoridades como
uma forma de acabar com a dependência química. Pura ilusão. A mácula insanável é verificada no fato de que os governantes, agindo de tal forma, estão
optando por um “caminho mais fácil”, mas sem efetividade a longo prazo.
Ora, “varrer a poeira para debaixo do tapete”, passando para a sociedade uma
imagem de “limpeza” do problema com as drogas, só manterá aparências, mas
não trará solução.
Em 2011 a internação compulsória teve vários adeptos. Em São Paulo, a
prática surgiu com a parceria do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Ministério
Público estadual e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio de
uma Comissão Antidrogas.
Há alguns estados que estão até apresentando projetos de lei estaduais
para regular o procedimento. Em março de 2014, seguiu para sanção do governador de Goiás o projeto de lei estadual nº 549/12, que institui o Sistema
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Estadual de Internação Compulsória de Dependentes Químicos. No Rio de
Janeiro, em 2013, foi aprovado projeto de lei mais tímido, prevendo a internação de dependentes químicos, desde que haja autorização da família. A
Assembleia Legislativa excluiu do projeto o trecho que permitia os agentes de
segurança pública também determinarem a internação de forma compulsória.
No estado de Minas Gerais também já foi implantada a referida política
de internação compulsória para usuários de drogas desde 2012. Conforme
o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, as informações da
Secretaria de Saúde do estado apontam uma média mensal de quinze internações compulsórias.
Verifica-se que, inobstante a Lei nº 10.216 não ter sido publicada há mais
que uma década, os estados brasileiros passaram a, efetivamente, implantar a
prática da internação compulsória de 2011 em diante. Não é difícil imaginar
o porquê da repentina aplicação da lei, por analogia, aos toxicômanos, afinal
tais “cracolândias” mancham a imagem dos estados e, em vésperas de grandes
eventos mundiais os “holofotes” estão direcionados para o Brasil.
Até o presente momento o assunto não tomou alarmantes repercussões
nos Tribunais. Possivelmente, por pressões políticas, aguarda-se a “poeira baixar” para que seja dado o primeiro alarde sobre o assunto, que é tão delicado.
No mais, a reassunção do poder ilimitado do “Estado-soberano” em restringir a liberdade de ir e vir por meio da internação compulsória não atingiu
a classe média e classe alta, mas, tão somente, a parte marginalizada da população. É possível que a arbitrariedade da prática perdure por vários anos.
3. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E A LEI Nº 10.216/2001
3.1. OS DESTINATÁRIOS DA LEI
Em 06 de abril de 2001, após longo processo de discussão e tramitação
no Congresso Nacional (que se estendeu por cerca de um ano), foi promulgada a Lei 10.216/01, a lei da Reforma Psiquiátrica. Pelo texto da lei, é possível verificar que os legisladores objetivavam garantir a cidadania, o respeito
e individualidade dos acometidos por transtorno mental, dispondo sobre as
peculiaridades de cada caso de acordo com a gravidade do transtorno.
O doutrinador e magistrado Antônio Carlos Santoro Filho, ao promover uma síntese da evolução histórica do Direito brasileiro em relação aos
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transtornos mentais e seus portadores, afirma que:
O novo diploma legal inverteu o sistema até então vigente, pois estabeleceu a excepcionalidade da internação, somente quando os recursos
extra-hospitalares não se mostrassem suficientes; a proteção dos direitos
do portador de transtorno mental contra abusos no tratamento; o reconhecimento do paciente como sujeito e titular de direitos; a preocupação com o melhor tratamento , e não apenas com a “segurança” social;
a reinserção gradual do usuário do sistema de saúde mental. (FILHO,
2012, p. 13).
O artigo 1º da Lei da Reforma Psiquiátrica não deixa dúvidas sobre quem
são os destinatários da lei:
Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno
mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de
discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção
política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de
gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.
(BRASIL, 2001).
Pela leitura do dispositivo legal conclui-se que a lei se aplica a pessoas
acometidas por doença mental, não tendo o legislador aberto margem para
interpretação extensiva capaz de abranger dependentes químicos
3.2. OS TIPOS DE INTERNAÇÃO PREVISTOS E SEUS REQUISITOS LEGAIS
A Lei nº 10.216/01 prevê três espécies de internação:
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo
médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação
psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do
usuário e a pedido de terceiro;
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. (BRASIL,
2001).
A internação voluntária, também chamada de consentida, se dá com o
consentimento do usuário que, para tanto, deverá assinar uma declaração de
que optou por esse regime de tratamento (artigo 7º, caput), sob pena se ser
considerada involuntária. “O término da internação voluntária dar-se-á por
solicitação escrita do próprio paciente ou por determinação do médico assistente, quando constatada a desnecessidade de sua continuidade” (SANTORO
FILHO, 2012, p. 41).
A internação involuntária se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de familiar ou responsável legal. Suas peculiaridades estão dispostas no
artigo 8º da Lei:
Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada
por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina
- CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e
duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse
mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento. (BRASIL, 2001).
Por fim, a internação compulsória, objeto do presente artigo, é aquela
determinada pela Justiça, o que pressupõe a existência de um processo, de
natureza civil ou criminal já em andamento, considerando que “ninguém será
privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo
5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988).
A internação compulsória está prevista no artigo 9º da Lei, cujo teor é
bem mais sucinto do que o da internação involuntária:
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições
de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
demais internados e funcionários. (BRASIL, 2001).
Nota-se que o artigo é omisso quanto aos legitimados para a propositura,
apontando, somente, que cabe ao juiz determiná-la. Segundo Santoro Filho
(2012, p. 42) “pode ser postulada dos poderes públicos - Estado e Município
- em demanda judicial, detendo legitimidade, para tanto, independentemente
de decretação de interdição do internado [...] ou mesmo Ministério Público”.
Inobstante a imprescindibilidade de laudo médico para a promoção de
internação, no caso de internação compulsória de dependentes químicos o
Tribunal de Justiça de São Paulo tem sido tão extremo que sequer anula o ato
pela falta do requisito:
AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
Insurgência contra o indeferimento do pedido de antecipação dos efeitos
da tutela requerida a fim de determinar a internação compulsória de pessoa portadora de perturbação mental decorrente de dependência química - Decisão fundamentada - Ausência dos requisitos autorizadores da
medida -Ato de livre convicção do Magistrado - Não constatado caso
de ilegalidade ou de abuso de poder - Internação compulsória é medida
extrema, devendo a necessidade de seu deferimento estar amparado por
provas concretas de risco à saúde do dependente químico e da segurança
da família - Decisão mantida - Negado provimento ao recurso.
(BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo nº 202129137.2014.8.26.0000. Agravante: José Carlos Oliveira. Agravados: Sheila
Cristina Marcelino, Município De Limeira E Fazenda Pública Do Estado
De São Paulo. Relator: Rubens Rihl. São Paulo, 03 de abril de 2014).
O entendimento do citado doutrinador vem sendo aplicado não só nos
casos de internação compulsória de deficientes mentais mas também tratando-se dos viciados. Como supramencionado, São Paulo, pioneiro da aplicação da lei para dependentes químicos, já tem jurisprudência sedimentada no
sentido de que o Ministério Público tem legitimidade ativa para solicitar a
internação compulsória de toxicômanos:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Internação de paciente dependente de substâncias químicas - Afastadas preliminares de ilegitimidade ativa do
Ministério Público e ilegitimidade passiva ad causam do Município de
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Morro - Agudo Direito à saúde; dever do Estado, direito do povo - Art.
196 da Constituição da República, norma programática que não constitui promessa constitucional inconsequente (STF, 2ª T., AgRE 2738344-RS, Rel. Min. Celso de Mello) - Ação julgada procedente - Sentença
mantida - Recurso voluntário desprovido.
A necessidade de internação compulsória em clínica especializada para
tratamento de drogadição é imprescindível para a recuperação do autor,
conforme documento médico e estudo social. A pretensão encontra fundamento em dispositivos constitucionais, já que a internação do dependente de substâncias químicas é medida protetiva, que busca o adequado
tratamento médico, para salvaguardar à saúde e à integridade física e
mental, tendo como alicerce a dignidade da pessoa humana.
(BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação cível nº 000232459.2010.8.26.0374. Apelante: Prefeitura Municipal De Morro Agudo.
Apelado: Ministério Público Do Estado De São Paulo. Relator: Ribeiro
de Paula. São Paulo, 31 de agosto de 2011).
Importante salientar que o caput do artigo 6º da Lei 10.216/01 prevê a indispensabilidade de laudo médico circunstanciado, que caracteriza seus motivos. Santoro Filho aponta, também, como requisito “[...] de qualquer internação a sua absoluta necessidade, ou seja, apenas será admissível quando os
recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (SANTORO FILHO,
2012, p. 36).
3.3. A FINALIDADE DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
A internação deve ser enxergada como medida excepcional, sendo indicada somente em hipóteses de perigo concreto, isto é, quando houver risco à
integridade física, à vida, à saúde do próprio paciente ou terceiros (artigo 4º,
Lei 10.216/01). Explica Santoro Filho que “[...] verificada a necessidade de
internação, contudo, esta terá como finalidade permanente a cessação daquele
estado de perigo e, em consequência, a reinserção social do paciente em seu
meio”. (SANTORO FILHO, 2012, p. 35).
Em suma, a internação prevista na Lei de Reforma da Psiquiatria, como
medida excepcional, é necessária somente até cessar as causas de perigo
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concreto, onde prevaleça a absoluta necessidade e quando as hipóteses dos
demais recursos sejam insuficientes.
Nota-se que, no caso de internação compulsória de toxicômanos, a internação é feita inclusive em casos de pessoas que não representam perigo
algum a sociedade. O Poder Público, nestes casos, utiliza o argumento de que
há “iminente risco à vida ou a saúde do próprio dependente”. Observa-se,
portanto, uma deturpação do instituto da internação, prevista na lei utilizada
analogicamente.
4. A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA SOB A ÓTICA DA NOVA
ORDEM CONSTITUCIONAL
A nova dogmática constitucional, inaugurada no Brasil com a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, pós-ditadura militar, passou a centralizar a dignidade da pessoa humana como valor jurídico supremo. Em outras
palavras, foi inaugurado um novo período de hermenêutica constitucional.
A principal característica do novo modelo de Estado de Direito, o
Democrático, foi a exacerbada tutela de direitos fundamentais, ideia advinda do constitucionalismo francês. Além disso, a nova constituição trouxe
mais efetividade aos instrumentos limitadores da atuação do Estado (habeas
corpus, mandado de segurança etc.), dando mais efetividade à proteção dos
novos axiomas da justiça.
Uadi Lammêgo Bulos define as principais características do neoconstitucionalismo como modelo axiológico de constituição normativa:
[...] a constituição é marcada pela presença de princípios e de normas
definidoras de direitos fundamentais; as normas e princípios constitucionais têm caráter material, positivando valores arraigados na comunidade, a exemplo da moral, dos costumes e dos hábitos (conteúdo axiológico); e as constituições também possuem denso conteúdo normativo,
influenciando toda ordem jurídica e vinculando a atividade dos Poderes
Públicos e dos particulares (eficácia horizontal dos direitos humanos).
(BULOS, 2010, p. 81).
Esta rematerialização da constituição passou a consagrar um extenso rol
de direitos fundamentais. Dentre os tópicos constitucionais pertinentes ao
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tema destacam-se o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,
o princípio da legalidade e o da liberdade de ir e vir.
4.1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição
Federal de 1988) não é definida no texto constitucional e, por ser um conceito amplo, a doutrina diverge em defini-la. A exigência enunciada por
Immanuel Kant (1724-1804), em sua obra sobre o imperativo categórico, é
utilizada pelos doutrinadores como ponto de partida em conceituá-la. “Age
de tal forma que trates a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um
meio.” (SANTORO FILHO, 2012, p. 23).
Extrai-se, portanto, o conceito de dignidade humana da própria
Constituição, observada como um todo. O respeito aos direitos e garantias
fundamentas, por si só, sintetizam a condição de ser humano, exigindo do
Poder Público e de terceiros uma respeitabilidade mínima.
Quando a análise do princípio fundamental em questão se mescla com
a discussão acerca da internação compulsória dos dependentes químicos, os
favoráveis à prática afirmam que os toxicômanos precisam ser internados justamente porque carecem de qualquer dignidade vivendo como vivem.
Dentre os simpatizantes da internação compulsória, encontra-se o criminalista e deputado estadual de São Paulo, Fernando Capez, que manifestou
sua opinião em artigo na Folha de São Paulo:
[...] Triunfantes em sua batalha na mente do jovem, os entorpecentes têm
dragado vidas ainda incipientes ao abismo da dependência sem volta.
Antecedidas, em regra, por um histórico de desprezo, maus-tratos, abandono, abuso sexual, comportamento omisso ou inadequado dos pais ou
responsáveis, ou mesmo pela falta de perspectiva de projetos positivos,
crianças e adolescentes perambulam pelas cracolândias da vida em busca de drogas baratas e mortais. Há uma dupla vitimização: do viciado,
impelido pelo incontrolável desejo de consumo, que acaba por se tornar
um delinquente, e dos inocentes, que por uma infelicidade cruzam seu
caminho durante a ação criminosa. Nessa perspectiva, o uso indevido de
drogas deve ser reconhecido como fator de interferência na qualidade de
vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade (lei nº 11.343/2006,
art. 19, inciso I). A internação involuntária do dependente que perdeu
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sua capacidade de autodeterminação está autorizada pelo art. 6º, inciso
II, da lei nº 10.216/2001 como meio de afastá-lo do ambiente nocivo e
deletério em que convive. Tal internação é importante instrumento para
sua reabilitação. Na rua, jamais se libertará da escravidão do vício. As
alterações nos elementos cognitivo e volitivo retiram o livre-arbítrio. O
dependente necessita de socorro, não de uma consulta à sua opinião. A
internação compulsória por ordem judicial pressupõe uma ação efetiva
e decidida do Estado no sentido de aumentar as vagas em clínicas públicas criadas para esse fim, sob pena de o comando legal inserto na lei nº
10.216/2001 tornar-se letra morta. Espera-se que o poder público não se
porte como um mero espectador, sob o cômodo argumento do respeito
ao direito de ir e vir dos dependentes químicos, mas, antes, faça prevalecer seu direito à vida. (CAPEZ, 2011).
Já os doutrinadores e instituições que se posicionam contra a internação
compulsória de dependentes químicos alegam que utilizar-se de uma lei inespecífica para toxicômanos, por analogia, para interná-los é que constituiria
violação à dignidade da pessoa humana, posto que restaria configurado desrespeito aos direitos individuais e a liberdade daqueles cidadãos.
Dentre as instituições contrárias à prática, está o Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo:
A internação compulsória é uma política governamental que não se configura como cuidado, mas como uma violência do Estado á população;
A internação compulsória apenas contribui para a exclusão e o isolamento social sem trazer benefícios para o (a) usuário (a) de crack, álcool
e outras drogas;
A internação compulsória como medida única e sensacionalista, é uma clara
violação dos direitos e princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.
Posicionamo-nos CONTRÁRIOS à Política de Internação Compulsória
de usuários (as) de crack, álcool e outras drogas e reiteramos as razões
para defender um tratamento COM LIBERDADE e DIGNIDADE:
[...] Todos tem direitos a informações claras sobre as diferentes possibilidades terapêuticas, a escolher outras formas de tratamento e liberdade
de aceitar ou recusar a proposta oferecida;
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[...] As chamadas “crackolândias” são efeitos da negligência pública e
hipocrisia social. A população moradora destes locais não tem casa, não
tem família, está numa situação dramática nas ruas. Precisamos contribuir para buscar uma solução, que não é a de recolhimento e isolamento
por meio das corporações policiais;
A Internação Compulsória representa uma falsa ideia de solução mágica,
que leva a sociedade a aceitas medidas sem a reflexão necessária [...].
(CONSELHO, 2014).
Com propriedade, os internados em tais circunstâncias ainda são “cidadãos”, afinal, mesmo sendo dependentes e vivendo de forma precária, por
conta de seu vício, não sofreram qualquer processo prévio apto a restringir-lhes a capacidade civil plena (uma interdição, por exemplo).
4.2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
A Constituição Federal de 1988 prevê o princípio da legalidade no artigo
5º, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”. Outrossim, é previsto no inciso XXXIX, do mesmo
artigo, o princípio da legalidade no âmbito penal, mais relevante para a discussão sob comento. Prevê o dispositivo que “não há crime sem lei anterior
que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Referido dispositivo é responsável pela segurança jurídica em matéria
criminal e consagra a regra do nullum crimen nulla poena sine praevia lege.
De uma só vez, assegura tanto o princípio da legalidade (ou reserva legal), na medida em que não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal, como o princípio da anterioridade,
visto que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal. (LENZA, 2010, p. 784).
Como reiteradamente apontado, a Lei 10.216/01, em seu artigo 1º, aponta como destinatário do estatuto os portadores de transtorno mental. O vício
em drogas não é transtorno mental. O viciado em crack, cocaína, maconha
difere-se de um fumante por serem estas drogas ilícitas e o cigarro não mais.
Poder-se-ia restringir a liberdade de um fumante sob o argumento de que põe
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em risco sua própria saúde e, por isso, deve ser considerado maluco?
A Lei específica sobre drogas ilícitas, usuários, traficantes etc., cujo bem
jurídico tutelado também é a saúde pública, é a Lei nº 11.343/06. Nesta lei
deixou de ser prevista a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário e portador para consumo próprio (artigo 28 da Lei nº
11.343/06).
Vigora, na doutrina, o posicionamento de que o artigo 28 da Lei de
Drogas despenalizou a conduta de porte para consumo, mas manteve seu status de crime. Passou a ser previsto, como pena para o porte de drogas para
consumo pessoal, a advertência, a prestação de serviços à comunidade e o
comparecimento em programa ou curso educativo.
Preleciona Renato Brasileiro de Lima:
Sem dúvida alguma, uma das principais novidades introduzidas pela Lei, nº
11.343/06 diz respeito à mudança da política criminal em relação ao usuário de drogas. Se, à época da vigência do art. 16 da Lei nº 6.368/76, o usuário
de drogas estava sujeito a uma pena de detenção, de 6 meses a 2 anos, e
pagamento de 20 a 50 dias-multa, com o advento da Lei nº 11.343/06, o preceito secundário do art. 28 passo a cominas as seguintes penas: advertência
sobre os efeitos da droga, prestação de serviços à comunidade e medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Em substituição à linha repressiva adotada anteriormente, a nova Lei de
Drogas afasta a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade ao crime de porte de drogas para consumo pessoal. Trabalha-se, em
síntese, com a premissa de que o melhor caminho é o da educação, e
não o da prisão, que, nesse caso, traz poucos senão nenhum benefício à
saúde do indivíduo. De mais a mais, é fato que a prisão de usuários não
traz nenhum benefício à sociedade. A uma porque impede que a eles
seja dispensada a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz
para eventual dependência química. A duas porque a imposição de pena
de prisão ao usuário faz com que este passe a conviver com agentes de
crimes muito mais graves, o que pode funcionar como fator de profissionalização de criminosos. (BRASILEIRO, 2014, p. 686).
Se a Lei nº 11.343/06, lei específica de drogas, não previu pena de restrição de liberdade aos dependentes químicos que consomem/portam para
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consumo, cabe interpretar a Lei da Reforma Psiquiátrica extensivamente para
abrangê-los?
Nesses termos, convém transcrever as lições de Mirabete obre o princípio nullum crimen, nulla sine praevia lege:
[...] [o princípio da legalidade] assegura que não pode ser considerado
crime o fato que não estiver previsto na lei e que não pode ser aplicada
sanção penal que não aquela cominada abstratamente nessa regra jurídica. Ainda que o fato seja imoral, antissocial ou danoso, não há possibilidade de se imputar ao autor a prática de um crime ou aplicar-lhe uma
sanção penal pela conduta praticada. (MIRABETE, 2008, p. 103).
Inegavelmente tal prática afronta o princípio da legalidade, pois a internação compulsória de toxicômanos representaria uma “nova pena”, atípica e
mais severa do que as previstas na própria Lei de Drogas, já que restringe a
liberdade de usuários que frequentam as “crackolândias”.
4.3. O DIREITO DEAMBULATORIAL
A liberdade é prevista constitucionalmente e não pode ser restringida,
salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas em lei, além de ser
imprescindível a prévia instauração de um devido processo legal (art. 5º, LIV,
CF/88), garantindo à pessoa o contraditório e a ampla defesa.
O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, assevera que
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal.
Também há previsão do direito à liberdade no artigo 7º da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário. “Ninguém
pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de
acordo com elas promulgadas.”
A aplicação do procedimento estipulado na Lei 10.216/01, sob o fundamento de promover uma política de saúde pública, progride como afronta ao
dispositivo constitucional citado, já que a lei só menciona, como destinatários
da internação contra a vontade, os doentes mentais.
Igualmente, como há restrição de liberdade do cidadão, conclui-se ser
passível de impetração de habeas corpus como instrumento assecuratório da
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tutela da liberdade ora restringida (HC repressivo) ou em iminência de acontecer (HC preventivo).
Prevê o texto constitucional, no seu artigo 5º, inciso LXVIII, que “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de
sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou
abuso de poder”.
Pelas razões que apontam para a inconstitucionalidade do procedimento
de internação compulsória utilizando-se da nº Lei 10.216/01 por analogia in
malam partem, inegavelmente o mandamus poderá ser impetrado.
O Superior Tribunal de Justiça já julgou habeas corpus sobre internações
compulsórias de portadores de transtornos mentais, questionando o procedimento de internação da Lei 10.216/01. Na maioria dos resultados, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) ou não conhecia o writ, por verificar supressão de
instância, ou denegava a ordem, relativizando a imprescindibilidade de prévios recursos extra-hospitalares:
HABEAS CORPUS - AÇÃO CIVIL DE INTERDIÇÃO CUMULADA COM
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA
SEÇÃO – VERIFICAÇÃO - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - POSSIBILIDADE NECESSIDADE DE PARECER MÉDICO E FUNDAMENTAÇÃO NA LEI 10.216/2001
- EXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE EXIGÊNCIA DE SUBMETER O PACIENTE A RECURSOS EXTRA-HOSPITALARES
ANTES DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO - DISPENSA EM HIPÓTESES EXCEPCIONAIS
– EXAME DE PERICULOSIDADE E INEXISTÊNCIA DE CRIME IMPLICAM DILAÇÃO
PROBATÓRIA - VEDAÇÃO PELA VIA DO PRESENTE REMÉDIO HEROICO
- HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO
PARA DENEGAR A ORDEM.
I - A questão jurídica relativa à possibilidade de internação compulsória,
no âmbito da Ação Civil de Interdição, submete-se a julgamento perante os
órgãos fracionários da Segunda Seção desta a Corte;
II - A internação compulsória, qualquer que seja o estabelecimento escolhido ou indicado, deve ser, sempre que possível, evitada e somente empregada
como último recurso, na defesa do internado e, secundariamente, da própria sociedade.
III - São modalidades de internação psiquiátrica: a voluntária, que é aquela
que se dá a pedido ou com o consentimento do paciente (mediante declaração assinada no momento da internação); a involuntária, que é a que se
dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e, por fim, a
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internação compulsória, determinada por ordem judicial.
IV - Não há constrangimento ilegal na imposição de internação compulsória, no âmbito da Ação de Interdição, desde que baseada em parecer médico
e fundamentada na Lei 10.216/2001. Observância, na espécie.
V - O art. 4º da Lei nº 10.216/2001, fruto de uma concepção humanística,
traduz modificação na forma de tratamento daqueles que são acometidos
de transtornos mentais, evitando-se que se entregue, de plano, aquele, já
doente, ao sistema de saúde mental.
VI - Todavia, a ressalva da parte final do art. 4º da Lei nº 10.216/2001, dispensa
a aplicação dos recursos extra-hospitalares se houver demonstração efetiva
da insuficiência de tais medidas. Hipótese dos autos, ocorrência de agressividade excessiva do paciente.
VII - A via estreita do habeas corpus não comporta dilação probatória, exame
aprofundado de matéria fática ou nova valoração dos elementos de prova.
VIII - Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário conhecido para denegar a ordem.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 130155 / SP.
Impetrante: Maria Fernanda Dos Santos Elias Maglio - Defensora Pública
E Outro. Impetrado: Tribunal De Justiça Do Estado De São Paulo. Relator:
Ministro Massami Uyeda. Brasília: 14 de maio de 2010).
Sobre o cabimento do writ, Eugênio Pacelli (2012, p. 935) é categórico ao
afirmar que “dirige-se contra ato atentatório de liberdade. Para que se configure um ato atentatório ao direito de locomoção não é necessário que haja já
uma ordem de prisão determinada [...]”.
5. ASPECTOS RELACIONADOS À CRIMINALIZAÇÃO
DAS CONDUTAS
5.1. VEDAÇÃO DA ANALOGIA IN MALAM PARTEM
No Direito Penal vigora a inadmissibilidade de interpretações ampliativas, já que o princípio da reserva legal exige que os textos legais sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogia, salvo quando in
bonam parte, ou seja, quando trazem benefícios ao réu. Ainda, vige o aforismo
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poenalia sunt restringenda, ou seja, interpretam-se estritamente as disposições
cominadoras de pena.
É vedada, também, em decorrência do princípio da reserva legal, a aplicação da analogia in malam partem no direito penal incriminador, bem
como a interpretação integrativa ou ampliativa. Ao contrário, devem ser
interpretadas estritamente as disposições incriminadoras e cominadoras
de pena. Exige o princípio da legalidade que a lei defina abstratamente
um fato, ou seja, uma conduta determinada, de modo que se possa reconhecer qual o comportamento considerado ilícito [...]
É vedado o uso dos costumes e analogia para punir alguém por um fato
não previsto em lei, embora seja ele semelhante a outro por ela definido.
Diga-se, também, que a lei penal somente é revogada por outra lei, não
sendo idôneos para tal medida os costumes, as medidas provisórias, ou
decretos etc. (MIRABETE, 2008, p. 104).
A restrição da liberdade de um cidadão é assunto sério e não se justifica
para a promoção de políticas de saúde pública, por mais que o vício em drogas
ilícitas estejam fazendo-os viver de forma imoral, antissocial e danosa a sua
saúde. É princípio básico do direito penal a vedação da analogia para prejudicar o réu e utilizando a Lei da Reforma Psiquiátrica desta forma estar-se-ia
criando um novo tipo penal, não previsto na Lei de Drogas, cuja sanção seria
a restrição da liberdade do sujeito.
A própria Lei nº 10.216/01 é clara em afirmar que a internação dos transtornados mentais é medida excepcional, que deve cessar quando o internado
deixar de representar perigo a si e a terceiros. No caso de comparar da dependência química a transtornos mentais, em que momento o internado seria
liberado? No momento em que seu anseio por tóxicos ilícitos acabassem?
Quem determinaria o momento daquele ser solto?
A interpretação analógica é processo integrativo, que consiste em fazer
aplicável a norma a um caso semelhante, mas não compreendido na letra nem
no pensamento da lei (NAVARRETE, 1996, p. 416). Pela literalidade da Lei nº
10.216/01 percebe-se que o legislador não intentava destiná-la, também, aos
usuários de drogas. Caso o fosse, seria expresso e as respostas às indagações
acima estariam abarcadas.
Em suma, a analogia afronta o princípio da reserva legal (BITENCOURT,
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2011, p. 176). Partindo da máxima de que a obediência às normas deve ser
ampla, não há justificativa para o Estado sopesar as disposições constitucionais quando o achar conveniente.
Por mais deplorável que seja o estado de alguns toxicômanos que vagam
pelas ruas e por mais que representem perigo, não cabe ao poder público dizer
que a internação compulsória, procedimento sério de restrição de liberdade,
cabe à pessoas não abarcadas na lei. Todos tem o direito a um procedimento
prévio, seja de interdição ou outro específico, contando que previsto em lei e
dotado das garantias constitucionais do contraditório, ampla defesa (artigo 5º,
inciso LV, Constituição Federal de 1988), ampla instrução, etc.
6. A EFICÁCIA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
DE TOXICÔMANOS
Alguns doutrinadores são veementes em duvidar da eficácia da internação compulsória de dependentes químicos. “O sistema penal é absolutamente
incapaz de qualquer intervenção positiva sobre o viciado” (NILO apud LIMA,
2014); “O modelo coercitivo não dá certo. O dependente necessariamente tem
que estar disposto a se tratar” (SILVEIRA FILHO apud LIMA, 2014); “A tudo,
cabe acrescentar a mais que equivocada visão unidimensional, segundo a qual
todo usuário de drogas é um doente, escravo da droga ou desviado. [...] para o
usuário eventual, que se utiliza do entorpecente de forma módica, nada há de
‘curar’” (TORON apud LIMA, 2014).
A mesma linha de pensamento, como supracitado, foi adotada pelo
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, que é contra a prática, sob o
argumento de que:
[...] Sem um tratamento que inclua o apoio da família e a atenção psicossocial, o isolamento promovido pela internação compulsória é violento
com a pessoa que já está debilitada pelo uso abusivo. Além disso, é uma
medida que não tem efeito: dados de pesquisas comprovam que 98%
dos (as) que são internados contra a sua vontade voltam ao uso e, consequentemente, são reinternados (as); [...]
A pesquisa mencionada pelo Conselho de Psicologia foi realizada pelo
professor e psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de
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Orientação e Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP). Dartiu Silveira, convocado para parlar em audiência pública da
Comissão de Constituição de Justiça do Senado sobre o tema de drogas, apontou uma série de evidências médicas contrárias ao Projeto de Lei (37/2013),
que intenta promover alterações na Lei de Drogas.
Contra as estatísticas, o Dr. Dráuzio Varella posiciona-se a favor da prática embasado em sua experiência empírica no tratamento de jovens dependentes em penitenciárias brasileiras:
Tenho alguma experiência com internações compulsórias de usuários
de crack. Infelizmente, não são internações preventivas em clínicas especializadas, mas em presídios, onde trancamos os que roubam para
conseguir acesso à droga que os escravizou.
Na Penitenciária Feminina, atendo meninas presas na cracolândia. Por
interferência da facção que impõe suas leis na maior parte das cadeias
paulistas, é proibido fumar crack. Emagrecidas e exaustas, ao chegar, elas
passam dois ou três dias dormindo, as companheiras precisam acordá-las para as refeições. Depois desse período, ficam agitadas por alguns
dias, e voltam à normalidade.
Desde que o usuário não entre em contato com a droga, com alguém sob
o efeito dela ou com os ambientes em que a consumia, é muito mais fácil
ficar livre do crack do que do cigarro. A crise de abstinência insuportável
que a cocaína provocaria é um mito.
Perdi a conta de quantas vezes as vi dar graças a Deus por ter vindo para
a cadeia, porque se continuassem na vida que levavam estariam mortas.
Jamais ouvi delas os argumentos usados pelos defensores do direito de
fumar pedra até morrer, em nome do livre arbítrio.
Todas as experiências mundiais com a liberação de espaços públicos para o
uso de drogas foram abandonadas, porque houve aumento da mortalidade.
A verdade é que ninguém conhece o melhor método para tratar a dependência de crack. Muito menos eu, apesar da convivência com dependentes dessa praga há mais de 20 anos.
A internação compulsória acabará com o problema? É evidente que não.
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Especialmente, se vier sem a criação de serviços ambulatoriais que ofereçam suporte psicológico e social para reintegrar o ex-usuário.
Se esperarmos avaliar a eficácia das internações pelo número dos que
ficaram livres da droga para sempre, ficaremos frustrados: é preciso entender que as recaídas fazem parte intrínseca da enfermidade.
Segundo as estatísticas colhidas da pesquisa realizada pela UNIFESP,
onde 170 usuários de crack foram entrevistados, 62,3% gostariam de parar de
usar a droga. Cerca de 47% revelaram que se submeteriam a um tratamento
de dependência química, sendo que 18,8% destes gostariam de se submeter a
um tratamento que permitisse apenas diminuir o consumo. O dado mais importante é que 34% manifestaram que aceitariam que o tratamento da dependência da droga envolvesse, ocasionalmente, uma internação involuntária.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A utilização da Lei nº 10.216/01, de forma analógica, para promover a
internação compulsória de dependentes químicos, afronta o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, FC/88) e a liberdade do indivíduo.
Trata-se, pois, de uma pena restritiva de liberdade não prevista na Lei de
Drogas, nº 11.343/06, afinal, o fato de utilizarem substâncias entorpecentes
de forma mais assídua e nas regiões chamadas “crackolândias” não os enquadram na hipótese do artigo 28 da citada lei? Seria uma punição aos que consomem mais.
O que o Poder Público visa, utilizando a Lei da Reforma Psiquiátrica
analogicamente, é ter uma forma de restringir a liberdade daqueles toxicômanos, com uma falsa “roupagem de licitude”.
A regra para se internar uma pessoa com transtorno mental é a prévia
instauração de um procedimento de interdição, onde restará demonstrado a
perda de sua capacidade civil. Mas a Lei nº 10.216/01 prevê, excepcionalmente, a modalidade de internação compulsória quando houver risco concreto à
vida do doente mental ou de terceiros.
Como visto, os Tribunais de Justiça, especialmente o TJSP, tem promovido a internação compulsória dos toxicômanos sob o argumento de que
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pessoas em nível extremo de dependência química, por corolário de seu vício,
tem alguma doença mental, como depressão. Abre-se, portanto, o precedente
de internação de qualquer pessoa acometida com depressão (que, no século
XXI são várias).
A simples dedução de que “por serem drogados são doentes mentais” é
inaceitável e não é argumento hábil para restringir a liberdade de alguém no
atual Estado Democrático de Direito.
Inegavelmente as autoridades públicas e os governantes precisam unir
esforços para combater o problema do consumo de drogas, que tem crescido exponencialmente no Brasil, especialmente nas grandes metrópoles.
Inobstante tal necessidade, o ato deve ter respaldo legal. Não são admissíveis
arbitrariedades do “Estado-soberano”. Afinal, hoje o Estado relativiza direitos
fundamentais da sociedade marginalizada, amanhã poderá fazê-lo com os direitos de qualquer um.
De fato, há uma multiplicidade de causas que dão ensejo à alteração dos
modelos estatais vigentes. No entanto, a principal razão que leva o Estado de
Direito a se transformar no Estado Constitucional é a necessidade de uma
atuação substancial do Estado na sociedade, com vistas a assegurar um mínimo de direitos para que cada indivíduo possa se tornar sujeito e, a partir da
garantia de sua dignidade, exercer a sua cidadania.
Todavia, a própria carta Constitucional brasileira estabelece uma
série de limites jurídicos, que funcionam como balizas para a atuação da
Administração Pública, no sentido de evitar a omissão do administrador
público para o atendimento dos escopos delineados pela Constituição.
Pois bem, sem embargo disso, a partir da principiologia Constitucional, é
possível o estabelecimento de outros mecanismos, tais como a vedação do
retrocesso, que pode ser aplicada às ações políticas destinadas à concretização de Direitos Fundamentais, no sentido de que não pode o Estado
reduzir os seus investimentos para o alcance dos seus fins constitucionais,
assim como a proibição da insuficiência, a qual determina que, embora
os direitos sociais sejam objeto de uma eficácia progressiva no tempo, o
Estado não pode deixar de realizar políticas públicas necessárias a assegurar a promoção mínima desses direitos, consoante os parâmetros estabelecidos constitucionalmente.
Cabe aqui salientar que se as autoridades enxergam a abstinência compulsória como umas das formas possíveis de política de saúde pública (inobstante as pesquisas universitárias mostrarem que não é meio eficaz de “livrar”
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o indivíduo do vício), é imprescindível a criação de um procedimento específico, por lei que EXPRESSAMENTE preveja serem seus destinatários aqueles
usuários em nível avançado de dependência química.
A forma que, atualmente, vem sendo promovidas as internações compulsórias é inconstitucional e arbitrária. Não há legitimidade na atuação do
ente estatal em restringir o direito ambulatorial dos dependentes utilizando a
Lei nº 10.216/01.
Por fim, para a eficácia da internação compulsória, o Poder Público deve
garantir que os toxicômanos sejam internados em casas de reabilitação específicas, que ofereçam todo o suporte psicológico e social para reintegrar o
indivíduo, sem fazê-los se sentirem em uma prisão.
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Recebido em: 01/09/2014
Aprovado em: 20/10/2014
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A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA
ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL:
ANÁLISE DO REGIME JURÍDICO E IMPORTÂNCIA DE
TAIS ENTIDADES À LUZ DO PRINCÍPIO
DA SUBSIDIARIEDADE
FELIPE ALEXANDRE SANTA ANNA MUCCI DANIEL1
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo realizar breve análise do regime jurídico e do papel da Administração Indireta no Brasil, em especial no que se refere à
prestação de serviços públicos. Para isso, inicia-se pela diferenciação das diversas
atividades desempenhadas pelo Estado atualmente, dedicando especial atenção à
distinção entre prestação de serviços públicos e exploração de atividade. Para contextualização da distinção, parte-se da análise histórica do papel do Estado, para
demonstrar que o modelo de pós-modernidade não significa o afastamento do
Estado nem da prestação de serviços públicos e nem da exploração de atividade
econômica. Em seguida, estudam-se as formas de prestação de serviços públicos
de forma descentralizada pelo Estado, com destaque para a descentralização por
serviços (Administração Indireta). Busca-se, de forma breve, demonstrar as diferenças entre o regime jurídico aplicável às entidades criadas com personalidade
jurídica de direito público das entidades com personalidade jurídica de direito
privado, e a importância destas entidades na sociedade atual.
Palavras Chave: Administração Indireta – Serviços Públicos – Regime
Jurídico
ABSTRACT
This paper aims to conduct a brief analysis of the legal system and the
role of indirect administration in Brazil particularly in regard to delivery of
1
Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Professor de Direito Administrativo e
Constitucional do Centro Universitário UNA e das Faculdades FEAD. Professor da pós-graduação
em Direito Público do Centro Universitário UNA, do Instituo para o Desenvolvimento Democrático
– IDDE e do Centro de Atualização em Direito – CAD/FUMEC. Membro da Diretoria do Instituto
Mineiro de Direito Administrativo. Advogado.
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public services. To accomplish this proposal, will be made a differentiation of
the various activities performed by the state today, with special attention to the
distinction between public service and exploration activity . To contextualize
the distinction will be made a historical analysis of the role of the state to demonstrate that the model of post- modernity does not mean lack of State or the
provision of public services nor the exploitation of economic activity. Then will
be analized forms of delivering public services in a decentralized manner by the
state, with emphasis on decentralization by services (Indirect Administration).
Will be briefly demonstrate the differences between the legal regime applicable to
entities with legal personality created by public law legal entities of private law,
and the importance of these organizations in today’s society .
Key words: indirect public administration - public services - legal regime
1. ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS DO ESTADO PÓS-MODERNO E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
Durante muito tempo pensou-se o Estado exclusivamente como prestador de serviço público. Esta noção foi defendida pelos teóricos da Escola
do Serviço Público francesa, representada por Léon Duguit, um de seus fundadores. A Escola do serviço público julgava ser possível estabelecer todas
as particularidades do Direito Administrativo pelas necessidades do serviço
público. (MELLO, 2005, p. 635). Todavia, logo se percebeu a necessidade de
distinguir ao menos duas formas de atuação do Estado: uma, em que ele se
colocava em patamar superior ao dos particulares, para exercer determinadas
atividades próprias dele (serviços públicos); e outra, em que se igualava aos
particulares, na prestação de atividades que não eram e não deveriam ser exclusivas dele (atividade econômica).
Durante o período do Estado Liberal, o Estado afastou-se tanto da atividade de prestação de serviços públicos quanto da intervenção na economia,
reduzindo sua função ao exercício do poder de polícia. Com o declínio do
Estado Liberal e o surgimento do Estado Social, em especial após o final da segunda guerra mundial, o Estado ampliou seu o rol de atividades. Abandonou
o papel de mero fiscalizador e regulador da sociedade, passando a intervir
para garantir a prestação de serviços com vistas à promoção dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana (DI PIETRO, 2006, p. 27).
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, podem ser destacadas diferentes
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atividades assumidas pelo Estado a partir do surgimento do Estado Social:
a. Algumas atribuições foram assumidas pelo Estado como serviços públicos, entrando na categoria de serviços públicos comerciais, industriais
e sociais; para desempenhar esses serviços, o Estado passou a criar maior
número de empresas estatais e fundações;
b. Outras atividades, também de natureza econômica, o Estado deixou
na iniciativa privada, mas passou a exercê-las a título de intervenção no
domínio econômico, por meio de sociedades de economia mista, empresas públicas e outras empresas sob controle acionário do Estado;
c. Finalmente, outras atividades, o Estado nem definiu como serviço
público nem passou a exercer a título de intervenção no domínio econômico; ele as deixou na iniciativa privada e limitou-se a fomentá-las,
por considerá-las de interesse para a coletividade. Desenvolve-se, então,
o fomento como uma atividade administrativa de incentivo à iniciativa
privada de interesse público. (DI PIETRO, 2006, P. 27)
Em razão do expressivo aumento do rol de direitos fundamentais, especialmente os sociais, a partir do Estado Social, percebeu-se crescimento da
máquina administrativa com o objetivo de atender às novas exigências da sociedade. Se antes os indivíduos não queriam a participação do Estado, a partir
do Estado Social eles passam a exigir dele a prestação de atividades antes não
desempenhadas. Paralelamente, o Estado se atenta também para a necessidade de intervenção em determinados setores da economia. Para Cristiana
Fortini, as Constituições do México (1917 e da Alemanha (1919), buscaram
reformular o modelo liberal, atribuindo ao Estado a missão de intervir no domínio econômico. Com a Constituição de Weimar insere-se o controle estatal
da economia privada no quadro de uma Constituição Política, inaugurando-se a atuação estatal no mercado (FORTINI, 2008, p. 3).
O agigantamento do Estado a partir do modelo de Estado Social, no
entanto, não se sustentou por muito tempo. O crescimento desmesurado da
máquina administrativa não foi acompanhado pelo incremento da eficiência
esperada na prestação de serviços públicos (DI PIETRO, 2006, p. 32).
Segundo Jacques Chevallier, a crise do Estado Social, sentida de forma
mais expressiva a partir dos anos 70, ocorre no momento em que se percebe
que o intervencionismo econômico do Estado criaria amarras insuportáveis
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ao mercado, dificultando ou até mesmo impedindo ações rápidas e intervenções necessárias. (CHEVALIER, 2009, p. 30). A partir da crítica ao “EstadoProvidência”, assiste-se na década de 1980 à implantação de política visando
obstaculizar o aumento indiscriminado do Estado e o crescimento de sua
intervenção na economia.
Importa destacar, no entanto, que a crise do Estado Social não representa retorno ao Estado Liberal, com o afastamento do Estado da prestação de
serviços públicos, como pretendem alguns. O que se percebe é uma tentativa
de diminuição do aparato Estatal, sem, no entanto, reduzi-lo a mero EstadoPolícia. O modelo de Estado que visa a promoção do bem estar social e da
dignidade da pessoa humana é irreversível, de modo que a sociedade continuará necessitando de políticas públicas estatais em busca de justiça social
(CHEVALIER, 2009, p. 30).
Neste sentido, concordamos com Paulo Roberto Ferreira Motta ao afirmar que não assiste razão àqueles que propagam a morte do serviço público a
partir do declínio do Estado Social. Na verdade, esta mudança de paradigmas
não significa o afastamento do Estado de suas funções precípuas. Pelo contrário, os direitos e garantias constitucionais somente podem ser alcançados a
partir de atuação efetiva do Estado em prol dos cidadãos:
É induvidoso, apesar disso, que o capitalismo sempre teve, para sair das
crises sucessivas em que mergulhava, um poderoso aliado: o serviço público. Para comprovar a correção da assertiva, vou buscar um considerável
aporte num dos mais fidalgais inimigos do serviço público que aduz ser
o mesmo “merecedor de um grande elogio, já que foi um instrumento de
progresso e também de socialização, especialmente nos Estados pobres
aos quais permitiu melhorar a situação de todos”. Tal melhora, por certo
absolutamente verdadeira, teve com ponto de partida a “técnica do serviço
público” que “representou a grande revolução econômica e social dos últimos 150 anos, que deu lugar a um desenvolvimento sem precedentes da
humanidade: sucessivas revoluções industriais e tecnológicas, processos
de igualdade social, educação generalizada, atenção sanitária praticamente
universalizada e um progresso sustentado de liberdade”. As palavras reproduzidas pertencem ao professor espanhol Gaspar Ariño Ortiz.
Ao declarar morto tão nobre, poderoso e revolucionário instituto jurídico, a vontade manifesta não pode ser outra do que tentar impedir a
educação generalizada, a atenção sanitária praticamente universalizada
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e um progresso sustentado de liberdade, tornando, assim, ainda mais
real e escancarado o caráter excludente do neoliberalismo. (MOTTA,
2009, p. 93).
Assim, o modelo de Estado que surge a partir da crise do Estado Social
não abandona os ideais de promoção da dignidade humana e do bem estar social. O que haverá, na verdade, é o estabelecimento de limites ao crescimento
indiscriminado do Estado e da intervenção dele na esfera privada e a criação
de parcerias com a sociedade para o atendimento às necessidades públicas (DI
PIETRO, 2006, p. 32).
No que tange ao papel do Estado na economia ganha relevo a partir
de então a discussão quanto ao princípio da subsidiariedade. No âmbito de
um Estado Federal, tal como o nosso, este princípio ganha duas importantes
acepções. Na primeira delas, a subsidiariedade é utilizada para organização
interna do aparelho do Estado, visando deixar a cargo do ente federado local
(no caso do Brasil, o Município) as atribuições que ele poderá desempenhar,
intervindo o ente central ou regional somente em situações indispensáveis.
Ficam a cargo do ente nacional (União) e Regional (Estados-membros) as
competências que não puderem ser exercidas pelo ente local (Município).
Por outro lado, o princípio da subsidiariedade também deve ser utilizado
para definir o papel do Estado na sociedade. Segundo este princípio, o Estado
somente deverá intervir na ordem social e econômica nas hipóteses em que a
iniciativa privada não puder atender aos anseios da coletividade. Não se trata
de afastamento de suas funções primordiais. Trata-se de reduzi-lo ao essencial, reservando à iniciativa privada a possibilidade de encontrar alternativas
de atendimento aos anseios públicos.
Conforme já dissemos, há um núcleo básico inafastável de atuação do
Estado, que é o único ente capaz de promover a implantação dos direitos fundamentais, sociais e difusos. No entanto, as formas como deverá ocorrer o
atendimento às necessidades públicas podem e devem se ligar às parcerias
com a iniciativa privada e, especialmente, deixando a cargo da sociedade o
que puder ser por ela desenvolvido.
Neste sentido, leciona José Alfredo de Oliveira Baracho:
O princípio da subsidiariedade aplica-se em numerosos domínios, seja
no administrativo ou no econômico. Apesar de sugerir uma função de
suplência, convém ressaltar que compreende, também, a limitação da
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intervenção de órgão ou coletividade superior. Pode ser interpretado ou
utilizado como argumento para conter ou restringir a intervenção do
Estado. Postula-se, necessariamente, o respeito das liberdades, dos indivíduos e dos grupos, desde que não implica determinada concepção das
funções do Estado na sociedade.(BARACHO, 1995, p. 21-54).
Ainda segundo o citado autor, o princípio da subsidiariedade não representa o afastamento total do Estado do domínio econômico. O intervencionismo, “ainda que nefasto”, muitas vezes se impõe. Importa, no entanto, que
esta intervenção somente ocorra quando necessária, e apenas na medida certa
para suprir a demanda (BARACHO, 1995, p. 21-54).
Com a crise econômica vivida pelo capitalismo no ano de 2008, o Estado
foi novamente chamado a intervir de forma direta na economia. Na ocasião,
muitos anunciaram o retorno do Estado interventor, regulador do mercado
econômico (CHEVALIER, 2009, p. 279). Jacques Chevallier, no entanto, combate tal argumento. Na verdade, a crise ocorrida, que demandou a intervenção
do Estado na regulação da economia, só vem confirmar que o Estado liberal
de antes, totalmente afastado da economia e que cuidava tão só da regulação
social, já não existe mais. A utopia do mercado independente e autônomo
está superada. É necessário um Estado atuante, presente na vida econômica
e atento às necessidades públicas. Jacques Chevallier ressalta que esta participação do Estado na atividade econômica se dá com fincas no princípio da
subsidiariedade. O Estado somente deve atuar na atividade econômica quando for necessário, e apenas na medida certa para restabelecer a normalidade
econômica. Tão logo o fato seja solucionado, afastar-se-á novamente:
Essas intervenções, presentes sob formas diversas em todos os países
independentemente de seu nível de desenvolvimento e do contexto político, marcam sem nenhuma dúvida um retorno da forte presença do
Estado na via econômica; no entanto, a sua dimensão deve ser mensurada com exatidão. Para começar, a intervenção maciça do Estado é sempre
apresentada como provisória; trata-se de salvar os bancos da falência, de
restabelecer o funcionamento do sistema de crédito, de evitar a desagregação da Economia; mas o Estado é chamado a se afastar assim que a
crise tiver sido superada. Por outro lado, essa intervenção é modelada
segundo as novas figuras do Estado “regulador” e do Estado “estrategista”, que foram anteriormente evocadas: ao intervir para salvar o sistema
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bancário e alguns setores industriais (“Estado maqueiro”), o Estado
assume precisamente uma função de regulação; e, do mesmo modo, as
medidas de proteção e de suporte à Economia (tal como a criação na
França em novembro de 2008 de um “fundo de investimento estratégico
de interesse nacional”) inscreve-se na lógica do Estado estrategista.
Sem dúvida, o contexto ideológico mudou: o apelo generalizado dirigido
ao Estado evidencia bem que ele permanece investido de responsabilidades essenciais na vida social; e a vontade de definir um “novo equilíbrio
entre o Estado e o mercado” (N. Sarkozy, 25 de setembro de 2008) traduz
o refluxo da concepção de um mercado dotado de todas as virtudes e
considerado como apto a atingir por si próprio o equilíbrio. Apesar disso, a concepção em si mesma das funções do Estado na Economia não
foi substancialmente modificada. Essa constatação se impõe ainda mais
porque a crise envolveu paralelamente o reforço dos vínculos de interdependência entre os Estados. (BARACHO, 2003, p. 48).
A interpretação dada pelo autor nada mais é do que a expressão maior do
princípio da subsidiariedade aqui exposto. O Estado, ao atuar na economia,
deve limitar-se ao estritamente necessário. Segundo José Alfredo de Oliveira
Baracho, não se deve confundir Estado subsidiário com Estado Mínimo. Neste
último, o Estado tratava apenas das necessidades essenciais, e tudo o mais era
relegado à iniciativa privada. Com base no princípio da subsidiariedade, no
entanto, o Estado deve exercer atividades essenciais, consideradas típicas do
poder público, e as que não puderem ser desempenhadas a contento pela iniciativa privada (BARACHO, 2003, p. 48).
No mesmo sentido, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Devem ficar a cargo do Estado as atividades que lhes são próprias como
ente soberano, consideradas indelegáveis ao particular (segurança, defesa, justiça, relações exteriores, legislação, polícia); e devem ser regidas
pelo princípio da subsidiariedade as atividades sociais (educação, saúde,
pesquisa, cultura, assistência) e econômicas (industriais, comerciais, financeiras), as quais o Estado só deve exercer em caráter supletivo da
iniciativa privada, quando ela for deficiente. (...)
No caso dos serviços públicos típicos do Estado, prevalecem os procedimentos e princípios próprios do regime jurídico administrativo ou de
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direito público; no caso das atividades sociais e das atividades econômicas exercidas subsidiariamente, o Estado deve procurar formas mais
flexíveis de atuação, somente possíveis pela aplicação predominante do
direito privado, derrogado parcialmente pelo direito público apenas no
que seja essencial para assegurar o cumprimento dos fins estatais. (DI
PIETRO, 2006, p. 38).
Assim, o Estado pós-moderno, embora tenha reforçado seu caráter subsidiário em relação ao mercado econômico, não se presta a afastá-lo de sua
atividade principal, o serviço público. Ao contrário do que sustentam alguns,
a obrigação do Estado de prestar serviços públicos não se extingue e nem
pode se extinguir com o fim do Estado Social, já que ela é a única forma possível de alcançar os preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito,
especialmente a promoção da dignidade humana.
2. DIFERENÇAS ENTRE SERVIÇO PÚBLICO E
ATIVIDADE ECONÔMICA
Uma das distinções conceituais mais tormentosa os com que trabalha o
Direito Administrativo é a definição de serviço público e atividade econômica. Tal como assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, a distinção não é de
fácil percepção:
A noção de “atividade econômica” certamente não é rigorosa; não se inclui
entre os conceitos chamados teoréticos, determinados. Antes, encarta-se
entre os que são denominados conceitos práticos, fluidos, elásticos, imprecisos ou indeterminados. Sem embargo, como apropriadamente observam
os especialistas no tema do Direito e Linguagem, embora tais conceitos
comportem uma faixa de incerteza, é certo, entretanto, que existe uma
zona de certeza negativa quanto à aplicabilidade deles e uma zona de certeza negativa quanto à não aplicabilidade deles. Vale dizer, em inúmeros
casos ter-se-á certeza de que induvidosamente se estará perante “atividade
econômica”, tanto como, em inúmeros outros, induvidosamente, não se
estará perante “atividade econômica” (MELLO, 2005, p. 656).
Não obstante as dificuldades da definição de conceitos rígidos, já não
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pairam mais dúvidas de que nem tudo que o Estado faz é serviço público. Há,
na verdade, uma plêiade de atividades desempenhadas pelo Estado, dentre as
quais se encontra o serviço público.
A existência de regimes jurídicos diferentes para atividades desempenhadas por uma mesma pessoa (o Estado) decorre do fato de que ao intervir
na economia o Estado atua em igualdade de condições com os particulares.
No entanto, ao exercer suas atribuições típicas, o faz munido das prerrogativas
e privilégios próprios da Administração Pública (MEIRELLES, 1982, p. 1 a 6).
Daí a necessidade de se distinguir as diversas atividades do Estado (públicas
e privadas).
Alguns autores, notadamente Eros Roberto Grau (GRAU, 2000, p. 252)
e Luciano Ferraz (FERRAZ, 2008, p. 271-280) entendem que há no texto
constitucional uma atividade econômica em sentido amplo (gênero), da qual
decorrem duas espécies: o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. O serviço público atividade econômica em sentido amplo, que o
Estado retirou das mãos da iniciativa privada, elegendo como um valor tão
importante para a sociedade brasileira que deve ser regido pelo regime jurídico administrativo, sendo prestado diretamente pelo Estado ou por quem
receber dele delegação específica. Há países que escolhem muitas atividades
econômicas como serviços públicos e outros que escolhem poucas. Tudo dependerá da escolha constitucional e legal, já que não há um conceito universal
de serviço público.
A doutrina pátria majoritária opta por conceituar serviços públicos e atividade econômica distinguindo os serviços públicos de três outras atividades
estatais: obra pública, poder de polícia e exploração da atividade econômica.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, conceitua-se serviço público:
(...) toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material
destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus
deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um
regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de
supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses
definidos como públicos no sistema normativo. (MELLO, 2006, p. 634)
É por meio da prestação de serviços públicos à população que o Estado
buscará alcançar os princípios estabelecidos pela Constituição à qual ele se
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vincula. Portanto, é o sistema normativo que estabelecerá quais as atividades
que deverão ser prestadas pelo Estado como serviço público, já que somente
a legislação poderá outorgar caráter público a determinado serviço prestado
à coletividade. É a legislação, especialmente pela via constitucional, que estabelece quais serviços são essenciais para a população daquele local. Neste
sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello adverte que os serviços públicos
são estabelecidos por força normativa, respeitando-se sempre os limites constitucionais (MELLO, 2005, p. 654). No Brasil, o princípio da livre iniciativa
impede que algumas atividades, constitucionalmente outorgadas ao mercado,
sejam qualificadas como serviços públicos. É esta a expressão maior do princípio da subsidiariedade que, conforme exposto, estabelece a interferência do
Estado apenas quando a sociedade não puder atender às demandas sociais
por seus próprios meios.
Não obstante o conceito utilizado por Celso Antônio Bandeira de Mello,
a doutrina brasileira diferencia duas formas de conceituar o serviço público:
ampla ou restrita. O conceito empregado pelo citado autor é restrito, na medida em que, além de separá-lo da atividade econômica prestada pelo Estado,
também o distingue daquelas atividades exercidas pelo Estado sob o regime
de direito público: poder de polícia, fomento e intervenção.
De outro modo, Hely Lopes Meirelles emprega conceituação mais ampla,
definindo serviço público como “todo aquele prestado pela Administração ou
por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do
Estado.” (MEIRELLES, 2010, p. 351).
Ao conceituar serviço público, Hely Lopes Meirelles também reconhece a impossibilidade de se elencar um rol taxativo do que vem a ser serviço
público, já que este varia conforme as necessidades de dada sociedade. É a
legislação que definirá o que vem a ser ou não serviço público.
Também José Cretella Júnior adota conceito amplo de serviço público,
sendo “toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para a
satisfação das necessidades públicas mediante procedimento típico do direito
público.” (CRETELLA JÚNIOR, 1980, p. 55).
Ao analisar a dupla forma de conceituação do serviço público, Maria
Sylvia Zanella Di Pietro entende que não há como dizer se um conceito está
mais correto que outro. Cada qual possui gradação específica, incluindo mais
ou menos atividades do Estado. Para ela, serviço público é “Toda atividade
material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio
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dos seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.” (DI PIETRO,
2007, p. 90).
Importa ressaltar que há diversas hipóteses em que a legislação e a
Constituição da República de 1988 tratam o conceito de serviço público de
forma ampla, não se enquadrando nas estreitas vias do conceito empregado
pelo citado autor.
Segundo o conceito restrito de serviço público utilizado por Celso
Antõnio Bandeira de Mello, além do serviço público há outras atividades que
dele se diferenciam: obra pública, poder de polícia e fomento.
Ao realizar a comparação entre obra pública e serviço público, Celso
Antônio Bandeira de Mello esclarece que a obra tem concretude e, “uma vez
realizada, independe de uma prestação, é captada diretamente”, enquanto o
serviço “é a própria operação ensejadora do desfrute”.
No que tange ao poder de polícia, a diferença é ainda mais nítida. Se o
Estado, quando presta serviço público, pretende oferecer uma comodidade à
sociedade, com o poder de polícia, ao contrário, ele tem o dever de limitar “o
exercício da liberdade e da propriedade dos administrados, a fim de compatibilizá-las com o bem estar-social.” Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello:
Enquanto o serviço público visa a ofertar ao administrado uma utilidade,
ampliando, assim, o seu desfrute de comodidades, mediante prestações
feitas em prol de cada qual, o poder de polícia, inversamente (conquanto
para a proteção do interesse de todos), visa a restringir, limitar, condicionar, as possibilidades de sua atuação livre, exatamente para que seja possível um bom convívio social. Então, a polícia administrativa constitui-se em uma atividade orientada para a contenção dos comportamentos
dos administrados, ao passo que o serviço público, muito ao contrário,
orienta-se para a atribuição aos administrados de comodidades e utilidades materiais. (MELLO, 2005, p. 647).
Conforme já ressaltamos, em determinados momentos a legislação não
adota a conceituação restrita de serviços públicos, outorgando ao Estado,
sob a roupagem de serviço público, matérias que melhor se enquadrariam
como poder de polícia, se considerarmos o conceito restrito de Celso Antônio
Bandeira de Mello. É o caso específico do Decreto-Lei n.º 6.017, de 2007, que
regulamentou a Lei n.º 11.107/2005. Ao tratar dos objetivos dos Consórcios
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Públicos e convênios de cooperação, estabelece, em seu art. 2.º, determinadas
atividades que não se enquadram no conceito restrito de serviço público, tal
como estabelecido pelo citado autor. É o caso dos objetivos consorciais ou
conveniais de proteção ao meio ambiente (inciso VI), proteção ao patrimônio urbanístico, paisagístico ou turístico comum (inciso IX), entre outros.
Adotando-se o conceito restrito de serviços público, ambas as hipóteses se
enquadram como poder de polícia.
Ocorre que o art. 241 da Constituição da República, cuja regulamentação é feita pelos citados instrumentos normativos, ao tratar dos Consórcios e
convênios estabelece como objetivo a “gestão associada de serviços públicos”.
Adotando-se interpretação sistemática, pode-se dizer que o legislador utilizou
o conceito amplo de serviço público, no qual estão abarcados os conceitos de
obra pública e poder de polícia, tratados de forma apartada pelo citado jurista.
Portanto, voltamos a afirmar que a definição do que vem a ser ou não serviço
público é conforme estabelecido pelo ordenamento jurídico.
No entanto, ainda que se adote o conceito amplo de serviço público,
pelo menos duas atividades estatais podem ser claramente diferenciadas, já
que enquadradas em regimes jurídicos diferentes: os serviços públicos, acima
conceituados, regidos pelo Direito Público (regime jurídico administrativo) e
a atividade econômica, subsidiária, regida pelo Direito Privado (com normas
derrogadoras de Direito Público).
Portanto, não se confundem serviço público e atuação do Estado na
atividade econômica. As atividades que, por força constitucional, foram outorgadas à iniciativa privada, e às quais o Estado se dedicará apenas em caráter subsidiário (princípio da subsidiariedade), são consideradas atividades
econômicas, ao passo que aquelas às quais a Constituição outorgou caráter
público serão consideradas serviços públicos. (MEIRELLES, 1982, p. 1-6).
Tal como já explicitamos no início do presente capítulo, o princípio da
subsidiariedade rege a atuação do Estado na atividade econômica. O Estado
deve se dedicar àquelas atividades que são precipuamente destinadas a ele,
especialmente as voltadas à promoção da dignidade humana e do bem estar
social. As atividades econômicas, quando necessárias, serão assumidas supletivamente, e apenas na medida certa para atender às expectativas sociais, sem
retirar da iniciativa privada a livre concorrência que lhe foi outorgada por
norma constitucional.
No momento em que atua na esfera econômica, o Estado perde parte
de suas prerrogativas (e também de algumas sujeições), adotando regime
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jurídico diferenciado para que não esteja em desigualdade com os demais
agentes do mercado. Objetiva-se, com isso, admitir a interferência do Estado
na economia, sem, contudo, ferir princípios a ela aplicáveis, especialmente o
da livre concorrência.
3. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
A Constituição de 1988 estabeleceu, em seu art. 1.º, como um dos objetivos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana.
Também seu art. 3.º, ao tratar dos objetivos fundamentais, elevou a tal categoria a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), bem como a promoção do bem de todos
(inciso IV).
Para que esses objetivos fundamentais da República sejam alcançados, é
necessária a atuação direta do Estado na vida dos cidadãos, prestando serviços públicos e lhes garantindo vida digna. Por isso, a Constituição delegou ao
Estado o dever da prestação de serviços públicos por meio do art. 175, inserido
no Título que trata da ordem econômica e financeira. Não o fez sem antes deixar
claro que no caso das atividades econômicas, a atuação do Estado será subsidiária ao mercado (art. 173). Adotou, portanto, expressamente o princípio da
subsidiariedade em matéria de atuação do Estado na ordem econômica.
A partir dos referidos dispositivos legais, é possível perceber que a
Constituição adotou a distinção entre serviço público e atividade econômica.
O primeiro é dever do Estado, e sua prestação à população é corolário do
princípio da dignidade da pessoa humana, que necessita da prestação dos serviços públicos para sua plena eficácia. A exploração de atividade econômica
pelo Estado, por outro lado, é subsidiária.
A Constituição não estabeleceu, de forma taxativa, quais são os serviços por ela considerados públicos. Como já dissemos, também não há um
conceito universal de serviço público. Há atividades que ela própria coloca
como sendo competência da Administração Pública, elevando-as à condição
de serviço público, e outras que a legislação ordinária o fará. Neste mister,
como não há uma clara distinção entre o que é serviço público e o que é atividade econômica, deve-se ter como referência o grau de imprescindibilidade
daquela determinada atividade para a população ao qualificá-la como pública
(HARGER, 2007, p. 49).
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Assim, foi a legislação ordinária, precipuamente, que ficou encarregada
de estabelecer o rol de serviços públicos dos quais o Estado deterá a titularidade. No entanto, esta titularidade não significa exclusividade na prestação
direta destes serviços. O Estado poderá, nos termos do art. 175, prestar tais
serviços públicos diretamente (seja pela própria Administração Direta ou
mediante criação de nova pessoa jurídica), ou mediante delegação a outrem
(concessão ou permissão de serviços).
Na verdade, embora o art. 175 permita a prestação indireta de serviços
públicos por delegação, a Constituição estabelece, em outros dispositivos,
um núcleo básico de serviços públicos que obrigatoriamente devem ser prestados pelo Estado. É que diferentemente da atividade econômica, em que o
Estado obedece ao princípio da subsidiariedade, no caso dos serviços públicos o Estado está obrigado a agir. Conforme já ressaltamos, com o declínio
do Estado Social, não houve regresso ao Estado Mínimo. O Estado Social
Democrático de Direito tem como um de seus requisitos a garantia da dignidade humana, e os arts. 1º e 3º da Constituição estabeleceram esta regra de
forma clara para o Estado Brasileiro. Assim, ele não pode se eximir totalmente
da prestação de serviços públicos, entregando tal atividade para a iniciativa
privada. Ele está obrigado, por força constitucional, a intervir diretamente na
sociedade, prestando serviços de modo a garantir vida digna aos cidadãos.
É neste sentido que Celso Antônio Bandeira de Mello divide a prestação de serviços públicos em quatro categorias (MELLO, 2006, p. 651). No
primeiro caso, os serviços públicos sequer podem ser compartilhados com a
iniciativa privada, que são os que o autor denomina de prestação obrigatória e
exclusiva, identificando entre eles os de serviço postal e correio aéreo nacional
(art. 21, X da Constituição da República de 1988).
Já os serviços de radiofusão sonora ou de sons e imagens, conforme previsto no art. 223 da Constituição, o Estado deverá prestar diretamente (dever
constitucional), e ainda, deverá concedê-los ou permiti-los, nos termos de regulamentação legal. Estes são os chamados serviços de prestação obrigatória
do Estado, em que ele é também obrigado a outorgar em concessão a terceiros.
Na terceira categoria está a prestação de serviços públicos que são livres
à iniciativa privada, mas cuja regulação não poderá ser totalmente delegada
ao mercado. Nesta categoria, estão os serviços públicos que mais se aproximam da implantação dos direitos individuais e sociais, razão pela qual a
Constituição decidiu incrementá-los com duas frentes de atuação: delegá-los
à livre iniciativa privada e obrigar o Estado, paralelamente, a prestá-los. São
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eles os serviços públicos ligados à educação (art. 205 e 209), saúde (art. 196 e
199), previdência social (art. 201 e 202), assistência social (art. 203 e 204) e de
radiofusão sonora e de sons e imagens (art. 223).
Conforme se pode observar, a Constituição estipula direitos sociais
como categorias de serviços públicos a serem prestados pelo Estado, confirmando a constatação de que o fim do Estado Social não representou retorno
ao Estado Mínimo. Trata-se, isto sim, de um Estado subsidiário, que atua nas
esferas fundamentais de promoção da dignidade da pessoa humana. Os direitos fundamentais e sociais representam área de atuação da qual o Estado não
pode se eximir, sob pena de ferir os objetivos estabelecidos pela Constituição
(arts. 1º e 3º).
Por fim, encontram-se os serviços qualificados como públicos que são
entregues à iniciativa privada, mas que, não sendo por ela prestados, ficará o
Estado obrigado a atuar. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, são todos
aqueles serviços que a Constituição não tenha estipulado como obrigação intransferível do Estado, podendo ser prestados de forma indireta. São também
denominados por alguns autores como serviços públicos não privativos.
A prestação de serviço público poderá, portanto, ser prestada diretamente pelo Estado ou mediante delegação (art. 175 da CR/88). Nesta última
hipótese, denomina-se descentralização por colaboração e reger-se-á pelo
direito privado, parcialmente derrogado por normas de direito público. Na
verdade, a prestação de serviços públicos nunca poderá deixar de sofrer influência ao menos regulatória do Estado, já que ao decidir delegar o serviço
público ainda assim ele mantém consigo o dever de regulação e fiscalização
(HARGER, 2007, p. 50). É por esse motivo que a Constituição da República
de 1988, no art. 175, parágrafo único estabelece as diretrizes que deverão ser
observadas pela Lei reguladora das delegações de serviços públicos.
A propósito, a Constituição determina que a Lei reguladora da delegação
de serviços públicos deverá estabelecer “o direito dos usuários” (art. 175, parágrafo único, inciso II) e a “obrigação de manter serviço adequado” (art. 175,
parágrafo único, inciso IV). É por meio dos serviços públicos que se buscará
alcançar os objetivos da República Federativa, a saber, a dignidade da pessoa
humana (art. 1.º, III), a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução
das desigualdades sociais (art. 3.º, III). Assim, a prestação do serviço público
deverá ter sempre o cidadão-usuário como foco, garantindo-se técnicas de
controle da correta prestação destes serviços, reservando-se ao Estado o direito de reaver a prestação do serviço (haja vista que ele detém a titularidade)
197
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
caso a empresa prestadora não obedeça aos ditames constitucionais e legais
aplicáveis.
A Lei n.º 8.987, de 1995 foi responsável por regular, atendendo determinação constitucional, a delegação de serviços públicos aos particulares.
Estabelece, em seu artigo 7º, diversos direitos dos usuários dos serviços
públicos.
Na verdade, entregar serviço público à iniciativa privada não significa
transferir sua titularidade, que continua em poder do Estado. Transfere-se tão
somente a prestação do serviço, podendo a delegação ser revogada a qualquer
tempo caso constatado o não atendimento dos seus fins precípuos, ou seja, o
oferecimento de comodidade fruível pelos cidadãos-usuários.
Outrossim, poderá o Estado, ao invés de transferir a prestação do serviço
público para a iniciativa privada, decidir prestá-los diretamente, seja por meio
da Administração Direta ou mediante criação de pessoa jurídica a quem delegará a prestação daquele determinado serviço público. Trata-se esta última
hipótese da descentralização administrativa, a ser detalhada a seguir.
4. A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA POR SERVIÇOS
– A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA
O Estado, durante algum tempo, manteve a centralização da prestação
dos serviços públicos vinculada ao seu quadro hierárquico de órgãos públicos. Com o surgimento do Estado Social, em que a Administração Pública
assumiu expressivos encargos para cumprir o seu papel de promotora do bem
estar social, a máquina administrativa, antes enxuta e reduzida às finalidades
mais restritas do Estado liberal, começou a demonstrar sinais de saturação.
(DI PIETRO, 2006, p. 68).
Assim, o Estado percebeu a necessidade de adotar o caminho da descentralização dos serviços públicos com o objetivo de melhor atendimento
aos usuários. Importa destacar que descentralização não se confunde com
desconcentração. Esta última já era fórmula conhecida da Administração
Pública, mesmo quando prestadora direta dos serviços públicos. A desconcentração mantém os serviços no âmbito da prestação direta pela Administração
Pública, havendo apenas a delegação deles a órgãos vinculados à escala hierárquica do Poder Público, sem criação de outra pessoa jurídica e nem mesmo o
repasse da tarefa à iniciativa privada.
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A teoria do órgão nos dá subsidio para diferenciá-lo das pessoas jurídicas
(CAETANO, 1977, p. 63-65). O órgão compõe a estrutura da Administração
Pública, e sem ela não tem vida própria. A pessoa jurídica, criada pelo Estado,
por outro lado, passa a ter vida própria, autônoma em suas decisões e responsabilidades assumidas.
Portanto, a desconcentração refere-se à distribuição de tarefas entre os
órgãos que compõe a Administração. Já a descentralização implica na retirada
do serviço público das mãos da Administração Pública Direta, repassando-o
para outra pessoa jurídica, seja esta criada pelo Estado com fins de desempenhar aquele serviço público específico, seja para pessoa jurídica já existente,
da iniciativa privada.
Também é importante que não se confunda a descentralização administrativa com a descentralização política. A descentralização política significa
conferir a entidades estatais autonomia política, administrativa e financeira,
o que significa outorgar-lhe inclusive autonomia para legislar, inovando no
ordenamento jurídico. Com a descentralização política, têm-se a criação de
entes federados no Estado Federal.
Já a descentralização administrativa não implica na transferência de poderes políticos a entidade descentralizada. A propósito, esta modalidade de
descentralização convive perfeitamente com o modelo de Estado Unitário, no
qual o poder político está totalmente concentrado nas mãos do Poder Central.
A criação de nova pessoa jurídica por descentralização administrativa significa conferir-lhe autonomia administrativa e financeira, mas jamais política
(FORTINI, 2007, p. 10).
No Brasil, o Estado adotou o modelo Federal, com divisão tripartite
do poder político (União, Estados e Municípios). Cada uma das esferas da
Federação, além de prestarem serviços públicos diretamente, também pode
se utilizar da prestação indireta destes serviços, por meio da descentralização
administrativa, seja com a criação de pessoas jurídicas especializadas para
prestar públicos; seja com a colaboração dos particulares na prestação destes
serviços públicos; ou por meio da gestão associada de serviços públicos (também chamada associação público-público ou consórcios públicos).
Por deter a titularidade de determinado serviço público, conforme a
distribuição constitucional de competências, cabe ao ente federado optar por
prestar por ele próprio o serviço ou pela descentralização. Neste último caso,
abrem-se três possibilidades: a criação de pessoa jurídica para a prestação dos
serviços de forma especializada (descentralização técnica ou por serviços);
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a delegação da atribuição à iniciativa privada (descentralização por colaboração), por meio da concessão ou permissão de serviço público ou a gestão
associada de serviços públicos.
A descentralização por colaboração, conforme já expusemos, está autorizada no art. 175 da Constituição da República de 1988, que estabelece a possibilidade da prestação de serviço público diretamente “ou sob regime de concessão ou permissão”. Neste caso, a titularidade do serviço público é mantida
nas mãos do Estado, transferindo-se aos particulares, por meio de contrato ou
ato unilateral, a mera execução dos serviços. Assim, o Poder Público exercerá
um amplo controle sobre a atividade delegada, conforme exige a Constituição,
no art. 175, ao determinar a necessidade de previsão legal das hipóteses de
caducidade, fiscalização e rescisão do contrato administrativo celebrado.
A delegação por colaboração encontra-se regulada pela Lei n.º 8.987, de
1995 (Lei das Concessões e Permissões de Serviços Públicos) e pela Lei n.º
11.079, de 2004 (Lei das Parcerias Público-Privadas), que estabelecem todo
o regime jurídico da prestação de serviços pela iniciativa privada mediante
concessão e permissão.
Ao lado da delegação por colaboração, encontra-se como alternativa
para o ente que detém a titularidade dos serviços públicos a descentralização administrativa por serviços. Neste caso, o ente criará uma nova pessoa
jurídica para a prestação do serviço, vinculada à estrutura da Administração
Indireta.
José Cretella Júnior, ao tratar do conceito de Administração Indireta,
entende que ela é composta por toda entidade pública ou privada que presta
serviço público em nome do Estado de forma descentralizada, incluindo-se neste conceito autarquias, fundações (públicas e privadas, prestadoras
de serviços públicos), empresas públicas, sociedades de economia mista,
bem como as permissionárias e concessionárias de serviços públicos, e até
mesmo as pessoas físicas que exerçam serviço público outorgando pela União
(CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 20). Reconhece, no entanto, que se trata de
conceito que não encontra amparo no direito positivo, já que o Decreto-Lei
n.º 200, de 25 de fevereiro de 1967, em seu art. 4º, inclui como entidades da
Administração Indireta apenas as autarquias, empresas públicas e sociedades
de economia mista. No entanto, insiste o autor que, pela “natureza das coisas”,
Administração Indireta é toda entidade, pública ou privada, prestadora de
serviços públicos.
Celso Antônio Bandeira de Mello explica essa divergência constatada
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por José Cretella Júnior entre a “natureza das coisas” e o direito positivo na
caracterização da Administração Indireta a partir do critério utilizado pelo
legislador. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 200 não se valeu de critério quanto
à natureza da atividade, conforme pretende José Cretella Júnior (prestação de
serviços públicos) e nem mesmo quanto ao regime jurídico dos sujeitos (de
direito público ou privado), mas utilizou-se do critério orgânico ou subjetivo.
Assim, a partir do Decreto-Lei n.º 200, integram a Administração Indireta
brasileira as pessoas jurídicas criadas pelo Estado para comporem o aparelho estatal, não se incluindo neste caso as pessoas jurídicas de direito privado
prestadoras de serviços públicos que não tenham sido criadas pelo Estado.
Por isso, Administração descentralizada, no Direito Brasileiro, não é sinônimo de Administração Indireta, conforme pretende José Cretella Júnior, já que
dentro daquele primeiro conceito também deverão ser incluídas estas entidades que, embora não façam parte do aparelho estatal (e não integrem portanto
o conceito de Administração Indireta), prestam serviços públicos de forma
descentralizada (MELLO, 2006, p. 143).
A autorização constitucional para que União, Estados e Municípios constituam entidades descentralizadas que formam, portanto, a Administração
Pública Indireta, encontra-se no art. 37, XIX da Constituição de 1988.
Segundo o dispositivo, será necessária lei específica para criação da autarquia,
e para autorização da criação de empresas públicas, sociedades de economia
mista e fundações,
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, este processo de descentralização envolve as seguintes características:
1. Reconhecimento de personalidade jurídica ao ente descentralizado;
2. Existência de órgãos próprios, com capacidade de auto-administração
exercida com certa independência em relação ao poder central;
3. Patrimônio próprio, necessário à consecução de seus fins;
4. Capacidade específica, ou seja, limitada à execução do serviço público
determinado que lhe foi transferido, o que implica sujeição ao princípio
da especialização, que impede o ente descentralizado de desviar-se dos
fins que justificaram sua criação;
5. Sujeição a controle ou tutela, exercido nos limites da lei, pelo ente
instituidor; esse controle tem que ser limitado pela lei precisamente para
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assegurar certa margem de independência ao ente descentralizado, sem
o que não se justificaria sua instituição. (DI PIETRO, 2006, p. 64).
A partir da descentralização por serviços, cria-se uma série de pessoas
jurídicas responsáveis pela prestação de serviços públicos em nome do Estado.
A reunião destas pessoas jurídicas criadas pelo Estado para prestar serviços
públicos ao lado daquelas criadas para exercer atividade econômica (obedecidas as condições estabelecidas pelo art. 173 da Constituição da República)
representa a chamada Administração Indireta Brasileira.
O Decreto-Lei n.º 200, de 25/02/1967, alterado pelo Decreto-Lei n.º
900, de 29/09/1969, pelo Decreto-lei n.º 2.299, de 21/11/1986 e pela Lei n.º
7.596, de 10/04/1987, é o instrumento regulador da Administração Pública
Indireta no Brasil. Embora aplicável apenas no âmbito da União, reconhece
a doutrina que os conceitos por ele estabelecidos são típicos das entidades da
Administração Indireta, razão pela qual são aplicados de forma genérica.
Além das citadas formas de prestação de serviços públicos no Brasil (descentralização por colaboração e descentralização por serviços), a Constituição
da República de 1988, a partir da Emenda Constitucional n.º 19, de 1998,
também denominada emenda da Reforma Administrativa, passou a prever
a possibilidade de os entes federados se associarem para a gestão de serviços
públicos (art. 241).
A Constituição adotou o modelo de federalismo cooperativo democrático, por meio do qual as entidades federadas devem, sem abrir mão de sua
autonomia política, administrativa e financeira, estabelecer políticas de cooperação visando atender ao bem estar da população. Muitas vezes a ação coordenada surge como a alternativa mais indicada, especialmente pela necessidade de buscar economia de escala quanto aos gastos públicos, considerando
que a prestação de alguns serviços públicos demanda altos investimentos,
mais bem aproveitados se destinados a um maior número de pessoas.
No Direito Brasileiro, a previsão legal de adoção das entidades de consórcios públicos e convênios de cooperação veio regular prática que já se fazia
presente na realidade de grande parte dos Estados e Municípios do País. Tais
entidades são consideradas instrumentos que viabilizam a prestação associada de serviços públicos, dando vida ao federalismo cooperativo democrático
almejado pela Constituição da República de 1988.
Segundo Luciano de Araújo Ferraz, a descentralização administrativa
por colaboração, com delegação de serviços públicos à iniciativa privada,
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embora seja, numa sociedade de mercado, a primeira alternativa que se apresenta, não deve ser a única. A prestação de serviços públicos de forma associada entre entes federados é alternativa que se demonstra eficaz e atenta
ao princípio da economicidade, sendo inclusive recomendada pela Comissão
da União Europeia, em seu Guia sobre diretrizes para as parcerias Públicoprivadas (FERRAZ, 2007).
5. O PAPEL DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA NO BRASIL
Conforme já destacamos, a descentralização administrativa pode ter
duplo objetivo: a prestação de serviços públicos e o exercício de atividade
econômica.
Ao criar entidade para exercer atividade econômica, desde que respeitados os limites constitucionais previstos no art. 173 da Constituição (atuação
em caráter subsidiário), o Estado garantirá a estas entidades regime jurídico
diferenciado, para que elas possam concorrer com a iniciativa privada em
igualdade de condições, conforme estabelece o § 1.º do citado dispositivo
constitucional.
A Lei a que faz alusão o citado dispositivo constitucional ainda não foi
editada, o que é lamentável, já que no plano legislativo as entidades criadas
pelo Estado para exercer atividade econômica acabam por possuir tratamento praticamente idêntico às pessoas jurídicas criadas pelo Estado para
prestar serviços públicos, em franco paradoxo com o que determina o texto
constitucional.
Ao lado das pessoas jurídicas criadas para exploração de atividade econômica, compõem também a Administração Indireta Brasileira as pessoas
jurídicas criadas para prestação de serviço público (descentralização administrativa por serviços). Tais pessoas jurídicas poderão deter personalidade de
direito público ou de direito privado.
As pessoas jurídicas com personalidade de direito público são basicamente as autarquias e fundações públicas. A Lei n.º 11.107, de 2005, que regulamenta o art. 241 da Constituição da República possibilitou também a criação de Consórcios Públicos com personalidade jurídica de Direito Público.
As pessoas jurídicas que poderão ser criadas com personalidade jurídica de Direito Privado são as chamadas Empresas Estatais e as Fundações de
Direito Privado. As Empresas Estatais se subdividem em Empresas Públicas e
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Sociedades de Economia Mista. Também a Lei n.º 11.107, de 2005 estabeleceu
a possibilidade de Consórcios Públicos serem criados com personalidade jurídica de direito privado. Às pessoas de direito público aplica-se o regime jurídico de direito público, muito próximo ao aplicável à Administração Direta,
e às pessoas jurídicas de direito privado, o regime de direito privado, parcialmente derrogado por normas de direito público. Importa ressaltar que, ao
contrário do que possa parecer, as pessoas de direito privado não se afastam
totalmente do regime jurídico de Direito Público.
Ao tratar da distinção entre o regime jurídico das pessoas de direito público e das pessoas de direito privado instituídas pelo Estado, Maria Sylvia
Zanella Di Pietro assevera que a diferença primordial entre uma e outra está
no fato de que as pessoas de direito público têm todas as prerrogativas e sujeições do regime jurídico administrativo dos órgãos da Administração Indireta,
enquanto as de direito privado só possuirão aquelas expressamente previstas
em Lei (DI PIETRO, 2007, p. 395).
Importante destacar que as pessoas jurídicas de direito privado, seja qual
for a roupagem que utilizem, ao prestarem serviços públicos sujeitam-se à
derrogação parcial do direito privado por normas de direito público. Isto porque a tarefa de prestar serviços públicos tem o condão de colocar a entidade
(seja pública ou privada) em posição de desequilíbrio em relação aos particulares em prol do bom desempenho do mister público, possuindo sujeições e
atributos especiais para tanto.
6. DIFERENÇAS ENTRE O REGIME JURÍDICO DE
DIREITO PÚBLICO E O REGIME DE DIREITO PRIVADO
NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELA
ADMINISTRATIVA INDIRETA NO BRASIL
As entidades de direito público que prestam serviço público são as autarquias e fundações públicas, enquanto as de direito privado são as empresas
estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) e as fundações
de direito privado.
Em qualquer caso, estamos a falar de entidades que prestam serviços
públicos e que possuem, portanto, uma série de prerrogativas e sujeições comuns, típicas do regime jurídico de direito administrativo:
a) A obrigatoriedade de realizar licitações e celebrar contratos administrativos, de acordo com as normas gerais de licitações e contratos
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aplicáveis à Administração Direta;
b) A proteção especial dos bens destinados à prestação de serviços públicos, sendo insuscetíveis de usucapião e direitos reais, inalienáveis
e imprescritíveis;
c) Controle Estatal, abrangendo o controle interno pelo Poder
Executivo, e o controle externo pelo Poder Legislativo, auxiliado
pelo Tribunal de Contas (art. 49, X, 70 e 71);
d) Responsabilidade civil objetiva por danos causados a terceiros, nos
termos do art. 37, § 6.º da Constituição da República;
e) Necessidade de realização de concurso público para contratação de
pessoal;
f) Não estão sujeitas à falência.
No entanto, algumas diferenças são possíveis de serem detectadas quanto ao regime jurídico aplicável às empresas estatais constituídas com personalidade jurídica de direito privado, ainda que prestadoras de serviços públicos,
a saber:
a) Regime de pessoal trabalhista, seguindo as normas da Consolidação
das Leis do Trabalho – CLT;
b) Regime tributário equiparado às empresas da iniciativa privada, não
detendo a prerrogativa da imunidade tributária recíproca estabelecida pelo art. 150, VI, a, ao contrário das autarquias e fundações
públicas;
c) São consideradas concessionárias de serviços públicos, nas hipóteses em que não possuírem capital totalmente público (sociedade de
economia mista) ou na hipótese de prestarem serviços a outro ente
federativo que não o que a criou, hipótese em que deverá celebrar
contrato de programa, nos termos do art. 13 da Lei n.º 11.107, de
2005.
Conforme se pode observar, são muitas as semelhanças entre
Empresas Estatais prestadoras de serviços públicos e as demais entidades
da Administração Indireta prestadoras de serviços públicos (autarquias e
fundações públicas). Isto ocorre porque o regime jurídico estabelecido pela
Constituição para estas empresas, comumente chamado regime jurídico híbrido, possui várias regras de direito público que derrogam o direito privado. Assim, o regime a elas aplicável muito se aproxima do regime jurídico
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administrativo/de direito público.
E de outra forma não poderia ser. Se até as empresas privadas, quando
prestam serviços públicos, sujeitam-se a regime jurídico diferenciado, com
várias normas de direito público que derrogam o direito privado, dando ao
serviço público tratamento diferenciado, quanto mais as empresas criadas
pelo Estado para prestação de serviço público.
As principais diferenças do regime jurídico de direito público e de direito privado na prestação de serviços públicos pela Administração Indireta está
exatamente no regime de trabalho e tributário aplicável a cada qual. Nas empresas estatais, o regime tributário não recebe as prerrogativas estabelecidas
pelo art. 150, VI, a (imunidade recíproca) e, portanto, rege-se de acordo com
as mesmas normas estabelecidas para a iniciativa privada.
No que tange ao regime de trabalho, as empresas estatais, por se constituírem como pessoas jurídicas de direito privado, são regidas pela Consolidação
das Leis do Trabalho. Já no caso das pessoas jurídicas de direito público aplica-se o chamado regime jurídico único. 2
O serviço público é o grande instrumento de ação do Estado. É por meio
dele que o Estado concretiza os anseios dos cidadãos, realizando os objetivos
da República Federativa do Brasil insculpidos no art. 1º e 3º da Constituição.
Conforme já ressaltamos, não se pode prescindir da existência do Estado, especialmente em matéria de implantação de direitos humanos.
Sem serviços públicos estruturados, pautados por normas públicas cogentes e um regime jurídico que lhes garanta a prestação contínua, tempestiva
e eficiente, não é possível falarmos em “dignidade da pessoa humana”, “sociedade livre, justa e solidária”, e nem mesmo em erradicação da pobreza e da
marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, valores estes
tão caros ao texto constitucional.
Assim, o Direito Administrativo, ciência voltada para o estudo dos instrumentos que viabilizam a ação estatal, não pode fechar os olhos à realidade
do serviço público e às demandas advindas da sociedade. O Estado não pode
mais enclausurar-se em um mundo diferente da sociedade, vivendo apenas
das respostas que a velha máquina administrativa lentamente tenta apresentar
2
Embora a Constituição tenha sido alterada pela Emenda Constitucional n.º 19, de 1998, em
seu art. 39, com a tentativa de acabar com o regime jurídico único (admitindo-se, portanto, a convivência de regime de emprego público e estatutário no âmbito de um mesmo ente da federação),
tal alteração foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal (ADI 2135-4), razão pela qual
permanece a adoção ao regime jurídico único.
206
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à população. É preciso partir em busca de novos mecanismos, que certamente
passam pelas novas parcerias e arranjos interfederativos. Vivemos a época da
Administração Pública concertada, que convida a sociedade e o mercado para
colaborar na implantação dos direitos fundamentais, sociais, econômicos, difusos e coletivos. É preciso que os modelos já prontos se adaptem às novas
realidades.
Descentralizar, na sociedade atual, é palavra de ordem. O Estado já demonstrou não suportar sozinho o peso das demandas sociais de uma nova
sociedade que já não espera mais passivamente pelos seus direitos, mas está
diuturnamente a bater às portas do Estado em busca deles. Por isso, seja por
meio da descentralização por colaboração (parcerias com a iniciativa privada),
seja por meio da descentralização por serviços (parcerias público-público), é
preciso que o Estado responda com eficiência às demandas sociais através de
serviços públicos que efetivamente atendam aos anseios da coletividade.
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Rio de Janeiro: Forense, 1977.
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Horizonte: Fórum, 2009.
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12.FERRAZ, Luciano de Araújo. Parceria Público-Público: contrato de programa e execução de serviços públicos municipais por entidade da Administração Indireta Estadual.
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Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 10, maio/junho/julho, 2007. Disponível na
internet: HTTP://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em 15/03/2010.
13.FORTINI, Cristiana. Contratos Administrativos. Belo Horizonte: Editora Fórum,
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14.GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na Constituição de 1988. 5ª edição. São
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17.MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36.ª edição. São Paulo:
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19.MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. A Regulação e universalização dos serviços públicos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.
Recebido em: 18/09/2014
Aprovado em: 20/10/2014
208
DA POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO
DE ATOS TERRORISTAS PELO
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
HASSAN MAGID C. SOUKI1
RESUMO
Diante do recrudescimento do terrorismo internacional neste início de
século e da resposta, muitas vezes, à margem do Direito Internacional, dada
por alguns Estados a tal flagelo, pretende-se, no presente artigo, analisar a
possibilidade do Tribunal Penal Internacional se manifestar acerca de atos
que podem ser qualificados como terroristas, ainda que não haja definição
acordada de tal conduta em um instrumento internacional.
Palavras-chave: Terrorismo. Jurisdição Internacional. Tribunal Penal
Internacional. Direito Internacional.
ABSTRACT
In face of escalating international terrorism in the beginning of the century
and the response many times contrary international law by some states to this
crime, it is intended, in this article, examine the possibility of the International
Criminal Court manifest with respect to acts which may be classified as terrorists, even without a concept of such conduct in an international instrument.
Keywords: Terrorism. International Jurisdiction. United. International
Criminal Court. International Law.
1. INTRODUÇÃO
Antes de se adentrar na discussão central do presente artigo, necessário
salientar que uma das maiores dificuldades ao se debater questões relativas ao
1
Mestre em Direito Internacional e Comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor
do Centro Universitário UNA e da Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogado.
209
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terrorismo se assenta justamente na ausência de uma definição inequívoca e
amplamente aceita desse fenômeno. A variedade de atos que podem ser englobados em tal conceito e a heterogeneidade da própria sociedade internacional – da qual resultam diferentes percepções existentes sobre o que constitui o terrorismo-fazem com que a tipificação de tal delito em um instrumento
geral seja tida pelos estudiosos do Direito Internacional como praticamente
impossível.
De fato, verifica-se que o termo “terrorismo” não é neutro, sendo abordado, geralmente, a partir de perspectivas com um alto conteúdo político e
ideológico. Neste sentido, adverte GUILLAUME (2004) que:
[...] o termo ‘terrorismo’ evoca, em linguagem corrente, uma violência extrema, vítimas inocentes, um clima de angústia. Ele remete ao fanatismo e
à barbárie. Desde então, ele é freqüentemente utilizado para desqualificar o
adversário e mobilizar a opinião pública a seu encontro. Devido a este fato,
torna-se difícil defini-lo sem condenar ou absolver, como testemunham os
debates concernentes à ação dos movimentos de libertação nacional e de
secessão ou as discussões sobre o terrorismo de Estado.
Em virtude da já referida falta de consenso na sociedade internacional
acerca de uma definição do terrorismo, tanto no âmbito das Nações Unidas
quanto em âmbito regional, tem-se utilizado a prática de incriminar de forma
setorial, ou seja, em tratados específicos, certos atos que podem ser qualificados como terroristas. Em tais instrumentos internacionais, em vista das
dificuldades apontadas, não são encontradas definições do termo, sendo o
terrorismo, dessa forma, abordado em função da ação praticada, seus objetivos e consequências.
Não obstante as dificuldades decorrentes da ausência de uma tipificação
adequada, o recurso às jurisdições internacionais, especificamente o Tribunal
Penal Internacional, pode se revelar um importante instrumento de combate
ao terrorismo internacional, evitando a impunidade dos autores de tais atos e
a adoção pelos Estados de procedimentos unilaterais de represália, garantindo, assim, o respeito aos direitos humanos mais básicos e assegurando a manutenção da paz e da segurança internacionais. É este o tema que se pretende
desenvolver.
Todavia, as dificuldades enfrentadas para a instituição do Tribunal Penal
Internacional e o papel que ele pode desempenhar no combate ao fenômeno
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terrorista, não serão devidamente compreendidos sem um indispensável estudo das precedentes etapas evolucionárias da jurisdição penal internacional,
notadamente no tocante às contribuições decorrentes da criação e dos julgamentos realizados pelos tribunais militares de Nuremberg e Tóquio e pelos
tribunais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e Ruanda.
2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Verifica-se que a instituição de uma instância penal internacional foi
pela primeira vez sugerida pelo suíço Gustave Moynier, que, horrorizado ante
as atrocidades cometidas durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, propôs
a criação de um tribunal para impedir violações da Convenção de Genebra de
1864 e julgar os responsáveis por elas. (MELLO, 2004)
Constava em tal proposta, apresentada em 03 de janeiro de 1872 durante
uma reunião do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, dentre outros pontos, que (i) o tribunal seria uma instituição permanente que se ativaria automaticamente em caso de guerra, (ii) o Presidente da Confederação Suíça, por
sorteio, indicaria três julgadores procedentes de Estados signatários neutros, e
os beligerantes elegeriam outros dois, sendo que, na existência de mais de dois
beligerantes, os que fossem aliados escolheriam um só julgador, (iii) se um
dos Estados signatários neutros que tivesse designado um julgador se tornasse
beligerante durante a guerra, seria procedida nova eleição, mediante sorteio
para substituir tal juiz, (iv) o tribunal não disporia de uma sede permanente, a
não ser que os cinco julgadores de reunissem o quanto antes possível em uma
localidade eleita provisoriamente pelo presidente da Confederação Suíça, (v)
os juízes decidiriam entre si o lugar em que se reuniriam (o que permitiria
que o tribunal pudesse reunir-se onde fosse mais conveniente aos acusadores
e testemunhas), bem como os detalhes da organização do tribunal e do procedimento pertinente, (vi) o Estado demandante desempenharia o papel de
acusador, sendo admitidas, todavia, a apresentação de denúncias pelos governos interessados, (vii) deveriam ser definidas as infrações e as correspondentes
punições em um documento separado. (viii) todos os Estados signatários, particularmente os beligerantes, deveriam cooperar para a solução do conflito (ix)
cada caso particular deveria ser julgado separadamente (vedando, dessa forma,
julgamentos e sanções coletivas) (x) poderia o tribunal fixar uma indenização a
ser paga pelos danos causados com a conduta dos beligerantes. (HALL, 1998).
211
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Apesar de tal proposta não ter despertado interesse dos Estados nacionais e ter sido qualificada de pouco realista (caindo, inclusive, no esquecimento, posto que sequer o Comitê Internacional da Cruz Vermelha fez referência
a ela em suas declarações ante o Comitê preparatório das Nações Unidas para
a instituição de um Tribunal Penal Internacional), sua importância é patente,
uma vez que se constituiu na primeira manifestação séria de redação de estatuto de um tribunal penal internacional permanente.
A idéia da criação de um Tribunal Penal Internacional somente ressurgiu após o término da Primeira Guerra Mundial, tendo nascido do repúdio às
atrocidades cometidas durante tal conflito. De fato, contrariando o otimismo
inicial na Europa, a guerra se revelou uma grande catástrofe, com um número
de mortos jamais visto, ataques sistemáticos que envolviam até mesmo a população civil e a utilização de armamentos novos e altamente destrutivos. Em
1919, foi constituída, por iniciativa dos Estados Aliados, uma comissão para
apreciar a “responsabilidade dos autores da guerra”, que recomendou a punição das pessoas acusadas de crimes de guerra e a constituição de um tribunal
para julgar tais indivíduos. O Tratado concluído em Versalhes pelas potências
aliadas e a Alemanha no dia 28 de junho do mesmo ano2 previa, em seu artigo
227,3 a criação de um tribunal internacional4 para julgar o Kaiser Guilherme
II por “ofensas contra a moralidade internacional e a santidade dos tratados”.
(MELLO, 2004).
Em 16 de janeiro de 1920, os Aliados encaminharam uma petição à
Holanda, onde o ex-imperador havia se refugiado, sustentando a solicitação
de extradição, dentre outros motivos, na “cínica violação da neutralidade da
Bélgica e de Luxemburgo, o bárbaro e impiedoso sistema de reféns, as deportações em massa, o rapto das moças de Lille arrancadas de suas famílias e
2
Ratificado pela França em 10 de janeiro de 1920.
3
“As potências aliadas e associadas acusam Guilherme II de Hohenzollern, ex-imperador da
Alemanha, por ofensa suprema contra a moral internacional e a autoridade sagrada dos tratados.
Um tribunal especial será formado para julgar o acusado, assegurando-lhe garantias essenciais
do direito de defesa. Ele será composto por cinco juízes, nomeados por cada uma das potências, a
saber: Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão.
O tribunal julgará com motivos inspirados nos princípios mais elevados da política entre as nações,
com a preocupação de assegurar o respeito das obrigações solenes e dos engajamentos internacionais,
assim como da moral internacional. Caberá a ele determinar a pena que estimar que deva ser aplicada.
As potências aliadas e associadas encaminharão ao governo dos Países Baixos uma petição solicitando a entrega do antigo imperador em suas mãos para que seja julgado”. (BAZELAIRE e CRETIN,
2004).
4
212
Composto por cinco juízes dos EUA, França, Inglaterra, Itália e Japão.
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entregues sem defesa às piores promiscuidades, a responsabilidade pela morte
de 10 milhões de homens na flor da idade”. (BAZELAIRE, CRETIN, 2004)
Todavia, com a recusa da Holanda em entregar o Kaiser, o artigo 227 do
Tratado de Versalhes nunca foi aplicado, o que levou os Aliados a abandonar
a idéia de uma Corte Internacional para julgá-lo. Na verdade, havia uma preocupação maior em salvaguardar a paz na Europa, tendo em vista todas as
tensões do pós-guerra e suas querelas mal resolvidas que, fatalmente, acabaram por levar à eclosão de uma Segunda Grande Guerra. (SILVA, 2005) Não
obstante, apesar de nunca ter saído do papel, a afirmação de uma concepção
jurídica nova, segundo a qual os autores de crimes de guerra devem responder na justiça por seus atos, apresentou um enorme progresso para o Direito
Internacional. De fato, pode-se afirmar que, apesar de não trazer nenhum
efeito concreto, a proposta constante no Tratado de Versalhes representou a
primeira pedra assentada na construção de uma justiça internacional penal
(BAZELAIRE, CRETIN, 2004).
O fracasso do Tratado de Versalhes, entretanto, não sepultou a idéia do
estabelecimento de um sistema internacional de justiça penal. Ao contrário,
vários estudos foram feitos acerca de tal tema, principalmente no período
entre as duas grandes guerras mundiais. Entre os partidários da criação de
uma jurisdição penal internacional a grande discussão que se desenvolvia era
sobre se esta deveria ser uma corte autônoma criada por uma convenção internacional ou uma câmara especial dentro da Corte Permanente de Justiça
Internacional, órgão judiciário da Liga das Nações então existente. Todavia,
os textos produzidos no período entre-guerras não foram suficientes para
impedir o início da Segunda Guerra Mundial. Não obstante, verifica-se que
permitiram a elaboração de uma base jurídica mais elaborada acerca do julgamento de criminosos de guerra, o que culminou na instalação dos Tribunais
Militares Internacionais em Nuremberg e Tóquio (ASCENCIO, 2004).
2.1. A INSTITUIÇÃO DOS TRIBUNAIS MILITARES INTERNACIONAIS
A discussão acerca do destino que seria dado aos líderes nazistas após o
fim da Segunda Guerra Mundial foi travada durante todo o conflito, tendo os
Aliados e os representantes dos governos da Europa no exílio se encontrado
por diversas vezes para deliberar quais providências adotar contra aqueles. A
idéia de submeter à justiça os atos dos chefes nazistas, embora em um primeiro
momento não se revelasse evidente, foi apresentada em várias oportunidades,
213
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constando na Declaração dos Aliados, firmada em Londres no dia 12 de julho
de 1941 por representantes de 14 países; na Declaração Conjunta de Roosevelt
e Churchill de 14 de agosto de 1941 e na Declaração de St. James Palace de 13
de janeiro de 1942, tendo se desenvolvido nas conferências de Moscou e de
Teerã em 1943, de Yalta e de Potsdam em 1945.
A declaração de Moscou, firmada em 30 de outubro de 1943 pelo Premier
soviético Josef Stalin, pelo Presidente norte-americano Franklin Delano
Roosevelt e pelo Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill, estabeleceu
os princípios que seriam adotados pelas Nações Unidas para julgar os criminosos de guerra a partir de 1945, sendo marco preparatório para a formação
do Tribunal de Nuremberg. Foi publicada em 1º de novembro de 1943, tendo
nela sido propalado o repúdio às atrocidades nazistas, bem como a intenção
de levar seus perpetradores a julgamento.
Dois modos de repressão são apresentados nitidamente na Declaração
de Moscou. Em primeiro lugar, tem-se a repressão local, para os crimes individualizados, cometidos em um território específico, sendo que os acusados
seriam julgados pelas autoridades do lugar onde os delitos tivessem sido praticados e com base no direito local. O segundo modelo de repressão diz respeito aos chamados grandes criminosos de guerra, cujos delitos não tinham
definição geográfica específica. Foi este o modelo utilizado nos julgamentos
de Nuremberg. (GOLÇALVES, 2001)
Na Conferência de Yalta, realizada entre 04 e 11 de fevereiro de 1945, os
chefes de governo da Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética manifestaram sua intenção de submeter todos os criminosos de guerra a justo e rápido
castigo, sendo que, na prática, aguardavam para tanto apenas o término do
conflito, que então já se anunciava. (FERRO, 2002).
Com o término da 2ª Guerra Mundial e a derrota do regime nazista,
representantes das quatro grandes potências que se sagraram vencedoras
(Estados Unidos, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Grã-Bretanha
e França), reuniram-se em 08 de agosto de 1945, na Conferência de Londres,
onde celebraram acordo destinado a estabelecer as regras destinadas a
orientar o processo e julgamento dos “maiores criminosos de guerra das
potências Européias do Eixo”. O artigo 1º de tal acordo, denominado de
“Carta de Londres,” previa a criação de um Tribunal Militar Internacional,
que acabou por ser conhecido como “Tribunal de Nuremberg”, em virtude
de seus julgamentos terem sido realizados na cidade alemã de Nuremberg.
(JAPIASSÚ, 2004).
214
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Segundo o Estatuto anexo ao Acordo de Londres,5 o tribunal seria
composto por quatro juízes e quatro suplentes de nacionalidade de cada
um dos países signatários (art. 2º), tendo sido indicados: Geoffrey Lawrence
e Normam Birkett – suplente (Reino Unido), Francis Biddle e John Parker
– suplente (Estados Unidos), Henri Donnedieu de Vabres e Robert Falco –
suplente (França) e Iona T. Nikitcehnko e Alexander F. Volchkov - suplente
(União Soviética). Tais juízes eram incontestáveis (art. 3º) e deveriam decidir
por maioria de votos, prevalecendo, no caso de empate, o voto do presidente
(art. 4). Ainda, ao decidir, deveriam os juízes externar as razões pelas quais
estavam condenando ou absolvendo um acusado (art. 26), podendo aplicar
aos condenados, ainda que não houvesse previsão da sanção cabível a cada
delito, pena de morte (art. 27).
O Estatuto estabeleceu a competência do Tribunal para o julgamento dos
crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, cometidos por pessoas que agiram por conta dos países europeus do Eixo, definindo-os em seu artigo 6º. Cabe ressaltar que precisamente neste ponto recai uma
das mais contundentes críticas feitas ao Tribunal de Nuremberg: o desrespeito
ao princípio do nullum crime sine lege, vez que os crimes tipificados em seu
estatuto e pelos quais se pretendia julgar os nazistas não eram previstos como
tal durante o seu cometimento.
Assim, de 20 de novembro de 1945 a 1ª de outubro de 1946 o Tribunal
Militar Internacional de Nuremberg julgou os 22 principais dirigentes do III
Reich sobreviventes do conflito. Ao final do julgamento, doze acusados foram
condenados à morte, sete à prisão perpétua ou temporária e três restaram
absolvidos (JAPIASSÚ, 2004).
É interessante observar ainda que foram julgadas também sete organizações acusadas de atividades criminosas,6 ou seja, pessoas jurídicas, sendo
ao final três absolvidas7 e as demais banidas. O objetivo de se colocar pessoas
jurídicas na condição de criminosas foi o de, com tal atitude, demonstrar a
condenação do Estado alemão.
5
O texto do Estatuto pode ser consultado em http://dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/
nuremberg/anexo. html>. Acesso em 15 de setembro de 2014.
6
As sete organizações são os órgãos dirigentes do NSDAP – Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães, a SS (Unidade especial de proteção aos líderes do Partido), a SA (Força de assalto do Partido), a SD (Serviço de segurança) o Gabinete do Reich, o Alto Comando da Wehrmacht
e a Gestapo (Polícia secreta do Estado).
7
Foram absolvidos o Gabinete do Reich, o Alto Comando da Wehrmacht e a SA.
215
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Apesar de ter sido considerado a maior conquista a favor da repressão
dos crimes internacionais, o Tribunal de Nuremberg foi alvo de inúmeras críticas, que, de acordo com MELLO (2004), podem ser resumidas nas seguintes:
1) a violação do princípio nullum crimen nulla poena sine lege; 2) ser um
verdadeiro “tribunal de exceção” constituído apenas pelos vencedores; 3) que
a responsabilidade do Direito Internacional é apenas do Estado e não atinge
o indivíduo; 4) que os aliados também tinham cometido crimes de guerra;
5) que os atos praticados pelos alemães eram simples atos ilícitos, mas não
criminosos, 6) que não houve instrução criminal.
Por sua vez, a idéia da criação de um Tribunal Militar Internacional para
julgar os atos praticados durante a 2ª Guerra Mundial pelos japoneses foi sedimentada em 1º de dezembro de 1943 na Conferência do Cairo, quando representantes chineses, britânicos e norte-americanos firmaram uma declaração,
manifestando seu objetivo de por um fim à agressão japonesa e seu desejo
de levar a julgamento os criminosos de guerra nipônicos. Na Conferência
de Potsdam, de 1º de agosto de 1945, tais objetivos foram ratificados, tendo
as três potências aliadas declarado que uma estrita justiça deveria sancionar
todos os criminosos de guerra, especialmente aqueles que tivessem cometido
crueldades contra prisioneiros.
Pouco tempo depois, em 02 de setembro de 1945, no ato de rendição japonesa, foram definidas todas as questões relativas à prisão e ao tratamento que
seriam impostos aos criminosos de guerra. Concomitantemente, a Comissão de
Crimes das Nações Unidas recomendou o estabelecimento de um tribunal militar internacional para julgar os crimes e atrocidades praticados pelos japoneses.
Nestas bases, foi adotado pelo Departamento de Estado Norte-americano um
instrumento visando à prisão e à sanção dos criminosos de guerra no Extremo
Oriente, sendo notificados o Comandante Supremo das Forças Aliadas, General
Douglas MacArthur e oito Estados (Austrália, Canadá, China, França, Reino
Unido, Nova Zelândia, Países Baixos e União Soviética) para a organização do
tribunal militar (BAZELAIRE, CRETIN, 2004).
Na Conferência de Moscou, da qual participaram os Ministros das
Relações Exteriores da China, Estados Unidos, Reino Unido e União
Soviética, restou decidido que o tribunal teria sua sede em Tóquio. O Estatuto
do Tribunal foi aprovado em 19 de janeiro de 1946 e regulamentado pelo
General MacArthur em 25 de abril de 1946, tendo iniciado suas atividades em
29 de abril do mesmo ano e as encerrado mais de dois anos e meio depois, em
12 de novembro de 1948.
216
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De acordo com JAPIASSÚ (2004), o Tribunal Internacional Militar para
o Extremo Oriente teve composição mais ampla do que o de Nuremberg,
sendo integrado por onze juízes provenientes das seguintes nações: Austrália
(Willian F. Webb – juiz presidente), Canadá (E. Stuart Macdougal), China (Juao Mei), Estados Unidos (John P. Higgins), Filipinas (Delfin Jaranilla), França
(Henri Bernard), Reino Unido (Lord Patrick), Países Baixos (Bernard Victor A.
Roling), Nova Zelândia (Erima Harvey Northeroft), URSS (I. M. Zaryanov) e
Índia (Rahabinod M. Pal). Ressalte-se que este último Estado, apesar de não ter
participado da Segunda Guerra Mundial, indicou um juiz na condição de país
neutro. Tais juízes deveriam decidir por maioria de votos, prevalecendo, no caso
de empate, o voto do presidente (art. 4). Ainda, deveriam externar as razões
pelas quais estavam condenando ou absolvendo um acusado (art. 17), podendo
aplicar aos condenados, mesmo sem qualquer previsão acerca da sanção cabível
a cada delito, pena de morte ou outra que considerassem justa (art. 16).
O Estatuto estabeleceu a competência do Tribunal para o julgamento
dos crimes contra a paz, crimes contra as convenções de guerra e crimes contra a humanidade, definindo-os, quase com as mesmas palavras constantes
no Estatuto de Nuremberg, em seu artigo 5º. Evitou-se a previsão do complô
como crime autônomo, tendo em vista as controvérsias enfrentadas por tal
tipificação no tribunal europeu.
Assim, de 03 de maio de 1946 a 12 de novembro de 1948 o Tribunal
Militar Internacional para o Extremo Oriente julgou 25 criminosos de guerra.
Ao final do julgamento, diferentemente do ocorrido em Nuremberg, nenhum
acusado foi absolvido. Por outro lado, também de forma diferente do acontecido no tribunal europeu, as decisões prolatadas não foram unânimes, revelando o desacordo dos componentes do tribunal quanto à sorte dos acusados
(JAPIASSÚ, 2004).
As sentenças foram prolatadas em 12 de novembro de 1948, tendo sido
proferidas sete condenações à morte e dezoito à prisão perpétua ou temporária. As penas capitais foram executadas em 23 de dezembro do mesmo ano,
sendo os condenados enforcados na prisão de Sugamo, em Tóquio. Os condenados à pena de prisão foram libertados entre 1954 e 1955, fato que pode
ser atribuído ao contexto político internacional da época, a saber: a chegada
de Mao Tse-Tung ao poder na China em 1949 e o início da Guerra Fria. Cabe
ressaltar que todos os prisioneiros eram notadamente anticomunistas.
Além de críticas semelhantes àquelas feitas contra seu equivalente europeu, o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente recebeu outras
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igualmente severas: (i) o principal e primeiro dos criminosos de guerra, o
imperador Hirohito, não foi julgado, (ii) vários criminosos de guerra japoneses foram libertados pelos norte-americanos sem a realização de qualquer
processo e (iii) os médicos da unidade 731 (que realizaram experiências em
seres humanos, causando a morte de cerca de 9.000 pessoas) não foram levados a julgamento e continuaram a exercer a medicina livremente no Japão ou
se aposentaram sem nenhum problema (BAZELAIRE, CRETIN, 2004).
2.2. A INSTITUIÇÃO DOS TRIBUNAIS AD HOC PELO CONSELHO DE
SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS
Somente depois de transcorridos quase cinqüenta anos da instituição dos
tribunais militares pelas potências vencedoras do segundo conflito mundial,
veio a sociedade internacional testemunhar uma nova etapa evolutiva da jurisdição penal internacional: a criação de dois Tribunais Penais Internacionais
ad hoc pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. 8
O primeiro de tais tribunais foi o Tribunal Penal Internacional para a
Ex-Iugoslávia, instituído com a finalidade de levar a julgamento pessoas acusadas do cometimento de crimes de extrema gravidade no território da antiga
República Socialista Federal da Iugoslávia.
Para que se possa compreender a origem dos conflitos e massacres cometidos a partir de 1991 na antiga Iugoslávia, importante destacar que tal Estado
era organizado em uma federação de seis repúblicas (Sérvia, Croácia, Eslovênia,
Bósnia-Hezergovna, Montenegro e Macedônia) que conviveram em relativa harmonia até a morte do Marechal Tito, ocorrida em 1980. A partir de tal data os
antigos ódios raciais decorrentes da composição multiétnica do país ressurgiram
intensamente, agravando-se em 1987 em virtude da crise econômica decorrente
do colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu (JAPIASSÚ, 2004).
Com a declaração de independência da Eslovênia e a Croácia, seguidas
pela Macedônia e pela proclamação de autonomia da Bósnia, iniciou-se a
guerra civil. Neste período, começaram a ser divulgadas informações acerca
das seguidas violações ao direito internacional humanitário cometidas pelos
8
O hiato de quase cinqüenta anos entre tais jurisdições internacionais pode ser explicado
pelas circunstâncias políticas que envolveram o mundo durante o período da Guerra Fria. De fato, a
divisão dos Estados em dois blocos antagônicos, o recuo profundo da noção de interesse comum e
o equilíbrio de poder entre os dois campos impediram qualquer atuação neste sentido. Foi preciso a
queda do Muro de Berlim em 1989 para que as condições políticas permitissem a evocação de novos
projetos de jurisdições penais internacionais (ASCENCIO, 2004).
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sérvios (massacres, execuções sumárias, torturas, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, estupros etc.), caracterizadoras de uma evidente “limpeza étnica” levada a efeito contra as demais etnias (MAIA, 2001).
O conflito somente teve seu fim em 1999 depois da intervenção da
OTAN e com Resolução 1244 (1999) que fez de Kosovo uma “província da
Iugoslávia” sobre protetorado da ONU (MAIA, 2001). Estima-se que de cerca
de duzentas mil pessoas morreram no decorrer conflito, sendo este considerado o mais grave ocorrido em solo europeu após a Segunda Guerra Mundial.
Em virtude da verdadeira carnificina ocorrida no território da ex-Iugoslávia a partir de 1991, o Conselho de Segurança das Nações Unidas veio a
instituir, através da Resolução 827, datada de 25 de maio de 1993, o Tribunal
Penal Internacional, ad hoc, para a antiga Iugoslávia, estabelecendo sua sede
em Haia, na Holanda.
De acordo com o Estatuto do Tribunal, tem ele competência para processar e julgar as pessoas responsáveis por violações graves às Convenções de
Genebra de 1949 (art. 2), violações das leis ou dos costumes de guerra (art. 3º)
e pelo cometimento dos crimes de genocídio (art. 4º) ou contra a humanidade
(art. 5º), no território da antiga República Federativa Socialista da Iugoslávia,
incluindo seu espaço terrestre e aéreo e suas águas territoriais, no período
iniciado em 1ª de janeiro de 1991 (art. 8º).
Um traço característico do Tribunal Penal Internacional para a ExIugoslávia é que ele apresenta competência concorrente com as das cortes
nacionais sobre os ilícitos previstos em seu Estatuto, podendo afirmar sua
primazia sobre estas e assumir qualquer investigação nacional ou qualquer
procedimento em qualquer fase processual, desde que seja demonstrado o
interesse da justiça internacional.
Embora passível de críticas, como no que tange a sua criação pelo
Conselho de Segurança, em detrimento da Assembléia Geral, percebe-se que
o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia constitui uma evolução no
que tange ao estabelecimento da jurisdição penal internacional. Com efeito,
fato que merece ser destacado é a indubitável imparcialidade de tal jurisdição,
posto que ao ser instituída pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas,
não pode ser tida, evidentemente, como um “tribunal de vencedores”, o que
garante a legitimidade de suas decisões. Podem ser ainda apontados como
avanços alcançados pelo Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia:
(i) o desenvolvimento dogmático da doutrina da responsabilidade por atos
de comando; (ii) a impossibilidade de julgamentos in absentia, importante
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garantia do devido processo legal; (iii) a previsão das violações sexuais como
crime contra a humanidade; e (iv) a previsão de recurso contra as decisões
proferidas pelas Câmaras de Primeira Instância.
A segunda jurisdição internacional ad hoc criada pelo Conselho
de Segurança da Organização das Nações Unidas foi o Tribunal Penal
Internacional para Ruanda, instituído para julgar pessoas acusadas de atos
extremamente graves cometidos em tal país no ano de 1994, após um atentado que resultou na morte do presidente Juvenal Habyarimana.
Tomando tal atentado como pretexto, a guarda presidencial e as milícias
extremistas hutus, denominadas de interahamwe, imediatamente instalaram
barricadas nas ruas da capital e começaram a responsabilizar os tutsis e a minoria hutu moderada. Logo o massacre evoluiu para toda Ruanda, sendo que,
em poucas semanas, o exército, as milícias hutus e até a população civil exterminaram pelo menos quinhentas mil pessoas, provocando o êxodo em massa
de refugiados para os países vizinhos (BAZELAIRE, CRETIN, 2004).
Tais acontecimentos desencadearam a reação da RPF, que partiu para o
contra-ataque, lançando ofensiva contra as tropas do Governo, milícias e população hutu. Seu avanço em direção a Kigali resultou em outro meio milhão
de mortes e em novo êxodo, dessa vez de hutus, em direção ao Zaire, Burundi
e Tanzânia. Na região leste do Zaire, a ONU organizou campos de refugiados,
que chegaram a abrigar cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas.
Em 23 de junho de 1994 foram enviados a Ruanda, em virtude de uma
Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois mil e quinhentos soldados franceses, apesar da oposição da FPR e da Organização da
Unidade Africana. Em 4 de julho, a FPR retomou a capital Kigali e, pouco depois, a última cidade que estava nas mãos da tropas governamentais, Gisenyi.
Um governo de união foi estabelecido, tendo Pasteur Bizimungu assumido a
presidência (BAZELAIRE, CRETIN, 2004).
Com base em um relatório da Comissão de Direitos Humanos, que
testificou o genocídio cometido em Ruanda tanto por hutus quanto tutsis,
bem como em virtude de uma solicitação do próprio governo ruandense, o
Conselho de Segurança das Nações Unidas acabou por deliberar pela criação
de uma nova instância penal internacional ad hoc, para que os perpetradores
das atrocidades cometidas em tal Estado fossem levados á justiça e responsabilizados por seus atos.
Assim, através da Resolução 955, de 08 de novembro de 1994 foi instituído o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, sendo estabelecido que
220
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este teria sua sede em Arusha, na Tanzânia.9 De acordo com o Estatuto do
Tribunal, tem ele competência para processar e julgar as pessoas responsáveis
por genocídio (art. 2), crimes contra a humanidade (art. 3º) e por violações
das Convenções de Genebra e de seu Segundo Protocolo Adicional (art. 4º),
perpetrados no território de Ruanda, incluindo seu espaço terrestre e aéreo
e suas águas territoriais, bem como por cidadãos ruandenses no território
de Estados vizinhos, no período compreendido entre 1º de Janeiro e 31 de
dezembro de 1994 (art. 7º).10
Da mesma forma que seu equivalente europeu, o Tribunal Penal
Internacional para Ruanda apresenta competência concorrente com as das
cortes nacionais sobre os ilícitos previstos em seu Estatuto, podendo afirmar
sua primazia sobre estas e assumir qualquer investigação nacional ou qualquer procedimento em qualquer fase processual, desde que seja demonstrado
o interesse da justiça internacional (art. 8º do Estatuto).
Por fim, cabe ressaltar que, se por um lado o Tribunal Penal Internacional
para Ruanda recebeu críticas semelhantes àquelas formuladas contra o
Tribunal para a Ex-Iugoslávia (o que se explica em virtude de ambos possuírem uma estrutura organizacional bastante semelhante), por outro, sua
contribuição para o desenvolvimento da jurisdição penal internacional, especialmente no que diz respeito aos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e nas questões pertinentes à obediência hierárquica,
não pode ser olvidada (JAPIASSÚ, 2004)
3. POSSIBILIDADE DO JULGAMENTO DE ATOS
TERRORISTAS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Como última e mais importante etapa da evolução da jurisdição penal internacional, o Tribunal Penal Internacional começou a ser esboçado em 1989,
quando a Assembléia Geral da ONU, após solicitação de Trinidad e Tobago,
solicitou à Comissão de Direito Internacional a elaboração de um projeto de
9
O estabelecimento da sede do Tribunal na Tanzânia decorreu da falta de infra-estrutura em
Ruanda e, principalmente, da necessidade de se evitar eventuais pressões e influência política do
governo ruandês.
10
Importa salientar que o Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi a primeira e ainda
única instância internacional autorizada a processar e julgar criminosos envolvidos em um conflito
armado doméstico, ou seja, não-internacional.
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estatuto para o estabelecimento de uma corte penal permanente. Todavia, os
trabalhos não avançaram, tendo em vista divergências ideológicas decorrentes da Guerra Fria. Em 1993, as Resoluções 47/33 e 48/31 da Assembléia Geral
das Nações Unidas retomaram o assunto, sendo novamente solicitado à CDI
a feitura de um projeto de estatuto, que foi apresentado em 1994 no Sexto
Comitê da 49ª Sessão da Assembléia Geral. Esta, através da Resolução 49/53,
determinou a criação de um comitê ad hoc para revisar o projeto do estatuto,
aberto a todos os Estados membros. O Comitê ad hoc se reuniu em 1995 em
duas seções de duas semanas cada uma na sede das Nações Unidas, tendo
surgido muitas controvérsias nas discussões travadas, o que gerou a divisão
dos Estados, que começaram a se reunir separadamente e a constituir blocos
de interesse (MAIA, 2001).
Com a conclusão do mandato do Comitê ad hoc, a Assembléia Geral
convocou em dezembro de 1995 um Comitê Preparatório (Prep. Com.) para
a criação do TPI. Tal Comitê reuniu-se em seis períodos de sessões no espaço
de três anos. Nas reuniões levou-se em conta o trabalho desenvolvido pela
Comissão de Direito Internacional, bem como a experiência dos tribunais ad
hoc, sendo realizados vários estudos e discutidos vários temas. Ao final das
reuniões chegou-se ao anteprojeto final que seria submetido à Conferência
de Roma.
No período compreendido entre 15 e 17 de junho de 1998, nas dependências da FAO (Food and Agriculture Organization of United Nations),
em Roma, deu-se a Conferência Diplomática de Plenipotenciários para
o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional,11 convocada pela
Resolução 52/160 da Assembléia Geral das Nações Unidas. O Estatuto foi
aprovado em 17 de julho de 1998 com 120 votos a favor e 7 contrários (Estados
Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia), tendo havido 21
abstenções. Em 08 de dezembro, a Assembléia Geral, através da Resolução
53/105, convocou novamente um Comitê preparatório para a elaboração dos
documentos adicionais previstos no Estatuto. Com a superação do número
exigido de 60 ratificações, o que ocorreu no dia 11 de abril de 2002 durante
11
Participaram da Conferência 160 Estados, 17 Organizações Intergovernamentais, 14 Agências
das Nações Unidas e 124 Organizações Não-Governamentais.
222
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
uma cerimônia especial na sede das Nações Unidas,12 o Estatuto de Roma entrou em vigor, tendo o Tribunal Penal Internacional começado a funcionar no
dia 1º de junho de 2002.
Uma das discussões centrais ocorridas durante os trabalhos do Comitê
Preparatório e da Conferência de Roma foi relativa à definição de quais crimes
deveriam ser incluídos na jurisdição do Tribunal Penal Internacional, como
estes seriam definidos e quais as regras a serem aplicadas em relação a eles.
Ao final dos trabalhos restou previsto que a competência material do tribunal
se restringiria aos crimes contra a humanidade, guerra, agressão e genocídio,
tendo ficado de fora uma série de delitos previstos na legislação internacional, como, por exemplo, o terrorismo internacional.13 Tal circunstância pode
ser atribuída à intenção de que somente os crimes mais amplamente reconhecidos pela sociedade internacional fossem abarcados pela jurisdição do
Tribunal, para que, assim, se atraísse o maior número de signatários possível.
De fato, conforme SUNGA (2000):
A hesitação de governos em conferir ao Tribunal Penal Internacional
jurisdição para crimes definidos em termos ambíguos explica porque a
‘ameaça de agressão’, ‘intervenção’, ‘dominação colonial’ e terrorismo não
foram incluídos no art. 5. A excessiva vagueza de definição incrementaria por demais os abusos do Ministério Público.
Segundo CASSESE (2001), com relação ao terrorismo, sua não inclusão no Estatuto do TPI decorreu de várias questões levantadas durante
a Conferência de Roma, como, por exemplo, (i) a ausência de consenso
acerca do fenômeno terrorista e, notadamente, as implicações de tal noção
com relação aos movimentos de libertação nacional, (ii) o desacordo acerca da noção de terrorismo de Estado, (iii) a desnecessidade da integração
12
Os países que aderiram ao estatuto em tal cerimônia foram: Bósnia e Herzegovina, Bulgária,
Camboja, República Democrática do Congo, Irlanda, Jordânia, Mongólia, Nigéria, Romênia e
Eslováquia. O Brasil assinou o tratado em 07 de fevereiro de 2000 e depositou o instrumento de
ratificação em 20 de junho de 2002.
13
Importa ressaltar, contudo, que o projeto inicial proposto pela CDI previa a jurisdição do
Tribunal Penal Internacional no tocante ao terrorismo. A inclusão de tal delito no Estatuto do TPI
permaneceu em discussão até a última semana da Conferência de Roma, tendo sido excluído da
competência do Tribunal em virtude da já analisada ausência de uma definição clara e amplamente
aceita do fenômeno terrorista.
223
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
do crime de terrorismo no Estatuto,14 (iv) a falta de gravidade suficiente de
alguns atos terroristas, o que não justificaria sua inclusão na competência
do Tribunal, (v) a eventual politização do Tribunal, (vi) a maior eficácia
dos mecanismos nacionais no combate do terrorismo do que a jurisdição
internacional etc.
Contudo, em que pese tal circunstância, pode-se vislumbar a possibilidade de que certos atos terroristas sejam julgados pelo Tribunal Penal
Internacional dentro de uma diferente roupagem, ou seja, sob outra nomenclatura. Com efeito, segundo BRANT (2005):
[...] de uma forma geral, embora se reconheça a aplicação do principio da reserva legal na sua vertente do nullun crimem nulla pena sine
lege, nada impede que estes crimes possam encontrar uma tipificação
no que veio a ser esboçado como crimes de guerra ou crimes contra
a humanidade.
Assim, desde que a conduta praticada se amoldasse a uma das tipificações constantes no Estatuto de Roma não haveria óbice, no campo jurídico,
de que o responsável fosse levado a julgamento perante o Tribunal Penal
Internacional,15 sem que, com isso, fosse desrespeitado o princípio da legalidade, reconhecido no próprio corpo do Estatuto de maneira bastante detalhada:
uma pessoa somente pode ser punida por um ato que era codificado ao tempo
de seu cometimento (lex scripta), de forma suficientemente clara (lex certa) e
que não pode ser estendido por analogia (lex stricta) (AMBOS, 2000). Cabe
ressaltar, contudo, que o próprio Estatuto de Roma prevê que o reconhecimento deste princípio não afetará a tipificação de uma conduta como crime
nos termos do direito internacional, independentemente das disposições nele
constantes, reconhecendo a validade do direito costumeiro e dos princípios
gerais de direito.
Importa esclarecer, por fim, que ao descrever, de forma pormenorizada os delitos de competência do Tribunal Penal Internacional, os Estados
14
Para um grupo de Estados, a utilização da força militar seria freqüentemente preferível à
resposta oferecida pela justiça criminal, para outro, a criminização do terrorismo e sua adequação
jurisdicional deveriam ser precedidas de uma ação contrária as suas distintas causas.
15
De acordo com CASSESE (2003), o terrorismo é um fenômeno que pode tomar diversas formas
e manifestações. Assim, não surpreendentemente, pode o mesmo se amoldar a várias categorias de
crimes, dependendo das circunstâncias nas quais o ato terrorista for perpetrado.
224
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
participantes da Convenção de Roma nada mais fizeram do que formular
modelos abstratos de comportamentos proibidos.16 Neste sentido, limitaram e
individualizaram condutas gravemente lesivas aos direitos reconhecidos pela
comunidade internacional com o fito de possibilitar a punição dos responsáveis e a prevenção de novos crimes. Tem-se então que, uma vez se amoldando o fato praticado pelo agente à descrição abstrata dos delitos constante no
Estatuto de Roma17 poderá aquele ser julgado pelo Tribunal, pouco importando o nome que se possa dar ao delito por ele perpetrado.
3.1. TERRORISMO COMO CRIME DE GUERRA
Conforme JAPIASSÚ (2004), a idéia de se reprimir crimes de guerra
não é recente, todavia, a efetiva internacionalização do tratamento de tais
crimes somente ocorreu após os julgamentos de Nuremberg, ganhando
foros de juridicidade com as quatro Convenções de Genebra, de 12 de
agosto de 1949.
O Estatuto de Roma define os crimes de guerra em seu artigo 8º, em
previsões que podem ser divididas em quatro grupos: (i) infrações graves às
Convenções de Genebra de 1949 em conflitos internacionais, (ii) outras violações graves das leis e usos aplicáveis nos conflitos armados internacionais
dentro do marco do Direito Internacional, (iii) infrações graves às Convenções
de Genebra de 1949 em conflitos não-internacionais e (iv) outras violações
graves das leis e usos aplicáveis dentro do marco do Direito Internacional nos
16
A descrição abstrata de comportamentos proibidos, de forma pormenorizada, individualizando suas características e elementos próprios, distinguindo-os uns dos outros, no sentido de
torná-los inconfundíveis é denominada de tipo penal.
17
A adequação do fato praticado pelo agente ao tipo penal é denominada de tipicidade.
225
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
conflitos armados não-internacionais.18
Percebe-se, dessa feita, que o elemento comum a todos os crimes de
guerra é a necessária existência de um conflito armado, seja de caráter internacional ou não-internacional. Ainda, ao tipificar condutas praticadas em
conflitos armados internos, o Estatuto de Roma ampliou o conteúdo dos referidos delitos, adotando, todavia, salvaguardas com o intuito de defender o
direito dos Estados de manter sua ordem interna, sua soberania e unidade, e
evitar que a prática isolada de crimes de guerra viesse a ser objeto de julgamento pelo TPI (MAIA, 2000).
Feitas tais observações, pode-se considerar que certos crimes de guerra
tipificados no Estatuto de Roma podem vir a ser identificados também como
atos terroristas, desde que preenchidas certas condições, a saber: (i) sejam cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte
18
“Artigo 8o Crimes de Guerra
1. O Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos
como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga
escala desse tipo de crimes.
2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”:
a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos
seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra
que for pertinente: i) Homicídio doloso; ii) Tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as
experiências biológicas; [...]
b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no
âmbito do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii)
Dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja bens que não sejam objetivos militares; [...]
c) Em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, as violações graves do artigo
3o comum às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos
atos que a seguir se indicam, cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham
ficado impedidos de continuar a combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo: i) Atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as
suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura; ii) Ultrajes à dignidade da pessoa,
em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; iii) A tomada de reféns; iv) As
condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como
indispensáveis. [...]
e) As outras violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm
caráter internacional, no quadro do direito internacional, a saber qualquer um dos seguintes atos: i)
Dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios, material, unidades e veículos
sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de
Genebra, em conformidade com o direito internacional; [...]”. Disponível em < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm >. Acesso em 04 de setembro de 2014.
226
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
de uma prática em larga escala desse tipo de crimes, (ii) sejam praticados
no âmbito de um conflito armado internacional ou não internacional e (iii)
possuam a finalidade de semear o terror, ou seja, devem ser cometidos com
o objetivo de intimidação e com a intenção e espalhar o medo e a violência.19
Quanto a este último requisito, assevera CASSESE (2003) que:
O actus reus é um ataque ou uma ameaça de ataque a civis (ou objetos
civis), ou a adoção de outras medidas intimidatórias destinadas a espalhar
o medo e a angústia entre civis. O elemento subjetivo deve ser a intenção de executar atos ilegais ou ameaças ou violência contra civis. Todavia,
tal intento deve sempre vir acompanhado de uma especial intenção, qual
seja, causar terror (medo, ansiedade) entre civis. É evidente nas previsões
relevantes que espalhar ameaça ou medo entre civis deve ser o ‘objetivo
primordial’ dos atos ilegais ou ameaças de violência. Interessantemente,
em um caso recente (Galic) trazido perante o Tribunal Internacional para
a antiga Iugoslávia, o Promotor sustentou a responsabilidade do acusado
por ilegalmente infligir terror contra civis como um crime de guerra.
Assim, de acordo com BRANT (2005), desde que preenchidas as condições anteriormente referidas a prática de atos terroristas pode ser julgada pelo
Tribunal Penal Internacional sob o nomem juris de crime de guerra. Neste sentido, pode-se fazer referência às seguintes disposições contidas no artigo 8º do
Estatuto de Roma: (i) homicídio doloso; (ii) o ato de causar intencionalmente
grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde; (iii) destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; (iv) dirigir
intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; (v) dirigir intencionalmente ataques a bens
civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares; (vi) atacar ou bombardear,
por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam
19
Com relação à prática de atos terroristas no decorrer de um conflito armado tem-se que o art.
33 da Quarta Convenção de Genebra de 1949 proíbe expressamente a utilização de medidas de terrorismo contra as pessoas protegidas. Neste mesmo sentido, o art. 4 (d) (d) do Segundo Protocolo
Adicional de 1977 prevê que são proibidos, em qualquer momento ou lugar, a prática de atos de
terrorismo contra pessoas que não participem nas hostilidades. Tais disposições legais tiveram seu
alcance estendido pelo artigo 51 (2) do Primeiro Protocolo Adicional de 1977 e pelo artigo 13 (2)
do Segundo Protocolo Adicional de 1977 que proíbem “atos ou ameaças de violência cujo objetivo
principal seja espalhar o terror na população civil”.
227
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
defendidos e que não sejam objetivos militares; (vii) destruir ou apreender bens
do inimigo, a menos que tais destruições ou apreensões sejam imperativamente
determinadas pelas necessidades da guerra; (viii) atos de violência contra a vida
e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura; (ix) ultrajes à dignidade da pessoa, em
particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; (x) tomada de
reféns; (xi) dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis
que não participem diretamente nas hostilidades; (xii) dirigir intencionalmente
ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em
conformidade com o direito internacional e (xiii) destruir ou apreender bens do
inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam.
3.2. TERRORISMO COMO CRIME CONTRA A HUMANIDADE
Importa salientar que, de acordo com MAZZUOLI (2005):
Os crimes contra a humanidade têm sua origem histórica no massacre
provocado pelos turcos contra os armênios, na Primeira Guerra Mundial,
qualificado pela Declaração do Império Otomano (feita pelos governos
russo, francês e britânico, em maio de 1915, em Petrogrado) como um
crime da Turquia contra a humanidade e a civilização.
Ao longo de sua história relativamente recente, a expressão “crimes contra a humanidade” tem evoluído de maneira pouco ordenada, sendo que, segundo MAIA (2001) a primeira definição de modo articulado, muito embora
a noção do delito já existisse como parte do direito consuetudinário internacional, foi delineada somente na Carta do Tribunal de Nuremberg e posteriormente incorporada na Carta de Tóquio e na Allied Contril Council Law n. 10.
Após o Tribunal de Nuremberg, os crimes contra a humanidade não
foram definidos de maneira uniforme em nenhum documento internacional,
sendo que, nos dizeres de JAPIASSÚ (2004):
[...] tal fato se deu pela falta de uma convenção internacional dedicada à
matéria, como ocorreu com o genocídio, apesar de haver referência a crimes contra a humanidade em 11 documentos internacionais referentes à
matéria, entre 1948 e 1998, além de outros 41 instrumentos, que vão de
1943 a 1993, e que tratam de matéria correlata, como tortura e apartheid.
228
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Dessa forma, muito embora considerado um dos delitos centrais, a definição
dos crimes contra a humanidade foi tema de diversas discussões na Conferência
de Roma, tendo sido estas geradas principalmente em virtude dos inúmeros problemas da noção constante na Carta de Nuremberg, dentre os quais seu atrelamento forçado a seu “irmão siamês,” os “crimes de guerra” (SUNGA, 2000).
Contudo, não obstante as referidas dificuldades, os crimes contra a humanidade foram definidos de forma bastante clara e detalhada no artigo 7º do
Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que elenca condutas cometidas no
quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque20.
A leitura de tal artigo demonstra que neste foram enumerados certos atos
caracterizadores de crime contra a humanidade (homicídio, extermínio, escravidão, tortura, violações sexuais, perseguição por motivos políticos ou em função
de raça, cultura, religião, etnia etc.), que, de forma geral, podem ser perpetrados
por um indivíduo ou por um grupo de indivíduos no decorrer de uma empreitada levada a efeito para causar terror em uma determinada população civil.
Com efeito, de acordo com BAZELAIRE e CRETIN (2004), a atividade
desempenhada pelos grupos terroristas corresponde frequentemente à definição dos crimes contra a humanidade, pelo que questionam:
[...] não se poderia considerar, por exemplo, que a colocação reiterada de
bombas ou o lançamento de gases mortais em locais públicos constituem
20 Para os fins do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade” qualquer um
dos seguintes atos quando praticados como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra
uma população civil e com conhecimento de tal ataque:
Homicídio;
Extermínio;
Escravidão;
Deportação ou transferência forçada de populações;
Encarceramento ou outra privação grave da liberdade física, em violação às normas fundamentais
do direito internacional;
Tortura;
Estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou outros
abusos sexuais de gravidade comparável;
Perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, fundada em motivos políticos, raciais,
nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gênero, como definido no parágrafo 3º, ou outros motivos
universalmente reconhecidos como inaceitáveis conforme o direito internacional, em conexão com
qualquer ato mencionado no presente parágrafo ou com qualquer crime da jurisdição deste Tribunal;
Desaparecimento forçado de pessoas;
O crime de “apartheid”;
Outros atos desumanos de caráter similar que causem intencionalmente grande sofrimento ou
atentem gravemente contra a integridade física ou a saúde mental ou física; (...). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm >. Acesso em 04 de setembro de 2014.
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perseguição de um grupo ou de uma coletividade identificável por motivos políticos, raciais ou religiosos? Não é a mesma situação conhecida há
tanto tempo pelo País Basco espanhol e pela Irlanda do Norte?”
Acrescente-se, todavia que, de acordo com CASSESE (2003):
Atos de terrorismo podem se configurar em crimes contra a humanidade quando satisfizerem as exigências específicas destes crimes, ou seja,
quando: (i) forem parte de um ataque difundido ou sistemático contra
civis, e (ii) os perpetradores estejam cientes do fato de que seus atos criminosos são parte de uma conduta geral ou sistemática.
Tem-se então que, uma vez demonstrado que o ato terrorista preenche
certas condições, a saber: (i) for dirigido contra a população civil, (ii) assumir grandes proporções, circunstância na qual poderá ser considerado como
sendo um ataque “generalizado”, (iii) apresentar gravidade, seja por causar a
morte de um número elevado de pessoas, seja pelos meios empregados, (iv) se
amoldar a um dos crimes previstos no art. 7º do Estatuto de Roma (elementos
objetivos) e, finalmente, (v) seus autores tiverem consciência de que seus atos
fazem parte de uma conduta generalizada ou sistemática (elemento subjetivo), pode o Tribunal Penal Internacional conhecer da demanda sem que com
isso seja violado qualquer princípio reconhecido pelo Direito Internacional.
Importa ressaltar por fim que, mesmo que atualmente pareça pouco
provável, uma vez superadas as divergências acerca do conceito de terrorismo, nada impede seja este incluído no rol dos crimes referidos no art. 5º do
Estatuto de Roma em sede de revisão, podendo ser ampliada a lista das infrações constantes no referido artigo. Ademais, nada impede também que o
Tribunal Penal Internacional exerça sua jurisdição com relação a atos terroristas no caso de outros instrumentos internacionais lhe delegarem competência
para processar e julgar tal delito (treated-based crimes).
4. CONCLUSÃO
Pode-se concluir que, muito embora não exista uma definição de terrorismo em um instrumento internacional geral, o recurso às jurisdições internacionais se revelaria um mecanismo eficiente e legítimo de repressão aos atos
230
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terroristas e de salvaguarda dos direitos humanos, posto que potencialmente
apto a garantir, ao mesmo tempo, a devida punição dos autores de tais condutas, o respeito aos direitos inerentes a toda a humanidade e a manutenção da
paz e da segurança internacionais.
De fato, mesmo que não se venha lograr êxito na definição do terrorismo, percebe-se a possibilidade de que o Tribunal Penal Internacional venha
a se manifestar acerca de atos que podem ser qualificados como terroristas,
muito embora sua competência restrita faça com que os Estados olvidem o
relevante papel que tal tribunal pode desempenhar na repressão do fenômeno
terrorista, preferindo adotar medidas menos eficazes para tal mister.
Dessa forma, muito embora não esteja o terrorismo internacional previsto no Estatuto de Roma dentre os crimes de competência do Tribunal Penal
Internacional, o julgamento de atos terroristas por tal órgão é uma hipótese
que se revela possível, bastando, para tanto, que a conduta perpetrada se amolde a uma das tipificações constantes no referido instrumento internacional.
Com efeito, uma vez havendo a subsunção do fato praticado à figura típica
descrita no Estatuto do TPI, nada obsta de que o ato terrorista seja levado a
julgamento perante este, ainda que sob outra nomenclatura (crimes de guerra
e crimes contra a humanidade), sem que com isso seja violado o princípio
nullun crimen sine lege (uma vez que a infração a qual a conduta terrorista
irá se amoldar se encontra definida anteriormente na legislação) ou qualquer
outro princípio reconhecido pelo Direito Internacional.
Verifica-se, ademais que, com a tipificação do terrorismo em uma convenção internacional, tal delito poderia vir a ser incluído expressamente dentre os crimes de competência do TPI, circunstância que viria proporcionar um
combate mais amplo e eficaz à ameaça terrorista, tendo em vista a substituição
da atuação deficitária das jurisdições estatais estabelecida pelo princípio aut
dedere aut judicare previsto na maioria dos instrumentos internacionais que
tratam de atos que podem ser considerados como terroristas, por uma jurisdição internacional, menos suscetível a pressões políticas, e, portanto, com
maior capacidade de decidir a questão de forma justa e isenta.
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o princípio da complementaridade. Belo Horizonte. Del Rey, 2001. 262 p.
13. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional e as Perspectivas para a
Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Século XXI. In AMBOS, Kai. JAPIASSÚ,
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5 a 10 do Estatuto de Roma In AMBOS, Kai e CHOUKR, Fauzi Hassan (Org). Tribunal
Penal Internacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 191-219.
Recebido em: 16/09/2014
Aprovado em: 20/10/2014
232
POR UMA BIOÉTICA DIALÓGICA E INTERDISCIPLINAR
A PARTIR DO HISTÓRICO DE DESENVOLVIMENTO
DA DISCIPLINA
JURACIARA VIEIRA CARDOSO1
RESUMO
Os avanços experimentados pela ciência nos últimos setenta anos fizeram emergir questionamentos profundos sobre os limites das intervenções
humanas na saúde e na vida humana. A partir principalmente da década de
sessenta, com o relato de abusos em pesquisas científicas envolvendo seres
humanos e com o apoderamento dos direitos civis por parte da população,
as chamadas biociências tiveram seu papel duramente criticado em face aos
avanços tecnológicos. Nesse contexto, a bioética acabou surgindo como resposta a uma possível ameaça representada por estes avanços, mostrando que
a ciência havia deixado de ser concebida apenas como caminho para o florescimento humano, uma vez que podia também conduzir a desvarios. O presente artigo faz um estudo analítico dos antecedentes históricos e da criação
da bioética, com a finalidade de buscar demonstrar que a disciplina só terá
condições de cumprir os objetivos que se propôs desde sua origem, se não se
furtar ao compromisso interdisciplinar e dialógico, que hodiernamente deve
também ser entendido como a necessidade de buscar instrumentos capazes
de garantir a racionalidade e a correção material das deliberações ocorridas
no interior da disciplina.
Palavras-chave: Bioética. Histórico. Interdisciplinaridade. Dialógica.
ABSTRACT
Progress experienced by science in the last seventy years have emerged questions about the limits of human interventions in health and human life. Starting
mainly from the sixties, with reporting abuse on scientific research involving
1
Mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio de Janeiro. Doutora em Teoria do Direito
pela PUC-Minas. Autora de estudos na área da Bioética. Professora do Departamento de Direito da
Universidade Federal de Lavras e membro do Laboratório de Bioética da mesma Universidade.
233
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
human subjects and the empowerment of civil rights by the population, the biosciences had harshly criticized in the face of technological advances. In this context,
bioethics just emerging as a possible response, showing that science was no longer
conceived only to benefit the human race, it could also lead them to madness.
This article is an analytical study of the history and creation of bioethics, in order
to demonstrate that this discipline only will be able to do their objectives if being
interdisciplinary and dialogical, that mean that need to follow instruments to
ensure the rationality and correctness of resolutions that are made of.
Keywords: Bioethics. History. Interdisciplinary. Dialogical.
1. INTRODUÇÃO
Em época de grandes incertezas morais, na qual as sociedades já não
contam com um único fundamento tradicional para encontrarem as respostas
mais corretas sobre o melhor caminho a ser seguido e em que, ao mesmo
tempo, há uma oferta cada vez maior de avanços técnicos e científicos para
a manipulação da vida, da saúde, da doença e da morte, surgem inúmeros
discursos teóricos e práticos, buscando substituir as incertezas por verdades
dignas de consideração.
Nesta esteira, o discurso bioético surgiu, no início da década de 1970,
como um meio de conciliar a falta de orientação moral, de um lado, e a excessiva possibilidade de manipulação da vida e da saúde, de outro. A disciplina
pretendeu unir aos avanços tecnológicos uma reflexão ética profunda, capaz
de evitar que os excessos oriundos da ciência interferissem de modo injustificado na autocompreensão normativa dos seres humanos.
O desenvolvimento da disciplina foi rápido e, na atualidade, ela já conta
com considerável material teórico e dispõe de diferentes métodos para análise
de questões práticas envolvendo a vida e a saúde e as tecnologias a elas associadas. Entretanto, não são raras as vezes em que os pesquisadores da bioética
ofertam soluções diametralmente opostas para os difíceis dilemas que a disciplina se propõe a ajudar solucionar.
Um estudo sobre os antecedentes sociais, políticos e científicos para o surgimento de um clamor social pela criação de uma nova disciplina, capaz de unir
conhecimentos humanísticos e éticos aos avanços tecnológicos sobre a vida e
a saúde humana, bem como uma pesquisa sobre o surgimento da disciplina,
mostram quão imperiosa é a necessidade de que se fixem meios racionais para
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os debates bioéticos, que são em sua essência dialógicos e interdisciplinares.
Não se tem dúvida da complexidade que as questões bioéticas representam em contextos complexos e plurais, todavia, por si só, isto não é razão para
imaginar que suas respostas não possam ter pretensão de correção. Na sociedade pós-tradicional, a bioética deve representar um locus capaz de unir diversos
saberes em uma perspectiva abrangente e crítica. Conforme lembra Habermas
(2006, p. 70), ao se referir aos limites das intervenções humanas advindas das
técnicas genéticas e da medicina reprodutiva, as respostas corretas ainda não
podem ser dadas, todavia, a biologia, por si mesma, não tem capacidade para
dá-las. Portanto, necessariamente, precisará de auxiliares externos à própria ciência, para encontrar respostas para questões que a todos envolvem.
2. DESENVOLVIMENTO
A) CONTEXTO SOCIAL, POLÍTICO E CIENTÍFICO PARA O SURGIMENTO
DA BIOÉTICA
O surgimento de uma nova área do saber é sempre lastreado por uma
necessidade contingencial, que se mostra ao ser humano como busca de soluções para novas perguntas que se apresentam. Como não poderia deixar de
ser, com a bioética acontece o mesmo. Seu surgimento coincide com profundas modificações sociais ocorridas a partir da metade do século XX. De um
lado estão o reconhecimento do pluralismo, o desenvolvimento das tecnociências, o clamor pela efetivação dos direitos individuais e as diferenças nas
relações entre médicos e pacientes ocasionadas por estas transformações; de
outro, a exposição dos abusos em pesquisas biomédicas, principalmente nos
Estados Unidos da América e as limitações na alocação de verbas públicas
para a assistência à saúde.
A compreensão da razão do surgimento da bioética encontra forte vinculação com os eventos que antecederam o surgimento da disciplina. Aqui
se buscará apresentar os fatos de modo linear, todavia, que fique consignado
que a história não se apresenta de modo tão lógico. O esforço tem apenas
fins didáticos.
É possível afirmar que um marco inicial para o surgimento da bioética
pode ser representado pelo julgamento de Nuremberg, em 1947, instituído pelo
Tribunal Militar Americano para julgar os crimes de guerra e que desvelou os
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abusos em pesquisas com seres humanos2, levadas a cabo por médicos nazistas
nos campos de concentração alemães. A fim de julgar a questão, o Tribunal
elaborou dez regras que se tornariam parâmetros para análise dos casos envolvendo uso de seres humanos em pesquisa (CASCAIS, 2002, p, 57). Tais regras,
inicialmente concebidas apenas para aquele julgamento, acabaram por se tornar
o que hoje é conhecido como Código de Nuremberg, primeiro instrumento internacional relacionado ao consentimento dos envolvidos em pesquisas que, segundo Drane (2002, p. 71), foi uma das bases da nova bioética, ao fazer constar
a necessidade de consentimento informado para os participantes de pesquisas.
Todavia, o código encontrou pouca aplicação prática, uma vez que os profissionais de saúde eram unânimes em afirmar que tais experimentos nazistas não
haviam sido conduzidos por pessoas legalmente habilitadas, portanto, não diziam respeito às suas conduções na prática da medicina.
Outro antecedente histórico que pode ser aqui afirmado como preponderante para o desenvolvimento futuro da bioética foi a Declaração Universal
dos Direitos do Homem. Todavia, em um primeiro momento, afirma Gracia
(2004, p. 7), ela não representou grande avanço para disciplinar as práticas
biomédicas, pois as relações entre médicos e pacientes ainda se baseavam na
assimetria entre as partes, o que só começou a mudar a partir do apoderamento dos novos conceitos trazidos pelas declarações, o que só ocorreu a partir
das décadas de 1960 e 1970.
O primeiro grande salto da ciência rumo ao que hoje comumente é
chamado de ciência biomédica começou a se desenvolver a partir da década
de 1950, com a descoberta da dupla hélice do deoxyribonucleic acid (DNA)
(NEVES, 2002, p. 109) que, mais tarde, conduziria aos avanços e aos questionamentos sobre a engenharia genética. Naquele momento histórico, os
esforços da ciência ainda eram vistos como necessariamente vinculados ao
florescimento humano, portanto, incapazes de causar algum mal.
Especificamente no campo da medicina prática, em 1952, a Dinamarca
2
Os abusos em pesquisa envolvendo seres humanos sofreu significativa redução com a regulamentação do setor, mas ainda persistem, segundo Lousana (2007, p. 131-134) as fraudes em tais experimentos. Entre as fraudes mais comuns ainda existentes é possível destacar aquelas que (a) fabricam
dados; (b) modificam dados; (c) violam normas regulatórias. Sobre tais abusos em pesquisa, Shah (2008,
p. 16) escreveu um livro de título sugestivo, Cobaias Humanas, e conteúdo preocupante, no qual mostra
como pesquisas clínicas para o desenvolvimento de fármacos, notadamente destinados à Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida, foram feitos em populações do continente africano, sem que se tomassem
as devidas precauções. A autora conclui que, desde o estudo da sífilis em Tuskegee até os dias atuais, o
que se pode notar é que os abusos ocorrem sempre sobre os mais pobres e vulneráveis.
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apresentou, pela primeira vez, as técnicas de reanimação e respiração artificial, o que conduziria, mais tarde, aos questionamentos sobre o limite de seu
uso e a busca por meios para se evitar o abuso.
A partir do apoderamento dos novos conceitos apresentados pela
Declaração Universal de Direitos Humanos, na década de 1960, floresceram
os movimentos que colocavam em cheque o poder das grandes instituições,
dando ênfase a mais autonomia e igualdade, isto em todos os níveis institucionais. Com o questionamento das grandes instituições sociais, tais como a
família, a igreja e o estado, o pluralismo se apresentou de modo irreversível.
Foi neste momento que as políticas públicas do presidente norte americano John F. Kennedy abriram-se no combate à pobreza, o que aumentou os
gastos sociais do governo, bem como propiciou, a um grande número de norte-americanos, o acesso ao Seguro Social de Saúde, refletindo uma preocupação
com a justiça e com a igualdade. Do mesmo modo, lutas contra a discriminação
racial, políticas de discriminação positiva e integração racial nas escolas faziam
parte do cenário estadunidense. Em Cuba, ocorreu a Revolução Cubana e, na
América Latina e na África, cresceram os movimentos a favor de liberdade e os
movimentos feministas e de minorias (FERRER; ÁLVAREZ, 2005, p. 67-74).
Os questionamentos sobre a legitimidade das ações institucionais da década de 1960 não deixaram de fora a medicina que, após alguns implementos
tecnológicos iniciais, deixou de ser vista como paliativa e de diagnóstico, para
se tornar um poderoso instrumento de controle das enfermidades e da morte
(CALLAHAN, 2002a, p. 32). A clássica ética médica não conseguia mais responder aos desafios das modernas sociedades tecnológicas. O juramento hipocrático tinha seu fundamento no respeito devido aos deuses e a maior parte
dos professores de ética médica no contexto norte-americano, berço para o surgimento da disciplina, era formada por teólogos (DURAND, 2007, p. 9), o que
dificultava uma crítica abrangente do modelo vigente na medicina, que depositava grande poder de decisão nas mãos dos médicos e profissionais de saúde,
deixando de fora o sistema de valores daqueles submetidos a seus tratamentos.
Segundo Mainetti (2011, p. 30), tais questionamentos sobre a ética médica tradicional farão surgir, no final dos anos 1960, uma nova forma de praticar
a medicina. O cultivo do campo bioético, por filósofos, teólogos e juristas, deu
um giro na posição tradicional da medicina, passando a refletir a influência
da filosofia analítica, o sistema jurídico consuetudinário e a teologia protestante, o que possibilitaria, no futuro, a busca por uma medicina ilustrada, não
confessional e desprofissionalizada, nesse último caso, querendo refletir um
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menor controle por parte da elite deontológica disciplinar.
Assim, neste momento, com os aportes de capital para o desenvolvimento das ciências, a medicina experimentou os primeiros questionamentos
sociais sobre os limites de intervenção médica frente aos direitos civis recentemente incorporados nos discursos sociais. Callahan (2002, p. 31), um dos
precursores da bioética de origem norte-americana, afirma que, na década de
1960, houve um extraordinário progresso tecnológico na biomedicina, não
acompanhado de uma necessária reflexão ética. E foi exatamente na década
de 1960 que surgiram os primeiros relatos de pessoas estranhas à medicina
fazendo parte de processos de deliberação para a eleição de destinatários de
tratamento de saúde e de abusos em decisão médica e em pesquisa, agora
não mais na Alemanha nazista, mas sim praticados por médicos americanos,
legalmente habilitados para a arte médica.
Um desses casos ocorreu em 1961, quando já se havia desenvolvido a
técnica de diálise para tratamento de doentes renais crônicos e, com ela, um
dos primeiros questionamentos bioéticos se apresentou. Este caso, amplamente
mencionado na doutrina bioética, se refere a um artigo de Shana Alexander,
publicado na Revista Life que informava sobre a existência de um Comitê de
Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle, formado por nove pessoas,
das quais apenas duas eram médicos. O Comitê era responsável pela eleição de
critérios não médicos para o tratamento dos doentes renais naquele centro de
saúde, a fim de priorizar a alocação de recursos públicos. Aqui, pela primeira
vez, a medicina rompeu com o saber médico tradicional, admitindo que “estranhos” tomassem parte na decisão (DINIZ; GUILHEM, 2005, p. 19), certamente
por compreender que a avaliação que ali se levava a cabo não era um ato médico
em seu sentido genuíno, senão uma escolha que exigia valoração moral.
Em 1962, o escândalo sobre o uso da Talidomida® por mulheres grávidas, medicamento ainda não aprovado pelo Food And Drug Administration
(FDA)¸ órgão americano responsável pela liberação de medicamentos para
serem comercializados, causou inúmeros debates públicos. O uso do remédio
por parte de mulheres em fase de gestação acabou ocasionando o nascimento de crianças com má-formação congênita. Tal situação foi o estopim para
que, em 1964, a Associação Médica Mundial produzisse a “Declaração de
Helsinque”, que foi o primeiro instrumento a trazer claramente uma regulação
normativa para as pesquisas envolvendo seres humanos.
Todavia, tal declaração, assim como o “Código de Nuremberg”, também
não representou avanço bastante, pois, em 1966, um artigo publicado por
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Henry Beecher, citado por Diniz e Guilhem (2005, p. 19), trouxe à tona uma
realidade diversa daquela esperada: dos 22 relatos que o pesquisador havia
compulsado para a confecção de seu artigo, ele havia vislumbrado possíveis
violações éticas em pesquisas envolvendo seres humanos em cerca de um
quarto deles.
Dos casos pesquisados por Beecher, alguns têm destaque na bibliografia
bioética. No primeiro deles, conhecido como caso Brooklyn, houve a injeção
de células cancerosas em idosos senis, com a finalidade de que fossem observadas suas respostas imunológicas. Outro caso emblemático pesquisado por
Beecher foi o Willowbrook, no qual houve a injeção de vírus da hepatite em
cerca de oitocentas crianças abrigadas na Escola Estadual de Willowbrook, responsável pelo tratamento de crianças com retardo mental, a fim de se determinar o período da infecciosidade da doença (BEAUCHAMP; CHILDRESS,
2011, p. 553-554).
Para fechar a década de 1960, especificamente no ano de 1967, outro
avanço na área médica causou profundo mal-estar social e acadêmico. O cirurgião sul-africano Christian Barnard fez a primeira cirurgia de transplante
cardíaco, trazendo à tona questionamentos sobre o estado de saúde (ou de
vida) do doador do órgão. Tal acontecimento fez com que, em 1968, a Escola
de Medicina da Universidade de Havard definisse critérios para a aferição de
morte cerebral (STEPKE, 2005, p. 21-23).
Em razão dessa série de abusos, surgiram, na década de 1960, os primeiros movimentos sociais, acadêmicos e políticos que buscavam compreender
os problemas sociais advindos da tecnologia, sob uma perspectiva interdisciplinar de estudos, envolvendo a ciência, a tecnologia e a sociedade (MUÑOZ,
2003, p. 57), que passou a compreender que quanto mais a ciência e a tecnologia avançassem, mais seria preciso um profundo questionamento ético, que
não podia ser feito apenas por seus pesquisadores.
A década de 1970 avançou e deu outra mostra dos abusos em pesquisa e
também buscou meios de regulamentar as práticas biomédicas. Em 1972, foi
levado a público aquele que é considerado um marco do abuso em pesquisa
envolvendo seres humanos, principalmente porque já havia regulações sobre
tais práticas, as quais foram sumariamente ignoradas. Nesse caso, conhecido
como Tuskegee, descobriu-se que quatrocentos negros foram submetidos a uma
pesquisa clínica que, em alguns casos, chegou a durar quarenta anos, da qual
não sabiam ser parte, cujo objetivo era a avaliação da evolução da sífilis, doença
para a qual já havia medicação disponível (penicilina) e que foi propositalmente
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não administrada nos sujeitos da pesquisa (STEPKE, 2005, p. 23-24).
A fim de responder aos abusos, o congresso norte-americano, em 1974,
promulgou a lei National Research Act, criando uma comissão, formada por
integrantes de diversos segmentos sociais, que tinha a finalidade de estudar
as questões éticas relacionadas com as pesquisas envolvendo seres humanos.
Após quatro anos de trabalho, em 1978, a Comissão Nacional para Proteção
de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental publicou o
Relatório Belmont (Ethical principles and guidelines for the protection of human
subjects of research), que trouxe os três princípios éticos fundamentais para se
levar a cabo tais pesquisas. Eram eles: respeito à autonomia das pessoas, justiça e beneficência, os quais, mais tarde, se tornariam os elementos básicos da
clássica obra de Beauchamp e Childress, Princípios de Ética Biomédica (2011),
um marco para o desenvolvimento da disciplina.
Ainda na década de 1970, as desorientações morais trazidas pelos implementos tecnológicos na vida e na saúde humanas fizeram com que desaguasse
no sistema judiciário o primeiro caso emblemático envolvendo manutenção artificial da vida. Karen Ann Quilan, em 1975, então com 22 anos, deu entrada no
hospital em estado de coma irreversível. Os pais da jovem solicitaram ao médico
responsável que desligasse o respirador artificial, e ele se recusou. Ingressaram,
então, na justiça e tiveram sua pretensão recusada em primeira instância.
Apelaram da decisão e a Suprema Corte de New Jersey autorizou o desligamento da respiração artificial, desde que houvesse uma manifestação do Comitê de
Bioética do hospital sobre o quadro da jovem, que optou favoravelmente. Após
a decisão, o suporte foi desligado, todavia, a jovem manteve-se viva por quase
dez anos, sem apresentar qualquer melhora no quadro, à custa de antibióticos,
hidratação e nutrição por um tubo nasogástrico (BEAUCHAMP; CHILDRESS,
2011, p. 224-225). Este é apenas um dos exemplos fornecidos pelos autores que
têm seu livro permeado por controvérsias em saúde que foram levadas aos tribunais e, consequentemente, ao debate público, demonstrando que, sozinhas, a
medicina e a ciência não estavam aptas a buscar soluções para questões complexas que as novas tecnologias traziam.
Durand (2012, p. 28-46) afirma que o desenvolvimento tecnocientífico,
ao mesmo tempo em que trouxe grandes esperanças, foi também fonte de
incertezas e de novos questionamentos sobre os limites das intervenções, trazendo à tona a realidade de que muitos dos temas a eles relacionados ultrapassavam a mera decisão médica tecnicamente fundada. Temas como engenharia genética, critérios para aferição de morte para possibilitar a realização
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de transplantes, a possibilidade de uso de respirador artificial e as técnicas de
reanimação, inseminação artificial, dentre outros, trouxeram dúvidas sobre o
papel da medicina de sempre buscar o bem dos envolvidos em suas práticas.
Assim, desde a década de 1960, já havia se pacificado a opinião pública
sobre a transformação do caráter da medicina que, de ciência natural descritiva e curativa, se mostrava como um poderoso instrumento de manipulação
da vida humana, dando uma nova dimensão aos problemas éticos tradicionais
(ABEL, 2002, p. 23). Junto aos avanços científicos, inegáveis para o desenvolvimento humano, houve também um movimento reflexivo sobre os limites
das intervenções do homem sobre a vida do próprio homem.
Na década de 1980, a inseminação de três jovens com esperma de ganhadores de prêmio Nobel fez surgir novo debate sobre a possibilidade de eugenia
a partir da engenharia genética3. Do mesmo modo, os limites sobre a inseminação artificial foram duramente criticados quando se tomou conhecimento do
primeiro caso de barriga de aluguel4. Aqui, pela primeira vez, falou-se publicamente - e não apenas em ambientes acadêmicos - dos riscos que a manipulação
da vida e da saúde humana poderiam ocasionar para a sobrevivência do próprio
planeta Terra e da espécie humana, mas ainda de maneira muito tímida.
Os problemas da década de 1990 foram outros, relativos aos limites para
a alocação de recurso na área da saúde, levando a questionamentos sobre quais
pacientes deveriam ou não ser socorridos pelo sistema público. De acordo
com Asnariz (2002, p. 49), com a globalização, se passou de um estado paternalista, que buscava suprir todas as necessidades, a um estado neoliberal que,
ao contrário, delegava funções, em uma economia de mercado, nos moldes
do “salve-se quem puder”. Tal situação ocasionou uma nova forma de reflexão
bioética, não assentada apenas na autonomia dos sujeitos, mas também trazendo à tona questões sobre a justiça e a beneficência.
Segundo Gracia (2004, p. 4-15), a bioética, apesar de contar com pouco
mais de quarenta anos de existência, já experimentou três fases. A primeira fase,
ou problemas bioéticos de primeira geração, teria ocorrido entre as décadas de
1960 e 1970 e se concentrou nas questões relativas à autogestão do corpo e ao
princípio da autonomia. A segunda fase, ou problemas bioéticos de segunda
geração, ocorrida entre as décadas de 1980 e 1990, centrou-se em questões relacionadas à distribuição de recursos e ao princípio da justiça. A terceira, ou
3
Para saber mais sobre o tema ver WESTPHAL (2006, p. 71); DURAND (2012, p. 31) e PRODI
(1993, p. 58).
4
Para maiores detalhes acerca das críticas, ver SILVA (2004, p. 25).
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problemas bioéticos de terceira geração, que estaria atualmente em andamento,
não encontra vozes uníssonas na doutrina e seria expressa pelas questões bioéticas envolvendo a proteção do meio ambiente e os direitos das gerações futuras5.
Admitindo ou não estas fases propostas por Gracia (2004), é certo que, para
a bioética, os direitos humanos representaram um grande avanço. A Declaração
Universal de Direitos Humanos passou a ser largamente utilizada como fonte de
inspiração para as decisões bioéticas e outras regulamentações internacionais
específicas para o campo bioético começaram a surgir, tais como a Declaração
Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos, de 1997; a Declaração
Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003 e a Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005. Em âmbito regional,
houve aprovação de regulamentações sobre bioética em vários locais, tais como a
Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina, do Conselho da Europa,
aprovada em 1999 e as inúmeras legislações nacionais envolvendo o tema.
As declarações passaram a conceber a dignidade humana como o centro
da reflexão bioética, para a qual todas as decisões envolvendo a saúde e a vida
deveriam convergir; buscaram proteger os sujeitos humanos nas pesquisas, ao
mesmo tempo em que reconheceram o importante papel da ciência para o desenvolvimento humano; trataram de estabelecer princípios consensualmente
construídos para a condução das questões bioéticas, de modo a regulamentar as práticas e as políticas públicas de saúde e declararam a importância da
preservação do meio ambiente para o florescimento da geração atual e das
gerações futuras. Enfim, buscaram ser um marco regulatório, de índole moral
e jurídica, a fim de orientar as ações que envolvessem a vida e a saúde humana,
após os implementos tecnológicos.
Assim somadas, todas estas questões propiciaram um ambiente favorável
para o surgimento da bioética6. Para Goig (2005, p. 94), a biotecnologia apresenta um futuro surpreendente, todavia, obriga que se enfrentem problemas
5
Guy Durand (2012, p. 114-118) faz veemente crítica à inserção de temas relativos à ecologia no
campo da bioética. Sobre um pretenso problema de justiça entre as gerações, Dworkin (2003, p. 107-108)
afirma que, do modo como vem sendo apresentada a questão, ela é falaciosa e afirma que “Nossa preocupação com as gerações futuras não é, em absoluto, uma questão de justiça, mas sim de nosso sentimento instintivo de que tanto o florescimento quanto a sobrevivência têm uma importância sagrada.”
6
Nas palavras de Hans Jonas (1994, p. 37), “Ora, as antigas prescrições da ética do ‘semelhante’
– de justiça, de caridade, honestidade, e por aí afora – ainda são válidas na sua íntima contiguidade
com a esfera mais próxima e cotidiana da interação humana. Todavia, essa esfera é assombrada
por um crescente domínio de ação coletiva em que agente, ação e efeito já não são o que eram
na esfera próxima e que, pela desmesura dos seus poderes, impõe à ética uma nova dimensão de
responsabilidade nunca antes imaginada.”
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novos, até então desconhecidos. Ela cria um contexto prático em que os dilemas morais mostram-se evidentes e rotineiros.
É possível, deste modo, afirmar que o contexto trazido pela: (a) implementação tecnológica e seus usos e abusos, (b) pela dúvida quanto à possibilidade de as ciências da natureza responderem aos desafios por elas mesmas
criados, (c) aliados a um forte imperativo ético e jurídico, que evitasse que as
experiências antiéticas envolvendo seres humanos do passado se repetissem,
fez com que surgisse, segundo Callahan (2002, p. 31), um renascimento da
ética normativa, em virtude da insatisfação das análises puramente acadêmicas e teóricas, incapazes de responder às novas questões.
Hoje em dia, em assuntos bioéticos, é possível fazer coro com a advertência de Habermas (2006, p. 68), que afirma que, se a biologia não pode dispensar as considerações morais dos envolvidos e se a bioética não deve conduzir a
extravios biológicos, ela deve, necessariamente, convergir para a interlocução
racional entre os envolvidos. Segundo Escobar (2007, p. 17), a bioética nasce
em um contexto científico e secular, no intento de humanizar as tecnologias
crescentes no meio social, dando aos sujeitos sociais a possibilidade de se manifestarem de modo efetivo quando as soluções práticas envolverem questões que
a todos afetam. Nesse sentido, ela deve buscar ser um local privilegiado para
que as difíceis questões morais envolvidas em seu objeto tenham a pretensão de
correção, de modo que nenhuma das ciências que compõem o debate bioético
pode pretender responder às suas complexas questões de modo isolado.
O contexto para o surgimento da disciplina oferta um bom panorama
sobre como pode ser compreendida a bioética na pós-modernidade, ou seja,
ela nasce como fruto da necessidade de um crescente debate entre todos os
sujeitos envolvidos, ou seja, todos os seres humanos: que devem pretender
fazer dos dilemas bioéticos um lugar de encontro dialógico, a fim de juntos
buscarem as melhores respostas para as questões complexas trazidas pelo implemento tecnológico na vida e na saúde humana.
B) HISTÓRICO DA BIOÉTICA
A bioética surge, então, como uma necessidade de reflexão abrangente
sobre os limites da intervenção tecnológica na vida e na saúde humana e, nesse
sentido, desde seu surgimento busca ser o produto de considerações diversas.
Atualmente, a palavra parece estar em moda, o que pode acabar ocasionando
certa dúvida sobre suas efetivas possibilidades para buscar resolver as questões
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que se propõem, fazendo real o temor de Callahan que, em uma correspondência trocada e citada por Reich (2003, p. 13), afirmava que a popularização
do termo, utilizado pelos meios de comunicação como produto para consumo
público, poderia prejudicar o desenvolvimento da disciplina. Portanto, é preciso
que se esclareça melhor o termo desde suas raízes históricas.
Como bem lembra Stepke (2007, p. 46), a palavra não é a coisa. Todavia,
é recomendável que se pesquise inicialmente a construção etimológica do
termo para iniciar a investigação. Assim, bioética seria a junção das palavras
gregas bios, referente à vida humana e ethos, referente ao conhecimento dos
sistemas de valores humanos. A etimologia diz pouco e para alguns pode até
mesmo soar vazia, pois, como assevera Andorno (2012, p. 11), a palavra bioética, por si só, permite reunir muitas reflexões. Portanto, é preciso investigar
mais a fundo o que se pretendeu propor quando foi cunhado o termo e quando os primeiros institutos de bioética foram formados.
A doutrina bioética admite que a disciplina surgiu a partir das reflexões
levadas a cabo por duas instituições norte-americanas, quase que ao mesmo
tempo. De um lado, a Universidade de Wisconsin, em Madison e, de outro, a
Universidade de Georgetown, em Washington7. Na primeira, sob o comando
de Van Rensselaer Potter, pesquisador ligado à área de oncologia e, na segunda, de André Hellegers, obstetra holandês e pertencente ao quadro daquela
Instituição. De ambos os lados, segundo Reich (2003, p. 5), a bioética visou influenciar o surgimento de um novo campo do conhecimento, interdisciplinar
7
Não se desconhecem os trabalhos do teólogo Fritz Jahr (2012), encontrados pelo bioticista alemão
Hans-Martin Sass, pesquisador do Instituto Kennedy de Bioética de Washington, escritos entre 1927 e 1947,
nos quais defende um conceito de bioética amplo, em que estariam inseridas todas as relações morais dos
seres humanos com as demais formas de vida, humanas e não humanas. O autor propõe uma substituição
do imperativo categórico formal kantiano por um imperativo bioético abrangente. Em suas palavras: “O
5º mandamento adverte: ‘não matarás’. O termo ‘matar’ sempre significa matar algo vivo. Os entes vivos
são, no entanto, seres humanos, animais e plantas. Visto que o 5º mandamento não proíbe matar exclusivamente seres humanos, não deveria ser aplicado aos animais e plantas de forma análoga? [...] Quanto
à realização potencial de tais deveres morais com todos os seres vivos, isso pareceria utópico. Porém, não
podemos ignorar que as obrigações morais com um ser vivo se relacionam às suas necessidades (Herder),
e respectivamente ao seu destino (Krause). Assim, as necessidades dos animais parecem ser menores, em
termos de quantidade e menos complicada, em termos de conteúdo, do que as dos seres humanos e isso
se aplica às plantas, a fim de que as obrigações morais com elas devam proporcionar menos complicações
do que as dos animais, pois são menores (se não forem em termos conceituais, são em termos práticos).
Aqui entra em jogo o princípio da luta pela vida que também modifica nossas obrigações morais com os
irmãos em escala superior. Dentro desses limites, sempre haverá possibilidades suficientes para ações
bioéticas.” (JAHR, 2012, p. 462-464). Não se adota neste trabalho uma perspectiva tão abrangente para o
termo bioética e nem tampouco o autor é considerado aqui como o precursor da moderna disciplina, por
compreender que sua visão não conseguiu antecipar o que viria a ser concebido como bioética.
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e dialógico, que buscasse refletir criticamente sobre os impactos da ciência na
vida e na saúde.
Durante muitos anos, permaneceu na doutrina a discussão acerca de
quem havia sido o criador do neologismo. No entanto, hoje em dia, há unanimidade em torno do fato de que o primeiro pesquisador a fazer referência ao
termo bioética em uma publicação acadêmica foi Potter, no ano de 1970, em
um artigo denominado Bioethics: The Science of Survival e, posteriormente,
em 1971, em seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the Future. Entretanto,
foi Hellegers o responsável pela disseminação do termo na academia a partir
da implantação do primeiro centro universitário dedicado ao tema, chamado
The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction
and Bioethics, graças a generosos donativos da família Kennedy, disposta a
financiar pesquisas sobre a prevenção da doença mental congênita.
De acordo com Reich (2003, p. 13), não seria absurdo conceber que o
termo tenha sido cunhado ao mesmo tempo pelos dois pesquisadores, todavia, é preciso admitir que foi Potter quem primeiro o utilizou em uma publicação científica, querendo, com ele, defender a necessidade de uma nova
disciplina chamada bioética, oferecendo a ela um esboço metodológico interdisciplinar. De outro lado, defende o autor, também é preciso admitir que
foi Hellegers o responsável pelo desenvolvimento da disciplina, por meio da
criação do primeiro instituto de bioética.
No entanto, a paternidade do termo ou seu posterior desenvolvimento
não são de todo importante como é a diferença abissal que havia entre as
duas aspirações primárias. De um lado, Potter (2001, p. 338) pensou em um
campo de saber interdisciplinar capaz de garantir que o desenvolvimento
tecnológico fosse também acompanhado de conhecimentos ligados aos sistemas de valores, capazes de influenciar criticamente o desenvolvimento
das incipientes descobertas científicas e que, acima de tudo, não colocassem em risco a própria sobrevivência do planeta Terra. Por isso mesmo
ficou conhecida como “bioética ecológica”. Em suas palavras, “o que agora
devemos enfrentar é que a ética humana não pode ser separada de um
entendimento realista da ecologia, no sentido mais amplo da palavra. Os
valores éticos não podem se separar dos fatos biológicos” (POTTER, 2002,
p.122, tradução nossa).8
8 Lo que ahora debemos enfrentar és que la ética humana no puede ser separada de un entendimiento realista de la ecologia en el sentido más amplio da palavra. Lós valores éticos no puedem separarse de
lós hechos biológicos.
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Segundo o autor, a proposição do termo bioética advinha da necessidade de se pensar uma disciplina completamente nova, capaz de colocar em
diálogo todos os interlocutores envolvidos nas ciências biológicas e humanas,
pois não haveria nenhum sujeito capaz de conseguir, isoladamente em sua
área, responder aos questionamentos que os novos avanços científicos apresentavam ao homem. Esta nova disciplina, comunicativa por excelência, seria
a responsável pela promoção da interlocução responsável entre os diversos
campos do saber, a fim de buscar explicações e propor políticas públicas capazes de garantir o futuro da humanidade, combinando biologia básica, ciências
sociais e humanidades (POTTER, 2002, p. 123).
Sua preocupação baseava-se no fato de que o progresso humano não
estaria garantido e que ele não seria uma consequência natural da evolução
“darwiniana”. Para Potter (2002, p. 139), o mundo natural não poderia ser objeto de manipulação desmedida, sendo a bioética o caminho para o equilíbrio
entre os apetites culturais e as necessidades biológicas, em termos de políticas públicas. A bioética seria, como proposta pelo autor, um campo reflexivo
capaz de gerar “conhecimento” sobre o modo pelo qual o “conhecimento”
deveria ser práticado e utilizado pelos seres humanos, para que, a partir da
análise da natureza biológica do homem e do mundo que o cerca, pudesse se
buscar o bem social e a preservação ambiental.
Assim, para Potter (2002, p. 124-125), a bioética seria a “ponte” responsável por unir as ciências e as humanidades, ponte esta que reconheceria que
os valores éticos não deveriam ser separados dos fatos biológicos e que, apesar de difícil, o diálogo entre ambas seria imperioso para a nova sociedade
tecnológica que se apresentava. Em sua opinião, a união entre ambas traria
a “sabedoria”, que teria como finalidade a conservação da vida, globalmente
considerada. Defendia o autor que as pessoas sábias necessariamente usariam
seus conhecimentos para a melhora da qualidade de vida humana, desde que,
para tanto, fizessem esta ponte entre ciências e humanidades.
Em um artigo no qual Potter (2001) analisa seu percurso acadêmico e a
construção do neologismo, ele assim resume seu trabalho e os desdobramentos da disciplina:
O que me preocupava então, 36 anos atrás, quando tinha 51 anos, era
questionar o progresso e para onde o avanço materialista da ciência e tecnologia estava levando a cultura ocidental. [...] Em minha visão, entendo
a bioética como ciência da sobrevivência humana, esta deve estabelecer
246
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
pontes com as ideias da ética social existente hoje. [...] O conceito de
bioética ponte foi o primeiro estágio do pensamento bioético. O segundo
estágio foi a ideia de bioética global, entendida como uma moralidade
que resultaria na construção de uma ponte entre a ética médica e a ética ambiental. Nos anos 90, o reconhecimento de uma série de dilemas
éticos levou à conclusão de que uma ponte entre a ética médica e a ética
ambiental não era suficiente. Todas as especialidades éticas precisam ir
além de seus dilemas imediatos e avançar para suas obrigações a longo
prazo. (POTTER, 2001, p. 339-344).
Uma primeira crítica possível à teoria potteriana é que sua definição de
bioética seria ampla demais e poderia justificar que qualquer tema ligado à
vida fosse seu objeto de pesquisa, o que tornaria a disciplina praticamente
impossível de ser trabalhada, ainda que interdisciplinarmente. Stepke (2007)
afirma que, apesar de cunhar o neologismo, Potter não conseguiu antecipar o
que viria a ser a bioética. Ao contrário, ele se apresentou como um “[...] profeta da catástrofe ecológica que ameaçava a sobrevivência humana” (STEPKE,
2007, p.46, tradução nossa).9
Para Asnariz (2002, p. 47), seria possível criticar o termo do modo como
foi cunhado por Potter, pois, em grego, o termo bios só pode se referir à vida
humana, e, portanto, seria redundante falar de uma ética da vida, pois não há
ética sem vida humana. No entanto, segundo a autora, é preciso considerar
em Potter não propriamente a extensão que pretendeu dar ao termo, mas sim
o fato de cunhá-lo e ligá-lo a uma preocupação com os avanços da técnica
sobre a vida humana e chamar a atenção para uma possível desumanização
dos sujeitos frente aos excessos tecnológicos.
Ferrer e Santory (2008, p. 21) criticam Potter em razão de o autor ter
simplificado demasiadamente as coisas, quando se referiu à capacidade da
“sabedoria” para o florescimento humano, bastando, para tanto, que se estabelecesse uma ponte entre ciência e humanidades. Para os autores, esta é a
razão pela qual a bioética de Potter é frequentemente reconhecida como uma
“bioética ecológica”, muito mais preocupada com os impactos ambientais que
poderiam ser ocasionados pelos excessos da tecnologia, do que com os limites
da intervenção na vida e na saúde humanas no contexto biomédico, conforme
é concebida a disciplina hodiernamente.
9
[...] profeta de la catástrofe ecológica que amenazaba la supervivencia humana.
247
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
De outro lado, a bioética de Hellegers centrou-se em uma disciplina mais
voltada para a área biomédica e buscou aplicar no novo campo interdisciplinar
do saber, a metodologia da tradição filosófica e teológica do ocidente, fazendo
desta um campo da ética geral aplicada à biomedicina. Segundo Reich (2003,
p. 5), as pesquisas de Hellegers encontraram predomínio nos meios científicos
e na mente do público em geral, enquanto as de Potter foram marginalizadas
em virtude de sua abrangência.
As pesquisas de Hellegers estavam muito mais ligadas às questões práticas advindas das novas tecnologias e, portanto, havia interesse tanto social
quanto institucional para o desenvolvimento das pesquisas apresentadas por
este autor. Os questionamentos sobre os limites de intervenção do homem na
natureza não estavam ainda postos, em meio à euforia dos avanços tecnológicos e às possibilidades apresentadas por sua implementação para o florescimento humano. Passados os tempos e aumentados os questionamentos sobre
a vida humana pessoal e comunitária, bem como os possíveis malefícios que
a excessiva intervenção na natureza poderia causar, tanto para as gerações
presentes quanto para as futuras, assiste-se, hoje, a um ainda modesto resgate
da teoria potteriana abrangente.
Segundo Sariego (2009, p. 83), a bioética potteriana é confusa, todavia,
holística e, portanto, pode se mostrar mais compatível com uma visão própria
do pensamento pós-tradicional complexo, no qual conhecimento e valor são
tomados como condições necessárias e iniciais para a compreensão da vida e
do destino humano. Para saber até que ponto tal resgate se mostrará benéfico,
será preciso aguardar o desenvolvimento da disciplina. É preciso que fique
consignado que defendemos que a abrangência da disciplina deve ser limitada
àquelas questões que diretamente se relacionam com o emprego da tecnologia para a manipulação da vida e da saúde humana, conforme proposto pela
Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos.
Por tudo o que foi apresentado, é possível concluir que a bioética, em
ambos os casos, surgiu como busca de respostas racionais e reflexivas às questões colocadas a partir do emprego da tecnologia para a manipulação da vida
e da saúde humana, em uma perspectiva capaz de unir diferentes campos do
saber, para a promoção de um diálogo responsável e interdisciplinar, voltados
para a criação de consensos argumentativamente orientados. Assim, para que
a bioética possa cumprir os compromissos que ela mesma propõe desde seu
surgimento é imperioso que se busquem meios para fundar decisões racionalmente justificados, de modo a garantir um diálogo respeitoso e comprometido
248
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
entre as partes. Sem dúvida este é atualmente o maior desafio da bioética, para
o qual não podemos nos furtar.
3. CONCLUSÃO
Algumas razões para o surgimento da bioética foram a necessidade de
ofertar respostas aos desafios trazidos pelo desenvolvimento das tecnociências, ao apoderamento de novos conceitos e a exposição dos abusos de pesquisas com seres humanos. A partir da década de 40 é possível vislumbrar
movimentos sociais, políticos e jurídicos que iriam conduzir mais tarde ao
clamor por uma disciplina capaz de unir em uma estrutura interdisciplinar os
diversos campos do saber para a construção de respostas compartilhadas para
suas difíceis questões dilemáticas.
Em 1970 surge a bioética como um lócus refletivo sobre os limites da
tecnologia para manipulação da vida e da saúde humana em contextos complexos e plurais. A disciplina teve duas vertentes, todavia, para qualquer das
duas que se mire o que se vê é a necessidade de que a bioética seja interdisciplinar e dialógica. Que seja um campo capaz de promover um diálogo racionalmente construído. A questão que se coloca para a bioética nos dias atuais
é exatamente pensar em meios racionalmente justificáveis para suas decisões,
de modo que não fique parecendo aos membros da sociedade civil – diretamente afetados – que há uma considerável falta de orientação na disciplina.
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Recebido em: 25/09/2014
Aprovado em: 28/10/2014
251
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
A PROPOSTA DE REFORMA DO CONSELHO
DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS
E O ESTADO BRASILEIRO
THE REFORM PROPOSAL SECURITY COUNCIL OF THE
UNITED NATIONS AND THE BRAZILIAN STATE
MÉRCIA CARDOSO DE SOUZA 1
RESUMO
A Organização das Nações Unidas - ONU foi criada por meio da Carta
das Nações Unidas em 1945, com o objetivo de promover a paz e a segurança
internacionais, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A ONU conta com
seis órgãos, sendo considerado o mais importante o Conselho de Segurança,
onde são votados e deliberados os temas relativos à segurança, paz, etc. O
presente trabalho objetiva analisar o papel do Conselho de Segurança das
Nações Unidas - CSNU, bem como a proposta de reforma do referido órgão
e a repercussão desse processo no Estado brasileiro. Nesse sentido, tecer-se-ão comentários acerca da gênese da ONU, bem como de seus órgãos, em
especial, do Conselho de Segurança, a proposta de reforma deste, bem como
as repercussões no Estado brasileiro, de modo a suscitar aspectos relevantes
para debates vindouros.
Palavras-chave: Brasil. Conselho de Segurança. ONU.
ABSTRACT
The United Nations - UN was established by the UN Charter in 1945, with the
aim of promoting international peace and security after the end of World War II.
The UN has six bodies, being considered the most important Security Council, which
are voted and resolved the issues relating to security, peace, etc. This paper aims to
analyze the role of the Security Council of the United Nations - UNSC as well as the
1
Doutoranda em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora Colaboradora do
Curso de Serviço Social das Faculdades Cearenses. E-mail: [email protected].
252
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proposed reform of that body and the impact of this process in the Brazilian state. In
this sense, weaving shall be comments about the genesis of the UN and its organs, in
particular the Security Council, the proposed renovation of this, as well as the impact
in the Brazilian state, in order to raise issues relevant to coming debates.
Keywords: Brazil. Security Council. United Nations.
1. INTRODUÇÃO
A comunidade internacional não vai bater à nossa porta com um convite para ingressarmos como membros permanentes do Conselho de
Segurança (...) Não há razão, como se fazia anteriormente, para postularmos nossa candidatura apenas quando a questão estiver “madura”. Aí
será tarde, e se não procurarmos influenciar o debate, é sempre possível
que se avance em um formato de reforma que não seja do nosso interesse. (Chanceler brasileiro Celso Amorim, Rio de Janeiro, 13/12/2004)2
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 1945, após o
término da Segunda Guerra Mundial. Segundo a Carta das Nações Unidas,
os propósitos da organização são: manter a paz e a segurança internacionais,
desenvolver relações amistosas entre as nações, conseguir uma cooperação
internacional para resolver problemas internacionais e promover e estimular
o respeito aos direitos humanos, e ser um centro destinado a harmonizar a
ação das nações para a consecução desses objetivos comuns3. Atualmente, a
ONU conta com 193 Estados Partes4.
A ONU é constituída por seis5 órgãos principais: a Assembleia Geral,
o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Segurança, o Conselho de
Tutela, o Secretariado, e a Corte Internacional de Justiça. Os cinco primeiros
possuem sede em Nova Iorque, e o último na Haia, Holanda. Na estrutura
organizacional desses órgãos, encontram-se os diversos programas, fundos,
comissões e agências especializadas, dentre outros, que compõem o sistema
ONU. (UNITED NATIONS, online)
2
Conferência do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, com sede no Rio de Janeiro.
3
Vide artigo 1° da Carta das Nações Unidas.
4
Desde 2011 a ONU conta com 193 Estados-membros. O último país admitido foi Sudão do Sul
5
Vide artigo 7° da Carta das Nações Unidas.
253
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Este trabalho científico tem por fim analisar uma possível reformulação
na estrutura do Conselho de Segurança da ONU, bem como a posição do Brasil
nessa conjuntura, na busca por um assento enquanto membro permanente.
2. A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
A ONU se constitui na segunda tentativa de parte da comunidade internacional em promover a paz entre as Nações e a segurança internacional, por
meio de uma organização internacional, porquanto a primeira foi a Sociedade
das Nações, também conhecida como Liga das Nações, que funcionou em
Genebra, após a Primeira Guerra mundial, em 1919. Tal organização não obteve êxito, pois vira o Japão invadir a Manchúria, a Itália tomar a Etiópia e os
exércitos nazistas realizarem suas primeiras conquistas. Nesse contexto, foi
dissolvida em 1939, não tendo atingido o seu objetivo.
Numerosas razões foram ventiladas a fim de documentar a incapacidade
da Sociedade das Nações para sobreviver. Uma de suas maiores debilidades
foi a não participação das grandes potências em seu seio, situação que prejudicou o princípio da segurança coletiva. A não participação dos Estados
Unidos desde o início dos trabalhos da instituição e, um pouco depois, da
União Soviética, Itália, Japão e Alemanha, constituiu impedimento incontornável para o desenvolvimento de ações combinadas. Do mesmo modo,
o Conselho da Sociedade das Nações claramente carecia das capacidades
que teriam sido necessárias para prover a ideia de segurança coletiva de
mecanismos realistas de execução.A ineficiência do Conselho diante da
agressão perpetrada pelas grandes potências foi fatídica para o prestígio
da instituição e serviu para que outros países se dessem conta de que a
vontade para aplicar as sanções era escassa de parte dos membros mais
poderosos da Sociedade das Nações. A capacidade de resposta perante o
advento da guerra civil era nula. (GILL apud ROSAS, 2005, p. 30-31)
No contexto da segunda grande guerra, os principais países Aliados já
idealizavam a criação de uma nova organização internacional que apresentassem por fim a cooperação e manutenção da paz mundial, o que se realizou em
1945. Assim, a ONU tem como norte a Carta das Nações Unidas, a qual fora
assinada em São Francisco em 26 de junho de 1945, por cinquenta e um países
254
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que participaram da Conferência de São Francisco.
A ONU é constituída de seis órgãos especiais, a saber:
a. Assembleia Geral, que é formada pelos 193 Estados Membros, na
qual cada componente é representado de maneira igualitária;
b. Conselho de Segurança, instância executiva da ONU, formado por
quinze Estados Membros, sendo cinco permanentes, que possuem
o direito ao veto e dez temporários, que são eleitos para um mandato de dois anos, sem direito a veto. É importante mencionar os
Membros permanentes, que são: França, Reino Unido, Estados
Unidos, Rússia, China;
c. Conselho Econômico e Social (ECOSOC), responsável por assuntos
de naturezas econômica, social, cultural;
d. Conselho de Tutela, que possuía por função administrar os territórios;
e. Corte Internacional de Justiça (CIJ), instância responsável por julgamentos internacionais, constituído por quinze juízes, eleitos para
um mandato de nove anos; e Secretariado, com um secretário-geral
eleito para um período de cinco anos, podendo ser reconduzido,
além de outros órgãos subsidiários. (LASMAR; CASARÕES, 2006)
Quanto ao exercício de competências, “les fonctions des organes compétents de l’ONU sont identiques à celles des organes de la SdN. Les uns comme les
autres exercent leur mission par voie d’enquête, de médiation et de conciliation”.
(PELLET et al, 2008, p. 940)
A ONU é considerada organização de fins gerais ou fins políticos, seu
objeto, engloba os membros e a resolução de conflitos internacionais.
O presente trabalho tratará a questão da gênese da ONU e a reforma do
seu Conselho de Segurança, abordando a posição do Brasil. Como direção,
utilizar-se-á a Carta da ONU.
2.1. O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU
A gênese do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) remonta à criação do Conselho da Sociedade das Nações6. Como se sabe, a Sociedade das
6
O Conselho compor-se-á de Representantes das Principais Potências aliadas e associadas,
assim como de Representantes de quatro outros Membros da Sociedade. Esses quatro membros da
Sociedade serão designados livremente pela Assembleia e nas épocas que lhe agradar escolher. Até
a primeira designação pela Assembleia, os Representantes da Bélgica, do Brasil, da Espanha e da
Grécia serão Membros do Conselho. (Artigo 4° do Pacto da Sociedade das Nações)
255
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Nações ou Liga das Nações fracassou. Isso foi ocasionado por essa organização internacional reproduzir, por meio do CS, o jogo de forças presente à
época da Segunda Guerra Mundial.
Os ensinamentos nos vinte anos de vida do Conselho da Sociedade das
Nações prepararam um cenário propício para que fosse criado o Conselho
de Segurança da ONU. Dessa maneira, ocorreu o fortalecimento do CSNU,
constituindo-se no núcleo do poder político da ONU. (ROSAS, 2005)
O CSNU está previsto na Carta das Nações Unidas, em seus artigos
23-32 (Capítulo V). Já as atribuições específicas estão previstas nos Capítulos
VI, VII, VIII e XII, do mencionado documento.
A Carta de São Francisco (Carta da ONU) foi assinada em 31 de agosto
de 1946, tendo sofrido apenas três alterações. A mudança mais importante
deu-se em 1963, por ocasião da admissão de países recém-independentes dos
continentes asiático e africano como membros da ONU, a composição do
CSNU sofreu mudanças, tendo aumentado para dez o número de membros
não permanentes. (JORNADA; VIZENTINI, 2008, p. 410)
A reforma demonstrou que a ordem estabelecida em 1945 se modificara
e que se fazia necessária uma adaptação da ONU e, consequentemente,
de seu documento constituinte, a uma nova realidade. Desde então, a
Carta da ONU permanece inalterada, apesar das significativas modificações que ocorreram no Sistema Internacional nos últimos 40 anos. É
evidente que o conteúdo original da Carta deve ser adaptado, ainda que
os princípios da Organização e seus objetivos finais continuem aqueles
mencionados no Artigo 1º do documento. (JORNADA; VIZENTINI,
2008, p. 411)
O CSNU é o órgão mais importante da ONU. De acordo com o artigo
24 da Carta da ONU, cabe a ele “a principal responsabilidade na manutenção
da paz e da segurança internacionais”. O órgão é composto por quinze membros, sendo cinco permanentes, que possuem poder de veto (China, França,
Federação Russa, Reino Unido e Estados Unidos) e dez não permanentes7,
que não possuem poder de veto, países estes que são eleitos pela Assembleia
Geral para um mandato de dois anos. (UNITED NATIONS, online)
A presidência do CSNU é representada por um Estado, seja ele
7
Atualmente os membros não permanentes são: Azerbaijão, Colômbia, Alemanha, Guatemala,
Índia, Marrocos, Paquistão, Portugal, África do Sul e Togo.
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permanente ou não, durante um mês em caráter rotativo. As propostas de
resoluções podem ser apresentadas por um ou vários membros, que secretamente repassam para os demais integrantes. Após, várias discussões acerca
do seu teor, a proposta finalmente é levada ao conselho, onde cada participante possui direito a um voto. Nesse linha de reflexão, existem as questões
essenciais, que só poderão ser aprovadas, com uma maioria de nove votos.
(UNITED NATIONS, online)
Nesse momento é que pode ser identificado o grande poder de ser um
membro permanente e, por conseguinte, titular do poder de veto, porquanto
se um dos cinco países membros não votarem a favor de determinada proposta, imediatamente ela não poderá ser aprovada.
Assim, o fato dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia e China possuírem assento permanente e direito de veto fez com que estes mesmos
Estados se sentissem mais à vontade para entrar em uma Organização
que, devido a este tipo de processo decisório, jamais permitiria que uma
decisão fosse concretizada sem o aval consensual das cinco potências. Esse
mecanismo de veto, responsável pela paralisia da ONU durante o período
da guerra fria, acabou tornando-se ultrapassado no sentido de não mais
refletir o jogo de forças que encontramos atualmente entre os Estados que
compõem a Organização. Assim, cada vez mais, a ONU recebe pressões
de determinados países para que a proporcionalidade da representação
seja atualizada, que o número dos Estados que participam do Conselho de
Segurança (tanto os permanentes, quanto os não-permanentes) seja ampliado e, até mesmo, propostas pedem para que o direito a veto seja revisto
ou ampliado a outros membros. (MENDES, 2006, p. 28)
A proposta de reforma do sistema de segurança coletiva não é algo novo,
visto que, desde 1946, quando foi constituída essa estrutura até os dias atuais,
ocorreram diversas mudanças histórias e econômicas nos Estados interessados
em ocuparem assentos enquanto membros permanentes do CSNU. A posteriori,
surge um grupo denominado G-4, constituído pelo Brasil, Alemanha, Índia, e
Japão que, juntamente com a União Africana, buscam não mais, permanecerem
temporariamente, mas permanentemente, mesmo sem o direito de veto.
Dentre vários Estados interessados nessas mudanças, podemos citar:
Japão, Alemanha, Índia e, até mesmo, Brasil. No caso dos dois primeiros
países citados, segundo e terceiro maiores contribuintes financeiros da
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ONU, respectivamente, o interesse é reflexo de uma maior participação
deles no jogo de forças internacional. No caso do Brasil, apesar da luta
pela ampliação no Conselho não significar garantias de vaga para os demandantes, é notório o papel de liderança que o país vem assumindo
na América do Sul, o que aumentaria as chances do nosso país ser o
principal beneficiado de possíveis ampliações do Conselho. (MENDES,
2006, p. 28)
Embora o CSNU seja o órgão considerado mais importante do sistema
onusiano, apresenta pontos positivos e negativos.
Constatam-se vários problemas com relação ao CSNU, quais sejam:
problemas de representação e representatividade; falta de democracia; falta
de transparência no processo de tomada de decisões; paralisia institucional;
respostas lentas às ameaças à paz e à segurança internacionais; exerce-se a
coerção de modo arbitrário. (ROSAS, 2005, p. 43-44)
Com relação aos pontos fortes da atuação do CSNU. São estes: manutenção da participação das grandes potências, acelerado processo de tomada de
decisões. (ROSAS, 2005, p. 45).
3. A PROPOSTA DE REFORMA DA ESTRUTUTA DO CSNU, A
“DANÇA DAS CADEIRAS” E O BRASIL
Desde os fins do século XIX, o Estado brasileiro tem se feito presente
e atuante em fóruns multilaterais. Essa tem sido uma das marcas da política
exterior brasileira.
Em 1919, o Estado brasileiro participou da Conferência de Paz, na condição de país beligerante e única nação sul-americana a lutar por ocasião da
Primeira Guerra mundial. Na esteira dessa compreensão, o Brasil também
participou de todas as outras conferências que estruturam a governança de
ordem global no período pós Segunda Guerra. (LIMA, 2009)
Por outro lado, nos anos 60 e 70 do século XX, a agenda do Brasil concentrou-se em temas como desenvolvimento e autonomia política. (LIMA, 2009)
O Brasil sempre criticou a cegueira do sistema de segurança coletiva ao
tratar os conflitos internacionais sob o manto da visão clássica do equilíbrio
de poder em detrimento das dimensões econômica e social. (LIMA, 2009)
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O Brasil, apesar de articulado com a Índia, advogou medidas de desarmamento. Esses dois países, por coincidência, ambos em desenvolvimento,
são os que desempenharam mais tempo na condição de membros não permanentes do CSNU. (LIMA, 2009)
Assevere-se que o Brasil, entre janeiro de 1946 e dezembro de 1967,
participou por cinco vezes enquanto membro não permanente, tendo permanecido fora do CSNU pelo período de vinte anos (1968-1988). (UNITED
NATIONS, online)
Entre 1988 e 2005 o Brasil voltou a participar do CSNU, na condição de
membro não permanente por mais quatro vezes, totalizando nove participações desde sua fundação. (UNITED NATIONS, online)
O Estado brasileiro, enquanto nação extremamente participativa no cenário internacional, deixou sua marca nas operações de paz, embora mínima
nos tempos de outrora. Desde os anos 40 do século XX, Argentina, Brasil e
Índia estão presentes nessas operações, e essa participação aumentou juntamente com o crescimento dessas operações de paz no período pós-Guerra
Fria. (LIMA, 2009)
As preocupações brasileiras com relação à reforma na estrutura da ONU
centram-se em três temas: a defesa dos princípios e normas multilaterais; as
soluções inovadoras que estabeleçam a manutenção da paz e as de imposição
da paz; reformulação da estrutura de tomada de decisão do CSNU, objetivando maior representatividade e legitimidade. (LIMA, 2009)
O Brasil está interessado em discutir esses temas desde o governo de José
Sarney. Após esse governo, esteve presente em todos os sucessores numa busca
incessante em ganhar um assento na “dança das cadeiras” em torno do CSNU.
Nessa linha de pensamento, o Brasil tem defendido a tese da maior representatividade, bem como a expansão do número de vagas de membros não
permanentes. (LIMA, 2009)
Destaca-se que essa tese do aumento da representatividade ocasionaria
uma maior legitimidade e efetividade às decisões do CSNU. (LIMA, 2009)
Outro ponto a ser destacado é relativo aos Estados que mais contribuem
financeiramente para com a ONU: Estados Unidos, Japão e Alemanha.
Simultaneamente à retomada do debate com a apresentação dos dois
modelos de reforma do Conselho, vão emergindo do debate alguns parâmetros para uma eventual ampliação. Estes dizem respeito ao poder
econômico de alguns dos maiores contribuintes ao orçamento regular
259
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
das Nações Unidas, como Japão e Alemanha, segundo e terceiro lugares,
logo abaixo dos EUA. Também é mencionada a inexistência da representação de países do Sul global, em especial pelo critério do tamanho
das populações de países com Brasil e Índia, bem como a relevância na
contribuição às operações de paz cuja multiplicação gerou um sério problema de financiamento. (LIMA, 2009, p. 289)
A partir do ano 2000 com o tema da reforma da estrutura do CSNU
ganhando destaque no discurso da diplomacia, o Brasil torna-se mais enfático
e, em 2004, Brasil, Alemanha, Japão e Índia, constituem o G-4, porquanto a
existência de posições comuns na seara da ampliação do CSNU.
Em 2005, o governo brasileiro apresentou à Assembleia-Geral da ONU
uma proposta de reforma do Conselho, que incluía a ampliação do número de membros permanentes e a extinção do direito de veto, com a
justificativa de aumentar sua representatividade e capacidade de resposta
aos conflitos. A proposta contou com apoio dos outros integrantes do
G-4 (Brasil, Índia, Alemanha e Japão), grupo de grandes potências que
aspiravam a integrar o Conselho na condição de membros permanentes.
(CERVO; BUENO, 2008, p. 505)
Veja o discurso na seara da diplomacia, proferido pelo Chanceler Celso
Amorim, destacando a importância de uma possível reforma na estrutura do
Conselho de Segurança da ONU:
A diplomacia brasileira vive momento de grande dinamismo, que reflete as prioridades do governo do Presidente Lula nas áreas interna e
externa: combater a fome e a pobreza, contribuir para a criação de uma
nova geografia comercial, e adotar uma postura firme e ativa nas negociações multilaterais, inclusive regionais, com vistas a assegurar um
espaço regulatório multilateral justo e equilibrado. No plano da Paz e
da Segurança, além do apoio ao multilateralismo e de ações concretas,
como a que estamos empreendendo no Haiti, buscamos, na medida
do possível, contribuir para um equilíbrio multipolar, que evite tentações hegemônicas, prejudiciais a todos. É neste quadro que se insere o
esforço – que acaba de receber novo e decisivo impulso – para reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Subjacente a essas
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
prioridades, está o imperativo de preservar nossa capacidade soberana
de definir o modelo de desenvolvimento que desejamos para nosso país.
(DISCURSOS, PALESTRAS E ARTIGOS DO CHANCELER CELSO
AMORIM – 2003/2010, 2011, p. 181-182)
A política exterior do Brasil tem procurado desempenhar um papel de
destaque no campo da segurança. Alguns fatos que constatam o interesse do
Brasil são: o país ter se associado em 2004 aos Estados do Cone Sul, Argentina
e Chile; o país ter obtido a cooperação do Uruguai, do Peru e da Bolívia; ter
assumido o comando das tropas de paz da ONU no Haiti, tendo se proposto a
levar a paz, desenvolvimento e a redemocratização àquele Estado, enfim, este
último foi o “mais importante envolvimento” do Estado brasileiro em missões
de paz desde 1946. (CERVO; BUENO, 2008, p. 504)
Constata-se, pois que o Estado brasileiro e sua retórica demonstram essa
preocupação em torno da reforma do CSNU, bem como a busca por um assento permanente.
4. PONTOS DE DISCUSSÃO
O G-4 possui como proposta primordial aumentar o número de vagas
atuais, que é quinze para vinte e cinco, que se dividiriam em: cinco vagas para
os membros permanentes com direito de veto, quatorze vagas para os membros não permanentes sem direito de veto e seis vagas para membros permanentes sem direito de veto, onde quatro assentos pertenceriam aos membros
do G-4, e dois para a União Africana.
Essa proposta, apesar de ser apoiada por 23 Estados, incluindo a França,
que é um dos Estados com direito de veto, não é aceita pelos Estados Unidos
e a China, o que afasta totalmente a possibilidade de que estes “novos membros” possam lutar para que apresentem direito a veto. O interesse principal
volta-se primeiramente para inclusão como membros permanentes, ficando
outras questões como discussões futuras.
Ademais, nessa linha de reflexão, as posições encontram fundamentos
diferentes. Para a China, um aumento radical no número de membros do
Conselho poderia provocar uma estabilidade mundial, além do que, a participação do Japão como um novo membro não é aceita pelo Estado chinês,
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seja por questões políticas como históricas. Por outro lado, os Estados Unidos
atualmente só apoiam a candidatura do Japão, deixando todos os outros integrantes do G-4 fora dessa expansão.
Não bastasse a oposição dessas duas potências, existe ainda a chamada
“União pelo Consenso”, formada pelo Paquistão, Argentina, Canadá, México
e Itália, que são contrários à criação de novos assentos permanentes e que
apoiam a criação de mais dez novos assentos não permanentes.
Observa-se que diante de tantas divergências, há um interesse comum
em reformar o CSNU para que o número de assentos seja ampliado. O núcleo
da polêmica atual centra-se justamente no caráter de permanência ou não de
seus novos membros.
A reforma do CSNU é polêmica. O Brasil, apesar de ser um país em
desenvolvimento, ainda não possui condições de se tornar um membro permanente do mencionado Conselho.
A realidade teórica que abrange seu âmbito legislativo possui uma visão
bem mais desenvolvida do que a realidade fática. O país, muitas vezes é omisso quanto à violação de direitos humanos, de tratados internacionais, não respeitando sequer a sua própria Constituição Federal de 1988 – CF/88.
Claro que diante da nova realidade, não se pode admitir que o CSNU possua a mesma estrutura de outrora, porquanto o número de Estados Membros
da ONU aumentou gradativamente, envolvendo muito mais Estados, que passaram a revelar um papel importante na conjuntura histórica internacional,
demonstrando que uma reforma é necessária, mas que se deve ter cautela em
sua realização.
O CSNU não pode cometer o equívoco de continuar como um grupo fechado e não aumentar o número de membros, que deveria ser proporcional à
quantidade dos Estados que integram a ONU. A proposta do G-4, sem dúvida
é um passo ousado nessa mudança, mas que após quinze anos de discussão
ainda não teve a sua aprovação definida.
A intenção do Brasil em participar como membro do CSNU, apesar de ser
uma grande demonstração de interesse na busca pela paz mundial, levanta uma
grande dúvida, visto que o país deve primeiro preocupar-se com a realidade
interna, antes da realidade internacional. O país tem se mostrado um exemplo
de democracia e estabilidade política, porém muitas vezes, ainda se apresenta
como um Estado hobbesiano, na medida em que viola, por muitas vezes, as suas
próprias leis. Somente quando, a realidade deontológica de suas normas estiver
alcançada, o Estado brasileiro terá condições de propagá-la pelo mundo.
262
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No governo Dilma Rousseff, seguindo gestões anteriores, o discurso
sobre a necessidade de reforma do CSNU tem sido o mesmo, incluindo o
interesse de o Brasil tornar-se um membro permanente daquele Conselho.
5. CONCLUSÃO
Sabe-se que a ideia de reforma do CSNU ressurgiu após o fim da Guerra
Fria e, com o fim da Guerra do Golfo, em 1991, o tema passou a ser levantado
em distintos fóruns e por diversas lideranças internacionais.
Nesse contexto, pode-se afirmar que o Brasil possui vantagens e desvantagens, ao obter uma consolidação como uma grande potência num futuro
bem próximo, ocupando lugar de membro permanente no CSNU.
O aumento do status e do poder seriam benefícios (almejados por qualquer Estado) acarretados ao Brasil, vez que ocupasse a posição de membro
permanente. Isso lhe proporcionaria um ressonante discurso frente à comunidade internacional. No entanto, vários são os óbices existentes para que essa
ideia de novo posicionamento no sistema internacional se concretize.
Fazer parte do CSNU implicaria, ao Brasil, tomar complicadas decisões
políticas, adotando sanções e autorizando intervenções militares. Porém, já é
bastante conhecida a tradição não-intervencionalista e low-profile do Brasil.
Ademais, essa participação no CSNU também implicaria em muitos gastos,
que apresentariam melhor serventia se utilizados em prol de causas sociais,
vez que já são reduzidos os recursos disponíveis para necessidades urgentes
da população brasileira, destacando saúde, educação, por fim, questões sociais. Além disso, ocupar a posição de membro permanente levaria a assumir
uma liderança latino-americana, o que não possui a aceitação imediata de
diversos países latinos. Argentina e México são a desdúvidas contra a inserção
do Brasil no CSNU.
A reforma do CSNU é uma prioridade na seara da política internacional
das últimas décadas, além de ser um dos temas principais da agenda de política externa brasileira.
A participação do Brasil na MINUSTAH8 demonstra o compromisso do
referido Estado com uma eventual inclusão em mandato para o sistema onusiano no tocante à segurança coletiva – CSNU.
8
Missão da ONU para a estabilização do Haiti. (http://minustah.org/)
263
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Embora esses fatos sejam de suma importância, constata-se que o Brasil
deve priorizar a consolidação de alianças com outros Estados Membros das
Nações Unidas, buscando a resolução de problemas relativos ao seu território,
porquanto questões urgentes que atingem a vida de seus nacionais.
Por fim, parafraseando George Orwell, “Todos estados são iguais. Porém,
alguns são mais iguais do que os outros”. O Brasil tem procurado ser mais
igual que os outros Estados.
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28, n. 2, 2005, pp.152-168.
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Inácio Lula da Silva. Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2008.
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(Renata Giraldi, 26/9/2012). Rede Brasil atual. Disponível em: <http://
www.redebrasilatual.com.br/temas/internacional/2012/09/brasil-alemanhajapao-e-india-pedem-ampliacao-do-conselho-de-seguranca-da-onu> Acesso em: 29
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11.PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; FORTEAU, Mathias. Droit international public. 8.
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20. UNITED NATIONS. SECURITY COUNCIL. Letter dated 9 November 2011 from the
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21. UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. Agenda items 14 and 117. Disponível em:
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Política Externa e Política Internacional – IVCNPEPI – “O Brasil no mundo que vem
aí” (Reforma da ONU). Brasília: FUNAG, 2010. p. 81-98.
Recebido em: 21/10/2014
Aprovado em: 28/10/2014
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HÁ ALGO REALMENTE IMPERDOÁVEL?1
JEAN-CHRISTOPHE MERLE2·
Tradução: Lívia Rosa Franco3
Revisão Técnica e da tradução: Alexandre Trivisonno4
Resumo
De acordo com a visão prevalecente sobre o perdão, há ofensas graves
que não podem ser perdoadas. Essa visão é baseada na suposição que o perdão é um ato super-rogatório sobre o qual somente a pessoa ofendida pode
decidir. Ao contrário disso, este ensaio pretende mostrar que o perdão está
submetido a condições normativas e regras da ética social. Seguir essas regras
e condições de forma consistente leva à conclusão que não há nada que é realmente imperdoável, ou seja, nada que uma pessoa não possa perdoar outra
pessoa ou a si própria.
Palavras-chave: perdão; condições do perdão; atos imperdoáveis.
Abstract
According to the prevailing view about forgiveness, there are serious offenses
that cannot be forgiven. This view is mostly based on the assumption that forgiveness is a supererogatory act decided by the offended person alone. On the contrary,
this paper intends to show that forgiveness is submitted to normative conditions
and rules of social ethics. Following these rules and conditions in a consistent way
leads to the conclusion that there is nothing that is fundamentally unforgivable;
that is to say, nothing that one cannot forgive either another person or oneself.
Key-words: forgiveness; conditions of forgiveness; unforgivable acts.
1
Traduzido a partir do original em Inglês Is there anything that is fundamentally unforgivable?
2
Doutor em Philosophie - University of Freiburg (1992) e “Habilitação” (correspondente à livre-docência no Brasil) pela Universidade de Tübingen. Atualmente é Professor Titular na Universidade
de Tours (França) e Professor Honorário na Universidade de Saarland (Alemanha).
3
Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Professora da Faculdade de Direito da Unipac
– Itabirito-MG.
4
Professor da Faculdade de Direito da UFMG, do Programa de Pós-graduação em Direito da
PUC-Minas e da UNIPAC
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1. INTRODUÇÃO
Vamos supor que um homem assassinou várias vezes, que ele torturou e
matou crianças pequenas, ou que essa pessoa ordenou assassinato em massa
ou mesmo genocídio. Muitas pessoas achariam que esses atos são imperdoáveis, mas, pergunto, eles estão abordando a questão corretamente?
Para a vítima, o perdão consiste o desaparecimento justificado tanto do
ressentimento quanto do desejo de vingança. Para o autor do delito, ele consiste o desaparecimento justificado tanto do sentimento negativo contra ele
mesmo, quanto do sentimento de que há um dever de expiar. Idealmente, o
perdão ocorre tanto na vítima quanto no agressor de uma forma coordenada.
No entanto, ele também pode ocorrer como um fenômeno unilateral. Ora, o
perdão e a sua ausência não são apenas emoções subjetivas, mas também objetos das intuições objetivas e dos princípios da ética social. Eu vou investigar
essa última questão, ou seja, o perdão como objeto das intuições objetivas; em
alguns pontos minha análise vai divergir substancialmente da consideração
do perdão como um mero sentimento subjetivo. No que diz respeito à questão
de saber se há algo imperdoável como uma questão de princípio, freqüentemente se pensa que a vítima não quer perdoar. A seguir, tento mostrar que
esta perspectiva constitui o componente central de uma concepção de perdão
que é eticamente errada.
2. A VÍTIMA REALMENTE OCUPA A FUNÇÃO ESSENCIAL?
Na concepção tradicional de perdão – representada por autores como
Vladimir Jankélévitch (1957) e Robert Spaemann (1989: 252) – o ofensor só
pode pedir perdão para sua vítima.5 A vítima é considerada moralmente superior ao agressor, e a vítima não tem necessariamente que perdoar. Essa concepção diz respeito ao ato de perdoar como uma decisão voluntária e generosa
feita pela vítima. Essa posição é insustentável por pelo menos cinco razões.
1. Há uma intuição moral – enfatizada, por exemplo, por Paul Ricœur
(1995 e 1998: 45)6 – que à vítima não é permitido perdoar muito rápido, recusar-se a conceder perdão por tempo excessivo ou colocar requisitos que são
5
Cf. ainda Richards: 1988, 96, Allais: 2008 e Ci: 2006, Cap. 10.
6
Cf. ainda Hieronymi: 2001, 552.
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muito pesados para os malfeitores carregarem. Essa intuição moral é bastante
prevalente na prática quotidiana.
2. Psicólogos opõem a visão tradicional (que origina na própria superioridade moral da vítima) a uma visão mais simétrica do perdão. O perdão
corresponde aos interesses da vítima, como demonstrou o teórico dos jogos
Robert Axelrod, através de um experimento tit for tat7 que ele chama de “perdão” e que se mostrou como a estratégia mais bem sucedida (cf. Axelrod:
1934, 36). Não só os agressores, como também as vítimas, podem ter a necessidade do perdão e de sentir a carga psíquica de uma falta de perdão. Em
Sobre a Genealogia da Moral e em Vigiar e Punir, Friedrich Nietzsche e Michel
Foucault, respectivamente, destacam o papel do gozo da vingança, ou, na terminologia de Nietzsche, do ato de “Fazer alguém sofrer” (Leiden-lassen), como
uma compensação para a vítima. De uma perspectiva psicológica, no entanto,
esse benefício vale pouco comparado às conseqüências e aos riscos para a
pessoa que exerce a vingança. Comparado com as vantagens que a cooperação
traz, as energias gastas no exercício da vingança são energias desperdiçadas.
3. O perdão não é uma decisão que é tomada repentinamente e de
uma só vez. O perdão é uma decisão que resulta de um processo. Psicólogos
consideraram o perdão como um processo constituído por três etapas.8 Na
primeira etapa, a vítima reúne os detalhes sobre o trauma a ser perdoado.
Ao fazê-lo, a vítima cai nas garras do medo ou da raiva, e ela se comporta
de uma forma que não é comum para si, muitas vezes de forma incoerente
e vingativa. Joseph Butler refere-se a esse fenômeno em Sermons, em que
de ele o considera contrário ao perdão, denominando-o como “ressentimento” e “vingança”. Na segunda etapa do processo, uma forma de empatia
entra em jogo: a vítima tenta entender o trauma sofrido, olhar para a causa,
para a motivação e para seu contexto dentro do contexto maior do meio
do agressor, bem como aprender e tornar-se mais sensata a partir dessa
experiência. É finalmente na terceira etapa que o perdão no seu sentido
estrito entra em jogo. Psicólogos caracterizam esse resultado como uma
7 Tit for tat é uma estratégia que aparece em um experimento criado por Axelrod, que consiste,
resumidamente, no seguinte: em um jogo, se você é o primeiro a agir, você coopera com o outro; se
o outro coopera, você continua cooperando; se o outro não coopera você não coopera. Porém, se
o outro volta a cooperar você deve cooperar novamente. Portanto, é uma estratégia que considera
apenas o último movimento do outro e o fato de você cooperar após um ato cooperativo do outro,
desconsiderando assim que ele não cooperou no passado é considerado perdão.
8
Cf. Coop Gordon, Baucom e Snyder: 2005, 408 s., bem como Wade, Worthington e Meyer:
2005.
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combinação das seguintes alterações: a vítima torna-se capaz de limitar
suas emoções negativas e julgamentos; há uma diminuição ou desaparecimento da inclinação para a retaliação ou para simplesmente se manter
afastada do ofensor, e a vítima pode também restaurar a benevolência
para com o criminoso. Em alguns casos, a benevolência com o criminoso
pode ser totalmente restabelecida e pode haver lugar para reconciliação.
Obviamente, tal resultado pressupõe uma interação adequada entre o malfeitor e a sua vítima; isso significa que ele deve se abster de futuras ofensas
e demonstrar arrependimento ativo. Calhoun introduz o perdão desejável
(aspirational forgiveness) como “uma opção de não exigir que [o agressor]
melhore” (1992:95). Contudo, é duvidoso se um perdão desejável pode ser
moralmente correto. Pelo menos, é preciso observar que “o que devemos
desejar para essa mudança dentro do coração parece de fato pertencer à
essência do perdão” (Kolnai: 1974, 104).
4. No processo de perdão, o autor do delito é colocado no mesmo nível
da vítima. Mesmo nas concepções tradicionais de perdão, a superioridade
moral da vítima inocente não é o único elemento fundamental. Desde o início
da era cristã, todos os seres humanos são considerados pecadores. De acordo
com Kant, é um dever de virtude não só abster-se de retribuir a inimizade do
outro com o ódio da mera vingança, mas também não apelar para o juízo do
mundo por vingança, em parte porque um ser humano tem culpa suficiente
para si próprio para ter muita necessidade de perdão (1996: 578).
Os psicólogos contemporâneos Malcolm, Warwar e Greenberg afirmam que a empatia pelo infrator envolve a capacidade de ver a outra
pessoa agindo de uma forma tipicamente humana, que pode decorrer do
contexto das suas próprias necessidades e percepções. Isso inclui (mas não
obriga) a possibilidade de reconhecimento de que o que o infrator fez era
semelhante a algo que o outro fez ou poderia fazer nas mesmas circunstâncias (2005: 385).
Sabidamente, ver o ofensor desse modo não significa tê-lo desculpado
ou perdoado.
5. O perdão fornece à vítima uma utilidade que não está ligada ao
prazer de fazer sofrer o culpado. Por isso, é errado supor que o perdão se
origina da generosidade. De acordo com Axelrod, a mais bem sucedida estratégia dos jogos, tit for tat, reage contra uma única jogada não cooperativa
de outro jogador com uma e somente uma resposta não cooperativa. Se o
outro jogador responder com um jogo cooperativo, o estrategista tit for tat
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deve reagir com um jogo cooperativo. O perdão consiste em restabelecer a
cooperação após a combinação entre uma única retaliação e uma modificação do comportamento do outro jogador. Portanto, ao contrário da concepção tradicional, esse modelo não exclui nem o ressentimento, tampouco a
vingança, mas limita o papel deles. Mesmo autores como Jean Hampton e
Jeffrey Murphy – que defendem o direito de “ressentimento” da vítima considerado como auto-defesa e como uma expressão de auto-respeito (1988:
24 s. e 49 s.) – não concebem o ressentimento em termos absolutos, mas,
pelo contrário, consideram-no um meio: para eles, o ressentimento é um
incentivo para o ofensor “não prejudicar” a vítima novamente (2005: 35).
A Doutrina da Virtude de Kant origina-se a partir dessa mesma perspectiva de prevenção. Kant diferencia o perdão da “suave tolerância diante dos
erros”, ou seja, da “renúncia dos meios rigorosos (rigorosa) para evitar que
outros repitam os erros” (1996: 578). Nesse sentido, as mães das vítimas
da ditadura militar Argentina da década de 1970 (Las Madres de Plaza de
Mayo) estão totalmente corretas. Elas não estão satisfeitas com a afirmação
de arrependimento por parte dos agressores, protestando contra a anistia a
eles concedida e exigindo um julgamento penal para aqueles que torturaram
seus filhos. Do mesmo modo, algumas das vítimas dos crimes praticados
pelo governo do antigo apartheid, na África do Sul, legitimamente criticam
a impunidade que varre esses crimes e que é feita para ser “perdão”, apesar
de Desmond Tutu fazer referência a ela como uma “decisão de política real
(Realpolitik)” (Tutu: 2007), que serve para evitar a guerra civil e promover
a estabilidade.
3. RAZÕES PARA A IMPERDOABILIDADE SUBJETIVA
O processo de coordenação através do qual um perdão eticamente correto é alcançado é de natureza cognitiva, uma vez que o autor do delito e a
sua vítima sabem quais passos são necessários, primeiramente por parte do
agressor e, em seguida, por parte da vítima. Em contrapartida, o processo de
perdão meramente subjetivo depende dos movimentos emocionais que tornam a emoção do perdão que pode ser conceituada ou a recusa do perdão,
que ocorre inicialmente por meio de um processo que integra a história do
passado da vítima e de sua relação com o agressor, bem como seus projetos,
práticas culturais, etc.
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A maioria dos argumentos a favor da tese segundo a qual existem coisas
que são imperdoáveis como uma questão de princípio se refere a algo subjetivamente imperdoável. Todos eles tornam a função da vítima absoluta.
1. Uma concepção tradicional de perdão considera-o como pagamento de uma dívida para com a vítima. Ora, tal pagamento pode ser
entendido de duas formas. Ele significa ou uma transformação radical do
comportamento do malfeitor ou alguma forma de compensação dada para
a vítima do mal que ela sofreu por causa do malfeitor. Até aqui argumentei
a favor da primeira; agora irei tecer alguns comentários sobre a segunda interpretação. A indenização por danos perpetrados pelo ofensor, na
medida em que é possível, de fato conta como uma das condições prévias
para o perdão. Se o perdão, no entanto, significasse apenas indenização
pelos danos sofridos pela vítima, haveria então pelo menos três resultados
que são incompatíveis com qualquer concepção de perdão. Em primeiro
lugar, um terceiro seria autorizado a intervir em nome dos ofensores e
proporcionaria uma compensação para a perda. Em segundo lugar, se um
malfeitor cheio de remorso não estivesse apto a fornecer compensação,
não seria permitido que ele fosse perdoado. Em terceiro lugar, o ato seria
desfeito pelo reembolso, isto é, seria como se o ato jamais tivesse acontecido. Ora, na realidade, o perdão nunca exclui, mas sempre inclui a memória do delito (cf. Allais: 2008). Quem perdoa suprime a culpa interna do
agressor, não a memória do delito. A opinião unânime é a de que o que é
perdoado não é somente não esquecido, mas também imputado ao malfeitor. Como Nietzsche salienta, o perdão exige uma diferenciação entre a
ação e o agente. A ação errada é imputada ao agente, mas o agente não é
reduzido a sua ação errada.
2. Em alguns casos, o processo do perdão exige mais esforços por
parte da vítima do que do criminoso.9 Isso não é motivo para considerar
a infração imperdoável. Vamos examinar um exemplo. Alguns estudiosos, como Vladimir Jankélévitch (1957: 213), consideram o perdão como
a exigência de que o autor do delito demonstre remorso com uma sinceridade que está além de qualquer dúvida. A partir disso, eles chegam à
conclusão de que o perdão é impossível. Uma vez que uma pessoa nunca
pode saber quais são realmente os verdadeiros motivos da outra pessoa
(ou até mesmo os seus próprios motivos), tal perspectiva deve conduzir
9
Cf. por exemplo, Montmarquet: 2007, 285 s.
271
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a uma desconfiança universal entre os seres humanos. Ora, tal desconfiança universal é contrariada pela existência de relações interpessoais,
que devem, na melhor das hipóteses, invocar interpretações plausíveis de
padrões comportamentais e sinais emocionais.
3. Alguns estudiosos, como o sociólogo Georg Simmel, identificam o
perdão com a reconciliação. R. S. Downie considera que “uma lesão implica
a ruptura da relação de admiração (ágape) e o perdão em sua restauração”
(1965: 133).
Contudo, a reconciliação é impossível sem perdão, embora este possa
ocorrer sem a reconciliação. Por exemplo, psicólogos observaram que um
importante aspecto da conceituação do perdão é o de que ele não prevê que
os parceiros devam se reconciliar para que ele possa ocorrer. Os parceiros
podem decidir encerrar o relacionamento e ainda cumprir as condições de
perdão (Copp, Gordon, Baucom e Snyder: 2005, 407).
Em casos como o de abuso sexual, especialmente nas circunstâncias em
que envolvem o incesto, a terapia bem sucedida e o perdão são subordinados
ao corte de todas as relações do agressor com a vítima; portanto, o perdão
deve ser realizado sem reconciliação.10
4. De acordo com Georg Simmel, ressentimento e desejo de vingança
são gradualmente suplantados aos olhos da vítima pelos traços positivos do
culpado, que a vítima, eventualmente, descobre ou redescobre (1955, p. 122).
Simmel descreve o caso de irreconciabilidade (irreconciability), como aquele em que o “conteúdo específico” do conflito torna-se o “grande centro da
personalidade” ou a “precipitação psicológica do conflito” torna-se “isolada”
no contexto psicológico global da vítima (1995: 122). O perdão ainda tem
lugar no segundo caso, embora a relação deixe de existir ou seja reduzida em
valor. Embora Simmel identifique o perdão com a reconciliação e considere
o perdão irracional – o que, a meu ver, são afirmações incorretas – esse caso
implica claramente poder o perdão ocorrer sem qualquer reconciliação.
5. Freqüentemente confunde-se a falta de perdão em casos individuais
com imperdoabilidade como uma questão de princípio. Porém, mesmo no
caso de um processo de perdão falho, não se pode excluir a possibilidade de
que o processo possa ser retomado num momento posterior e que, então,
possa ser bem sucedido pelo menos enquanto ele não tenha levado a novas
ofensas. Como Martin Luther King disse, o perdão pode levar tempo.
10
Cf. Noll: 2005, 371.
272
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Ao contrário do que pensa Hannah Arendt, até mesmo a morte da vítima não impossibilita o perdão (1960: 233). É conhecido que Hans Jonas
e Vladimir Jankélévitch sustentam que os genocídios da Segunda Guerra
Mundial são imperdoáveis. No mesmo sentido, o prêmio Nobel Elie Wiesel
escreveu A Prayer of Unforgiveness (Uma Oração da Imperdoabilidade). Os
textos deles e a carência de qualquer expressão de ressentimento mostram
claramente que esses autores não estão tomando uma posição que é contra o
perdão, mas, em vez disso, eles estão apelando para a memória dessas atrocidades, para que eles nunca ocorram novamente.
Note-se que se a tese da imperdoabilidade após a morte da vítima fosse
aplicada inteiramente, ter-se-ia como resultado exatamente o oposto do que
normalmente se busca com ela. Em vez de separar um tipo de crime particularmente grave de todos os outros, essa tese serve para tornar todas as
violações, por menores que sejam, imperdoáveis após a morte da vítima. Ela
confunde portanto o final contingente de um processo de perdão com a impossibilidade de perdão baseado em princípios. Em outras palavras, essa tese
confunde privatio com contradictio. Na realidade, um malfeitor pode cumprir
os requisitos para o perdão, demonstrando remorso após a morte da vítima e
alterar o seu comportamento para fazer um esforço sincero para não causar
mais danos a qualquer outra pessoa. Além disso, vice-versa: a vítima pode
perdoar um agressor falecido que já tinha iniciado o processo de perdão antes
de sua morte.
Por último, mas não menos importante, pode-se refutar a tese da existência de ações em princípio imperdoáveis através de uma reductio ad absurdum. Vamos supor que houve uma violação tão grave e abominável que
alguém poderia muito bem considerá-la como “imperdoável”. Então, por que
os agressores, que supostamente seriam eternamente imperdoáveis, não só
seriam punidos, como também se esperaria que exibissem um determinado
comportamento moral? A história tem mostrado que se pode esperar diversos
atos em relação ao criminoso: que ele seja exposto com o pelouro11 e que então
as pessoas obtenham sua vingança; que o agressor sinta vergonha e se esconda
na margem da sociedade ou viva no exílio; que ele continue se castigando para
11
Nota dos tradutores: no original aprece o termo pillory, cuja tradução literal em português
seria pelourinho, mas que preferimos traduzir por pelouro (embora esta última possa significar
também uma divisão administrativa), porque aqui o autor tem em mente a peça de metal ou madeira que era colocada no pescoço dos criminosos, na china antiga, que possibilitava que o povo
pudesse agredi-lo, e com isso vingar-se do criminoso.
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o resto de sua vida. Em todos esses casos, exige-se exatamente aquilo que é
necessário para o perdão e o que necessariamente pertence ao processo do
perdão: confissão de culpa, remorso e novas máximas que regem a atuação do
infrator. Embora algumas pessoas possam sentir-se aliviadas se um ser humano que suporta uma culpa particular se suicida, a maioria das pessoas acharia
muito melhor ouvir que pelo menos a pessoa mostrou remorso nos últimos
momentos da sua vida. Isso prova que as pessoas envolvidas consideram o
processo do perdão algo inacabado e não evidência de imperdoabilidade absoluta. Isso contradiz a concepção de perdão de Jacques Derrida: ele considera
que o perdão é tão impossível – pois o remorso não tem valor moral – quanto
necessário – pois isso é indispensável à preservação das relações interpessoais
(2001). Na realidade, o perdão é possível por ser indispensável.
4. O INTERESSE EM AFIRMAR A IMPERDOABILIDADE
Se uma reconstrução da ética do perdão não pode incluir qualquer imperdoabilidade absoluta, por qual razão é a crença em tal imperdoabilidade
tão generalizada? Que interesse ou que interpretação equivocada de um interesse pode conduzir a essa crença?
O interesse da vítima nesta crença é óbvio. A crença na imperdoabilidade
leva a rejeitar a hipótese de que a vítima e o agressor estão fundamentalmente
situados no mesmo nível moral, porque os dois são pecadores em potencial.
Através da imperdoabilidade, a vítima obtém uma superioridade eterna sobre
o ofensor.
A opinião pública normalmente considera alguns delitos particularmente graves como imperdoáveis; por exemplo, a tortura em série e o assassinato
de crianças ou o genocídio. Essa visão pode ser interpretada de duas maneiras. Pode acompanhar uma concepção preventiva, ameaçando potenciais infratores com um ostracismo eterno, mas pode também externar a maldade
da ação, expressando a opinião de que tais crimes particularmente graves não
poderiam realmente derivar da própria sociedade. Dessa forma, o crime e os
maus subjacentes são deslocados para um “santuário” - utilizando o significado sociológico desta palavra de Durkheim. Nessa perspectiva, esses infratores
particularmente graves não podem ser do mesmo tipo que os infratores que,
de fato, demonstram remorso e melhoram o seu comportamento, e nunca
poderiam ter sido pessoas normais. Em vista dessa situação, a pessoa comum
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poderia se sentir imunizada contra o cometimento de tais delitos graves. Essa
falácia poderá distrair a atenção moral do agente.
Não só a vítima e as pessoas comuns, mas também o próprio delinqüente, podem se beneficiar da desigualdade fundamental do status moral baseado
na tese da imperdoabilidade. Alguns infratores ainda acreditam que, depois
da morte de sua vítima, mesmo se viverem um modo de vida não reprovável,
e às vezes mesmo se a vítima o tiver perdoado expressamente, eles não podem
perdoar a si próprios. Eu vejo três explicações possíveis para este fenômeno.
Cada uma delas é devida a uma má interpretação do conceito de perdão.
A primeira explicação é que os agressores não só lamentam a ofensa, mas
também se sentem envergonhados por causa dela.12 Essa vergonha pressupõe
uma separação do ser humano em duas partes: a parte da infração e a parte do
julgamento. Nesse caso, a causa da vergonha não é a forma específica de culpa
que o culpado está tentando corrigir (apresentando remorso, reformando a si
próprio, etc.), mas, ao contrário, é a própria possibilidade de o agressor fazer
algo que exigiria perdão (cf. Dillon: 1992, 128). Essas duas partes da mesma
pessoa são fundamentais na relação de desigualdade moral: a parte do julgamento nunca poderia ser pecadora. Segundo a análise de Bernard Williams, a
vergonha não conduz ao cumprimento do nosso dever, ou seja, a uma confissão da nossa culpa, ao remorso e à reforma, mas, em vez disso, ela leva à sua
negação, à dissimulação, à mentira e às violações futuras. 13
A segunda explicação para a impossibilidade de se perdoar repousa
sobre o status super-rogatório14 do perdão na concepção tradicional a qual
me referi na introdução. Nessa perspectiva, o ofensor pode apenas pedir o
perdão à sua vítima, uma vez que ele é fundamentalmente incapaz de perdoar
a si próprio, e o cumprimento da condição prévia para o perdão (confissão de
culpa, arrependimento, reforma, etc.) representa uma condição sine qua non,
mas de forma alguma uma condição suficiente para o perdão.
A concepção do perdão como algo super-rogatório não só fundamenta a imperdoabilidade por parte da vítima, mas também é subjacente à
12
Na verdade, o sentimento de culpa é freqüentemente combinado com vergonha. Dillon (2001:
83), por exemplo, considera que aquilo que deve ser perdoado por si mesmo como “um fardo de
culpa e vergonha”.
13
Cf. Williams: 1994, Gibbard:1990, 138 s. e Deigh:1983.
14
Nota dos tradutores: no original, aparece o termo supererogatory, e que significa, como explica o próprio autor no parágrafo seguinte, o mérito demonstrado quando alguém faz mais do que
seu dever.
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imperdoabilidade por parte do autor do delito. Na perspectiva da super-rogação, a confissão de culpa, o arrependimento e a reforma das máximas que
regem as ações de alguém podem ser sempre melhoradas. A super-rogação,
isto é, demonstrar mérito fazendo mais do que um dever estrito, consiste em
três componentes (cf. Wessels: 2002). O primeiro componente é que alguém
pode fazer mais do que o seu dever moral, e que ganha mérito realizando
esse excedente. O segundo componente é que o esforço exercido para esse
excedente seja contado como um mérito, seja qual for o resultado possível.
O terceiro componente funciona da seguinte forma: se alguém faz mais do
que o seu dever, mas não faz tanto quanto poderia ter feito se tivesse feito
um esforço maior, então, ele teria menos valor moral do que a pessoa que
apenas cumpriu seu dever, porque ele parece ser menos coerente. Assim,
há a possibilidade de um aumento potencialmente ilimitado sobre o caminho para merecer o perdão. Há, no entanto, um alvo não identificado para
esse esforço acrescido, o qual trai a sua vacuidade. Essa concepção resulta
na ilusão, desmascarada por Rüdiger Bittner (1992), que o sofrimento, por
exemplo o sofrimento causado por lamentação assim como o sofrimento
causado pela dor de imperdoabilidade, tem um valor moral. Esse sentimento é moralmente questionável, porque ele pode nos desviar do cumprimento
das nossas funções na vida quotidiana.
Enquanto a primeira e a segunda explicação tornam a negação do
auto-perdão tão imoral quanto a negação do perdão como uma questão
de princípio, a terceira explicação é eticamente correta, mas apóia a perdoabilidade em vez da imperdoabilidade. De acordo com essa explicação,
a tese da imperdoabilidade pretende expressar a natureza pecaminosa do
ser humano. Assim, mesmo se fossemos perdoados por qualquer culpa
que suportamos, a memória de toda culpa ainda permaneceria em nós
e com ela poderia restar na memória um mal radical que nunca poderá
ser erradicado e que pode, a qualquer momento, nos induzir a ofender
outros seres humanos. Nesse caso, é a nossa própria natureza humana
que nunca pode nos perdoar. Mas, nesse caso, com quem pode o processo
de coordenação que leva ao perdão ter sucesso ou fracasso? Quer tenha
sucesso ou fracasso, ele não pode estar com os seres humanos, uma vez
que partilham conosco conditio humana, nem com outros seres vivos. Faz
pouco sentido se referir à imperdoabilidade perante Deus, porque não há
qualquer indicação de tal imperdoabilidade eterna dos seres humanos por
Deus na teologia (pelo menos na teologia cristã): a oração “O Pai nosso”
276
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(Pater noster) formula o pedido de que Deus nos perdoe, da mesma forma
que nós perdoamos os outros. Imperdoabilidade divina seria a passagem
dos seres humanos para a categoria ocupada por Satanás, cujas ações só
poderiam ser más e que, portanto, mereceria a imperdoabilidade eterna.
No entanto, os seres humanos são sempre capazes de mudar, de uma perspectiva religiosa ou temporal.
Portanto, uma suposta recusa da auto-perdoabilidade só pode significar
um aviso que é dirigido aos seres humanos, a fim de lembrar-lhes que não esqueçam os seus malefícios e para dificultar tendências negativas que continuam tentando tomar o controle. Por isso mesmo, nós devemos ser perdoados.
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Recebido em: 21/10/2014
Aprovado em: 28/10/2014
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INSIDER TRADING:
O alcance subjetivo da proibição do uso indevido de
informação privilegiada
TELDER ANDRADE LAGE1
RESUMO
O insider trading consiste no uso de informações relevantes e privilegiadas com o intuito de obter vantagem indevida, para si ou para outrem, no
âmbito do mercado de capitais. Tal conduta acarreta uma séria insegurança
ao mercado de capitais, pois sua conseqüência natural é uma ausência de correlação entre o preço real do valor mobiliário negociado com o efetivamente
praticado na transação, tendo em vista que uma das partes não possuía todas
as informações necessárias para mensurar o valor justo do título negociado.
Com isso, tem-se que os mercados de capitais em que há maior incidência do
insider trading são menos desenvolvidos do que aqueles que o combatem de
maneira mais eficaz.
No Brasil muito se tem discutido sobre o alcance subjetivo da vedação ao
insider trading. Uma primeira corrente entende que apenas as pessoas que tenham acesso a informação privilegiada em virtude do exercício profissional poderiam praticar o insider trading, ao passo que uma segunda corrente entende
que tal vedação abrange a qualquer pessoa, não existindo qualquer restrição em
relação à origem da informação. O presente artigo visa solucionar este impasse.
Palavras chave – Mercado de Capitais, Insider Trading, alcance subjetivo.
ABSTRACT
The insider trading consists in the use of relevant and privileged information for the purpose of obtaining not allowed advantaged, for yourself or
1
Mestre em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton Campos. Especialista em Direito
Constitucional pela PUCMinas e em Direito Internacional pelas Faculdades Milton Campos.
Professor do programa de Graduação do Centro Universitário UNA. Professor do programa de
Pós-Graduação do Centro de Direito Internacional-CEDIN e do Instituto de Altos Estudos em
Direito-IAED.
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anyone, in the area of capital market. That action entails a serious insecurity in
the capital market, because its natural consequence will be the lack of correlation
between the real estate value that is negotiated and the one that is effectively
observed in the transaction, because one of the traders does not have all the
information needed to measure the fair price of the negotiated financial title. In
conclusion, the capital market that has the higher incidence of insider trading is
less developed than the ones that combat it in an efficient way.
There are many discussions in Brazil about the subjective scope of the
prohibition of insider trading. One of the points of view understands that only
people that have access to the privileged information because of their job
could practice the insider trading. On the other hand, it is understood that the
insider trading action is prohibited to anyone, although it has no relation with
the source of information. The present paper aims to solve this doubt.
Key words: Capital Market – Insider Trading – Subjective scope.
1. INTRODUÇÃO
1.1. O INSIDER TRADING
Conceito de Insider Trading
Como bem preleciona FRANCISCO ANTUNES MACIEL MÜSSNICH
(1979, pág. 31/32), para que se entenda o conceito da expressão insider trading é preciso acompanhar o desenvolvimento das sociedades empresárias
que compõem o mercado de capitais. Importante enfatizar que este autor
entende que “o desenvolvimento da empresa moderna como principal instrumento do capitalismo foi sem dúvida o resultado da sua enorme versatilidade como modelo jurídico apropriado de organização.” Mais adiante o
autor subdivide a história das sociedades integrantes do mercado de valores
mobiliários em dois grandes períodos, sendo que no primeiro “o empresário e a empresa confundiam-se, assim como confundiam-se as noções de
administração e capital.” Ou seja, num primeiro momento o fundador ou
os acionistas controladores eram os responsáveis diretos pela administração
das companhias abertas.
O segundo período caracterizou-se pelo surgimento dos administradores profissionais sendo que “nesta fase, as funções usualmente atribuídas
281
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aos empresários, vão sendo gradativamente transferidas a esta nova ‘classe’,
cuja única função era administrar a empresa, muito embora, na maioria das
vezes, nunca tivessem participado da sua criação ou ainda investido capital
de risco.” Tal fato se deveu à alteração do mercado que exigiu um maior conhecimento técnico especializado na administração das companhias, a fim
de que alcançassem lucros mais significativos, por isso os poderes de decisão
foram ao longo dos anos se transferindo dos acionistas para os administradores profissionais.
A alteração na forma de administração das sociedades empresárias acarretou o crescimento das mesmas, o que atraiu mais investidores para este mercado. Referidos investidores, como já explanado, não praticam diretamente
atos de administração da companhia2, possuindo como única preocupação
a obtenção de lucro, que pode ser obtida por meio da distribuição de dividendos ou da negociação de títulos no mercado secundário. E com esta nova
estrutura das Sociedades Anônimas surgiu a preocupação de que seus administradores utilizassem de maneira desleal fatos relevantes, ainda não divulgados ao público, o que fez transparecer a necessidade de se criarem institutos
jurídicos que protegessem os demais investidores.
Ficara evidente que a proximidade e conhecimento dos administradores,
dos fatores e métodos de produção, possibilitavam a extração de informações privilegiadas, o que assim os colocava em uma situação de superioridade, em comparação com as demais pessoas que não possuíam o
mesmo fácil acesso. Permitir a utilização desleal destas informações privilegiadas causaria sérios danos à eficiência do mercado e resultaria no
enriquecimento ilícito de alguns às expensas dos outros. (MÜSSNICH,
1979, p. 32)
Surgiram então os primeiros insiders, que são aquelas pessoa que possuem conhecimento de fato relevante de uma companhia integrante do mercado de capitais, e cuja divulgação necessariamente afetará a cotação dos
valores mobiliários de emissão da companhia a qual se refere. Assim, a divulgação desta, alteraria a conduta dos demais participantes, que na sua posse
adotariam postura diferente nas transações envolvendo os títulos emitidos
2
Importante ressaltar que existem espécies de ações que atribuem ao seu titular poder de voto
nas deliberações da assembléia geral, o que não se confunde com os atos de administração que são
de competência de outros órgãos sociais (Diretoria e Conselho de Administração).
282
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pela companhia. Por óbvio que o surgimento dos insiders levou à criação
de mecanismos jurídicos que visam impedir o uso indevido de informação
privilegiada:
Mesmo conhecendo os perigos que a utilização desleal de informações privilegiadas poderia trazer para os negócios mobiliários, os
sistemas legais, sensíveis a este problema, se viram diante de um impasse, pois os administradores eram os únicos e capazes de dirigirem
as empresas. Era necessário assegurar-lhes uma certa liberdade para
uma administração eficiente da empresa e para a elaboração de suas
políticas de investimento. A curto prazo, o único meio de se atingir este objetivo, foi o de criar um instrumental jurídico tal, capaz
de impedir que eles – os administradores – pudessem tirar proveito
dessa situação privilegiada, tratando com rigor ainda maior as suas
operações com os negócios da empresa. A longo prazo, pelos tribunais (principalmente nos Estados Unidos da América), com base em
conceitos éticos, que originaram o dever de diligência e o dever de
lealdade. (MÜSSNICH, 1979, p. 33)
Realizada uma breve análise do contexto histórico que deu origem ao
surgimento dos insiders, bem como do próprio insider trading, necessário
analisar o conceito desta expressão. Tem-se que o insider pratica insider trading quando efetua transação envolvendo valores mobiliários da companhia
da qual sabe de fato relevante ainda não divulgado aos demais investidores do
mercado de capitais, e valendo-se desta, prevê o comportamento do mercado
quando de sua divulgação, e negocia valores da sociedade empresária visando
auferir vantagem indevida para si ou para outrem. Referida vantagem pode
ser tanto o lucro oriundo da negociação de títulos no mercado de capitais
(aquisição de valores mobiliários que irão valorizar após a divulgação do fato
relevante), como também pode decorrer de negociações que visam evitar um
prejuízo iminente. Essa segunda hipótese fica caracterizada quando o investidor, valendo-se de informação privilegiada, prevê que determinado título irá
sofrer uma grande desvalorização e vende a outrem aqueles de sua propriedade, antes que a informação seja divulgada. Nesta linha são os ensinamentos de
NEWTON DE LUCCA:
Esta expressão (insider trading), originária do direito norte-americano,
é hoje internacionalmente conhecida e consagrada para designar as
283
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transações desleais, porque insidiosas, realizadas no âmbito do mercado de
capitais. Consiste no aproveitamento de informações relevantes, ainda não
divulgadas ao público e capazes de influir nas decisões tomadas no mercado, por parte de administradores, principais acionistas e outros que a elas
têm acesso, para negociar com investidores ignaros dessas mesmas informações. Se estes últimos tivessem ciência, em tempo oportuno, daquelas
informações privilegiadas, ou não teriam realizado aquelas operações, ou
as teriam celebrado em condições diversas. (LUCCA, 2005, p. 41/42)
A prática do insider trading além de violar diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, como se demonstrará adiante, fere frontalmente
princípios basilares do sistema jurídico, como a isonomia, a equidade, o não-enriquecimento sem causa e a boa-fé objetiva.
2. O INSIDER TRADING NO DIREITO BRASILEIRO
2.1. Considerações iniciais
Conforme já demonstrado, o insider trading é o uso desleal de informações privilegiadas no âmbito do mercado de capitais. Consiste, portanto na
utilização de fatos relevantes, ainda não divulgados, que uma vez tornados
públicos tendem a acarretar uma alteração no valor econômico de títulos emitidos por uma companhia, visando auferir vantagem indevida.
No ordenamento jurídico brasileiro vários são os dispositivos legais
que regem a matéria, existindo normas repressivas e preventivas à prática
do insider trading. As normas preventivas são aquelas que estabelecem o
sistema de transparência da informação, ao passo que as normas repressivas se caracterizam por estabelecer sanções de natureza civil, penal ou
administrativa à utilização de informação privilegiada no âmbito do mercado de capitais.
Tem-se, portanto, que normas preventivas dizem respeito ao dever dos
administradores de informar ao público todas as informações relevantes das
companhias, ao passo que as normas repressivas são aquelas que impõem
sanções àqueles que praticam o Insider Trading. No ordenamento jurídico
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brasileiro, o art. e 1573, da Lei nº 6.404/76, que prevê que os administradores devem informar os títulos de emissão da companhia de que seja titular,
bem como as alterações em sua posição acionária, é exemplo claro de norma
preventiva, ao passo que o art. 27-D da Lei nº 6.385/764 é exemplo expresso
de norma repressiva, vez que trata do crime do uso indevido de informação
3
Confira a redação do artigo citado: “Art. 157. O administrador de companhia aberta deve
declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de
ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas
ou do mesmo grupo, de que seja titular.
§ 1º O administrador de companhia aberta é obrigado a revelar à assembléia-geral ordinária, a
pedido de acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social:
a) o número dos valores mobiliários de emissão da companhia ou de sociedades controladas, ou
do mesmo grupo, que tiver adquirido ou alienado, diretamente ou através de outras pessoas, no
exercício anterior;
b) as opções de compra de ações que tiver contratado ou exercido no exercício anterior;
c) os benefícios ou vantagens, indiretas ou complementares, que tenha recebido ou esteja recebendo da companhia e de sociedades coligadas, controladas ou do mesmo grupo;
d) as condições dos contratos de trabalho que tenham sido firmados pela companhia com os diretores e empregados de alto nível;
e) quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades da companhia.
§ 2º Os esclarecimentos prestados pelo administrador poderão, a pedido de qualquer acionista, ser
reduzidos a escrito, autenticados pela mesa da assembléia, e fornecidos por cópia aos solicitantes.
§ 3º A revelação dos atos ou fatos de que trata este artigo só poderá ser utilizada no legítimo
interesse da companhia ou do acionista, respondendo os solicitantes pelos abusos que praticarem.
§ 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa
de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de
administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de
modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia.
§ 5º Os administradores poderão recusar-se a prestar a informação (§ 1º, alínea e), ou deixar de
divulgá-la (§ 4º), se entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia,
cabendo à Comissão de Valores Mobiliários, a pedido dos administradores, de qualquer acionista,
ou por iniciativa própria, decidir sobre a prestação de informação e responsabilizar os administradores, se for o caso.
§ 6o Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na
forma determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia.
(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)”
4
Confira a redação do artigo citado: “Uso Indevido de Informação Privilegiada (Incluído pela
Lei nº 10.303, de 31.10.2001)
Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida,
mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários: (Artigo incluído
pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem
ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)”
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privilegiada. Ressalta-se, contudo, que o estudo do aspecto criminal do insider
trading não é objeto da presente análise.
Ao analisar a regulamentação do uso indevido de informações privilegiadas no mercado de capitais, JOSÉ MARCELO MARTINS PROENÇA5
(2005, p. 271) ensina que este tema vem evoluindo bastante no ordenamento
jurídico brasileiro, tendo a legislação nacional consagrado “os princípios inerentes aos deveres de diligência, de lealdade e de informar”, e o combate a tal
conduta pode ser considerado como produto natural destes.
Acerca do dever de informar, também conhecido como princípio da
transparência, ou princípio do disclosure (como é denominado no direito
norte-americano), tem-se que, para que o insider trading efetivamente seja
evitado, faz-se necessária não só a divulgação dos fatos relevantes, mas a adoção das medidas necessárias para que todos os participantes do mercado de
capitais tenham acesso simultâneo à nova informação divulgada:
O princípio do disclosure não se esgota apenas com a prestação de informações: é preciso que paralelamente medidas sejam tomadas para
que todos os investidores potenciais tenham, ao mesmo tempo, acesso
às novas informações, impedindo-se assim que os administradores, altos
empregados e acionistas controladores, utilizem-se em proveito próprio
de informações colhidas em primeira mão por força da posição que
ocupam. A repressão ao insider trading é, destarte, corolário natural da
adoção do princípio do disclosure na regulação do mercado de valores.
Ora, adotado o princípio em tela pela legislação de mercado brasileiro,
natural que se excogitasse da proibição do insider trading. (LEÃES, 1982,
p. 172/173).
Após a análise do dever de informar, necessário examinar os deveres de
lealdade e diligência. Sendo que o primeiro refere-se ao dever que os administradores possuem de exercer sua profissão sempre objetivando o bem da
companhia, se furtando a usar em proveito próprio, oportunidades comerciais que surjam em virtude do cargo ocupado. Por outro lado, o dever de
diligência está relacionado ao zelo que os administradores devem possuir no
exercício profissional, devendo sempre agir de maneira cuidadosa, evitando
possíveis falhas:
5
José Marcelo Martins. Insider Trading: Regime Jurídico do Uso de Informações Privilegiadas
no Mercado de Capitais. São Paulo: Editora Quartier Latin. 2005, pág 271
286
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O dever de diligência é basicamente uma obrigação de caráter geral imposto aos administradores e pode ser definido como sendo o cuidado
que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de
seus próprios negócios. No direito norte–americano, os tribunais julgam
estes casos considerando as suas particularidades e prova de fraude, tem
sido, invariavelmente, o fator determinante na solução destas lides.
O dever de lealdade impede que os administradores usem em benefício
próprio ou de outrem, as oportunidades comerciais que lhes são proporcionadas em decorrência do cargo que ocupam. O fundamento legal
desta obrigação é que os administradores devem exercer suas funções no
interesse da empresa tendo em vista a sua função social. (MÜSSNICH,
1979, p. 33).
Ou seja, se o administrador de uma sociedade anônima deve se comportar como homem ativo e probo, se furtar a tirar proveito de oportunidades
comerciais que lhe foram oportunizadas em virtude do cargo ocupado, bem
como deve diligenciar para divulgar corretamente os fatos relevantes, nada
mais natural do que impedir que este utilize informações não divulgadas para
obter vantagem para si ou para outrem.
Após o exame dos princípios supra, insta demonstrar a existência de
razões de ordens éticas e econômicas para a proibição da prática do insider
trading. As razões de cunho econômico decorrem do simples fato de que
mercado de capitais eficiente é aquele em que os valores mobiliários possuem
cotação que reflita exatamente as informações já divulgadas pela companhia.
Além do que é necessário que os participantes possuam segurança de que não
correm risco de negociar com outros integrantes detentores de informações
relevantes ainda não divulgadas. Isso porque os investidores somente farão
aporte de recursos em mercados cujos riscos existentes se limitem aos oriundos do próprio investimento.
Importante frisar que, segundo ALEXANDRE ASSAF NETO (2006, p.
75), o mercado de capitais além de ser mecanismo fundamental para o desenvolvimento da economia, é um importante veículo de captação de investimentos internacionais, e que o ingresso de capital estrangeiro numa economia
pode trazer vários benefícios, dentre os quais destacam-se a melhora na imagem internacional do país; o fato de que com a entrada de divisas o governo
pode financiar seu déficit por prazos maiores, e com taxa de juros reduzida;
287
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e o de que o aumento no fluxo de divisas propicia, às sociedades empresárias, uma maior facilidade para ampliação da produção e investimentos em
imobilizado.
JULIANO LIMA PINHEIRO (2009, p. 46/47) ressalta que o investidor
internacional, peça importantíssima para o desenvolvimento econômico de
um país, é extremamente sensível à conjuntura internacional e somente deixa
de investir em seu próprio mercado em busca de uma maior segurança (riscos
menores) e maiores lucros. Assim, não restam dúvidas de que para que haja
um bom funcionamento do mercado de capitais é necessário conferir o máximo de segurança possível aos seus participantes.
Destaca-se, ainda, que os mercados de capitais que asseguram maior
proteção aos investidores são mais desenvolvidos, e que dentre as condições
básicas para o seu desenvolvimento encontra-se a necessidade de uma ampla
divulgação das informações, permitindo que os acionistas não controladores
e demais investidores possuam informações adequadas sobre o valor da companhia, e, por conseguinte de seus fatos relevantes, esses são os ensinamentos
de ANDREZO ANDREA FERNANDE ANDREZO (2003, p.161/162).
Por outro lado, NELSON EIZIRIK et al (2005, p. 182) sustente que as
razões éticas são patentes, à medida que é inegável a disparidade existente
numa negociação em que um investidor tem acesso a mais informações do
que aquele com quem negocia, sendo reprovável a obtenção de vantagens por
meio do uso de informações privilegiadas, caracterizando, inclusive lesão ao
princípio constitucional da isonomia.
Importante destacar que o desenvolvimento do mercado de capitais influencia toda a economia de um país, razão pela qual sua regulação e proteção
se tornam claro interesse público, fato este que leva à inarredável conclusão
de que o Insider Trading deve ser combatido de maneira eficaz, assegurando,
assim, uma maior confiabilidade aos investidores.
Realizada esta prévia análise acerca dos fundamentos que dão azo ao
combate à prática do insider trading, necessário esclarecer que no Brasil há
uma clara tentativa de tornar o mercado de capitais cada vez mais eficiente
naquilo que tange a divulgação de informações, tendo a CVM regulamentado a matéria em diversas instruções normativas, dentre as quais cita-se a
mero título exemplificativo as instruções 480/09, 481/09, 488/10, dentre outras. Contudo, apesar da edição de recentes instruções que versam sobre a
divulgação de informação no âmbito do mercado de capitais, tem-se que os
principais dispositivos normativos de combate ao insider trading continuam
288
revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
sendo os arts. 153, 155, 156 e 157 da LSA, bem como a instrução normativa
358/02 da CVM, que sofreu alterações pelas instruções normativas 369/02 e
449/07 e o artigo 27-D da Lei de Valores Mobiliários6 (Lei 6.385/76).
A Lei de nº 6.404/76 (Lei de S.A.) é o principal diploma legal que trata
da matéria em exame. Referida lei consagra em seu art. 153 o dever de diligência, ao estabelecer que “O administrador da companhia deve empregar,
no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo
e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”,
previsão esta que também encontra-se insculpida no artigo 1.011 do Código
Civil Brasileiro. Comentando o art. 153 da Lei nº 6404/76, MODESTO
CARVALHOSA (2003) ensina que para a responsabilização do administrador, em casos de possíveis equívocos na administração da sociedade empresária aberta, necessário analisar a presença da boa-fé, não sendo responsável
por erros, caso tenha agido de boa-fé e de forma diligente.
Mais adiante, referida Lei, em seus artigos 155, que será analisado em
momento oportuno, e 157, consagrou, respectivamente, os deveres de lealdade e de informar.
6
Neste primeiro momento não será analisado o art. 27-D da LVM, tendo em vista que será
objeto de estudo específico ao longo do presente artigo.
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revista jurídica da Faculdade UNA de Contagem
Importante destacar que o art. 1577, caput, da Lei de S.A. estabelece que a
necessidade do administrador de companhia aberta divulgar, ao firmar o termo
de compromisso, os valores mobiliários de emissão da companhia, de sociedades controladas, ou pertencentes do mesmo grupo, dos quais seja titular.
Acrescenta-se que o § 1º deste mesmo artigo estabelece que um grupo
de acionistas que representem pelo menos 5% do capital social da companhia,
poderá solicitar ao administrador informações acerca das transações que tiver
realizado, envolvendo valores mobiliários de emissão da companhia, de sociedades controladas, ou pertencentes ao mesmo grupo, bem como questioná-lo acerca dos benefícios e vantagens que tenha recebido ou esteja recebendo
de referidas sociedades. Tais acionistas, podem, ainda, requerer informações
sobre as condições de contrato de trabalho dos diretores e empregados de alto
7
Confira, novamente, a redação atual do artigo 157 da Lei nº 6404/76: “Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus
de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da
companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular.
§ 1º O administrador de companhia aberta é obrigado a revelar à assembléia-geral ordinária, a
pedido de acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social:
a) o número dos valores mobiliários de emissão da companhia ou de sociedades controladas, ou
do mesmo grupo, que tiver adquirido ou alienado, diretamente ou através de outras pessoas, no
exercício anterior;
b) as opções de compra de ações que tiver contratado ou exercido no exercício anterior;
c) os benefícios ou vantagens, indiretas ou complementares, que tenha recebido ou esteja recebendo da companhia e de sociedades coligadas, controladas ou do mesmo grupo;
d) as condições dos contratos de trabalho que tenham sido firmados pela companhia com os diretores e empregados de alto nível;
e) quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades da companhia.
§ 2º Os esclarecimentos prestados pelo administrador poderão, a pedido de qualquer acionista, ser
reduzidos a escrito, autenticados pela mesa da assembléia, e fornecidos por cópia aos solicitantes.
§ 3º A revelação dos atos ou fatos de que trata este artigo só poderá ser utilizada no legítimo
interesse da companhia ou do acionista, respondendo os solicitantes pelos abusos que praticarem.
§ 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa
de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de
administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de
modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia.
§ 5º Os administradores poderão recusar-se a prestar a informação (§ 1º, alínea e), ou deixar de divulgá-la (§ 4º), se entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia, cabendo à
Comissão de Valores Mobiliários, a pedido dos administradores, de qualquer acionista, ou por iniciativa
própria, decidir sobre a prestação de informação e responsabilizar os administradores, se for o caso.
§ 6o Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na
forma determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia.
(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)”
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nível da companhia, e sobre quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades
da companhia.
Por força do §3º do dispositivo legal em exame, a revelação dos fatos
supra, só poderá ser utilizada em proveito de interesse legítimo da companhia
ou do acionista, devendo os solicitantes serem responsabilizados por possíveis
abusos que praticarem, o que pode ocorrer, dentre outras hipóteses, se utilizarem as informações obtidas para praticar o insider trading.
Por força dos parágrafos 4º e 5º deste dispositivo legal, os administradores possuem o dever de comunicar imediatamente à bolsa de valores e divulgar ao público, qualquer fato que possa influir na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia, ou seja, devem divulgar qualquer informação
que possa alterar a decisão dos investidores de negociar títulos emitidos pela
sociedade. Contudo, caso sua divulgação coloque em risco interesse legítimo
da companhia, os administradores poderão recusar-se a prestar a informação aos acionistas que solicitarem, bem como podem deixar de divulgá-la
aos demais investidores. Todavia, conforme posicionamento de WALTER
DOUGLAS STUBER (2002, p. 258) não pode o administrador deixar de informar à Comissão de Valores Mobiliários sobre os fatos ou atos relevantes,
cabendo à esta autarquia, a pedido dos administradores, acionista, ou por iniciativa própria decidir sobre a prestação de informações, bem como, se for o
caso, responsabilizar os administradores.
Cumpre destacar que através da Lei n º 10.303/2001, foi inserido no
artigo em comento, o §6º que determina que os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, à CVM e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores
mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as
modificações em suas posições acionárias na companhia em que exercem
atividade profissional.
O §6º do art. 157 da Lei de S.A., introduzido pela Lei nº 10.303/01, que
trata do dever dos administradores em informar alterações em sua posição
acionária, é mais uma forma de prevenção à prática do insider trading. Apesar
do §6º se referir expressamente às negociações de ações, uma análise conjunta
do art. 157 da Lei em apreço, leva à inarredável conclusão de que o dever ali
estampado se estende aos demais valores mobiliários previstos no caput de
referido artigo, quais sejam: ações, bônus de subscrição, opções de compra de
ações e debêntures conversíveis em ações.
Após análise do artigo 157, que conforme demonstrado consagrou o
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dever de informar, impõe-se uma análise precisa do artigo 1558 da Lei de S.A.,
que em seu caput estabelece que “o administrador deve servir com lealdade
à companhia e manter reserva sobre os seus negócios”, vedando, ainda, em
seus incisos que o administrado utilize em benefício próprio ou alheio, com
ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais que surjam
em virtude do cargo por ele ocupado; A omissão no exercício ou proteção
dos direitos da companhia ou, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia, para obter vantagem indevida para si ou para
outrem; bem como a aquisição, para revenda, com lucro de bem ou direito de
que a companhia necessite ou pretenda adquirir.
Os parágrafos 1º e 2º do artigo 155, da Lei nº 6.404/76, atribuem ao administrador o dever de guardar sigilo sobre qualquer informação, que tenha
tomado conhecimento em função do cargo que ocupa, e que ainda não tenha
sido divulgada e, cuja divulgação, possa causar uma variação na cotação dos
valores mobiliários de emissão da companhia (informação privilegiada), vedando, também, a utilização, pelo administrador, de referida informação para
a obtenção de lucro para si ou para outrem. Insta enfatizar que o administrador da companhia deve zelar para que seus subordinados e terceiros de sua
confiança não violem referidas proibições.
Por força da previsão contida no §3º deste mesmo artigo, aquele, que em
violação ao disposto nos §§ 1º e 2º negociar valores mobiliários com terceiros,
8
Confira a redação atual do artigo 155, da Lei nº 6.404/76: Art. 155. O administrador deve servir
com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:
- usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo;
II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens,
para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia;
III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que
esta tencione adquirir.
§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do
cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado
valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda
de valores mobiliários.
§ 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através
de subordinados ou terceiros de sua confiança.
§ 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do
disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos
que ao contratar já conhecesse a informação.
§ 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a
ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de
valores mobiliários. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
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que desconhecem a informação, deverá indenizar a pessoa prejudicada por
perdas e danos. Sobre o tema, WALTER DOUGLAS STUBER ensina que:
Outro importante dever que cumpre aos acionistas controladores, administradores e empregados da companhia é guardar sigilo das informações relativas a atos ou fatos relevantes às quais tenham acesso privilegiado (insider information), em razão do cargo ou profissão que ocupam,
até sua divulgação ao mercado, bem como zelar que subordinados e
terceiros de sua confiança também o façam. Em caso de descumprimento da obrigação de guardar sigilo por parte desses subordinados ou de
terceiros, os acionistas controladores, administradores e empregados da
companhia responderão solidariamente com estes pelos danos causados
pelo referido descumprimento. (2002, p. 259)
Por fim, acrescenta-se que a Lei nº 10.303/2001, acrescentou o §4º ao artigo em análise, que veda a utilização de informação relevante e privilegiada,
com a finalidade de auferir vantagem indevida, para si ou para outrem, no
mercado de capitais.
Ao se realizar um breve exame sobre referidos dispositivos normativos,
face às divergências doutrinárias sobre o alcance subjetivo da proibição da
prática do insider trading, impõe-se uma análise mais detida de referida proibição. Todavia, antes de adentrar no debate acerca da extensão da vedação
supra, necessário esclarecer que, aquele que pratica o insider trading, necessariamente estará obrigado a indenizar a pessoa que foi vítima do uso indevido
de informações privilegiadas. Contudo, MODESTO CARVALHOSA (2003,
p.308) esclarece que a legislação que rege a matéria, não prevê a hipótese de se
anular o negócio jurídico realizado entre o insider e o investidor prejudicado,
até porque previsão legislativa nesse sentido causaria grande dano ao mercado, tendo em vista a existência de transações em massa e consecutivas.
2.2. O alcance da proibição à prática do Insider Trading
Apesar do art. 155, §6º, da Lei de S.A., estabelecer que “é vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa
que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou
para outrem, no mercado de valores mobiliários”, a doutrina diverge quanto
ao alcance da expressão “qualquer pessoa”. Para parte da doutrina, a inclusão
293
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de referida expressão teve o intuito de alargar a prática do insider trading,
a qualquer pessoa que utilize informação privilegiada para negociar valores
mobiliários com o intuito de auferir vantagem indevida. Ao passo que parte
da doutrina, entende que a expressão supra deve ser interpretada de maneira
restritiva, limitando-se às pessoas que, em virtude de exercício de profissão
obtenham acesso às informações privilegiadas.
Sobre o tema NELSON EIZIRIK et al (2008. P. 527) ensina que a lei
6.404/76, em sua redação original, considerava como insiders apenas os administradores das companhias abertas, conceito este que fora ampliado pela
instrução CVM nº 31/1984. Posteriormente, a instrução CVM nº 358/2002,
estabeleceu, em seu artigo 13, que podem se considerados insiders, a companhia; seus acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros
do conselho de administração, do conselho fiscal, ou de quaisquer órgãos com
funções técnicas ou consultivas, criadas por disposição estatutária, bem como
quem quer que em virtude de seu cargo, função ou posição na companhia,
sua controladora, controlada ou coligada, tenha acesso a informação relativa
a fato relevante ainda não divulgado. Neste aspecto necessário transcrever o
seguinte trecho da obra de NELSON EIZIRIK et al:
O parágrafo primeiro do art. 13 da instrução CVM nº 358/2002 proíbe
a negociação por quem quer que tenha conhecimento de informação
confidencial, especialmente aqueles que tenham relação comercial, profissional ou de confiança com a companhia, tais como auditores independentes, analistas de valores mobiliários, consultores e instituições
integrantes do sistema de distribuição. (2008, 527).
Logo após o trecho acima colacionado, NELSON EIZIRIK et al(2008.
P. 528), relata que a lei nº 10.303/2001 acrescentou o §4º ao art.155 da Lei de
S.A., passando a vedar a utilização de informação privilegiada, utilizada por
qualquer pessoa, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem. Contudo, referido autor entende que a expressão qualquer pessoa deve
ser interpretada de maneira restritiva, devendo abranger apenas aqueles que
tomem conhecimento da informação em virtude de sua atividade profissional.
Nesta mesma linha, pede-se vênia para citar MODESTO CARVALHOSA,
que analisando o §4º, do art. 155, da Lei de S.A. ensina que:
Há no entanto um limite para o termo “qualquer pessoa” utilizado na norma em estudo (§4º). Com efeito, deve haver um nexo profissional entre o
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vazamento das informações e os terceiros para que estes possam ser considerados tippees. Assim, apenas aqueles que em virtude do exercício de profissão tenham acesso a essas informações (advogados, auditores, operadores de mercado, peritos, etc.) é que serão responsabilizáveis pelo uso dessas
informações. Deve haver, ainda, nexo pessoal entre administrador (tipper)
e os terceiros (tippees) que com ele tenham algum contato de natureza
profissional ou como controladores. Assim, o conhecimento ocasional da
informação por razões outras que não a do exercício de alguma profissão
ou função junto à empresa é de difícil configuração. E o terceiro souber em
uma reunião social que haverá a incorporação de determinada companhia
ou a venda de seu controle, não tendo essa mesma pessoa qualquer acesso
de natureza profissional e permanente a tal informação, não poderá ser
considerada como um tippee. Se, com efeito, a informação relevante vazou
além do âmbito dos administradores e dos controladores e dos envolvidos
profissionalmente com ela, os terceiros ocasionalmente informados não
poderão ser considerados insiders. Caberá, nesse caso, diretamente ao administrador a responsabilidade por não ter mantido a reserva necessária
sobre o fato relevante, a ponto de este ter vazado para o âmbito meramente
social. (2009. Pág. 492/494)
Infere-se, pois, que referidos autores entendem que, caso a informação
privilegiada e ainda não divulgada aos investidores do mercado de capitais
vaze, para uma terceira pessoa que não tenha tido acesso ao fato relevante em
virtude de exercício de atividade profissional. E ainda que este terceiro utilize
a informação para obter vantagem negociando valores mobiliários no mercado de capitais, não estará praticando insider trading, razão pela qual não poderá ser responsabilizado. Portanto, segundo esta corrente, o insider trading
só pode ser praticado por aqueles que têm acesso às informações privilegiadas
em virtude da profissão que exercem.
Assim, caso uma pessoa, tivesse conhecimento, ocasional, ou seja, não
relacionado à prática de atividade profissional, de fato relevante, ainda não
divulgado, e utilizasse a informação obtida para obter vantagem indevida,
através da negociação de valores mobiliários, não poderiam ser responsabilizadas pela conduta, devendo a responsabilidade pelo ocorrido, perante o prejudicado, ser imputada ao administrador que não cumpriu o dever de sigilo.
Contudo, apesar do entendimento supra, existe uma corrente cujo entendimento é de que toda e qualquer pessoa que tenha acesso a informação
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relevante de uma determinada sociedade empresária, ainda não divulgada ao
público, e cuja divulgação afetará a cotação dos valores mobiliários emitidos
por ela, e negocie no mercado de capitais visando auferir vantagem, estará
praticando insider trading. Sobre a possibilidade de qualquer pessoa, independentemente da forma como teve conhecimento do fato relevante e sigiloso,
praticar o insider trading PAULO F. C. SALLES DE TOLEDO:
Faltava coibir de modo expresso o insider trading praticado diretamente
pelas pessoas que, mesmo sem serem administradores da companhia,
tivessem tido acesso a informações relevantes, capazes de repercutir na
cotação dos valores mobiliários de emissão da sociedade anônima. (...)
A nova lei sanou a omissão. Hoje o dever de sigilo estende-se a todos
os que tenham tido acesso a informações relevantes para a companhia
aberta. O objetivo é garantir a todos os investidores no mercado de capitais igualdade efetiva de acesso às informações necessárias à decisão
de negociar valores imobiliários. Enquanto não divulgada a notícia,
de modo que todos os interessados potenciais possam ponderar sobre seus efeitos, ninguém pode fazer uso dela para operar no mercado.
(2002. p. 444).
Nesse caso a ilicitude da conduta de um terceiro que utilize informação
privilegiada para auferir vantagem através de negociação de valores mobiliários decorreria não só das disposições do art. 155 da LSA, como também
da violação ao princípio da boa-fé objetiva, consagrado pelo Código Civil
Brasileiro já que “a boa fé, em sua modalidade objetiva, como conduta ética
entre as partes que negociam, impõe correlação e lealdade”(Pereira, 2004,
p. 502).
No caso em apreço, não se pode falar em lealdade na conduta da pessoa, detentora de informação privilegiada que negocia com outrem com visando a obtenção de vantagem. Tem-se, assim, que a conduta adotada viola
o princípio da boa-fé objetiva, que exige uma conduta ética entre as partes
contratantes, sendo imperativo que transacionem com lealdade. Conforme já
explanado, não restam dúvidas que a falta desta está presente na conduta dos
investidores que valem-se de fatos relevantes ainda não divulgados para obter
benefícios econômicos.
No atual contexto legislativo, bem como em virtude da necessidade
econômica de se atribuir segurança aos investidores do mercado de capitais,
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tem-se que a coibição ao uso indevido de informações privilegiadas, dentre
outros motivos se justifica em fatores econômicos, pelo que deve prevalecer a segunda teoria. Ou seja, tal vedação pauta-se na necessidade de se
conferir segurança ao mercado, para que desta forma sejam atraídos novos
investidores. Certo é que para o investidor é indiferente se o uso de informação privilegiada ocorreu por pessoas ligadas diretamente à administração
da companhia ou por terceiros que a elas tiveram acesso, o que realmente
importa é se ele efetivamente está negociando com pessoas que detêm exatamente as mesmas informações.
Os investidores que aportam grande quantidade de recursos no mercado
de capital necessitam indubitavelmente de segurança para fazê-lo, ou seja, não
investirão se desconfiarem da credibilidade do mercado. Isso porque os participantes aceitam os riscos do empreendimento, que por sua própria natureza
são elevados, mas não querem se sujeitar a estabelecer relações de investimento na qual não possuem certeza quanto às condições que podem interferir na negociação. Assim, deve prosperar a tese de que qualquer que pessoa
utilize informações privilegiadas na negociação de valores mobiliários pratica
o insider trading. Isso porque, além da lesão ao princípio da boa fé objetiva,
estaria realizando um negócio jurídico que fere a equidade, isonomia e gera
um conseqüente enriquecimento ilícito por parte do detentor da informação,
que ao contrário dos outros investidores, pode prever alteração na cotação de
determinados valores mobiliários.
Importante ressaltar que não se defende a ausência de responsabilidade
do administrador, ou qualquer outra pessoa intimamente ligada à companhia
e que deixou vazar a informação, mas tão somente que esta responsabilidade
não se limita a estas pessoas, abarcando também aqueles que efetivamente
alcançaram um benefício econômico em virtude da informação privilegiada.
Sobre a necessidade de se dar segurança ao investidor, o próprio NELSON
EIZIRK, que defende a primeira teoria exposta, entende que:
As razões éticas são evidentes. Há um total desequilíbrio entre a posição
ocupada pelo insider e aquela ocupada pelos demais participantes do
mercado, sendo eticamente condenável a realização de lucros em função
única e exclusiva do acesso e utilização privilegiada de informações por
parte do insider. Trata-se, ademais, de manter um nível mínimo de confiabilidade no mercado. Com efeito, é absolutamente impossível o desenvolvimento de um mercado acionário no qual, sabidamente, podem
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ganhar apenas aqueles poucos que têm acesso às informações confidenciais das empresas.
Os investidores, particularmente os individuais, devem ter a certeza de que o sistema não está estruturado de que o sistema não está
estruturado de molde a favorecer apenas aqueles que detêm as informações privilegiadas. Assim, as razões éticas e econômicas estão evidentemente interligadas. Com efeito, de nada adianta a estruturação
de um complexo e sofisticado sistema de disclosure se aos investidores não for assegurado que o custo por eles incorrido na análise das
informações não corresponder ao benefício da possível realização de
lucros: tal possibilidade pode evidentemente ser elidida pela atuação
do insider. (1983, pág. 44)
Outro fato que reforça o caráter extensivo da proibição, não impondo
limites à expressão “qualquer pessoa” é o fato de que um terceiro que tenha
acesso à informação privilegiada e em virtude de tal informação negocie títulos com outra pessoa que não possua as mesmas informações, auferindo
vantagem, celebrou com esta um negócio jurídico no qual não houve isonomia. CELSO RIBEIRO BASTOS (2002, p. 323/324) ensina que o princípio da
isonomia, caracterizado pela igualdade, “não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feito da ordem jurídica.” Acrescenta, ainda, que a igualdade
(isonomia) “é o mais vasto dos princípios constitucionais”. Por fim, exalta que
a igualdade não é apenas um princípio informador de todo o sistema jurídico,
mas um verdadeiro direito subjetivo dos cidadãos.
Por isso, não restam dúvidas que o uso de informações privilegiadas,
ainda que por pessoa que não possua qualquer vínculo com a companhia,
acarreta uma lesão a este princípio. Isso porque uma das partes envolvidas
na transação possui mais informações do que a outra, o que lhe possibilita
prever uma alteração na cotação dos valores mobiliários, oportunidade esta
que não é assegurada à outra parte. Pode-se dizer que aquele que é vítima
do insider trading possuía, indubitavelmente, direito subjetivo de acesso às
mesmas informações que o insider, para que diante delas, negociasse os títulos pelo seu real valor. Diante do exposto, há uma clara desigualdade na
relação jurídica, razão pela qual a transação realizada não observou o princípio da isonomia.
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3. CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, ser imprescindível uma ampla repressão ao insider
trading para que o mercado de capitais possa se desenvolver de forma eficiente
e cumpra com sua função essencial que é o financiamento dos projetos das
sociedades que lhe integram. Um mercado de capitais que não seja dotado de
mecanismos de prevenção e repressão a tal conduta está fadado ao insucesso
tendo em vista a insegurança dela decorrente. Neste sentido o legislador brasileiro deu um grande passo ao acrescentar o §4º ao art. 155 da LSA, alargando
a proibição do uso indevido de informação privilegiada a qualquer pessoa,
devendo prevalecer o entendimento de que é indiferente se a informação privilegiada foi repassada ao investidor em virtude do exercício profissional ou
por qualquer outro motivo. Assim o insider pode ser qualquer pessoa que
utilize a insider information, ainda que a tenha obtido em reuniões sociais.
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Recebido em: 18/10/2014
Aprovado em: 20/10/2014
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