Estudos cognitivos

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Estudos cognitivos
Estudos Cognitivos: Mapeando Tendências*1
Margarete Axt2
Buscando um fio condutor
Questões relacionadas aos conteúdos, estrutura e funcionamento da mente, embora
antigas, permaneceram até pouco tempo restritas ao pensamento filosófico. É,
principalmente, neste século que tem ocorrido um crescente deslizamento dessas
preocupações para o campo científico, de tal modo que se pode falar hoje em uma ciência
cognitiva: são altamente contemporâneas e centrais à investigação científica sobre a
mente cognitiva, indagações (antes essencialmente filosóficas) do tipo: como o ser
humano é capaz de ter conhecimento? de consciência? Como é capaz de representar?
de significar? Como é capaz de memória? de linguagem? de comunicação? Como sabe o
que sabe e como sabe que sabe?
Esta área dedicada à cognição tem-se mostrado extremamente produtiva e mapeá-Ia
apresenta-se como uma tarefa complexa. Há diferentes formas de abordagem, como a
cronológica, por exemplo, ou a voltada para a identificação dos fundamentos filosóficos
das várias correntes, confrontando-as entre si. De acordo com uma abordagem
cronológica, faríamos um inventário desde o final do século passado e o início deste
século, quando a psicologia começou a se constituir como ciência, a partir principalmente
da psicologia experimental e introspectiva de Wundt. Poderíamos mostrar como, em
razão dos incontáveis novos problemas que iam sendo levantados, seguiu-se um número
respeitável de estudos que foram ampliando o campo de observação da psicologia:
psicologia animal, da criança, do adulto, da doença mental, etc.; ou poderíamos mostrar,
também, como os diversos estudos foram demarcando posições de grupos segundo os
* Originalmente publicado como:
AXT, Margarete. Estudos Cognitivos: Mapeando Tendências. In: SILVA, Dinorah Fraga da, VIEIRA, Renata (orgs.).
Ciências Cognitivas em Semiótica e Comunicação. São Leopoldo, Editora da UNISINOS, 1999. p. 67-92.
1 Texto que serviu de base para a palestra proferida no Encontro Estudos Cognitivos em Semiótica e Comunicação,
promovido em agosto de 1998 pelo mestrado em Semiótica do Centro de Ciências da Comunicação da Universidade do
Vale do Rio do Sinos (UNISINOS), RS.
2 Professora da Faculdade de Educação/UFRGS, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGEDU), no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) e no Curso de PósGraduação em Informática e Educação (CPGIE), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
pesquisadora do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC/IPSIUFRGS) e do Laboratório de Estudos e, Linguagem,
Interação e Cognição (LELIC/FACED-UFGRS). E-mail: [email protected]
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aspectos
focalizados:
a
psicologia
dos
conteúdos
mentais
na
Alemanha,
da
psicopatologia na França, das diferenças individuais e da hereditariedade na Inglaterra,
da neurofisiologia na Rússia, da psicanálise na Áustria, do comportamento nos Estados
Unidos, etc.; ou poderíamos identificar, ainda, como foram sendo criadas linhas teóricometodológicas diferenciadas de investigação, caracterizando uma diversidade razoável de
escolas, como a do condutismo com todas as suas variantes, a da Gestalt, a da psicologia
e epistemologia genéticas, a dos estudos psicanalíticos e da personalidade, as
psicologias voltadas para o social-institucional... Já na segunda metade do século,
diríamos que se daria o florescimento em especial da ciência cognitiva, abrindo
fortemente para os estudos da mente-cérebro e da inteligência artificial, bem como
reconheceríamos o avanço de conceitos como os da auto-organização, auto-regulação e
ecologia cognitiva.
Se entendêssemos este mapeamento a partir dos seus fundamentos mais filosóficos nos
preocuparíamos principalmente em diferenciar as muitas correntes pela sua inserção em
três paradigmas fundantes, sendo que dois deles – o empiricista e o inatista ou apriorista remontam à antigüidade grega com Aristóteles e Platão, embora sejam, desde então,
nestes 25 séculos de história, continuamente retomados de diferentes maneiras por
inúmeros pensadores - entre eles Locke e a tabula rasa, Leibniz e as mônadas, Kant e a
razão pura ou a razão prática, e já neste século, inúmeros estruturalistas, cujas
concepções organizam-se num continuum entre o inatismo / apriorismo e o empiricismo
(dentre outros, por exemplo, a lingüística estruturalista de Saussure, a Gestalt de Köhler e
Wertheimer, e, mais adiante, a psicanálise de Lacan, a Análise do Discurso de Pêcheux, a
lingüística gerativa de Chomsky, a semântica interpretativa de Fodor); o paradigma da
auto-organização - que emerge, particularmente neste século, tanto associado aos
modelos propostos por biólogos (Bertalanffy, Piaget, Waddington, e mais recentemente,
Maturana e Varela...), quanto aos modelos cibernéticos, físico-químicos e matemáticos
(Wiener, Ashby, Shannon, Prigogine...) - começa a despontar com destaque, em especial
a partir da década de 50.
Mas, dedicar-se ao estudo da mente e dos seus processos de produção de significações
e de conhecimento requer, também, lidar com alguns limites disciplinares, no sentido de
definir as fronteiras deste campo de investigação – fronteiras que são sempre móveis e
provisórias, necessitando ser continuamente reconfiguradas. O que se percebe é que os
múltiplos movimentos de configuração destes limites têm continuamente se expressado
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em tendências: tendências traduzidas em modelos que ajudam a pensar o funcionamento
da mente e suas produções, segundo o conjunto de expectativas de cada época sobre o
que seja o âmbito da psicologia cognitiva, o seu objeto de pesquisa, e as respostas que
poderá dar às clássicas indagações sobre a consciência, o conhecimento e as relações
entre organismo biológico, sujeito individual e coletividade social-cultural.
A mente interdisciplinar: um link
A partir da segunda metade deste século, em especial, parece que vai crescendo a
certeza de que, mesmo que se estude a mente cognitiva em si, no interior de seus limites
mais estritos, não se pode deixar de considerar os avanços nas disciplinas com as quais
faz fronteira. Assim, já não podem ser desconsiderados, por exemplo, os estudos relativos
à emoção e à vontade, e os seus entrelaçamentos possíveis e prováveis com a cognição.
É Damásio (1996, p.lS), da neurobiologia, quem diz:
Os sentimentos, juntamente com as emoções, que os originam (...) são
precisamente tão cognitivos como qualquer outra percepção. São o
resultado de uma curiosa organização fisiológica que transformou o cérebro
no público cativo das atividades teatrais do corpo.
J. Piaget (1970), um dos grandes estudiosos da cognição, diz que a toda conduta
corresponde sempre uma estrutura, que é cognitiva, e um funcionamento regulatório, que
se traduz por um investimento afetivo-energético; e que é a afetividade que faz funcionar
as estruturas, acelerando ou retardando a sua formação.3
Saindo, no entanto, desses limites mais estritos da mente, a discussão relacionada à
cognição, à construção do conhecimento, tem que se sustentar levando em conta seus
dois extremos: no seu extremo mais exterior, precisa ser pensada a produção da mente
na confluência com a cultura (entre o coletivo e o individual); e no extremo mais interno,
precisa ser considerada a produção da mente na confluência com o organismo biológico,
instalando-se aí a discussão relativa à interdependência mente-cérebro e de como o
3 Uma grande quantidade de estudos específicos na área da psicopatoIogia e da psicopedagogia, dos quais se podem,
entre outros próximos a nós, citar, Henrique DeI Nero (Brasil), Leandro de Lajonquiere (Brasil), Alicia Fernandes e
Sara Paim (Argentina), também procuram dar conta dessas intersecções.
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processamento de sinais elétricos nas células cerebrais podem gerar formas onde vão
encaixar-se as categorias mentais4.
Entre dois mundos de naturezas diferentes, a mente funciona como um link, ou um elo,
ligando entre si a organização bio-físico-química e a organização socioculturalinstitucional5:
a mente - e a consciência,seu ponto máximo - são um misto de cérebro e de
cultura (...) Espraiada pelo mundo, essa consciência constitui a cultura, que
(por sua vez) retroage constantemente sobre cada um de nós (DeI Nero, op.
cit., p.12).
De natureza extremamente complexa, não há, ainda hoje, estudos definitivos sobre o que
seja a mente; estudiosos das relações mente-cérebro-cultura, como DeI Nero, por
exemplo, consideram, cada vez mais, que ela derive de uma confluência de fatores:
A mente está situada na encruzilhada entre a natureza que selecionou o
cérebro humano, a linguagem que permitiu a comunicação,a história pessoal
que moldou o rosto de cada um e a história coletiva que nos dá padrões
médios de ação e juízo (id. lb., p.21).
A esta altura, pode-se perguntar, então, a cargo de quem estão os estudos da mente e da
produção cognitiva? Pode-se pensar que os estudos que refletem sobre o campo
específico das funções, das estruturações e dos processos cognitivos que levam à
construção do conhecimento constituem um eixo agenciador e articulador de, pelo menos,
três ou quatro grandes áreas do conhecimento: (a) as ciências humanas e as ciências
sociais, que refletem sobre os produtos cognitivos da mente (linguagem, memória,
conhecimento, etc., em relação, ou não, com outros produtos mentais como o psiquismo,
etc...); e que refletem também sobre as relações interindividuais entre sujeitos
cognoscentes, bem como sobre as relações de cada um com o coletivo social-culturalinstitucional no interior do campo mais abrangente da subjetividade de que a cognição é
4 Henrique S. DeI Nero (1997
5 Luis Claudio M. Figueiredo dá conta de que Wundt, no início do século, pioneiro da psicologia como ciência,
chamou-a, já então, de "ciência intermediária". Para Wundt, de acordo com o referido autor, a psicologia não somente
se inseria entre outras, mas essencialmente se constituía no entre outras ciências, nas suas relações com as ciências
biológicas e, ao mesmo tempo, com a antropologia, linguagem etc. (Figueiredo, 1996).
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uma parte6; (b) as ciências biológicas, aos cuidados de que se encontra o estudo do
cérebro e do sistema nervoso como partes do organismo humano responsáveis, no seu
conjunto, pela produção da mente7; (c) e as ciências exatas, pelos estudos relativos aos
componentes físico-químicos do sistema nervoso no cérebro, responsáveis por carregar e
coordenar a informação, integrá-Ia de modo a permitir a sua interpretação pelas funções
mentais8; além dos estudos matemáticos e de engenharia e informática envolvidos com a
Inteligência Artificial e a construção de protótipos e a formalização dos modelos para
pensar a mente humana.
Os modelos da mente: objetos para se pensar com
Mas quais são atualmente as grandes tendências dos programas de pesquisa cognitiva?
Espremidos, como referido, entre o limite mais interno da mente - das suas relações com
o cérebro - e o seu limite mais exterior - das relações com a cultura e a subjetividade -, os
cognitivistas enfrentam, no seu processo investigativo, duas questões, cujas respostas, de
um ou outro modo, são cruciais para a saúde dos seus respectivos programas de
pesquisa: de um lado, o que acontece no momento crítico de transformação da atividade
cerebral em mental? Ou, como sinais elétricos se transformam em símbolos? De outro
lado, o que acontece no momento crítico de transformação dos objetos da cultura em
conhecimento do sujeito cognoscente, ou inversamente, o que ocorre no momento crítico
em que o conhecimento privado se torna de domínio coletivo?
Dos modelos contemporâneos para pensar estas respostas, alguns têm-se apresentado
como sendo diretamente tributários da nova ciência da complexidade, antevista e
proposta pelo biólogo Ludwig von Bertalanffy, já desde o final da década de 209, a partir
do conceito, central nos dias de hoje, de sistemas abertos. À época, este cientista
questionava, com relação aos sistemas vivos, a aplicação da segunda lei da
termodinâmica de acordo com a qual os sistemas físicos isolados se encaminharão
espontaneamente para a desordem crescente ou entropia, ao final do que o mundo
6 Ver Axt (1998); Axt & Maraschin (pre-print); Maraschin & Axt (aceito para publicação), para discussão desse
argumento.
7 Damásio, op.cit
8 DeI Nero, op.cit
9 Capra (1996)
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deverá parar10. Embora não pudesse resolver formalmente a contradição naquele
momento (tal resolução só viria na década de 70 com TIya Prigogine11 e a sua teoria das
estruturas dissipativas), o biólogo defendia a idéia de que os organismos vivos
desdobram-se no sentido de uma ordem e de uma complexidade crescentes, constituindo
sistemas abertos, auto-reguladores, que se alimentam continuamente de um fluxo de
matéria e de energia extraídas de seu ambiente, ao mesmo tempo em que deixam, neste,
matéria e energia do organismo.
Inspirada nas idéias de Bertalanffy e nas tentativas decorrentes de desenvolver máquinas
autodirigiveis e auto-reguladoras, a década de 50 viu a cibernética12 do matemático
Norman Wiener florescer para tornar-se um poderoso movimento intelectual, cuja
preocupação maior eram os padrões de comunicação e especialmente os laços fechados
e as redes13. Nesta época, também, Claude Shannon elaborava a sua teoria da
informação, agregando à fórmula de Bertalanffy, sobre as trocas do organismo com o
meio ambiente, além dos conceitos de matéria e de energia, também o conceito de
informação: A natureza tem que ser interpretada como matéria, energia e informação14.
Surgiu assim, por analogia às mensagens dos genes, a idéia de informação como agente
ativo, capaz de "informar" o mundo material: a informação passou a se expressar como
um princípio universal, operante no mundo, dando forma ao informe, especificando o
caráter peculiar das formas vivas e ajudando a determinar, por meio de códigos especiais,
os modelos do pensamento humano15.
A informação, que é uma medida da novidade, aumenta em lugar de diminuir
no transcurso dos anos.
(Campbell, 1992, p.112).
De posse de uma ferramenta para pensar os processos cognitivos, surge, na esteira dos
cálculos complexos, das máquinas cibernéticas e da teoria da informação, a então
incipiente ciência cognitiva. E a inteligência artificial e a engenharia de protótipos (a
máquina de Turing, etc.) que haviam sido idealizadas, inicialmente, com o objetivo de
10 Cf. Capra (1996); Campbell (1992).
11 Cf. Capra (19%); Campbell (1992).
12 Palavra derivada do grego para significar a ciência do controle e da comunicação no animal e na máquina (Capra,
1996).
13 Id., ib. Laços fechados constituem aqueles movimentos que levam à realimentação com reforço ou com correção.
14 Cf. consta em Campbell (1992). O grifo é meu.
15 Id.,ib.
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simular o funcionamento da mente e tendo-a como modelo para que se pudesse entendêIa melhor, logo passaram elas a fornecer os modelos a partir dos quais era possível
pensar a mente cognitiva e assuas relações com o cérebro. Sucederam-se, a essa
primeira fase, novos modelos da mente calcados nos avanços concomitantes da
Inteligência Artificial e da Neurociência, focalizando, preferencialmente, a conexão mentecérebro. Vejamos alguns dos grandes programas da pesquisa da mente cognitiva na
atualidade, e os modelos explicativos que adotam, para responderem às perguntas
formuladas de como emergem os símbolos na mente e de como o indivíduo se apropria
da cultura.
O modelo lógico do processamento simbólico
O modelo da Inteligência Artificial Simbólica (IAS) busca o seu delineamento na lógica de
mesmo nome; calcado no princípio discreto-digital (sim/não; aberto/fechado) propõe um
processamento com base em regras (relações entre símbolos), segundo a teoria da
informação e a concepção das máquinas Turing de von Neumann. Esse modelo,
inspirado na cibernética da primeira fase16, tem fornecido elementos para pensar a
lingüística gerativa de Chomsky17 e a semântica de Fodor18 até os dias de hoje. As regras
operariam em dois planos distintos na mente, esta constituindo o software em relação à
sua contraparte hard, o cérebro: na mente, o primeiro nível seria o da computação, tendo
em vista a delimitação do problema a ser resolvido (nível propriamente sintático19, ou
semântico, não-acessível à consciência); o segundo nível seria o do algoritmo ou das
regras de manipulação simbólica necessárias para construir a cadeia de inferências que
resolve o problema (o nível interpretativo20).
Segundo Pozo (1998), o maior problema – metodológico - a ser enfrentado por essa
abordagem não é explicar o processamento computacional e algorítmico dos
componentes estruturais da língua e do significado semântico, mas explicar a origem
16 Uma diferença importante que caracteriza a cibernética da primeira fase é, nas palavras do neurologista Ross Ashby
- o seu principal téorico nas décadas de 50 e 60 -, que ela trata de "sistemas que são abertos à energia, mas fechados à
informação e ao controle, [são] impermeáveis à informação" (ap. Capra, 1996, p.66), ou seja, o módulo computacional
de que trata a lingilistica gerativa seria encapsulado.
17 Cf. Chomsky (1965; 1975; 1981; 1993); Campbell (1992); Pozo (1998).
18 Cf. Fodor (1983); Pozo (1998); Feltes (1998).
19 Na lingüística gerativa, as estruturas P e S.
20 Na linguística gerativa, da interface lógica [FL], ou fonológica [FF].
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desses componentes estruturais - os símbolos - e das regras computacionais e de
inferência, bem como a origem do "âmbito de convicções" que estaria no nasce douro da
intencionalidade21. Agregue-se, ainda, a esta discussão, o problema das relações do
sujeito capaz de linguagem, de significação e de comunicação com o grupo social e a
cultura: se tudo se dá na interioridade da mente, como é possível que todos aprendam as
mesmas regras, os mesmos princípios lingüísticos comuns a todas as línguas e os
mesmos primitivos semânticos, origem de toda a significação? E como é possível que
todos possam se referir às mesmas coisas22 e de se compreenderem, como podem
comunicar-se? E por fim, como uma criança é capaz de aprender tanto estruturas e
sistemas tempo?23
Estas questões abrem a porta para concepções inatistas!
No contexto de uma política de oposição frontal às teorias da aprendizagem, calcadas no
condutismo ou behaviorismo, a lingüística gerativa e a semântica das representações não
poderiam recorrer às estratégias de aprendizagem existentes com base na modelagem
das condutas, seja por condicionamento E->R, seja por associações. A solução
metodológica veio na forma de um pressuposto inatista para os Universais lingüísticos no
âmbito da lingüística gerativa; e, no âmbito da teoria representacional da mente, na forma
de um projeto de naturalização do intencional (as propriedades intencionais, da
referência, seriam causais, embora este fato, o de estar disponível no organismo, não
significasse que a intencionalidade fosse causalmente independente da experiência, da
21 Ver nota 13. De! Nero (op. cit.) nos esclarece que tanto a Inteligência Artificial Simbólica (IAS) como a
Conexionista (IAC) apostaram na noção de relação entre objetos - símbolos - para desvendar a mente. Na primeira, esta
relação se daria mediante regras lógicas e, na segunda, mediante regularidades; mas, diz o autor, nenhuma delas tocou
na emergência dos símbolos no cérebro humano, objetos sobre os quais se debruçariam as relações do tipo regras ou
regularidades (p.ISO).
22 Feltes (1998) coloca, em relação a esta questão, que Fodor e colaboradores discutem, filosoficamente, a relação
linguagem-mundo e que é este o ponto central do projeto atual de Fodor - uma teoria causal da referência. A semântica
das representações mentais pretende então considerar que a compreensão do mundo passa pela construção de conceitos
(os quais constituem representações ou símbolos mentais de algum tipo; e que a mente é constituída por um sistema de
representações, o qual exibe intencionalidade - as representações mentais são sobre o mundo, de alguma maneira
carregam informações sobre o mundo, o que é entendido como intencionalidade, aboutness. Está embutida aí a
discussão sobre a questão Epônima ou problema da referência; a referência é a "principal relação entre símbolos e o que
eles simbolizam, assim como é uma relação estritamente lógica. Ela [a referência] tem uma contraparte
psicológica,[que é a capacidade de] referir,que é o contato intencional que o usuário de um símbolo faz por meio de
símbolos como que os símbolos simbolizam. Ninguém tem uma boa idéia de como um sistema sob descrição física
(computador) ou fisiológica (cérebro) pode fazer tal contato intencional com outros fora do sistema" (Macnamara,
1994,ap. Feltes, 1998).
23 Esta última interrogação resgata para a atualidade o paradoxo de Platão que se interrogava como um ser humano,
cuja vida é tão breve, é capaz de saber tanto.
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ativação do sensorium)24:
As teorias de aprendizagem de conceitos pressupõem a disponibilidade da
base conceptual de primitivos: elas não a explicam. Se, entretanto, a base
primitiva é pressuposta em aprendizagem de conceitos, então não pode ela
própria ser aprendida. Se não pode ser aprendida, presumivelmente é inata
[...] O que quer que não seja definível deve ser inato (Fodor et alii, 1980, ap.
Feltes, 1998. Os grifos são nossos).
O modelo conexionista
Outra concepção de processamento, por rede neural, inaugura um modelo rival para a
mente computacional – o modelo da Inteligência Artificial Conexionista (IAC), em que as
regras são substituídas por padrões e regularidades que se constituem por recorrência e
freqüência25.
Encontrar um padrão significa percorrer um espaço homogêneo que não diz
nada, criando nele heterogeneidades aptas a separar o joio do trigo. E tudo
isso graças ao ajuste de pesos e à conectividade, capazes de, pelas
sucessivas interações e correções, aproximar-se da solução para o
problema, normalmente descritível através de funções compostas (Dei Nero,
op. cit.. O grifo é nosso).
DeI Nero informa que a rede neural é capaz de aprender através de exemplos - ela vai
aos poucos analisando o sinal de entrada e encontrando nele um padrão- e que, tendo
aprendido, adquire capacidade de generalização que reconhece não apenas a situação
típica, como também situações afins (como no caso das caricaturas, por exemplo)26.
24 Cf. Feltes (1998). Esta ressalva permite que se considere, no interior de cada módulo, um processamento de tipo de
rede neural, com base em associações: em outras palavras admite um modelo lúbrido composto por rede neural e
processamento simbólico; como veremos, a seguir, tal ressalva também parece importante para os estudos em aquisição
da linguagem de base gerativista.
25 Cf. DeI Nero, op. cito
26 Observe-se que a capacidade de aprender, considerada inicialmente uma diferença essencial entre lAC e IAS,
já não é mais verdade, pois também as arquiteturas simbólicas são agora capazes de aprender (DeI Nero, op.cit.).
Segundo o mesmo autor, a grande diferença entre os dois modelos - IAS e IAC - também não reside no
processamento digital (a rede neural perfaz tanto o digital quanto o analógico), mas na ausência de programa
separado do nível de processamento, bem como na ausência de um processador central que controle os passos da
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Este modelo é, assim, sensível ao input do ambiente!
Nos estudos gerativistas relativos à aquisição da linguagem e da semântica interpretativa,
por exemplo, esta característica não só pode ser levada em consideração e, mesmo
otimizada, mediante a adoção de um modelo híbrido – uma solução intermediária, em que
mecanismos conexionistas e dispositivos de manipulação simbólica trabalhariam lado a
lado em um sistema cognitivo harmônico27-, mas contribui para reforçar a necessidade de
experiência pela criança no seio da comunidade lingüística, o que funcionaria como um
dispositivo para o desencadeamento do processo de aquisição.
O modelo mecanicista da competição de MacWhinney (competition model), que favorece
o tratamento dos dados da experiência (o input), apóia-se justamente sobre essa
adaptabilidade do organismo frente aos dados externos. Como eles próprios afirmam, o
conexionismo é particularmente importante para quem estiver interessado numa teoria de
base biológica de aprendizagem da língua; mas não apenas a aquisição da linguagem
dele se beneficia: também os estudos translinguísticos teriam vantagens com sua
aplicação - e isso na medida em que o modelo prevê que o organismo pode adaptar-se à
forma variável do input mediante conexões determinadas, em especial por indicadores de
validade ou relevância (confiabilidade, disponibilidade e freqüência) e de peso, que
funcionariam como detonadores dos princípios e parâmetros no interior da GU (Gramática
Universal)28.
A maior vantagem de propor um modelo híbrido estaria aparentemente no fato de poder,
pelo menos em parte, explicar como surgem o símbolo e as regras de processamento como resultado dos padrões de regularidade derivados das ativações dos nós da rede.
Fodor, na teoria representacional da mente, considera este modelo à guisa de explicação
para a aprendizagem conceitual, no interior do paradigma inatista; nestes casos, o input,
ativando a rede neural, funcionaria como um dispositivo para a ativação e instanciação
dos primitivos semânticos, algo como: um sistema conexionista deve fornecer as bases
neurológicas para a mente simbólica aparente29.
Por outro lado, esta mesma característica de ser sensível ao input, mas agora associada
rede e na presença de dados e memórias distribuídos pelas conexões e não estocados em endereços fixos.
27 Plunket (1997).
28 Bates & McWhinney (1988).
29 Pltm.ket, op.cit.
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à possibilidade de treinamento (o que também é possível no modelo IAC), tem sido
explorada pelos empiricistas, pois oferece uma nova explicação para a relação indivíduosociedade e a apropriação da cultura pelo sujeito. Kim Plunket (1997) esclarece-nos, no
entanto, que as redes neurais, além de poderem ser concebidas a partir de ambas as
perspectivas - inatista e empiricista - também podem, pelo fato de se mostrarem sensíveis
à interatividade, ser concebidas desde a ótica dos modelos auto-organizativos.30
Na perspectiva de uma psicologia social voltada para a interatividade, Pierre Lévy (1994)
propõe, no seu livro As tecnologias da Inteligência, uma ecologia das idéias ou cognitiva,
baseada numa teoria das interfaces:
Como na versão conexionista ou neuronal da inteligência, todo o
conhecimento reside na articulação dos suportes, na arquitetura da rede, no
agenciamento das interfaces. [...] O que é conhecer? Isto coloca em jogo
dobras um pouco mais densas [...] redes conectando sem dúvida mais
longamente seus trocadores e seus canais... Mas entre o curso do mundo tal
como decorre no grande coletivo [...] e os processos cognitivos, não existe
nenhuma diferença de natureza, talvez apenas uma fronteira imperceptível e
flutuante (p. 184).
Num modelo de inspiração cerebralista como o de DeI Nero, esta fronteira imperceptível e
flutuante entre mente-cultura supõe necessariamente a dinâmica cerebral numa relação
de indissociabilidade com a atividade mental tanto quanto com os processos sociaisculturais, o que nem sempre está posto nos modelos mentais:
Assim, o cérebro humano, ao longo de sua história evolutiva (filogênese), foi
criando códigos e oscilações que correspondiam ao ambiente e à
progressiva estrutura da ação motora e intelectual sobre ele. Esses módulos
passaram a representar o meio e as ações possíveis sobre ele. Esse meio,
quando social, retroagiu sobre os cérebros, impingindo-lhes normas de
redescrição valorada da ação através da linguagem. [...] a progressiva
submersão do indivíduo na sociedade e na linguagem faz com que,
30 Id. ib. Segundo observações de DeI Nem (op.cit.), a diferença entre rede neural, num contexto ou de interpretação
empiricista, ou de base inatista, de um lado, e de auto-organização, de outro lado, é que a última não contaria, nem com
uma supervisão externa (e que, dizemos, promulga o empiricismo), nem com uma norma de organização interna dada
previamente (como consideramos seja o caso do inatismo).
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lentamente, vá aparecendo uma tela onde se vêem apenas gabaritos
lingüístico-sociais e simbólicos. [...] Por isso a mente que dentro do cérebro
é apenas gabarito de sincronizações parece ao indivíduo gabarito de
linguagem e de sociedade. Aí está a articulação entre cérebro, mundo,
sociedade e cultura na geração de uma impressão interna que se parece
com o mundo, [...] mas que, na base,é apenas oscilação e gabarito virtual
através de sincronizações dinâmicas.
(p.391-2).
Na sua crítica aos modelos de mente e de sua relação com o cérebro, DeI Nero (op.cit.,
p.179) observa que tais modelos costumam examinar as condições de conexão e de
relação entre símbolos. Praticamente não há modelo de como os símbolos emergem no
cérebro, senão pelas representações sensório-motoras. Para este autor, questionar a
relação destes símbolos (mentais e lingüísticos em especial) com os sinais cerebrais
(digitais ou analógicos), advindos de um ou vários neurônios, diz respeito a uma nova
classe de modelos: os de cunho fortemente cerebral.
Há, dessa maneira, uma complicada noção em jogo quando se pensa tanto
nos tipos de objetos que a mente manipula como no tipo de ligações entre
esses objetos. A visão da mente como um computador do tipo máquina de
Turing supõe que haja símbolos (os objetos) e regras (as relações).A visão
da mente como uma rede neural supõe que haja símbolos (os objetos) e
regularidades e padrões entre eles (as relações). Duas questões devem ser
levantadas ao se pensar na mente e na sua relação com o cérebro: qual a
relação das regras e regularidades com o cérebro? Qual a relação dos
objetos mentais, por ora entendidos como símbolos, com o cérebro? Este é
o ponto fundamental, podendo levar a noção de símbolo a uma crise ou
revisão (p.179).
Os sistemas dinâmicos e os modelos de auto-organização
Segundo DeI Nero (op.cit., p. 181), ambos os modelos anteriores, o de processamento
simbólico e o conexionista, permaneceram ainda estritamente mentais, operando a
dicotomia mente-cérebro, na medida em que propunham conectar símbolos dinâmicos,
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mutáveis com o aprendizado e a experiência e submersos na linguagem e na
intencionalidade. O autor esclarece que objetos mentais na forma de símbolos
apresentam muitos problemas de tradução (logo de conexão) em linguagem cerebral, de
modo que tiveram que deixar de ser digitalizados e envoltos pela linguagem, para se
tomarem o resultado de padrões de oscilação de neurônios (código de barras, neurônios),
enquanto a relação entre tais oscilações passou a ser de sincronização. DeI Nero
enfatiza, ainda, que esta nova solução é compatível com os achados acerca da gênese
da mente consciente.
A partir de agora, então, deixam-se de lado os simulacros (redes neurais artificiais) para
observar diretamente o cérebro em ação, através de equipamentos que permitem tanto
captar sinais elétricos31 quanto imagens de funcionament032. No lugar da lógica, buscamse a matemática e a física como ferramenta para análise: a teoria do caos, das
bifurcações, na teoria qualitativa dos sistemas dinâmicos, vêm em auxílio para encontrar a
estrutura sob a aparente desordem de sinais e de padrões caóticos cheios de ruído,
permitindo associar objeto e relações a determinadas distribuições de freqüências33.
Fundamentalmente, pode-se dizer que há no cérebro oscilações e
sincronização.
Subindo-se
um
pouco
na
hierarquia,
encontram-se
regularidades em lugar de sincronização. Um pouco mais acima, vêem-se
regras no lugar de regularidades. No plano dos símbolos, pelo concurso da
linguagem, as oscilações e o sincronismo transmutam-se em intenções,
proposições, etc. (id.ib., p.183-4)34.
31 Através de eletroencefalogramas e magnetoencefalogramas, cf. Dei Nero, op. cit.
32 Através de ressonâncias nucleares magnéticas funcionais e de tomografias por emissão de pósitron, id Ib.
33 Id. Ib., p.182. o autor, que vem nos servindo de base na exposição sobre os modelos cerebralistas, considera ainda
que, embora inúmeros problemas da mente não sejam resolvidos com tais modelos, eles oferecem, contudo, um
paradigma de ligação cérebro-mente; tais modelos, caracterizados pelas assim chamadas dinâmica cerebral clássica e
dinâmica cerebral quântica diferem entre si, no sentido de que a primeira se define como um modelo determinista que
trata o acaso como sendo sempre provisório, porquanto derivado da nossa ignorância para tratar com todas as possíveis
variáveis implicadas no fenômeno (p.187). O autor defende a posição que a teoria dos sistemas dinâmicos, as
bifurcações e a noção de caos são compatíveis com uma estrutura de ordem subjacente à aparente desordem. Ao mesmo
tempo, esclarece que o segundo modelo - da dinâmica quântica - insere o acaso genuíno no cerne do processo (p. 187).
DeI Nero não aceita este segundo ponto de vista, uma vez que, para ele, o acaso genuíno como parte integrante do
sistema mental e da consciência implicaria aceitar que não haja determinação para nossos pensamentos e que a vontade
não passe de "pulo do acaso" (p.l88).
34 Se DeI Nero propõe, na saída da atividade cerebral, padrões de regularidades dos quais derivam símbolos e regras,
Damásio (op.cit.) propõe, de outra parte, imagens - as imagens criariam um sistema representacional a partir do
sistema sensório-motor, no espaço-tempo, e a linguagem derivaria dessa capacidade narrativa não-verbal- a
linguagem seria uma capacidade narrativa de segunda ordem.
79
Esses novos desenvolvimentos relacionados aos sistemas dinâmicos receberam especial
impulso a partir da década de 70, apoiados nos estudos de TIya Prigogine sobre o que ele
denominou de estruturas dissipativas, i.e., sistemas complexos físico-químicos, sujeitos a
trocas de energia com o meio e distantes de seu ponto de equilíbrio (termodinâmico)35.
Tem-se,a partir daí, uma nova forma de explicar os processos de organização de
sistemas termo dinamicamente abertos, sujeitos a flutuações de energia e longe do
equilíbrio - sejam eles fenômenos físico-químicos ou seres vivos -, e que em razão de
perturbações geradas, ou no sistema ou de fora do sistema, acabam por gerar novas
formas de organização: auto-organização devido à ausência de agente controlador, seja
ele interno ou externo, que as gerem e coordenem36.
Também na década de 70 desenvolvem-se os estudos sobre auto-organização
(autopoiese) nos seres vivos, de Maturana e Varela, com essencialmente os mesmos
pressupostos, mas agora ancorados em um modelo mais propriamente biológico37.
DeI Nero (op. cit.) dá conta de que estudos sobre a mente-cérebro utilizando o paradigma
da auto-organização, ao lado de noções matemáticas, particularmente a de caos, vêm-se
desenvolvendo sob o nome de cinergética.
Schnitmane Fuks (1996) sublinham o fato de que a teoria geral dos sistemas e a
cibernética provaram ser também atraentes para a psicologia social interessada nas
relações entre indivíduos e grupos humanos. Com base nos autores citados, pode-se
sugerir que, a partir da década de 80, sob a influência da teoria das estruturas dissipativas
e das bifurcações de Ilya Prigogine, bem como da organização biológica autopoiética
criadora de novas formas no início da década de 70, o foco da psicologia social, que
assentava em pautas de interação,em padrões e em estruturas, começou a ser ampliado
para incluir a transversalidade da significação,a semiose social e a generatividade
comunicacional na construção de marcos de sentido e práticas, abrindo assim as
fronteiras dos sistemas (p. 245).
O que isto significa? Significa que podemos falar, pelo menos em três fases da psicologia
social ancorada na teoria geral dos sistemas: os primeiros modelos de auto-organização e
35 Cf. DeI Nero, op. cit.; Capra, op.cit.; Campbell, op. Cito Piaget, 1995.
36 Id.ib.
37 Maturana e Varela (1995).
80
auto-regulação dos sistemas, oriundos da biologia desde Bertalanffy, orientavam-se no
sentido de priorizar a unidade sistêmica e a sua identidade mediante processos dinâmicos
e complexos (conforme adequado para os organismos vivos, em oposição à noção de
entropia); esta concepção começou, a partir das influências do modelo, também biológico,
de Maturana e Varela, a sofrer reformulações, passando a incorporar a capacidade
criativa dos organismos de produzir novas formas (autopoiese). Mas, já entre a década de
70 e a de 80, Schnitman e Fuks (op.cit.) destacam uma nova reformulação na dinâmica
sistêmica, derivada da teoria das estruturas dissipativas afastadas do equilíbrio, que
acentua o desvio, a diversidade, as flutuações como fontes potenciais de novas
transformações:
A crise e as mudanças foram entendidas em termos de patamares de
instabilidade e uma passagem a novos regimes dinâmicos por uma
ampliação de flutuações. Crise, instabilidade, mudança, novidade, esses
eixos articuladores do pensamento (...) (p.245).
Com relação aos estudos da mente cognitiva mais especificamente, se os modelos do
processamento simbólico e do conexionismo tiveram (e têm) expressão máxima entre os
autores cognitivistas americanos, o modelo da auto-organização criadora e dos sistemas
dinâmicos encontrou, em Genebra, um de seus maiores expoentes. Contemporâneo de
Bertalanffy, acompanhando os desenvolvimentos da teoria dos sistemas por quase 70
anos, Jean Piaget desenvolveu posições próprias referentes à formação e ao
desenvolvimento da mente cognitiva, ainda hoje intrigantemente atuais. O seu trabalho
investigativo, voltado para os estudos propriamente cognitivos, parte, no entanto, de
alguns pressupostos ("pré-supostos") sobre possíveis relações entre cognição e o que
agora chamamos de subjetividade, bem como sobre possíveis intersecções mentecérebro e possíveis articulações sujeito-coletividade-cultura, que, mesmo hoje, na década
de 90, vem mostrando sintonia admirável com os modelos contemporâneos dos sistemas
dinâmicos e autopoiéticos38. Encontramos, no âmbito de sua teoria39, formulações que o
vinculam definitivamente a estes referidos modelos, em suas diferentes fases:
38 Não é por acaso que as comemorações relativas aos 100 anos do nascimento de Piaget pipocaram no mundo todo,
durante todo o ano de 1997 (e da mesma forma, este ano, as homenagens à sua mais próxima colaboradora Barbel
Inhelder), numa visível e incrível demonstração de vitalidade deste modelo interpretativo para os estudos da mente
cognitiva.
39 Em especial, ver Piaget (1987; 1973; 1975; 1978a; 1978b; 1981; 1985; 1995).
81
(a) os sistemas vivos, embora sejam organizacionalmente fechados e energeticamente
abertos, como já vinha sendo referido desde a cibernética da primeira fase, são, além
disso, estruturalmente dinâmicos, portanto voltados para a contínua interação, com
construções, da exterioridade-interioridade, ou seja há interação com construção de
novas estruturas;
(b) o mecanismo regulatório com proações integradas às retroações (ou realimentações)
é essencial à criação de possibilidades do sistema na produção de novas estruturas e
novos modos de funcionamento;
(c)
a
realimentação
constitui um
mecanismo
essencial
para
o
processo
de
equilibração/regulação, mediante o estabelecimento de laços constitutivos ou ciclos;
(d) os mecanismos cognitivos prolongam as regulações orgânicas, representando a
resultante destas; por outro lado, estes mecanismos constituem órgãos especializados e
diferenciados dessas regulações, nas interações com o exterior;
(e) do ponto de vista da mente cogrútiva, a equilibração/regulação difere tanto do
equilíbrio mecânico (que se conserva sem modificações), quanto do equilíbrio
termodinâmico (que é um estado de repouso, ou entrópico, após a destruição das
estruturas). [...] A equilibração é, ao contrário, mais vizinha dos estados estacionários
(mas dinâmicos), no dizer de Prigogine, com trocas capazes de "construir e manter uma
ordem funcional e estrutural num sistema aberto" e, sobretudo, a equilibração/regulação
cognitiva é parente ainda mais próxima dos equilíbrios biológicos;
(f) em sistemas abertos, as interações simultâneas de muitas variáveis geram padrões de
organização característicos de rede, mediante uma interconexidade complexa não-linear;
(g) um sistema é aberto precisamente no sentido de não conservara sua forma, senão
através de fluxo contínuo de trocas com o meio40.
No entender de Piaget, um sistema aberto - que não conserva a sua forma senão através
do fluxo contínuo de trocas – é um sistema incessantemente ameaçado: o equilíbrio é
40 Meio no sentido biológico do conjunto dos estímulos que interessam à organização no seu ciclo fisiológico; e meio
cognitivo, como conjunto de objetos que interessam ao conhecimento.
82
frágil e não resiste à irreversibilidade do ambiente a não ser por patamares momentâneos,
de tal maneira que a evolução aparece como uma série de desequilíbrios acompanhados
de sucessivas reequilibrações41.
A analogia profunda entre o trabalho construtivo das operações intelectuais e as
transformações orgânicas consiste, de acordo com Piaget, em que ambos têm
continuamente de lutar contra a irreversibilidade dos acontecimentos e a degradação das
energias e das informações. E ambos o conseguem pela elaboração de sistemas
organizados, mas sem que haja nem externamente, nem internamente, um Regulador. O
Regulador será o próprio sistema continuamente modificado pelos subsistemas, cujas
construções ele regula. Tais construções também são sempre contínuas, em virtude dos
desequilíbrios permanentes gerados pelas diferentes velocidades assumidas pelos
subsistemas em seu desenvolvimento construtivo. Pois nenhuma forma de pensamento
em qualquer nível que se a considere é capaz de reunir, simultaneamente, num todo
coerente,a totalidade do Real, ou o Universo do Discurso.
O fecho do sistema, então, constitui um limite constantemente procurado, mas nunca
atingido. Neste sentido, pode-se pensar que há, quanto ao conhecimento, uma atividade
construtiva febril e contínua que propicia que a mente cognitiva produza sistematicamente
novas estruturas de conhecimento e cujo engendramento constante se deve exatamente
pela situação de desequilíbrio que se cria na interação, tanto com os objetos de
conhecimento como nas relações interindividuais - neste sentido tais estruturas se
constituem como sistemas dinâmicos, por afastamento do ponto de equilíbrio e pela
necessidade de continuamente procurar atingir tal equilíbrio; ao mesmo tempo, tais
estruturas do conhecimento tendem a se conservar42 justamente pelo fluxo dinâmico e
contínuo de trocas com o meio cognitivo, o qual se produz pela busca constante do ponto
de equilíbrio.
Para Piaget, as flutuações de Prigogine existentes no ambiente, ao desestabilizarem o
sistema, obrigam-no à busca de novos equilíbrios; essa busca – os possíveis - autoorganizativa, corresponderia ao que Prigogine considera uma delicada interação entre
41 Piaget (1978). Prigogine diz que a irreversibilidade é o mecanismo que produz ordem a partir do caos, pois os
processos irreversíveis desempenham um papel construtivo indispensável (Capra, op.dt).
42 Esta conservação poder-se-ia pensar em termos da organização lógico-matemática subjacente e comum, que suporta
o processo de conceituação e a construção dos sistemas conceituais nas diferentes áreas do conhecimento, numa
palavra, a conservação das estruturas do sujeito epistêmico.
83
acaso e necessidade, que levará, cedo ou tarde, à emergência de novas formas de
ordem, ou estruturas: estruturas que possuem o caráter único, como diz Piaget, de
integrar, nessa evolução contínua, sincronia e diacronia, ao mesmo tempo, e na medida
em que, transformando-se, a nova estrutura integra a estrutura anterior a título de parte,
sem que se perca a continuidade nem o poder anterior.
No que concerne mais propriamente às relações interindividuais, Piaget diz: regulações
cognitivas são as mesmas, num único cérebro ou num sistema de cooperações
interindividuais/coletivas.
Diz ainda que, no campo do conhecimento, o sujeito epistêmico que constrói a
matemática e a lógica é, ao mesmo tempo, um indivíduo, mas descentrado relativamente
ao seu "eu" particular, e o grupo social também descentrado, [...] sendo isto condição
necessário para a formação do sujeito epistêmico descentrado.
Para finalizar, direi que considero que esta concepção a respeito da mente cognitiva
(descentrada), que flagramos em Piaget, encontra ressonâncias que cabem ser
exploradas, seja na filosofia da diferença de Gilles Deleuze43, seja na psicologia social de
Félix Guattari44, seja na ecologia cognitiva de Pierre Lévy (já referido); pois que,
parafraseando Guattari, aposta no movimento de criação processual e auto-referencial da
máquina autopoiética (no sentido de Maturana e Varela45), com sua cabeça ao mesmo
tempo coletiva, institucional e individual46.
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43 Deleuze & Guattari (1992).
44 Guattari (1996).
45 Maturana e Varela (1995)
46 Guattari, op.cit.
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