Introdução - Amarc Brasil
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Introdução - Amarc Brasil
Indice 03 Introdução Tomadores de decisões globais 05 Direitos Civis e Garantias Constitucionais violados 09 Influência do Estado 13 Regras antimonopólio 17 Acesso e participação de estrangeiros e migrantes 21 Uso de verbas públicas 25 07 Regras do jogo 11 Gênero 1: Mulheres 2: Gays, lésbicas, 15 Gênero bissexuais e transgêneros 19 Fiscalização e inclusão da 23 Participação população 27 Créditos Introdução As 4556 rádios comunitárias formam hoje o setor mais dinâmico da radiodifusão brasileira. Cada ano solicitam-se novas outorgas – O que mais é preciso para ressaltar o enorme interesse de exercer o Direito Humano à Comunicação no Ar? Em muitas aldeias amazônicas, cidades no interior do sertão, vilas de pescadores, centros históricos, comunidades e periferias urbanas a população achou no rádio um meio de comunicação acessível, prático e divertido para sonorizar e organizar de forma participativa a vida cotidiana. É nada menos que a exploração do velho sonho do dramaturgo alemão Bertolt Brecht – e não somente dele - de um aparelho de “duas caras” onde o público pode falar também até o ponto de confundir a própria distinção dos locutores. A rádio comunitária se faz e se escuta em comunidade, uma comunidade de radioaficionadas/os. Fazer rádio comunitária é um sonho popular realizado e o Brasil deveria estar orgulhoso de contar com a maior paisagem de radiodifusão comunitária no mundo. E também deveria se orgulhar das/ os suas/seus radialistas comunitárias/os que estão dando vida a esse sonho além da “cama” pouco confortável que se chama Lei 9612 e que regula o funcionamento das rádios comunitárias. Com esse conjunto de parágrafos no ano 1998 foi costurado um “colchão” bastante estreito de 25 Watts que não permite compartilhar os conteúdos dos programas com muitas pessoas. E mais, antes disso, conseguir a permissão para comprar e usar um colchão pode virar um pesadelo não de horas, mas de anos. Pior ainda, quem se atreve de realizar o seu sonho radiofônico sem esperar o último carimbo pode ser acordado por um balde frio dos fiscalizadores que regulam severamente a circulação dos contos populares no ar, porque esqueceram que a sua função é fazer voar o maior número de sonhos de todas e todos ao invés de dar preferência aos donos das camas kingsize. Irônicos contos de fadas a parte e voltando a relatos analíticos, como o Informe Anual da Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH) do ano passado, fica claro que o uso compartilhado das ondas hertzianas é marcado por muitos déficits democráticos. A regulação da radiodifusão é um tópico transversal nas recomendações do órgão, tanto quanto a crítica da criminalização da livre expressão, o uso de medidas penais desproporcionais, a diferenciação no direito a veiculação de publicidade e na restritiva distribuição de outorgas de frequências. Enfim, temos muito a debater e mudar para concretizar uma verdadeira liberdade de expressão no rádio. 03 Nas próximas páginas queremos dar uma olhada ampla sobre a prática e os desafios da radiodifusão comunitária no Brasil e em outros países. Convidamos uma turma diversa de 11 autoras e autores, entre elas e eles jornalistas, radialistas, acadêmicos e advogadas. As suas abordagens são originais, convidam-nos para conhecer a radiodifusão comunitária de perto de um ângulo tanto crítico como solidário. São expostos nos textos como organizações internacionais e nacionais influenciam sobre o acesso e o uso do espectro eletromagnético, nos contam dos problemas cotidianos das emissoras independentes no Brasil, México e nos Estados Unidos para conseguir uma outorga. E perguntam por que as rádios comunitárias reproduzem a falta de interesse no esporte feminino, não conseguem romper por completo com tendências homofóbicas da imprensa e não defendem com maior vigor o acesso de migrantes aos ondas eletromagnéticos. E mais uma vez levantam questionamentos sobre como a gente pode sair de uma lógica que confunde a comunicação com um negócio o que acaba com qualquer possibilidade de compartilhar de uma maneira complementar frequências, verbas e recursos entre todas as emissoras. Esperemos que nossa compilação estimule mais debates e mais participação na democratização da mídia brasileira, ajudando a entender melhor a atual importância da radiodifusão comunitária. Boa leitura. Pedro Martins Representante Nacional da AMARC Brasil Tomadores de decisões globais Como a União Internacional de Telecomunicações (UIT) interfere no que você ouve e assiste por Rafael Diniz A União Internacional de Telecomunicações (UIT) foi criada em 1865 como organização para intermediar a comunicação entre as redes de telégrafo de diferentes países da Europa. O tempo passou, o rádio foi inventado e a UIT começou a normatizar e regular as ondas de rádio e telefonia em escala mundial. Foi incorporada como agência (mais antiga) da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo 193 países filiados. A banda hoje alocada para o rádio FM, por exemplo (88MHz – 108MHz), foi definida pela UIT. Assim como a faixa para rádio AM, TV, WIFI e telefonia celular, sendo, portanto, a mais alta instância do rádio no mundo. Fazem parte dessa organização representantes dos 193 países e aproximadamente 700 outras organizações, muitas dessas entidades são empresas e indústrias ligadas ao setor de telecomunicações. As reuniões e conferências nas quais a UIT toma as decisões sobre novas regras e tratados que ditam o uso do rádio são realizadas a portas fechadas, sem qualquer possibilidade da participação ou acesso da sociedade civil ou de seus representantes. Somente ministros de Estado, organizações representantes da indústria e empresas do ramo das telecomunicações ‘multibiolionárias’ tomam as decisões. Um exemplo recente foi o lobby da 3GPP e AT&T para alocar a banda dos 700MHz, hoje ocupada pelos canais de TV 51 ou 69, para a telefonia móvel, em detrimento da recepção com qualidade da TV aberta gratuita nos EUA. A plenária da UIT, de forma nada surpreendente, cedeu ao lobby das empresas de telecomunicações, abrindo caminho para o mesmo processo no Brasil. Aqui, em terras tropicais, a realocação dos 700MHz irá prejudicar muito as TVs públicas, que têm seus canais digitais alocados entre o 61 ao 69. No caso do rádio digital, o lobby dos Estados Unidos na UIT a favor de seu padrão, o HD Radio, conseguiu barrar o padrão Digital Radio Mondiale por vários anos antes que conseguisse 05 se tornar uma norma internacional reconhecida, claramente defendendo os interesses comerciais de empresas norte-americanas, e contrários a aceitação do único padrão de rádio digital aberto que funciona na faixa de AM e FM. Não contente com o grande poder, a UIT vem tentando há alguns anos incorporar a governança da Internet, de forma a permitir um maior controle sobre o tráfego na rede. Num mundo onde o rádio pode ser universal, permitindo-se mais emissores-receptores, onde o acesso dinâmico ao espectro está à disposição para seu compartilhamento entre todos e a sociedade clama por mais voz e acesso aos meios de comunicação, a UIT se mostra cada vez mais uma entidade da ONU que oprime aqueles que precisam ter acesso ao espectro radioelétrico para se comunicar. Rafael Diniz , estudante em informática na PUC-Rio, membro do coletivo Saravá e DRM-Brasil, Brasil “O rádio é o meio de comunicação que permite maior autonomia, independência e liberdade nas comunicações e precisa de todo nosso esforço para que mantenha essas características com sua migração para o digital.” As regras do jogo Rádios comunitárias X rádios comerciais: regras de um jogo injusto por Ana Martina Rivas Em novembro de 2013, os telefones no escritório do Prometheus Radio Project, Philadelphia, Estados Unidos, não paravam de tocar, com dezenas de chamadas por dia. Tinha chegado o momento esperado por mais de 10 anos: candidatar-se para uma licença de rádio de transmissão de baixa potência. Os aspirantes: rádios comunitárias que atualmente transmitem com 100 watts de potência com um intervalo de 3 a 8 quilômetros. Tanto elas como o nosso projeto Prometheus começamos como “rádio pirata”. Somente depois de 10 anos de brigas com a Comissão Federal de Comunicações (FCC) e de lobby em Washington DC, a FCC finalmente publicou no ano passado um novo regulamento que inclui as rádios comunitárias de baixa potência. Vivo em um país onde grande parte do espectro de rádio é controlada pelo monopólio Clear Channel e as opções de rádio pública são dominadas pela National Public Radio, conservadores de corrente liberal. Dessa forma, populações minoritárias como camponeses, imigrantes, negros e de baixa renda são totalmente marginalizadas quando se trata de meios de comunicação. Durante o período de aplicação das licenças recebemos dezenas de chamadas. E, contrário ao atual uso uniforme do espectro de rádio, as ligações refletiram a diversidade do país. Talvez tenhamos em nossas mãos uma ótima oportunidade para diversificar a opinião pública nos Estados Unidos. Prometheus tem lutado pelo acesso a rádios comunitárias e defende o potencial deste meio como uma ferramenta para apoiar organizações de base e populações minoritárias. No entanto, no ano 2014, esses grupos ainda se encontram no início de um longo caminho para construir as suas próprias estações de rádio. As regras da FCC são muito rigorosas, e para poderem ser aplicadas a essas frequências requere-se um estudo de engenharia para verificar se as estações propostas não irão interferir nas estações existentes. Além disso, os equipamentos 07 possuem um custo muito alto, cerca de sete mil dólares, pois precisam ser certificados pela FCC. Soma-se ao montante ainda a mão-de-obra dos engenheiros. Uma vez que estas estações recebam suas licenças, terão um prazo de 18 meses para entrar no ar em conformidade com todas as normas e exigências da FCC. Caso contrário, a autorização expira no final do prazo, o que significa que estes grupos estão agora na corrida contra o tempo para angariar fundos para a aquisição destes equipamentos caros. O processo de aplicação é altamente competitivo. Na baía de São Francisco, por exemplo, existem cerca de 30 candidatos para a mesma frequência. Em alguns casos, o processo de competição envolverá processos judiciais excessivamente burocráticos. É definitivamente o início de uma longa batalha que está apenas começando para essas minorias mal representadas ou ausentes nos meios de comunicação. Estamos falando de algumas migalhas do espectro radiofônico em um país que tem se especializado no controle dos meios de comunicação como uma estratégia para o controle da população. E ainda por cima, este serviço de rádio de baixa potência é considerado de segunda classe, o que significa que a qualquer momento uma estação comercial pode se mover para outra frequência ou aumentar o seu poder. As rádios comunitárias em muitos casos são obrigadas a transmitir com menos potência para não interferir nas transmissões das grandes rádios comerciais. O que é pior: na maioria dos casos, uma rádio pode até mesmo perder sua licença se prejudicar emissoras comerciais. Como podem ver, as “minorias radiofônicas” têm regras de jogo bastante difíceis para seguir e são claramente representadas como populações de segunda classe pela FCC. Para mais informações sobre o trabalho do Projeto Rádio Prometheus: http://prometheusradio.org Ana Martina Rivas trabalha no Prometheus Radio Project, Philadelphia, Estados Unidos “As grandes corporações apropriaram-se dos meios de comunicação, construindo uma narrativa monopolista de censura da direita.” Direitos Civis e Garantias Constitucionais violados Vida de Gado por Pamella Magno As rádios comunitárias surgiram em regiões periféricas e operam com baixa frequência em FM. São ferramentas de comunicação extremamente importantes em suas áreas de atuação. Por seu baixo alcance, tornam- se pontos de referência com tratamento específico das questões locais, onde os ouvintes se apropriam levantando pautas, divulgando eventos e fazendo a programação em si. Logo, as rádios comunitárias (RCs) assumem um papel de empoderamento, pois ninguém fala por elas, e mantêm uma identidade local que leva ao sentimento de pertencimento, reconhecimento do indivíduo por ele mesmo como cidadão de direitos e deveres. Estamos falando do desenvolvimento cognitivo deste indivíduo em várias vertentes, resultando em um posicionamento político. O inciso III do Artigo 3 da Constituição Federal (CF), que trata da redução de abismos das desigualdades sociais e regionais, é o escopo das RCs. Existe um grande aparato de leis para defesa da liberdade de expressão. Como, por exemplo, o inciso IX do Artigo 5 da CF que diz ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’. Até aí tudo azul, beleza pura… Agora vamos à nossa realidade. Rio de Janeiro, 03 de Maio de 2011. Rádio Santa Marta, uma rádio comunitária localizada no bairro de Botafogo é fechada e comunicadores comunitários são levados para delegacia em operação da Polícia Federal e Anatel por não possuírem autorização de funcionamento. Campinas, 23 de Fevereiro de 2014. Rádio Muda, uma rádio livre que funcionava há 30 anos no campus da Universidade Estadual de Campinas é fechada em operação do Ministério Público Federal (MPF) em conjunto com a Anatel também por não possuir autorização. O Ministério das Comunicações passou a emitir autorizações provisórias (com duração de 10 anos) em 2003, porém sem 09 transparência sobre a sua distribuição. Foi criado um grupo de trabalho (GT) para apurar tais informações e constatou-se mais de 40 mil processos administrativos em atraso, sendo pouco mais de quatro mil RCs. Havia delegações regionais que foram fechadas, concentrando o local de recebimento diretamente no Ministério das Comunicações, em Brasília, com capacidade de recebimento e apuração técnica de três mil pedidos por ano! Chega a ser risível… faça as contas. Quem receberá tais autorizações: oligopólios das grandes rádios ou as rádios comunitárias? A maior parte destes processos continuam parados. O próprio Ministério das Comunicações reconhece a dificuldade na execução dessas demandas. Em contraponto, a fiscalização sobre esses veículos de comunicação ‘clandestinos’ é eficaz e rápida. Tratando de forma penal e não de forma administrativa cidadãos que cometeram o crime de se expressar. Sendo a morosidade deste Ministério a real violação constitucional dos princípios de eficiência e razoabilidade, que segue impune. Existe um jogo político de interesses midiáticos como pano de fundo. É o interesse privado sobrepondo o público. O uso dos aparelhos do Estado para criminalizar os comunicadores comunitários e livres é uma afronta à sociedade democrática que sonhamos. Pamella Magno trabalha para o Jornal O Cidadão e no Pontão de Cultura Digital da Eco UFRJ “A a liberdade de expressão exercida através do uso de ferramentas de comunicação traduz um ambiente de trocas de experiências, valores e costumes. Tornando-se vital para a manutenção da interação cognitiva humana.” Gênero 1: Mulheres O que não é visto, não existe por Miriam Meda “O futebol feminino, nem é futebol e nem feminino.” Com este tipo de incentivo vindo das arquibancadas, a jogadora Sheila Jimenez teve que marcar gols. Sheila era uma jogadora semi-profissional do futebol espanhol, que deixou os gramados para se dedicar a área de informática e telecomunicações num escritório em Madrid. Eu também me lembro durante os campeonatos que cada vez que uma companheira marcava um gol não faltavam homens gritando: “Faça um Guaraná “. Para quem não se lembra, o Guaraná é um refrigerante que em 2002 fez um comercial de extremo mau gosto. A empresa veiculou um anúncio em que uma loira marcava um gol e comemorava a marcação subindo a camisa e mostrando os seios. Na Espanha, foi uma das publicidades mais denunciadas por ser sexista. Mas por que ainda existe essa visão do futebol feminino? Não só no futebol, mas no esporte em geral. Mari Carmen Rodriguez, diretora e apresentadora do programa de rádio Féminas, um espaço inteiramente dedicado ao futebol feminino, da Rádio Ritmo Getafe de Madrid, na Espanha, indigna-se ao lembrar do descaso da imprensa em noticiar a conquista da nadadora espanhola Mireia Belmonte. A atleta ganhou quatro medalhas de ouro e bateu um novo recorde no campeonato europeu de natação e a mídia não deu, sequer, uma nota de rodapé. Que o futebol move massas, todos já sabem, mas o grande problema na sociedade de hoje é que aquilo que não aparece na mídia diretamente, não existe. Infelizmente, o caso de Mireia não é o único. Como o esporte das mulheres nunca é notícia, de fato não existe. Você pode estar perguntando se para os veículos de comunicação é de fato rentável o suficiente dar a mesma visibilidade do futebol masculino para o feminino. É uma pergunta legítima, mas deixando de lado os termos econômicos, devemos nos perguntar o que acontece com as televisões e rádios públicas, cujo benefício mede-se no serviço público e não no lucro? E então, o que acontece com as rádios e televisões comunitárias, cuja missão declarada é precisamente dar voz aos que não têm voz? 11 Analisando os programas de rádio dedicados ao esporte feminino na Espanha, observamos que quase podemos contar nos dedos de uma mão aqueles em que de fato abrem um espaço para retratar a mulher no esporte. Contamos com o Solo Deporte Femenino (SDF) realizado pela Universidade Europeia de Madrid, em colaboração com o Conselho de Esportes; Aragón Deporte en Red. En femenino, da Rádio Pública de Aragão, e um quadro para as mulheres no programa Al primer toque da Onda Cero. Se nos concentrarmos nas rádios livres e comunitárias espanholas, podemos incluir Féminas e alguns programas de esportes como Oye, ¿cómo van? da Rádio Cegonha e El Cronómetro, de Xétar FM. Como dissemos antes, “o que não aparece na mídia, não existe.” E como podemos ver, esporte e futebol das mulheres não aparecem nos meios públicos de comunicação, nos privados comerciais e nem nos meios de comunicação comunitários. Temos que repensar o tipo de comunicação que fazemos a partir da liberdade e de fato sermos livres nas rádios alternativas e comunitárias sem copiar modelos hegemônicos que pregam a exclusão por conta do gênero. Precisamos criar os nossos próprios programas de esportes, não só do futebol feminino, mas de outras modalidades esportivas, em que todas as pessoas, independentemente do sexo, sejam os protagonistas. Miriam Meda é integrante da Red de Medios Comunitarios (ReMC) / Universidad Complutense, Madrid, Espanha “O rádio e a mídia de maneira geral são ferramentas para exercer os direitos humanos (liberdade de expressão, direito à comunicação, etc.), mas às vezes, este aspecto é esquecido por interesses políticos e econômicos principalmente.” Influência do Estado E os Estados? Jogam a favor ou contra a democratização da radiodifusão? por Javiera Diaz Quando se fala de democracia, de radiodifusão e meios de comunicação e informação, frequentemente sinaliza-se como uma necessidade de que sejam os próprios Estados os responsáveis por promover e assegurar o acesso à informação e à liberdade de comunicação, regulando a distribuição equitativa do espectro radioeléctrico e ampliando a criação de oportunidades de participação não-comercial e democrática da sociedade civil nestes espaços. Estas ideias são amparados por vários organismos e convenções internacionais, especialmente para a radiodifusão na América Latina (AL). São relevantes os direitos consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), a Declaração de Princípios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e as numerosas declarações e opiniões expressas pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos. Especificamente o artigo 13 da Convenção Americana, exige que os Estados garantam o direito universal de todos à “liberdade de procurar, receber e transmitir informações”, independentemente de fronteiras e meios. Os Estados também não podem “restringir o direito à expressão por vias ou meios indiretos” através, por exemplo, da restrição abusiva das radiofrequências. Neste sentido, o Tribunal foi claro em afirmar que o artigo envolve dois aspectos fundamentais do direito à liberdade de expressão, “não só o direito de expressar pensamentos e ideias, mas também o direito e a liberdade de adquiri-los e recebe-los” insistindo, por sua vez, no papel principal dos meios de comunicação social para garantir o livre exercício desses direitos, o que significa que os Estados devem assumir um papel ativo para garantir a existência de uma pluralidade de mídia e evitar monopólios. Por sua vez, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da CIDH observa que a alocação de rádios deve levar em conta critérios democráticos e que os Estados não podem usar o seu poder e os recursos para proteger os interesses políticos e 13 econômicos setoriais que resultam no uso de critérios discriminatórios, os quais devem ser expressamente proibidos pela lei. Mas então, serão as regras do jogo por parte do Estado, que se diz democrático, realmente respeitadas? Como se sabe, durante os anos em que os países latino-americanos foram governados por regimes autoritários e ditatoriais de corte fascista-militar, Direitos Humanos e, especificamente, o direito à liberdade de expressão, foram sistematicamente violados pelos governos que controlavam as informações em conluio com a grande mídia, perseguindo e brutalmente suprimindo mídias e rádios comunitárias que operavam em condições extremamente precárias, sem qualquer proteção legal e na clandestinidade. No entanto, esperava-se que após o restabelecimento das instituições democráticas e a participação dos Estados nas convenções internacionais sobre o assunto, finalmente as Nações assumissem a responsabilidade inalienável de respeitar e assegurar a liberdade de expressão e comunicação como direitos fundamentais. Porém, a verdade é que se olharmos para o Estado atual, vemos que não houve muito avanço da época da ditadura para cá quando se trata de democratização da comunicação. Os oligopólios continuam atuando no setor da mídia, assim como há 50 anos atrás. Ao mesmo tempo, as leis atuais sobre a radiodifusão geralmente distinguem entre rádios públicas, comerciais e não-comerciais ou comunitárias, o que acentua a desigualdade na distribuição das ondas. Além disso, muitos países não eliminaram a perseguição penal às rádios que não possuem amparo legal, o que abre margem para a repressão e processos de criminalização das rádios comunitárias e populares. Em suma, apesar do progresso e da alteração de várias leis oriundas do período ditatorial, a maioria dos países não assumiu o seu papel na democratização da radiodifusão e nem tem melhorado a comunicação social. De acordo com vários estudos, ao longo de 40 anos as políticas dos Estados em torno do sistema de comunicação social e de rádio têm sido orientadas no paradigma de “desenvolvimento” – enquadrado na lógica capitalista e neoliberal, em vez de garantir os direitos dos povos. Isto significa que existe o privilégio dos interesses dos grandes empresários da comunicação em perseguir as estações que não se enquadram dentro dos padrões estabelecidos pela legislação, sendo esta mais preocupada com aspectos técnico-burocráticos do que com a democratização da palavra. Infelizmente, a prioridade está mais ligada à regulação dos watts para os grandes veículos de comunicação do que na distribuição equitativa do espectro de radiofrequências. Quando os Estados e as leis que regem a radiodifusão não promovem direitos nem protegem um direito humano, mas cuidam dos interesses de certos setores empresariais dos meios de comunicação, estamos diante de um Estado que procura manter a precariedade no âmbito da comunicação comunitária. Mas nem tudo é dito neste jogo, as rádios que promovem mudanças sociais e a democratização da comunicação possuem apoio, pelo menos discursivamente, de regulamentos e convenções internacionais sobre direitos humanos. Lutar para o pleno exercício desses direitos é, na minha opinião, o horizonte de ação de todos nós que ainda acreditamos em uma verdadeira transformação social. Javiera Díaz é psicóloga e investigadora social, Alemanha/Chile “É importante a geração de espaços alternativos e democráticos de comunicação através da construção coletiva do pensamento e da ação crítica.” Gênero 2: gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros A homossexualidade na comunicação por Markus Plate Os meios de comunicação são um pouco como times de futebol. Me digam, por favor, um craque de futebol que tenha saído do armário? Thomas Hitzelsperger o ex-jogador da Alemanha, certo. Ele com o seu outing virou tema da imprensa mundial, coisa que nunca conseguiu durante a sua carreira ativa. E agora, me digam mais um famoso jornalista gay. Certo, Anderson Cooper, nosso inimigo mais querido da CNN, com a sua fisionomia séria e seus lábios sempre malandros. A comunidade gay estadunidense sempre suspeitou dele como um possível candidato nas suas redes sociais de fofoca, ainda que (ou sobretudo porque) o Sr. Cooper goste de se apresentar bastante macho e bastante neoliberal. Porém, o que nos dizem esses casos particulares sobre a porcentagem dos gays no futebol e na mídia? Estatisticamente falando, nada. Talvez ajude compartilhar um pouco da experiência pessoal. Eu venho da bacia do Ruhr, uma região com muitas indústrias, também chamada da cozinha de ferro da Alemanha – e por esse fato, é uma das regiões do futebol no país com clubes conhecidos mundialmente: Borussia Dortmund, Schalke 04 e Vfl Bochum. Lógico que eu também jogava futebol desde pequeno – em comparação com os parceiros e adversários canhotos quase brasileiro: eu fui hábil com a bola e mais rápido que os demais. Achei gatos vários dos jogadores nos times adversários. Achei, já que estamos aqui entre os homens, igual num seminário, na cadeia ou grupos de choque, que deveria rolar algo. Mas, rapidamente aprendi que o mais gay que um jogador de futebol tem a oferecer é a sua homofobia. Durante muito tempo, as únicas exceções eram grupos ou associações gays de esporte. Vou pular de times locais e alternativos de futebol à mídia local e alternativa – e mais uma suposição: Entre os jornalistas a porcentagem de gays deveria ser ainda muito maior do que no meio de outras profissões. Presença na mídia, uma grande variedade temática, muitas viagens, muito estresse, uma grande responsabilidade pessoal – um trabalho feito para o homem gay ou a mulher lésbica. É um fato: na grande mídia eu conheço 15 um monte de profissionais gays ou lésbicas. Apresentadores, cinegrafistas, correspondentes de jornais, fotógrafas. Ou seja, tem muito mais Anderson Coopers nesse mundo que Thomas Hitzlspergers. Porém, como se vê esse mundo jornalístico ao nível local? Eu temo que se pareça bastante com o meu time de futebol na bacia do Ruhr. Nos últimos 15 anos eu conheci dúzias de rádios comunitárias na Europa e na América Latina. Por alguma razão, a maioria dos homens acham-me heterossexual. Por isso os colegas masculinos me incomodam sempre com a pergunta: o que eu acho de tal mulher? A minha resposta preferida: “Talvez eu ache você mais interessante…”, já perturbou profundamente diferentes militantes que se acham sensíveis ao tema do gênero. Simplesmente não conseguem se comportar diferente a um moleque macho de um clube de futebol local. Sem dúvida, muitos neste meio são mais civilizados. E sem dúvida, depois de sair do armário numa rádio comunitária não são desacreditados como “veado” em público. Muitas vezes até existe um interesse honesto na minha pessoa e até mesmo desenvolveram-se verdadeiras amizades. Pensando nisso, tenho que defender um pouco os homens heterossexuais das rádios comunitárias. Eles simplesmente carecem de uma presença gay. Porque participam jornalistas lésbicas em muitos projetos, mas raramente militantes gays. E quando participam somente apresentam o seu programinha de arco-íris – e muitas vezes nem aspiram mais. Mas os tempos mudam. Há tempos que nas metrópoles da América Latina e da Europa uma geração jovem da diversidade sexual lutou para sair do gueto e chegar no público. E essa luta alcançou até mesmo as rádios comunitárias. Radio Onda em Berlim, nosso projeto de rádio dedicado aos movimentos sociais na América Latina durante muitos anos foi dominado por lésbicas e gays. E isso sem que os noss@s companheir@s heterossexuais tivessem sofrido grandes feridas mentais. Sempre faziamos mais do que somente discutir se Anderson Cooper será 360 graus gay ou não. Também sabemos filosofar sobre música punk ou juntar argumentos contra megaprojetos de mineração. Até mesmo sabemos jogar futebol. Eu, por exemplo, uma vez marquei um gol legendário – que assegurou uma vitória de 3 a 2 do meu time de punkeiros contra a rígida juventude socialista heterossexual durante a copa anual dos adolescentes na minha cidade natal. Foi a primeira vez em cinco anos que nós, os punkeiros, não tínhamos perdido um jogo. Markus Plate é jornalista radiofônico na ONG Voces Nuestras, Costa Rica. “Tanto na mídia como no esporte, podemos ver um forte processo de mercantilização e uma concentração de propriedade. Estas duas tendências vão acompanhadas e requerem uma regulação tanto da comunicação como do esporte.” Regras antimonopólio “Pensamento único” no rádio brasileiro por Bruno Marinoni Vamos conversar e todas as nossas conversas a partir de agora têm a seguinte regra: eu falo e vocês todos só ouvem. Podem até tentar falar, mas ninguém vai ouvir, pois só eu tenho caixa de som, microfone e autorização. Esse é, grosso modo, o modelo básico do monopólio da fala sob o capitalismo: domina a cultura (poder ideológico) quem tem a propriedade dos meios de produção de comunicação (poder econômico) e a anuência do Estado (poder político). Visando minorar esse problema de assimetria de poder e restrição à liberdade de expressão, a lei brasileira prevê uma medida “antimonopolista” para o rádio, regulamentada pelo artigo 12 do Decreto-Lei 236 de 1967. Cada entidade fica limitada a deter apenas 4 outorgas locais de ondas médias (OM) e 6 de frequência modulada (FM), 3 outorgas regionais de OM e 3 de ondas tropicais (OT) (sendo no máximo 2 por estado), além de 2 outorgas nacionais de OM e 2 de ondas curtas (OC). Ou seja, o combate ao monopólio no rádio se dá pela restrição ao número de concessões e permissões outorgadas pelo Estado a cada ente. A medida liberal e formalista da arcaica lei de radiodifusão é (pra dizer o mínimo) insuficiente e é possível perceber isso pelo “pensamento único” que domina o conteúdo do rádio brasileiro já há um longo tempo. Se ligarmos o receptor neste exato momento em qualquer estação, com grande probabilidade, encontraremos basicamente dois tipos de programação: a comercial e o proselitismo religioso cristão. Ou seja, a diversidade ideológica e cultural brasileira não tem lugar nas ondas eletromagnéticas, indicando um sintoma de que a liberdade de expressão não encontra vazão para se realizar na restrita democracia do Brasil para os destituídos de poder econômico. Além disso, a concentração da propriedade e de poder midiático é mais complexa do que o indicado pelo modelo simplificado apresentado no primeiro parágrafo. Os empresários de comunicação (poder econômico) articulam entre si redes oligopólicas (grupos de monopólios nacionais, regionais e locais) 17 que ultrapassam o rádio, envolvendo outros veículos, em um fenômeno conhecido como “propriedade cruzada”. O grupo Globo, por exemplo, segundo levantamento feito em 2008 pela pesquisa “Donos da Mídia”, controlava direta e indiretamente 52 rádios AM, 76 FMs, 11 de ondas curtas, 105 emissoras de TV, 33 jornais, 27 revistas, 17 canais e 9 operadoras de TV paga. mas a lei 9.612 de 1998, que institui o “serviço de radiodifusão comunitárias”, e a normatização aplicada pelo Ministério das Comunicações e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), mais dificultam do que facilitam a estruturação desses setores. Ficamos assim privados de experimentar e fortalecer novas linguagens, estilos e conteúdos. Outra estratégia para burlar a lei tem sido a de controlar as concessões por meio de entrepostos familiares e pessoas “de confiança” que assumem o controle das emissoras como verdadeiros “laranjas”, apenas nominalmente. A prática efetiva de controlar algumas rádios não se encontra assim nas mãos daqueles que são legalmente responsáveis por elas, mas de empresários que já possuem outras concessões ou de políticos interessados em não publicizar tal vínculo. Da mesma forma, a política aplicada para o desenvolvimento das rádios públicas, educativas, universitárias e sem-fins-lucrativos tem sido inexpressivas no país, excetuada talvez pelo caso da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e casos isolados. As iniciativas das rádios comunitárias, livres e alternativas poderiam oferecer um contraponto a esse modelo marcado pela extrema homogeneidade e pelo “jeitinho empresarial de lidar com as regras”, O fato é que, se a legislação brasileira continuar combatendo a concentração apenas pelo número de veículos (coisa que, ainda assim, faz mal), desconsiderando a representatividade dos diversos setores da sociedade e os diversos interesses da população, teremos para sempre o monopólio do “mais do mesmo” no rádio. Bruno Marinoni é Repórter do Observatório do Direito à Comunicação e colabora no coletivo Intervozes, Brasil “Existe uma série de entraves que precisam ser superados para que a comunicação e o lazer sejam tratados como direitos e não reproduzam mecanismos de dominação.” Fiscalização Por uma comunicação plural por Karina Quintanilha Quando falamos em fiscalização das rádios comunitárias no Brasil aparecem três figuras centrais: a Anatel, o Ministério das Comunicações e a Polícia Federal. Esses órgãos são responsáveis por verificar se o funcionamento das rádios está de acordo com a legislação nacional. Na prática, como veremos a seguir, esses órgãos públicos revelam um viés político ao proteger prioritariamente os interesses comerciais. A demora injustificada nos processos de outorga das rádios comunitárias, além de ações violentas e repressoras contra os comunicadores, demonstram esse desequilíbrio. E, ainda, o recente anúncio da Anatel sobre a intensificação da fiscalização contra as rádios comunitárias no período da Copa do Mundo a fim de garantir o “padrão Fifa” na transmissão dos jogos reforça o que está por trás da aparente neutralidade dos agentes reguladores da comunicação no país. A maioria dos critérios que devem ser observados pelas rádios comunitárias estão previstos na Lei nº 9.612/1998, regulamentada pelo Decreto 2.615 de 1998. Anatel e Ministério das Comunicações podem fechar uma rádio ou suspender/arquivar o processo de outorga quando a rádio não respeitar os seguintes requisitos: funcionamento limitado a um único canal em frequência modulada (FM), potência máxima de 25 Watts, proibição de publicidade comercial, documentação em dia e cobertura restrita a um raio de 1 quilômetro (km) a partir da antena transmissora. Tais limitações geram uma enorme desigualdade no acesso às rádio frequências pelas comunidades. Por outro lado, as emissoras comerciais brasileiras não possuem qualquer limite prévio de potência, atingindo milhares de watts e gozando de maior celeridade nos processos de outorga, se tornando verdadeiras “donas da mídia” ao ocupar a imensa maioria do espaço reservado para o rádio e televisão. Ainda, dados revelam uma eficiência muito maior dos órgãos públicos para impor sanções às rádios comunitárias do que às 19 comerciais. Em resposta ao pedido de informação feito pela Artigo19, a Anatel revelou que em 2010 foram fechadas 940 rádios, 363 com mais de 25 Watts de potência e 449 de potência reduzida. Em 2011, o total de rádios fechadas foi 698, 284 operando com mais de 25 Watts e 333 com potência inferior. Importante mencionar que 54% de todas as ações judiciais propostas após o fechamento das rádios comunitárias são de natureza penal. Mesmo as rádios comunitárias que possuem outorga continuam sob ataque do Estado: de acordo com balanço publicado referente a 2012, o Ministério das Comunicações aplicou 741 sanções (advertência, multa ou suspensão) para emissoras de rádio e TV: dessas, a maioria (377 ou 50,8% do total de casos) teve como alvo as rádios comunitárias. Recente tabela divulgada pelo Ministério das Comunicações mostra que apenas nos três primeiros meses de 2014 o total de sanções administrativas chegou a 340, sendo 193 (57,7%) aplicadas às rádios comunitárias. Ainda há que destacar aqui o papel repressivo da Polícia Federal no fechamento de rádios comunitárias. Em vários casos relatados pelos diretores dessas rádios, constatou-se que os agentes sequer apresentam um mandado de busca e apreensão ou documentação pertinente durante as operações e agem de forma violenta, causando danos aos equipamentos. Diante desse quadro de profunda ausência de compromisso do Estado brasileiro na promoção da liberdade de expressão das comunidades conforme as diretrizes internacionais, necessário fortalecer a apropriação desse direito pelas comunidades a fim de que possam cobrar e exigir maior igualdade no acesso aos meios de comunicação. Karina Quintanilha trabalha na ONG Artigo19, Brasil. “Diante da imensa desigualdade no acesso aos meios de comunicação no Brasil que geram um verdadeiro monopólio do direito à liberdade de expressão, as rádios comunitárias e livres representam instrumentos fundamentais para dar voz às demandas políticas e expressões culturais das comunidades, além de ser um meio importante para viabilizar maior participação popular através do pluralismo e diversidade de fontes de informação e de conteúdo.” Acesso e participação de estrangeiros e migrantes Que viva la cumbia! por Nils Brock “O rádio chega a ser o sol espiritual do país, um grande mago e bruxo” escreveu Velimir Khlebnikov no ano 1921. No sonho do futurista russo a comunicação é total e vira um “canto supernatural” na nação toda. “O rádio do futuro” é um ensaio bonito, um desejo honesto, uma visão inocente. E o panfleto demonstra que a ambigüidade da mídia radiofônica já estava presente bem ao início, como analisa o filósofo (e antigo integrante da Rádio Alice), Bifo: “como uma luz de amor e saber, e uma voz de um poder todo poderoso”. O que eu acho perturbador neste horizonte futurista também, é a ligação techno-mítica que nacionaliza o rádio. Cada estrela nacional precisa de um firmamento estranho para brilhar. Este outro ou esta outra, no melhor caso, simplesmente não faz (e nunca fará) parte de um projeto nacional, na pior das hipóteses, será perseguido em nome da nação mesma – e muitas vezes o grande mago é cúmplice. Não precisamos voltar até a Alemanha Nazista onde através de baratos receptores de rádio, subvencionado pelo Estado (os famosos Volksempfänger), @s futur@s assassin@s foram educados a odiar e matar milhões de judeus, judias, cigan@s e outr@s não-arianos. Em Ruanda, um pequeno país da África, há apenas 20 anos atrás, a rádio RTLM foi usada sistematicamente para semear o ódio, ao estimular uma diferença étnica criada na época colonial entre os Hutu e os Tutsi. “Matem a todos os inimigos” instigavam @s locutor@s Hutu, enquanto comentavam jogos de futebol ou anunciavam a próxima canção. E a torcida se mobilizou. Em menos de três meses foram assassinados mais de um milhão de Tutsi e tod@s que não compartilhavam do sonho radical de uma nação Hutu pura. Confesso que esses são exemplos extremos da ambigüidade radiofônica. Porém, a humanidade sempre foi capaz de voltar ao nível da barbárie num piscar de olhos. Por isso, a importância de sempre recordar com memória poética: “eu é um outro”. E esses outros e outras devem estar presentes nos estúdios de rádio 21 constantemente, para evitar delírios nacionais e perigosos sonhos de pureza. A mestiçagem e a diversidade antecedem e transcendem as epopéias nacionais que são, históricamente faladas, nada mais que anomalias. Bom, vamos aterrissar no Brasil (por fim!) e falar do trato d@s outr@s aqui. Tanto a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU (Artigo 19) como a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da OEA (Art. 6) e o Pacto San José (Art.13) visam assegurar o direito de cada ser humano para fazer mídia. Isso não significa apenas falar como convidad@ ou conduzir um programa, mas também poder organizar, em nosso caso, a sua própria rádio. Esse direito é universal. Pode ser reclamado individualmente, mas também reconstituído como um direito coletivo (ex. Direitos dos Povos Indígenas, Artigo 16). Porém, as leis brasileiras – e infelizmente também projetos de leis que querem democratizar a comunicação – não protegem esse direito. Bem ao contrário. Somente “brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos” podem organizar rádios neste país. É estranho que este gesto nacionalista seja compartilhado também por muitas pessoas da esquerda. Porque o que importa não é a origem de um@ radialista e sim a finalidade pela qual el@ quer transmitir no ar. Os Marinhos são 100% brasileiros, certo? Pelo outro lado, bem intencionadas convicções antiimperialistas não deveriam na prática discriminar um@ migrante ou um@ refugiad@ que quer organizar uma rádio no Brasil. Mas as leis não são o único problema. Os conceitos também não se casam. “Mídia cidadã” parece uma ideia bonita, mas ignora por completo que implicitamente exclua todos os não-cidadãos que estão de passagem ou moram sem o reconhecimento do Estado no Brasil. Um conceito territorial da radiodifusão comunitária é igualmente limitador, porque contempla como usuári@s de um estúdio de rádio somente @s morador@s de domicílios fixos numa certa localidade. Isso é uma lógica de gueto e em plena contradição com a liberdade de expressão. O uso comum do espectro eletromagnético precisa ser pensado de outra forma. Uma onda no ar não reconhece fronteiras nacionais. Por isso me choca a ideia de restringir o seu uso através de passaportes. É um pensamento profundamente antidemocrático. Não se explica a necessidade dessa restrição no geral e muito menos na área da comunicação comunitária, que segundo um estudo do Conselho Europeu é “um fator importante na coesão social […], particularmente para comunidades de minorias étnicas, refugiados e migrantes”. Sinto falta desta sensibilidade aqui no Brasil. Fala-se muito das precárias condições de trabalho dos migrantes no Brasil. Por exemplo, a mídia informa a respeito d@s bolivian@s que trabalham em condições análogas à escravidão nas fábricas de roupa em São Paulo, se ‘esquecendo’ de dizer que, na verdade, não precisariam trabalhar na clandestinidade, já que como integrantes do MERCOSUL, @s bolivian@s têm o direito de ganhar o seu salário num emprego digno no Brasil. A lei @s protege. Mas não será que mais migrantes hispanofalantes conheceriam esse direito se tivéssem a oportunidade de organizar a sua própria rádio? Pois é, por enquanto @s estrangeir@s não podem aspirar tanta liberdade para difundir notícias ou tocar uma música nas ondas do Brasil. Que viva la cumbia! Nils Brock trabalha como cooperante internacional na AMARC Brasil “Uma onda no ar não reconhece fronteiras nacionais. Por isso me choca a ideia de restringir o seu uso através de passaportes. É um pensamento profundamente antidemocrático.” Participação e inclusão da população O direito de ouvir e fazer rádio por Polyester Kat O rádio no México, assim como outros setores de telecomunicações, é monopolizado por dois grandes monstros desta indústria, as empresas comerciais Televisa e TV Azteca. Porém, existem também cerca de 2.000 rádios comunitárias em todo o território, o que é um número aproximado, pois a grande maioria dessas rádios seguem sendo ilegais e por isso não aparecem no censo da mídia. Esta condição não é facilmente revogável porque historicamente a lei foi escrita para favorecer uma concentração predominante de gestão desses serviços. Hoje em dia, cerca de cinco famílias controlam grande parte da mídia em todo o país. Ao longo dos últimos 10 anos, dezenas de rádios comunitárias foram atacadas, invadidas, desmontadas e, no pior dos casos, seus membros e fundadores foram ameaçados, detidos e tiveram que enfrentar processos penais injustos. Os principais argumentos usados para criminalizar as rádios comunitárias são conhecidos e pouco sustentáveis. É dito que: a) a presença de transmissões sem a permissão do espectro de rádio pode interferir em frequências de aeroportos, sinais de banda civil e de serviços de emergência; b) ao oferecerem espaços publicitários a possíveis patrocinadores, as rádios “piratas” e “ilegais” produzem uma concorrência desleal; c) rádios comunitárias divulgam música com direitos autorais e mensagens “subversivas” por meio de suas frequências. Estas justificativas dificilmente resistem a uma análise que coloca a prova essas acusações. A maioria das rádios comunitárias no México funciona por meio de transmissores de sinal FM com uma potência entre 15 e 300 Watts. A eficácia de irradiação depende inteiramente de sua posição geográfica, da altura da antena e do número de edifícios e “sombras” que estão em torno da localização do transmissor. Por isso, as chances de uma transmissão deste tipo interferir em uma frequência comercial, nas quais usam-se pelo menos 60 ou 100.000 Watts de potência, são muito baixas. 23 Outro erro grave é confundir os termos “pirata”, “ilegal” e “comunitária”. “Ilegal” significa simplesmente não ter uma licença, que é a condição da maioria das rádios livres e comunitárias. O processo para obter tal autorização é basicamente um filtro rígido e até desconhece a própria existência das rádios comunitárias ao chamá-las rádio com permissão (“radios permisionadas”). Ao abrigo deste regime, as rádios comprometem-se a cumprir condições especificas, como ter um local fixo (que muitas vezes envolve o pagamento de aluguel), usar um equipamento técnico e radiofônico com certos padrões, realizar caros estudos de espectrometria e irradiação para saber qual é o seu alcance de sinal e a que população chega. Adicionalmente, rádios com permissão devem renunciar a possibilidade de autofinanciarem-se, porque esta figura proíbe a comercialização de espaço publicitário, e requer a transmissão gratuita de propaganda estatal e eleitoral. Até hoje, no México menos de 20 rádios alcançaram o estado de uma permissão, a maioria delas é afiliada à Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC). Atualmente debate-se no México uma reforma da Lei de Radiodifusão e Telecomunicações. A lei geral foi aprovada em um processo acelerado e provocou debates acalorados sobre a sua eficácia no combate aos monopólios e a concentração da mídia. Protestaram as rádios comunitárias, a mídia livre, alternativa, estudantes, jornalistas, radialistas independentes, bem como AMARC México e a Associação Mexicana de Direito à Informação (AMEDI). Estes últimos elaboraram também uma proposta concreta para as leis secundárias, que já foram aprovadas, e vão ser discutidas de novo. Nessa proposta é sugerida a divisão do espectro eletromagnético para serviços radiofônicos em três, como já foi estabelecido em outros modelos legais da América Latina: um terço para o uso da mídia comercial, um terço para o uso do Estado e um terço para o uso de rádios e outros meios de comunicação “sociais” que incluam as frequências sociaiscomunitárias e indígenas definidos como “interesse público, emprestado de organizações sociais sem fins lucrativos e destinados a satisfazer as necessidades de uma ou várias comunidades, definidas estas como grupos de pessoas com uma certa afinidade.” Esta proposta liderada por AMARC e AMEDI contém, por escrito, termos-chave que não devem ser excluídos desta reforma, como o pleno reconhecimento da radiodifusão comunitária. No entanto, é necessário que o Estado comprometa-se a parar de perseguir essas rádios e a fomentar as condições para que elas possam auto-sustentar-se. Além disso, um ponto que ainda gera intensos debates é a pergunta, se realmente é necessário que todas as rádios devam obter uma autorização antes de transmitir. Muitos atores consideram que deveria ser possível fazer rádio comunitária sem pedir permissão, porque a comunicação não é um crime. Sob essa perspetiva o novo quadro legal não deveria ratificar o Estado como regulador do espectro de rádio, mas atribuir a ele a tarefa de proteger as rádios e a mídia comunitária contra a criminalização, ou seja, evitar possíveis processos criminais abertos contra seus membros. Aqui na Rádio Zapote, uma rádio livre na Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH) da Cidade do México, consideramos a mídia livre como um movimento de emancipação social e cultural do qual fazemos parte. Nós existimos autonomamente, são as leis que não nos reconhecem. Nós não somos legais ou ilegais, somos livres! Polyester Kat é radialista da Rádio Zapote, D.F., México “Não queremos colocar mais camisas, cores e crenças que nos levam da fé e unidade coletiva até a discriminação, a intolerância e a imposição de grandes interesses econômicos acima do bem-estar das pessoas e do respeito pelos direitos humanos.mantenha essas características com sua migração para o digital.” pelos direitos humanos.mantenha essas características com sua migração para o digital.” O uso de verbas públicas Verba pública na privada! por Pedro Martins A discussão sobre verbas públicas para o rádio nos coloca diante de alguns dilemas políticos importantes sobre a forma de lidar com recursos destinados à comunicação, especialmente no rádio no Brasil. A discussão passa antes pelo entendimento de que qualquer concessão radiofônica trata-se da cessão de um bem público, que pertence ao povo brasileiro (ou até à humanidade, para rompermos nossas fronteiras), para que alguma forma coletiva possa se expressar ali. Se começarmos por aí, já damos de cara com uma concentração imensa de canais nas mãos do setor empresarial. Em contrapartida, vemos pouquíssimas rádios públicas e somente uma faixa por cidade destinada às rádios comunitárias, que devem ser todas sem fins de lucro e com gestão coletiva e participativa. Esta disparidade e a falta de políticas públicas vai se refletir também na forma de se pensar a distribuição de verba pública para o setor de comunicação. Com este alto grau de privatização do espectro eletromagnético não é de se espantar que grande parte das verbas públicas sejam destinadas às mãos dos empresários. Um dado que denuncia a visão de investimento é a distribuição da verba de publicidade dos órgãos de administração direta do governo federal. Para se ter uma ideia, no setor de televisão 75% das verbas de publicidade foram destinadas aos dez maiores grupos empresariais. No rádio, a situação não é diferente, com grandes emissoras como a Rádio Jovem Pan, a Excelsior e a Rádio Globo abocanhando a maior parte dos recursos. Tal concentração revela que a publicidade do governo segue a lógica comercial, a da compra de audiência. Em vez de se difundir informação pelos meios mais diversos atingindo os mais variados cantos e recantos do país no contato direto com a população, o que importa é a compra de alguns minutos de grande audiência para propagandear “grandes feitos”. Neste sentido, as rádios comunitárias poderiam ser atores fundamentais pela proximidade com que atuam diante de seus ouvintes, que são também participantes da mesma. 25 A este cenário soma-se a falta de políticas públicas que garantam sustentabilidade aos meios não empresariais. A ausência de um fundo público com controle social, que defina onde serão investidos os recursos públicos de comunicação torna o ambiente ainda mais antidemocrático. Regras diferenciadas para captação de recurso, em que rádios comunitárias são proibidas de arrecadar dinheiro por meio de publicidade, permitem que empresários vendam 30 segundos de espaço por alguns milhões de reais, dificultam a sustentabilidade dos que não têm fins lucrativos e os impõe, na prática, um “fim de pobreza”. Para se debater e entender esta questão das verbas públicas no rádio e nos meios de comunicação, é necessário, antes de mais nada, falarmos do sistema político em que o problema está inserido. A forma como se reparte a verba obedece necessariamente a mesma lógica da concentração do espectro e a visão capitalista de publicidade como “compra de olhares”. Afinal, sabemos que os verdadeiros consumidores dos meios de comunicação são seus anunciantes, que compram nada mais nada menos, do que nossos olhares (a audiência). Pois a partir deste número de olhares, determina-se o preço de cada segundo veiculado. Ficam, assim, as iniciativas populares e públicas cada vez mais sufocadas e difíceis de serem implementadas, contando sempre com a boa vontade daqueles que nelas se engajam, com total desamparo das políticas públicas. Enquanto seguirmos esta lógica e a comunicação for vista como negócio, o cenário de uma sociedade democrática ficará cada dia mais distante. E as verbas públicas seguirão o mesmo caminho do espectro: a privada! Pedro Martins é o Representante Nacional da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC Brasil) “Tem uma série de entraves que precisam ser superados para que a comunicação e o lazer sejam tratados como direitos e não reproduzam mecanismos de dominação.” Créditos Ideia e concepção Nils Brock e Stefanie Lipf Layout Nils Brock Correções de estilo Jaqueline Deister e Dilliany Justino Ilustrações Crocomila (pag. 7,9,17,19,23), Newson (pag. 1, 5, 11, 13, 15, 21,25) Os textos e ilustrações desta publicação foram escritos durante a campanha “Rádio vs. Futebol. Quem vai ganhar a copa antidemocrática?”. O site da campanha está disponível para consulta pelo seguinte endereço: http://radiofutebol.amarcbrasil.org/ Esta versão tanto como outras versões online são publicadas pela AMARC Brasil sob a licença de creative commons Associação Mundial de Rádios Comunitárias - Brasil Rua Santo Amaro, 129, Glória, Rio de Janeiro RJ CEP 22211-230 Tel/Fax: (21) 3559 0062 e-mail: [email protected] site web: http://amarcbrasil.org/ CC 2014 27 http://amarcbrasil.org/