A Outra Poesia Jogo da Cabra-Cega
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A Outra Poesia Jogo da Cabra-Cega
A Outra Poesia Jogo da Cabra-Cega Poesia de solidão vencida - Cabra-cega, de onde vens? Poesia de liberdade conquistada - Do reino do posso e mando. - No cesto, que trazes tu? Poesia de aves aprisionadas - Algemas, grades, mordaças, Poesia de céus imaginados para prender-te e calar-te, já que tanto me ameaças. Poesia de sonhos decepados Poesia de injustiças derrubadas - Cabra-cega, de onde vens? - Da terra do mando eu. Poesia de muros e fronteiras - No cesto, que trazes tu? Poesia de pontes e passagens - Jornais do norte e do sul; Livros que leio e recolho Poesia de palavras secretas e mais um lápis azul. Poesia de palavras limpas É bom que meças palavras ou ficas debaixo de olho. Poesia de magoadas raízes Poesia de revoltas flores - Corre, corre, cabra-cega, corre para veres se me apanhas. Poesia de Abril Como a venda que te pus, com artes, tretas e manhas, Mas a outra poesia – onde está? José Gomes Ferreira tapa os olhos e o juízo, vais ter-me sem dares por ela, debaixo do teu nariz: vou fazer-te andar às voltas; antes de me pores a mão, farei o que sempre quis. In Palavra Canção Maria da Conceição Vicente O Dia da Liberdade 25 de Abril Este dia é um canteiro com flores todo o ano e veleiros lá ao largo navegando a todo o pano. E assim se lembra outro dia febril que em tempos mudou a história numa madrugada de Abril, quando os meninos de hoje ainda não tinham nascido e a nossa liberdade era um fruto prometido, tantas vezes proibido, que tinha o sabor secreto da esperança e do afecto e dos amigos todos juntos debaixo do mesmo tecto. José Jorge Letria in O livro dos dias Poema de Abril A farda dos homens voltou a ser pele (porque a vocação de tudo o que é vivo é voltar às fontes). Foi este o prodígio do povo ultrajado, do povo banido que trouxe das trevas pedaços de sol. Foi este o prodígio de um dia de Abril, que fez das mordaças bandeiras ao alto, arrancou as grades, libertou os pulsos, e mostrou aos presos que graças a eles a farda dos homens voltou a ser pele. Ficou a herança de erros e buracos nas árduas ladeiras a serem subidas com os pés descalços, mas no sofrimento a farda dos homens voltou a ser pele e das baionetas irromperam flores. Minha pátria linda de cabelos soltos correndo no vento, sinto um arrepio de areia e de mar ao ver-te feliz. Com as mãos vazias vamos trabalhar, a farda dos homens voltou a ser pele. Sidónio Muralha Uma gaivota voava... voava Abril Ontem apenas Havia uma lua de prata e sangue em cada mão. Fomos a voz sufocada Dum povo a dizer não quero; Fomos os bobos-do-rei Mastigando desespero. Ontem apenas Fomos o povo a chorar Na sarjeta dos que, à força, Ultrajaram e venderam Esta terra, hoje nossa. Uma gaivota voava, voava, Asas de vento, Coração de mar. Como ela, somos livres, Somos livres de voar. Uma papoila crescia, crescia, Grito vermelho Num campo qualquer. Como ela somos livres, Somos livres de crescer. Uma criança dizia, dizia “quando for grande Não vou combater”. Como ela, somos livres, Somos livres de dizer. Somos um povo que cerra fileiras, Parte à conquista Do pão e da paz. Somos livres, somos livres, Não voltaremos atrás. Ermelinda Duarte Fonte Era Abril. Havia um vento que empurrava o nosso olhar e um momento de água clara a escorrer pelo rosto das mães cansadas. Era Abril que descia aos tropeções pelas ladeiras da cidade. Abril tingindo de perfume os hospitais e colando um verso branco em cada farda. Era Abril o mês imprescindível que trazia um sonho de bagos de romã e o ar a saber a framboesas. Abril um mês de flores concretas colocadas na espoleta do desejo flores pesadas de seiva e cânticos azuis um mês de flores um mês. Havia barcos a voltar de parte nenhuma em Abril e homens que escavavam a terra em busca da vertical. Ardiam as palavras Nesse mês e foram vistos dicionários a voar e mulheres que se despiam abraçando a pele das oliveiras. Era Abril que veio e que partiu. Abril a deixar sementes prateadas germinando longamente no olhar dos meninos por haver. José Fanha Liberdade Liberdade, que estais no céu... Rezava o padre-nosso que sabia, A pedir-te, humildemente, O pio de cada dia. Mas a tua bondade omnipotente Nem me ouvia. — Liberdade, que estais na terra... E a minha voz crescia De emoção. Mas um silêncio triste sepultava A fé que ressumava Da oração. Até que um dia, corajosamente, Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, Saborear, enfim, O pão da minha fome. — Liberdade, que estais em mim, Santificado seja o vosso nome. Miguel Torga A voz dos cravos Sou de um país onde os cravos são palavra são arma, luta, canção País numa flor inteiro onde o vermelho foi dor Hoje é voz, libertação Este país é o meu onde os cravos são palavra dizem mar, azul e céu Um abril em cada voz uma flor por coração batendo forte no peito Ao ritmo de uma nação Maria da Conceição Vicente Portugal Ressuscitado Depois da fome, da guerra da prisão e da tortura vi abrir-se a minha terra como um cravo de ternura. Vi nas ruas da cidade o coração do meu povo gaivota da liberdade voando num Tejo novo. Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido Vi nas bocas vi nos olhos nos braços nas mãos acesas cravos vermelhos aos molhos rosas livres portuguesas. Vi as portas da prisão abertas de par em par vi passar a procissão do meu país a cantar. Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido Nunca mais nos curvaremos às armas da repressão somos a força que temos a pulsar no coração. Enquanto nos mantivermos todos juntos lado a lado somos a glória de sermos Portugal ressuscitado. Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido. José Carlos Ary dos Santos Abril de Abril Abril de Abril Era um Abril de amigo Abril de trigo Abril de trevo e trégua e vinho e húmus Abril de novos ritmos novos rumos. Era um Abril de amigo Abril de trigo Abril de trevo e trégua e vinho e húmus Abril de novos ritmos novos rumos. Era um Abril comigo Abril contigo ainda só ardor e sem ardil Abril sem adjectivo Abril de Abril. Era um Abril comigo Abril contigo ainda só ardor e sem ardil Abril sem adjectivo Abril de Abril. Era um Abril na praça Abril de massas era um Abril na rua Abril a rodos Abril de sol que nasce para todos. Era um Abril na praça Abril de massas era um Abril na rua Abril a rodos Abril de sol que nasce para todos. Abril de vinho e sonho em nossas taças era um Abril de clava Abril em acto em mil novecentos e setenta e quatro. Abril de vinho e sonho em nossas taças era um Abril de clava Abril em acto em mil novecentos e setenta e quatro. Era um Abril viril Abril tão bravo Abril de boca a abrir-se Abril palavra esse Abril em que Abril se libertava. Era um Abril viril Abril tão bravo Abril de boca a abrir-se Abril palavra esse Abril em que Abril se libertava. Era um Abril de clava Abril de cravo Abril de mão na mão e sem fantasmas esse Abril em que Abril floriu nas armas. Era um Abril de clava Abril de cravo Abril de mão na mão e sem fantasmas esse Abril em que Abril floriu nas armas. Manuel Alegre Manuel Alegre Grândola, vila morena Grândola, vila morena Grândola, vila morena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade Grândola, vila morena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade Dentro de ti, ó cidade O povo é quem mais ordena Terra da fraternidade Grândola, vila morena Dentro de ti, ó cidade O povo é quem mais ordena Terra da fraternidade Grândola, vila morena Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade Grândola, vila morena Terra da fraternidade Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade Grândola, vila morena Terra da fraternidade Terra da fraternidade Grândola, vila morena Em cada rosto igualdade O povo é quem mais ordena Terra da fraternidade Grândola, vila morena Em cada rosto igualdade O povo é quem mais ordena À sombra duma azinheira Que já não sabia a idade Jurei ter por companheira Grândola a tua vontade. À sombra duma azinheira Que já não sabia a idade Jurei ter por companheira Grândola a tua vontade. Zeca Afonso Zeca Afonso CANTATA DA PAZ Sophia de Mello Breyner Andresen Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Relatórios da fome O caminho da injustiça A linguagem do terror A bomba de Hiroshima Vergonha de nós todos Reduziu a cinzas A carne das crianças D'África e Vietname Sobe a lamentação Dos povos destruídos Dos povos destroçados Nada pode apagar O concerto dos gritos O nosso tempo é Pecado organizado No tempo em que as paredes tinham ouvidos Falava-se pela metade e só por palavras meias as casas tinham orelhas, cada parede um ouvido só o bom entendedor lhes percebia o sentido Escrevia-se por enigmas para enganar os tiranos com histórias tão inocentes como a da tal carochinha... Bastava ler as metáforas, saber ler nas entrelinhas Cantavam-se canções novas vestidas de roupa velha embrulhava-se a mensagem em cantigas de embalar para levarem recados onde tinham de chegar Assim passou a palavra, levada de mão em mão foi tamanha a sua força que derrubou as paredes e fez a revolução Maria da Conceição Vicente As mãos Com mãos se faz a paz se faz a guerra. Com mãos tudo se faz e se desfaz. Com mãos se faz o poema – e são de terra. Com mãos se faz a guerra – e são a paz. Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedras estas casas mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas. E cravam-se no Tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas. De mãos é cada flor cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade. Manuel Alegre As armas No teu silêncio há um grito de protesto. E ninguém sabe. Há uma espingarda no teu gesto. E ninguém sabe. As armas estão por dentro do teu braço. E ninguém sabe. Ninguém sabe que tens punhais de vento nos teus dedos. Nem mesmo os que te seguem passo a passo nem mesmo os que procuram os teus segredos. Ninguém sabe que já não tens fantasmas no pensamento. Mas armas. Manuel Alegre Letra para um hino É possível falar sem um nó na garganta é possível amar sem que venham proibir é possível correr sem que seja fugir. Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta. É possível andar sem olhar para o chão é possível viver sem que seja de rastos. Os teus olhos nasceram para olhar os astros se te apetece dizer não grita comigo: não. É possível viver de outro modo. É possível transformares em arma a tua mão. É possível o amor. É possível o pão. É possível viver de pé. Não te deixes murchar. Não deixes que te domem. É possível viver sem fingir que se vive. É possível ser homem. É possível ser livre livre livre. Manuel Alegre É preciso um país Não mais Álcacer-Quibir. É preciso voltar a ter uma raiz um chão para lavrar um chão para florir. É preciso um país. Não mais navios a partir para o país da ausência. É preciso voltar ao ponto de partida é preciso ficar e descobrir a pátria onde foi traída não só a independência mas a vida. Manuel Alegre Abril Havia uma lua de prata e sangue em cada mão. Era Abril. Havia um vento que empurrava o nosso olhar e um momento de água clara a escorrer pelo rosto das mães cansadas. Era Abril que descia aos tropeções pelas ladeiras da cidade. Abril tingindo de perfume os hospitais e colando um verso branco em cada farda. Era Abril o mês imprescindível que trazia um sonho de bagos de romã e o ar a saber a framboesas. Abril um mês de flores concretas colocadas na espoleta do desejo flores pesadas de seiva e cânticos azuis um mês de flores um mês. Havia barcos a voltar de parte nenhuma em Abril e homens que escavavam a terra em busca da vertical. Ardiam as palavras Nesse mês e foram vistos dicionários a voar e mulheres que se despiam abraçando a pele das oliveiras. Era Abril que veio e que partiu. Abril a deixar sementes prateadas germinando longamente no olhar dos meninos por haver. José Fanha O Dia da Liberdade Este dia é um canteiro com flores de todo o ano e veleiros lá ao largo navegando a todo o pano. E assim se lembra outro dia febril que em tempos mudou a história numa madrugada de abril, quando os meninos de hoje ainda não tinham nascido e a nossa liberdade era um fruto prometido, tantas vezes proibido, que tinha o sabor secreto da esperança e do afeto e dos amigos todos juntos debaixo do mesmo teto. José Jorge Letria