Duas invenções para compor o audiovisual

Transcrição

Duas invenções para compor o audiovisual
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
FELIPE JULIAN GOLDFARB
DUAS INVENÇÕES PARA COMPOR O AUDIOVISUAL
São Paulo
2012
Fonógrafo
Quando em 1877 Thomas Edison desenvolve seu
Fonografo, aparelho apto a registrar e reproduzir de
forma rudimentar ondas sonoras, dá-se inicio a uma
importante era industrial voltada não mais apenas à
produção de bens de consumo caseiros ou
profissionais mas agora também a produção em media
escala de produtos com propósito cultural além dos já
comuns livros, periódicos ou a própria fotografia.
É bem verdade que Thomas Edison criou o tal aparelho
muito mais preocupado no registro de depoimentos,
interrogatórios e discursos do que propriamente para
gravar e ouvir música. O fonógrafo foi concebido como
um aparelho de escritório.
Thomas Edison com seu fonografo em
Washington, D.C., 18 de Abril de 1877. Cortesia
de "Edison National Historic Site"
"In spite of its potential for injecting both morality and efficiency into the workplace, the phonograph as office
equipment was not a success. Stenographers opposed the machines, but the devices never worked well enough
to threaten their jobs. Businessmen simply did not have time to fuss with the delicate mechanisms, and the local
phonograph dealers, who were leasing machines on a regional basis, following the model of the telephone
companies, were frustrated by the logistical problems associated with the business. At that time the "practical"
use of the phonograph proved highly impractical".
"Proceedings of the 1890 Convention of Local Phonograph Companies", (Nashville: Country Music Foundation Press, 1974),
e Read and Welch, capitulos. 3 e 4. "A phonograph for dictating would later successfully reappear" IN THOMPSON, 1995
O insucesso do aparelho em satisfazer aos
homens de negócios foi terminante. No entanto, em
1890, um comerciante da época encarregou-se de
adaptar um desses aparelhos para que funcionasse
com a introdução de moedas e posicionou alguns
desses fonógrafos adaptados em salões populares da
época. Os aparelhos tocavam algum tipo de dialogo
cômico ou alguma música conhecida. E resultou num
sucesso comercial imediato.
Com tal constatação Edison põe em 1896 o
aparelho para venda ao grande público. Em cinco
anos torna-se um aparelho domestico típico da
"família moderna". A atividade significou grande lucro para a Edison Inc. Não só o mercado de
consumo caseiro era muito maior do que o dos escritórios mas também tratava-se de um mercado
que compraria não apenas o fonógrafo como também os tubos de cera já gravados. Gravados pela
Edison Records evidentemente. Surge então a chamada industria fonográfica.
“Alone on the vast stage there stood a mahogany phonograph, apparently exactly like the tamed and
domesticated variety that has become to be [sic] as much a part of the furniture of the ordinary drawing
room as was the wheezy melodeon a generation ago. In the midst of the hushed silence a white-gloved man
emerged from the mysterious region behind the draperies, solemnly placed a record in the gaping mouth of
the machine, wound it up and vanished.
Then Mme. Rappold stepped forward, and leaning one arm affectionately on the phonograph began to sing
an air from "Tosca." The phonograph also began to sing "Vissi d'Arte, Vissi d'Amore" at the top of its
mechanical lungs, with exactly the same accent and intonation, even stopping to take a breath in unison with
the prima donna. Occasionally the singer would stop and the phonograph carried on the air alone. When
the mechanical voice ended Mme. Rappold sang. The fascination for the audience lay in guessing whether
Mme. Rappold or the phonograph was at work, or whether they were singing together”. (THOMPSON,
1995 p.131 "Edison Snares Soul of Music ," New Yor k Tr ibune , 29 Abr il 1916, 3)
Foto publicitária de Frieda Hempel, artista da Edisnon Records, com funcionários da Edison Incem 1918.
Cortesia de "United States Department of the Interior, National Park Service, Edison National Historic
Site"
É claro que todo esse espetáculo conduzia a audiência à conclusão de que a máquina e a
cantora soavam de forma equivalente. Pois de fato soavam. A cantora simulava em sua interpretação o
recorte frequencial e a compressão de dinâmicas do fonografo. Tal fator aliado à espetacularização da
máquina que o evento produzia garantiu a formação de um conceito em torno do fonografo que
sabemos hoje ser completamente absurdo.
Há neste episódio diversos fatores que poderiam ser profundamente analisados no que diz respeito à
relação do espectador com o fenômeno acusmático. O mesmo evento veio ocorrer poucos anos
depois com o advento do cinematografo. Como seria possível a estas pessoas - desprovidas de
experiências anteriores que lhes gerassem critérios prévios - não acreditar que o trem dos irmãos
Lumiere lhes seria uma ameaça real?
Campanha Tone Test com Marie Rappold, Carnegie Music Hall, Pittsburgh, 30 Setembro de 1919 IN THOMPSON, 1995 p. 153
Configuração de palco sugerida por T. Edison para os espetáculos da campanha Tone Test.
Novembro de 1920 IN THOMPSON, 1995 p. 150
Cinematografo
Em 1895 os irmãos lumiere apresentam oficialmente
seu cinematografo nas dependências da Sociedade
Francesa. O que se viu naquele 22 de março foi a
projeção de uma fotografia animada onde
claramente se identificavam funcionários de uma
fabrica saindo pela porta da mesma no final do
expediente.
O efeito criado pela fantástica maquina dos Lumiére
era obtido pela sucessão de fotografias projetadas
por um engenhoso sistema combinado de
obturação em disco rotatório.
O grande mérito
dessa maquina era não apenas o fato de ela
conseguir projetar as imagens seriadas da película, mas
também ter sido a própria maquina quem registrou as imagens. Neste ponto assemelhava-se ao
fonografo de Edison. Parecia ser difícil ou pouco desejável
naquele momento, considerar a
possibilidade de duas maquinas compatíveis, porém com funções distintas: uma para registrar e outra
para reproduzir.
Poucos anos depois, a industria percebia a vantagem comercial que lhe garantiria o monopólio da
reprodutibilidade e produção de conteúdo. Mais vantajoso do que a venda do fonografo seria a venda
dos tubos de ceras já gravados. O mesmo valerá para os filmes. Nota-se que Edison passa a adicionar
o termo "original" antes de "Edison Record" nos rótulos das embalagens dos tubos de cera o que nos
revela que a concorrência de outros fabricantes de tubos compatíveis já incomodava Edison Inc. A
consequência lógica disto foi o aparecimento dos reprodutores. Aparelhos destinados ao consumidor
final que só projetavam imagem ou só reproduziam som como por exemplo o gramofone.
Ainda em 1895 os Lumiere realizam a primeira exibição pública de sua invenção com o brevíssimo
filme A Chegada do Trem à Cidade. Simplesmente um trem filmado em perspectiva chegando à
estação. Não diferente do fonografo de Edison, tal filme provocava certa inquietação e mesmo um
certo pânico nos espectadores que, dada sua bagagem histórica ainda escassa de experiências visuais
animadas, preocupavam-se com o fato de que, na verdade, o trem vinha em sua direção.
A genialidade dessa invenção, ao contrario do
fonógrafo, garantiu-lhe sucesso comercial logo em seus
primeiros anos de existência. Mas os ambientes a que
estava restrito o tal cinematografo era pouquissimo
recomendável às famílias tradicionais da época. Eram
os vaudeviles e antigos teatros em decadência que
foram os espaços alugados para as primeiras sessões
de cinema.
Fato é que, tal ambiente, somado a outros fatores
como imagens ainda de muito baixa qualidade, o ruído
da mecânica e da faísca elétrica do aparelho e ausência
absoluta de sons diegéticos, provocavam no público a sensação de estarem a ver espectros
fantasmagóricos muito mais do que um documentário ou uma ficção.
Por esses motivos o cinema é, em seu inicio, um espetáculo bizarro. De nenhuma forma poderia ser
considerado arte pelas famílias tradicionais desta época. Nem mesmo cultura.
Esta posição marginal do cinema é alegoricamente representada em Drácula de Bram Stocker
dirigido por Francis Ford Copolla. Neste filme, o conde Drácula encontra sua amada milenar, Mina, vivendo
em Londres e convida-a a conhecer à novidade do novo mundo: o cinema. Mina, responde-lhe em que se
este deseja cultura, que vá buscar em uma biblioteca. Mina é a típica moça "de boa familia" da virada do
século XX. Bem educada, bem vestida. Despreza o entretenimento e o comportamento vulgar. Ainda
assim, Drácula convence-a a entrar ao cinema. No decorrer desta sequência, algum diálogo preenche a
ilustração bastante precisa de um nickelodeon. Vemos um espaço fechado, escuro onde, há diversos
artigos e engenhocas para o entretenimento. Dentre estes, o teatro de sombras e o cinematografo. Ao
fundo do espaço é possível ver duas telas de cinema exibindo para pessoas de pé ou sentadas em
cadeiras comuns, filmes típicos da época. Breves cenas cômicas com mulheres seminuas sentadas no
colo de um homem que por uma trucagem simples convertem-se em outra mulher, filmes cômicos ou
bizarros que eram tipicamente exibidos nessa época. Dentre eles, o classico "A chegada do trem à cidade"
aqui apresentada em sua versão filme em negativo.
Não é explicito neste filme uma intertextualidade com a história do cinema senão, talvez, por esta
breve incursão ao nickelodeon. Mas todo o filme apoia-se na historia do cinema em vários aspectos. As
trucágens feitas sem apoio de computação gráfica, ao bom e velho estilo George Meliés, não chegam a
saltar aos aos olhos mas vão dando indícios de que este filme de Coppola deseja um diálogo com a
história do cinema. O desprezo de Mina que recusa-se a chama-lo de ciência ironizando o que Madame
Curie pensaria de tal afirmação é, de certa forma, a incorporação do discurso que os próprios atores da
época faziam em relação ao cinema: o cinema é o vampiro da alma do ator.
P r o f u n d a m e n t e
acostumados ao tempo real e ao calor do palco teatral, os atores debatem-se com o lento processo de
gravação do cinema. As esperas, os repetidos takes, a ausência do público e seu calor humano,
distanciam o ator tradicional do teatro de seu confortável espaço de atuação. E também de seu
reconhecimento imediato e das glórias de uma grande performance. Se por um lado o cinema extrai do
ator sua alma de intérprete durante as desgastantes e tediosas gravações, por outro, imortalizará em
fantasmagoria bizarra a imagem muda desse ator ao redor do mundo. O cinema é uma arte morta. Não lhe
cabe qualquer tipo de aura como sugere Walter Benjamin. Exibe fantasmas luminosos gerados por seres
humanos distantes. Talvez até mortos.
Outro filme, ainda sobre vampiros, mas desta vez melhor enquadrado no gênero humor que
também revisitará este paralelo entre a história do cinema e o personagem de Bram Stocker é A Sombra
do Vampiro de Elias Merhige de 2000. Neste muito bem humorado thriller o diretor de cinema F.W.
Murnau, vivido aqui por John Malcovitich deseja filmar Nosferatu. O filme se passa em 1922 ano em que
Murnau lança seu não autorizado Drácula. No entanto... para viver o papel de Nosferatu, este diretor
contrata um vampiro de verdade. Daí em diante o filme segue com todas as dificuldades imagináveis que
um vampiro real, sedento de sangue humana, possa criar num set de filmagem. Os paralelos desta historia
cômica com a historia da atuação no cinema são constantes e evidentes. Literalmente, vidas são tiradas
para dar vida ao vampiro.
Problemas e soluções
A fim de reduzir a angustia que os espectadores experimentavam perante a silenciosa imagem
em movimento, alguns proprietários dessas primeiras salas de cinema
da virada do século XX
recrutavam músicos em cafés, hotéis e restaurantes para preencher o vazio macabro que permeava o
espetáculo cinematográfico até então.
Tal solução, altamente eficaz, não só encobria o ruído perturbador do projetor e as
imperfeições da película daquela época, como também parecia munir tais espectros cambaleantes de
uma vida que os humanizava. Como se a ausência da aura apontada por Walter Benjamin pudesse
então ser esquecida a partir do momento em que o publico se identifica e se reconhece naquelas
imagens. E pôde então, aceitar essa nova experiência narrativa proposta.
A música simultânea ao cinema promoveu a aceitação do espetáculo cinematográfico.
Mas em uma análise rumo à uma antropologia da escuta é possível afirmar que tal aceitação
não se deveu apenas ao já apontado aqui, mas também ao fato de que a música tem a propriedade
de atuar como um mascarador de outros fenômenos sonoros. E tal característica, ao isolar a audição,
esse sentido omnidirecional incessante, da realidade, atua tal qual a caixa preta. Permite, à experiência
do cinema, tornar-se uma experiência concentrada de imersão. Interrompe o tempo presente e
impõe um novo tempo. Nubla o estado de alerta para o qual a audição fôra desenhada e apropria-se
do espectador para manipulá-lo numa montanha russa de emoções audiovisuais à qual este só pode
dizer sim.
Neste momento, com a atenção concentrada dos espectadores, o cinema começa a
amadurecer enquanto linguagem e a esboçar os preceitos de seu classicismo.
Os filmes gradativamente passam a aumentar em duração. As salas de exibição passa então a
ter que fornecer melhores acomodações. As distrações do entorno são eliminadas ou segregadas à
outros espaços. Roteiros mais sofisticados surgem. Atores começam a ganhar notoriedade e a serem
reconhecidos e acompanhados pelo seu público.
A medida em que o espetáculo cinematográfico ganhava importância, crescia a quantidade de
músicos à compor as formações encarregadas de sonorizar o ambiente da projeção. Mas há que se
ter clareza que o que as bandas e orquestras faziam até então consistia em sonorizar apenas o
ambiente da projeção sem ter nenhum tipo de preocupação com a imagem projetada que muitas
vezes sequer era vista pelos músicos atentos à suas partituras e digitações ao instrumento.
Uma típica orquestra das salas de cinema do começo do século XX
Algumas salas de projeção no entanto, passaram a se preocupar com uma certa adequação da música
tocada aos conteúdos dos filmes que, por sua vez, passavam a ter duração cada vez maior e roteiros
cada vez mais classicamente narrativos. Neste momento, o cinema experimenta suas primeiras
tentativas de relação audiovisual por meio de uma seleção menos aleatória de repertório musical.
Não era incomum que após o filme ter começado, o regente aguardasse alguns minutos para ter
entendimento do conteúdo do filme exibido de forma a poder escolher uma dentre as várias
partituras disponíveis junto ao grupo musical. Se o enredo contava uma historia romântica, então o
regente rapidamente podia dizer aos seus músicos o nome ou o número de alguma partitura musical
convenientemente escrita para sonorizar ambientes de projeção durante cenas românticas. Se fosse
um filme de guerra, haveria então arranjos compostos para tal.
E assim, todas as emoções detectáveis no cinema do começo do século XX possuíam partituras cujos
arranjos emanavam o ethos adequado à cada situação: tristeza, euforia, romantismo, comicidade, briga
séria, briga cômica, heroísmo etc...
Silent Film Music Collection
Box 8 (cont.) Mood and Atmosphere Music
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Storm Music (Terrific storm on land or sea)
Storm Music (Storms on land or sea, tornadoes, earthquakes, eruptions, typhoons)
Storm Music (Storm at sea, thunderstorms)
Storm Scene
Stroll Through Cairo (Egyptian patrol)
Summer Dream (Neutral scenes, filling-in, cheerful situations)
Summer Nights (Idyl)
Summer Sky (Idyl)
Sunny Sicily (Costumes England/Europe, pastoral, rustic, village festival, rough gaiety) Sweet Forget-Me-Nots
Syncorient (Oriental or grotesque comedy scenes)
Tallahassee Nights (Creole Bacchanak)
Tempest
Tender Memories (Romance)
Tipster (Eccentric march)
Tragic Adante (Shipwreck, destruction, terror)
Tragic Love Tryst (Scenes of turbulent emotion)
Treacherous Knave (Villian theme, ruffians, smugglers, conspiracy)
Treat ‘Em Rough (One-step)
Tulips
Umpah! Umpah! (One-step oddity)
Unrest
Venetian Night (Romance)
Venetian Romance (Quiet swaying nature, swinging, canoeing, boating, rocking a cradle) Verdict
Violence
Waterfall (Nature scene, vision, dream)
Water Lilies
Western Allegro (Western, camping, mining, cowboys, stampede, gambling or bar-room) Western Allegro (Joyful
scenes, racing, stampedes, crowds)
Whitecaps (Revelry or quiet sentiment, pastoral setting)
Wild Horses
Winged Hours (Romance, reverie, pathos)
Wistful Ways (Light scenes, ballet, social capricious or pastoral)
Woodland Sprites (Neutral scenes, filling-in, cheerful situations)
Youth Triumphant (Prologue, serious, opens quietly, developing dramatic suspense) Zoraida (Racial and national
atmosphere)
Uma compilação de partituras para sonorização de filmes IN "SILENT FILM MUSIC COLLECTION Composed of several
collections including: Claire H. Hamack, Organist Adele V. Sullivan, Organist"
A fim de evitar o excesso de improvisação
na escolha das peças musicais e a
consequente espera que o maestro em
questão se permitia até compreender o teor
do filme, os gerentes das salas de projeção e
muitas vezes os distribuidores (veja quadro
adiante) passaram a instruir os grupos de
antemão do conteúdo dos filmes a fim de
permitir-lhes um preparo à exibição.
Apesar dessa positiva tentativa de buscar
uma relação construtiva entre imagem e
som, está claro que, em primeiro lugar, o
único som que se ouvia era música.
As
personagens e suas ações prosseguiam
mudas e silenciosas. E esses grandes grupos
musicais tinham, evidentemente, reduzida
capacidade de improvisação. A consequência disto é uma certa incapacidade de ajuste fino entre
musica e imagem o que significava, em última instância, que todos os aspectos que vinham sendo
descobertos e assimilados na linguagem cinematografica, como cortes, planos, closes, velocidades, não
encontravam equivalente musical.
Havia ainda uma frequente e desconfortável interrupção necessária para que a orquestra trocasse de
partitura a medida que o teor da ação de algum filme mudasse significativamente. Quando uma cena
de amor era seguida por uma sequência de fuga acelerada, tornava-se inevitável a mudança do roteiro
musical. Neste momento, a fim de preencher o vazio de tal operação, seria comum ceder espaço para
algum solista, em geral pianista, que assumia de improviso a trilha musical até que a banda estivesse
pronta novamente.
Este músico, que também assumiria filmes inteiros sozinho em diversas ocasiões é quem de fato podia
modelar a interpretação à ação cinematográfica. Se a cena estava acelerada por tratar-se de uma fuga
de automóveis, então o andamento original da peça seria acelerado. Se o enredo conduzisse os
espectadores para uma cena romântica, esse músico poderia executar uma sequência de modulações
harmônicas para chegar à tonalidade de uma peça musical suave e melódica. Poderia, se bem
treinado, intercalar trechos melódicos de teores diferentes para ilustrar a índole das personagens
numa espécie de Laitmotif simplificado.
É neste momento que o cinema toma conhecimento, de fato, do potencial do sincronismo
audiovisual.
Com a proliferação de salas e a circulação de filmes em larga escala, começam a surgir os primeiros
problemas com relação à “recepção” ou pelo menos em relação ao que os produtores da época
esperavam de uma “recepção clássica”.
A forma irregular com que eram escolhidas e executadas as trilhas sonoras nas salas de cinema
incomodavam os produtores que passaram então a buscar estratégias para uma padronização musical.
Constata-se aqui, já a presença de um conceito clássico de cinema onde a trilha sonora não mais é
vista como uma ambientação musical em relação com o espaço arquitetônico da sala ou
vaudeville, mas sim, como um evento necessário à obra e que deveria se submeter à ela a fim de
garantir-lhe a eficácia na atenção de seu público. Aqui, a música corretamente aplicada estaria a
favor da manutenção desta atenção descrita por Mustemberg.
A recepção clássica do cinema - os 10 mandamentos de Clyde Martin e Clarence Sinn
1 - deve-se retirar o piano automático da entrada pois ele faz concorrência com o acompanhamento do
filme
2 - O piano não automático, seguido do órgão, é o único instrumento apto a seguir o filme
convenientemente, oferecendo um acompanhamento aceitável.
3 - É essencial que o filme seja acompanhado do início ao fim por uma música apropriada
4 - Deve-se evitar terminantemente qualquer estilo musical demasiado popular (em especial o ragtime)
que possa concorrer com a imagem
5 - A música clássica ligeira e a música folclórica são mais indicadas que a música popular pois esta atrai
um mau público. Ademais, seus efeitos perdem-se face a um publico que não conheça suas letras.
6 - Os efeitos sonoros devem ser poucos e bem escolhidos. A continuidade sonora deve vir da música e
não dos efeitos.
7 - Na escolha dos ruídos deve-se evitar o óbvio como fazer soar um sino cada vez que uma vaca
aparece dando-se preferência aos efeitos que ilustrem a narrativa.
8 - Cada trecho musical deve fundir-se no trecho seguinte de forma a criar uma impressão de
continuidade e homogeneidade.
9 - Convém dissimular o máximo possível cada mudança musical
10 - mais do que acompanhar os detalhes do filme a música deve permanecer em contato com o herói
ou atração principal do filme.
(ALTMAM, 1995)
Baseados nesta constatação de que a música em sincronia acrescia o filme de complexidades e
riquezas ainda inimagináveis, certos cineastas como Fritz Lang passam a conceber os arranjos
orquestrais junto com os compositores e a enviar para as salas de projeção, as partituras junto com
os rolos de filme.
Metropolis (1927) é tido como um marco dessa
atuação musical consciente por parte do diretor. No
entanto, é sabido que muito antes disso, peças musicais
foram compostas para filmes como O Assassinato do
Duque de Guise de Charles Le Bargy e André
Calmettes com trilha original de Saint-Saëns ou O
Nascimento de uma Nação de D.W.Griffith cuja trilha
foi concebida em conjunto com Joseph Carl Breil
conscientemente visando
a exaltação de um
sentimento patriótico no espectador norte americano.
O Sincronismo mecânico.
Thomas Edison experimentou a criação de algumas
formas de sincronismo em seus laboratorios. É
atribuido a ele o primeiro audiovisual sincronizado
da história: um breve filme onde dois de seus
funcionários dançam constrangidos enquanto um
terceiro toca um violino ao lado de um fonografo
que o grava.
Tal experimento é tido como um marco da
primeira tentativa de sincronização entre os dois
aparelhos: o fonografo e o cinetoscópio (o
equivalente ao cinematografo dos Lumiere).
A Warner Bros, após ter adquirido um circuito de
15 salas de cinema e uma empresa chamada
Vitagraph desenvolveu o sistema Vitaphone. Tratava-se de um conjunto mecânico que fazia girar em
igual proporção o cinematografo ao mesmo tempo
que um toca-discos. Tal solução permitiu o
sincronismo mecânico de imagem e som.
Mas esse sistema limitou-se, em seus primeiros
filmes, à reprodução de ruídos de cena e música
como no caso de Don Juan (1926) dirigido por Alan
Crosland, com John Barrymore no papel principal,
considerado o primeiro lançamento cinematográfico
com audio sincronizado. A voz ainda exigiria não só
o aprimoramento desse sistema como também uma
nova concepção de cinema que incorporasse a voz
dos atores tanto tecnicamente (durante as
gravações) como esteticamente.
É neste momento que os irmãos Warner dão seu grande lance comercial ao contratar o famoso ator
AL Jolson para estrelar The Jazz SInger dirigido também por Alan Crossland.
O filme, que possuía certa estrutura de musical, estava repleto de canções de sucesso que
contribuíram tremendamente para seu êxito publicitário e comercial.
A partir de então, o cinema comercial consolida-se como um gênero indissociavelmente
audiovisual e lentamente abandona o cinema mudo por completo.
Adaptações técnicas e estéticas
Com o estabelecimento do novo formato, os estúdios de filmagem tiveram que sofrer
seríssimas adaptações para lidar com a novidade tecnológica. O acréscimo de equipamentos e
profissionais para opera-los é um fator novo a ser assimilado inclusive orçamentariamente. Mas,
sobretudo, há uma guinada estética no cinema falado consequente à definitiva internação de todo o
aparato de filmagem e gravação, para dentro dos estúdios. Se câmeras podiam ser movimentadas
com certa liberdade pelo mundo, os pesados gravadores de áudio não podiam. Tampouco era
conveniente "abrir" microfones em espaços reais como ruas pois eles captariam os ruídos da cidade
tanto quanto a voz dos atores. Por esse motivo o cinema migra definitivamente para dentro do
estúdio neste inicio do cinema falado. É a partir deste momento que o cinema, principalmente
americano, passa a investir em grandiosos cenários e sofisticada iluminação cênica. Não raramente se
veria um enquadramento com montanhas ao fundo, arvores cenograficas e cavalos reais totalmente
realizadas dentro de enormes estúdios.
Paralelamente, na Italia, a particular baixa qualidade tecnológica do equipamento de áudio
disponível aliado a um certo gosto italiano pelas tomadas externas faz com que o cinema que em
alguns anos surgiria da Cinecita seja essencialmente um cinema de dublagem. Curioso o fato de que a
estética da dublagem se manteve no cinema italiano até nossa atualidade enquanto uma estética
nacional. Para o ator italiano, a interpretação tem dois momentos: um visual e outro sonoro. E não há
sempre uma coerência verossímil entre estes dois momentos. Inúmeros são os filmes de Fellini onde
o "clima" da cena é dado por um certo non-sense entre imagem e som. Frequentemente a narrativa é
dada pelo recorte dos diálogos mais do que pela montagem da película que se atem à caracterização
das personagens ou da situação.
É claro que inúmeras cenas externas inevitáveis aos roteiros dos filmes precisavam ser
gravadas seja no cinema italiano ou de qualquer outra nação que, naquele momento estivesse
produzindo filmes. Mas, em geral, os diálogos acabavam por ser sobrepostos via dublagem. O mesmo
ocorreria para boa parte dos sons diegéticos. Um exemplo clássico é o começo de “O Grande
Ditador” de Charles Chaplin onde a dublagem e os efeitos sonoros alternam-se com incômodos
trechos de silêncio. Há, nesta obra, uma evidente dificuldade de lidar com a montagem sonora. Para
os padrões atuais, a sequência inicial do campo de batalha soa não só inverossímil como amadora em
sua edição sonora. No entanto, isto não significa que Chapplin, em si, tivesse dificuldades para
incorporar a linguagem sonora à obra. Mais adiante, no mesmo filme, podemos vê-lo discursando no
papel alegórico de Hitler, em um idioma fictício, com pleno domínio desta linguagem sonora enquanto
ator e com criatividade e humor na forma como a dublagem do audio da platéia que o assistiria é
editada.
Também Drácula (1931) de Tod Browning optou pela manutenção de diálogos e acabou por
abandonar a trilha sonora que ocorre em dois ou três momentos sob uma justificativa incidental. O
cinema tornara-se sonoro e deixara de ser musical. O motivo para isto é bastante simples: havia
apenas uma faixa de áudio disponível para ser sincronizada com a película. E apesar de que técnicas
de overdubing já existissem, eram difíceis de se controlar e, ao que tudo indica, parece que o público
não se incomodava com a ausência de trilha já que isto contribuía para essa nova experiência de
hiper-realismo que o cinema passou a oferecer. Talvez por isto, neste momento da historia do cinema
tenham surgido e obtido sucesso filmes do gênero suspense ou horror. Data também de 1931 M, o
Vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang. Um filme
bastante silencioso, noturno e que se apropria
do elemento acusmático ao anunciar a
presença do assassino por meio de um
assobio. Sem representá-lo na tela de
imediato. Percebe-se então, já nestes anos 30,
uma reflexão em torno da relação audiovisual
para além da trilha musical. O som direto ou o
que pretende-se fazer crer como som direto,
passa a ser elemento assimilável composicionalmente por parte dos diretores. É surpreendente a
quantidade de filmes de horror que passam a ser produzidos a partir de então: O Homem Invisível, o
Testamento do Dr. Mabuse, Os Crimes do Museu, The Whispering Shadow, Frankstain, Dr. Jekyll and
Mr. Hyde, The Phantom são apenas alguns dos títulos lançados a partir desta data. O hiper-realismo
sonoro tornou o horror viável esteticamente e comercialmente.
Curioso também o fato de que os diretores de cinema passaram, nas maiores produções, a
acompanhar as filmagens dentro da cabina de som. Não só a câmera precisava estar isolada em uma
cabina acústica para que seu ruído não vazasse no microfone mas, se o diretor não acompanhasse a
cena dentro da cabina de áudio, ouvindo a captação de voz dos atores, perderia a possibilidade de
dirigi-los de forma apropriada a essa nova mídia.
Portanto, parece ser razoável afirmar que as dificuldades técnicas do cinema sonoro acabaram
obrigando, não só os atores, mas também os diretores a conceberem a obra a partir de uma ótica
do som e não mais apenas da imagem e da interpretação.
Como conta de forma muito divertida o clássico Cantando na Chuva, o cinema falado revolucionou o
set de filmagem, tecnicamente, e o mercado, esteticamente.
BRASIL
No Brasil, o cinema sonoro chega comercialmente em 1929 com a instalação de equipamentos de
áudio na sala do Cine Paramount (VALENCISE, 2012 pag 34). Mas essa novidade foi adiantada e
amplamente anunciada pelos principais veículos de mídia da época e por eventos peculiares como a
dublagem ao vivo realizada na "Sala Azul" do Cine Odeon para um filme sobre um tango. "Tratava-se
de uma dublagem feita pela cantora argentina Irene Ambraina. Segundo a notícia, este acontecimento
foi uma antecipação para o público paulista das novidades do Movietone e do Vitaphone que estavam
agitando o público norte-americano" (VALENCISE, 2012 pag 42). Mas é importante notar que este
evento não marca a chegada do cinema sonoro ao Brasil já que desde 1910 a prática da dublagem ao
vivo já era praticada. Mas, provavelmente, apenas em 1927 um filme nacional é dublado ao vivo: O
Carnaval no Rio era acompanhado pelo grupo carioca de cantores "Flor de Abacate".
Ainda no ano de 1929, Luiz de Barros lança o que poderia ser considerado o primeiro longa-
metragem nacional com som sincronizado: Acabaram-se os Otários utilizava o sistema Vitaphone.
O primeiro filme nacional realizado com sistema de sincronismo Movietone foi um curta da
Cinédia chamado Como se faz um jornal moderno
Humberto Mauro, com auxilio de Jorge Bichara experimentavam o sistema do sincronismo mecânico
vitaphone com o lançamento em 1933 de Ganga Bruta. O filme é praticamente mudo com constante
trilha sonora selecionada entre Radamés Gnatali, Heckel Tavares, Pereira Filho (site cinedia.com.br
2012), e citações as mais diversas inclusive da abertura da sinfonia 1812 de Tchaikovsky dentre
outras, mas possui intervenções sonoras diversas com breves diálogos e sonoplastia.
Ganga Bruta é um filme onde claramente há deslocamentos de audio e falhas ou dissimulações
de lip sync.
Isto se deverá principalmente ao fato de que a captação de imagem e som foram
realizadas separadamente. Os áudios são integralmente sobrepostos por técnica de dublagem e
edição. Sendo esta uma técnica bastante trabalhosa e cara são frequentes, neste filme, cenas onde os
personagens falam, mas não há som adicionado. Quando o conteúdo deste texto é, de alguma forma.
imprescindível ao entendimento da cena, legendas serão empregadas como no inicio do filme onde o
mordomo conversa com Dr. Marcos.
Assim como em O Grande Ditador de Chapplin, Ganga Bruta revela ainda uma certa
dificuldade na assimilação da técnica do som na montagem. Não se trata apenas de dificuldades
técnicas com o equipamento mas também o fato de que a linguagem cinematografica estava
acostumada à ausência de som diegético e criar um filme onde esse universo todo fosse assimilado
significaria recriar essa linguagem já tão bem estabelecida. E assim foi.
Em 1936 é lançado Alô, Alô, Carnaval de Adhemar Gonzaga usando o sistema Movietone para
sincronizar audio e imagem. O sistema Movietone consistiu na gravação de um canal óptico de
densidade variável na própria película do filme o que evita por completo problemas de sincronismo
mecânico (podem permanecer no entanto as falhas de edição e dublagem). Assim sendo, este filme,
ao bom estilo musical da época, é uma coletânea de performances musicais e interlúdios cômicos,
bastante calcados no modelo radiofônico, gravadas sempre dentro de estúdios que comportassem o
equipamento necessário.
Assim como no resto do mundo, o som direto sem dublagem
acaba por "internar" as
produções cinematográficas nos estúdios por conta das limitações de portabilidade dos
equipamentos de áudio. Por consequência, percebe-se uma significativa mudança na estética dessas
obras que passam a ter de adotar cenários e iluminação cênica, até então menos comuns, ao cinema
brasileiro, do que as externas. Não estaremos distantes, portanto, do surgimento de uma linguagem
audiovisual que poderá facilmente ser adotada pela televisão no Brasil. Quando em em 1950, Assis
Chateaubriand funda a TV Tupi o modo de produção da Cinédia e Sonofilmes (principais produtoras
da época) poderia ser adaptado sem grande dificuldade para nova mídia. A necessidade de transmitir
ao vivo, a internação nos estúdios e o sucesso considerável da mistura de comédia e performance
musical serão transportadas dos estúdios de rádio e cinema para os estúdios de televisão.
BIBLIOGRAFIA
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America, 1877 - 1925" 1995
MANZANO, Luiz. Som - Imagem no Cinema: a experiência alemã de Fritz Lang São Paulo:
Perspectiva, 2010
MASCARELLO, Fernado. (org) História do Cinema Mundial São Paulo: Papirus, 2006
ALTMAN, Rick Nascimento da recepção clássica. A campanha para padronizar o som
Revista
Imagens no. 5 - Editora Unicamp. 1995
MUSTEMBERG, Hugo IN A experiência do Cinema.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
RAMOS, Fernão Pessoa, MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. Editora SENAC
VALENCISE, João Miguel. A chegada do som nos cinemas de São Paulo segundo a Folha da Manhã.
UFSCAR 2012
http://www.cinedia.com.br/Ganga%20bruta.html (acessado em 28 de novembro de 2012)

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