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REVISTA DA
SOCIEDADE DE
PSICOLOGIA DO
RIO GRANDE
DO SUL
E D I T O R I A L
A Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul
tem, em 2012, uma nova proposta e um novo nome: Diaphora,
palavra de origem grega que significa diferença. Neste nome
e significado encontra-se implícita a nova proposta nas várias
perspectivas que esta palavra pode representar:
Diferença na forma de abarcar as diversas perspectivas da
Psicologia, teorias e formas de produzir a ciência e as práticas
psicológicas. Vetor de produção de diversidade, pluralidade e
singularidade;
Diferença na maneira de pensar e socializar o conhecimento
buscando estreitar sua relação com seus diferentes públicos. É
neste intercâmbio de conhecimentos e experiências que a ciência
psicológica avança e possibilita a promoção da melhoria da
qualidade de vida dos seres humanos.
Diferença na proposta editorial e projeto gráfico alinhada aos
periódicos científicos nacionais e internacionais.
Diferença na sua amplitude e democratização de acesso,
marcada pela sua implantação em formato eletrônico através da
plataforma SEER (Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas),
acompanhando a mudança de paradigma no sistema de
comunicação científica. Tal iniciativa proporciona uma melhor
comunicação entre autores, editores, pareceristas e leitores.
Diferença no corpo editorial, contemplando diferentes
pesquisadores, profissionais psicólogos especialistas de
instituições nacionais e internacionais.
A diferença é o principio constitutivo da natureza. É o princípio
da diferença que dissolve a determinação, toda e qualquer
estabilidade em um mundo que, apenas na aparência, é sólido
e permanente. O mundo das diferenças pressupõe a eternidade
das diferenças. É com a diferença que se começa, ela não é uma
consequência, mas um princípio (Deleuze, 1998).
Fazer diferença envolve um processo de mudança. A vida é
parametrizada por mudanças como único dado constante. A Revista da
SPRGS acompanha este processo. Um periódico científico é o principal
canal formal de disseminação da ciência, sendo responsável pela
consolidação das áreas e subáreas do conhecimento. As mudanças nas
características dos periódicos na área da Psicologia tem sido contínuas.
Divulgar o conhecimento é o pilar de sustentação de uma revista
científica, levando à constante busca de especialização e sistematização
de sua forma de apresentação (Sabadini, Sampaio & Nascimento, 2009).
Assumir a edição, a partir de uma proposta diferenciada, de
um periódico científico já consolidado, parte integrante da história
de uma sociedade científica reconhecida pela sua comunidade, é,
sem dúvida, um desafio, mas acima de tudo uma responsabilidade.
Desafio que pretendemos construir conjuntamente com a sua
comunidade. A SPRGS entende que, por meio de sua revista, atende
a uma das suas missões: promover o estudo e o desenvolvimento
da ciência psicológica e, para tal, impera a necessidade de
estruturar uma publicação que busque atingir plenamente esse
objetivo. Neste sentido, viabiliza um meio de divulgação da ciência
produzida e reconhecida pelos pares. A publicação dá a necessária
visibilidade à produção de um país, preserva a memória e legitima
o conhecimento gerado em uma determinada comunidade. A
ciência é uma atividade coletiva, construída por membros de uma
comunidade de pesquisadores e/ou estudiosos (Trzesniak & Koller,
2009).
A SPRGS acompanha essas transformações, atenta ao
movimento dos periódicos científicos e alinha-se a esta tendência
de qualificação ao lançar a Diaphora. A Psicologia brasileira
pôde acompanhar, nos últimos anos, a rápida transformação
dos periódicos que, a partir dos esforços dos publicadores e das
orientações das Comissões de Avaliação de Periódicos da Área da
Psicologia, se profissionalizaram e adquiriram as características
das revistas científicas tal qual o exigido atualmente (Sabadini,
Sampaio & Nascimento, 2009).
Finalizamos agradecendo a Diretoria da SPRGS pelo convite
e confiança depositada assim como aos articulistas, pareceristas e
membros do Conselho Editorial. Agora esperamos a aceitação do
nosso público alvo, leitores interessados na ciência psicológica. A
qualidade e a quantidade das publicações presentes nesse primeiro
número refletem os esforços envidados tanto pela diretoria da SPRGS,
como por parte dos demais membros dessa comunidade (articulistas,
pareceristas e membros do Conselho) no intuito de qualificar – nacional
e internacionalmente – o debate das ideias na área.
Desejamos a todos, uma boa leitura e contamos com a sua
colaboração para construção dessa nova etapa de nossa publicação.
Os Editores
Mary Sandra Carlotto
Tânia Rudnicki
Adolfo Pizzinato
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12
Referências
Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal.
Sabadini, A. A. Z. P. , Sampaio, M. I. C., & Nascimento, M. M. da (2009).
Preparando um Periódico Científico. In: A. A. Z. P. Sabadini, M. I. C.
Sampaio & S. H. Koller (Orgs.), Publicar em Psicologia: um enfoque
para a revista cientifica (pp.35-73). São Paulo: Associação Brasileira
de Editores Científicos de Psicologia / Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
Trzesniak, P., & Koller, S. H. (2009). A redação científica apresentada por
editores. In: A. A. Z. P. Sabadini, M. I. C. Sampaio & S. H. Koller (Orgs.),
Publicar em Psicologia: um enfoque para a revista cientifica (pp.19-33).
São Paulo: Associação Brasileira de Editores Científicos de Psicologia /
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
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R E L ATO D E P E S Q U I S A
Influência de jogos de futebol no comportamento criminal
Influence os football matches in criminal behavior
Cristina Queirósa, Paulo Pereirab
Resumo: Os eventos desportivos, especialmente o futebol, cativam multidões e implicam condições
de segurança que possibilitem o controle da violência e da actividade criminal. Apesar de inúmeros
estudos sobre a violência no desporto, estes são sobretudo centrados na perspectiva individual, no
comportamento das multidões e das claques e no fenómeno dos hooligans. A perspectiva da Polícia e
da manutenção da ordem pública só recentemente começaram a ser alvo de interesse científico, embora
os estudos sugiram a análise dos hotspots do crime como uma estratégia de policiamento eficaz na
prevenção do crime. Foi efectuada a análise de cerca de 24.000 ocorrências criminais registadas pela
Policia de Segurança Pública em dias de jogos de futebol em Lisboa e Porto/Portugal, nos campeonatos
de 2003/04 e 2004/05, bem como no Euro’2004. Encontrou-se um padrão espacio-temporal do crime
diferente em cada cidade, verificando-se que nos dias com jogos de futebol aumentam as ocorrências
criminais.
Palavra-chave: Futebol; Ocorrências criminais; Policiamento
Abstract: Sportive events, especially football, attract crowds and involve security conditions that allow
the control of violence and criminal activity. Despite numerous studies on violence in sport, these are
mainly focused on the individual perspective, on the behaviour of crowds and cheerleaders and on
the phenomenon of hooliganism. Police’s perspective and public order perspective has only recently
beginning to elicit scientific interest, although some studies suggest the analysis of hotspots of crime as
an effective policing strategy in crime prevention. We have analysed 24,000 criminal incidents recorded
by the Portuguese Police of Public Security. Those crimes occur on football game days in Lisbon and
Oporto/Portugal 2003/04 and 2004/05 national championships, as well as in Euro 2004. There was a
specific space-time pattern of crime in each city, with an increase of criminal incidents on days with
football games.
Keywords: Football; Criminality data; Policing
a Psicológa; Doutora em Psicologia; Docente na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal.
E-mail: [email protected]
b Licenciado em Ciências Policiais e em Direito; Mestre em Criminologia; Superintendente da Polícia de Segurança Pública, Portugal.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Nos nossos dias, o desporto, nomeadamente o futebol,
assume um papel de relevo, não só em termos económicos, mas
também em termos sociais, cativando multidões e implicando
actividades variadas como por exemplo o espectáculo desportivo,
a cobertura pelos mass-media, o apoio das claques (torcidas) e
a segurança do evento desportivo (Mo rris, 1982; Murad, 1996,
2007). Apesar de o futebol ser “puro deleite, tanto para os que
jogam como para os que contemplam” (Saviani citado por
Reis, 2006, p. XV), não é só “aquela modalidade praticada por
profissionais federados, reconhecidos por contrato legalizado e
legitimados pela exposição mediática, pela fama e pela idolatria.
É igualmente, aquele que é jogado por amadores, brincadeira de
crianças e lazer de jovens e adultos, que é ritualizado pela massa
apoiante, que tem sentido educativo e de sociabilidade, mas
que também é globalizado pelos poderosos, corrompido por
dirigentes, que serve de bom e de mau exemplo” (Murad, 2004,
p.9). Com a permissividade da violência simbólica nos estádios,
assiste-se ao aumento real da violência, nomeadamente entre
espectadores e entre as torcidas de cada equipa, e o futebol
passou de espectáculo a problema sociológico (Campos et al.,
2008; Pimenta, 2000).
Alguns autores (Caillat, 1996; Dunning, 1999; Elias, 1976;
Vargas, 1995) consideram que não só o futebol, mas o desporto
em geral nasceu da violência e de ritos arcaicos de guerra,
marcando os momentos importantes da vida social. O futebol
teria um funcionamento simbólico e ritual semelhante aos
antigos jogos e cerimónias religiosas, e os estádios substituiriam
hoje as catedrais, onde equipamentos, cores e bandeiras têm
um grande peso simbólico no desencadear das emoções
(Elias & Dunning, 1994). O futebol teria também “múltiplas
determinações objectivas e subjectivas-emocionais, existenciais,
culturais, sociais e históricas” (Murad, 2004, p.8), congregando
generosidade e violência. Contudo, o futebol “não é violento em
si, embora haja práticas de violência dentro e fora do campo”
(Murad, 2004, p.18).
Estas práticas de violência têm nas últimas décadas
preocupado diferentes autores (Bouchet et al., 2011; Campos
et al., 2008; Dunning, 1995; Dunning et al., 1988; Dupuis,
1993; Gonzalez, 1996; Joern, 2009; Murad, 2007; Murphy et
al., 1994; Spaaij, 2007; Spaaij et al., 2005, 2010; Williams et al.,
1989), sobretudo no que se refere ao fenómeno dos holligans
tragicamente divulgado pelos incidentes no estádio belga
de Heysel em 1985. Contudo, antes desta tragédia já outros
investigadores exprimiram publicamente a sua preocupação
com a violência no desporto (Clark, 1973, 1978; Freischlag &
Schmidke, 1979; Terry & Jackson, 1985) e Mosquera (2002)
propôs a análise da violência no futebol de forma mais
abrangente, definindo quatro tipos de factores em círculos
concêntricos: o indivíduo, a sociedade, o contexto desportivo
alheio e o contexto desportivo próprio. No centro estaria o
contexto desportivo próprio, incluindo factores próximos do
acto violento. No círculo seguinte estaria o contexto desportivo
alheio. No terceiro círculo estaria a sociedade, abrangendo
factores resultantes das circunstâncias sociais de uma época e
de um lugar. Por último, o círculo do indivíduo seria o mais vasto,
incluindo todos os anteriores e constituindo a causa mais remota
da conduta violenta. Analisando com mais detalhe alguns destes
níveis, relacionado com o indivíduo poderíamos verificar que a
violência nos espectáculos desportivos não significaria apenas
a violência física (lançamento de objectos, agressões, etc.),
incluindo também a violência verbal (gritos, insultos, assobios,
canções ofensivas ou provocadoras), a violência gestual (mímica
obscena, aplausos provocadores, agitação de cachecóis) e por
fim a violência simbólica, expressa no vestuário dos adeptos
e nos símbolos apresentados nas bandeiras. No extremo
oposto ao indivíduo situa-se o contexto desportivo próprio, e
neste consideram-se os factores que mais directamente estão
relacionados com o jogo e com o espaço desportivo, apesar de a
violência não se limitar ao estádio (a violência está nas pessoas e
vai para onde estas forem, podendo manifestar-se em qualquer
lugar). O próprio jogo condicionaria então o aparecimento de
manifestações violentas, em que as agressões entre jogadores,
a ausência de “fair play”, o desejo de ganhar acima de tudo, a
excitação do próprio jogo, o resultado do jogo, e as decisões do
árbitro, são factores que podem desencadear reacções violentas
no público.
Para além destes factores, há ainda que referir as
características físicas e de controlo das instalações desportivas,
que podem facilitar a ocorrência de violência (Canter, Comber
& Uzzel, 1989). Assim, as zonas com lugares de pé e o desenho
das bancadas são importantes, pois há diferenças entre uma
bancada sem divisões e uma bancada com zonas delimitadas e
lugares identificados e espaçosos. Também a própria existência
de barreiras para impedir o acesso ao público ao campo de jogo
pode gerar agressividade por dar ao indivíduo a sensação de
estar “aprisionado”num espaço aberto. A dimensão do grupo nas
bancadas é também outro factor a considerar, pois o indivíduo
dentro de um grupo adquire a condição de anonimato que o faz
sentir-se liberto das pressões e normas sociais (Elias & Dunning,
1986). Por fim, a presença de um sistema policial ostensivo pode
ser contraproducente, gerando o efeito contrário ao pretendido
e podendo provocar reacções de rejeição e de rebeldia contra a
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autoridade (Adang & Cuvalier, 2001).
Os actos de violência verificados, de forma recorrente,
em acontecimentos desportivos têm levado a que diversas
entidades assumam uma preocupação cada vez maior, no
sentido de desenvolver medidas de prevenção, existindo normas
em cada país mas também internacionais (Conselho da Europa,
1987; Parlamento Europeu, 1988, 1999). Analisando os últimos
campeonatos europeus de futebol, alguns autores (Reddy, 1977;
Reicher, 1984, 1996; Stott, 1998) realçaram a importância do
controle de multidões, pois a violência nestes campeonatos
foi provocada por grupos de adeptos, sendo difícil de controlar
e provocando danos avultados, feridos graves e instabilidade
social. Este conflito provocado por multidões ocorre quando
instituições estatais como a Polícia intervêm contra uma
concentração não autorizada e quase sempre são provocadas
mais baixas na multidão do que esta provoca na Polícia. A análise
da desordem deveria então ser mais direccionada à forma como
a Polícia actua, do que à forma de actuação da multidão, e para
Rimé e Leyens (1988) o facto de se colocar a causa da tragédia do
Estádio de Heysel na personalidade de alguns adeptos, foi usado
para justificar soluções policiais repressivas. Claussen (2006)
questiona as medidas de segurança cada vez mais intrusivas e
refere que desde o atentando terrorista nos Jogos Olímpicos de
Munique em 1976 os eventos desportivos tornaram-se um alvo
fácil, implicando medidas rígidas de segurança. Contudo, desde
a revista de sacos para evitar arremesso de objectos perigosos
até à filmagem de adeptos e ao cruzamento destes dados com
o registo criminal dos adeptos, levantam-se questões éticas e de
privacidade não justificadas pelo medo de actos terroristas.
Outros autores (Dimmock & Grove, 2005; Wakefield & Wann,
2006) relacionam a adesão/identificação forte dos adeptos
a uma maior possibilidade de comportamentos violentos
durante o evento desportivo, justificando que esta identificação
os torna mais susceptíveis à influência do comportamento
colectivo fazendo-os perder o controle perante uma situação
desagradável como a da derrota da sua equipa. Kerr (2005)
refere ainda o aumento crescente da violência no desporto,
dentro e fora dos recintos, exemplificando não só com agressões
entre adeptos, mas também com agressões entre atletas, entre
atletas e adeptos, ou entre atletas e treinadores, sugerindo que
a sociedade actual estimula a competitividade, não ensina o
controle dos impulsos violentos e desculpabiliza a violência no
desporto.
Apesar de o fenómeno da violência no desporto estar
sobretudo centrado na investigação sobre o autor desse
comportamento (expressa na referência frequente aos
hooligans), existem já estudos sobre o papel da Polícia no
controle da ordem nos eventos desportivos e sobre o impacto
dos eventos desportivos no comportamento violento (Adang
& Cuvalier, 2001; Connors, 2007; Gultekin & Soyer, 2010;
Litavski, 2010; Madensen & Eck, 2008; Morrison & Airey, 2002;
Sivarajosingam et al., 2005; Stott et al., 2007, 2008; Veno &
Veno, 2002; Warren & Hay, 2009). Em Portugal, os Relatórios
Anuais de Segurança Interna (RASI, 2006, 2007, 2008, 2009,
2010) apresentam o número de policiamentos efectuados
pela Polícia de Segurança Pública (PSP, que policia as zonas
urbanas) e pela Guarda Nacional Republica (GNR, que policia as
restantes zonas) no âmbito da segurança a eventos desportivos
(Tabela 1), verificando-se que cerca de metade é absorvido por
policiamento a jogos de futebol, e que entre 2005 e 2010 o
número de policiamentos e a taxa de incidentes registados pela
PSP em jogos de futebol aumentou.
Tabela 1
Número de policiamentos de segurança a eventos desportivos
Policiamentos
2005 2006 2007 2008 2009 2010
Policiamentos PSP
14.889 14.401 14.696 11.229 para futebol
Incidentes registados 185 107 113 181
PSP para futebol
Percentagem de
incidentes por
1,24 0,74 0,77 1,61
policiamento
Policiamentos GNR
- 34.871 34.279 34.263 para futebol
Policiamento eventos 23.984 27.142 26.902 20.055 desportivos PSP
Policiamento eventos
- 47.793 48.237 48.111 desportivos GNR
Total policiamento
- 74.935 75.139 68.166 68.684 78.232
eventos desportivos
Em Portugal há já estudos efectuados sobre a violência no
desporto, sobretudo por Marivoet (1992, 1996, 1998, 1999,
2002; Marivoet & Boaventura, 2002, Carvalho (1985), Meirim
(1989, 1994) e Matos Almeida (1999, 2000), efectuados
predominantemente numa perspectiva sociológica ou jurídica.
Contudo, sobre a influência que os eventos desportivos têm
no comportamento criminal e nos incidentes ocorridos numa
cidade nos dias de jogos de futebol não se encontram estudos
publicados. Numa comunicação, Pereira (2007), pela sua
experiência profissional nas forças de segurança, acedeu a
relatórios internos e de expediente policial para caracterizar
entre 1998 e 2005 incidentes em 116 jogos nos quatro maiores
clubes da Super Liga do futebol português, referindo que 25%
dos incidentes foram o arremesso de objectos para o interior do
relvado, com o objectivo de atingir jogadores, árbitros, técnicos,
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e elementos das forças de segurança, e arremesso de objectos
contra adeptos do clube adversário e autocarros que transportam
os jogadores ou adeptos da equipa adversária. Verificou ainda
que 16% dos incidentes ocorridos foram a posse e uso de
artefactos pirotécnicos, e 15% foram desordens agressões
entre adeptos ou com a Polícia, invasões de campo, colocação
de faixas provocatórias, injúrias aos árbitros e a agentes de
autoridade e actos de vandalismo nas estruturas físicas dos
estádios. Verificou que 73% das ocorrências foram detectadas
no interior do estádio, quer antes, durante, ou após o fim dos
jogos e que os crimes mais praticados que originaram auto de
notícia por detenção foram ofensas à integridade física e injúrias
aos agentes policiais, representando 70% das detenções. Ainda
recorrendo aos dados internos, Pereira (2007) referiu que no
campeonato europeu de futebol realizado em 2000 (Euro’2000)
na Holanda e na Bélgica, a actividade ilícita desenvolvida pelos
adeptos resultou em cerca de 1.080 detenções administrativas
e 300 judiciárias, e 700 ordens de expulsão e afastamento.
Em Portugal, no Euro’2004 foram efectuadas 250 detenções e
instaurados 80 processo de expulsão, estando 40% dos crimes
relacionados com a venda ilegal de bilhetes e especulação, e os
restantes sobretudo com agressões e distúrbios. Já na Alemanha,
no Mundial’2006 foram registados cerca de 35 crimes por jogo
e nos dias sem jogo cerca de 159 crimes por dia. As autoridades
policiais procederam a cerca de 8.900 detenções (criminais e
administrativas) no período do evento, sendo cerca de 35 por
jogo e cerca de 186 em dias em que não houve jogos.
Os dados referidos demonstram a influência que os eventos
desportivos têm no comportamento criminal e nos incidentes
ocorridos numa cidade nos dias de jogo de futebol, resultado
já encontrado por Sivarajosingam et al. (2005). Aproveitando o
interesse que o campeonato Euro 2004 suscitou aquando da sua
organização em Portugal e o interesse pelos incidentes críticos
registados, decidiu-se caracterizar a actividade criminal ocorrida em
dias de jogos de futebol nas cidades de Lisboa e Porto, colocando a
hipótese de a actividade criminal na cidade aumentar nos dias de
jogo, sobretudo nas zonas de envolvência dos estádios.
Método
Estudos efectuados pelo Observatório Permanente
de Segurança na cidade do Porto (Agra et al., 1999, 2001)
permitiram caracterizar no tempo e espaço da cidade as
ocorrências criminais, utilizando o Instrumento de Notação do
Sistema Estatístico Nacional (INSEN), grelha do Ministério da
Justiça para registo de crimes (embora se reconheça que este
registo não revela toda a realidade, existindo “cifras negras”). Este
tipo de caracterização do crime é frequentemente usado pelas
Polícias para definição dos “hotspots” do crime e consequente
definição de estratégias de policiamento dirigidas para locais da
cidade que no tempo e espaço apresentam uma concentração
evidente de crimes (Buerguer et al., 1995; Eck et al., 2005;
Sherman, 1995), permitindo também analisar a evolução da
criminalidade (Braga et al., 2010; Leitner et al., 2011). Enquanto
profissional da Polícia de Segurança Pública, Pereira (2006) no
âmbito do seu mestrado sobre violência no desporto obteve
autorização para aceder às ocorrências criminais registadas
durante três anos na base de dados da instituição, mantendo a
confidencialidade e anonimato dos registos.
Os dados então acedidos permitiram desenvolver o estudo
que agora se apresenta e atendendo ao constrangimento temporal
da autorização dada, foram seleccionados dois campeonatos
nacionais de futebol da Super Liga Portuguesa: 2003/2004 e
2004/2005, de forma a contextualizar o Campeonato Europeu
de Futebol organizado pela UEFA e realizado em Portugal em
2004 (Euro’2004). Foram ainda considerados nestes dois anos
desportivos outros jogos internacionais realizados em Portugal.
Em seguida, foram seleccionadas as duas principais cidades do
país (Lisboa e Porto) e os dois maiores estádios/clubes de cada
uma: em Lisboa o estádio da Luz (onde joga o Sport Lisboa e
Benfica) e o estádio de Alvalade XXI (onde joga o Sporting
Clube de Portugal), no Porto o estádio do Dragão (onde joga o
Futebol Clube do Porto) e o estádio do Bessa Século XXI (onde
joga o Boavista Futebol Clube). Recorde-se que 2003/04 foi o
ano em que o Futebol Clube do Porto foi campeão da SuperLiga e Campeão da Europa, enquanto em 2004/05 o Benfica
foi campeão da Super-Liga, tendo sido realizados importantes
jogos internacionais para além do Euro’2004, com adeptos de
cada equipa a deslocaram-se em grande número para cada
jogo. Para os quatro estádios foram seleccionadas todas as
datas de jogos oficiais das competições referidas (Super Liga,
competições internacionais da Liga dos Campeões e da Taça
UEFA, e Euro’2004) encontrando-se um total de 172 dias com
jogo de futebol. Foi seleccionado um número igual de datas nas
quais não se realizaram jogos nesses estádios, emparelhadas por
cidade, dia da semana, ano e mês, controlando ainda quando
cada clube jogava dentro e fora do seu estádio.
Para os dias seleccionados foram recolhidos todos os registos de
crimes existentes na respectiva cidade onde ocorreu o jogo. Através da
identificação das datas com jogos (Tabela 2), foram encontradas para a
cidade do Porto 73 datas emparelhadas (ou seja, 146 datas diferentes),
correspondentes a 2.976 crimes em dias de jogo e 2.801 em dias sem
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jogo. Dada a sua atipicidade, o Euro’2004 foi considerado separadamente,
encontrando-se 8 datas emparelhadas para a cidade do Porto,
correspondentes a 507 crimes em dias de jogo e 344 em dias sem jogo.
Relativamente a Lisboa, encontraram-se 81 datas emparelhadas (ou seja,
162 datas diferentes), correspondentes a 7.537 crimes em dias de jogo e
7.751 em dias sem jogo. Para o Euro’2004 em Lisboa encontraram-se 10
datas emparelhadas, correspondentes a 1.266 crimes em dias de jogo e
1.031 em dias sem jogo.
Tabela 2
Número de datas e de ocorrências criminais por dia e por tipo de competição
Ocorrências
Porto
Lisboa
Número de datas
73
81
Nº de ocorrências em dia com jogo
2.976
7.537
Nº de ocorrências em dia sem jogo
2.801
7.751
Número de datas – Euro’2004
8
10
Nº de ocorrências em dia com jogo – Euro’2004 507
1.266
Nº de ocorrências em dia sem jogo – Euro’2004 344
1.031
um aumento notório relativamente a 2003. Em Lisboa verificouse um média de crimes superior nos dias sem jogo, sobretudo em
2005, encontrando-se de novo um padrão temporal diferente
entre as duas cidades.
103
47
101
46
99
45
97
44
95
43
93
42
91
41
89
40
87
39
85
38
83
com jogo
sem jogo
2003 Lisboa
102,46
101,60
2004 Lisboa
95,14
97,61
2005 Lisboa
83,50
88,62
2003 Porto
39,31
38,36
2004 Porto
38,32
38,15
2005 Porto
45,86
39,00
37
Figura 2. Evolução da média de crimes/dia por ano no Porto
Depois de recolhidas as cerca de 24.000 ocorrências criminais,
estas foram codificadas em função da cidade, ano, tipo e categoria
do crime, freguesia da cidade onde ocorre (localização em função do
estádio), hora e dia (com jogo ou sem jogo). No caso de ser dia de
jogo, codificou-se ainda o tipo de competição, tendo os dados sido
trabalhados no programa estatístico SPSS. Atendendo ao número
de datas ser diferente para cada cidade, ano e competição, os dados
foram apenas tratados no formato de média por categoria a analisar
(ex: número médio de ocorrências por dia de jogo para os 8 jogos
da UEFA ou para os 73 jogos da Super-Liga) para terem a mesma
unidade de análise.
Resultados
Foram analisados separadamente as cidades, ano e competição,
verificando-se (Figura 1) que no Porto a média de crimes por dia é
maior nos dias com jogo, enquanto em Lisboa existe o padrão inverso
e a média de crimes por dia é muito superior.
Relativamente à distribuição da média do número de
crimes por tipo de freguesia, verificou-se no Porto (Figura 3) que
nas freguesias onde se situam os estádios a média de crimes é
ligeiramente maior nos dias com jogo no estádio do Dragão, mas
ligeiramente inferior nos dias com jogo no estádio do Bessa. As
freguesias adjacentes aos estádios ou outras freguesias da cidade
apresentam mais crimes em dias com jogo. Em Lisboa (Figura 4),
a freguesia do Estádio de Alvalade apresenta mais crimes em dia
com jogo e a freguesia do Estádio da Luz apresenta um padrão
inverso. As freguesias adjacentes aos estádios e outras freguesias
da cidade apresentam mais crimes do que as freguesias dos
estádios, e mais crimes em dias sem jogo. Encontrou-se um
padrão diferente, pois no Porto a criminalidade em dias com
jogo expande-se para outras freguesias que não só as do estádio
do jogo e aumenta com a realização dos jogos. Em Lisboa a
criminalidade é menor nos dias com jogo e apresenta poucas
variações em função dos dias, sendo mais frequente noutras
freguesias da cidade.
12
10
8
41
96
95
40
94
39
93
38
37
92
com jogo
sem jogo
6
4
2
0
91
Dragão
Adjacente
Dragão
Bessa
Adjacente Adjacente
Bessa
ambos
Outra
freg.
Porto
40,8
38,4
com jogo
3,10
6,52
5,97
10,32
4,83
10,60
Lisboa
93,04
95,69
sem jogo
2,97
5,86
6,19
9,63
4,91
9,16
Figura 1. Média de crimes/dia por cidade em dias com jogo e em dias sem jogo na Super Liga
Figura 3. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de freguesia no Porto
No que se refere à evolução da média do número de crimes
por ano, verificou-se que no Porto (Figura 2), os dias com jogo
apresentam sempre maior número de crime, existindo em 2005
7
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60
50
40
30
20
10
0
Luz
Adjacente
Adjacente Adjacente
Alvalade
Luz
Alvalade
ambos
Outra
freg.
com jogo
4,35
8,41
5,48
11,41
6,67
54,58
sem jogo
4,65
8,77
5,02
10,28
6,87
59,95
Figura 4. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de freguesia em Lisboa
Quanto ao momento do dia, no Porto os crimes praticam-se
ao longo de todo o dia, embora com picos de menor criminalidade
durante a manhã. A noite e madrugada apresentam valores
mais elevados, quer em dias com jogo, quer em dias sem jogo.
Em Lisboa os crimes praticam-se essencialmente durante a
manhã e a tarde, seja em dias com jogo ou em dias sem jogo.
Relativamente ao tipo de crime, no Porto (Figura 5) nos dias
com jogo os crimes contra o património são mais frequentes
mas diminuem os crimes contra as pessoas, contra a vida em
sociedade e relacionados com a droga. Já em Lisboa (Figura 6),
nos dias com jogo diminuem todos os tipos de crime, excepto
os crimes contra o Estado, crimes relacionados com a droga e
outros crimes (ex: fraudes, crimes relacionados com actividades
comerciais). Encontrou-se um padrão diferente entre Porto
e Lisboa, embora com os crimes contra as pessoas e contra o
património a serem os mais frequentes.
No que se refere ao tipo de crime por competição, verificouse que o crime contra o património é o mais frequente nas duas
cidades. No Porto (Figura 7), contra as pessoas a média de crimes
nos jogos da Super Liga é menor do que nos jogos internacionais
da UEFA e nos dias sem jogo. Já contra o património, a média de
crimes é maior nos jogos da UEFA e Super Liga do que nos dias
sem jogo. Nos jogos da UEFA há menos crimes contra o Estado
e relacionados com droga, predominando nos crimes contra
o património o furto (sobretudo em e de veículos) e o roubo,
especialmente em dias com jogo. Em Lisboa (Figura 8), a média
de crimes é menor nos jogos da UEFA, excepto nos outros crimes
ou nos crimes relacionados com droga. Nos crimes contra o
património predominam o furto (sobretudo em veículos e por
carteirista) e o roubo, especialmente em dias com jogo. Encontrouse um padrão diferente entre Porto e Lisboa, pois os jogos da UEFA
parecem provocar mais crimes no Porto do que em Lisboa, quando
comparados com os jogos da Super Liga. Além disso, nos tipos de
crime contra o património predomina o furto em veículos, mas
variam nas duas cidades, existindo no Porto mais furtos de veículos
e em Lisboa mais furtos por carteirista.
80
60
40
20
0
Pessoas Património
Vida em
sociedade
Estado
Outros
crimes
Outros droga
30
Super-liga
15,50
70,60
4,90
1,70
4,00
3,30
25
UEFA
16,50
72,80
2,50
1,40
4,90
1,90
Dia sem jogo
6,91
25,87
3,27
1,20
2,30
2,43
20
Figura 7. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de competição no Porto
15
10
5
80
0
Pessoas
Património
Vida em
sociedade
Estado
Outros
crimes
Outros droga
60
com jogo
6,48
29,33
3,00
1,36
2,41
2,25
40
sem jogo
6,91
25,87
3,27
1,20
2,30
2,43
20
Figura 5. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de crime no Porto
0
Pessoas Património
70
60
50
Vida em
sociedade
Estado
Outros
crimes
Outros droga
Super-liga
15,50
72,70
4,70
1,10
3,90
2,10
UEFA
15,40
72,00
4,60
1,20
4,30
2,40
Dia sem jogo
15,06
68,72
5,20
1,78
3,05
2,23
Figura 8. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de competição em Lisboa
40
30
20
10
0
Pessoas
Património
Vida em
sociedade
Estado
Outros
crimes
Outros droga
com jogo
14,40
67,50
4,63
1,90
3,90
2,46
sem jogo
15,06
68,72
5,20
1,78
3,05
2,23
No que diz respeito ao Euro’2004, no Porto decorreram 8
jogos entre 12 Junho e 4 Julho 2004 e em Lisboa decorreram 10
jogos entre 12 Junho e 6 Julho 2004. Verificou-se (Figura 9) que
nas duas cidades há um aumento notório do número de crimes
nos dias com jogo relativamente aos dias sem jogo.
Figura 6. Distribuição da média de crimes/dia por tipo de crime em Lisboa
8
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64
62
60
58
56
54
52
50
48
46
44
42
128
124
120
116
112
108
104
com jogo
sem jogo
Porto
63,40
43,00
Lisboa
126,60
103,10
100
Figura 9. Média de crimes/dia por cidade em dias com jogo e em dias sem jogo no Euro’2004
No que se refere à distribuição do crime ao longo do
dia, apesar do problema da contagem do horário nocturno
(consideraram-se apenas as ocorrências no dia de jogo e não
na madrugada do dia seguinte, o que terá de ser revisto em
estudos futuros, pois os incidentes podem estender-se pela
madrugada do dia seguinte), verificou-se no Porto que 49%
da criminalidade ocorreu até 3 horas antes do início do jogo
e 46% da criminalidade ocorreu entre 3h antes e 3h depois
do jogo. Apenas 5% da criminalidade ocorreu para além de 3
horas após o fim do jogo. Os crimes contra o património foram
os mais cometidos, e, nas freguesias dos estádios os valores dos
crimes contra o património foram mais elevados nos dias de
jogo. Em Lisboa, o dia em que se registaram mais crimes foi o
do último jogo da competição (final) e verificou-se que 57% da
criminalidade ocorreu até 3 horas antes do início do jogo, contra
41% da criminalidade que ocorreu entre 3h antes e 3h depois do
jogo. Os crimes contra o património e contra as pessoas foram os
mais cometidos em todas as freguesias durante o evento, mas
as freguesias dos estádios e as adjacentes apresentaram valores
mais baixos. Comparando as duas cidades, verificou-se que os
crimes contra o património foram os mais frequentes em Lisboa
e Porto durante o Euro’2004 e a realização dos jogos fez disparar
a criminalidade nas duas cidades, apesar de padrões temporais
e espaciais diferentes.
Discussão
Os resultados encontrados constituem um estudo ainda
de cariz exploratório quanto aos hotspots do crime em dias
de futebol, mas permitem claramente verificar que os eventos
desportivos influenciam a actividade criminal ocorrida nas
cidades, variando em função da cidade e do tipo de competição.
Na cidade do Porto a realização de jogos parece ter um maior
impacto no aumento da criminalidade, pois a criminalidade
expande-se a toda a cidade em dias de jogo. A freguesia onde
se verificaram valores mais elevados da criminalidade situa-se
no centro da cidade e nas freguesias onde se situam os estádios
a variação em dias de jogo e sem jogo é pouco relevante. Em
Lisboa, o aumento foi mais significativo nas freguesias onde se
situam os estádios e a criminalidade parece estar mais dispersa
e concentra-se nos dias de jogo fora dos locais dos estádios.
Durante o Euro’2004 a criminalidade disparou notoriamente
nas duas cidades, confirmando a hipótese formulada de que
os eventos desportivos fazem aumentar o crime, resultado já
encontrado por Sivarajosingam et al. (2005) numa análise dos
eventos desportivos em Cardiff entre 1995 e 2002.
A análise foi efectuada sobre dados que apresentam a
limitação de serem registados apenas para fins de notação
de crimes e policiamento e não para investigação científica,
podendo também reflectir estratégias de policiamento. O
facto de o Euro’2004 apresentar um aumento tão notório de
ocorrências registadas pode ter resultado do policiamento
intensivo que funcionou como um crivo mais apertado em
termos de segurança. Situações que noutros dias de jogo
passariam despercebidas podem ter tido tratamento mais rígido
e resultar em registo de crime, como se deduz pelo estudo de
Stott et al. (2007) que tão bem observaram os comportamentos
e estratégias de policiamento da Polícia de Segurança Pública
e Guarda Nacional Republicana nos incidentes de claques
(torcidas) inglesas ocorridos no Algarve durante o Euro’2004.
Estes resultados reflectem ainda características
estruturais de cada cidade, pois os limites e as características
de Lisboa e Porto são bastante diferentes, implicando também
diferentes estratégias de controle das multidões e de circulação
na cidade, como Warren e Hay (2009) defendem ao reflectirem
sobre o controle da ordem pública na liga australiana. Mesmo
reconhecendo que cada cidade, e também cada tipo de
competição implica diferentes comportamentos dos adeptos,
estes resultados realçam a necessidade de investigações
futuras que contribuam para o estudo da violência no desporto
alargando-o ao impacto dos eventos desportivos sobre o crime
na cidade. Conhecendo os “hotspots” nos dias de eventos
desportivos mobilizadores de multidões, as Polícias poderão
adoptar um modelo mais proactivo capaz de prevenir a prática
de actos ilícitos em dias de competições futebolísticas. Cabe às
autoridades policiais desenvolver e aperfeiçoar cada vez mais
os seus métodos para prevenir e reprimir eficazmente os actos
ilícitos associados ao futebol. Alguns estudos rentabilizaram já
a análise dos “hotspots” e dos registos de ocorrências para deles
extrair conclusões, como por exemplo Sivarajosingam et al.
(2005) que verificaram em Cardiff que os eventos desportivos
aumentavam os registos de crimes, reflectindo detalhes da
competição como vitória ou derrota da equipa, jogo na cidade
ou noutro estádio. Também Leitner et al. (2011) analisaram os
padrões de crime na Louisiana após o furacão Katrina, enquanto
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 03-12
Braga et al. (2010) analisaram os padrões de violência com
armas em Boston entre 1980 e 2008.
Estando próximos novos eventos no mundo desporto, como
por exemplo o campeonato Mundial de Futebol em 2014 para o
Brasil, e existindo actualmente guias de reflexão sobre “hotspots”
na cidade (Eck et al., 2005), sobre o controle da violência nos
estádios (Madensen & Eck, 2008), sobre o estatuto de defesa
do torcedor (Campos et al., 2008) e registos informatizados
que permitem caracterizar as ocorrências criminais no tempo
e no espaço, a análise dos crimes em função dos eventos
desportivos numa cidade parece ser de extrema utilidade.
Braga (2006) demonstrou já que a análise de “hotspots” é uma
estratégia eficaz de prevenção do crime. Interessará, então, que
continue a haver uma análise e identificação da criminalidade,
um estudo das tendências criminais e a troca de informações,
análise de eventuais propostas de novas medidas/legislação,
desenvolvimento de estratégias e tácticas mais eficientes e
eficazes para a prevenção da violência e da criminalidade, e,
ainda o desenvolvimento de modelos de policiamento que
melhor se adaptam a esta realidade. Deste modo, os eventos
desportivos e especificamente o futebol, poderão reduzir o nível
de violência e o número de ocorrências criminais, e continuar a
ser (o futebol) “talvez, a maior paixão popular do planeta, a mais
difundida e disseminada” (Murad, 2007, p. 17).
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Recebido em agosto/2011
Revisado em setembro/2011
Aceito em setembro/2011
12
R E L ATO D E P E S Q U I S A
A representação social do ‘bom trabalho’ para trabalhadores agrícolas
no nordeste brasileiro
Social representations of ‘good job’ to farm workers in northeastern Brazil
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos a *, Fabíola Marinho Costab,
Ana Carolina de Aguiar Rodriguesc, Roberval Passos de Oliveirad
Resumo: As representações de objetos socialmente relevantes são construídas pelo conjunto de
percepções, sentimentos, normas e valores que permeiam as experiências individuais e coletivas,
como também pela dinâmica das relações sociais estabelecidas em um dado contexto. De caráter
exploratório/descritivo, o presente estudo busca compreender a representação social de trabalhadores
de organizações agrícolas acerca do que é um ‘bom trabalho’, analisando como eles percebem, sentem e
valorizam os diferentes elementos que estruturam o trabalho humano no contexto em que se inserem.
Foram utilizados referencial e procedimentos oriundos do campo de estudos sobre o núcleo central das
representações sociais. O estudo foi realizado em 32 organizações, localizadas no pólo Juazeiro/Petrolina,
com a participação de 950 trabalhadores, em sua maioria homens, jovens e com pouca escolaridade.
Dos participantes, 30% possuem contrato de trabalho temporário. Utilizou-se um questionário semiestruturado e foram realizadas análises descritivas. As representações sociais desses trabalhadores
acerca do ‘bom trabalho’ refletem suas história de vida, sua singularidade e referências culturais. Nesse
contexto, o trabalho apresenta-se como extremamente valorizado, por ser não apenas um instrumento
de sobrevivência, mas também símbolo de autonomia, dignidade e perseverança.
Palavras-chave: Representação social; Trabalho; Trabalhadores agrícolas
Abstract: The representations of socially relevant objects are constructed by a set of perceptions, feelings,
values and norms that permeate the individual and collective experience, as well as the dynamics of
social relations in a given context. Descriptive in character this study seeks to understand the social
representation of workers in agricultural organizations about what constitutes a ‘good job’, examining how
they perceive, feel and value the different elements that structure human labor in the context in which they
operate. We used references and procedures based on studies about the core of social representations.
The study was conducted in 32 organizations, located in the center Juazeiro / Petrolina, with the
participation of 950 workers, mostly men, young and poorly educated with 30% of them on temporary
contract. A semi-structured questionnaire was used and descriptive analyzes were performed. Social
representations of these workers about the ‘good job’ reflect their life history, its uniqueness and cultural
reference. In this context, the work presents itself as extremely valuable, not only for being an instrument
for making a living, but also a symbol of autonomy, dignity and perseverance.
Key words: Social representation; Labor; Agricultural workers
a Doutor em Psicologia (Universidade Federal da Bahia); Centro de Estudos Interdisciplinares para o Setor Público (ISP).
*E-mail: [email protected]
b Psicóloga; Doutora em Psicologia (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)
c Psicóloga; Doutora em Psicologia (Universidade Nove de Julho)
d Psicólogo; Doutor em Saúde Pública (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
13
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O presente artigo é originado de um grande estudo
envolvendo trabalhadores de organizações agrícolas do polo
Juazeiro/Petrolina. Busca compreender a representação social de
tais trabalhadores acerca do que é um ‘bom trabalho’, uma vez
que essa pode ser consideradabase para as suas expectativas e
parâmetro de avaliação das condições em que trabalham. Para
atingir o objetivo, neste trabalho foram utilizados referencial e
procedimentos oriundos do campo de estudos sobre o núcleo
central das representações sociais. De caráter exploratório/
descritivo, o estudo pretende contribuir para um melhor
entendimento de uma categoria de trabalhadores praticamente
esquecida pelapesquisa em comportamento organizacional,
analisando como eles percebem, sentem e valorizam os
diferentes elementos que estruturam o trabalho humano no
contexto e região em que se inserem.
As representações são construídas por percepções,
sentimentos, normas e valores que permeiam as experiências
de indivíduos e grupos, assim como pela dinâmica das relações
sociais estabelecidas em um dado contexto. A representação
social é definida por Moscovici (1978) como um tipo de
conhecimento, socialmente elaborado, que influencia os
comportamentos e a comunicação entre as pessoas, além de
intervir na definição de suas identidades sociais e visões de
mundo.
De acordo com Moscovici (2009), as representações sociais
convencionalizam objetos, corporificam idéias, dando-lhes uma
forma definitiva e os localizando em uma determinada categoria.
Nesse sentido, são fenômenos que estão relacionados com um
modo particular de compreender e de se comunicar, abstraindo
sentido do mundo e reconstituindo-o de modo significativo.
Argumentando na mesma direção, Abric (2000) entende que
as representações funcionam como um sistema de interpretação
da realidade que rege as relações dos indivíduos com o seu
meio físico e social, determinando seus comportamentos e
suas práticas. As representações, para o autor, são constituídas
de um conjunto de informações, de crenças, de opiniões e de
atitudes a propósito de um dado objeto social. Esse conjunto de
elementos, se organizado, estrutura-se e constitui-se em um
sistema sócio-cognitivo particular, composto de dois sistemas
em interação: um sistema central, ou núcleo central; e um
sistema periférico. O núcleo central determina a significação
da representação, sua organização interna (consistência) e sua
estabilidade (permanência), constituindo a base comum e
consensual de uma representação social. Já o sistema periférico
é flexível, adaptativo e relativamente heterogêneo quanto ao seu
conteúdo, permitindo modulações individuais da representação.
As pessoas, agindo em um sistema de representação,
criam objetos e lhes dão significado e realidade. Quando
das interações no cotidiano das relações sociais, as pessoas
expressam e confirmam suas crenças subjacentes, fazendo com
que as representações sociais se tornem uma unidade do que
pensam e do modo como fazem. É assim que Wagner (2000)
entende as representações, descrevendo-as, ao mesmo tempo,
como uma teoria sobre o conhecimento representado, e uma
teoria sobre a construção do mundo. De acordo com esse autor,
uma representação é mais do que uma imagem estática de um
objeto na mente das pessoas, ela compreende também seu
comportamento e a prática interativa de um grupo.
Sendo produto social, o conhecimento tem de ser remetido
às condições sociais que o engendram. Ou seja, só pode ser
analisado tendo como contraponto o contexto social em que
emerge, circula e se transforma. Nesse sentido, o contexto tornase um aspecto fundamental da pesquisa em representações
sociais, seja porque as representações – enquanto produto – são
campos estruturados pelos conteúdos históricos que impregnam
o imaginário social, sejam porque – enquanto processo – são
estruturas estruturantes desse contexto e, como tal, motores da
mudança social (Spink, 2004).
Nessa perspectiva, a pesquisa em representações sociais
demonstra, conforme Jovchelovitch (2008), a importância da
expressividade e do status epistemológico dos saberes locais.
Investigar esses saberes significa ser sensível àquilo que o
conhecimento expressa e às inter-relações de uma forma de
saber com outras. Isso se constitui no que autora caracteriza
como “fenomenologia do saber”, o estudo dos entendimentos,
das mentalidades e das práticas que configuram a constituição
de visões de mundo e modos de viver. Tais estudos mostram-se
relevantes, visto que permitem examinar como o encontro com
o saber de outros pode contribuir para o processo de avaliação
critica do próprio saber.
No campo de conhecimentos produzidos acerca das
representações sociais, o trabalho, enquanto esfera socialmente
relevante na vida das pessoas, vem se constituindo como
importante objeto de pesquisa. Em estudos empíricos, diversas
representações do trabalho têm sido destacadas, como:
arriscado, desvalorizado e sem futuro, entre trabalhadores da
construção civil (Oliveira & Iriart, 2008); árduo, que causa estresse
e sofrimento, conferindo, porém, autonomia a enfermeiras que
realizavam trabalho noturno (Veiga, Fernandes & Paiva, 2011);
positivo por propiciar desenvolvimento psicossocial, pelos
benefícios financeiros e pelos ganhos relacionados ao futuro,
entre adolescentes trabalhadores e não-trabalhadores (Oliveira,
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Fischer, Teixeira, Sá & Gomes, 2010); fonte de prazer, pelo da área cultivada. Para Fischer (2000), ocorre na região uma
sentimento de apoiar, ajudar, confortar, entre enfermeiras que transformação nos meios de produção, que redefine as relações
trabalham em UTIs (Shimizu & Ciampone, 2002).
de trabalho, substituindo, por exemplo, a parceria - na qual
trabalhadores são remunerados em quota-parte da produção
O contexto: a região do polo Juazeiro/Petrolina
obtida com seu trabalho - pela relação de trabalho baseada no
assalariamento - trabalhadores recebem o pagamento através
A região do pólo Juazeiro/Petrolina está situada no Baixo de uma quantia prefixada em dinheiro -, que desvincula o
Médio do Vale do São Francisco, que corresponde a uma das trabalhador dos meios de produção. A relação entre empregador
quatro regiões fisiográficas do Vale do São Francisco e abrange e empregado passa, portanto, a ser regida por contratos de
áreas dos estados da Bahia e de Pernambuco (Silva, 2001). Essa trabalho.
região foi pioneira na implantação de grandes projetos públicos
No Brasil, as regras e normas que regulam as relações
e privados de irrigação, o que gerou a consolidação e expansão individuais e coletivas de trabalho constam do documento
de uma atividade agrícola integrada à indústria.
oficial criado pelo Ministério do Trabalho intitulado Consolidação
Segundo Fischer (2000), a região é beneficiada por políticas das Leis do Trabalho - CLT e de convenções coletivas adotadas
públicas de geração de energia e de irrigação, que possibilitaram por algumas empresas (Fischer, 2000). De acordo com a CLT
a implantação de uma infra-estrutura que tem proporcionado (Brasil, 2002), contrato individual de trabalho é o acordo
o desenvolvimento econômico da região. Nesse contexto, tácito ou expresso, por prazo determinado ou indeterminado,
puderam ser observadas mudanças na estrutura econômica, a correspondente à relação de emprego, na qual o empregador
criação de uma nova organização territorial de produção (Silva, é aquele que admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de
2001) e a adoção de técnicas modernas de produção e de gestão serviços e o empregado é a pessoa física que presta serviços ao
do trabalho (Fischer, 2000).
empregador, sob a dependência desse e mediante salário. É,
De acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e portanto, um acordo através do qual um trabalhador, mediante
Sociais da Bahia – SEI (2003), estabelecem-se, conjuntamente, retribuição, presta uma atividade sob a direção de outra pessoa.
no meio rural, uma evolução tecnológica no setor agrícola,
No cenário rural, pode ser observado o caráter temporário
uma reorganização dos processos de produção e de trabalho, e dos empregos, mediante o estabelecimento de contratos
uma interação entre as atividades nos espaços rural e urbano. de safra. Esse contrato é definido pela CLT (Brasil, 2002)
Há um novo padrão agrário, segundo Fajardo (2008), no qual a como aquele que tem sua duração dependente de variações
agricultura se constitui em mais um elo da dinâmica produtiva estacionais das atividades agrárias, normalmente executadas no
geral e o espaço agrícola passa a ser comandado pela lógica da período compreendido entre o preparo do solo para o cultivo e
ampliação das relações capitalistas no campo.
a colheita. Assim, o trabalhador que se obriga à prestação de
Com o advento da modernização agrícola, a região do serviços mediante contrato de safra é chamado de safreiro ou
pólo Juazeiro/Petrolina também vivenciou uma série de safrista.
transformações no âmbito sócio-econômico. Segundo dados
O processo de modernização e industrialização da
da SEI (2000), a população do Município de Juazeiro vem agricultura acarretou transformações nos processos e nas
crescendo a taxas elevadas, sobretudo na sua área rural. As relações de trabalho existentes (Livigard, 2001; SEI, 2003).
novas atividades rurais, intensivas em capital e mão-de-obra, Segundo Livigard (2001), ocorreu uma interferência sobre o
têm representado grande atrativo tanto para a população rural saber tradicional e o processo de trabalho rural, transformando
regional, como para as populações de outras regiões e Estados grande parte dos pequenos produtores em assalariados. Fischer
do Brasil. A disponibilidade de mão-de-obra de boa qualidade, (2000) corrobora esse argumento ao afirmar que, no meio rural
abundante e barata na região, portanto, apresenta-se como brasileiro, o assalariamento, que envolve compromissos entre
uma das vantagens comparativas do pólo Juazeiro/Petrolina empregador e empregado, celebrados mediante contratos, teve
(Guimarães, 2007).
considerável impulso a partir das mudanças econômicas, sociais
As transformações na região foram acompanhadas por e políticas no setor agrícola com a expansão da industrialização
mudanças nas relações de trabalho, com uma tendência ao no campo. Observou-se a adoção, em larga escala, das máquinas
crescimento de relações assalariadas (Fischer, 2000), propiciadas e dos agrotóxicos no campo, o crescimento do assalariamento
pela regularização temporal da produção e pela expansão temporário, o aumento do ritmo e da jornada de trabalho
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e a destruição de pequenas unidades produtivas (Livigard,
2001). De acordo com a SEI (2003), as relações de trabalho
são modificadas, introduzindo-se práticas e conceitos como
terceirização, sub-contratação, administração profissionalizada
das unidades produtivas e otimização de tarefas. Verificam-se,
também, alterações nas relações do agricultor com o meio rural,
no que diz respeito às ocupações e às rendas percebidas.
Inseridos em um contexto de tantas mudanças quando
se consideram as suas histórias e os modelos de exploração
agrícola do nordeste brasileiro, como os trabalhadores dão
significado ao trabalho? O que significa um ‘bom trabalho’ para
este contingente de trabalhadores da agroindústria? Em que
medida a condição de trabalhador temporário ou permanente
altera o conjunto de representações?
Buscar respostas para tais questões pode ser importante
para compreensão das relações e dos vínculos que esses
trabalhadores desenvolvem com as suas organizações
empregadoras, as expectativas que desenvolvem em relação ao
que esperar como retribuições do seu trabalho, assim como as
estratégias que usam para lidar com as dificuldades de todas as
ordens que cercam o trabalho num contexto da agroindústria.
de trabalhadores com nível superior entre os permanentes
(0,4% e 3,8%, respectivamente). Quanto à ocupação, a maior
parte dos trabalhadores está concentrada em atividades de
campo (65,3%). Observa-se que os trabalhadores temporários,
em sua maioria (82,4%) são alocados para essa função. Entre
as ocupações com atividades técnicas e administrativas, há um
predomínio de trabalhadores permanentes (20,9% e 11,3%).
Procedimentos
A partir de uma listagem das principais empresas do pólo
Juazeiro-Petrolina, essas foram contatadas e convidadas a
participar da pesquisa por telefone e/ou mensagem eletrônica.
Assim, o critério para a inclusão das empresas na pesquisa foi
a aceitação do convite feito pelos pesquisadores, não sendo
possível selecionar uma amostra aleatória e estratificada das
organizações. Da mesma forma, não foi possível obter amostras
representativas dos trabalhadores nas empresas participantes,
visto que os gestores não tinham um levantamento preciso
do número de trabalhadores permanentes e temporários
– safristas – e de suas respectivas funções. Para suprir essa
dificuldade, o percentual mínimo de 10% era calculado a
Método
partir de uma estimativa do quadro de funcionários. Após isso,
os entrevistadores se distribuíam pelas organizações em suas
População e amostra
diversas áreas, abordando os trabalhadores em seu local de
O estudo foi realizado em organizações agrícolas de trabalho.
médio ou grande porte, localizadas no polo Juazeiro/Petrolina,
produtoras de uva, manga, coco, pimenta ou cana-de-açúcar. A Instrumento de Coleta de Dados
amostra foi composta por 32 organizações e 950 participantes,
Os dados foram coletados por meio de um questionário
selecionados a partir de um percentual mínimo de 10% do semiestruturado. O entrevistado era convidado a falar sobre
número total de empregados (permanentes ou temporários) aspectos mais gerais do trabalho, quando era questionado
de cada organização, representando todas as atividades sobre o que achava importante para que um trabalho fosse
desenvolvidas: campo, packinghouses– expressão inglesa que considerado bom. Também foram investigadas características
pode ser traduzida como “casas de empacotamento” –, técnicas sociodemográficas e relativas ao trabalho. No presente artigo,
e administrativas.
foi dada atenção especial aos dados relativos à representação
Dentre os participantes da pesquisa, 70% é permanente e do ‘bom trabalho’, assim como aos contratos de trabalho
30% é temporário. Observa-se um predomínio de trabalhadores estabelecidos, com base nos indicadores de duração (curta/
do sexo masculino, tanto entre os permanentes (70,4%), quanto determinada ou longa/indeterminada).
entre os temporários (58,6%). Mais da metade dos participantes
(57,3%) possui um companheiro, sendo casado ou vivendo de Análises dos Dados
forma consensual. Há predominância de trabalhadores jovens
As análises foram iniciadas com a categorização das
(59,9 possuem até 30 anos), com pouca escolaridade (63,5% respostas dos trabalhadores acerca do que consideram um ‘bom
estudaram no máximo até o antigo curso primário completo), trabalho’. Foi utilizado um pacote estatístico para preparação do
e que iniciaram a atividade laboral com até catorze anos de banco de dados e digitação das categorias. Inicialmente, foram
idade (60,3%). A partir da comparação entre trabalhadores realizadas análises descritivas, utilizando frequências e médias,
temporários e permanentes, atenta-se para um maior percentual que serviram de base para classificar por ordem de evocação
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e para distribuir as categorias no núcleo central, no sistema
periférico e nas categorias residuais da amostra como um
todo. Após essa etapa, foram realizadas análises considerando
apenas a amostra de trabalhadores permanentes e, em seguida,
a amostra de trabalhadores temporários, a fim de identificar
possíveis diferenças entre as representações sociais de um
‘bom trabalho’ para trabalhadores com diferentes contratos de
trabalho.
Resultados e discussão
Ao analisar as respostas dos trabalhadores das organizações
agrícolas investigadas acerca do que consideram um ‘bom trabalho’,
foram extraídas 17 grandes categorias, sendo que cinco estão
localizadas no núcleo central da representação, 10 no sistema
periférico, e duas estão entre as categorias residuais (Figura 1).
18
Sistema Periférico
17
Categorias Residuais
16
15
Benefícios
Boa Comunicação
14
13
Gestão de Pessoas
Remuneração
Reconhecimento e
Recompensa
Ordem de Evocação
12
11
Condições de Trabalho
Saúde e Segurança
10
9
8
Boa Empresa
Relacionamento
Características
Interpessoal
Liderança Desejáveis do
Trabalhador
7
6
5
Boa Equipe de Trabalho
4
Relação com o Trabalho
3
Qualidade
2
1
Produtividade
Bom Tratamento
Núcleo Central
Natureza do trabalho
0
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
Ordem de Frequência
Figura 1. Distribuição das categorias que descrevem ‘bom trabalho’ na amostra total
Na Figura 1, o núcleo central que estrutura o ‘bom trabalho’
é integrado por quatro categorias que remetem a uma relação
positiva do trabalhador com diferentes facetas do trabalho:
liderança, colegas de trabalho e atividades realizadas no
trabalho (‘Relacionamento Interpessoal’, ‘Liderança’, ‘Relação
com o Trabalho’ e ‘Bom Tratamento’). Já a quinta categoria
(‘Características Desejáveis do Trabalhador’) toma como foco o
indivíduo, enfatizando características pessoais ou profissionais
que são desejáveis que um trabalhador possua para que um
trabalho seja considerado bom. Tal núcleo central é integrado
por ideias que, a partir de uma fala hipotética e representativa,
poderiam ser assim expressas:
“Um bom trabalho é aquele em que as pessoas trabalham
unidas e com harmonia, onde existe confiança, respeito e
amizade entre os colegas. Além disso, os chefes devem ser
bons e compreensivos com o trabalhador. Eles devem ser
competentes e dar uma boa assistência, ensinando a maneira
certa de trabalhar. O trabalho não pode ser escravidão, que
precise se matar de trabalhar. O trabalhador deve ter liberdade
para trabalhar sem perturbação e as tarefas devem ter uma
carga horária normal, com o número suficiente de trabalhadores.
Para que o trabalho seja bom, o trabalhador deve fazer as tarefas
com atenção e disciplina, ter perseverança e determinação,
cumprindo os deveres e as regras da empresa. O trabalhador
tem que ser bem tratado. O bom trabalho é, também, aquele
que mantém o sustento da pessoa e da sua família”.
Para melhor compreender as ideias apresentadas pelos
participantes, são apresentadas na Figura 2 as cinco categorias
do núcleo central e suas subcategorias, com as respectivas
frequências e com trechos representativos das evocações dos
trabalhadores. Também é possível analisar o sistema periférico
nas Figuras 3 e 4.
No núcleo central, nota-se uma tendência que atravessa
ao menos três categorias. Observa-se que, em ‘Liderança
(competência interpessoal)’, em ‘Relação com o Trabalho
(carga de trabalho)’ e em ‘Bom Tratamento’, estão presentes
ideias ligadas a compreensão, respeito, bondade, dignidade,
consideração, ausência de abuso e de exploração do trabalho
(escravo). É possível que essas expectativas em relação ao ‘bom
trabalho’ constituam-se em oposição ao contexto de trabalho
rural, que combina alta carga com baixo valor atribuído pelos
empregadores. O trabalhador rural, por sua vez, com baixa
escolaridade e com alta vulnerabilidade, está sujeito a situações
de desrespeito e de ameaça ao emprego.É possível que, por
essa razão, sejam também frequentes entre as ‘Características
Desejáveis do Trabalhador’ evocações ligadas à importância de
cumprir normas e regras. A obediência, portanto, passa a compor
a representação social de ‘bom trabalho’ entre trabalhadores
rurais.
Ao analisar o número de evocações dentro das categorias,
observa-se que três possuem altas frequências, porém não
foram lembradas mais prontamente pelos trabalhadores.
‘Remuneração’, ‘Saúde e Segurança’ e ‘Benefícios’, com 311, 218
e 187 evocações respectivamente, ainda que citadas por muitos
trabalhadores, não estavam entre as primeiras ideias citadas.
Observa-se, portanto, que os trabalhadores das organizações
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Figura 2. Núcleo central da amostra geral
Figura 3. Sistema periférico da amostra geral (parte 1)
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Figura 4. Sistema periférico da amostra geral: parte 2.
agrícolas, ao representarem um ‘bom trabalho’, reconhecem
a importância de recursos físicos e materiais, expressa em
categorias como ‘Remuneração’, ‘Saúde e Segurança’, ‘Benefícios’,
‘Gestão de Pessoas’ e ‘Condições de Trabalho’. Entretanto, colocam
em ênfase questões referentes às relações entre as pessoas, como
observado no núcleo central.
Ao considerar que, para estar satisfeito no trabalho, o
trabalhador precisa representá-lo como algo positivo, tais dados
levam à seguinte reflexão: os trabalhadores agrícolas, em sua
maioria com baixa qualificação e pouco poder sobre sua trajetória
de trabalho, expressam como necessidades mais importantes
aquelas classicamente consideradas mais superiores (relações
sociais), em detrimento das ditas mais básicas (ligadas à
sobrevivência).
Aos gestores, portanto, cabe atentar para além das
condições físicas e materiais oferecidas ao trabalhador, como
remuneração, benefícios e condições de trabalho, dando uma
maior ênfase às condições das relações humanas estabelecidas
dentro da organização. Dentro dessa perspectiva, a Psicologia
Organizacional e do Trabalho ganha uma relevância na medida
em que se apresenta como uma importante área de produção
de conhecimento, assim como de formação de profissionais
habilitados e competentes para dar suporte às organizações
no que tange às questões das relações entre os indivíduos e
os diferentes focos do trabalho, a exemplo das equipes e das
atividades de trabalho.
Quando comparado o núcleo central do grupo de
trabalhadores permanentes (Figura 5) com o núcleo central
do grupo de trabalhadores temporários (Figura 6), foram
identificadas em ambos duas categorias também pertencentes
ao núcleo central geral da amostra: ‘Relação com o Trabalho’ e
‘Características Desejáveis do Trabalhador’. Independente do
tipo de vínculo contratual, os trabalhadores das organizações
agrícolas consideram que um ‘bom trabalho’ precisa de uma
relação positiva entre o trabalhador e suas atividades, assim
como o trabalhador precisa ter determinadas características
pessoais e profissionais.
Assim como na amostra geral, a relação positiva entre
trabalhadores e ‘Liderança’ é considerada importante para um
‘bom trabalho’ entre os permanentes. Entre os temporários,
tal importância é atribuída ao ‘Bom Tratamento’ em relação
ao trabalhador. Mais uma vez, é possível colocar em foco a
situação de vulnerabilidade e o baixo valor atribuído, pelos
empregadores, aos trabalhadores rurais, ainda agravado no
caso dos temporários. Em geral, esses trabalhadorespossuem
escolaridade ainda menor, como observado nas características
da amostra, e são convocados em períodos de colheita, com
permanência média de 3 meses na organização. Assim, seguindo
a tendência da amostra geral, os trabalhadores temporários
tendem a valorizar ainda mais as condições de dignidade e
respeito no trabalho.
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18
Sistema Periférico
Categorias Residuais
16
14
13
Relacionamento
Interpessoal
Ordem de Evocação
11
10
9
Reconhecimento e
13
Recompensa
12
Saúde e Segurança
8
Liderança
7
Características
6
Desejáveis do
Boa Equipe de
Trabalho
10
Condições de Trabalho
8
Boa Empresa
1
0
Qualidade
Bom Tratamento
2
Natureza do trabalho
Núcleo Central
Boa Comunicação
Características
Desejáveis do
Trabalhador
3
Produtividade
2
1
Produtividade
Relação com o Trabalho
7
4
Qualidade
3
Reconhecimento e
Recompensa
9
5
Bom Tratamento
Relação com o
Trabalho
4
Relacionamento
Interpessoal
Liderança
6
Trabalhador
5
Gestão de
Pessoas
Remuneração
11
Boa Empresa
Boa Equipe de Trabalho
Saúde e Segurança
14
Condições de Trabalho
Remuneração
12
15
Pessoas
Benefícios
Categorias Residuais
Benefícios
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Boa Comunicação
Gestão de
15
Sistema Periférico
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Ordem de Evocação
17
Natureza do trabalho
Núcleo Central
0
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
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Ordem de Frequência
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
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13
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15
16
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18
Ordem de Frequência
Figura 5. Distribuição das categorias dos trabalhadores permanentes
Figura 6. Distribuição das categorias dos trabalhadores temporários
Uma nova categoria está incluída no núcleo central
referente a cada grupo de trabalhadores. Entre os trabalhadores
permanentes há uma maior valorização da ‘Saúde e Segurança’
no trabalho, com ênfase na prevenção de acidentes e na exposição
a fatores de risco à saúde, como a manipulação de agrotóxicos
e o constante trabalho ao sol. Tais trabalhadores também
apontam para a importância das empresas disponibilizarem
equipamentos de proteção individual (fardamento, bota, luva,
óculos, máscara).
Já o núcleo central referente ao grupo de trabalhadores
temporários apresenta a categoria ‘Condições de Trabalho’. Tal
categoria remete à adequação da infra-estrutura física e dos
recursos materiais disponibilizados pela empresa, a exemplo de
ferramentas de trabalho.
Ao analisar o número de evocações dentro de cada
categoria, foi possível observar que entre os permanentes três
dessas possuem altas frequências (‘Remuneração’ com 216;
‘Relacionamento Interpessoal’ com 169; e ‘Benefícios’ com 137),
e entre os temporáriosmais três (‘Remuneração’ com 95; ‘Saúde
e Segurança’ com 60; e ‘Liderança’ com 53). No entanto, tais
categorias não compõem os respectivos núcleos centrais, pois
não foram evocadas mais prontamente pelos trabalhadores que
representam o grupo.
Ainda que com peculiaridades entre os núcleos centrais dos
trabalhadores permanentes e temporários, a representação de
‘bom trabalho’ entre tais grupos de trabalhadores não apresenta
grandes diferenças. O maior tempo de serviço na organização
onde foi realizada a pesquisa talvez implique em um maior
reconhecimento por parte dos permanentes dos riscos e agravos
à saúde do trabalhador ao considerar o que é um ‘bom trabalho’.
Da mesma forma, os temporários, com menor contato com
a organização pesquisada, podem ter apontado as condições
de trabalho, como a infra-estrutura e materiais de trabalho,
por serem percebidas mais prontamente pelos trabalhadores.
Além disso, é possível que os trabalhadores temporários, de
fato, tenham condições de trabalho ainda mais desfavoráveis
que os trabalhadores permanentes. Essas hipóteses explicativas
tem como base a ideia de que, ao representar o ‘bom trabalho’,
os participantes da pesquisa se reportaram também às suas
experiências vivenciadas no presente.
Considerações Finais
É possível afirmar que as representações sociais do ‘bom
trabalho’ para os trabalhadores agrícolas do polo Juazeiro/
Petrolina refletem sua história de vida, sua singularidade e
referências culturais. Ao mesmo tempo, retratam as expressões
e interpretações de um grupo formado por trabalhadores de
baixa renda, baixa escolaridade, cuja maioria iniciou a atividade
laboral, em geral ligada à agricultura, ainda na adolescência,
como forma de ajudar a família. Nesse contexto, é possível que
o trabalho seja extremamente valorizado, por ser não apenas
um instrumento de sobrevivência, mas também símbolo de
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autonomia, dignidade e perseverança, dentre outros pontos
positivos.
Ao se falar de ‘bom trabalho’, duas categorias proeminentes
na amostra geral e nos dois subgrupos analisados (permanentes
e temporários) refletem tal realidade: ‘Relação com o Trabalho’
e ‘Características Desejáveis do Trabalhador’. Assim, o trabalho
deve ser interessante, para que gere identificação e satisfação
do trabalhador; equilibrado, para que não cause sobrecarga;
suficiente para o sustento próprio e da família; além de
proporcionar uma maior autonomia e liberdade de decisão.
Em contrapartida, o trabalhador deve apresentar características
pessoais e profissionais, a exemplo de obediência, competência,
disciplina, atenção, motivação, dedicação, determinação, bom
comportamento, dinamismo, honestidade e calma, entre outros
aspectos que legitimariam o direito e o merecimento de um
‘bom trabalho’.
Além dessas categorias, outras três (‘Liderança’, ‘Relacio­
namento Interpessoal’ e ‘Bom Tratamento’) caracterizam como
central para os trabalhadores a dimensão relacional. Assim, a
consistência e a permanência de sua representação social de
‘bom trabalho’ está pautada na forma como interagem com
os colegas e supervisores, no tipo de tratamento recebido e no
modo como se relacionam com o trabalho realizado. São esses
aspectos que constituem o sistema central, base consensual que
estrutura as cognições dos sujeitos, refletindo dados históricos,
simbólicos e sociais aos quais são submetidos. Considerando a
estabilidade conferida ao núcleo central, pode-se dizer que os
comportamentos dos trabalhadores estarão, em parte, sendo
guiados pela forma como avaliam seu trabalho segundo o
parâmetro de sua representação de ‘bom trabalho’. Ainda que
esteja presente também uma expectativa de troca, expressa
por outras categorias de alta frequência, como ‘Remuneração’,
‘Benefícios’ e ‘Gestão de Pessoas’, é possível que a influência
de diferentes contextos e contingências resulte em novas
adaptações, que serão facilitadas pelo caráter de flexibilidade do
sistema periférico em que se encontram.
Esses dois grandes polos (relacional e material) guiam a
avaliação do trabalho feita pelos trabalhadores agrícolas, que
colocam as necessidades mais básicas, ligadas à sobrevivência,
em um patamar inferior às necessidades ligadas à realização
pessoal e profissional, expressas pelas relações estabelecidas
no meio de trabalho. O presente estudo fornece indícios de que
mesmo trabalhadores de menor renda e baixa escolaridade
estarão mais satisfeitos e motivados com o trabalho quando
bons relacionamentos, espírito de equipe, respeito e confiança
entre colegas e líderes estiverem sendo estimulados.
Em um contexto regional caracterizado historicamente
pelos menores índices de desenvolvimento econômico e social
do país, vale destacar que a presença da agroindústria da
fruticultura irrigada, com suas médias e grandes empresas, com
seus avanços tecnológicos e com a formalização do emprego,
mesmo quando temporário, constitui um quadro de inovação
no contexto regional que suscita uma avaliação positiva por
parte dos trabalhadores. Os resultados aqui apresentados são
congruentes com os elevados níveis de comprometimento
e satisfação revelados pelos trabalhadores participantes da
pesquisa, relação que deve ser explorada em estudos posteriores.
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Recebido em fevereiro/2011
Revisado em fevereiro/2012
Aceito em março/2012
22
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Insatisfação com a imagem corporal e fatores associados em
adolescentes escolares
Body image dissatisfaction and associated factors in scholastic adolescentes
Paulo Oscar de Oliveira Langonia*, Denise Rangel Ganzo de Castro Aertsb,
Gehysa Guimarães Alvesc, Sheila Gonçalves Câmarad
Resumo: Estudo transversal com o objetivo de investigar a prevalência de insatisfação com a imagem
corporal e fatores associados em escolares de Gravataí, RS. Em amostra representativa de 1.170 alunos de
7º série, o desfecho foi investigado com o body shape questionnaire. Verificou-se 23,6% de insatisfação
corporal. A regressão de Cox bivariada mostrou associação significativa entre a insatisfação com a imagem
corporal e sexo feminino (RP:4,61 IC95%:3,42–6,22); sobrepeso/obesidade (RP:5,80 IC95%:3,39-9,92); uso
na vida de tabaco (RP:1,50 IC95%:1,19-1,90); sentimento de discriminação (RP:2,1 IC95%:1,71-2,57), de
solidão (RP:2,42 IC95%:1,98-2,95) e tristeza (RP:1,97 IC95%:1,61-2,43); dificuldade para dormir (RP:1,74
IC95%:1,40-2,16); ideação suicida (RP:2,23 IC95%:1,78-2,78) e planejamento suicida (RP:1,80 IC95%:1,342,43). Recomenda-se que educadores, profissionais de saúde e familiares sejam esclarecidos sobre a
importância de reforçar a autoestima dos jovens, estimulando que tenham maior satisfação com a sua
imagem corporal e melhor qualidade de vida.
Palavras-chave: Imagem corporal; Adolescente; Escolar; Maturidade sexual
Abstract: Cross-sectional study aimed at investigating the prevalence of poor body image satisfaction and
its associated factors among students from Gravataí, state of Rio Grande do Sul, Brazil. In a representative
sample including 1,170 students of the 7th grade, the outcome was investigated using the body shape
questionnaire. We found 23.6% of poor body image satisfaction. Bivariate Cox regression showed a
significant association between poor body image satisfaction and female gender (PR:4.61 95%CI:3.426.22); overweight/obesity (PR:5.80 95%CI:3.39-9.92); lifetime use of tobacco (PR:1.50 95%CI: 1.1-1.90);
feelings of prejudice (PR:2.1 95%CI:1.71-2.57), loneliness (PR:2.42 95%CI: 1.98-2.95) and sadness (PR:1.97
95%CI:1.61-2.43); sleep difficulty (PR:1.74 95%CI:1.40-2.16); suicidal ideation (PR:2.23 95%CI:1.78-2.78), and
suicide planning (PR:1.80 95%CI: 1.34-2.43). It is recommended that teachers, health professionals, and
relatives be informed about the importance of reinforcing young people’s self-esteem, stimulating them
to achieve higher body image satisfaction and better quality of life.
Keywords: Body image; Adolescent; Student; Sexual maturity
a Mestre em Saúde Coletiva; PPG em Saúde Coletiva da Universidade Luterana do Brasil – RS – Grupo Hospitalar Conceição/GHC –
Brasil. * E-mail: [email protected]
b Profa do PPG em Saúde Coletiva e curso de medicina da Universidade Luterana do Brasil – RS.
c Profa do PPG em Saúde Coletiva e curso de enfermagem da Universidade Luterana do Brasil – RS
d Profa do PPG em Saúde Coletiva e curso de psicologia da Universidade Luterana do Brasil – RS
Fonte de financiamento: P.O.O. Langoni teve apoio do Grupo Hospitalar Conceição/GHC – Brasil.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
23
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30
Na sociedade atual, principalmente a ocidental, há
uma preocupação excessiva em cultuar o belo, o formoso, o
musculoso ou um corpo magro (Stenzel, 2006). Com frequência,
essas formas são associadas pela mídia ao sucesso, tanto social
como sexual. Diariamente, os meios de comunicação lançam
mensagens, nas artes e no esporte, explicitando a falta de lugar
na sociedade para os indivíduos que não se enquadram a esses
padrões estéticos (Conti, Bertolin & Peres, 2008). Nesse sentido,
o adolescente, que se encontra em fase de mudanças biológicas
e emocionais, está extremamente vulnerável às pressões da
sociedade no que diz respeito ao aspecto de seu corpo (McCabe
& Ricciardelli, 2003).
A imagem corporal é formada pelo indivíduo a partir da
percepção que tem sobre seu próprio corpo, considerando suas
experiências e sentimentos. É influenciada por fatores históricos,
culturais, sociais, individuais e biológicos que se modificam ao
longo do tempo (Cash, 2004).
As questões socioculturais afetam diferentemente meninos
e meninas, visto que as meninas são estimuladas a praticar
exercícios e a fazerem dietas para perder peso, enquanto os
meninos o fazem para ganhar musculatura. Essas influências
contribuem para o desenvolvimento de distintos padrões
estéticos e percepções em relação ao próprio corpo (McCabe &
Ricciardelli, 2003; Conti, Gambardella & Frutoso, 2005).
Em estudo brasileiro desenvolvido com adolescentes,
Conti et al. (2005) verificaram associação significativa entre
estado nutricional e imagem corporal, concluindo que estado
nutricional, maturação sexual e sexo interferem na satisfação
corporal. Berg, Simonsson e Ringqvist (2005) identificaram,
em escolares suecos de 15 anos do sexo masculino, que os
obesos manifestaram mais sintomas psicossomáticos, ideação
e tentativa suicida, consumo de drogas ilícitas e insatisfação
com sua aparência, além de possuírem menos amigos quando
comparados aos com sobrepeso ou eutróficos. Semelhante a esse
resultado, em estudo com escolares de Gravataí/RS, os autores
verificaram associação entre sentimento de discriminação e
preocupação com a imagem corporal (Bittencourt et al., 2009).
Muitos fatores têm sido descritos como associados à
percepção da imagem corporal. Em função disso, o presente
estudo foi desenvolvido com o objetivo de investigar a
prevalência de insatisfação com a imagem corporal e sua
associação com fatores demográficos, psicossociais, estilo de
vida, estado nutricional e maturidade sexual em escolares de
Gravataí-RS.
Método
Foi realizado um estudo transversal, tendo como população
alvo 2.282 escolares matriculados, no mês de março de
2005, na sétima série das escolas públicas municipais de
ensino fundamental. Para o cálculo do tamanho da amostra,
considerou-se uma frequência de 50% para insatisfação
com a imagem corporal, um erro máximo de ± 3% e nível
de significância de 0,05, estimando-se a necessidade de 728
estudantes. Aplicando-se um efeito de delineamento de 1,5,
essa passou para 1.092 alunos, sendo acrescida de 20% para
suprir possíveis perdas, totalizando 1.312 escolares. Como esses
representavam cerca de metade da população alvo, decidiu-se
sortear metade mais uma das turmas de sétima série existentes
em cada uma das 15 regiões existentes. Ao final da seleção,
obteve-se uma amostra com 1.366 alunos. As perdas existentes
foram de 14,3%, tendo sido avaliados 1.170 estudantes.
A coleta de dados foi realizada em sala de aula, utilizandose quatro questionários e duas fichas coletivas de registro: ficha
antropométrica e ficha de avaliação da maturidade sexual de Tanner.
As questões relacionadas à imagem corporal foram coletadas
com auxílio do “body shape questionnaire” – BSQ (Cooper,
Taylor, Cooper & Fairburn, 1987), validado para adolescentes por
Conti, Cordás e Latorre (2009), com bons resultados em termos
de validade e confiabilidade (alfa=0,96). Este questionário é
composto por 34 perguntas, autoaplicáveis, sendo utilizado para
avaliar a preocupação com a imagem corporal, ganho de peso,
baixa estima relacionada à aparência física, desejo da perda de
peso e insatisfação com o corpo. Segundo os autores, é possível
classificar os sujeitos em quatro categorias: 1) não preocupados
com a imagem corporal (<80 pontos); 2) levemente preocupados
(81 a 110 pontos); 3) moderadamente preocupados (111 a
140 pontos); e 4) extremamente preocupados (>141 pontos).
Para fins do estudo de associação com os fatores em estudo,
o desfecho foi recategorizado em satisfeitos (< 81 pontos) e
insatisfeitos (≥ 81 pontos).
Para avaliar a saúde do escolar (uso de álcool, tabaco e
drogas ilícitas, início da vida sexual e fatores psicossociais;
número de amigos; pais/responsáveis entendem seus
problemas; pais/responsáveis sabiam onde estavam; falta às
aulas sem permissão; sofrimento de agressão; participação
em brigas; tratamento recebido dos colegas; sentimento de
discriminação, solidão e tristeza; dificuldade para dormir,
ideação e planejamento suicida) utilizou-se o instrumento
Global School-Based Student Health Survey-GSHS, elaborado
pela Organização Mundial de Saúde (WHO, 2010).
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A inserção econômica foi avaliada e classificada segundo
a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa-ABEP (ABEP,
2010). A atividade física, utilizando os critérios de frequência e
duração, foi avaliada através do International Physical Activity
Questionnaire- IPAQ (2005). O ponto de corte utilizado para
categorizar os fisicamente ativos foi um tempo de atividade
física igual ou superior a 300 minutos semanais (Hallal, Bertoldi,
Gonçalves & Victora, 2006).
Utilizou-se uma ficha de avaliação antropométrica, contendo
dados referentes ao peso, altura, cor da pele autorreferida e data
de nascimento. Todos os escolares foram pesados em balanças
digitais Secas e medidos com fita antropométrica aferida por
empresa credenciada pelo Instituto Nacional de Metrologia,
Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO). O peso e a
altura foram obtidos com o uso de calcinha ou cueca e camiseta
(uso exclusivo para o estudo, sendo descontado 200g) em
ambiente privado. As técnicas utilizadas são as recomendadas
pela Organização Mundial da Saúde para a realização da
antropometria (WHO, 1995).
Na avaliação do estado nutricional, foi utilizado o índice
de massa corporal (IMC), dividindo-se o peso (em quilos) pela
altura (em metro) elevada ao quadrado. Inicialmente, foi usada
a classificação de Must, Dallal e Dietz (1991), que avalia o IMC
segundo faixa etária e gênero, classificando-o em percentis de
cinco a 95. No entanto, a classificação de Cole, Bellizzi, Flegal e
Dietz (2000) é considerada mais fidedigna para a identificação
de sobrepeso e obesidade. Assim, os escolares acima do
percentil 50 foram reavaliados segundo esta classificação. O
estado nutricional foi categorizado em desnutrição/risco para
baixo peso (≤ P14), eutróficos (≥ P15 a ≤ P84) e sobrepeso/
obesidade (≥P85).
Para a coleta dos dados referente à cor da pele, foi
perguntado ao escolar qual era sua cor, sendo registradas as
seguintes categorias: branca, parda, preta, amarela ou indígena.
Após, essas foram agrupadas em brancos e não brancos.
Os jovens preencheram, com privacidade, a ficha de
autoavaliação da maturidade sexual de Tanner (1962), que
consiste na avaliação das características de seus órgãos genitais na
identificação de figuras semelhantes na ficha. A classificação de
Tanner categoriza, segundo o sexo, a maturidade sexual em cinco
estágios. Para fins deste estudo, optou-se por trabalhar com três
categorias: fase inicial ou pré-puberal (estágio um e dois); fase de
aceleração (estágio três); e fase de desaceleração da maturidade
sexual (estágios quatro e cinco). Para o sexo masculino, a genitália
e os pêlos pubianos são avaliados e, para o sexo feminino, os pêlos
pubianos e o desenvolvimento das mamas.
Os fatores em estudo foram divididos em cinco grupos:
sociodemográficos, psicossociais, estilo de vida, estado
nutricional e maturidade sexual.
As associações de interesse foram testadas com o auxílio
do software STATA 6.0, utilizando a Regressão de Cox bruta
modificada para estudos transversais e controlada pelo
sexo, sendo que o desfecho foi categorizado em satisfeitos
ou insatisfeitos com a imagem corporal. Cinco casos foram
excluídos, pois não haviam respondido a todos os itens do BSQ,
ficando a amostra composta por 1.165 escolares.
Realizou-se reuniões com a direção, professores e
funcionários das escolas com o objetivo de esclarecer a
relevância deste estudo para a comunidade escolar e solicitar
a sua colaboração, convidando também os pais e responsáveis
para participar destas reuniões e, ao final, assinar o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Este trabalho foi aprovado
pelo Comitê de Ética da instituição de afiliação dos autores, com
o protocolo de número 375H/2004.
Resultados
Em relação à imagem corporal, encontrou-se 76,4% jovens
não preocupados, 14,5% levemente, 6,7% moderadamente
e 2,4% gravemente preocupados com sua imagem corporal.
Quanto às características dos escolares investigados, a média
de idade foi de 14 anos (DP=1,13), variando de 12 a 18 anos;
52,5% eram meninas; 52,5% autorreferiam-se como brancos; e
19,2% eram da classe D+E.
No que tange ao estado nutricional, 13,4% encontravamse em risco nutricional/desnutrição, 66,0% eram eutróficos e
20,6% apresentavam sobrepeso/obesidade. Verificou-se que,
respectivamente, 47,9% e 41,5% dos alunos estavam na fase
de aceleração e desaceleração da maturação sexual, e a minoria
encontrava-se na fase pré-puberal. Em relação ao estilo de vida,
79,6% ainda não haviam iniciado vida sexual ativa; 16,7%
fizeram uso na vida de tabaco, 59,6% de álcool, 2,3% de outras
drogas ilícitas; e 56% eram insuficientemente ativos (tabela 1).
A prevalência de insatisfação com a imagem foi 4,6 vezes
maior no sexo feminino do que no masculino, porém não foram
encontradas diferenças significativas em relação à cor da pele. Os
jovens de mais baixa inserção econômica (D+E) apresentaram
47% mais insatisfação dos que os da categoria B. Entretanto,
quando essa associação foi controlada pelo sexo, perdeu
magnitude e significância estatística (tabela 1).
Foram verificadas diferenças na percepção da
imagem corporal segundo o estado nutricional. Os jovens
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eutróficos e os com sobrepeso/obesidade apresentaram,
respectivamente, 2,0 e 5,2 vezes mais insatisfação do que
os em risco nutricional/desnutridos. Porém, mesmo entre
os desnutridos/risco nutricional encontrou-se 8,3% de
insatisfação. Quando investigada a maturação sexual, a mais
alta prevalência do desfecho (26,8%) foi encontrada entre
os jovens no estágio de aceleração, ainda que não tenham
sido evidenciadas diferenças significativas (tabela 1).
Quanto aos fatores relacionados ao estilo de vida,
24,8% dos que não haviam iniciado sua vida sexual estavam
insatisfeitos com a sua imagem versus 18,9% entre os que já
haviam iniciado. Apesar disso, não se encontrou significância
estatística, semelhante ao ocorrido em relação ao uso de álcool e
drogas ilícitas. Diferentemente, na análise bruta, o uso de tabaco
na vida e a atividade física associaram-se com a percepção da
imagem corporal. Os escolares que fizeram o uso na vida de
tabaco manifestaram 50,0% mais insatisfação do que os que
nunca experimentaram e os que eram insuficientemente ativos
se apresentaram 39% mais insatisfeitos do que os ativos. Ao
controlar pelo sexo, a atividade física perdeu a magnitude de sua
associação, porém o uso de tabaco manteve sua significância
(tabela 1).
Nas análises brutas, dos fatores psicossociais apresentados na
tabela 2, não se associaram ao desfecho: número de amigos, pais/
responsáveis entenderam seus problemas, pais/responsáveis sabiam
onde estava, falta às aulas sem permissão dos pais/responsáveis,
agressão e participação em brigas nos últimos 30 dias. Entretanto,
quando foi introduzida a variável sexo no modelo, os jovens que
faltaram às aulas sem permissão dos pais/responsáveis, os que
foram agredidos e os que participarem de brigas nos últimos 30 dias
apresentaram 25%, 36% e 42% mais insatisfação, respectivamente,
do que seus pares de referência.
Ainda que na análise bruta tenha-se encontrado associação
entre não se sentir bem tratados pelos colegas nos últimos 30 dias e o
desfecho, quando houve o controle pelo sexo, verificou-se a perda da
significância dessa associação.
Tabela 1
Resultado das análises, brutas e controladas, entre fatores sociodemográficos, estilo de vida e insatisfação com a imagem corporal, em escolares da rede
municipal, Gravataí, RS, 2005.
Variáveis
Total
Insatisfação
Insatisfação controlada pelo sexo
N
%
n(%)
RP
IC 95%
p
RP
IC 95%
p
Sexo
Masculino
553 47,5
45(8,1)
1,00 Feminino
612 52,5
230(37,6) 4,61 (3,42-6,22) 0,000
Cor da pele
Brancos
611 52,5
140(22,9) 1,00 1,00
Não brancos
554 47,5
135(24,4) 1,06 (0,86-1,30) 0,559
1,10
(0,91-1,34)
0,310
Classificação econômica
B
256 22,0
51(19,9) 1,00 1,00
C
685 58,8
158(23,1) 1,15 (0,87-1,53) 0,307
1,10
(0,84-1,43)
0,468
D+E
224 19,2
66(29,5) 1,47 (1,07-2,03) 0,016
1,31
(0,97-1,76)
0,072
Estado nutricional
Risco nutricional e
desnutrido
156 13,4
13(8,3)
1,00 1,00
Eutrófico
769 66,0
146(19,0) 2,27 (1,32-3,91) 0,003
1,98
(1,16-3,37)
0,012
Sobrepeso e obesos
240 20,6
116(48,3) 5,80 (3,39-9,92) 0,000
5,16
(3,03-8,76)
0,000
Maturação Sexual
Estágio Pré-puberal
124 10,6
24(19,4) 1,00 1,00
Estágio de Aceleração
560 47,9
150(26,8) 1,38 (0,94-2,03) 0,098
1,27
(0,88-1,84)
0,187
Estágio de Desaceleração
486 41,5
106(21,8) 1,12 (075-1,67) 0,555
1,30
(0,90-1,90)
0,156
Inicio da vida sexual
Sim
238 20,4
45(18,9) 1,00 1,00
Não
927 79,6
230(24,8) 1,31 (0,98-1,74) 0,063
0,90
(0,69-1,17)
0,453
Uso na vida de tabaco
Sim
195 16,7
64(32,8) 1,50 (1,19-1,90) 0,001
1,41
(1,13-1,75)
0,002
Não
970 83,3
211(21,8) 1,00 1,00
Uso na vida de álcool
Sim
694 59,6
168(24,2) 1,06 (0,86-1,31) 0,558
1,10
(0,90-1,34)
0,343
Não
471 40,4
107(22,7) 1,00 1,00
Uso na vida de drogas
Sim
27
2,3
6(22,2)
0,94 (0,46-1,91) 0,865
0,94
(0,50-1,77)
0,868
Não
1138 97,7
269(23,6) 1,00 1,00
Atividade Física
Suficientemente ativos
512 44,0
99(19,3) 1,00 1,00
Insuficientemente ativos
653 56,0
176(27,0) 1,39 (1,12-1,73) 0,003
1,02
(0,82-1,25)
0,846
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Os adolescentes que se sentiram discriminados nos últimos 30 dias;
e os que referiram solidão, tristeza, dificuldade para dormir, ideação e
planejamento suicida nos últimos 12 meses, apresentaram uma prevalência
significativamente mais alta de insatisfação com sua imagem (tabela 2).
Tabela 2
Resultado das análises, brutas e controladas, entre fatores psicossociais e insatisfação com a imagem corporal, em escolares da rede municipal, Gravataí, RS, 2005.
Variáveis
Número de amigos
Nenhum ou 1
2 ou mais
Pais /responsáveis entenderam seus
problemas nos últimos 30 dias
Sim
Não
Pais/responsáveis sabiam onde estava nos
últimos 30 dias
Sim
Não
Falta às aulas nos últimos 30 dias sem
permissão pais/ responsáveis
Sim
Não
Agressão nos últimos 30 dias
Sim
Não
Participação em brigas nos últimos 30 dias
Sim
Não
Tratado bem pelos colegas da escola nos
últimos 30 dias
Sim
Não
Sentimento de discriminação nos últimos 30
dias
Sim
Não
Sentimento solidão últimos 12 meses
Sim
Não
Sentimento tristeza últimos 12 meses
Sim
Não
Dificuldade dormir últimos 12 meses
Sim
Não
Ideação suicida nos últimos 12 meses
Sim
Não
Planejamento do suicidio
Sim
Não
Total
n
%
Insatisfação
n (%)
RP
IC 95%
p
Insatisfação controlada pelo sexo
RP
IC 95%
p
56
1109
4,8
95,2
16 (28,6)
259 (23,4)
1,22
1,00
(0,79-1,87)
-
0,356
-
1,20
1,00
(0,78-1,84)
-
0,387
-
906
259
77,8
22,2
217 (23,9)
58 (22,4)
1,00
0,93
(0,72-1,20)
0,605
1,00
1,06
(0,83-1,34)
0,608
958
207
82,2
17,8
223 (23,3)
52 (25,1)
1,00
1,07
(0,83-1,40)
0,569
1,00
1,25
(0,99-1,59)
0,059
236
929
20,3
79,7
63 (26,7)
212 (22,8)
1,16
1,00
(0,91-1,49)
-
0,205
-
1,25 (1,01-1,56)
1,00 -
0,046
-
103
1062
8,8
91,2
28 (27,2)
247 (23,3)
1,16
1,00
(0,83-1,63)
-
0,361
-
1,36 (1,01-1,84)
1,00 -
0,040
-
221
944
19,0
81,0
57 (25,8)
218 (23,1)
1,11
1,00
(0,86-1,43)
-
0,390
-
1,42 (1,13-1,79)
1,00 -
0,002
-
590
575
50,6
49,4
155 (26,3)
120 (20,9)
1,00
0,79
(0,64-0,97)
0,031
1,00 0,96 (0,79-1,17)
0,747
246
919
21,1
78,9
99 (40,2)
176 (19,2)
2,10
1,00
(1,71-2,57)
-
0,000
-
1,68 (1,38-2,05)
1,00 -
0,000
-
328
837
28,1
71,9
134 (40,9)
141 (16,9)
2,42
1,00
(1,98-2,95)
-
0,000
-
1,83 (1,50-2,23) 0,000
1,00 -
239
926
20,5
79,5
93 (38,9)
182 (19,7)
1,97
1,00
(1,61-2,43)
-
0,000
-
1,68 (1,39-2,03)
1,00 -
0,000
-
222
943
19,1
80,9
80 (36,0)
195 (20,7)
1,74
1,00
(1,40-2,16)
-
0,000
-
1,41 (1,15-1,73)
1,00 -
0,001
-
127
1038
10,9
89,1
59 (46,5)
216 (20,8)
2,23
1,00
(1,78-2,78)
-
0,000
-
1,80 (1,48-2,20)
1,00 -
0,000
-
74
1091
6,3
93,7
30 (40,5)
245 (22,5)
1,80
1,00
(1,34-2,43)
-
0,000
-
1,54 (1,18-2,03)
1,00 -
0,001
-
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30
A análise do comportamento da percepção da imagem percentuais elevam-se para 13,2% e 32,3%. Por outro lado,
corporal, segundo estado nutricional e sexo, mostrou que 73,7% dos meninos com sobrepeso/obesidade estão satisfeitos
4,5% dos meninos em risco nutricional e 3,1% dos eutróficos com sua imagem corporal contra 31,7% das meninas.
superestimam seu peso, enquanto que, entre as meninas, esses
Tabela 3
Distribuição da percepção da imagem corporal segundo sexo e estado nutricional em escolares da rede municipal de Gravataí, Gravataí, RS, 2005.
Variáveis
Feminino
Masculino
Total
Insatisfação
Satisfação
Insatisfação
Satisfação
Insatisfação
Satisfação
n (%)
n (%)
n (%)
n (%)
n (%)
n (%)
Estado nutricional
Risco nutricional e desnutrido
9 (13,2%)
59 (86,8%)
4 (4,5%)
84 (95,5%)
13 (4,7%)
143 (16,1%)
Eutrófico
135 (32,3%)
283 (67,7%) 11 (3,1%)
340 (96,9%)
146 (53,1%)
623 (70,0%)
Sobrepeso e obesos
86 (68,3%)
40 (31,7%)
30 (26,3%)
84 (73,7%)
116 (42,2%)
124 (13,9%)
Discussão
As perdas ocorridas neste estudo não comprometeram
a representatividade da amostra, pois se distribuíram
igualmente entre os sexos e regiões do município. Em função
de características semelhantes, acredita-se que os resultados
possam ser extrapolados para adolescentes que estudam na
rede pública em municípios com o mesmo perfil populacional.
Identificou-se que 23,6% dos escolares apresentaram
insatisfação com a imagem corporal. Esse sentimento talvez
possa ser entendido como um fenômeno frequente na
adolescência, em função do estranhamento do jovem com seu
próprio corpo. Entre os jovens estudados, apenas 9,1% tinham
de moderada a grave preocupação.
A insatisfação com a imagem corporal atinge ambos os
sexos, predominando nas mulheres (Conti et al., 2005), mas
a preocupação com o corpo também está presente entre os
homens (Kakeshita & Almeida, 2006). Pinheiro e Giugliani
(2006) descrevem que 43% dos meninos de 8 a 11 anos, em
Porto Alegre, desejavam um corpo magro. Em Gravataí, a
insatisfação foi quase cinco vezes maior nas meninas do que
nos meninos. Campagna e Souza (2006), em estudo realizado
com meninas de 12 anos, descreveram que essas, por não
terem apoio social para compreender as mudanças no seu
desenvolvimento, são mais suscetíveis aos modelos de beleza e
de extrema valorização da aparência física veiculada pelos meios
de comunicação.
No presente estudo, não houve associação entre o desfecho
e a cor da pele. Levine e Smolak (2004) apontam que alguns
estudos encontraram diferenças na percepção corporal entre
as várias etnias, mas acreditam que a insatisfação esteja mais
relacionada às condições socioeconômicas e que as de raça
branca são as mais insatisfeitas em função da cultura dominante
do corpo magro.
Constatou-se que os escolares com inserção econômica mais
baixa (classe D+E) estavam mais insatisfeitos com sua imagem,
semelhante ao encontrado entre escolares finlandeses (Mikkilã,
Lahti-Koski, Pietinen, Virtanen & Rimpelã, 2003). Porém, ao ser
controlada pelo sexo, houve perda da significância estatística
dessa associação. Em estudo realizado com adolescentes de
12 a 19 anos, em seis cidades da América Latina, os autores
identificaram que os jovens de classes econômicas mais altas
eram os que mais desejavam a perda de peso, porém, semelhante
à Gravataí, essa diferença não foi significativa (McArthur, Holbert
& Peña, 2005).
Em relação ao estado nutricional, verificou-se que os com
sobrepeso/obesidade são mais insatisfeitos. Porém, encontrouse também um percentual importante de meninas eutróficas
e com risco nutricional/desnutrição que referiram insatisfação
com sua imagem, sendo essa mais expressiva do que entre
os meninos. Resultados semelhantes foram encontrados por
McArthur, Holbert e Peña (2005). É possível que essa variação
seja decorrente de peculiaridades socioculturais, influenciando
em maior ou menor grau um padrão de beleza relacionado ao
corpo magro (Ramalho et al., 2007). Entretanto, a seriedade
dessa situação é que a insatisfação de indivíduos eutróficos
contribui para o surgimento de distúrbios alimentares entre
jovens saudáveis do ponto de vista nutricional.
No presente estudo, também se identificou que, dos
adolescentes com sobrepeso/obesidade, 68,3% das meninas
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30
estavam insatisfeitas e 73,7% dos meninos satisfeitos. Tem
sido descrito que as meninas tendem a superestimar seu peso,
enquanto os meninos subestimam-no (Kakeshita & Almeida,
2006). Ou seja, para os meninos, é possível que o sobrepeso e
a obesidade possam ser considerados como um sinal de força
(Conti et al., 2005). Para esses autores, as meninas pós-púberes
se mostram mais suscetíveis à insatisfação quando comparadas
com as pré-puberes. Porém, entre os meninos, não encontraram
diferenças em relação à passagem do corpo infantil para o adulto,
sugerindo que esses apresentam maior satisfação com seu
crescimento. No presente estudo, não se identificou diferenças
significativas da percepção corporal em relação à maturidade
sexual.
Das variáveis indicadoras do estilo de vida, não se
encontrou associação do desfecho com o início da vida sexual
e o uso na vida de álcool ou drogas. É possível que o pequeno
número de escolares que declararam experiência com drogas
tenha contribuído para este resultado. Isso pode ter ocorrido
por omissão de informação ou, também, pelo estudo ter sido
realizado em ambiente escolar, onde a prevalência do uso de
drogas é inferior à população em geral (Vieira, Aerts, Freddo,
Bittencourt & Monteiro, 2008). Em relação ao álcool, mesmo
que a frequência de uso na vida tenha sido alta, não se encontrou
associação. Pesquisa realizada com escolares do sexo feminino na
Nova Escócia, Canadá, não encontrou associação de insatisfação
com a imagem corporal, com o uso de álcool, tabaco e maconha
(Cook, MacPherson & Langille, 2007). Diferentemente, entre
escolares do sexo masculino na Suécia (Berg et al., 2005), os
obesos consumiam mais drogas ilícitas e eram mais insatisfeitos.
Em Gravataí, os adolescentes que fizeram uso na vida de
tabaco demonstraram estar mais insatisfeitos com sua imagem
corporal, podendo esse consumo de tabaco estar relacionado ao
desejo de perder peso. Fernandes (2007), em estudo realizado
com escolares de Belo Horizonte, identificou que os tabagistas
tinham cerca de duas vezes mais chances de querer perder peso
do que os não fumantes.
Em relação aos fatores psicossociais estudados, não se
identificou associação entre o desfecho e número de amigos dos
jovens, sentimento de serem entendidos pelos pais/responsáveis
e desses saberem onde estavam em seu tempo livre. Na análise
controlada pelo sexo, situações como os jovens terem faltado
às aulas sem consentimento dos pais/responsáveis, terem sido
agredidos e participado de brigas nos últimos trinta dias se
associaram à insatisfação com a imagem.
Esses resultados sugerem que as meninas insatisfeitas
são as que mais faltam às aulas, envolvem-se em brigas com
os colegas e sendo agredidas. Entre os meninos, não foram
identificadas diferenças significativas nos níveis de satisfação
corporal em relação a essas três variáveis. É possível que a falta
às aulas e o envolvimento nessas situações estejam relacionados
com a baixa autoestima (Pinheiro & Giugliani, 2006; Tiggemann,
2005) e o sentimento de discriminação. Em outro artigo com
a mesma amostra de Gravataí, verificou-se que as meninas
sentem-se duas vezes mais discriminadas do que os meninos
(Bittencourt et al., 2009).
Constatou-se que sentimento de discriminação, solidão,
tristeza; dificuldade para dormir; ideação e planejamento
suicida tiveram forte associação com insatisfação corporal.
Segundo Brausch e Gutierrez (2009), adolescentes que não
se sentem confortáveis com a sua imagem corporal e têm
autoestima baixa são mais suscetíveis a essas situações de
risco. Outros pesquisadores referem que o isolamento social
e a pior percepção de sua saúde predominam nos jovens
obesos, assim como os com sobrepeso apresentam mais
problemas com autoestima e maior prevalência de depressão,
ideação suicida e abuso de substâncias psicoativas (Berg et
al., 2005; Tiggemann, 2005). Cook et al. (2007) descrevem
a depressão, o pensamento e o planejamento de suicídio
como comportamentos de risco associados à percepção
inadequada do peso.
Considerações finais
A sociedade atual propõe estereótipos de beleza, relacionandoos ao sucesso, poder e desempenho sexual, não enfatizando os
valores que não estão relacionados à aparência física (Ramalho et al.,
2007). Para os adolescentes, em especial, a influência da mídia e os
fatores socioculturais estão entre as causas de distorção da percepção
corporal (Conti et al., 2009). Neste contexto, a insatisfação com a
imagem dos jovens, principalmente entre as meninas, deixa-as
em situação de vulnerabilidade para o uso de tabaco, diminuindo
sua autoestima, associando-se a sentimentos de tristeza, solidão,
discriminação e dificuldade para dormir que, por sua vez, aumentam
o risco de depressão, ideação e planejamento do suicídio. Essas
situações foram identificadas no presente estudo, indicando a
urgência no desenvolvimento de ações promotoras da saúde desses
escolares. Nesse sentido, recomenda-se que educadores, profissionais
de saúde e familiares sejam esclarecidos sobre a importância do
reforço da autoestima dos jovens, salientando suas qualidades
positivas, incentivando atividades físicas, hábitos saudáveis e convívio
social. Com isso, estarão estimulando que os mesmos tenham maior
satisfação com a sua imagem corporal e melhor qualidade de vida.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 23-30
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Recebido em setembro/2011
Revisado em novembro/2011
Aceito em dezembro/2011
30
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Enfrentamento e câncer de mama:
revisão sistemática da literatura nacional
Coping and breast cancer: systematic review of national literature
Ana Cândida de Aguiar Machadoa*, Priscila Lawrenzb, Luciane Maria Bothc,
Fernanda Bittencourt Romeirod, Elisa Kern de Castroe
Resumo: O presente estudo objetivou realizar um levantamento dos artigos empíricos nacionais
produzidos no período entre 2000 e 2010 sobre o enfrentamento de mulheres adultas frente ao câncer
de mama. A busca ocorreu nas bases de dados Lilacs, Scielo e Pepsic e os artigos foram analisados de
acordo com os seguintes critérios: 1. Base de dados em que o artigo estava indexado; 2. Título do artigo;
3. Palavras-chave; 4. Revista e ano de publicação; 5. Formação profissional dos pesquisadores; 6. Local de
realização da pesquisa; 7. Objetivo; 8. Tema de pesquisa; 9. Delineamento e amostra; 10. Resultado; 11.
Conclusão; 12. Disponibilidade de acesso. Foram selecionados seis artigos, todos indexados na base de
dados Lilacs. Quatro deles referem-se a estudos empíricos com delineamento qualitativo e publicados em
diferentes revistas da área da saúde. Os enfermeiros foram os profissionais que mais publicaram sobre o
assunto e a maior parte das pesquisas foi realizada na região Sudeste. Apesar de indicativos importantes,
como a relevância da espiritualidade e o papel dos profissionais da saúde para o enfrentamento da crise,
não foi possível responder com clareza à pergunta: “quais são as estratégias de enfrentamento utilizadas
por mulheres que vivenciam o câncer de mama no Brasil?”.
Palavras-chave: Enfrentamento; Câncer de mama; Revisão da literatura nacional
Abstract: The present study examined the published papers in Brazil about coping women with breast
cancer between 2000-2010. The search was done on the databases Lilacs, Scielo and Pepsic and the
articles were analyzed within ten categories: 1) Database where indexed the paper; 2) Paper’s title; 3)
Keywords; 4) Journal and year of publication; 5) Author’s professional; 6) Local where the research was
carried out; 7) Objective; 8) Topics researches; 9) Design and sample; 10) Results; 11) Conclusion; 12)
Availability of access. Six articles were selected and indexed on Lilacs. Four of them are empirical studies,
employed qualitative method and published in different journals. Nurses published more about coping
to women facing breast cancer and the most research were carried out in the Southeast region. Although
important indicators like the relevance of spirituality and the role of health professionals for coping to the
crisis, it wasn’t possible clearly answer the question: “Which are the coping strategies used by women with
breast cancer in Brazil?”.
Keywords: Coping; Breast Cancer; National systematic reviewKeywords: Body image; Adolescent; Student;
Sexual maturity
a Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista PIBIC/CNPq.
*E-mail: [email protected].
b Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CNPq
c Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista PROBIC/FAPERGS
d Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista UNIBIC.
e Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica e da Saúde (Universidade Autônoma de Madri). Professora Adjunta da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos. Bolsista Produtividade CNPq
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
31
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
Nos dias atuais, o câncer é uma das maiores causas de
morte no mundo, constituindo-se como um problema de
saúde pública em países desenvolvidos e em desenvolvimento
(Gonçalves, Padovani & Popin, 2008). Câncer pode ser entendido
como o conjunto de mais de 100 doenças caracterizadas pela
multiplicação de células anormais do corpo que se espalham
desordenadamente originando tumores. Tais tumores podem ser
malignos (acúmulos de células cancerosas) ou benignos (células
que se multiplicam lentamente e assemelham-se ao tecido
original). Células malignas podem migrar para outros órgãos
e tecidos do corpo, resultando em um processo denominado
metástase. Caso não seja interrompido, esse processo acarreta
em sérias lesões que podem levar à morte (Straub, 2005).
Entre os diversos tipos de câncer existentes, o câncer de mama
é o segundo tipo mais comum no mundo e o de maior incidência
entre as mulheres (Nazário &Kemp, 2007). No Brasil, os índices de
mortalidade devido a esta doença são altos, devido, especialmente,
ao diagnóstico tardio. Para o ano de 2010, a estimativa realizada
pelo Instituto Nacional do Câncer (2009) foi de aproximadamente
49.240 novos casos. Se forem desconsiderados tumores de pele não
melanoma, o câncer de mama é o mais frequente na Região Sul
(64/100.000), Centro-Oeste (38/100.000) e Nordeste (30/100.000).
Na Região Sudeste é o câncer de maior incidência entre as mulheres,
com risco estimado de 65 novos casos para 100 mil habitantes. Na
Região Norte é o segundo tumor de maior incidência (17/100.000)
(INCA, 2011a).
Apesar da pré-disposição genética ser uma das causas para
o surgimento de alguns tipos de câncer, o desenvolvimento da
doença está relacionado diretamente a fatores comportamentais
e de estilo de vida (Gaviria, Vinaccia & Riveros, 2007). O câncer
de mama é uma doença complexa que gera intenso impacto
na vida das mulheres por conta dos tratamentos invasivos e da
incerteza quanto à cura. É uma doença de maior prevalência
entre mulheres a partir dos 40 anos, embora os índices de
casos abaixo dessa faixa etária venham aumentando de forma
progressiva (INCA, 2011b). De acordo com Bish, Ramirez,
Burgess e Hunter (2005), pacientes que apresentam tumores
pequenos e localizados possuem um prognóstico melhor
se comparadas àquelas em estágios avançados da doença
e com metástase. Por isso, a importância do diagnóstico e do
tratamento em fases pré-sintomáticas, que se associam à
melhores índices de sobrevida. Segundo Boff, Wisintainer e
Amorin (2008), mediante o diagnóstico do câncer de mama,
a mastectomia (cirurgia de retirada da mama) pode tornar-se
necessária, seja ela conservadora (na qual é retirado apenas o
quadrante em que se encontra o tumor) ou radical (retirada total
da mama). Associam-se à mastectomia tratamentos adjuvantes
como a quimioterapia, radioterapia e a hormonioterapia.
A relevância social e teórica dos estudos voltados ao
enfrentamento de mulheres com câncer de mama baseiase no fato de ser uma doença cada vez mais comum e
que afeta diferentes âmbitos da vida da mulher. Além dos
comprometimentos físicos causados pelos tratamentos
invasivos, pela restrição de movimentos e atividades, pela
redução da força do braço e pela mutilação da mama (Negrini
& Rodrigues, 2000) surgem, ainda, problemas de ordem
emocional e social relacionados ao reconhecimento cultural do
seio como aspecto privilegiado da sexualidade, maternidade e
feminilidade (Silva, 2008). As dificuldades vão desde a aceitação
da doença e das mudanças corporais, até questões relacionadas
às alterações ocorridas no cotidiano, nas relações com o parceiro
e demais pessoas próximas, sem esquecer o confronto evidente
e permanente com a ameaça de morte (Carvalho, 2002; Costa
Jr., 2001; Rossi & Santos, 2003). Estudos têm demonstrado
que pacientes que enfrentam sua doença de frente possuem
melhor prognóstico se comparadas àquelas que se entregam
emocionalmente (Straub, 2005).
Enfrentamentof é o conjunto de estratégias cognitivas,
comportamentais e emocionais utilizadas em resposta a eventos
estressantes (Lazarus & Folkman, 1984) que se constitui como
um processo autorregulatório (Weis, 2003). Consiste de um
processo de mudanças voltadas a lidar com demandas internas
e/ou externas que são avaliadas de acordo com os recursos que
cada indivíduo possui (Lazarus & Folkman, 1984).
A área da Psicologia Clínica e da Saúde relaciona o
enfrentamento às adversidades, especialmente às doenças
crônicas e intervenções médicas (Faria & Seidl, 2005; Straub,
2005), articulando conhecimentos derivados de áreas como
a Psicologia, Fisiologia, Psiconeuroimunologia e Antropologia
(Paiva, 2007). As formas de enfrentamento adaptativas
estão relacionadas ao uso de estratégias variadas e múltiplas,
alinhadas com o estresse da circunstância. O enfrentamento
não é um processo individual e sim contextual, no qual deve
haver a interação do paciente com o seu ambiente. O apoio e o
ambiente social do indivíduo influenciam diretamente o manejo
de estratégias de enfrentamento.
Anderson (1988) pontua três elementos que fundamentam
as técnicas de enfrentamento em pessoas que sofrem com
doenças crônicas, as quais seriam: a informação, o sentido de
1
Neste estudo, o conceito de enfrentamento é utilizado como sinônimo do termo coping,
definido como esforço cognitivo e comportamental para lidar (reduzir, dominar e tolerar)
com demandas externas que sobrecarregam e excedem os recursos pessoais do sujeito
(Negromonte& Araújo, 2011).
32
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
controle e o apoio social. Apesar de ser bastante desvalorizada
enquanto técnica de intervenção terapêutica, a informação, se
for transmitida de forma adequada, pode ajudar na diminuição
dos níveis de ansiedade dos pacientes. A falta de informações e
entendimento em relação à doença pode acentuar os sintomas
de depressão e o sentimento de frustração e desesperança.
Já o controle pessoal e o controle frente à enfermidade são
importantes no intuito de proporcionar bem-estar emocional
aos pacientes, uma vez que auxiliam no controle e no cuidado
com a saúde. O apoio social também pode ser utilizado como
recurso de enfrentamento, pois auxilia o indivíduo quanto à
adaptação frente à doença. Lazarus e Folkman (1990) afirmam
que, com o tempo, os esforços para lidar com as circunstâncias
que excedem os recursos pessoais do sujeito são normalmente
modificadas através de avaliações e reavaliações a partir dos
resultados experienciados em situações anteriores.
Tendo em vista que as mulheres com câncer de mama
precisam lidar com vários estressores da doença e do seu
tratamento, e entendendo que a investigação dos modos de
enfrentamento pode auxiliar na compreensão da adaptação
à doença dessas pacientes, o presente trabalho tem por
objetivo realizar uma revisão sistemática de artigos empíricos
nacionais publicados no período entre 2000 e 2010 acerca do
enfrentamento de mulheres adultas frente ao câncer de mama.
Método
Para a busca dos artigos foram utilizados os descritores Câncer de
mama and enfrentamento/ Câncer and mama and enfrentamento/
Câncer de mama andcoping/ Câncer and mama andcoping nas
seguintes bases de dados: Lilacs (Literatura Latino-Americana e do
Caribe em Ciências da Saúde), Scielo (Scientific Eletronic Library
Online) e Pepsic (Periódicos de Psicologia). O critério de seleção das
bases de dados se deu em função delas serem referência em termos
de busca de artigos científicos no Brasil. A revisão foi realizada de
março a abril de 2011.
A partir destes descritores, foram selecionados aqueles
artigos empíricos brasileiros publicados entre os anos 2000 e
2010, em português com amostras de pacientes adultos e cujo
foco da pesquisa é o enfrentamento de mulheres com câncer
de mama submetidas a diferentes tipos de tratamento e em
diferentes estágios da doença. Incluiu-se estudos empíricos
publicados em revistas científicas com avaliação por pares,
excluindo-se artigos teóricos, relatos de experiência, teses e
dissertações. Foram excluídas também pesquisas cujo foco
principal não era o enfrentamento de mulheres com câncer de
mama, o que incluiria o enfrentamento de cônjuges e familiares,
assim como da equipe de saúde frente aos cuidados com
mulheres com câncer de mama.
Na primeira busca, desconsiderando os critérios de exclusão,
foram encontradas 70 publicações brasileiras em português nas
três bases de dados anteriormente citadas. Em seguida, foram
retirados os artigos repetidos nas três bases de dados. Procedeuse da seguinte forma:
1. Na base de dados Lilacs, foram encontradas durante a
primeira busca 54 publicações. Dessas, 14 repetiam-se na
própria base de dados, restando 40 artigos originais. Os dois
artigos publicados antes do ano 2000 foram excluídos, assim
como as teses, pesquisas/revisões bibliográficas e relatos de
experiências que totalizavam 10 estudos. Os demais artigos
foram analisados e pôde-se notar que em 22 deles o foco
do estudo não era o enfrentamento de mulheres com câncer
de mama. Sendo assim, apenas seis publicações atenderam
aos critérios e sua análise foi levada a diante.
2. Na base de dados Pepsic apenas um artigo foi encontrado.
Todavia, este foi excluído porque avaliar/compreender o
enfrentamento em mulheres com câncer de mama não era
o foco da pesquisa.
3. No Scielo foram encontradas inicialmente 15 publicações.
Depois de excluídos aqueles que se repetiam, restaram 10.
Desses, um foi excluído por tratar-se de uma tese e outro
por ter sido publicado antes do ano 2000. Assim como foi
realizado nas demais bases de dados, revisou-se o conteúdo
dos artigos e constatou-se que os demais não tinham como
foco do estudo o enfrentamento de mulheres com câncer de
mama. Dessa forma, todos os artigos encontrados na base
de dados Scielo foram excluídos.
Abaixo, esquema que ilustra a busca e seleção dos artigos (figura 1):
Figura 1. Critérios de seleção dos artigos incluídos na revisão sistemática
33
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
Tendo como base o estudo de Castro e Remor (2004), de mama e enfrentamento não eram os conceitos principais que
foram utilizadas as seguintes categorias e subcategorias para norteavam a pesquisa (80%).
a análise dos artigos: 1. Base de dados em que o artigo estava
indexado; 2. Título do artigo; 3. Palavras-chave; 4. Revista e ano
Critérios de exclusão - Scielo
de publicação; 5. Formação profissional dos pesquisadores; 6.
10%
Local de realização da pesquisa; 7. Objetivo; 8. Tema de pesquisa;
10%
9. Delineamento e amostra; 10. Resultados; 11. Conclusão; 12.
Anteriores ao ano
2000
Disponibilidade de acesso.
Não eram artigos
empíricos
Resultados
Primeiramente, é importante salientar que a produção
de artigos empíricos voltados a investigar e/ou compreender
o enfrentamento de mulheres com câncer de mama no Brasil
é bastante escasso, o que se pôde notar através do número
reduzido de artigos encontrados (seis artigos). Os principais
impasses que se apresentam são a falta de clareza na definição
do conceito “enfrentamento” e os problemas metodológicos tais
como a delimitação do delineamento e da amostra (Cerqueira,
2000; Gimenes, 1997).
Como o número de artigos excluídos mostrou-se bastante
significativo, os gráficos abaixo apresentam motivos pelos quais
foram excluídos segundo cada uma das bases de dados revisadas.
Dos 40 artigos encontrados na base de dados Lilacs (figura 2),
seis deles foram selecionados. Como se pode observar, a maior
parte dos artigos foi excluída porque o foco principal não era
avaliar/compreender como se dá o enfrentamento em mulheres
com câncer de mama (65%). Outra parcela significativa é
de artigos não empíricos, caracterizados por teses, revisões/
pesquisas bibliográficas e relatos de experiência (29%).
Critérios de exclusão - LILACS
6%
29%
Anteriores ao ano
2000
Não eram artigos
empíricos
65%
Enfrentamento do
câncer de mama não
é o foco das
pesquisas
Figura 2. Inclusão e exclusão de artigos na base de dados Lilacs
Nenhum dos 10 artigos encontrados na base de dados
Scielo foi selecionado, já que todos eles atendiam aos critérios
de exclusão (figura 3). Assim como no caso da base da dados
Lilacs, a grande maioria dos artigos foi excluída porque câncer
80%
Enfrentamento do
câncer de mama não
é o foco das
pesquisas
Figura 3. Inclusão e exclusão de artigos na base Lilacs
O Quadro 1 apresenta uma visão geral das principais
características dos artigos selecionados a partir de critérios
baseados no estudo de Castro e Remor (2004). Como se
pode notar, quatro dos seis artigos selecionados consistem
de pesquisas com delineamento qualitativo. Ao revisar a
formação dos profissionais-pesquisadores, percebe-se que
em quatro trabalhos os pesquisadores estão ligados à área da
Enfermagem e em dois artigos o estudo foi desenvolvido por
equipes multidisciplinares que envolviam psicológos, médicos,
enfermeiros, odontologistas e terapeutas ocupacionais. A região
do Brasil que mais publicou estudos sobre câncer de mama e
enfrentamento durante esse período foi a região Sudeste, com
quatro artigos publicados. As seis pesquisas que fazem parte
da revisão foram publicadas por diferentes revistas, sendo que
duas delas são da área da enfermagem e apenas uma específica
da Psicologia. Ainda quanto ao ano de publicação, constatou-se
que dois dos estudos foram publicados em 2009 e os demais
apresentaram distinção em relação ao período de publicação.
Ainda, a partir da análise dos artigos, pôde-se observar que
os estudos empíricos selecionados relacionam o enfrentamento
em mulheres com câncer de mama a diferentes temas, tais
como: o enfrentamento da doença no momento do diagnóstico
(Caetano, Gradim & Santos, 2009), a avaliação da espiritualidade
como forma de enfrentamento do câncer de mama (Macieira,
Cury, Mantese, Novo & Barros, 2007), o enfrentamento e a
admissão hospitalar para cirurgia do câncer de mama (Ferreira,
Almeida, Kebbe & Panobianco, 2004), o enfrentamento das
pacientes em tratamento quimioterápico (Camargo & Souza,
2002), a importância do relacionamento terapêutico entre
enfermeiro e paciente para o enfrentamento da situação
(Negrini & Rodrigues, 2000) e a relação entre as modalidades
de enfrentamento e as variáveis clínicas em mulheres em uso
34
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
de medicamentos hormonioterápicos (Leite & Amorim, 2009).
Entre os principais resultados encontrados a partir desses
estudos, a religiosidade, a espiritualidade e a fé aparecem como
estratégias fortemente utilizadas para o enfrentamento das
situações de crise que envolvem o diagóstico e tratamento do
câncer de mama (Caetano, Gradim & Santos, 2009; Ferreira et
al., 2004; Leite & Amorim, 2009; Macieira et al., 2007). O apoio
despendido pelos profissionais da enfermagem que objetivam
dar suporte às pacientes que passam pelo tratamento da doença
é, também, lembrado como fundamental para o enfrentamento
da situação. Todavia, recomendações são feitas com a finalidade
de aprimorar tais cuidados e estender a responsabilidade para
as demais áreas da saúde (Caetano, Gradim & Santos, 2009;
Ferreira et al., 2004; Negrini & Rodrigues, 2000).
Durante a análise dos artigos, observou-se também que
não havia consenso no uso do conceito de enfrentamento. Em
estudo baseado no pensamento Heideggeriano, por exemplo,
buscou-se entender as formas de enfrentemento a partir das
singularidades de pacientes em tratamento quimioterápico
(Camargo & Souza, 2002). Nesse caso, assim como no estudo
que identifica as vivências do processo de diagnóstico e
tratamento da doença (Negrini & Rodrigues, 2000), a relação
enfermeiro-paciente aparece como protagonista no momento
do enfrentamento do câncer de mama. De acordo com Negrini
e Fagundes (2000), os enfermeiros seriam os profissionais
capazes de atender aos apelos das mulheres que são duramente
atingidas física, psicológica e socialmente pelo problema. Na
maioria das vezes, essas mulheres não estão preparadas para
enfrentar sozinhas tais dificuldades, que incluem a aceitação
da nova imagem corporal, mudanças nos projetos pessoais e
limitações em diferentes aspectos de vida.
Já em outros estudos, conduzidos por equipes que contavam
com a colaboração de psicólogos, médicos, odontologistas,
enfermeiros e terapeutas ocupacionais, o conceito de
enfrentamento como equivalente a coping é retomado. Esse
é o caso do estudo que visa identificar as modalidades de
enfrentamento relacionando-as às variáveis clínicas de mulheres
diagnosticadas com câncer de mama em uso de medicamentos
hormonioterápicos (Leite & Amorim, 2009). Nas pesquisas
voltadas a investigar o papel da espiritualidade (Macieira et al.,
2007) e a admissão hospitalar para realização da cirurgia por
câncer de mama (Ferreira et al., 2004), também o conceito de
enfrentamento é levantado a partir desse referencial teórico.
35
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
Revista e ano de
publicação
Local de realização da
pesquisa
Objetivo
Tema da pesquisa
Delineamento e amostra Resultados
Quadro 1 – Principais características dos artigos selecionados
Palavras-chave
Formação
profissional
Título do artigo
Conclusão
A doença foi um divisor de águas:
elas passaram a ver o
mundo de forma diferente, e
a maneira como encaram os
problemas também foi alterada. O
desafio dos profissionais da área da
enfermagem é acolher e atender de
forma humanizada essas mulheres
Estudo qualitativo com
amostra de 15 mulheres
O diagnóstico despertou nas
mulheres sentimentos de desespero
e angústia,que foram minimizados
na esperança da cura depositada
em Deus e na medicina. Passaram a
valorizar mais suas vidas e as coisas
íntimas do cotidiano
Verificou-se que mulheres em uso
de tamoxifeno que não apresentaram
efeitos colaterais vivenciam mais
a busca pelas práticas religiosas,
enquanto a maior utilização do
foco no problema ocorreu entre as
mulheres que foram submetidas
apenas à cirurgia e diagnosticadas
em estágio I
O enfrentamento da
doença no momento do
diagnóstico
Estudo quantitativo
com amostra de 270
mulheres
O tipo de tratamento realizado, os
efeitos colaterais quanto ao uso
do tamoxifeno e o estadiamento
influenciam o tipo de estratégia de
enfrentamento utilizada
Os achados sugerem a importância
da espiritualidade para mulheres
com câncer de mama
Projeto Mulher com Câncer
de Mama - Universidade
Federal de Alfenas, Minas
Gerais
Estudo quantitativa com
amostra de 30 mulheres
Não houve diferença significante
na utilização da espiritualidade,
quando comparadas em relação a
renda, religião, grau de instrução e
estado civil
Revista de
Enfermagem
Enfermagem UERJ,
Rio de Janeiro.
2009
Examinar a relação
entre as modalidades
de enfrentamento e
as variáveis clínicas
de mulheres com
diagnóstico de câncer
de mama em uso de
tamoxifeno
Avaliação da
espiritualidade como
forma de enfrentamento
do câncer de mama
Enfermagem
Enfermagem
Ambulatório Ylza Bianco,
pertencente ao Hospital
Santa Rita de Cássia.
Vitória, Espírito Santo
Avaliar a espiritualidade
no enfrentamento
das crises físicas e
psicológicas causadas
pelo diagnóstico e
tratamento do câncer
de mama
Estudo qualitativo com
amostra de 10 mulheres
Os resultados mostraram que Deus, Os dados apresentam a busca
os médicos, a busca interna e outras dessas mulheres pela vida e
estratégias foram utilizadas para o também a importância da escuta
enfrentamento da situação
dos profissionais envolvidos nesse
momento, como um instrumento
para a instalação de estratégias
de enfrentamento capazes de
proporcionar uma recuperação mais
rápida dessas mulheres
Câncer de mama,
diagnóstico,
enfrentamento,
enfermaria
Revista Brasileira
de Pesquisa em
Saúde, 2009
Psicologia,
Odontologia e
Medicina
Ambulatorio de Mastologia
da Universidade Santo
Amaro, São Paulo; Núcleo
de Mastologia do Hospital
Sírio Libanês, São Paulo;
Grupo de Apoio ao Paciente
com Câncer de Recife,
Pernambuco
O enfrentamento e a
admissão hospitalar
para cirurgia do câncer
de mama
A partir do cotidiano existencial, a
dimensão ontológica mostrou-se
pela possibilidade de ser-aí-com
A relação entre as
modalidades de
enfrentamento e as
variáveis clínicas em
mulheres em uso
de medicamentos
hormonioterápicos
Psicologia,
Enfermagem
e Terapia
Ocupacional
Enfermaria de ginecologia e Descrever as estratégias
obstetrícia de um hospital- de enfrentamento
escola de Ribeirão Preto,
relacionadas ao
São Paulo
momento da admissão
hospitalar para cirurgia
por câncer de mama
Desvelou-se a emergência das
singularidades do ser-aí-mulher
enfermeira que cuida e pesquisa
Hospital do Câncer III, Rio
de Janeiro
Descrever o
enfrentamento e a
possibilidade de desvelar as singularidades
que podem envolver
profissionais da
equipe de saúde e as
clientes em tratamento
quimioterápico para o
câncer de mama
Enfrentamento das
Estudo qualitativo com
pacientes em tratamento amostra de 11 mulheres
quimioterápico
Enfermagem
Clínica Renascer.
Araraquara, São Paulo
-
Câncer de mama: reações e
enfrentameto ao receber o
diagnóstico
Neoplasias de
mama, estratégia
de adaptação,
tamoxifeno
Revista Brasileira
de Mastologia,
2007
Psicologia
Argumento,
Curitiba, 2004
Escola Anna
Nery Revista de
Enfermagem, Rio
de Janeiro, 2002
O Mundo da
Saúde, São Paulo,
2000
A importância do
Estudo qualitativo com
relacionamento
amostra de 24 mulheres
terapêutico entre
enfermeiro e paciente
para o enfrentamento da
situação
Conhecer as reações das
mulheres ao receberem
o diagnóstico de câncer
de mama e como
enfrentaram a doença e
o tratamento
A relação entre as
modalidades de
enfrentamento e as variáveis
clínicas de mulheres com
diagnóstico de câncer
de mama em uso de
tamoxifeno
Avaliação da espiritualidade Câncer de mama,
no enfrentamento do câncer estresse, aspectos
de mama
psicológicos,
espiritualidade,
enfrentamento
Enfermagem,
quimioterapia,
cotidiano assistencial,
filosofia
Enfrentamento e admissão Enfrentamento,
hospitalar para realização da admissão hospitalar,
cirurgia por câncer de mama câncer de mama
Acompanhando
mulheres que enfrentam
a quimioterapia par
o câncer de mama:
uma compreensão das
singularidades
Relacionamento terapêutico Enfermagemenfermeiro-paciente junto a Oncologia,
mulheres mastectomizadas comunicação
com o paciente –
enfermagem
Identificou-se sentimentos, reações
e necessidades cujo conhecimento
é relevante para a adequada
assistência de enfermagem.
Efeitos positivos de assistência
foram observados nas atitudes e
comportamentos das mulheres e
por elas verbalizados
Procurou-se identificar
como foi vivenciado o
processo de diagnóstico
e tratamento do
câncer de mama pelas
mulheres e identificar
as necessidades e os
recursos utilizados para
enfrentamento da crise
36
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
Discussão
A partir da análise dos artigos nacionais sobre o
enfrentamento de mulheres com câncer de mama, constatou-se
que o volume de publicações científicas em revistas avaliadas por
pares sobre o assunto no Brasil é escasso apesar de constituir-se
como um tema de especial relevância, uma vez que a incidência
de novos casos de câncer de mama aumenta a cada ano, o índice
de mortalidade é alto e as mulheres precisam enfrentar a doença
e o tratamento.
A Psicooncologia é uma subespecialidade da Psicologia
da Saúde com foco no bem-estar e na qualidade de vida do
paciente com câncer, além da preocupação com a prevenção e o
autocuidado (Carvalho, 2002; Cruzado, 2006). Apesar dessa área
estar se desenvolvendo e disseminando de forma significativa
nos últimos anos, os psicólogos ainda desempenham papel
coadjuvante no cenário da pesquisa em câncer no país (Carvalho,
2002). No caso desta revisão, os enfermeiros são os profissionais
da área da saúde que mais publicaram sobre o enfrentamento
de mulheres diante do diagnóstico e tratamento do câncer de
mama. Dos seis artigos incluídos nenhum foi realizado apenas
por profissionais da Psicologia. Em dois deles os psicólogos
estavam vinculados a equipes multidisciplinares que contavam
ainda com profissionais da Medicina, Odontologia, Terapia
Ocupacional e Enfermagem. Da mesma forma como ocorre em
outras áreas da saúde, falta no país uma maior aproximação
dos psicólogos no desenvolvimento de pesquisas e na geração
de conhecimento, ficando a sua atuação bastante restrita à
área clínica (Castro & Bornholdt, 2004). De acordo com López
et al. (2008) é importante que aspectos biopsicossociais
sejam levados em conta quando se trata de pensar o paciente
em sua integralidade. Nesse sentido, a Psicologia da Saúde
tem muito a contribuir no que tange as políticas públicas
voltadas à investigação científica sobre a relevância dos
aspectos psicológicos e comportamentais para a prevenção,
enfrentamento e reabilitação da doença (León-Pizarro et al.,
2007). Se for levado em conta que o conceito de enfrentamento
deriva de teorias psicológicas e que o comportamento é um dos
principais campos de estudo dessa área, logo se torna ainda
mais relevante a participação dos profissionais da Psicologia
no desenvolvimento de estudos e pesquisas que envolvam tais
aspectos.
Contudo, não são apenas os psicólogos que devem atender
à tarefa de aprimorar e melhorar o atendimento à saúde.
Nenhuma ciência é capaz de dar conta sozinha do entendimento
de determinado fenômeno, especialmente quando se trata de
uma doença tão complexa quanto o câncer de mama. Por isso
a necessidade de investigações desenvolvidas por equipes inter
e multidisciplinares, que são capazes de proporcionar variados
olhares sobre a questão.
O número reduzido de artigos selecionados pode ser
entendido como um limitador da análise. Contudo, buscou-se
respeitar os critérios de inclusão e exclusão criados anteriormente
à revisão. Sendo assim, os achados dão conta do que foi
previamente estipulado, representando justamente a escassez
de produções empíricas que relacionam enfrentamento e câncer
de mama. Os artigos não respondem à tendência internacional
onde predominam os estudos quantitativos na área da saúde
com pacientes crônicos (Castro & Remor, 2004; Zimpel & Fleck,
2007). No caso desta revisão, predominaram os estudos com
delineamento qualitativo. A tendência de desenvolver pesquisas
com ênfase exploratória, com o intuito de compreender e
conhecer como se dá a relação entre enfrentamento e câncer
de mama, talvez possa ser explicada pelo fato do conceito de
enfrentamento – assim como é compreendido e estudado
pela Psicologia – ainda ser pouco relacionado ao diagnóstico e
tratamento de doenças crônicas no Brasil. No entanto, existem
lacunas importantes tanto no caso de pesquisas qualitativas e
quantitativas que merecem ser supridas com novos estudos e
pesquisas nos próximos anos.
Quanto às amostras, pode-se notar que uma das pesquisas
quantitativas apresenta número bastante significativo de
participantes, enquanto a outra esbarra nesse limitador. Além
de demonstrar o pouco interesse que ainda há em desenvolver
pesquisas nessa área, o fato também evidencia a dificuldade
encontrada pelos profissionais da Psicologia em desenvolver
pesquisas no âmbito hospitalar, apesar dos avanços ocorridos
nos últimos anos. A inserção do psicólogo na área tem crescido
cada vez mais, mas ainda merece ser aprimorada também com
o intuito de facilitar o contato com os pacientes e ajudar no
desenvolvimento de novas intervenções.
A região do Brasil que mais desenvolveu e publicou artigos
vinculados ao tema foi a região Sudeste. Este dado revela a
discrepância que ainda existe em termos de pesquisa no país,
sem contar as notáveis diferenças que existem em termos
de atendimento e tratamento de mulheres acometidas pelo
câncer de mama. Também não há um aumento significativo de
publicações nos últimos anos apesar de dois artigos terem sido
publicados no ano de 2009.
De forma geral, pode-se concluir que há muito pouco
conhecimento construído até o momento sobre o enfrentamento
de mulheres frente ao câncer de mama com amostras brasileiras.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 31-39
Apesar de aparecerem indicativos importantes, como a relevância
da espiritualidade e religiosidade para o enfrentamento da crise
e o papel fundamental dos profissionais da saúde enquanto
rede de apoio, não se pode, ainda, responder com clareza à
pergunta: “quais são as estratégias de enfrentamento utilizadas
por mulheres que vivenciam o câncer de mama no Brasil?”. É
importante que sejam realizados mais estudos sobre o assunto
para conhecer a realidade dessas mulheres, realidade essa
que é distinta do cenário internacional não só em função das
diferenças culturais entre os países, mas também por conta de
questões relacionadas ao acesso ao tratamento de saúde. Para
promover maior desenvolvimento de conhecimento nessa área,
é de especial importância que se invista em pesquisas. Que
estes sejam apenas os primeiros passos para grandes avanços
alcançados daqui para frente.
Referências
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Recebido em agosto/2011
Revisado em setembro/2011
Aceito em outubro/2011
39
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Insegurança no trabalho e sua relação com a saúde
psicológica do trabalhador
Job insecurity and its relationship on psychological health of the worker
Marli Appel Silva a*, Irani Iracema de Lima Argimon b, Guilherme Welter Wendt c
Resumo: Esse estudo buscou examinar a associação entre a insegurança no trabalho e a saúde psicológica
em trabalhadores. A amostra foi composta por 220 pessoas incluídas no mercado de trabalho formal
brasileiro, em grandes empresas privadas. Os instrumentos utilizados foram: ficha para levantamento
sociodemográfico e o Questionário Psicossocial de Copenhague (CoPsoQ). Os resultados indicaram
associações entre a insegurança no trabalho e a saúde psicológica. Conclui-se que tal insegurança, ao
gerar sintomas, expõe a vulnerabilização do emprego, por representar queda da produtividade individual
no trabalho. Assim, a possibilidade de prejuízos à produtividade organizacional e perdas de recursos
financeiros às empresas e ao Estado são ainda debatidas.
Palavras-Chaves: Insegurança no trabalho; Saúde; Bem-estar.
Abstract: This study aimed to examine the relationship between job insecurity and psychological health
in formal workers. Sample was composed by 220 workers of large Brazilian companies. The instruments
used were a sociodemographic questionnaire and The Copenhagen Psychosocial Questionnaire
(CoPsoQ). The results indicated relationship between psychological insecurity and psychological health.
We concluded that insecurity, at the time that generate these symptoms, exposes people to vulnerability
and could represent a risk to individual productivity at work. Thus, the harm possibility to organizational
productivity and financial losses to businesses and to the government are also discussed.
Keywords: Job insecurity; Health; Well being.
a Psicóloga (PUC-SP); Mestre e Doutora em Psicologia (PUC-RS com bolsa CNPq);
* E-mail: [email protected]
b Psicóloga (PUC-RS); Mestre em Educação e Doutora em Psicologia (PUC-RS); Pesquisadora do CNPq.
c Bacharel em Psicologia (PUC-RS); Mestrando em Psicologia Clínica (UNISINOS, com bolsa CAPES);
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
40
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47
A fragilidade nas relações trabalhistas foi uma das
características do desenvolvimento histórico do mercado de
trabalho brasileiro (Chahad & Menezes-Filho, 2002). Por este
motivo, foi presente a sensação, por parte dos trabalhadores,
de insegurança em relação à estabilidade e continuidade do
próprio emprego. Entre os anos 30 e 80, a industrialização foi
acompanhada de políticas governamentais repressivas, pouco
propícias a negociações trabalhistas e que priorizavam o poder
da empresa. Como consequência, o mercado de trabalho
tornou-se pouco estruturado, ou seja, cada empresa dispondo
de políticas próprias de alocação de pessoal. A Consolidação
de Leis do Trabalho (CLT) apresentou influência insuficiente
na estruturação dos empregos setoriais, constituindo relações
trabalhistas frágeis.
Nos anos 90, uma nova política econômica foi adotada no
contextobrasileiro, com foco na abertura externa e racionalização
da base produtiva, sendo esse fenômeno também conhecido por
internacionalização econômica (Dedecca, 2000). Com essa nova
política, houve a desnacionalização de setores produtivos pela
fusão ou aquisição de empresas tradicionais, ou mesmo através
da associação com grupos estrangeiros. Surgiram grandes
conglomerados e, por consequência, o enfraquecimento da
empresa nacional, alterando a dinâmica produtiva e econômica
do país (Diniz, 1999).
Também houve a mudança de um regime de altas taxas
inflacionárias para um com estabilidade; a passagem de uma
economia fechada para uma economia aberta; a proliferação de
formas atípicas de ocupação e de novos contratos de trabalho; a
lenta modificação do papel do Estado na sociedade; o processo
de inovação tecnológica; e o aspecto demográfico, com o
surgimento de grande contingente de pessoas economicamente
ativas (Chahad, 2003) e a grande disponibilidade de
trabalhadores (Dedecca, 1998).
No Brasil, a diferenciação entre emprego “formal” e
“informal” deriva de ordem jurídica. O emprego formal é o que se
caracteriza pela Carteira de Trabalho registrada e pelas garantias
legais concedidas pela CLT. Por sua vez, o emprego informal é
regido por uma diversidade de contratações, que podem ser, por
exemplo, de natureza cooperativada, terceirizada, ou, inclusive,
ilegal e criminosa, como, por exemplo, o trabalho escravo e
infantil (Noronha, 2003).
Por parte das empresas, houve uma tendência à focalização
das atividades, terceirização de produtos e serviços, modernização
tecnológica e organizacional. Estas vieram a incidir, portanto, em
um mercado de trabalho pouco estruturado, fragilizando ainda
mais as relações trabalhistas (Dedecca, 1998). Essas mudanças
alteraram as bases produtivas, produzindo fenômenos diversos
como a flexibilizaçãodas relações trabalhistas, a ampliação
do desemprego e o crescimento da informalidade (Gómez &
Thedim-Costa, 1999). Houve, ainda, a redução de 2,5 milhões de
empregos formais na década de 90, associado ao aumento dos
empregos informais: 43%, em 1992; 50%, em 2000 (Chahad &
Menezes-Filho, 2002).
Aliada a instabilidade do mercado de trabalho brasileiro,
a partir dos anos 90, houve uma redução do investimento nas
políticas sociais (Silva, 2001). Dessa maneira, ocorreu maior
precarização dos serviços públicos de saúde, intensificando a
desigualdade ao acesso a este serviço entre as pessoas incluídas
e excluídas do mercado formal de trabalho ou em empregos
precários.
Em 2004, a população brasileira economicamente ativa
era de aproximadamente 94 milhões de pessoas e 51,2%
encontravam-se em empregos informais (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada - IPEA, 2006). Assim, a insegurança no
trabalho, compreendida como a experiência subjetiva de medo
relativa às condições de trabalho, passou a ser fator presente,
inclusive, para as pessoas em empregos institucionalizados
(Böckerman, Ilmakunnas & Johansson, 2011; Green, 2011).
A insegurança como condição estrutural do mercado
globalizado e deletéria à saúde do trabalhador passou a fazer
parte do cotidiano das pessoas (Facey & Eakin, 2010; Scott,
2004). Desse modo, torna-se importante estudar a relação entre
a insegurança no trabalho e a saúde psicológica, considerando,
ainda, as possíveis diferenças entre homens e mulheres no
tocante às percepções relativas ao trabalho. Assim, o objetivo
desse estudo quantitativo transversal foi de verificar a relação
entre essas variáveis em trabalhadores que com vínculo
empregatício.
Método
Amostra
Participaram desta pesquisa 220 trabalhadores de empresas
de grande porte dos setores da indústria, comércio e serviço,
todas localizadas na região metropolitana de Porto Alegre, RS.
A seleção da amostra foi por conveniência, ou seja, dirigida
intencionalmente a um grupo específico de participantes. Das
empresas convidadas para participar do estudo, aquelas que
responderam positivamente ao convite receberam informações
detalhadas sobre a pesquisa, bem como os objetivos e
procedimentos.
Os critérios de escolha dos participantes foram: ser homem
41
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47
ou mulher; estar na idade adulta (26 e 65 anos); ter nível superior
completo; atuar em empregos formais em empresas privadas de
grande porte há mais de um ano (regidos pela Consolidação
de Leis do Trabalho – CLT). As grandes empresas, em geral,
apresentam altas demandas em relação ao desempenho dos
colaboradores, razão pela qual optou-se, nesse estudo, por esse
tipo de organização. Do mesmo modo, a escolha por pessoas
com nível superior de escolaridade foi realizada com base na
suposição de maiores responsabilidades atribuídas às funções
desempenhadas por colaboradores com essa escolaridade.
Instrumentos
Além de uma ficha de dados sociodemográficos, utilizou-se
o Questionário Método Psicossocial de Copenhague (CoPsoQ).
O CoPsoQ se propõe a ser uma medida integrativa de saúde
ocupacional e é composto por 95 afirmativas dispostas em
uma escala likert de cinco pontos (Instituto Sindical de Trabajo,
Ambiente y Salud - ISTAS, 2005). O processo de adaptação
semântico-cultural do CoPsoQ foi realizado pelas seguintes
atividades: tradução e retrotradução do instrumento; avaliação
de juízes especialistas na área de Psicologia do Trabalho e de
Adaptação de Instrumentos para a verificação da adequação dos
itens Estudo Piloto; e, finalmente, estudo principal. As subescalas
Saúde Psicológica e Insegurança no Trabalho, utilizadas para
esta pesquisa, evidenciaram coeficiente alpha de Cronbach
considerados satisfatórios, 0,72 na subescala Insegurança no
Trabalho e 0,89 na subescala Saúde Psicológica.
Procedimentos
Os participantes responderam aos instrumentos de forma
individual, no horário de trabalho habitual. Os dados, após
tabulados, foram analisados quantitativamente, por meio de
técnicas de estatística descritiva (médias e desvio-padrão) e
inferencial (chi-quadrado). Para todas as análises foi utilizado
o pacote estatístico SPSS, versão 17.0. O nível de significância
adotado foi p ≤ 0,05. Esse estudo foi submetido e aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (protocolo:
06-03232) e todos os participantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre Esclarecido.
de idade de 40,2 anos. Os cargos com maior ocupação foram
os técnico-administrativos (55,7%). A renda salarial ficou
concentrada entre 5 e 15 salários mínimos (54,4%). O setor
econômico do serviço contou com mais pessoas, 43,1%; seguido
o do comércio, 32,2%; e da indústria, 24,7%.
Tabela 1
Percentuais de respostas dos dados sociodemográficos
Homens
n
%
Faixa etária
26-30 anos 19
14,4%
76,5%
31-55 anos 101
56-65 anos 12
9,1%
7
5,3%
Faixa Salarial Até 5 s.m.
5-10 s.m.
30
22,7%
16,7%
10-15 s.m. 22
27,3%
15-20 s.m. 36
acima de 20 37
28,0%
s.m.
37
28,0%
Filhos
Não tenho
filhos
31
23,5%
1filho
50
37,9%
2 filhos
3 filhos ou
14
10,6%
mais
43,2%
Nível
Administrativo/ 57
Hierárquico
Técnico
31
23,5%
Gerência
Diretoria
44
33,3%
66
50,0%
Setor econômico Serviço
30
22,7%
Comércio
Indústria
36
27,3%
Mulheres
n
%
28,4%
25
63
71,6%
0
0,0%
21
17
8
23,9%
44,3%
19,3%
9,1%
3
3,4%
26
29,5%
20
39
22,7%
44,3%
3
3,4%
61
69,3%
12
13,6%
15
17,0%
52
23
59,1%
26,1%
14,8%
39
13
Insegurança no trabalho
A subescala insegurança no trabalho apresenta quatro questões,
com respostas dicotômicas, e avalia preocupações com tornar-se
desempregado e ser transferido para outro lugar de trabalho contra
o consentimento (Kristensen, Hannerz, Hogh & Borg, 2005). As
mulheres ocuparam em maior quantidade os cargos administrativotécnicos (59,3% mulheres e 52,9% homens); e os homens, os de
gerência (27,7%) quando comparados às mulheres (18,7%). Além
disso, houve menor proporção de mulheres nos cargos de diretoria
(22,0%, de homens; e 19,9%, de mulheres). A teoria da dupla
presença considera que as diferenças relativas ao sexo devem ser
necessariamente investigadas nos estudos organizacionais, uma vez
Resultados
que condicionantes históricos podem operar em desigualdades no
trabalho (Amick, Levine, Tarlov & Walsh, 1995). Utiliza-se o termo
A amostra deste estudo apresentou mais homens do que “dupla-presença”em alusão à jornada exaustiva da mulher em casa e
mulheres (homens, 55,9%; e mulheres, 44,1%). A faixa etária no lar, uma vez que a esta compete, ainda na atualidade, a tarefa de
predominante foi entre 31 e 55 anos (77,1%), com média coordenar as atividades domésticas.
42
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47
Tabela 2
Percentuais de respostas nas questões sobre insegurança no trabalho entre
homens e mulheres
Questões
Homem
Mulher
Total
Sim
Não
Sim
Não Sim Não
(%)
(%)
(%)
(%) (%) (%)
Tornar-se
67,9
32,1
66,7 33,3 67,4 32,6
desempregado
Tornar-se
desempregado 73,4
26,6
78,0 22,0 74,4 24,6
por causa
das novas
tecnologias
Dificuldade para
encontrar outro 66,5
33,5
76,2 23,8 70,8 29,2
trabalho se
desempregado
Ser transferido
para outro lugar 67,3
32,7
80,2 19,8 73,3 27,0
de trabalho
contra o
consentimento
Total
68,8
31,2
75,3 24,7 71,6 28,4
A maioria dos participantes revelou preocupação com
a possibilidade de tornar-se desempregado (71,6%). As
questões com maior frequência de respostas foram tornar-se
desempregado por causa de novas tecnologias (74,4%) e ser
transferido para outro lugar de trabalho contra o consentimento
(73,3%). As mulheres revelaram maior medo de serem
transferidas para outro lugar de trabalho contra a vontade
(80,2%) e desemprego por causa de novas tecnologias (78,0%).
Os homens apontaram altos índices relativos ao medo de tornarse desempregados por causa de novas tecnologias (73,4%),
conforme ilustra atabela 2.
Saúde geral
O Questionário CoPsoQ, na subescala saúde, afere o bemestar geral - avaliação das condições da saúde como um todo;
vitalidade - níveis de energia disponível e de fadiga; bemestar psicológico - sintomas depressivos e ansiosos; estresse
geral - condutas de fuga das dificuldades, luta ou contenda
(comportamental); sintomas físicos ou psicossomáticos
(somático); nervosismo e irritabilidade (cognitivo). Na tabela
a seguir, as respostas foram agrupadas de acordo com estas
medidas (Kristensen, Hannerz, Hogh&Borg, 2005).
Tabela 3
Percentuais de respostas nas questões sobre a saúde geral
Variáveis
Questões
Alta
Média
(%)
(%)
Bem-estar geral Saúde geral
72,2
20,0
Vitalidade
Grau de energia
52,2
37,6
Bem-estar
Ansiedade
psicológico
32,8
51,8
Depressão
26,9
59,8
Estresse
Tolerância com outras 72,6
19,9
comportamental pessoas
Estar um tanto sensível 77,3
18,5
Relaxar ou ter prazer
70,6
24,9
consigo
Falta de iniciativa
59,5
28,6
Estresse somático Dor ou problemas de
50,9
32,5
estômago
Aperto ou dores de tórax 56,1
32,1
Atordoamento ou
confusão mental
59,8
29,7
Tensão em vários
músculos
51,4
32,1
Estresse cognitivo Problemas para se
concentrar
59,5
31,0
Dificuldade para tomar
decisões
43,8
39,7
Dificuldade para pensar 47,0
36,3
claramente
Dificuldade para se
lembrar
49,7
38,4
Baixa
(%)
7,8
8,7
15,4
13,3
7,5
4,2
4,5
11,9
16,6
11,8
10,5
16,5
9,5
16,5
16,7
11,3
A maioria dos participantes indicou boa saúde geral
(72,2%) e vitalidade (53,2%). Os sintomas ansiosos obtiveram
maior frequência do que os depressivos (15,4% e 13,3%,
respectivamente). Os sintomas de estresse foram: dificuldade
para pensar claramente (16,7%), dores ou problemas no
estomago (16,6%), tensão em vários músculos (16,5%),
dificuldade para tomar decisões (16,5%), falta de iniciativa
(11,9%) e aperto ou dores no tórax (11,8%).
Os participantes apresentaram-se mais vulneráveis aos
sintomas ansiosos, depressivos, no bem-estar psicológico
(14,4%); e relativos ao estresse (11,4%). As mulheres
apresentaram maior frequência de sintomas (13,6%), na
saúde geral, do que os homens (8,2%). Elas apresentaram,
principalmente, sintomas ansiosos e depressivos, no bem-estar
psicológico (mulheres, 21,8%; e homens, 8,7%), e do estresse
geral (mulheres, 18,2%; e homens, 6,1%) (ver tabela 4).
O teste inferencial qui-quadrado revelou diferença
estatisticamente significativa entre a insegurança no trabalho
e a saúde geral (X2=1316,67, p≤0,01), o bem-estar geral
(X2=346,71, p≤0,01), o bem estar psicológico (X2=649,98,
p≤0,01), a vitalidade (X2=460,26, p≤0,01) e o estresse geral
(X2=864,96 p≤0,01).
43
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47
Tabela 4
Percentuais de respostas nas dimensões da saúde geral
Bem-estar geral
Bem-estar psicológico
Freq.
H
M
T
H
M
T
(%)
(%)
(%)
(%)
(%)
(%)
Baixa
70,7
74,3
72,2
31,8
27,0
29,8
Média
20,7
19,0
20,0
59,5
51,2
55,8
Alta
8,6
6,7
7,8
8,7
21,8
14,4
Nota. As dimensões foram subdivididas em homens (H), mulheres (M) e total (T).
Discussão
A insegurança no trabalho relacionou-se à saúde geral,
indicando que maior insegurança representou menor saúde.
Estudos com outras populações apoiaram essa relação (Brand,
Warren, Carayon & Hoonakker, 2007; Rugulies, Bültmann, Aust
& Burr, 2006;). Os participantes relataram, principalmente,
sintomas ansiosos, depressivos e de estresse, relacionados à
insegurança no trabalho. Tal insegurança, por longo período
de tempo, gerou estresse contínuo, depressão e ansiedade, em
concordância com os achados do estudo de Strazdins, D’Souza,
Lim, Broom e Rodgers (2004).
As relações de trabalho, historicamente fragilizadas no
Brasil, ocasionam aos trabalhadores a iminência constante
do risco do desemprego. O que representa, objetivamente,
a possibilidade de exclusão social ou a inserção no mercado
informal, determinando menos acesso aos benefícios sociais,
especialmente, o da saúde (Manyo-Gomez & Lacaz, 2005).
Como os participantes possuíam famílias constituídas, a maioria
com filhos, considera-se que o desemprego representaria
fator de empobrecimento e exclusão social também para as
suas famílias. O que, possivelmente, aumentou o medo do
desemprego. Assim, para os participantes, a prevalência de
insegurança no trabalho, na ordem 71,6%, revelou-se acima
dos estudos internacionais realizados.
A insegurança no trabalho, ao ocasionar sintomas
ansiosos, depressivos e de estresse, contribui para a redução
da produtividade individual (Brogmus, 1996; Murphy, Duxbury
& Higgins, 2006). Tais sintomas associam-se a incapacidade
funcional (Egede, 2007) e ao presenteísmo, ou seja, a perda
de produtividade no local de trabalho; e o absenteísmo, faltas
ao trabalho (Caverley, Cunningham & MacGregor, 2007;
Lerner et al., 2004a; Sanderson & Andrews, 2006). Portanto,
obtêm-se como hipótese de que os sintomas psicológicos,
apresentados pelos participantes, contribuíram para a redução
da produtividade individual.
A queda da produtividade ocorreu devido ao declínio
Vitalidade
H
(%)
48,8
39,2
9,5
Estresse geral
M
(%)
57,1
35,3
7,6
T
(%)
46,2
37,6
8,7
H
(%)
68,4
25,5
6,1
M
(%)
45,3
36,5
18,2
T
(%)
41,3
30,3
11,4
cognitivo, ocasionado pelos sintomas ansiosos, depressivos e do
estresse, nos estudo de Hancock e Vasmatzidis (2003). Estudos
comprovam a prevalência de declínio cognitivo associado aos
distúrbios psicológicos (Linden, Keijsers, Eling & Schaijk, 2005;
Schmidt & Neubach, 2007). Para os participantes, os principais
prejuízos cognitivos apresentados foram: dificuldade de pensar
claramente, de tomar decisões e de iniciativa, devido ao estresse.
O estresse, igualmente, gerou tensão em vários músculos,
problemas ou dores de estômago e aperto ou dores no tórax.
Estudo de Meerding, Ijzelenberg, Koopmanschap, Severens e
Burdorf (2005) revelou que os problemas de saúde, incluindo
a dor crônica, reduziram a produtividade individual em cerca
de 5% a 12%. Desse modo, os estados de dor relatados pelos
participantes também poderiam reduzir a produtividade
individual. Outros estudos corroboraram com a hipótese de
que a insegurança no trabalho foi um dos fatores contributivo
para a queda na produtividade individual. Reisel, Chia, Maloles
e Slocum (2007) demonstraram o efeito da insegurança no
trabalho na queda da produtividade individual e, indireto, das
organizações. A redução da produtividade no trabalho levaria
aos prejuízos financeiros importantes. Stewart, Ricci, Chee,
Morganstein e Lipton (2003) realizaram a estimativa dos custos
com a queda da produtividade individual no trabalho devido à
depressão, que foi na ordem de 44,0 bilhões de dólares por ano.
A insegurança no trabalho, ao vulnerabilizar a saúde
psicológica dos participantes, além de diminuir a produtividade
individual, pode comprometer a permanência no próprio
emprego. Lerner et al. (2004a) apontaram que parte das
pessoas com depressão perdeu, de fato, o emprego ao longo do
tempo. Em outro estudo de Lerner et al. (2004b), a queda da
produtividade, devido às incapacidades na saúde psicológica,
vulnerabilizaram o emprego, principalmente, para pessoas que
necessitavam tomar decisões e ter contato com clientes.
Ademais, a tomada de decisão representa um fator
importante para a manutenção do emprego, mediante a
necessidade de mudanças rápidas e da competência que o
trabalho flexível exige (Mikkelsen, Saksvik, Eriksen & Ursin,
44
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47
1999). Contudo, a tomada de decisão foi um dos principais
declínios cognitivos apresentados pelos participantes, fato que
os colocaria sob possível vulnerabilidade do emprego. Campbell,
Carruth, Dickerson e Green (2001) encontraram que o medo do
desemprego se baseou em avaliações sobre variáveis plausíveis
e objetivas. A insegurança foi originada, principalmente,
pela observação da fragilidade das relações trabalhistas do
próprio emprego. Assim, o maior medo de desemprego
representou maior desemprego futuro, já que as avaliações
sobre a possibilidade de desemprego basearam-se em fatores
contextuais do trabalho.
A insegurança no trabalho associou-se a condições precárias
de trabalho (Benach & Muntaner, 2007; Strazdins, D’Souza,
Lim, Broom & Rodgers, 2004). Aliás, as condições precárias de
trabalho, no Brasil, foi um fato historicamente relatado (Gomez
& Thedim-Costa, 1999; Seligmann-Silva, 1994). Considera-se,
dessa forma, que para a amostra desse estudo, uma vez que
possuíam nível superior completo, com cargos administrativotécnicos ou de liderança (gerenciais e de diretoria) e atuavam em
grandes empresas, devendo receber bom nível de informações,
estavam cientes das contingências do mercado de trabalho
brasileiro e do próprio trabalho, revelando significativo medo do
desemprego.
O principal medo apresentado, pelos participantes, foi
relativo ao de serem desempregados devido às novas tecnologias.
De acordo com Ferrer (1998), foi a inovação tecnológica que, em
alguma medida, propiciou o desemprego estrutural, incluído o
Brasil, pois, foi um dos instrumentos que auxiliou nas mudanças
do trabalho contemporâneo.
As mulheres revelaram que o maior medo foi relativo à
transferência involuntária para outro local. Do mesmo modo,
neste estudo, as mulheres apresentaram maior insegurança e
maior frequência de sintomas relativos ao estresse, ansiedade e
depressão. As participantes desse estudo apresentaram menores
salários e oportunidades de ascensão profissional, quando
comparadas aos homens. Esses fatores podem ter intensificado
a insegurança no trabalho e o consequente prejuízo à saúde
psicológica observado entre as mulheres participantes do estudo.
Embora as mulheres tenham conquistado expressivo espaço
no mercado de trabalho, pesquisas revelaram que os papéis
de gênero continuaram atuantes, recaindo sobre as mulheres
outras questões, como a organização do lar e gerenciamento
da família (Perrone, Webb & Blalock, 2005; Carnicer, Sanchez,
Perez & Jimenez, 2004). Ao longo das últimas décadas, as
mulheres brasileiras continuaram com menores remunerações e
possibilidades de ascensão profissional, embora, houvesse uma
lenta mudança, no Brasil e em várias partes do mundo, a partir
dos anos 90, não suficiente, ainda, para modificar este quadro
(Bruschini & Puppin, 2004).
Também, os profissionais com mais idade apresentaram
maior insegurança no trabalho e maior prevalência de sintomas
psicológicos. A idade revelou-se como um fator importante
das relações entre essas variáveis, em estudos (Hotopp, 2007;
Näswall & Witte, 2003). Ademais, o mercado de trabalho
contemporâneo tende a excluir as pessoas mais velhas (Mills,
2004).
O mesmo pode ser considerado para os menores cargos
e salários, que também apresentaram maior insegurança no
trabalho e menor saúde. Estudos realizados corroboraram com
esses achados (Campbell et al., 2001; Green, 2011). Desse
modo, levanta-se como hipótese que a alta frequência de
insegurança no trabalho, associada a menor saúde psicológica,
ao desencadear distúrbios psicológicos que reduziriam a
capacidade cognitiva, acarretaria em maior vulnerabilização do
emprego para as mulheres, as pessoas com mais idade, as com
menores cargos e salários. A possibilidade de maior exclusão
no trabalho, percebida pelas mulheres, redundou em maior
insegurança.
Cuyper e Witte (2007) revelaram que as pessoas com
empregos permanentes apresentaram maior insegurança no
trabalho do que as com empregos temporários. BernhardOettel, Sverke e Witte (2005) indicaram que as pessoas com
empregos permanenetes, além de maior insegurança, relatam
menor bem-estar associada a esta.
Mesmo que o emprego formal tenha representado uma
proteção à saúde psicológica, em alguma medida, para os
participantes; como contraponto, também propiciou o medo
da perda do emprego, representando vulnerabilidade da
saúde psicológica e, possivelmente, ao próprio emprego.
Pois, eles apresentaram declínios cognitivos que poderiam,
provavelmente, ocasionar queda da produtividade individual.
Portanto, a insegurança no trabalho, revelou-se fator de
vulnerabilidade à saúde e à manutenção do emprego, além de
prováveis custos significativos às empresas, ao sistema de saúde
e ao Estado.
Considerações finais
O desenvolvimento histórico brasileiro, delineando relações
trabalhistas fragilizadas, é o principal aspecto que contribui
para o medo significativo do desemprego, pois este representa
a possibilidade de exclusão social para a maioria das pessoas
45
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 40-47
economicamente ativas, que tenderão à inserção no mercado
informal, com empobrecimento para elas e suas famílias.
Igualmente, o desemprego representa a perda do acesso à
saúde de melhor qualidade para as pessoas e seus familiares. O
sistema público de saúde brasileiro não é suficiente para atender
as demandas existentes, além da precarização desse serviço ao
longo do tempo.
Esta pesquisa apresenta limitações que devem ser
observadas, a primeira é quanto ao seu delineamento transversal
que não permite estabelecer relações de causalidade. A segunda
é relativa ao tipo de amostra, não representativa, que não permite
a generalização de seus resultados. Dessa forma, sugere-se
a realização de outros estudos para ampliar o entendimento
acerca das interações entre insegurança no trabalho e saúde
mental em outros delineamentos, amostras, variáveis associadas
e contextos de trabalho.
A insegurança no trabalho demonstrou-se deletéria à
saúde psicológica. Os principais sintomas apontados foram
os depressivos, ansiosos e do estresse, sugerindo um círculo
de vulnerabilidade para os participantes desse estudo.
Sumariamente, a insegurança no trabalho, ao vulnerabilizar
à saúde, gerou o declínio cognitivo, fator de provável queda
na produtividade individual, ocasionando, assim, maior
vulnerabilidade do emprego. As mulheres, as pessoas com mais
idade, as com menores cargos e salários apresentaram maior
insegurança no trabalho e menor saúde. O medo do desemprego,
para essas pessoas, apresentou-se com base em evidências de
risco e insegurança em relação ao próprio emprego. Para os
participantes, o maior medo do desemprego foi relativo a ser
desempregado por causa da inovação tecnológica. Tal inovação,
de fato, foi um dos fatores que contribuíram para o desemprego
estrutural nos países industrializados e em industrialização,
inclusive o Brasil. Assim, observou-se que os participantes
desse estudo estavam cientes das contingências do mercado
de trabalho e das próprias condições de trabalho, bem como da
vulnerabilidade de seus empregos.
Aponta-se, também, a falta de estudos sobre essas questões
com populações brasileiras e, inclusive, pesquisas comparativas
com outras populações, em outros países. Embora, o campo de
estudos sobre a saúde do trabalhador tenha se desenvolvido
significativamente nos últimos anos, no Brasil, a insegurança
no trabalho, devido a sua importância e complexidade, merece
maior aprofundamento em pesquisas.
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Recebido em setembro/2011
Revisado em novembro/2011
Aceito em janeiro/2012
47
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Fatores de risco e proteção para criança soropositiva ao HIV
Risk factors for child protection and HIV seropositive
Fabíola da Silvaa*, Lília Cavalcanteb
Resumo: Objetivou-se investigar fatores de risco e proteção para uma criança soropositiva ao HIV,
abrangendo sua vida desde a fase intrauterina, durante o período de acolhimento institucional, até seu
retorno à convivência familiar pela via da adoção. Os dados foram obtidos em consulta aos processos
de destituição do poder familiar e de adoção, além da realização de entrevista semidirigida com os pais
adotivos. Os resultados indicaram que a utilização de substâncias entorpecentes pela genitora, a instalação
de transtorno psiquiátrico decorrente deste hábito e a fragilização dos vínculos familiares e sociais foram
os fatores de risco para a criança. Já dentre os de proteção, ressaltam-se: o desejo dos adotantes em
proporcionar à criança o convívio familiar, contatos anteriores com portadores de necessidades especiais
e amotivação deles para a construção do vínculo de parentalidade através da adoção. Discute-se a
necessidade de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento de crianças soropositivas ao HIV.
Palavras-chave: Fatores de risco e de proteção; Criança com HIV; Adoção
Abstract: The objective was to investigate the risk and protective factors for HIV seropositive child, covering
his life from the early intrauterine, during institutionalization, until her return to family through adoption.
Data were obtained through consultation processes involving removal power’s family and adoption, in
addition to conducting semiestrutured interviews with their adoptive parents. The results indicated that
the use of narcotics of the child’s biological mother, the installation of a psychiatric disorder resulting from
this habit and the weakening of their family and social ties were risk factors for the child. But among the
protection, we emphasize the desire of the adopters to provide the child living in their family, previous
contacts with special needs people and their motivation for building the bond of parenting through
adoption. It discusses the need for public policies that foster the development of children HIV positive.
Keywords: Risk and protective factors; HIV child; Adoption
a Especialista, Psicóloga Jurídica do TJPA; Mestranda no Programa de Pós-Graduação de Teoria e Pesquisa do Comportamento da
Universidade Federal do Pará.
*E-mail: [email protected]
b Professora Doutora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação de Teoria e Pesquisa do Comportamento e da Faculdade de
Serviço Social da Universidade Federal do Pará.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
48
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
Para Bronfenbrenner (1979/1996), o processo de
desenvolvimento humano no decorrer do ciclo vital remete
às mudanças progressivas e contínuas na percepção que o ser
desenvolvente constrói de seu ambiente ecológico, na relação
que estabelece com este e na capacidade de descobrir, sustentar
ou alterar as propriedades do seu entorno. Na infância, de
forma mais significativa, os processos proximais propulsores do
desenvolvimento assumem as particularidades dos contextos
nos quais a criança participa, em suas múltiplas dimensões e
configurações.
A família pode ser compreendida como um potente e
universal ambiente primário gerador de desenvolvimento nas
sociedades humanas. É nela que a pessoa vivencia estabilidades e
mudanças biopsicológicas decisivas para o seu desenvolvimento,
sendo este processo favorecido pela presença neste contexto
de relações interpessoais marcadas pela proximidade física e
afetiva, no transcurso de um dado período de tempo e condições
ambientais específicas (Bronfenbrenner, 1979/1996). Todos
estes aspectos interagem de forma a proporcionar avanços em
termos cognitivos, motores, emocionais e sociais para os que
estão envolvidos nessas relações.
Contudo, ao examinar estudos sobre os mecanismos
processuais do desenvolvimento humano nesse tipo de ambiente,
Bronfenbrenner (1979/1996) concluiu que o grupo familiar pode
apresentar tanto fatores de risco quanto de proteção. Para o autor,
o contexto do desenvolvimento se constitui a partir da interação
complexa entre vários elementos nele presentes, tais como as
características da pessoa em desenvolvimento, as práticas de cuidado,
os estímulos ambientais sociais, dentre outros.
Nessa perspectiva teórica, tanto os fatores de risco quanto
os de proteção ao desenvolvimento, devem ser entendidos
de forma processual e contextual, conforme discutem Morais
e Koller (2004) e Siqueira e Dell’Aglio (2006). Isso significa
que comparativamente uma mesma experiência ambiental
pode atuar mais como fator de proteção para uma pessoa do
que para outra. Um exemplo disso refere-se ao acolhimento
institucional de crianças motivado pelo uso de substâncias
entorpecentes por seus pais. Caso elas tenham vinculação
afetiva parental consolidada, o afastamento do grupo familiar,
apesar de preventivo contra várias formas de abuso, pode
ocasionar manifestações emocionais de angústia e tristeza e até
mesmo a emergência de sintomas depressivos. Já para aquelas
recorrentemente sujeitas a agressões físicas, conseqüentes desse
uso de entorpecentes, a inserção no programa de acolhimento
pode contribuir significativamnte para a prevenção de lesões
e outrassequelas físicas e psicológicas. O mesmo raciocínio
é valido para os fatores de risco. Por essa razão, estudos sobre
fatores de risco e proteção preocupam-se não apenas em definir
cada um desses termos, mas também apontar para a atualidade
das pesquisas que investigam os elementos contextuais a eles
associados.
A literatura tem dedicado mais espaço à discussão dos
fatores de risco a partir de condições ou variáveis associadas a
uma maior probabilidade de ocorrência de resultados negativos
ou não desejáveis no desenvolvimento. Dentre eles, ressalta-se
negligência parental, violência doméstica, padrões parentais
de cuidado e supervisão inadequados, escassez de recursos
materiais para prover a sobrevivência, rigidez nas práticas
educativas e transtornos psiquiátricos (Yunes, Miranda & Cuello,
2004; Algood, Hong, Gourdine & Williams, 2011). Já os fatores de
proteção referem-se geralmente às influências que modificam,
melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados riscos
de desadaptação. Todavia, estes fatores podem não apresentar
qualquer efeito na ausência de um elemento estressor, pois a
função deles é modificar a resposta do indivíduo em situações
adversas, mais do que favorecer diretamente o desenvolvimento
adaptado, como explicam esses autores. Ou seja, um fator é
considerado protetivo quando atenua os prejuízos gerados
por uma situação adversa e não quando consegue evitá-la por
completo.
Na atualidade, dentre os fatores de risco para a manutenção
de vínculos familiares, destacam-se aqueles decorrentes do
avanço da AIDS em mulheres, na década de 1990. Tal fenômeno
tem provocado o aumento do número de órfãos em decorrência
do falecimento delas e de seus companheiros, fazendo emergir
esta e novas situações de vulnerabilidade para crianças e
adolescentes. Dentre outras, menciona-se a transmissão vertical
do vírus HIV que pode ocorrer durante a gestação, o parto e a
amamentação (Filipe, Moreno & Rea, 2006).
No contexto brasileiro, conforme argumentam essas
autoras, embora as intervenções preventivas contra a
transmissão vertical estejam hoje disponíveis para toda a
população de gestantes soropositivas ao HIV e seus filhos, ainda
existem muitas dificuldades na rede de saúde que retardam o
diagnóstico laboratorial da infecção por este vírus. A cobertura
de mulheres testadas no pré-natal é insuficiente, principalmente
nas populações socialmente vulneráveis, e a qualidade deste
procedimento ainda está aquém do desejável. A administração
de zidovudina (medicamento específico utilizado no combate da
doença) injetável é realizada em menos de 50% dos partos do
total de mulheres estimadas como infectadas pelo HIV (Filipe,
Moreno & Rea, 2006).
49
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
O falecimento dos pais vitimados pelo HIV deixa crianças
e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e pessoal
na medida em que a sua guarda e a responsabilidade por seus
cuidados diários podem ser sucessivamente transferidos para
diferentes membros da família, tornando-os mais suscetíveis a
abusos, maus-tratos e abandono por parte dos parentes, o que
poderá culminar no seu encaminhamento para instituição de
acolhimento, como medida de proteção especial, prevista na Lei
8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O Guia de Tratamento Clínico da Infecção pelo HIV em Crianças
(n.d), financiado pela Coordenação Nacional de DST e AIDS
– SPS do Ministério da Saúde e pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aponta
que, nos próximos dez anos, mais de 40 milhões de crianças vão
perder um ou ambos os pais por causa da AIDS, principalmente
em países em desenvolvimento. Em regiões com uma taxa
elevada de HIV, mais de um terço das crianças ficarão órfãos. E
o que é mais grave: conforme essa publicação, as consequências
prejudiciais à vida dessas crianças têm início desde o momento
em que seus pais apresentam doenças relacionadas ao vírus.
Isto porque, estando eles próprios doentes, ficam sem condições
para trabalhar e prover recursos como alimentos, vacinas e
outras formas de suporte à saúde de seus filhos.
Diante disso, verifica-se que, quando ficam órfãos, grande
parte das crianças e dos adolescentes soropositivos ao HIV,
por não terem pessoas que consigam prover seu sustento e os
cuidados que lhes são necessários, costumam ser direcionadas
para instituições de acolhimento. Os profissionais que atuam
nestas organizações realizam várias intervenções, objetivando
o seu retorno aos cuidados de parentes biológicos. Todavia,
se esta convivência se torna de algum modo inviável, essas
crianças e adolescentes são inseridos em famílias substitutas,
por meio do instituto jurídico da adoção. Nessas situações, os
espaços institucionais com suas características físicas e sociais
constituem-se em seu contexto primário de desenvolvimento,
e em seguida, as famílias adotivas.
É importante notar que os programas de acolhimento
têm caráter essencialmente provisório e excepcional, sendo
destinados àqueles em situação de risco pessoal e social, nas
várias circunstâncias em que seus direitos são violados, conforme
preconiza o ECA. Contudo, essa delimitação temporal muitas
vezes não tem sido observada quando o caso envolve crianças e
adolescentes soropositivos do HIV, que tendem a permanecerem
longos períodos em situação de acolhimento institucional,
gerando uma série de repercussões em suas vidas. Em outras
palavras, a aplicação da medida de acolhimento institucional,
como mecanismo de proteção social à criança cujos genitores
não estão disponíveis para exercer funções relativas ao cuidado
parental, pode não respeitar o caráter provisório da medida que
determina a lei. Sabe-se que crianças nessas condições enfrentam
várias intercorrências de saúde, necessitam de medicamentos
especiais e serviços médicos e terapêuticos especializados.
E que as instituições de acolhimento infantil apresentam
características ambientais que divergem das condições
vivenciadas em família, como por exemplo, a delimitação de
uma proporção de cuidadores por criança, horários fixos para
realização de alimentação e de brincadeiras, escasso convívio
social e comunitário (Cavalcante, 2008; Silva, 2004). A situação
tende a se agravar quando se observa que, pelas mesmas razões,
a convivência dessas crianças e adolescentes em um lar adotivo
é uma realidade difícil sob vários aspectos, sendo reduzido o
número de pessoas que se disponibilizam a acolhê-los no seu
grupo familiar por meio da adoção.
Nacionalmente, Cavalcante (2008), Rizzini (2004) e
Siqueira e Dell’Aglio (2006), assim como Spitz (1965/1998) e
depois Bronfenbrenner (1979/1996) reuniram várias análises
de pesquisas sobre o tema e efetivaram investigações sobre
o processo de desenvolvimento infanto-juvenil de crianças e
adolescentes acolhidos em ambientes coletivos de cuidados.
Seus estudos demostraram que o acolhimento institucional
pode ser tanto um espaço de proteção quanto resultar em uma
variedade de déficits no processo de desenvolvimento de criança
e adolescentes acolhidos. E essa realidade marcada por riscos e
ameaças ao desenvolvimento vale para toda e qualquer criança
e adolescente, mas em particular aos que apresentam doenças
crônicas ou síndromes como a AIDS.
Por outro lado, esses mesmos autores contribuem para
o entendimento processual das funções exercidas pelas
instituições de acolhimento, ao contrário do que havia sido
mostrado em pesquisas há mais de meio século atrás, que
focalizavam exclusivamente os prejuízos desses ambientes
para o desenvolvimento humano. No caso das crianças e
adolescentes soropositivos ao HIV, pode-se pensar que o
acesso a uma dieta adequada, o engajamento em tratamentos
médicos, o recebimento de cuidados especiais por adultos, são
recursos muitas vezes indisponíveis nos seus grupos familiares
biológicos, mas presentes nas instituições de acolhimento, os
quais se constituem como fatores de proteção que podem fazer
a diferença na busca por um desenvolvimento o mais saudável
possível para tais crianças e adolescentes. Já dentre os fatores
de risco, ressalta-se a fragilização dos vínculos sociais e a longa
permanência nos programas de acolhimento, que podem agravar
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
o quadro de abatimento psicológico da criança submetida
constantemente a baterias de exames e procedimentos médicos.
É comum se observar que crianças e adolescentes
soropositivos necessitam de cuidados substitutos, porque seus
pais estão doentes ou mesmo já faleceram. Assim, como medida
de proteção, eles são encaminhados a instituições de acolhimento
em busca de melhores condições de tratamento e convivência
em família. Nesses espaços, para não permanecerem de maneira
prolongada, são realizadas intervenções com o objetivo de
colocá-los o mais rápido possível em lares adotivos, conforme
prevê a Lei 12.010/2010 (Lépore & Rossato, 2009). Entretanto,
se adotar uma criança saudável requer atenção e disponibilidade
afetiva do candidato para acolher um ser que foi gerado por outra
pessoa e que apresenta uma história pregressa caracterizada por
rejeições, negligências, maus-tratos, quanto mais nas situações
em que envolvem crianças e adolescentes soropositivas. Assim,
quando a criança adotada apresenta déficits e doenças préexistentes, o investimento para a construção do vínculo de
filiação tende a ser amplificado, pois são contínuas as demandas
de cuidado e atenção necessárias ao avanço do seu processo de
desenvolvimento (Fonseca, Santos & Dias, 2009).
No caso das crianças e adolescentes portadoras do vírus HIV,
eles fazem uso de forma contínua de medicações e, em várias
ocasiões, poderão realizar tratamentos específicos, necessitando
de cirurgias, fisioterapias, dietas especiais, atendimento em
terapia ocupacional, dentre outros. Por isso, é importante que os
pais adotivos conheçam profundamente o seu quadro de saúde,
tanto no que se refere à extensa rotina de cuidados quanto no
que diz respeito aos comportamentos e modo de lidar com
filhos nessa condição. Já em relação aos aspectos psicológicos
relevantes para esses pais, Serra e Zacares (1991) argumentam
sobre a importância da maturidade psicológica no processo de
consolidação desta modalidade de vinculação filial. Para estes
autores, a maturidade é caracterizada pelo desenvolvimento do
afeto, de autonomia, de independência, de responsabilidade,
e do reconhecimento de coerências e dissonâncias entre as
próprias emoções e comportamentos.
Diante de todos os aspectos de vulnerabilidade aos quais
estão expostas as crianças e adolescentes soropositivas ao HIV,
aliado ao fato de que existe ainda um número reduzido de pessoas
habilitadas à adoção nos tribunais de justiça estaduais dispostas
a inclui-las em seu grupo familiar, despertou interesse, para fins
de pesquisa, a adoção de uma criança negra e soropositiva que
tramitou na Vara da Infância e Juventude Comarca de Belém. O
estudo tomou como referência investigação anterior realizada
por Esteves e Santos (2009), que colocou em discussão a forma
como a adoção pode funcionar como medida sociojurídica de
proteção, a partir do relato de um caso real que envolveu criança
com essa condição específica. No entanto, o presente estudo
avançou, em relação ao primeiro, no sentido de descrever de
forma mais abrangente as características do caso pesquisado,
apontando os fatores de risco e proteção ao desenvolvimento
para a criança soropositiva ao HIV. Entre os mais significativos,
estão os fatos relacionados à adolescência de sua genitora,
passando por seu contexto de vida intrauterina, situação de
abandono após o nascimento e posterior institucionalização, até
sua reinserção familiar em grupo familiar adotivo, por pessoas
sem qualquer laço de parentesco ou amizade com sua família
de origem.
Método
Delineamento da pesquisa e participantes
Este estudo consistiu em uma pesquisa qualitativa, cujo
delineamento foi de Estudo de Caso (Yin, 2003/2010). A seleção
do caso ocorreu por ele se referir à adoção de uma criança
negra, com mais de um ano de idade e soropositiva ao HIV. Os
participantes deste estudo foram os pais adotivos de Aline. O
nome da criança e dos demais citados na pesquisa são fictícios a
fim de se preservar a identidade das pessoas envolvidas.
Instrumentos
Os dados foram coletados através da análise de documentos
que constam como peças importantes dos processos judiciais
de destituição do poder familiar e de adoção da criança em
questão, além da realização de entrevista semidirigida com
seus pais adotivos. A consulta aos processos permitiu o acesso
à história de vida de Aline (a criança) e Mara (a mãe biológica),
assim como informações sociodemográficas de Carlos e Laura
(os pais adotivos). Já o roteiro utilizado na entrevista com o
casal contemplava questões sobre o modo como tomaram
conhecimento do caso e foram se aproximando de Aline,
motivações existentes à época para a adoção, atividades
cotidianas da criança e perspectiva da revelação a ela sobre a sua
história de vida.
Procedimentos e análise dos dados
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Medicina
Tropical da UFPA (registro nº 22 /2011) e pelo Juiz da 1ª Vara
da Infância e Juventude de Belém. Logo depois, teve início a
pesquisa documental por meio da análise dos autos dos processos
judiciais, o contribuiu para a elaboração do roteiro de entrevista
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e a definição da ordem das questões a serem formuladas. Em
seguida, o casal adotante foi contatado e após esclarecimentos
sobre a pesquisa, decidiram prestar as informações solicitadas
e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As
verbalizações dos participantes foram gravadas e transcritas.
A análise dos dados obtidos a partir de consulta aos
documentos oficiais foi organizada por meio de categorias no
sentido de permitir o registro das histórias de vida de Mara e
Aline. Quanto aos dados das entrevistas, as unidades de análise
foram definidas posteriormente, efetuando-se recortes dos
conteúdos das falas, tais como palavras, expressões ou frases que
se referiam aos temas específicos investigados por este estudo
(Yin, 2003/2010).
Resultados
Os resultados serão apresentados a partir de dois eixos
de análise. O primeiro refere-se ao período anterior ao
encaminhamento de Aline para uma instituição de acolhimento
infantil, englobando recortes da história de vida de Mara, a mãe
biológica, desde sua adolescência até o período puerperal em
que conviveu com a filha. No que se refere ao nascimento de
Aline, foram consultados registros sobre seu parto e as eventuais
intercorrências neste período até a sua convivência precoce em
ambiente hospitalar e instituição de acolhimento. Esses achados
foram obtidos a partir da consulta ao processo judicial de
destituição do poder familiar.
O segundo eixo de análise contempla aspectos referentes à
adoção de Aline, compreendendo a história de vida do casal e a
convivênciainicial deles com a criança. Essas informações foram
retiradas do processo de adoção e de entrevista com Carlos e
Laura.
1. Período anterior à institucionalização de Aline
Mara, a mãe biológica: Por toda a vida ela vivenciou os efeitos
da privação de recursos materiais, residindo sozinha desde muito
jovem em imóvel insalubre, desprovido de energia elétrica,
saneamento básico e rede de esgoto sanitário. Os documentos
consultados apontam mudanças de comportamento dela após o
falecimento de sua mãe, em sua adolescência, circunstância em
que teria iniciado o uso de substâncias entorpecentes, passando
a apresentar agressividade no trato com seus familiares e
amigos, gerando a fragilização destes vínculos sociais e afetivos.
Além disso, engajou-se em relacionamentos sexuais ocasionais
e múltiplos. Tempos depois engravidou de seu primeiro filho,
contudo, não o criou, entregando-o aos cuidados de terceiros.
Mais tarde, ainda envolta nessa condição de vulnerabilidade
social, econômica e familiar, engravidou novamente, desta vez
de Aline.
Informações indicaram que Mara não realizou exames de
pré-natal durante a segunda gestação. Em seu nascimento,
Aline manifestou de modo acentuado distúrbios psíquicos
caracterizados por articulação verbal desconexa, instabilidade
emocional e pequena habilidade para dispor dos cuidados
necessários à recém-nascida. Estas constatações preocuparam
de imediato a equipe da maternidade, o que gerou o
encaminhamento dela a um centro psiquiátrico de referência.
A proposta era encaminhá-la para tratamento, a partir do seu
acesso a rede de serviços existente no seu município de origem
ou mesmo foram dele, na capital do estado, de modo que, ao
atingir um nível de estabilidade emocional satisfatório, pudesse
ela mesma cuidar de Aline. Complementarmente, a equipe
da maternidade verificou se havia a possibilidade de os tios
maternos se responsabilizarem pela criança. Contudo, os mesmos
alegaram deter um relacionamento conflituoso com Mara e que
não possuíam condições materiais necessárias para os cuidados
da recém-nascida. Assim, decidiu-se que Aline e sua mãe seriam
conduzidas juntas a uma instituição psiquiátrica. Entretanto,
como a criança não poderia ser mantida neste local e sua mãe
foi considerada incapaz de, naquele momento, prover-lhe os
cuidados necessários, a assistente social do hospital psiquiátrico
solicitou ao Conselho Tutelar que requeresse uma vaga para a
criança em um programa de acolhimento institucional, o que foi
feito em setembro de 2007.
Durante a internação de Mara foram realizados vários
exames especializados, entre eles o Anti-HIV, com resultado
positivo. Nessa instituição, ela não se engajou no tratamento
psicológico, tentou agredir fisicamente uma enfermeira, o que
provocou a sua troca de ala e facilitou sua fuga. Desde então,
seu paradeiro tornou-se desconhecido. Não procurou sua
família de origem, nem Aline, que, nesse período, já havia sido
encaminhada e acolhida institucionalmente. No processo de
destituição do poder familiar, não havia registro de contatos
telefônicos e/ou realização de visita dela à criança, nem de seus
familiares. Diante desse quadro, os profissionais do programa de
acolhimento efetuaram contatos com os irmãos de Mara, com
o objetivo de tentar novamente a inserção da criança no grupo
familiar consanguíneo. Todavia, eles declararam mais uma vez a
indisponibilidade para cuidar de Aline.
Assim, diante da ausência de Mara, da negativa dos
seus irmãos em aceitar a guarda de Aline, os profissionais do
programa de acolhimento emitiram parecer favorável ao início
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
dos procedimentos jurídicos para destituição do poder familiar,
visando oportunizar a criança condições para o exercício do
direito à convivência familiar comunitária.
Aline, a criança: Ao dar entrada no programa de
acolhimento, Aline foi recepcionada por uma técnica de
enfermagem que trabalha na instituição, que após exame
clínico registrou no prontuário da criança que ela apresentava
condição de saúde satisfatória, com pele limpa e coto umbilical
preservado. Após os procedimentoshabituais de higiene pessoal,
a criança foi conduzida até o dormitório destinado à sua faixa
etária, compreendida entre zero e seis meses.
Durante a sua primeira noite no abrigo, Aline apresentou
um quadro de febre e vômito, rejeitando o alimento oferecido.
Diante desse fato, ela foi encaminhada ao hospital pediátrico,
onde ficou internada por dois meses. Realizaram-se vários
exames, dentre eles o Anti-HIV, que apresentou resultado
positivo. Assim, ela foi engajada em tratamento com antibióticos
por 10 dias, vitaminas e curativos no coto umbilical, além de
receber AZT por um período de 54 dias.
Em novembro de 2007, Aline foi avaliada por um profissional
com atuação no centro de referência para doenças infecciosas,
para a realização de exames complementares. Após esses, Aline
retornou para consulta no centro de referência, quando foi
indicada a necessidade de acompanhamento médico até os dois
anos de idade, realizando exames anti-HIV periodicamente, com
o intuito de observar precocemente indícios da manifestação da
doença.
Após todos esses procedimentos efetivados em relação
à Aline pela equipe do programa de acolhimento e com o
deferimento do processo de destituição do poder familiar pelo
juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude de Belém, a criança ficou
disponível então para adoção.
2. Aspectos referentes à adoção de Aline
Carlos e Laura, os pais adotivos: O casal residia em São
Paulo e foi lá que souberam da existência de Aline: uma menina
soropositiva para o HIV, disponível para adoção em um programa
de acolhimento infantil de Belém. Mesmo tendo conhecimento
das particularidades que envolviam a história de vida dela, o casal
entrou em contato com uma advogada local a fim de obterem
informações adicionais sobre a criança. Diante dessas, avaliaram
que possuíam subsídios suficientes para tomar a decisão de
adotá-la, pois, para eles, desde o momento em que souberam
da história de vida de Aline, a criança começou ser representada
como a filha que eles desejavam ter, conforme declaração contida
nos documentos consultados. Adicionalmente, informaram que,
desde os tempos de namoro, expressavam o desejo de adotar
uma criança. Além disso, na família de Laura já existiam casos
de adoção, todos bem sucedidos, o que fortaleceu o projeto do
casal.
Conforme documentos que constam do processo judicial
referente ao caso, o casal iniciou a formalização do pedido da
adoção de Aline ainda em São Paulo. Contudo, perceberam
que, mantendo-se distantes da cidade de origem da criança,
a tramitação do processo seria demorada. Assim, os adotantes
providenciaram a documentação necessária e ingressaram com
o pedido junto à 1ª Vara da Infância eJuventude em Belém, a fim
de que pudessem vir até este município para recebê-la; e, com
ela permanecer até que fosse concluído o processo de adoção
que tramitou através de um procedimento jurídico denominado
Carta Precatóriaa.
Posteriormente, segundo relatório da assistente social da
Vara da Infância e Juventude de São Paulo, já nos primeiros
contatos do casal com Aline, foi evidente a emoção dos
adotantes diante da fragilidade física da criança e, ao mesmo
tempo, a surpresa com a simpatia da menina, o que propiciou
rapidamente estabelecimento de uma relação afetiva entre os
três. Os adotantes perceberam que necessitariam direcionar
cuidados especializados de saúde à Aline, pelo fato dela
ter apresentado sorologia positiva ao vírus HIV. Todavia, os
documentos analisados durante a pesquisa mostraram que esses
aspectos não os fizeram desistir, mesmo quando advertidos
e cientes dos desafios que possivelmente iriam enfrentar no
decorrer do processo.
Em outubro do ano de 2008 foi concedida a guarda
provisória de Aline ao casal, que se direcionou a Belém para
conhecê-la e dar início à convivência em família. Dias depois,
já na companhia da criança, retornaram a São Paulo a fim de
começar um período de convivência familiar com ela.
Na capital paulista, a Vara da Infância e Juventude desta
cidade assumiu a responsabilidade de acompanhar o período
de convivência inicial entre o casal e a criança, através do
procedimento de Carta Precatória. Este órgão monitorou a
integração de Aline no grupo familiar adotante. A sentença de
adoção da criança foi deferida pelo Juiz da 1ª Vara da Infância e
Juventude de Belém, em agosto de 2009.
Após a obtenção desses dados documentais, foram
acessadas informações complementares ao estudo de caso, a
a
Carta precatória: é o expediente pelo qual o juiz se dirige ao titular de outra jurisdição que
não a sua, de categoria igual ou superior à de que se reveste, para solicitar-lhe seja feita determinada diligência que só pode ter lugar no território cuja jurisdição lhe está afeta. O juiz
que expede a precatória é chamado de deprecante, e o que recebe denomina-se deprecado.
A precatória ordinariamente é expedida por carta. Mas, quando a parte o preferir, ela pode
ser enviada por telegrama, radiograma, telefone ou fax. Ou em mãos do procurador.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
partir da realização de entrevista com Laura e Carlos, as quais
serão apresentadas a partir das seguintes categorias: ações
efetivadas para conhecer Aline; motivações do casal para
adoção; atividades cotidianas da criança; e por fim, estratégias
utilizadas pelo casal para discutir com ela aspectos particulares
da sua história de vida.
O casal iniciou a entrevista explicando as circunstâncias
em que tomou conhecimento da existência de Aline, através
de informações registradas em um site organizado por grupos
de apoio à adoção. Este continha uma breve descrição de Aline:
“Criança negra, HIV, Belém do Pará”. Enfatizaram os participantes
que o siteconsultado apresentava casos de crianças cuja adoção
é menos provável de acontecer, tais como: crianças portadoras
de necessidades especiais, grupo de irmãos, adoção tardia.
Os adotantes verbalizaram que inicialmente tiveram acesso
ao e-mail de uma pessoa que forneceu as primeiras orientações
quanto ao processo de habilitação e de adoção. Sobre a questão
disseram: “(...) nós ficamos sabendo de Aline por lá. Tinha o
contato de e-mail de uma pessoa chamada Paula, que logo
perguntou se estávamos habilitados, como falamos que não
estávamos ela disse que não poderia fornecer outras informações
e orientou para que nos habilitássemos. Isto aconteceu em abril de
2008. Então procuramos o fórum aqui em São Paulo, esperamos
um tempão para ser chamados, todo o dia íamos lá, só que depois
de muito tempo de espera falaram para a gente que não estavam
habilitando” (sic).
Conforme foi acessado durante a entrevista, destacase inicialmente a forma diferenciada pela qual o casal teve
conhecimento sobre a existência de Aline, demonstrando a
informalidade quanto à circulação de informações de crianças
acolhidas, o que provavelmente não é de conhecimento do
Sistema Jurídico, já que tais ações tramitam em segredo de
justiça.
No decorrer da entrevista, afirmaram que em julho de 2008
conseguiram obter o número de telefone da instituição onde
Aline estaria acolhida e o contato de uma advogada em Belém,
com experiência de atuação na área da adoção. Afirmaram ter
informado a esta profissional sobre a dificuldade de efetivarem
a habilitação para adoção em São Paulo e do interesse deles em
adotar Aline, ao que ela argumentou ser possível a solicitação
da habilitação Belém, o que foi alcançado em outubro de 2008.
Após a solicitação da guarda de Aline, que motivou a vinda do
casal ao Pará, eles disseram:
“Fomos então para Belém sem mesmo conhecer Aline. Ela
estava com um ano e dois meses nessa época. Tivemos o primeiro
contato com ela no abrigo, depois uma audiência com a juíza e
como Aline estava doente, com 39º de febre, ficamos só 48 horas
em Belém, retornando os três para São Paulo. Chegando aqui,
fomos direto procurar um centro especializado no atendimento de
HIV, onde Aline logo foi atendida e hoje negativou para o vírus.
Nesse período, aqui em São Paulo, fomos acompanhados por um
ano pela psicóloga daqui do fórum, que sempre nós visitava para
saber como Aline estava.” (sic).
É interessante perceber a disponibilidade afetiva do casal
para receber a criança em adoção, pois mesmo tendo somente
informações gerais sobre ela, decidiram vir para Belém, sem nem
mesmo conhecê-la. O destaque também se refere à obtenção da
Guarda, a qual foi concedida antes desse contato inicial entre
o casal e Aline, procedimento que não é muito comum, já que
tal medida é fornecida quando oscuidadores já tiveram pelo
menos um contato face a face com a criança da qual se tornam
civilmente responsáveis.
Quando os entrevistados foram perguntados sobre os
motivos da adoção, o porquê de terem escolhido Aline e não
outra criança, eles disseram não saber explicar tais razões.
Porém, falaram sobre seus sentimentos e valores:
“Não sabemos explicar exatamente o motivo, mas quando a
gente viu a postagem sobre ela na comunidade, ficamos pensando
que era uma criança que precisava de uma família... Também a
gente sempre quis ter um filho, ela veio para cá, pronto, se tornou
nossa filha”. Ao que acrescentaram ainda: “O fato dela ter HIV
não nós preocupou, porque nós estamos acostumados a lidar
com deficientes, então achamos muito normal e não foi o fato de
gente não poder ter filhos, porque nunca tentamos engravidar...
Ao contrário, desde que nós namorávamos, sempre falávamos em
adoção, então, quando casamos, decidimos que iríamos realizar
este projeto” (sic).
Essas afirmações dos entrevistados reforçam a
particularidade desta experiência de adoção uma vez que, pelo
apurado, a adoção de Aline não foi motivada por questões de
infertilidade de um dos cônjuges, o que comumente é apontado
como o fator principal para construção do vínculo de filiação por
adoção. Outra peculiaridade refere-se à convivência anterior com
pessoas com necessidades especiais, que parece tê-los auxiliado
a reduzir as pré-concepções quanto às diferenças.
Sobre as atividades cotidianas de Aline à época da realização
da entrevista, relataram:
“Durante a semana ela fica o dia todo na escola, de forma
integral. No final do dia, ela fica com a gente. Eu trabalho até as
quatro horas, então chego em casa, faço o jantar. A aula dela
acaba seis horas, quando ela chega, de seis até nove, nós ficamos
brincando com ela. A gente se reveza, aí nove horas ela dorme. Já
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
no sábado, de manhã, vai para a natação, almoçamos em casa e
à tarde saímos para passear, no shopping, parque, programa de
criança. No domingo de manhã a gente vai para igreja e depois
vai para a casa de algum parente. Então é assim... A vida de Aline
é muito movimentada...” (sic).
Nas interações sociais da criança no ambiente religioso,
Laura disse:
“Aline é muito carismática, na igreja, eu interpreto a bíblia
através de libras, aí ela fica me imitando e todo mundo ri. Todo
mundo gosta muito dela, não só lá, mas em todo lugar que a
gente vai. Ela fala com todo mundo na rua, dá tchau...” (sic).
Esses fragmentos da entrevista com Carlos e Laura ilustraram
a forma como está ocorrendo o processo de inserção de Aline
em vários contextos de desenvolvimento:escola, igreja, família,
espaços públicos e comunitários, dentre outros. Tais contatos,
pelo que foi informado pelos entrevistados, têm contribuído para
a aquisição de habilidades sociais pela menina, uma vez que ela
possui participação ativa nas interações que estabelece nesses
contextos, potencializando o valor positivo dessas experiências
para o seu desenvolvimento.
Todavia, eles fizeram questão de destacar que a diversidade
dos contatos sociais estabelecidos por Aline foi se constituindo
de forma progressiva, o que pode ser percebido a partir da
seguinte fala de Laura:
“Mas quando ela veio para cá, nós ficamos direto com ela por
uns dois meses. Depois o Carlos voltou a trabalhar e eu fiquei por
mais seis meses com ela, só nós duas”.
E prosseguiu o relato:
“Nesse tempo, ela ia para escola para brincar, começou indo
duas horas, depois quatro, foi aumentando devagar... aí quando
eu voltei a trabalhar, ela passou a ficar o dia todo na escola...agora
ela tá estudando em uma escola nova, porque nós mudamos. Esta
agora eu até gosto mais que a outra, porque ainda não tem muita
aula para ela, é mais brincadeira, tem hortinha, eles aprendem a
cuidar, tem aula de balé, de música” (sic).
Outro aspecto que foi investigado referiu-se às estratégias
utilizadas pelo casal para discutir sobre a temática de adoção
comAline, o que inclusive já está previsto em lei, como um
direito inalienável da criança.
Carlos e Laura afirmaram que têm amigos em São Paulo
que também adotaram crianças com necessidades especiais.
Um deles os presenteou com um livro que aborda a estória de
uma criança que se torna filha por adoção. Esse texto é lido com
frequência para Aline, que demonstra apreciá-la. Afirmou Laura:
“Eu nunca precisei dizer diretamente para Aline que a história
do livro era parecida com a dela, mas ela mesma concluiu ao ouvir
a estória, pois uma vez perguntou: Essa é a história de Aline, né
mamãe? Eu respondi que sim... Na estória eles falam também
sobre aquela questão de mãe do coração. A Aline já até falou para
mim: ‘mamãe, você é minha mãe do coração’. Aí eu respondi, não
só do coração, mais do corpo todo, sou sua mãe de alma também”
(sic).
Discussão
A discussão será apresentada a partir das duas unidades
de análise definidas: fatores de risco e de proteção ao
desenvolvimento de Aline.
Conforme Morais e Koller (2004), Siqueira e Dell’ Aglio
(2006) e Algood et al. (2011), os fatores de risco são condições
ou variáveis que estão associadas a uma alta possibilidade
de ocorrência de resultados negativos ou não desejáveis no
desenvolvimento. Verifica-se que, no caso de Aline, a presença
de cada um destes fatores acabou por resultar na violação do
seu direito à convivência familiar. A inserção da criança em um
programa de acolhimento por um período superior a um ano
e desde os seus primeiros momentos de vida, provavelmente
contribuiu para a ruptura do vínculo com família biológica.
Essas condições adversas vivenciadas pela criança foram
agravadas ainda pela ausência de fatores de proteção, que
poderiam ter agido reduzindo os efeitos danosos da situação
de vulnerabilidade a que esteve exposta desde a gestação.
As dificuldades vivenciadas por Aline foram geradas pela
escassez de recursos materiais de seu grupo familiar nuclear e
extenso, a qual adicionada ao transtorno mental materno, ao
desemprego ou subemprego dos parentes, a baixa escolaridade
dos responsáveis pela família constitui-se enquanto fatores
de risco descritos na literatura e características apontadas
como frequentes entre as famílias das crianças e adolescentes
institucionalizados (Rizzini&Rizzini, 2004; Silva, 2004), como
também na realidade brasileira (Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística [IBGE], 2010).
Adicionalmente, é importante ressaltar também que as
políticas públicas direcionadas ao atendimento de famílias em
situação de vulnerabilidade social têm sido caracterizadas pelo
aspecto assistencialista e não por investimentos na autonomia
das famílias, no desenvolvimento das potencialidades da
população e no estímulo ao exercício da cidadania, conforme
mostrado por Mariano e Rosseti-Ferreira (2008), após estudo
sobre o perfil das crianças entregues em adoção e seus genitores,
a partir da consulta a processos judiciais. Logo, processos de
destituição do poder familiar, como o que envolveu Mara,
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são motivados muitas vezes pela ineficiência do Estado em
assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, os
quais são explicitados constitucionalmente.
Outro fator de risco para o desenvolvimento de Aline referese a sua sorologia positiva ao vírus HIV. Tal fato ocorreu pelo
desconhecimento de Mara quanto a sua condição e também
por não ter se engajado em consultas e exames pré-natal, já
que estes procedimentos possibilitam o diagnóstico precoce
da doença, impedindo a contaminação vertical, como mostra
Carvalho (2007). Estes obstáculos também são decorrentes da
pobreza e do quadro de transtorno psiquiátrico vivenciado por
ela.
As fontes de evidência consultadas (Yin, 2003/2010) não
apontaram fatores de risco para criança adotada nos contextos
do programa de acolhimento institucional e da família adotiva.
Quanto aos fatores de proteção, destaca-se a reversão da
sorologia positiva ao HIV de Aline, graças a intervenções tanto
dos profissionais do programa de acolhimento institucional,
quanto da família adotiva. No primeiro, foram efetivados vários
procedimentos médicos, realizados exames e administradas
medicações quepossibilitaram o reestabelecimento da saúde de
Aline. Já os pais adotivos proporcionaram a ela atendimentos em
um centro de saúde especializado no combate ao HIV, além de
alimentação balanceada e hábitos de vida saudáveis.
Também foram prováveis fatores de proteção presentes na
instituição de acolhimento, as intervenções profissionais que
objetivaram a garantia do direito da criança de conviver em
família, prioritariamente junto a seus parentes consanguíneos e
quando inviabilizada esta primeira opção, a colocação em grupo
familiar substituto, através da adoção. Isto foi visualizado quando
as profissionais do programa de acolhimento dirigiram-se até o
domicílio de Mara e de seus parentes, intervindo para que essas
pessoas pudessem cuidar de Aline, conforme estabelece o ECA.
Todavia, ao perceberem a impossibilidade destes cuidados,
efetivaram com agilidade, ações para a colocação de Aline, em
família substituta, ao requererem, junto ao Ministério Público
local, a destituição do poder familiar de Mara em relação a
sua filha. Contribuíram assim pelo não acolhimento de Aline
por vários anos, impedindo que a instituição se tornasse sua
referência de moradia e de vida coletiva, agravando possíveis
déficits de desenvolvimento, conforme mostraram as pesquisas
empreendidas por Bronfenbrenner (1979/1996), Spitz
(1965/1998), Siqueira e Dell’Aglio (2006).
Na família adotiva também foram percebidos fatores de
proteção. O primeiro deles refere-se às motivações do casal
para adoção, as quais divergem dos apontamentos de pesquisas
anteriores, Camargo (2006), Weber (2004) e Levinzon (2004)
que argumentam ser a infertilidade o principal fator evocador da
busca pela constituição deste vínculo de parentalidade. O casal
expressou valorizar a necessidade de ter um filho, independente
da maneira de inserção deste no referido grupo familiar. Assim,
os entrevistados disseram ter optado primeiramente pela
adoção na realização deste projeto, em detrimento da concepção
biológica, a qual também estava acessível a eles.
Outro fator de proteção refere-se à disponibilidade afetiva
do casal para acolher uma criança com necessidades especiais,
nesse caso, com sorologia positiva ao HIV. Uma hipótese que se
formulou a partir destas constatações é que esta adoção pode
ser explicada pela maturidade psicológica do casal, segundo
argumentam Serra e Zacares (1991). Para eles, esta habilidade
é resultante de um processo que se estrutura durante o ciclo de
vida, resultante da interação entre traços biológicos, psicológicos
e sociais, e contempla o estabelecimento de um equilíbrio
entre o conceito de si e as mudanças de papel inerentes à
vida. Dentre as características desenvolvimentais específicas
da maturidade emocional descritas pelos referidos autores,
incluem-se o desenvolvimento do afeto, da perspectiva de
tempo, da autonomia, independência, responsabilidade, e o
reconhecimento de coerências e dissonâncias entre as emoções
e os comportamentos. Outra expressão desta maturidade
pode ser exemplificada pelo fato de que o casal estabelece
interaçõescotidianas com pessoas portadoras de necessidades
especiais, as quais possibilitaram a eles desenvolver uma
compreensão receptiva sobre diferenças, sendo este fato
apontado por eles enquanto facilitador para aproximação de
Aline.
Sobre a inserção de Aline no grupo familiar adotivo, os
adotantes informaram que ela participava ativamente, com o
acompanhamento deles, de uma variedade de contextos (escola,
família extensa, espaço de lazer, de atividades esportivas, vias
urbanas), nos quais tem estabelecido interações afetivas e
cordiais com as pessoas presentes nestes locais, o que também
se configura como fato de proteção a criança. Deste modo,
percebe-se que a inserção no grupo familiar adotivo trouxe vários
benefícios para a criança, pois Aline tem participado de diversos
ambientes, nos quais vem estabelecendo importantes relações
que têm contribuído para seu desenvolvimento. Tais vivências
proporcionam ganhos desenvolvimentais crescentes, gerando
o avanço deste processo a níveis cada vez mais complexos,
conforme argumentou Bronfenbrenner (1979/1996).
Por fim, as discussões sobre a adoção com Aline têm sido
realizadas de forma espontânea e contínua, conforme os relatos
56
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 48-57
dos entrevistados, através de recursos lúdicos, fotos, diálogos, o
que também é um fator de proteção, ao possibilitar a ela amplo
acesso a sua história de vida.
Assim, o presente trabalho realizou investigações sobre
os fatores de risco e de proteção presentes no processo de
desenvolvimento de Aline, a partir da história de vida de sua
genitora, do contexto de seu nascimento, do período em que
permaneceu abrigada, das instituições envolvidas na garantia de
seus direitos, do momento de sua adoção e mais recentemente,
a sua integração no grupo familiar substituto após quase dois
anos de convivência.
Estes achados apontam para a necessidade de
aprofundamento de pesquisas que investiguem as adoções
de crianças e adolescentes com necessidades especiais, dada
escassez de produções nacionais e internacionais sobre o tema.
A realização desses novos estudos poderá contribuir para
a elaboração de legislações que contribuam para efetivação
do exercício ao direito da convivência familiar e comunitária de
crianças e adolescentes com necessidades especiais, que por
uma variedade de motivos, não podem permanecer junto aos
seus familiares consangüíneos.
Referências
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Recebido em setembro/2011
Revisado em novembro/2011
Aceito em janeiro/2012
57
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Profissionais atendem adolescentes ofensores sexuais:
da repulsa à esperança
Professionals attend sexual offender adolescents: from repulse to hope
Liana Fortunato Costaa , Adeli Ribeirob, Monique Guerreiro de Mourac
Resumo: Trata-se de pesquisa qualitativa sobre avaliação das questões emocionais, metodológicas e de
aprendizagem, realizada com profissionais que atenderam um Grupo Multifamiliar com adolescentes
ofensores sexuais e suas famílias. Sujeitos: seis profissionais de Psicologia, duas estudantes de Psicologia e
um profissional do Serviço Social. Um questionário aberto foi enviado e respondido por correio eletrônico.
Os resultados foram agrupados em 4 zonas de sentido: as reações pessoais, as questões técnicas, o contato
direto com o ofensor e sua família e a intervenção em grupo. Os respondentes indicaram um esforço para
administrar as próprias emoções e enfrentar as opções técnicas surgidas durante a intervenção em grupo;
estar em equipe facilitou o manejo das emoções e dos conflitos; a cumplicidade entre os membros da
equipe proporcionou um apoio mútuo. Identificar as emoções e reações dos profissionais frente às
situações de violência é fundamental para lidar com esta temática.
Palavras-chaves: Adolescente ofensor sexual; Formação profissional; Grupo multifamiliar
Abstract: This is a qualitative research about an evaluation of emotional, methodological and learning
issues, carried out with professionals who attended a Multifamiliar Group with sexual offender adolescents
and their families. The subjects were: six professionals of Psychology, two students of Psychology and one
professional of Social Service. An open questionnaire was sent and replied by electronic mail. The results
were grouped in 4 sense zones: the personal reactions, the technical matters, the direct contact with the
aggressor and his family and the group intervention. The respondents indicated an effort to manage their
own emotions and to cope with the technical options arised during the group intervention. To be in a
team facilitated the handling of the emotions and the conflicts. The complicity of the members of the
team led to a mutual support. To identify the emotions and reactions of the professionals when facing
situations of violence is fundamental to cope with this matter.
Keywords: Sexual offender adolescent; Professional background; Multifamiliar group
a Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura/UnB).
* E-mail: [email protected]
b Psicóloga; Centro de Orientação Médico Psico-pedagógico – COMPP - Secretaria de Estado de Saúde e Secretaria de Estado de
Educação/ GDF.
c Psicóloga da Secretaria de Saúde do Distrito Federal - SES/DF; Mestranda em Desenvolvimento e Políticas Públicas pela Fundação
Oswaldo Cruz – (FIOCRUZ/ENSP/IPEA).
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
58
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69
Este texto trata de uma pesquisa qualitativa sobre a
caracterização da experiência profissional realizada com
profissionais que atenderam um Grupo Multifamiliar (GM)
com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias, em
um ambulatório público de saúde mental infanto-juvenil.
Mais especificamente, os objetivos dessa caracterização
foram compreender as emoções vividas pelos trabalhadores
que atendem esses adolescentes, conhecer as necessárias
aprendizagens que essa experiência exige desses profissionais, e
a percepção deles sobre o atendimento às situações de violência
numa opção metodológica pelo grupo.
Esse tema é conhecido na literatura internacional como
“vicarious tramatization” (Kadambi & Truscott, 2003; Moulden
& Firestone, 2007; Way, Van Deusen, Martin, Applegate &
Jandle, 2004), e define os efeitos emocionais sobre o terapeuta
que trabalha permanentemente com conteúdos de crueldade
e acabam por trazer dificuldades para a construção de um
vínculo de empatia com seu cliente. Nos casos de atendimento a
ofensores sexuais, a presença de empatia e a conexão afetiva são
aspectos fundamentais. Periódicos internacionais oferecem uma
enorme gama de textos sobre o tema da avaliação profissional
dos trabalhadores com indivíduos violentos, mas em nosso
país essa temática ainda se encontra pouco desenvolvida (Por
exemplo: Carmel & Friedlander, 2009; Kadambi &Truscott, 2006;
Scheela, 2001). Encontramos apenas trabalhos referentes às
experiências de enfermeiros que atendem autores de violência
(por exemplo, Correa, Labronici & Trigueiro, 2009) e as descrições
do se passa com cuidadores de vítimas de violência (Machado &
Merlo, 2008).
Profissionais que atendem situações de violência
É quase inexistente a presença de uma literatura nacional
que discuta o tema das reações pessoais dos profissionais que
atendem adolescentes que cometeram abuso sexual, até porque
também quase não existem oferecimentos de intervenções para
esta população. No entanto, podemos apontar alguns estudos
como o de Correa et al. (2009), que enfocam as emoções e
sentimentos de enfermeiros que atendem adultos autores de
violência. Esses profissionais são invadidos por sentimentos
como angustia, impotência, consciência daslimitações do
trabalho, e principalmente questionamentos sobre sua própria
subjetividade. Este aspecto é peculiar porque a formação
do enfermeiro nãocomporta necessariamente demanda por
terapias pessoais, o que já não acontece com os profissionais
da Psicologia, que são demandados e treinados a perceberem
sua própria subjetividade, às vezes até em demasia. A percepção
do outro, que se constitui num veículo para percepção de
si mesmo, é a principal ferramenta para dar conta do que
se passa na relação entre o agressor e o profissional. Outras
características são: sentir-se pouco resolutivo, medo do futuro,
impotência por não conseguir controlar o meio ambiente da
vítima. O autoconhecimento é fundamental para ajudar a ação
profissional.
Machado e Merlo (2008) também discutiram os resultados
de uma pesquisa com auxiliares de enfermagem sobre o
cuidado dispensado aos pacientes vítimas de violência. Os
autores apontam o estresse oferecido por uma atividade que se
desenvolve em torno da dor do outro, especialmente quando
é um paciente internado em hospital e corre risco de morte
iminente. O auxiliar de enfermagem necessita fazer um grande
investimento afetivo para cuidar do outro e ainda voltar-se para
dar atenção à sua própria dor. O dilema de atender a quem sofre
e valorizar o próprio sofrimento é um aspecto inerente a esse
profissional, inclusive ao profissional da Psicologia.
Com relação à atenção ao profissional que atende ofensores
sexuais, vários autores concordam que uma reação empática e
calorosa do profissional para com o autor de violência sexual é
um fator preponderante para o sucesso do atendimento (Carmel
& Friedlander, 2009; Marshall et al., 2005; Oliver, 2007; Way
et al., 2004). Por esse motivo, é importante estudar os fatores
estressantes que possam impedir a realização dessa qualidade
de vínculo terapêutico. Carmel e Friedlander (2009) indicam
que os profissionais que possuem mais tempo de experiência,
aqueles que têm características pessoais de maior autoconfiança
ou ainda aqueles que sentem satisfação com o próprio trabalho,
têm melhor percepção dos problemas enfrentados pelos
clientes que cometeram violência sexual. Esse resultado não traz
diferença no que diz respeito ao sexo do profissional, mulheres e
homens relatam dificuldades e estratégias de atendimento, que
visem à diminuição dessas dificuldades, de maneira semelhante.
É importante assinalar que também vários autores
apontam a necessidade de que as pesquisas, nessa área de
atenção ao profissional que atende o autor de violência, se
voltem para uma abordagem mais qualitativa, no sentido de
conhecer quais reações desses profissionais podem interferir
na condução do processo terapêutico (Carmel & Friedlander,
2009). Outros autores como Oliver (2007), Marshall et al.
(2005) e Way et al. (2004) acrescentam que uma perspectiva
qualitativa iria oferecer melhor compreensão darelação e de seus
efeitos potencializadores sobre o enfoque terapêutico. Nossa
contribuição se alinha nessa direção.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69
O Grupo Multifamiliar
Os GMs foram conhecidos inicialmente pela denominação
de Terapia Familiar Múltipla. As vantagens desta abordagem
evidenciam que as famílias se sentem mais à vontade reunidas,
quando há maior focalização nas suas interações. Segundo
descrição pormenorizada de Laquer (1976/1983), os grupos
são abertos, e as famílias vão ingressando ou deixando o grupo
conforme necessário; os encontros são semanais com duração
de uma hora e meia a duas horas e a coordenação fica a cargo
de uma equipe terapêutica com terapeuta, coterapeuta e
observadores. O critério para a seleção das famílias pode ser por
condições semelhantes de problemas ou a seleção pode ser feita
aleatoriamente quanto possível.
O principal ganho desta forma de intervenção é quanto à
aprendizagem de novas formas de comportamento pela pressão
ou aprovação do grupo. Essas mudanças se dão por semelhança
e identificação. Por semelhança, quando as famílias presenciam,
em outras, seus conflitos, e por identificação, quando pais
aprendem com outros pais, mães com outras mães, as soluções
já encontradas. As famílias assumem um papel de coterapeutas,
na medida em que já alcançaram mudanças, e desse modo
funcionam como modelos, criando um foco permanente de
excitação, já que sempre existem famílias em estágios diferentes.
O Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores
sexuais
No caso do GM para adolescentes agressores sexuais, o
critério de seleção das famílias é por semelhança de problemática.
O GM que ora descrevemos baseia-se em Costa, Penso e Almeida
(2005) e fundamenta-se nos aportes teóricos: a) da Psicologia
Comunitária, b) da Terapia Familiar, c) do Sociodrama e, d) da
Teoria das Redes Sociais.
O GM para adolescentes ofensores sexuais é uma adaptação
proposta como intervenção psicossocial que reúne famílias
numa modalidade de atendimento “sob obrigação”, a partir
de encaminhamento da Justiça e do Conselho Tutelar. Os
adolescentes são encaminhados à instituição como parte do
cumprimento de medida socioeducativa (artigo 112 do Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA, 1990). Essa participação
“sob obrigação” é manejada por uma opção metodológica pela
presença constante da ludicidade que atenua esse aspecto, e
pela utilização de técnicas expressivas como desenhos, colagens
e dramatizações que facilitam o acompanhamento do processo
interventivo para os adolescentes e as famílias. Na atualidade
autores do Reino Unido reconhecem que esses adolescentes se
beneficiam sobremaneira de programas de atendimento com
ênfase nas relações familiares (Hengeller et al., 2009; Marshall,
2001; Zankman & Bonomo, 2004). A opção metodológica do
GM caminha nesse sentido.
O GM ocorreu em cinco encontros onde foram desenvolvidos
os seguintes temas: Proteção: “Eu devo proteger outras crianças,
mas ainda preciso de proteção’’; Sexualidade: “É tempo da
sexualidade desabrochar”; Abuso sexual é um crime: “O abuso
sexual é um crime e uma violência”; Transgeracionalidade:
“Precisamos conhecer nossos antepassados” e Projeto de
namoro: “Ainda quero namorar muito”. Os adolescentes
participantes e suas famílias tiveram como critério de inclusão no
grupo: Adolescentes - sexo masculino; 12 a 18 anos; ser cliente
do ambulatório ou ser encaminhado por qualquer entidade
pertencente à Rede de Proteção da Criança ou do Adolescente;
estar com os vínculos familiares preservados; ter denuncia de
envolvimento em situações de violência sexual contra crianças;
estar ou não em cumprimento de medida socioeducativa
(Liberdade Assistida - LA, Prestação de Serviço Comunitário
- PSC ou Semi Liberdade); Famílias – familiares residindo na
mesma casa, familiares da família extensa como avós, tios, e
outros, com envolvimento no problema, bem como vizinhos ou
padrinhos também com envolvimento com o problema.
Nesse texto, vamos enfocar os profissionais que desenvolvem
ações com adolescentes ofensores sexuais, por meio de um
recorte sobre a caracterização da experiência profissional que
faz parte de uma pesquisa mais ampla sob o nome de “Grupos
Multifamiliares com Adolescentes Agressores Sexuais”, e é
realizada numa parceria entre o ambulatório já citado e uma
universidade pública. Esse texto pretende contribuir como um
estudo que descobre uma área ainda bastante desconhecida
que enfoca o adolescente ofensor sexual e aqueles profissionais
que os atendem. Para melhor atendimento a essa população
é necessário se conhecer o que se passa com seus cuidadores
(Marshall, 2001).
Método
Contexto
A pesquisa foi realizada em um ambulatório público de
saúde mental, Centro de Orientação Médico Psicopedagógico –
COMPP, unidade de Saúde Mental Infanto-juvenil que compõe
a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes no que diz
respeito ao atendimento às vítimas e vitimizadores sexuais. Esse
ambulatório se situa em uma grande capital e atende população
60
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69
proveniente de seu entorno.
Em nossa realidade brasileira, inexiste estatística apurada
sobre o registro de denúncias de abuso sexual contra crianças
cometido por adolescentes. Mesmo em países de primeiro
mundo, há um reconhecimento de que os registros são falhos.
No entanto, Oliver (2007) e Marshall (2001) concordam que 1/3
dos casos de abuso sexual são cometidos por adolescentes. O
site da Vara da Infância e da Juventude – VIJ/DF informa dados
do CEREVS (Centro de Referência em Violência Sexual) referentes
ao ano de 2010 (VIJ, 2010): violência sexual cometido a por
irmão – 2,33%; cometida por primo – 5,81%; cometida por tio
– 9,30%. Não encontramos números que indiquem a violência
cometida por adolescentes. Esse dado seria fundamental
para dimensionar adequadamente o fenômeno, pois existem
estatísticas para tio, irmão e primo, e esses adolescentes
ofensores sexuais, participantes da presente pesquisa, abusaram
sexualmente de sobrinhos, irmãs ou irmãos e primos/as.
O GM teve a duração de agosto a dezembro de 2009, nas
seguintes etapas: agosto – treinamento da equipe e entrevistas
com as famílias inscritas no GM; de agosto a dezembro –
atendimento e supervisão dos GM com intervalos quinzenais
e intercalados com atendimento/supervisão. Os temas
desenvolvidos no GM foram propostos em função da experiência
das autoras e em complementaridade do oferecimento de GM
para vítimas (Costa et al., 2005). Os adolescentes integrantes
desse GM tinham entre 14 e 17 anos, com escolaridade entre 5ª
série do 1º grau e 3ª série do 2º grau, e renda familiar entre 500
reais e 1500 reais.
Participantes
Os sujeitos foram os componentes da equipe: 6 profissionais
de Psicologia do sexo feminino, 2 estudantes de Psicologia do
sexo feminino, 1 profissional do Serviço Social do sexo feminino
e 1 profissional do Serviço Social do sexo masculino, no total de
10 participantes. Todos os 10 participantes estiveram presentes
em todo o processo do GM, e seu status em relação à instituição
está explicitado no quadro 1.
Sexo
Profissão/ status
na instituição
Idade
(anos)
Est. civil
Filhos
Tempo que
atua com vítimas
de violência
Pós-graduação
Tempo de formado
Fem
Estudante
Psicologia/
estagiário
22
solteiro
-
2 anos
-
-
Fem
Psicóloga da
instituição
27
solteiro
-
4 anos
-
2 anos
Fem
Psicóloga da
instituição
24
solteiro
-
1 ano
-
6 meses
Fem
Estudante
Psicologia/
estagiário
22
solteiro
-
2 anos
-
-
Fem
Psicóloga da
instituição
50
solteiro
-
10 anos
Especialização
20 anos
Fem
Psicóloga
supervisora/
academia
61
casado
2
10 anos
Doutorado
35 anos
Fem
Psicóloga da
instituição
40
casado
2
2 anos
Especialização
16 anos
Fem
Assistente social
da instituição
43
casado
2
8 anos
Especialização
16 anos
Masc
Assistente social,
mestrando/
academia
25
casado
-
4 anos
Graduação em Pedagogia, Aluno de
Mestrado em Psicologia
3 anos
Fem
Psicóloga da
instituição
31
casado
3
4 anos
-
5 anos
Quadro 1 – Informações sobre os participantes
61
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 58-69
Instrumento
O instrumento constituiu-se em um questionário aberto
enviado por correio eletrônico, para ser respondido e devolvido da
mesma forma. Os itens constantes deste questionário foram: a)
Dados pessoais; Formação; Tempo de atuação com violência; b)
Você teve alguma dificuldade na participação do GM em função
da presença de um ofensor no grupo? Qual? Por quê?; Como
você classifica estas dificuldades: de ordem pessoal, profissional,
emocional, etc.?; Ou, ao contrário, você não sentiu dificuldade?
Por quê? Neste caso, qual seria o motivo pelo qual foi mais fácil
lidar com esta situação; Qual o efeito sobre suas emoções, ao
entrar em contato direto com o ofensor no GM?; Qual o efeito
sobre seus conhecimentos, ao entrar em contato com o ofensor
no GM? ; Qual o impacto sobre sua formação profissional,
ao entrar em contato com o ofensor no GM? ; Qual o impacto
sobre sua vida pessoal, ao entrar em contato com o ofensor no
GM?; Você considera que seus conhecimentos sobre família,
violência sexual e a metodologia utilizada foram suficientes
para lidar com as consequências da presença do ofensor no
GM?; Você sentiu necessidade de aprofundar alguma questão
teórica ou metodológica para melhor lidar com a presença do
ofensor no GM? ; Como você avalia esta experiência em termos
de amadurecimento pessoal e profissional?; Sua visão sobre
violência sexual, família, agressor sexual, criança/adolescente
abusado mudou no decorrer do contato com o ofensor ? Em que
sentido?; Das questões apresentadas pelo ofensor alguma lhe
mobilizou mais? Qual? Como? Por que?; Este é um espaço para
que você possa colocar alguma informação que ache relevante e
que não foi prevista nas questões anteriormente abordadas.
Procedimentos
Após o término do GM, os questionários foram enviados
a todos que participaram do mesmo, pela responsável pela
pesquisa, que também foi a pessoa que se encarregou de cobrar
e recolher as respostas. Entre o envio e a chegada das respostas
passaram-se dez dias. A pesquisa foi inscrita no Comitê de
Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde
(FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do
Distrito Federal (GDF) e aprovada com o parecer nº 331/2009.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado antes
do envio do questionário.
Analise das informações
González Rey (2005) propõe uma perspectiva da análise de
conteúdo que se apoia na expressão de indicadores, que revelam
os fenômenos e são unidades processuais. Os indicadores são
produzidos durante o próprio processo de investigação e análise,
constituindo-se em ferramentas essenciais para a definição
das zonas de sentido. As zonas de sentido são a integração dos
indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de
interpretação, que não possuem a pretensão de generalização,
mas produzem um conhecimento que é contextual, próprio
da experiência aqui relatada. Na prática, o procedimento para
análise ocorreu da seguinte forma: leitura inicial das respostas;
apontamento dos indicadores (falas, expressões); construção
de núcleos de sentido (zonas de sentido) comum entre os
indicadores apontados; interpretação do conteúdo subjacente
dentro desses núcleos.
Discussão e Resultados
Após uma leitura de todos os questionários devolvidos, a
partir da percepção dos indicadores, construímos 4 núcleos
de sentido: 1) As reações emocionais e sentimentos dos
profissionais frente aos atendimentos; 2) As dificuldades e/ou
facilidades do enfoque técnico; 3) O contato com o agressor e
sua família e 4) As questões relativas à opção metodológica pelo
GM que envolve adolescentes e familiares. Em função de que o
conjunto das respostas é composto por alunos e profissionais,
achamos relevante que os resultados distingam o que pensam
estes dois grupos, no conteúdo desenvolvido em cada núcleo de
sentido.
Inicialmente vamos comentar sobre o conjunto das
características da equipe. São 6 psicólogos, 2 assistentes
sociais e 2 estudantes de Psicologia, com idades que variam
de 22 a 61 anos. Isto parece representar bem a realidade dos
ambulatórios públicos de atendimento a esta população: uma
maioria de jovens profissionais, com uma formação que se limita
mais à graduação, sendo que neste grupo, são 5 graduados, 3
profissionais com especialização, um com mestrado e um com
doutorado. Moulden e Firestone (2007), numa revisão de
literatura sobre o tema da reação dos terapeutas ao atendimento
de ofensores sexuais, indicam que, na realidade de língua inglesa,
estes atendimentos são mais realizados por homens do que por
mulheres. E ainda, 53% dos terapeutas de ofensores sexuais têm
mestrado e recebem, por ano, cerca de 50 horas de treinamento
continuado e supervisão. Em relação aos nossos participantes, a
média de experiência no atendimento a situações de violência
é de 4.7 anos. Temos no Brasil, uma realidade bem diferente
na qual os psicólogos atuantes em contexto clínico são mais do
sexo feminino do que masculino. Daí, compreendermos porque
a supervisão é mencionada como um aspecto fundamental do
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enfrentamento do estresse, como veremos abaixo. A média de
idade dos participantes é de 37,62 anos, o que não podemos
considerar como pouca idade. A média de idade das estudantes
é 22. Nesse quesito entendemos que as idades estão dentro
de uma condição razoável, sendo que dos 10 participantes,
4 são casados o que pode indicar uma possibilidade de maior
experiência de vida.
Sobre a amplitude das idades, estes autores acima citados
(Moulden & Firestone, 2007) indicam que os efeitos sobre as
emoções e sentimentos destes terapeutas não fazdiferença em
relação à idade. O terapeuta com idade mais elevada pode acabar
sofrendo de efeitos cumulativos da experiência do atendimento
contínuo a esta população. Por outro lado, Carmel e Friedlander
(2009) e Kadambi e Truscott (2003) chamam atenção para o
fator maior idade como atenuante dos efeitos estressores sobre
o profissional que atende tanto vítimas como perpetradores de
violência sexual. Isto também está relacionado à distância de 2 a
35 anos da formatura que este grupo de participantes apresenta.
Os autores pesquisados (Carmel & Friedlander, 2009; Firestone
& Moulden, 2007; Kadambi & Truscott, 2003, 2009; Way et al.,
2004) concordam que não necessariamente uma maior idade
habilita o terapeuta a lidar melhor com esses conteúdos, mas
sim a sua participação em supervisão, em discussão de casos e
contato freqüente com colegas. Principalmente, o que temos a
comentar é que, em função do atendimento a agressores sexuais
estar ainda em um âmbito precário e incipiente em nosso país,
necessitamos percorrer um longo caminho e avaliar melhor quais
implicações trazem para estes atendimentos as características de
formação e qualificação pessoal e profissional dos terapeutas em
nossa realidade.
Vamos agora apresentar a discussão construída nas zonas
de sentido. Em cada zona de sentido vamos apresentar, logo
no início, as falas dos participantes que serviram de base para a
construção da discussão.
1) Reações pessoais: emoções e sentimentos
Nessa zona de sentido vamos comentar sobre as reações
apresentadas pelos participantes com relação aos seus
sentimentos, às emoções vividas durante o processo do GM, no
atendimento aos adolescentes e às famílias.
seriam os abusadores. E ao longo dos encontros, fui tomada pela
compaixão”.
Profissional, feminino, 24 anos:
“nos primeiros encontros do grupo, minhas emoções estavam
mais voltadas para a vítima no sentido de pensar no sofrimento
que a criança poderia estar enfrentando, a família, os pais. Então,
os encontros e as discussões tiveram um efeito de mudança na
compreensão que o adolescente também estava em sofrimento e
desprotegido de sua família”.
Profissional, feminino, 61 anos:
“inicialmente sim, sentimento de repulsa. Acho que
o sentimento veio por conta de imaginar estar diante de
criminosos... As emoções foram de nojo no início, para pena no
final e esperança no futuro... Pude restabelecer alegria e esperança
com o trabalho com o adolescente”.
Profissional, feminino, 50 anos:
“eu sempre trabalhei com as vítimas me identificando com
o sofrimento delas e rejeitando os agressores...O conhecimento
subsidiou a atuação trazendo uma visão técnica científica e
apaziguando as emoções”.
Profissional, feminino, 43 anos:
“empatia, pois já conhecia a maioria”.
Profissional, masculino, 25 anos:
“minha decisão para participação foi exatamente em razão da
presença deles (os adolescentes)...a visão desses agressores como
detentores de direitos humanos acima de qualquer entendimento
reduzido sobre abuso sexual já me faz ter um controle maior das
minhas emoções”.
Profissional, feminino, 31 anos:
“Inicio raiva ...e depois compaixão, vontade de ajudar, fiquei
emocionada ... ao perceber o quanto eles queriam ser ajudados,
estavam disponíveis ... evitar fazer julgamentos precipitados”.
Profissional, feminino, 43 anos:
“precisei estudar mais”.
Profissional, feminino, 40 anos:
Aluna, feminino, 22 anos:
“no início, tive receio em como seria trabalhar com os
“acredito sejam mais de ordem emocional, porque sempre adolescentes abusadores, mil hipóteses diagnósticas passaram
olhei muito mais para o lado da vítima. Eu estava permeada pelo pela minha cabeça... foi uma forma de defesa, de receio, de
preconceito cultural, com um misto de medo, repugnância e outros preconceito ... porque me coloquei no lugar da vítima e não
sentimentos de desdém, visto que o público a ser trabalhado
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conseguia vê-los como vítimas, tb, só conseguia vê-los como função dos sentimentos desenvolvidos pelo terapeuta sobre
agressores”.
o ofensor sexual. Neste caso, a falta de uma relação empática
pode significar uma recidiva da agressão sexual, fazer mais uma
Chama atenção as reações iniciais que são de revolta, vítima e interferir sobremaneira na avaliação de eficácia do
repulsa, preconceito, condenação, seja porque já se trabalhou próprio terapeuta (Moulden & Firestone, 2007; Marshall et al.,
com agressores adultos, seja porque se remetem à vítima. Parece 2005).
que a experiência anterior pode influenciar o contato com o
Dois aspectos são interessantes e apontados como
adolescente, no sentido de privilegiar uma ideia preconcebida de facilitadores: o papel da supervisão que auxilia quando indica
delinquente. Foucault (1986) diferencia o sujeito delinquente do leituras e estudo, sobre o tema, e assim amplia o conhecimento
sujeito infrator. O infrator é definido como aquele que infringiu prévio; e o fato de se gostar de trabalhar com esta população que
as normas jurídicas estabelecidas, enquanto que o delinquente cria outra condição para se ver o adolescente de forma distinta
é fabricado e submetido ao sistema judiciário que o nomeia, o em relação à vítima. Moulden e Firestone (2007) apontam
estigmatiza e o controla. O que os profissionais relatam é que que a supervisão tem um papel cuidador sobre o profissional
conseguiram refazer a trajetória de vê-los como delinquentes diminuindo o efeito estressor sobre ele. Do mesmo modo pensam
e revê-los como infratores, principalmente como sujeitos de Carmel e Friedlander (2009), Kadambi e Truscott (2003, 2006).
direitos, e reconsiderá-los como sujeitos em formação (Machado, Sobre este tópico ainda é importante notar que não há muita
2003). O conhecimento do que se passa com suas emoções, do diferença entre estudantes e profissionais quanto à expressão
sofrimento experimentado em face do contato com agressores dos sentimentos e quanto à possibilidade de reformulá-los
sexuais é aspecto fundamental para que haja continuidade no e construir a aproximação pessoal com o sujeito agressor. Na
investimento afetivo e de expectativas em relação a esse cliente presente discussão, o que pode fazer a diferença é a fala do
(Carmel & Friedlander, 2009; Kadambi & Truscott, 2003; Way et único profissional masculino que diz não ter sentido dificuldade
al., 2004).
em estar com os sujeitos. Poderíamos pensar em influência de
A possibilidade da vinculação afetiva com este adolescente gênero na percepção da avaliação positiva ou negativa? Carmel
infrator está ligada a este caminho. Também está presente aí e Friedlander (2009) apontam que as mulheres não diferem
a possibilidade de sair do âmbito simplesmente avaliativo e dos homens na possibilidade de fazer um bom vínculo com o
recuperar uma trajetória da vida familiar e social do adolescente: agressor sexual, e que também a característica de autoconfiança
os adolescentes também são vítimas e também sofrem. É do terapeuta pode significar uma diferença de menor estresse
possível sair de uma ideia preconcebida para sentimentos no atendimento. Será esse o caso do assistente social masculino
positivos. Carmel e Friedlander (2009) e Kadambi e Truscott que diz “a visão desses agressores como detentores de direitos
(2003) enfatizam a presença de um sentimento de compaixão humanos acima de qualquer entendimento reduzido sobre
que viabiliza a aproximação do terapeuta com o cliente agressor abuso sexual já me faz ter um controle maior das minhas
sexual. Outro aspecto que faz diferença nas reações, ao longo emoções”?
do tempo, sobre o estresse dos atendimentos é uma genuína
sensação de satisfação com o trabalho executado. Madanes, Keim
2) Questões técnicas: facilidades e dificuldades
e Smelser (1997) recomendam o desenvolvimento de algumas
habilidades para o atendimento de adolescentes agressores
Nessa zona de sentido vamos apresentar como os
sexuais: amabilidade, controle das aversões, paciência, visão participantes perceberam os aspectos técnicos do atendimento
de aspectos positivos, diminuição da posição crítica e atitude aos adolescentes perpetradores de violência, o que se constituiu
acolhedora. O reconhecimentode que a violência não é só do como impasse e como facilitador no processo de contato com o
adolescente, mas também da família e do meio ambiente, tema da violência.
colabora para esta mudança e auxilia a disponibilidade do
profissional para alterar seu ponto de vista. O atendimento
Aluna, feminino, 22 anos:
terapêutico a ofensores sexuais tem algumas características
“... para não serem pegos de surpresa diante de algumas
que têm que ser pensadas em particular. A empatia, que é situações, como medo dos agressores”.
um sentimento fundamental na vinculação terapêutica, é um
aspecto fundamental nesta relação e pode ser dificultada em
Aluna, feminino, 22 anos:
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“penso que não senti dificuldade ... esta é uma grande (2009) referem o atendimento às vítimas de violência expõe as
oportunidade de crescimento profissional e pessoal”.
vulnerabilidades e fragilidades pessoais que são percebidas pelo
restante da equipe.
Profissional, feminino, 27 anos:
O que é interessante notar é que a dificuldade advém não
... pois me sentia incapacitada de lidar com isso não pelo do contato com a dor do agressor, mas sim de uma sensibilidade
fator teórico-prático apenas, mas principalmente pelo impacto para a dor da vítima. Os estudos de Kadambi e Truscott (2003)
emocional.
apontam na direção de que não há muita diferença entre os
efeitos estressores de quem trabalha com as vítimas ou com
Profissional, feminino, 61 anos:
os agressores. Há que haver sempre um espaço de suporte
“depois mais fácil à medida que percebi que a violência para ambos os grupos. A supervisão oferece a oportunidade
com adolescentes abusadores têm outras implicações que não é das reações que são particulares serem discutidas em grupo,
claramente um crime. Consegui recuperar a percepção de que o transformando o contexto em possibilidade. Moulden e
adolescente não está pronto, não está formado e ainda precisa ser Firestone (2007) mostram estatísticas que a maioria dos
visto como alguém em construção”.
terapeutas, que atendem ofensores sexuais, é do sexo masculino
e são estes que também atendem adolescentes ofensores
Profissional, feminino, 24 anos:
sexuais. Já maioria dos terapeutas que atendem as vítimassão
“sim, tive dificuldades no trabalho com os adolescentes, mulheres. Estas informações refletem uma realidade americana
uma vez que tenho pouca experiência com pessoas dessa fase do ecanadense. Nossa realidade apresenta uma feição inversa, e
desenvolvimento... E trabalhar com abusadores sempre mobiliza isto requer que estudos sistematizados e contínuos venham a
por causa do aspecto da violência...”.
serem estabelecidos, porque não temos nenhum registro dessas
proporções em nosso país e nem do que isso traz de significações
Profissional, feminino, 31 anos:
para o atendimento clínico. As qualidades apontadas por
“agora não tive nenhuma dificuldade, acredito que por já Kadambi e Truscott (2003) como desejáveis, capacidade de
ter atendido um individualmente. Na ocasião deste atendimento expressar empatia – autoestima alta – capacidade de efetuar
individual tive sim dificuldades, receio por não saber quem vinculação, não são necessariamente características ligadas à
iria encontrar....as dificuldades anteriormente citadas foram idade ou ao sexo.
superadas quando percebi que ele era uma pessoa também em
Quando se trata de agressor sexual adolescente, a questão
sofrimento, também vitima desta situação”.
preventiva é primordial (Oliver, 2007; Sanderson, 2005), por
isto é tão importante o atendimento a adolescentes ofensores
Profissional, feminino, 43 anos:
sexuais. A prevenção é relativa ao próprio adolescente e às
“não, pois já trabalhava individualmente com eles e sua crianças, possíveis vítimas. E é interessante porque é também
família. Mas quando iniciei nas entrevistas tinha muito receio e este sujeito que, por sua condição de ainda em crescimento,
indignação. As supervisões me ajudaram a estar mais segura nos recupera no profissional os sentimentos positivos como
atendimentos”.
compaixão, para a retomada de uma atitude não defensiva e
mais proativa de ajuda. Neste sentido, Oliver (2007) alerta para o
Profissional, masculino, 25 anos:
possível desconhecimento, por parte do adolescente, do quanto
“trabalho com pesquisa sobre agressores sexuais há é errado ou pode causar prejuízo tocar uma criança de forma
aproximadamente 4 anos e acredito ter atingido um certo ponto sexualizada. É o reconhecimento da condição não experiente do
de segurança emocional e profissional para lidar com o tema, seja adolescente que pode reconduzi-lo ao lugar de direito à proteção
direta ou indiretamente”.
e orientação do qual este autor enfatiza, e Machado (2003) não
abre mão.
O que traz dificuldade são os sentimentos paralisantes,
De novo, neste item, não há muita diferença entre a
como o medo, o receio de entrar em contato com algo que percepção dos alunos e dos profissionais. Talvez, pelo fato de que
representa perigo: o agressor sexual. O tema da violência o oferecimento de apoio a agressores sexuais ainda não seja uma
mobiliza no sentido de desencadear reações de rejeição pelo ação amplamente sistematizada em nosso contexto psicossocial
sujeito agressor e pelo ato cometido. Ou, como Correa et al. jurídico, as reações são bem semelhantes. Os profissionais,
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assim como os alunos, ainda carecem de formação específica e
experiência prática para este labor. Como foi dito anteriormente,
a média de tempo de trabalho com esse tema é de 4,7 anos.
Carmel e Friedlander (2009) concordam que o maior tempo
de experiência no trato com agressores sexuais pode significar
maior capacidade de lidar com o estresse dos atendimentos.
Desse modo vemos como essa lacuna de programas oferecidos
a essa população, e por consequência a lacuna de conhecimento
sobre os efeitos de maior ou menor experiência do profissional,
nos dificulta comentar nossa realidade.
3) As reações ao contato direto com o sujeito
ofensor e sua família
Nessa zona de sentido vamos apresentar as questões
relativas ao contato direto com o ofensor sexual, as contradições
presentes na família que comparecem ao GM incluindo um
filho ofensor e um filho/a vítima. A ação interventiva sobre
adolescente ofensor sexual é um desafio, ainda no momento,
pois não temos nem histórico de ações nem descrição de
trabalhos dessa natureza.
Aluna, feminino, 22 anos:
“inicialmente tive insegurança e medo de não dar conta. E
pensei até que não me sentiria à vontade ao lado dos meninos...”.
Profissional, masculino, 25 anos:
“chamou-me atenção o fato de alguns adolescentes
mencionarem a figura feminina como cuidadora ou vítima
do masculino ... mas me sensibilizou no sentido de reiterar a
importância de um profissional homem que ajude, dentre outros
aspectos, a ressignificar o lugar o papel masculino”.
Profissional, feminino, 31 anos:
“... percebi que são todos vitimas e que sofrem pelo ocorrido...
Foi muito interessante observar as crianças (irmãos) e vítimas,
seu comportamento junto aos meninos e seu sofrimento por ter
que estar ali.... a questão da punição imposta pela família, o
isolamento... nós erramos mas já tá bom, chega” (referindo-se ao
sofrimento imposto pela família).
Profissional, feminino, 40 anos:
“... pude ver o sofrimento deles, as dificuldades deles, a falta
de manejo dos pais, dos familiares... O primeiro impacto é reavaliar
a minha forma de realizar a proteção, de estar mais próxima da
minha família, de estar com meus filhos, de compartilhar com
eles...de ouvi-los...de verbalizar. O segundo é de permitir derrubar
os preconceitos... sim, passei a entender a violência como um
produto, um resultado e não como apenas um ato “horroroso”.
Este conjunto de informações é essencial porque mesmo
Aluna, feminino, 22 anos:
em outros itens da análise, o contato com a violência e o sujeito
“agora, após a participação no grupo, observo-os como agressor foi mencionado com ênfase. Fica clara a perspectiva de
parte de um ciclo de múltiplas violências”.
rejeição, pelo menos inicial, apontada pelos informantes. Essas
falas mostram o quanto é fundamental maior conhecimento
Profissional, feminino, 24 anos:
sobre o tema “vicarious traumatization”. Mesmo que perspectiva
“principalmente pelo fato do adolescente e sua família de rejeição possa ser desconstruída e reconstruída em aceitação
estarem em sofrimento e precisarem de ajuda”.
e compreensão, é fundamental este reconhecimento porque a
vinculação terapêutica depende, em parte, dessa transformação
Profissional, feminino, 61 anos:
(Madanes et al., 1997; Oliver, 2007; Sanderson, 2005). O que
“violência nesse ponto de vida pode não ser definitivo... O proporciona esta mudança é o contato direto com o sofrimento
abusador vira vítima tanto quanto a vítima”.
da família do agressor e com o sofrimento do agressor em
particular. E aí a percepção desse agressor como uma vítima
Profissional, feminino, 27 anos:
passa a prevalecer, seja pelas dificuldades sociofamiliares, seja
“alguns adolescentes tiveram só a punição e falta de apoio pela punição que a família já decretou a ele através de ações, que
de suas famílias. E alguns familiares ainda têm dificuldades em são também muito violentas. É como se o adolescente saísse do
perceber que os adolescentes também precisam ser protegidos e lugar de “lobo mau da família” para uma situação de igualdade
que as mudanças têm que fazer parte de todo o sistema familiar”. de vitimização e sofrimento em relação ao restante dos
membros da família. Scheela (2001) comenta que os terapeutas
Profissional, feminino, 50 anos:
apontam, no início de sua experiência profissional com esse
“para minha vida pessoal foi surpreendente o crescimento. Eu tema, uma condição semelhante de rejeição ao trabalho, de
tinha uma visão unilateral e preconceituosa”.
apreensão quanto ao contato com o agressor, e de sentirem
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muitas interferências em sua vida pessoal em decorrência dos
atendimentos. Porém, esses aspectos são transformados em
expectativa e disponibilidade à medida que eles compreendem
a complexidade dos atendimentos e resgatam a dimensão
humana dos sujeitos.
Neste sentido, amplia-se a visão do sofrimento de todos
com as mudanças nos relacionamentos nos subsistemas, irmãoirmão, mãe-adolescente, pai/padrasto-adolescente. A família,
como um todo, passa por uma circunstância desestruturante,
assim como acontece com as famílias das vítimas. O adolescente
pratica uma violência que o atinge de volta. Este aspecto
é relevante, pois aponta que o adolescente agressor sexual
permanece sozinho, afastado de suas relações familiares e isto
contraria o que coloca Oliver (2007), que enfatiza a importância
do adolescente ter com quem compartilhar e conversar sobre
suas fantasias sexuais. Este ponto corrobora a importância da
relação próxima do profissional com o adolescente. Marshall et
al. (2005) percebem como promissor o atendimento ao agressor
sexual por meio de uma ação compreensiva, empática e de
proximidade afetiva.
Ainda outra particularidade diz respeito à reação do único
respondente masculino, que disse que ficou impressionado com
a crença já arraigada no adolescente de que a figura feminina
é quem cuida e é também a vítima do homem. Estudiosos do
gênero (Saffioti, 2002; Segato, 2010) argumentam sobre o poder
social da construção dessa dependência feminina em relação
ao masculino. Mas, parece que o profissional está apontando
uma concepção contraditória a esta posição, na qual o homem
depende da mulher e ao mesmo tempo é seu algoz. Moulden e
Firestone (2007) apontam que não há diferença significativa do
surgimento de estresse profissional em terapeutas masculinos
ou femininos. O que pode ser importante e representar uma
agravante, é a observação de que um terapeuta masculino,
ao atender ofensores sexuais, pode desenvolver uma culpa
coletiva, resultado de identificação de gênero, que poderá
ter consequências sobre sua conduta sexual na vida privada.
Ou, ainda, como Scheela (2001) aponta, que os terapeutas
masculinos de ofensores sexuais acabam por desenvolver um
cuidado maior em suas interações sociais com crianças incluindo
preocupação com toques e intimidades.
Parece não haver diferença entre as percepções de alunos e
de profissionais no que tange aos sentimentos e preocupações
pelo atendimento a esse público. Kadambi e Truscott (2003),
Way et al. (2004), Carmel e Friedlander (2009) apresentam uma
série de comportamentos que são vistos como danosos para o
profissional e que são relativos aos efeitos dos atendimentos
clínicos realizados pelos profissionais que entram em contato
com histórias com conteúdo de crueldade. Esse aspecto não
parece variar em função de maior ou menor idade. Todos os
profissionais estão sujeitos a essas consequências. No entanto,
Scheela (2001), ao fazer uma pesquisa qualitativa sobre esse
tema, encontrou uma configuração mais ampla do que somente
efeitos danosos. Com o passar dos anos os profissionais também
apreendem melhor a complexidade dos comportamentos
agressivos sexuais e isso os ajuda a mudarem uma postura de
rejeição e sofrimento ante essas histórias.
4) OGM para adolescentes ofensores sexuais:
possibilidade de intervenção
Nessa zona de sentido apresentamos as reações da equipe
diante de uma proposta de atendimento grupal para uma
problemática dessa natureza, e a condição de atendimento que
se dá a partir do adolescente ser visto em família.
Aluna, feminino, 22 anos:
“apesar de estar no oitavo semestre eu obtive poucas
informações sobre esse tipo de trabalho”.
Aluna, feminino, 22 anos:
“O vínculo entre mãe e filho abusador... na maioria das
famílias há um movimento de exclusão e isolamento desse
adolescente... vistos como bandidos e marginais”.
Profissional, feminino, 61 anos:
“Pensar um trabalho interessante, com técnicas e estratégias
lúdicas para adolescente”.
Profissional, feminino, 27 anos:
Reforço a questão da equipe, da importância das relações que
criamos como grupo, de apoio, de compartilhar de aprendizado e
experiências...”
Profissional, feminino, 50 anos:
Vejo o adolescente como alguém ainda em formação e alguns
fatores familiares como a inversão de papeis, onde o adolescente
fica responsável pelo cuidado dos irmãos menores propiciam
o surgimento de situações que ele não sabe bem como lidar. O
dormir junto com a irmãzinha, até mesmo para protegê-la de um
medo noturno, traz proximidade física...”
Profissional, masculino, 25 anos:
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“... Meus conhecimentos sobre família, violências e
metodologia estão em crescimento... Ainda preciso de melhor
conhecimento de manejo de grupos” (técnicas e instrumentais
práticos).
Profissional, feminino, 31 anos:
“Adotamos uma postura leve e descontraída com os
adolescentes o que possibilitou entrar em contato com a temática
sem inibir, acusar ou marginalizar. ...Neste sentido a metodologia
utilizada foi fundamental, visto que permitiu aos mesmos se
expressar e serem ouvidos...”
Profissional, feminino, 40 anos:
“... Eles conseguiram...me fazer pensar na constante
construção do saber que vivemos e que quando achamos que
sabemos muito, descobrimos que não sabemos é nada, que
precisamos estar mais neutros dentro do grupo. Neutros de teorias
e aptos a vivenciar o grupo...”
Este item trata das reações frente ao atendimento grupal
dos adolescentes e suas famílias, no qual as interações são
privilegiadas. Parece quase comum a todos a queixa sobre a
necessidade de aquisição de habilidades para atendimento em
grupo. Tanto os alunos como os profissionais apontam que se
sentem em prejuízo quanto ao manejo de atendimentos grupais.
Isto se repete com relação também ao conhecimento específico
sobre o tema do abuso sexual. Penso, Costa, Ribeiro, Almeida e
Oliveira (2008) criticam o oferecimento de disciplinas clínicas no
Curso de Psicologia que se voltam mais para os atendimentos
individuais, com pouca consideração pela realidade prática, que
indica para o fato de que os trabalhos nos contextos de saúde ou
de assistência social atendem demandas excessivas, e não podem
se organizar para atendimentos prioritariamente individuais.
Parece que esta crítica reflete ainda uma menor preocupação
do profissional com alguns anos de formado que não buscou
até então um aprimoramento em intervenções grupais. Deste
conjunto de pesquisados, apenas uma psicóloga tinha formação
para clínica grupal. No entanto, todos responderam sobre a
efetividade da intervenção grupal e sobre o quanto a observação
das interações familiares afetou positivamente a compreensão
deles sobre o adolescente. Ficou patente o quanto o GM
proporcionou o conhecimento mais aprofundado sobre a relação
entre a mãe e o filho adolescente.
Assinalamos que a intervenção grupal requer
desenvolvimento de habilidades técnicas para o manejo grupal,
em uma abordagem lúdica e dinâmica, pontos importantes
para um trabalho com adolescentes. O atendimento em grupo
permitiu a responsabilização do ato violento sem abrir mão de
uma perspectiva lúdica, necessária para estimular o sujeito alvo da
intervenção, e criar um contexto facilitador para o cumprimento
da demanda. Dos adolescentes presentes, vários estavam
cumprindo medida socioeducativa em regime aberto, decretada
pelo juiz. Os programas para essa clientela, desenvolvidos em
países como Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e
Nova Zelândia oferecem formação continuada anual para seus
profissionais. Esta zona de sentido aponta, diferentemente, as
falhas na formação profissional das várias especialidades aqui
enfocadas. Trata-se de reconhecer e criticar que as deficiências
na formação profissional vão além do não conhecimento sobre
atendimento em grupo, mas alcançam limites em relação às
temáticas de violência, de execução de políticas públicas e de
atendimento aos perpetradores de violência.
Ainda cabe acrescentar um aspecto enfatizado por Moulden
e Firestone (2007) que é a inclusão na formação profissional de
aspectos preventivos e educativos sobre os efeitos danosos na
subjetividade dos terapeutas em decorrência do atendimento
a esta população de agressores sexuais. Sabemos que ainda
temos muito poucas iniciativas de atendimento a este público,
e aventamos a hipótese de que se as formações específicas
incluíssem estes aspectos talvez mais profissionais se
encorajassem nessa empreitada.
Considerações Finais
Esse texto buscou apresentar aspectos da caracterização
da experiência de profissionais e estudantes de Psicologia e
Serviço Social sobre atendimento grupal familiar a adolescentes
ofensores sexuais. Não há em nosso país outras experiências
publicadas o que torna nossa discussão limitada, podemos
apenas tecer comentários frente a outras experiências da literatura
internacional. Além disso, essa literatura identifica trabalhos
a partir de escalas e instrumentos fechados com tratamento
estatístico, o que facilita a observação de índices. Desse modo,
essas avaliações do desempenho e/ou de necessidades e/ou de
formação profissional oferecem maior condição de visualização
e indicação de ações de apoio e capacitação a esses profissionais.
Moulden e Firestone (2007) defendem que os profissionais que
atendem ofensores sexuais devem ter suas reações estudadas
diferentemente de outras categorias profissionais de cuidado,
em função de um maior desenvolvimento de efeitos traumáticos
nesse grupo, por conta do alto impacto sobre suas emoções e do
risco de surgimento de traumas a partir da escuta repetida de
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histórias traumatizantes.
Conhecer e identificar as emoções e reações dos profissionais
frente às situações de violência é fundamental para lidar com
esta temática. Para Marshall et al. (2005), as habilidades dos
terapeutas representam um importante papel no tratamento
destes ofensores, uma vez que estes últimos tentam evitar a
responsabilidade de seus atos e/ou minimizam os prejuízos aos
ofendidos. Os terapeutas têm função ativa no tratamento, sendo
que suas características e estilo terapêutico contribuem para a
eficácia no processo terapêutico, ao proporcionar ambientes
facilitadores de expressão de sentimentos e seus significados.
Scheela (2001) enfatiza o valor da pesquisa qualitativa
que poderá elucidar melhor as particularidades desses efeitos
traumáticos porque as aprendizagens e ganhos, no trabalho com
essa população, também existem. Por isto, queremos enfatizar a
contribuição deste texto na ampliação de como os profissionais
e estudantes se sentem com o atendimento a esta temática e esta
população, e que possa ainda mostrar a necessidade de implantação
de políticas de capacitação continuada para esses profissionais.
Ademais, queremos também enfatizar o Grupo Multifamiliar como
uma metodologia adequada também para este tipo de clientela,
em função da construção de um ambiente lúdico e grupal, o que
facilita as interações e se vale dos próprios sujeitos como coautores
da intervenção, como Zankman e Bonomo (2004), Henggeler et al.
(2009) e Marshall (2001) indicam.
Referências
Carmel, M. J. S., & Friedlander, M. L. (2009). The relation of secondary
traumatization to therapists’ perceptions of the working alliance with
clients who commit sexual abuse. Journal of Counseling Psychology,
56(3), 461-467.
Correa, M. E. C., Labronici, L. M., & Trigueiro, T. H. (2009). Sentir-se impotente:
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Recebido em agosto/2011
Revisado em novembro/2011
Aceito em dezembro/2011
69
ESTUDO TEÓRICO
Religião na história da psicologia no Brasil:
o caso do protestantismo
Religion in the history of psycology in Brazil:
the case of protestantism
Filipe Degani-Carneiroa1*, Ana Maria Jacó-Vilelab2
Resumo: Os diversos segmentos do Protestantismo adquiriram grande destaque no Brasil nas últimas
décadas do século XX. Por outro lado, os evangélicos têm realizado um grande investimento na
Psicologia, evidenciado no número cada vez maior de profissionais e instituições que articulam atuação
profissional e fé religiosa, bem como nos conflitos que estes setores têm enfrentado com os órgãos de
regulação profissional. Este trabalho objetiva contextualizar historicamente a interlocução entre o campo
religioso (especificamente, o Protestantismo) e a Psicologia no Brasil. Primeiramente, enfocaremos o
catolicismo, por sua importância não somente na difusão das ideias psicológicas no Brasil, como também
na formação cultural e religiosa nacional. Em seguida, examinaremos o processo de inserção e difusão do
protestantismo no Brasil a partir do século XIX. Finalmente, trataremos de suas articulações com o saber
psicológico, com enfoque em iniciativas atuais que mesclam elementos religiosos e psicoterapêuticos.
Palavras-chave: Religião; Protestantismo; História da Psicologia
Abstract: The various segments of the Protestantism have acquired a great emphasis in Brazil over the
20th century’s last decades. On the other hand, the Protestants have invested strongly in Psychology,
which is made evident by an ever-increasing number of professionals and institutions that conciliate both
professional activity and religious faith, as well as in the conflicts these sectors have faced with professional
regulatory bodies. This work aims to contextualize historically the interlocution between religious
field (in particular, Protestantism) and Psychology in Brazil. First, we will focus on Catholicism for its
importance not only in the diffusion of psychological ideas in Brazil, but also in the cultural and religious
national background. Furthermore, we will examine how Protestantism has diffused and inserted itself
in Brazil since 19th century. Finally, we examine its articulations under the perception of psychological
knowledge, focusing on current initiatives which mix both religious and psychotherapeutics elements.
Keywords: Religion; Protestantism; History of Psychology.
a Psicólogo; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
* E-mail: [email protected]
b Psicóloga; Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo; Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
(PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
70
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79
Desde a Antiguidade e através da Idade Média, o
pensamento cristão esteve muito próximo ao que se
convencionou chamar “história das ideias psicológicas”1. Assim,
a concepção de Agostinho, Tomás de Aquino e outros escritores
cristãos acerca da relação alma-corpo e da preponderância da
primeira é parte relevante do processo de consolidação das
noções de interioridade humana e cuidado de si. Além disto, a
cisão na Igreja Cristã, representada pela Reforma Protestante no
século XVI, é comumente apontada como um dos movimentos
fundamentais para a emergência da Modernidade, bem como
da categoria moderna de “indivíduo” (Jacó-Vilela, 2001), por
diversos fatores.
Caracterizada por conflitar com o pensamento católico, por
sua defesa da liberdade de consciência, da livre-interpretação
da verdade das Escrituras, da salvação mediante a fé individual
e do sacerdócio universal dos crentes contra a dependência da
autoridade religiosa, a Reforma alterou fundamentalmente a
forma de relação do homem com o mundo. “Ao desencantar
o mundo da imanente divindade, completando o processo
da cristandade iniciado pela eliminação do animismo pagão,
a Reforma permitia sua revisão fundamental pela ciência
moderna” (Tarnas, 2001, p.263).
A clássica obra de Weber (2001/1904) – A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo – difundiu a interpretação que atrela o
desenvolvimento do sistema capitalista e da ideologia burguesa
moderna à ética protestante, marcada pela racionalização,
ascetismo e estímulo ao estudo e trabalho seculares. Além disso,
o espírito crítico e secularizado da Reforma alterou a relação
do homem com a verdade. Segundo Tarnas (2001, p.262),
“a Reforma abriu no Ocidente o caminho para o pluralismo
religioso, depois para o ceticismo religioso e, por fim, a um
completo rompimento na até então relativamente homogênea
visão de mundo cristã”.
Diversas interpretações sociológicas vinculam o
Protestantismo ao “espírito da liberdade, da democracia, da
modernidade e do progresso” (Alves, 1979, p.38). Desta forma,
afirmar a importância do Protestantismo na Modernidade
vai além de uma análise da difusão das igrejas protestantes
após a Reforma e de suas perspectivas teológicas; significa
a compreensão de seu “espírito” em seu caráter essencial de
protesto contra a ordem institucionalizada e da afirmação da
autonomia do indivíduo na sua relação com o sagrado, bem
como do destino deste indivíduo para agir em um mundo
dessacralizado, desencantado, a ser por ele utilizado.
Por outro lado, as condições de emergência da Psicologia
(enquanto um saber dessacralizado sobre o homem) estão
também intrinsecamente ligadas à emergência da experiência
da Modernidade (Ferreira, 2006); a partir dela, as noções de
interioridade da alma, em que a vontade é disputada entre
o pecado e a fé, bem como discussões sobre o livre-arbítrio
assumem outra configuração, centrada na concepção de um
novo modelo de indivíduo: definitivamente livre, auto-centrado,
medida de todas as coisas, dotado pela Razão do poder de
conhecer (e dominar) o mundo e, em certa medida, associal
(Dumont, 1985).
A Idade Moderna é marcada por um “desencantamento
do mundo” – famosa expressão de Weber (2001/1904) – no
sentido que o mundo e a natureza deixam de ser regidos pela
magia, pelo sagrado, pelo inexplicável e se tornam capazes de
serem conhecidos pela racionalidade. Neste período, porém,
ciência e religião ainda caminham juntas, uma vez que a
regularidade do mundo é explicada em função de Deus. A
metáfora mecanicista do mundo sustentado por uma grande
engrenagem (semelhantemente a um relógio) evidencia isto,
uma vez que pressupõe a necessidade de um elemento superior,
não mecânico, para dar inicio ao processo inferior, mecânico.
O processo de cisão entre ciência e religião no pensamento
ocidental culminará no século XVIII, com o Iluminismo, marcado
pela crença de que a Razão libertaria a humanidade dos mitos,
da ignorância e da religião, estabelecendo uma radical distinção
entre o pensamento científico e as demais cosmovisões.
Nietzsche (2001) se refere a este processo como “a morte de
Deus”, no sentido de que a divindade perde sua centralidade no
mundo ocidental, cedendo lugar aos discursos científicos, como
o da Psicologia, no que tange à interioridade humana.
Entretanto, é preciso ter claro o que queremos dizer acima.
Não há uma substituição de uma cosmovisão, a religiosa, pela
racionalidade, no sentido da primeira deixar de existir. Ambas
passam a coexistir, com a diferença que a religiosidade começa a
restringir-se ao espaço privado, da intimidade, e a racionalidade
ocupa o espaço público. Compete às grandes instituições
religiosas a disputa política no espaço público com as regras
racionais que ali passam a funcionar quando estas atingem o
cerne de princípios religiosos2.
1 Tal termo expressa a perspectiva de que se, por um lado, a Psicologia enquanto disciplina
científica é um fenômeno histórico recente, do final do século XIX, por outro lado, o
pensamento sobre o homem e sua interioridade (ou “ideias psicológicas”) é muito mais
antigo, remontando ao surgimento da filosofia na Antiguidade.
2
É o caso atual, por exemplo, da reação de setores católicos e evangélicos contra leis
favoráveis ao aborto e ao casamento civil entre homossexuais. A este respeito, ver
Machado & Piccolo (2010).
71
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79
A presença católica na história da psicologia no
Brasil
Além da importância da teologia cristã na construção
da visão ocidental de homem, a historiografia da Psicologia
no Brasil apresenta como exemplo da relevância da temática
religiosa para esta disciplina os estudos acerca da produção
psicológica católica nos período colonial e imperial e também
sobre os primeiros cursos de graduação em psicologia, abertos
em faculdades católicas.
As ideias psicológicas em curso na Europa são inicialmente
apropriadas no Brasil, já no século XVI, com a vinda dos
padres jesuítas que, imbuídos dos princípios pedagógicos e da
concepção psicológica presente na filosofia tomista, detiveram a
hegemonia da educação ao longo do período colonial3.
Durante este período, observa-se, para além da pregação
nos sermões (Massimi,2005), a circulação de escritos jesuíticos
referentes a processos psicológicos articulados com outros
campos, como a teologia, a moral e a pedagogia. Dentre os
temas desses escritos, estão o controle das emoções (as “paixões”
da alma), ensaios sobre os sentidos humanos e também sobre a
formação e desenvolvimento da personalidade da criança4, sua
educação e o controle de seu comportamento, visto a catequese
dos “curumins” ser o principal objetivo da educação jesuítica
(Massimi, 2006).
A partir da vinda da Família Real Portuguesa, no século XIX,
ocorrem várias mudanças no Brasil, como a criação dos primeiros
cursos superiores (até então proibidos pela Coroa Portuguesa),
que serão as Faculdades de Medicina de Salvador e do Rio de
Janeiro e, já no Império, as Faculdades de Direito de São Paulo
e do Recife.
A segunda metade do século XIX, especialmente a partir da
década de 1870, foi um período marcado por uma efervescência
político-cultural em torno do ideal de Modernidade. Sobre este
período, é emblemática a citação de Silvio Romero (1851-1914),
filósofo, escritor e político brasileiro: “Um bando de ideias novas
esvoaçou-se sobre nós vindo de todos os pontos do horizonte”
(Romero, 1986). No bojo destas “ideias novas”, conviviam
movimentos de retórica modernizante como o abolicionismo,
republicanismo, anticlericalismo, liberalismo, positivismo,
higienismo e evolucionismo social, ao mesmo tempo em que
outros, como o monarquismo, o catolicismo, o latifúndio e o
coronelismo, mantinham sua força, ancorados na tradição.
3 A presença dos jesuítas ocorreu durante quase todo o período colonial, até sua expulsão
pelo Marquês de Pombal, em 1759.
4 O grande exemplo a este respeito é o livro “Arte de Criar Bem os Filhos na Idade da
Puerícia” , do padre jesuíta Alexandre de Gusmão (2004/1685).
Sob a influência deste espírito da época, o discurso católico
sobre a “alma” se defronta com a emergência de outro discurso
análogo, para o qual perde espaço – o discurso médico sobre
as localizações fisiológicas e anatômicas dos processos psíquicos
(Alberti, 1998). Por meio do discurso médico e, algumas décadas
mais tarde, também do discurso educacional, ocorre a entrada
no país da psicologia científica (Antunes, 1998).
A circulação destas ideias apropriadas da Europa encontrou
terreno fértil aqui, ao se unirem ao projeto econômico-social das
elites nacionais que empunhavam diversas bandeiras, como a
Abolição, a República e a laicidade do Estado, em torno de um
mesmo signo discursivo – a modernização da nação, entendida
como entrada do Brasil no capitalismo industrial, segundo o
modelo europeu e norte-americano.
Com a Proclamação da República, o Estado brasileiro se
torna oficialmente laico, com o pensamento e as instituições
católicas sofrendo cada vez mais contestações no cenário político
e intelectual. É nítida a influência do cientificismo e materialismo
positivistas que trazem a perspectiva da necessidade de progresso
nacional, de superar o “atraso” e elevar o Brasil ao patamar da
“civilização”. Assim, o pensamento tradicional (notadamente, o
espiritualismo católico) é identificado como um entrave a este
progresso, que seria superado pela Razão e pela Ciência em
desenvolvimento (a Psicologia, inclusive).
A partir da década de 1920, observa-se um esforço de
setores católicos para fazer frente a esta progressiva laicização
da sociedade brasileira. A Igreja se volta para a reconquista da
intelectualidade, reafirmando as posições católicas tradicionais
e combatendo mais diretamente o liberalismo e o comunismo.
Este movimento teve como principais atores Jackson de
Figueiredo5, Alceu Amoroso Lima6 e Padre Leonel Franca7, através
do Centro Dom Vital (1922) e da revista A Ordem, com o objetivo
de divulgar o ideal católico em aproximação ou adaptação às
novas questões científicas da época.
5
Jackson de Figueiredo (1891-1928) – advogado sergipano que, após se converter ao
catolicismo em 1918, tornou-se uma liderança do movimento católico leigo, fundando
a revista A Ordem (1921) e o Centro Dom Vital (1922).
6 Alceu Amoroso Lima (1893-1983) – intelectual carioca, também conhecido pelo
pseudônimo de Tristão de Athayde, converteu-se ao catolicismo na década de 1920,
dando continuidade ao trabalho de Jackson de Figueiredo. Foi um dos mais combativos
porta-vozes do Centro Dom Vital. Escreveu várias obras de Psicologia. Próximo ao
integralismo neste período, tornou-se um valoroso defensor da democracia no período
da ditadura militar.
7 Além de sua atuação no Centro Dom Vital, o padre jesuíta gaúcho Leonel Franca
(2001/1934) foi um dos fundadores das Faculdades Católicas do Rio de Janeiro
(posteriormente, PUC-Rio) e seu primeiro reitor, em 1940. Grande apologista católico,
envolveu-se intensamente no debate entre a Igreja Católica e o movimento dos
educadores em relação à questão do caráter laico da educação, preconizado por este
último. Além disto, em suas conferências e escritos, manteve fortes debates com outros
segmentos opostos à Igreja, como os socialistas e os protestantes. É autor de um livro de
grande relevância para nosso tema, “A Psicologia da Fé” (Franca, 2001/1934).
72
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79
Nesta mesma década, é criado no Rio de Janeiro o Laboratório
de Psicologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro
(1923), dirigido pelo psicólogo polonês Waclaw Radecki8, o qual
elaborou a primeira proposta de curso de formação de psicólogos
no Brasil em 1932, quando o Laboratório foi transformado no
Instituto de Psicologia9 (Esch & Jacó-Vilela, 2001). Em que pese
seu pioneirismo, o Instituto teve apenas sete meses de duração,
sendo desativado pelo Governo Federal, por conta de pressões
tanto do setor médico (que se opunha à formação de uma
classe profissional que rivalizasse com a medicina no tocante ao
tratamento psíquico), como da intelectualidade católica, a qual
olhava com desconfiança para este “novo” saber, organicista,
materialista, que fazia frente ao espiritualismo católico e à
“psicologia da alma” (Centofanti, 2004).
Nos artigos de A Ordem, bem como em outras publicações
e conferência de intelectuais católicos observa-se a presença
de temáticas psicológicas articuladas à teologia católica que
continham um elevado aspecto moral e defesa de valores
tradicionais, como a família e a religião (Jacó-Vilela & Bitar,
2003). Em“A Psicologia da Fé”(Franca, 2001/1934), por exemplo,
Leonel Franca se dedica à análise do ato de fé, sob o ponto de
vista psicológico – isto é, de seu dinamismo interior – e localiza
a fé duplamente como um ato da inteligência (racionalidade) e
da vontade (afetividade).
Este é também o momento em que os intelectuais
envolvidos no projeto de “civilizar a nação” compreendem que
não bastavam as medidas sanitaristas desenvolvidas pelos
médicos (Boarini, 2003; Gondra, 2004; Schwarcz, 1993), mas
que se fazia necessário também “educar o povo”, como caminho
para a transformação do indivíduo e da sociedade como todo
(Monarcha, 2009). Esta educação deveria seguir os princípios
constantes do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(Azevedo et al., 1932): uma escola pública, gratuita, laica e para
todos.
A Igreja se posiciona contrariamente, renovando seu
investimento no ensino. Desta forma, as reuniões do Centro
Dom Vital são o embrião das primeiras faculdades católicas,
cuja abertura foi autorizada pelo Governo Vargas em 1942
(Jacó-Vilela et al., 2007). Elas se anteciparam às universidades
Waclaw Radecki (1887-1953) é um dos primeiros psicólogos estrangeiros a emigrar
para o Brasil, o que fez no final da década de 1910. Dirigiu o Laboratório da Colônia
de Psicopatas (1923-1933), onde desenvolveu pesquisas experimentais e formação de
profissionais interessados em psicologia. Após o fechamento do Instituto de Psicologia,
emigra para o Uruguai, onde criou o primeiro curso de graduação em psicologia.
9 O Instituto de Psicologia foi reaberto em 1937, quando foi anexado à nascente
Universidade do Brasil, como órgão suplementar, auxiliando as cátedras de Psicologia
da Faculdade Nacional de Filosofia. Somente em 1964 a Universidade do Brasil (atual
UFRJ) criaria o curso de graduação em psicologia.
públicas na criação de alguns cursos, dentre os quais os cursos
de Psicologia. O primeiro curso de graduação em Psicologia no
Brasil foi criado em uma faculdade católica: o curso da PUCRio (março/1953). Além deste, foram criados outros cursos
em faculdades católicas – PUC-RS (agosto/1953), PUC-Minas
(1959), UNICAP (1961) – antecipadamente à regulamentação
da profissão de psicólogo (Lei 4119/1962), assim como à criação
de cursos de Psicologia nas universidades públicas10.
Em ambas as iniciativas – oposição ao curso proposto
por Radecki de orientação laica e materialista e a tomada da
dianteira na criação dos primeiros cursos de psicologia – está
claro o interesse católico em se apropriar do discurso psicológico
e, principalmente, da formação profissional. Ao mesmo tempo
em que este interesse se insere no contexto mais amplo do
projeto de “recatolização” da sociedade brasileira, visando uma
reafirmação dos valores católicos frente às “novas questões
sociais” trazidas pelo espírito modernista do período, há uma
especificidade na relação da Igreja com o saber psicológico, já
que este investimento católico não se dirigiu a todas as áreas do
conhecimento. Parece-nos que, ao tratar do cuidado de si, da
interioridade, da vida em família, a psicologia assume um valor
muito especial para a Igreja Católica. Não à toa, a quase totalidade
das primeiras turmas de Psicologia da PUC-Rio é composta
por mulheres e a estas é dada uma atenção especial em sua
formação como futuras esposas e mães. Padre Benko11, diretor do
curso de Psicologia, faz as entrevistas de seleção, acompanha os
alunos, é presença marcante na vida dos alunos(as) – chegando
a celebrar seus casamentos e batizar seus filhos (Jacó-Vilela et
al., 2007).
Percebe-se, pois, o quanto a marca do catolicismo na
formação cultural brasileira permeia o contexto de emergência
da Psicologia no país. Apresentaremos a seguir o processo de
inserção do protestantismo no Brasil, o qual ocorre durante o
mesmo período abordado neste item (último quartel do século
XIX) mantendo, pois, relação com a “retórica da modernidade” e
o “bando de ideias novas” que abre caminho para a chegada da
psicologia científica no Brasil. Seguiremos adiante com a difusão
do protestantismo durante a primeira metade do século XX no
país.
8
10 O primeiro curso criado em universidade pública foi o da USP (1957). Após isto, outros
cursos são criados somente após a regulamentação – por exemplo, os cursos da UERJ e
UFRJ, criados em 1964.
11 O curso de Psicologia da PUC-Rio foi criado em 1953, sob a direção de Hanns Ludwig
Lippman. Sua substituição pelo padre jesuíta húngaro Antonius Benko (1920) em 1957
sinaliza um aumento do interesse da cúpula (católica) da Universidade pelo curso.
Padre Benko reformulou a estrutura do curso, introduziu a psicanálise e criou centros de
psicologia aplicada para os alunos realizarem estágio; dirigiu o curso até 1966.
73
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79
A inserção e difusão do protestantismo no Brasil
Embora os protestantes tenham estado no território
brasileiro durante as invasões francesa e holandesa nos século
XVI e XVII, esta presença não deixou legado que fizesse frente
ao monopólio do catolicismo, enquanto religião oficial durante
todo o período colonial (Ribeiro, 1973). Assim, a chegada do
protestantismo ao Brasil ocorre de fato durante o século XIX,
depois da chegada de D. João ao Brasil.
No contexto da abertura econômica ao capital inglês,
por meio dos tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e
Navegação (1810), foi concedida liberdade de consciência e de
culto aos estrangeiros, o que visava, evidentemente, os ingleses
anglicanos, cada vez mais presentes. Além de se estender
somente a estrangeiros (inclusive com os serviços religiosos
ministrados em língua estrangeira), esta liberdade de culto
tinha outras restrições: era vedado o proselitismo, bem como a
pregação pública contra a religião católica e os locais de cultos
não deveriam ter aparência exterior que indicasse sua finalidade.
Assim, os ingleses passaram a celebrar o culto protestante, a
bordo de navios ou em residências, até que foi inaugurado o
primeiro templo anglicano no Rio de Janeiro em 1820 (Ribeiro,
1973).
Ao longo do período imperial, imigrantes de outras
nacionalidades européias, bem como norte-americanos,
pertencentes a diferentes ramos protestantes, vieram para o
Brasil. Paralelamente aos imigrantes, chegaram os primeiros
missionários protestantes. Desta forma, estabeleceu-se uma
classificação comumente empregada para os grupos protestantes
que vieram para o Brasil no século XIX: protestantismo de
imigração e protestantismo de missão.
Por protestantismo de imigração denominam-se os grupos
que vieram com o objetivo de estabelecer colônias no país, dos
quais se destacam os anglicanos e os luteranos. É importante
ressaltar que a primeira iniciativa do governo brasileiro de
incentivo à imigração – que levou o estabelecimento da colônia
suíça na região serrana do Rio de Janeiro em 1818, ainda no
reinado de D. João – teve como condição que estes imigrantes
suíços fossem católicos (Ribeiro, 1973).
As constantes pressões internacionais (notadamente,
inglesas) pelo fim do tráfico de escravos africanos, bem como
a expansão da cultura do café na segunda metade do século
XIX, aumentam a demanda por imigrantes para suprir a carência
de mão-de-obra (Fausto, 2002). A preferência por europeus é,
claro, um esforço para “branquear” o país (Schwarcz, 1993).
Além da presença anglicana mencionada acima, as
primeiras colônias protestantes que se estabeleceram foram as
alemãs luteranas em Nova Friburgo (RJ) e São Leopoldo (RS), em
1824 (Mafra, 2001). Em 1827, em Petropólis (RJ), estabeleceuse a Comunidade Protestante Alemã-Francesa, composta por
luteranos e calvinistas (Matos, 2010). Diversos outros núcleos de
colonos protestantes se estabeleceram durante todo o Império,
especialmente no interior de São Paulo e na Região Sul. Estes
contingentes imigratórios eram atraídos pelas promessas de
cessão de terras e outras subvenções (nem sempre totalmente
cumpridas) por parte da Coroa.
Os imigrantes protestantes não tinham primariamente
uma preocupação evangelística. Seu objetivo era estabelecer
comunidades colonizadoras, reproduzindo no interior destas
os laços sociais e culturais de seus países de origem. Por falta
de ministros ordenados, os imigrantes organizavam sua própria
vida religiosa, com colonos assumindo a função de pregadores,
realizando casamentos etc. Muitas vezes, as comunidades
esperavam anos até que as igrejas europeias enviassem ministros
ou mesmo que a Coroa os contratasse.
Entretanto, estes imigrantes enfrentaram grande oposição
da Igreja Católica. Os registros civis de nascimento, casamento
e óbito estavam sob o encargo da Igreja, que frequentemente
negava estes atos – que tinham efeito religioso e civil – aos
protestantes. A este respeito, Ribeiro (1973, p.91) diz que:
“Embora os evangélicos de Colônia não se preocupassem
com proselitismo entre brasileiros, contudo inseriamse na organização social do país; interpretavam com
liberalidade as restrições constitucionais a seu culto;
estabeleciam o culto; ingressavam nas agendas do sistema
de parentesco (batismo, casamento, sepultamento) até
então monopolizadas pela religião do Estado. Ingressavam
nos cenários com seus cemitérios, seus templos, suas casas
pastorais, suas escolas. Conservavam a homogeneidade
comunitária, educando os seus filhos em suas escolas, sob
a direção de professores protestantes. E algumas famílias
católicas romanas enviaram seus filhos a essas escolas
protestantes”.
Desta forma, “uma consequência importante da imigração
protestante é o fato de que ela ajudou a criar as condições
que facilitaram a introdução do protestantismo missionário
no Brasil” (Matos, 2010, [s.p.]), à medida que os imigrantes
exigiam garantias legais de liberdade religiosa. Ao longo do
Império, algumas comunidades protestantes gozavam do apoio
das autoridades, dentre as quais o próprio Imperador Pedro
74
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II, e obtiveram direitos, como o de construir templos, escolas
e cemitérios protestantes, integrando-se gradativamente à
sociedade local.
Ainda no período imperial, foram enviados os primeiros
missionários protestantes norte-americanos, cuja ação não
consistia em realizar pregações e obter prosélitos, mas de
percorrer o país, distribuindo Bíblias e observando o cenário
sociocultural do Brasil. Neste contexto, destacam-se Daniel
Parrish Kidder (1815-1891) e James Cooley Fletcher (18231901).
O metodista Daniel P. Kidder foi enviado como agente da
Sociedade Bíblica Norte-Americana ao Rio de Janeiro, onde,
segundo Matos (2010), criou a primeira escola dominical
no Brasil, permanecendo no Brasil de 1835 a 1840. De volta
aos EUA, publicou Sketches of residence and travel in Brazil
(Reminiscências de viagens e permanência no Brasil), livro em
que relata suas observações de viagem12.
James C. Fletcher era um pastor presbiteriano que chegou ao
Brasil em 1851, enviado conjuntamente por duas organizações
– a União Cristã Americana e Estrangeira e a Sociedade de
Amigos dos Marítimos. Veio com o objetivo de ser capelão
dos marinheiros, porém recebeu o título de adido da Legação
Americana (Ferreira, 2008), o que lhe abriu oportunidades de
acesso à Corte e ao próprio Imperador. Uma de suas realizações
no intuito de divulgar o protestantismo e o progresso foi uma
exposição de produtos norte-americanos, para a qual lhe foi
cedido um salão no Museu Imperial e Nacional13. Também
organizou a vinda da Expedição Thayer (1865-1866), chefiada
pelo renomado cientista Louis Agassiz, grande expoente dos
estudos sobre raças no século XIX. Fletcher publicou em 1857,
em parceria com Kidder, Brasil and the Brazilians (O Brasil e
os Brasileiros). Estas viagens foram os primeiros passos que
possibilitaram a maciça onda de missionários protestantes que
chegaram ao Brasil a partir da década de 1850.
O protestantismo de missão, por sua vez, refere-se à
imigração de missionários propriamente ditos, o que ocorre
após a década de 1850. A primeira denominação protestante
missionária foi a dos congregacionais. O escocês Robert Reid
Kalley (1809-1888) chegou ao Rio de Janeiro em 1855 e
organizou a primeira igreja protestante em língua portuguesa,
a Igreja Evangélica Fluminense, em 1858.
Por sua vez, o pastor presbiteriano norte-americano
Ashbel Green Simonton (1833-1867) se estabeleceu também
12 A edição mais contemporânea em português divide a publicação em dois números, a
saber: Kidder (1980a /1845) e Kidder (1980b/1845).
13 Com a proclamação da República, foi denominado Museu Nacional, sendo anexado à
Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1937.
no Rio de Janeiro em 1859, onde, três anos depois, organizou
a primeira Igreja Presbiteriana do Brasil e fundou, em 1864, a
Imprensa Evangélica, primeiro jornal evangélico no Brasil. Ainda
em relação aos presbiterianos, em 1863 estabeleceu-se em São
Paulo Alexander Latimer Blackford (1829-1890). Foi através de
seu ministério que, em 1864, converteu-se ao presbiterianismo
o padre paulista José Manuel da Conceição (1822-1873),
posteriormente o primeiro brasileiro a ser ordenado pastor
evangélico. Outras denominações que se inseriram no Brasil
no século XIX foram os metodistas e os batistas (Mafra, 2001;
Matos, 2010; Ribeiro, 1973).
O missionarismo protestante adotava um discurso marcado
pela vinculação entre a fé protestante e o “espírito do progresso”,
da modernidade. Os relatos dos missionários são marcados por
identificarem no povo brasileiro duas características em comum:
de um lado, a incivilidade e a tendência ao vício e à imoralidade
e, por outro lado, o misticismo e o sincretismo religioso, fatores
prejudiciais não somente à salvação, como também à civilidade
e ao desenvolvimento nacionais (Carvalho, 2007). Dirigem-se
muitas críticas à religião católica, tanto por ser identificada como
uma religião mística, irracional, como por considerarem haver
corrupção do clero.
Os protestantes, em suas atividades missionárias,
deram uma grande ênfase ao ensino regular, associando à
evangelização a alfabetização, criando colégios de destaque,
os quais logo passaram também a receber crianças de famílias
não protestantes. Mafra (2001, p. 26) afirma que “desde o início,
luteranos, presbiterianos e metodistas procuraram se afirmar na
sociedade brasileira, através da construção e manutenção de
instituições de ensino”. Evangelizar e civilizar eram duas faces da
mesma moeda.
Dentre tais instituições, pode-se citar, por exemplo, a Escola
Americana (depois Colégio Mackenzie), criada em São Paulo
pelos presbiterianos em 1870. Os metodistas, todavia, foram o
grupo protestante que mais se destacou no cenário educacional.
Em 1881, chegou ao Brasil a professora americana Martha
Hite Watts (1845-1910), fundando o Colégio Piracicabano, em
Piracicaba/SP; Watts também criou outros colégios metodistas,
como o Colégio Americano (1894), de Petrópolis e o Colégio
Izabela Hendrix (1904), de Belo Horizonte. No cenário da
educação metodista, também se destacam o Colégio Americano
Granbery (1889), em Juiz de Fora/MG e o Colégio Metodista
Bennett (1920), no Rio de Janeiro.
O discurso protestante também foi incisivo na defesa do
fim do tráfico negreiro e da própria escravidão, na defesa do
regime republicano e da democracia, bem como da liberdade
75
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religiosa e da laicidade do Estado. A escravidão e a formação
católica foram identificadas como mazelas nacionais e entraves
ao desenvolvimento do Brasil (Ferreira, 2008; Mafra, 2001;
Vieira, 1980). Desta forma, observamos o estabelecimento de
uma aliança entre os protestantes e diversos setores das elites
política, econômica e intelectual brasileiras, pois os interesses de
ambos os lados se articulavam.
Assim, segundo Ribeiro (1973), ao longo da Monarquia,
gradativamente foram criadas condições jurídicas que favoreciam
a permanência dos protestantes e sua participação na vida
social em um Império que tinha o Catolicismo como religião
oficial. Este processo gradual foi possibilitado por uma aliança
de interesses entre protestantes (tanto os que vieram a negócios
quanto como missionários) e políticos liberais, que almejavam
tanto a quebra da hegemonia política da Igreja Católica quanto
o desenvolvimento econômico nacional e estavam interessados
no projeto de modernização que o Protestantismo simbolizava,
segundo as aspirações da elite nacional de seguir o modelo dos
países protestantes europeus e dos EUA. Em 1890, já na República, o
novo governo decretou a separação entre a Igreja Católica e o Estado,
assegurando igualdade de direitos e reconhecimento e proteção
legais aos protestantes (Matos, 2010).
Carvalho (2011, p. 269) aponta que a penetração do
protestantismo no Brasil “coincidiu com as transformações
políticas de então, como a consolidação do Estado republicano, a
dissociação entre este e a Igreja Católica e os projetos civilizatórios
centrados na educação e saúde do povo”. Isto pode ser visto, por
exemplo, nas estreitas semelhanças entre o discurso protestante
acerca da ênfase na educação, no trabalho e em uma vida
regrada e o discurso higienista modernizador, hegemônico no
cenário político e científico brasileiro no final do século XIX e
primeira metade do século XX e que defendia a reordenação do
espaço público e dos hábitos privados (individuais e familiares),
segundo princípios higiênicos (Boarini, 2003; Monarcha, 2009;
Wanderbroock Jr., 2009).
Os projetos disciplinares da intelectualidade brasileira,
notadamente dos setores da psiquiatria, da higiene mental e
da pedagogia, foram muito importantes para a consolidação
do saber psicológico (Wanderbroock Jr., 2009). A este respeito,
Carvalho (2011) menciona, ainda, ter encontrado nos arquivos
do Seminário Presbiteriano de Campinas, fundado em 1888,
publicações protestantes nas quais aparecem temas ligados à
psicologia e à higiene mental, o que aponta para a existência de
uma produção protestante em interface com a Psicologia já na
primeira metade do século XX.
Após a Segunda Guerra Mundial, o protestantismo no
Brasil adquire novas configurações. O pentecostalismo, presente
desde 1910 com a chegada de Louis Francescon a São Paulo
(criando a Congregação Cristã do Brasil) e de Daniel Berg e
Gunnar Vingren a Belém (criando aquela que se tornaria a maior
denominação evangélica do Brasil, a Assembléia de Deus), se
difunde amplamente, notadamente entre as camadas populares
(Mafra, 2001).
Além disto, inicia-se uma nova onda missionária norteamericana, atrelada em parte à política norte-americana
de ampliação de sua influência na América Latina (como o
programa Aliança para o Progresso14), visando o combate
ao comunismo. Carvalho (2011, p.268) menciona que esta
nova onda missionária traz outra forma de protestantismo, de
forte inspiração liberal e “voltada com maior ênfase para os
males mundanos da humanidade e, de certa forma, para sua
dimensão social, ainda que não as vinculassem a uma luta
política e, sim, religiosa”. São os anos 1960, em que ocorrem
transformações em âmbito mundial de várias ordens. No caso
do Brasil, estas mudanças, se acompanham as internacionais
(movimentos pelos direitos civis, Black Power, hippie, feminista,
gay, contracultura), têm sua especificidade marcada pela
ditadura militar, que começa em 1964 e dura longos 21 anos,
e, no caso da psicologia, por uma marca legal importante –a
regulamentação da profissão e dos cursos.
As iniciativas protestantes de articulação entre fé e
psicologia
Após a regulamentação da profissão de psicólogo e dos
cursos de psicologia (através da Lei 4119, de 27/08/1962), o saber
psicológico adquire novo status, marcado de um lado, pela difusão de
sua institucionalização – com a abertura de cursos de graduação em
Psicologia – e por outro, por um processo de “psicologização da vida
cotidiana”, isto é, uma grande difusão de uma “cultura psicológica”
entre as classes médias urbanas. É o período do chamado “boom”
psicológico: inicialmente com clara hegemonia psicanalítica e
posteriormente, a penetração de novas abordagens (Russo, 2002).
Isto decorre, sem dúvida, em primeiro lugar do fechamento político
do regime ditatorial, levando à dificuldade de acesso ao espaço
público, e às suas consequências tecnológicas, como a modernização
das comunicações, favorecendo o isolamento e a privacidade/
intimidade.
14 “Aliança para o Progresso” foi um programa do governo dos EUA, lançado por John
Kennedy (1961), que visava maior aproximação com a América Latina, através de
investimentos nas áreas econômica, social e cultural, como forma de ampliação da
influência americana, a fim de fazer frente ao comunismo (especialmente, ao exemplo
de Cuba).
76
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O missionarismo norte-americano acima mencionado,
em interseção com este processo de psicologização cultural,
compõe, no campo protestante, “um quadro de investimento
progressivo nos saberes e práticas ‘psi’, seja ele voltado para o
meio acadêmico seja para o público leigo” (Carvalho, 2011, p.
69). Neste período, são criadas instituições protestantes reunindo
profissionais “psi”, como por exemplo, o Centro Acadêmico
de Debates e Estudos de Psicanálise (CADEP), em 1965, e o
Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), em 1976. O
primeiro travou confrontos com o Conselho Federal de Medicina
na década de 1970, pelo direito de formar psicanalistas e pela
regulamentação desta profissão. O segundo reunia psiquiatras,
psicólogos e psicanalistas, com o objetivo de realizar reflexões
que articulassem teorias “psi” e teologia cristã15.
Nas décadas de 1990 e 2000, o investimento protestante na
Psicologia cresceu de forma visível e suscitou confrontos entre
setores protestantes (tanto de leigos, quanto de profissionais
“psi”) e as instâncias de regulação profissional. Mencionaremos
aqui dois exemplos.
O primeiro é o caso de cursos de formação psicanalítica
abertos por/para pastores evangélicos. Vários pastores
protestantes que realizaram cursos de formação no CADEP
criaram outras instituições psicanalíticas protestantes, como,
por exemplo, a Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil
(SPOB), fundada pelo pastor batista Heitor Antonio da Silva
em 1996. A SPOB retomou de forma mais sistematizada (e
assessorada política e juridicamente) a luta pelo direito de
formar psicanalistas e a defesa da regulamentação da profissão
de psicanalista. Carvalho (2011) afirma que a SPOB alcançou um
rápido crescimento e que sua proposta de“psicanálise para todos”
– uma formação mais rápida e mais barata que a das sociedades
tradicionais de psicanálise (Becker, 2010) – influenciou a criação
de dezenas de instituições formadoras independentes (a maioria,
criada por ex-alunos da SPOB), alcançando grande repercussão
no meio protestante e suscitando embate com o Conselho
Federal de Psicologia (CFP) e as sociedades de psicanálise16.
O segundo exemplo que evidencia o tensionamento desta
relação é o confronto, de grande destaque na mídia, ocorrido
entre os ministérios evangélicos de ajuda a homossexuais e o
movimento LGBT, este contando com apoio do CFP.
Para entender a questão, é importante apontar o Ministério
Exodus17, criado nos EUA em 1976. Consiste em uma associação
15 Se, por um lado, o CADEP se dissolveu, influenciado o surgimento de outros grupos
psicanalíticos (como veremos à frente), por outro, o CPPC existe ainda hoje.
16 Uma análise detalhada acerca do CADEP e da SPOB e dos embates com o CFP e as
sociedades de psicanálise é encontrada em Carvalho (2007).
17 O nome “Exodus” é uma referência à saída do povo de Israel do Egito, uma metáfora
de vários ministérios e grupos de apoio para indivíduos que
desejavam deixar a homossexualidade, mudando a orientação
sexual. Em 1988, o Exodus chegou ao Brasil, tendo Rozângela
Justino, psicóloga carioca e evangélica, como uma das
fundadoras e líder do ministério até 2002.
Outra iniciativa semelhante é o Movimento pela Sexualidade
Sadia (MOSES), criado no Rio de Janeiro em 1997, tendo
João Luiz Santolin (teólogo e pós-graduando em Terapia de
Família) como um dos líderes. Ambos os grupos se caracterizam
pela evangelização direcionada ao público homossexual,
principalmente através de utilização de testemunhos de ex-gays
e ex-lésbicas e panfletagem em paradas gays, bem como pelo
oferecimento de psicoterapia e grupos de apoio.
A realização do III Encontro Cristão sobre Homossexualismo
pelo Exodus Brasil, em Viçosa/MG, em 1998, foi o estopim de um
conflito (Justino, 2005; Oliveira, 2011). A Associação Brasileira
de Gays, Lésbicas e Travestis18 (ABGLT) denunciou o evento junto
à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), à Secretaria Nacional
de Direitos Humanos e ao Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Respondendo à denúncia, o CFP aprovou a Resolução
CFP nº 01/1999, em 22 de março de 1999, que “estabelece
normas de atuação para os psicólogos em relação à questão
da orientação sexual” (Conselho Federal de Psicologia, 1999). O
texto da Resolução afirma que:
(...) Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu
conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e
o desaparecimento de discriminações e estigmatizações
contra aqueles que apresentam comportamentos ou
práticas homoeróticas.
Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que
favoreça a patologização de comportamentos ou práticas
homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a
orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com
eventos e serviços que proponham tratamento e cura das
homossexualidades.
Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem
participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de
comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos
sociais existentes em relação aos homossexuais como
portadores de qualquer desordem psíquica (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999).
empregada para significar uma “libertação” (no caso, da condição homossexual).
18 Atualmente a instituição se denomina Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, mantendo, porém, a sigla ABGLT.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79
A Resolução determina que os psicólogos não
podem promover nenhum tratamento que patologize a
homossexualidade ou ofereça-lhe cura. Esta restrição, segundo
(Natividade, 2011), visa efetivamente combater os programas
de cura a homossexuais empreendidos pelos evangélicos.
As tensões entre evangélicos e movimento LGBT
prosseguiram no início do século XXI. Rozângela Justino
fundou a Associação Brasileira de Apoio aos que Desejam
Deixar a Homossexualidade (ABRACEH19) em 2005, com a
mesma proposta de promover serviços de apoio “para aqueles
que desejam voluntariamente deixar a homossexualidade”
(Natividade, 2011).
Rozângela Justino foi denunciada ao Conselho Regional
de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ) em 2007 pelo Grupo
28 de Junho, uma ONG representante do movimento LGBT,
localizada em Nova Iguaçu/RJ. No final do mesmo ano, recebeu
condenação de censura pública, por infração da Resolução CFP
001/1999. Rozângela recorreu da decisão, apelando ao CFP, que,
em julho de 2009, manteve a pena.
Diversos setores protestantes vieram a público,
defendendo Rozângela, questionando a constitucionalidade
da Resolução CFP 001/1999 sob diversos argumentos, como os
de que a Resolução geraria crise de consciência em psicólogos
protestantes; que os mesmos, como Rozângela, estariam sendo
alvo de “preconceito heterofóbico” (Cavalcanti, 2005, p.67) por
conta da Resolução; e, ainda, de que os pacientes de Rozângela
tinham o direito de receber auxílio, uma vez que o procuraram
voluntariamente (Justino, 2005).
Entretanto, tal questão se encontra distante de resolução,
uma vez que a polêmica entre setores evangélicos envolvidos no
combate à agenda do movimento LGBT e o CFP ainda permanece
em aberto, com constante destaque na mídia.
Considerações Finais
Vimos que nas últimas décadas, o campo protestante vem
demandando cada vez mais uma literatura e aconselhamento
psicológicos cristãos. Por outro lado, as instâncias de regulação
do exercício profissional do psicólogo têm se defrontado
com os limites desta apropriação do exercício profissional. A
problemática acima apresentada mostra as tensões entre as
relações entre a psicologia no campo protestante e a psicologia
nas instâncias reguladoras da profissão. Assim, o interesse no
estudo desta temática decorre em grande parte destas tensões
que, a nosso ver, evidenciam que esta relação está eivada de
19 A ABRACEH atualmente se denomina Associação de Apoio ao Ser Humano e à Família.
generalizações e preconceitos.
Por parte do campo protestante, não se pode pensar em
uma visão coesa acerca do saber psicológico, dada a grande
heterogeneidade daquele campo. De fato, podem ser encontradas
perspectivas completamente refratárias à incorporação de um
saber “mundano”, defendendo exclusivamente um discurso
“sagrado” e, em outro extremo, perspectivas plenamente
secularizadas, passando por perspectivas intermediárias e mais
conciliatórias entre o “mundano” e o “sagrado”.
Em contrapartida, por parte do campo acadêmico, prevalece,
em diversas situações, uma ortodoxia científica antirreligiosa, a qual
rebaixa o discurso religioso à posição de“senso comum”,“superstição”,
ou se debruça sobre o mesmo como mero “objeto” de pesquisa.
Especialmente sobre o campo protestante, por vezes o olhar
acadêmico é caracterizado por generalizações e visões estereotipadas,
que desconsideram a heterogeneidade deste universo ou se limitam
a explicações superficiais que identificam o interesse protestante
pela Psicologia como uma estratégia de disciplina (no sentido
foucaultiano) ou mesmo, de manipulação.
São relativamente poucos os estudos em Psicologia dirigidos
à temática religiosa no Brasil, não obstante o reconhecimento da
grande relevância do tema na cultura e, portanto, nos processos
psicossociais. Tal constatação é assustadora quando se compara com
a produção a respeito nas ciências sociais e mesmo nas ciências da
saúde, onde cada vez mais se tem incorporado a espiritualidade/
religiosidade como fator na análise do processo saúde-doença.
É importante ressaltar que o investimento protestante na
Psicologia não se limita às polêmicas apropriações acima citadas.
De fato, nas últimas décadas, observa-se um crescente interesse
protestante pelo estudo e prática da Psicologia. Este interesse se
apresenta de diferentes formas: seja como profissão leiga, seja
como subsídio a atividades eclesiásticas, ou ainda, por meio de
um fato especialmente verificado entre os fiéis protestantes –
uma grande demanda por psicoterapia (com a ressalva de que o
profissional compartilhe de sua fé).
A nosso ver, a história do investimento protestante pela
Psicologia (verificado maciçamente após a regulamentação da
profissão de psicólogo, na década de 1960) está a ser escrita.
Esbarra, evidentemente, na escassez de trabalhos na área
da Psicologia sobre sua interface com a religião. Entretanto,
as articulações entre religião e psicologia aqui apresentadas
evidenciam que há um núcleo comum entre ambos os sistemas
discursivos que gera no campo religioso um interesse na
apropriação do conhecimento e prática psicológicos. Talvez
seja o momento para que este interesse seja despertado na
direção inversa: que a Psicologia se volte ao campo religioso,
78
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 70-79
metade do século XX. In J. de S. Bernandes, C. E. & Lang, M. A. T. Ribeiro
incorporando em suas análises não apenas a religiosidade dos
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Recebido em fevereiro/2012
Revisado em fevereiro/2012
Aceito em março/2012
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ESTUDO TEÓRICO
Introdução às Medidas Implícitas: conceitos, técnicas e contribuições
Introduction to Implicit Measurements: concepts, techniques and contributions
Valdiney V. Gouveiaa*, Rebecca A. A. Athaydeb,
Luis Augusto C. Mendesc, Sandra E. A. Freired
Resumo: O uso de medidas implícitas tem apresentado um crescimento rápido em Psicologia. Um
dos motivos para este fato é a capacidade de aferição de atitudes e construtos correlatos sem vieses
deliberados, como a desejabilidade social. Apesar disso, pouco ainda é conhecido a respeito no Brasil. Este
artigo objetiva introduzir algumas técnicas de mensuração implícita, indicando suas contribuições. Neste
sentido, consideram-se inicialmente os conceitos principais e o histórico de sua utilização, focando nas
técnicas de priming e associação implícita. Posteriormente, são discutidas as correlações entre as medidas
explícitas e implícitas e a capacidade delas predizerem comportamentos. Em seguida, são listadas críticas
sobre a mensuração, a confiabilidade e o uso das técnicas implícitas, com os argumentos em favor delas
por parte daqueles que as utilizam. Por fim, são enfatizados o crescimento destas técnicas e o atual estado
da arte correspondente, destacando suas contribuições às pesquisas nesta área.
Palavras-chave: Medida; Implícita; Explícita; Atitudes; Priming; TAI
Abstract: The use of implicit measures has rapidly grown in Psychology. One reason for this is the ability to
measure attitudes and related constructs without deliberate bias, such as social desirability. Nevertheless,
little is still known about it in Brazil. This article aims to introduce some implicit measurement techniques,
indicating their contributions. In this sense, we consider first the main concepts and history of their
use, focusing on techniques of priming and implicit association. Later, we discuss the correlations
between explicit and implicit measures and their ability to predict behavior. Then, critics are listed on
the measurement, the reliability and the use of implicit techniques, with the arguments in their favor by
those who use them. Finally, it emphasizes the growth of these techniques and the current state of the
art matching, highlighting their contributions to research in this area.
Keywords: Measure; Implicit; Explicit; Attitudes; Priming; IAT
a Psicólogo; Doutor em Psicologia Social; Docente da Universidade Federal da Paraíba; Pesquisador 1B do CNPq
*E-mail: [email protected]
b Psicóloga; Mestranda em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba
c Jornalista; Doutorando em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba; Docente da Faculdade Maurício de Nassau, João
Pessoa, PB
d Psicóloga; Doutoranda em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba; Docente da Universidade Federal do Piauí, Parnaíba, PI
Nota dos autores: Este artigo contou com apoio do CNPq por meio de bolsas de Produtividade em Pesquisa e Mestrado concedidas ao
primeiro e segundo autores, respectivamente. Os autores agradecem a esta instituição.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Muitos dos estudos em Psicologia enfocam construtos
latentes (não observáveis diretamente), como atitudes, crenças
e valores. Estas são variáveis hipotéticas que explicam tendências
subjacentes de pensar, sentir e agir que as pessoas apresentam
no seu dia a dia. Neste sentido, tais construtos não podem ser
medidos diretamente, mas apenas inferidos a partir de respostas
declaradas (auto-informes) ou detectáveis como automáticas
(implícitas) (Krosnick, Judd & Wittenbrink, 2005), sejam elas
verbais ou não-verbais (Sherif & Cantril, 1946). Portanto, tem
lugar a diferenciação entre medidas explícitas (requerem atenção
consciente) e implícitas (não dependem da consciência, sendo
espontâneas e automáticas). Este primeiro tipo tem dominado
a literatura empírica nesta área, sendo bastante popular entre
os psicólogos sociais (Gawronski & Bodenhausen, 2006; Maio &
Haddock, 2010).
As medidas explícitas de atitudes, por exemplo, são
acessadas por meio de avaliações feitas acerca de um objeto,
evento ou situação, i.e., a autodescrição do posicionamento
individual. Usualmente, são medidas de autorrelato, realizadas
com instrumentos tipo lápis e papel, em que são expressas
opiniões frente à determinado objeto (e.g., drogas, aborto).
Das técnicas para este tipo de medida, merecem destaque as
propostas feitas por Thurstone, Likert e Osgood (Pimentel, Torres
& Gunther, 2011). A primeira (Thurstone) caracteriza a atitude
da pessoa por meio de seu posicionamento face a estímulos
apresentados, empregando juízes para avaliação; constituiuse na primeira tentativa de mensuração intervalar. A segunda
(Likert) é, provavelmente, a mais popular, classificando os
itens ao longo de um contínuo de cinco pontos, variando de
“concordo totalmente” a “discordo totalmente”. Finalmente,
a terceira (Osgood), conhecida como técnica de diferencial
semântico sugere um conjunto de adjetivos bipolares que
indicam relações de favorabilidade – desfavorabilidade. Existem
outras técnicas, como as de Guttman (escalas cumulativas,
descrevendo afirmações selecionadas que incorporam o que foi
dito pelas anteriores) e Bogardus (predisposição a estabelecer
níveis de contato com grupos-alvo), mas as três primeiras são
mais conhecidas.
É possível observar resultados consistentes com os tipos de
medidas supracitadas, porém não se descartam vieses inerentes.
Por exemplo, determinados construtos, como atitudes, valores e
traços de personalidade estão sujeitos a normas e sanções sociais,
e as pessoas podem dissimular suas respostas, mostrando-se
como seria socialmente desejável. De fato, quase todas as ações
humanas visam mostrar a pessoa de uma maneira favorável,
procurando assegurar a aceitação grupal e a autoafirmação
(Seisdedos, 1996). Desta forma, é essencial que seja controlada
a desejabilidade social, tendência de distorcer autorrelatos para
uma direção favorável (Furnham, 1986). Uma forma de controlar
esta tendência é por meio de mensuração de atitudes implícitas,
que pressupõem diminuição da reatividade da medida.
Segundo Bassili e Brown (2005), a consciência de que
o pensamento e comportamento da pessoa podem ser
influenciados por processos psicológicos implícitos tem sido
uma das maiores contribuições e desafios da pesquisa que
procura mensurar fenômenos psicológicos. Nesta direção, os
psicólogos sociais têm desenvolvido estratégias de respostas
visando acessar as associações implícitas, i.e, aquelas que são
automáticas e espontâneas, fugindo ao controle consciente do
indivíduo (Fazio & Olson, 2003). Estas medidas visam acessar não
só as atitudes que os respondentes podem não estar dispostos
a falar abertamente, mas também aquelas que eles não estão
cientes. Diante destas vantagens e considerando a escassez de
estudos no Brasil com medidas implícitas, este artigo objetiva
introduzir esta forma de mensuração, explicitando suas bases
conceituais, tipos principais e vantagens.
Técnicas de Mensuração Implícita
Segundo Wittenbrink e Schwarz (2007), a concepção de
que o tempo requerido para realizar uma atividade mental revela
algo fundamental sobre a mente deve ser creditada aos trabalhos
de F. C. Donders, na metade do século XIX. Este pesquisador
sugeria que era possível entender processos de pensamento
computando o intervalo de tempo entre a apresentação do
estímulo e a resposta produzida, descoberta esta que abriu
possibilidades para o estudo dos processos mentais. Porém,
as pesquisas específicas sobre as medidas implícitas foram
introduzidas, principalmente, na década de 1980. O número
crescente de estudos para verificar sua eficácia e limitações
potenciais tem corroborado a importância desta abordagem de
mensuração (Bassili & Brown, 2005).
Dentre as técnicas de mensuração implícita com maior
destaque, ressaltam-se: (1) a técnica de priming, proposta
por Fazio (1995), que cria um contexto-estímulo capaz de
produzir determinado tipo de reposta ou efeito; e (2) o Teste
de Associação Implícita (TAI; Greenwald, Mcghee, & Schwartz,
1998), que procura determinar a ativação de atitudes por meio
do impacto do objeto atitudinal sobre a velocidade com a qual
o indivíduo faz julgamentos. Ademais, as técnicas modernas
de neuroimagem também são apontadas por Wittenbrink e
Schwarz (2007) como uma alternativa de medida implícita,
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visto que, como medidas de atividade metabólica dependente
de órgãos corporais, elas contêm uma riqueza de sinais que
não são conscientemente acessíveis ou estão sob o controle do
respondente. Contudo, no presente artigo unicamente as duas
primeiras técnicas são consideradas.
Técnica de Priming
Esta técnica parte do princípio de que as atitudes são
associações na memória entre um objeto e sua avaliação
(Fazio, 1995; Fazio, Jackson, Dunton & Williams, 1995). Estas
associações variam em relação à força que possuem, sendo
esta o reflexo da acessibilidade de uma atitude na memória e a
probabilidade de que a avaliação seja espontaneamente ativada
quando se deparar com o objeto atitudinal (Maio & Haddock,
2010; Wittenbrink, 2007). Assim, priming é o fenômeno
cognitivo que ocorre quando um estímulo prévio (o prime) ativa
conceitos semanticamente relacionados na memória, reduzindo
o tempo necessário para sua identificação (Petty, Fazio & Briñol,
2009).
A título de exemplo, considere por um instante uma pessoa
que odeia insetos; pensar sobre eles desencadeia prontamente
reações adversas. No caso, tal pessoa tem uma associação forte
na memória entre o objeto atitudinal (insetos) e a avaliação
correspondente (ruim). Suponha que esta pessoa também não
goste de sapos, porém em nível menor de repulsão. Deste modo,
o modelo do priming postula que, caso ela se depare com estes
objetos atitudinais, ou seja, solicitada a falar sobre eles, a avaliação
dos insetos será ativada mais rápida e espontaneamente do que
a do sapo. Este modelo de avaliação ainda afirma que a pessoa
é mais rápida em classificar um objeto como positivo (e.g.,
agradável) depois de ter visto um estímulo prime que gosta, do
que depois de ter visto um de que não gosta. Da mesma forma,
ela é mais rápida em classificar um adjetivo negativo (e.g.,
desagradável) depois de ter visto um estímulo que não gosta do
que o contrário (Maio & Haddock, 2010). No exemplo anterior,
os insetos como prime deveriam diminuir a velocidade de
respostas subsequentes para adjetivos positivos, aumentando a
correspondente para estímulos negativos subsequentes.
Os procedimentos priming usados para medir atitudes
geralmente apresentam objetos atitudinais como prime e
os emparelham com palavras que variam em sua conotação
avaliativa (e.g., agradável, desagradável). O estudo de Fazio
(1995) é um exemplo disto. Ele apresentou brevemente aos
participantes fotos de pessoas brancas ou negras. Em seguida, as
instruiu para que indicassem o significado de adjetivos positivos
e negativos (adjetivos-alvo). A propósito, observou que para os
participantes brancos a apresentação de faces negras produziu
respostas mais rápidas para adjetivos negativos, e mais lentas
para os positivos.
Fazio (2000, 2001) defende que avaliações automáticas
associadas a um estímulo prime são mais vantajosas para a análise
de alvos congruentes. Quando a questão envolve um nome, por
exemplo, a facilitação gerada pelo prime é vista como o resultado
da ativação automática associada ao estímulo, diminuindo a
quantidade de ativações adicionais necessárias para alcançar o
limiar de resposta, i.e., a exposição ao prime prepara o participante
para responder quando for apresentado posteriormente a objetos
congruentes. Assim, a ativação automática de uma avaliação
gerada pelo prime resultará em uma latência de resposta variável
em razão de alvos positivos ou negativos. Nesta direção, Saroglou,
Corneille e van Cappelen (2009) observaram que o priming religioso
ativa comportamentos e pensamentos submissos, aumentando a
acessibilidade de conceitos relacionados à submissão, bem como a
sensibilidade a pedidos de vingança, comportamento que é oposto
ao perdão que é pregado, mas que tem se mostrado comum na
maioria das religiões (Rye et al., 2000).
Wittenbrink (2007) identifica duas formas de priming:
avaliativo (ou afetivo) e conceitual. No primeiro caso, proposto por
Fazio, Sanbonmatsu, Powell e Kardes (1986), o estímulo inicial
(prime) é emparelhado com palavras-alvo de valência polarizada
(e.g., bom vs ruim, positivo vs negativo) e o participante é
solicitado a associar o estímulo com o alvo da forma mais rápida
possível. Após algumas exposições testes, o priming atitudinal
será verificado de forma positiva ou negativa, considerando a
magnitude do tempo de resposta como uma medida de ativação
automática dessa relação. Assim, o procedimento investiga a
relação avaliativa entre o prime e o alvo (De Houwer, Hermans,
Rothermund & Wentura, 2002; Klauer & Musch, 2003). O priming
conceitual analisa a relação semântica entre o estímulo prime e
o alvo, estimando que o desempenho dependerá do significado
do prime em relação ao alvo. Neste caso, podem ser utilizados
alvos positivos e negativos que variam quanto à capacidade de
descrição do estímulo, estando presentes no contexto-tarefa de
decisão lexical. Podem ser utilizados como alvo, por exemplo,
atributos conhecidos como parte do estereótipo cultural de
determinado grupo (Mcnamara & Holbrook, 2003; Wagner &
Koutstaal, 2002). A diferença crítica entre estes dois tipos de
priming é que o avaliativo analisa a relação entre o estímulo e o
alvo, enquanto que o conceitual avalia a associação conceitual e
a relação de significado (Wittenbrink, 2007).
Oliveira et al. (2010) identificam outros dois tipos de priming:
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o repetitivo, em que a apresentação prévia de um estímulo afetará o
processamento do alvo, i.e., as experiências posteriores ao estímulo
serão processadas mais rapidamente pelo cérebro (Forster & Davis,
1984); e o perceptual, que está baseado na forma do estímulo e sua
correspondência com o alvo. Neste caso, pode-se citar como exemplo
o uso de uma palavra incompleta como estímulo e sua identificação
completa como alvo final. Este teste pode ser influenciado pelo
tamanho ou quantidade de letras do estímulo, o que pode ser
utilizado como uma evidência significativa de priming (Vasconcelos
& Albuquerque, 2006). Outras formas de priming são utilizadas,
porém ressalta-se que tanto o termo priming como suas formas
podem variar em suas nomenclaturas, dependendo do aporte
teórico adotado:
priming mascarado. Possui este nome por se utilizar de
símbolos (e.g., ####) para mascarar palavras ou pseudopalavras
que são utilizadas como estímulo, permitindo diminuir ou
aumentar a visibilidade (identificação) do prime, e assim
analisar a relação da manipulação na ativação automática do
alvo (Ferrand, Segui & Grainger, 1996).
Priming de resposta. Atua na percepção visual e no controle
motor do participante. A diferença maior é que os alvos são
apresentados em sucessão rápida e podem estar associados
a respostas motoras idênticas ou correlatas. Portanto, quanto
maior a semelhança entre o estímulo e o alvo, mais rápida e
eficiente são as respostas da pessoa (Klotz & Wolff, 1995).
Priming semântico. O estímulo e o alvo pertencem a uma
categoria semântica compartilhada (e.g., boi e búfalo podem
ser considerados da mesma família semântica). Assim, quando
um participante é exposto a um item de uma categoria, itens
semelhantes são estimulados mais rapidamente no cérebro
(Ferrand & New, 2003; Salles, Jou & Stein, 2007).
Priming associativo. O alvo é uma palavra que está
associada com o estímulo, porém eles não precisam estar
diretamente relacionados em questões semânticas (e.g., as
palavras boi e cavalo podem ser um exemplo desse tipo). Um
efeito semelhante acontece com o priming de contexto, em que
um contexto (um texto escrito, por exemplo) é utilizado como
estímulo para acelerar o processamento de alvos que ocorrem de
forma associada com o contexto, i.e., se os alvos são palavras, as
que foram utilizadas no texto serão processadas de forma mais
rápida (Stanovich & West, 1983).
Wittenbrink (2007) afirma que, independente da forma,
o resultado do priming pode ser influenciado pela força ou
magnitude das atitudes, pelo estímulo (prime) escolhido, as
instruções na execução das tarefas e o alvo selecionado. Portanto,
a possibilidade de influência deve ser objeto de controle por
parte dos pesquisadores, visto que a manipulação intencional
de uma destas variáveis pode produzir resultados enviesados
ou falseados. A propósito de limitações desta técnica, segundo
este autor, duas outras são: (1) a administração do teste, que
é considerada relativamente mais complicada que as demais
medidas implícitas, exigindo recursos técnicos e experiência no
campo da pesquisa; e (2) a tendência a produzir índices baixos
de efeito priming e confiabilidade, sendo os resultados de difícil
replicação, comprometendo-a como alternativa de mensuração.
O estado da arte do priming (Gawronski & Payne, 2010;
Olson & Fazio, 2009; Petty et al., 2009; Wittenbrink, 2007) indica
que o crescimento rápido do número de pesquisas, em conjunto
com a literatura extensa sobre o tema, tem resultado em avanços
significativos no entendimento deste procedimento como uma
das técnicas mais proeminentes de mensuração implícita.
Porém, como anteriormente se indicou, não é a única.
Teste de Associação Implícita
O Teste de Associação Implícita (TAI; Implicit Association
Test - IAT) foi proposto por Greenwald et al. (1998) com base na
ideia de que objetos atitudinais podem espontaneamente ativar
avaliações, as quais afetam respostas subsequentes, bem como
a velocidade destas. Portanto, esta técnica foi elaborada para
não requerer a intencionalidade da pessoa, acessando atitudes
que elas relutam em dizer ou são incapazes de expressá-las. O
TAI pode ter como variável dependente a latência de resposta da
pessoa em associar determinados estímulos ou ainda o número
de questões completadas em um tempo fixo; estas formas são,
respectivamente, a medida computadorizada e a tipo lápis e
papel (Greenwald & Farnham, 2000; Lemm, Lane, Sattler, Khan
& Nosek, 2008). Estas têm sido utilizadas, sobretudo, quando
a desejabilidade social limita a eficácia de medidas explícitas,
mas também quando tal preocupação é mínima (Vargas,
Sekaquaptewa & Von Hippel, 2007).
TAI Computadorizado
O TAI foi inicialmente criado para ser executado no
computador, onde o tempo de reação é calculado (Greenwald
et al., 1998). Esta ideia surgiu com base no experimento de
Donders (1969), o qual afirmava que é possível entender
processos “invisíveis” computando o tempo que decorre entre a
apresentação do estímulo e a produção da resposta; ademais,
ele indicou que fazendo com que a pessoa responda com a
mão direita estímulos do lado direito e com a mão esquerda
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estímulos do lado esquerdo, quando o movimento da mão
direita for requerido com estimulação do lado esquerdo (ou
vice-versa), o tempo de reação vai ser maior e a quantidade de
erros também (Lane, Banaji, Nosek & Greenwald, 2007). Neste
sentido, o tempo como variável para estimar a natureza dos
processos mentais está envolvido em diversas técnicas, como o
priming (anteriormente citado) e o TAI.
Nesta versão do TAI, o experimento é composto por
vários blocos de ensaios. Os participantes observam estímulos
(palavras ou fotos), os quais são apresentados no centro da tela
do computador. Duas são as chaves de resposta disponíveis
às pessoas: chave da esquerda (geralmente a tecla E) e chave
da direita (geralmente a tecla I), sendo elas instruídas a
responderem o mais rápido possível, buscando não cometer
erros (Stüttgen, Vosgerau, Messner & Boatwright, 2011).
Considere o exemplo de um estudo utilizando o TAI para
verificar atitudes com relação a brancos e negros (Figura 1). No
Bloco 1 os participantes são apresentados a uma variedade de
palavras referentes à cor da pele. Eles são instruídos a indicar
uma resposta, pressionando a tecla “E” quando observam
palavras referentes à cor da pele branca, ou a tecla “I” quando
as palavras se referirem à cor da pele negra. Todos são
instruídos a responder tão rápido quanto possível. No Bloco 2
os participantes são apresentados a uma variedade de adjetivos
positivos e negativos. Novamente, eles são solicitados a indicar
uma resposta pressionando a tecla “E” quando um adjetivo
positivo aparecer na tela ou a tecla “I” quando um adjetivo
diferente aparecer na tela. No Bloco 3, eles são informados que
verão nomes ou adjetivos, e que deverão pressionar a tecla “E”
quando virem algo referente à cor da pele branca ou adjetivo
positivo, e pressionar a tecla “I” quando virem algo referente à cor
da pele negra ou adjetivo negativo. O Bloco 4 é similar ao Bloco
2, mas agora o participante deve pressionar a tecla “E” quando
o adjetivo negativo aparecer, e a tecla “I” quando o adjetivo
positivo aparecer. Por fim, o Bloco 5 é similar ao Bloco 3, mas
agora os participantes devem pressionar a tecla “E” quando a
cor da pele branca ou o adjetivo negativo aparecer, e a tecla “I”
quando for a cor da pele negra ou o adjetivo positivo.
Tecla de resposta “E”
Tecla de resposta “I”
Brancos
Negros
Adjetivos positivos
Adjetivos negativos
Brancos OU adjetivos
positivos
Negros OU adjetivos
negativos
Adjetivos negativos
Adjetivos positivos
Brancos OU adjetivos
negativos
Negros OU adjetivos
positivos
Figura 1. Exemplo de sequência de procedimentos para os cinco blocos do TAI
Os Blocos 3 e 5 medem a rapidez de associação entre um
objeto atitudinal (e.g., a categoria cor da pele) e a avaliação. Deste
modo, indivíduos que têm preconceito com relação a negros (os
avaliam mais negativamente), por exemplo, nos ensaios em que
aparecem as palavras referentes a pessoas negras associadas a
adjetivos positivos, respondem mais lentamente, ao passo que
são mais rápidos em responder as associações entre brancos e
adjetivos positivos.
O bloco com menor média de latência de resposta (menor
tempo de reação) é chamado de bloco congruente, enquanto que
aquele com maior latência é chamado de bloco incongruente. A
forma mais simples de se calcular a associação implícita é pela
diferença entre o número de respostas nos blocos congruente
(A) e incongruente (B) (TAI = A – B). Desta fórmula decorre
que a diferença de latência média de resposta entre os dois
pares (A e B) reflete a força relativa de associações subjacentes
(Lemm et al., 2008). Não obstante, Greenwald, Nosek e Banaji
(2003) introduziram um método mais eficiente de calcular
esta pontuação: o escore D. Concretamente, os escores do
TAI (equação anterior) são divididos pelo desvio-padrão do
indivíduo de todas as latências de resposta, em ambos os blocos.
O propósito do escore D é corrigir a variabilidade nos escores
devido à diferença na velocidade de processamento de todos
os participantes. Deste modo, após responder ao teste, será
atribuído a cada participante um escore D que varia de -2 a +2,
onde valores próximos a -2 indicam uma atitude implícita muito
forte contrária ao objeto da pesquisa, e valores próximos a +2
indicam uma atitude implícita muito forte a favor deste objeto
(Cai, Sriram, Greenwald & McFarland, 2004; Greenwald et al.,
2003; Stüttgen et al., 2011).
Em razão da eficácia dos resultados desta técnica, tem
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crescido o número de estudos que a utilizam para mensurar
vários construtos. Por exemplo, Cvencek, Meltzoff e Greenwald
(2011) estudaram a associação implícita de crianças de 6 a
10 anos de idade, no que concerne ao estereótipo cultural de
gênero. Por meio do TAI, verificaram que elas demonstraram
estereótipo cultural de gênero ao associarem a matemática com
os homens, i.e., a matemática como sendo uma disciplina cujo
desempenho melhor é alcançado por homens, influenciando
seu autoconceito, mesmo não havendo diferença de notas em
matemática entre elas em função de seu sexo.
Cvencek, Greenwald e Meltzoff (2011) adaptaram o TAI
computadorizado para crianças ainda mais jovens, com 4 anos
de idade (Preschool Implicit Association Test - PSIAT). Durante
o PSIAT, as crianças foram instruídas a categorizar estímulos,
apertando o botão do lado esquerdo ou direito, a partir de
quatro categorias (flores, insetos, bom e mau), as quais eram
representadas por figuras infantis. Além de associar flores e
insetos a bom e mau, elas também fizeram associação de
gênero (menina/boa e menino/mau e vice-versa). Ao passo
que os estímulos eram apresentados no centro da tela, o som
das palavras era veiculado em alto-falantes. Observaram que
o PSIAT com relação ao gênero se correlacionou com medidas
explícitas correspondentes e também com o sexo real da criança
(preferência grupal). Assim, os autores propuseram que esta
medida pode ser utilizada para investigar o desenvolvimento de
atitudes implícitas estereotipadas em crianças mais jovens.
Andrews, Greenwald, Hampson, Gordon e Widdop (2010)
também apresentaram bons resultados para o TAI em crianças.
Eles a adaptaram para medir atitudes frente a fumantes
como parte de um programa para prevenção do tabagismo,
e observaram que crianças com membros da família que
fumavam tinham atitudes implícitas mais favoráveis em relação
ao tabagismo. Eles ainda observaram que ao se engajarem em
atividades voltadas a percepção do risco da dependência, suas
atitudes implícitas tornaram-se menos favoráveis.
Ayres, Prestwich, Conner e Smith (2011) utilizaram o TAI
computadorizado com um grupo de comedores compulsivos. Além
da medida implícita, também foram utilizadas medidas explícitas
e comportamentais. Em um primeiro momento, o participante
respondia as medidas implícita e explícita (Dutch Eating Behaviour
Questionnaire - DEBQ; Van Strien, Frijters, van Staveren, Defares &
Deurenberg, 1986) e, ao final, recebia um caderno para escrever o
DCC (consumo diário de chocolate, i.e., a medida comportamental),
que deveria ser descrito nos sete dias após o experimento. Observouse que o TAI se correlacionou tanto com a medida explícita quanto
com o indicador comportamental.
Por fim, Leavitt, Fong e Greenwald (2011) realizaram
uma pesquisa no âmbito organizacional a fim de verificar as
atitudes implícitas de trabalhadores com relação à organização,
aos colegas e supervisores como indicadoras de bem-estar.
Este estudo demonstrou que o desempenho no trabalho e
os comportamentos de cidadania foram preditos por uma
combinação de atitudes implícitas e explícitas no trabalho, e
que a dissociação entre estes tipos de atitudes gera impactos na
identificação organizacional.
Além de ter sido empregado nestes estudos, o TAI
computadorizado já foi utilizado para estudar diversos
construtos, como felicidade e bem-estar (Walker & Schimmack,
2008), preconceito frente ao uso de drogas (Hippel, Brener
& Hippel, 2008), autoestima e autoconceito (Greenwald &
Farnham, 2000) e personalidade implícita (Schnabel, Asendorpf
& Greenwald, 2008). Portanto, é evidente seu valor nas
pesquisas em Psicologia. Entretanto, em razão de seus custos,
desenvolveu-se uma alternativa que, mesmo não tendo sua
precisão, apresenta facilidades em relação a ele, como a seguir
é descrita.
TAI Lápis e Papel
O TAI é tipicamente usado no computador. Porém, as
desvantagens desta forma de medição, principalmente no que
concerne a necessidade de um laboratório equipado, disposição do
programa de análise (e.g., Direct RT, Inquisit, Superlab), dificuldade
de alcançar populações não tradicionais e custo temporal devido
à aplicação individual, as versões do TAI lápis e papel têm sido
desenvolvidas. Estas são fáceis de usar, não requerem equipamento
especial e podem ser administradas em grupos de entrevistados ao
mesmo tempo, alcançando populações diversas (Lemm et al., 2008;
Mori, Uchida & Imada, 2008).
Ainda são escassos os estudos utilizando o TAI lápis e papel
(Lemm et al., 2008; Mori et al., 2008; Vargas et al., 2007), fato
que reitera a necessidade de pesquisas visando testá-la e adaptála a diversos construtos. Mas, sabe-se que ambas as versões
(computadorizada e lápis e papel) possuem a mesma lógica
subjacente, i.e., não ser susceptível a processos intencionais dos
participantes; ademais, em ambas a associação estreita entre
os conceitos que compartilham uma resposta deve tornar a
tarefa mais fácil, levando a um melhor desempenho (Lemm et
al., 2008). Não obstante, enquanto no TAI computadorizado a
variável dependente é o tempo de reação frente aos estímulos
apresentados, na medida lápis e papel ela diz respeito ao número
de respostas concluídas em um tempo fixo, que geralmente é de
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20 segundos (Lemm et al., 2008).
O teste ocorre da seguinte maneira: aos participantes são
apresentadas duas folhas, correspondendo aos lados A e B. Em
cada lado há os quadrantes explicando em que categoria as
palavras se encaixam (os participantes têm 3 segundos para
olhá-los antes de começar a tarefa de classificação) e, logo
abaixo, duas colunas sequenciais com a tarefa de classificação; o
participante é informado para não passar para a segunda coluna
sem antes ter concluído a primeira. Esta estrutura é a mesma
em ambos os lados; entretanto, na tarefa do Lado A existe, no
topo das colunas, o emparelhamento com maior congruência
esperada entre os construtos que estão sendo estudados (e.g.,
branco/positivo e negro/negativo, respectivamente). No centro
das colunas, há os estímulos (palavras-alvo) que devem ser
associados do lado que corresponda a sua categoria de pertença.
Esta tarefa deve ser feita em 20 segundos, sendo os participantes
instruídos a irem o mais rápido possível, de cima para baixo, da
esquerda para direita, sem pular ou deixar em branco qualquer
palavra. No Lado B, apenas há mudança no emparelhamento
das palavras (e.g., negro/positivo e branco/negativo), mas a
tarefa segue da mesma forma (Lemm et al., 2008; Mori et al.,
2008). Geralmente, antes de passar para o experimento em si,
há a apresentação da tarefa de teste, correspondente àquela de
classificação de flores e palavras, proposta por Greenwald et al.
(1998).
A forma recorrente de calcular a associação implícita é por
meio da diferença no número de palavras concluídas nas duas
tarefas de classificação [TAI = (número de palavras concluídas
em tarefas positivas) - (número de palavras concluídas em
tarefas negativas)], independentemente de erros (Lemm et
al., 2008; Mori et al., 2008). Não obstante, deve-se tratar com
cautela perfomances excessivas (e.g., 60 palavras marcadas
em 20 segundos) ou extremamente baixas (e.g., menos de 10
palavras) ou flutuações entre as tarefas (e.g., 25 palavras no
Lado A e 5 no Lado B). De forma geral, recomenda-se eliminar
participantes que erram mais de 10% da tarefa, decisão que
deve ser descrita no método (Mori et al., 2008).
Não obstante, esta forma de análise tem sido criticada
devido aos artefatos indesejados inerentes a sua utilização, como
a vulnerabilidade às diferenças individuais na velocidade de
resposta. Deste modo, Lemm et al. (2008) testaram sete formas
de avaliação do TAI lápis e papel por meio de dados simulados:
(1) diferença das pontuações (pontuação no Lado A menos
pontuação no Lado B); (2) razão simples (A/B – 1); (3) relação
máximo e mínimo (X / Y - 1, onde X é o maior valor de A ou B,
e Y é o menor valor de A ou B); (4) conversão de latência {1000
* [(1 / B) - (1 / A)]}; (5) produto simples [(A - B) * (X / Y)]; (6)
produto: relação ao quadrado [(A - B) * (X / Y)]; e, finalmente,
(7) produto: raiz quadrada da diferença [(X / Y) * √(X - Y)]. Eles
concluíram que a melhor forma de avaliar este tipo de medida é
por meio do produto: raiz quadrada da diferença, que apresentou
resultados consistentemente superiores, principalmente para
estímulos verbais.
É importante salientar que existem duas formas de
mensuração de “atitudes” implícitas: uma que considera
apenas estímulos verbais e outra que considera figuras na
classificação, tal como ocorre mais frequentemente nas versões
computadorizadas. No estudo de Lemm et al. (2008), testouse a validade destas duas versões do TAI lápis e papel (com
figuras e com palavras) quanto a atitudes raciais, observando-se
melhores resultados para os estímulos verbais em detrimento
dos figurativos. Estes resultados se repetiram em estudos
posteriores (Lemm et al., 2008).
No que concerne a comparação entre as medidas
computadorizada e lápis e papel, Lemm et al. (2008) foram os
primeiros a fazê-la, testando as medidas utilizando os mesmos
estímulos (atitudes raciais). Os resultados mostraram que, apesar
de estarem correlacionadas (r = 0,51), o tamanho do efeito foi
maior na medida computadorizada. Por tal motivo, além de
menor precisão da medida (Mori et al., 2008), as versões lápis e
papel têm sido preteridas pelos pesquisadores. Ademais, alguns
efeitos podem mascarar os resultados do teste, como a ordem de
apresentação dos blocos (Lados A e B) e a velocidade de resposta
global. Entretanto, estudos empíricos têm mostrado que isto não
invalida a medida, que pode servir como uma alternativa para
quem deseja trabalhar com medidas implícitas, apresentando
resultados que variam de razoáveis a bons, podendo ser
utilizadas para corroborar estudos computadorizados ou em
combinação com medidas explícitas (Mori et al., 2008). Lemm
et al. (2008) demonstraram que, em se tratando do TAI lápis e
papel para estímulo verbal, a ordem de apresentação dos blocos
não influenciou os resultados, e a velocidade de resposta global,
quando lançando mão do algoritmo produto: raiz quadrada
da diferença, apresentou resultados satisfatórios. Desta forma,
esta técnica pode ser considerada útil, sendo prática, eficaz e
de fácil aplicação. Ela já vem sendo utilizada para mensurar, por
exemplo, atitudes frente a pessoas gordas e magras (Teachman,
Gapinski, Brownell, Rawlins & Jeyaram, 2003), atitudes raciais
(Lemm et al., 2008), motivação organizacional (Johnson &
Steinman, 2009), autoestima (Karpinski & Steinman, 2006) e
preconceito racial (Lemm et al., 2008).
Devido a proposta do TAI e aos resultados encontrados,
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a repercussão desta técnica foi tanta que, uma década após a
publicação da pesquisa original, esta foi citada em mais de 900
artigos (Maio & Haddock, 2010), tendo sido desenvolvidos
mais de 4.500 testes (Lane et al., 2007). Além dos estudos
visando verificar suas propriedades psicométricas e aplicação a
construtos variados, tem crescido o desenvolvimento de formas
alternativas desta técnica, como o Single Categorie IAT ou SC-IAT
(Karpinski & Steinman, 2006), o TAI para crianças e adolescentes
(Baron & Banaji, 2006), o teste Go/No-Go (Nosek & Banaji,
2001) e o Filtering Unconscious Matching of Implicit Emotions
(o teste FUMIE; Mori et al., 2008). Ademais, em revisão feita
por Nosek, Greenwald e Banaji (2007), observou-se que o TAI
tem sido aplicado em diversos âmbitos da Psicologia, como
social, cognitivo e clínico, além de em disciplinas correlatas (e.g.,
Neurociência, Marketing), o que reitera sua importância em
medir atitudes e outros construtos que se pretenda conhecer sua
associação implícita.
Capacidade Explicadora das Medidas Implícitas
Segundo Greenwald e Banaji (1995), atitudes implícitas
podem ser definidas como “traços introspectivamente não
identificados (ou erroneamente identificados) de experiências
passadas que medeiam um sentimento favorável ou
desfavorável, pensamento ou ação em relação a objetos
sociais” (p. 11). Elas coexistem com as atitudes explícitas sobre
o mesmo objeto, mas diferem em relação ao componente
avaliativo, acessibilidade e estabilidade (Stüttgen et al., 2011).
Ademais, devido à complexidade de fenômenos que medeiam
o comportamento das pessoas, parece razoável sugerir que as
atitudes que o influenciam não se restringem ao componente
avaliativo; há aspectos implícitos que podem ajudar a prever
a diversidade de comportamentos (Vargas et al., 2007). Neste
sentido, o fato de as atitudes implícitas nem sempre serem
relacionadas às explícitas tem levado os pesquisadores a pensar
se as definições de atitudes, as quais envolvem um componente
avaliativo (cognitivo), não estariam ultrapassadas (Fazio, 2007).
Sendo as atitudes implícitas e explícitas coexistentes,
não implica dizer que se referem à mesma coisa; ao contrário,
são fatores diferentes, que, por vezes, apresentam-se
correlacionados e, em outros casos, mostram-se independentes
(Rydell, McConnell & Mackie, 2008). Tais incertezas fizeram
com que Gawronski e Bodenhausen (2006) afirmassem que
entender o que leva a resultados discrepantes entre atitudes
implícitas e explícitas tem estado na vanguarda da investigação
da cognição social contemporânea. Por exemplo, Rydeel et al.
(2008) estudaram a dissonância cognitiva que se origina a partir
da observação de uma incongruência entre atitudes implícitas
e explícitas. Eles verificaram que o estado de desconforto
produzido pela incongruência e a busca do indivíduo pela
homeostase podem levar a uma mudança de atitudes frente ao
objeto em foco.
No que se refere à capacidade preditiva das medidas
implícitas, Fazio e seus colaboradores defendem a necessidade
de considerar que os processos de decisão não são puramente
espontâneos, nem puramente deliberados (Fazio, 1995; Fazio
& Olson, 2003; Olson & Fazio, 2009). Tais processos consideram
ambas as características, tanto as automáticas quanto as
controladas ou conscientes.
Para explicar a relação entre as medidas implícitas
e a capacidade preditiva de comportamentos, Fazio e
Olson (2003) e Olson e Fazio (2009) defendem o modelo
MODE (Motivation and Opportunity as Determinants),
um anacrônico da língua inglesa, que pode ser traduzido
para o português como motivação e oportunidade
como determinantes, significando que as ações podem
ser determinadas por motivações e oportunidades
situacionais. Este modelo propõe que as atitudes podem
exercer influência por meio de processos relativamente
espontâneos ou deliberados. Deste modo, os julgamentos
e os comportamentos sobre um determinado objeto são
influenciados pela interpretação do objeto na situação, ou
de forma automática, ativada na exposição a este objeto.
Estes autores também utilizam tal modelo para explicar a
relação entre medidas explícitas e implícitas, indicando que
sua magnitude dependerá da motivação e oportunidade
para deliberar. Se a motivação ou a oportunidade de
deliberar forem relativamente baixas no momento em
que a resposta explícita está sendo considerada, então as
medidas apresentarão maior possibilidade de correlação.
Porém, quando a motivação e oportunidade de avaliação
dos objetos atitudinais são relativamente altas, será menor a
possibilidade de correlação.
De acordo com o antes indicado, quando a motivação e
a oportunidade de deliberar são baixas, o comportamento
esperado em relação ao objeto atitudinal deve ser ativado
automaticamente e as medidas implícitas apresentarão maior
capacidade preditiva. De forma inversa, quando a motivação
e oportunidade de deliberar são altas, as medidas explícitas
apresentarão maior capacidade de predição, pois serão
influenciadas pelas mesmas forças avaliativas. Ressalta-se,
então, a importância de considerar processos motivacionais e
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deliberativos ao examinar a validade preditiva de uma medida
implícita quanto aos comportamentos e a sua relação com as
medidas explícitas (Olson & Fazio, 2009).
Mesmo que as atitudes implícitas sejam consideradas como
processos ou preferências automáticos, é necessário considerar
o papel da cultura a respeito, pois os protótipos são construídos
com base na relação do indivíduo com o meio, i.e., as relações
aprendidas culturalmente sobre o objeto da avaliação podem
acelerar ou reduzir a velocidade das associações implícitas.
Outro fator é a relação direta do indivíduo com o objeto avaliado.
Por exemplo, a avaliação implícita de um produto será afetada
se a pessoa tiver uma relação alérgica a tal produto. Assim, as
atitudes dos outros indivíduos frente a este produto irão divergir
quando comparadas com as daquele que é alérgico (Fazio &
Olson, 2003).
As pesquisas listadas no levantamento de Fazio e Olson
(2003) mostram que existe considerável sensibilidade das
medidas implícitas ao contexto. Por exemplo, medidas utilizando
a técnica do priming revelaram uma evidência relacionada a um
maior preconceito em direção a exogrupos quando comparado
com os endogrupos (grupos de pertença), principalmente
quando existia alguma ameaça a estes. A saliência das categorias
utilizadas nos testes implícitos também geram maiores escores
nas avaliações. Deste modo, tanto o TAI como o priming pode ser
influenciado pelos tipos de informação ou rótulos de categorias
ou estímulos envolvidos.
De forma geral, estima-se que as medidas que utilizam
o TAI podem ser superiores quando na predição de categorias
(e.g., apoio a uma proposta de política com responsabilidade
social). Já as que utilizam priming podem ser superiores
ao prever o comportamento em direção a um exemplar
específico da categoria (e.g., o julgamento a um político de
forma individual) (Fazio, 1995; Fazio & Olson, 2003). Petty
et al. (2009) e Ranganath e Nosek (2008) defendem que as
medidas implícitas, indiretas ou automáticas, tendem a explicar
melhor comportamentos espontâneos que comportamentos
deliberados. Para este segundo caso, as medidas explícitas,
diretas ou conscientes, são melhores preditoras. Entende-se,
pois, que as atitudes implícitas ou explícitas predirão melhor em
função do tipo de comportamento analisado.
Finalmente, outro fator considerado na literatura é a
estabilidade das atitudes implícitas e a possibilidade de sua
mudança. Por serem considerados processos automáticos, tais
atitudes tendem a apresentar maior estabilidade que aquelas
explícitas. A propósito, Kawakami, Dovidio, Moll, Hermsen e
Russin (2000) mostraram que 480 ensaios de rejeição explícita
da associação estereotipada foram necessários para produzir uma
mudança na ativação dos estereótipos. Porém, os indicadores
mostraram posições mais otimistas quanto à possibilidade de
mudanças nessas atitudes, principalmente com a criação de
novas associações contra-atitudinais ou contra-estereótipos.
Críticas e Limitações das Medidas Implícitas
Apesar da evolução rápida, as técnicas de mensuração
implícitas têm recebido críticas, principalmente o TAI. Fiedler,
Messner e Bluemke (2006) afirmam que a mensuração de
atitudes implícitas possuem cinco limitações: (1) a assimetria
entre as inferências causais e os diagnósticos das medidas
implícitas, que tem apresentado divergências entre os resultados
de pesquisas; (2) a viabilidade do modelo de possuir associações
subjacentes; (3) a falta de um modelo de processo cognitivo e
um modelo psicométrico que explique as associações; (4)
problemas de pontuações diferenciadas, i.e., a diferença de
sensibilidade entre os dois componentes da latência e os
fatores incontroláveis; e (5) a suscetibilidade do TAI de deliberar
processos falsos e estratégicos. Segundo tais autores, cada um
destes problemas está relacionado a um aspecto da técnica; o
problema cinco se relaciona com o fato de as medidas serem
implícitas; o dois se refere ao fato de ser uma associação; e os
demais problemas (um, três e quatro) estão ligados à questão
de ser um teste.
Quanto à preocupação relativa às correlações baixas entre os
tipos de medida, Fazio (1995) afirma que erros de medição ou
utilização de estímulos indevidos podem interferir diretamente
nas mensurações implícitas. Nos procedimentos priming, por
exemplo, a validade da medida dependerá da representatividade
dos estímulos escolhidos para servir como prime. Este autor
ressalta a relação do priming com as atitudes anteriores que
o indivíduo possui frente ao objeto avaliado. Esta avaliação ou
classificação anterior, considerada como um protótipo, possui
capacidade moderadora na relação entre o objeto atitudinal
e o indivíduo que o avalia. Se dois conceitos são altamente
associados, as tarefas de classificação implícita serão mais
fáceis quando compartilham a mesma resposta do que quando
exigem respostas diferentes.
Steffens (2004) analisou a capacidade de produzir
resultados falsificados em testes explícitos e implícitos. O
resultado indicou que o TAI é menos suscetível a falsificações de
resultados quando comparado às aplicações de questionários,
mas não é totalmente imune. Segundo este autor, a pontuação
dos testes implícitos depende das circunstâncias e instruções
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apresentadas na sua administração e também pode sofrer
influência de conhecimento prévio do uso desta técnica.
Blanton e Jaccard (2006) consideram o TAI uma medida
arbitrária, mesmo sendo avaliada em milissegundos, pois não se
pode afirmar com confiança que o ponto zero do teste significa
a neutralidade das preferências aferidas, assim os desvios deste
ponto, para mais ou para menos, não podem ser determinados
como graus de verdade. Outra questão levantada por estes
autores está no fato de faltarem às pesquisas uma análise da
relação entre os escores do TAI e os comportamentos observáveis
dos participantes da pesquisa, o que os leva a afirmar que esta
técnica tem uma justificação duvidosa enquanto instrumento de
diagnóstico.
Arkes e Tetlock (2004), em uma pesquisa sobre preconceito
racial e TAI, chegaram às seguintes conclusões: (a) os dados
podem refletir estereótipos compartilhados socialmente e não
um posicionamento individual; (b) a relação afetiva negativa dos
participantes pode ser devido a cognições e emoções que não
são necessariamente preconceitos; e, por fim, (c) os resultados
devem ser considerados como indicativos de preconceito e
não como diagnósticos de comportamento racional. Crítica
semelhante foi feita por Wax e Tetlock (2005), os quais
indicaram que os escores do TAI refletem apenas a consciência
de estereótipos culturais comuns, porém nem todo mundo que
conhece os estereótipos necessariamente tendem a apoiá-los. A
respeito, comentam que as associações podem refletir apenas a
consciência da realidade social, ou seja, alguns grupos são mais
desfavorecidos que outros e os indivíduos nestes grupos são
propensos a se comportarem de maneiras indesejáveis.
Possivelmente, o avanço das medidas implícitas só será
possível quando forem discutidos abertamente estes problemas,
ao invés de serem minimizados por aqueles que as utilizam.
Questões como a falta de padronização na seleção de estímulos, a
adequação do modelo de associação subjacente, a propensão do
modelo para as diferenças de latência e o papel desempenhado
por estratégias autogeradas não devem ser minimizadas; em
vez disso, devem ser pesquisadas, servindo como referência
para pressupostos teóricos que podem ser testados ou refutados
empiricamente (Fiedler et al., 2006). Nesta direção, em resposta
às críticas, Greenwald, Nosek e Sriram (2006) defendem que
o número de pesquisas e publicações desde 1998 fornecem
validade consequencial para as medidas implícitas, o que é
corroborado pelos resultados de testes com menores índices de
vieses, quando comparados a outras medidas em Psicologia que
se propõem a avaliar os mesmos construtos.
Finalmente, coerentes com os argumentos dos autores
anteriores, Jost et al. (2009) analisaram dez pesquisas publicadas
entre 2001 e 2008, considerando as críticas contra as medidas
implícitas, tendo verificado que participantes como estudantes,
enfermeiros, médicos, policiais e recrutadores de emprego
apresentaram preconceitos implícitos em relação à raça, etnia,
nacionalidade, sexo e status social, condizentes com suas
atividades, i.e., as medidas implícitas apresentaram capacidade
preditiva para comportamentos sociais e organizacionais,
incluindo o emprego, decisões médicas e eleitorais feitas pelos
participantes, o que contraria algumas afirmações dos críticos
do TAI.
Considerações Finais
Claramente, as medidas implícitas são distintas, porém
relacionadas com as explícitas, que são aferidas por meio
de autorrelatos e passíveis de limitações provenientes da
motivação, oportunidade, inibição, incapacidade de expressão
ou mesmo falta de conhecimento dos participantes quando têm
que reportar o seu conteúdo mental (Nosek, Hawkins & Frazier,
2011; Petty et al., 2009; Ranganath & Nosek, 2008; Ratliff &
Nosek, 2010). Estas formas de medida de processos automáticos
têm sido valorizadas por serem mais “puras”, fornecendo
resultados mais próximos da realidade. Todavia, esta valorização
não implica em uma isenção de vieses de medida; superam-se
os vieses daquelas de autorrelato, ao passo que se incorporam
novos vieses, mesmo que de tipo diferente e em menor número
(Lima, 2006), como a dificuldade de comprovação de evidências
de sua validade e precisão quando comparada com as medidas
explícitas (Stüttgen et al., 2011).
Apesar do que previamente se comentou, Nosek et al.
(2011) realizaram um levantamento das publicações até 2010,
15 anos após a publicação do artigo Implicit social cognition:
From measures to mechanisms (Greenwald & Banaji, 1995),
tendo observado que os primeiros anos das técnicas implícitas
de mensuração podem ser definidos como a “era das medidas”,
uma vez que foram criados mais de 20 procedimentos de
mensuração, destacando pesquisas nas temáticas de atitudes,
estereótipos, autoestima e autoconceito, envolvendo áreas como
comportamentos de consumo, saúde mental e comportamento
político. A propósito, busca realizada no site PsycNET (2011),
utilizando o termo “priming”, resultou em 1.594 artigos
que empregaram ou citaram esta técnica. Entre os assuntos
mais abordados nestas pesquisas, destacaram-se processos
cognitivos, aprendizagem e memória, percepção visual e
linguagem. Isso demonstra a vitalidade desta técnica, que tem
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sido capaz de atender necessidades metodológicas para o teste
de hipóteses científicas em diversas áreas.
Por ser uma técnica nova, quando comparada com
outras disponíveis na literatura (Pimentel et al., 2011), a
mensuração implícita sofre críticas quanto à sua aplicabilidade,
mensurabilidade, confiabilidade, poder preditivo e relação
com outras medidas, a exemplo daquelas explícitas. Porém, os
pesquisadores que utilizam e defendem tal técnica percebem
nestas críticas a possibilidade de seu aperfeiçoamento
metodológico. Por exemplo, Nosek et al. (2011) entendem que
a primeira década e meia desde sua proposição forneceram
uma base sólida para a próxima fase das medidas implícitas,
que têm como foco principal resolver questões quanto aos
seus mecanismos subjacentes e avaliar em que extensão a
mensuração proporcionada dos construtos pode influenciar o
comportamento.
Concluindo, é possível afirmar que mesmo sendo
considerada uma técnica nova e em fase de aperfeiçoamento, as
medidas implícitas já estão contribuindo para o desenvolvimento
da Psicologia, proporcionando recurso objetivo que favorece
indicadores válidos e precisos de processos mentais automáticos
e, por vezes, inconscientes. Certamente, isso representa um
avanço nos âmbitos da avaliação e medida nesta área.
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Recebido em novembro/2011
Revisado em dezembro/2011
Aceito em dezembro/2011
92
ESTUDO TEÓRICO
O sujeito por trás da ciência e sua busca incessante: uma reflexão a
partir da subjetividade do pesquisador
The subject behind of science and your incessant chase: a reflection
from researcher´s subjectivity
Jaqueline Brito Vidal Batistaa1*, Sandro Gonçalves de Limab2,
Maria Aparecida Lopes Nogueirac3, Lia Giraldo da Silva Augustod4
Resumo: O campo da Saúde Pública é formado por um conjunto de características, composições,
definições e perspectivas diferentes. Na tentativa de compreender seu funcionamento, faz-se necessário
resgatar o sujeito que está por traz desse campo de conhecimento, inserindo-o numa realidade complexa.
Essa inserção tem como resultado um espaço de reflexão que se baseia na idéia de que a ciência que
contribui para o funcionamento prático e teórico é construída por pessoas que têm motivações próprias,
cuja trajetória pessoal reflete o direcionamento do seu trabalho e o tipo de atuação, assim como a filiação
epistemológica, as escolhas e formulações teóricas e, por fim, os caminhos metodológicos.
Palavras-chave: Saúde pública; Complexidade; Epistemologia
Abstract: The field of Public Health is formed by a set of differing characteristics, compositions,
definitions and perspectives. In an attempt to understand how it functions, the subjects behind this field
of knowledge need to be retrieved and positioned within their complex realities. This positioning gives
rise to a space for reflection based on the idea that the science that contributes towards how the practice
and theory is constructed by people who have their own motivations and whose personal paths are
reflected in the direction taken by their work and the type of activity, along with the epistemological
affiliation, theoretical choices and formulations and, finally, the methodological pathways.
Key words: Public health; Complexity; Epistemology
a Psicóloga; Doutora em Saúde Pública pela FIOCRUZ, Professora da UFPB.
* E-mail; [email protected]
b Médico, Doutor em Saúde Pública pela FIOCRUZ; Médico Intensivista do Hospital das Clínicas da UFPE
c Antropóloga; Doutora em Antropologia pela PUC/SP; Professora da UFPE.
d Médica; Doutora em Ciências Médicas pela UNICAMP, pesquisadora titular da FIOCRUZ.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
93
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98
Será lícito extrapolar do discurso pública e se isolasse das outras áreas de conhecimento científico,
científicouma imagem do mundo que como, por exemplo, a educação, desconsiderando as possíveis
corresponda aos meus desejos? contribuições que poderiam receber.
Dentro dessa realidade, é importante enfatizar o que existe
Ítalo Calvino por trás de cada área de conhecimento, das pessoas, cientistas,
profissionais, que dão sua contribuição no desenvolvimento
do conhecimento científico. O ponto de partida pode ser a
Contemplar a realidade do pesquisador no Brasil, de uma questão: até onde vai a contribuição de cada uma dessas áreas
forma geral, é se deparar com um conjunto de produções, para o desenvolvimento do conhecimento de forma geral e qual
características, composições, definições e perspectivas teóricas a relação direta entre elas e a vida pessoal de cada um que se
diferentes, independente da área que atue. Essa diversidade propõe a produzir esse conhecimento?
provoca uma busca de compreensão relacionada ao que na
Obviamente não há uma resposta imediata para essa questão.
verdade rege a vida de cada pesquisador e o que determinada No entanto, é possível refletir a partir do reconhecimento de que,
escolhas que estão diretamente ligadas à sua produção científica. se há uma fragmentação, se as áreas de conhecimento não se
Talvez o melhor ponto de partida para essa compreensão seja somam ou não reconhecem a contribuição uma das outras para
construir questões que possam conduzir a um aprofundamento um melhor desenvolvimento da própria ciência, existem pessoas
das reflexões. Para isso, faz-se necessário iniciar essa caminhada por trás de cada uma delas. Pessoas que estão intencionalmente
pelas trilhas da ciência e dos homens que fazem a ciência, construindo conhecimentos ditos científicos com algum objetivo
tentando entender suas motivações e justificativas.
e que utilizam esses conhecimentos com objetivos previamente
Levando em conta construções teóricas apresentadas por delineados. Essas pessoas certamente são estimuladas por
autores como, Paz (1998), Prigogine (1999), Nogueira (2000), motivações que podem causar questionamentos como: o que os
Carvalho (2004), Morin (2005), entre outros, é possível ver impede de reagir a favor de uma integração dos conhecimentos
a produção do homem de ciência (assim como ele próprio) produzidos? O que entrava uma sutura entre esses saberes? Mais
como expressões de fatores objetivos e subjetivos construídos e que isso: qual o sentido real do que é produzido cientificamente?
resgatados durante toda a sua vida. De repente, essa produção Como a ciência é significada e re-significada pela sociedade?
e a própria Ciência passam a ter significados e utilidades que (Rosnay, 2002).
extrapolam o lugar meramente de construção do saber. Tarride
Numa busca de respostas para os questionamentos acima,
(1998) discorre sobre essa possibilidade, afirmando que a alguns autores foram consultados e algumas construções foram
Ciência, independente de sua área de atuação, muitas vezes, é feitas. O resultado obtido não foi propriamente um composto
usada como escudo atrás do qual os cientistas escondem suas de respostas, mas sim um conjunto de novas questões e de um
fraquezas: são homens que praticam a ciência e não podem espaço maior de reflexão baseado na idéia de que a ciência que
despojar-se de suas responsabilidades, escondendo-se atrás de contribui para uma produção prática e teórica do conhecimento
procedimentos, condutas e técnicas.
é construída por pessoas que têm motivações próprias, cuja
Atitudes como essa, mais comum do que se imagina, podem trajetória pessoal (consciente e/ou inconscientemente) reflete o
ser identificadas nas mais diversas áreas do conhecimento. O direcionamento do seu trabalho e tipo de atuação, assim como a
mesmo autor usa como exemplo (1998) a área da Saúde Pública, filiação epistemológica, as escolhas e formulações teóricas e, por
chamando a atenção mais especificamente para a enorme fim, os caminhos metodológicos.
crise que ela tem passado ultimamente. Dentre os motivos
responsáveis por essa crise, ele aponta a disputa que ainda
I
permanece entre saúde pública e medicina preventiva, medicina
social, medicina comunitária, materializando o desencontro
Entendendo a produção científica como expressão de
entre a visão científico-médica da saúde e o caráter social. Ou busca contínua existencial do cientista e do processo interior do
seja, a crise se daria também por um desentendimento entre preenchimento de lacunas subjetivas/simbólicas que justificam
os conceitos e a compreensão do que é saúde pública. É como essa busca, é no âmbito da história de vida desse cientista que se
se cada especialidade citada acima quisesse dar conta sozinha pode compreender melhor sua produção e escolhas, não sendo
do vasto leque de conhecimento que está contido na saúde possível desatrelar o cientista e sua obra do seu passado e de sua
94
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98
história (Atlan, 2009).
Esse argumento encontra respaldo em O. Paz (1998),
quando ele afirma que a obra produzida pelo homem se
transforma numa ilustração de sua própria vida. Acrescenta
também que o autor de determinada obra produz impulsionado
por forças e intenções conscientes e inconscientes, mas os
significados, prazeres e surpresas que sua obra causam, nunca
coincidem exatamente com esses impulsos e intenções; eles vão
mais além, representam muito mais que o momento presente,
são uma espécie de resgate de toda uma história de vida, uma
busca incessante de respostas, na tentativa de preenchimento de
algo intrínseco a si mesmo.
É possível encontrar um exemplo expressivo dessa busca
repetitiva através da análise feita por Nogueira (2000) sobre
a obra do escritor Ariano Suassuna. A autora descreve Ariano
como um Sonhador, alguém que, além de sonhar, planeja,
elabora, cria, imagina, e vai à busca, na atual realidade, de algo
que falta. Essa falta está atrelada à imagem do pai, uma imagem
construída e determinada em cima, não apenas do real, mas
também de elementos simbólicos e imaginários.
É, no mínimo, curiosa essa descrição do autor (Ariano
Suassuna) como um sonhador, uma vez que o sonho visto sob o
prisma da Psicanálise tem como matéria prima o desejo, o que
falta (Freud, 1900): não seria por acaso que o pai, na obra de
Ariano Suassuna, se apresenta como um grande representante
da busca/falta que se esconde atrás de uma produção brilhante.
Talvez seja por isso que Castello (1999) descreve seu trabalho
O Inventário das Sombras, como uma procura pelo que não é
declarado pelos escritores, justificando essa procura através da
crença de que os escritores carregam sonhos além de suas forças.
É por isso que o trabalho do cientista / pesquisador / autor,
nunca tem um fim, e sua relação com o que produz está sempre
inacabada – um projeto concluído é sempre justificativa para
um outro que vai começar; uma questão respondida, sempre é
argumento para uma outra que se aproxima. Paz (1998) acredita
que verdadeiramente existe uma relação entre a vida e a obra do
autor, sendo que essa relação de forma nenhuma é simples: a
vida não explica inteiramente a obra e a obra não explica a vida
em sua totalidade, entre uma e outra há uma fenda, um vazio.
Justamente esse vazio é que permite a continuidade do
trabalho, da produção; é o que sustenta a vida do cientista: essa
busca incessante... A busca de resposta através da ciência parte
da idéia de que a ciência é a fonte única e verdadeira de certeza e
de que só através dela é que o ser humano pode obter segurança
e liberdade.
Ilya Prigogine, em seu ensaio O Reencantamento do
mundo, faz uma reflexão diante dos questionamentos sobre a
utilidade da ciência, deixando de lado a idéia de certeza, como
algo extremamente pessimista. É importante chamar a atenção
para o fato de que essa idéia dominou a ciência durante séculos,
firmada em duas premissas complementares, a teológica (uma
ciência de certeza, como uma divindade, não admite dúvida) e
a de poder (uma ciência de poder tem um mundo manipulável
à vontade própria).
Quando o sujeito se propõe a pesquisar e, consequentemente,
fazer ciência, ele pode incluir nessa proposta a possibilidade de
incutir em sua prática essa certeza científica e com isso avançar
em termos de status quo para um lugar inquestionável de poder.
Esse lugar, dentro de sua aparente completude, serviria para
mascarar qualquer resquício de falta ou lacuna simbólica na
vida desse sujeito. Em outras palavras, a certeza científica, entre
outras possibilidades, pode ser empreendida como instrumento
de negação de um dos elementos que também compõe o
homem de ciência: a vida pessoal, carregada de desejos, que
impulsionam as escolhas e conduzem seus passos.
Dentro da subjetividade intrínseca a cada um, é justamente
a incompletude que move, que desperta a curiosidade, que
torna legítimo o espírito científico (Bachelard, 2005). A certeza,
qualquer que seja, científica ou não, imprime uma estagnação
e, como afirma Prigogine, impõe algo de pessimismo em sua
conduta. O próprio Prigogine sugere que se busquem novas
saídas, que se considerem novas possibilidades, entre elas,
a apropriação de uma nova linguagem para a ciência, onde a
certeza científica não impere como objetivo absoluto.
O desespero do meio científico por essa certeza está
atrelado à crença de que a verdade científica absoluta é algo
completamente alcançável e é o que legitimamente move o
trabalho do cientista. Latour e Woolgar (1997) descrevem,
através de uma interessante experiência vivenciada em
laboratório, como essa busca pela verdade científica – única
verdade considerada real – transforma as relações, não só entre
as pessoas, mas nelas mesmas, e conduz a vida de cada um a
um emaranhado, construído de competição, desconfiança,
ambição e angustias. Há uma busca incessante e compulsiva
por resultados inéditos e melhores do que os dos concorrentes,
por verbas e financiamentos cada vez maiores, pelo frágil
reconhecimento da comunidade cientifica. Latour ilustra essa
realidade através da comparação da produção de fatos científicos
com um quebra-cabeça quase terminado, que a cada dia tem a
possibilidade de ser completado.
Sabe-se, baseado no movimento da própria ciência, que
esse quebra-cabeça nunca será completado: por mais que se
95
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98
adquira conhecimento, há sempre mais o que descobrir, entender,
saber. No entanto, a ilusão da possibilidade de completude é
imprescindível para se obter estímulo, para se mover diante de
qualquer desafio: é preciso que se acredite que se vai alcançar a
completude, para que se possa lutar por ela. Não é por acaso que
Atlan (2004) conclui que a existência humana, baseada na ilusão
de liberdade, se firma numa busca de perfeição cada vez maior.
Obviamente, o homem de ciência, o pesquisador, em seu meio
de trabalho/produção, abomina a idéia da existência de uma
ilusão relacionada à sua prática. É como se fosse possível alijar
a subjetividade, a emoção, o simbólico do mundo de conceitos,
fórmulas, concretudes e certezas, compreendido como real.
Edgard Morin (2005) chama a atenção para o apego
exagerado a esse mundo dito real, onde não há espaço de
reflexão, de questionamentos mais profundos, espaço para o
simbólico. Essa exclusão expõe a tendência de se acreditar que
o pensamento empírico/técnico/racional teria uma linguagem
mais clara, mais condizente com a verdade, não contaminada
pelo mítico/mágico/simbólico. Para Morin, a excessiva clareza
mata a verdade e a excessiva obscuridade a torna invisível. Ele
procura mostrar que o pensamento empírico/técnico/racional
é, ao mesmo tempo, concorrente e antagônico ao pensamento
simbólico/mitológico/mágico. “Nas nossas vidas quotidianas,
coexistem, sucedem-se, misturam-se crenças, superstições,
racionalidades, tecnicidades, magias, e os nossos objetos mais
técnicos (automóvel, avião) estão, por sua vez, embebidos de
mitologia” (Morin, 2005, p. 159).
Introduz-se aí a idéia de mito1 relacionado à ciência.
Obviamente não se vai aprofundar essa relação, muito menos
o significado/sentido de mito para o mundo ocidental. No
entanto, é possível, partindo do que foi apresentado por Morin
(2002a), refletir a partir de um novo prisma.
Quando se atribui exagerada expectativa às descobertas
científicas ou ao resultado do trabalho de um artista ou político,
se está misturando mito e razão: o exagero da espera ou a
supervalorização de trabalho estão carregados de símbolos
e crenças, ao mesmo tempo em que trazem objetividade e
concretude. A busca da cura de uma grave enfermidade é por
vezes contaminada com o desejo do cientista de exterminar o
mal e consagrar-se como herói. Morin afirma que a própria
razão e a própria ciência podem ser apreendidas como mitos
na medida em que se impõem como entidades supremas que
se encarregam da Salvação da Humanidade: o pensamento
mitológico é carenciado se não for capaz de acender a
1
De Mythos, que, significa, na origem da palavra, discurso; discurso da compreensão subjetiva, singular e concreta de um espírito que adere ao mundo e o sente a partir do interior
(Morin, 2005, pp. 149).
objetividade.
Edgard de Assis Carvalho (2004) também trata desse
embricamento ao debruçar-se sobre o par de opostos natureza
e cultura. Esse homem – homo complexus2 - não pode ser
dissociado do meio em que vive nem da história, sua e da
sociedade em que está inserido. É isso que será abordado a partir
de agora.
II
A epistemologia da ciência é construída a partir de
realidades firmadas em épocas e contextos históricos específicos
e diferentes (Chalmers, 1995). Não se pode dissociar as
descobertas científicas e os avanços, grandes ou pequenos, da
ciência, do meio em que foram produzidos e, principalmente,
do sujeito/homem por trás dessa produção. O que significa
que, para compreender os rumos que a ciência toma e o seu
sentido próprio, é necessário uma tentativa de entender o
próprio homem – tarefa que vem se arrastando por toda a
história da humanidade, transitando da Filosofia à Medicina, da
Antropologia à Psicanálise.
Morin (2005), dentro dessa perspectiva, situa o homem
historicamente como um ser que expressa sua cultura. Segundo
ele é importante para compreender os pensamentos e atos
dos indivíduos das diferentes culturas, reconhecer os contextos
culturais e as motivações interiores de uma maneira complexa.
No entanto, esclarece que compreender não significa explicar,
uma vez que o conhecimento complexo admite um resíduo
inexplicável.
Numa tentativa de compreensão do homem,
especificamente, do chamado homem que faz ciência, é possível
fazer um recorte e chamar a atenção para o que conduz esse
homem. É sabido que a partir de cada produção científica, existe
algo que subjaz a conduta do pesquisador, não a conduta técnica
e laboral, mas a conduta subjetiva que dá rumo moral às suas
ações e ao resultado do seu trabalho. A essa conduta, é possível
chamar de ética (Novais, 1992). Sendo o homem/cientista um
ser conduzido por uma ética (ou melhor, deveria ser assim), a
seguir serão feitos alguns comentários baseados em preceitos
apresentados por Edgar Morin (2002b) que mostram aspectos
éticos que colocam o homem como um ser complexo e a vida
como um leque aberto constituído de infinitas possibilidades de
religação.
O autor propõe uma ética que considere a cultura psíquica
do ser humano e introduz a idéia de que se deve desconfiar dos
2
Ser inscrito numa longa ordem biológica, produtor de cultura.
96
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 93-98
próprios olhos, chamando a atenção para o fato da interpretação
estar sempre no que parece objetivo e evidente. Ampliando
essa idéia para o campo da produção científica, torna-se difícil
reconhecer tal característica, já que no campo científico, a
desconfiança dos próprios olhos é mascarada pela rigidez da
objetividade, ancorada na credibilidade atribuída à dimensão
quantitativa (aos números) e na dita necessidade de impor uma
verdade científica segura e irrefutável. No entanto, levar em conta
a possibilidade de interpretação vinda do outro e de si próprio,
pode ser visto, não como uma maneira de fragilizar resultados
ou subjetivar o que necessariamente tem que ser objetivo,
mas sim como uma maneira de abrir novas possibilidades de
compreensão de resultados, e também de considerar o saber
vindo do outro. Essa atitude conduz à ética da responsabilidade,
onde o indivíduo/cientista é totalmente responsável pela
sua produção (que inclui também palavras e ações), mas não
é responsável pelas interpretações nem as conseqüências
advindas de seu uso – a ética da responsabilidade protege o
indivíduo, sem deixar de colocá-lo numa situação complexa em
relação aos próprios atos.
Além da ética da responsabilidade, Morin também discorre
sobre a ética da religação. Sendo o homem um ser de falta
(Freud, 1998), a ética da religação, não só reconhece essa
condição, como sugere uma maneira possível de lidar com ela.
Se o homem é um ser faltante, ele é faltante em todos os
aspectos da vida: nas relações familiares, sociais, no trabalho.
E é justamente essa falta que lhe move, que conduz a busca
essencial da vida. A busca da ciência, do cientista, também é
movida por essa falta; o empenho de dar conta de determinado
campo do saber, de responder a questões específicas, de avançar
nas investigações e nas análises, não pode ser apreendida como
uma tentativa de suprir essa falta, de preencher um pouco àquilo
que dá sentido à existência. Nessa perspectiva, pode-se pensar
a fragmentação e as especialidades do conhecimento científico
como uma das tantas formas de possibilitar o preenchimento
dessa falta: quanto mais reduzido o foco sobre este objeto de
estudo mais fácil será dar conta do empreendimento.
Esse excesso de fragmentação, Morin identificou
como perverso, como algo que impossibilita a religação de
conhecimentos. Indo um pouco mais além, pode-se dizer que
essa fragmentação causa a ilusão da facilidade de preenchimento
da falta: quanto mais se fragmenta, mais se fragmenta... mais
o conhecimento adquirido se isola e se distancia do mundo e
da vida. Mas como a religação de saberes poderia contribuir no
preenchimento dessa falta, no facilitar dessa busca incessante?
Seria ingênuo pensar num preenchimento total da
falta que move o homem ou da busca de conhecimento e
consequentemente de realização que move a ciência. Esse
preenchimento total é uma espécie de utopia perseguida.
Através da ética da religação, Morin ressalta que a maneira de
lidar com essa falta/busca é uma expressão da condição humana
na medida que pode tornar o homem mais tolerante, mais
vigilante e capaz de interagir com o outro.
A ética da religação considera como princípio não arrancar
ninguém da sua condição humana e está baseada em três
tipos de tolerância: direito do outro em exprimir-se; opção
democrática pessoal; considerar que há uma verdade na idéia
antagônica à idéia de cada um. Esse tipo de tolerância faz com
que o sujeito possa agir de maneira que o outro possa aumentar
o número de escolhas possíveis, ou seja, pode-se afirmar no
caso específico do cientista que, quanto maior o número de
escolhas, maior a possibilidade de preenchimento das faltas/
buscas emergentes e consequêntemente maior a condição de se
encontrar novos caminhos que levam a novas faltas/buscas num
movimento ad infinitum.
Esse aumento de formas de escolhas amplia também
as maneiras de compreensão desse homem/ciência. Porém,
não se pode esquecer o que foi dito anteriormente: dentro da
compreensão humana, o conhecimento complexo admite
um resíduo inexplicável – algo que escapa, que jamais será
alcançado pois a falta é condição sine qua non da vida.
Cabe, enfim, ressaltar que a religação de saberes
contribuiria para compreender e trabalhar melhor as relações
entre as diferentes áreas e o conhecimento científico, colocando
o cientista/pesquisador em um lugar mais próximo do que ele
verdadeiramente é – humano – deixando em aberto proposta
de se investir na sutura de conhecimentos, na integração de
áreas, para que se possa fomentar a construção de novos
caminhos e possibilidades de saber.
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Recebido em agosto/2011
Revisado em setembro/2011
Aceito em novembro/2011
98
ESTUDO TEÓRICO
A técnica das entrevistas iniciais partindo do seriado
“Em terapia”
Initial interviews technique starting of the television series
“In treatment”
Leonardo Della Pasquaa1
Resumo: A partir do seriado americano “In treatment”, o autor utiliza um episodio da série para discorrer
sobre questões teóricas referentes às entrevistas iniciais em psicoterapia. As idéias apresentadas servem
para refletir criticamente sobre como a profissão é exercida. Apesar da dificuldade do caso, pode-se afirmar
que Paul Weston foi mobilizado por aspectos internalizados de conteúdo paterno. Convém lembrar, que,
no dia da entrevista, o pai do psicoterapeuta está hospitalizado, em estado terminal numa clinica geriátrica
e Paul, nunca foi visitá-lo. No decorrer da segunda temporada, o pai de Paul virá falecer e o terapeuta
não ficará indiferente ao fato. Esses aspectos transferenciais e contra-transferenciais comprometeram a
escuta e as intervenções do psicoterapeuta da série, que mostrou dificuldades em exercer sua função
terapêutica de modo eficaz.
Palavra-chave: Entrevistas iniciais; Tratamento psicoterápico; Transferência; Contratransferência
Abstract: From the American series In Treatment the author uses an episode of the series to discuss
theoretical issues related to the initial interviews in psychotherapy. The ideas presented serves to reflect
critically how the profession is exercised. Despite the difficulty of the case, one can say that Paul Weston
was mobilized by transference internal aspects of parental content. It should be remembered, that on the
day of the interview, the psychotherapist father is hospitalized, terminally ill in a geriatric clinic and Paul
never visited him. During the second season, Paul’s father died and the therapist will not be indifferent to
the fact. These aspects of transference and counter-transference committed to listening and interventions
of the psychotherapist in the series, which struggled to exert their therapeutic function effectively.
Keywords: Initial interviews.; Psychoterapy treatment; Transference; Countertransference
a Psicólogo; Psicanalista
*E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
99
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In Treatment é um seriado americano dirigido por Rodrigo
García, filho do escritor colombiano Gabriel García Márquez. A
série televisiva é uma refilmagem da versão israelita Be’Tipul,
criada por Hagai Levi. Em palestra no Roma Fiction Fest 2010,
o criador do seriado conta que já existem 13 produções da série
sendo rodadas ao redor do mundo, desde simples transposições
dos episódios para o idioma do país, até as verdadeiras adaptações
culturais do roteiro, em relação a vida sócio-econômica-cultural
dos personagens. Os episódios em Israel eram submetidos à
supervisão de um reconhecido psicoterapeuta do país, que
auxiliava na construção do roteiro.
Na série americana, Hagai Levi serviu de consultor, um
produtor-executivo do programa. Os episódios duram em média
a metade do tempo de uma sessão clássica de terapia, ou seja,
23-24 minutos. Esse tempo é também a metade do tempo
de um episódio padrão dos seriados, que duram entre 40-45
minutos. A série se passa em um consultório de psicoterapia,
onde o terapeuta Paul Weston (interpretado por Gabriel Byrne)
atende seus pacientes. Cada dia da semana o psicoterapeuta de
orientação psicanalítica atende um paciente diferente. Na Sextafeira é o dia da supervisão-psicoterapia pessoal de Paul, com sua
antiga terapeuta Gina, interpretada por Diane Wiest.
O consultório de Paul é uma peça de sua própria casa, uma
espécie de santuário para ele, onde ninguém de sua família deve
tomar parte. Paul é casado e tem três filhos: um filho e uma
filha adolescente, além de uma menina pré-adolescente. Seu
isolamento profissional dentro da própria casa acaba gerando
uma crise conjugal que terminará em divórcio. Paul apresenta
dificuldades transferenciais e contra-transferenciais com seus
pacientes, o que influencia a sua prática clínica e sua vida pessoal.
A série americana tem três temporadas: as duas primeiras
são uma transposição da série israelita; a terceira e última
temporada é totalmente nova, transformando bastante o
produto original.
Na palestra de Hagai Levi em Roma, ele ressalta que a série
se transformou um sucesso somente após duas ou três semanas
de exibição, onde mais pessoas falavam do seriado do que os
que realmente o assistiam. Isso teve uma grande repercussão em
Israel, pois a procura por psicoterapia aumentou muito durante
a exibição da série. Mais pessoas falavam de psicoterapia, mais
pessoas resolveram procurar um psicoterapeuta.
Perguntado sobre o que pensava que Freud poderia dizer a
respeito da série, Levi diz que o método de terapia apresentado é
diferente do proposto por Freud, mas crê que ele ficaria satisfeito
com o que estaria representado. O que é questionável, pois Freud
nunca quis que a psicanálise fosse filmada, porque acreditava
ser impossível representar fielmente o que se passa numa sala
de análise (Lacoste, 1992). A série não apresenta exatamente o
que ocorre em psicoterapia, pois as sessões reais de terapia não
são um produto a ser vendido para a grande massa assistir. Nem
tudo é interessante e chama a atenção. Hagai Levi sabe bem
disso, afirmando que a série não é uma sessão de psicoterapia
filmada, mas se aproxima significativamente, cometendo
algumas distorções do método terapêutico.
É interessante pararmos para pensar sobre esse ponto: em
1926 Karl Abraham e Oliver Sachs, membros do grupo seleto
de Freud, serviram de supervisores ao diretor alemão Georg
Wilhelm Pabst, para a realização do filme Geheimnisse einer Seele
- Os Mistérios da Alma. Freud jamais aprovou o projeto. Eram
os anos do cinema mudo e o paciente era um sujeito com uma
série de obsessões e compulsões. Os sonhos do paciente foram
representados plasticamente, sem a presença da palavra, só com
imagens. Nesses anos – anos do nascimento do surrealismo
– Freud negou a André Breton a relação existente entre o
surrealismo e a psicanálise. “Um Cão Andaluz”, de Luis Buñel e
Salvador Dali é de 1929 e é inegável a relação existente entre
os dois movimentos. Um procura representar o inconsciente, o
outro – a Psicanálise – procura analisá-lo. O filme é mudo e
apresenta elementos oníricos em sua forma mais pura, isto é, de
forma visual, sem as palavras.
Qual a diferença do enquadre psicanalítico freudiano para o
enquadre apresentado na série? Em primeiro lugar a freqüência
semanal das sessões. Freud via os pacientes diariamente,
descansando somente no Domingo. Paul Weston atende todos
os pacientes, sem exceção, uma vez por semana. Além disso, a
técnica utilizada por Paul apresenta elementos de outras escolas
de terapia, como a humanístico-existencial, tão famosa nos
Estados Unidos e difundida por autores célebres como Irvin D.
Yalom. No método psicanalítico propriamente dito, o utilizo
do divã é indicado. Porém análise e psicoterapia de orientação
psicanalítica não são a mesma coisa. A análise implica em alta
freqüência semanal de sessões e uma atenção à regra básica da
psicanálise: a associação livre, o que transforma a comunicação
entre analista e paciente diferente das formas cotidianas de
comunicação (Etchegoyen, 1989). Apesar das semelhanças na
técnica, a utilização das mesmas é diferente – assim como os
resultados.
Outro aspecto importante a ser ressaltado na fala de Hagai
Levi é sua preocupação com o rosto dos personagens. Conforme
ele mesmo diz: “como nos episódios acontece pouca coisa de
concreto, apenas uma pessoa sentada frente à outra, em uma
sala de psicoterapia, eu precisava que o rosto dos personagens
100
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106
capturasse o espectador”1. Já na psicoterapia, é o método
de trabalho que captura o paciente, não o rosto carismático
do terapeuta. Na análise propriamente dita ele é tirado de
cena. Entra em ação o divã, a introspecção, a regressão. É-lhe
possível utilizar produtivamente a própria neurose: a análise vai
ensinar-lhe a se auto-analisar. Os sonhos e sua interpretação
são fundamentais neste ofício. Freud e sua auto-análise nos
mostraram que o homem pode ser mais livre, desde que tenha
motivação e interesse em se auto-conhecer, enfrentando e
aprendendo com os próprios conflitos, não fugindo deles pelo
medo da dor psíquica (Jones, 1975).
A série serve para pensarmos alguns aspectos técnicos da
psicoterapia, em seus acertos e em seus erros. Para exemplificar
essas questões, proponho trazer para análise um único episódio
do seriado: a 1ª entrevista com um paciente, para pensarmos
sobre a técnica das primeiras entrevistas em psicoterapia de
orientação psicanalítica. O paciente em questão é um adulto
maduro de nome Walter (interpretado por John Mahoney), o 4°
paciente do seriado na 2ª temporada.
Todas as conclusões tiradas nesse artigo foram o produto
da análise dos episódios de todas as temporadas. Aqui é
apresentado apenas o 4º episodio da segunda temporada,trf por
questão de espaço e praticidade na apresentação do material.
Descrição do episódio e comentários iniciais
O tema exposto faz referencia ao Seriado “Em Terapia –
In Treatment”, 2ª temporada, 4º episódio através da primeira
entrevista com Walter, diretor-executivo de uma grande empresa
e veterano da guerra do Vietnã.
O episódio começa com Paul Weston (o terapeuta), deixando
um recado na secretária eletrônica do telefone de Rosie, sua filha
adolescente. Quem acompanhou a série sabe que o personagem
interpretado pelo ator Gabriel Byrne separou-se da mulher e
mudou-se de Washington para o Brooklyn, em Nova York, onde
cresceu.
Após a vinheta do seriado, Walter entra, dá a mão à Paul e
reclama da falta de elevador no prédio. Em seguida pergunta onde
deixar o casaco. Paul diz que pode deixá-lo na sala de espera. Walter
não aceita, preferindo apoiar o casaco, com bastante cuidado, no sofá
e ir sentar-se numa das poltronas da sala.
Walter: “É o problema de se ter coisas boas: você tem que se
preocupar com elas!”
Já neste primeiro fragmento de sessão podemos levantar
1
Entrevista coletiva sobre a série In treatment. Romafictionfest 2010.
Created by Amos – Entrevista a H. Levi. http://youtu.be/LxK-CTfmQb4.
hipóteses sobre o que trouxe o paciente até Paul. Podemos
também ver sinais sobre o tipo de relação tranferencial que o
paciente estabelece, que tipo de imagos parentais Paul será
solicitado a representar.
Walter diz logo o que lhe está acontecendo: ele está sempre
preocupado, agora a níveis que não consegue mais suportar. A
angústia o paralizou, impedindo que ele produzisse o necessário
para a sua posição. Walter é um homem maduro, em final de
carreira. Mostra-se imediatamente vigil e crítico com o que está
a sua volta (falta de elevador no prédio) e é demandante em
relação ao terapeuta. O pedido sobre onde por o casaco bom e
caro pode demonstrar o quanto ele está preocupado em saber se
ali vai ser ajudado, se pode confiar no terapeuta, se ali vai ser um
local onde ele pode deixar as suas coisas boas e ruins. Além disso
tem a questão de sua idade e o fato de estar no fim da carreira.
Será que Walter está preocupado com a aposentadoria e o que
fazer com o tempo livre que terá? Como será reorganizada sua
energia pulsional? É importante fazer perguntas nesse momento,
sem a ânsia de encontrar as respostas imediatamente. O paciente
já funciona desta maneira, não devemos nos sugestionar por seu
modo de funcionar.
Após relatar a conversa com sua mulher Connie, sobre os
motivos de comprar um casaco tão caro, Walter ajeita-se na
poltrona. A esposa pensa que um diretor-executivo deva usar
roupas condizentes com a própria função. Ficam ambos alguns
segundos em silêncio...
Walter: “por onde começamos?”
Depois de dizer que é necessário saber algumas coisas do
paciente, o terapeuta faz uma pergunta comum na 1ª entrevista:
Paul, o terapeuta pergunta “O que o trouxe aqui?”, utilizando
essa intervenção para abrir a entrevista. Como terapeuta, faz-se
uso dessa quando o paciente não fala e precisa de auxílio para tal.
Neste caso pode ser útil, mas na maioria das vezes é dispensável.
Ele poderia assinalar o fato do paciente estar preocupado, pois
já tinha indícios sobre o que poderia ser investigado. Isso seria
possível somente se Paul tivesse percebido esse aspecto naquele
momento. O que seria possível se sua mente estivesse esperta ou
mesmo, alguns anos de prática em psicoterapia.
Se não ocorreu a Paul a relação entre a preocupação e o
motivo da consulta, ele precisa primeiro ter uma idéia do que
pode estar acontecendo e precisa que o paciente fale sobre sua
experiência emocional naquele momento de vida, antes de
levantar alguma hipótese. Uma verbalização simples, como “e
então... (?)”, pode ajudar o paciente a começar a falar.
É importante recordar que, já em 1913, Freud em seu artigo
técnico “Sobre o início do tratamento” pergunta: “em que ponto e
101
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 99-106
com que material deve o tratamento começar?(...) Deve-se deixar
que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que ponto
começará. Desta maneira dizemos-lhe: ‘Antes que eu possa lhe
dizer algo, tenho de saber muita coisa sobre você; por obséquio,
conte-me o que sabe a respeito de si mesmo’” (Freud, 1988, p.
149).
Com a pergunta “o que te trouxe aqui?”, sabe-se algo mais
sobre Walter: ele fica surpreso em saber que Paul não sabe quem
é ele! Sendo este, o segundo paciente onde tal situação ocorre na
série. Alex – o piloto que se suicidou na 1ª temporada – também
ficou perplexo porque Paul não sabia quem ele era. Como Alex
procurava o “the Best”, o melhor deveria saber quem ele era.
Com Walter essa situação volta a ocorrer. São esses exemplos
de pacientes narcisistas? Vejamos: Walter: “nunca lê a sessão
de negócios? Folha em branco? Sério?” – fica decepcionado: “se
acham superiores aqueles que não lêem a sessão de negócios”.
Paul percebe a desconfiança de Walter e diz corretamente
que tudo o que ele disser sobre seu trabalho será sigiloso. Walter
pergunta se pode ter isso por escrito – depois dizendo que não
era necessário. Testa as reações de Paul e diz também sentir-se
em uma reunião constante.
Sabe-se então que a preocupação de Walter produziu
um sintoma: a insônia. O que será que está produzindo tanta
ansiedade? Porque ele não consegue mais dormir nem sonhar?
Walter reage de modo persecutório quando Paul assinala o
quanto ele gosta da mulher, Connie: “o que mais descobriu sobre
mim?” – pergunta desconfiado.
Diz ter tentado tomar Xanax e Ambien, receitados pelo
médico da família, em nome de Connie. Isso foi feito para que
ninguém pudesse rastrear o fato dos remédios serem para ele.
Desistiu de tomá-los, pois não funcionavam ou o deixavam
confuso: “Não posso ficar assim. Devo ser capaz de acordar
a qualquer hora e estar em alerta! (...) Estou acostumado com
estresse e com crises.” Sua mulher Connie brinca com ele,
chamando-o de super-homem. O paciente parece tomado por
pensamentos persecutórios. Ao que o terapeuta pergunta: Paul:
“quando a insônia começou?”.
Walter: “que diferença faz?” – fica em silêncio por alguns
instantes e fala do livro “Blink –­ A decisão num piscar de olhos”,
de Malcolm Gladwell (2005), onde a teoria de fundo é sobre
um especialista que pode identificar um problema num piscar de
olhos. É como se dissesse: se você é um especialista, já sabe o que
tenho, mas não quer me dizer e fica perdendo tempo com todo
esse falatório. Não vim aqui para expor minha vida para você. Vim
para resolver meu problema.
Paul fala que o processo terapêutico leva tempo, mas Walter
não acredita e é ainda mais explícito: “Você tem muita experiência.
Use-a! Não fique enrolando. Diga qual é o meu problema e o que
eu devo fazer! Se precisar pagar um extra, ok!” – diz o paciente
incomodado e irritado com o terapeuta. Está amedrontado. Quer
uma solução imediata. É um sujeito do mundo contemporâneo,
tem pressa. Esse modo de viver aumenta a sua já elevada
ansiedade.
Walter: “o que acontece é que preciso estar no meu melhor
nível e não consigo isso, uma vez que não consigo dormir. Não
sei como o meu problema pode ser mais claro que isso!” – diz o
paciente.
O que ele não sabe é que a questão não é tão simples assim.
Temos que entender o que está acontecendo ao paciente para
podermos ajudá-lo. Ele também precisa disso para melhorar.
Não é possível começar pelo fim. Walter tem que sofrer uma
desilusão em relação ao tipo e tempo de intervenção. Vai ser
frustrado na demanda de resultados imediatos. “Na verdade, a
pergunta em relação à duração do tratamento é irrespondível”
(Freud, 1988, p.143). Se sua experiência emocional não tivesse
afetado seu trabalho, provavelmente ele jamais estaria ali, tendo
que dizer coisas muito difíceis para um desconhecido. É um
baque ao narcisismo de Walter ter que estar naquela sala com
Paul.
Em relação à seleção de pacientes, Freud [1913] refere que
quando conhece pouco um paciente, aceita vê-lo apenas por um
período de uma ou duas semanas, numa espécie de ‘tratamento
de prova’. “Se se interrompe o tratamento dentro deste período,
poupa-se ao paciente a impressão aflitiva de uma tentativa
de cura que falhou. Esteve-se apenas empreendendo uma
sondagem, a fim de conhecer e decidir se ele é apropriado para
a psicanálise” (Freud, 1988, p.140).
Etchegoyen (1989) nos ensina que uma norma básica da
entrevista, que também faz parte de sua técnica, é a de facilitar
a livre expressão dos processos mentais do paciente, o que não
se consegue com um enquadre formal de perguntas e respostas.
Como nos diz Bleger (1980), é bom diferenciar anamnese,
interrogatório e entrevista.
A entrevista pretende ver como funciona o indivíduo e não
como ele diz que funciona. O que aprendemos com Freud é,
justamente, que ninguém pode dar uma informação fidedigna
de si mesmo. “Se pudesse, a entrevista não teria razão de ser”
(Etchegoyen, 1989, p.28). A entrevista psicológica quer averiguar
o que o entrevistado não sabe sobre si mesmo. Sem desqualificar
o que ele possa dizer, vai nos ilustrar o que podemos observar no
curso da interação.
Paul intervém desde o começo da entrevista, tendo a
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rejeição do paciente. Ele acertadamente passa a investigar a
relação de Walter com o trabalho e insiste em saber quando
a insônia começou. Walter não lembra. Passa a falar da filha
Natalie, a caçula, que tem grande diferença de idade em relação
aos irmãos. Walter refere-se a ela dizendo que desde cedo ela
tinha pressa: nasceu prematura, falou cedo, andou cedo. Agora
ela está numa clínica na Ruanda, país do continente africano.
Neste momento Walter pensa ter achado o motivo: “é
esse seu diagnóstico rápido? Natalie?” – diz o paciente. O
comportamento reticente e cauteloso de Paul, faz com que Walter
pergunte, com um chiste, se o terapeuta não está tentando
mantê-lo ali para ganhar mais dinheiro em consultas adicionais.
Walter não conhece a relação entre a insônia, as preocupações
de seu trabalho e os pensamentos que envolvem sua filha
Natalie, vivendo em Ruanda. Pensa ter achado a resposta para
seus problemas: trazer a filha de volta da África! Desconfia que
Paul seja um charlatão, que quer roubar seu dinheiro. Freud
aponta em relação duração do tratamento: “Se se propôs um
tratamento experimental de algumas semanas, pode-se evitar
fornecer resposta direta a essa pergunta, prometendo-se fazer
um pronunciamento mais fidedigno ao final do período de
prova” (Freud, 1988, p.143).
É preciso avaliar antes de prescrever! Paul decide dizer a
verdade. Ainda não sabe o que está acontecendo com Walter. Sabe
que Walter está com um quadro de ansiedade e que conversar
pode ajudar a descobrir o que está causando a angústia. Walter
após perguntar se deve dizer o que lhe passa na cabeça dispara:
“vou dormir quando morrer”. Não percebe a importância do que
diz. Nesse exato momento, recebe uma mensagem via SMS,
fato este que interrompe o curso do discurso criado no campo
terapêutico. O paciente lê a mensagem e diz que sempre tem
que resolver tudo, que gostaria que alguém pudesse resolver
alguma coisa sem precisar dele. Como entender esse fenômeno
dentro da consulta? O que deve fazer o terapeuta? Ambos ficam
em silêncio. Walter fala que gosta de aviões porque lá pode estar
tranqüilo, em silêncio. Ele fica tranqüilo quando está em transito.
Interessante! Mais mensagens telefônicas chegam...
Paul: “está tudo bem?”
Walter: “nunca!”
Paul pergunta se Walter conta com alguém para falar de
seus problemas. Walter diz que não, que não quer preocupar
Connie, seus filhos não querem ouvir os problemas de um velho,
até porque não entenderiam: “ganharam tudo fácil!”. Só Natalie
é diferente, repete ele. Neste momento Walter pede para ler um
email da filha, desejando saber a opinião especializada de Paul
depois.
Em síntese, Natalie conta as dificuldades da vida em Kigali,
capital da Ruanda, do quanto sofre com as histórias difíceis dos
outros e o quanto está aprendendo com a experiência de ajudar
as pessoas.
Walter tem uma idealização das capacidades do
psicoterapeuta. Pensa que o terapeuta tenha poderes mágicos,
que sabe imediatamente quais são os problemas dele e o que ele
deve fazer para resolvê-los. Paul frustra as expectativas de Walter
e ainda diz que a filha parece perfeitamente saudável. Walter
não se sente apoiado em ir até Kigali buscar a filha e pergunta
indignado se Paul não ficaria preocupado com a filha lá. “Há
uma diferença tênue entre coragem e estupidez” – diz Walter
enfurecido. Pensa que Paul está agindo como estúpido. “Nada na
vida é tão caro quanto à doença – e a estupidez” (Freud, 1988,
p.148).
Na transferência, Paul transformou-se precocemente
numa das imagos de pessoas estúpidas a não serem levadas
em consideração. Em parte isso é devido ao modo do paciente
funcionar e em parte porque Paul interviu precocemente,
extrapolando suas funções na 1ª entrevista. O primeiro objetivo
do tratamento é fazer o paciente se ligar a ele e a pessoa do
terapeuta (Etchegoyen, 1989). Para isso é preciso dar-lhe tempo.
Alguns pacientes exercem intensa pressão para induzir a
direção das sessões, onde a abstinência tem que ser exercida
com firmeza. Paul precisa frustrar algumas expectativas de
Walter, mas acaba discutindo com ele e tem dificuldades em
lidar com a quantidade e intensidade dos conteúdos projetados
na sua mente. Coloca-se em oposição ao paciente. Walter não se
sente entendido. E tudo isso na primeira entrevista!
Freud (1988), em seu trabalho“Sobre o inicio do tratamento”,
refere que se o terapeuta demonstrar interesse genuíno pelo
paciente, se dissipar as resistências que vão ocorrendo no início
e evitar qualquer equívoco que possa surgir, o próprio paciente
fará a vinculação do terapeuta com uma das imagos das pessoas
por quem estava acostumado a ser tratado com afeição.
Ao invés disso Paul diz, “a sua filha parece estável. Você
deve confiar nela.”. O terapeuta já quer dizer o que Walter deve
fazer, sem apoiá-lo! Walter não gosta. Chegou até ali repleto de
resistências, apresentando um comportamento agressivo (de
tipo defensivo) desde o primeiro contato com Paul. Está em
estado de alerta, alarmado com o que possa acontecer.
Walter: “pago pela sua opinião.”
Paul: “me pergunto Walter por que é importante que eu
lhe apóie nisso?” – uma pergunta interpretativa de conteúdo
transferencial sem a autorização do paciente.
Precisa-se estabelecer um vínculo e uma aliança terapêutica
103
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com o paciente, para que essa intervenção tenha algum efeito
terapêutico. É importante não desvirtuar o sentido da entrevista.
Se dermos apoio e perguntamos em demasia, tipo interrogatório,
expressando simpatia manifesta, desvirtuamos o sentido da
entrevista, convertendo-a em um diálogo formal, às vezes até
em uma conversação tosca (Etchegoyen, 1989).
O paciente sente-se agredido pelas palavras de Paul e
diz: “não preciso da droga da sua permissão! Fiz uma simples
pergunta. Tenho insônia, um problema sério, que não me deixa
trabalhar. Eu cheguei a lhe perguntar o que fazer: exercícios
mentais, técnicas de respiração e você me faz ler o email pessoal
da minha filha! Eu nem te conheço!” – grita furioso enquanto se
levanta, perguntando o quanto deve, pois quer ir embora.
Neste momento, sente uma dor no peito e cai sentado na
frente do sofá. Paul se aproxima preocupado e pergunta se ele
está tomando alguma medicação específica, se quer que ele
ligue para algum médico. Walter acena negativamente. Mostra
concretamente através do corpo o quanto está mal.
Walter: “você está bem Walter... você está bem.” – diz
enquanto bebe um copo d’água. “Desculpe o susto. Eu sei que
passa. Sempre passa” – diz assustado.
Paul: “já aconteceu antes?” – pergunta preocupado.
Walter: “isso vai embora.” – diz Walter enquanto sai da sala.
Paul senta-se atordoado com o que aconteceu e fica parado
pensando.Termina o episódio. Como entender esse último fenômeno?
O que estaria representado nesse ataque? É pânico? Perguntas que
nos fazemos, sem procurar respondê-las neste momento.
É importante aceitar e não interferir na angústia inicial da
entrevista. A situação é assimétrica, devido à função de cada
um: um terapeuta e um paciente (Etchegoyen, 1989). Uma
atitude reservada e cordial, contida e continente – não distante
– faz parte do papel do entrevistador. Pode-se iniciar solicitando
os dados de identificação do entrevistado, indicando o tempo
que durará a entrevista, da possibilidade que esta não seja a
única entrevista e que o paciente será convidado a falar.
É importante considerar o sujeito que procura psicoterapia,
não como paciente, mas como entrevistado, um paciente em
potencial. Ele só será realmente um paciente que faz psicoterapia
(no enfoque de orientação psicanalítica) após o estabelecimento
de um vínculo terapêutico e do contrato de trabalho, onde serão
discutidas as regras da terapia, número de sessões semanais,
honorários, faltas, férias, etc.
Uma questão que não foi discutida na entrevista
apresentada e jamais aparece na série é a contratação do tempo
e dos honorários do tratamento. “Pontos de importância no
início do tratamento são os acordos quanto a tempo e dinheiro”
(Freud, 1988, p.142). Falta toda a parte do contrato do
período de avaliação e da psicoterapia propriamente dita. Não
sabemos como foram contratadas as regras da terapia, nem
se foram contratadas. Em um episódio com outra paciente da
2ª temporada, sabemos que Paul colocou um anúncio numa
página da internet e que atende por convênios. Na 1ª temporada,
Alex joga US$ 150,00 em cima da mesa de Paul ao final de uma
sessão, e assim sabemos quanto custa a consulta. São as únicas
referências que temos na série em relação a honorários.
Freud (1988) se pergunta, em seu artigo de 1913 – “Sobre o
inicio do tratamento”, quando devemos começar a fazer nossas
comunicações ao paciente. Quando devemos revelar o significado
oculto de suas idéias? Quando iniciá-lo aos procedimentos técnicos
da análise? Etchegoyen (1989) e Zimerman (1997) consideram
útil utilizar interpretações de prova nas entrevistas iniciais, não para
modificar a estrutura do entrevistado, nem tampouco para induzir
ao insight. Isto não é o que o entrevistado precisa. Tampouco é nossa
função na primeira entrevista. O papel do profissional é“cumprir uma
tarefa que o informe sobre um tema concreto e circunscrito: se deve
fazer um tratamento e qual tratamento lhe convém” (Etchegoyen,
1989, p.32).
É interessante usar a interpretação na 1ª entrevista para
ver como o entrevistado reage. Uma interpretação simples e
genérica, unindo as verbalizações do entrevistado no estilo: “Isso
que acabas de dizer não lhe parece ter uma relação com...” pode
nos informar sobre a capacidade de insight do entrevistado.
Paul já havia tentado este tipo de intervenção quando referiu
a importância da esposa Connie para Walter, ocasionando uma
reação persecutória por parte do mesmo. Quando o terapeuta
investiga a relação com Natalie, Walter utiliza suas indagações
para achar uma solução rápida para seu caso. Não parece ter
grande capacidade de insight. Parece desejar apenas livrar-se do
sintoma da insônia (Etchegoyen, 1989; Zimerman, 1997).
Paul deveria ter terminado seus testes por aí, mas ao
invés disso utilizou uma pergunta interpretativa de conteúdo
transferencial. Intervenção inadequada, que nos mostra o
quanto Paul não utilize interpretações de prova, como nos
falam R. Horacio Etchegoyen e David E. Zimerman. Paul utiliza
verdadeiras interpretações desde as primeiras entrevistas, o que
é um erro técnico. Isso pode ocorrer pelo formato televisivo do
que é apresentado, pois o tempo televisivo deve ser rápido. Em
televisão, os segundos são preciosos, não há tempo a perder.
Porém pode ser também por que Paul não conseguiu conter
dentro de si os conteúdos que Walter coloca dentro da própria
mente, através da identificação projetiva. Paul está passando
por um momento existencial delicado, longe da família, com
104
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dificuldades de relacionamento com a filha Rosie.
Freud, em seu trabalho sobre o inicio do tratamento, nos diz
que é importante dar tempo ao paciente, para que ele vincule a
figura do analista a uma das imagos das pessoas que o tratavam
com afeição. Isso por um motivo bem específico: “É certamente
possível sermos privados deste primeiro sucesso se, desde o
início, assumir outro ponto de vista que não o da compreensão
simpática, tal como um ponto de vista moralizador, ou nos
comportarmos como representantes ou advogados da parte
litigante – o outro cônjuge, por exemplo” (Freud, 1988, p.154).
Outro fator a ser considerado é a motivação do possível
paciente. Keidann e Dal Zot (2005) levantam algumas questões
que podem nos orientar na definição da motivação das
entrevistas iniciais. Essas perguntas foram inspiradas no trabalho
de Peter Sífneos sobre psicoterapia breve, datado de 1976, que
podem auxiliar no caso de Walter.
1. O paciente busca espontaneamente o tratamento? Walter
chegou até Paul por insistência da mulher.
2. Mostra capacidade de reconhecer que seus sintomas são
de natureza psicológica? Denota sofrimento? Walter pensa sofrer
porque tem insônia e esse sintoma afeta a sua produtividade
no trabalho. Não reconhece a natureza psicológica de seu
sofrimento...
3. Há tendência à introspecção e a relatar os problemas
de um modo honesto? Não parece ser introspectivo. Parece
tomar decisões importantes todo o tempo, sem ser honesto em
relação a seus problemas. Os remédios para ele são comprados
em nome da mulher...
4. Tem vontade de participar ativamente do processo de
tratamento? Indica querer saber somente a solução para seu
problema de insônia.
5. Expressa curiosidade e desejo em se conhecer? Não.
6. Assume a responsabilidade de modificar as dificuldades que
enfrenta, em vez de externá-las e projetá-las nos outros? Este aspecto
parece projetado no outros: após ler um sms, Walter diz que gostaria
que alguém resolvesse os problemas sem precisar dele, sem pensar
na sua responsabilidade pelo que acontece na própria experiência
emocional. Não é ele que centraliza as coisas ao redor de si mesmo,
são os outros que precisam dele o tempo todo.
7. Apresenta expectativas realistas em relação à psicoterapia?
Como afirmado acima, Walter espera resolver rapidamente seu
problema de insônia.
8. Há disposição de investir tempo e dinheiro nesta busca?
Parece que Walter tem mais disponibilidade financeira do
que tempo e investimento psíquico para o processo. “A força
motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o
desejo de ser curado que deste se origina” (Freud, 1988, p.157).
Mas o que se deve avaliar nas entrevistas iniciais? Com sua
usual didática, Zimerman (1999) nos diz o que o analista deve
levar em conta nos primeiros contatos com um paciente: 1) o
tipo de encaminhamento; 2) a aparência exterior do paciente;
3) a realidade exterior; 4) o histórico familiar; 5) o grau de
motivação; 6) a escolha e estilo de suas relações objetais reais, e;
6) a forma dele se comunicar – verbal e não-verbalmente.
Perrotti (2003) afirma que curar significa continuar a verificar,
a ver aquilo que os outros não vêem, na esperança que também
eles possam ver. Discorrendo sobre a vida de Freud e o método
terapêutico que o mesmo desenvolveu, o analista romano nos
fala da ‘produtividade positiva da neurose’. Produtividade positiva
quando essa se transforma em um instrumento direcionado ao
conhecimento e a criatividade, quando o hábito da análise limita
o dano no sujeito e inibe a agressividade nociva em relação aos
outros. Produção positiva da neurose quando pode transformarse em uma auto-análise – como no caso de Freud – ou em
uma análise bem conduzida pelo terapeuta, incrementando o
progresso científico e o conhecimento in senso lato.
Antes de intervir é preciso escutar, ouvir o que não é
dito, intuir o que não é verbalizado. Assim poderemos ajudar
o paciente a sentir as próprias sensações e sentimentos,
auxiliando-o a escutar a si mesmo. Voltando o olhar para o
mundo interno do paciente, sem esquecer do nosso mundo
interno enquanto terapeutas, poderemos ‘instruí-lo’, poderemos
auxiliá-lo a analisar o próprio funcionamento, estimulando-o
a utilizar sua energia psíquica em um modo menos conflitivo,
mais saudável e mais criativo para ele mesmo.
Considerações Finais
O criador do seriado, Hagai Levi, declarou em Roma
que, em função da exibição de In treatment, mais pessoas se
interessaram pela psicoterapia e muitas delas sentiram-se
estimuladas a procurar um psicoterapeuta. Esse fato isolado
já justificaria a realização da série. Numa profissão como a
nossa, repleta de fantasias e preconceitos sobre sua prática,
um programa televisivo sobre o assunto parece ter ajudado a
desmistificar o que acontece em um tratamento psicoterápico.
Nem o fato do terapeuta apresentar diversos conflitos e
dificuldades pessoais influiu negativamente sobre a visão das
pessoas sobre a psicoterapia. Pelo contrário, é possível que o
fato de ser apresentado de uma forma humana – com crises
existenciais e problemas pessoais, como qualquer pessoa –
tenha contribuído a estimular mais pessoas a procurar um
105
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tratamento. Afinal, é conhecida a curiosidade das pessoas em
geral em relação a nossas vidas pessoais e o receio de serem
interpretadas quando estão em contato conosco em situações
sociais. Não é por acaso que existem 13 versões da série sendo
filmadas atualmente no mundo.
O seriado serve também para a discussão sobre a técnica
da psicoterapia, assim como aspectos clínicos de diferentes
situações psicopatológicas. Foi o que tentamos demonstrar neste
artigo. As possibilidades de escuta são imensas. Diversos vértices
de observação podem ser utilizados. As hipóteses levantadas
devem sempre ser comprovadas clinicamente. Sem buscar uma
compreensão imediata da totalidade da vida emocional do
paciente, precisamos ter uma idéia de como funciona a pessoa
que estamos recebendo em nosso consultório.
Walter é uma pessoa difícil de atender. Repleto de defesas
onipotentes, ele apresenta dificuldade em colocar-se em
discussão. A escuta do terapeuta deve ser neutra para não nos
misturarmos com os conteúdos do paciente. A impressão é que
Walter mobilizou aspectos transferenciais, de conteúdo paterno,
em Paul. O pai do terapeuta está internado em estado terminal
numa clínica geriátrica, onde ele nunca foi visitá-lo. Mais
adiante na temporada, irá morrer e Paul não será nem um pouco
indiferente a isso. Nenhum homem é indiferente a morte do
próprio pai. “O evento mais importante na vida de um homem”
– disse Freud. A relação de Paul com o pai nunca foi tranqüila.
Na segunda temporada, para complicar ainda mais a trama e
mantê-la interessante para o público, sabemos desde o primeiro
episódio que Paul está sendo processado pelo pai de Alex – seu
paciente da primeira temporada que supostamente cometeu
suicídio em um “acidente” com um avião da aeronáutica.
Conhecendo a série, tem-se a impressão que (no que se
refere a Walter) a escuta de Paul fica contaminada por questões
não elaboradas em relação a seu próprio pai. Além disso, tem
as questões referentes à própria filha de Paul, intencionalmente
ressaltadas no roteiro como pano de fundo para esse primeiro
episódio. Os roteiristas da série sabem o que fazem! Vê-se a
mão do supervisor-psicoterapeuta no roteiro. Basta lembrarmos
como o episódio começou: Paul deixava um recado telefônico na
caixa postal de Rosie, sua filha. Enquanto vemos ele fracassar na
tentativa de falar com ela, podemos notar a proteção de tela do
computador de Paul, um slideshow com fotos dos filhos.
Em relação ao contrato e as regras da terapia, costuma-se
dedicar as primeiras consultas para avaliarmos o quadro clínico
do paciente, como o mesmo funciona, se somos a pessoa mais
indicada para trabalhar com ele, se a dupla paciente-terapeuta
trabalha bem, se há empatia em relação a ele, e qual o melhor
tratamento para o mesmo.
Com um paciente como Walter, um enquadre a uma
sessão semanal parece insuficiente. Caso o paciente volte para
a segunda entrevista – e Walter volta – um período de prova,
a duas sessões por semana, pode ser útil para amenizar as
resistências e desconfianças do mesmo. As regras da terapia
devem ser trabalhadas com cautela, para não acionar questões
de conteúdo persecutório, em relação ao terapeuta e ao
tratamento. O mais importante neste primeiro contato é escutar
com respeito, interesse e empatia o que o paciente nos trás,
trabalhando primeiramente o vínculo entre terapeuta e paciente.
As idéias apresentadas neste texto servem somente para
introduzir alguns aspectos sobre a prática clínica. Um exercício
útil para se refletir criticamente como a profissão é exercida, como
é vista pelos outros e como é apresentada pela mídia. Diversos
outros comentários podem ser feitos em relação a Walter e sua
psicoterapia com Paul. A proposta deste artigo foi analisar um
episódio somente. Muitos outros vértices de observação podem
ser utilizados, mas isso é assunto para ulteriores discussões.
De modo algum se busca encerrar o assunto, sendo este texto
apenas um ponto de partida.
Referências
Bleger, J. (1980). Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins
Fontes Editora.
Etchegoyen, R. H. (1989). Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto
Alegre: Artes Médicas.
Freud, S. (1913). Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre
a técnica da psicanálise I). In Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho
original publicado em 1988)
Gladwell, M. (2005). Blink – a decisão num piscar de olhos. Rio de Janeiro:
Ed. Rocco.
Jones, E. (1975). A vida e a obra de S. Freud. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Imago.
Keidann, C. E., & Dal Zot, J. S. (2005). Avaliação. In C. L. Eizirik, R. W.
Aguiar & S. S. Schestatsky (Orgs.), Psicoterapia de orientação analítica:
fundamentos teóricos e clínicos (pp. 193-205). Porto Alegre: Artmed.
Lacoste, P. (1992). Psicanálise na tela: Pabst, Abraham, Sach, Freud e o filme
os segredos de uma alma. São Paulo: Jorge Zahar Ed.
Perrotti, P. (2003). Freud e la terapia. In Collana Echi di Psicoanalisi: quaderno
1 – L’Attesa. Roma: Edizione Kappa.
Yalom, I. D. (2007). Os desafios da terapia. Rio de Janeiro: Ediouro.
Zimerman, D.E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto
Alegre: Artmed, 1997.
Recebido em agosto/2011
Revisado em novembro/2011
Aceito em dezembro/2011
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ESTUDO TEÓRICO
O processo adolescente e as funções parentais na realidade
contemporânea
The adolescence process and parental functions in contemporary reality
Roberta Araujo Monteiroa*, Thomás Gomes Gonçalvesb,
Lísia da Luz Refoscoc, Mônica Medeiros Kother Macedod
Resumo: A partir de contribuições psicanalíticas é proposta uma reflexão sobre as exigências do
cenário contemporâneo e do exercício das funções parentais no proceso de construção da identidade
na adolescência. A adolescência é abordada como uma etapa de vida na qual ocorre uma série de
acontecimentos, como ressignificações identitárias, emergência de intensas exigências pulsionais,
enfrentamento com a complexidade do processo de acesso ao mundo adulto bem como a reedição de
conflitos edípicos. O artigo aborda a influência e a ressonância de características do contexto social e da
cultura atual nas configurações familiares e nas relações estabelecidas entre os pais e o adolescente. Por
meio da descrição do enfraquecimento das funções parentais na família contemporânea, enfatiza-se o
enlace entre as exigências atuais, o papel dos pais como figuras de autoridade e agentes de cuidado e a
dinâmica dos padecimentos adolescentes.
Palavras-chave: Adolescentes; Psicanálise; Funções parentais; Contemporaneidade
Abstract: We propose some reflection concerning the demands of the contemporary scenario and
the role of the parents in the process of construction of identity in adolescence from a psychoanalytic
perspective. In adolescence happens different events as identity reasigment, emergency of intense
instincts exigency, facing some struggle concerning the complexity of demands from the adulthood
world and the reissue of the oedipal conflicts. The article addresses the influence and the resonance of
the features from the social context and the current culture in family and the relationship established
between parents and the adolescent. Through the evidence of the weakening of the parent role in the
contemporary family, it is addressed the link between the current demands and parents as authority roles
and care takers, as well as the adolescent sufferings.
Keywords: Adolescents; Psychoanalysis; Parental role; Contemporary
a Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS;
*E-mail: [email protected]
b Graduando em Psicologia pela FAPSI/PUCRS; Bolsista de Iniciação Científica BPA/PUCRS no Grupo de Pesquisa Fundamentos e
Intervenções em Psicanálise do Programa de Pós-graduação da FAPSI/PUCRS.
c Psicóloga; Mestranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Psicologia da PUCRS (Bolsista CAPES).
d Psicóloga; Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Professora Adjunta da Graduação e do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Psicologia (FAPSI) da PUCRS.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Os psicanalistas vêm se confrontando com situações que
os convocam a reflexões que dêem conta do entendimento da
dinâmica de tempos marcados pelo instantâneo, pela fluidez
dos vínculos e pela inalcançável busca de completude. Sobre
essa situação, Viñar (2010) refere que a expansão do urbano, a
velocidade dos transportes, a instantaneidade da informação,
além da multiplicação, fugacidade e superficialidade dos
vínculos humanos constituem um mundo cambalache. Segundo
o autor, este lugar é caracterizado pela mutação civilizatória do
século XXI, assim como pelas mudanças materiais, tecnológicas
e pelos referenciais sociais, responsáveis pela organização da
mente. Nessa direção, ressalta-se também, a reflexão a respeito
das marcas da cultura na constituição subjetiva do sujeito, sendo
este um importante tema de discussão nas mais diversas áreas
que tem a condição humana como foco de interesse e de estudo.
Em especial, os fatores implicados no processo de constituição
do sujeito se constituem desde sempre um eixo de interesse da
Psicanálise, considerando o valor que essa atribui à singularidade
dos processos intrapsíquicos e pela constante dedicação a buscar
uma compreensão consistente e profícua a respeito dos efeitos
oriundos das transformações sociais, políticas e culturais nos
campos intra e intersubjetivo. Como explicita Birman (2006),
a subjetividade é uma construção eminentemente histórica e
perpassada por valores éticos, estéticos e políticos.
A complexidade do processo de constituição do psiquismo
implica na consideração de que esse se dá a partir da qualidade
do encontro com o outro. Para Bleichmar (2005) a necessidade
do ser humano de se humanizar na cultura faz com que a
presença do semelhante seja inerente a sua própria constituição.
Trata-se de um encontro inaugural sob vários aspectos, sendo
que as marcas decorrentes desse trazem desdobramentos e
efeitos distintos nas etapas da vida, entre as quais está inscrita
a adolescência.
Na adolescência, segundo Rother Hornstein (2006), as
experiências têm como centro as problemáticas relativas ao
próprio Eu, incluindo o desafio de assumir um papel mais ativo
em relação a sua vida. Nesse momento, o adolescente se depara
com novas conquistas e com possibilidades de investimento
num tempo futuro. Por outro lado, ele se enfrenta com a
necessidade de dar conta de intensas demandas psíquicas,
biológicas e sociais que acarretarão transformações tanto em seu
mundo intrapsíquico, quanto em seus processos interrelacionais.
Assim, o mundo pulsional se vê diante de novos desafios e
possibilidades evidenciando-se o quanto as vicissitudes de seus
investimentos estão atreladas às condições de elaboração e
metabolização das intensidades psíquicas.
Considerando-se não ser possível compreender o
adolescente isolando-o do contexto no qual vive, torna-se
fundamental situá-lo frente às demandas contemporâneas,
retomando, assim, elementos importantes referentes ao
processo de construção do si mesmo. Nesse processo, é essencial
abordar a relevância das funções parentais, as quais se vêem,
igualmente, sob o efeito de demandas próprias deste cenário
atual.
Impactos da contemporaneidade na vivência
adolescente
A compreensão do sujeito só é possível, segundo
Hornstein (2008, p.17), considerando-o “imerso no históricosocial, entramando práticas, discursos, sexualidade, ideais,
desejos, ideologias e proibições”. Logo, refletir sobre elementos
referentes à adolescência significa reafirmar sua interrelação
com os cenários social, biológico e psíquico. Dessa forma, se
associam e se interpenetram os efeitos da dimensão social e da
dimensão psíquica no encontro entre marcas de um tempo já
vivido e perspectivas em relação a um tempo futuro .
O cenário atual pode bem ser definido a partir de
conceitos, como sociedade do espetáculo, cultura do narcisismo
e tempos líquidos- formulações de Debord (1997), Lasch
(1983) e Bauman (2000), respectivamente, - sendo essas
intrinsecamente relacionadas à ideia de centramento no Eu e do
predomínio da superficialidade e da fluidez dos laços afetivos.
A partir disso, Maia (2005) entende que as relações humanas
tornam-se formas de obtenção de prazer imediato, e, quando
há qualquer ameaça de sofrimento, o outro é, rapidamente,
descartado. Dockhorn e Macedo (2008) argumentam que em
uma sociedade organizada pelo consumo, a exigência é de estar
sempre pronto para o aproveitamento absoluto dos “bens” e
para o desenvolvimento de novos desejos frente a incessantes
seduções que se apresentam como indispensáveis. O panorama
cultural dos dias de hoje, segundo Costa (2005), é marcado pela
busca de sensações agradáveis e prazerosas pelo sujeito, sendo
que aquilo que demanda tempo para se realizar e/ou o que não
traz gozo, é vivido como sensação indesejável.
Neste contexto social atual, surge uma nova denominação
ao modo de ser adolescente: Geração Y ou Geração Internet.
Esta denominação pretende caracterizar a geração nascida entre
janeiro 1977 e dezembro de 1997, a qual experenciou mudanças
significativas no mundo, como a ascensão do computador, o
surgimento da Internet e de outras tecnologias digitais, sendo
considerada por Tapscott (2009) como a primeira geração imersa
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em bits. Seus pais são pertencentes à chamada geração Baby
boom, nascidos entre janeiro de 1946 a dezembro de 1964, ou
seja, após a Segunda Guerra Mundial, em um contexto no qual
se esperava que os homens que estavam na guerra pudessem
voltar para casa e constituir uma família. Nesta mesma época,
a economia mundial ganhava impulso e se fortificava, deixando
as famílias confiantes na decisão de ter filhos. As diferenças entre
os Baby Boomers, denominados geração televisão, e seus filhos,
a geração Internet (geração Y), segundo Tapscott (2009), passam
pela priorização de liberdade, ou seja, a geração Y prioriza a
liberdade de escolha e de expressão. Os jovens desta geração
gostam de customizar, personalizar o mundo ao seu redor, desde
a área de trabalho do computador, o toque do telefone celular, o
apelido, as fontes de notícias, entre outros.
O autor destaca ainda que a Geração Internet é
constituída de jovens que são marcados pela colaboração e
pelo relacionamento, ou seja, mandam mensagens em sites
de relacionamento, formam uma rede de influência online,
jogam videogame com múltiplos jogadores de diversas partes
do mundo. A Geração Y é composta de jovens inovadores,
que buscam novas formas de colaboração, de diversão, de
aprendizado e de trabalho. É uma geração que necessita da
velocidade, frente a qual cada mensagem instantânea deve
gerar uma resposta instantânea. Esse cenário produz, assim,
consequências que tanto podem significar uma amplitude de
possibilidades em especial pelo maior acesso à informação,
ao conhecimento, a tecnologias, vindo a favorecer e promover
novos processos de subjetivação, bem como podem, também,
resultar em sujeitos que não toleram frustrações, tendem ao
imediatismo, à busca incessante pelo prazer pleno e a vínculos
virtuais frágeis e facilmente descartados.
Nesta linha de raciocínio, paradoxalmente, em tempos nos
quais a felicidade passa a ser uma exigência constante feita ao
sujeito, Kehl (2009) assinala a depressão como um sintoma
social. A autora enfatiza a influência dessas especificidades do
cenário atual na produção de subjetividades e de padecimentos,
afirmando que a sociedade contemporânea se caracteriza pela
temporalidade acelerada, pelo imperativo do gozo a qualquer
custo, pela perda do valor da experiência e da tradição e, pela
debilidade de referenciais identificatórios. Ao trazer à discussão
a questão do tempo na constituição do aparelho psíquico, a
autora refere que um dos efeitos decorrentes da velocidade
que caracteriza os tempos atuais são o empobrecimento da
imaginação e a presença de sentimentos de vazio.
Neste cenário de profundas transformações, cabe também
uma reflexão sobre a estrutura familiar nas últimas décadas. De
acordo com Birman (2007), a partir de 1950, desencadeouse, no mundo ocidental, um processo radical de alterações
na família moderna, a qual perdeu algumas referências
fundamentais. O surgimento do movimento feminista, a
inserção da mulher no mercado de trabalho, o declínio do poder
patriarcal e o surgimento das famílias compostas são exemplos
de acontecimentos que promoveram novas configurações
familiares. Cabe destacar, conforme ressalta Kehl (2009), que
mesmo frente às grandes mudanças nas forças que estruturam
o campo social, é necessário considerar a importância da
singularidade de um processo de constituição psíquica. Logo,
não se pode fazer uma leitura apressada e linear na qual seja
atribuída unicamente à cultura a força de produção de um sujeito
psíquico. Trata-se de refletir sobre a qualidade de produção
psíquica frente a demandas que deixam pouco espaço para a
capacidade de experimentar e significar o ser em detrimento do
ter.
Ao tomar como referência a imagem social contemporânea
construída para o sujeito, Maia (2005) salienta o fato de os afetos
humanos perderem o seu lugar no mundo. A angústia e a tristeza
não podem ser sentidas no ideário pós-moderno e qualquer
sinal destas torna-se uma ameaça a ser combatida por meio
de dispositivos capazes de neutralizá-las, sejam antidepressivos
ou outras drogas diversas. Todas essas características apontam
para uma sociedade na qual a ausência de padecimentos ou de
faltas parece ser uma realidade plausível na qual a completude
ilusória acena como uma condição possível de ser alcançada.
No intuito de problematizar essa questão, Edler (2008) ressalta
ser justamente a falta que põe o sujeito em ação e em busca de
algo, sendo a incompletude lamentada o que revitaliza o sujeito,
colocando-o num movimento incessante. Logo, se o outro
não pode ser pensado ou desejado desde uma dimensão que
reconhece a própria incompletude, torna-se difícil o processo de
construção do genuíno acesso à alteridade.
Quando a problemática da alteridade, pertinente à
contemporaneidade, é abordada em relação à adolescência,
outros desdobramentos precisam ser considerados. Abordando
o seu entendimento de globalização negativa, Bauman (2007)
considera que nela os indivíduos são abandonados à própria
sorte, resultando no novo individualismo, no enfraquecimento
dos vínculos humanos e no definhamento da solidariedade.
Esse cenário traz, também, importantes consequências no
movimento que permite ao adolescente fazer a alternância
de desinvestimentos e investimentos, fator relevante na
promoção de seus projetos. O não alcance das metas ou
ideais contemporâneos pode rapidamente associar-se a ideias
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de fracasso e incapacidade por parte do adolescente. Se a
completude é garantia de felicidade, qual o lugar destinado à
incompletude? Nessa dinâmica, o vazio e o tédio envolvem a
vida do adolescente denunciando o risco dos frágeis e fraturados
investimentos e alicerces emocionais resultantes desses tempos
de frenética pressa e consumo.
Os desafios da contemporaneidade trazem, portanto,
repercussões no processo de subjetivação adolescente. Muitas
vezes, a desmesura do que o invade expõe a precariedade de suas
possibilidades de enfrentamento. A sociedade contemporânea,
do consumo e do gozo ilimitados, impõe ao adolescente um
modo de se constituir subjetivamente que se relaciona com
a escassez na oferta de recursos simbólicos e sublimatórios
(Macedo & Refosco, 2010; Pinheiro 2001).
A passagem adolescente prevê, conforme salienta Cardoso
(2001), importantes e traumáticas rupturas diante da exigência
da construção de uma identidade e devendo manter as fronteiras
egóicas, o jovem precisa ir ao encontro de um outro. A noção
de identidade convoca temas cruciais da psicanálise, como o
narcisismo, o investimento libidinal do ego, as identificações
inconscientes e os conflitos identificatórios. Adentra-se, assim,
no terreno da intersubjetividade, no qual o adolescente alicerça e
constrói a história de suas identificações e dos recursos psíquicos
que passará a dispor para lançar mão na travessia do mundo
infantil para o mundo adulto.
Funções parentais e a problemática adolescente
A intersubjetividade tem um lugar central na constituição
do psiquismo, possibilitando a singularidade de cada história
humana. É no processo de historização que fica viabilizado o
acesso do sujeito à temporalidade e ao seu projeto identificatório.
Tal afirmativa é exemplificada pelo que Rother Hornstein (2006)
refere sobre o encontro entre mãe e filho. Nesse encontro, segundo
a autora, a mãe confronta a criança com um discurso e, assim,
vai impregnando-a de sentidos que abarcam a forma como ela é
pensada, falada e desejada pelos seus genitores, incluindo-a em
suas histórias, também marcadas pela sua cultura. Isso remete
a noção de um trabalho psíquico, necessário na adolescência,
relativo à ressignificação da conflitiva edípica. As demandas
pulsionais desta etapa reativam a experiência edípica como uma
segunda chance de processar psiquicamente questões oriundas
dessa vivência infantil, em especial as referentes à construção
da identidade e às modalidades de investimentos do sujeito na
relação com o outro.
Os arranjos familiares contemporâneos denunciam um
amesquinhamento sofrido pela autoridade paterna, o qual
acarretou no enfraquecimento da figura do pai (Roudinesco,
2000). Além disso, Silva (2010) também refere que as
reivindicações por igualdade de poderes feitas pela mulher
levam a profundas transformações na ordem familiar, incluindo
as relações conjugais e parentais.
As funções parentais, na adolescência, estão marcadas
pelo interdito edípico e, por isso, devem ser exercidas em
outra modalidade. Entende-se que o excesso de presença ou
de ausência dos pais, assim como a qualidade com que eles
exercem suas funções tem importância vital para o adolescente.
Fazendo uma alusão à vivência de satisfação, descrita por Freud
(1895/1977) em Projeto para uma psicologia científica, afirmase que a demanda adolescente exige uma ação específica por
parte dos genitores. Trata-se de saber identificar a necessidade
adolescente a fim de não confundir liberdade com abandono.
Nos tempos atuais, como conceitua Bauman (2003),
vive-se em tempos líquidos que revelam a fragilidade dos
vínculos humanos, marcados pela insegurança e ambivalência
de sentimentos frente ao outro. Essa dinâmica acarreta em
importantes efeitos na configuração familiar de hoje, ficando em
xeque o que diz respeito a pontos fundamentais na criação dos
filhos, já que para uma criança, dada a sua condição de fragilidade
e dependência, é necessário contar com a disponibilidade e o
investimento por parte do adulto. Sabe-se que a dependência de
cuidados da infância adquire outras formas no decorrer da vida,
fazendo com que do adulto também seja exigida a capacidade
de “decifrar” as múltiplas demandas advindas da condição
de desamparo da criança. Neste sentido, Cardodo e Savietto
(2006,p.41) afirmam que “se as relações objetais primárias não
forem capazes de oferecer ao sujeito uma solidificação narcísica, a
continuidade do ser não estará assegurada no momento em que
o remanejamento identificatório for exigido, isto é, no momento
da adolescência. As falhas narcísicas que se desenvolvem a partir
do início da subjetivação também vão ressurgir por ocasião da
adolescência, quando está em jogo a tensão entre dependência
e autonomia”.
Logo, as funções parentais se vêem à mercê de uma
diversidade de solicitações cujo fundamento está nos recursos de
investimento afetivo. Como bem assinala Rother Hornstein (2006,
p.131), “a adolescência também põe à prova a capacidade de
transformação dos pais”. Relacionando essa questão aos tempos
líquidos, percebe-se que conceber um filho, ocupar uma função
de outro narcisizante fundamental no processo de constituição
psíquica da criança, bem como o envolvimento na sua educação
e no processo de formação de sua identidade, demanda aos pais
110
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113
um compromisso amplo e irrevogável, um compromisso que vai
na contramão da modalidade contemporânea de vida líquida e
de parcos investimentos no outro.
O reflexo desse contexto, marcado pelas características do
cenário contemporâneo, pode ser visto, também, como destaca
Birman (2006), nas exigências de alta performance impostas
às crianças e aos adolescentes. Isso acarreta à prevalência da
intensa rivalidade em detrimento da alteridade, tornando a
solidão uma presença constante nas vidas desses jovens. Com
isso, eles são confrontados com a quase ausência de limites,
tendo essa frouxidão dos interditos um efeito crucial no seu
processo de estruturação psíquica. A família nuclear tradicional,
formada por pai, mãe e filhos, deixa de ser a maioria na
sociedade contemporânea. O autor entende que a economia dos
cuidados no âmbito familiar foi bastante afetada, marcando uma
precariedade de investimentos nas crianças e nos adolescentes
e, por isso, incidindo diretamente sobre as novas formas de
subjetivação.
Freud (1913/1977; 1929/1977), em seus textos sobre
a cultura, estabelece interessantes relações entre os efeitos
decorrentes de características culturais e o processo da
constituição do sujeito o que contribui para a compreensão dessas
novas modalidades de ser dos tempos atuais. Atravessados pela
cultura, os pais são os primeiros a apresentá-la para a criança
em constituição. Assim, os efeitos desse encontro primordial
terão, necessariamente, esse colorido próprio da cultura na qual
estão inseridos. Por outro lado, a singularidade desse encontro
dará uma forma única e peculiar ao destino do sujeito frente às
demandas de sua vida.
Seguindo esse raciocínio, observa-se que se por um lado a
civilização é a responsável por estabelecer “diques culturais” que
permitem o sujeito viver em sociedade, já no âmbito individual,
os pais são peças fundamentais em termos de estruturação
psíquica para que os diques sejam constituídos, dando ao ego
as primeiras condições necessárias para postergar a satisfação
(Freud, 1929/1977). Em ambos os casos, estão presentes
ferramentas de regulação que oferecem um “freio” aos impulsos,
viabilizando o convívio entre os pares.
No texto Totem e Tabu, Freud (1913/1977) apresenta uma
interessante metáfora para pensar o complexo de Édipo sob uma
outra perspectiva. Ali, essa conflitiva é comparada a um sistema
de governo no qual o ministro – mãe – deverá ser o mediador
que facilita o acesso do súdito – bebê – ao governador – pai.
Quando essa mediação fica impedida, também fica impedido
ao súdito o acesso à identificação com esse governante,
fundamental para o seu crescimento. Tomando esse modelo
para uma leitura da contemporaneidade pode-se pensar que
em uma cultura na qual não se quer perder o lugar soberano, ao
contrário de viabilizar o crescimento e futuro alcance de novos
lugares próprios ao súdito, o governante tem uma necessidade
regressiva de se manter no lugar de “Totem”, apresentando-se
como inquestionável, completo e exercendo um apoderamento
narcísico do outro. Igualmente o ministro – mãe – também pode
se utilizar de seu papel de mediador para se manter em um lugar
narcisicamente inflado deixando o súdito – bebê – engessado
em termos de movimentação psíquica. Assim, podem se
apresentar dificuldades não só no acesso ao governante – pai,
como também, na forma pela qual esse governante marca
seu lugar de poder, oferecendo-se ou não como um objeto de
identificação ao súdito – bebê. A “outra face da mesma moeda”
pode ser constatada em uma inversão de papéis e funções, tão
característica da contemporaneidade, na qual é o bebê que
ocupa o lugar totêmico, no sentido de ser quem detém o poder,
cabendo aos pais fazer tudo para que essa ilusão de completude
se perpetue. Nesse contexto, Mayer (2001) refere que, hoje,
se percebe um número maior de pais que se preocupam mais
em encher seus filhos com objetos de última geração do que
em proporcionar-lhes um espaço na sua vida anímica, onde
poderiam se desenvolver como seres diferenciados. Esses pais
buscam, a qualquer preço, impedir o registro de falta no seu
filho idealizado, dificultando a possibilidade de estruturação
do desejo infantil, fundamental para o desenvolvimento
humano, para o reconhecimento e para o amor ao semelhante.
No delicado equilíbrio entre a oferta de objetos de consumo
e o acesso ao reconhecimento da falta, muitos pais tratam de
apagar a complexidade inerente a estes processos acreditando
que a oferta de bens materiais possa ocupar importante espaço
no processo de construção subjetiva dos filhos. Sobrepõemse, desta forma, o que é da ordem da necessidade parental de
manutenção de uma ilusória completude àquilo que próprio
da condição de acesso ao campo do desejo via necessário
reconhecimento da própria incompletude.
Ao encontro dessas proposições, Kehl (2009) salienta que
atualmente muitos pais se sentem fragilizados com relação
aos seus próprios ideais e, então, colocam nos filhos toda a
expectativa e a aposta de serem eles próprios reconhecidos
por meio do desempenho dos filhos. A fragilidade do pai
imaginário contribui para o surgimento de crises depressivas
nos adolescentes, bem como o agravamento do estado de
desânimo frente à vida daqueles estruturalmente deprimidos.
“As crianças ocupam um lugar ambíguo na cultura: como ideal
do gozo (perdido) de seus pais, mas também, paradoxalmente,
111
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 107-113
como investimento no ‘mercado de futuros’. Essa espécie de
duplo vínculo em que a criança está inserida faz com que os pais
procurem, ao mesmo tempo, satisfazê-la plenamente (como se
isto fosse possível) para maximizar sua felicidade, e estimulá-la
ao máximo a fim de desenvolver desde cedo as potencialidades
que deverão garantir uma boa colocação na disputa acirrada do
mercado de trabalho. Como essas práticas educativas e amorosas
são recebidas do ponto de vista do bebê? Como excesso de
demanda” (Kehl, 2009, p. 276).
Como efeitos dessas configurações familiares atuais,
evidenciam-se padecimentos oriundos da falta de sustentação
do lugar parental de autoridade e de responsabilidade na
criação dos filhos. Constata-se, da parte de muitos pais, a
indisponibilidade de cuidar amorosamente de sua prole no
sentido da presença de uma não abertura de espaços em
suas vidas para os filhos. Por outro lado, observam-se filhos
superinvestidos narcisicamente, representando a única esperança
de recuperação narcísica dos pais (Kehl, 2001). Ambas posições
mantém os pais desautorizados no exercício de suas funções, na
medida em que se submetem a fazer tudo que lhe é solicitado ou
ignoram o que lhes é demandado. Assim, rompem-se barreiras
de uma assimetria necessária ao genuíno cuidado com o outro.
Essa dinâmica no campo intersubjetivo traz consequências
significativas na fragilidade ou falência das funções parentais,
bem como aporta efeitos relevantes no processo de construção
subjetiva dos adolescentes. Na ausência da fala e/ou de um
olhar em relação à singularidade das demandas do filho, muitas
vezes acabam os pais “apresentando” um modelo do descuido
e de substituição do desejado pelo que pode ser facilmente
alcançado e obtido. Seja na ausência do exercício de uma função
paterna amorosa que tem como sustentação o cuidado, seja na
imposição de modelos narcisistas nos quais os filhos representam
ideais de completude, o desamparo marca presença. Em ambas
as situações, seja na indisponibilidade ou na desautorização
dessas funções, a impossibilidade do reconhecimento das
diferenças repercute na fragilidade e precariedade da condição
dos jovens se posicionarem frente às exigências de suas vidas. Na
medida em que se preserva a assimetria e a condição de cuidado
entre pais e filhos, também se dá espaço à inscrição da falta e do
desejo como possibilidade frente à incompletude. Nessa direção,
Cardodo e Savietto (2006,p.40) asseveram que “a fraqueza
do poder e da ordem simbólica com a conseqüente privação
de possibilidades de mediação, assim como a precariedade, a
instabilidade, a vulnerabilidade, a incerteza e a insegurança
inerentes ao atual mundo ocidental, parecem contribuir para a
intensificação e a manutenção da re-vivência do desamparo na
adolescência, assim contribuindo para o incremento do recurso
às passagens ao ato”.
Sendo assim, se evidencia a necessidade do jovem
experimentar um modelo de relação com as figuras parentais que
lhe ofereçam as condições necessárias para poder usufruir da sua
condição adolescente. Sobre isso, Monteiro (2011) entende ser
fundamental que o adolescente conte com um ponto de partida
sólido, para garantir que essa referência se constitua como o
balizador para o seu caminho de descobertas. A autora ressalta,
porém, que a característica itinerante da adolescência pode ter
uma direção a favor ou não da vida, já que a qualidade das vias
tomadas como itinerário deve ser considerada. Itinerário este
que em muito conta das experiências vividas pelos adolescentes
nos primeiros momentos das suas vidas, pois é a partir delas
que o jovem tem viabilizada a condição de aproveitar a jornada
adolescente no melhor que ela possa significar.
Considerações Finais
Abordar o processo adolescente exige que se amplie o
olhar a fim de contemplar temáticas referentes à experiência
no cenário biológico, social e psíquico. Assim, à complexidade
própria dessa idade da vida, somam-se aspectos essenciais
da contemporaneidade que exercem inegável influência no
processo de constituição do sujeito nos dias de hoje.
Na vigência de tempos nos quais o efêmero, a fragmentação,
a frágil ou ausente demarcação de espaços impõem seus
efeitos no processo de constituição psíquica e na produção de
subjetividades, cabem questionamentos à relação existente
entre adolescência e o exercício contemporâneo das funções
parentais. Ao considerar que em um tempo primeiro podese receber um legado cuja função de fundante vai possibilitar
um posterior questionamento, entende-se que, no caso da
adolescência, o amparo e o cuidado recebido, via exercício
das funções parentais, viabiliza que, em um segundo tempo,
o jovem possa experimentar-se em novos investimentos e
condições. Logo, a qualidade do encontro primeiro é fundante de
recursos que serão exigidos do adolescente frente a intensidades
de reedições e conflitivas com as quais se depara nesse tempo
de transição ao mundo adulto. As relações que marcam o campo
intersubjetivo encontram na adolescência um importante
tempo de ressignificações. Nesta idade da vida, as condições de
investimentos psíquicos, tanto no campo endogâmico quanto
nos espaços da exogamia, contam de uma história passada e
assinalam as condições ou precariedades dos investimentos no
devir. Ao abordar as condições da cultura contemporânea e seus
112
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efeitos na construção da subjetividade é inegável a constatação
do papel relevante destinado ao percorrido identificatório. A
necessidade humana de inscrever e elaborar as experiências
decorrentes do registro da falta como condição de acesso à
alteridade fica plenamente exemplificada nas conflitivas que
marcam a adolescência. Mais do que associar a adolescência a
um tempo de fragilidade psíquica, trata-se de pôr em evidência
as condições de abertura que marcam as proposições da
Psicanálise a respeito da singularidade desta etapa da vida.
As relações experenciadas com as figuras parentais formam
parte fundamental do processo de subjetivação. Logo, a qualidade
psíquica do ofertado por estes tem muito a ver com os sentidos
que vão dando contorno ao si mesmo do adolescente. Nesta
travessia para a adultez, passa a ser da ordem do desamparo e
da dor psíquica a experiência de se confrontar com a ausência de
um olhar que assegure as diferenças geracionais e as condições
de vivenciar investimentos de amor e respeito às diferenças.
Frente a significativas demandas contemporâneas de
autocentramento e performance, torna-se importante um
exercício de constante reflexão sobre a necessidade do sujeito de
experenciar este lugar de ser objeto amoroso de outro, como um
ponto essencial à produção de sua condição humana. A maior
liberdade que a adolescência pode possibilitar é no sentido
de que o jovem construa, no tempo presente, uma reserva de
capital pulsional que lhe permita investir em um tempo futuro, a
partir de um existir ético e autônomo.
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Recebido em agosto/2011
Reformulado em setembro/2011
Aceito em outubro/2011
113
R E L ATO D E E X P E R I Ê N C I A
Masculinidade em xeque: reflexões sobre uma experiência
em grupo de homens
Masculinity in check: reflections on an experience in a men’s group
Breno Irigoyen de Freitasa*, Rodrigo de Oliveira Machadob,
Helena B. K. Scarparoc
Resumo: O artigo relata e analisa uma experiência realizada em 2009 na qual se estabeleceu a participação
e observação do grupo “Movimento Guerreiros do Coração”. Tal Grupo iniciou suas atividades em 1993 e
estuda as possibilidades do masculino na contemporaneidade, com ênfase nas relações ao longo da vida
e do desenvolvimento da masculinidade. Desse modo, tem como proposta refletir acerca da identidade
do homem, dos rituais da masculinidade e da sua integração com outras instancias do self. A análise
de registros das observações em diários de campo indicou constantes questionamentos voltados às
desconstruções que os fenômenos contemporâneos impõem aos papéis e expectativas sociais para os
homens na atualidade. Também se pode observar que o clima de aceitação das diferenças favorece o
contato reflexivo com os sentimentos e possibilitam a construção de novas relações e redes de apoio.
Palavras-chaves: Identidade masculina; Masculinidade; Self-dialógico
Abstract: The article describes and analyzes an experiment conducted in 2009 which established the
participation and observation of the group “Movement Warrior of the Heart.” This group started its
activities in 1993 and is exploring possibilities in the contemporary male, with an emphasis on lifelong
relationships and the development of masculinity. So, has the purpose to reflect on the man’s identity,
rituals of masculinity and its integration with other instances of self. The analysis of records of daily
observations in the field indicated constant questioning turned to contemporary deconstructions that
the phenomena require the roles and social expectations for men today. We can also see that the climate
of acceptance of differences favoring the contact with the reflective feelings and enable the construction
of new relationships and support networks.
Keywords: Male identity; Masculinity; Self-dialogic
a Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
*E-mail: [email protected]
b Graduando em Psicologia pela FAPSI/PUCRS; Bolsista de Iniciação Científica BPA/PUCRS no Grupo de Pesquisa Fundamentos e (b)
Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
c Professora; Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
114
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120
As marcas de modelos hegemônicos de masculinidade
estão presentes em diferentes espaços sociais. Como decorrência
as ações voltadas para a saúde do homem são fortemente
atravessada pelas questões de gênero. A compreensão da
constituição desses modelos é fundamental para o surgimento
de novas relações do homem com a perspectiva de autocuidado.
Desse modo, a implementação de políticas de saúde voltadas
para os homens implica a consideração das especificidades dos
processos de construção de espaços e modos de ser masculinos
em nossa sociedade.
A Revolução Industrial, por exemplo, foi vetor de uma
série de transformações nas relações sociais. O período
que a antecedeu era pautado por relações comunitárias e,
conseqüentemente, outras formas de organização apoiadas
no sentido de pertencimento e na manutenção de relações de
cuidado coletivo (Bauman, 2003). Com a revolução industrial
as relações comunitárias cederam espaço à lógica individual,
delineando um sujeito como foco no trabalho e nas obrigações
e responsabilidades individuais relativas a ele. Assim processos
de individualização transcorreram visando à manutenção de
uma maneira de produção, marcada pela aproximação de
corpos (cidades) e afastamento das pessoas (tornando-os em
indivíduos).
A partir dessa compreensão fica mais fácil entender o
pensamento de Nolasco (1995) que afirma que a crise do
homem frente à desconstrução da identidade masculina está
diretamente relacionada na literatura e nas ciências humanas
com a crise do individualismo. O resultado da radicalização
do individualismo é, segundo o autor, um “homem que se
vê remetido a si mesmo, buscando o encontro com a própria
singularidade e sua capacidade de diferenciação como única
possibilidade de situar-se diante de um mundo pluralizado”
(p.15).
A crise de identidade masculina mencionada pelo autor
não tem sido suficiente para que se desconstituam alguns
marcadores identitários formulados para os homens na nossa
sociedade. Podemos citar como exemplo, a individualidade,
em conjunto com a competição, hierarquia, proezas sexuais,
racionalidade, distância emocional, dominação e a força corporal
(Haenfler, 2004).
Em pesquisa publicada recentemente por Nascimento
e Gomes (2008) acerca dos discursos de homens jovens
sobre papéis sociais vinculados ao masculino, constatou-se a
preponderância do papel de provedor (ligado ao trabalho e à
família), de dominador (vinculado ao poder e à obtenção de
privilégios materiais e culturais em detrimento as mulheres) e
de cuidador (tanto de si, como da família) numa perspectiva
heterossexual. Embora tais ideias se encontrem de acordo com
o modelo hegemônico de masculinidade, foi possível perceber
que pequenas mudanças se fizeram presentes nos discursos
destes jovens examinados. Os autores ressaltamque enunciados
referentes à questão “o que é ser homem” denotam a produção
de espaços para interlocução com outras possibilidades de
masculinidade.
A importância desses movimentos dialógicos, para que
ocorram melhores resultados no que tange ao autocuidado
do homem, move este trabalho para o objetivo de analisar
as diferentes posições acerca da masculinidade. Para isto foi
observado um grupo de homens que questiona o ser masculino
na atualidade.
Self dialógico e saúde masculina
Connel (1995) analisou o conceito de masculinidade e, ao
passar por definições de diferentes correntes do pensamento,
propôs um conceito que se estrutura com base nas posições
entre as relações de gênero, as práticas pelas quais homens e
mulheres se comprometem com estas posições e os efeitos
destas práticas no campo do corpo, personalidade e cultura.
O autor apresenta ainda a comparação entre os modelos de
masculinidade hegemônica e a marginalizada, no qual se
constrói padrões que definem o que torna alguém masculino e
se dispensa outros fatores, tendo estes como depositários únicos
para o sexo feminino. A elaboração destes modelos permite
que em alguns momentos haja transição, desta forma ficando
permitido ao “masculino alfa” se aproximar da masculinidade
subordinada/marginalizada. Outro item que o autor destaca
é que a masculinidade hegemônica não possui um eixo fixo e
uniforme no tempo e espaço, isto é, a hegemonia é mutável
e dentro da dominação cultural de cada território se moldam
novas estruturas hegemônicas.
Rocha-Coutinho (2006) afirma também, nessa mesma
perspectiva, que o sujeito contemporâneo parece manter
uma duplicidade no que diz respeito às identidades que
continuamente se formam e se transformam, mudanças essas
que se moldam frente às representações do mesmo nos sistemas
culturais no qual está inserido. Homens e mulheres aparentam
alternar entre atitudes “modernas” e “tradicionais”, sendo as
primeiras, atitudes esperadas pelos novos papéis e posições
e as segundas relativas às antigas identidades masculinas e
femininas.
Dentre as atitudes ”modernas” poderíamos mencionar as
115
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120
transformações vividas por homens e mulheres na atualidade.
Por exemplo, é atribuído um valor positivo à conquista, por
parte das mulheres, da possibilidade de inserção no mercado de
trabalho, enquanto a escolha por parte dos homens pelo terreno
doméstico é socialmente desvalorizada. Essa distinção de valores
está presente inclusive nas classes médias intelectualizadas, nas
quais a expressão do “lado feminino” pode estar ligada a uma
desvirilização do homem (Rocha-Coutinho, 2006).
Ao tratar das questões relativas à formação das identidades
masculina e feminina Rocha-Coutinho propõeo conceito de
duplicidade, através do qual se habilita a alternância entre
modelos tradicionais e modernos de masculinidade. Tal conceito
pode ser associado à noção de self dialógico que insere a relação
como elemento fundamental da existência humana. Esta nova
abordagem teórica dissolve o conceito de um self estruturado,
centralizado e de difícil mudança e postula a idéia de um self
descentralizado, narrativo e em movimento, isto é, o self passa
a se caracterizar pelo constante processo de mudança (Santos
& Gomes, 2010). Ainda transitando pelo campo das relações
teóricas se percebe a aproximação da dominância existente
entre o modelo hegemônico e marginalizado de masculinidade
e a sua alternância, conforme apresentado por Connel (1995),
com o movimento de posições proposto pelo selfdialógico.
A perspectiva dialógica considera que a criação de
significados ocorre a partir da comunicação e da relação
existente entre um centro, o Eu, e a periferia, que se refere a tudo
aquilo que não faz parte desse centro, o Outro. Desta forma,
a construção da identidade, assim como o conhecimento, é
resultante da interação subjetiva onde o sujeito estabelece o
diálogo com os outros, estando estes presentes ou não (d’Alte,
Ferreira, Cunha & Salgado, 2007).
Se considerarmos a premissa dialógica, o self transita entre
posições externas e internas. As posições externas se referem às
vozes oriundas de pessoas do seu contexto social, enquanto as
internas dizem respeito aos diferentes papéis que constituem o
indivíduo como é o caso do papel de pai, filho ou marido. Cabe
salientar que as construções narrativas das posições externas não
correspondem necessariamente à realidade, ou seja, a narrativa
pode ser na sua integralidade fruto da imaginação do sujeito
(Santos & Gomes, 2010).
O dialogismo por si não exclui modelos monológicos,
ou seja, discursos absolutos que busquem a anulação do
posicionamento dos seus interlocutores. O ponto que pode gerar
discursos monológicos não está vinculado ao conteúdo deste,
mas sim ao tipo de relação que estabelece entre o Eu e o Outro
(d’Alte et al., 2007). Conforme Hermans (2001), a relação entre
as posições responde a uma hierarquia momentânea, onde
em alguns instantes as posições se configuram estereotipadas
e acabam por excluir narrativas que configurem oposição ao
que se apresenta dominante e de menor valência na relação de
poder.
A partir do instante em que ocorre uma monitoração
dessas diversas posições do eu se cria uma outra que ocupa
espaço especial dentro do self. Esta, intitulada de metaposição,
tem como característica reunir os diversos posicionamentos
do self e ao mesmo tempo manter uma distância que permite
analisar e avaliar o repertório de posições que o individuo detém
(Hermans, 2001).
Refletindo sobre a identidade masculina sob a luz do self
dialógico é possível comparar a formação das identidades
masculina e feminina tradicional e moderna com a construção
do self dialógico, pois ambas têm caráter relacional, ou seja,
partem da existência de um Eu e de um Outro em interação
constante (d’Alte et al., 2007).
Entretanto, as perspectivas de entendimento do self
masculino, ainda calcadas no modelo hegemônico de
masculinidade ocidental, trazem consigo a premissa de
invulnerabilidade e exposição a comportamentos de risco, o que
reflete diretamente na relação entre masculinidade e políticas de
saúde (Figueiredo, 2005). Ambas as questões contribuem para
que haja agravo na saúde masculina, porém mesmo existindo
indicadores de morbimortatilidade que assinalam o cuidado
que os homens necessitariam ter com a saúde não é averiguada
proporcionalmenteuma procura destes pelos serviços de atenção
à saúde disponível na rede (Laurenti, Mello-Jorge & Gotlieb,
2005).
Os dados sanitários, que revelam alta mortalidade de
homens e alto adoecimento de mulheres demonstram que
mesmo havendo maior mortalidade de indivíduos do sexo
masculino estes não se encontram entre os casos relatados de
adoecimento na mesma proporção, categoria onde as mulheres
obtêm maiores índices (Laurenti, Mello-Jorge & Gotlieb, 2005).
O resultado desta desproporcionalidade pode ser devido à baixa
procura por atendimento, por parte dos homens, resultando
que os mesmos cheguem nos serviços de saúde em um estado
de adoecimento mais agravado ou até mesmo não terem este
atendimento, enquanto que as mulheres investem no cuidado
inicial e preventivo.
A partir do reconhecimento que “agravos do sexo masculino
constituem verdadeiros problemas de saúde pública” (Ministério
da Saúde do Brasil, 2008, p.3), foi elaborada a Política Nacional de
Atenção Integral a Saúde do Homem (PNAISH). Essa nova política
116
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de saúde tem como objetivo promover ações de saúde que ajudem
a compreender a realidade singular masculina em seus contextos
sócio-culturais e político-econômicos. Espera-se que estas ações
contribuam para o aumento da expectativa de vida e para a redução
dos índices de morbimortalidade por causas passíveis de prevenção
(Ministério da Saúde do Brasil, 2008).
A PNASIH, através de um recorte de amostra de homens
de 25 a 59 anos de idade, relata que existem dois principais
grupos que determinam barreiras entre o homem e os serviços
de saúde: barreiras sócio-culturais e barreiras institucionais. Os
dificultadores sócio culturais estão ligados a estereótipos de
gêneros que têm origem no patriarcado, que reforça diversos
valores e crenças sobre o que é o ser masculino. O principal
obstáculo nesse sentido, destacado no documento, é a crença na
invulnerabilidade (Gomes, 2003; Gomes & Couto, 2005; Keijzer,
2003; Schraiber), que distancia a maioria dos homens do acesso
à atenção primária (Ministério da Saúde do Brasil, 2008). No que
tange ao âmbito institucional, os comportamentos evitativos
e a percepção de não pertencimento e funcionamento desses
espaços de saúde, se apresentam como fatores intervenientes
entre homem e o acesso à saúde.
Em parte, tais comportamentos masculinos de evitação
ao cuidado, mesmo compreendendo a sua necessidade,
se explicam através de outro elemento representativo dos
estereótipos de masculinidade, que é o vínculo entre o cuidado
e a ideia de fragilidade. Os homens percebem o relato de seus
problemas de saúde como uma fraqueza ou vulnerabilidade,
ambos associados ao que reconhecem como comportamento
feminino (Figueiredo, 2005).
No que tange ao autocuidado e procurar auxílio junto
aos serviços de saúde, dados de Gomes, Nascimento e Araújo
(2007) corroboram os de Figueiredo (2005), sobre quais motivos
levavam que houvesse menos procura por parte dos homens
quando comparados com as mulheres. Dentre as respostas se
salientou conceitos do modelo hegemônico de masculinidade
(força, poder, provedor, sexualidade mais ativa, características
biológicas) e de momentos onde sentimentos e conceitos
ligados ao feminino eram vistos como também dos homens,
porém estes últimos sofriam interdições devido à necessidade
de reafirmar o seu gênero frente à sociedade.
Aspectos relativos à organização cotidiana dos serviços
também contribuem para o distanciamento/exclusão dos
homens da atenção à saúde. O primeiro ponto se refere ao
horário de funcionamento, que se torna restritivo aos homens
e mulheres que exercem carga horária de trabalho no mesmo
período que as unidades estão abertas para o atendimento ao
público. A segunda questão é que mesmo quando se rompe
com a premissa de invulnerabilidade e busca o atendimento, se
verifica a insatisfação por não deter locais especializados para a
sua saúde. O sentimento de não pertencimento é justificado pelo
atendimento ser realizado predominantemente por mulheres e
boa parte da demanda gerada ser também ocupada por esta
parcela da população (Figueiredo, 2005).
Movimentos de homens
O impacto das organizações institucionais nas relações
de gênero no campo da saúde é influenciado pelas mudanças
culturais e políticas advindas da década de 60, onde a sociedade
começou a repensar o conceito de gênero e gradativamente
passou-se a reconhecer novas possibilidades identitárias. A
partir da década de 70, surgem atividades organizadas, lutas e
reivindicações de homens com a masculinidade como principal
temática. Estas iniciativas coletivas foram denominadas
movimentos e classificadas por Bonino (1998) em cinco tipos
principais:
- O Movimento Profeminista, ou Antissexista: reconhecem
a responsabilidade masculina diante da perpetuação da
subjugação das mulheres e exercem uma autocrítica sobre o
próprio exercício do poder.
- O Movimento Mitopoético: geralmente composto por
homens brancos heterossexuais, no grupo também estão
presentes movimentos ecológicos e espirituais. Tem como foco o
resgate da “energia masculina” nos tempos de ausência paterna,
também incluindo na sua prática estudos sobre mitos e ritos de
iniciação masculina.
- O Movimento das Terapias da Masculinidade: desenvolvido
por homens preocupados com a “crise” da masculinidade tinha
por objetivo a “reconstrução” e “redefinição” dessa identidade
obsoleta frente às mudanças sociais ocorridas.
- O Movimento Pelos Direitos dos Homens ou Mens Rights:
produto da mistura de homens defensores de direitos patriarcais
e de direitos igualitários, o movimento surgiu diante da crescente
situação social favorável à mulher.
- O Fundamentalismo Masculino: formado por homens
tradicionais, defendem os velhos papéis de macho, autoridade
e provedor e de fêmea, dona de casa, perpetuando ideais de
dominação masculina.
Segundo Bonino (1998), os movimentos de homens citados
tentam responder à pergunta “o que é ser homem hoje?” tendo
como ponto de partida a masculinidade como algo a transformar
ou conservar e não algo naturalmente garantido. Todos eles,
117
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direta ou indiretamente, representam um posicionamento frente
às mudanças sociais decorrentes do feminismo. Nesse relato,
avalia-se a experiência em um desses grupos que questiona o
ser homem na contemporaneidade.
dados percebidos no encontro. Posteriores ao relato descritivo mais
abrangente eram registradas entre aspas as falas lembradas de forma
literal. As notas reflexivas presentes nesse relato foram sublinhadas
visando serem retomadas no momento de análise do material.O
material coletado foi analisado sob a vertente teórica do selfdialógico
Contexto da experiência
e dos estudos de gênero no que diz respeito à construção da
masculinidade e seus reflexos no âmbito da saúde, constatando
Como citado anteriormente, o objetivo deste relato os diferentes posicionamentos identitários que estes homens
de experiência é analisar as diferentes posições acerca da expressavam em seu discurso.
masculinidade dentro de um grupo de homens. Visando
atender este objetivo se tomou o grupo Guerreiros do Coração
Discussão
como objeto de estudo. A escolha desse grupo como foco de
análise deveu-se à sua proposta de reflexão acerca da identidade
Analisando a base teórica dos temas trabalhados no grupo,
masculina e seus rituais de funcionamento.
bem como seu método de trabalho, é possível compreender o
Este grupo iniciou suas atividades em Porto Alegre no funcionamento desse grupo dentro dos Movimentos Coletivos de
ano de 1993, surgindo, conforme seus criadores, a partir da Homens descritos por Bonino (1998) anteriormente. Podemos
necessidade de autoconhecimento masculino. Tais inquietações situá-lo como relacionado aos Movimentos Mitopoéticos e aos
propiciaram a criação de um grupo de apoio e reflexão, composto Movimentos das Terapias da Masculinidade visto que coincide
exclusivamente por homens, interessados em discutir as novas com a perspectiva espiritualista e ecológica do primeiro e
configurações da masculinidade e suas implicações na vida valoriza, assim como o segundo, a reconstrução ou a redefinição
pessoal e familiar contemporânea (Pozatti, 2007).
da masculinidade frente às mudanças sociais. O tema da
O grupo tem como objetivos formais, o estudo das bases construção de relações mais saudáveis entre homens e mulheres,
teóricas físicas, psíquicas, culturais, sociais e espirituais da presente no “Guerreiros do Coração” também se encaixa no perfil
realidade e da consciência do masculino. Estuda também as da segunda categoria citada acima.
relações durante a sua vida, desenvolvimento do homem,
A temática mais discutida nos encontros foi a vinculação
utilizando-se de vivências e momentos de partilhas onde os da identidade masculina com os relacionamentos evolutivos
participantes podem partilhar experiências e sentimentos acerca de caráter educacionais estabelecidos com os pais, na história
do seu próprio desenvolvimento (Pozatti, 2007). O primeiro ciclo de vida dos participantes. Nessas discussões predominavam
aborda temas como a relação do homem consigo mesmo, com falas que referiam à ausência do pai no que tange ao cuidado
seu pai, com seus amigos, com as mulheres, com sua família, e convivência diária, porém registra-se que a decisão e punições
com suas polaridades masculinas e femininas e com a natureza. mais rígidas ficavam a cargo da figura paterna. Para Osherson
Os componentes em sua maioria têm como formação (1992), o pai é, geralmente, o referencial masculino primordial
mínima o ensino médio, porém o perfil dos participantes do na vida de um homem e o resgate do afeto na relação com
grupo é heterogêneo no que diz respeito à área de atuação ele pode significar uma oportunidade de olhar sob uma nova
profissional e idade, contando com homens de 18 até 70 anos. perspectiva suas relações masculinas. Segundo o autor, o
Os novos participantes geralmente chegam ao grupo por reconhecimento desse afeto contribui para uma flexibilização da
indicações de familiares ou amigos próximos que tiveram contato visão sobre a masculinidade. Keen (1991) também cita o resgate
com as atividades. O grupo conta com uma sede própria, a qual de uma relação de amorosidade com o pai como um movimento
é subsidiada pelo valor pago pelos componentes do Movimento. de reconstrução dos mapas identitários da masculinidade.
Embora não haja um número mínimo de participantes para
A transição entre o modelo hegemônico de masculinidade
formar o grupo, estes costumam ter entre 6 e 20 homens.
e as formas marginalizadas desta também se encontra nas
A participação dos estudantes de psicologia no grupo ocorreu narrativas expostas no grupo, principalmente no que diz
em 6 oportunidades, nas quais os participantes foram devidamente respeito ao questionamento da virilidade e do machismo
avisados da presença destese concordaram em compartilhar as suas como equivalente da identidade sexual. Nesse sentido, muitas
experiências com os acadêmicos. Logo após o término dos grupos, discussões versaram sobre as rupturas com os modelos
os diários de campo eram preenchidos com todas as vivências e tradicionais familiares de masculinidade. Eventos sociais
118
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estereotipadamente reconhecidos como campo dos homens,
tais como os jogos de futebol, preparo de churrasco aos
domingos eram vistos no grupo como pontos de encontro
em que se demarcavam o modelo hegemônico. Durante a
revisão destas memórias e o questionamento de sua valência
se formavam outros significados, estes já permeados por uma
maior flexibilidade.
Os posicionamentos denotam as características do self
como sendo algo a ser analisado dentro da perspectiva temporal
e situacional, nas quais posições dominantes ou subordinadas
se cruzam em uma rede dialógica, intra e interpessoal de
significados (Hermans, 2001). Esta maneira de compreender
a identidade ultrapassa a redução do conceito do self às
autoimagens fragmentadas e entende que as experiências
momentâneas da vida proporcionam novas subjetividades, não
separadas das anteriores, e sim fechando uma unidade inteira e
não hegemônica com estas (Salgado & Hermans, 2005).
No estudo de Bornholdt, Wagner e Staudt (2007), também
no contexto gaúcho, são relatadas novas posturas masculinas
frente à paternidade, que ilustram sintonia com o que foi
trabalhado nos encontros grupais. Foram constatadas vontades
por parte desses homens referentes à inclusão e participação no
processo de gestação dos seus filhos. Questões sociais também
são apontadas, tais como a imagem do pai como principal
provedor da família e tendo um papel periférico ou secundário
nas suas relações com seus filhos. Bornholdt, Wagner e Staudt
(2007) ainda apontam a coexistência de modelos masculinos
relacionados com a paternidade na atualidade, exemplificados
por desde posturas evitativas até envolvimento intenso com a
experiência de ser pai.
Ao acompanharem-se as sessões de grupo, tornou-se
evidente o jogo de posicionamentos e reposicionamentos pelo
qual os participantes passam. Estão presentes o reconhecimento
de falas provenientes do modelo hegemônico masculino,
caracterizados pela não expressão de afeto, a busca por uma
forma de se relacionar mais condizente com um modelo de
masculinidade marginalizado, ou seja, que inclua a afetividade
na relação entre indivíduos (Salgado & Hermans, 2005).
Outro ponto levantado no grupo diz respeito à carência
nas relações de amizade. O relato dos homens apontava que
o atravessamento do modelo hegemônico como instituinte de
vínculos acabava por produzir relações distantes de amizade.
Estes não permitem compartilhar para além das relações
masculinas enrijecidas. Enquanto que no grupo, as trocas de
experiência e sentimentos ocorrem de maneira mais fluida.
Essa observação reforça a posição do modelo hegemônico
como tentativa de discurso monolítico que visa suprimir outras
posições (d’Alte et al., 2007).
Os grupos observados denotam a criação de um espaço
dialógico, ou seja, se configura em um encontro que favorece
a reflexão mútua dos integrantes. Neste item a presença dos
facilitadores, componentes mais antigos do grupo, proporciona
uma nova posição externa frente ao self dos demais participantes.
Essa posição externa adotada pelos facilitadores tem a função de
metaposição, a qual auxilia na análise do discurso e na avaliação
dos modelos de masculinidade. Posteriormente os componentes
do grupo, através do treino de deslocamento de posições e da
autorreflexão acerca delas, tendem a realizar esta metaposição
sem o auxílio dos facilitadores e incorporá-las a sua vida
(Hermans, 2001).
Considerações finais
No cenário montado neste trabalho, figuram homens em
desencontro com a sua masculinidade e homens em busca
da reconstrução desta, que obtém como resultado parcial o
afastamento destes dos serviços de saúde e cuidado. A inclusão
de um grupo de homens que reflitam sobre a identidade
masculina dentro da saúde pública, em especial nas Estratégias
de Saúde da Família (ESF), pode gerar melhoras não somente
nos homens que dele participam como da comunidade local,
isto devido às potencialidades de vínculo encontradas nas
ESF visto que prestam serviço sempre à mesma população de
determinado território. A concentração destas reflexões, em
um espaço delimitado e com pessoas deste espaço, podem
contribuir para que mudanças ocorram nesta localidade e que
os modelos para as novas gerações se constituam mais flexíveis.
O Ministério da Saúde ao abordar a temática dos homens
e saúde, através da Política Nacional de Atenção Integral a
Saúde do Homem, consegue traçar elementos importantes
para que haja mudanças neste cenário. Porém, o paradigma
da masculinidade, que se configura como fator essencial a ser
analisado, ainda apresenta carências no que tange a práticas
efetivas dentro dos serviços.
Reconhecer os significados pertencentes ao ser homem
na contemporaneidade, principalmente desta dificuldade em
se abrir para o contato com outras formas de masculinidade,
acarreta na busca por intervenções que não pautem pedagogias
acerca da saúde, mas que provoque movimentos de abertura
para outras possibilidades de se reconhecer como homem. O
grupo Guerreiros do Coração se insere na linha de tais mudanças,
tendo comprovado nos depoimentos que o trânsito entre as
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 114-120
posições reflete em aspectos gerais da vida dos sujeitos que dele
participam. Com isso questões que formam barreiras de acesso
ao homem entrar em contato consigo mesmo, inclusive com a
sua saúde, acabam sendo flexibilizadas.
A perspectiva de posicionamento e reposicionamento do
self, da teoria de Hermans (2001) contribui com a compreensão
da construção e significação do modelo hegemônico de
masculinidade como tentativa de impregnação de relações
monológicas no campo social. Também demonstra a validade de
espaços de discussão com este propósito, que fomentam novas
possibilidades do homem frente à sua masculinidade.
Por fim, ao analisar de forma ampla as questões debatidas
neste texto esclarece-se que grupos que tratem sobre
masculinidade se configuram como passo importante no
cuidado da saúde de homens. Além destes espaços para reflexão
são necessárias estratégias que estejam de acordo com o modus
operandi da contemporaneidade, por exemplo, estipulando
horários mais acessíveis de atendimento e profissionais
capacitados acerca do tema.
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Recebido em setembro/2011
Revisado em novembro/2011
Aceito em dezembro/2011
120
RESENHA
Florecer: uma nova compreensão sobre a natureza da
felicidade e do bem-estar (362p.)
Martin E. P. Seligman
Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2012
Tânia Rudnickia*
O livro Florecer é produto da experiência e conhecimento do prof. Martin Seligman, autor de bestsellers como Felicidade autentica e Aprenda a ser otimista. Ph.D. em Psicologia nos Estados Unidos, é
referenciado por livros sérios e competentes de diferentes áreas do saber. É um dos fundadores de um
novo ramo da Psicologia, a Psicologia Positiva, um interessante campo de investigação e intervenção.
Historicamente, a preocupação da Psicologia foi investigar doenças, deixando de lado os aspectos
saudáveis dos seres humanos. A partir de 1998, Seligman, assumindo a presidência da American
Psychological Association (APA) iniciou um movimento denominado Psicologia Positiva, cujo objetivo
foi oferecer uma nova abordagem às potencialidades e virtudes humanas, estudando as condições e
processos que contribuem para a prosperidade dos indivíduos e comunidades (Paludo & Koller, 2007).
Assim sendo, ele apresenta uma nova e revolucionária tese sobre o tema da psicologia positiva,
partindo do princípio que sua especialidade deve ir além do alívio ao sofrimento humano, mas também
busca elevar o padrão da qualidade de vida individual e coletiva. Além do papel de tratar psicopatias
e estados psicológicos negativos, a Psicologia também teria importante contribuição a dar para o
desenvolvimento pessoal dos indivíduos, comunidades e nações inteiras (Yunes, 2003).
a Psicóloga; Doutora em Psicologia (PUCRS); Diretora Científica da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul/SPRGS.
*E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 12(1) | Jan/Jul | 121-123
Seligman elege como alvo de prioridade o estudo
das emoções positivas, ou seja, dos fatores que levam as
pessoas a ter mais felicidade, ao invés de centrar seus estudos
nos transtornos mentais, como de praxe na Psicologia. Importa
ressaltar que pesquisas envolvendo a teoria da Psicologia
Positiva são importantes para o conhecimento e a transformação
da nossa realidade, onde as demandas requerem produção de
conhecimento científico aplicável, principalmente no que se
relaciona a área da saúde. Desta forma, a contribuição da mais
nova publicação de Seligman, Florecer, responde a peculiaridades
nacionais, onde o trabalho de psicólogos, no campo relacionado
à saúde é relativamente novo e necessita ser mais estudado,
buscando aprimoramento constante nos serviços prestados
(Miyazaki, Domingos & Valério, 2006).
Em seu livro Felicidade autentica, assenta a teoria da Psicologia
Positiva sobre três pilares: estudo das emoções positivas, estudo dos
traços positivos, principalmente as forças e virtudes, e, finalmente, o
estudo das instituições positivas – democracia, liberdade, família,
todos que sustentam as virtudes, as quais, por sua vez, sustentam
as emoções positivas. O livro Florecer: uma nova compreensão
sobre a natureza da felicidade e do bem-estar (2011) mostra o
amadurecimento dos conceitos e compreensão do campo da
teoria. Nesta obra, o autor permeia a discussão sobre a interface de
Felicidade Autentica, aprofundando, com evidentes contribuições do
conhecimento dos fenômenos psicológicos presentes no contexto
laboral do autor.
A obra resenhada conta com um único autor, sendo o livro
composto por 10 capítulos, um Anexo, contendo o Teste das
Forças Pessoais onde é apresentado um exercício para que o
leitor possa medir suas forças pessoais, além de dois apêndices,
um Agradecimento e o Índice Remissivo. Sua organização segue
o modelo biopsicossocial, buscando mostrar formas de agir e
interagir na área, visando à integração da Psicologia de uma
forma Positiva e voltada aos aspectos mais positivos da vida.
Seligman leva o leitor por âmbitos que concernem à saúde
e ao bem-estar, tanto no campo teórico como aplicado. Mostra
a Psicologia Positiva através de uma importante trajetória de
intervenção: a pesquisa científica, bem como são apresentados
exemplos práticos que ilustram as possibilidades de intervenção.
Os capítulos foram escritos permitindo visualizar a
intervenção sob a ótica do descobrimento licenciado pela
pesquisa científica. A obra transmite aos profissionais psicólogos,
médicos, administradores, coachs, enfermeiros, entre outros,
novos e seguros caminhos por onde empreenderem sua jornada.
É preciso salientar que o primeiro capítulo do livro apresenta um
valioso panorama do percurso do autor, através de uma síntese
dos acontecimentos até chegar à possibilidade de desvendar
caminhos e divulgar sua teoria, talvez com o intuito de realizar
um balanço do próprio desempenho como profissional e
pesquisador, buscando mostrar suas opções ao longo do tempo
e os resultados alcançados, além de buscar delineamentos
futuros.
O autor refere que ao escrever Felicidade Autentica, não
utilizou o titulo que havia pensado, em função dos editores,
não ficando satisfeito com este (Seligman, 2011). Aponta que
a psicologia positiva, do modo como ele a concebe, tem a ver
com aquilo que a pessoa escolhe por si mesmo. Refere que
frequentemente escolhemos o que nos faz sentir bem, mas
é muito importante que percebamos que nossas escolhas
frequentemente não tem a ver com o modo como nos sentimos.
Na teoria da felicidade autentica, a psicologia positiva tem
a ver com a felicidade em três aspectos: emoção positiva,
engajamento e sentido. E cada um destes elementos é mais
bem definido e mais mensurável do que a felicidade. Seligman
apontava então que o tema da psicologia positiva era a felicidade
e o critério de sua mensuração era a satisfação com a vida. Na
obra Florecer, pontua que o tema da psicologia positiva é o bemestar e, o critério para sua mensuração é o florescimento, sendo
então, objetivo primordial da Psicologia Positiva, aumentar esse
florescimento.
O avanço é inegável, tanto na dimensão do aprimoramento
quanto na ampliação do conhecimento. Tal mudança reforça a
importância do posicionamento do autor, tendo em vista que,
no último século, o mundo passou por mudanças radicais,
precisando, desta forma processar novas informações (Blanco,
Rojas & de La Corte, 2000; Straub, 2005).
O livro provoca reflexões a respeito das implicações dos
aspectos psicológicos relacionados à melhora da qualidade de
vida. A teoria do bem-estar é composta por cinco elementos,
que abrangem aquilo que pessoas livres escolherão sendo
que, para ser assim considerado cada elemento deve possuir
três propriedades: 1) contribuir para a formação do bem-estar;
2) muitas pessoas o buscam por ele próprio; 3) é definido e
mensurado independentemente dos outros elementos.
Cada um dos cinco elementos possui estas três propriedades,
sendo eles: emoção positiva, engajamento, sentido,
relacionamentos positivos e realizações. Desta forma, neste
primeiro capitulo o autor analisa cada um destes elementos,
finalizando com o objetivo maior da psicologia positiva na
teoria do bem-estar, qual seja avaliar e produzir o florescimento
humano, sendo que seu alcance começa pelo questionamento
do que realmente faz a pessoa ser feliz.
122
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O capitulo 2 mostra, através de pesquisas cientificas, o
funcionamento de exercícios de psicologia positiva que auxiliam
no aumento de bem-estar, como a Visita de gratidão, Três bênçãos
e exercícios de Forças pessoais. As intervenções psicoterápicas
são apresentadas através de fragmentos de relatos de caso.
O capitulo 3 trata sobre medicamento e psicoterapia; cura
versus alivio de sintomas; exercício sobre resposta ativa e construtiva,
aprendendo a lidar com as emoções negativas, psicologia aplicada
versus psicologia básica. No capítulo 4, o autor discorre sobre
a formação em psicologia positiva aplicada (MAPP) em nível
universitário e sobre quem ensinara o bem-estar. Também aborda
a transformação pessoal e profissional trazendo informações sobre a
utilização da Psicologia Positiva pelo coaching. O capitulo 5 trata do
ensino do bem-estar nas escolas.
A parte dois do livro trata das formas de florescer. Assim, o
capitulo 6 trata de uma nova teoria de inteligência, abordando os
temas Garra, Caráter e Realização e suas formas de Avaliação. Os
capítulos 7 e 8 versam sobre o ensino do bem-estar no exercito
norte-americano. Estes estudos estão voltados ao objetivo de
que os jovens da próxima geração floresçam. Ao escrever sobre
o programa do mestrado em psicologia aplicada (MAPP), na
Universidade da Pensilvânia, trata dos ingredientes da psicologia
positiva aplicada, do conteúdo intelectualmente desafiador,
de como é transformador, pessoal e profissionalmente e como
serve de chamamento para alunos e professores.
O capitulo 9 traz sobre a reviravolta na área medica, escreve
sobre saúde física positiva: a biologia do otimismo. O conteúdo sobre
psicologia da doença traz as origens da impotência aprendida. Relata
algumas pesquisas realizadas entre homens e mulheres e algumas
doenças orgânicas, como a cardiovascular, câncer e sobre a proteção
e bem-estar que o otimismo pode oferecer.
São abordadas teorias e descobertas de pesquisas atuais,
sendo adicionadas tabelas e figuras atualizadas. Para enriquecer
o texto, o autor utiliza exemplos da sua prática pessoal. Suas
pesquisas têm como objetivo construir uma metodologia
em Psicologia Positiva, sendo que os principais temas estão
voltados para a experiência do autor, que aborda as dimensões
do seu trabalho como ciência e profissão, através de narração,
elaboração e reflexões sobre a Psicologia Positiva.
Em suma, encontramos na obra Florecer relevância para
o contexto nacional. Alcança mais adequação na formação
e atuação do psicólogo brasileiro, do que outras produções
redigidas por e para nações já em pleno desenvolvimento social
e econômico.
Esse é mais outro livro que merece ser lido. É um livro de
Psicologia voltado não só para profissionais da área, sendo
interessante frisar a metodologia científica com a qual foram
elaborados os argumentos que levaram à fundação dessa nova
área. Como Felicidade Autentica este não é um livro que fica só
na teoria. Ele fornece exemplos práticos revelando muito sobe
o bem-estar e o crescimento da pessoa. Não poderia deixar de
citar as situações que o autor narra da convivência com seus
filhos, mostrando que muitas destas situações despertaram
nele o momento “de luz” para diversos aspectos da teoria que
explicitava.
Referências
Blanco A. A., Rojas, D., & De La Corte, L. (2000). La psicología y su
compromiso con el bienestar humano. In A. A. Blanco (Org.), Psicología
y Sociedad (pp. 9-46). Valencia: Real Sociedad Económica de amigos
del País.
Miyazaki, M. C. O. S., Domingos, N. A. M., & Valério, N. I. (Orgs.).
(2006). Psicologia da Saúde: Pesquisa e Prática. São José do Rio Preto:
THS/Arantes Editora.
Paludo, S. S., & Koller, S.H. (2007). Psicologia Positiva: uma nova abordagem
para antigas questões. Paidéia, 17(36), 9-20.
Straub, R. O. (2005). Psicologia da Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas.
Yunes, M. A. M. (2003). Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo
e na família. Psicologia em Estudo, 8(num. esp.), 75-84.
Recebido em dezembro/2011
Revisado em janeiro/2012
Aceito em janeiro/2012
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