Africanidades brasileiras e educação

Transcrição

Africanidades brasileiras e educação
Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola
Coordenação editorial
Rosa Helena Mendonça
Diagramação e editoração
Norma Cury
Capa
Daniel Barroca
Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins
Revisão Final
Milena Campos Eich
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Africanidades brasileiras e educação [livro eletrônico] : Salto para o Futuro / organização
Azoilda Loretto Trindade.
Rio de Janeiro : ACERP ; Brasília : TV Escola, 2013.
1,58 Mb ; PDF
2
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-60792-06-1
1. África - História 2. Afro-brasileiros - Brasil 3. Diversidade cultural 4. Educação - Brasil 5. Multiculturalismo 6. Preconceitos 7. Professores - Formação 8. Programa Salto para o Futuro (TV
Escola) I. Trindade, Azoilda Loretto.
13-11695.
CDD-370.117
Índices para catálogo sistemático: 1. Afro-brasileiros e africanos : Diversidade : Educação 370.117
Todos os direitos desta edição reservados à Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto
(ACERP) e à TV Escola (MEC)
Reprodução de textos permitida para fins educativos e desde que citada a fonte.
E-mail: [email protected]
Rua da Relação, 18, 4º andar
CEP.: 20231-110 – Rio de janeiro (RJ)
2013
Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
AFRICANIDADES BRASILEIRAS
E EDUCAÇÃO
Salto para o Futuro
3
Organização
Azoilda Loretto da Trindade
ACERP
TV Escola/MEC
Rio de Janeiro/ Brasília
2013
AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO
Sumário
Apresentação ............................................................................................................ 8
Introdução ...............................................................................................................10
Capítulo 1 – Abordagens gerais sobre multiculturalismo e diversidade
cultural.................................................................................................................18
I. Multiculturalismo ou de como viver junto...........................................................21
Mary Del Priore
II. Por um multiculturalismo democrático ......................................................... ...28
Sueli Carneiro
III. Pluralidade e diversidade .................................................................................. 33
Carla Ramos
IV. Saberes culturais e educação do futuro ............................................................. 39
Edgard de Assis Carvalho
V. Redes de convivência e de enfrentamento das desigualdades............................. 47
Elizeu Clementino de Souza
VI. Diversidade e currículo ..................................................................................... 55
Nilma Lino Gomes
VII. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para
todos ....................................................................................................................... 58
Azoilda Loretto da Trindade
Capítulo 2 – AFRICANIDADES................................................................................... 64
A. Aspectos gerais
I. Africanidades, afrodescendências e educação..................................................... 68
Henrique Cunha Júnior
II. Humilhação, encorajamento e construção da personalidade............................. 80
Azoilda Loretto da Trindade
III. A lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o olhar sobre a presença dos negros no Brasil
e transforma a educação escolar............................................................................ 86
Bel Santos
IV. África viva e transcendente! .............................................................................. 92
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
V. Diversidade étnico-racial no currículo escolar do ensino fundamental ............ 101
Véra Neusa Lopes
VI. O legado africano e a formação docente .......................................................... 108
Marise de Santana
VII. As relações étnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto
político-pedagógico................................................................................................ 119
Lauro Cornélio da Rocha
B. EDUCAÇÃO INFANTIL
I. Valores civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil................................ 131
Azoilda Loretto da Trindade
II. As relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileiras na educação
infantil ................................................................................................................... 139
Regina Conceição
III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira
(uma reflexão)........................................................................................................ 144
Azoilda Loretto da Trindade
5
C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
I. Os quilombos e a educação ................................................................................ 153
Maria de Lourdes Siqueira
II - Quilombo: conceito........................................................................................... 158
Gloria Moura
III. Saberes tradicionais de saúde .......................................................................... 162
Bárbara Oliveira
IV. Organização social e festas como veículos de educação não-formal................ 168
Verônica Gomes
V. Kalunga, escola e identidade – experiências inovadoras de educação nos
quilombos .............................................................................................................. 172
Ana Lucia Lopes
VI. Lei nº 10.639/2003 e educação quilombola – inclusão educacional e população
negra brasileira ..................................................................................................... 178
Denise Botelho
D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS
Documentário: “Africanidades Brasileiras e Educação”......................................... 184
Capítulo 3 – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS – MULTICULTURALIDADES,
DISCIPLINARIDADES E AFRICANIDADES ................................................................. 199
I. Ciência multicultural .........................................................................................202
Ubiratan D’Ambrosio
II. Afroetnomatemática, áfrica e afrodescendência ..............................................208
Henrique Cunha Junior
III. A multiculturalidade na educação estética ......................................................220
Ana Mae Barbosa
6
IV. A Construção estético-cultural de um espaço ..................................................226
Laura Maria Coutinho
V. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre
afro-brasileiros ......................................................................................................232
Heloisa Pires Lima
VI. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural ...........................237
Maria Elisa Ladeira
VII. No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores ...............245
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
VIII. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória iorubá ....................253
Juarez Tadeu de Paula Xavier
IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras ..................................257
Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza
X. Conto popular, literatura e formação de leitores...............................................272
Ricardo Azevedo
XI. Literatura e pluralidade cultural.......................................................................280
Marisa Borba
XII. Novas bases para o ensino da história da África no Brasil ..............................288
Carlos Moore
XIII.. Enfrentando os desafios: a história da África e dos africanos no Brasil na nossa
sala de aula............................................................................................................. 301
Mônica Lima
XIV. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e
afro-brasileira ........................................................................................................307
Mônica Lima
7
APRESENTAÇÃO
Africanidades Brasileiras e Educação
Rosa Helena Mendonça1
A coletânea Africanidades brasileiras e educa-
fundamenta o trabalho e
ção, organizada por Azoilda Loretto Trinda-
dos capítulos, de acordo com as temáticas
de, é composta de textos que foram produzi-
subjacentes aos textos. Ela foi além, empre-
dos para o programa Salto para o Futuro, da
endendo uma busca que excedeu às séries
TV Escola, ao longo da última década2.
realizadas especificamente para subsidiar a
a organização
implementação da Lei n. 10.639/03. Nessa
O projeto surgiu e ganhou força durante a
perspectiva, a obra traz infinitas possibili-
produção do documentário Africanidades
dades de leitura e combinações temáticas
brasileiras e educação, exibido em outubro
desafiadoras. O capítulo 1 trata de Abor-
de 2008, pela TV Escola.
dagens multiculturais amplas; o capítulo
2, que inclui o texto complementar ao do-
Para a realização do documentário foi ne-
cumentário, enfoca as Africanidades; e o
cessário realizar uma pesquisa que envolveu
capítulo 3 aponta para Entrecruzamentos
uma seleção de textos sobre a temática nas
temáticos, ao destacar as contribuições da
publicações eletrônicas, além do visiona-
ciência e da literatura nas abordagens mul-
mento de séries e transcrição de entrevistas
ticulturais.
que compõem o acervo do programa. Daí
para esta coletânea, estava dado o primeiro
Este livro é mais uma iniciativa da Secretaria
passo.
de Educação Básica (SEB), do Ministério da
Educação, que, por meio do programa Sal-
Caberia à organizadora explicitar, a partir
to para o Futuro, da TV Escola, tem buscado
da linha editorial, a concepção teórica que
contribuir para a formação continuada de
1Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED-UERJ.
2 Os créditos dos autores correspondem à época em que os textos foram escritos. Considerando que um dos
objetivos da publicação é refletir o pensamento sobre a temática ao longo desse tempo, optamos também em não
solicitar aos autores a atualização dos textos, preservando, assim, a perspectiva histórica dos mesmos.
8
professores da Educação Básica na implan-
dos empenhados em fazer chegar às escolas
tação da Lei 10639/03.
brasileiras mais esta obra de referência para
a implementação da Lei nº 10.639/03 e da Lei
A realização desta obra não teria sido possí-
nº 11.645/08.
vel sem a colaboração de Ana Maria Miguel
e de Carla Ramos, analistas educacionais do
Vale destacar que a maior parte dos textos
programa, que participaram da seleção ini-
que compõem esta publicação foi produzida
cial do material, e de Magda Frediani Mar-
para séries que foram realizadas pelo Salto
tins, revisora, que foi responsável pela pre-
para o Futuro/TV Escola por demandas fei-
paração e revisão do livro, contribuindo na
tas pela Secretaria de Educação Continuada,
edição com sua experiência e sensibilidade.
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECA-
Devemos, ainda, a Fernanda Braga, analista
DI), do Ministério da Educação. O objetivo
educacional, a formatação inicial dos textos,
comum é o de colocar em pauta a questão
a organização de notas, títulos e outros as-
da diversidade, tão significativa para a cons-
pectos gráfico-editorais, o que possibilitou a
trução de uma escola mais equânime, numa
primeira versão dos originais. Também par-
sociedade que precisa, cada vez mais, se
ticiparam deste projeto a analista educacio-
assumir como multicultural e pluriétnica,
nal Mônica Mufarrej, que organizou um CD
ultrapassando exclusões e preconceitos de
com os textos, e Amanda Souza, estagiária
todas as ordens.
do Salto para o Futuro, que fez a transcrição
das fitas com entrevistas.
É com prazer que fazemos chegar aos professores e professoras esta obra, no ano em
De minha parte, sinto especial satisfação em
se comemoram os 10 anos da promulgação
ter idealizado esta publicação e supervisio-
da Lei 10639/03. Desejamos uma excelente
nado todo o processo de edição. Ao longo
leitura, que possa se desdobrar em traba-
de vários meses, tive o privilégio de fazer a
lhos e em outros textos, criando e alimen-
interlocução entre a organizadora da coletâ-
tando essa rede de educação que constitui o
nea e os demais profissionais envolvidos, to-
programa Salto para o Futuro.
9
INTRODUÇÃO
Azoilda Loretto da Trindade 13
A todas as pessoas irmãs da pátria (mátria) amada que não fogem à luta, nem
temem segurar a clava forte da justiça quando isto se faz necessário.
A tarefa de organizar um livro sobre Africani-
s, docentes ou ativistas, atravessando gover-
dades Brasileiras e educação, a partir do ma-
nos e gestores diversos, sem perder o com-
terial produzido pelo programa Salto para o
promisso com a Educação de qualidade neste
Futuro, foi, sem dúvida, muito desafiadora,
país.
tendo em vista que a produção de saberes
e fazeres no campo da educação é um dos
O contato com todo este material escrito,
compromissos que assumimos no enfrenta-
disponível na página do programa, também
mento do racismo e na construção de uma
nos coloca diante de reflexões sobre a diver-
sociedade que respeite os direitos humanos,
sidade de visões, contradições e paradoxos.
sociais, civis e, em especial, o direito à vida
São produções que nos inspiram e, a partir
– em todas as suas manifestações. Uma so-
delas, temos ideias que podem gerar, tanto
ciedade em que a deusa Justiça, entidade
projetos para a ação pedagógica cotidiana,
mitológica cultuada desde a Antiguidade
quanto outras produções escritas e novos
clássica, seja, efetivamente, para todos e to-
documentários... Sentimo-nos como o me-
das.
nino do conto A função da arte, de Eduardo
Galeano4:
O acervo do programa Salto para o Futuro
representa um patrimônio para a história da
Diego não conhecia o mar. O pai, San-
educação do Brasil. São mais de vinte anos
tiago Kovadloff, levou-o para que desco-
de programa, com a presença de educadores
brisse o mar.
e educadoras compartilhando suas reflexões
e ações educativas, seja como acadêmico(a)
Viajaram para o Sul.
3
Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta
coletânea
4GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Ed. LP&M, 2005.
10
Ele, o mar, estava do outro lado das du-
cia e a escolha foram mediadas pela menta-
nas altas, esperando.
lidade inclusiva e antirracista dos educadores e educadoras presentes nas instituições
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de
muito caminhar, o mar estava na frente
de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar,
tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!
de ensino e por sua força de convencimento, argumentação e luta. Destaco, assim,
que se trata de compromisso político, de
desafio e de pacto com a justiça e com uma
proposta de escola feliz, inclusiva, capaz
de mudanças de mentalidade e comportamentos. Essa perspectiva também atende
às questões políticas, dentre elas a da compreensão de que currículo é um documento
de identidade. Se o currículo é o documento de identidade da escola, da sociedade e/
São muitas informações, muitos conheci-
ou de um grupo, imaginem o desafio que
mentos, muitos conteúdos, muitos saberes,
é mudá-lo. Porque, historicamente, a insti-
quer no acervo das produções do Salto, quer
tuição escola vive processos contraditórios,
nos espaços instituídos de produção de co-
dialéticos, complexos. É, muitas vezes, uma
nhecimento, como as escolas, as universi-
escola que tem uma identidade negadora
dades, as instituições da sociedade civil, or-
da sua população, da sua imagem, da sua
ganizada ou não. Os textos são muito ricos
riqueza cultural e que precisa, por isso, se
e inspiradores, os minidocumentários gera-
modificar.
dores dos debates são igualmente ricos, sobretudo em possibilidades pedagógicas. Por
Ao pensarmos qual é o papel da escola, fica-
tudo isto, fica difícil escolher, decidir e sele-
mos de frente com a necessidade de mudar
cionar, inclusive pela atualidade dos temas
essa sua identidade, mudar esse documento
e dos textos a eles relacionados e pelo valor
de identidade, “trocar” este documento por
que este material constitui para a educação
outro que olhe e que diga da riqueza que
no Brasil.Com relação à organização do li-
é o Brasil, da riqueza que é um país plural
vro, convém destacar dois pontos:
como o nosso. A nossa escola frequentemente nega isso, hierarquiza as diferenças
O primeiro relacionou-se à seleção dos tex-
humanas, frontalmente. O que acontece se
tos e dos conteúdos a serem privilegiados
formos, em qualquer dia, numa sala de aula,
com sua presença nos currículos escolares
e observarmos o que mostram os murais e
e no dia a dia propriamente dito. A relevân-
quem são as crianças e os adolescentes que
11
estão naquela escola? Observar é um exer-
aos pretos e pardos (negros), mas a vários
cício simples, não só na nossa escola espe-
grupos: mulheres, indígenas, pessoas com
cificamente, mas também se ampliarmos
deficiências, com necessidades especiais...
a observação para outros espaços. Que
A escola e a sociedade estão marcadas por
identidade é essa? Que escola é essa? Que
essa problemática que afeta, não só os afro-
imaginário é esse que atravessa e perpassa
-brasileiros(as), mas a outros grupos hu-
a nossa prática e a nossa ação docente? A
manos. Estamos marcados pelo machismo,
escola e os currículos podem ter um papel
pelo patrimonialismo, pelo elitismo... Lidar
importante, na medida em que eles se pro-
com isso é, portanto, uma escolha política,
ponham a se transformar, a se olharem no
uma vez que também sabemos o quanto de
espelho e a não ter vergonha do que veem. É
invisibilização, de desconhecimento e de es-
um grande desafio docente, este que se co-
tereotipias existem com relação às histórias
loca para todos nós, educadores e educado-
e culturas africanas e afro-brasileiras. Quem
ras, que queremos transformar essa escola,
sabe podemos ter, em breve, e o acervo do
transformá-la na sua imagem, na sua estru-
programa indica isso, coletâneas sobre os
tura, nas suas ações, na sua eficácia e nos
povos indígenas (Lei n. 11.645/2008), sobre as
seus conteúdos.
questões de gênero e orientação afetivo-sexual, como já temos sobre Cultura popular
Outro ponto relevante nesta introdução é
e outros temas? E quem sabe, um dia, não
o fato de estarmos focados na história e
precisemos mais nos ocupar com inclusão,
cultura africana e afro-brasileira, na im-
com preconceito e racismo? Por ora, como
plementação da Lei n. 10.639, de janeiro
poderemos ver na primeira parte desta cole-
de 2003, que neste ano completa dez anos,
tânea, temos ainda um longo caminho a ser
num tema que faz parte de um dos mais
trilhado.
graves, viscerais e emblemáticos problemas brasileiros: as desigualdades étnico-raciais.
Sabemos e reconhecemos como importante
Por que trabalhar as
africanidades nas escolas
brasileiras?
aspecto de análise e intervenção a questão
das desigualdades, dos preconceitos, dos es-
Embora a pergunta feita seja única, ela tem
tigmas e do racismo na escola. E sabemos
múltiplas e inúmeras respostas. Vamos a al-
também que esses processos não se limitam
guns pontos de vista:
12
Provérbio africano
é justo, não é bom. O patrimônio cultural
produzido pelos africanos tem muito mais
“Até que os leões tenham seus próprios
do que 500 anos. E tudo que a África pro-
historiadores, as histórias de caçadas
duziu e espalhou pelo mundo em termos
continuarão glorificando o caçador” 5.
de conhecimentos, de sentimentos, de saberes, de arquiteturas, de engenharia? Isso
Para Elisa Larkin6 (intelectual, pesquisado-
foi como que subtraído da nossa memória
ra):
social. Assim, nossa escola hoje tem esse desafio, a educação formal tem esse desafio,
Eu acho que em primeiro lugar a gen-
os educadores e as educadoras têm esse de-
te não pode falar em humanidade sem
safio, de aprender o que a África produziu,
falar nos africanos. Inclusive porque a
que patrimônio é esse que foi tirado da nos-
África, hoje existe um consenso na an-
sa formação. E há um outro desafio maior
tropologia, na arqueologia, a África foi
ainda: que nós, educadores, educadoras, ao
o berço realmente do nascedouro da
aprendermos sobre isso, transformemos a
própria espécie humana. Então, há esse
nossa prática docente, de modo a incorpo-
aspecto que, na verdade, o próprio ser
rar todo este conhecimento no cotidiano. E
humano nasce na África e vai desenvol-
incorporar não só na “cabeça”, no campo
vendo na África sua cultura, em épocas
da racionalidade, mas incorporar também
muito remotas, vai povoando o mundo.
nas entranhas, no campo da corporeidade,
do ser humano na sua completude. Porque
Se a escola é um campo, um espaço de pro-
não basta, por exemplo, trabalharmos com
dução e de apropriação de conhecimentos,
a história africana, afro-brasileira e indíge-
então é fundamental, justo e função da es-
na, isso só não dá conta. É preciso incorpo-
cola que os saberes africanos, que são um
rar esses saberes no cotidiano da escola. É
patrimônio da humanidade, sejam compar-
possível, a partir desse patrimônio africano
tilhados, aprendidos, conhecidos. A escola
ou indígena, ou de outros patrimônios cul-
não deve negar à população este patrimô-
turais, transformar o cotidiano da escola?
nio, não pode subtrair um direito, que é de
Isso, sem dúvida, é bastante desafiador! E
todos, de conhecer o repertório cultural dos
fantástico! Imaginem o que de revolucioná-
povos africanos. Se a escola não veicula es-
rio pode acontecer quando incorporarmos
tes saberes, está tirando o direito das pes-
na escola os valores civilizatórios afro-bra-
soas de se informarem sobre isso. Isso não
sileiros, que levem em conta, por exemplo,
5
Provérbio africano citado por Eduardo Galeano em “O livro dos abraços”.
6Série Currículo, Relações Raciais e Cultura afro-brasileira (2006).
13
a questão do comunitarismo? Juntos com-
cio, era um negro, grande compositor e
partilharemos os conhecimentos, a alegria,
grande maestro da corte, e que estadis-
a ludicidade e a ciência, para fazerem parte,
tas, deputados, parlamentares do Im-
não apenas de uma grade curricular, mas
pério também eram negros e mulatos.
também da vida e do dia a dia da escola,
Há um livro que recomendo muito para
com potência, riqueza, garra.
as escolas A mão negra brasileira, que
foi editado por Emanuel Araújo, artista
Para Muniz Sodré (intelectual e escritor):
plástico, que foi diretor do museu de
Arte Moderna de São Paulo, livro edita-
Não há como negar a presença da cultu-
do por Valter Brest, onde se faz um rela-
ra europeia e das ciências nas escolas do
to dessas figuras que integraram a cha-
Brasil. Mas em relação à cultura negra,
mada cultura erudita. O maior escritor
dá pra negar e é por isso que demorou
brasileiro de todos os tempos, Machado
tanto, porque se esqueceu deliberada-
de Assis, se diz que era mulato escuro.
mente de colocar nos livros escolares,
Machado de Assis era crioulão mesmo.
nas mentalidades dos professores das
Lima Barreto era negro, ninguém diz
escolas, a contribuição que o negro deu
que o Brasil teve um presidente negro,
para a formação da sociedade brasilei-
não se conta essa história, todo mundo
ra, da cultura, historicamente, ao longo
pensa que só houve presidente branco
dos tempos. Essa contribuição não foi só
no Brasil! Tivemos um presidente qua-
de trabalho. (...) Foi principalmente cul-
se negro chamado Nilo Peçanha, que é
tural (...). É ai que se dá o esquecimento,
retocado nos retratos para parecer que
a contribuição foi também na cultura
não é negro. Assim como se retoca o
erudita, porque não se diz ao estudan-
senhor Rui Barbosa, grande intelectu-
te na escola e não se fazem manuais
al baiano, mulato escuro, se retoca no
para dizer que até a abolição os gran-
retrato para parecer que era branco.
des escultores e pintores da Academia
Nilo Peçanha era negro, mulato escuro,
Imperial fundada pelo imperador, eram
negro. Agora a família dele não era, era
negros, nas igrejas da Bahia, nas igrejas
mais clara. Então, o que eu quero dizer
de Minas, nas igrejas do Rio de Janeiro,
é que a presença dos negros na cultu-
os pintores e escultores eram negros e
ra erudita foi forte com a abolição. E
mulatos. Não se diz que os músicos da
o século XX foi esquecer isso, começou
corte do Império eram negros e mula-
a deixar de lado e, a partir daí, toda a
tos, não se diz que o maior compositor
inserção do negro na cultura brasileira
da corte no Império, o padre José Mauri-
foi só através da chamada cultura popu-
14
lar, através da música, que foi gloriosa:
Entre fundamentos, argumentos e informa-
Pixinguinha, os grandes compositores,
ções sobre Africanidades, organizamos esta
o samba vem daí, o futebol, o carna-
coletânea.
val, os folguedos. (...) Por isso que digo
que houve uma denegação histórica da
contribuição do negro, da sua presença. É importante que o negro atue em
novelas, apareça em publicidade, mas
eu acho mais importante começar a dizer às pessoas, aos meninos nas escolas
sobre tudo isto (...). Na cultura erudita,
tanto quanto na cultura popular, o negro brilhou, é preciso contar também às
pessoas que até os anos 20, na Bahia, os
professores de matemática e de piano
eram todos negros malês, que sabiam
ler muito bem, inclusive em árabe, liam
árabe, liam o Alcorão e ninguém conta
isso.
E, para completar estas reflexões, nada melhor que os versos da canção de Nei Lopes e
Wilson Moreira:
“Me ajuda a olhar”
Nosso processo de organizar e selecionar os
textos não foi fácil, já que nos deparamos
com muitas vicissitudes acerca do tema. O
acabamento, o embelezamento, os ajustes
e os retoques ficaram sob a responsabilidade da equipe pedagógica do Salto – fato que
merece destaque, pois produções para o coletivo são também coletivas, por mais individuais que pareçam. Ao pesquisar, ler e reler
o material selecionado, nós nos conectamos
com algumas percepções que não nos furtaremos a compartilhar. Deparamo-nos com
caminhos que chamo de “exunicidades”, por
tratarem-se de encruzilhadas, possibilidades
que demandam encontros, comunicação,
articulação, negociação, conflitos... E, assim, devemos fazer esta alusão a um deus
Em toda cultura nacional
da mitologia africana: Exu.
Na arte, até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
O negro brasileiro
7
Assim como não existe a África homogênea,
nem a história e a cultura africana e afro
-brasileira, já podemos dizer, com certeza,
que não existe um pensamento único sobre
Apesar de tempos infelizes
a temática. Isso tudo, articulado com a di-
Lutou, viveu, morreu e se integrou
versidade de pensamento e de ações peda-
Sem abandonar suas origens .
gógicas brasileiras, nos permite afirmar que
Ao povo em forma de arte. Composição de Nei Lopes e Wilson Moreira.
15
a implementação da lei também é plural e
e documentários, experiências pedagógicas,
complexa. Por exemplo, existe uma varieda-
quer na sua especificidade (segunda parte
de de denominações, concepções, conceitos
desta coletânea), quer em interação com
e visões que podem se associar a essa diver-
áreas diversas de conhecimento (terceira
sidade pedagógica, como educação bancá-
parte deste livro), o que nos leva a afirmar
ria, tradicional, formal, conservadora, sócio-
que, a despeito do esforço abnegado de mui-
-histórica, liberal, conteudista...
tas pessoas, sejam educadoras, educadores
ou
ativistas, esta temática necessita de
Paradoxalmente, não há uma relação biuní-
compromisso político por parte, sobretudo,
voca entre o acesso ao conhecimento ou ao
dos gestores e dos definidores e definidoras
patrimônio africano e afro-brasileiro e a di-
de recursos e ações para coletivos, incluindo
minuição das desigualdades étnico-raciais.
aí o reconhecimento dos saberes e fazeres
O sistema de apropriação, o racismo e o pa-
dos(das) docentes e dos educadores/as das
trimonialismo não estão abalados na nossa
instituições escolares e da comunidade es-
sociedade. Temos muito a aprender e a ca-
colar como um todo. Cremos que a imple-
minhar na direção da eliminação do racismo
mentação da lei precisa, para tal, suplantar
e das mentalidades e práticas racistas.
as visões equivocadas de ação afirmativa
como sinônimo de paternalismo e condes-
Embora esteja na lei maior da educação bra-
cendência, para visões de ação afirmativa
sileira, a LBBEN, não temos a garantia da
como potência e reconhecimento do direito
introdução nos currículos escolares da(s)
e potência do outro.
história(s) e da(s) cultura (s) africana(s) e
afro-brasileira(s), nos mais de 5.000(cinco)
Posto isto, esta coletânea, tentando estar
mil municípios brasileiros. A temática das
em sintonia com o que foi dito nesta intro-
relações étnico-raciais ainda é controversa,
dução, está dividida em três capítulos;
o mito da democracia racial ainda é forte,
muitos não acham este tema relevante e o
racismo recrudesce no Brasil e no mundo.
1º – ABORDAGENS MULTICULTURAIS AMPLAS: uma articulação da temática do
livro com o multiculturalismo, a diver-
Temos, por outro lado, um significativo acer-
sidade, as narrativas e a complexida-
vo sobre as temáticas da Lei n. 10.639/2003
de, além, obviamente, do currículo;
em livros, sítios, núcleos de estudos nas
universidades, organizações do movimento
negro, organizações governamentais, filmes
2º – AFRICANIDADES: as africanidades em
foco;
16
3º – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS
Existe um rico repertório metodológico no
– MULTICULTURALIDADES, DISCIPLI-
campo da multiculturalidade e, no que se
NARIDADES E AFRICANIDADES: nesta
refere à educação étnico-racial, várias abor-
parte da coletânea se pretende uma
dagens podem e devem ser experimentadas,
interseção entre as temáticas das Afri-
vivenciadas, saboreadas: pedagogia griot, do
canidades e áreas de conhecimento,
Axé, dos terreiros, do samba, dos valores ci-
como uma trama, uma tessitura.
vilizatórios afro-brasileiros, em diálogo, em
confronto, encontro, encanto com as de-
Fios do tear das moiras
fiandeiras8
mais pedagogias, quer sejam as oficiais, dominantes, quer sejam a dos povos indígenas
ou das florestas, ou dos ciganos, ou dos ára-
MULTICULTURALISMOS | DIVERSIDADE CULTURAL |
bes, judeus, orientais, das pessoas com defi-
INTERCULTURALISMOS | PLURALIDADE CULTURAL |
ciência, com necessidades especiais... Todo
AFRICANIDADES | EDUCAÇÃO INDÍGENA | EDUCA-
este repertório, como o fio do destino tecido
ÇÃO ESPECIAL | EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
pelas moiras, pode contribuir para construir
| EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | PEDAGOGIA QUEER
| ESTUDOS CULTURAIS | EDUCAÇÃO RELIGIOSA |
EDUCAÇÃO POPULAR | EDUCAÇÃO PÚBLICA | AFRICANIDADES | PEDAGOGIA DIASPÓRICA | PEDAGOGIA
as bases da pedagogia brasilis, uma pedagogia voltada para a real e diversa população
brasileira.
DA DIFERENÇA | PEDAGOGIA BRASILIS.
8Na verdade, colocar as moiras ou mouras neste contexto é provocar as/os leitora/es acerca dos nomes e
mitos das várias origens que povoam nosso imaginário.As moiras e/ou as mouras?
17
CAPÍTULO 1
Abordagens gerais sobre multiculturalismo
e diversidade cultural
Neste capítulo selecionamos, entre os textos
• O que nós, como educadores, devemos fa-
do Salto para o Futuro, alguns que lidam di-
zer na escola? E como o faremos? Como
retamente com questões conceituais gerais
nosso currículo se configurará?
que dão suporte para as reflexões ligadas às
Africanidades ou que com elas dialogam.
• Como serão e deverão ser nossas aulas,
nossa avaliação, nossa sala de aula? Como
A opção de não seguir uma linearidade cro-
será nossa postura?
nológica dos textos tem como objetivo visibilizar a não linearidade do pensamento e
• Como não sermos tão individualistas e
das reflexões sobre os temas em questão:
julgarmos que os outros são muito dife-
multiculturalismo e diversidade cultural.
rentes de nós? E como não sermos tão
Esta introdução antecipa algumas indaga-
universalistas a ponto de apagarmos as
ções, presentes no texto da organizadora
singularidades culturais, políticas, sexu-
desta coletânea, que encerram este primei-
ais, sociais, intelectuais?
ro capítulo. Afinal, uma educação multicultural, criativa e inclusiva, no sentido de
incluir na pauta as diferenças, o contato, o
diálogo e a interação com as diferenças, coloca a própria escola num lugar de questionamento quanto ao seu papel, seu sentido e
seu significado.
Vamos aos questionamentos:
• Como levar em consideração todos os
segmentos da escola? Como enfrentar
que nossas mais belas intenções e ações
são ainda incipientes, que são muito poucas, embora necessárias?
Ao formular essas questões buscamos evidenciar que trabalhar o multiculturalismo
na escola não é apenas colocar imagens de
• Qual deve ser o papel da escola num con-
todas as etnias que compõem nossa escola
texto multicultural que se sabe político,
nos murais ou, simplesmente, festejar o Dia
e que não se supõe racista, nem elitista,
do Índio e o Dia Nacional da Consciência
nem machista, nem etnocêntrico?
Negra. Não é apenas debater as políticas de
18
cotas e outras ações afirmativas. Ou, ainda,
III. Pluralidade e diversidade, de Carla
ter a imagem de uma Virgem negra como
Ramos – objetivando discutir os con-
padroeira do Brasil. Tampouco ter o atleta
ceitos do título num mundo em movi-
do século l, um homem preto, como um íco-
mento, em mudanças, focando-se na
ne nacional (sobretudo se o que se destaca,
cidade como espaço onde estes movi-
nesse caso, é o dinheiro como submetendo
mentos nos desafiam a pensar outra
as questões relacionadas à cor da pele).
geopolítica
Para buscar respostas para essas e outras
IV. Saberes culturais e educação do futu-
questões, selecionamos os textos que se se-
ro, de Edgard de Assis Carvalho. Dis-
guem, acreditando que, ao reorganizá-los
cutindo os saberes culturais na pers-
nesta coletânea, sob o tópico multicultura-
pectiva da integração dos saberes, o
lismo e diversidade cultural, estaremos pro-
texto transita entre a poesia, a arte
pondo novas e possíveis leituras:
e os saberes culturais como pistas
para a educação na sua complexida-
I. Multiculturalismo, ou de como viver
junto, de Mary Del Priore - onde a autora faz uma apresentação panorâmica de questões muito caras à temática
multicultural deixando-nos a questão
desafio: COMO VIVER JUNTO?
II. Por um multiculturalismo democrático, de Sueli Carneiro – destacando a
democracia como um fim, a autora
apresenta-nos variáveis contemporâneas que põem em fragilidade a perspectiva universalista e hegemônica de
conformação de sujeitos, convidando-nos a pensar um multiculturalismo
democrático brasileiro
de e inclusividade, apresentando-nos
autores e perspectivas não hegemônicas de pensar o mundo a partir do
paradigma, digamos, europeu, mas
como que anunciando um hibridismo,
mestiçagem cultural, e termina apresentando-nos Fernando Diniz, talvez
paradigmático para este livro.
V. Identidade e diferença no cotidiano
escolar: práticas de formação e de fabricação de identidades docentes, de
Elizeu Clementino de Souza. Este texto,
nesta coletânea, coloca os e as docentes no centro da roda como produtores
e produtoras de histórias de vida (s), no
Depois de dois textos, com seus desafios,
fio de prumo da Identidade e da Dife-
apresentamos o texto anunciado pelo título:
rença.
19
VI. Diversidade e Currículo, de Nilma
Lino Gomes. De volta à discussão da
diversidade, agora focando-se o Currículo, o que se torna mais um dos
desafios da escola que “normatiza”
a diferença sem hierarquizá-la e buscando não ser uniformizadora. O texto indica, prescreve e sinaliza alguns
desafios para esta arrojada ação político-pedagógica.
VII. Reinventando a roda: experiências
multiculturais de uma educação para
todos, de Azoilda Loretto da Trindade.
Este texto é um convite à criação e ao
compromisso com uma educação para
a vida em expansão.
20
I. Multiculturalismo ou de como viver junto1
Mary Del Priore2
Multiculturalismo: como
viver junto?
Há menos de trinta anos, as primeiras medidas políticas de inspiração multiculturalista foram colocadas em ação na América
Nas democracias pluralistas, assistimos a
um movimento generalizado de incremento
das identidades particulares. Minorias, populações autóctones, grupos de migrantes
e imigrantes manifestam seu desejo de reconhecimento cultural. “Viver junto” é uma
questão cada vez mais premente.
do Norte (Canadá e EUA). Lá, a indiferença
frente à cor da pele foi substituída pelo princípio de consciência da cor. O debate sobre
multiculturalismo foi crescendo de intensidade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na
Europa e América do Sul. A doutrina multiculturalista avança essencialmente na ideia
de que as culturas minoritárias são discri-
O termo “multiculturalismo” designa tanto
minadas e devem merecer reconhecimen-
um fato (sociedades são compostas de gru-
to público. Para se realizarem ou consoli-
pos culturalmente distintos) quanto uma
darem, singularidades culturais devem ser
política (colocada em funcionamento em
amparadas e protegidas pela lei. É o Direito
níveis diferentes) visando à coexistência pa-
que vai permitir colocar em movimento as
cífica entre grupos étnica e culturalmente
condições de uma sociedade multicultural.
diferentes. Em todas as épocas, sociedades
pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de
10% dos países do planeta podem ser considerados como culturalmente homogêneos.
Entre universalismo e
multiculturalismo
Por outro lado, o tratamento político da diversidade cultural é um fenômeno relativa-
Mas, de que diferenças culturais nós fala-
mente recente.
mos? Muitas vezes reduzidas à questão da
1
Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 1.
2
Historiadora e Coordenadora Geral do Arquivo Nacional.
21
etnicidade (condição ou consciência de per-
paradoxal, mas a reivindicação cultural está
tencer a um grupo) ou, em alguns casos,
claramente associada ao individualismo
reduzidas até mesmo à “questão racial”, as
moderno, ao primado do “sujeito individu-
diferenças culturais não concernem apenas
al”. Ela emana da subjetividade pessoal da-
aos particularismos de origem ou de tradi-
queles que se reconhecem neste ou naquele
ção (religiosas ou linguísticas).
particularismo e resolvem se engajar coletivamente em reivindicações identitárias.
As reivindicações se enraízam cada vez mais
no particularismo dos mores (preferências
O debate de ideias entre monoculturalismo
sexuais, por exemplo), de idade, de traços
e multiculturalismo funciona, de certa for-
ou de deficiências físicas (obesos, cegos,
ma, em duas vertentes de pensamento. Ele
paraplégicos). O multiculturalismo comba-
se organizou, primeiramente, em torno de
te o que ele considera como uma forma de
uma querela de filosofia política norte-ame-
etnocentrismo, ou seja, combate à visão de
ricana: os liberais, ou individualistas, sus-
mundo da sociedade branca dominante que
tentavam que o indivíduo é mais importante
se toma – desde que a ideia de raça nasceu
e antecede à comunidade. Liberais recusam
no processo de expansão europeia – por
a ideia de que direitos minoritários possam
mais importante do que as demais. A políti-
ferir a preeminência legítima do indivíduo.
ca multiculturalista visa, com efeito, resistir
O comunitarismo ou coletivismo, ao contrá-
à homogeneidade cultural, sobretudo quan-
rio, acredita que os indivíduos são o produto
do esta homogeneidade afirma-se como
das práticas sociais e que é preciso prote-
única e legítima, reduzindo outras culturas
ger os valores comunitários ameaçados por
a particularismos e dependência.
valores individuais e, principalmente, reconhecer as diferenças culturais.
Um detalhe importante nesta discussão é
que, em nossos dias, um cidadão raramen-
Tal debate, contudo, já é coisa do passado.
te “esquece” sua condição particular para
Pensadores como Charles Taylor e Michael
encarnar um pretenso universalismo. O
Walzer avançaram posições mais nuança-
universalismo dificilmente se combina com
das. Inúmeros teóricos acreditam que os
as condições da modernidade. Com a libe-
direitos minoritários podem promover as
ração dos mores e a emancipação sexual, a
condições culturais de liberdade potencial
vida privada foi maciçamente reconstruída,
dos membros de grupos minoritários. Na
revestindo-se de grande potencial político.
Europa, este “multiculturalismo liberal” pa-
Nesta perspectiva, identidade e individuali-
rece ter se imposto por falta de alguma ideia
dade quase se sobrepõem. Isto pode parecer
melhor. Abandonou-se, então, o modelo que
22
prevalecia desde a Revolução Francesa e que
patamar de reconhecimento do que a cul-
propugnava o cidadão unificado.
tura dominante branca, saxônica e protestante.
Vejamos, num exemplo, como procede esta
vertente: a sopa passada no liquidificador
Em reação a esta “etnicização majoritária”,
transforma tudo num todo homogêneo, no
na verdade, uma assimilação dissimulada –
qual não se distinguem mais os elementos
leia-se, o mito do “melting pot” – operou-se
que a compõem. Apenas um paladar avisa-
uma “etnicização das minorias”. O reconhe-
do poderá adivinhar, no sabor, cada um dos
cimento público das identidades coletivas
ingredientes. Na salada composta, por outro
resultou, por sua vez, de redes políticas vol-
lado, cada ingrediente se distingue dos ou-
tadas para a consolidação da ideologia do
tros, conservando sua aparência, seu gosto
“politicamente correto”.
e sua textura. Nos EUA, o mito do “melting-pot”, ou seja, da encruzilhada na qual todas
Na Europa, as práticas multiculturalistas
as culturas se fundem ao adotar o “ameri-
são ainda pouco desenvolvidas. O modelo
can way of life” – jeito americano de viver –,
do Estado-Nação afirmou-se no século XIX,
sucedeu o modelo do mosaico, ou da “sala-
praticando uma política de redução de dife-
da”, imagem possível do multiculturalismo:
renças culturais e de assimilação de popula-
uma justaposição um pouco heterogênea de
ções imigradas. Nos países europeus, apesar
grupos étnicos e minorias culturais coabi-
das importantes diferenças nacionais (na
tando num mundo de concordância.
Inglaterra, por exemplo, está bem avançada
a luta contra discriminações étnicas), o par-
As políticas multiculturais
ticularismo é percebido como uma divisão e
uma regressão culturais. O multiculturalismo, por sua vez, é um desafio fundamental
Além do Canadá (desde 1982), vários países
têm constituições multiculturais: Austrália,
África do Sul, Colômbia, Paraguai. Mas foram os EUA que, antes de qualquer outro
país, colocaram a luta contra a discrimi-
para a consolidação da União Européia. Sobretudo, quando lá se pergunta se a Europa
irá optar por uma cultura comum ou por
um regime multicultural constituído por
um mosaico de nações.
nação no centro de suas preocupações. No
prolongamento da luta dos afro-americanos
Na França, por exemplo, as políticas de tra-
por direitos cívicos, militantes e intelectuais
tamento preferencial são aplicadas para
consideraram uma injustiça que as culturas
combater as desigualdades socioeconômi-
minoritárias não acedessem a um mesmo
cas ou as desigualdades entre gêneros (ho-
23
mem-mulher). Lá, cada vez mais, a etnicida-
A pergunta a fazer é: será que os fins justi-
de é reconhecida e respeitada nas práticas
ficam os meios? O princípio da discrimina-
(no Direito, ainda não): são dadas subven-
ção positiva se choca com as exigências de
ções diretas a associações étnicas, são cria-
igualdade do Direito e à imparcialidade do
das políticas em favor de imigrantes, exis-
Estado? Caminhamos no sentido da justiça
tem Fundos de Ação Social voltados para a
social? A busca de uma igualdade real pode
questão.
ser incompatível com os princípios de igualdade formal?
O modelo da diversidade francesa foi comemorado no Campeonato Mundial de Fute-
Sabemos que nem todos os membros das
bol de 1998, quando os jogadores de origens
minorias são desfavorecidos e os que sabem
diferentes (França, África do Norte e África
aproveitar as vantagens são raramente os
Central) tornaram-se campeões do mundo.
mais desfavorecidos. Por outro lado, exis-
A imagem de uma equipe multiétnica fun-
tem grupos da população realmente desfa-
diu-se com aquela de uma “equipe que ga-
vorecidos que não pertencem às minorias
nha”.
étnicas.
Os limites do
multiculturalismo
Neste caso, todas as diferenças podem ser
defendidas? Sabemos que há o risco de
opressão do grupo cultural sobre seus mem-
Para vários autores, o multiculturalismo
bros: como proteger a minoria das outras
aparece como um mal necessário. Discute-
minorias, os explorados dos excluídos? Por
-se muito como aperfeiçoar o sistema, limi-
vezes, ocorre até o contrário, pois foi invo-
tando seus efeitos perversos e melhorando
cando a noção de Direito que os brancos de
a vida dos atores sociais. Em alguns casos,
origem holandesa defenderam o sistema do
o multiculturalismo provoca desprezo e in-
“apartheid”. Muitos pensadores, entre eles
diferença, como acontece no Canadá entre
Charles Taylor, autor de Multiculturalismo,
habitantes de língua francesa e os de língua
Diferença e Democracia, acreditam que ne-
inglesa.
nhuma política identitária deveria ultrapassar a liberdade individual. Indivíduos, no seu
Nos EUA, esta militância só fez acentuar as
entender, são únicos e não poderiam ser ca-
rivalidades étnicas. Ao denunciar seus ad-
tegorizados.
versários, tais políticas terminam por estigmatizá-los e acabam, também, por dar uma
A quem cabe a legitimidade de atribuir uma
dimensão étnica às relações sociais.
identidade? Não é o indivíduo o único capaz
24
de escolher a sua, ou as suas identidades de
Vale lembrar, ainda, que o reconhecimento
pertença? Mais ainda, quando pensamos que
de uma cultura minoritária não implica o fim
identidades individuais são construídas em
de sua alienação socioeconômica. O grande
oposição ao grupo de pertença, os especia-
desafio consiste em conciliar as políticas de
listas concordam sobre o princípio de que as
reconhecimento e as de redistribuição.
diferenças culturais não podem colocar em
causa os direitos do homem e do cidadão.
Pesquisadores de todas as áreas insistem
sobre a necessidade de construir uma ver-
Novas perspectivas
dadeira “educação intercultural”. Apresenta-se, aí, a ocasião de um aprendizado de-
Não podemos analisar tudo em termos de
culturas. A denúncia das discriminações e as
reivindicações pelo reconhecimento cultural parecem ter se sobreposto à luta de classes e à denúncia da exploração socioeconômica que caracterizaram a primeira metade
do século na Europa, e na segunda metade,
no Brasil.
mocrático. É a ideia de uma democracia de
mores proposta por Farhad Khosrokhavar,
na qual a comunicação cultural é possível:
democracia feita de respeito à alteridade
cultural e de tolerância. É, também, a ideia
de uma “democracia inclusiva”, na qual as
comunidades não se definiriam mais pela
exclusão.
Mas, na luta contra as discriminações, o es-
É também a vontade de viver junto que
quema dominados/dominantes não é mais
funda uma cultura e permite uma relativa
possível. Os conflitos sociais são cada vez
homogeneidade social. Quando uma socie-
menos óbvios, menos maniqueístas. Cada
dade se diz multirracial, ela se bate, igual-
um de nós pode ser ao mesmo tempo discri-
mente, contra a desigualdade racial. Taylor,
minado e discriminador. Um operário pode
por exemplo, definiu a democracia como a
ser discriminado socialmente, mas também
política do reconhecimento do outro, logo,
discriminar como homem, como pai e como
da diversidade. Mais adiante, o debate so-
marido. Existe, hoje, uma oposição entre as
bre o multiculturalismo obriga também a
políticas sociais e as políticas multiculturais.
redefinir o conceito de cultura, sobretudo,
a alargá-lo para aí incluir um conjunto de
Os que são objeto de discriminação cultural
diferenças comportamentais. As culturas
são também os que mais sofrem as desigual-
são menos feitas de tradição do que de re-
dades socioeconômicas. Por trás da tensão
presentações construídas pela história, sus-
entre brancos e negros, há, antes de qual-
cetíveis de mudanças tal como vemos nas
quer coisa, a tensão entre ricos e pobres.
reivindicações de uns e outros.
25
Como já demonstraram o sociólogo Michel
de cotas para os afro-brasileiros na univer-
Wieviorka e o historiador Serge Gruzinski,
sidade e no funcionalismo público acabou
o hibridismo e a maleabilidade das cultu-
por negar a fábula do encontro harmonioso
ras são, igualmente, fatores positivos de
entre as três raças. Durante muitos anos, os
inovação. Considerar a cultura como algo
negros aceitaram a ilusão de que a mestiça-
que não é variável, bem como julgar sobre
gem poderia ser a solução para a discrimi-
diferenças culturais são também formas de
nação racial, diluindo a cor em casamentos
marcar a cultura com um selo de autenti-
mistos. Mas a questão da raça está também
cidade que não existe e fixá-la num molde
ligada à da posição social: quanto mais so-
único. Uma saída possível seria considerar
bem na escala social, mais os negros se tor-
as vantagens da mestiçagem cultural, este
nam brancos.
poderoso fator de mudanças, de criatividade e de invenção, e que não é objeto de ne-
O processo de reafricanização do Brasil tal-
nhuma reivindicação. Mas o que dizer de
vez melhore o status social, artístico ou reli-
mulatos que, na Bahia e no Caribe, despre-
gioso de muitos de nós. Mudanças, contudo,
zam os negros?
dependem diretamente da redistribuição
de renda e do fim das desigualdades imen-
Foi se apoiando em suas raízes culturais
sas entre ricos e pobres. Aí, sim, estaremos
que a ação dos negros brasileiros tomou a
prontos para construir uma democracia in-
dimensão de um movimento social de mas-
clusiva e intercultural.
sas. Nas ruas das grandes cidades brasileiras já é possível ler, em muitas camisetas,
“100% negro!”. Desde os anos 80, a questão
Referências
racial está nos espaços públicos e teve início um debate interno sobre as representa-
CAPONE, Stefania. Le candomblé au Brésil,
ções coletivas, sua história, sua diversidade
ou l’Afrique réinventée. In: Cultures – La
cultural e racial. A maior parte deles acedeu
construction des identités. Sciences Humai-
à consciência negra pela brecha da cultura
nes, nov. 2000, p. 52-54.
popular. A música afro-brasileira e as escolas
de samba tiveram aí um importante papel
GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris:
mobilizador. A busca da “pureza africana”
Fayard, 2000. (Edição em português: O pen-
acompanhou-se também de uma crítica fe-
samento mestiço. São Paulo: Cia. das Letras,
roz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação
2001).
26
KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship:
TAYLOR, Charles. Multiculturalisme, différen-
a liberal theory of minirity rights. London:
ce et démocracie. Paris: Aubier, 1994.
Clarendon Press, 1995.
SOUTY, Jérôme. Multiculturalisme: com-
WALTZER, Michel. Pluralisme et démocracie.
Paris: Esprit, 1997.
ment vivre ensemble. In: Les grandes ques-
WIEWIORKA, Michel; OHANA, Jocelyne (dir.).
tions de notre temps. Sciences Humaines,
La différence culturelle. une reformulation
dez. 2001, p. 78-82.
des débats. Paris: Balland, 2001.
27
II. Por um multiculturalismo democrático1
Sueli Carneiro 2
Gênero, raça/etnia, orientação sexual, reli-
produção que instituem classes minoritárias
gião e classe social são algumas das variá-
abastadas, que submetem e exploram maio-
veis que se impõem contemporaneamente,
rias despossuídas; homofobia decorrente da
conformando novos sujeitos políticos que
imposição da heterossexualidade como for-
demandam ao Estado e à sociedade por re-
ma exclusiva de relacionamento afetivo e se-
conhecimento e políticas inclusivas.
xual e condenação arbitrária, muitas vezes
violenta, do relacionamento entre pessoas
A emergência desses novos atores decorre
da insuficiência da perspectiva universalista
para contemplar as diferentes identidades
sociais e realizar um dos fundamentos da
democracia, que é o princípio de igualdade
para todos. A imposição de um sujeito universal ao qual todos os seres humanos seriam
redutíveis obscureceu, ao longo dos tempos,
as ideologias discricionárias que promovem
as desigualdades entre os sexos, as raças, as
classes sociais, as religiões etc... São elas: o
patriarcalismo, que, ao instituir como natural a hegemonia do sexo masculino, justifi-
do mesmo sexo; fundamentalismo religioso,
responsável por grande parte dos martírios
ocorridos na história da humanidade, em
que cada denominação religiosa, ao buscar
impor o seu Deus aos outros, transforma-o,
paradoxalmente, em uma das principais fontes de intolerância do mundo; racismo que,
ao eleger que um grupo racial é superior ao
outro, provoca a desumanização de grupos
humanos, justificando as formas mais abjetas de opressão, tais como a escravidão, os
holocaustos e genocídios e a discriminação
étnica e racial.
ca todas as formas de controle, violência e
exclusão social da maioria dos seres huma-
Essas são algumas das ideologias que cons-
nos que pertencem ao sexo masculino; o eli-
piram contra a consolidação da democra-
tismo classista determinado por modos de
cia e o pleno gozo dos direitos de cidadania
1
Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 2.
2
Diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-graduanda em Filosofia da Educação pela Universidade
de São Paulo e articulista do Jornal Correio Braziliense.
28
para a maioria da população em nosso país,
sido construída a partir de uma perspectiva
tornando o homem branco, de classe supe-
hierárquica, segundo a qual, no topo, se en-
rior e heterossexual, no único tipo humano
contram os brancos responsáveis pelo nosso
a desfrutar plenamente do exercício de di-
processo civilizatório e, na base, os negros e
reitos e poder em nossa sociedade. Por isso,
indígenas, contribuindo com pinceladas cul-
esse tipo humano, embora se constitua uma
turais exóticas, que caracterizariam o jeito
minoria, está em absoluta maioria nas ins-
especial de ser do brasileiro.
tâncias de mando e de poder da sociedade.
A primeira questão que esta visão coloca é
É em função dessa evidência que adentram
a despolitização dos processos de exclusão
à cena política os movimentos de minorias
e discriminação que os “diferentes” sofrem
políticas, como o Movimento de Mulheres
em nossa sociedade, como também escamo-
lutando pela igualdade de gênero, de gays
teia a forma pela qual historicamente este
e lésbicas pelo direito e respeito à orienta-
“diferente” vem sendo construído em opo-
ção sexual diferente, de negros ou afrodes-
sição a uma universalidade cultural branca
cendentes por igualdade de direitos, etc. Ou
e ocidental, supostamente legítima para se
seja, a afirmação da diferença constitui-se
instituir como paradigma, segundo o qual
num pressuposto para conquistar a igualda-
os diversos povos do mundo são avaliados.
de. E, dentre esses movimentos, a questão
racial aparece no momento como aquela
Há um outro viés neste debate sobre diver-
que maior peso tem na estruturação das
sidade. Ele é tão mais aceito quanto mais
desigualdades sociais no Brasil, impactando
for capaz de encobrir um elemento básico
todos os indicadores sociais, como se pode
e estruturante da nossa sociedade, que é o
auferir pelos estudos realizados pelo IBGE,
racismo, o maior tabu da sociedade brasi-
IPEA, DIEESE entre outros. Por isso, a enfati-
leira, em relação ao qual há uma verdadeira
zamos nesse texto.
conspiração de silêncio.
A temática da diversidade sempre esteve
As organizações negras vêm, ao longo das
presente no debate nacional e informou as
últimas três décadas, denunciando os pro-
principais teses sobre a identidade nacional
cessos de exclusão a que os negros estão
ou a formação do País enquanto nação.
submetidos na sociedade brasileira, seja no
mercado de trabalho, sensibilizando as enti-
Triunfou, neste debate, um discurso ufa-
dades sindicais para a incorporação da luta
nista em relação ao caráter plural de nossa
contra o racismo e pela utilização dos me-
identidade nacional, a despeito de esta ter
canismos internacionais que combatem as
29
discriminações no âmbito do trabalho, seja
turais negras, no sentido do fortalecimento
no setor empresarial, sensibilizando-o para a
da identidade étnica e racial da população
adoção de políticas de diversidade em seus
negra, tais como as oriundas dos terreiros
processos de seleção. Ocupam-se ainda em
de candomblé, das bandas de rap ou dos
projetos de capacitação e reciclagem da mão-
blocos afros. Avançou a organização política
-de-obra negra para o mercado de trabalho.
das comunidades remanescentes de quilombos, adquirindo dimensões nacionais, e elas
As ações que vêm sendo realizadas pelas
demandam, cada vez com maior contun-
organizações negras no campo da educa-
dência, ao Estado, o direito pela titulação
ção expressam-se em diferentes dimensões
de suas terras ancestrais e a um desenvolvi-
dessa temática, incidindo sobre a educação
mento sustentado.
formal nos diferentes níveis; na produção e
avaliação crítica de instrumentos didáticos;
As organizações negras vêm monitorando
em projetos de formação para o exercício da
e denunciando as práticas discriminatórias
cidadania, para a capacitação para o merca-
presentes nos veículos de comunicação de
do de trabalho e/ou para o fortalecimento
massa e, através dos casos exemplares de
da capacidade de pressão sobre o Estado.
discriminação, mobilizam a opinião pública
para o debate da questão racial. Essas de-
A compreensão de que o racismo e a discri-
núncias e críticas vêm obrigando os veículos
minação impedem a distribuição igualitária
de comunicação a ampliarem e diversifica-
da Justiça no Brasil vêm motivando diversas
rem a presença de negros nesses veículos,
iniciativas. A Constiuição de 1988, ao tornar
em especial na televisão.
o racismo crime inafiançável e imprescritível, criou uma oportunidade nova de enfren-
As organizações de mulheres negras, por sua
tamento do racismo na esfera legal. Desde
vez, vêm desenvolvendo uma série de expe-
então, essa perspectiva jurídica fez surgir
riências-modelo em diversos campos, tais
projetos exemplares e pioneiros, como os
como em comunicação, novas tecnologias,
SOS Racismo, serviços de assistência legal
advocacy em mídia; atendimento jurídico e
para vítimas de discriminação racial, uma
psicossocial a mulheres vítimas de violência
experiência exitosa que já se multiplicou em
doméstica e sexual; experiências inovado-
diversos estados do país e em alguns dos pa-
ras na abordagem das sequelas emocionais
íses da América Latina.
produzidas pelo racismo. E, sobretudo, as
organizações de mulheres negras impulsio-
No campo da cultura, são inúmeras as ex-
naram a intervenção do ponto de vista racial
periências de politização das expressões cul-
na questão da saúde, dando visibilidade às
30
questões das doenças étnicas/raciais ou do-
ções da sociedade para a adoção de políticas
enças de maior incidência entre a população
que rompam com a apartação racial existen-
negra, denunciando o viés controlista sobre
te no Brasil, que se exprime nos índices de
a população negra que a esterilização tem
desigualdades raciais em alguns indicadores
no Brasil.
superiores aos encontrados para a África do
Sul.
Portanto, as organizações negras vêm desenvolvendo um conjunto de “boas práti-
Como indica uma propaganda, “é hora de
cas”, ou de experiências exemplares, em
mudar os nossos conceitos”. Isso implica,
nível nacional, para a inclusão efetiva dos
por exemplo, desnaturalizar a heterossexua-
negros na sociedade brasileira.
lidade, a hegemonia masculina, a supremacia branca. Nesse último caso, exige, sobre-
Essas experiências expressam a responsabili-
tudo, no rompimento com o “conforto” do
dade que os negros organizados têm em re-
mito da democracia racial, em prol do reco-
lação à população negra, na busca de cons-
nhecimento de que é imperiosa a correção
trução de uma rede de solidariedade baseada
das injustiças sociais motivadas pela exclu-
na identidade racial e na consciência do per-
são dos negros, em especial das mulheres
tencimento a uma comunidade de destino
negras em nossa sociedade.
fundada numa experiência histórica compartilhada. Essas práticas visam à superação
É uma exigência ética, um pressuposto para
da discriminação racial e, sobretudo, visam
a consolidação da democracia e condição de
oferecer ao Estado e aos governos modelos
reconciliação do país com sua história, no
para políticas públicas que, ao beneficiarem
sentido da construção de um futuro mais
a comunidade negra, promovam a realização
justo e igualitário para todos.
da igualdade de direitos e oportunidades.
Uma inspiradora abordagem da questão do
A sociedade civil negra vem fazendo a sua
multiculturalismo no Brasil nos é oferecida
parte: denuncia, reivindica, formula e im-
por Jacques Dadesky em seu livro Racismo
plementa propostas inclusivas. No entanto,
e anti-racismo no Brasil. Partindo da noção
essas ações alcançam baixa visibilidade e
hegeliana de reconhecimento, Dadesky nos
pouca adesão e solidariedade do conjunto
anuncia que é o desejo de reconhecimento
da sociedade.
que nos leva à luta. Desejo de reconhecimento de nossa igualdade e dignidade humanas,
A problemática racial requer vontade políti-
o que se traduz politicamente na luta pelo
ca dos governos, empresas e demais institui-
direito igualitário aos bens materiais e sim-
31
bólicos de prestígio da sociedade. Desejo de
políticos e dos direitos sociais. A situação
reconhecimento de nossa identidade cultu-
dos cidadãos negros pode ser aferida pela
ral diferenciada, do qual decorre a luta pelo
garantia desses direitos: de liberdade de ir
direito de sermos quem somos, sem precisar
e vir (e não ser molestado pela polícia como
nos negar para sermos aceitos.
‘suspeito’ em função da cor da pele); de ser
lembrado para ocupar posições de confian-
Para Jacques Dadesky, são esses os eixos de
ça e destaque; da possibilidade de acesso ao
luta que estruturam o discurso e a práxis
trabalho digno e à moradia; de educar-se
antirracista dos Movimentos Negros Brasi-
nas mesmas condições dos cidadãos da clas-
leiros, em resposta ao racismo característi-
se média e de acesso aos sistemas de saúde,
co de nossa sociedade que, segundo ele, ao
público ou privado”.
fundar-se num tipo de pluralismo étnico que
prescinde de um tratamento igualitário das
Portanto, da forma pela qual a sociedade
diferentes culturas, legitima as hierarquias
brasileira enfrentar estas questões depen-
e desigualdades materiais e simbólicas entre
de o projeto de nação inclusiva que todos
os grupos étnicos e raciais.
desejamos ou a consolidação do projeto
de nação excludente que vem sendo cons-
Da exegese das contradições colocadas por
truído há mais de 500 anos de extermínio
essa forma de racismo e do tipo de antirracis-
dos povos indígenas e de marginalização
mo que ele produz, Dadesky retirará o subs-
social dos negros em prol do desejado em-
trato para a formulação de sua concepção de
branquecimento racial, étnico e cultural do
um multiculturalismo democrático capaz de
país.
realizar, a um só tempo, o reconhecimento
da igualdade da cidadania e do valor igualitário intrínseco das diferentes culturas.
Referências
Tal como afirma o jurista Jorge da Silva: “a
D’ADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multi-
cidadania plena se afirma pela conjugação
culturalismo - Racismos e antirracismos no
do desfrute dos direitos civis, dos direitos
Brasil. Ed. Pallas, 2001.
32
III. Pluralidade e diversidade1
Carla Ramos2
Uma pequena história ou
quando significados e
sensações estão juntos
país, saímos apressadas para a rua, na tentativa de entender o motivo daquele inusitado acontecimento. Quando chegamos bem
perto, um carro de polícia tinha acabado de
Gosto da idéia de que as palavras têm sentido e de que muitas delas carregam sensações3. Primeiramente, vamos ao significado:
Diversidade: qualidade daquilo que é diverso, diferente, variado; Pluralidade: fato de
existir uma grande quantidade, de não ser o
único; multiplicidade, diversidade4.
estacionar. O homem, visivelmente transtornado, afirmava que aqueles jovens “só
podiam ser estrangeiros”, “só podiam ser
árabes” “porque não sabiam e nem respeitavam as regras de trânsito”. Ao passo que os
estudantes, um deles mais exaltado, respondeu que os seus pais eram “chilenos”, e que
ele era “sueco”! A briga durou cerca de duas
E, para debater estes conceitos, reporto-
horas e terminou com os policiais contem-
-me a uma pequena história. Em outubro de
porizando a situação, os vizinhos fechando
2005, um homem com aproximadamente 60
silenciosamente as janelas, o homem indo
anos para o seu carro numa rua da tranquila
embora e os estudantes dispersando-se pelo
cidade de Malmo, sul da Suécia, e inicia uma
caminho.
discussão fervorosa com um grupo de jovens
estudantes. Os gritos começam a chamar a
A razão deste sério desentendimento foi
atenção dos vizinhos, que abrem as janelas
uma suposta infração do código de trânsito
para olhar o que estava acontecendo. Eu e
cometida por um daqueles jovens, quando
a minha amiga, na época radicada naquele
andava de bicicleta. As regras para o trá-
1A Cidade como Espaço Educativo – 2008 / PGM 5
2 Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ/PPGSA e Analista Educacional do Salto para o Futuro
3Bauman, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual (cf. Bibliografia).
4
Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001.
33
fego em vias suecas são rígidas e dizem
gens, os palestinos são mostrados como hor-
respeito também às pessoas que utilizam a
das de homens barbudos, que correm de um
bicicleta como meio de transporte diário.
lado para outro, aos berros, carregando cor-
Mas qual seria a importância deste evento
pos de companheiros vitimados no confron-
para pensarmos as noções de diversidade e
to. As suas mulheres vestem exóticos trajes
pluralidade? Além de nos dar uma pequena
cobrindo a cabeça e o rosto e perambulam
mostra das relações sociais daquele país, o
como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas
conflito nos permite observar, por exemplo,
devastadas; uma paisagem inóspita, digna
que percepções de ordem moral e racial,
dos filmes de ficção científica hollywoodia-
como o fato de atribuir comportamentos
nos. Na África, que vale sublinhar, não é um
desviantes a grupos estigmatizados social-
país, mas um continente, o que em geral é
mente – neste caso: “árabes” e “estrangei-
mostrado são epidemias, mortes, guerras,
ros” – fazem parte do repertório do nosso
fome, desespero e brutalidade. Diante disso,
mundo contemporâneo, tão marcado pelo
cabe perguntar: quem são estes “árabes pa-
fenômeno da imigração e de um regime de
lestinos” e quem são estes “africanos”? Eles
verdades, de um sistema de representações
sequer têm uma língua porque não têm voz;
– por que não dizer? – ainda tributário do
não têm família, porque vivem aos bandos
colonialismo5.
e raramente são mostrados seus núcleos familiares. O que resta deste diferente, senão
Todos os dias somos bombardeados com
a sua diferença estereotipada pela mídia? E
imagens, capturadas por agências de notí-
a pluralidade de vozes, de visões de mundo,
cias internacionais, que trazem o mundo
de pensamentos, de ideologias, de corpos,
para dentro das nossas casas via telejornais,
de histórias, de História? Tudo é facilmen-
jornais impressos, revistas, internet e outras
te suplantado diante do fast food diário de
mídias. No entanto, cabe perguntar: como o
onde retiramos punhados de narrativas es-
mundo está sendo representado? Como as
tereotipadas sobre o Outro6.
“pessoas” aparecem? De que modo os lugares são retratados? Podemos observar, por
Ainda sob este aspecto, o filme do diretor ca-
exemplo, uma notícia bastante conhecida
nadense Paul Haggis, Crash: no limite, mos-
por todos nós: o conflito envolvendo israe-
tra a população da cidade de Los Angeles,
lenses e palestinos. Na maioria das reporta-
nos Estados Unidos, na iminência de um co-
5No Brasil padecemos do mal causado pela discriminação racial, de gênero, religiosa, de classe, motivada
pela opção sexual, etc. Estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso país.
6Só precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais atenção nas nossas atitudes cotidianas para perceber as
práticas discriminatórias, os nossos preconceitos e a dificuldade explícita de conviver com a diferença.
34
lapso causado por um excesso de, digamos,
diversidade e pluralidade, e pela consequente
Dinâmicas de cisão e de
reconstrução
impossibilidade de convívio e comunicação
em tal contexto. Neste caso, a emergência
das diferenças e do fundamentalismo das
identidades guetorizadas com nuanças essencialistas desarticularam o aparato das
regras de convívio social que, idealmente,
serviria a todos da mesma maneira. A partir
de então, qualquer desentendimento passou a ser motivo para acusações de cunho
racial, todo problema é interpretado como
de fundo étnico, todos os desencontros são
causados por barreiras linguísticas ou de
costumes/tradições particulares, e as instituições operam de maneira a privilegiar grupos religiosos, castas, etc. Estes são momentos profundamente dolorosos e traumáticos
para todo e qualquer grupamento humano.
Não obstante este cenário pouco atraente,
os personagens permaneciam ligados; todos estavam implicados nos rumos da trama, nos rumos daquela sociedade; os laços,
mesmo esgarçados, sobreviviam e apontavam para algumas saídas e uma delas foi
o afeto. O afeto foi/é um dispositivo capaz
de reordenar, por exemplo, contextos marcados por dinâmicas violentas de conflito e
cisão, como aconteceu na África do Sul, no
pós-apartheid7.
Alguns autores apontam, e eu me identifico com esta perspectiva, que estamos em
meio a um turbilhão de mudanças que
atingem, em cheio, os padrões de identidade que conhecemos na chamada modernidade tardia8. De acordo com isso, teríamos
o seguinte quadro interpretativo: temos o
mundo social e os indivíduos que, por sua
vez, se ligam ao primeiro por um conjunto de referências e estas podem ser culturais, por exemplo. Tais referências atuam
“estabilizando” os indivíduos em seus contextos. O meu objetivo neste texto é fazer
um exercício de reflexão acerca da noção
de diversidade e pluralidade num mundo em
movimento, não é demais lembrar, onde
as tradicionais fontes de representações
culturais, de significados, como o Estado-Nação, deixam de ser hegemônicos. As
consequências são variadas e é preciso um
esforço de investigação amplo e extenso
para dar conta de mapeá-las. No entanto,
é importante seguir algumas pistas que podem nos levar na direção destas mudanças
na ordem das identidades culturais: se por
um lado os padrões de identificação tradicionais do Estado-Nação perderam força
7Esta “saída” foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana Nadine Gordimer
chamado: Engate.
8Não vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor
jamaicano Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade.
35
no embate com a diversidade e a pluralidade
ao fim por causa de um povo/raça fraco e
reivindicadas pelos grupos que antes esta-
doentio; um contingente de homens e mu-
vam silenciados sob o plácido manto “na-
lheres resultante de assombrosos intercur-
cional”; de outro lado, acompanhamos o
sos sexuais entre negros, brancos e índios.
ressurgimento de um nacionalismo de tipo
Uma população cuja força havia se enfra-
étnico/racial e fundamentalista religioso.
quecido biologicamente, havia se tornado
impura, sem chances de vida.
Diante deste quadro, quem sabe, poderíamos resgatar a tese de Gramsci, e trabalhar
Sobrevivemos a isso? Alcançamos o século
a partir do entendimento de que o mundo
XXI! Mas de que maneira nos livramos desta
das disputas políticas é o palco para a con-
sentença de morte e alcançamos a condição
quista de mentes e corações para esta ou
de “País do Futuro”10? Que engenharia so-
aquela ideologia. A diversidade e a plurali-
cial foi responsável por este acontecimento?
dade, como valores para serem celebrados,
Vou ressaltar, de maneira bastante sintéti-
não nascem por geração espontânea, não
ca, apenas uma dimensão desta luta por um
são algo genético, alguma coisa inevitável.
contra-argumento bastante representativo:
Pelo contrário, são ideologias, forjadas, la-
foram muitos anos de intensa produção
pidadas, escolhidas e levadas a cabo por
intelectual por estas terras e pelo mundo
obra e engenharia humana, dos grupos so-
afora até que a tese das diferenças culturais
ciais, portanto, são históricos9! O Brasil, por
conseguisse um campo maior de hegemo-
exemplo, no século XIX, foi condenado pela
nia, em prejuízo do biologismo, da hipótese
ciência europeia eugenista a poucos anos
segundo a qual a humanidade devia as suas
de sobrevivência como nação; isto porque
diferenças às divisões raciais que classifi-
era escandaloso verificar as variações de
cavam os grupos humanos de acordo com
cores e tipos de pessoas que conviviam nas
a sua localização numa linha evolutiva11. O
cidades do antigo Império Português. “Es-
Brasil começou a ganhar fôlego e horizonte
candaloso” é uma boa palavra para resumir
a partir da celebração da mistura – genéti-
o sentimento de estranhamento e horror
ca e cultural – do povo que por estas terras
declarado por renomados cientistas e po-
está12. Misturar, mesclar, sincretizar, tornar
líticos franceses e ingleses depois de um
híbrido tanto pessoas quanto tradições cul-
pequeno passeio pelas ruas do Rio de Janei-
turais: a celebração destas possibilidades
ro. Não tínhamos saída! Estávamos fadados
precisa ser inventada.
9Uma leitura interessante é o artigo de Claude Lévi-Strauss chamado Raça e História.
36
A cidade como espaço a
ser permanentemente
conquistado
raízes? Mas a cidade também é raivosa e,
muitas vezes, dá as costas aos sujeitos. E
quando isso acontece, os movimentos sociais – os coletivos organizados – precisam
Visto isso, podemos pensar a respeito do
retomá-la à força. Por isso, será necessário
papel da cidade neste grande panorama
apropriar-se do patrimônio da cidade, de
que acabamos de desenhar. A cidade é o
sua pedra e cal, da sua intangibilidade para
lugar onde estes embates se dão, ela é mol-
depois colocar no plural a História e, por
dada, ela está organizada, ela reflete e é
fim, afirmar como é diversa a cidade que
refletida nestes encontros promovidos sob
antes se fez arredia.
a égide da diversidade e da pluralidade. Em
suma, a cidade é um ente pulsante neste
A cidade precisa ser constantemente captu-
jogo. A geofísica, as fronteiras, a arquite-
rada por seus cidadãos, afinal de contas, são
tura, o seu desenho sociopolítico: a cida-
eles que lhe imprimem sentido. A educação
de é chão e abstração. Quando emigram,
formal e a não-formal nos dão instrumentos
as pessoas levam consigo as suas cidades.
mais eficazes para colocar em prática este
Com elas viajam hábitos, cheiros, gostos,
intenso processo de reelaboração das “his-
festas, paisagens, sotaques característicos,
tórias locais” sem perder de vista os “pro-
etc. Neste sentido, a cidade está inscrita
jetos globais”13. Quando olhamos ao nosso
em nossos corpos. Dessa maneira, quão
redor, quando descobrimos e organizamos
desnorteador deve ser o desaparecimento
as histórias sobre o lugar onde nascemos,
súbito de uma cidade que sucumbe à guer-
o bairro onde vivemos, a cidade em que
ra... Dá para imaginar o quanto de agonia
transitamos, estamos refazendo a paisa-
está disseminada entre milhares de pesso-
gem, apresentando nossas vozes e nossas
as que vivem há anos nos campos de re-
percepções sobre aquele espaço. É como
fugiados espalhados pelo planeta, que vi-
me explicou um jovem participante do gru-
vem neste vácuo, neste espaço provisório
po “Reperiferia”, do Rio de Janeiro, dizendo
que teima em não permitir que elas deitem
que “Reperiferia” significa repensar a peri-
10
Para saber mais, indico a leitura do clássico livro de Stefan Zweig: Brasil um país do futuro.
11 Sobre este tema, as minhas fontes para estas questões costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freire; Raça, Ciência e Sociedade, organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo dos Santos Ventura; Intenção
e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, da antropóloga Olívia Cunha.
12 Ver Gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933).
13 Fiz esta referência inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter Mignolo. O
livro em questão tem o título: Histórias Locais, Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento
liminar. (2003).
37
feria; pensar novamente alguns lugares da
GORDIMER, Nadine. Engate. Rio de Janeiro:
cidade que já estiveram submetidos ao olhar
Companhia das Letras.
de outras pessoas, muitas vezes descoladas
daquela realidade. A ideia é recolocar-se na
cidade a partir de um entendimento amplo
HALL, Stuart. A Identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
dos procedimentos de construção de sua ge-
Dicionário HOUAISS. Rio de Janeiro: Editora
opolítica e das dinâmicas culturais e sociais
Objetiva, 2001.
que algumas vezes nos separam, e em outras refazem laços afetivos que imagináva-
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In:
mos não mais existir.
Raça e Ciência I São Paulo: Unesco/Editora
Perspectiva, 1970.
REFERÊNCIAS
MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo VenBAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca
tura (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de
por segurança no mundo atual. Rio de Janei-
Janeiro: Fiocruz/ CCBB, 1996.
ro: Jorge Zahar Editor, 2003.
CUNHA, Olivia M. Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)
diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte:
HB/Ed. UFMG, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio
ZWEIG, Stefan. Brasil um país do Futuro. Por-
de Janeiro: Editora Record, 1998.
to Alegre: L&PM, 2006.
38
IV. Saberes culturais e educação do futuro1
Edgard de Assis Carvalho2
O que são saberes culturais? São o acervo
saberes. De qualquer modo, denominou-se
de conhecimentos, entendimentos, realiza-
Cultura a esse patrimônio material e imate-
ções, progressos, regressões, utopias, desen-
rial de proporções milenares.
cantamentos, produto de uma aventura que
nós construímos no planeta Terra, datada
de pelo menos 130 mil anos. As sociedades
humanas, tal como as conhecemos hoje,
são o produto de uma longa evolução que
possibilitou a um pequeno bípede, com um
cérebro muito assemelhado ao de um chimpanzé, e ainda mais ao de um bonobo, criar
cognições, transmiti-las, codificá-las. Nossas diferenças para com os primatas não humanos diminuem a cada dia. O genoma das
duas espécies tem semelhanças de 99%. Mês
passado, foi identificado o FOXP2. Humanos
que apresentam defeito nesse gene apresentam graves problemas de fala. Chimpanzés, orangotangos, resus e gorilas também
o possuem. Talvez uma dissipação genética
Desde que o mundo passou a ser explicado pela ciência, instituiu-se uma fronteira
entre humanos e não humanos que nunca
foi suficientemente explicitada. Essa divisão
entre animalidade e humanidade foi responsável por muitas das definições pelas quais
o conceito de cultura passou a ser entendido. Em finais do século XIX, por exemplo, a
cultura era definida como a mera soma de
fatos que incluía desde tecnologias, artes,
até magias, religião, parentesco. Em meados
dos anos XX, o conceito adquiriu contornos
mais precisos, dado que o Ocidente voltou
seu olhar e sua cobiça para outros mundos,
considerados por uns como inferiores, por
outros simplesmente como diferentes, nativos, primitivos, selvagens.
tenha sido responsável pelo fenômeno da
fala, essa fantástica marca dos primatas hu-
Instalou-se, a partir daí, a pulsão da desco-
manas que tornou possível criar e transmitir
berta e a compulsão da descrição, definido-
1Complexidade e seus reflexos na educação (2002).
2
Professor titular de Antropologia. Coordenador de COMPLEXUS – Núcleo de Estudos da Complexidade da
Faculdade/PG de Ciências Sociais da PUC/SP.
39
ras do metiê antropológico. As sociedades
preconceituoso para explicar a essência dos
humanas passaram a ser identificadas a or-
interditos. De qualquer forma, a proibição
ganismos, cujas partes garantem, por vezes
passou a sinalizar a passagem da natureza
precariamente, a continuidade harmoniosa
à cultura, da universalidade à diversidade,
do todo. Embora a analogia fosse precária,
garantia da perpetuação e reprodução do
os pesquisadores passaram a admitir que o
mundo, propiciada pela circulação de mu-
funcionamento das instituições era o único
lheres, bens econômicos e mensagens.
responsável pela regulação da engrenagem
da sociedade. Se, por um lado, esse tipo de
Em decorrência disso, passou-se a questio-
explicação propiciou uma radiografia por-
nar se essas alteridades eram mesmo dife-
menorizada de usos e costumes, delibe-
rentes em natureza (primitivo/civilizado),
radamente não levou em conta que essas
em grau (inferior/superior) e pensamento
diferenças já faziam parte de um processo
(pré-lógico e lógico). Admitir que outros po-
histórico altamente desigual, que opunha, e
vos pensavam como nós e, por vezes, me-
opõe até hoje, Oriente a Ocidente, civilizado
lhor do que nós, representou um duro golpe
a primitivo, moderno a arcaico, capitalista a
para muitos, já narcisicamente abalados pe-
nativo ou indígena.
las impertinências e ferimentos provocados
pelas revoluções copernicana, darwiniana e
No final dos anos 40, a distinção entre o
freudiana. Mesmo que não tivessem escri-
natural e o cultural passou por alteração
ta para registrar seus saberes, os mitos que
significativa, mesmo que a ideia da nature-
construíram para entender melhor a reali-
za como universalidade dos instintos e a de
dade em que viviam atravessaram gerações
cultura, como diversidade de padrões tenha
e, até hoje, surpreendem leitores e pesqui-
sido mantida. Passou-se a postular que entre
sadores.
a natureza e a cultura havia algo simultaneamente universal e particular, um fenôme-
O arrogante pensamento domesticado, mo-
no que se encontrava presente em todas as
derno, científico, que se consolidou a partir
sociedades humanas e que, ao mesmo tem-
do século XV, cercado de certezas, leis, de-
po, era diferente em muitas delas. Esse algo
terminismos, causalidade, teleologias, dei-
mais era a proibição do incesto. O respon-
xou de lado a preocupação com a totalidade,
sável por este estudo foi Claude LéviStrauss.
com a intuição, com o imaginário, passando
a se concentrar no entendimento do frag-
Se o incesto não tinha nada a ver, neces-
mento, da parte, supondo que através deles
sariamente, com uniões consanguíneas, o
seria possível atingir uma objetividade sem
apelo da “voz do sangue” tornou-se inútil,
parênteses. Com isso, virou as costas para
40
o sujeito, para a incerteza e para a comple-
Para surpresa de muitos, esses estranhos
mentaridade, privatizou terras e mares, con-
mundos passaram a ser considerados como
siderou magias e mitos como algo irracio-
as primeiras “sociedades da afluência”, pois
nal, produto descartável criado pela mente
dedicavam poucas horas ao trabalho e, em
obscura de selvagens, ou por alucinações
muitas delas, a palavra trabalho nem existia.
dos civilizados.
O restante do tempo era dedicado aos rituais reforçadores da vida e da solidariedade
A principal consequência dessa visão de
coletivas.
mundo, no plano da educação, acabou por
consagrar, em décadas posteriores, a figura
Essa ampliação cognitiva não conseguiu
do especialista, esse humano fechado em si
abalar o sólido edifício do grande paradigma
mesmo, egoísta, que descarta e desconsi-
do Ocidente, e isso porque ainda mantinha
dera tudo aquilo que ocorre para além dos
a definição do humano dentro de padrões
contornos infinitamente pequenos de sua
normativos demais. Afinal de contas, fazen-
existência e de seu objeto de pesquisa.
do parte do gênero homo, a espécie sapiens é
igualmente faber, porque fabrica instrumen-
O final dos anos 60 provocou outra altera-
tos, loquens, porque articula fantásticos jo-
ção no entendimento entre nós e os outros,
gos de linguagem, ludens, porque se encan-
só que agora referente às formas materiais
ta com jogos e rituais, simbolicus, porque
de vida, às relações com a natureza pro-
atribui significados ao mundo e acumula e
priamente dita. Um número considerável
transmite saberes.
de pesquisadores, identificados com o materialismo histórico, debruçou-se sobre po-
Não foi fácil admitir que não éramos ape-
pulações não capitalistas, demonstrando
nas sapiens. Se chimpanzés, bonobos, gori-
que uma vida igualitária, regida por normas
las já exibem sapientalidade, ganhamos um
coletivas e solidárias não era coisa do outro
segundo adjetivo e passamos a ser definidos
mundo. Constatou-se, também, que não era
como sapiens sapiens. A repetição do ter-
necessário trabalhar arduamente em tempo
mo não se deu por acaso. As pesquisas de
integral para que a comunidade sobrevives-
Richard e Louis Leakey, Jane Goodall, Frans
se dignamente. Maurice Godelier e tantos
de Waal mostram a todos nós que a cultu-
outros foram os responsáveis por essa esto-
ra, antes privilégio nosso, é algo muito mais
cada no relativismo substantivista, que sem-
amplo do que supúnhamos anteriormente.
pre se traveste de tolerante para justificar e
O “antropocentrismo satírico” de Wall fun-
manter a dominação.
damenta-se no pressuposto de que chim-
41
panzés, por exemplo, vivem em sociedades
inscritos numa complexa ordem biológica;
complexas, e se arranjam como podem para
somos culturais porque capazes de elaborar
enfrentar alianças, conflitos e lutas pelo po-
estratégias de sobrevivência e adaptação, a
der. Bonobos preferem fazer amor sob for-
curto, médio e longo prazos, onde quer que
mas as mais variadas, para que as contendas
nos encontremos. Em resumo, e a ideia é de
se anulem e a reconciliação seja reposta.
Edgar Morin, somos 100% natureza, 100%
cultura, ou melhor dizendo, somos seres vi-
A diminuição da distância intelectual e cog-
vos uniduais, carregamos conosco uma tra-
nitiva entre primatas exigiu que o conceito
jetória biológica milenar, ao mesmo tempo
fosse visto de modo menos excludente, o
em que somos portadores de um vasto acer-
que de fato ocorreu a partir dos anos 70. Ao
vo cultural constituído pela memória coleti-
manter acopladas as noções de unidade e
va da espécie.
diversidade, a cultura passou a ser entendida como um conjunto complexo de saberes,
Porque falamos, comunicamos, planejamos,
por vezes contraditório, por outras harmô-
calculamos, competimos, amamos e odia-
nico, de regras, normas, valores, mitos, so-
mos, passamos a nos autoatribuir uma su-
nhos, que primatas, humanos preferencial-
perioridade ímpar perante os demais seres
mente, acionam ao se defrontarem com os
vivos. Em cada um de nós existe algo que es-
desafios do ecossistema circundante.
capa a essas características normativas demais, sistemáticas demais. A cada momen-
Semelhantes e diferentes, universais e par-
to, somos invadidos por delírios, sonhos,
ticulares, produzimos diferenças locais que
excessos, loucuras, descomedimentos que
não devem ser entendidas como ilhas inco-
escapam a nosso controle explícito, cons-
municáveis de um arquipélago, mas como
ciente.
um continente de objetos complexos, manifestações de algo mais profundo e universal,
Treinados pela educação familiar e escolar a
construído num longo processo evolutivo
afastá-los de nossa imaginação e a recalcá-
não linear, que envolveu sempre perdas, ga-
-los em nossa psique, temos que reaprender
nhos, avanços e recuos.
a conviver e dialogar com eles, ou seja, introjetar em nossas cabeças que somos sá-
Longe de serem consideradas como uma
bios e loucos, unos e múltiplos, duplos, e
dualidade de fronteiras intransponíveis, é
que é exatamente isso que vialibizará, sem
preciso acionar os operadores da recursivi-
excessos, processos civilizatórios solidários
dade e da dialógica e enxergar a natureza na
e processos educativos religados. Sapiens sa-
cultura e vice-versa. Somos naturais porque
piens demens, eis nossa condição, plano de
42
imanência que nos permite viver, sobreviver,
pativo, restaurador do homem genérico,
afrontar, e talvez superar, a insignificância
que envolve princípios, valores, utopias e,
dos mal-estares pós-modernos comandados
certamente, um contrato planetário, social
pela unidimensionalidade da tecnociência,
e natural, no qual animais e homens, natu-
pela compulsão da conectividade, pela des-
reza e cultura não se separem mais.
razão da política, pela insuficiência dos afetos.
Traduzir esses pilares para a sala de aula é
uma tarefa complexa, dadas as condições
Precisamos de um novo sujeito do conhe-
em que o ensino se encontra, debatendo-
cimento, que não seja tecnofóbico e muito
-se entre uma utopia democrática, a escola
menos antropofóbico, que reconheça o pa-
para todos, e uma realidade meritocrática, a
pel das tecnologias do infinitesimal, sem
escola para alguns. Além disso, a fragmen-
atribuir-lhes papel determinante para desti-
tação disciplinar, empenhada em transmitir
nos futuros. O planeta tem urgência de ser
conteúdos e gerar competências, esquece-se
mais integrativo e interdependente. Se fosse
de que a formação do sujeito responsável re-
possível traduzir esse ponto de vista em slo-
quer como ponto de partida a religação dos
gans de um programa político, as palavras de
saberes, cabeças bem-feitas, como preten-
ordem dessa biocosmopolítica serão: conser-
dia Montaigne.
vação em lugar de destruição, religação em
lugar de fragmentação, cooperação em lugar
Uma vez perguntaram a um poeta, mais
de competição, partilha em lugar de concen-
exatamente a Yves Bonnefoy, porque ele
tração, inclusão em lugar de exclusão.
considerava fundamental o ensino da poesia nas escolas. Sua resposta foi direta e
A UNESCO, ao promover os quatro pilares
incisiva. Disse ele que a poesia propiciava
da educação para o século XXI, em torno de
a prática da liberdade para com as palavras
quatro formas de aprendizagem, a saber:
e a vivência da responsabilidade com um
conhecer, fazer, viver junto e ser, estava cer-
mundo melhor, com o sentido da vida. A po-
tamente imbuída da ideia de que a humani-
esia e a literatura em geral, as artes, com as
dade, a Terra-Pátria, não pode ser concebida
imagens que constroem, criam uma fantás-
como um meio de obter lucros e vantagens
tica reserva de emoções, abrem janelas para
para poucos, mas como um fim a ser cons-
o mundo, acionam níveis de realidade não
truído por todos e para todos. Na verdade,
percebidos pela linguagem fria e distante
trata-se de um aprendizado complexo, a ser
dos conceitos. Quando se aprende um po-
exercitado não apenas nas escolas, mas na
ema de cor, quando se lê um romance pela
vida em geral. Um amplo processo partici-
décima vez, ou se guarda a imagem de uma
43
pintura, eles permanecem para sempre em
conhecimento pertinente e não se deixar se-
nossa mente, como fiéis companheiros que
duzir pelos confortáveis apelos da fragmen-
nos convidam a encarar a desregulação do
tação e da hiperespecialização. Restaurar o
mundo de modo menos pessimista, a per-
conhecimento pertinente implica integrar
ceber a realidade de forma menos linear, a
razão e paixão, onda e partícula, unidade e
descrer dos ditames da razão, a usufruir das
multiplicidade, arte e ciência, em acionar
delícias do imaginário.
uma espécie de significante flutuante, uma
força primordial que circula por toda parte,
Essa escuta do mundo não implica obrigar
que atravessa todos os códigos, que recupe-
as escolas a incluírem a poesia em seus cur-
ra o sentir, o agir e o pensar, que religa indi-
rículos, embora isso fosse até desejável. Ela
víduo, sociedade e cosmo, que se situa além
alerta, porém, para o fato de que ciência e
e aquém da vida e da morte.
imaginação não se excluem, mas se complementam, empenhadas que estão na decifra-
Toda vez que pensadores instauradores de
ção dos enigmas da vida. Não é mais possí-
discursividade utilizaram-se da forma meta-
vel que a educação do século XXI mantenha
fórica da arte para aclarar o conteúdo som-
a separação entre as duas culturas, a saber: a
brio e metonímico da ciência, os saberes
cultura científica e a cultura das humanida-
culturais se enriqueceram, as duas culturas
des. Refiro-me, mais uma vez, aos propósi-
se interligaram, a educação sentiu-se mais
tos da UNESCO que pregam os princípios de
gratificada. Vejamos alguns poucos momen-
educação permanente, sociedade educativa,
tos escolhidos ao acaso na vasta história do
reciclagem e atualização contínua dos con-
pensamento em que isso ocorreu.
teúdos, sinergia entre alunos e professores.
Um ensino compartimentalizado não conse-
Claude LéviStrauss, em 1962, muniu-se de
guirá jamais promover esses objetivos. A re-
um pequeno quadro de François Clouet do
ligação exige não apenas cabeças bem-feitas,
século XVI (1515-1572), Elisabeth da Áustria,
mas disponibilidade e revolta docentes para
para construir a ideia de modelo reduzido
abrir compartimentos, fomentar incertezas,
como elemento propiciador da emoção es-
promover o diálogo, reinventar o mundo.
tética e da visibilidade dialógica entre a parte e o todo, magia e ciência, arte e ciência,
Se o século XX presenciou a irrupção da de-
jogo e rito.
sordem, da incerteza e da complementaridade e expôs como nunca a interface en-
Humberto Maturana e Francisco Varela
tre ciência e política, o século XXI tem pela
abrem seu fabuloso livro, A Árvore do conhe-
frente a inédita possibilidade de restaurar o
cimento, com Hieronimus Bosch (1450-1516),
44
“O Cristo coroado de espinhos”. Para Ma-
cifrá-los e analisá-los. Se a história humana
turana e Varela, o quadro expressa as ten-
possui sempre um caráter não determinista,
tações da certeza. Cristo, no centro, revela
devemos privilegiar as experiências da cria-
imensa paciência diante dos verdugos, coisa
tividade, esse algo mais que resiste ao pen-
que precisamos muito diante da vigilância
samento em detrimento das experiências da
cognitiva que nos ataca constantemente. O
repetição, prosaicas, equilibradas demais.
personagem do canto direito segura Jesus
A arte de viver expressa exatamente isso: a
pelo manto. Restringe sua liberdade, parece
luminosidade da criatividade e a singeleza
dizer “eu sei, eu sei”. Certezas demais, con-
da repetição. Simetricamente irreversíveis,
vicções demais.
nos debatemos entre essas duas dimensões
existenciais, pulsões constitutivas do serno-
Edgar Morin refere-se, com certa frequência,
mundo, como se a ordem nascesse sempre
a Guiseppe Archimboldo (1527-1593). Quan-
da desordem, a vida sempre da morte, e as-
do tomamos contato com suas pinturas,
sim sucessivamente.
nos surpreendemos com o caráter alegórico
da harmonia e do caos, a interdependência
Finalmente, reencontramos Fernando Diniz
dos quatro elementos, das estações do ano,
(1918-1999). Em 1944, foi preso e levado para
a comple¬mentaridade de flores, frutos e
o manicômio judiciário, porque, segundo
peixes, as agruras e o peso da acumulação
dizem, andava nu pelas areias de Copacaba-
dos saberes. O Livreiro, um de seus quadros
na. Em 1949, foi internado no Centro Psiqui-
mais comentados pelos críticos de arte, en-
átrico D. Pedro II, de onde não saiu nunca
contra-se literalmente embriagado de livros,
mais. Iniciou-se nos ateliês de artes coorde-
tragado pelo conhecimento. Descarnado, a
nados por Nise da Silveira, a doutora Nise,
cortina o livra das intempéries do frio. Um
odiada pela vigilância cognitiva instalada
pouco de todos nós estamos contidos nas
na psiquiatria cartesiana, que considerava
imagens desse Livreiro, que acumula e religa
os coterapeutas utilizados pelos clientes
saberes sem saber ao certo o que fazer com
simplesmente como animais destituídos de
eles, como operacionalizá-los.
emoções. A doutora sabia muito bem que
seus gatos e cachorros sofreriam muito nos
Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de
corredores hospitalares do Pedro II. Não
1977, debruçou-se recentemente sobre René
esmoreceu. Colocou tintas, pincéis, barro,
Magritte (1898-1967). Para Prigogine, Magrit-
tecidos, linhas nas mãos de Artur Bispo do
te enfatiza sempre os mistérios da existên-
Rosário, Adelina, Carlos, Raphael, Emygdio,
cia humana, insistindo que a obra de arte
Fernando, permitindo que “inumeráveis es-
os explicita e a ciência pretende, apenas, de-
tados do ser” aflorassem, mesmo diante das
45
tristes consequências que choques, medica-
que não tem fim”. Desfez a separação entre
mentos, desafetos e abandonos provocam
arte e loucura, consciente e inconsciente,
na psique. Qualquer visita ao Museu das
religou saberes.
Imagens do Inconsciente, criado em 1952 no
Rio de Janeiro, produz uma infinita sensação
Afinal de contas, como ele mesmo afirma
de êxtase diante dos símbolos que as forças
num texto que escreveu, “a estrela existe,
do inconsciente acionam e explicitam.
antes de tudo, em cima da estrela se desenham círculos, e em cima dos círculos bor-
Fernando Diniz produziu não apenas tape-
boletas ou margaridas”. Em 1996, foi pre-
tes digitais e mandalas, mas um mosaico de
miado no Festival de Gramado na categoria
imagens figurativas, abstratas, orgânicas,
de melhor curta-metragem com o desenho
inorgânicas. Trinta mil obras: telas, dese-
animado “A estrela de oito pontas”, para o
nhos, modelagens, tapetes, alguns titulados
qual realizou cerca de 40 mil desenhos. Rea-
outros não. Diz ele: “mudei para o mundo
lizou sua última exposição em 1998, no Mu-
das imagens”. Instado a definir o que era
seu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
um pintor afirmou: “o pintor é feito um livro
Morreu em 1999.
46
V. Redes
de convivência e de enfrentamento das
desigualdades1
Elizeu Clementino de Souza2
“Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio: pilar da ponte
de tédio que vai de mim para o outro”
(Mário de Sá Carneiro).
Sinopse
da construção da identidade profissional no
processo da formação docente e do desen-
O texto aborda questões relativas à identi-
volvimento profissional de professores, no
dade e à diferença no cotidiano escolar e
que se refere às diferenças e à intercultura-
as implicações nas práticas de formação.
lidade na escola.
Busca discutir aspectos concernentes à fabricação de identidades docentes e formas
historicamente construídas de regulação no
cotidiano escolar e no desenvolvimento profissional dos professores, a partir das práticas pedagógicas implementadas na cultura
escolar, no tocante à homogeneização das
identidades, em negação à cultura da diferença.
Vivemos numa sociedade marcada pela pluralidade de imagens e diferenças sociais
e culturais. A escola, por sua vez, buscará
desenvolver seu projeto pedagógico com
ênfase nas diferenças e nas relações que os
indivíduos estabelecem consigo mesmos e
com os outros. Convém questionar se nós,
professores, desenvolvemos nossas práticas
tendo em vista a assunção das identidades
Neste texto, que visa oferecer subsídios aos
e o respeito às diferenças. Como podemos
debates do terceiro programa da série, pre-
viver os projetos de igualdade e do respei-
tendo discutir questões teóricas e práticas
to à diversidade, tão presente e marcada na
relacionadas à construção da identidade e à
sociedade brasileira? De que maneira a es-
vivência das diferenças no cotidiano escolar.
cola pode tornar-se um território favorável à
Pretendo, também, analisar as implicações
aprendizagem do convívio com a diferença?
1Espaços de encontro: corporeidade e conhecimento – 2005 / PGM 3.
2
Doutor em Educação pela FACED-UFBA, Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia e das Faculdades Integradas Olga Mettig.
47
Compreendo a educação como um processo
para a vivência, para a tolerância e para o
de autotransformação do sujeito, que en-
respeito ao exercício da cidadania.
volve e provoca aprendizagens em diferentes domínios da existência, evidenciando o
Discutir a fabricação da igualdade, tomada
processo que acontece em cada indivíduo,
aqui como projeto de homogeneização dos
traduzindo-se na dinâmica que estrutura ou
indivíduos e da negação das diferenças no
é estruturada por cada um no seu modo de
espaço da escola, é uma tarefa que exige re-
ser, estar, sentir, refletir e agir. Sendo assim,
afirmação de novas e constantes opções que
a educação e, por consequência, também
cruzam e entrecruzam a compreensão do
a formação, não se esbarram na transmis-
mundo, da vida, das aprendizagens e expe-
são e aquisição de saberes, na transferência
riências construídas ao longo da existência.
de competências técnicas e profissionais e,
tampouco, na assertiva das potencialidades
A vivência escolar se entrecruza, no seu co-
individuais. Filio-me à perspectiva epistemo-
tidiano, com valores produzidos no coleti-
lógica da formação experiencial, por enten-
vo e no âmbito social, na medida em que
der que a noção de processo de formação
esses valores se modificam de acordo com
que ela implica possibilita o centramento
os condicionantes econômicos, políticos,
no sujeito na globalidade da vida, entendida
institucionais, culturais, físico-ambientais e
como interação da existência com as diver-
ético-estéticos. Compreendo que é desse en-
sas esferas da ‘con-vivência’ como perspec-
trecruzamento que são apropriados, cons-
tiva educativa e formativa.
truídos e reconstruídos diversos processos
e formas da vida dos sujeitos como produ-
É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas
tores e construtores da história. Por isso,
no nosso cotidiano que aprendemos dimen-
penso que não devemos fechar a noção de
sões existenciais e experienciais sobre nós
“identidade” como algo fixo, imutável e cris-
mesmos, sobre os outros e sobre o meio em
talizado, porque significa construção, daí a
que vivemos. No entrecruzamento de nossas
necessidade de compreendê-la como pro-
aprendizagens, a escola exerce um papel sin-
cesso que comporta subjetividades, comple-
gular, visto que neste espaço ‘convivemos’
xidades, diferenças e não igualdades.
e internalizamos papéis sociais apreendidos
no cotidiano familiar. O investimento na for-
É fundamental desconfiar de tudo que é
mação de professores e no trabalho coletivo
naturalizado, especialmente, em relação às
na escola poderá possibilitar outras formas
práticas cotidianas engendradas na escola e
de trabalho didático e pedagógico, que con-
no espaço familiar, as quais são ancoradas
tribuam para a reafirmação de identidades,
em padrões, envolvendo os sujeitos e refor-
48
çando o projeto de igualdade, reforçando a
mos a construção das identidades, também
marginalização e escamoteando as diferen-
somos perseguidos por esse modelo de es-
ças3 daqueles que transitam e optam por
tabilidade, de harmonia e de cristalização
formas de expressão e de manifestação que
como padrão desejado. A sociedade nos
não se enquadram nas legitimidades sociais
dá, prontas, algumas identidades: homem,
e institucionais.
mulher, professor, artista, mãe, pai, família,
escola etc.” (Pereira, 2000, p. 36). Desta for-
Teoricamente, busco em Louro (1997, 1998),
ma, reitera o autor que: “Uma identidade é,
Hall (2000) e Silva (1999, 2000) princípios te-
nesse caso, uma configuração cristalizada,
óricos que me possibilitem apreender con-
estereotipada de uma maneira de ser ou um
ceitos e políticas de sentido sobre a iden-
ritmo determinado em responder às figuras
tidade e a diferença no cotidiano escolar,
demandadas [...]. A institucionalização das
visto que “[...] consideramos a diferença
identidades é uma forma de homogeneizar
como um produto derivado da identidade.
o cotidiano e construir os grupamentos e as
Nesta perspectiva, a identidade é a referên-
coletividades [...]” (idem, p. 37). Evidencia-
cia, é o ponto original relativamente ao qual
-se que a identidade não é uma construção
se define a diferença [...]” (SILVA, 1999, p. 74-
do sujeito por ele mesmo em suas relações
5). Numa outra perspectiva, e no que con-
individual e coletiva, mas sim uma diferen-
cerne à fabricação de identidades docentes,
ça que o sujeito produz em si. Por isso, a
busco em Lawn (2000), Moita (1992) e Nóvoa
identidade é produzida e forjada conforme
(1992a, b), aspectos teóricos sobre a cons-
os modelos e padrões estabelecidos, como
trução de identidades profissionais e práti-
quer a nossa sociedade, com base nas es-
cas de regulação engendradas nas políticas
tratégias e estratificações convencionadas
de formação.
socialmente.
Ao abordar a subjetividade e o processo de
Ao discutir sobre “Os professores e a fabri-
formação e (auto) formação do “devir pro-
cação de identidades” Lawn4 (2000) afirma
fessor”, Pereira afirma que: “Quando pensa-
que a construção e as alterações na identi-
3
Para o aprofundamento dessa questão, consultar o trabalho de Stela Rodrigues dos Santos (2001): ‘O mito
da homogeneidade no cotidiano da escola: um ideal insensato’, quando a autora analisa implicações e práticas
discriminatórias e homogeneizadoras no cotidiano escolar, no tocante à fabricação de identidades dóceis e
subservientes.
4Embora, como salienta o autor, o texto trate de um caso particular – os professores e a sociedade inglesa
–, entendo que as questões por ele colocadas são cabíveis em outras esferas, que não especificamente o sistema
público inglês. Afirma o autor que “[...] A identidade do professor tem o potencial para não só refletir ou simbolizar
o sistema, como também para ser manipulada, no sentido de melhor arquitetar a mudança [...]” (Lawn, 2000, p. 71).
49
dade são forjadas e governadas pelo Estado,
aos modelos político-econômicos e refletem
o qual utiliza discursos como forma de con-
as alterações que são impressas no trabalho
trolar as “identidades oficiais”. O discurso
docente, relacionando-se às formas de con-
revela-se como elemento de governação das
trole sobre a identidade dos professores e as
identidades oficiais e gerencia as reformas
tecnologias impostas pelo trabalho.
pensadas como estratégias políticas de um
determinado momento histórico.
Historicamente, as questões sobre fabricação da identidade e políticas reguladoras de
O controle da identidade dos professores e
fronteira são ilustradas pelas lutas e tensões
o estabelecimento de ações de fiscalização
dos professores nos movimentos trabalhis-
instauram-se como matriz da gestão da pro-
tas ao longo do século XX, na vinculação a
fissão, porque a mesma deve refletir e ade-
partidos de esquerda, na eleição ou candi-
quar-se ao projeto educacional do Estado e
datura de professores e na participação em
representar a ideia de “identidade nacional e
movimentos sociais.
de trabalho” (p. 69), como forma de garantir
mudanças no sistema educativo.
Em diferentes períodos e reformas, a fixação
da identidade dos professores, gerenciada
Evidencia-se que a identidade é produzida
através dos discursos, materializa-se nas
e performatizada através do discurso legal,
mudanças e na reestruturação do trabalho.
do administrativo e do pedagógico, os quais
Estruturas e políticas tácitas são pensadas
são expressos através de parâmetros, regu-
pelo Estado como forma de regulação das
lamentos, manuais, portarias, discursos pú-
identidades dos professores, seja para a ma-
blicos, projetos e programas de formação.
nutenção das identidades oficiais ou para o
policiamento das fronteiras identitárias. Os
A relação posta pelo autor entre a fixação de
professores contrapõem-se, através dos mo-
uma identidade nacional ou oficial e o mun-
vimentos associativos e sociais da profissão,
do do trabalho torna-se visível pelos efeitos
ao discurso de governação e às políticas de
práticos e ideológicos da administração e
fronteira. A autonomia e o domínio exerci-
da governação dos professores, seja através
do no espaço da sala de aula, assim como
das políticas de formação, das exigências
o controle por parte do sujeito professor do
e ‘competências’ requeridas para seleção
seu fazer, podem criar dimensões de não
ou contratação, o que evidencia que “[...] a
subserviência, de oposições e tensões sobre
identidade pode ser um aspecto chave da
a manutenção e as políticas de fronteiras
tecnologia do trabalho [...]” (p. 71). As mu-
pensadas e reguladas pela nação, visto que
danças e reformas educativas vinculam-se
a “[...] existência de professores que não se
50
adequam às identidades oficiais causa pâni-
nos anos 80, a identidade dos professores re-
co. Da mesma forma, as ideias que os pro-
presentava um domínio sobre o fazer e cir-
fessores têm, e as pessoas às quais se asso-
cunscrevia-se no espaço da sala de aula e na
ciam, também causam pânico [...]” (p. 76).
organização da escola, num modelo de des-
Este princípio configura-se como um dos
centralização como sinônimo de qualidade,
problemas relacionados à manutenção das
a partir do início dos anos 90 as identidades
fronteiras, estabelecendo dificuldades para
e os mecanismos de controle são explicita-
controlar e manter fidedignas as identidades
dos nas políticas de formação e de certifica-
oficiais.
ção, as quais configuram modelos de competências, de uma cultura da excelência e na
Novos problemas são impostos cotidiana-
diversidade de imagens e de representações
mente à identidade dos professores e às
de professores que é engendrada pelos dife-
políticas de fronteira. Gerir a identidade
rentes modelos de escolarização.
docente, através da polifonia de discursos
construídos na modernidade – como forma
Outra vertente de reflexão sobre a identida-
de um novo controle sobre a profissão, ou
de é construída na perspectiva dos estudos
para as transformações exigidas pela socie-
culturais5, apreendendo a identidade como
dade do aprender a aprender – instala uma
‘aquilo que é’ e a diferença, como o oposto
nova crise sobre a profissão e os saberes da
à identidade, como ‘aquilo que não é’, visto
profissão. As mudanças na forma de pensar
que ambas estão numa relação de estreita
e de viver a identidade docente são constru-
dependência. Ou seja, a forma de expressão
ídas desde a década de 80, e se consubstan-
da identidade, como fixa e imutável, demar-
ciam na emergência de uma sociedade tec-
ca e escamoteia as relações postas nesta
nológica, numa economia globalizada e no
relação, ou como algo que se esgota em si
acirramento das injustiças e desigualdades
mesmo. “A identidade está ligada a estru-
entre as pessoas e as nações.
turas discursivas e narrativas. A identidade
está ligada a sistemas de representação. A
Tais mudanças mexem significativamente
identidade tem estreitas conexões com rela-
com a forma de pensar e de exercer a pro-
ções de poder” (Silva, 1999, p. 97). Identidade
fissão docente, incluindo os formatos de
e diferença são produções históricas, resul-
controle e de regulação das identidades. Se,
tantes de processos de produção simbólica e
5Em relação às teorizações construídas no campo dos estudos culturais sobre identidade e diferença, busco
em Louro (1997, 1998), Hall (2000) e Silva (1999, 2000) princípios teóricos que me possibilitem sistematizar aspectos
sobre tal abordagem.
51
discursiva que envolvem poder, saber, disci-
desenrola [...]” (1992 p. 115-6). A identidade
plinamento, inclusão, exclusão e que se ca-
profissional assenta-se em saberes cientí-
racterizam em representações.
ficos e pedagógicos e tem como referência
axiomas éticos e deontológicos. Pode-se
Conforme Louro (1997), “a escola delimita
apreender que é forjada e performatizada
espaços” , os quais são instituídos a par-
a partir do contexto e dos interesses postos
tir de símbolos e códigos, mapeando o que
historicamente como forma de controle e
cada um pode ou não pode fazer, separando,
de organização das mudanças educativas
agregando, elegendo, classificando e legiti-
ou, ao contrário, como forma de não assu-
mando diferenças em suas identidades ‘es-
jeitamento ao estabelecido. Ainda assim, a
colarizadas’.
autora reitera que a identidade profissional:
6
“É uma construção que tem marca das exDas representações, sentimentos, gestos e
periências feitas, das opções tomadas, das
olhares, aprendemos, no cotidiano escolar,
práticas desenvolvidas, das continuidades e
a construir identidades e diferenças. É nesse
descontinuidades, quer ao nível das repre-
movimento de ‘arquitetura’ das identidades
sentações, quer ao nível do trabalho concre-
que busco entender os mecanismos e movi-
to” (idem, p. 116).
52
mentos pensados ideológica e tacitamente
sobre as produções das identidades docentes
Conforme Nóvoa (1992b, c), a identidade é
em suas transformações históricas. Identida-
entendida como um lugar de lutas, tensões e
des que são reguladas, imitadas, performati-
conflitos, caracterizando-se como um espa-
zadas conforme os modelos estabelecidos.
ço de construção do ser e estar na profissão,
que parte do pessoal para o profissional e
Para Moita, a identidade profissional “[...] é
vice-versa. “[...] É um processo que necessita
uma construção que tem uma dimensão es-
de tempo. Um tempo para refazer identida-
paço-temporal, que atravessa a vida profis-
des, para acomodar inovações, para assimi-
sional desde a fase da opção pela profissão
lar mudanças” (1992b, c, p. 16).
até a reforma, passando pelo tempo concreto da formação inicial e pelos diferentes
As histórias de vida, as representações e as
espaços institucionais onde a profissão se
narrativas de formação marcam, tanto na
6Segundo Louro, “Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por
meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a
falar e a calar; se aprende a preferir. [...] E todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam
e também produzem diferenças. Evidentemente, os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas.
Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem
inteiramente” (1997, p. 61).
dimensão pessoal, quanto profissional, e
LOURO, Gaucira Lopes. Gênero, sexualidade e
entrecruzam movimentos potencializado-
educação. Petrópolis: Vozes, 1997.
res da profissionalização docente, porque
“[...] um professor tem uma história de vida,
__________________. Segredos e mentiras do
é um ator social, tem emoções, um corpo,
currículo. Sexualidade e gênero nas práticas
poderes, uma personalidade, uma cultura,
escolares. In: SILVA, Luiz Heron da (org.). A
ou mesmo culturas, e seus pensamentos e
Escola Cidadã no contexto da globalização.
ações carregam as marcas do contexto nos
Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 33/47. MOITA,
quais se inserem” (Tardif, 2000, p. 15). Nesta
Maria da Conceição. Percursos de formação
perspectiva, a epistemologia da prática, os
e de trans-formação. In: NÓVOA, António
saberes e a história de vida são significativos
(org.). Vida de Professores. Porto: Porto Ed.,
para a aprendizagem profissional. Não po-
1992, pp. 111-140.
demos separar os saberes das histórias, dos
contextos que os instituem, modelam e definem, visto que eles implicam a forma de ser
e estar na profissão e demarcam possibilidades de trabalhar o desenvolvimento pessoal
e profissional do professor, bem como po-
______________ (org.). Profissão professor. Porto: Porto Ed., 1992a.
______________ (org.). Vida de professores.
Porto: Porto Ed., 1992b.
tencializam práticas pedagógicas centradas
___________. Os professores e as histórias da
na pedagogia da diferença.
sua vida. In: NÓVOA, António (org.). Vida de
professores. 2 ed. Porto: Porto Ed., 1992c, pp.
Referências
11-30.
SANTOS, Stela Rodrigues dos. O mito da ho-
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?
mogeneidade no cotidiano da escola: um
In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e di-
ideal insensato. In: Revista da Faculdade de
ferença: a perspectiva dos estudos culturais.
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Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 103/133.
dez./, 2001), Salvador: EDUFBA, 2001, pp.
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LAWN, Martin. Os professores e a fabricação
de identidades. In: NÓVOA, A. e SCHRIEWER,
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferen-
J. (orgs.). A difusão mundial da escola. Lisboa:
ça: a perspectiva dos estudos culturais. Petró-
EDUCA, 2000, pp. 69-84.
polis: Vozes, 2000.
53
_________________. Documentos de Identida-
elementos para uma epistemologia da prá-
de: uma introdução às teorias do currículo.
tica profissional dos professores e suas con-
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
sequências em relação à formação para o
magistério. Revista Brasileira de Educação,
TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos
Campinas, ANPED – Autores Associadas, nº
professores e conhecimentos universitários:
13, pp. 05-21, jan./abr. 2000.
54
VI. Diversidade e currículo1
Nilma Lino Gomes2
A diversidade, do ponto de vista cultural,
passaram a destacar politicamente as suas
pode ser entendida como a construção his-
singularidades e identidades, cobrando tra-
tórica, cultural e social das diferenças. Ela
tamento justo e igualitário, desmistificando
é construída no processo histórico-cultural,
a ideia de inferioridade que paira sobre dife-
na adaptação do homem e da mulher ao
renças socialmente construídas.
meio social e no contexto das relações de
poder. Os aspectos tipicamente observáveis,
que se aprende a ver como diferentes, só
passaram a ser percebidos dessa forma porque os sujeitos sociais, no contexto da cultura, assim os nomearam e identificaram.
Não é tarefa fácil trabalhar pedagogicamente com a diversidade, sobretudo em um país
como o Brasil, marcado por profunda exclusão social. Um dos aspectos dessa exclusão
– que nem sempre é discutido no campo
educacional – tem sido a negação das dife-
O grande desafio está em desenvolver uma
renças, dando a estas um trato desigual.
postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender que nenhum grupo humano
e social é melhor do que outro. Na realidade, todos são diferentes. Tal constatação
e senso político podem contribuir para se
avançar na construção dos direitos sociais.
Para avançar na discussão, é importante
compreender que a luta pelo reconhecimento e pelo direito à diversidade não se opõe
à luta pela superação das desigualdades sociais. Pelo contrário, ela coloca em questão
a forma desigual pela qual as diferenças vêm
A cobrança hoje feita à educação, de inclusão
sendo historicamente tratadas na socieda-
e valorização da diversidade, tem a ver com
de, na escola e nas políticas educacionais.
as estratégias por meio das quais os grupos
Essa luta alerta, ainda, para o fato de que, ao
humanos e sociais considerados diferentes
desconhecer a diversidade, pode-se incorrer
1 Esse artigo faz parte de um texto maior publicado na coletânea Indagações sobre Currículo – MEC. Parte do
mesmo também integra o Documento-Referência da Conferência Nacional de Educação Básica (MEC).
2
Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFMG. Doutora em Antropologia Social/USP e
coordenadora do Programa Ações Afirmativas na UFMG.
55
no erro de tratar as diferenças de forma dis-
contextos históricos, políticos, sociais e cul-
criminatória, aumentando ainda mais a de-
turais, algumas diferenças foram naturaliza-
sigualdade, que se propaga via conjugação
das e inferiorizadas, tratadas de forma de-
de relações assimétricas de classe, raça, gê-
sigual e discriminatória. Trata-se, portanto,
nero, idade e orientação sexual.
de um campo político por excelência.
Compreender a relação entre diversidade e
Cabe destacar, aqui, o papel dos movimen-
currículo implica delimitar um princípio ra-
tos sociais e culturais em prol do respeito
dical da educação pública e democrática: a
à diversidade. Os movimentos negro, femi-
escola pública se tornará cada vez mais pú-
nista, indígena, juvenil, dos trabalhadores
blica na medida em que compreender o di-
do campo, das pessoas com deficiência, GL-
reito à diversidade e o respeito às diferenças
BTs3, dos povos da floresta, entre outros, são
como um dos eixos norteadores da sua ação
atores políticos centrais nesse debate. Eles
e das práticas pedagógicas. Para tal, faz-se
colocam em xeque a escola uniformizadora,
necessário o rompimento com a postura
que, apesar dos avanços dos últimos anos,
de neutralidade diante da diversidade que
ainda persiste nos sistemas de ensino. Ques-
ainda se encontra nos currículos e em vá-
tionam os currículos, imprimem mudanças
rias iniciativas de políticas educacionais, as
nos projetos pedagógicos, interferem na po-
quais tendem a se omitir, negar e silenciar
lítica educacional, na elaboração das leis e
diante da diversidade.
das diretrizes curriculares nacionais.
A inserção da diversidade nas políticas edu-
Os movimentos sociais vão além da com-
cacionais, nos currículos, nas práticas peda-
preensão da diversidade como a construção
gógicas e na formação docente implica com-
histórica, social e cultural das diferenças.
preender as causas políticas, econômicas e
Eles politizam as diferenças e as colocam no
sociais de fenômenos como: desigualdade,
cerne das lutas pela afirmação dos direitos.
discriminação, etnocentrismo, racismo, se-
Ao atuarem dessa forma, questionam a ma-
xismo, homofobia e xenofobia.
neira como as escolas, o Estado e as políticas
públicas lidam com a diversidade e cobram
Falar sobre diversidade e diferença implica,
respostas públicas e democráticas.
também, posicionar-se contra processos de
colonização e dominação. Implica compre-
Aos poucos, vêm crescendo, também, os co-
ender e lidar com relações de poder. Para tal,
letivos de profissionais da educação, sensí-
é importante perceber como, nos diferentes
veis à diversidade. Muitos deles têm a sua
3Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros e Transexuais.
56
trajetória marcada pela inserção nos mo-
próprios de aprendizagem, com ensino
vimentos sociais, culturais e identitários, e
bilíngue e formação de profissionais da
carregam para a vida profissional suas iden-
educação oriundos dos próprios povos
tidades coletivas e suas diferenças.
indígenas;
Há uma nova sensibilidade nas escolas pú-
d) a implementação de novas formas de
blicas em relação à diversidade e suas múl-
organização e gestão para a educação
tiplas dimensões na vida dos sujeitos, a qual
de jovens e adultos, para as escolas do
vem se traduzindo em ações pedagógicas
campo, para os povos da floresta e para
concretas de transformação do sistema edu-
os estudantes com deficiência e /ou al-
cacional público em um sistema inclusivo,
tas habilidades/superdotação;
democrático e aberto à diversidade.
e) reconhecimento, garantia e construção
Os desafios postos pela diversidade na edu-
de projetos político-pedagógicos volta-
cação básica estão a exigir medidas políticas
dos à educação das comunidades rema-
que garantam para todos os grupos sociais,
nescentes de quilombos;
principalmente para aqueles que se encontram histórica e socialmente excluídos, o
f) a adoção de medidas político-pedagógi-
acesso a uma educação de qualidade. Para
cas que garantam tratamento ético e
tal, é preciso desencadear ações articuladas
espaço propício às questões de raça/et-
entre o Estado, a comunidade, as escolas e
nia, gênero, juventude e de sexualidade
os diversos movimentos sociais que consi-
na prática social da educação.
derem:
g) a criação de condições políticas e peda-
a) a necessidade de reorganização dos tem-
gógicas que garantam a implementa-
pos e espaços escolares, com vistas a
ção da Lei n. 10.639/03 (obrigatoriedade
atender a diversidade presente nas es-
do ensino de História da África e da Cul-
colas;
tura Afro-brasileira na Educação Básica)
e as Diretrizes Curriculares Nacionais
b) a inserção da discussão sobre diversidade
para a Educação das Relações Étnico-
e currículo na formação inicial e conti-
-raciais e para o Ensino de História e
nuada de professores e professoras;
Cultura Afro-brasileira e Africana, as
Diretrizes Operacionais para a Educa-
c) a adoção de medidas que garantam às
ção Básica nas Escolas do Campo e as
comunidades indígenas a utilização
Diretrizes Nacionais para a Educação
de suas línguas maternas e processos
Especial na Educação Básica.
57
VII. Reinventando a roda: experiências
multiculturais de uma educação para todos1
Azoilda Loretto da Trindade2
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante (...)
do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”
Raul Seixas
Esse texto, na verdade, se propõe a fazer uma
dos ao longo da nossa existência, por ideias
aliança com a nossa potência de vida, com
e ideais construídos ou apreendidos, por
nossa autonomia, com nossa criatividade
concepções a respeito da vida e do mundo.
de professoras e professores. Pretendemos
É bom lembrar que a Vida, no singular e no
dialogar com nossa parcela, com nossa di-
plural, é muito mais abrangente do que nos-
mensão educadora que se inquieta e se sente
sa condição humana pode captar, compre-
desafiada a cada dia, parcela/dimensão dese-
ender, capturar.
jante, que ora se alegra, ora se desespera, que
se sente encantada pela vida, que não se can-
Quando nos predispomos, quando somos
sa de ler no mundo palavras e ações que pos-
fisgadas pela percepção da existência da
sam nos valer e nos possibilitam aprender a
diferença como valor, como expansão da
trabalhar pedagogicamente, numa perspec-
riqueza humana e não como um demérito,
tiva multicultural crítica, criativa e inclusiva,
perdemos o chão das verdades, da razão,
num mundo marcado por desigualdades e
das certezas fechadas e absolutizadas e nos
injustiças sociais, étnicas e culturais.
colocamos no campo da dúvida, do devir, da
pergunta, da inquietação, da errante busca,
É bom sinalizar que qualquer caminho tri-
da incerteza.
lhado no sentido de lidar com as diferenças
no cotidiano educacional não é neutro, nem
Qualquer concepção teórica ou prática de
ideal. Todas nós estamos marcadas por nos-
trabalhar com as diferenças na sala de aula,
sas visões de mundo, por valores incorpora-
no cotidiano escolar, é passível de críticas,
1
Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 5.
2Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ, Doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ. Organizadora desta
coletânea.
58
de análise, de necessidades, de acertos, ajus-
• Imagine, por exemplo, quanto esforço é
tes. TODAS são insólitas, na medida da me-
necessário para que possamos admitir
tamorfose constante da própria Vida, afinal,
que fazem parte da espécie humana tira-
“nenhum rio passa duas vezes no mesmo lu-
mos como Hitler, ou um pedófilo, ou um
gar”, lembram? Ora, se a diferença é a regra,
criminoso. É fácil perceber a humanidade
se tudo é devir, se tudo é movimento, é di-
no que é espelho, no que consideramos
nâmica, o problema que nos coloca a Vida,
ser semelhante a nós, ou no que deseja-
o problema que nos desafia é como sermos
mos ser e valorizamos. É fácil reconhecer,
capazes de ver, perceber, conhecer, intera-
portanto, a humanidade de Gandhi, da
gir com o diferente de nós. E é bom desta-
criancinha que achamos lindinha, lim-
car que somos diferentes, inclusive, de nós
pinha e arrumadinha. Mas naquele ou
mesmos... Somos diferentes de nós mesmos
naquela que desprezamos, abominamos,
a cada momento: um livro que lemos, um
desqualificamos, desejamos ver longe de
filme que vemos, um acontecimento que vi-
nós, tal reconhecimento é de fato muito
venciamos, um carinho que recebemos ou
difícil.
damos, uma injustiça que presenciamos,
praticamos ou sofremos, o tempo passado,
• O que demanda em nós de energia para a
o sol, o frio, o calor, o amor ou desamor,
desconstrução de preconceitos ao vermos
a violência, o dia-a-dia... Tudo nos altera a
inteligência, por exemplo, numa criança
cada instante.
com algum tipo de síndrome, ou numa
criança ou adulto com paralisia cerebral.
Estamos diante do desafio, talvez similar ao
Ao percebermos força e potência em pes-
momento que antecedeu à invenção da roda,
soas com alguma deficiência, não admi-
talvez um desafio menos conceitual e mais
tindo pensar nelas como “coitadinhas”.
prático, mais vivencial, mais visceral, que
Ao percebermos essas pessoas como mais
nos coloca diante dos nossos próprios pre-
uma expressão da vida humana, e não
conceitos, do nosso racismo, do nosso ma-
como vítimas de um castigo, de uma des-
chismo, do nosso elitismo. Ora, nosso maior
graça, de uma infelicidade para a pessoa
desafio, talvez, seja enfrentar o que está den-
ou para os seus pais.
tro de nós, no nosso sangue, no nosso coração, na nossa mente, em nós mesmos.
• O que demanda de desconstrução de verdades percebermos a sabedoria nas popu-
Trabalhar com a percepção da existência da
lações indígenas, ou para desarticularmos
Diferença, como uma constante, obriga-nos
a sinonímia entre a palavra “escravo” e
a rever valores, posições, preconceitos:
os povos afrodescendentes no Brasil. Ou,
59
ainda, para conseguirmos deixar de ver
• Imagine admitir que a escola não é o lu-
como “natural” a ideia contida na expres-
gar, como muitos dizem, onde a criança
são “manda quem pode e obedece quem
se prepara para “ser alguém na vida”, ou
tem juízo”, muito cara nos espaços de
para “ser gente”, ou para se preparar para
trabalho, sobretudo no escolar, expressão
a vida. Gente e alguém todos nós já somos
elitista que coloca a obediência como um
e a vida já está sendo, aqui e agora, onde
valor, um mérito, e desqualifica o sujeito,
quer que estejamos.
subtrai dele a inteligência, sua capacidade
de pensar, ponderar, discordar, ter contribuições, criar.
• Quanto de energia física, mental, intelectual precisamos dispender para ver que
nossa visão religiosa, pedagógica, polí-
• O que se exige de nós, em termos de força,
tica, sexual, não é a melhor para toda a
não nos silenciarmos diante de qualquer
humanidade, é apenas a nossa visão, que
tipo de discriminação, de injustiça social,
pode, ou não, ser compartilhada por mui-
cultural, ou de qualquer espécie? O que
tos? Que a ideia da maioria não é necessa-
de energia é exigido de nós, em termos
riamente a melhor para todos?
de aprendizagem, crítica e reflexão, para
conseguirmos reconhecer, analisar e avaliar tais situações?
• E se a gente não sofrer em admitir tudo
isto, quanto de humildade precisamos ter
para não nos sentirmos melhores ou pio-
• Imagine ver, no analfabeto, sabedoria, afinal, a alfabetização em massa é um fenô-
res que aqueles que consideramos errados, reacionários e conservadores...
meno recente na história da humanidade
e ainda hoje há culturas eminentemente
Ora, uma educação multicultural, criativa e
orais. Constatar que a escola não é o úni-
inclusiva, no sentido de incluir na pauta as
co espaço de desenvolvimento dos seres
diferenças, o contato, o diálogo, a interação
humanos (embora seja um espaço privi-
com as diferenças, coloca a própria escola
legiado para isto). Imagine ver e valorizar
num lugar de questionamento quanto ao
o saber que não é cientifico, a sabedoria
seu papel, seu sentido, seu significado. Qual
popular que diz, por exemplo, que galo ve-
o papel da escola num contexto multicultu-
lho bota ovo, que tem cobra que de noite
ral que se sabe político, e que não se propõe
mama o leite da mulher e coloca o rabo
racista, nem elitista, nem machista, nem
na boca da criança, que os astros influen-
etnocêntrico... É essencial percebermos a
ciam a nossa vida, que tem gente com
dimensão disto tudo. O que nós, como edu-
olhar de “seca-pimenteira”!
cadores, faremos? E como faremos? Como
60
nosso currículo se configurará? Como serão
saberes socialmente valorizados e historica-
e deverão ser nossas aulas, nossa avaliação,
mente construídos. A Psicologia, a Sociolo-
nossa sala de aula? Como será nossa pos-
gia, a História, a Matemática, a Biologia, a
tura? Como não sermos tão individualistas
Física, as Ciências de um modo geral terão
e julgarmos que os outros são muito dife-
que ser revistas e rediscutidas. As disciplinas
rentes de nós, a ponto de nos transformar-
poderão até ser ultrapassadas, como aponta
mos numa ilha cercada de ilhas por todos
o professor Ubiratan D’Ambrósio (2002).
os lados? Como não ser tão universalistas a
ponto de apagarmos as singularidades cul-
É um campo delicado, sobretudo num mun-
turais, políticas, sexuais, sociais, intelectu-
do que assiste ao recrudescimento do racis-
ais? Como levar em consideração todos os
mo, do conservadorismo, da intolerância,
segmentos da escola?Como enfrentar que
que assiste a guerras religiosas e vê a violên-
nossas mais belas intenções e ações são ain-
cia se expandir galopantemente. Que perce-
da incipientes, que são muito poucas, em-
be que o poder do capital se fortalece a cada
bora necessárias? Por exemplo, trabalhar
dia, em detrimento da vida e da sobrevivên-
o multiculturalismo na escola não é ape-
cia da própria espécie e do planeta.
nas colocar imagens de todas as etnias que
compõem nossa escola nos murais, festejar
Temos que nos saber aprendizes, eternos
o Dia do Índio e o Dia Nacional da Consciên-
aprendizes, na medida em que estamos no
cia Negra. Não é apenas debater as políticas
momento de inventarmos a roda de um tra-
de cotas e outras ações afirmativas. Nem
balho multicultural na educação. Iremos
ter a imagem de uma Virgem negra como
inventar, porque não existirá O trabalho úni-
padroeira do Brasil. Tampouco ter o atleta
co, que deverá ser seguido, imitado, copiado
do século como um ícone nacional (se o que
pelos demais. Cada grupo, cada coletivida-
conta, nesse caso, é o dinheiro e não a cor
de, cada comunidade escolar deverá bus-
da pele).
car construir sua roda (ou suas rodas), mas
como não se trata de ilhas de pessoas, como
Acreditamos que uma educação multicul-
o conhecimento é coletivo e construído em
tural, inclusiva, crítica e criativa demanda
comunhão, algumas palavras-ações básicas
mudanças radicais nas estruturas de poder
devem ser fortalecidas:
da escola e da sociedade, demanda mudanças em nós mesmos e mudanças de para-
A autonomia, como capacidade de cada um
digmas. Aliás, para as mudanças de para-
tomar suas próprias decisões, mas a partir
digmas, para incorporarmos outros atores
da interação e diálogo com pontos de vistas
e interlocutores, é necessário revermos os
deferentes e diversos dos nossos;
61
O diálogo, que implica ouvir o outro, escu-
criados em meio a soluços ébrios. Segundo
tar e se deixar preencher com a palavra, com
a lenda, a cada momento um ser foi criado
a idéia, com a perspectiva do outro;
e nunca um era igual ao outro. Logo, somos
seres diversos, singulares e irregulares, so-
O movimen,to que concretiza a ação, que
mos todos diferentes, mas nos reconheça-
realiza a mudança e a criação; e
mos a todos como uma criação divina.
O contato. Não dá para se trabalhar com
Como prêmio, contingência ou como casti-
educação multicultural apenas no gabinete,
go, somos fadados à multiplicidade e a his-
na sala de estudo individual, no computa-
tória nos coloca diante do grande desafio de
dor, através dos textos, da palavra escrita. O
aceitar a diferença e aprendermos ecologi-
outro e nós temos um cérebro, uma mente,
camente, com respeito, sabedoria, humil-
produzimos palavras, poesia, virtualidade,
dade, quiçá com amor, a lidar com elas em
distanciamentos. Mas temos também um
todos os espaços, sobretudo, o que é o nos-
corpo que tem cheiro ou cheiros, cor, textu-
so caso, na escola. Neste caso, precisamos
ras, odores, sabores, expressões corporais...
fortalecer nossa autonomia, nossa capaci-
E esta percepção só acontece realmente
dade de ler e aprender no/com o mundo,
como contato, com o encontro.
assumirmos a nossa responsabilidade em
escrever no e para o mundo nossas experi-
Como diz a cosmovisão dominante, judaica
ências na busca da invenção da nossa roda,
cristã, somos descendentes de Babel, des-
a roda de trabalhos multiculturais cons-
cendentes de um povo que falava a mesma
cientes, críticos, criativos e, assim, contar
língua e que tentou chegar aos céus através
essas experiências, esse exercício, sair dos
de uma torre, desafiando Deus. Castigados
muros da escola no sentido de compartilhar
por Deus, homens e mulheres perderam a
nossas ações com outros coletivos e fortale-
harmonia e foram condenados à multiplici-
cer a complexa rede de produção de saberes
dade, a falarem várias línguas e a se descen-
da humanidade.
trarem na Terra. Sendo assim, que sejamos
pelo menos uma Babel feliz, encantada com
a multiplicidade, com o Outro.
Referências
Como conta uma lenda africana Iorubá, da
DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mu-
criação do ser humano e do mundo, somos
lher: Pequena história das transformações do
resultantes da ação de um Deus – o Orixá
corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora
que tinha bebido vinho de palma – e fomos
SENAC. São Paulo, 2000.
62
FUGANTI, Luiz Antonio. Saúde, Desejo e
do Futuro. São Paulo: Cortez, Brasília, DF,
Pensamento. In: Saúde e Loucura 2: 19-82.
UNESCO, 2000.
São Paulo: Editora Hucitec (s/d).
TRINDADE, Azoilda Loretto da. O racismo no
MORIN, Edgar. Ensinar a Condição Huma-
cotidiano escolar. Rio de Janeiro: FGV/IESAE.
na. In: Os sete saberes necessários à Educação
Dissertação de Mestrado, 1994.
63
CAPÍTULO 2
Africanidades
O segundo capítulo do livro pretende apre-
Esse texto apresenta força argumenta-
sentar uma panorâmica de reflexões rela-
tiva em articulação com a história, a
cionadas à temática afrodescendente, ou
política e a cultura, afirmando a pers-
afro-brasileira. Embora tenha o título de Afri-
pectiva das Africanidades na Educação
canidades, seus textos são de diversas visões
brasileira, como presença e como par-
positivadas acerca do patrimônio africano e
ticipação na construção de uma edu-
afro-brasileiro. Nossa intenção é garantir a
cação emancipatória.
possibilidade de observarmos a riqueza teórica, social, política, histórica, psicológica e
cultural deste patrimônio.
II. Humilhação, encorajamento, e construção da personalidade, de Azoilda
Loretto da Trindade. Esse texto, sim-
Certamente não contemplaremos todas as
ples e leve no seu aspecto teórico,
autorias significativas... Algumas lacunas se
escrito antes de 2003, tem atualida-
farão presentes, assim como algumas abor-
de no que se refere a acontecimen-
dagens... Mas nenhum livro pode ser maior
tos do cotidiano que legitimam sua
que um patrimônio milenar como o africano
presença nesta coletânea, sobretudo
e, assim, fica o convite para novas pesquisas
por nos ajudar a pensar que, além da
e novas descobertas.
Lei n. 10.639/2003, temos desafios na
Dividiremos este capítulo do livro em quatro
blocos:
construção de práxis educativas inclusivas.
A. ASPECTOS GERAIS. Selecionamos textos
III. A lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o
com a expectativa de fundamentarmos a te-
olhar sobre a presença dos negros no
mática.
brasil e transforma a educação escolar, de Bel Santos. Temos aqui um tex-
I. Africanidades, afrodescendências e
to rico em fundamentos do cotidiano
educação, de Henrique Cunha Júnior.
para a implementação da lei, e mais
64
rico ainda pelo seu caráter de otimis-
VII. As relações étnico-raciais, a cultura
mo em relação a políticas públicas
afro-brasileira e o projeto político-
transformadoras e a eliminação da ex-
-pedagógico, de Lauro Cornélio da Ro-
clusão.
cha. O foco aqui está no diálogo Projeto Político Pedagógico e a educação
IV. África viva e transcendente!, de Narci-
das relações étnico-raciais e a cultura
mária Correia do Patrocínio Luz. Esse
afro-brasileira no cotidiano escolar
texto é uma expressão da rica e exube-
brasileiro. Ao apresentar propostas
rante complexidade que a implemen-
significativas nesta direção, o autor
tação da lei pode oferecer e significar
exemplifica as proposições com o rela-
para as bases, diretrizes e práxis da
to de um trabalho exitoso – O Projeto
educação brasileira.
Raiz.
V. Diversidade étnico-racial no currícu-
B. EDUCAÇÃO INFANTIL. Acreditamos que
lo escolar do ensino fundamental, de
a educação infantil mereça um destaque no
Véra Neusa Lopes. Aqui, a perspecti-
que se refere à implementação da lei. Temos
va das narrativas se afirma e o texto,
muitos relatos que sinalizam que crianças
além de revelador no que se refere ao
de 2 ou 3 anos já percebem sua cor de pele
projeto de desafricanização embuti-
e observam as imagens que as representam
da na filosofia e política educacionais
no entorno, como cartazes, outdoors, co-
brasileiras, obriga-nos a refletir sobre
merciais de TV, livros infantis... Sabemos,
as bases filosóficas e conceituais hege-
também, do despreparo de muitos(as) do-
mônicas que fundamentam nossas es-
centes no trato com as crianças afro-bra-
colas. Para além da constatação, apre-
sileiras de pele escura. Sabemos, ainda, da
senta uma inspiradora experiência de
importância deste período na formação da
práxis transformadora.
personalidade e os prejuízos que uma desatenção a certas temáticas, por exemplo, da
VI. O legado africano e a formação do-
pedagogia da diferença, pode causar na for-
cente, de Marise de Santana. Baseado
mação de autoimagem e da autoestima de
em observações e em dados oficiais,
TODAS as crianças. Conhecemos, também,
o texto é um convite ao trabalho co-
algumas experiências individuais e de redes
letivo para a implementação da Lei n.
de ensino voltadas para a Educação Infantil
10.639/2003, com algumas importan-
e a implementação da Lei n. 10.639/2003, e
tes sugestões nesta direção.
vemos como é fundamental este trabalho.
65
Nesta direção, destacamos três textos que
II. Quilombo: conceito, de Gloria Mou-
abordam esta temática, para início ou for-
ra. É um texto didático, não só sobre
talecimento de conversas e ações político-
o conceito de quilombo, mas por ser
-pedagógicas:
uma genealogia deste conceito, ainda
em construção, pois uma história ain-
I. Valores civilizatórios afro-brasileiros na
da está sendo construída.
Educação Infantil – Azoilda Loretto da
Trindade
II. As relações étnico-raciais, história e
cultura afro-brasileira na Educação
Infantil – Regina Conceição1
III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras
e a criança afro-brasileira (uma reflexão) – Azoilda Loretto da Trindade
III. Saberes tradicionais de saúde, de Bárbara Oliveira. Esse texto, que poderia
estar na última parte do livro, insere-se num campo pouco explorado, mas
fundamental para a compreensão da
vida do povo de origem africana: os
saberes tradicionais de saúde.
IV. Organização social e festas como ve-
C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA. É impressio-
ículos de educação não-formal, de
nante e animador observarmos a energia
Verônica Gomes. Com a focalização
vital que alguns povos nos apresentam. Os
da vida dos moradores das comunida-
povos indígenas, os ciganos... uma infinida-
des remanescentes de quilombos, so-
de de exemplos e situações. Povos e grupos
bretudo, no que se refere “ao uso das
que afirmam a sua potência de vida, a des-
ervas medicinais, no modo de trabalhar
peito ou em meio a emaranhados genoci-
a terra, de tirar dela seu sustento, nas
das da diferença ou da diversidade. Nesta
linguagens gestuais, na música, nas fes-
coletânea, destacaremos a Educação Qui-
tas, no modo de se divertir, de cantar,
lombola como vivências ensinantes e como
dançar e rezar”, defrontamo-nos com
uma das pistas para a construção de uma
uma pedagogia de afirmação positiva
Pedagogia Brasilis.
da diferença, com destaque à questão
de gênero.
I. Os quilombos e a educação, de Maria de
Lourdes Siqueira Com esse texto pre-
V. Kalunga, escola e identidade – experi-
tendemos oferecer aos e às docentes
ências inovadoras de educação nos
uma abordagem informativa e afetiva
quilombos, de Ana Lucia Lopes. Des-
da dimensão pedagógica da vivência
tacamos dois aspectos deste texto: ele
quilombola.
aponta para uma visão de Quilombo
66
para além da hegemônica visão que
acerca dos impasses, resistências e insufici-
o atrela à fuga e à resistência e apre-
ências nacionais, na implementação de polí-
senta um valioso relato de experiência
ticas públicas educacionais para a população
que nos propicia refletir sobre um dos
afro-brasileira e de enfrentamento de proble-
dilemas que nos perpassa ao pensar-
mas sociobrasileiros, “em especial, aqueles re-
mos a Lei n.10. 639/2003 – “na tensão
lacionados com os chamados excluídos sociais
entre a valorização do conhecimento
– negros, quilombolas, mulheres, indígenas, de-
Kalunga[tradicional] produzido histori-
ficientes físicos, pessoas com orientações sexu-
camente e o direito de acesso ao conhe-
ais diferenciadas e outros”.
cimento do novo por eles reivindicado.”
D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS
VI. Lei nº 10. 639/2003 e educação quilombo-
Apresentaremos o texto do documentário, e
la: inclusão educacional e população negra
esperamos que todas as escolas possam ter
brasileira, de Denise Botelho. Texto crítico
acesso ao programa.
67
A. ASPECTOS GERAIS
i.
Africanidades, afrodescendências e educação1
Henrique Cunha Júnior2
O educador negro Pretextato dos Passos Sil-
sociais, partidos políticos e alguns setores
va apresentou ao Ministério Público uma
dos movimentos sindicais.
petição para a criação de uma escola destinada a meninos pretos e pardos. No requeri-
Pela predominância de um pensamento de
mento, ele argumenta que, sendo ele negro
base universalista, as alegações contrárias
e compreendendo a vida daquelas crianças,
às reivindicações dos afrodescendentes fo-
poderia “ensinar com perfeição e sem coação”.
ram sempre problematizadas no campo da
Considerava as escolas existentes discrimi-
igualdade de oportunidades de todos e da
natórias, portanto, ambiente pouco adequa-
negação da existência de sistemas de inclu-
do para o aprendizado dos pretos pardos,
são controlada e diferenciada. Sistemas em
que tinham seu desempenho escolar pre-
que as regras etnocêntricas brancas e as sis-
judicado. Seu projeto foi acompanhado de
temáticas de inferiorização da cultura e da
lista de assinatura dos pais dessas crianças,
população afrodescendente não são denun-
solicitando a criação da escola em questão
ciadas como tais. Ignoram-se, nos universos
(SILVA, 2000, p.14-18).
de análise, os processos históricos e os resultados das estatísticas que indicam a existên-
Os temas de interesse da população afro-
cia de problemas de ordem específica e se
descendente e as especificidades dessa
impõem silêncios no campo da educação so-
população na educação têm sido olhados
bre os diversos temas relativos à população
com descaso por uma parcela significativa
de origem africana. Desconhecem-se a exis-
de educadores responsáveis pelos sistemas
tência e a importância desses temas, negan-
educacionais e por parte da população em
do-se a existência das diversidades culturais
geral, bem como por parte dos movimentos
e a incidência do tratamento dado a estas
1
Debate: Educação, direito e cidadania – 2001 / PGM 4.
2
Professor Titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) / Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores
Negros (ABPN) e do Centro de Estudos Sergipanos (CESER).
68
sobre os resultados educacionais e sociais
tratada com propósitos da política. A ideia
colhidos pelas diversas etnias. Nem mesmo
da “Casa Grande e Senzala” tornou-se mo-
a razão da assimetria dos resultados étni-
delo não somente da interpretação da so-
cos preocupou os diversos pesquisadores
ciedade, como das razões políticas. Foram
ou formuladores de políticas educacionais.
esquecidas, propositalmente, as relações de
Os conformismos e os descasos processam
produção representadas pelo eito. Confun-
a ideia de que se trata apenas de um pro-
de-se um universo biológico como político,
blema de pobreza, e deixam de questionar a
mascara-se não somente a base racista e et-
produção diferenciada da pobreza entre as
nocêntrica dessa interpretação, mas a base
etnias. Persiste, ainda, a recusa do sistema
positivista. Embora apareça na equação de-
educacional em admitir a existência de um
terminante do Brasil, tanto cultural como
racismo à brasileira, portanto, distinto dos
constitutiva do povo, a ideia das três raças,
demais de outras nações na sua formulação
estranhamente, somente uma aparece lo-
e expressão, produzindo entretanto, um sis-
calizada como possuidora e depositária de
tema de dominação e opressão com resulta-
processo civilizatório.
dos similares aos dos outros países racistas.
Sistema que reduz absurdamente o acesso
aos bens sociais para nós afrodescendentes
e limita as possibilidades de expressão cultural e política.
A História da Educação presta um desserviço
ao não registrar e não problematizar a presença dos afrodescendentes nos sistemas
educacionais e nas ideias sobre a educação
anterior aos anos 50 do século passado. As
Duas ideias têm dificultado o avanço do tra-
ideias são falhas em apresentarem a presen-
to dos temas de interesse dos afrodescen-
ça dos afrodescendentes na educação, a par-
dentes nos últimos 50 anos. Uma é a con-
tir do meados dos anos 50, como resultados
solidação do ideário dos grupos dominantes
dos processos de urbanização da sociedade
na sociedade e na cultura nacional sobre a
brasileira e de universalização do ensino pú-
“democracia racial”. Ideário que impediu
blico. Diversas evidências e resultados de
em diversos setores uma reflexão mais acen-
pesquisas demonstram tratar-se de mais um
tuada e problematizadora sobre as questões
equívoco, cujos resultados repercutem nas
das estruturas étnicas vigentes na socieda-
perspectivas da compreensão do presente
de e sobre os problemas daí decorrentes no
pela história do passado (NUNES CUNHA,
trato com a cultura e a educação. Comple-
1999), (SILVA, 2000), (RIBEIRO, 2001).
mentar ao ideário da democracia racial, esteve sempre a segunda ideia, a da base na-
Venho há muito tomando consciência em-
cional miscigenada, portanto, negadora da
pírica deste equívoco por diversas razões.
particularidade. Miscigenação biológica é
Uma delas vinda da escolarização da minha
69
mãe, Eunice de Paula Cunha e de minha
de africanidades e afrodescendência, preten-
madrinha Zobeida, ambas formadas como
dendo ampliar a percepção da participação
professoras primárias nos anos 30 em São
das populações de origem africana na cul-
Paulo e parte de um grupo de professores
tura nacional e nos sistemas educacionais.
negros da mesma geração. E do conhecimento de que meu pai e seus amigos mili-
Estes conceitos serviram de referência para
tantes dos movimentos negros dos anos 20
uma dezena de trabalhos de Mestrado e
e 30 também eram alfabetizados, bem como
Doutorado no Ceará, Piauí, Paraíba, Per-
minhas avós, o que leva a história para o fi-
nambuco, São Paulo e Rio de Janeiro (RIBEI-
nal do século XIX. Esta percepção nos leva a
RO, 1995), (SOUZA, 1997), (PIMENTEL, 1998),
questionarmos onde se educaram diversos
(BALLESTEROS, 1998), (NUNES CUNHA,1999),
afrodescendentes de renome nacional e in-
(SILVA, 1999), (GOMES, 2000), (GUIA, 1999),
ternacional, que viveram no séc. XIX e início
(MATOS, 1999), (CRUZ, 2000), (NASCIMEN-
do séc. XX. O problema da não percepção da
TO, 2000), (CONCEIÇÃO, 2001), (PEREIRA,
nossa participação retarda a correlação en-
2001), (OLIVEIRA, 2001), (LIMA, 2001), (RIBEI-
tre o registro das demandas educacionais e
RO, 2001), embora tenha existido apenas a
o enfoque da especificidade, como também
divulgação dos originais mimeografados,
a problematização sobre os grupos étnicos
nunca publicado, de um texto de 1996 com
nos confrontos dos cotidianos dos sistemas
o título Afrodescendência e Africanidades Bra-
educacionais.
sileiras: a condição necessária, porém não
suficiente para compreensão da história
Entretanto, como tratamos no artigo Pes-
sociológica do povo brasileiro. Este artigo
quisa Educacionais em temas de interesse
apresenta uma versão modificada do referi-
dos Afrodescendentes (CUNHA JR., 1999), os
do texto. A intenção do texto não está na
Movimentos Negros da década de 70 foram
ênfase conceitual, mas sim em apresentar
fomentadores de uma preocupação particu-
as razões de um percurso na elaboração dos
lar sobre a problemática da educação e das
conceitos, de forma correlata com a trajetó-
relações interétnicas. A partir destes movi-
ria afrodescendente no contexto educacio-
mentos sociais surge uma geração de edu-
nal brasileiro.
cadores e pesquisadores trabalhando as temáticas dos afrodescendentes nos sistemas
de produção e transmissão da cultura. Neste ciclo do enfoque das questões educacionais sob o crivo da afrodescendência, pelos
anos 1989 e 1990, introduzimos os conceitos
Os conceitos de africanidades e afrodescendência são vinculados ao enfoque de etnia,
sendo que este último permanece como
problema nos debates sobre educação. Etnia e Raça, como terminologia e perspectiva
70
teórica, fomentaram embates dentro da li-
los, apresentou uma disciplina em educação
teratura educacional. Existem trabalhos que
como curso de extensão e com validade de
oscilam entre um e outro, havendo mesmo o
créditos para pós-graduação. Em 1991, eu ti-
uso etnia / raça. O importante neste artigo é
nha escrito um texto denominado Não mais
apresentar um enfoque, de caráter específi-
base zero para o estudo das Africanidades Bra-
co, que recoloque a problemática da cultura
sileiras, para um curso de formação de pro-
na orientação dos temas educacionais para
fessores da Rede Municipal de São Paulo, no
a sociedade brasileira. Não se trata de um
quadro de trabalhos da ABREVIDA. São fon-
problema novo, pois iniciei o texto relem-
tes imprescindíveis para a elaboração destes
brando o professor Pretextado e, proposital-
conceitos os trabalhos de Muniz Sodré, Mar-
mente, omitindo a data do requerimento do
co Aurélio Luz e Clóvis Moura, para a crítica
referido professor à Corte no Rio de Janeiro.
cultural e historiográfica negra brasileira.
A data foi 1853, sendo que professor Pretex-
No campo internacional foram estruturais
tado implantou e trabalhou em sua escola
as leituras de Cheike Anta Diop, Rene Depes-
por mais de 20 anos. Não foi o único. Outros
tre, Edouard Glissant, bem como dos inte-
fazem parte da história dos Movimentos So-
lectuais da Revolução Haitiana.
ciais Negros na luta pela educação. Outros
que têm sido sistematicamente esquecidos
As viagens pelo Brasil e Caribe sedimenta-
pela literatura educacional brasileira.
ram o caráter empírico das reflexões e exercitaram a observação da existência de etnias
Os motivos
afrodescendentes. Foi marcante e significativa a estada na Guiana e na Jamaica. Os
Desde os anos 90 venho fundamentando
seminários da Guiana de 1988 foram fontes
os conceitos de afrodescendência e africani-
fundamentais de informação, nos quais se
dades brasileiras, num processo não unica-
pode ver a elaboração cultural dos afrodes-
mente meu, mas presente em diversos tra-
cendentes sob um ângulo de uma cultura
balhos sobre cultura brasileira e negros(as)
universitária não massivamente branca, não
no Brasil.
abusivamente eurocêntrica, dentro de um
país onde o racismo não é exercido na mes-
O uso sistematizado de africanidades brasi-
ma forma de dominação e no mesmo senti-
leiras ocorreu em 1993, quando um grupo de
do que é dado na sociedade brasileira.
professores, composto por minha pessoa,
pela Profª Drª Petronilha Beatriz Gonçalves e
A sociedade guianense é Afro-Indo-Amerín-
Silva, o Prof. Dr. Álvaro Risoli e o Prof. Válter
dia-Européia, com predominância Afro-Indu,
Silvério, da Universidade Federal de São Car-
sendo que 80% da população é desta for-
71
mação étnica. Estas etnias expressam uma
no Brasil. Quase somente ele pensa cultu-
fenomenal diversidade cultural. Dentro de
ralmente. Quando não diretamente, fica
cada uma das etnias temos diversas religi-
como fantasma assombrando os pensamen-
ões e culturas. Existe na Guiana uma liber-
tos. Todos devem pensar através dele, ainda
dade de expressão étnica não pensável na
que seja, pelo menos, pela obrigatoriedade
sociedade brasileira. Não se pensa aqui na
bibliográfica. Não são lidos os intelectuais
liberdade de expressão das culturas bra-
africanos nas universidades brasileiras. Nem
sileiras. Estas são raramente organizadas
mesmo reconhecem a existência destes. Nas
pelo pensamento universitário. Geralmente
Universidades do Caribe posso dizer que sou
sequer são apresentadas ou minimamen-
negro, penso negro, sem vetos de censura,
te reconhecidas. As diversas culturas são
sem precisar provar o terrorismo da afirma-
reprimidas e desconsideradas nos espaços
ção, sem as desconfianças de estar traindo
públicos promotores de transmissão cultu-
o espírito nacional. Sem que me coloquem
ral. O que está em discussão, neste texto,
no banco dos réus, por um suposto racismo
são as percepções sombrias que os intelec-
invertido. Melhor ainda, lá não preciso dizer
tuais brasileiros conseguem ter destas cul-
que sou negro, todos sabem e respeitam. As
turas. Penso que os intelectuais nacionais
vozes negras podem ter eloquência na orga-
são míopes para estas culturas. Inexiste pre-
nização do conhecimento e nas expressões
ocupação em organizá-las nos centros de re-
das culturas universitárias. Certamente os
presentação da cultura nacional. A título de
intelectuais locais sentem outras restrições
depoimento, devo dizer que as duas primei-
relacionadas com o ex-colonialismo e o im-
ras vezes que não me senti sufocado, que saí
perialismo, diferente das minhas inquieta-
deste estado de quase asfixia, pela branqui-
ções.
dade conceitual sistemática e ideológica da
cultura nacional brasileira, foram quando
As universidades brasileiras não têm equi-
cursava Mestrado em História em Nancy-
distância sistemática do pensamento eu-
-França e quando estive no Caribe. Sobretu-
ropeu. Da forma que se dá, o pensamento
do na Guiana, na Universidade da pequena
europeu recozido e recopilado, não fertiliza,
cidade de Georgetown, capital da Guiana.
reduz, enfaixa, cristaliza e provoca a necrose
Outras experiências posteriores, também
pensada. No Caribe me vi livre destes fantas-
significativas, de poder respirar, vieram nos
mas. Do europeu compulsório em todos os
EUA e na África. Os afrodescendentes brasi-
espaços e dimensões da cultura acadêmica.
leiros não conhecem, nem imaginam a sen-
Lá não há medo que o ritmo africano emba-
sação libertária de poder, intelectualmente,
le o pensamento. A reflexão pode ser dança-
respirar. O eurodescendente é compulsório
da e cantada na voz da minha avó. As avós e
72
avôs africanos existem no cotidiano do pen-
pesquisado e admitido como novo no pen-
samento e são reconhecidos no cotidiano
samento nacional, seja ele conservador ou
da vida. No pensamento africano, mesmo
revolucionário.
o racionalismo matemático é representado
nas formas simbólicas da dança e da arte.
Quais são os marcos exteriorizadores desses
Entretanto, os racismos, mesmo na Guia-
pensamentos? Apesar das eloquentes defe-
na, trabalham nos processos de dominação.
sas da constituição da nacionalidade brasi-
É pertinente refletirmos sobre a sociedade
leira a partir de “três raças”, a pluralidade
brasileira a partir do modelo guianense de
daí resultante torna-se redução constante
racismo. Este opõe hindus aos negros. Hin-
do índio e do negro aos preceitos da inter-
dus, negros de cabelos lisos, a afro-negros
pretação do branco. Branco como resumo
de cabelos crespos. Tornam-se translúcidas
do pensamento ocidental dominante e (re)
as bases culturais dos racismos, apagando
elaborado no Brasil. Pensamento que tem
as ilusões do espectro das cores brasileiras.
no seu centro a fonte inspiradora do ma-
Os racismos se expõem na sua real função, a
nual do racismo e machismo, que é a gran-
de sistema de dominação, produzindo a ne-
de obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto
cessidade da produção da alienação cultu-
Freire. Texto até agora não abolido, sequer
ral para facilitar sua naturalização. Racismo
discutido quanto à sua validade nos cursos
que, no plano internacional, opõe europeus
de graduação. Texto lido e relido como fun-
a guianenses. O Caribe negro, ex-colônia; a
damento, indicado, reescrito na versão mais
Europa branca, ex-colonizadora. As ideias de
sofisticada do povo brasileiro, visto como
etnias são muito fortes e amplas na Guiana
fundamento, mas não explicado como fun-
e no Caribe. Mostram que racismos não têm
damento do quê e para quem, mas sempre
nada a ver com as ideias de raça, são proces-
com este status de fundamento. Fundamen-
sos de dominação, são construções tempo-
to do controle étnico-sexual-social das mas-
rais históricas.
sas contra nós, negros e índios, apesar dos
disfarces democráticos e intelectuais.
O que está em discussão não são as culturas brasileiras, mas as percepções que
No pensamento nacional tornou-se siste-
os intelectuais brasileiros conseguem ter
mática a ideia do “escravo” como fator de
desta. Percepções que instauram a produ-
produção. Não temos os escravizados como
ção da cultura nacional, aqui no singular,
fonte do pensamento e produção intelectu-
significando a síntese oficial, genitora dos
al, isto fica relegado ao branco, o europeu
programas de ensino e das práticas cultu-
magnífico. Na cultura brasileira, o escravi-
rais legitimadas. Progenitora do que vai ser
zado não pensa, não cria, não tem noção
73
política, nem consciência de ser visto e se
A imagem de tribos de homens nus é refe-
ver como ser humano, como produtor de
rência conceitual do pensamento brasileiro,
ideias. As referências feitas a africanos, des-
nos ditando uma suposta ausência de cul-
cendentes de africanos, ficam no patamar
tura elaborada e desenvolvida dos africanos
das ações reativas, aos impulsos do imedia-
aqui escravizados.
to. Somos produtores de uma cultura Naife,
simplória e linda. Percebida como rica em
artefatos de simplicidade e improviso. Não
de elaboração pensada e alicerce centrado
Afrodescendências e
Africanidades
pelo uso da razão.
Em muitos dos cursos sobre Africanidades
A redução branca das culturas negras no
Brasileiras, tenho sido questionado se a Nova
Brasil é produzida a partir da ignorância de
História e os trabalhos de Darcy Ribeiro não
parte dos nossos intelectuais sobre as cultu-
têm exercido este papel de ruptura necessá-
ras africanas. Somos tidos como ignorantes
ria para a compreensão ampliada da partici-
pela ignorância deles, ignorância produzida
pação do afrodescendente na história social
devido à ausência de cursos sobre África e
e cultural nacional. Penso que a resposta é
Afrodescendência nas universidades. Muito
negativa. Nem um nem outro produziu os
menos somos sujeitos temáticos de pesqui-
elementos essenciais para a ruptura, ambos
sa, devido a estas tendências, alimentadas
continuam conceitualmente na base zero
pela inexistência de literatura sobre o assun-
para a história do(a) negro(a) brasileiro(a),
to nas bibliotecas nacionais. O desaparelha-
para a história dos afrodescendentes.
mento do intelectual brasileiro é expresso
com o brilho do poema de Castro Alves, em
A (re)análise do escravismo não tem sido fei-
“Navio Negreiro”, no qual os africanos, imi-
ta, considerando este sistema antes de tudo
grados forçadamente para o Brasil, são tidos
como criminoso. A (re)análise continua nos
como originários de uma suposta tribo de
vendo como números e coisas. Não procu-
homens nus. Esta imagem da tribo dos ho-
ra captar a nossa dimensão humana. A su-
mens nus perpassa toda a cultura brasileira,
posta novidade em matéria de abordagem
produzindo os racismos que a perpassam.
não imagina o que o meu bisavô intelectual
Raras são as exceções, entre elas os traba-
africano pensava do criminoso escravizador.
lhos de Costa e Silva, Kabengele Munanga,
Não tem tomado a compreensão ampla do
Muniz Sodré ou do SECNEB (Sociedade de
sistema escravista e os quilombos como pro-
Estudos da Cultura Negra no Brasil).
dução das alternativas políticas. A Nova His-
74
tória não tem, na sua essência, o imigrante
da problemática afrodescendente brasileira,
africano como produtor intelectual e como
o entendimento das restrições do político-
um dos formadores de pensamentos polí-
-econômico, uma vez que admitimos que a
ticos na ordem escravista. Sobre Darcy Ri-
(re)elaboração destas culturas foi realizada
beiro, sua abordagem me parece uma insis-
sob forças de pressões e dominação. É essen-
tente reprise da obra Casa Grande e Senzala,
cial ao conceito de Africanidades Brasileiras
cujo eixo central é uma missão da miscige-
a ideia de (re)elaboração. As Africanidades
nação como elemento pontificador. Eu não
Brasileiras são (re)processamentos pensa-
acredito nisso. Penso que a miscigenação é
dos, produzidos no coletivo e nas individu-
um dado à parte dos processos ideológicos
alidades, que deram novo teor às culturas
de dominação. A miscigenação pouco con-
de origem.
tribuiu para o suposto pacifismo. O conflito
existe pela violência do sistema, que utiliza
A ideia de (re)elaboração tem o conteúdo da
o racismo, o machismo, o classicismo e as
produção intelectual dos afrodescendentes.
ignorâncias produzidas, como elementos ar-
Introduz a ideia do pensado, do nacional,
ticuladores das dominações e das alienações
do produzido através de bases civilizadas
na sociedade nacional.
importantes preexistentes às invasões européias.
As Africanidades Brasileiras
A (re)elaboração é o elemento dinâmico,
parte da compreensão de novas realidades
Os trabalhos de Diop (1959) permitem uma
e dos novos embates políticos, ela é produ-
percepção da diversidade cultural africana,
ção do novo. A (re)elaboração explica cons-
dentro de uma unidade da matriz africana.
truções inexistentes nas culturas africanas
A diversidade é produzida pelos contextos
presentes nas africanidades brasileiras. En-
históricos, geográficos e econômicos. Pa-
tretanto, as bases constitutivas desta nova
rece-me possível, devido aos importantes
construção são dadas na diversidade cul-
contingentes de africanos imigrados à força
tural africana. A ideia da (re)elaboração e
para o Brasil, advogar as mesmas participa-
da sua importância foi percebida por mim
ções nesta dinâmica de diversidade e unida-
quando, em 1986, estava em viagem a Trini-
de das culturas afrodescendentes processa-
dad y Tobago. Impressionou-me a apresen-
das no Brasil. Os elementos de base africana
tação de um grupo de Steel Band, sendo que
passam no Brasil pelas restrições econômi-
Steel Band são instrumentos de percussão
cas e políticas do escravismo e do capita-
produzidos com barris metálicos, cortados
lismo racista. É essencial, na compreensão
e abaulados, que através de um martelo pro-
75
duzem um processo de afinação. São feitos
vê a sua preservação. As complicações deste
por grupos de afrodescendentes do Caribe,
sistema de dominação não passam pela aná-
vivendo em regiões portuárias. Devido à re-
lise acadêmica amplificada. Produzem con-
volução industrial, os portos recebiam gran-
siderações fortes sobre os pensamentos aca-
de quantidade de barris metálicos. O Steel
dêmicos, que produzem a sua reprodução.
Band é um instrumento que produz os sons
de todos os quatros grupos de instrumentos
Os pensamentos, guiados por estruturas ra-
de uma orquestra sinfônica. Trata-se de um
cistas, não foram ainda denunciados como
quinto grupo de instrumentos com vários
tais, com sistemática veemência. Existe um
tamanhos e formas. É um instrumento ine-
medo nacional das consequências desta de-
xistente na África e na Europa, entretanto
núncia. Os racismos são ainda identificados
aparece no Caribe, graças à (re)elaboração
como de menor importância, como tolerá-
da base africana de música e percussão, sob
veis ou como passíveis de eliminação pelo
a referência de novo contexto de disponibili-
passar do tempo. A singularidade do traba-
dades materiais. Não é uma construção sim-
lho brasileiro, durante quase 300 anos, sinô-
ples, ingênua, casual, Seria impossível con-
nimo de escravo, e escravo assemelhado a
ceber tal instrumento, sem uma elaboração
negro, não sofreu ainda a devida elaboração
sistemática, instruída de bases dos conheci-
no pensamento nacional. Continuamos com
mentos complexos de processos racionais.
os vetores dominantes no campo de um
marxismo dogmático e estranho às parti-
A partir da (re)elaboração pensada sobre o
cularidades do processo histórico nacional.
Steel Band se descortinou um novo horizonte
Temos, por outro lado, as dificuldades dos
para pensar o candomblé, a capoeira angola
grupos dominantes se reconhecerem como
e os quilombos, que são, assim, (re)elabora-
dominadores, em face do discurso sorratei-
ção da base africana. A (re)elaboração abriu
ro de um espírito democrático, igualitário.
o caminho para pensar a ideia de culturas
afrodescendentes e a existência de um conjunto amplo, indo do pensamento brasileiro
à base material da cultura brasileira.
As necessidades ideológicas dos grupos dominantes de um credo no universalismo e
na modernidade criam visões conflitantes
com as do particular, do localizado, do regional e do étnico. São razões que precisam
Conclusões
ser percebidas e debatidas para a construção da pluralidade democrática. Ademais,
Os racismos produzem justificativas de sua
outro fator não percebido na cultura brasi-
existência, elaboram uma cultura que pre-
leira e, sobretudo, na política universitária é
76
a do peso relativo da representação. A etnia
processados pelas camadas “racizadas” da
afrodescendente aparece sempre em des-
população brasileira. Favorecem a destrui-
vantagem numérica, de poder e de acesso
ção das idealizações da cultura do domi-
à elaboração dos discursos oficiais. Somos
nador. Produzem espaço de liberdade inte-
derrotados pela ausência produtora e jus-
lectual, livre dos racismos e dos conceitos
tificadora da precariedade do embate. Sem
produzidos nos processos da dominação
que se enfrentem as razões fundamentais
historicamente vigentes na cultura brasilei-
da ausência. As razões dos racismos e as so-
ra.
luções estão nos programas específicos de
formação.
As Afrodescendências instruem sobre a diversidade étnica brasileira, livre dos racialis-
Para a utilização e expansão dos conceitos
mos, reconhecedora da presença ampla, di-
de Afrodescendência e Africanidades Bra-
versa, múltipla e estruturada, de uma etnia
sileiras, não se apresentam até o presente,
predominante afrodescendente.
fortes objeções de fundo teórico da produção de conhecimento, somente objeções de
Referências
caráter político. As estruturas do poder, de
domínio do certo e do errado, ficam abaladas com o reconhecimento das Africanidades Brasileiras. A verdade entra numa
competição de dominação, em que seus
supostos conhecedores podem se confortar
com as ignorâncias, com as faces dos racismos no espelho. São revelações que podem
emergir do aprofundamento no conceito de
ANSELLE, J. ; M’BOKOLO, E. Au Coeur de
L’Etnie, Tribalisme et Etat en Afrique. Paris:
Editions La Decouverte, 1985.
BALLESTEROS, Gloria Patrícia. Limites e Possibilidades da Lei das Comunidades Negras na
Colômbia. (Lei de 1993). Dissertação de Mestrado. Recife: UFPE, 1998.
Afrodescendência e de Africanidades. São resultados que abalam o equilíbrio político, o
CONCEIÇÃO, Maria Telvira. O Negro no Ensi-
poder do conhecimento sai da exclusividade
no de História. Uma Análise das Suas Implica-
do branco.
ções no Contexto do Ensino Médio. Dissertação de Mestrado. Fortaleza: UFC, 2001.
As Africanidades Brasileiras formam um paradigma poderoso para revisão dos concei-
COSTA E SILVA, A. A Enxada e a Lança. Áfri-
tos e preconceitos vigentes na cultura bra-
ca antes dos Portugueses. São Paulo: Editora
sileira. Forjam-se nas ações e nos discursos
Nova Fronteira / EDUSP, 1992.
77
CRUZ, Mariléia dos Santos. A História da Dis-
GUIA, Francy. Ser Negro, nas Vozes e Silêncios
ciplina de Estudos Sociais a partir das Repre-
Produzidos na Escola. Dissertação de Mestra-
sentações Sociais Sobre o Negro no Livro Didá-
do. Fortaleza: UFC, 1999.
tico (1981 - 2000). Dissertação de Mestrado.
Marília (SP): UNESP, 2000.
LIMA, Maria Batista. Mussuca - Laranjeiras,
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79
II. Humilhação,
encorajamento e construção da
personalidade1
Azoilda Loretto da Trindade2
A todos as crianças, em especial às negras (afrodescendentes):
“Ao entrar na sala, após a merenda, a professora encontrou Rafael e Tiago,
também recém-chegados da merenda, brigando:
- E você? - perguntou Rafael.
- É, sou branco mesmo. Mas, pior é você, que é louro! - respondeu Tiago.
- Você também é louro, seu branquela! - falou Rafael.
– É, mas você é mais louro do que eu! - retrucou Tiago.”
(Ambos, de 8 anos de idade, cursavam a 1ª série do Ensino Fundamental,
numa escola pública do Rio de Janeiro.)
80
Esse acontecimento ficou gravado na mi-
Quero, no entanto, convidá-lo(a) a pensar a
nha memória como algo intrigante e eu o
negritude, a questão negra ou afrodescen-
destaco, agora, como ilustração de que, no
dente na escola. Uma questão complica-
que diz respeito ao racismo e às exclusões e
da, por estar amalgamada com a questão
discriminações, quer na sociedade, quer na
do racismo, e porque tendemos a negá-lo.
escola, todos nós estamos afetos e expostos:
Quanto(a)s de nós falamos ou ouvimos “não
mulheres, homens, negro/as, índios, ciganos,
existe racismo, o que existe é questão de
judeus, nordestinos, crianças, idosos, etc. To-
classe”, “aqui não tem essa de racismo, todo
dos nós somos e estamos envolvidos, trans-
mundo é igual: preto, branco, amarelo, ín-
versalmente enredados na teia do racismo
dio”, ou coisa parecida?
e dos preconceitos, ou por pertencer a um
determinado grupo, ou por não fazer parte
de outro e, estando à margem, não percebermos o que aquele grupo vive, pensa ou sente.
No entanto...
1Escola: exclusão e inclusão – 2000 / PGM 3.
2Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ, Doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ. Organizadora desta
coletânea.
A Negrítude na Escola
Festas, desfiles e
comemorações
Fico fascinada ao ver, cotidianamente nas
ruas, nos horários de início das aulas, o
contingente de crianças, com seus/suas responsáveis, dirigindo-se às escolas. Quantos
sonhos e expectativas! Muitos chegam a dizer que vão a escola para serem “alguém” na
vida, como se já não o fossem.
Davidson, com 9 anos, na primeira série,
menino negro, pai e mãe negros, recusou-se a participar da festa junina se tivesse que
dançar com uma colega negra. Alegou não
gostar de negros e que, por isso, não dançaria com a menina. A professora disse-lhe
E as crianças e adolescentes negros, afro-
que, se ele não dançasse com a colega, ele
descendentes, que pertencem a um grupo
não dançaria com ninguém. Ele ficou na fes-
que têm a sua história escondida e/ou ne-
ta apenas como espectador e não dançou
gada na sociedade; que têm suas necessi-
com ninguém. Imagine o nível de autonega-
dades, seus modos de ser, seus problemas,
ção daquela criança e como deve ter ficado
sua cultura, as lutas e ações positivas do
a menina.
seu povo, sua voz, sua pele, seu cabelo
negados, escondidos, invisibilizados; que
Amauri era um menino inteligente, só tira-
sofrem diretamente com a omissão, segre-
va excelentes notas. A regra da escola era
gação e secundarização dos problemas es-
que o melhor aluno carregaria a bandeira
pecíficos do seu povo?
da escola no dia do desfile cívico. Naquele ano, pelas notas e atitudes, Amauri era
Começo a lembrar de acontecimentos relacionados a nós, negros e afrodescendentes
na escola.
considerado o melhor aluno. No entanto,
no dia do evento, Amauri foi preterido por
um outro aluno.
Mesmo com visíveis mudanças - hoje temos
os Parâmetros Curriculares Nacionais, com
É importante que nos indaguemos quantas
a proposta de discutir a pluralidade cultu-
crianças negras, sob nossa responsabilida-
ral, em nível nacional; O Dia Nacional da
de docente, têm a oportunidade de levar
Consciência Negra incorporado em muitos
a bandeira da escola, e/ou de representar,
calendários escolares; a voz do Movimento
nas festinhas da escola, coelhinhos da Pás-
Negro, ecoando em toda a sociedade - as si-
coa, ou Jesus ou sua mãe Maria, ou anjos,
tuações que relatarei a seguir ainda nos são
ou situações que exprimam beleza e visibi-
contemporâneas.
lidade positiva?
81
Brincadeiras
Temos situações mais duras, que trazem, em
seu bojo, uma limitação de possibilidades da
“Barra manteiga/no fuça da nega” ou “Chi-
criança ou do aprendiz, ou uma descrença
cotinho Queimado”. Esses e outros tipos de
no potencial do outro/a como:
brincadeiras nada teriam demais, não fosse
a desumanização de negros, quem tem fuça
O destino de Denise
não é gente, ou a banalização de um instrumento de punição e coerção como o “chi-
A mãe de Denise, menina negra, de família
cotinho queimado”, o chicote que já “quei-
de baixa renda, foi à escola da sua filha, que
mou” na pele de muita gente, sobretudo dos
era pública e situada em bairro popular, re-
negros escravizados do nosso país.
clamar do ensino “fraco” daquela instituição.
Musiquinhas
A professora, que gostava muito da Denise,
menina inteligente e boazinha, excelente
Músicas infantis, como, por exemplo “Escravos de Jó” que, embora pertencendo ao
nosso imaginário social, à nossa memória
afetiva, trazem no seu bojo a naturalização
da condição de escravo que, no caso do Bra-
aluna, acalmou a mãe: “Não se preocupe,
para ser auxiliar de enfermagem ou trabalhar num supermercado, este ensino está
ótimo. Ela vai se dar muito bem, fique tranquila”.
sil, é tido como sinônimo de negro.
Denise, hoje, é doutora em Sociologia e pro-
Contos de fadas e populares
fessora de uma universidade norte-americana.
No nosso repertório de contos de fadas ou
populares mais conhecidos, quantas belas he-
Imagine se a mãe da Denise aceitasse aquela
profecia para sua filha...
roínas negras podemos, de pronto, destacar?
Imagine quando uma criança é negra e, junLendas que retratam a origem das “raças”
to com esta falta de expectativa, vier a cren-
colocam os negros como os esquecidos de
ça de que aos negros cabem profissões que
Deus, ou como descrentes ou preguiçosos,
exigem pouco estudo.
ou a cor negra como uma espécie de castigo.
Imagine quantas crianças têm seu potencial
São tantas exclusões, preconceitos, discri-
embotado por causa do racismo e preconcei-
minações!
to de algumas e alguns docentes, e/ou pela
82
falta da confiança que tiverem em relação
ou picadas relacionados ao povo negro,
a ela, pela falta daquele encorajamento, da-
ou quando as crianças negras se dese-
quele estímulo para a aventura de aprender.
nham brancas de olhos claros.
Professora negra
• O desconhecimento e o desinteresse coletivos de que há um mundo submetido,
tornado subalterno, estereotipado, silen-
O pai de uma criança de uma escola pública,
no primeiro dia de aula, ao ver que a professora do seu filho era negra, foi solicitar à
diretora da escola que trocasse sua criança
de turma. “Ora! Logo meu filho com aquela
professora escurinha” - disse ele.
ciado pelo racismo e preconceito a tudo
que nos reporta à África e à sua diáspora:
o Continente Africano, sua gente e seus
descendentes, seus costumes, sua literatura, seus saberes, religiões, ciência, sua
geografia, história, biologia - toda uma
riqueza a ser descortinada e reconheci-
Temos situações mais sutis, mais naturaliza-
da.
das, submersas e corriqueiras, como:
Não destaco estes acontecimentos para
• A exclusão da imagem negra com positivi-
culpabilizar ninguém, mas porque sou pro-
dade dos murais, quadros de avisos, de ani-
fessora e sei a importância do nosso papel
versariantes do mês, dos quadros das cha-
na formação dos alunos/as e cidadãos(ãs),
madinhas, nos brinquedos adquiridos pela
na ampliação do seu desejo de aprender, no
escola, como, por exemplo, bonecos/as.
formação da sua autoimagem, na sua auto-
• A ainda incipiente quantidade de livros
didáticos ou paradidáticos e de literatu-
confiança e sei o quanto a escola é crucial
para nós, afrodescendentes.
ra infantil e juvenil com imagens negras,
Destacamos estes acontecimentos para con-
que não mostrem posições subalternas
vidar o/a leitor/a a entrar na escola com um
ou de marginalidade.
olhar antirracista e democrático porque, no
• Quando compramos presentinhos iguais
para todas as meninas da escola, por
exemplo, pentes ou prendedores, sem levar em consideração a constituição dos
cabelos das meninas negras.
• Quando ficamos paralisados sem saber o
que fazer diante de xingamentos, apelidos
seu cotidiano, está presente a diversidade,
o movimento, as multiplicidades de sons,
cores, cheiros, vozes, formas, desejos, a diferença, os negros/as - afrodescendentes,
a(s) cultura(s) negra(s), entre outras. Essa
entrada na escola, numa perspectiva antirracista, requer atuarmos no seu cotidiano
criticamente:
83
• na hora da matrícula, para não excluir
ninguém com mecanismos sutis e perver-
nas nossas lutas, no nosso sangue e na nossa alma.
sos, mascarados, ou não, de bonzinhos;
• nas ações que incidem no controle do corpo e da fala dos alunos, já que este “controle”, subliminarmente, aponta para um
padrão de corpo e linguagem humana que
nega as diferenças ou privilegia um determinado aspecto como o melhor, o certo,
o válido;
• - quando da escolha e da organização de
turmas, no planejamento, nas ações cotidianas de sala de aula (definição de conteúdos e suas abordagens, livros didáticos
Enfim, convidamos todo(a)s a perceber essa
Cultura com sentimentos como a curiosidade, a admiração, o interesse, e sobretudo
com respeito, muito respeito para com um
povo que, chegado ao Brasil como chegou,
tendo vivido e vivendo uma história de injustiça, exclusão, discriminação, não perdeu a
capacidade coletiva de dançar, cantar, sorrir,
criar e, como canta Caetano, construir “milagres de fé no extremo Ocidente” e que só
sobreviveu e sobrevive porque possui “essa
estranha mania de ter fé na vida”
e paradidáticos, textos escolares, merendas, recreio, brincadeiras, musiquinhas,
Afinal, romper com a discriminação e com
nas reuniões docentes, em nossos discur-
o racismo, investindo numa escola que
sos, nas reuniões com as responsáveis,
contemple e valorize nossas matrizes cul-
etc.), para que o respeito, a valorização, o
turais sem hierarquizá-las, que valorize e
diálogo, a tolerância, a construção coleti-
atue com competência, conhecimento e
va, a expectativa positiva, a criatividade e
desejo político, rumo à construção de uma
a paixão por aprender e ‘conhecer o mun-
educação libertadora e multicultural críti-
do’ sejam realidades visíveis.
ca - esses são os nossos desafios e legados
históricos.
Destacamos estes acontecimentos para sinalizar a urgente necessidade de descobrirmos nossa negritude presente na escola e na
Referências
sociedade. Descobrirmos com outros olhos
a presença negra no Brasil, para além da
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na
circunscrita no folclore, para além da mera
história do Brasil: mito e realidade. Rio de Ja-
contribuição na dança, música, samba, co-
neiro: Ática, 1998.
res vivas, futebol. Percebermos a Cultura
Negra em todas as partes, ainda que sub-
MUNANGA, Kabenguele. Negritude: usos e
mersa, na Arte, na Ciência, nas nossas vidas,
sentidos. Rio de Janeiro: Ática, 1986.
84
SANTOS, Joel Rufino dos. A questão do negro
MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do
na sala de aula. Rio de Janeiro: Ática, 1990.
laço de fita. Rio de Janeiro: Ática, 2000.
TRINDADE, Azoilda; SANTOS, Rafael (Orgs.).
Multiculturalismo: as mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1999.
Infantis e Juvenis:
MIGUEZ, Fátima. Em boca fechada não entra
mosca. São Paulo: DCL, 1999.
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Paulo: Cia. das Letrinhas, 1998.
BARBOSA, Rogério Andrade. Bichos da África
ZIRALDO. O menino marrom. São Paulo: Me-
(coleção). São Paulo: Melhoramentos, 2002.
lhoramentos, 1986.
85
III. A Lei n. 10.639/2003 altera a LDB e o olhar
sobre a presença dos negros no Brasil
e transforma a educação escolar1
Bel Santos2
A alteração dos artigos 26 e 79 da Lei n.
mente, estas leis incorporaram, ao concei-
9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educa-
to de inclusão, o direito inerente a todas as
ção - LDB, através da Lei n. 10.639/2003, deve
pessoas de serem tratadas em condições de
ser entendida como um passo importante a
igualdade, independente de sua cor ou raça,
caminho de uma pedagogia e de uma didáti-
ao mesmo passo que deixaram patente que
ca que valorizem a diversidade étnico-racial
a democracia racial, tão apregoada, não é,
e cultural presentes no Brasil.
ainda, uma realidade, necessitando, portanto, que seja garantida por lei.
Uma das características do processo de democratização do país tem sido a alteração
Quando o assunto é lei, vêm logo a nossas
do marco legal, incluindo, em forma de leis,
mentes algumas expressões do senso co-
antigas reivindicações sociais de acesso aos
mum: “lei no Brasil não pega... é só mais
direitos. São exemplos: a Constituição Bra-
uma”, “é para inglês ver”, “se fosse bom o
sileira (1988), o Estatuto da Criança e do
governo não dava, vendia”, “é mais uma lei
Adolescente (Lei n. 8.069/1990), a LDB (Lei
que vem de cima para baixo, para complicar
n. 9.394/1996) e sua recente alteração (Lei
a vida do/a professor/a3 e da escola”. Os de-
n. 10.639/2003), tema deste texto. Indistinta-
mais programas desta série já trataram de
1Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 5.
2
Professora formada em Matemática, com especialização em Pedagogia Social. Durante 11 anos alfabetizou
em escolas da Rede Pública Municipal de São Paulo e, desde 1992, atua em organizações não governamentais.
Atualmente é coordenadora de projetos de educação do Centro de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdades
- CEERT, voltado para a promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar; sendo docente do Programa de
Formação em Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC
3A partir deste momento, apenas para efeito de facilitação da leitura e da escrita, utilizaremos os artigos
femininos apenas quando se tratar especificamente do gênero feminino. Nos demais casos, utilizaremos o gênero
masculino.
86
apontar como as organizações do movimen-
movimentos negros, mas que beneficiarão
to negro, por meio de pesquisas e denúncias,
toda a sociedade?
se empenharam em tornar incontestáveis os
dados da desigualdade racial que marcam as
Se para lá dos muros da escola, os conteúdos
relações em nosso país4. A inferiorização e a
fazem com que os negros e negras se sintam
invisibilidade da população negra foram ex-
inferiores, como a escola pode se contrapor
plicitadas. Uma rápida olhada nos outdoors
e ir na contramão, oferecendo possibilida-
das grandes cidades do país e a quantidade
des para que crianças, adolescentes e jovens
de mulheres louras associadas a produtos de
negros construam uma justa imagem de si
beleza e de ascensão social nos levariam a
mesmos?
supor estarmos na Dinamarca ou em qualquer outra cidade européia. Em contraparti-
Perguntas como estas, há décadas orien-
da, as campanhas e propagandas de cunho
tam os estudos e intervenções de organiza-
social (como saneamento básico, alfabeti-
ções negras e intelectuais brancos e negros,
zação, doação para orfanatos etc.) se valem
como F. Rosemberg, Ana Célia Silva, Eliane
da imagem de pessoas negras, provocando a
Cavalleiro e outros.
rápida associação entre negro e miséria.
Permito-me argumentar que, ainda que ouAssim, é! Todos nós vemos! Todos os dias:
tras leis sejam resultantes de reivindicação
no jornal, na novela, nas revistas... Assim
popular, a inclusão da história e cultura da
é a nossa sociedade! Assim acontece fora
África nos currículos escolares se destaca
da escola, porque dentro... Como acontece
pela intensa mobilização social e pela com-
dentro? Como negros e negras são represen-
petente metodologia produzida à margem
tados nos livros didáticos? Qual enfoque é
do sistema oficial de ensino. Entendendo
dado à sua participação na história e cultura
que mudar o imaginário de África incidia di-
do país? Aparecem como escravos? Como
retamente no imaginário social sobre a po-
passivos? Ou não? Já falamos de Zumbi e do
pulação negra no Brasil, instituições como o
Quilombo dos Palmares... E o 20 de novem-
Ilê-Aiyê da Bahia, passaram a desenhar uma
bro? E as várias insurreições negras, as ve-
proposta educacional para suas crianças, in-
lhas e atuais reivindicações pautadas pelos
cluindo uma história positiva da África, os
4
De acordo com dados do Instituto de Pesquisas Aplicadas - IPEA, com base na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio (PNAD) de 1999, apesar de os negros representaram pouco menos da metade da população,
são 70% dos que vivem em situação de miséria; a pobreza atinge 38% das crianças brancas e 65% das negras; um
negro, com mesmo nível de escolarização que um branco ganha até 54% menos que este; entre os meninos brancos
44,3% estão cursando o 2o ciclo do Ensino Fundamental, já para os negros este percentual cai para 27,4%; sete em
cada dez negros não completam o Ensino Fundamental.
87
mitos, a ancestralidade e a topografia do
Foi o conjunto de práticas como estas que
terreiro à sua concepção pedagógica. A prin-
impulsionou a inserção da história e cultura
cípio, estas práticas pretendiam ser com-
da África e dos afro-brasileiros no currículo
plementares ou alternativas à educação es-
oficial de algumas secretarias de educação
colar que, baseada na ditadura do “mono”,
na década de 1990 e em 2003, em todo o sis-
invalidava e abortava a diversidade cultural
tema educacional, como lei federal. Portan-
e racial presente em seus alunos, produzin-
to, a Lei n. 10.639/2003 não é um presente
do, com esta invisibilização, uma escala de
“do governo”. No máximo um presente das
valores, na qual a história e cultura da África
organizações do movimento negro para a
ocupavam os últimos lugares.
sociedade brasileira. Um passo importante
neste processo foi a consolidação do Plano
A experiência do Apô Afonjá, sistematiza-
de Ação da III Conferência Mundial Contra o
da por Vanda Machado, é um feliz exemplo
Racismo, o direito de ter incluído nos currí-
de busca de uma pedagogia nagô, que liga
culos escolares a história que até então não
a educação escolar ao mundo do terreiro
tinha sido contada nas escolas.
com toda a sua riqueza material e simbólica,
envolvendo toda a comunidade com a ação
educativa e promovendo o conhecimento e o
respeito às religiões de matriz africana. Crianças, ainda muito pequenas, ouvem e reescrevem, com suas educadoras, histórias de reis
e rainhas africanos como a Rainha Nzinga,
de lutadores como “O caçador de uma flecha
só, que trouxe alegria”, e assim aprendem a
gostar mais de si mesmas. O passo seguinte
foi levar esta pedagogia para a escola, incluir
este novo olhar e novos sentidos à formação
dos educadores da rede pública aos espaços
acadêmicos. E assim vem acontecendo.
Desde 1940, o Teatro Experimental do Negro,
preocupado com uma educação que valorizasse a participação do negro na construção
Atuando na formação de educadores e na
proposição de políticas de promoção da
igualdade racial, tenho observado que, no
geral, as unidades educacionais já reconhecem que é delas a tarefa de educar para a
igualdade racial, ainda que alguns educadores estejam esperando uma situação explícita de racismo, para então pensar no assunto. Porém, para aqueles que acreditam
que é necessário fazer algo, a questão que
se apresenta é o como fazê-lo. A tendência
é delegar esta missão ao professor negro,
militante, ou ao professor de História, que
são considerados como “aqueles que sabem
destas coisas”, enquanto os demais ficam
à espera do dia em que estarão preparados
para tratar tema tão delicado!
da história, criou cursos de alfabetização,
As dificuldades, muitas vezes, estão pauta-
arte e cultura para adultos e crianças.
das, mais que na falta de conteúdos e fontes
88
de pesquisas, em receios, medos, mágoas e
A experiência do Prêmio Educar para a Igual-
inseguranças em tratar a temática racial, que
dade Racial apontou que a inclusão de uma
não devem ser ignorados. Muitas vezes, os
perspectiva africana ao currículo escolar
educadores brancos, negros, indígenas, etc.,
tem provocado grandes mudanças no modo
não tiveram oportunidade de refletir sobre
de ensinar, nas metodologias de ensino, nos
sua própria identidade racial, sobre suas vi-
recursos didáticos utilizados. Observa-se
vências das relações raciais. Cabe uma pro-
que estas práticas são mais participativas,
posta efetiva de capacitação de educadores,
contam com a presença da comunidade es-
oferecendo conteúdos, mas também, dando
colar em seu sentido mais amplo (familia-
conta das questões subjetivas, para encorajá-
res, organizações sociais etc.), estimulam a
-los a uma prática que promova a igualda-
pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-
de racial. Trata-se de mudar, não apenas os
los, os mitos, a ancestralidade.
conteúdos, mas o olhar e os sentidos dados
à diversidade étnico-racial. Nessa perspec-
A experiência do Prêmio Educar para a Igual-
tiva, muitas práticas “alternativas”, muitos
dade Racial apontou que a inclusão de uma
materiais e experiências têm sido produzidos
perspectiva africana ao currículo escolar
em território nacional: bibliografias afro-
tem provocado grandes mudanças no modo
-brasileiras têm chegado às salas de leitura e
de ensinar, nas metodologias de ensino, nos
bibliotecas dos municípios de São Paulo, Belo
recursos didáticos utilizados. Observa-se
Horizonte e Campinas; programas de forma-
que estas práticas são mais participativas,
ção continuada nas unidades escolares, nos
contam com a presença da comunidade es-
horários coletivos, nas universidades; sele-
colar em seu sentido mais amplo (familia-
ção, análise e disseminação de práticas edu-
res, organizações sociais etc.), estimulam a
cacionais como as que são organizadas pelo
pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-
Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promo-
los, os mitos, a ancestralidade.
vido pelo Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades – CEERT10. Práticas
Não tememos ser otimistas, ao dizer que a
que têm saído do combate ao racismo para a
Lei n. 10.639/2003 já nasce ultrapassando o
promoção da igualdade racial na educação.
limite da obrigatoriedade. A África está dei-
10O Prêmio Educar para a Igualdade Racial, em duas edições, recolheu e analisou 524 experiências educacionais
de promoção da igualdade racial/étnica, de todos os estados do país, da Educação Infantil, do Ensino Fundamental
e Médio. A primeira edição teve como um dos produtos a publicação “Educar para a Igualdade Racial” contendo as
sínteses de 30 experiências e um CD com sugestões de atividades e uma bibliografia com mais de trezentos títulos.
A publicação da segunda edição está em andamento, mas é possível verificar no site do CEERT (www.ceert.org.br),
um resumo de 32 práticas bem sucedidas.
89
xando de ser um “país carente” para se tor-
cial presente na sociedade brasileira. Este
nar um continente cheio de contradições e
“projeto continente” não está pronto. Está
belezas históricas. Na mesma medida, a es-
sendo e poderá ser construído por cada
cola deixa de ser o terreno da exclusão de
um, cada uma de nós, cotidianamente. Sua
crianças negras e indígenas, para se tornar
implantação impulsionará decisões asserti-
espaço de intervenção pedagógica de com-
vas, políticas públicas transformadoras. E,
bate ao racismo e de promoção da igualdade
brevemente, nossos alunos, negros, bran-
racial. Vão desaparecendo as ações solitárias
cos, indígenas e de outros grupos étnicos
das salas de aula e emergindo projetos co-
terão que consultar o dicionário para com-
letivos, “projetos-continente”, partilhados
preender o termo exclusão.
com outros educadores, com organizações
do movimento negro, pesquisadores e secretarias de educação. Os livros com visões
estereotipadas cedem o espaço àqueles que
falam de tantas diferentes gentes, em tantas diferentes línguas, de tantos diferentes
sentimentos, mostram tantos diferentes
Para ampliar o debate
Vídeos:
“Vista minha pele” – CEERT
. [email protected]
“Rompendo o silêncio” – SEBRAP
jeitos e cabelos. Rompe-se o silêncio diante
de situações de discriminação, sejam elas
explícitas ou não. As referências negras,
Referências
as personalidades históricas não podem
mais ser contadas nos dedos das mãos, tamanhos os levantamentos feitos por educadores e educandos. Cada vez que um
educador sente dificuldades para abordar
a temática racial ou tem vontade de aprofundar sua formação sobre os estudos afro-brasileiros conta com vasta bibliografia e
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Cidadania
em preto e branco. São Paulo: Ed. Ática, 1999.
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar, ao silêncio escolar. Racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo, Ed.
Contexto: 2000.
com a parceria das universidades locais e
MACHADO, Vanda. Ilê- Axé.Vivências e Imer-
seus pesquisadores. Os quilombos deixam
são pedagógica: as crianças do Apô Afonjá.
de ser referência do passado e estão cada
vez mais perto do universo das escolas.
BRASIL. CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curricula-
Uma boa escola passa a ser assim denomi-
res Nacionais para a Educação das Relações Ét-
nada na medida em que reflete, em todos
nico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
os seus aspectos, a diversidade étnico-ra-
Afro-brasileira e Africana. Brasília, MEC: 2004.
90
ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Alma-
cação: repensando nossa escola. São Paulo,
naque Pedagógico Afrobrasileiro. Uma pro-
Summus, 2001. p. 97-114.
posta de intervenção pedagógica na superação do racismo no cotidiano escolar. Belo
SILVA, Ana Célia da. A discriminação do ne-
Horizonte: Mazza Edições, 2004.
gro no livro didático. Salvador, EDUFBA/CEAO:
1995.
ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo, Global:1985.
______. Desconstruindo o racismo no livro didático. Salvador, EDUFBA/CEAO: 2001.
SANTOS, Isabel Aparecida. A responsabilidade da escola na eliminação do preconceito
SILVA Jr., Hédio. Discriminação racial nas es-
racial: alguns caminhos. In: CAVALLEIRO,
colas: entre a lei e as práticas sociais. Brasí-
Eliane (org.). Racismo e anti-racismo na edu-
lia: UNESCO, 2002.
91
IV. África viva e transcendente!1
Narcimária Correia do Patrocínio Luz2
[...] Eu digo para nunca esquecerem o lugar de suas origens. Se nós participamos
na religião de outros, se nós aprendemos a cultura dos outros, não devemos esquecer a nossa. Portanto, nós não devemos usar nossas mãos para relegar nossa
própria cultura a posições inferiores. Toda pessoa deve aprender a colocar-se
a si mesma num pedestal. Isto porque a galinha é que se abaixa quando está
entrando em casa.
Meus filhos, todos os tesouros do povo Yorubá estão em Ilé-Ifé. Ifé é o lar e a origem de todos nós... Ilé-Ifé é a terra sagrada do povo negro e de todos os devotos
da religião dos Orixás espalhados pelo mundo. Foi aqui em Ifé que Oduduwa
criou a Terra sobre a qual todos nós hoje estamos em pé e no seio da qual nós
desapareceremos quando mudarmos nossa presente posição mortal!!!Oduduwa
que desceu para a terra numa corrente, e que foi o primeiro Olofin, não deixará
secar nunca a fonte de vossa sabedoria. Eu saúdo a vossa coragem. Eu saúdo
vossa paciência. Eu estou muito feliz por ver que vocês não esqueceram o seu
lar ancestral...
(Oba Okunade Sijuwade, Olubuse II, Rei de Ifé. Pronunciamento na I Conferência Mundial da Tradição do Orixá, Ilê Ifé, Nigéria, 1981.)
Introdução
África e Cultura Afro-Brasileira, e sua implementação no currículo oficial das esco-
A efervescência do debate sobre a Lei n.
las brasileiras são o foco da nossa análise,
10.639/03, que entrou em vigor em 09 de ja-
principalmente depois de constatarmos
neiro de 2003 e que inclui, no currículo da
muita ansiedade entre os professores(as),
Educação Básica, o estudo da História da
sob a pressão de ter que contribuir no pro-
1Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasileira – 2006 / PGM 1.
2
Professora Titular do Departamento de Educação Campus I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB;
Doutora em Educação; pesquisadora no campo da Educação, Comunicação e Comunalidade Africano-Brasileira;
coordenadora do PRODESE - Programa Descolonização e Educação CNPq/UNEB.
92
cesso de implantação do ensino de História
nea, submetida ao discurso universal que a
da África e História e Cultura Afro-Brasileira
congela no tempo e no espaço da lógica do
nas suas escolas.
projeto histórico da “ordem e progresso” capitalista, destituindo-a completamente dos
Levando em consideração as questões mui-
povos que detêm milenarmente um comple-
tas vezes dispersas e equivocadas que vêm
xo sistema de pensamento, de onde trans-
afligindo professores(as), e aquelas que ha-
bordam cosmogonias, universos simbólicos,
bitam o imaginário de crianças, adolescen-
um complexo sistema de comunicação cujas
tes e jovens que deverão vivenciar a Lei, aqui
linguagens e valores organizam comunali-
é importante esclarecer que o processo de
dades, instituições e suas hierarquias, tec-
sua implantação não está ocorrendo em
nologias e modos de produção, além de uma
águas tranquilas. A Lei n. 10.639/03 é o resul-
magnífica erudição estética...
tado do esforço envolvendo as comunalidades africano-brasileiras que, durante muito
Nossa contribuição se alinha justamente
tempo instituíram iniciativas em Educação
nesse esforço, de compor a África a partir
que afirmassem e legitimassem seu patri-
do repertório das comunalidades que a (re)
mônio civilizatório: a África e sua (re)criação
criaram aqui, tornando-a visceral em nos-
nas Américas.
sas vidas. A África que aparece no currículo
escolar soa como um lugar distante, tudo é
Apesar de reconhecermos a conquista ob-
estranho, fora das nossas entranhas. Essa
tida pelas comunidades africano-brasileiras
África, que ganha o status jurídico, no âm-
em estabelecer canais de legitimação ins-
bito das políticas de Educação, perde a di-
titucionais para que o Estado assumisse a
nâmica de civilização transatlântica que há
diversidade civilizatória dos povos nas polí-
muito atravessa o nosso viver cotidiano no
ticas de educação, vimos que há equívocos
Brasil. Ora, se estamos dentro da dinâmica
na abordagem sobre a África e sua influ-
entre tradição e contemporaneidade, é pre-
ência em nossas vidas. Isso, muitas vezes,
ciso que se diga: a África também está aqui!
vem ocorrendo pela adoção de perspectivas
Está aqui o tempo todo envolvendo nossas
teórico-metodológicas, ainda derivadas das
crianças e jovens, animando-os a estruturar
projeções da História e da Geografia civili-
suas identidades e erguer a cabeça para lidar
zatórias greco-romanas, anglo-saxônicas e
com os espaços institucionais impregnados
ibéricas. São perspectivas que insistem em
do recalque ao que somos, enquanto povos
representar a África compacta, homogê-
descendentes de africanos.
93
Para além das fronteiras do
currículo escolar, existe a
floresta
a história como Hegel e Marx viram, é
dinâmica, é uma mutação sem compromisso com o pai, porque o Ocidente é
uma sociedade deicida e parricida, ma-
Se realmente pretendemos aproximarmo-
tou Deus e mata o pai. Bem, eu estou
-nos da “África Viva”, será preciso pensar
falando com outra linguagem, do Egun,
em africanizar o currículo. A africanização
que é o culto ao ancestral. Portanto, o
do currículo escolar é uma estratégia para
princípio da ancestralidade é poderoso,
transcendermos as narrativas curriculares
porque nele você pode crescer, envelhe-
que destituem os povos da África do direito
cer, morrer, e o tempo inteiro você é
à existência e da afirmação de toda a exube-
atravessado por um discurso de funda-
rância que caracteriza o seu continuum ci-
ção de seu pai e sua mãe. Você não se
vilizatório. Nossas crianças e nossos jovens
livra desse discurso. Você pode tentar
precisam saber disso! É uma dinâmica de
rejeitá-lo, mas quando joga fora é para
currículo cujas linguagens e valores se inter-
cair num outro que você funda, porque
cambiam entre as distintas civilizações que
você se livra de seu pai físico, mas quan-
compõem a nossa identidade nacional.
do tem um filho vira o pai e você está no
discurso de fundação3.
Isso nos leva à radicalidade das elaborações
sobre o tempo que atravessa o pensamento
Vamos nos dedicar agora a realçar alguns
africano. Creio que Muniz Sodré nos ajudará
elementos dramáticos que nos permitem
a elaborar essa transcendência:
a aproximação da singular visão de mundo
que faz expandir a complexidade da civiliza-
[...] Os neo-alexandrinos tinham uma
ção milenar africana entre nós.
categoria chamada ‘eon’, que é uma das
maneiras de dizer tempo em grego. O
Trata-se do conto “Ajaká, Iniciação para a
‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há
Liberdade”4, que integra a herança nagô nas
alguma coisa na Bahia que é a ordem do
Américas, de modo particular na Bahia. Esse
‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal.
mito foi (re)criado para um auto coreográ-
Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de
fico por Mestre Didi, Deoscóredes Maximi-
ancestralidade, de paternidade, e não de
liano dos Santos, Juana Elbein dos Santos e
história pura. A história, principalmente
Orlando Senna.
3SODRÉ, Muniz. Entrevista a Mariluce Moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10.
4Conto adaptado de SANTOS, Deoscóredes M. et alii. Ajaká, a Iniciação para a Liberdade. Salvador, SECNEB,
1991.
94
Esse auto coreográfico vem alimentando
podendo assumir a plenitude de ser e ter or-
nossas iniciativas teórico-metodológicas,
gulho da sua descendência africana.
envolvendo professores de várias regiões do
Brasil, para falar sobre a presença africana
e a contribuição de suas linguagens na área
de Educação.
No tempo em que os seres humanos moravam nas árvores e conversavam com
elas5, os mais antigos nos contam que
Oduduwa, orixá patrono da criação da
Fizemos uma adaptação cuidadosa e exclu-
Terra, vivia em seu palácio na cidade
siva de Ajaká para compor esse mosaico de
de Ifé, na Nigéria, de onde se originam
ideias sobre a “África Viva e Transcenden-
a cultura nagô e as linhagens reais dos
te”, e irmos conversando, tocando no que
diversos reinos do império nagô.
há de mais profundo no conto, a saber: os
percalços pelos quais Akajá passa, que são
Oduduwa ficou muito doente e, se não
explorados entrelaçando dança, música, tex-
fosse logo cuidado, poderia ficar cego.
to, efeitos plásticos: uma linguagem assen-
Ah! Se isso acontecesse, a existência es-
tada no universo simbólico nagô. A floresta
taria toda em perigo! O ânimo de todo o
é o cenário-chave do conto e nela crescem,
povo de Ifé era a esperança de encontrar
com maestria, conteúdos ético-estéticos
a Folha da Vida, único remédio, planta sa-
que revelam as Mães Ancestrais, represen-
grada que representa descendência, reno-
tadas como o pássaro Akalá; Aroni, o orixá
vação, cuja seiva permitirá que o Rei Odu-
das folhas, que se torna irmão de Ajaká e seu
duwa recupere a visão e a força da vida.
guia; os espíritos da água e da palmeira; os
ancestrais masculinos Egunguns.
Mas não é fácil encontrar a folha da
vida! A hierarquia do palácio convoca
Escutem com o coração e procurem extrair,
os caçadores experientes, que conhecem
das imagens que alimentam a narrativa,
bem as matas e florestas, mas infeliz-
linguagens que levantem a auto-estima das
mente eles não conseguem encontrar a
nossas crianças, adolescentes e jovens, que
folha da vida.
precisam urgentemente (re)aprender a encontrar seu lar ancestral e com ele, e através
Se abate por toda Ifé muita angústia e
dele, projetar-se para uma ética do futuro,
tristeza, pela situação da saúde de Odu-
5
É assim que os/as mais antigos/as costumam transmitir saberes aos/às mais novos/as nas comunidades
de matriz africana. As histórias, contos, cantigas, parábolas, provérbios são anunciados com essa introdução,
carregada de poesia mítica, demonstrando que o conhecimento a ser transmitido vem de tempos imemoriais, isto
é, desde que o mundo é mundo.
95
duwa, que a cada dia se agrava. O Baba-
tos ancestrais infinitos, contidos princi-
lawô, que é um sacerdote iniciado nos
palmente na floresta.
mistérios oraculares e capaz de indagar
sobre o futuro, sabe que a folha da vida
é a única solução, e diante da situação
abre seu coração e indaga:
“Quem pode encontrar? Quem sabe reconhecer uma coisa em outra? Quem
sabe adivinhar o que não se vê e não se
toca? Quem pode sentir o impossível?
Quem?”
No seu encontro no coração da floresta com
a Iya mi Agbá, a mãe ancestral, ela o orienta
dizendo-lhe que:
“(...) terá de aprender em seu próprio
corpo. Com a cabeça, com as mãos, com
os pés e o coração. Ori, Okan, ese, e òwo.
Com o estômago, com as vísceras, com
a saliva, o esperma e o sangue, com a
pele e o pensamento. A Folha da Vida
Diante dessas indagações apresenta-se
está em alguma parte, em qualquer lu-
o jovem Ajaká, o primogênito, o primei-
gar no mais profundo recanto da flores-
ro neto do rei Oduduwa. Sabe aquele
ta, na zona mais difícil e oculta.”
adolescente, cheio de si e destemido?
Pois é! Ajaká é assim, e se oferece confiante para ajudar Oduduwa, e com isso,
assegurar a continuidade e dinâmica da
transcendência que envolve o mistério
da existência na Terra.
Depois de beber o vinho da palmeira,
Ajaká torna-se irmão de Aroni, o orixá
das folhas, que também o orienta: “Você
pode aprender os mistérios das folhas,
das raízes, das flores e dos frutos, os
mistérios que eu sei, os mistérios que eu
Ajaká é capaz de dar continuidade, ex-
sou. Você, meu irmão, pode aprender a
pandir e recriar os valores inaugurais
multiplicar, você pode aprender a eter-
legados dos ancestrais. Ele é uma repre-
nidade... As plantas podem curar, pro-
sentação mítica do orixá Ogum, que é
teger e revelar uma nova sabedoria, um
desbravador, caçador, e conhecedor pro-
conhecimento infinito.”
fundo da floresta.
Em Aroni, Ajaká identifica o saber soSerá imerso a esse mundo sobrenatural
bre as plantas, a medicina, o segredo
e de mistério que Ajaká faz a sua inicia-
da luz que abraça cada semente, grãos,
ção da adolescência para se tornar um
pétalas, fibra vegetal. Mas Ajaká desco-
adulto. Durante esse período de busca
bre que todo o conhecimento que Aroni
pela folha da vida, absorve conhecimen-
detém de reconhecer esse repertório so-
96
bre a flora não abrange a folha da vida e
E lá se vai Ajaká. Transformou-se doloro-
nem mesmo sabe onde ela está.
samente em macaco, e agora é capaz de
encontrar Egunguns, os espíritos ances-
Mais uma vez, Aroni ensina a Ajaká que
trais.
os mistérios da vida não estão apenas
nas plantas, ele terá que aprender muito
Ajaká sabe que a Folha da Vida se en-
em seu próprio corpo.
contra no ponto mais secreto da parte
desconhecida da floresta, a região mais
“Os mistérios da vida estão em outros
escura e úmida, a mais sagrada, protegi-
pontos da natureza, como em certas
da pelos espíritos que impedem a passa-
partes animais. Para sabê-los você terá
gem. E pergunta aos Eguns como pene-
de aprender a transformar-se em bicho.
trar nessa região.
Mas este é um segredo profundo, e agudo como a ponta do espinho, um segredo
Os Eguns acolhem a pergunta de Ajaká.
das mães ancestrais.”
De repente, um forte ciclone o leva para
os recônditos da floresta. Assim Ajaká se
Assim, Ajaká invoca outra vez a mãe an-
aproxima da folha da vida, que fica quie-
cestral Akalá, e diz a ela da necessidade
tinha, escondidinha observando a apro-
de conhecer o corpo dos bichos. Akalá o
ximação de Ajaká. Diante do silêncio da
previne de que ele poderá, ou não, saber,
folha da vida, que não se revela imedia-
e pede-lhe que imagine a estranha, mas
tamente , Ajaká canta para ela:
maravilhosa inteligência do macaco, que
é o guardião da ancestralidade, o que
fala com os mortos. E como a Folha da
Vida encontra-se muito longe de onde
eles estavam, Akalá recomendou-lhe:
“Ewê ê asa kojé
ewê gbogbo ni segun
ewê ê asá kojé tantan
ewê gbogbo ni ti tôrisá!
“Você precisa da força do búfalo, da ferocidade e da agilidade da pantera; e da
Folha da Vida!”
serpente, que lhe dirá como é possível re-
A folha da vida, revelando-se, responde:
nascer, renascer, renascer... Você será se
souber a mágica multicor do camaleão...
“Encontre-me, ofereço-me àquele que
O macaco fala com os mortos, os que sa-
pode levar a vida aos olhos do Rei. Só um
bem; Egun, Egun, Egun. O corpo do ma-
descendente indicado pelo ixé, demons-
caco é feito de dor, dor, dor...”
trando bravura, persistência, sabedoria
97
e imensurável amor pelos ancestrais
Todo o conhecimento – a aquisição de sa-
sabe utilizar e honrar o que lhe é dado.
beres e/ou aprendizagem – é interdinâmico,
Sou a cura, a descendência e a renova-
interpessoal; é necessária a presença do ou-
ção, sou o que não pode ser encontrado
tro para que se estabeleça a linguagem, a
senão por aquele que venceu todos os
comunicação com sua riqueza de códigos e
sofrimentos e dissolveu os obstáculos,
formas de expressão. É um conhecimento
grande aprendiz, grande iniciado!”
vivo e direto.
E assim, Ajaká retorna ao palácio de
Ajaká é a extensão da floresta, da natureza e
Oduduwa para devolver a visão e a exis-
de seus mistérios. Todas as outras formas de
tência ao orixá patrono da Terra.
existência presentes no aiyê, mundo visível.
Mas Ajaká também interage com o mundo
Ajaká retorna um homem depois de todo
invisível, o orun, o que permite a completu-
o processo de iniciação vivido na flores-
de da sua iniciação. Ajaká sabe e compreen-
ta. É um Ser em permanente mutação.
de que a Natureza não pode ser reduzida a
objeto, à manipulação e à exploração inces-
“(...) Forte como um búfalo, veloz como
sante do homem. Ele aprende na e com a na-
a pantera, leve como um pássaro, com
tureza. A natureza não é matéria-prima para
os sentidos de camaleão, o instinto do
manufatura, submetida ao lema de “ordem
peixe, mais sábio que o macaco e senhor
e progresso” do mercado capitalista.
do segredo que se instala em cada planta, em cada semente.”
A riqueza do conhecimento adquirido por
Ajaká, na trajetória de sua iniciação, trans-
Por esse amor e fidelidade ao ancestral,
cende o comportamento ascético e inerte do
Ajaká recebe a espada Agadá, que lhe dá
corpo, onde apenas a relação olho-cérebro é
o poder de desbravamento, e recebe o
permitida, como enfatizam os currículos es-
título de Awasoju, o que vai à frente de
colares. Apela-se para todos os sentidos do
tudo e de todos.
corpo. O corpo é movimento, pulsão, vida!
O conto de Ajaká, que adaptamos para os
propósitos desta série, nos leva a destacar
valores singulares da civilização africana.
A aprendizagem é permitida por essa interação profunda e singular entre a humanidade
e a natureza.
Princípios como a fidelidade, o amor, o res-
Ajaká não se caracteriza como um desbrava-
peito aos mais velhos, aos ancestrais, à hie-
dor ganancioso da “conquista” dos segredos
rarquia e os valores inaugurais da existência
e mistérios da Natureza, submetendo-a aos
estão presentes no conto.
seus caprichos.
98
Seu objetivo não é ascensão individual.
sentar a África, sua transcendência e a infi-
Ajaká busca, de forma exuberante, a con-
nitude de (re)criações contemporâneas nas
tinuidade da vida, da existência do seu con-
Américas, principalmente no Brasil, a nossa
tinuum civilizatório e comunalidade, da
floresta simbólica.
preservação e expansão dos princípios originais da existência, para que esse mundo
Nas comunalidades tradicionais da Bahia,
não se acabe.
nossas crianças aprendem e elaboram conhecimentos e expressam esses universos,
Como Awasoju, aquele que vai na frente de
característicos do pensamento africano e
tudo e de todos, Ajaká abre caminhos, per-
suas atualizações nas Américas, através da
mitindo aos seus descendentes o legado dos
vivência e convivência com orikis, contos,
seus ancestrais, da dinamização dos princí-
instrumentos percussivos, cujos toques
pios cósmicos da existência à pulsão de so-
falam/comunicam/relatam
ciabilidade e comunalidade.
anunciam os primórdios da humanidade,
histórias
que
indicando princípios ético-estéticos para
A folha da vida, como motivação iniciáti-
que o corpo comunitário se expanda e dê
ca de Ajaká, representa metaforicamente a
continuidade aos elos de ancestralidade
África Viva contemporânea em cada um de
que projetam e anunciam a ÁFRICA VIVA,
nós. Retomemos uma passagem do mito,
TRANSCENDENTE.
em que o Babalawô, diante da situação, diz
e indaga:
Relativizar é o que propomos! Não podemos
colocar um “manto de ferro” nas crianças
A Folha da Vida é a única solução. Quem
que vivem imersas em territorialidades que
pode encontrar? Quem pode reconhecer
têm outros valores radicalmente distintos
uma coisa em outra? Quem sabe adi-
da territorialidade imposta pelo mundo im-
vinhar o que não se vê e não se toca?
perialista representado pela História e pela
Quem pode sentir o impossível?
Geografia civilizatórias européias.
Ajaká se atualiza e vive intensamente no co-
O que propomos, como educadores(as), é a
ração daqueles que acreditam que a educa-
legitimação das várias tradições africanas
ção merecida pelas nossas crianças e pelos
que constituem a formação social brasilei-
jovens e adultos deve ter a pulsão de um
ra, nos currículos da Educação Infantil, En-
repertório iniciático de aprendizagem e ela-
sino Fundamental e Ensino Médio, evitando
boração de conhecimento, cuja dinâmica
o recalque perverso que tende a impor às
é envolta pela busca da folha da vida, que
nossas crianças e aos nossos jovens apenas
metaforicamente usamos aqui para repre-
a versão neocolonial sobre África.
99
REFERÊNCIAS
LUZ, Narcimária. ABEBE: a criação de novos
valores na educação. Salvador: Edições SEC-
Sobre a presença da civilização africana nas
Américas e sua contribuição para elaborarmos perspectivas educacionais promissoras,
recomendamos:
NEB, 2000.
______. (Org.) Pluralidade cultural e educação.
Salvador: Secretaria da Educação do Estado
da Bahia: Edições SECNEB, 1996.
LUZ, Marco Aurélio. Agadá, dinâmica da civi-
SANTOS, Deoscóredes Maximiliano. Contos
lização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA,
crioulos da Bahia e contos negros da Bahia.
2001.
Salvador: Corrupio, 2003.
______. Cultura Negra e Ideologia do Recalque.
SODRÉ, Muniz. As Estratégias Sensíveis: afeto,
Rio de Janeiro: Ianamá, 1983.
mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.
100
V. Diversidade étnico-racial no currículo escolar
do ensino fundamental1
Véra Neusa Lopes2
Na vida fora da escola, ninguém tem dúvida
O Relatório de Desenvolvimento Humano de
de que, no Brasil, convivem pessoas de di-
2005, por sua vez, aponta que os negros estão
versas origens étnicas. Basta que tenhamos
pouco representados entre juízes, desembar-
um olhar atento para os que estão à nossa
gadores, procuradores, defensores públicos,
volta, para os que aparecem nos jornais, re-
na máquina administrativa do Estado, nos ni-
vistas, programas e noticiários de televisão.
chos de mercado mais valorizados, enfim em
Sabemos que as diferenças existem, vemos
todas as posições de poder. Isto nos mostra
que somos diversos, mas não estamos, na
que a sociedade trata diferentemente aqueles
maioria das vezes, educados para perceber
que não pertencem ao grupo hegemônico e
o quanto estas diferenças influenciam e de-
não se enquadram nas normas estabelecidas
terminam os modos de vida das pessoas e
por esse mesmo grupo. Os que se encontram
fazem com que as mesmas venham a ocupar
na base da pirâmide social (e aí estão indíge-
posições distintas na esfera socioeconômica
nas e negros em sua maioria) são geralmente
e a desempenhar papéis também distintos
discriminados, enfrentando dificuldades na
que, secularmente, são indicativos de quem
afirmação de sua identidade (pessoal, cultu-
é quem na sociedade brasileira. Estudos do
ral e nacional), não conseguindo exercer em
IBGE e do Censo Escolar apontam para esta
sua plenitude a condição de cidadão brasi-
diversidade, indicando que quase metade da
leiro. A invisibilidade com que a diversidade
população em geral e da população escolar,
étnico-racial é considerada torna-se danosa à
respectivamente, é composta por negros
democracia brasileira, pois impede a promo-
(pretos e pardos).
ção da igualdade racial.
1Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasileira – 2006 / PGM 3.
2 Especialista em Planejamento Educacional, licenciada e bacharel em Ciências Sociais. Integrante do
Coletivo Estadual de Educadores Negros APNs/RS do Regional Sul 3 da CNBB. Integrante do GT Programa de Educação
Anti-Racista no Cotidiano Escolar da PROREXT/ UFRGS. Membro da CADARA/ MEC – Comissão Técnica Nacional de
Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros.
101
Esta diversidade de que estamos falando
-racial, tornando-os capazes de interagir e de
está presente, também, na escola, muito
negociar objetivos comuns que garantam, a
embora nem sempre isto seja objeto de pre-
todos, respeito aos direitos legais e valoriza-
ocupação por parte das autoridades educa-
ção de identidade, na busca da consolidação
cionais, gestores escolares e professores. É
da democracia brasileira; b) o do Ensino de
urgente pensar e promover mudanças em
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
direção a uma escola cidadã, comprometi-
– reconhecer e valorizar a identidade, a histó-
da com os direitos humanos e a construção
ria e a cultura dos afro-brasileiros, bem como
de identidades que respeitem a contribuição
garantir o reconhecimento e a igualdade de
de cada grupo étnico para a formação da
valorização das raízes africanas na nação bra-
sociedade brasileira. A Lei n. 10.639 de 2003,
sileira, ao lado das indígenas, européias e asi-
que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da
áticas. Configura-se, assim, uma política de
Educação Nacional ao incluir os artigos 26-A
Estado, cuja duração transcende à política
e 79-B, veio nesta direção ao contemplar, em
de governo. Estes dois artigos vieram para
caráter obrigatório, a inclusão no currículo
ficar e serem cumpridos.
escolar da história da África e dos africanos,
da luta dos grupos negros no Brasil, da cul-
Ao longo dos anos, os currículos foram sen-
tura negra brasileira e do negro na forma-
do construídos, tendo por base um modelo
ção da sociedade nacional, em especial, mas
eurocêntrico, o que significa ter tomado o
não exclusivamente, nas áreas de Educação
homem branco como referência para a cons-
Artística, Literatura Brasileira e História do
trução das propostas de ensino e aprendiza-
Brasil. O art. 79-B introduz, no calendário
gem. Quem não atende aos requisitos desse
escolar, o dia 20 de novembro como Dia Na-
modelo constitui-se num problema para o
cional da Consciência Negra.
sistema escolar.
A Resolução CNE/ CP 1/ 2004, que institui as
Tomar consciência de que o Brasil é um país
Diretrizes Curriculares para a Educação das
multirracial e pluriétnico e, portanto, re-
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
conhecer e aceitar que, nesta diversidade,
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
negros e indígenas também desempenham
enfoca dois campos de objetivos, em tudo
papéis relevantes e substantivos, são apren-
relacionados à questão da diversidade: a)
dizagens que precisam ser realizadas e que
o da Educação das Relações Étnico-Raciais
convergem para a educação das relações
– divulgar e produzir conhecimentos, bem
étnico-raciais porque, conforme expressa o
como atitudes, posturas e valores que edu-
Parecer CNE/CP 3/2004, esta educação pode
quem cidadãos quanto à pluralidade étnico-
oferecer conhecimentos e segurança para ne-
102
gros orgulharem-se de sua origem africana;
como os indígenas, entre outros, do acesso
para os brancos, permitir que identifiquem as
aos direitos humanos fundamentais. Assim,
influências, as contribuições, a participação e
tem de colocar, necessariamente, a diversi-
a importância da história e da cultura dos ne-
dade étnico-racial como conteúdo escolar e
gros no seu jeito de ser, viver, de se relaciona-
dar a esse conteúdo o tratamento adequado.
rem com as outras pessoas.
Para tanto, deve constituir-se em ambiente
O processo educativo, que viabiliza essas
educativo, acessível à comunidade à qual
aprendizagens essenciais para a construção
serve, em que se respeita o outro, em que
da identidade e formação do cidadão, encon-
se dá visibilidade a todos, combatem-se as
tra embasamento nos princípios da consci-
discriminações, busca-se eliminar os pre-
ência política e histórica da diversidade, do
conceitos e são desfeitos os estereótipos,
fortalecimento de identidades e de direitos,
estimulando a auto-imagem e a auto-estima
das ações educativas de combate ao racismo
positivas e promovendo a igualdade étnico-
e às discriminações, também apontados no
-racial, pelo reconhecimento da diversidade
mesmo Parecer.
e pela desconstrução das diferentes formas
de exclusão.
103
A escola de Ensino Fundamental, ao tratar
da questão da diversidade étnico-racial e
Algumas possibilidades
propor e executar medidas de implementação dos artigos 26-A e 79-B, cumpre a parte
A implementação da Lei está longe de ser
que lhe toca nos compromissos de Estado
concluída. Em alguns lugares sequer come-
assumidos pelo Brasil, enquanto signatário
çou. É preciso avançar na tarefa de sensibi-
de tratados internacionais de combate às di-
lização das pessoas para que se interessem
ferentes manifestações de racismo, discrimi-
pelo assunto para a fase de comprometi-
nação e preconceito raciais, comprometen-
mento dos profissionais da educação com
do-se a construir uma democracia em que as
o cumprimento dos artigos 26- A e 79-B da
pessoas possam usufruir, em sua plenitude,
LDB, o que envolve profundas mudanças nas
a condição de cidadãos, independentemente
estruturas organizacionais, administrativas
de raça/ etnia, cor, posição e papel social, re-
e pedagógicas das escolas, que vão dos pro-
ligião, gênero. A instituição escolar tem, as-
jetos político-pedagógicos, currículos e pla-
sim, de criar mecanismos e instrumentos de
nos didático-pedagógicos à gestão de pes-
uso permanente, via projeto político-peda-
soas, com base em princípios e valores que
gógico e currículo, para intervir na realidade
regulam a educação das relações humanas e
que exclui o negro (pretos e pardos), bem
os estudos de história e cultura afro-brasilei-
ras e africanas, permeando todas as áreas do
minação, de eliminação dos preconceitos
conhecimento escolar.
e dos estereótipos, em que são estimuladas a auto-imagem e a auto-estima posi-
Todos da comunidade escolar estão convida-
tivas, em que são criadas condições de vi-
dos a fazer parte do mutirão (pixurum) de
sibilidade do afro-brasileiro e do indígena;
transformação dessa escola de que estamos
falando, ao abrir espaço para que, no estudo
da diversidade étnico-racial, seja oportunizado o trato das questões afro-brasileiras e
africanas, de modo explícito e em igualdade
de condições com as demais etnias, de sorte
que todos venham a respeitar o afro-brasileiro em suas especificidades e a valorizar
a contribuição do negro na formação da
sociedade brasileira. O que se tem de fazer
deverá ser fruto de uma construção coletiva
envolvendo toda a comunidade escolar.
Estão todos chamados a colocar a sua inteligência, saberes e habilidades a serviço da
construção de uma ampla proposta, fruto
de muitas cabeças e muitas mãos. Cada escola tem de definir esse processo. Como sugestão, vale a pena lembrar o que se segue:
• Chamar a comunidade escolar e do entorno – por meio de suas legítimas representações,
incluindo
organizações
afro-brasileiras – para a reconstrução do
projeto político-pedagógico e da proposta
curricular, de modo que fique assegurado
o reconhecimento e o resgate da história
e cultura afro-brasileiras e africanas, em
todas as séries oferecidas, como condição
indispensável para a construção da identidade brasileira;
• Criar condições para exercitar uma relação de ajuda e partilha, de modo que todos possam se apropriar, em igualdade de
condições, da história, dos saberes e fazeres dos diferentes grupos étnicos formadores da sociedade brasileira;
• Possibilitar uma nova concepção de mun-
Para a escola de Ensino
Fundamental
• Constituir-se em espaço privilegiado de
inclusão, colocando em prática uma pe-
do, alicerçada em valores que favoreçam
uma relação fraterna e igualitária entre as
pessoas, observadas e respeitadas as especificidades dos grupos étnico-raciais e das
culturas a que pertencem;
dagogia multirracial e interétnica, de res-
• Organizar, coletivamente, uma rede temá-
peito e valorização da diversidade étnico-
tica sobre história e cultura afro-brasilei-
-racial da sociedade brasileira, voltada
ras e africanas, que permita o desenvol-
para a formação do cidadão, direcionada
vimento de conteúdos (atitudes, valores,
ao combate de todas as formas de discri-
conceitos e procedimentos), ao longo de
104
toda a escolaridade oferecida pelo Ensi-
• Aprender a valorizar pessoas, povos e na-
no Fundamental. Por exemplo: negros
ções, num combate permanente às ideias
na África, africanos no mundo, africanos
preconceituosas, às ações discriminató-
no Brasil e seus descendentes brasileiros;
rias, às manifestações racistas.
trocas entre comunidades negras ao redor
do mundo: afro-brasileiros na África e no
mundo; presença africana no Brasil atual;
presença negra na comunidade local, e na
comunidade escolar.
• Desenvolver ações que possibilitem o
aprender uns com os outros e uns dos
outros, pondo em prática verdadeiras comunidades de aprendizagem, construindo
progressivamente a noção de identidade
• Construir coletivamente recursos que,
abordando a diversidade, deem visibilida-
nacional, pessoal e cultural, bem como o
sentimento de pertencimento ao país.
de à história e à cultura afro-brasileiras e
africanas, como: calendário étnico, contemplando vultos africanos e afro-descendentes, com a inclusão de 20 de novembro, como Dia Nacional da Consciência
Negra; mostra fotográfica que evidencie a
contribuição dos negros na comunidade;
sarau cultural, apresentando manifestações da cultura afro-brasileira; exposição
de documentos e outras formas de registro sobre a cultura afro-brasileira.
Por oportuno, destacamos a seguir alguns
procedimentos pedagógicos possíveis de
serem adotados em sala de aula de classes
de séries ou ciclos iniciais do Ensino Fundamental. Tais procedimentos levam em conta
que é a pessoa na sua integralidade (corpo,
mente e emoção) que aprende, destacam a
importância do trabalho coletivo e em grupo e propõem a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade como formas adequadas de tratamento das questões de diversi-
Para professores e alunos
dade e da história e culturas afro-brasileiras
e africanas.
• Colocar em prática comportamentos e
• Criar situações que despertem o interes-
posturas que possibilitem viver numa
se das crianças para a questão das seme-
sociedade democrática, aprendendo a se
lhanças e diferenças entre os integrantes
ver, a ver o seu entorno, de modo objetivo
da classe, incluindo o(a) professor(a). Por
e crítico, a comparar o hoje com outros
exemplo: reunir as crianças em roda para
tempos e lugares, a observar permanên-
conversarem sobre cada um, explorando
cias e transformações e a identificar o
perguntas tais como Quem sou? e Como
quanto isso afeta a vida do homem.
sou?. Pedir que uma criança comece ou,
105
se for muito difícil, iniciar pela professo-
• Propor aos alunos que, aos pares, se ob-
ra, que se apresentará, dando seu nome,
servem e expressem oralmente como
idade, endereço, filiação, nacionalidade,
vêem o parceiro. Em roda, pedir que des-
origem étnica, preferências. Observar a
crevam os colegas e a professora. Comen-
reação das crianças, especialmente quan-
tar as falas.
do disser qual é a sua origem étnico-racial. Exercitar com as crianças, nessa ocasião, que pode estender-se por vários dias,
a oralidade, a observação, a escuta. Dar
tempo para que todos se apresentem.
• Propor a realização do auto-retrato, a partir da observação da própria imagem refletida no espelho. Analisar com as crianças a fidedignidade do auto-retrato.
• Conversar com as crianças sobre o fato
de, embora sendo de mesma nacionalidade, as pessoas podem ser de origem étnico-racial distinta. Trabalhar as noções de
diversidade étnico-racial, nacionalidade,
naturalidade, ascendência, descendência.
• Ajudar os alunos a identificarem semelhanças e diferenças, quanto às origens,
às nacionalidades, ao modo de vestir, ao
• Solicitar que os alunos tragam para classe
modo de falar, ao modo de ser, aos hábi-
uma fotografia recente. Observar com as
tos alimentares, aos costumes e tradições.
crianças as fotos uma a uma. Tirar, depois,
Valorizar a presença dos mais velhos.
uma foto coletiva e observar a diversidade existente em classe, incluindo a diversidade étnico-racial. Examinar fotos mais
antigas de outros grupos conhecidos. Discutir com os alunos a contribuição das
pessoas para o bem-estar da comunidade,
incluindo a escolar. Construir um registro
coletivo.
• Trabalhar com as crianças outras linguagens além da verbal, por meio das quais
podem expressar seus conhecimentos,
sentimentos e expectativas, a aceitação
ou rejeição do outro. Trabalhar com brincadeiras e jogos, cantigas e contos que valorizem a diversidade cultural.
• Orientar a produção coletiva para socia-
Pedir ajuda aos pais ou responsáveis, para
que as crianças possam fazer um retrato falado de si mesmas. Usar, em sala de aula, o
lização dos saberes. Organizar o espaço
para valorizar a diversidade étnico-racial
e cultural existente na sala de aula.
espelho para as crianças se descobrirem e
fazerem o seu retrato usando a linguagem
gráfica.
• O desafio está posto! Você é convidado(a)
a participar. O Brasil precisa de você! En-
106
tre na roda, e juntos(as) busquemos en-
-brasileiros. Revista do Professor, Porto Ale-
contrar as saídas para mudar esse país, a
gre, v.19, n. 75, p. 25-30, jul./ set. 2003.
partir da educação escolar, especialmente
no Ensino Fundamental.
______. Histórias de Vida: Estudo ajuda os
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do Professor. Porto Alegre, v. 19, n. 73, p. 26-
Lei, práticas pedagógicas contemplam afro-
30, jan./mar. 2003.
VI. O legado africano e a formação docente1
Marise de Santana2
Introdução
Tendo este objetivo em mente, atualmente coordeno um programa de trabalho que
Em todo o Brasil, a alteração da LDB n.
abarca: cursos de extensão em “Educação e
9.394/96, primeiro com os Parâmetros Cur-
Culturas Afro-brasileiras” e outro em pós-
riculares Nacionais – PCN e, em seguida,
-graduação lato sensu em “Antropologia com
oficialmente pela Lei n. 10.639/2003, mexeu
Ênfase em Culturas Afro-brasileiras”. Faz
com valores enraizados na educação. Valo-
parte deste programa o grupo de pesquisa
res de uma ciência que negou e silenciou
certificado pelo CNPq que oferece, para a
nos currículos escolares narrativas de gru-
comunidade da região do Sudoeste da Bahia,
pos considerados minoritários como, por
estudos abertos sobre o tema, bem como
exemplo, o africano e seus descendentes.
eventos periódicos. Também temos um pro-
Essa educação de exclusão levou os afro-bra-
jeto já aprovado pelo MEC/UNIAFRO para
sileiros a desconhecerem e negarem suas
implantar um acervo com material biblio-
pertenças africanas.
gráfico, documental, cartográfico e com peças das culturas africanas e afro-brasileiras.
Hoje, muitos de nós, brasileiros, em diversas áreas do conhecimento, sentimos como
Vale salientar que estudos vários sobre as
necessário abraçar as políticas de ações
culturas brasileiras apontam a construção
afirmativas para descendentes de africanos
de um imaginário do povo brasileiro, edu-
implementadas pelo Governo Federal, a fim
cado para valorizar elementos culturais e
de que possamos desenvolver atividades que
raciais que se enquadrem nas categorias
fortaleçam a identidade negra, através de
branca e cristã. Tal formação torna-se desa-
uma educação da pertença afro-brasileira.
fio para a educação brasileira, isso porque
1Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasleiro – 2006 / PGM 4.
2
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Humanas e Letras da Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia. Coordenadora do ODEERE - Órgão de Educação e Relações Étnicas com Ênfase em Culturas Afro-brasileiras
da UESB / Jequié.
108
os/as docentes foram formados/as para entender o legado africano como saberes do
A Desafricanização como
conteúdo educativo
mal, saberes de culturas atrasadas e pré-lógicas, repercutindo nos currículos escolares
com uma carga preconceituosa que gera as
discriminações. Assim, neste texto, temos
como objetivo apresentar algumas atividades didáticas, com conteúdos antropológicos das Culturas Africanas e Afro-brasileiras,
fruto de estudos realizados em pesquisas
para mestrado, doutorado e também de ex-
É sabido que os portugueses incluíram, em
sua agenda de explorar comercialmente as
terras das Américas, intensificar o movimento de cristianização, sobretudo depois da Reforma Protestante. Primeiro pela catequese
e, depois, pela alfabetização, tanto um processo como o outro buscava “recuperar” culturalmente os povos considerados pagãos.
periências como coordenadora e professora
no curso de extensão em “Educação e Culturas Afro-brasileiras” da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, para professores/as
que atuam com a disciplina “História e Cultura Africana e Afro-brasileira”, já implantada nos currículos de algumas poucas escolas
públicas nesta região.
O curso de extensão objetiva que professores
desenvolvam atividades metodológicas com
saberes das Culturas Afro-brasileiras. Nesta
perspectiva, estuda-se sobre a Antropologia
Mazzoleni (1992) nos lembra que, mesmo
considerando o trabalho forçado e a violência padecida pelos índios, não se pode
esquecer que o comércio de escravos teve
como objeto os negros, e que aos mesmos
era negada sua condição de humanos. Desde
o início, o europeu rejeitou a cultura do índio, mas não rejeitou sua natureza humana.
“Do africano, ao contrário, o europeu rejeita
a inteligência e não só a cultura como a natureza humana (...)”3
dos povos africanos e afro-brasileiros, levando-se em consideração seus mitos e saberes
No século XVIII e XIX, afirmava-se a impos-
populares, bem como seus símbolos, a partir
sibilidade de recuperar culturalmente os de
de suas formulações simbólicas. Assim sen-
pele preta. Mazzoleni nos diz que Carlos Li-
do, nosso objetivo é relatar as etapas do cur-
neu, ao catalogar as espécies vivas, distin-
so e as respectivas atividades desenvolvidas,
gue o Homo sapiens do Homo afer (ou seja:
além de indicar caminhos que viabilizem um
africano). Voltaire, defensor da poligênese
acervo didático teórico / prático de relevân-
humana, considera possível uma hierarquia
cia para o trabalho docente no espaço da
estável entre as raças, o que expressava nes-
sala de aula.
te raciocínio:
3Mazzoleni (1992). p. 61-62.
109
“A distinção entre selvagens recupe-
tivesse uma identidade cristã, embora lhe
ráveis e seres impermeáveis à cultura
fosse negada a humanidade. Sendo assim,
acabava criando um grave embaraço ao
vai dizer Mazzoleni: “Pode-se falar, portan-
espírito ecumênico do Ocidente cristão
to, de uma monocultura cada vez mais ex-
(herdeiro entre outras coisas do antro-
tensa, na medida em que as classes dirigen-
pologismo helênico e do universalismo
tes dos países “ocidentais” agem de acordo
‘civil’ romano): se os negros não eram
com uma orientação comum, utilizando
passíveis de cultura, tampouco o eram
meios de persuasão cada vez mais eficazes
de evangelização: mas isso teria dimi-
(...)” (p. 74).
nuído irrecuperavelmente a missão da
Igreja” (p.65-66).
Essa persuasão passa pelo que Paulo Freire
chama de Pedagogia do Oprimido, através da
Pensando na relação entre Homo sapiens e
qual se estabelece uma relação entre opres-
Homo afer, que se estabeleceu durante toda
sor/oprimido. Sobre essa relação binomial,
a escravidão, Mazzoleni diz que a possibi-
Mazzoleni também vai dizer: “O componen-
lidade de recuperar culturalmente o Homo
te cristão da civilização ocidental, contudo,
afer é cogitada porque a Europa passa a vê-
está tentando uma recuperação de sua ‘mis-
-lo como Homo religiosus. Para o Ocidente
são’, dirigindo-se aos oprimidos em nome
cristão, o outro, que é o africano, seria co-
da mensagem cristã e atuando, portanto,
optado para ser o Eu cristão. Segundo ele:
numa mediação das duas oposições”4.
“O africano, portanto, de ser (mais ou
Na década de 90, a nova Lei de Diretrizes e
menos humano) que vivia nas trevas (de
Bases da Educação n. 9.394/96 traz para si a
satanás) passou a viver na luz (do Se-
reflexão oficializada acerca dos preconceitos
nhor) e tomou progressivamente toda
e das discriminações com a diversidade cul-
uma série de conotações, digamos inter-
tural presente no espaço da escola, quando
mediárias, que não serviam a uma con-
propõe que o trabalho docente tome como
traposição com o homem racional (bran-
base os conteúdos dos Parâmetros Curricu-
co), que escolheu a luz da razão e as
lares Nacionais.
explicações da ciência humana” (p.72).
Os Parâmetros Curriculares sugerem que os
Assim, desde a colonização européia, o que
docentes atuem com uma proposta de res-
se buscava para o africano era que o mesmo
peito às diversidades existentes no espaço
4Mazzoleni (1992). p. 76.
110
da sala de aula, diversidades estas compos-
ro (...). Deus, ele é único, é o único Deus
tas de docentes e alunos que diferem em
que existe, agora Buda e os outros eu
suas formas de ver, sentir, pensar, comer e
não considero como Deus, de forma ne-
cultuar seus deuses.
nhuma e não acho que devem ser cultuados como Deus, como deuses, ou como
Em trabalho para dissertação de mestra-
falsos deuses.”
do, pesquisando docentes de 1ª a 4ª séries,
constatei que a formação e o trabalho de-
No depoimento a seguir, outra professora
senvolvido por esses profissionais esta-
afirma:
va entre o querer e o não saber lidar com
uma educação multicultural, por conta de
“Candomblé é alguma coisa que nós,
sua formação monocultural. Ao tomar seus
negros, trazemos no sangue, na alma,
depoimentos sobre a diversidade, eles nos
sei lá... mas acho que isso pende mui-
mostraram que a tradição em que foram
to para o lado ruim (...) já sonhei com
formados argumentava sobre a diversidade
o preto velho e contei para minha mãe,
de modo muito inadequado.
no dia seguinte ela me levou a uma casa
de candomblé, porém ela me pediu mil
Conforme dados de depoimentos, verifica-
segredos, ela é católica; se a igreja sou-
mos que a orientação para o trabalho pe-
besse que ela foi nesse lugar (...)”.
dagógico baseava-se numa formação maniqueísta. Detectamos que os/as professores/
Assim, apontamos como conclusão da dis-
as abordavam os elementos culturais de
sertação de mestrado defendida na PUC/SP,
outros grupos étnicos, especialmente a re-
que a formação monocultural dos docentes
ligião, enquanto dimensão cultural, com
dificultava um trabalho multicultural, devi-
argumentações preconcebidas pelas catego-
do ao fato de suas mentalidades estarem es-
rias branca e cristã, tal qual transcrevemos
truturadas pela lógica do “bom senso”5.
nos dois depoimentos abaixo, retirados da
dissertação mencionada:
Ter “bom senso” é saber coisas que pessoas
com “bom senso” sabem, é não falar coisas
“Acho que Orixás são Espíritos e Buda
que pessoas com “bom senso” não falam;
é uma estatuazinha gorda que se bota
portanto, se a representação mental religio-
de costas num lugar que chama dinhei-
sa de uma comunidade se estrutura no cris-
5Este termo é utilizado por Geertz (1997) para falar sobre o bom senso que autoriza os membros de uma
comunidade a se declararem ou não de uma religião que não seja a tradicional. O bom senso também autoriza se os
membros da comunidade devem ou não dissimular ou discriminar os pertencimentos do “Outro”.
111
tianismo, pessoas de “bom senso” devem
de curso para professores(as) da região do
falar em cultuar o deus cristão e não deuses
Sudoeste da Bahia, visando que os mesmos
outros.
se embasem de conhecimentos sobre as temáticas das culturas africanas e afro-brasi-
Em função destes resultados na pesquisa
leiras, conforme descreverei a seguir.
de mestrado, busquei investigar, no doutorado, o Legado Africano e a Formação e
O curso de extensão, de 180 horas, inicia-se
Trabalho Docente. O objetivo deste estudo
com um estudo das “Teorias Antropológi-
foi entender como a escola, enquanto es-
cas e Questões Educacionais”. Este estudo é
paço institucional nascido do primeiro pa-
proposto em função de compreender que a
radigma da educação jesuítica, lidava com
Antropologia tem uma dívida histórica com
as culturas africanas, em especial com a
o africano, uma vez que ela nasce no sécu-
religião, enquanto dimensão da cultura
lo XIX reafirmando o modelo maniqueísta
afro-brasileira. Constatei que esta institui-
e monocultural do Ocidente, que distingue
ção é partícipe na perpetuação do conflito
europeus e africanos pelas categorias: supe-
entre religião de matriz africana e outras
rior e inferior; lógicos e pré-lógicos; civiliza-
religiões. Esse conflito fica estabelecido a
dos e atrasados. Portanto, as grandes ideias
partir das concepções e sentidos construí-
pedagógicas do século XX nasceram influen-
dos pelos(as) professores(as) entre si e com
ciadas por essas categorias, o que evidente-
os(as) alunos(as), sobre os símbolos do le-
mente interferiu no espaço da escola.
gado africano por eles/elas divulgados, equivocadamente, em seu trabalho, como sabe-
O que se tem, no momento histórico em
res do mal, saberes de culturas atrasadas e
que os jesuítas foram os primeiros profes-
inferiores, “folclore”. Assim, aponto a teia
sores e após sua expulsão, é uma orientação
de relações em que o legado cultural africa-
que segue o paradigma da Educação Evan-
no se insere junto aos valores presentes nas
gelizadora. Esse paradigma aponta para va-
diversas denominações religiosas e como
lores elaborados pela racionalidade de parâ-
isto se configura no discurso da escola.
metros definidos pelo colonizador europeu,
buscando civilizar os povos através da “re-
Curso para a educação da
pertença afro-brasileira
cuperação cultural”. Portanto, foi entendido
que o processo de “recuperação cultural” do
africano deveria ser feito através da evange-
As constatações acima descritas forneceram
lização, fosse pela Igreja ou pelo sistema de
subsídios para elaboração de uma proposta
ensino.
112
O movimento de higiene mental organizado
remotos do inconsciente coletivo e sol-
na América do Norte pelo “Comitê Nacional
te as amarras pré-lógicas a que se acha
de Higiene Mental”, em 1909, pretendeu dar
acorrentado.” (p. 23)
continuidade a esse processo. Em 1923, Gustavo Riedel funda a “Liga Brasileira de Higie-
Essas ações pedagógicas, que alicerçaram
ne Mental”. Assim, no Brasil, na década de
as políticas educacionais no Brasil, tiveram
30, ao tempo em que se reivindica “Educa-
como objetivo homogeneizar e aniquilar as
ção Para Todos”, um avanço para a época,
diferenças culturais. Arthur Ramos (1955) vai
uma das grandes preocupações do Prof.o
dizer que o movimento de higiene mental
Anísio Teixeira era de instalar, nas escolas
era necessário para trabalhar a mentalidade
do Distrito Federal, um serviço de Higiene
“pré-lógica” de “povos primitivos e sobrevi-
Mental, para erradicar a identidade cultural
ventes dos meios atrasados em cultura, que
“daqueles que frequentavam as Macumbas
vivem entre nós, os homens da civilização
e os centros de feitiçaria”, gente considera-
ocidental”.
da pelos higienistas como “grupos sociais
atrasados em cultura”.
Sobre as políticas higienistas, Luz (2000) vai
dizer que, nesse mesmo pacote de desafri-
Acreditando que a escola deveria fornecer
canizar, o Prof.o Isaias Alves, fundador dos
àqueles que participavam da Macumba uma
centros de Pesquisa Psico-Pedagógicas do
“mentalidade civilizada”, uma “mentalidade
tradicional Colégio Ypiranga na Bahia, apli-
lógica”6, o higienista Arthur Ramos afirma:
ca o teste de inteligência e concebe como
estratégia política educacional a extinção
“Assim, para a obra da educação e da
das línguas africanas no Brasil.
cultura, é preciso conhecer essas modalidades do pensamento ‘primitivo’, para
Arthur Ramos, enquanto comportamenta-
corrigi-lo, elevando-o a etapas mais
lista, vai dizer que “o homem é produto de
adiantadas, o que só será conseguido
sua civilização e da sua sociedade”, por isso,
por uma revolução educacional que aja
interessa para a higiene mental estudar os
em profundidade, uma revolução ‘verti-
fatores sociais e culturais que condicionam
cal’ e ‘intersticial’ que desça aos degraus
o mesmo. Para ele, o movimento de Higie-
6No século XIX, L. Lévy-Bruhl deu o nome de lei de participação ao “princípio próprio da mentalidade
primitiva que rege as ligações e as pré-ligações das representações coletivas” (Ramos, 1988, p.207). Ramos nos diz
que, para Lévy-Bruhl, segundo a lei de participação na mentalidade primitiva, seres, objetos, fenômenos podem
emitir forças, qualidades ações místicas, sem deixarem de ser quem e o que são. A essa mentalidade ele chamou de
pré-lógica. Ainda nos diz Ramos que pré-lógica não pode ser entendida como anterior no tempo, “mas pelo fato de
ela não se adstringir ao nosso pensamento, de se abster da contradição”.
113
ne Mental deve pedir auxílio à Sociologia e à
cende o espaço dos Terreiros. Esses saberes
Antropologia Cultural, pois “o indivíduo vive
estão na base das culturas entendidas por
em círculos de sociedade: de família, de reli-
Mircea Eliade (1992) como culturas tradi-
gião, de partido político (...). A higiene men-
cionais, arcaicas ou “primitivas”, as quais
tal investiga todos esses fatores, penetrando
na própria forma de apreender a realidade
‘intersticialmente’ na sua urdidura íntima”.
diferenciam-se das culturas modernas.
Daí ele salientar que não todas, mas algumas
religiões, são nefastas, e assegura:
A terceira etapa8 é um estudo sobre a “História Cultural da África Pré-colonial”, bus-
“Já temos mostrado, em mais de um tra-
cando entender os impérios, reinos e civili-
balho, os perigos dessa mentalidade pré-
zações africanas antes da colonização. Este
-lógica, no Brasil, denunciando certos fe-
estudo é de fundamental importância para
nômenos de feitiçaria, baixo-espiritismo,
o entendimento da dança, festas, músicas;
demonopatias e outros, e sua nefasta
assim como o próprio cotidiano, permea-
influência na formação da personalida-
do de elementos sacralizados, os quais, no
de”7.
Brasil, foram denominados de religiões afro-brasileiras.
114
Ao falar das religiões de povos com “mentalidade pré-lógica” e classificar essas religiões
Na quarta etapa9 nos ocupamos de um estu-
como nefastas, com fenômenos de “demono-
do sobre a Diversidade Linguística dos Grupos
patias”, tal preconceito ensinou para os(as)
Étnicos Africanos que vieram para o Brasil.
professores(as), ao longo da história da edu-
Sobre a diversidade dos grupos étnicos, Ver-
cação, que o modelo oficial de escola não
ger (2002), falando sobre a tomada da Bahia
deve tomar os saberes do legado africano.
na primeira invasão holandesa, em 1624, nos
informa que havia naquele momento predo-
Na segunda etapa do curso, é feito um es-
minância da importação de africanos bantos,
tudo sobre a “Antropologia das Populações
pois havia, no porto da Bahia nessa época,
Afro-brasileiras”. Estuda-se sobre o Legado
seis navios vindos de Angola com um total de
Africano como um conjunto de saberes de
1.440 escravos, contra um único navio com
uma matriz não ocidental cristã, que trans-
28 escravos vindos da Guiné.
7Ramos (1955), p.29.
8Esta etapa é ministrada pela professora Mestranda Silene Arcanjo, Historiadora, consultora do OPOXORÔ /
Bahia.
9Etapa ministrada pelo Prof Dr Manoel Soares Sarmento, Linguista do Departamento de Ciências Humanas
e Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
Entre 1641 e 1648, Angola permanece nas
diz que “(...) as pesquisas sistemáticas sobre
mãos dos holandeses, que cortam o rea-
o mecanismo das mentalidades primitivas
bastecimento de escravos de lá provenien-
revelam a importância do simbolismo para
tes. Estes fatos nos permitem pensar que
o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo,
os Bantos foram os primeiros negros expor-
seu papel fundamental na vida de qualquer
tados em grande quantidade para a Bahia.
sociedade moderna”. Segundo ele, o resta-
Nos três primeiros quartos do século XVIII,
belecimento do símbolo enquanto forma de
porém, o tráfico de escravos em direção à
conhecimento é uma reação “(...) contra o
Bahia já vinha da Costa da Mina e, entre 1770
racionalismo, o positivismo e o cientificis-
e 1850, incluindo o período do tráfico clan-
mo do século XIX e já basta para caracterizar
destino, vinha da Baía de Benin. “A chegada
o segundo quarto do século XX” (p. 5-6)
dos daomeanos, chamados Jejes no Brasil,
fez-se durante os dois últimos períodos. A
dos Nagôs Iorubas corresponde ao último”.
Assim sendo, Verger vai nos dizer que, nos
arredores da Bahia, como por exemplo, na
Vila de São Francisco do Conde, cidade do
Recôncavo Baiano, em 1830 é constatada
uma maciça presença de Nagô Ioruba, em
função do que passam a predominar suas
crenças e costumes em detrimento das dos
africanos bantos.
Sobre os problemas ligados ao estudo do
simbolismo e de suas interpretações, Eliade (1991) ainda chama a atenção para o fato
de que a forma de conhecimento e atualização de um símbolo não é mecânica: “ela
está relacionada às tensões e às mudanças
da vida social; em último lugar, aos ritmos
cósmicos”. O julgamento e o sentido interpretativo de um símbolo dependem do vivido. Assim, não há como um símbolo possa
esgotar, para os diferentes julgamentos, o
seu sentido interpretativo.
Estes dados nos oferecem subsídios para
pensar sobre a diversidade de línguas, cren-
Byington (1996), buscando elaborar uma “Pe-
ças, saberes, enfim, de elementos culturais
dagogia Simbólica”, chama a atenção para
dos africanos.
que se pense na problemática da educação
brasileira baseada no modelo da cultura oci-
Na quinta etapa10, desenvolve-se um estudo
dental. Também nesta etapa nos ocupamos
sobre as “Linguagens Visuais, Simbolismos e
de um estudo de antropologia interpretati-
Culturas Afro-brasileiras”. Eliade (1991) nos
va, com Geertz (1978).
10 Etapa ministrada pelos seguintes professores: Dr Edson Dias Ferreira, cientista social – Antropologia
das Linguagens Visuais. Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. Professor
mestrando Lucio André Andrade. Coordenador da divisão de Diversidade Cultural da Prefeitura Municipal da cidade
de Candeias / Bahia.
115
Já a sexta etapa, ocupa-se da Didática para o
reprodutivos e de soluções de problemas;
ensino de culturas afro-brasileiras. Segundo
assim, desenvolvo as seguintes atividades:
Brandão (1995), por todo o período da colonização européia na América Latina, o pa-
• Análises de filmes e documentários (Kiri-
radigma eclesiástico se fez presente através
ku, Amistad, Negro fugido, Orixás, Coleção
do monopólio da Igreja Católica, portanto,
do Correio da Bahia, entre outros), com o
nesta etapa busca-se entender essa forma-
objetivo de que as imagens sensibilizem
ção que tem orientado o processo ensino-
os indivíduos e permitam-lhes localizar
-aprendizagem ao longo da história da edu-
memórias negadas e silenciadas histori-
cação brasileira através de um saber - fazer
camente.
que discrimina outras culturas, especialmente as africanas.
Na sétima etapa, o objetivo é coletar dados,
• Análises de mitos para compreensão da
estrutura histórico-cultural dos africanos
na África Pré-colonial;
visitando espaços de culturas afro-brasilei-
• Oficinas com conteúdos dos mitos africa-
ras, tais como: casas de matriz religiosa afri-
nos e afro-brasileiros, levando os partici-
cana; Museu Afro-brasileiro, em Salvador; e
pantes do curso à reflexão acerca de seus
Casas de Benin e Angola, em Salvador. Visi-
conhecimentos, com narrativas monocul-
tam-se as cidades de Jequié, Cachoeira, São
turais etnocêntricas;
Francisco do Conde e outras, com o objetivo
de enxergar a presença do Legado Africano.
Ainda nesta etapa, os/as participantes do
curso, em um texto, articulam os dados coletados durante as visitas e as histórias de
vida. Com isso, é esperado que eles e elas
busquem lidar com seu próprio processo
histórico-cultural, dando visibilidade aos
preconceitos e discriminações enraizados
em sua formação, assim como, possivelmente, possam superar alguns.
Nas etapas 1, 2 e 6 do curso, nas quais as
atividades didáticas ficam sob minha res-
• Utilização de músicas com palavras de
línguas africanas, traduzindo as mesmas
com o auxílio de dicionários. Vale salientar que esta atividade é de muita importância, uma vez que ao tempo que educa
os ouvidos para ouvir palavras de línguas
africanas, também desmistifica a ideia
de que as diversas línguas da África são
dialetos (“dialeto” no sentido de “língua
corrompida”; e não no sentido linguístico
de “variação de uma língua”), conforme
narrativas discriminatórias sobre o continente africano.
ponsabilidade, busco operacionalizar técni-
• Interpretação antropológica de textos
cas que viabilizem os métodos expositivos,
musicais e literários com temáticas afri-
116
canas e afro-brasileiras. Estes textos sem-
percebida como grave ameaça externa (...).
pre trazem elementos culturais, possibi-
O ‘outro’ é aquilo que nós não somos. Ele co-
litando uma educação de símbolos e de
loca em xeque a nossa verdade, questiona os
processos simbólicos.
nossos valores, relativiza a nossa identidade.
É preciso desqualificá-lo” (p. 9). Consorte
Considerações Finais
ainda nos lembra que essa desqualificação
passa historicamente pelo etnocentrismo e
Salientamos que tanto nos estudos de mestrado e doutorado, como nas várias etapas
que “a partir dos nossos modos de ser, fazer
e sentir” pode emergir o preconceito. Assim:
do curso, percebemos que desenvolver atividades com os/as professores/as é uma tarefa
difícil, pois eles/elas são conhecedores/as de
conteúdos de normas, valores da escola, mas
também são conhecedores/as dos conteúdos
doutrinários de suas religiões. Pude perceber
a dimensão da distância que esses docentes
colocam entre sua identidade religiosa e o
papel de respeito à diversidade no âmbito do
seu trabalho docente.
“O preconceito é a atitude que, tributária do etnocentrismo, se forma a partir
das representações que construímos em
relação aos outros, informadas pelas
nossas referências (...); a discriminação
é o comportamento efetivo traduzido
em ações que põem em prática o preconceito e que nos levam a negar ao outro aquilo que queremos só para nós, a
excluí-lo das oportunidades que estão ao
Não podemos esquecer que o respeito à di-
nosso alcance, mas às quais ele não deve
versidade passa pelas leituras de outras reali-
ter acesso” (p.10).
dades, com informações desprovidas da carga de preconceitos e de discriminação sobre
A reflexão elaborada feita até o presente
o outro. Consorte (2003), em um artigo numa
momento nos leva a perceber que existe
revista de ensino religioso, afirma que desde
a falta de articulação entre teoria e práti-
que a antropologia surgiu, na metade do sé-
ca na formação docente, isto porque nós,
culo XIX, seu grande desafio foi o de compre-
professores(as) de um Brasil colonizado por
ender o fenômeno da diversidade humana.
europeus, colocamos entre parênteses nossa pertença africana e repetimos a nossas
Ela nos lembra que os mitos dos mais diferen-
crianças o que nos foi ensinado, que essa
tes grupos humanos são registros que reco-
pertença é demoníaca, atrasada e inferior.
nhecem a diversidade. Entretanto, assegura
Perdemos o orgulho de ser como nossos an-
que a diversidade não é percebida como ri-
cestrais, auto-sustentáveis, dependentes da
queza da humanidade “(...) ela é geralmente
natureza, do cosmo.
117
REFERÊNCIAS
MAZZOLENI, Gilberto. O planeta cultural:
para uma Antropologia Histórica. Tradução
CONSORTE, Josildeth Gomes. Diversidade
humana: Fonte de riqueza ou ameaça? DIÁLOGO – Revista de Ensino Religioso. São Paulo,
agosto de 2003.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
de Liliana Laganà e Hylio Laganà Fernandes;
São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo: Instituto Italiano di Cultura di San Paolo e Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. São
Paulo, 1992.
SANTANA, Marise de. Tese de doutorado. O
Legado Africano na Diáspora e o Trabalho Docente. São Paulo: PUC/SP, 2004.
LUZ, Narcimária Correia do Patrocínio. Abe-
______. Dissertação de Mestrado: Formação e
be, a criação de novos valores na educação.
Trabalho Docente: Novos e Velhos Desafios.
Salvador/Bahia: SECNEB, 2000.
São Paulo: PUC- SP, 1999.
118
VII. As relações étnico-raciais, a cultura
afro-brasileira e o projeto político-pedagógico1
Lauro Cornélio da Rocha2
Apresentação
ser aplicada, uma lei depende da efetivação
de políticas públicas e da transparência na
Ao pensarmos a relação da população negra
com o Estado brasileiro, percebemos que,
desde a época da escravidão, foi marcada por
pressão por parte da população negra e desejos de regulação por parte do Estado. Havia
– e há – sempre, uma lei, tendo como perspectiva controlar, estabelecer diálogo com a
comunidade e/ou atender a reivindicações.
Isso aconteceu com a primeira Lei antitráfico (1831); com a Lei Euzébio de Queiroz
(1850); com a Lei do Ventre Livre (1871); com
a Lei do Sexagenário (1886); com a Lei Áurea
(1888); com a Lei Afonso Arinos (1951); com
a Lei Caó (1985); com a Constituição Federal (1988); com a Lei de Diretrizes e Bases da
aplicação de recursos.
A educação tem se configurado, nos últimos
anos, como área importantíssima na discussão das relações étnico-raciais no Brasil.
Este texto se propõe a discutir – ainda que de
forma sintética – o papel da Lei n. 10.639/03
e das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-raciais, que
são fundamentais no processo de mudança
das relações no espaço educacional e, consequentemente, pontuar o projeto político-pedagógico como expressão do ser e do fazer coletivo das escolas, inerente, portanto,
ao processo do ensinar-aprendendo e aprender-ensinando.
Educação Nacional (1996) e tantas outras
leis ordinárias que incluem o tema.
Pensando a Lei n. 10.639/033
Aqui não se trata de negar a perspectiva le-
A Lei n. 10.639/03 se constitui num impor-
gal implementada pelo Estado e por sucessi-
tante mecanismo de promoção de igualda-
vos governos. Porém, necessariamente, para
de étnico-racial no ambiente escolar. Como
1Currículo, Relações Raciais e Cultura Afro-Brasileira – 2006 / PGM 5.
2Mestre em História Econômica – USP. Coordenador Pedagógico da Rede Municipal de São Paulo.
3Lei de 09/01/2003. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-brasileira” e dá outras providências.
119
considerações iniciais, é preciso pontuar que
cação. O salto qualitativo dado ao longo dos
ela altera a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
anos deveu-se principalmente a: a) ação de
cação Nacional, ao mesmo tempo em que
educadores(as) negros(as), que colocaram
busca superar alguns obstáculos: pretende
a discussão nos programas de suas disci-
superar a visão negativa sobre os africanos e
plinas ou em atividades culturais; b) mais
seus descendentes, construída ao longo dos
recentemente, negros(as) nas estruturas
tempos no Brasil; coloca a questão referente
governamentais iniciaram um processo de
aos africanos e afro-brasileiros como ques-
discussão e proposições; c) Organizações
tão nacional; pretende ressaltar positiva-
Não-Governamentais negras e não-negras,
mente a participação da população negra na
em vários estados da Federação, promo-
construção da história do Brasil, quebrando
vem ações para promoção da igualdade ra-
a lógica eurocêntrica na produção e difusão
cial e sistematizam as produções nacionais
do conhecimento; articula-se ao rol de polí-
existentes; d) Centros e Núcleos de Estu-
ticas de ação afirmativa e, por fim, pretende
dos Africanos e Afro-brasileiros, dentro das
possibilitar a permanência bem sucedida da
universidades, que se propõem a fomentar
população negra na escola.
a discussão nos seus espaços, com resultados significativos; e) Professores, em várias
O fato de ser quase consensual uma lacuna na formação inicial que é ministrada nas
universidades, faculdades e cursos de formação permanente e continuada, no que se
refere à história da África e à cultura afro-brasileira, nos permite afirmar que a trajetória da educação no Brasil nega a existência
do referencial histórico, social, econômico e
cultural do africano e não incorporou conteúdos afro-brasileiros nas grades curriculares
escolares e, embora tenhamos muita notícia
universidades, têm constituído grupos de
pesquisa ou fomentado em seus alunos o
desejo ou necessidade de ampliar os horizontes de pesquisas, tendo as relações étnico-raciais como foco.
Essas e outras ações fizeram, sem dúvida,
com que a segunda lei aprovada pelo Governo Lula fosse voltada à promoção da igualdade no sistema educacional.
de discriminação racial nas escolas, quando
há um processo de acusação por racismo,
a tendência é culpar os vitimizados pela
opressão sofrida.
A preocupação que se explicita quanto à
implementação da referida lei se coloca em
torno da criação de alternativas para formação, nas redes de ensino. Neste momento,
Desde o início, o Movimento Negro busca
são fundamentais a sensibilização de mem-
traçar políticas de combate à discriminação
bros das Secretarias de Educação e a lucidez
racial e reparação de desigualdades na edu-
para buscar parcerias com pessoas e organi-
120
zações com trajetória histórica na discussão
Educação Artística, Literatura e História,
do tema das relações étnico-raciais.
está explícito que currículo se confunde com
grade curricular, o que é um equívoco, do
Também ressalto algumas preocupações e
meu ponto de vista. No meu entendimento,
desafios que têm muito a ver com a forma
currículo é a totalidade das relações que se
com que as pessoas compreendem a educa-
estabelecem nas escolas, independentemen-
ção no Brasil. As preocupações se referem
te do espaço ser a sala de aula, quadra, aten-
ao pensamento de pessoas que ocupam po-
dimento na secretaria, sala dos professores
sições estratégicas nas Secretarias de Educa-
ou horário do recreio. Se, acreditamos que o
ção de estados e municípios, com os quais
racismo está presente na escola, esse espa-
temos dialogado. Algumas pessoas têm di-
ço não é neutro, ele se manifesta também
ficuldade de entender a proposta da lei e de
nas relações estabelecidas pela comunidade
uma educação para promoção da igualdade
escolar.
étnico-racial. Seus pensamentos, na verdade, se parecem muito com o pensamento de
Ainda sobre currículo, podemos dizer que a
educadores(as) das redes de ensino.
rede tenha avançado, do ponto de vista de
ser uma construção coletiva, mas o foco
Alguns dizem que a lei vem realçar o que já
ainda é a experiência dos educadores, base-
era feito nas escolas, que esse tipo de ensino
ada em livros didáticos. Dessa forma, pouca
já existia, mas não com força de lei. Dizem
importância é dada ao território, à troca de
que a questão discriminatória nasce na so-
experiência com colegas e não são privile-
ciedade, não na escola, e que a sociedade
giadas as vivências dos alunos e da comu-
teria outros mecanismos para reduzir o ra-
nidade.
cismo, não só no setor educacional.
Outros afirmam que a Lei é desnecessária,
por já ser tratada a história e a cultura africanas nos currículos... E, portanto, que isso
é redundância.
Pensando as Diretrizes
Curriculares Nacionais
para educação das relações
étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura
afro-brasileiras e africanas4
Uma outra preocupação é a compreensão
de currículo presente na Lei. Quando se fala
As Diretrizes, construídas a partir de con-
em colocar os estudos prioritariamente em
sulta a grupos de movimento negro, con-
4
Parecer nº 003/2004 de 10/03/2004. Aprovado pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação.
121
selhos estaduais e municipais de educação,
atue contra a exclusão e pela promoção da
organizações da sociedade civil, militantes
igualdade racial. Ao olhar a escola e a sala
e intelectuais, colocam como alvo central a
de aula, ele assume o compromisso de ul-
formação dos professores e a mudança da
trapassar o limite das ações pontuais e fa-
qualidade social da educação. Destinam-se
zer com que as políticas educacionais de
aos sistemas de ensino, universidades, fa-
promoção da igualdade façam parte das
culdades, educadores, educandos e familia-
discussões sobre reorientação curricular,
res, enfim, a todos os comprometidos com a
formação permanente e projeto político-
educação no Brasil.
-pedagógico.
A proposta fundamental das diretrizes é a
Pensando o projeto
político-pedagógico
construção da igualdade étnico-racial no
Brasil. Aqui não se trata de atribuir ao presente a culpa pelo passado, mas de dizer que
todos somos responsáveis – independente
de sermos negros ou negras – por ajudar na
superação do preconceito, discriminação e
racismo.
O grande determinante das diretrizes é trabalhar a consciência histórica e política da
diversidade, buscando ampliar o foco do
currículo, promovendo ações de igualdade
étnico-racial e fortalecendo identidades.
O projeto político-pedagógico se constitui
como elemento norteador do ser e do fazer da escola. Na verdade, é um conjunto
de relações a partir das quais o educador
e a comunidade “lêem” a si mesmos e ao
mundo num processo relacional. Ao educar
o olhar e a escuta para o mundo, a nação, a
cidade, o bairro, a rua, a escola e a sala de
aula processam suas sínteses, questionam
o exercício do poder, as situações de afetividade, as vivências das diferenças, situações
É, portanto, compromisso de todos os edu-
de conflito, a solidariedade, a cooperação e
cadores dar visibilidade às Diretrizes, exigin-
a justiça.
do dos governos a efetivação da Resolução
n. 01/2004, da Lei n. 10.639/03 e a disponibi-
O projeto político-pedagógico, nas suas
lização de bibliografia étnico-racial, além de
duas dimensões – o político e o pedagógi-
realizar atividades e projetos estabelecendo
co – se constitui numa ação intencional,
parcerias com entidades que possam contri-
com compromisso explícito assumido cole-
buir para este trabalho.
tivamente, reafirmando a intencionalidade
da escola: incluir todos os integrantes da
É necessário que o educador, como media-
mesma num processo de transformação da
dor do processo de transformação escolar,
realidade.
122
Ele concretiza não só a prática pedagógica,
e na sociedade e trabalhar para a melhoria
mas também a dinâmica do cotidiano esco-
de condições de vida de todos. A luta pelo
lar, onde toda a comunidade educativa assu-
investimento na educação básica, quer em
me, nos seus projetos de trabalho e planos
políticas de formação permanente e conti-
de ensino, um compromisso radical contra
nuada, quer no fortalecimento de práticas
os preconceitos, as discriminações e o racis-
democráticas na gestão escolar, deve ser
mo.
uma constante.
Neste sentido, questões étnico-raciais, de
Por fim, gostaria de propor algumas estra-
gênero, de sexualidade, entre outras, não
tégias que poderão contribuir ou auxiliar na
podem ficar de fora do projeto político-
implementação da lei, tendo como referên-
-pedagógico, sob pena de a escola não se
cia as Diretrizes e como fundamento o pro-
pensar e compreender-se como espaço de-
jeto político-pedagógico da escola:
mocrático, plural e fundamental na atuação
contra a exclusão.
• A construção de materiais pedagógicos e
curriculares contra-hegemônicos. A res-
Conclusão
A educação é base para construção de uma
sociedade democrática, com oportunidades
reais de inserção no mercado de trabalho
determinadas em parte pelo grau de instrução.
peito disso, temos algumas experiências
bem sucedidas em várias Secretarias de
Educação e organizações não-governamentais que trabalham com educação ou
ligadas ao Movimento Negro.
• Incorporar uma concepção de educação
humanizadora, com base na desconstrução de conteúdos e práticas racistas e na
É necessário que os educadores assumam
divulgação de experiências bem sucedi-
o compromisso de ultrapassar o limite de
das de educadores e educandos que pro-
ações pontuais para fazer com que, no coti-
movam a igualdade racial no ambiente
diano das escolas, as políticas educacionais
escolar. Essas experiências contribuem
de promoção da igualdade racial façam par-
para que se estabeleça um referencial me-
te do projeto político-pedagógico.
todológico no processo de Formação Permanente de Educadores e Reorientação
É importante discutir e viabilizar propostas
Curricular;
concretas de mudança da mentalidade racista da sociedade brasileira, formular proje-
• Ultrapassar o limite de ações pontuais
tos visando erradicar o racismo nas escolas
para fazer com que, no cotidiano das es-
123
colas, as políticas de promoção da igual-
de março, discuto a questão da mulher, em
dade racial façam parte do currículo, dos
19 de abril, discuto a questão do índio, em
processos de formação e da construção
13 de maio ou em 20 de novembro, discuto
do projeto político-pedagógico escolar.
a questão do negro. Não quero mais pensar
sobre isso!”
• Programas de formação inicial e permanente nas instituições de ensino que atuam nos níveis e modalidades da educação
brasileira;
• Promoção, pelos sistemas de ensino, de
cursos, projetos e programas de formação
para equipes de gestão e educadores(as),
estabelecendo canais de comunicação
com o Movimento Negro, grupos cultu-
Ao formular um projeto para trabalho na
escola, alguns cuidados devem ser tomados
no planejamento:
• Envolver várias áreas de conhecimento;
• Relacioná-lo na proposta pedagógica da
Escola, no sentido de adquirir cumplicidade da escola como um todo na realização;
rais, instituições formadoras de professores, núcleos de estudos e pesquisas, orga-
• Contar com o apoio de organizações, pes-
nizações não-governamentais, buscando
soas e entidades que tenham acúmulo de
subsídios para os projetos político-peda-
conhecimentos no tema a ser trabalhado;
gógicos das Unidades Escolares e Movimento Curricular, no sentido da permanência bem sucedida da população negra
nas escolas.
Pensando as atividades/
projetos
• Definir os objetivos de forma explícita, saber onde se quer chegar com o projeto/
atividade;
• Pensar todos os passos no desenvolvimento, bem como as formas de envolver
a comunidade educativa;
A ideia é propor atividades/projetos que
• Estabelecer critérios de avaliação que da-
possam ser realizados nas escolas de Ensi-
rão possibilidade de continuidade ou redi-
no Fundamental, EJA e Ensino Médio. Alerto
mensionamento da proposta;
que não acredito em ações pontuais, restritas a determinado dia, ou momento de sala
• Definir prazos para realização da ativi-
de aula, ou comemoração especial. Conside-
dade/projeto, sempre tentando fugir de
ro essas ações tranquilizadoras de consciên-
ações pontuais que, de forma geral, não
cia, como por exemplo: “Já trabalhei: em 08
trazem mudanças de comportamento;
124
• Tratar de desmistificar preconceitos, dis-
da formação, para que se possa iniciar um
criminação e/ou racismo, ter potencial de
processo de mudança e participação efe-
replicabilidade (poderá ser realizada em
tiva dos alunos e, consequentemente, da
outras realidades, com possibilidade de
comunidade. Dar oportunidade aos alunos
sucesso).
de participarem de atividades que envolvam
várias manifestações culturais: dança afro,
• Por fim, apresentaremos uma atividade/
projeto, como exemplo.
percussão, excursões a centros culturais
onde se conheça a cultura e história afro-brasileiras. Trabalhar contra qualquer for-
Projeto Raiz
5
ma de discriminação, pela liberdade, plu-
Professora: Luzinete Araújo Benedito da
ralismo cultural, diversidades, igualdade e
Silva
respeito. Desenvolver o espírito participativo, responsável, crítico, cooperativo, soli-
Contexto
dário, coletivo, e de respeito às diferenças.
Apontar caminhos que levem à não-violên-
A experiência Projeto Raiz foi desenvolvida de
maio de 2002 a abril de 2004, na EMEF Madre
Maria Imilda do Santíssimo Sacramento, na
cidade de São Paulo (SP). Atingiu aproximadamente 80 alunos com idade média de 14
anos. As principais áreas do conhecimento
envolvidas na experiência foram Educação
Artística, História, Educação Física, Língua
Portuguesa, Geografia, Sociologia e Antropologia.
cia e à integração social. Envolver a comunidade para que se sinta corresponsável e
parte integrante do projeto. Criar espaços e
momentos de reflexão e sensibilização dos
alunos, professores e comunidade acerca da
questão do negro no Brasil e demais temas
relacionados à desigualdade. Resgatar a autoestima dos alunos e a identidade étnica
afro-brasileira.Conscientizar os alunos para
assumirem responsabilidades, tendo noção
de grupo e percebendo que são parte integrante na tomada de decisões. Integrar os
Objetivos
alunos participantes do projeto à sociedade,
para que não estejam sujeitos às desagrega-
Conhecer, valorizar, difundir e resgatar a
ções familiares e sociais. Resgatar valores
cultura afro-brasileira. Buscar ações trans-
culturais e empregar a arte como veículo de
formadoras, por meio da arte, da cultura e
transmissão desses valores. Promover o con-
5Experiência premiada no 2º Prêmio Educar para Igualdade Racial – Experiências de Promoção da Igualdade
Racial/Étnica no Ambiente Escolar, promovido pelo CEERT, São Paulo, 2004.
125
tato com produções artísticas nas várias lin-
Desenvolvimento de atividades
guagens expressivas. Incentivar a produção
artística de todos os alunos, ajudando-os a
Conteúdos das atividades: 1. Processo de
desenvolver seu potencial, suas capacidades
colonização brasileira; 2. Negros da África
e conhecimentos, para que possam contri-
e do Brasil: histórias, valores e culturas de
buir como cidadãos críticos e criativos.
ontem e de hoje; 3. Identidade, africanidade
e resistência; 4. Processo de escravidão, eu-
Justificativa e planejamento
rocentrismo e ideologia do branqueamento;
5. Lutas e processos de liberdade / descons-
Vivemos em um país em que a maioria da
trução e autoestima; 6. Lideres negros, mo-
população é composta por negros e afrodes-
vimento negro; 7. Questões sociais, políticas
cendentes. São mais de 70 milhões de pesso-
e culturais que historicamente estão intrín-
as, o que faz do Brasil o maior país africano
secas nestes processos; 8. Diversidades, dife-
fora da África (dados do IBGE – Instituto Bra-
renças, discriminação, preconceito, racismo
sileiro de Geografia e Estatística). Por isso
(“os porquês”); 9. Produção cultural, lingua-
veio a preocupação de resgatarmos e difun-
gens artísticas (música, poesia, literatura,
dirmos a cultura negra como efetiva mani-
dança, teatro, artes visuais, artes plásticas,
festação histórica. É inaceitável que em um
entre outras); 10. Religiosidade afro-brasilei-
país com essas características, manifeste o
ra e suas matrizes africanas; 11. Direitos, ci-
racismo e a discriminação social. Inaceitável
dadania, respeito; 12. Leis do período de es-
que haja desigualdades em todos os níveis e
cravidão e as atuais quanto ao racismo; 13.
instâncias.
Dinâmicas das atividades; 14. Realização de
oficinas de dança afro e percussão; 15. Gru-
A escola, como entidade que visa à trans-
po de formação envolvendo alunos, profes-
formação, à formação e à integração dos
sores e comunidade participante; 16. Pales-
indivíduos na sociedade, deve ter seu papel
tras com a participação de especialistas em
de mediadora no processo de valorização e
vários temas; 17. Reuniões com os pais dos
difusão da cultura afro-brasileira, como for-
alunos envolvidos no projeto (no mínimo,
ma de recuperar a autoestima e a identidade
duas por ano).
étnica. Percebendo nosso papel como educadores e agentes de transformação, tanto
“Outras Vivências”: 1. Uma vez por mês, o
na escola quanto na sociedade, nós nos sen-
grupo recebeu um convidado que fez uma
timos corresponsáveis (com base no nosso
oficina diferente, propiciando um novo
Projeto político-pedagógico) em trabalhar-
olhar e novas vivências; 2. Atividades reali-
mos a proposta com a nossa comunidade.
zadas nas salas de aula nas diversas áreas do
126
conhecimento (cada professor participante
estávamos “fazendo macumba na escola”.
foi responsável por ser o multiplicador dos
Houve quem se deixou levar pela força dos
conteúdos e do projeto em cada sala que tra-
tambores, que invadiam efetivamente aque-
balhou); 3. Apresentação de vídeos sobre te-
le espaço. Aos poucos, fomos arrancando as
mas propostos; 4. Visitações a lugares onde
amarras sociais e, por meio de leituras, dis-
se pôde aprofundar a cultura afro-brasileira;
cussões, dificuldades e resistências, fomos
5. Pesquisa contínua; 6. Painel permanente
incomodando e acomodando a situação.
com o conteúdo relacionado ao projeto, que
foi também um meio para formação e reflexão; 7. Realização da Semana da Consciência Negra, além de várias intervenções no
espaço-escola, com o intuito de estimular a
participação e sensibilização; 8. Leituras de
textos em grupo, debates e resumos.
Avaliação
Nossos objetivos foram alcançados. Eles se
refletiram nas atitudes dos nossos alunos,
em sua forma de argumentar e de se posicionar diante das injustiças presenciadas
no dia-a-dia. Observamos que a auto-estima
Motivação e Participação do
Aluno
aumentou. Percebemos que os alunos se orgulharam ao dizer-se afro-brasileiros, que se
orgulharam do que são. Alguns se tornaram
Despertamos o interesse e a curiosidade
multiplicadores do que aprenderam nas ofi-
dos alunos através da sensibilização. Por
cinas. Também recebemos o reconhecimen-
exemplo, levamos para a escola um grupo
to da comunidade. Fomos chamados para
de dança afro da região. Assim, iniciamos a
relatar nossa prática em um Congresso Mu-
conversa e propomos as oficinas para que
nicipal e no Fórum Mundial. Utilizamos os
eles participassem livremente aos sábados.
seguintes instrumentos de avaliação: relatos
O diálogo também incluiu os colegas edu-
verbais e escritos, questionários, conversas
cadores, que manifestaram diferentes opini-
com o grupo.
ões a respeito de discutir o preconceito no
ambiente escolar. Algumas opiniões eram
As dificuldades foram muitas: financeiras,
preconceituosas.
de falta de espaço, de carência de tempo,
de organização, de compreensão. Todas elas
Também por parte dos alunos, os sentimen-
foram superadas, porque acreditávamos no
tos variaram. Houve quem se reconhecesse
que fazíamos. A experiência implicou, des-
na proposta, sentindo-se contemplado por
de o seu início, assumirmos determinadas
nós. Houve quem discriminasse, dizendo que
posturas na escola. Não dá pra ficar “em
127
cima do muro”, temos que romper com os
BENTO, Maria Aparecida S. Cidadania em Pre-
esquemas enraizados em nossa vida. Pas-
to e Branco: discutindo relações raciais. São
samos por muitos momentos perversos de
Paulo, Ática, 1998.
preconceito, desde a piadinha até a ofensa
feita de forma direta por parte de alunos e
CEERT. Políticas de Promoção da Igualdade Ra-
de professores.
cial na Educação – Exercitando a Definição de
Conteúdos e Metodologia. São Paulo, 2004.
Algumas vezes entrávamos na sala de professores negros para argumentar com os
alunos acerca da pertinência do nosso trabalho e esses professores não participavam
das discussões. Isto mostra como é eficiente a ideologia do branqueamento, pois até
mesmo alguns afrodescendentes evitam discutir esses temas.
O trabalho implicou a íntima mudança de
cada um de nós, pois também temos pre-
______. 2º Prêmio Educar para a Igualdade Racial - Experiências de Promoção da Igualdade
Racial/Étnica no Ambiente Escolar. São Paulo, 2004.
CUNHA, Perses M. C. Da Senzala à sala de
aula: como o negro chegou à Escola. In: Relações Raciais e Educação, alguns determinantes. Iolanda de Oliveira (coord.) Niterói. Contexto, 1999. p.69-96.
conceito, não somos os anjos da sabedoria,
LIMA, Lana e VENANCIO, Renato P. Os Órfãos
imaculados. O Projeto Raiz nos transfor-
da Lei: abandono de crianças negras no Rio
mou, nos fez reavaliar nossas vidas, ações,
de Janeiro após 1871. Rio de Janeiro. Estudos
conceitos, “pré-conceitos”, posturas, atitu-
Afro-asiáticos nº15, 1988. p.24-42.
des, história, identidade, família. Ele nos fez
enxergar o que fizeram conosco e o que efe-
MEC/SECAD. Orientações e Ações para a Edu-
tivamente não queremos ser.
cação das Relações Étnico-raciais. Brasília, SECAD, 2006.
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na Primeira República. In: Relações Raciais e
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Educação: alguns determinantes. Iolanda Oli-
nos dos grupos escolares com relação à
veira (coord.) Intertexto, 1999. p.21-68.
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entre negros e brancos em São Paulo. Roger
ROMÃO, Jeruse. História da Educação dos
Bastide e Florestan Fernandes. São Paulo.
Afro-brasileiros, Curitiba. APP Sindicato, Ca-
Anhembi, 1995.
derno Pedagógico, 1999.
128
____________. Educação Democrática como
contemporânea, focalizando as semelhanças
Política de Reversão da Educação Racista.
existentes no contexto social e econômico das
Texto apresentado no Seminário “Racismo,
duas épocas. A ação se desenrola nesses dois
Xenofobia e Intolerância”, Salvador, nov.
períodos históricos, ao mesmo tempo. Ao tra-
2000.
çar esse paralelo entre o século XIX e o tempo
atual, o filme questiona até que ponto a estru-
_____________. (org.) História da educação
tura da sociedade brasileira realmente mudou
do Negro e outras histórias. Brasília, MEC/
da época colonial até hoje.
SECAD, 2005.
Quase Dois Irmãos. Direção Lucia Murat,
ROCHA, Lauro Cornélio da. A Exclusão do Ne-
Brasil, 2005. Sinopse: Retrata as diferenças
gro – 1850-1888: Uma Interpretação Histórica
raciais vividas entre prisioneiros brancos (pre-
das Leis Abolicionistas. Dissertação de Mes-
sos políticos) e negros (presos comuns) no pre-
trado, USP, out./1999.
sídio da Ilha Grande, nos anos 70. Miguel é um
_____________________. A Questão Etno-racial
e a Formação Permanente de Educadores. São
Carlos, 2000.
Senador da República que visita seu amigo de
infância Jorge, que se tornou um poderoso traficante de drogas do Rio de Janeiro, para lhe
propor um projeto social nas favelas. Retrata
ROSEMBERG, Fulvia. Segregação Espacial na
o abismo entre brancos e negros na sociedade
Escola Pública. Rio de Janeiro, Estudos Afro-
brasileira.
-asiáticos, nº 19, 1990. p. 97-107.
Na Rota dos Orixás. Direção: Renato BarbieSCHWARCZ, Lilia M. As Teorias Raciais, uma
ri. Sinopse: O documentário apresenta a gran-
Construção Histórica de Finais do Século
de influência africana na religiosidade brasi-
XIX: o contexto brasileiro. In: Raça e Diversi-
leira, mostra a origem das raízes da cultura
dade. São Paulo, EDUSP, 1996. p.147-185.
jêje-nagô em terreiros de Salvador, que virou
candomblé, e do Maranhão, onde a mesma in-
Indicação de Filmes
fluência gerou o Tambor de Minas.
Quanto vale ou é por quilo? Direção Sergio
Um grito de liberdade. Direção: Richard At-
Bianci, Brasil, 2005. Sinopse: Filme de ficção,
tenbourough, 1987. Sinopse: Sobre a luta con-
baseado num conto de Machado de Assis. O
tra o apartheid, na África do Sul, enfocada sob
filme traça um paralelo entre a vida no pe-
o ponto de vista de um homem branco e de um
ríodo da escravidão e a sociedade brasileira
negro.
129
Além de trabalhador, negro. Direção: Daniel
Quilombo. Direção Cacá Diegues. Brasil,
Brazil, Brasil, 1989. Sinopse: Filme didático,
1984. Sinopse: num engenho de Pernambu-
que apresenta a trajetória do negro brasileiro
co, por volta de 1650, um grupo de escravos
da abolição até os dias atuais.
se rebela e ruma ao Quilombo dos Palmares,
Vista a minha pele. Joel Zito Araújo & Dandara. Brasil, 2004. Sinopse: é uma paródia da
realidade brasileira, para servir de material
básico para discussão sobre racismo e preconceito em sala de aula. Nesta história invertida,
os negros são a classe dominante e os brancos
foram escravizados.
onde existe uma nação de ex-escravos fugidos
que resiste ao cerco colonial, entre eles Ganga Zumba, um príncipe africano. Tempos depois, seu herdeiro e afilhado, Zumbi, contesta
as ideias conciliatórias de Ganga Zumba e enfrenta o maior exército jamais visto na história
colonial brasileira.
130
B. Educação Infantil
I. Valores
civilizatórios afro-brasileiros na edu-
cação infantil1
Azoilda Loretto da Trindade2
A criança gozará de proteção contra atos
sencontros, alegrias, emoções, prazeres,
que possam suscitar discriminação racial,
desprazeres, produção de saberes, de co-
religiosa ou de qualquer outra natureza.
nhecimentos e de múltiplos fazeres. Espaço
Criar-se-á num ambiente de compreensão,
de pessoas buscantes, pesquisadoras da sua
de tolerância, de amizade entre os povos, de
própria prática.
paz e de fraternidade universal e em plena
consciência de que seu esforço e aptidão de-
Apresentamos, de início, algumas explica-
vem ser postos a serviço de seus semelhan-
ções, antes de darmos continuidade a este
tes. (Adotada pela Assembléia das Nações
diálogo:
Unidas, de 20 de novembro de 19593)
1ª)Ao destacarmos a expressão “valores
Este texto, que se propõe a falar sobre os
civilizatórios afro-brasileiros”, temos
valores civilizatórios afro-brasileiros na Edu-
a intenção de destacar a África, na sua
cação Infantil, tem como ponto de partida e
diversidade, e o fato de que os africa-
está ancorado no princípio acima referido.
nos e africanas trazidos ou vindos para
Propõe um diálogo em aberto, que precisa
o Brasil e seus e suas descendentes
ter continuidade no trabalho de cada pro-
brasileiros implantaram, marcaram e
fessor, propondo um compartilhar ideias,
instituíram valores civilizatórios neste
no sentido amplo, com aqueles que fazem
país de dimensões continentais, que
o cotidiano escolar. Cotidiano este entendi-
é o Brasil. Valores inscritos na nossa
do como vibrante, como lugar de desafios,
memória, no nosso modo de ser, na
inquietações, movimento, encontros e de-
nossa música, na nossa literatura, na
1 Valores afro-brasileiros na Educação – 2005 / PGM 2.
2
Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ, Organizadora desta
coletânea.
3
http://www.fvt.com.br/declaracaouniversal.htm
131
nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração. Queremos destacar que,
na perspectiva civilizatória, somos,
de certa forma ou de certas formas,
afrodescendentes. E, em especial, somos o segundo país do mundo em
população negra.
A África e seus descendentes imprimiram
e imprimem no Brasil valores civilizatórios
ou seja, princípios e normas que corporifi-
Fonte: www.paginas.terra.com.br/arte/
cam um conjunto de aspectos e caracterís-
mundoantigo/africa
ticas existenciais, espirituais, intelectuais
e materiais, objetivas e subjetivas, que se
3ª) Sempre cremos que é interessante fa-
constituíram e se constituem num pro-
lar do cotidiano para fazer formula-
cesso histórico, social e cultural. E apesar
ções. Recentemente, ouvi uma senho-
do racismo, das injustiças e desigualdades
ra reclamando que um dia na sua vida
sociais, essa população afrodescendente
foi discriminada por ser branca e isso
sempre afirmou a vida e, consequentemen-
a indignou. Afinal, como e por que
te, constitui o/s modo/os de sermos brasi-
discriminá-la? Alias, muitas pessoas
leiros e brasileiras4.
argumentam, baseadas em um único
exemplo da sua existência, o fato de
2ª) Sobre a África, é bom destacar que é
elas serem discriminadas, sobretudo
um imenso continente, com 52 países,
quando a discriminação vem da parte
com uma imensa e variada diversida-
daqueles que são, em geral, os mais
de: política, econômica, social, cultu-
discriminados. Outras pessoas desta-
ral... E que, assim como podemos di-
cam outras formas de discriminação,
zer que existem vários brasis no Brasil,
como que para amenizar a afirmação
existem várias áfricas na mãe África.
do racismo e a discriminação, histó-
4
É bom dizer, para evitar as tradicionais inquietações quando se afirma a africanidade brasileira, que
sabemos que somos um país plural, marcado por valores civilizatórios de outros grupos humanos, contudo, este
não é o foco deste texto.
132
rica e atual, sofrida pelos negros e
Não é apenas motivo de negligência a dis-
negras. Referem-se ao fato de que al-
criminação, o preconceito, o racismo com
guém pode ser discriminado por ser
relação às crianças negras. É também uma
gordo, por ser pobre, por ser feio, por
insensibilidade, que está ancorada nos 312
ser muito bonito, por ser, ou não, in-
anos oficiais de escravidão neste país e nos
teligente... E por aí vai.
117 anos de promulgação da Lei Áurea. É
impressionante que, por muito tempo, nin-
Uma pessoa adulta, em geral, fica arrasada
guém se preocupou com a importância de
ao ser discriminada, sofre, se revolta, fica fu-
colocar, no acervo de brinquedos das crian-
riosa, deprimida... Enfim, tem várias reações.
ças da Educação Infantil, bonecas e bonecos
Agora, imaginemos um ser humano negro
negros, livros infantis com imagens e per-
de 0 a 6 anos de idade, uma criança negra
sonagens negros em posição de destaque,
que é, numa sociedade racista, discrimina-
não ter mural com personagens negros, não
da 24 horas por dia e, muitas vezes, com o
serem trabalhadas as lendas, as histórias e
silêncio omisso dos adultos, da professora.
a História africanas, entre outras formas de
afirmação de existência e de valorização dos
Essa criança tem que se sustentar sozinha
nestas situações. Infelizmente, ainda há
muita insensibilidade para com as crianças negras. Estas, ao serem discriminadas,
ficam acuadas, envergonhadas, inibidas em
denunciar. Se essa é uma experiência muito
confusa para uma pessoa adulta, imaginemos para um ser humano de pouca idade,
uma criança de 0 a 6 anos. Professores e
professoras, acreditem, a criança pode não
saber expressar oralmente a discriminação,
negros em nosso país. E essa insensibilidade está inscrita na nossa memória coletiva
de brasileiros e brasileiras, que vendiam
crianças negras, que abusavam das crianças negras, que matavam crianças negras,
que impediam que as crianças negras fossem amamentadas por suas mães. A história
parece que nos legou uma responsabilidade
social especial para com essas crianças. Especial, pois temos que ter responsabilidade
social para com todas.
mas ela sente, sofre, seu corpo fica marca-
Para ilustrar que, para a cultura iorubá, to-
do, com a discriminação e com a omissão,
das as pessoas são divinas, traremos, um
com o silêncio conivente, com a falta de
conto5 que é emblemático do valor civiliza-
acolhida do adulto que ela tem como refe-
tório afro-brasileiro de aceitação das dife-
rência no momento.
renças humanas:
5Recontado por Heloisa Pires Lima em Histórias de Preta. São Paulo, Cia. das Letrinhas, 1998. p. 61.
133
(...) Olodumaré, que é um deus Iorubá,
quis criar a Terra e deu um punhado
dela, num saquinho, para Obatalá ir
Tecendo fazeres e saberes
afro-brasileiros na
Educação Infantil
criá-la. Antes de ir, Obatalá teria que
fazer a oferenda a Exu6, pois sem movimento não há ação. Obatalá, que é
muito velho, esqueceu e foi andando,
andando devagarinho, e no caminho
sentiu sede. Então viu uma árvore, dessas que têm água dentro, e parou, abriu
a planta e bebeu. Só que era uma bebida
que dava um pouco de tontura, e então
ele se deitou debaixo da árvore e acabou
dormindo.
Enquanto isso, Oduduá, que também
queria criar a Terra, fez as oferendas a
Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dormir, achou que ele iria se atrasar muito,
“Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com
as coisas do que comparação. Porque
se a gente fala a partir de ser criança,
a gente faz comunhão de um orvalho e
sua aranha, de uma tarde e suas graças,
de um pássaro e sua árvore.” Manoel de
Barros. In: Memórias Inventadas. A Infância.
Vamos agora, pinçar alguns aspectos afro-brasileiros que consideramos caros à Educação Infantil. Alguns, pois há uma infinidade deles:
pegou o saquinho e foi ele mesmo criar
a Terra. E criou.
Principio do Axé ENERGIA VITAL - tudo que é
vivo e que existe, tem axé, tem energia vital:
Obatalá acordou e viu a Terra criada, e
foi reclamar para Olodumaré, que enviou e deu a ele barro, para que criasse
os homens na Terra. Obatalá foi e criou
os homens, mas de vez em quando tomava a bebida da árvore de que tinha
planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo,
tudo é sagrado e está em interação. Imaginem se nosso olhar sobre nossas crianças
de Educação Infantil forem carregados da
certeza de que elas são sagradas, divinas,
cheias de vida.
gostado, e ... não chegava a dormir, mas,
meio tonto, fazia uns seres humanos
Podemos trabalhar a potencialização des-
meio tortinhos.
te princípio nas nossas crianças, se nosso
6
Divindade que simboliza na cosmovisão Iorubá, a transformação, a comunicação, os encontros, a
contradição, o movimento.
134
olhar, nosso coração e nosso corpo senti-
Já fazemos as tradicionais rodinhas na Edu-
rem-nas verdadeiramente assim.
cação Infantil, e nas reuniões pedagógicas,
nas reuniões dos responsáveis. Que tal po-
Elogios, afagos, brincadeiras de faz-de-conta, nas quais elas se sintam a mais bela
estrela do mundo, a mais bela flor, alguém
tencializarmos mais a roda, com cirandas,
brincadeiras de roda e outras brincadeiras
circulares?
que cuida, alguém que é cuidado. Um espelho para que elas se admirem, para que
brinquem com o espelho, e se habituem a
se olhar e a serem olhadas com carinho e
respeito.
CORPOREIDADE – o corpo é muito importante, na medida em que com ele vivemos, existimos, somos no mundo.
Um povo que foi arrancado da África
ORALIDADE – Muitas vezes preferimos ou-
e trazido para o Brasil só com seu cor-
vir uma história que lê-la, preferimos
po, aprendeu a valorizá-lo como um
falar que escrever... Nossa expressão
patrimônio muito importante. Neste
oral, nossa fala é carregada de sen-
sentido, como educadores e educado-
tido, de marcas de nossa existência.
ras de Educação Infantil, precisamos
Faça de cada um dos seus alunos e
valorizar nossos corpos e os corpos
alunas contadores de histórias, com-
dos nossos alunos, não como algo
partilhadores de saberes, memórias,
narcísico, mas como possibilidade de
desejos, fazeres pela fala. Falar e ouvir
trocas, encontros. Valorizar os nossos
podem ser libertadores.
corpos e os de nossas crianças como
possibilidades de construções, produ-
Promova momentos em que a história, a
música, a lenda, as parlendas, o conto, os
fatos do cotidiano possam ser ditos e reditos. Potencialize a expressão “fale menino,
fale menina”.
ções de saberes e conhecimentos coletivizados, compartilhados.
Cuidar do corpo, aprender a massageá-lo,
tocá-lo, senti-lo e respeitá-lo é um dos nos-
CIRCULARIDADE – a roda tem um significa-
sos desafios no trabalho pedagógico com
do muito grande, é um valor civiliza-
a Educação Infantil. Dançar, brincar, rolar,
tório afro-brasileiro, pois aponta para
pular, tocar, observar, cheirar, comer, beber
o movimento, a circularidade, a reno-
e escutar com consciência. Aparentemente
vação, o processo, a coletividade: roda
nada de novo, se não fosse o desmonte de
de samba, de capoeira, as histórias ao
corpos idealizados e a aceitação dos corpos
redor da fogueira...
concretos
135
MUSICALIDADE – A música é um dos as-
COOPERATIVIDADE – A cultura negra, a cul-
pectos afro-brasileiros mais emble-
tura afro-brasileira, é cultura do plural,
máticos. Um povo que não vive sem
do coletivo, da cooperação. Não sobre-
dançar, sem cantar, sem sorrir e que
viveríamos se não tivéssemos a capaci-
constitui a brasilidade com a marca
dade da cooperação, do compartilhar,
do gosto pelo som, pelo batuque, pela
de se ocupar com o outro.
música, pela dança.
Como dissemos, este texto é um comparPortanto, mãos à obra, som na caixa e muita
tilhar ideias e contamos com seu retorno7
música, muito som, mas não os “enlatados”,
com opiniões, sugestões, críticas, comple-
as músicas estereotipadas, o mesmismo que
mentações e ponderações, em nome de um
vemos na TV e em quase todas os momentos
verdadeiro e profundo amor pelas nossas
da escola, nos quais a música se faz presen-
crianças brasileiras, que merecem ter aces-
te. Vamos ouvir músicas que falem da nossa
so a um patrimônio cultural que as consti-
cultura, que desenvolvam nossos sentidos,
tua como tais, que é o patrimônio cultural
nosso gosto para a música e, com isso, não
afro-brasileiro.
produzirmos alienados musicais desde a tenra idade. Nosso país é riquíssimo em ritmos
Muito axé.
musicais e em danças, que tal investirmos
neste caminho? Conhecer para promover.
LUDICIDADE – A ludicidade, a alegria, o
gosto pelo riso pela diversão, a celebração da vida. Se não fôssemos um
REFERÊNCIAS
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em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998.
povo que afirma cotidianamente a
vida, um povo que quer e deseja viver,
CAVALLEIRO, Eliane (org.). Racismo e Anti-Ra-
estaríamos mortos, mortos em vida,
cismo na Educação-Repensando nossa Escola.
sem cultura, sem manifestações cul-
São Paulo: Summus, 2001.
turais genuínas, sem axé.
__________________. Do silêncio do lar ao silênPortanto, brinquemos na Educação In-
cio escolar. São Paulo: Contexto, 2000.
fantil, muita brincadeira, muito brilho no
olho, muito riso, muita celebração da vida.
[email protected]
NEN - NÚCLEO DE ESTUDOS NEGROS. Ne-
136
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Bruna e a Galinha D’ Angola - Gercilda de Almeida – Editora Pallas
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Ana e Ana - Célia Godoy – Difusão Cultural
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Agbalá, um lugar-continente – Marilda Castanha – Editora Formato.
tora Companhia das Letrinhas.
Ifá, o adivinho – Reginaldo Prandi- Companhia das Letrinhas.
Lendas Negras – Júlio Emílio Braz – Editora
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A menina que tinha o céu na boca – Júlio Emí-
Menina bonita do laço de fita – Ana Maria Ma-
lio Braz – Difusão Cultural do Livro.
chado - Editora Ática.
A semente que veio da África – Heloísa Pires
O amigo do rei – Ruth Rocha – Editora Áti-
Lima – Salamandra.
ca.
137
O espelho dourado – Heloísa Pires Lima – Pei-
Os reizinhos de Congo – Edimilson de Almei-
rópolis.
da Pereira – Ed. Paulinas.
O filho do vento – Rogério Andrade Barbosa –
Que mundo maravilhoso! – Julius Lester – Edi-
Ed. Difusão Cultural do Livro.
tora Brinque-Book.
O menino marrom – Ziraldo – Ed. Melhora-
Tanto, tanto! – Tristh Cooke – Editora Ática.
mentos.
A cor da ternura – Geni Guimarães – Editora
O menino Nito – Sonia Rosa – Editora Pallas.
FTD
138
II. As relações étnico-raciais, história
afro-brasileira na educação infantil1
e cultura
Regina Conceição2
A promulgação da Lei Federal nº. 10.639/03,
etnia, religiosa, entre outras, estão contem-
que torna obrigatório o ensino de História e
pladas? São abordados aspectos de história
Cultura Afro-Brasileira, bem como as Dire-
e cultura de origem africana? De que forma?
trizes Curriculares Nacionais para a Educação
E de outras etnias?
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
No que se refere aos conteúdos de His-
têm provocado mudanças nas práticas edu-
tória e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
cativas de professores e professoras de toda
muitos(as) educadores(as) relatam o desco-
a Educação Básica, sem esquecer das refor-
nhecimento desses conteúdos como sendo
mulações necessárias nos currículos de for-
a principal causa para a não abordagem em
mação de professores(as).
sala de aula. Ou seja, como está sendo a formação inicial de professores(as) no tocante
Antes de traçar considerações a este respei-
à diversidade humana e ao preparo para a
to, é preciso dizer que tais mudanças não
educação das relações étnico-raciais?
são tarefas fáceis, pois implicam repensar e
reformular práticas pedagógicas cristaliza-
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a
das e que são consideradas, por seus prati-
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
cantes, de boa qualidade e com resultados
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
garantidos.
Africana (2004), que atendem “dispositivos
legais, bem como reivindicações e propos-
Sendo assim, há que se questionar: resul-
tas do Movimento Negro ao longo do sé-
tados positivos para quem? Ao desenvolver
culo XX” (p. 9), salientam a necessidade de
tais práticas, as diversidades de gênero, raça/
desenvolvimento de projetos que valorizem
1Currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / PGM 2.
2 Assessora de Educação Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação e Cultura/ Prefeitura Municipal
de São Carlos (SP). Mestre em Educação (PPGE/UFSCar – área de Metodologia de Ensino). Professora das séries
iniciais (rede municipal de ensino – São Carlos – SP).
139
a história e a cultura dos povos africanos e
etnocêntrico marcadamente de raiz euro-
afro-brasileiros “no sentido de políticas de
péia por um africano, mas ampliar o foco
ações afirmativas, isto é, de políticas de re-
dos currículos escolares para a diversidade
parações, de reconhecimento e valorização
cultural, racial, social e econômica brasilei-
de sua história, cultura, identidade” (p. 10).
ra” (p. 17).
Como educadores(as) preocupados(as) e
Como ampliar o foco dos currículos se, por
comprometidos(as) com o desenvolvimen-
um lado, nos livros didáticos, a história e
to de uma educação de qualidade para
a cultura afro-brasileiras ficam restritas ao
todos(as), em todos os níveis de ensino, e
trabalho escravo no período colonial e à sua
com a formação dos(as) educandos(as) para
abolição em 13 de maio de 1888? Se não tra-
a cidadania, de maneira que respeitem e va-
tam das origens deste povo, ou seja, de onde
lorizem as diferenças e as diversidades da
vieram?
nação brasileira, devemos abordar, desde a
Educação Infantil, as histórias e as culturas
Por que e como vieram para as Américas?
da população de origem africana.
Como viviam na África? Quais as diferenças
As Diretrizes Curriculares Nacionais (2004),
enquanto política curricular de ações afirmativas, de reparações, de reconhecimento
e de valorização, “têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura
nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos” (p. 10)..
É direito das populações negras e não negras conhecerem e se orgulharem de suas
origens, isto é, serem educadas como “cidadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico-racial – descendentes de africanos,
povos indígenas, descendentes de europeus,
de asiáticos (...)” (op. cit., 2004, p. 10).
de hábitos e costumes dos povos africanos?
Segundo Cavalleiro (2000), há educadores(as)
“que não percebem a influência dos livros
didáticos e paradidáticos na formação do
autoconhecimento e da identidade da criança” (p. 46).
Por outro lado, como superar as lacunas
da formação inicial de professores(as) e até
mesmo o que foi assimilado anos atrás? As
soluções têm sido as mais variadas possíveis: a busca por estes conhecimentos em
cursos de formação continuada, grupos de
estudos, estudos individualizados (LOPES,
2003), entre outras, para que o ambiente
escolar e o de sala de aula possam, de fato,
incluir a cultura de origem africana e pro-
As Diretrizes Curriculares Nacionais (2004)
mover a educação para as relações étnico-
não propõem a mudança de “(...) um foco
-raciais.
140
Abordar em sala de aula questões relativas
A preparação do ambiente escolar, bem como
à educação das relações étnico-raciais, para
o de sala de aula, é muito importante para
alguns educadores, é muito delicado, pois
que todos(as) se sintam representados(as) e
implica rever valores éticos, pessoais e pro-
valorizados(as). Cartazes, fotos, textos diver-
fissionais. É, por vezes, se descobrir racista,
sos – em livros didáticos e paradidáticos –,
preconceituoso, discriminador e que, mui-
além de brincadeiras e jogos, são estratégias
tas vezes, as atitudes diante destas situações
que visam à elevação da auto-estima e do
são de silenciamento, por não ter a sensibi-
autoconhecimento “de indivíduos discrimi-
lidade necessária para identificá-las ou por
nados” e tornam “a escola um espaço ade-
não saber como agir.
quado à convivência igualitária” (CAVALLEIRO, 2000, p. 9-10).
Cavalleiro (op. cit.), em pesquisa realizada
numa escola de Educação Infantil, diz que
A representação da diversidade no ambiente
este silenciamento “do professor facilita
escolar não é uma prática muito utilizada
novas ocorrências, reforçando inadvertida-
pelos profissionais da educação, como sa-
mente a legitimidade de procedimentos pre-
lienta Cavalleiro (op. cit.), quando diz que
conceituosos e discriminatórios no espaço
“no decorrer do trabalho de campo, foi pos-
escolar e, com base neste, para outros âmbi-
sível constatar a ausência de cartazes ou li-
tos sociais” (p. 10).
vros infantis que expressassem a existência
de crianças não-brancas na sociedade brasi-
Alguns educadores de Educação Infantil
não acreditam que, na faixa etária de 03
a 05 anos, sejam possíveis atitudes e/ou
ações de caráter racista, preconceituosa
e discriminadora. Mais uma vez, Cavalleiro (op. cit.) ressalta que, nesta fase, as
“crianças brancas revelam um sentimento
de superioridade, assumindo em diversas
situações atitudes preconceituosas e discriminatórias, xingando e ofendendo as
crianças negras, atribuindo caráter negativo à cor da pele”, ao passo que as “crianças
negras já apresentam uma identidade ne-
leira” (p. 44).
A escola e seus profissionais devem oferecer
aos educandos “uma educação de fato igualitária, desde os primeiros anos escolares
(...), pois as crianças dessa faixa etária ainda
são desprovidas de autonomia para aceitar
ou negar o aprendizado proporcionado pelo
professor”, ou seja, podem se tornar “vítimas indefesas dos preconceitos e estereótipos transmitidos pelos mediadores sociais,
dentre os quais o professor” (CAVALLEIRO,
op. cit., p. 37-38).
gativa em relação ao grupo étnico ao qual
Diante destes fatos, como cumprir e garan-
pertencem” (p. 10).
tir “o sucesso das políticas públicas de Esta-
141
do, institucionais e pedagógicas (...) (Diretri-
de literatura infanto-juvenil, por ela anali-
zes Curriculares Nacionais, 2004, p. 13)” tais
sados, dizendo que, naqueles, as persona-
como a Lei Federal nº. 10.639/03, bem como
gens negras aparecem “de maneira positiva,
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
como protagonistas, pertencentes a uma fa-
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
mília, com ilustrações bem delineadas” (p.
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
196). Estes são alguns cuidados que se deve
Africana com jovens, adultos e principalmen-
ter quando se pretende uma educação que
te com crianças que, segundo o Estatuto da
vise à promoção da igualdade étnico-racial
Criança e do Adolescente (2002), são pessoas
no ambiente escolar.
em condição peculiar de desenvolvimento?
O livro Bruna e a Galinha D’Angola, de GercilA resposta, mais uma vez, vem das referidas
ga de Almeida, pode ser considerado como
Diretrizes Curriculares Nacionais (2004) que
um exemplo positivo para trabalhar, com os/
dizem depender “de condições físicas, mate-
as educandos/as da Educação Infantil, a his-
riais, intelectuais e afetivas favoráveis para
tória e a cultura de origem africana.
o ensino e para aprendizagens; (...) da reeducação das relações entre negros e brancos;
(...) de trabalho em conjunto, de articulação
entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que
as mudanças éticas, culturais, pedagógicas
e políticas nas relações étnico-raciais não se
limitam à escola” (p. 13).
A utilização da literatura infanto-juvenil,
Neste livro, Bruna aprende, com sua avó
Nanã, a história da criação do mundo, a partir de uma visão africana. Uma história bem
escrita, atraente, com belas ilustrações, em
que é possível, ao final da leitura, confeccionar, com a colaboração dos educandos, pais
e/ou responsáveis, os panôs que ilustram
toda a história.
tendo como base personagens negras, tem
mostrado “que é possível realizar um trabalho com esse material, pelo fato de ele
romper com um imaginário estereotipado
do negro, tão comum na literatura infanto-juvenil” (Souza, 2001, p. 195), trazendo, assim, resultados positivos para a educação
das relações étnico-raciais.
Uma outra sugestão de literatura infanto-juvenil é o livro A semente que veio da África
de Heloísa Pires Lima, e de Georges Gneka e
Mario Lemos, dois autores africanos. O livro
conta a história do Baobá, uma árvore que
nasce em todo o continente africano e, em
cada parte da África onde existe essa árvore,
há uma história diferente para explicar sua
Para tanto, cabe destacar as considerações
importância para aquela comunidade. São
de Souza (op. cit.) a respeito de alguns livros
relatadas histórias da Costa do Marfim e de
142
Moçambique. Há belas fotografias do Baobá
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria
na África, com vários desenhos desta árvore
Especial de Políticas de Promoção da Igual-
e, ao final do livro, a sugestão do jogo de
dade Racial, Secretaria de Educação Conti-
origem africana, a Awalé ou Mancala.
nuada, Alfabetização e Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação
Estas foram apenas algumas pequenas refle-
das relações étnico-raciais e para o ensino de
xões e sugestões de atividades que podem
história e cultura afro-brasileira e africana.
ser desenvolvidas em sala de aula, desde a
Brasília (DF): Instituto Nacional de Pesqui-
Educação Infantil até o Ensino Fundamen-
sas Educacionais Anísio Teixeira, 2004
tal. Muitas outras experiências estão sendo
desenvolvidas em toda a educação básica,
______. Estatuto da Criança e do Adolescente:
resultando em atitudes de conhecimento e
Lei nº. 8069, de 13 de julho de 1990. Brasília:
valorização das diferenças, principalmente
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos,
aquelas que dizem respeito às culturas e às
Departamento da Criança e do Adolescente,
histórias africanas e afro-brasileiras, como
2002.
determina a Lei Federal nº. 10.639, de 09 de
janeiro de 2003, assim como na sua regula-
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio
mentação, expressa nas Diretrizes Curricu-
do lar ao silêncio escolar: racismo, preconcei-
lares Nacionais para a Educação das Relações
to e discriminação na educação infantil. São
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Paulo: Contexto, 2000.
Cultura Afro-Brasileira e Africana.
LIMA, Heloísa Pires. A semente que veio da
Desenvolver práticas educativas a partir des-
África. Editora Salamandra, 2005.
tas situações tem sido importante para que
educandos e educadores conheçam histórias
LOPES, Véra Neusa. Inclusão étnico-racial –
e culturas das populações negras, desmisti-
cumprindo a lei, práticas pedagógicas con-
ficando o tema e tornando positiva e real a
templam afro-brasileiros. Porto Alegre: Re-
participação dos africanos e afro-brasileiros
vista do Professor, jul./set. 2003. p. 25-30.
na história nacional.
SOUZA, Andréia Lisboa de. Personagens ne-
REFERÊNCIAS
gros na literatura infanto-juvenil: rompendo estereótipos. In: CAVALLEIRO, Eliane dos
ALMEIDA, Gercilga de. Bruna e a Galinha
Santos (org.). Racismo e anti-racismo na edu-
D’Angola. Rio de Janeiro: Editora Didática e
cação: repensando nossa escola. São Paulo:
Científica e Pallas Editora, 2000.
Summus, 2001. p. 195-213.
143
III. Tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança
afro-brasileira (uma reflexão)1
Azoilda Loretto da Trindade2
Às crianças que foram invisibilizadas e silen-
raltices... Não continue este texto sem lem-
ciadas ao longo da História
brar. Lembre, relembre, lembre...
Abra a roda
tin dô lê lê
Abra a roda
tin dô lá lá
Lembrar para se religar à criança que está
dentro de nós, guardada no coração, a criança que ainda somos. Avivar nossa memória,
puxar seu fio para que, quem sabe, possamos perceber, no nosso corpo, o valor, a importância dos brinquedos e das brincadeiras
Abra a roda
tin dô lê lê
tin dô lê lê
tin dô lá lá3 ...
para nós e, consequentemente, para nossas
crianças, as crianças sob nossa responsabilidade de educadoras e educadores. Afinal,
Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração Toda a vez
Vamos convidá-lo(a) a lembrar dos sorri-
que o adulto “balança” ele vem pra me
sos, da sua infância, das brincadeiras... Dei-
dar a mão.
xe essas lembranças chegarem. Permita-se
lembrar dos sabores, odores/cheiros, cores,
texturas... Dos gritinhos, das corridas, dos
Há um passado no meu presente. Um sol
bem quente lá no meu quintal,
machucados... Das marquinhas que você
Toda vez que o adulto fraqueja o menino
carrega no corpo como lembranças das pe-
me dá a mão...
1Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 4.
2
Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta
coletânea.
3 Abra a roda tin dô lê lê é uma cantiga de roda do nosso repertório popular.
144
E me fala de coisas bonitas que eu acre-
No centro da roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin
dito que não deixarão de existir:
dô lá lá. Colocando estas crianças no centro
Amizade, palavra, respeito, coragem,
bondade, alegria e amor...
da roda, vamos, para começo de conversa,
tirá-las do lugar de carência e olhá-las como
força, como potência. Como crianças cujo
Pois não posso, não quero, não devo, vi-
axé, cuja energia vital foram e são tão fortes
ver como toda essa gente insiste em vi-
que nos fazem pensar: como elas resistiram
ver.
e resistem à tanta perversidade social?
Não posso aceitar sossegado qualquer
Desnaturalizar a concepção de criança es-
sacanagem ser coisa normal .
crava, como algo quase biológico, fecha-
4
Devagarzinho /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/
tin dô lá lá.
do, etiquetado, e olhá-las como crianças
que foram, sim, escravizadas ontem e hoje,
parece-me fundamental. Fundamental para
No clima dos brinquedos e brincadeiras, per-
desnaturalizar o lugar de subalternidade, de
cebamos a riqueza da roda aberta. Olham-se
marginalidade, de exclusão ao qual tentam
as diferenças e semelhanças, as igualdades,
colar, aprisionar nossas crianças. Funda-
a diferença dos seus participantes, sem hie-
mental para reafirmar o compromisso e o
rarquias. Todos ali se vendo, de mãos dadas,
débito social de garantir-lhes sua infância,
num círculo em cujo centro existem as pos-
seu direito de brincar, de sorrir, de ter orgu-
sibilidades.
lho da sua memória e do seu povo.
Vamos, no entanto, devagarzinho, nos lem-
Fechando a roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô
brar das crianças que ficaram de fora desta
lá lá. Agora bem próximos, vamos pensar que
roda ao longo da nossa História, de crianças
temos uma memória social cindida, partida.
cuja memória histórica de brinquedos e brin-
Grande parte da nossa população brasileira
cadeiras está ligada ao engenho de cana5, à
não se reconhece afro-brasileira. Neste sen-
senzala, aos guetos, aos lugares invisibiliza-
tido, o lado afro da nossa história, o escondi-
dos, escondidos, ao estado, qualidade, con-
do, o submerso da nossa memória, necessi-
dição de escravas. Para evitar equívocos,
ta ser descortinado, exposto. Essa memória
estamos nos referindo às crianças afro-bra-
afro-brasileira precisa vir à tona e creio ser
sileiras, razão desta série, deste programa.
no exercício de lembrar que o emergir, o sair
4Bola de gude, Bola de Meia, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
5
a 59).
KISCHIMOTO,T. M. Jogos tradicionais Infantis: O jogo, a criança e a educação. Petrópolis,RJ: Vozes, 1993 (p 26
145
da amnésia social, na qual nos encontramos,
O artigo Africanidades Brasileiras: esclare-
podem acontecer coletivamente. E nada me-
cendo significados e definindo procedimen-
lhor para isso do que lembrar das histórias
tos pedagógicos, de Petronilha Silva (2003)
inscritas no nosso corpo, em especial no
refere-se às “raízes da cultura brasileira que
nosso corpo de educadoras e educadores.
têm origem africana.(...)”. Dizendo de outra
forma, queremos nos reportar ao modo de
Histórias que entram em cena mediadas
por suas lembranças. Tais lembranças
necessitam ser faladas, escritas, lidas,
assumidas, afirmadas, escutadas, para
poderem assim ganhar status de memó-
ser, de viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros e, de outro lado,
às marcas da cultura africana que, independente da origem étnica de cada brasileiro,
fazem parte do dia-a- dia”7.
ria, serem lapidadas. Elas nos habitam
individualmente, mas seu nascimento,
Ao tirar da prisão do esquecimento a me-
há muito, aconteceu no coletivo. Quan-
mória individual e coletiva afrodescendente
do socializadas, podem ser refletidas e
que habita nossa população, estaremos dan-
criticadas. (...)
do um passo fundante para a concretização
dos nossos ideais democráticos em relação
Ver, porque ganhou distância, num
à educação.
processo reflexivo, como construtor e
não reprodutor do próprio processo de
Dando um exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/
aprendizagem, possibilita a compreen-
tin dô lá lá. Conceição nasceu no dia 8 de
são entre construir conhecimento e re-
dezembro, no final dos anos 70 do sécu-
produzir conhecimento, repetir história
lo XX, dia consagrado a Nossa Senhora da
e construir história6.
Conceição e, em algumas religiões afrodescendentes ou afro-brasileiras, a Oxum, orixá
Destaco isto, pois creio que se nosso corpo
não estiver visceralmente envolvido com o
processo de construção de uma educação
efetivamente voltada para todos, sucumbi-
feminino, que, segundo Verger (1981, p. 174)
controla a fecundidade e reina sobre todos
os rios, exercendo seu poder sobre a águas
doce, fundamental para a vida na Terra.
remos diante do árduo processo de imprimir
as africanidades brasileiras no nosso currí-
Sua família, adepta da umbanda, uma reli-
culo escolar, que se pretende multicultural.
gião afro-brasileira, desejou homenagear
6
1999.
FREIRE, Madalena. “Memória: Eterna idade.” Diálogos. São Paulo. Espaço Pedagógico, ano II, n° 5, julho
7SILVA. Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades Brasileiras: esclarecendo significados e definindo
procedimentos pedagógicos. Revista do Professor. Porto Alegre, 19 (73):26-30, jan./mar. 2003.
146
Oxum, colocando este nome na menina.
brincadeiras ingênuas, bobagens ou insigni-
Segundo ela, houve o impedimento no car-
ficâncias.
tório e a família imediatamente deu-lhe o
nome de Conceição para poder homenagear
Dando outro exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/
Oxum, sem repressão. Esta história é emble-
tin dô lá lá. Participava de um curso de for-
mática em relação ao surgimento do nosso
mação de educadores de Educação Infantil,
sincretismo religioso.
quando a professora colocou um vídeo, onde
tinha a brincadeira infantil Barra manteiga
Por muito tempo, mais de vinte anos, ela re-
na fuça da nêga. Vale destacar que o curso
lata que tinha vergonha de contar esta his-
tinha uma perspectiva crítica e progressista.
tória e dizia que seu nome era em homena-
Fiquei constrangida, mas fui obrigada, pela
gem a Nossa Senhora da Conceição.
minha consciência, a questionar o material.
Ao compartilhar, coletivizar sua lembrança,
sua história identitária, Conceição libertou
sua memória e sua própria identidade e certamente sua história lembrada e contada foi
disparadora de outras memórias e de outras
identidades.
O argumento-resposta foi perfeito: “essa
brincadeira faz parte do nosso repertório
cultural e afetivo, todos já brincamos dessa
brincadeira”, foi dito. No entanto, contra-argumentei: “É, mas não foi dito que a nêga da
brincadeira é uma mulher negra, logo gente,
logo tem nariz e não fuça”. Não foi dito que
Relato este exemplo para fundamentar o de-
não se coloca barra de manteiga no nariz de
safio que se coloca à nossa frente ao nos pre-
ninguém, não foi dito que se tratava de uma
dispormos a fazer valer a Lei nº 10.639/2003
brincadeira que retratava um período de
que regulamenta a inclusão da temática
nossa história (o escravismo). Não foi dito
“História e Cultura Afro-Brasileira” no currí-
que o silêncio, a não-crítica, a não-reflexão
culo escolar. Ora, nenhuma lei se torna exe-
num curso de formação de professores aca-
quível sem envolvimento social, sem perten-
bam por naturalizar a situação e reforçar a
cimento coletivo. Esta lei, especificamente,
violência simbólica que se pratica contra to-
só se concretizará, no cotidiano escolar, se
dos os afro-brasileiros e afrodescendentes.
houver a real parceria com os professores e
E, assim, não se questiona que com tantos
professoras. Se houver a vivência cotidiana
exemplos possíveis de brincadeiras, aquele
da crítica do cotidiano escolar, permeado
foi escolhido sem nenhuma crítica, num ví-
por conflitos, encontros e desencontros, ra-
deo de um curso que se pretendia crítico,
cismos, preconceitos e discriminações, mui-
multiplicador, formador de práticas e opini-
tas vezes alienadamente confundidos com
ões pedagógicas.
147
Esta situação significativa demonstra a to-
Atentemos para o fato de que nós, educado-
tal ou quase total insensibilidade para com
ras e educadores, imersos em planejamen-
metade da população brasileira: os afro-bra-
tos, currículos, controles, muitas e muitas
sileiros. Mas por quê?
vezes, além de não brincarmos - capacidade
que em muitos de nós está aprisionada no
Mão na testa/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá
nosso corpo -, impedimos que o outro brin-
lá. E no repertório popular e afetivo da nos-
que, em nome, num sem número de vezes,
sa gente, temos muitos exemplos de brinca-
de uma desnecessária disciplina, lei, organi-
deiras significativas que nos levam a pensar:
zação, em nome da nossa “autoridade”, con-
Chicotinho queimado, as Sinhazinhas das fes-
tribuindo assim, para a degeneração da vida
tas juninas, as músicas como Samba -lelê tá
humana, que tem no brincar a afirmação da
doente,/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba-
vida.
-lelê precisava /É de umas boas palmadas. Ou
a tradicional Boi, boi, boi,/ boi da cara preta,/
Vamos brincar um pouquinho, vamos nos
pega essa menina /que tem medo de careta.
encontrar com os sacis, com as cucas, com
Das histórias como a do Negrinho do Pasto-
o Negrinho do Pastoreio, com os bois das
reio e da Moura Torta. Creio que as brinca-
caras-pretas de vez em quando. É, vamos re-
deiras e brinquedos estão em sintonia com
descobrir o prazer de brincar que, certamen-
a sociedade na qual estão inseridos, então
te, tomou nosso corpo em algum momento
não é surpreendente o que ocorre e ocorreu
da nossa vida.
numa sociedade com uma história de autoritarismo como a nossa.
O corpo traduz a nossa presença concreta
no mundo. A nossa existência e potenciali-
Vamos girando/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá
dade se circunscrevem no nosso corpo. Com
lá. Gostaria de concluir este texto pensando
ele amamos, sonhamos, produzimos, senti-
em dois aspectos fundamentais para nós: a
mos, percebemos, nos constituímos como
importância do brincar e a importância do
sujeitos. O que é importante para nós, edu-
corpo que brinca.
cadores e educadoras, é o respeito por este
corpo, o nosso e o do outro, dos nossos alu-
O brincar, no dizer de Verden-Züller (2004, p.
nos, das nossas alunas, nossos colegas, nos-
230), “é atentar para o presente”. O não estar
sas colegas, nossos companheiros e compa-
preocupado com o futuro, com as consequ-
nheiras de existência.
ências da ação, mas em vivê-la enquanto ela
está sendo vivida por nós. É encantar-se com
Corpos que carregam histórias e memórias,
o aqui e agora, é entregar-se ao presente.
marcas que anunciam e denunciam, que fa-
148
lam, mesmo sem palavras. Creio que esta di-
REFERÊNCIAS
mensão de acolhida, respeitosa e amorosa,
do corpo do outro, sobretudo quando este
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao si-
outro tem uma história-memória social de
lêncio escolar: racismo, preconceito e discrimi-
violência, mutilação e insensibilidades com
nação na educação infantil. São Paulo: Con-
relação ao seu corpo e aos corpos dos seus
texto, 2000.
iguais, é uma chave para a permanência e o
sucesso das nossas crianças, em especial as
FREIRE, Madalena. Memória: Eterna idade.
crianças negras, na escola. Permanência e
In: Diálogos. São Paulo: Espaço Pedagógico,
sucesso, não de vítimas ou de carentes, mas
ano II, n° 5, julho 1999.
de cidadãos e cidadãs de direito, vitoriosos
sobreviventes de racismo, exclusões e injus-
KISCHIMOTO, T. M. Jogos tradicionais Infan-
tiças sociais.
tis: O jogo, a criança e a educação. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1993
Que tal, junto com elas e eles, construirmos
um belo repertório de brinquedos e brinca-
LUZ, Marcos Aurélio. Cultura Negra e Ideo-
deiras? E assim, quem sabe, no coletivo, fa-
logia do Recalque. Rio de Janeiro: Achiamé,
zermos emergir, no brincar, a nossa memó-
1983.
ria afro-brasileira. Confie, o nosso corpo e o
corpo de nossas crianças, eles sabem brin-
LUZ, Narcimária C. do Patrocínio Luz. Abebe:
car, afinal o brincar é um saber acontecente.
a criação de novos valores na educação. Salva-
É só começar.
dor-BA: SECNEB, 2000.
Inventando
tin dô lê lê
Inventando
tin dô lá lá
Inventando
MATURANA, H. e VERDEN ZÖLLER,G. Amar e
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tin dô lê lê
tin dô lê lê
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PRIORE, M. História das Crianças no Brasil.
São Paulo: Contexto, 1999.
149
SILVA. Petronilha Beatriz Gonçalves e. Afri-
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Meninas do Rio e FUNK RIO - Cecip
CDs de Nei Lopes
CD Abra A Roda Tin Dô Lê Lê, de Lydia Hortélio
Kiriku e a feiticeira Vista minha pele
Kiara, corpo de rainha.
Ilha Negra
CD Tambolelê
Dia de Graça (Candeia - sambista negro)
Wonderful world - Louis Armstrong
Beleza Negra
Sites
Retrato em Preto em Branco
MÚSICAS
Milagres do povo- Caetano Veloso e Gilberto
www.mulheresnegras.org
www.afirma.com.br
Gil
www.geledes.org.br
Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil
www.anped.org.br (GT de Relações Raciais)
CD do Antônio Nóbrega - O marco do meio-
www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/
-dia
jogos.html
CD do Jorge Aragão - Jorge Aragão ao vivo
www.projetohistoriadosamba.hpg.ig.com.br
152
C. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
I. Os quilombos e a educação1
Maria de Lourdes Siqueira2
Introdução
30, foram criados a Frente Negra Brasileira,
a Imprensa Negra, o Teatro Experimental do
A sociedade brasileira, em sua grande maio-
Negro. Nos anos 70, o Movimento Negro
ria, é animada por uma força ancestral que
ressurge com o Ilê Aiyê e o Movimento Ne-
mantém vivas tradições, costumes, crenças,
gro Unificado – MNU.
valores que há cinco séculos são repassados,
em nosso país, de uma geração a outra, sobretudo pela ação da mulher negra e das organizações de resistência negra.
A nossa proposta maior nesta reflexão é incluir o significado do papel dos Quilombos
nos processos sócio-político-culturais de
construção da Sociedade Brasileira e a di-
A origem dessa tradição se inicia com os
mensão educativa que se realiza nos Qui-
africanos escravizados que chegam ao Brasil
lombos em todo o território nacional. Para
sob a ação do Sistema Colonial Escravista,
o professor, militante e senador Abdias Nas-
no período compreendido entre os séculos
cimento, há um permanente:
XVI e XIX. Eram africanos de origem Yorubá
(nagô ou ketu), Gegê, Ewé, Mina, Congo, An-
“movimento de in-surreições, levantes,
gola, Moçambique.
revoltas proclamando a queda do sistema escravo, que podem ser localizados
As organizações clássicas criadas em resis-
em toda a extensão geográfica do país,
tência à dominação escravocrata e colonial
particularmente naquelas de significa-
sempre existiram no Brasil entre Irmanda-
tiva população escravizada. Frequente-
des Religiosas, Terreiros de Candomblé,
mente aqueles movimentos tomavam
Congadas, Capoeira, Quilombos. Nos anos
a forma de Quilombos, à semelhança
1
Valores afro-brasileiros na Educação – 2005 / PGM 3.
2
Professora da Universidade Federal da Bahia/Diretora da Associação Cultural Ilê Aiyê/ 2ª vice-presidente da
Associação de Professores Pesquisadores Negros – seção Bahia.
153
de PALMARES: eram comunidades or-
As Comunidades de Quilombos estão sujei-
ganizadas para africanos livres que se
tas a transformações, guardando um jeito
recusavam a submeter-se à exploração
próprio de viver, transmitindo essa heran-
e à violência e buscavam a instituciona-
ça ancestral de resistência às gerações que
lização do poder inspirado na estrutura
se sucedem. Conhecemos, por exemplo,
do comunalismo tradicional da África”
a família de Seu Bernardino e Dona Clara,
(Nascimento, 2002).
moradores dos Matões dos Moreira, cujos
descendentes convivem hoje entre Matões e
Desde o século XIX, os Quilombos existem
Santo Antonio dos Pretos, constituindo qua-
no Brasil, realizando ações de identidade,
tro gerações, presentes nesses Quilombos:
trabalho, organização social e resistência
bisavó, avó, filho e neto juntos, vivendo o
aos sistemas de dominação impostos aos
cotidiano da vida quilombola. A bisavó cuida
africanos e seus descendentes.
de uma Casa de Santo de matriz africana, a
avó hoje é quilombola nos Matões dos Mo-
Há uma oralidade, de tradição, que realiza
reira; o neto é agente cultural da comunida-
permanentemente o exercício de guardar de
de e o bisneto, com a idade de cinco anos,
memória as lições de sabedoria e experiên-
acompanha todos. Essa família é parte de
cia dos ancestrais e transmiti-las aos seus
minha própria família, no lugar onde nasci,
descendentes, sempre na perspectiva de
cujos herdeiros dessas Terras de Pretos eram
formar novas gerações sobre valores, prin-
meus avós, meus tios, e minha mãe.
cípios, crenças, costumes e tradições que
mantenham viva a ancestralidade originária
De que modo os conhecimentos, os saberes,
das Civilizações Tradicionais Africanas.
são passados nas Comunidades Quilombolas?
Hoje, os Quilombos, denominados Comunidades Remanescentes de Quilombos, ou
Continuam vivas, nestes lugares, tradições
Terras de Pretos, se reorganizam no país
de Candomblé, Umbanda, Tambor de Mina,
inteiro, nas diferentes regiões, revivendo o
Terecô, Tambor de Crioula, Bumba meu Boi,
legado de seus antepassados. São núcleos
Reisado, Festas do Divino, Festa de Caboclo,
vivos de iniciativa comunitária, identitá-
ladainhas para Santos e Encantados. Há um
ria, sem perder de vista as dinâmicas das
processo educativo que, no cotidiano, zela,
transformações histórico-político-culturais
transmite e celebra, a cada ano, na medida
ocorridas no decurso de tantos séculos, que
do possível, estas culturas e expressões reli-
essas tradições atravessam em tempos e es-
giosas de origem africana, reelaboradas na
paços diferentes.
dinâmica concreta da vida das pessoas, que
154
às vezes vão se transformando, de um lugar
excelência. Ela sempre guardou os saberes e
a outro, mas guardam sempre os fundamen-
os cultivou e transmitiu em todos os lugares
tos.
por onde passou. Ela é identificada com a
ancestralidade, porque incorpora essa an-
As pessoas dos Quilombos, das Terras de Pre-
cestralidade, nos papéis de mãe, mulher (es-
tos, frequentam as escolas públicas ou até
posa, companheira) professora, enfermei-
pequenas “Bancas” privadas para aprender
ra, mãe de santo, filha de santo, ekede ou
a ler, a escrever, a desenvolver as operações
makota, mestre, contra-mestre ou pratican-
de raciocínio matemático, porque elas preci-
te de capoeira, benzedeira, curadora, conhe-
sam entrar na engrenagem da vida em Socie-
cedora dos segredos da natureza. Ela realiza
dade. Mas elas não abandonam as tradições
essas lutas e ações cotidianas com dignida-
de seus ancestrais que, para elas, constituem
de e pela DIGNIDADE da família negra.
os valores e princípios educacionais.
Entre os múltiplos saberes, destaca-se: o saber respeitar as pessoas mais velhas; a história da família dos seus antepassados; o culto
à natureza; os saberes em relação à chuva e
à posição do sol; os efeitos da lua; o tempo
de plantar e de colher; o perigo dos raios, a
leitura da força dos trovões; a importância
da água em todos os momentos da vida; os
segredos das plantas; o poder das folhas e
das raízes para curar, para fortalecer o corpo
e a alma das pessoas.
Os Quilombos hoje mais reconhecidos nos
estados são principalmente:
No Amazonas: Bacia do Trombetas; no
Pará: Oriximiná Itamoari, São José; no Amapá – Curiaú, no Maranhão: Santo Antonio
dos Pretos, Matões dos Moreira, Ingarana;
em Pernambuco: Castaninho, Conceição
das Crioulas; na Bahia: Rio das Rãs e Rio de
Contas. Mangal, Barra, Santana, São José,
da Serra; em Sergipe: Mocambo; no Rio de
Janeiro: Campinho da Independência, San-
Estes saberes são praticados dia a dia. É certo
tana, São José Serra da Serra; no Rio Grande
que há rupturas, há separações, há quebras,
do Sul: Serra Geral, Camizão; Ceará: Con-
mas há uma FORÇA MAIOR: a lembrança dos
ceição dos Caetano; Goiás: Kalungas; São
ANTEPASSADOS, dos ANCESTRAIS, dos mais
Paulo: Iporanduva, Maria Rosa, São Pedro
velhos da Comunidade que têm força moral
de Eldorado, Iporanga; Mato Grosso: Mata
ante suas famílias.
Cavalo; Minas Gerais: Porto Coris, Garimpeiros, Campo Grande; Ambrósio; Tocan-
Nesse processo de passagem de conheci-
tins: Lagoa da Pedra; Paraíba: Caiana dos
mentos, a mulher negra é a educadora por
Crioulos.
155
Uma proposta de Políticas Públicas com
Medicina, Música, Psicanálise, Religião, Te-
Ações Afirmativas em Educação, para Co-
atro.
munidades Remanescentes de Quilombos,
pressupõe, fundamentalmente, conteúdos
educacionais e práticas pedagógicas; currículo, programas de formação de professores
e produção de recursos pedagógicos, que incluam o respeito às diferenças e às especificidades culturais destas populações em seus
lugares, vivendo a tradição das Comunidades Remanescentes de Quilombos.
A experiência de Palmares, no Estado de Alagoas, e a liderança de Zumbi dos Palmares
constituem a referência de um líder e de
uma República que viveu a mais séria e duradoura experiência democrática em solo
brasileiro, além de ter sido a maior manifestação de luta contra o escravismo na América Latina.
A continuidade dos Quilombos está articu-
Concluindo
lada a Políticas Públicas que proporcionem
a inclusão das dimensões mitológicas, sim-
As Comunidades Remanescentes de Qui-
bólicas e rituais em processos educacionais
lombos só existem porque elas são repre-
nos Quilombos e na Sociedade Brasileira.
sentações vivas de princípios fundadores de
saberes seculares que perpassam, direta ou
156
REFERÊNCIAS
indiretamente, ao estilo de uma seiva, que
alimenta uma semente que renasce dia a
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. Terras de Pretos,
dia, em forma de um processo educativo,
terra de santo e terras de índio. In: Revista
que se realiza a partir de um outro olhar, de
Humanidades, Brasília, 1987/88.
uma outra perspectiva, do ponto de vista
daqueles que conhecem a realidade onde vivem, e detêm saberes úteis a toda a Sociedade: convivência, partilha, o valor do outro, o
reconhecimento da diferença, a valorização
da natureza, a esperança, a alegria de viver,
a confiança no ser, independente do ter.
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157
II. Quilombo: conceito1
Gloria Moura2
Da terra, na terra, quilombolas desenvolvem atividades. Plantam e colhem os frutos de seu trabalho. Marcam sua história.
A história da propriedade rural brasileira tem
regulamentado as terras registradas, levan-
início com as Capitanias Hereditárias e com
do a lei ao fracasso. As terras no Brasil eram
as Sesmarias, as quais se constituíam de ter-
possuídas por poucos, um bem de capital não
ras doadas pela Coroa Portuguesa a benefici-
acessível à população. As doações previam
ários da Corte. Os donatários que não conse-
estabilizar o pretendente, que teria escravos
guissem cultivar essas terras as devolveriam
e se comprometeria a fazer benfeitorias.
à Coroa, daí a expressão terras devolutas.
Ressaltamos, neste texto, o processo de forDesde aquela época, terra no Brasil é
mação de quilombos na Colônia e no Impé-
conflito entre Estado, latifundiários, pe-
rio. Escravos fugiam de fazendas e consti-
quenos proprietários, camponeses. A Lei
tuíam resistência à escravatura. Palmares é
de Terras (18503) pretendeu que o Estado
símbolo-mor, quilombo com quase 100 anos
regulamentasse as sesmarias, desapro-
de existência e líderes como Ganga Zumba e
priasse terras improdutivas, vendesse
Zumbi. Em Palmares, terra era considerada
terras para subsidiar a imigração es-
como sinônimo de liberdade. Terra é patrimô-
trangeira. Proibiu doações.
nio onde se fincam aspirações de despossuídos de espaço para plantar e viver. Os negros
Fazendeiros recusaram-se a registrar as terras, o que questionava os limites de suas
posses. Em 1870, raros fazendeiros haviam
libertários fortaleciam-se, causavam apreensão e temor. Magalhães Magalhães (In: Marcas da Terra, Marcas na Terra) comenta:
1Educação Quilombola – 2007 / PGM 1.
2
série.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Pesquisadora do CNPq. Consultora desta
3Lei n.º 601 (de Terras), 1850. Maria Jovita Wolney Valente (org.) Legislação Agrária, Legislação de Registro
Público, Jurisprudência (coletânea). Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, Brasília, 1983.
158
A terra representa, para esses sujeitos,
tes de escravos que mantêm laços de paren-
patrimônio cultural e histórico, na me-
tesco entre si. A maioria vive de culturas de
dida em que há valores morais a ela atri-
subsistência em terra doada/comprada/se-
buídos a serem transmitidos de geração
cularmente ocupada. Seus moradores valo-
a geração. Ela não é percebida apenas
rizam tradições culturais dos antepassados,
como objeto em si mesma, de trabalho
religiosas (ou não), recriando-as. Possuem
e de propriedade. Através de diversos
história comum, normas de pertencimento
saberes e concepções de mundo criados
explícitas, consciência de sua identidade ét-
e reelaborados no trabalho cotidiano
nica.
com a terra, homens e mulheres, camponeses migrantes (...) buscam que sua
Reviu-se e ampliou-se este conceito, por-
dignidade seja reconstruída, garantida
que manifestações culturais recriam-se em
e respeitada, para que possam também
sucessivas gerações. E a Fundação Instituto
transmitir a outras gerações uma obra,
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE
uma história.
(1980) conceituou terras de preto, no Mara-
Magalhães refere-se, na obra citada, a camponeses migrantes, cujo valor da terra não
difere para negros assentados há mais de
200 anos. A terra é o sustento, o alimento
que vai mantê-los vivos. Da terra e na terra se desenvolvem atividades vitais, plantio
e colheita, marcos históricos. Realizam as
tradições no chão de muitos anos na luta, o
que garantirá o direito de ser diferente sem
ser desigual frente à lei, sem receber a pecha
da marginalidade.
Frente à questão da terra no Brasil, nosso
nhão, como os quilombolas as chamavam:
As de nominadas terras de preto compreendem domínios doados, entregues
ou adquiridos, com ou sem formalização
jurídica, às famílias de ex-escravos, a
partir da desagregação de grandes propriedades monocultoras. Os descendentes de tais famílias permanecem nessas
terras há várias gerações sem proceder
ao formal de partilha e sem delas se apoderar individualmente (Censo Agropecuário, IBGE, 1980).
foco é a recente evolução do conceito de quilombo quanto às comunidades rurais negras.
Historicamente, no Brasil, em função da resposta do rei de Portugal à consulta do Con-
Conceito
selho Ultramarino (2 de dezembro de 1740),
define-se quilombo (ou mocambo) como
Quilombos contemporâneos são comunida-
“toda habitação de negros fugidos que pas-
des negras rurais habitadas por descenden-
sem de cinco, em parte despovoada, ainda
159
que não tenham ranchos levantados nem se
Como resultado de pressão dos movimen-
achem pilões neles”. Ramos noticia quilom-
tos, a luta para incluir na Constituição ter-
bos em data anterior:
ras ocupadas por descendentes de escravos
foi em parte consagrada no artigo 68, do Ato
A maioria dos historiadores brasileiros
das Disposições Constitucionais Transitó-
assinala a data de 1630 para o início dos
rias: “Aos remanescentes de quilombos que
quilombos que iriam constituir Palma-
estejam ocupando suas terras é reconhecida
res. Mas tudo leva a crer que as fugas de
a propriedade definitiva”. Em 1996, o presi-
negros escravos naquela região vinham
dente da República concedeu título de reco-
se dando em datas muito anteriores (RA-
nhecimento de domínio às comunidades de
MOS, 1971).
Pacoval e Água Fria, no Pará, cumprindo os
artigos 215 e 216 da Constituição e o artigo
Quilombo, vocábulo que designou, por mui-
68 do Ato das Disposições Transitórias. Pelo
to tempo, apenas acampamentos de escra-
Decreto-lei n. 3.912 (2001), a FCP (Fundação
vos fugidos, tem origem africana. Para Reis
Cultural Palmares), do MinC (Ministério da
(1996):
Cultura), pôde aplicar o artigo 68 e reconhecer mais comunidades. Em 2003, foi assina-
Quilombo derivaria de kilombo, socieda-
do o Decreto n. 4.887, que “Regulamenta o
de iniciática de jovens guerreiros mbun-
procedimento para a identificação, reconhe-
du, adotada pelos invasores jaga (ou im-
cimento, delimitação, demarcação e titula-
bangala), formados por gente de vários
ção das terras ocupadas por remanescentes
grupos étnicos desenraizada de suas co-
das comunidades dos quilombos de que tra-
munidades.
ta o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, que determina ser
Esta matriz histórica dos quilombos foi retomada para se referir às comunidades rurais
negras no Brasil. O conceito de quilombo
tem sido objeto de reflexão histórica e po-
o INCRA (Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária), do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o órgão competente
para emitir títulos de propriedade.
lítica desde os anos 70. O movimento negro
contribuiu significativamente para ressaltar
Comunidades rurais negras são objetos de
a importância do estudo dos quilombos na
constantes invasões de terras por fazendei-
história. Reificou o conceito, considerando
ros, porque os ocupantes não possuem do-
agrupamentos quilombolas como nichos
cumentos comprobatórios de propriedade,
culturais autônomos, pedaços da África no
embora essas ações também ocorram mes-
Brasil.
mo quando os possuem.
160
Remanescentes de quilombos vivem situa-
CARVALHO, José Jorge. O quilombo do Rio das
ção indefinida. Houve vitórias, mas não se
Rãs. Salvador: EDUFBA, 1996.
resolveu a questão. A visibilidade das comunidades aumentou, há mais grupos interes-
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de
sados em seu destino, mais estudos sobre o
Janeiro: Paz e Terra, 1975.
assunto, mas muito a fazer. Não foram feitos, ainda, levantamentos sistemáticos das
GOMES, Flávio S.; REIS, João J. Liberdade por
comunidades existentes e dos problemas
um fio: história dos quilombos no Brasil. São
jurídicos e sociais que enfrentam. No Mara-
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
nhão, com o Projeto Vida de Negro, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e o
MOURA, Gloria. Ritmo e Ancestralidade na
Centro de Cultura Negra, apoiados pela Fun-
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dação Ford e a Oxfam (Organização Oxford
vel da festa. Tese de doutorado. São Paulo:
para a Cooperação do Desenvolvimento),
USP, 1997 (mimeo).
em 45 municípios do estado, levantaram 401
terras de preto, designação usual na região
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para as comunidades rurais.
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Brasília publicou mapas de comunidades
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161
III. Saberes tradicionais de saúde1
Bárbara Oliveira2
As comunidades quilombolas encontraram
rezadeiras(os), benzedeiras(os), essas são
explicações e soluções para os distúrbios
pessoas muito presentes na estrutura social
de saúde do dia-a-dia e para os elaborados
dessas comunidades.
processos do ato de dar continuidade à vida.
O nascer, para muitos quilombolas, é um
Os quilombolas depositam a esperança da
evento familiar e coletivo, desde que se des-
solução de diversas enfermidades, além de
locaram e resistiram ao sistema escravista
auxílio no processo da procriação, nessas
e, posteriormente, à sociedade nacional que
pessoas. Esse trabalho, em especial o das
não os incorporou de modo efetivo.
“remedieiras” e das parteiras, remete-se às
mulheres. Elas representam a continuida-
Os saberes tradicionais e os costumes, pas-
de dos ensinamentos de suas ancestrais.
sados e perpetuados através das gerações,
As mulheres que atuam nos cuidados e nos
historicamente estruturaram o ciclo de vida
atendimentos às grávidas, parturientes,
das comunidades quilombolas e norteiam,
mães e crianças (e realizam contatos mais
atualmente, a estrutura social. Hoje em dia,
permanentes e intensos com as famílias)
em grande parte das comunidades quilom-
são, a partir dessas relações sociais, legiti-
bolas do país, há pessoas que tradicional-
madas como lideranças e referências em
mente dominam o conhecimento acerca de
muitas comunidades quilombolas.
rezas curadoras e de ervas e remédios concebidos de forma tradicional, e pessoas que
Detentoras de conhecimento tradicional de
detêm enorme saber sobre o processo re-
saúde, as parteiras têm suas atuações e tra-
produtivo e o parto. Mais conhecidas como
balhos tidos como ‘dádiva divina’. Partici-
parteiras,
pam de modo efetivo dos núcleos familiares
remedieiras,
curandeiras(os),
1Educação Quilombola – 2007 / PGM 2.
2 Mestre em Antropologia pela UnB. Consultora na Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais
na SEPPIR.
162
como referências muito próximas. As partei-
atuam. Na pesquisa realizada junto às par-
ras estão ligadas diretamente ao ciclo vital
teiras Kalunga3, foi possível observar a im-
da comunidade, são tratadas como mem-
portância da ancestralidade nesse trabalho.
bros das famílias das mulheres a quem pres-
As parteiras sempre se remetem à Brigda4,
tam auxílio. Além de grande proximidade fa-
referência ancestral que estrutura a organi-
miliar, há toda a aura de autoridade de fala e
zação do trabalho e dá força às mulheres.
de ação que cerca essas representantes dos
Em geral, nenhuma parteira presta auxílio,
saberes tradicionais.
sozinha, a uma parturiente. Isso ocorre apenas em situações em que o parto progride
A resistência, que marca tão profundamen-
rápido demais. Nesses casos, não há tempo
te as comunidades quilombolas, se expressa
para chamar uma ‘cumpanheira’ e acaba
nas práticas autônomas de saúde, uma vez
sendo uma atuação solo. Caso o processo
que “o nascer” e “o morrer” se davam, e em
do parto aconteça de forma costumeira,
muitas comunidades ainda se dão, no âm-
conta-se com a presença de várias mulheres.
bito do próprio grupo, a partir de sua cos-
E cada uma tem uma função específica no
movisão. Clóvis Moura (1981) ressalta que o
parto, assim como tem também o marido,
quilombo foi, incontestavelmente, a unida-
o(a) filho(a) mais velho(a), a mãe da partu-
de básica de resistência dos negros escravi-
riente, a vizinha, a benzedeira.
zados. O vínculo das comunidades quilombolas com sua historicidade, baseada em
Um dos aspectos importantes desse traba-
resistência e luta, é um aspecto fundante do
lho conjunto é a transmissão de conheci-
universo simbólico e da consciência coletiva
mento e o aspecto pedagógico dessa atua-
dessas comunidades. As práticas e saberes
ção. A tradição oral envolve, há gerações, o
relacionados à saúde têm íntima relação
conhecimento sobre o parto, os remédios
com esse processo.
tradicionais, as plantas, as garrafadas e o
benzimento.
A passagem desse conheci-
O trabalho dessas pessoas, que são referên-
mento segue vários critérios de escolha. Os
cia em saúde nas comunidades quilombolas,
saberes em relação ao parto, dominados, por
em especial o das parteiras, se dá de modo
exemplo, pela “parteira veia”5, são passados
coletivo, a partir de todo o universo cultural
a algumas escolhidas. Essa seleção não se-
que permeia as comunidades em que elas
gue rigorosamente o parentesco direto. A
3 SOUZA, Bárbara O. Parteiras Kalunga: os saberes tradicionais e os processos de medicalização do parto.
Universidade de Brasília, 2005, 117p.
4
Parteira, matriarca dos Kalunga, que é grande referência entre as parteiras. Pelos relatos orais, viveu na
região há três gerações.
5 Mais experiente e sabedora das práticas.
163
“escolhida” pode ser uma sobrinha ou uma
Carlos Zolla, citado por Gordilho e Bonals
parenta distante da parteira. O importante é
(1994), define parteiras como “terapeutas
que a pessoa escolhida tenha o ‘dom’, ‘dado
tradicionais” que atuam em sua comuni-
por Deus’, e a partir daí, muita dedicação
dade e possuem reconhecimento social de
para acompanhar e auxiliar a “parteira veia”
seus conhecimentos, habilidades ou facul-
e ir acumulando conhecimento e experiên-
dades curativas. Pinto (2002) configura as
cia para, aos poucos, lidar com o processo
parteiras como “mulheres fortes, destemi-
de gravidez, parto e puerpério. Todo esse ci-
das, independentes e valentes (…). São mães,
clo de transmissão de conhecimento entre
esposas avós, comadres, que aprenderam
as parteiras está no âmbito da oralidade:
com suas antepassadas a desempenhar afazeres tanto no mundo natural, executando
“Quem me ensinou foi minha avó e mi-
as mais diversificadas formas de trabalho,
nha bisavó. Sempre que elas saíam, saí-
como no plano sobrenatural, benzendo, re-
am comigo, saía mais elas, elas me ‘en-
citando rezas e invocando encantarias, para
sinava’. Saía de lá e elas tornava a me
obter ajuda na hora do parto e curar os ma-
ensinar. Tudo de ‘có’, de cabeça, não ti-
les de seu povo” (p. 441 e 442).
nha nada de letra nenhuma” (Maria Pereira, parteira Kalunga).
O trato tradicional de plantas, de ervas curadoras e do corpo vem sendo construído ao
É importante traçar um perfil de quem são
longo de séculos nas comunidades quilom-
essas mulheres que atuam com o nascer,
bolas de todo o país. Muitos conhecimentos
com as ervas, raízes e rezas. Primeiramente,
e sabedoria estão envolvidos nas práticas
são mulheres, que já deram a luz – muitas
das remedieiras(os), das curandeiras(os),
vezes realizando seu próprio parto –, são ori-
das rezadeiras(os) e das parteiras quilombo-
ginárias da própria comunidade e atendem
las. A importância dos conhecimentos qui-
a mulheres quilombolas, principalmente
lombolas em relação ao bioma no qual estão
nas últimas semanas de gravidez, durante o
inseridos perpassa toda essa tradição. Há
parto e parte do puerpério. Sua atenção com
muito que aprender com as comunidades
as mulheres nesse período é estruturada a
quilombolas que vivem há séculos em várias
partir de práticas de saúde baseadas nos co-
regiões do país e mantêm uma relação har-
nhecimentos tradicionais, que lhes foram
moniosa com as plantas e os animais.
transmitidos através do “dom divino” (dado
por Deus) e do acompanhamento de partei-
A partir de suas vivências e saberes adquiri-
ras mais experientes.
dos na relação com o meio ambiente, estrutura-se uma enorme riqueza de conhecimen-
164
tos relacionados ao bioma e ao corpo, com
centrais no processo de regulamentação das
ênfase nas plantas, raízes e outros elementos
práticas de saúde nas comunidades.
curadores. É uma relação histórica e íntima
estabelecida com o ambiente, pois conheci-
São fatores que dialogam também com os
mentos fitoterápicos e sobre plantas medici-
movimentos de expansão do projeto de Es-
nais existem nas comunidades há gerações.
tado, no sentido de homogeneizar práticas,
controlar corpos e processos orgânicos,
Cabe ressaltar que os saberes das comuni-
como o nascer e o morrer. Nesse processo de
dades quilombolas e de outros povos tradi-
“conquista”, a construção do “outro” pres-
cionais, sobretudo nos últimos anos, têm
supõe também a busca pela sua assimilação
atraído o interesse de empresas, muitas ve-
e pela expansão do “nós” civilizador (SOUZA
zes estrangeiras, e podem se tornar alvo de
LIMA, 1995).
biopirataria. Para proteger as comunidades
tradicionais desse tipo de ameaça, os prin-
O processo de ressemantização de valores
cípios de proteção e compensação pelo uso
e costumes de saúde faz parte de uma ló-
do patrimônio genético foram estabelecidos
gica ampliada de relações de poder, de ne-
na Convenção sobre Diversidade Biológica,
gociação identitária, de assimilações do
assinada durante a Eco 92. Na prática, entre-
“novo”, a partir de contatos interétnicos e
tanto, muita coisa ainda ocorre sem que se
de reafirmações do que é tido como ‘tradi-
efetive o acordado na Convenção.
cional’. Nesse sentido, a importância das
parteiras, remedieiras(os), curandeiras(os) e
Outro aspecto é o processo de medicalização
rezadeiras(os) para as comunidades quilom-
crescente que se impõe sobre essas comu-
bolas e a continuidade de suas atuações têm
nidades, com vistas a normatizar o parto e
vínculo com o confronto entre estes distin-
as práticas de saúde, a partir da perspectiva
tos significados para a identidade quilombo-
biomédica. As diversas intervenções e rela-
la, e em como esses fatores se configurarão
ções estabelecidas entre o Estado e as comu-
nas relações de poder externas e internas.
nidades quilombolas, potencializadas nas
últimas décadas, estabeleceram processos
A organização das comunidades quilombo-
de ressemantização de costumes, práticas e
las é importante no processo de valorização
tradições, e estes têm influência direta so-
dos saberes tradicionais de saúde. A educa-
bre o remanejamento social, político e cul-
ção também é fundamental na preservação
tural da comunidade. São fatores que inci-
da cultura quilombola e, nesse caso, dos
dem sobremaneira na atuação das parteiras
saberes tradicionais de saúde. Para que a
e “remedieiras” e se colocam como objetos
cultura quilombola se fortaleça, são neces-
165
sários espaços para frutificar e fortalecer
da comunidade na qual a escola está envol-
essas práticas. As comunidades têm o direi-
vida, cabe ressaltar que elaborar currículos
to de ficar onde sempre estiveram. Além do
capazes de responder às especificidades e à
direito à terra, cabe refletir também sobre
pluralidade da identidade brasileira é funda-
a educação e o currículo escolar e sobre
mental.
a relação que a cultura quilombola e os
conhecimentos tradicionais de saúde têm
REFERÊNCIAS
com eles.
Os conhecimentos tradicionais de saúde (sejam eles quilombolas, indígenas, caiçaras,
de terreiro, dentre outros) são pouco estudados e não compõem de forma expressiva
os materiais didáticos de nossas escolas.
Portanto, apesar de serem fundamentais
para muitos povos, são concebidos como
inferiores, ou mesmo ultrapassados. Acredito que temos muitas coisas a aprender com
esses saberes e, por isso, é fundamental conhecer mais sobre esse universo.
Nós, professoras e professores, temos, portanto, um desafio grandioso à frente, que é
o de “desenvolver, na escola, novos espaços
pedagógicos que propiciem a valorização
das múltiplas identidades que integram a
GORDILHO, Bárbara Cadenas; BONALS, Leticia Pons. O trabalho das parteiras em comunidades indígenas mexicanas. In: COSTA,
Albertina de Oliveira; AMADO, Tina. (Orgs.)
Alternativas Escassas: saúde, sexualidade e
reprodução na América Latina. São Paulo:
Prodir / FCC – Rio de Janeiro: Editora 34,
1994.
MOURA, Gloria. O direito à diferença. In:
MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo
na escola. Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
MOURA, Clovis. Rebeliões na Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo,
Editora Ciências Humanas, 1981.
identidade do povo brasileiro, por meio de
um currículo que leve o aluno a conhecer
PINTO, Benedita Celeste de M. Vivências co-
suas origens e a se reconhecer como brasi-
tidianas de parteiras e ‘experientes’ do To-
leiro” (MOURA, 2005, p. 69).
cantins. In: Estudos Feministas, vol. 10, n. 2,
Florianópolis, UFSC, 2002.
Portanto, nessa discussão sobre saberes tradicionais de saúde, tendo como eixo os va-
REDE FEMINISTA DE SAÚDE. Dossiê: Humani-
lores e práticas culturais dos estudantes e
zação do Parto. São Paulo, 2002.
166
SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um gran-
calização do parto. Universidade de Brasília,
de cerco de paz: poder tutelar, indianidade e
2005. 117p.
formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1995.
SOUZA, Bárbara O. Parteiras Kalunga: os saberes tradicionais e os processos de medi-
VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do
corpo feminino. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz,
2002.
167
IV. Organização social
educação não-formal1
e festas como veículos de
Verônica Gomes2
Formação de Associações e
Organização Política
dos direitos garantidos em lei, imprescindíveis à sua luta, os (as) quilombolas poderão
exigir a garantia de seus direitos de forma
As comunidades remanescentes de quilombos no Brasil buscam, cada vez mais, o reconhecimento de seus direitos, a valorização de
sua cultura, a afirmação de sua identidade e
uma maior participação na sociedade envolvente. Para tanto, é necessário que sejam integradas à sociedade brasileira, do ponto de
vista sociopolítico e econômico, por meio de
políticas públicas, uma vez que elas são alvo
de diferentes formas de discriminação e privação dos direitos humanos fundamentais.
efetiva, intervindo e participando de forma
mais qualificada.
Assim, para que se consolide o Estado Democrático de Direito, a representação quilombola deve estar organizada em associações,
como já ocorre, pois no âmbito organizacional, os quilombolas, por meio de suas
associações comunitárias, clube de mães,
associações de trabalhadores rurais, dentre
outras, vêm se auto-reconhecendo como remanescentes de quilombos e fortalecendo
Do ponto de vista geopolítico-administrati-
a sua luta pela titulação dos territórios. No
vo, as comunidades quilombolas pertencem
âmbito nacional, desde 1995, os movimentos
a diversos municípios, entretanto, as iden-
sociais quilombolas também vêm se organi-
tidades negras revelam-se firmemente en-
zando na Conaq – Coordenação Nacional de
raizadas nos diversos territórios históricos e
Quilombos, a partir das associações locais,
geográficos bem delimitados.
nos municípios e nos estados-membros. Porém, se essas associações, antes, tinham um
Com o domínio de informações acerca dos
certo nível de informalidade, hoje a exigên-
direitos humanos, das políticas públicas e
cia é que se constituam de maneira formal
1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 3.
2 Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. Integrante da equipe técnica do Projeto de Apoio a
Comunidades de Quilombo no Brasil – PROACQ.
168
e jurídica. A organização política implica a
des, há um forte apelo ao reconhecimento
compreensão dos instrumentos políticos,
dessa identidade.
dos marcos regulatórios, passa pela formalização de saber empírico em um saber mais
O significado pedagógico deste tipo de pos-
formal de representação política. As organi-
tura pode ser avaliado à luz de análise feita
zações sociais são importantes como parte
por Paulo Freire, que propugnava a esperan-
do controle social das políticas públicas e as
ça como valor fundamental para o indivíduo,
organizações sociais quilombolas são partes
com a crença de que pode ser construída
integrantes desse universo.
uma comunidade de significados em torno
Enquanto o Estado brasileiro não assegurar
aos quilombolas o recurso básico essencial
– a sua territorialidade – os movimentos
sociais deverão reforçar a importância dos
quilombolas na qualidade de sujeitos sociais
que, por meio de ações políticas, fazem valer suas reivindicações e direitos.
Festas
de experiências básicas da vida humana de
que todos compartilhem (FREIRE, 1975).
Trata-se de um saber que vai sendo transmitido e assimilado de forma lenta e permanente, dando oportunidade de reflexão
sobre a necessidade de mudança, sempre
que as circunstâncias o exigirem, para que a
comunidade possa adequar-se às novas condições do momento. É durante os rituais que
os valores que a comunidade reputa essen-
Quando se constata a riqueza criativa das
ciais se condensam e são reafirmados e rene-
vivências dos moradores das comunidades
gociados, constituindo, assim, um currículo
remanescentes de quilombos, principalmen-
invisível através do qual são transmitidas as
te dos mais velhos, no que diz respeito ao
normas do convívio comunitário. Sem uma
uso das ervas medicinais, no modo de traba-
intenção explícita, este currículo invisível
lhar a terra, de tirar dela seu sustento, nas
vai sendo desenvolvido, dando às crianças o
linguagens gestuais, na música, nas festas,
necessário conhecimento de suas origens e
no modo de se divertir, de cantar, dançar
do valor de seus antepassados, mostrando
e rezar vê-se a importância de ter acesso a
quem é quem no presente e apontando para
esse conhecimento. É esse conhecimento
as perspectivas futuras.
que constitui o contexto em que se tecem
as teias de significados que recriam inces-
Currículo invisível é a transmissão dos valo-
santemente sua cultura e sua identidade
res, dos princípios de conduta e das normas
contrastiva, isto é, a afirmação da diferença.
de convívio, ou, numa palavra, dos padrões
Nas práticas dos moradores das comunida-
socioculturais inerentes à vida comunitária,
169
de maneira informal e não explícita, permi-
a não esmorecer na árdua luta pelo reco-
tindo uma afirmação positiva da identidade
nhecimento de suas terras, que animam a
dos membros de um grupo social.
comunidade a fortalecer os laços comunitários participando das associações, que se
A construção desse currículo invisível cons-
informam e repassam para os comunitários
titui, assim, um processo histórico, no qual
essas informações, novos saberes e formas
a linguagem e, em especial, as linguagens
organizativas, fomentando redes de multi-
musicais e corporais, desempenham um pa-
plicadores que revelarão novas lideranças.
pel essencial.
Gênero
Lideranças
Vale salientar o papel da mulher quilombola
As lideranças exercem um papel transformador junto às suas comunidades, atuam
politicamente em favor delas e estão engajadas em projetos sociais e culturais. Há uma
percepção geral de que é preciso buscar um
novo espaço de diálogo com o Estado e de
que é essencial fazer algo com mais consistência e consequência política.
Existem características básicas para que um
indivíduo possa se tornar um líder, tais como
visão, integridade, conhecimento da realidade, autoconfiança, maturidade, capacidade
para ouvir e dialogar e disposição/vontade de
assumir riscos, dentre outros. Os líderes são,
na organização da comunidade. Historicamente, citamos a ocorrência do movimento da Balaiada (1838 - Maranhão) no qual,
apesar das lideranças da Balaiada serem homens, as mulheres tiveram um papel muito
importante na luta, que foi a de GUARDIÃS
DAS COMUNIDADES.
Cuidando das criações, da agricultura, das
filhas, dos idosos, dos recursos naturais, providenciando os alimentos para os refugiados,
escondendo-os, orientando crianças sobre
a luta, rezando, curando com ervas medicinais, as mulheres foram e continuam sendo
peças fundamentais na luta quilombola.
em regra, pessoas muito persistentes, com
Além do trabalho diário que fazem na roça e
grande carisma, motivadas pelo seu instinto
que sustenta sua família, também cumprem
e detentores da capacidade de decidir.
jornada como professoras, agentes de saúde, parteiras, quebradeiras de coco, dentre
No âmbito das comunidades remanescentes
outras atividades.
de quilombos, os mais velhos, as mulheres,
ou um conselho de mais velhos constituem-
Atualmente, muitas mulheres quilombolas
-se nas lideranças que levam a comunidade
estão organizadas em associações, exercen-
170
do cargos de tomada de decisão, cumprindo
DEMO, Pedro. Introdução à Sociologia – com-
mandato político ou engajadas em coorde-
plexidade, interdisciplinaridade e desigual-
nações de mulheres quilombolas.
dade social. São Paulo: Editora Atlas S.A.,
2002.
REFERÊNCIAS
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ALMEIDA, Alfredo. Nas Bordas da Política Ét-
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nica: os quilombos e as políticas sociais. Texto
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apresentado XXIV Reunião Brasileira de An-
ca Social do Departamento de Serviço Social
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da Universidade de Brasília. Vol. 3, julho a
2004.XXIV Reunião Brasileira de Antropolo-
dezembro, 1998.
gia – “Nação e Cidadania”. Recife, 2004.
MOURA, Gloria. Ritmos e ancestralidade na
CASTRO, Alba Tereza Barroso de. Espaço Pú-
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blico e Cidadania: uma introdução ao pensa-
do. São Paulo: USP, 1997.
mento de Hannah Arendt. In: Serviço Social e
Sociedade – Revista Quadrimestral de Servi-
_______________. Curso de Direitos Huma-
ço Social da Universidade de Brasília. Tema:
nos – Formação Política para Quilombolas –
Espaço Público, Cidadania e Terceiro Setor.
orientações para reuniões de multiplicação.
Ano XX, nº 59, Brasília, março 1999.
Brasília: IbrAP/PROACQ , 2007, mimeo.
171
V. Kalunga, escola e identidade – experiências
inovadoras de educação nos quilombos1
Ana Lucia Lopes2
Introdução
historiador Flávio Gomes, uma intensa rede
de relações econômicas e sociais, que possi-
Ao se falar em quilombos, no Brasil, as pa-
bilitava a manutenção dos quilombos e, ao
lavras fuga, resistência e liberdade apare-
mesmo tempo, as fugas faziam parte de es-
cem imediatamente no imaginário que te-
tratégias montadas pelos escravizados, que
mos acerca do tema. Estudos recentes3 têm
incluíam até esconder escravos em fazendas
mostrado que novos conceitos devem ser
vizinhas, o que significava haver um circuito
incorporados à nossa compreensão do que
de comunicação entre escravos nas fazen-
venham a ser os quilombos e sua história
das e quilombolas.
em nosso país.
No caso dos Kalunga, território quilombola
Primeiro conhecido por mocambo (entre os
formado no final do século XVIII, na região
séculos XVI e XVII), o nome quilombo desig-
da Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás, a
nava grupos acima de três escravos fugidos.
memória dos mais velhos relembra histórias
Muitos foram os quilombos ao longo da nos-
contadas pelos seus antepassados a respeito
sa história, e entre eles, Palmares é conside-
de incursões, que chegavam a durar cerca
rado um símbolo. O isolamento geográfico
de um ano, quando iam até Belém para con-
de grande parte dos quilombos não estava
seguir, entre outras coisas, sal ou panelas de
acompanhado da distância social e econô-
ferro. A importância e os desafios dessas via-
mica entre os quilombolas, os escravos, os
gens eram tais que, quando as embarcações
libertos e os indígenas. Havia, segundo o
saiam, os foliões do Divino vinham para can-
1Educação Quilombola – 2007 / PGM 4.
2
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Co-autora de Uma história do povo Kalunga.
Livro de leitura e Caderno de Atividades - primeiro projeto pedagógico para escolas em comunidades remanescentes
de quilombos. Brasília, MEC/UNESCO, 2001.
3 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.) Liberdade por um fio. História dos Quilombos no Brasil. São
Paulo, Cia. das Letras, 1996.
172
tar, invocando o Espírito Santo na proteção
de terceira e quarta séries de uma comuni-
dos viajantes. Eles levavam farinha, arroz,
dade remanescente de quilombo localizada
feijão, carne de gado salgada, pena de ema
em Goiás – os Kalunga. As questões envol-
e ouro, para vender ou trocar pelo que ne-
vidas nesse pedido baseavam-se em obser-
cessitavam4. Esse é um exemplo, que a me-
vações etnográficas que davam conta de
mória de quilombolas confirma, da comple-
um processo discriminatório abusivo que
xa rede de relações entre os moradores dos
as crianças Kalunga sofriam quando iam
quilombos e outros grupos sociais.
estudar nas escolas fora da área quilombola. Essas escolas ficavam nas sedes dos mu-
Assim, há muito que pesquisar e aprender
nicípios vizinhos e ofereciam os cursos de
sobre a história dos quilombos, para além da
quinta a oitava séries, já que as escolas da
fuga e da resistência. Atualmente, a situação
região Kalunga só tinham classes de primei-
das diversas comunidades remanescentes de
ra a quarta séries, em sua grande maioria
quilombos nos traz questões, entre as quais
multisseriadas e com professoras leigas.
a da identidade, do pertencimento, da posse
da terra, da educação, da saúde, do trans-
Frente a esse quadro, a questão da autoesti-
porte, do desenvolvimento sustentável, que
ma e da identidade positiva Kalunga deveria
não podemos deixar de discutir, inclusive na
ser o eixo orientador do conteúdo dos livros
pauta das políticas públicas.
solicitados pelo MEC. Os registros de uma
pesquisa de recorte etnográfico que havia
Neste sentido, o texto se propõe a refletir sobre uma experiência de educação, na região
Kalunga, que considerou os temas acima citados.
sido realizada nas escolas por pesquisadores
da Universidade de Brasília - UnB, além de
uma série de materiais acerca da história da
comunidade Kalunga e suas principais questões atuais, foram colocados à nossa dispo-
Escola e Identidade
sição; entre eles, contamos com desenhos e
cadernos de lição dos alunos, que nos foram
Nos últimos meses do ano 2000, recebi o
entregues.
convite para integrar uma equipe responsável por conceber e escrever, a pedido da
Em primeiro lugar, tratava-se de saber que
Secretaria de Ensino Fundamental do MEC,
concepção pedagógica conduziria à elabo-
dois livros didáticos destinados aos alunos
ração dos livros e, a partir dessa reflexão,
4GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos. Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no
Brasil. São Paulo, Editora UNESP & Editora Polis, 2005
173
ao considerar a realidade da sala de aula
to de fora. Eles sabiam que precisavam am-
Kalunga, propus uma alteração do projeto,
pliar os seus recursos, e o nosso dilema era
na perspectiva pedagógica. Ao invés de dois
o de trazer um repertório de conhecimen-
livros didáticos, um para a terceira e outro
tos novos, mas fazendo com que, ao mesmo
para a quarta séries, escreveríamos dois li-
tempo, os conhecimentos por eles produzi-
vros, sendo um deles um livro de história, e o
dos não perdessem lugar para a novidade de
outro, um caderno de atividades. A proposta
fora. Nosso trabalho se construiu na tensão
era contemplar todos os alunos de uma clas-
entre a valorização do conhecimento Kalun-
se multisseriada com conteúdos que disses-
ga produzido historicamente e o direito de
sem respeito à autoestima, à identidade e à
acesso ao conhecimento do novo por eles
valorização do patrimônio cultural por eles
reivindicado.
construído. Não fazia sentido, de um ponto
de vista pedagógico vinculado estreitamente
Depois de alguns meses de trabalho inces-
a uma abordagem antropológica de educa-
sante, o material ficou pronto. Vale lembrar
ção, tratar de autoestima com uns, enquan-
que, nesse processo, pudemos contar com a
to outros, no mesmo momento, faziam as
colaboração de diversas pessoas e institui-
lições tradicionais.
ções, que prontamente nos acudiram quando faltavam referências sobre determinados
A equipe reescreveu o projeto, consubstan-
aspectos da vida e da história Kalunga, o que
ciado desta vez em uma perspectiva antro-
evidenciava ainda mais a relevância do Pro-
pológica e pedagógica, e o encaminhou aos
jeto Vida e História Kalunga, que originou o
responsáveis no Ministério da Educação, que
livro Uma história do povo Kalunga 5, acompa-
concordaram com a nova justificativa e seus
nhado do Caderno de atividades e do encarte
argumentos. Passamos a estudar profunda-
de orientação pedagógica para o professor.
mente a comunidade Kalunga, para então
Nesse encarte, procuramos estabelecer com
escrevermos um livro de leitura, um cader-
os professores, que em grande parte eram
no de atividades e um encarte para o profes-
professores leigos, um diálogo a distância,
sor, que contemplassem questões curricula-
como uma carta informal que lhes enviás-
res de primeira a quarta séries, em diálogo
semos, para início de conversa... Talvez valha
com conteúdos referentes à identidade e ao
a pena transcrevê-la aqui, pois ela resume
pertencimento, e que trouxessem, segundo
o espírito com que todo o trabalho foi rea-
pedido dos próprios moradores, conhecimen-
lizado.
5MONTES, Maria Lucia e LOPES, Ana Lucia. Uma história do povo Kalunga. Brasília, MEC/UNESCO, 2001.
174
Caro Professor
nenosas e daquelas que curam. E existem
ainda outros “capítulos” que tratam dos
Gostaríamos de conversar com você so
números e das contas e são chamados
bre uma história – aliás, uma longa his-
de Matemática, outros que tratam dos
tória – da qual você é um contador.
mapas, dos países e dos Estados. Outros
tratam da leitura, da escrita, do desco-
Nós, professores, somos, na verdade,
brimento do Brasil, da Independência.
contadores de história. Contamos a his-
Nós, professores, temos essa função ma-
tória da humanidade para nossos alunos.
ravilhosa, nos tempos de hoje, que é a de
Nisso nós nos parecemos com os “mais
contar essa história e ensinar, em poucos
velhos” de uma tribo indígena ou de ou-
anos, conhecimentos importantes que le-
tras civilizações antigas, que tinham o
varam milhares de anos para serem cons-
conhecimento das coisas da natureza
truídos.
e dos seres vivos, das coisas sagradas e
dos valores que dão sentido à vida e que
Você já parou para pensar em quantos
passavam esse conhecimento aos mais
anos a humanidade levou para descobrir,
jovens, sendo por isso muito respeita-
inventar e aprender tudo aquilo que hoje
dos. Só que a história que nós contamos
ensinamos nas escolas? Quantos homens
não é a história de um só povo. Temos
não sobreviveram a venenos de plantas
a missão de contar a história de muitos
até descobrirem que muitas delas po-
povos, em tempos diferentes, e que tam-
diam curar e se transformar em remé-
bém tiveram modos diferentes de viver.
dios feitos nos laboratórios? Como foi que
aprenderam a domesticar alguns ani-
Esta é a história da humanidade que nós
mais, que passaram assim a auxiliá-los
contamos hoje. É uma tarefa muito gran-
na luta diária pela sobrevivência? Quanto
de, pois ninguém conhece essa história
tempo o homem andou pelo mundo sem
inteira e por isso nós costumamos dividi-
mapas para orientá-lo nas rotas de suas
-la em “capítulos”. Às vezes os “capítulos”
viagens e como surgiram os primeiros
dessa história que ensinamos são chama-
mapas? Certamente, o homem observava
dos de Português, História, Geografia.
a natureza, o céu, de noite e de dia, os
Outras vezes recebem outros nomes,
mares, os ventos, as chuvas. Mas demo-
como Ciências, por exemplo, quando
rou muito tempo para que, observando o
tratamos do ar, dos animais selvagens e
que acontecia na natureza, comparando
dos animais domésticos, das plantas que
um dia com outro, uma noite com ou-
usamos como alimento, das plantas ve-
tra, a posição da lua, dos planetas e das
175
estrelas, o ciclo das estações, ele pudes-
nossa vida e ao longo de vários anos de
se concluir que essas coisas se repetiam
experiência, ensinando nossos alunos.
com regularidade e podiam indicar quan-
Mas o que faz de nós professores é esse
do plantar e colher e servir para orientar
compromisso de ensinar o que aprende-
suas rotas de viagem. Foi então que ele se
mos, e é por isso que precisamos apren-
tornou capaz de expressar tudo isso na
der sempre e sempre mais. Precisamos
forma de desenhos e da escrita, inventan-
fazer isso para que nossos alunos sejam
do todo esse conjunto de conhecimentos
capazes de se lembrar no futuro dessa
que temos hoje.
história que lhes ensinamos, como nós
nos lembramos do que aprendemos com
Falando assim, até parece que o profes-
outros que nos ensinaram. Como para
sor deve saber tudo sobre todas as coisas
nós hoje, também para eles, no futuro,
do mundo. Impossível. Essa história da
esses conhecimentos serão necessários
humanidade tem muitos e muitos “capí-
em sua vida.
tulos” e naturalmente nós não os conhecemos todos. Mas nós, professores, pre-
Este livro com o qual você vai trabalhar
cisamos querer saber sempre mais sobre
de agora em diante, Uma história do
esses conhecimentos que são os capítu-
povo Kalunga, é um pequeno capítulo
los dessa história e sobre como ensinar
dessa história grande da humanidade
tudo isso aos nossos alunos. Porque o
que ensinamos. Mas é um capítulo mui-
homem foi transformando a natureza e
to importante e que deve ser aprendido
seu modo de se relacionar com ela e com
com carinho, porque ele irá servir de
os outros homens. E é por causa dessas
base para você ensinar aos seus alunos
transformações que nós temos que pen-
outros capítulos daquela história maior.
sar também que às vezes é necessário
E, sobretudo, porque os alunos que irão
mudar o nosso jeito de ensinar. Porque
aprender tudo isso são as crianças do
só assim poderemos ir sempre encon-
povo Kalunga e as que vivem nos municí-
trando uma forma cada vez melhor de
pios de Cavalcante, Monte Alegre de Goi-
contar para os alunos essa grande histó-
ás e Teresina de Goiás, onde está situado
ria que não paramos nunca de aprender.
o território Kalunga. É por isso que esse
livro é também uma história que nós
Sem dúvida, nós, que somos professo-
contamos e que vocês vão contar aos
res, já aprendemos muito e precisamos
seus alunos. Uma história do povo Ka-
reconhecer o valor daquilo que sabe-
lunga. Quem é Kalunga sabe. Quem não
mos, daquilo que fomos aprendendo em
é Kalunga precisa aprender.
176
O livro de leitura foi desenvolvido como uma
As unidades que organizaram o Caderno de
história que estivesse sendo narrada, sobre
Atividades se referiam aos temas percebidos
a saga de um povo descendente de quilom-
nas entrevistas, que muitas vezes revelaram
bolas que, ao longo da sua história, foi capaz
tensões vividas por eles, a ampliação de co-
de construir uma identidade própria e um
nhecimentos e as competências dos alunos.
patrimônio cultural que deveria ser conhe-
Por exemplo, o trabalho proposto com ma-
cido e valorizado. O Caderno de atividades
pas, partiu de dois eixos; a facilidade que ti-
foi organizado de modo a garantir a parti-
nham em desenhar na perspectiva vertical
cipação dos alunos de todas as séries, da 1a
e a necessidade de aprender sobre mapas
à 4a série. Ele tinha a função de recuperar
em função da questão da posse da terra. São
e retomar os conteúdos do livro de leitura.
quatro as unidades: 1) Olhar o mundo; 2) Nós
Cada atividade começava com um trabalho
no mundo; 3) Perto e longe; 4) O passado en-
comum, a ser feito por todos os alunos. De-
contra o futuro e um encarte com um que-
pois, para cada série se pedia que os alunos
fizessem uma tarefa particular. Foi escolhida
uma cor para cada série, determinando-se
que a 1ª série seria amarela, a 2ª azul, a 3ª laranja e a 4ª verde. Em cada folha que tivesse
essa cor, o aluno encontraria a parte da atividade que correspondia à sua série e deveria
realizá-la sob a orientação do professor.
bra-cabeça do mapa do Brasil político.
Não abrimos mão da qualidade e da beleza do material, tanto para o livro de leitura
como para o Caderno de Atividades. Assumimos compromissos pessoais para garantir
que as crianças Kalunga vissem a sua imagem com dignidade e destaque, e para isso
contamos com fotógrafos que se tornaram
aliados e parceiros dessa nossa empreitada.
Como procedimento didático-pedagógico, o
Depois do material pronto, evidenciaram-se
Caderno de Atividades se orientou em séries
os resultados do nosso trabalho e muito nos
didáticas como possibilidade de abrir ao pro-
gratificou saber da reação positiva de orgu-
fessor unidades curriculares que contem-
lho e alegria das crianças e dos adultos, ao
plassem diferentes áreas do conhecimento.
se verem retratados com beleza e sofistica-
Os alunos retomariam o Caderno de Ativi-
ção. Tudo isso fazia parte da concepção do
dades nas séries seguintes, aprofundando o
projeto, que não separou forma de conteú-
conteúdo estudado, porém, na perspectiva
do, pois é isso que se espera de um trabalho
da série atual. Revisitar os conteúdos dentro
educacional que, fundado numa perspectiva
das novas condições das séries e faixas de
antropológica, busca refletir e fazer refletir
idade foi o princípio pedagógico orientador
sobre as relações que balizam a construção
desse livro.
de identidades e a noção de pertencimento.
177
VI. Lei nº 10. 639/2003 e Educação Quilombola1
Denise Botelho2
Inclusão educacional e
população negra brasileira
A
partir
desses
instrumentos,
os(as)
gestores(as) podem contribuir para que a
escola transcenda a transmissão do conhe-
Aspectos da cultura afro-brasileira precisam
ser percebidos e explorados por todos e todas que participam do sistema educacional
brasileiro, como estratégia para minimizar
os preconceitos, as discriminações e o racismo que imperam em nossa sociedade e atingem, sobretudo, estudantes negros e negras
de nosso país. No campo das políticas públicas educacionais, contamos com dois marcos legais importantes para a inclusão da
população negra e, principalmente, para sua
cimento e seja, também, um espaço de reflexões críticas acerca dos processos de ensino/
aprendizagem de inclusão. Com base em práticas de gestão democrática, podem ainda
estimular que a ação dos(as) educadores(as)
possibilite a reelaboração dos conteúdos
curriculares, a análise reflexiva do contexto
sociorracial e a reelaboração de um saber direcionado para a cidadania (BOTELHO, 2000,
p. 14). Mesmo porque, cidadania supõe educar na e para a diversidade:
permanência no sistema educacional brasi-
(...) conhecer e valorizar a pluralidade do
leiro: o Artigo 26 da Lei de Diretrizes Bases
patrimônio sociocultural brasileiro, bem
da Educação Nacional (LDB), que estabelece
como aspectos socioculturais de outros
a obrigatoriedade do ensino de História e
povos e nações, posicionando-se contra
Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica;
qualquer discriminação baseada em di-
e a Resolução CNE n. 01/2004, que instituiu
ferenças culturais, de classe social, de
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
crença, de sexo, de etnia ou outras ca-
Educação das Relações Étnico-Raciais e para
racterísticas individuais e sociais (Brasil/
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasilei-
Secretaria de Educação Fundamental,
ra e Africana.
1998, p. 7).
1 Educação Quilombola – 2007 / PGM 5.
2
Professora no Departamento de Planejamento e Administração (PAD) da Faculdade de Educação da UnB.
178
Com efeito, as discussões em torno da edu-
ferentes fontes da cultura nacional a todos
cação inclusiva têm avançado e promovido
brasileiros” (Resolução CNE n. 01/2004).
a reversão de alguns paradigmas educacionais vigentes, a exemplo das adequações dos
espaços escolares para deficientes físicos, a
ampliação de vagas na Educação Indígena
e o fortalecimento da educação no campo.
Entretanto, no que se refere à educação
em prol da valorização da população negra brasileira, ainda se verificam inúmeras
resistências. Precisamos, pois, identificar
políticas públicas que atendam às necessidades desse contingente populacional, que
não se vê representado e valorizado nas experiências educacionais. No caso específico
da população remanescente de quilombos,
precisamos avançar muito mais, posto que,
entre os afro-brasileiros, esse grupo soma os
maiores índices de exclusão educacional.
Educar para a igualdade tem como pressuposto uma educação anti-racista3. E garantir
a equidade entre os diversos grupos étnico-raciais depende de inúmeras ações, entre
as quais conhecer e trazer, para o cotidiano
escolar, conteúdos que estimulem a participação de alunos e alunas negras como ato-
É importante que educadoras e educadores
estimulem seus alunos e alunas a reconhecerem a legitimidade dos diferentes saberes presentes na sociedade e perceberem
como cada grupo sócio-racial contribuiu
para a formação da identidade cultural do
país. Diante de uma população escolar educacional multirracial, como a brasileira,
mostram-se imprescindíveis novas práticas
didático-pedagógicas que re-signifiquem os
conteúdos curriculares e as atividades de
sala de aula, por meio de recursos diferenciados de ensino, como os presentes nas comunidades quilombolas e quase sempre não
apropriados por educadores e educadoras
como alternativas didático-pedagógicas.
Mesmo com avanços significativos na área
educacional para as chamadas “minorias”,
a equidade étnico-racial em território brasileiro ainda necessita de várias ações sociopolíticas, isso para atingir o que preconiza a
Resolução n. 01/2004 do Conselho Nacional
de Educação, que versa sobre:
res sociais ativos, com a intencionalidade de
(...) valorização e respeito às pessoas
promover a igualdade de oportunidades e o
negras, à sua descendência africana,
exercício da cidadania, como prevê a legisla-
sua cultura e história. Significa bus-
ção brasileira, que garante “igual direito às
car compreender seus valores e lutas,
histórias e culturas que compõem a nação
ser sensível ao sofrimento causado por
brasileira, além do direito de acesso às di-
tantas formas de desqualificação: apeli-
3Educação que promova um convívio harmonioso entre os diferentes, não permitindo que os preconceitos
se concretizem em preconceitos manifestos, discriminações, xenofobias, sexismos e racismos.
179
dos depreciativos, brincadeiras, piadas
ciedade secularmente racista, na qual
de mau gosto sugerindo incapacidade,
técnicas de seleção profissional, cultu-
ridicularizando seus traços físicos, a
ral, política e étnica são feitas para que
textura de seus cabelos, fazendo pouco
ele permaneça imobilizado nas camadas
das religiões de raiz africana. Implica
mais oprimidas, exploradas e subalterni-
criar condições para que os estudantes
zadas (MOURA, 1994, p. 160).
negros não sejam rejeitados em virtude
da cor da sua pele, menosprezados em
Após a abolição da escravidão, uma aparen-
virtude de seus antepassados terem sido
te integração interétnica e inter-racial sus-
explorados como escravos, não sejam
tentou por muito tempo a ideia de uma de-
desencorajados de prosseguir estudos,
mocracia racial brasileira, o que dificultou a
de estudar questões que dizem respeito
percepção das práticas racistas no cotidiano
à comunidade negra (2002, p. 12).
e camuflou as condições perversas de desigualdades a que os negros foram e, ainda
Permanece, então, na ordem do dia a se-
estão, submetidos.
guinte pergunta: Como valorizar e respeitar
o contingente populacional afro-brasileiro
enfrentando as imagens preconceituosas
acionadas a partir do fato de que a maioria dos negros e negras brasileiros teve seus
ancestrais sequestrados de várias nações do
Continente Africano e as suas trajetórias terem sido subjugadas e escamoteadas da história oficial do país?
Responder a essa questão não é tarefa simples, é preciso pensar o contexto sócio-his-
Temos consciência da importância das várias iniciativas que vêm sendo realizadas em
território nacional em prol de uma sociedade étnico-racial realmente igualitária, mas
esperar que atitudes isoladas, fragmentadas
e de responsabilidade exclusiva dos negros
possibilitem uma transformação social eficaz nos parece ingenuidade. Sem o desenvolvimento de políticas públicas que privilegiem a igualdade nas relações raciais, tais
tórico do Brasil. Com a extinção do regime
como a adoção de reserva de vagas (cotas)
escravocrata no Brasil, o contingente popu-
em instituições de ensino superior, não
lacional negro não teve sua vida social ime-
acreditamos que, a médio ou longo prazos,
diatamente alterada, uma vez que foram li-
tenhamos resultados positivos no combate
bertos sem qualquer apoio socioeconômico,
ao racismo no Brasil.
sendo ainda obrigados:
Por que políticas de ações afirmativas para
(...) a disputar a sua sobrevivência social,
negros e negras brasileiros? Porque, ainda,
cultural e mesmo biológica em uma so-
são os negros o grande contingente popu-
180
lacional vivendo em condições socioeconô-
No campo educacional, é preciso salientar
micas precárias. Trata-se de uma herança de
que, por falta de ações pedagógicas per-
um processo de “libertação” da escravidão
manentes de valorização dos negros(as), o
desconexo e indiferente aos destinos dos
racismo tem tornado a escola um palco de
negros e negras libertos, sem assistência e
violências raciais. A legislação atual garante
garantias que os protegessem na transição
possibilidades de reversão do quadro. O Esta-
para o sistema de trabalho livre. O “liberto”
tuto da Criança e do Adolescente, em seu Ar-
ficou à mercê de sua própria sorte, tornan-
tigo 58, garante à criança e ao adolescente o
do-se responsável por sua pessoa e por seus
direito de desfrutar de sua herança cultural
dependentes, diferentemente dos emigran-
específica. A Constituição Federal estabele-
tes, que foram convidados a trabalhar em
ce que os conteúdos do Ensino Fundamental
terras brasileiras com direitos trabalhistas
devem assegurar o respeito aos valores cul-
garantidos e direito à moradia. Apesar de to-
turais (Artigo 210). A LDB determina que os
das as dificuldades, a população negra tem
projetos, programas e currículos assegurem
lutado arduamente para alcançar um status
o respeito às diferenças culturais, sociais e
de igualdade, de direitos de cidadania e para
individuais de todos aqueles que frequen-
que o racismo seja minimizado.
tam a escola, bem como estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Devemos lembrar que, historicamente, o
Afro-Brasileira na Educação Básica.
contingente populacional afrodescendente se
encontra vulnerável a processos discrimina-
O baixo nível de escolaridade da população
tórios, mantendo-se em situação social desfa-
negra retroalimenta sua exclusão do merca-
vorável e de subordinação aos demais grupos
do de trabalho, agravada pelas atuais mu-
sócio-raciais brasileiros (BOTELHO, 2000; SIL-
danças advindas do processo antidemocrá-
VA, 1995; HASENBALG E SILVA, 1988; ROSEM-
tico de mundialização econômica. Antigas
BERG, 1987; REGO, 1976). Para o equaciona-
reivindicações dos diversos segmentos e do
mento de tais disparidades, são necessárias
movimento negro organizado e a sensibili-
políticas públicas direcionadas aos afro-brasi-
dade de alguns gestores para a situação das
leiros em todos os segmentos sociais.
desigualdades raciais4 indicam a necessidade
4
A preparação para a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerâncias Correlatas realizada em Durban, África do Sul, no período entre 31 de agosto a 7 de setembro de 2001
deflagrou, no Brasil, diversos encontros, em todo território nacional, com o objetivo de desenhar propostas de
ações afirmativas para superar os problemas pautados pelos grupos representantes dos movimentos dos negros,
dos povos indígenas, das mulheres, dos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais . Ao final do encontro em Durban
foram redigidos uma Declaração e um Programa de Ação, com o controle social, pela sociedade civil para que os
resultados sejam respeitados e as medidas reparatórias sejam implementadas.
181
de implementação de políticas de ações afir-
Secretaria de Educação Fundamental,
mativas5 educacionais de forma prioritária.
1998, p.7).
A legislação educacional brasileira permite
É importante lembrar que ações afirmativas
que educadoras e educadores atuem para
são importantes para a garantia de uma so-
minimizar as desigualdades étnico-raciais
ciedade democrática. Contudo, muitas são
nos espaços educacionais. Inicialmente com
as resistências às políticas públicas educa-
os Temas Transversais e um exercício de boa
cionais dirigidas para a população afro-bra-
vontade e de consciência política, alguns
sileira. É preciso superar o baixo preparo de
educadores já abordavam as desigualdades
gestores e gestoras no trato dos problemas
étnico-raciais presentes na sociedade brasi-
sociais brasileiros e, em especial, aqueles
leira a partir dos pressupostos do tema da
relacionados com os chamados excluídos
“Pluralidade Cultural”. Desde 2003, a Lei n.
sociais – negros, quilombolas, mulheres,
10.639/2003, que altera a LDB estabelecen-
indígenas, deficientes físicos, pessoas com
do a obrigatoriedade do ensino de História
orientações sexuais diferenciadas e outros
e Cultura Afro-Brasileira na Educação Bá-
– para que a equidade racial e de gênero es-
sica, permite uma ação mais contundente
tejam de fato corporificadas na nossa socie-
para valorização da cultura negra brasileira
dade.
e africana. Para subsidiar esse exercício de
promoção de cidadania plena de todos e todas, é preciso compreender
REFERÊNCIAS
(...) a cidadania como participação so-
BOTELHO, D. M. Aya nini (Coragem). Educa-
cial e política, assim como exercício de
dores e Educadoras no enfrentamento de
direitos e deveres políticos, civis e so-
práticas racistas em espaços escolares. São
ciais, adotando, no dia-a-dia, atitudes
Paulo e Havana. Dissertação (Mestrado) –
de solidariedade, cooperação e repúdio
Programa de Pós-Graduação em Integração
às injustiças, respeitando o outro e exi-
da América Latina da Universidade de São
gindo para si o mesmo respeito (Brasil,
Paulo, 2000.
5No Brasil, principalmente nos três últimos anos, com o sistema de acesso diferenciado para negros e
indígenas, adotado em algumas instituições de ensino superior, aumentou a discussão sobre ações afirmativas. As
cotas têm sido o cerne da questão e a discussão mais ampliada sobre ações afirmativas fica delegada a um plano
de muitas opiniões e de poucas reflexões críticas. Grupos historicamente desfavorecidos precisam de políticas
afirmativas pontuais para modificar o contexto social vigente. Ações afirmativas são bem aceitas nos partidos
políticos por meio da ampliação da participação das mulheres nas legendas partidárias e nos concursos públicos,
com reservas de vagas para deficientes físicos. Infelizmente, quando se trata de discriminação positiva para
negros(as) e indígenas, a população recusa tais ações e não percebe os mecanismos racistas, presentes no Brasil,
que têm alijado sistematicamente indígenas e negros da ascensão social.
182
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamen-
HASENBALG, C. A.; SILVA, N. do V. Estrutura
tal. Parâmetros Curriculares Nacionais:
social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice.
terceiro e quarto ciclos. Apresentação dos
Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.
temas transversais/ Secretaria de Educação
Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Anita, 1994.
______. MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
ROSEMBERG, F. (1987). Relações raciais e
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
rendimento escolar. In: Cadernos de Pesquisa
Afro-Brasileira e Africana (2007). www.mec.
da Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 63,
gov.br/secad/diversidade/ci
1987.
______. Resolução CNE n. 01/2004 (2007).
SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro
www.mec.gov.br/secad/diversidade/ci
no livro didático. Salvador: CED, 1995.
183
D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS
Documentário: Africanidades Brasileiras
e educação1
Azoilda Loretto da Trindade2
“(...) o que aconteceu, no Brasil, é que os africanos [e as africanas] foram tão
fundo na construção desse país, que hoje eles [elas] já não são eles [elas] eles
[elas] somos nós, os brasileiros [as brasileiras]”3
Construir um documento que dialogue com
tão subliminar, às vezes, que são quase
outro/outros, no caso, com um documentá-
imperceptíveis.
rio e, ainda, com outras séries do programa
Salto para o Futuro, sobre a temática das
Africanidades, é um grande desafio. Um desafio que se desdobra em outros:
• Desafio de conseguir tocar os corações e
as mentes dos professores e professoras
brasileiras que tecem, re-tecem, constroem cotidianamente a nossa escola, no
• Desafio diante da riqueza histórica e cultural (no sentido mais pungente, visceral
e amplo do termo) do patrimônio legado
pelos africanos e pelas africanas a toda a
humanidade.
que se refere à importância e à urgência
de se consolidar uma escola que respeite,
sem hierarquizar, os diversos saberes e fazeres das diferentes matrizes culturais e
étnicas que constituem nossa brasilidade,
e, no caso mais específico deste material,
• Desafio de não reproduzir preconceitos e
as africanidades.
estereótipos que nos foram transmitidos
1
por uma educação racista, elitista e ex-
• O desafio de convidar todos os educado-
cludente, que todas nós, pessoas que edu-
res que demonstram indignação diante
cam, certamente, recebemos, de maneira
das injustiças a ampliar a rede dos que
Ano XVIII – Boletim 20 – Outubro de 2008.
2
Doutora em Comunicação pela ECO/ UFRJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV-RJ. Organizadora desta
coletânea e Consultora do Documentário Africanidades brasileiras e educação.
3 Retirado do documentário “Povo Brasileiro” (baseado na obra de Darcy Ribeiro).
184
sabem do convite que a Vida, neste mo-
de gênero, de inserção social e cultural, de
mento histórico da nossa existência, nos
condição econômica, de aparência física, das
apresenta: UMA ESCOLA DE QUALIDADE,
chamadas deficiências... Nossa compreensão
INCLUSIVA, DEMOCRÁTICA, DO E PARA O
é de que as discriminações e os preconceitos
POVO BRASILEIRO.
aos quais os seres humanos são submetidos
são vários e de tipos os mais diversos. Contu-
• Desafio que é alimentado por nossa indignação e inquietação diante do racismo e
de qualquer expressão de injustiça social
e, consequentemente, que se desdobra
na não submissão, na não sujeição a circunstâncias e situações racistas e injustas
presentes no nosso cotidiano, inclusive,
escolar. Somos, também, alimentadas por
um imenso amor e fé na Vida.
O documentário Africanidades brasileiras e
educação tem como objetivo principal ser
um instrumento que possa ser utilizado na
formação de docentes, gerando estudos, reflexões e debates acerca das africanidades
brasileiras em ambientes formais e não-formais de aprendizagem, na perspectiva
de potencializar positivamente a presença
negra na sociedade brasileira.
Como historicamente percebemos uma minimização das temáticas das africanidades,
do, abordaremos as africanidades brasileiras4
em função dessas premissas: um cronificado
quadro de desigualdades aos quais os negros
são submetidos; historicamente, estarmos
aos 120 anos da abolição da escravatura; termos uma lei que institui a obrigatoriedade
do ensino da história e culturas africanas
e afro-brasileiras nos currículos escolares,
ampliada para as questões indígenas. Tudo
isto nos leva a pensar o que sabemos sobre a
nossa afro-ascendência e a nossa ascendência indígena, além de estereótipos.
Compreendemos que os preconceitos, os racismos e as discriminações não se circunscrevem aos negros e às negras, contudo,
enfocaremos as africanidades brasileiras,
como uma contribuição ao longo processo
de construção de uma pedagogia voltada
para a compreensão, a valorização e o respeito à nossa brasilidade.
muitas vezes vistas como secundárias em
relação às temáticas “universais” ou outras,
África não é um país
achamos importante destacar a nossa compreensão acerca da amplitude da vida hu-
Parece brincadeira, mas muitas vezes ouvi-
mana e suas diversas expressões: de etnia,
mos pessoas se referirem à África como sen-
4 O Salto para o Futuro, ao longo da sua história, já tem uma tradição de documentários temáticos,
inclusive,sobre questão indígena, cultura popular, dentre outros.
185
do um país ou um continente homogêneo,
fico impressionada com o que pode ter sig-
ou como “o local onde Tarzan viveu”... Enfim,
nificado para ela aquela ilustração.
várias situações que denotam um desconhecimento do patrimônio geopolítico, cultural
Compartilho estes episódios, pois acredito
e histórico que é o continente africano.
que você, leitor(a), ao parar para pensar, certamente terá pelo menos uma situação ilus-
Lembro-me de que, com 17 anos, numa aula
trativa da invisibilização ou minimização da
de pré-vestibular, escutei uma revelação de
presença negra na sociedade e na escola, ou
um jovem professor negro, de História, que
em diferentes contextos educativos. Creio
foi emblemática na minha vida. Ele revelou,
que essas situações, episódicas ou não, pre-
para a turma, que atentamente o ouvia, que
cisam ser lembradas, refletidas, recordadas,
Cleópatra não era como Elizabeth Taylor,
criticadas, compartilhadas, para serem li-
mas era uma mulher negra, inteligente e es-
bertadoras, para romperem com o silêncio
trategista, e que o Egito, das pirâmides, dos
que a escola e a sociedade têm produzido
hieróglifos, da esfinge, das técnicas de irri-
em relação às desigualdades étnico-raciais
gação... era negro, situava-se na África.
brasileiras. Situações sugerem questões e
questões não nos faltam! Você já se pergun-
Outro episódio emblemático aconteceu, uns
tou por que conhecemos tão pouco sobre a
quatro anos depois do relatado acima, já nos
África? O que aprendemos na escola, o que
anos 80, quando eu lecionava numa escola
lemos a respeito, o que vimos no cinema ou
pública municipal, na Zona Oeste carioca.
na TV sobre o continente que é o berço da
Contava uma história sobre um dia no zo-
humanidade?
ológico e uma menina negra, de oito anos,
levanta-se e sai do fundo da sala de aula para
Desconhecemos o passado remoto e recente
olhar de perto a imagem exibida durante a
da África e pouco sabemos sobre o seu pre-
leitura da história. Era uma imagem com vá-
sente.
rias pessoas no zoológico fazendo coisas diferentes. A imagem era panorâmica, logo as
No entanto, essa é uma história que influen-
pessoas apareciam bem pequeninas. A meni-
cia definitivamente nosso modo brasileiro
na vem à minha frente, olha, olha outra vez
de ser e de estar no mundo. O que estuda-
a gravura, como se não acreditasse no que
mos sobre africanos e africanas que foram
via e diz: “Ih! Uma pretinha!”
trazidos para o Brasil na condição de escravizados? Será que temos nos perguntado por
Depois, retornou, com um aspecto de satis-
que condições históricas os afrodescenden-
fação, ao local onde estava sentada. Até hoje
tes, assim como os povos indígenas e outros
186
grupos sociais, têm tido seus direitos mais
nea que durante três séculos forneceu
básicos desrespeitados ou mesmo negados?
escravos para o Brasil e procurar pensar,
procurar estudar que sociedades eram
A desigualdade que marca profundamente a
essas, que culturas eram essas, em que
sociedade brasileira tem raízes no colonia-
dinâmica eram inseridos esses africanos
lismo e no escravismo. Alterar positivamen-
que vieram para o Brasil e que trouxe-
te esse cenário injusto tem sido bandeira
ram tantas coisas importantes! Que
de luta dos movimentos organizados. Algu-
trouxeram para o Brasil sua força de tra-
mas conquistas já podem ser vislumbradas,
balho, suas técnicas, suas competências,
inclusive no campo das políticas públicas.
suas religiões, suas cosmologias, suas
No caso da educação, destacam-se a Lei n.
formas de entender o mundo, formas es-
10.639/03 e a Lei n. 11.645/08 que preconi-
sas que ficaram gravadas no modo como
zam, respectivamente, o ensino da história
o Brasil, como os brasileiros são ainda
e da cultura africana e afrobrasileira nas
hoje. Outro ponto importante que a gen-
escolas e, no caso da lei mais recente, que
te deve ressaltar na história africana na
substitui a anterior, a também inclusão das
sala de aula é a própria historia africana
temáticas indígenas na educação.
em si mesma. Essa África milenar, essas
culturas que são múltiplas e interessan-
África (re)conhecida
tes, a gente se deter na história das relações dos africanos com o mundo, nas
criações, na emergência de reinos na
Se a África é o berço da humanidade, no mí-
África ocidental, entender o Egito como
nimo, o continente africano produziu e pro-
uma civilização que está inserida no
duz um imenso patrimônio sócio-histórico
contexto africano, que é tributário das
e cultural, entendendo cultura no seu mais
cidades africanas, ele próprio um marco
amplo sentido, no qual estão envolvidas ar-
importante. Então, entender o Egito no
quitetura, ciência, engenharia, medicina...
contexto africano é interessante, enten-
No entanto, lamentavelmente para todos os
der a própria história da África em suas
seres humanos, a escravatura e o racismo
próprias dinâmicas. Existe material para
nas suas nuances e atualizações, vem colo-
isso, para pensar a própria história afri-
cando a riqueza deste continente na subal-
cana em si mesma. Eu acho importan-
ternidade, na invisibilidade:
te o estudo da África contemporânea,
dos seus dilemas, das suas questões que
“É importante que a gente lute contra
não são tão diferentes assim das ques-
essa ideia de uma África fixa e homogê-
tões pelas quais a América Latina vem
187
vivendo. Acho que as lutas africanas
pela Internet, pelos fluxos, a África está
são importantes, as tomadas de cons-
nesse fluxo e está esperando ser desco-
ciência, o processo colonial, o processo
berta pela Brasil” (Luena Nascimento –
pré-colonial, o mundo contemporâneo,
antropóloga/UNICAMP/Bolsista).
então a geografia tem muito o que explorar. Eu acho que existe uma riqueza
África diversa, África plural, África de on-
enorme nas culturas africanas hoje, nos
tem e hoje com riquezas, contradições e
países africanos, em termos de uma li-
conflitos,que precisa ser apresentada, re-
teratura muito interessante, disponível
apresentada às educadoras e aos educa-
em Português, para o caso de literatu-
dores do Brasil por brasileiras(os) e por
ras africanas em língua portuguesa, é
africanos(as) de variados países africanos.
preciso investir nesses estudos. Investir
nesse diálogo que a África faz entre sua
própria história e o mundo, juntando
Vozes d’África: trechos de
entrevistas
tradição e modernidade, acho que são
formas específicas de aliar a sua própria
Chimamanda5 - escritora (Nigéria):
tradição, seu próprio legado com o presente, a música africana é riquíssima,
“(...) é muito importante que as pessoas
a arte africana é lindíssima, tanto essa
contem suas próprias histórias. E a Áfri-
arte tradicional como a arte contempo-
ca é uma região do mundo que por mui-
rânea, que você encontra nas bienais,
to tempo teve suas histórias contadas
que você encontra enfim numa série de
por outras pessoas. Muitos dos textos
exposições. É preciso pesquisar essa Áfri-
africanos foram na verdade escritos por
ca urbana, essa África vibrante, das mú-
europeus, se voltarmos duzentos anos
sicas, das cores, da arte, da literatura,
atrás. Eu acho que é uma coisa boa ou-
ela está aí, ela está disponível para ser
virmos histórias de África contadas por
trazida para a sala de aula como uma
africanos”.
maneira, como mais um diálogo conosco
mesmo. Acho que ela faz parte do mun-
“África não é uma coisa única. Poucos
do contemporâneo, então, esse interesse
pensam sobre África de forma diferente.
pela África como parte do nosso mundo,
Pensam na África das girafas, ou pen-
do nosso mundo globalizado, do nosso
sam em AIDS, ou pensam em guerras, ou
mundo que se aproxima cada vez mais
pensam na pobreza. Uma das perguntas
5 Tradução Kátia Santos.
188
que me foi feita por um dos jornalistas
estou apenas escrevendo histórias sobre
brasileiros, antes que eu chegasse aqui,
pessoas que vivem em um tempo em que
foi ‘como você pode ajudar ao seu país?’
o colonialismo é parte integral de nossas
E eu pensei, meu país não é apenas um
vidas. Mas isto não significa que as pes-
lugar para eu ajudar. Há muita coisa
soas não tenham [iniciativa]. Os africa-
acontecendo na Nigéria. Há nigerianos
nos são pessoas que têm iniciativa.”
que estão ajudando a nigerianos. Há nigerianos que são pobres; nigerianos que
Pepetela – escritor (Angola)
são ricos. Há muita coisa acontecendo.
Acho que a única coisa que posso dizer
“A literatura acaba por mostrar que
é que há muitas Áfricas. Não há apenas
também no continente africano já há
uma. Há várias histórias em África. As
pessoas que pensam, começa por aí. E
histórias de ricos e pobres; as histórias
um dos estigmas que haviam passado
felizes e tristes; e todas elas são histórias
pela Europa é que em África praticamen-
africanas, e é importante que nos lem-
te só havia macacos em cima das árvo-
bremos disso.”
res. Portanto, a literatura é uma forma
boa para dar a conhecer a realidade, cer-
“Não temos como apagar o colonialismo
ta realidade e, sobretudo, para chamar a
da nossa experiência. É parte da nossa
atenção para problemas, quaisquer que
experiência. Parte da experiência de ni-
sejam. Não para resolver problemas,
gerianos, de quenianos, de senegaleses...
não porque não é trabalho que se possa
A África foi colonizada. E é tudo muito
exigir do escritor. É para isso há outras
recente. Tornamo-nos independentes em
instituições e pessoas, mas levantar os
1960. Há pouco tempo atrás. E a forma
problemas, chamar a atenção, é obrigar
como vivemos hoje é ainda uma reação
as pessoas a pensar sobre esses proble-
ao colonialismo. O colonialismo é ain-
mas.”
da parte de nossa existência. O sistema
educacional da Nigéria, por exemplo,
“(...) Mas o fato de ser a língua materna
não mudou muito desde os anos 1950. As
[a portuguesa] a língua na qual eu me
pessoas aprendem muito sobre a Ingla-
expresso, não me impede nunca de dei-
terra e muito pouco sobre África, porque
xar de escutar essas outras línguas que
foi assim que eles organizaram o siste-
eu não falo. E há em mim uma busca
ma educacional. Então, é difícil respon-
incessante da necessidade, da harmonia
der ‘o que você tem a dizer sobre o fim
de todas essas línguas e que foram tra-
do colonialismo na sua obra?’ Acho que
zidas em primeira mão pelas ‘mulheres’,
189
primeiro na família, depois na sociedade,
cuidavam dos vivos e dos mortos. Então,
depois no mundo inteiro que também
se há alguma coisa que possa ser recor-
tem outras vozes que eu também escu-
rente numa obra que tenta tocar todos
to. É curioso porque eu vou dizer mais
os temas, a palavra ‘mulher’ é talvez a
uma vez: foi em português que eu falei
mais forte e eu sou muito tributária des-
dessas mesmas línguas, mas há todo um
sas vozes que eu ouvi, dessas mulheres
patrimônio da tradição oral e mesmo fi-
que falavam outras línguas que não a
xado em português que foi importante
língua portuguesa que é a minha língua
para eu chegar ao conhecimento dos lo-
materna.”
cais, das regiões, do meu país, em suma.
Eu penso que toda a gente é de um lugar,
“São Tomé e Príncipe é um país insular, é
como é de uma infância, com é de uma
um arquipélago com menos de mil km2,
determinada região e aí, essas mesmas
160 mil habitantes, eu acho que cabemos
línguas silenciadas durante todo o pro-
algumas vezes no estádio do Maracanã,
cesso colonial, elas foram só aparente-
e a origem da sociedade creola santo-
mente silenciadas, porque elas estavam
mense é escravagista, o povoamento se
lá, o meu trabalho nem sequer foi muito
fez com povos levados de diversas par-
grande, foi apenas ouvir, ficar atento.”
tes do continente africano e essa mescla
de culturas, esse cadinho de cultura, faz
Ana Paula Tavares - escritora (Angola)
com que a questão da identidade também atravesse a poética santomense.
“Se eu tivesse que escolher um tema para
Em mim, a questão da identidade está
as minhas coisas, desde logo a palavra
muito presente e é um dos aspectos cen-
‘mulher’ seria muito importante. Desde
trais da minha poesia. O desejo de tentar
cedo eu me habituei a olhar a volta e no-
iluminar trechos obscuros ou apagados
tar que o país, a região local dependia
ou rasurados da história do meu povo.
dessa força enorme, dessa energia enor-
A presença do escravo, o sofrimento do
me das mulheres. São elas que inventam
escravo, dos nossos antepassados, o si-
a água, são elas que fazem as comidas,
lenciamento das suas vozes, contudo
são elas que sustentaram um país que,
não morreram porque eu degluti essas
como vocês sabem, durante tantos anos,
vozes e elas estão hoje na minha poesia.
esteve na guerra. Os homens estavam a
Por outro lado, a firme vontade de atra-
fazer a guerra, eram as mulheres que
vés da palavra poética como que fazer
faziam com que o país funcionasse com
justiça histórica a esse segmento funda-
que o país se reproduzisse. Eram elas que
mental do meu país e do meu passado,
190
porque há uma grande preocupação
coisa para essa partilha. Há como que
com o meu passado. A memória, portan-
um preconceito de parte a parte, nós
to, escreve-se aí, a memória familiar, a
mesmos muitas vezes nos olhamos com
memória pessoal, a memória histórica.
preconceito e nós olhamos o outro com
Outra preocupação central tem a ver
preconceito e temos medo de admitir
com o social presente e mesmo quando
esse preconceito que nós temos e todo o
eu me inspiro no passado e vou ao pas-
mundo tem um pouco desse preconceito
sado e vou à história, esse tratamento
lá no canto. Então, eu acho que cada vez
não é meramente revitalista. Há uma
que nós damos um passo para nos desi-
relação entre o silenciamento e a injus-
nibirmos um pouco mais, para limpar-
tiça, um presente marcado por fortes es-
mos este preconceito que às vezes nós
tratificações, por uma classe dominante
temos do outro, porque o outro é aquele
que tem muito e uma maioria que tem
que nós mal conhecemos e que, muitas
muito pouco.”
vezes, porque não conhecemos, porque é
algo que se parece, em nossa vista, como
Conceição Lima – escritora (São Tomé)
misterioso, nós não conhecemos e ali
há algo de que temos medo também e
“Há um provérbio guinense que diz as-
é esse medo que está a constituir a bar-
sim: quando alguém insiste em dizer
reira desta partilha, desse mau conheci-
que conhece fulano muito bem, que ele
mento do outro, de nós a nós mesmos,
não seria capaz de tal coisa ou que ele é
do Brasil a si próprio, para depois nós
capaz de fato de fazer ou cometer esse
partilharmos esse conhecimento que vai
erro! Há a voz de um velho que pergun-
passar pelo reconhecimento da cultura
ta: Há quantos anos vocês moram jun-
do outro, das nossas culturas, nós afri-
tos? Quando você diz: há cinco, há três,
canos, as vossas culturas, vós, brasilei-
há sete... ele diz: não, você não conhece,
ros, para conhecerem que o Brasil é um
porque nós vivemos uma vida inteira e
continente. O Brasil é uma imensidão e a
não nos conhecemos a nós mesmos, por-
África é outro continente, então é preci-
que às vezes nos surpreendemos com ati-
so que cada um de nós saiba se conhecer
tudes, com palavras que saem da nossa
a si próprio, saiba tolerar-se a si próprio,
boca. Eu parto desse provérbio guinen-
saiba conhecer a sua história e, como di-
se para dizer que não é fácil conhecer
ria Paulo Freire: Cada vez que nós ensi-
o outro, mas é possível criar condições,
namos a ler e a escrever a um homem e
criar um patamar de partilha de experi-
a uma mulher, nós estamos a dar a este
ências, então eu acho que falta qualquer
homem e a esta mulher instrumentos
191
para que ela e ele próprios consigam es-
continente com vários países, com vá-
crever e reescrever a sua própria história
rias culturas, várias línguas, várias ma-
e rever-se nela, sem complexo e com a
neiras de estar, de viver, de olhar o mun-
responsabilidade própria.”
do. Portanto, eu acho que essa lei é mais
uma porta que se abre, não vai mudar o
Odete Semedo – escritora (Guiné-Bissau)
mundo, mas é um passo, é uma pedra no
meu entender.”
“Quando eu tive conhecimento dessa lei,
eu disse: bom, eu acho que o Brasil pôs
na mesa o assunto para ser discutido,
Pensar a Diáspora Africana
um assunto que me parece que é um assunto tabu. As pessoas não querem falar
Pensar a Diáspora Africana é pensar na Áfri-
de racismo, em discriminação, no negro
ca como um continente que se expandiu,
e de várias coisas, parece que a histó-
de onde seus filhos e filhas se espalharam
ria nos envergonha. Então, essa lei vai
pelo mundo, antes, durante e depois do cha-
permitir um olhar para trás, um olhar
mado período da escravização negra. E isto
para a história do Brasil, um olhar sem
é importante, uma vez que aqui, no Brasil,
complexos, eu espero. E mesmo que seja
constituiu-se uma parcela desta diáspora
um olhar com complexos, mas desde
africana.
que permita a abordagem do problema
já está a pôr à mesa uma questão que
Esta presença africana no Brasil, marcada
é uma questão não só brasileira, mas
por histórias, memórias, culturas e valores
africana e universal, porque o racismo,
civilizatórios, estabelece aqui referenciais
a discriminação, não é só no Brasil, não
que se constituem como valores civilizató-
é só em África. Há um pouco em cada
rios afrobrasileiros, valores tecidos no diá-
canto dos países da Europa ou da Améri-
logo, nos confrontos, nos encontros dias-
ca do Norte. O meu olhar sobre essa lei é
póricos dos africanos, afro-brasileiros entre
que ela vai permitir um olhar para trás,
si e com os demais grupos aqui existentes.
um olhar o presente e, em perspectiva, o
Que valores seriam estes? Ilustrativamente,
futuro sem receio, sem complexos, isso é
podemos citar o da circularidade como um
o que eu vejo. Eu acho também que essa
valor que nos permitiu, enquanto afrodes-
lei vai permitir um olhar sobre a África
cendentes e afro-brasileiros, ressignificar a
com outros olhos, não o olhar de uma
dor do processo cruel da escravização negra,
África folclórica, não a África de guerras,
do racismo, e positivizá-la, produzindo vida
de fome, mas uma África que é como um
afrodescendente fora da África.
192
O principio do axé, da energia vital, outro
oração, através da culinária quer dizer
valor que acena para esta presença no coti-
com o corpo, pelo corpo é que a expe-
diano brasileiro, o comunitarismo, a coope-
riência patrimonial, civilizatória vai ser
ração, a memória inscrita no corpo, a corpo-
reconstituída” (Julio César de Tavares –
reidade, a ludicidade imbricada no processo
Professor de Antropologia da Univer-
de transformar a dor em potência...
sidade Federal Fluminense).
“(...) os africanos chegaram pratica-
“(...) em comunidades remanescentes
mente com o seu corpo, foram muito
se festeja tudo, se festeja a vida, e jun-
poucos os objetos trazidos, eles eram na
tamente com a questão do festejo vem
verdade desnudados, vinham quase que
a questão do canto, vem a questão da
nus nos navios. O patrimônio maior cul-
música, vem a questão da dança, que
tural era o corpo. O corpo passou ser a
constitui momentos que, se formos ana-
caixinha de segredo. Então, o corpo tra-
lisar na comunidade o que se significa a
zia não só as marcas do mundo perdido,
festa, são movimentos reivindicatórios,
das culturas a que, na verdade, esses
são movimentos revolucionários, onde
africanos que para cá foram transla-
se revitaliza a potência de se tentar co-
dados pertenciam. As marcas culturais
locar frente ao mundo branco, frente a
vinham com o corpo nos gestos, nos
tantas expropriações a que os quilom-
hábitos, nos comportamentos das con-
bolas estão sujeitos” (Georgina Helena
dutas corporais e também nas escari-
Lima Nunes – professora da Universi-
ficações, das cicatrizes, das marcas do
dade de Pelotas – RS).
corpo. O corpo era na verdade o grande
arquivo que continha a memória das
Pensar a Diáspora africana não apenas nas
experiências que agora eram violenta-
bases culturalistas, mas também políticas,
mente abandonadas, agora, se podemos
pois os valores trazidos e vivenciados po-
falar de patrimônio histórico e cultural
dem ser fatores de transformação social.
das populações africanas transladadas,
o primeiro território, o primeiro objeto,
o primeiro elemento fundamental dessa
memória é o corpo. É com o corpo que o
africano vai reconstruir a sua experiência perdida, é através desse corpo, através da gesticulação, através da dança,
através do modo de andar, através da
Em toda cultura nacional
Na arte e até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
E o negro brasileiro
193
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
que vai deixar, sem dúvida, à margem
da participação, digo participação produtiva, produtiva intelectual e produtiva
Sem abandonar suas raízes
econômica, uma grande parcela da sua
(Nei Lopes e Wilson Moreira).
população. E nesse sentido, quando nós
pensamos em racismo, nós estamos pen-
Africanidades brasileiras e
educação
“(...) estudar Africanidades Brasileiras
significa estudar um jeito de ver a vida,
o mundo, o trabalho, de conviver e lutar
por sua dignidade, próprio dos descendentes de africanos que, ao participar
da construção da nação brasileira, vão
deixando nos outros grupos étnicos com
quem convivem suas influências e, ao
mesmo tempo, recebem e incorporam as
sando em mais de 50% da população negra ou pelo menos quase 50%, se formos
seguir as cifras oficiais apresentadas
pelo IBGE. Então, nós estamos dizendo
que numa sociedade que exclui e exclui
pelo racismo, que é a nossa discussão
aqui, nós vamos ter metade da população do Brasil fora dos regimes de direitos
de todas as áreas e isso traz no mínimo
subdesenvolvimento para o país” (Joselina da Silva - Professora da Universidade Federal do Ceará).
daqueles” (Petronilha Gonçalves e Silva
“É preciso que os educadores brasileiros
– Professora da Universidade Federal
entendam o seguinte. Que eles se per-
de São Carlos - UFSCar).
guntem: o que eu sei de Ásia? Estou vendo um japonês aqui, este aqui é uma des-
Pensar as Africanidades Brasileiras na atuali-
sas populações. O que eu sei da história
dade nos remete ao fato de que é impossível
do português, da história de Portugal,
negar a presença negra em todos os setores
será que eu sei alguma coisa? O que eu
da sociedade brasileira. Contudo, em alguns
sei da história da Itália? Então, eles têm
espaços, essa presença está aquém do que
que perguntar a eles mesmos, ao invés
é desejado e necessário, e ainda é marcada
de partir do que já sabem” (Yedo Ferrei-
pelo racismo, pela exclusão, pela subalter-
ra - Militante Movimento Negro).
nização. No entanto, é importante ressaltar
A despeito do racismo, das desigualdades
que:
étnico-raciais, talvez alimentados pelos seus
“Uma sociedade pautada em qualquer
valores civilizatórios, ainda que inconscien-
tipo de discriminação é uma sociedade
temente, o povo negro, ou afro-brasileiro,
194
afirma cotidianamente sua energia vital, seu
temáticas, as diferentes matemáticas
axé, sua presença, sua existência:
culturais. A matemática não é somente
a matemática ocidental, a matemática
“(...) a escola deve ser impregnada pela
como forma de pensar geometricamen-
diversidade das culturas que compõem
te, aritmeticamente a natureza, isso
a nação brasileira. Então, temos que ad-
existe em várias culturas, então existe
mitir que existem várias culturas e não
uma forma de pensar matematicamente
só as culturas oriundas da Europa. O
na África, que deve aparecer. Essa diver-
tempo todo se fala nessa mítica das três
sidade deve se entrelaçar no cotidiano
raças compondo a nação brasileira, mas,
da escola, esse entrelaçar e o impregnar,
entretanto, os valores ocidentais não são
a gente tem que produzir essa impreg-
somente os hegemônicos, são os que de-
nação, essa interculturalidade, mais que
têm a supremacia na produção desses
a multiplicação das culturas, temos que
valores na escola. Então, uma escola
fazer com que haja o encontro e o inter-
democrática é uma escola que aposta
curso dessas culturas. A impregnação
na diversidade, mas não só diversidade
da cultura afro-brasileira seria talvez
congelada, coloca ali uma estátua do be-
o maior desafio, porque é muito fácil,
rimbau, ou uma estátua do orixá dentro
por conveniência, os diretores da escola
da escola e falar que isso é diversidade.
fazerem lá o dia do negro, como fazem
São esses valores que compõem a força
o do índio. Isso não é transformar essa
das diferentes culturas, em especial da
cultura como presente, congelando num
cultura afro-brasileira, eles devem não
único dia, dos 365 dias do ano, é preciso
só estar presentes, como também asse-
fazê-la presente diariamente conforme
gurar que a sua dinâmica se entrelaça
a cultura ocidental do europeu está pre-
no cotidiano da escola, eles devem estar
sente nos 365 dias, você não tem o dia
presentes na culinária, na merenda esco-
da cultura alemã, você tem ela presente
lar, eles devem estar presentes natural-
o tempo todo, a cultura italiana, a cul-
mente nas atitudes cotidianas desses jo-
tura portuguesa ou a cultura espanhola,
vens na escola, devem estar presentes no
como cultura ocidental, elas estão pre-
esporte, devem estar presentes na pró-
sentes os 365 dias do ano. Então, quere-
pria discussão religiosa, devem estar pre-
mos que também durante os 365 dias do
sentes na matemática, as formas de pen-
ano a cultura africana e a cultura indí-
sar a matemática, o número dentro da
gena estejam presentes e as demais cul-
África deve aparecer no ensino da mate-
turas, a cultura cigana, todas as outras
mática, valorizar as diferentes etno-ma-
culturas. É importante que haja um local
195
de manifestação dessa multiplicidade,
amor, não é violência, é amor, vamos abrir o
desses universos múltiplos das diferentes
coração e compreender que a cultura brasi-
culturas. A cultura afro-brasileira tem
leira está presente o tempo todo ao lado da
uma riqueza gigantesca para oferecer a
cultura afro-brasileira, ela é um dos princi-
essa moldagem da nação brasileira num
pais modeladores da nação brasileira (...) (Ju-
universo intercultural, precisamos estar
lio César de Tavares – Professor de Antropolo-
convictos, nós, professores, diretores da
gia da Universidade Federal Fluminense).
escola, que é importante para produção
de um novo brasileiro, essa impregnação
Estamos na capilaridade da sociedade brasi-
e a convicção significa na adesão genero-
leira, somos, nesse sentido ampliado, todos
sa, na adesão amorosa, na adesão afeti-
afrobrasileiros.
va a essa cultura.”
“Essa presença está no cotidiano do braDigamos, abrir o coração a essas culturas,
sileiro, está no ar que o brasileiro respira
abandonarmos a força colonial que nos co-
está no ritmo do corpo do brasileiro, está
loca quase que de joelhos diante daquilo que
na comida do brasileiro. Só que o brasi-
é europeu super, hiper valorizando o que é
leiro também não percebe isso e gosta-
europeu e desvalorizando, desqualificando o
ria de ser considerado como europeu.
que é africano, o que é indígena na cultura
Isso está claro no sistema de educação.
brasileira.
Nosso modelo de educação é uma educação eurocêntrica. A escola é o lugar
Isso é que precisa ser superado e essa su-
onde se forma o cidadão, onde se ensina
peração só poderá se dar com amor se não
uma profissão. Escolas que sabem lidar
houver convicção da necessidade de afeto no
com os dois lados da educação ensinam
tratamento com afeição, com generosidade,
a cidadania e a profissão. Uma história
com gentileza dessas culturas, compreen-
que é ensinada, a história da Europa, dos
dendo a presença delas já existente dentro
gregos e dos romanos, portanto, brasi-
de nós mesmos, dentro da cultura que nós
leiros não só descendentes de gregos e
temos. Imagine você que o Brasil tem a feijo-
romanos, de anglo-saxões... São descen-
ada como seu prato nacional e ainda discute
dentes de africanos também, de índios e
se deve ou não garantir a impregnação da
descendentes de árabes, de judeus e até
cultura afrobrasileira no nosso cotidiano. É
de ciganos. E se a gente olhar o nosso
tamanha a hipocrisia, a ignorância e o grau
sistema de educação, onde estão esses
de colonialismo em que vivemos que preci-
outros povos que formaram o Brasil?
samos superar isso com uma certa dose de
Então, há um problema no Brasil, além
196
dessas pessoas serem as maiores vítimas
to educadoras e educadores brasileiros, de
da discriminação social, do sistema de
uma pedagogia brasilis, uma pedagogia
educação formal, elas são simplesmente
com/da e para a real e diversa população
ocidentalizadas, elas são simplesmente
brasileira.
embranquecidas. Então, há um probleUm sorriso negro, um abraço negro
ma na educação do brasileiro. Se a gente colocar as questões: quem somos, de
Traz.... felicidade
onde viemos e por onde vamos, vamos
ver que o Brasil nasceu do encontro da
Negro sem emprego, fica sem sossego
culturas das civilizações, dos povos indígenas, africanos que foram deporta-
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRA-
dos os próprios imigrantes europeus de
SILEIRAS E EDUCAÇÃO 15 .
várias origens. Até estamos agora co-
Negro é a raiz da liberdade
memorando os cem anos da imigração
japonesa, se fala mais dos cem anos da
Negro é uma cor de respeito
imigração japonesa do que 600 anos da
Negro é inspiração
abolição. Não tenho nada contra isso,
mas fala-se muito pouco da abolição.
Negro é silêncio, é luto
Se a gente quer saber quem somos, devemos conhecer todas as nossas raízes,
negro é... a solução
aqueles povos que formaram o Brasil, alNegro que já foi escravo
guns dizem que somos um país mestiço,
mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já
Negro é a voz da verdade
que a gente não quer reconhecer a diversidade das coisas, suponhamos que seja-
Negro é destino é amor
mos todos mestiços, vamos pelo menos
Negro também é saudade.. (um sorriso
estudar as raízes da nossa mestiçagem,
negro!)
faz parte da nossa cultura” (Kabengele
(Dona Ivone Lara)
Munanga – Professor de Antropologia
/ USP – Diretor Centro de Estudos Africanos).
REFERÊNCIAS
Diante da nossa diversidade étnico-racial,
BRASIL. Ações Afirmativas e Combate ao Ra-
cultural, creio que fomos colocadas(os) no
cismo nas Américas. Brasília: MEC, SECAD,
desafiante território da construção, enquan-
2005.
197
______.
Educação anti-racista:
caminhos
______. Orientações e Ações para a Educação
abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasí-
das Relações Étnicos-Raciais. Brasília: SECAD,
lia: MEC, SECAD, 2005.
2006.
______. Histórias da Educação do Negro e
GARCIA, Januario. 25 anos 1980 – 2005: movi-
outras histórias. Brasília: MEC, SECAD,
mento negro no Brasil. Brasília, DF: Funda-
2005.
ção Cultural Palmares, 2006
198
CAPÍTULO 3
Entrecruzamentos temáticos: multiculturalidades,
disciplinaridades e africanidades
A ideia que orienta este terceiro capítulo
Os textos devem ser vistos criticamente, pois
insere-se no campo das redes de conheci-
todos estão inseridos no campo ideológico e
mento, das tessituras de ideias, das inven-
de visões de mundo, classe, formação, etnia...
tividades, dos diálogos, das aventuras humanas na construção do novo, do novo que
I.
Ciência
multicultural,
de
Ubiratan
aproxima, une e se mescla... Ao ler os textos,
D’Ambrosio. Optamos em iniciar este capí-
observamos uma infinidade de caminhos,
tulo da coletânea com este texto, pela fun-
possibilidades, escolhas...
damental relevância deste tema - a ciência
- no campo da multiculturalidade e das Afri-
Acreditamos que a implementação da lei ou
canidades. Pensar a ciência numa aborda-
a construção de uma educação inclusiva e
gem multicultural é uma demanda para não
emancipatória não deve ignorar conheci-
só implementar as leis, como mudar menta-
mentos produzidos, mas criticá-los e ajustá-
lidades colonizadas e excludentes.
-los, se possível, a uma perspectiva a favor
da vida na sua plenitude.
II. Afroetnomatemática, África e afrodescendência, de Henrique Cunha Junior. Este
Selecionamos, no panorama das publicações
texto desconstrói as naturalizações acerca
do Salto para o Futuro, textos que, mesmo
do continente africano e o conhecimento
que não se refiram especificamente à Lei n.
matemático. São tantas as descobertas e re-
10.639/03 ou à Lei n. 11.645/08, podem ser sub-
descobertas, as novas possibilidades de ver,
sídios para pedagogias que não excluam, que
sentir, conhecer, que o estudo para os e as
não sejam racistas, machistas... As articula-
docentes é um caminho imprescindível.
ções que podem e devem ser feitas incluem-se no campo da pedagogia diaspórica, onde
III. A multiculturalidade na educação esté-
novas significações e apropriações podem ser
tica, de Ana Mae Barbosa. Como dissemos
elaboradas.
anteriormente, embora alguns textos não
199
foquem diretamente as Africanidades, eles
ra. Talvez, numa primeira leitura, o foco do
nos ajudam a fundamentar nossa visão in-
texto pareça ser unicamente os povos in-
clusiva, nossa prática, que pode ser rotulada
dígenas e a escrita, mas ao observarmos a
de multiculturalista crítica, emancipatória
formação e a ocupação da autora, o nome
e, também, que tem como meta implemen-
do texto e da série na qual ele está inseri-
tar a Lei n. 10.639 e a Lei n. 11.645. Arte e
do, podemos perfeitamente observar a sua
Estética são palavras-chave e campos de ex-
abrangência. Sim, temos, além dos povos
tremada relevância para o trato das Africa-
indígenas, populações como os ciganos e al-
nidades e para a desmontagem de precon-
gumas comunidades quilombolas em que a
ceitos. E este texto cumpre esta função.
oralidade é um valor.
IV. Construção estético-cultural de um espaço, de Laura Maria Coutinho. Ao ler e reler os textos desta coletânea, sempre tive a
preocupação de promover diálogos entre diversos temas e autorias. Dessa forma, destacamos este texto como um alerta no que se
refere às Africanidades. Atentem que, frontalmente, ele não aborda as relações étnico-
VII. No tempo em que os seres humanos
conversavam com as árvores..., de Narcimária Correia do Patrocínio Luz. Da mesma
série da qual faz parte o anterior, este texto é uma ode à nossa ancestralidade e, ao
mesmo tempo, um ensinamento de outras
possibilidades não eurocentradas de ensino-aprendizagem.
-raciais, mas suas pontuações com relação à
imagem nos referendam.
V. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre afro-brasileiros,
de Heloisa Pires Lima. Em diálogo com os
dois textos anteriores, este texto foca as
Africanidades e os preconceitos e estereótipos alimentados por alguns produtores de
imagens móveis ou fixas (fotografias, filmes...) alertando-nos para o cuidado com o
racismo que embaça nossas visões e percepções acerca do nosso povo preto e mestiço.
VIII. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória Iorubá, de Juarez Tadeu
de Paula Xavier. Temos, aqui, um texto acessível e consistente que afirma a importância
da oralidade e revela sua pujança como um
valor civilizatório dos povos iorubanos.
IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e
afro-brasileiras, de Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza. Aqui temos um
cardápio de possibilidades de trabalho nas
“águas” da oralidade e da literatura. É um
VI. O significado da oralidade em uma so-
texto afirmativo, propositivo e informativo,
ciedade multicultural, de Maria Elisa Ladei-
inclusive dos dispositivos legais.
200
X. Conto popular, literatura e formação de
relação ao nosso conhecimento e docência
leitores, de Ricardo Azevedo. Como aqui se
em face do ensino da história da África no
trata de um livro para professores e profes-
Brasil, colocando-nos diante da imperativa
soras, educadoras, este texto assume um
necessidade de pesquisa, estudo, crítica e
caráter de compreensão acerca do conto
autocrítica, de modo a não reproduzirmos
popular em interação com a literatura e a
equívocos e estereótipos já naturalizados no
formação de leitores. Cremos que o trinômio
nosso imaginário social brasileiro.
anunciado no título pode ser visto como um
dos recursos propícios à implementação das
XIII. Enfrentando os desafios: a história da
leis de que fala esta coletânea, bem como
África e dos africanos no Brasil na nossa sala
favorecer o fortalecimento da autoestima
de aula, de Mônica Lima. Com cautela, res-
de crianças e jovens estudantes.
peito e compromisso político, o texto aponta
repertórios da História da África e dos Africa-
XI. Literatura e pluralidade cultural, de Ma-
nos no Brasil, passíveis de serem trabalhados
risa Borba. Embora seja um texto publicado
pedagogicamente nas salas de aula.
antes das referidas leis, sua atualidade nos
revela a necessidade de que a abordagem da
XIV. Sons de tambores na nossa memória
autora seja levada em consideração.
– o ensino de história africana e afro-brasileira, de Mônica Lima. Entre cuidados, si-
XII. Novas bases para o ensino da história
nalizações, fascínios e atenções, o texto bus-
da África no Brasil, de Carlos Moore. O texto
ca recuperar, com os sons dos tambores da
apresenta bases que nos desestabilizam em
nossa memória, a África Viva em nós.
201
I. Ciência multicultural1
Ubiratan D’Ambrosio2
Estamos passando por grandes transformações na sociedade e, em particular, na educação. Hoje falamos em educação bilíngue,
em medicinas alternativas, no diálogo inter-religioso. Inúmeras outras formas de multiculturalismo são notadas nos sistemas educacionais e na sociedade em geral.
• uma realidade social, que é o reconhecimento da essencialidade do outro;
• uma realidade planetária, o que mostra
sua dependência do patrimônio natural
e cultural e sua responsabilidade na sua
preservação;
• uma realidade cósmica, levando-o a trans-
As profundas transformações nos sistemas
cender espaço e tempo e a própria existên-
de comunicação, de informatização, de
cia, buscando explicações e historicidade.
produção e de emprego surgem como um
resultado da mundialização e, consequen-
As práticas ad hoc para lidar com situações
temente, dão origem à globalização e ao
problemáticas surgidas da realidade são o
multiculturalismo. Os reflexos na geração e
resultado da ação de conhecer. Isto é, o co-
aquisição de conhecimento são evidentes.
nhecimento é deflagrado a partir da realidade. Conhecer é saber e fazer.
Um resultado esperado dos sistemas educacionais é a aquisição e produção de conhe-
A geração e o acúmulo de conhecimento
cimento. Isso ocorre, fundamentalmente, a
em uma cultura obedecem a uma forma de
partir da maneira como um indivíduo perce-
coerência. Há, como dizia J. Kepler no Har-
be a realidade nas suas várias manifestações:
monia Mundi, em 1618, uma comunalidade
de ações, na qual se manifesta o “zeitgeist”,
• uma realidade individual, nas dimensões
sensorial, intuitiva, emocional, racional;
1 Debate: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 4.
2 Professor Emérito da Unicamp.
que viria a se tornar fundamental na propos
ta historiográfica de F. Hegel (l770-l83l).
202
Essa comunalidade de ações caracteriza
no seu sentido amplo, a partir da dinâmica
uma cultura. Ela é identificada pelos seus
cultural que se nota nas manifestações ma-
sistemas de explicação, filosofias, teorias, e
temáticas. Mas que não se confunda com a
ações e pelos comportamentos cotidianos.
Matemática no sentido acadêmico, estrutu-
Tudo isso se apoia em processos de comu-
rada como uma disciplina. Sem dúvida essa
nicação, de quantificação, de classificação,
Matemática é importante, mas de acordo
de comparação, de representações, de con-
com o eminente matemático Roger Penro-
tagem, de medição, de inferências. Esses
se, ela representa uma área muito pequena
processos se dão de maneiras diferentes nas
da atividade consciente que é praticada por
diversas culturas e se transformam ao longo
uma pequena minoria de seres conscientes,
do tempo. Eles sempre revelam as influên-
para uma fração muito limitada de sua vida
cias do meio, organizam-se com uma lógica
consciente. O mesmo pode-se dizer sobre a
interna, codificam-se e se formalizam. As-
ciência acadêmica em geral.
sim nasce o conhecimento.
Em essência, o Programa Etnomatemática
Procuramos entender o conhecimento e o
é uma proposta de teoria do conhecimen-
comportamento humanos nas várias regi-
to, cujo nome foi escolhido por razões que
ões do planeta ao longo da evolução da hu-
serão explicadas mais adiante. Na verdade,
manidade, naturalmente reconhecendo que
poderia igualmente ser denominado Progra-
o conhecimento se dá de maneira diferente
ma Etnociência. Ao lembrar a etimologia,
em culturas diferentes e em épocas diferen-
ciência vem do latim scio, que significa sa-
tes.
ber, conhecer, e matemática vem do grego
máthema, que significa ensinamento – por-
Etnociência e
Etnomatemática
tanto, está claro que os Programas Etnomatemática e Etnociência se complementam.
Na verdade, na acepção que proponho, eles
se confundem3.
Em meados da década de 70, propus um
programa educacional que denominei Pro-
A ideia nasceu da análise de práticas mate-
grama Etnomatemática. Embora o Progra-
máticas em diversos ambientes culturais,
ma Etnomatemática possa sugerir uma ên-
porém foi ampliada para analisar diversas
fase na Matemática, esse programa é um
formas de conhecimento, não apenas as
estudo da evolução cultural da humanidade
teorias e práticas matemáticas. Embora o
3Ver Ubiratan D’Ambrosio: Etnomatemática. Arte ou técnica de conhecer e Aprender. Editora Ática, São
Paulo, 1990; e Etnomatemática. Elo entre as tradições e a modernidade. Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2001.
203
nome sugira ênfase na Matemática, esse é
subordinadas a áreas de conhecimento mui-
um estudo da evolução cultural da humani-
tas vezes estanques: ciências da cognição,
dade no seu sentido amplo, a partir da dinâ-
epistemologia, ciências e artes, história, po-
mica cultural que se nota nas manifestações
lítica, educação, comunicações.
matemáticas.
Considerando que a percepção de fatos é
O ponto de partida é o exame da história das
influenciada pelo conhecimento, ao se fa-
ciências, das artes e das religiões em várias
lar em história do conhecimento estamos
culturas. Adotamos um enfoque externalista,
falando da própria história do homem e do
o que significa procurar as relações entre o
seu habitat no sentido amplo, isto é, da Ter-
desenvolvimento das disciplinas científicas,
ra, e mesmo do Cosmos. Mas não há como
das escolas artísticas ou das doutrinas religio-
falar da Terra e do Cosmos, desligados da
sas e o contexto sociocultural em que tal de-
visão que o próprio homem criou e tem da
senvolvimento se deu. O programa vai além
Terra e do Cosmos. A ciência moderna, ao
desse externalismo, pois aborda também as
propor “teorias finais”, isto é, explicações
relações íntimas entre cognição e cultura.
que se pretendem definitivas sobre a origem
e a evolução das coisas naturais, esbarra
Ao reconhecer que o momento social está
numa postura de arrogância.
na origem do conhecimento, o programa,
que é de natureza holística, procura compa-
A proposta é o enfoque transdisciplinar, que
tibilizar Cognição, História e Sociologia do
substitui a arrogância do pretenso saber ab-
Conhecimento e a Epistemologia Social num
soluto, que tem como consequências inevi-
enfoque multicultural.
táveis os comportamentos incontestados e
as soluções finais, pela humildade da busca
A questão do conhecimento
incessante, cujas consequências são respeito, solidariedade e cooperação4.
O enfoque holístico à história do conheci-
A transdisciplinaridade é, então, um enfo-
mento consiste essencialmente de uma aná-
que holístico ao conhecimento que procura
lise crítica da geração e produção de conhe-
levar a essas consequências e se apoia na re-
cimento, da sua organização intelectual e
cuperação das várias dimensões do ser hu-
social e da sua difusão. No enfoque discipli-
mano para a compreensão do mundo na sua
nar, essas análises se fazem desvinculadas,
integralidade.
4Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade. Editora Palas Athena, São Paulo, 1997.
204
Lembremos que variantes da postura dis-
1. Como passar de práticas ad hoc a mo-
ciplinar têm sido propostas. As disciplinas
dos de lidar com situações e proble-
dão origem a métodos específicos para co-
mas novos e a métodos?
nhecer objetos de estudo bem definidos. A
multidisciplinaridade procura reunir resultados obtidos mediante o enfoque discipli-
2. Como passar de métodos a teorias?
3. Como proceder da teoria à invenção?
nar. Como se pratica nos programas de um
Explicitando o que já foi dito acima, essas
curso escolar.
perguntas envolvem os processos de:
A interdisciplinaridade, muito procurada e
praticada hoje em dia, sobretudo nas escolas, transfere métodos de algumas disciplinas para outras, identificando assim novos
objetos de estudo. Já havia sido antecipada
em 1699 por Fontenelle, Secretária da Academia de Ciências de Paris, quando dizia que
• geração e produção de conhecimento;
• sua organização intelectual;
• sua organização social;
• sua difusão.
“Até agora a Academia considera a natureza
Tais processos são normalmente tratados de
só por parcelas... Talvez chegará o momento
forma isolada, como disciplinas específicas:
em que todos esses membros dispersos [as
ciências da cognição (geração de conheci-
disciplinas] se unirão em um corpo regular;
mento), epistemologia (organização intelec-
e se são como se deseja, se juntarão por si
tual do conhecimento), história, política e
mesmas de certa forma” .
educação (organização social, instituciona-
5
lização e difusão do conhecimento).
A transdisciplinaridade vai além das limitações impostas pelos métodos e objetos de
O método chamado moderno para se conhe-
estudos das disciplinas e das interdiscipli-
cer algo, explicar um fato e um fenômeno
nas.
baseia-se no estudo de disciplinas específicas, o que inclui métodos específicos e ob-
O processo psico-emocional de geração de
jetos de estudo próprios. Esse método pode
conhecimentos, que é a essência da criati-
ser traçado a Descartes. Isso caracteriza o
vidade, pode ser considerado em si um pro-
reducionismo. Logo esse método se mos-
grama de pesquisa, e pode ser categorizado
trou insuficiente e já no século XVII surgi-
através de questionamentos como:
ram tentativas de se reunir conhecimentos
5 B. de Fontenelle: , 1699; p.xix.
205
e resultados de várias disciplinas para o
É oportuno falarmos de cultura. Há muitos
ataque a um problema. O indivíduo deve
escritos e teorias fortemente ideológicos so-
procurar conhecer mais coisas para poder
bre o que é cultura. Conceituo cultura como
conhecer melhor. As escolas praticam essa
o conjunto de mitos, valores, normas de
multidisciplinaridade, que hoje está pre-
comportamento e estilos de conhecimen-
sente em praticamente todos os programas
to compartilhados por indivíduos, vivendo
escolares.
num determinado tempo e espaço.
Metaforicamente, as disciplinas funcionam
Ao longo da história, tempo e espaço foram
como canais de televisão ou programas de
se transformando. A comunicação entre ge-
processamento em computadores. É neces-
rações e o encontro de grupos com culturas
sário sair de um canal ou fechar um aplicati-
diferentes cria uma dinâmica cultural e não
vo para poder abrir outro. Isso é a multidisci-
podemos pensar numa cultura estática, con-
plinaridade. Mas quando se utiliza Windows
gelada em tempo e espaço. Essa dinâmica é
95, a grande inovação é poder trabalhar com
lenta e o que percebemos na exposição mú-
vários aplicativos, criando novas possibilida-
tua de culturas é uma subordinação cultural
des de criação e utilização de recursos. A in-
e algumas vezes até mesmo destruição de
terdisciplinaridade corresponde a isso. Não
uma das culturas em confronto, ou em al-
só justapõe resultados, mas mescla métodos
guns casos dá-se a convivência multicultural.
e, consequentemente, identifica novos obje-
Naturalmente, a convivência multicultural
tos de estudo.
representa um progresso no comportamento das sociedades, conseguido após violentos
A interdisciplinaridade teve um bom desen-
conflitos. Agora, não sem problemas, ganha
volvimento no século passado e deu origem
espaço na educação o multiculturalismo.
a novos campos de estudo. Surgiram a neurofisiologia, a físico-química e a mecâni-
Enquanto os instrumentos de observação
ca quântica. Inevitavelmente, essas áreas
(aparelhos – artefatos) e de análise (concei-
interdisciplinares foram criando métodos
tos e teorias – mentefatos) eram mais limita-
próprios e definindo objetos próprios de
dos, o enfoque interdisciplinar se mostrava
estudo. Depois, se tornaram disciplinas em
satisfatório. Mas com a sofisticação dos no-
si e passaram a mostrar as mesmas limita-
vos instrumentos de observação e de análi-
ções das disciplinas tradicionais. Surgiram
se, que se intensificou em meados do século
então os especialistas em áreas interdisci-
XX, vê-se que o enfoque interdisciplinar se
plinares.
tornou insuficiente. A ânsia por um conheci-
206
mento total, por uma cultura planetária, não
interdisciplinar, são úteis e importantes, e
poderá ser satisfeita com as práticas interdis-
continuarão a ser ampliados e cultivados,
ciplinares. Da mesma maneira, o ideal de res-
mas somente poderão conduzir a uma visão
peito, solidariedade e cooperação entre todos
plena da realidade se forem subordinados ao
os indivíduos e todas as nações não será rea-
conhecimento transdisciplinar.
lizado somente com a interdisciplinaridade.
A educação está caminhando, rapidamente,
Não nego que o conhecimento disciplinar,
em direção a uma educação transdiscipli-
consequentemente o multidisciplinar e o
nar6.
207
6 Ubiratan D’Ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição, Papirus Editora, Campinas, 1999.
II. Afroetnomatemática, África e
afrodescendência1
Henrique Cunha Junior2
Afroetnomatemática
estudo da História africana e pela elaboração de repertórios de evidência matemática
Afroetnomatemática é a área da pesquisa que
encontrados nas diversas culturas africanas.
estuda os aportes de africanos e afrodescen-
Este estudo da História da Matemática no
dentes à Matemática e à Informática, como
continente africano trabalha com evidên-
também desenvolve conhecimento sobre o
cias de conhecimento matemático contidas
ensino e o aprendizado da Matemática, da Fí-
nos conhecimentos religiosos africanos, nos
sica e da Informática nos territórios da maio-
mitos populares, nas construções, nas artes,
ria dos afrodescendentes. Os usos culturais
nas danças, nos jogos, na Astronomia e na
que facilitam os aprendizados e os ensinos
Matemática propriamente dita realizada no
da Matemática nestas áreas de população,
continente africano. O que é realizado para
de maioria afrodescendente, é a principal
o continente africano tem sua extensão para
preocupação desta área do conhecimento.
as áreas de diáspora africana. A complexidade da racionalidade lógica africana é a maté-
A Afroetnomatemática se inicia no Brasil pela
ria por detrás destas pesquisas.
elaboração de práticas pedagógicas do Movimento Negro, em tentativas de melhoria do
A preocupação com o ensino e o aprendiza-
ensino e do aprendizado da Matemática nas
do da Matemática em territórios de maioria
comunidades de remanescentes de quilom-
afrodescendente nasce da constatação das
bos e nas áreas urbanas, cuja população de
precariedades da educação formal matemá-
descendentes de africanos é majoritária, de-
tica nestas áreas. Constatamos que, em mui-
nominadas de populações negras. Esta Afro-
tas das áreas de maioria afrodescendente,
etnomatemática tem uma ampliação pelo
praticamente inexiste ensino competente
1Valores afro-brasileiros na Educação – 2005 / PGM4
2
Professor Titular na Universidade Federal do Ceará.
208
e adequado da Matemática, existindo, em
Nós, pesquisadores interessados no desem-
decorrência disso, um grande fracasso no
penho matemático de afrodescendentes, te-
aprendizado nos cursos de Matemática, nas
mos observado que nos territórios de maio-
escolas, o que fica imputado à população e
ria afrodescendente, por vezes, não existe
não à ineficiência do sistema educacional.
o ensino de Matemática. Trata-se apenas
de um simulacro de ensino de Matemática.
Encontramos, em muitas destas áreas de
As aulas de Matemática são descontínuas,
maioria afrodescendente, o credo esdrúxulo
dadas por professores improvisados e de
e racista de que “negro não dá para a Mate-
treinamento precário para desempenho das
mática”. Este credo esdrúxulo cria sua pró-
suas funções. Onde este ensino existe, ele é
pria cultura de naturalização social e passa
deficiente e desprovido dos meios e méto-
a exercer a sua força de reprodução, servin-
dos adequados. No entanto, o ônus da defi-
do como justificativa ideológica da ausência
ciência de um sistema educacional, que leva
de políticas públicas do Estado para o ensi-
sempre à submissão e à inferiorização dos
no e aprendizado da Matemática nestes ter-
afrodescendentes, recai justamente sobre
ritórios. O dito “negro não dá mesmo para a
os afrodescendentes, dando a impressão de
Matemática” inferioriza os afrodescenden-
que temos uma dificuldade genética para o
tes e cria um medo interior, uma rejeição a
aprendizado da Matemática. Assim, uma das
essa área do conhecimento. Fica no ar um
tarefas importantes da Afroetnomatemática
pensamento, como se os testes escolares de
é o uso da História de africanos e afrodes-
Matemática pudessem revelar a verdade do
cendentes para mostrar o sucesso passado
credo esdrúxulo, mostrando uma confirma-
nas áreas da Matemática e dos conhecimen-
ção da suposta inferioridade cognitiva des-
tos relacionados com esta área do conheci-
tes afrodescendentes para a Matemática. O
mento, como a Arquitetura e a Engenharia.
credo serve para justificar a falta de ação e
de adequação do sistema educativo às ne-
Tendo em mente esta finalidade da Afro-
cessidades de aprendizado matemático dos
etnomatemática é que organizamos este
afrodescendentes. A persistência de uma
texto, em quatro direções. Abrimos nosso
abordagem universalista produz discursos
caminho de exposição pela apresentação
antipedagógicos de que os educadores en-
biográfica resumida de quatro expoentes
sinam “igualzinho a todos”, e se deduz que
afrodescendentes da Arquitetura e da Enge-
“uns” aprendem, ou seja, os eurodescenden-
nharia na cultura brasileira. Seguimos pela
tes, sobretudo, e “outros” não aprendem. Os
exemplificação da Matemática nas práticas
outros têm designação social de pretos, po-
culturais africanas. Reforçamos nosso argu-
bres e pardos.
mento pelas realizações da Afroetnomate-
209
mática pelas práticas culturais das religiões
lhou em Engenharia na Secretaria de Obras
do Candomblé no Brasil. Terminamos pela
Públicas do Estado de São Paulo, como dese-
introdução de um jogo antigo africano, mui-
nhista. No entanto, era autodidata e apren-
to útil para a educação Matemática brasilei-
deu Arquitetura e fez muitos projetos, cuja
ra atual. A função deste texto é dar motiva-
assinatura foi de outro profissional diploma-
ção ao leitor educador para ir consultar uma
do. Outra dificuldade é que o país sempre
literatura mais ampla, apresentada no final
desprezou o conhecimento de africanos e
do texto.
afrodescendentes, devido aos racismos ou
à falta de conhecimento dos responsáveis
Afrodescendentes expoentes
na engenharia e na arquitetura
Na década de 1970, eu estudei Engenharia
na Escola de Engenharia de São Carlos, da
Universidade de São Paulo e, logo no início
do curso, encontrei nesta escola a presença
de dois destacados professores negros. Um
já falecido, mestre da área de Topografia e
Aerofotometria, Professor Sergio Sampaio, o
outro, um dos engenheiros de renome nacional da área do Planejamento de Transporte, o Professor Doutor Felix Bernardes.
pela elaboração da cultura oficial.
Mestre Valentim é um gênio afrodescendente, que inaugura o urbanismo no Brasil. Seu
mais importante projeto, o “Passeio Público
do Rio de Janeiro”, construído em 1783, é o
primeiro conjunto arquitetônico urbano do
Brasil e das Américas com ajardinamento e
obras de arte ao estilo francês. Trata-se de
um gênio do Urbanismo, da Arquitetura e
da Escultura, cuja importância nacional é
quase que incomparável. A obra do mestre
Valentin é única pela perfeição alcançada,
afirmam os especialistas (SANTOS, 1978),
Comentando com meu pai sobre a presen-
(BATISTA, 1940). Nasceu no Serro, em Minas
ça destes professores ilustres, meu pai fez-
Gerais, em 1745, filho de uma brasileira ne-
-me ver que a Engenharia brasileira começa
gra e de um português. Viajando a Portugal,
com grandes expoentes negros. Dentre eles
aprendeu o ofício de escultor e entalhador
Mestre Valentim, Theodoro Sampaio, An-
e aprendeu sobre edificações. Retornou ao
dré Rebouças, Antonio Rebouças, Manoel
Brasil em 1770, passando a residir e traba-
Quirino. A história dos afrodescendentes na
lhar no Rio de Janeiro. Durante a gestão do
Engenharia brasileira é muito rica, mas um
Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos, de 1779
pouco difícil de ser recuperada, pois muitos
a 1790, foi o principal construtor de obras
dos participantes eram autodidatas, cons-
públicas, atuando em Saneamento, Abaste-
truíam sem terem diploma das escolas de
cimento de Água e Praças Públicas. Morreu
Arquitetura. Meu pai mesmo sempre traba-
em 1813.
210
Theodoro Sampaio (1855-1937). Dentre os
como advogado e estadista na corte. Ficou
mestres dos mestres, a minha maior admi-
conhecido com o nome de conselheiro An-
ração é pelo engenheiro Theodoro Sampaio,
tonio Rebouças. Era autodidata e, devido a
devido à riqueza da sua história de vida. Era
seus conhecimentos, obteve licença para
filho de escrava, nascido em Santo Amaro
exercer a advocacia em todo o país. Ganhou
da Purificação, na Bahia, e, depois de for-
notoriedade nas lutas pela independência
mado, reuniu dinheiro para comprar a liber-
do Brasil na Bahia. Este estadista teve dois
dade da sua própria mãe. Foi um expoente
filhos engenheiros que, pelas suas obras, fi-
em diversas áreas do conhecimento, sendo
zeram nome na Engenharia brasileira. Eles
pesquisador na Geografia, no Saneamento
são André Rebouças (1833 – 1898) e Antonio
e na Filosofia. Mesmo com a sua genialida-
Rebouças (1838 – 1991) (Carvalho, 1998). O
de e cultura, foi vítima das diversas facetas
túnel Rebouças, existente na cidade do Rio
do racismo brasileiro, o que prejudicou em
de Janeiro, tem este nome em homenagem
muito a sua carreira profissional e acadê-
ao Engenheiro Antonio Rebouças. Os dois
mica, sem, no entanto, impedi-lo de deixar
engenheiros são nascidos na cidade de Ca-
exemplar legado para as gerações que o su-
choeira, no interior da Bahia. Estudaram
cederam. Viveu e estudou em pleno escra-
na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que
vismo criminoso. Estudou na Escola Politéc-
antes tinha o nome de Escola Militar, for-
nica do Rio de Janeiro e se formou em 1877.
maram-se em 1860 em engenharia, tendo
Foi engenheiro responsável pelos planos de
antes bacharelado em Ciências Físicas e Ma-
água e de saneamento das cidades de Santos
temáticas, em 1859, depois fizeram estudos
e de Salvador. Foi professor da Faculdade de
complementares de Engenharia em grandes
Filosofia e fundador da Escola Politécnica da
estruturas na França. Antonio Rebouças se
Universidade de São Paulo. Dedicou-se tam-
dedicou à construção de estradas de ferro
bém à política, sendo deputado federal pela
e foi responsável pela construção da antiga
Bahia, em 1927. A rua Theodoro Sampaio, no
estrada de ferro de Paranaguá, no estado do
bairro de Pinheiros, em São Paulo, é uma
Paraná, uma das maiores e mais belas obras
homenagem de reconhecimento da socieda-
da engenharia brasileira. André Rebouças
de paulistana a este ilustríssimo engenheiro
projetou obras de abastecimento de água do
negro baiano (COSTA, 2001).
Rio de Janeiro e as Docas da Alfândega, desta mesma cidade. Foi engenheiro do Exérci-
No período do Império, que também faz
to Brasileiro durante a Guerra do Paraguai.
parte do período do escravismo crimino-
Os irmãos Rebouças foram abolicionistas e
so que foi mantido pelo Império brasilei-
lutaram em defesa dos direitos sociais dos
ro, um negro baiano teve grande destaque
africanos e afrodescendentes.
211
Manoel Quirino foi artista plástico, arquite-
A nossa ancestralidade é a nossa história,
to, professor de desenho, artesão, jornalis-
ela é base da nossa identidade étnica. E nos-
ta, pesquisador da cultura de base africana,
sa ancestralidade na Arquitetura e na Enge-
político e sindicalista. Torna-se difícil falar
nharia brasileira é muito boa, por isto de-
de pessoa com tão amplo campo de conhe-
veríamos cultuá-la e cuidá-la, para que nos
cimento e com uma vida tão intensa. Se não
inspire no presente para formarmos grandes
tivesse sofrido as injustiças da cor da pele,
engenheiros afrodescendentes. Na ancestra-
seria sempre citado e aplaudido como um
lidade mais antiga africana, a religião tam-
grande intelectual brasileiro. O seu pensa-
bém registra feitos importantes nas áreas
mento abre um ciclo de uma nova forma de
de Tecnologia, Matemática, Arquitetura e
pensar os africanos e as culturas africanas
Engenharia, dados nos mitos sobre Inquises,
no Brasil. Somente em tempos recentes foi
ou de Orixás, como Ogum e Oya (Gleason,
dada a importância que a sua obra merece
1999).
(LEAL, 2004), (SODRÉ, 2001). Nasceu em pleno tempo de escravismo criminoso na Bahia,
em 1851, e foi criado sobre as marcas deste
sistema injusto. Ficou órfão e foi criado por
Africanos no uso da
matemática
212
uma família que logo percebe seus talentos
artísticos e o envia para os cursos de artes.
Pequeno conto: O fazedor de fumaça branca
Foi convocado quando jovem para a Guerra
(Henrique Cunha Jr.)
do Paraguai, indo para o Rio de Janeiro, mas
devido aos seus estudos consegue ficar livre
Parece ser costume de certas tribos euro-
do recrutamento. Voltando à Bahia, inicia
peias realizar um estranho ritual. Todas as
ampla atividade sindical. Funda, em 1874, a
vezes, quando vão falar de África, o fazem
Liga Operária de Artesões da Bahia. Foi no-
em ambientes fechados e acendem grandes
meado vereador de Salvador, sendo reeleito
fogueiras. A fumaça branca logo toma o am-
pelo Partido Operário. Paralelo às atividades
biente e tolda os olhos e, mesmo olhando
político-sindicais, completa os estudos em
para as coisas da África, eles não veem nada.
artes e torna-se professor de Desenho. Dos
O hábito das fogueiras foi por muito tem-
estudos em Artes do Desenho, evolui para a
po praticado pelas comunidades de cientis-
Arquitetura. Foi intelectual ligado ao Institu-
tas. Um dia, alguns aboliram este método
to Histórico e Geográfico da Bahia. Escreveu
e se surpreenderam com o que viram. Qual
no jornal A Província e O Trabalho. Morreu
a surpresa quando viram, na África, todas a
em 1923, deixando vários livros sobre a cul-
origens dos conhecimentos europeus. A vai-
tura africana no Brasil.
dade era talvez a maior destas fogueiras.
A prepotência europeia fez com que as teo-
ções comerciais e culturais entre as diversas
rias racistas tivessem espaço na ciência do
regiões africanas. Deste modo, mostro que
ocidental, atrasando significativamente os
os conhecimentos, sobretudo os científicos
conhecimentos sobre o continente africano.
e tecnológicos, se propagam por todo o con-
Os povos africanos foram denominados de
tinente. Outros caminhos poderiam ser to-
tribais, incultos, meio irracionais e despro-
mados para este ensino, um deles é tomar
vidos de civilização. A onda de racismo nas
as construções africanas, relacioná-las com
ciências se proliferou nos séculos 19 e 20.
a Matemática e com a História da tecnolo-
Infelizmente, até hoje faz parte do conhe-
gia no continente africano (COSTA; CUNHA,
cimento difundido por muitos educadores
2004).
sem informações consistentes sobre o continente africano. Esta ausência de informa-
No continente africano, as bases numéricas
ção e a prática da desinformação faz desses
e as geometrias são diversas, mas existem
educadores uns racistas inconscientes das
em todos os povos, elaboradas em lógicas
suas formas de ação.
e formas de exposição que são, às vezes, de
difícil interpretação para quem foi formado
Deste fato resulta que muitos não se con-
na cultura brasileira ocidental. Esta dificul-
sideram racistas, mas executam práticas
dade de interpretação e de compreensão da
educacionais e sociais racistas. As práticas
forma de exposição levou, por muito tempo,
sociais inadequadas impediram a ciência
à conclusão errônea sobre a inexistência de
e os educadores de verem o esplendor das
conhecimentos matemáticos importantes
culturas de base africana e a contribuição
nestas culturas.
destas para o conhecimento da humanidade. Muitos dos feitos no campo do conhe-
As bases numéricas utilizadas são variadas
cimento matemático foram considerados
nas sociedades africanas (ZASLOVSKY, Clau-
como restritos ao Egito e não viam que estes
dia, 1973). Todas as sociedades africanas apre-
conhecimentos se expandiram por extensas
sentam formas de contar. As bases utilizadas
regiões do continente africano. Não conse-
são as bases 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 20 e 24.
guiam nem mesmo estabelecer que muitos
dos conhecimentos foram transmitidos de
Os conhecimentos de Geometria, no con-
outros povos africanos para o Egito. Quan-
tinente africano, não se restringem ao que
do eu leciono história africana (CUNHA JR.,
nós chamamos de Geometria Euclidiana.
1999), começo dividindo a África em ma-
Outras lógicas de composição geométrica
crorregiões em torno das grandes bacias
são encontradas. Uma delas, bastante di-
fluviais, e daí desenvolvo um mapa das rela-
fundida em diversas aplicações praticas, é
213
a Geometria Fractal. A Geometria Fractal é
africanas no Grande Zimbábue (MUBUMBI-
constituída de um elemento geométrico de
LA, 1992). O Grande Zimbábue é uma região
base, que sofre replicamentos por operações
na África Austral. Neste fractal, as figuras
de rotação e ampliação. Na Geometria Frac-
de base são os quadrados e suas rotações,
tal, cada elemento é constituído de um con-
com ampliações dos lados dos quadrados
junto de elementos com o mesmo formato,
nas mesmas proporções. Esta figura geomé-
mas em tamanho e disposição diferentes.
trica de base da esquerda aparece, na cultu-
Os exemplos da Geometria Fractal apare-
ra da região, de diversas formas estilizadas.
cem na construção de vilas de casas numa
Ela está gravada em tecidos, leques de fibra
cidade, em formas de penteados de cabelos,
vegetal e desenhos corporais. Entretanto,
em padronagem de tecidos ou em paredes
este fractal tem uma importância maior
acústicas em cabanas (CUNHA JUNIOR/ME-
para a Matemática. Ele permite termos uma
NEZES, 2002). Aqui no Brasil, as geometrias
demonstração original do teorema de Pitá-
fractais aparecem na arte das culturas afro-
goras pelas áreas das figuras geométricas
descendentes, sendo um excelente exemplo
inscritas. Trata-se de uma demonstração
alguns trabalhos de Emanoel Araújo, como
importante de geometria, bem difundida em
também de Aluisio Carvão. No campo da
uma grande região africana.
214
Matemática ocidental, o conhecimento da
Geometria Fractal é muito recente e tem
Para quem quiser ver a demonstração, te-
tido grande utilidade nas áreas de produção
mos que a área do quadrado mais externo é
de circuitos semicondutores, nos campos da
igual à do quadrado interno mais os quatro
Informática para representação e reconstru-
triângulos retângulos complementares. O
ção de formas complexas. As aplicações de
lado do quadrado interno é a hipotenusa do
Geometria Fractal estão relacionadas com
triângulo retângulo. O lado do quadrado ex-
as Tecnologias da Informática.
terno é igual à soma dos lados do triângulo
retângulo. A área do triangulo retângulo é a
Para exemplificar a realização de uma figura
área do retângulo, dividida por dois. Escre-
de Geometria Fractal, foi tomado o fractal
vendo a igualdade das áreas, sai o quadrado
de quadrados do Zaire, que aparece no livro
da hipotenusa, que é igual à soma do qua-
de Mubumbila sobre ciências e tradições
drado dos catetos.
Figura 1 - Os quadrados fractais e suas variantes iconográficas.
Matemática nos terreiros
Nos anos de 1980, as Ciências da Matemática de Sistemas Dinâmicos Complexos es-
A minha formação em Engenharia me levou
tavam impactadas pelo que era considerado
a uma especialização em Sistemas Dinâmi-
um dos maiores avanços na ciência, que a
cos. Esta é uma área da Matemática que
teoria do Caos. Esta teoria mudou muita a
lida com sistemas que têm movimento e
nossa visão de cientistas sobre a organiza-
que fazem, deste movimento armazenado,
ção das ciências e sobre a nossa capacidade
energia. Eu também tinha conhecimentos
em prever fatos da natureza através das ci-
em História africana e estava, em 1987, pre-
ências. A teoria do Caos explica a organiza-
ocupado com as questões das tecnologias
ção interna de grandes distúrbios que pare-
africanas transportadas e modificadas por
ciam ser totalmente desorganizados e sem
africanos e afrodescendentes na História do
uma explicação matemática. Foi uma teoria
Brasil e das Américas. Por esta razão, eu vim
revolucionária, que mostrou a importância
a conhecer duas historiadoras que trabalha-
de pequenos efeitos físicos na produção de
vam com História das tecnologias na África,
gigantescos efeitos no futuro distante. A di-
as Dras. Adelina Apena, da Nigéria; e Gloria
vulgação da teoria do Caos foi feita dizendo
Emengale, de Trinidad e Tobago. Ambas ti-
que ela demonstrava que as batidas das asas
nham se doutorado na Nigéria. Elas foram
de uma borboleta na Ásia poderiam ser o iní-
as pessoas que apresentaram os trabalhos
cio de uma imensa turbulência atmosférica,
de Judith Gleason (GLEASON, 1999), Paulus
como um tufão no Caribe, alguns meses ou
Gerdes (GERDES, 1993, 1990) e Claudia Zaslo-
anos mais tarde. A exposição desta teoria
vsky (ZASLOUSVY, 1973), sobre Matemática
do Caos se realizou por uma representação
nas sociedades africanas.
matemática específica em diagramas circu-
215
lares, mostrando as trajetórias caóticas das
A Informática trabalha com zeros e uns,
variáveis observadas (CUNHA JR.; COSTA;
constituindo uma base de estrutura do cál-
HOLANDA; MENESES, 2004).
culo binária, desenvolvida pela Álgebra de
Boole. Neste sistema, os números 2, 4 e 16
O que tinha de impressionante em tudo
são de grande significado. Os computado-
isto? Estas representações da teoria do Caos
res eletrônicos evoluíram nas combinações
já existiam há séculos nas representações da
resultantes de 16 elementos, bits, para 32,
Deusa Oya, nas religiões africanas. Esta re-
64, 256, 1.024 e 4.096 e assim por diante. O
presentação está relacionada, na cultura do
interesse científico com relação à cultura do
Terreiro, com os fenômenos de turbulência
Terreiro aparece quando observamos que os
atmosférica de grandes ventos. O trabalho
jogos africanos seguem esta mesma lógica.
de Judith Gleason (GLEASON, 1999) era mais
Os elementos de partida, no jogo de búzios,
surpreendente, pois mostrava a existência
são 16, e se procura a informação pela com-
de uma combinação turbulenta atmosférica
binação desta probabilidade de ocorrência
de dimensão continental e de formação caó-
do búzio aberto (hum) e do búzio fechado,
tica justamente sobre o continente africano
(zero), numa estrutura de 16 combinados
e muito bem representada no conhecimen-
dois a dois. O jogo de búzios é realizado por
to religioso do Candomblé. Deduzimos, daí,
um especialista, depois de um longo perí-
que o conhecimento da teoria do Caos, que
odo de formação. Pois, ao movimento das
é recente para a ciência ocidental, já estava
peças do jogo, que são os búzios, está asso-
registrado e exemplificado como conheci-
ciada uma interpretativa filosófica, que são
mento religioso africano de diversas formas.
os Odus, e cuja complexidade implica uma
Esta impressionante constatação mexeu
ampla reflexão sobre o destino possível dos
demais com a minha emoção e com o meu
seres individuais e da sociedade na sua to-
respeito em relação aos conhecimentos do
talidade.
Terreiro. O meu respeito pelo conhecimento
ancestral triplicou, não se tratava apenas da
Nas sociedades africanas tradicionais, esta
minha história, mas de histórias significati-
formação de especialista no jogo dura perío-
vas para o conhecimento da humanidade.
dos de até 20 anos.
Desde então, a procura se ampliou, e não
Mas a existência de uma estrutura numérica
tinha como não me inquietar pela organi-
2, 4, e 16 nos terreiros poderia ser tida como
zação dos chamados jogos de adivinhação
simples coincidência. Assim seria, mas não
africanos (BASCOM, 1980), cujo exemplo bas-
é. Não é, dado o conhecimento, pelos afri-
tante conhecido é o jogo de Búzios, no Brasil.
canos, de jogos de tabuleiros com esta es-
216
trutura de 16 casas e jogados com dois ele-
ralizados sob o nome de Mancala. Algumas
mentos, nos quais se pode fazer cálculos em
mancalas são ábacos usados para cálculo
diversas bases numéricas, em particular na
aritmético, como se fosse um computador
base binária. O conhecimento do equivalen-
de madeira.
te à Álgebra de Boole, ocidental, nas sociedades africanas, é possível que date de mais de
As mancalas são jogos executados em tabu-
3.000 anos. O professor Dr. Africano Muleka,
leiros de madeira, geralmente muito orna-
radicado no Brasil e trabalhando em Jequié,
mentados. Têm duas filas de casas côncavas
na Bahia, apresentou tese na Universidade
para cada lado de cada jogador. Nas bases
de São Paulo, mostrando estas evidências
das sequências de casas, temos duas cavida-
dos jogos de Búzios e da ligação destes com
des maiores para servirem de depósito das
o cálculo de estruturas computacionais.
peças capturadas durante o jogo por cada
Estes são dois dos muitos exemplos signifi-
jogador. As mancalas mais conhecidas têm
cativos de conhecimentos em Matemática
duas fileiras paralelas de seis casas e são
e Informática que podemos encontrar nas
atribuídas, a cada casa, quatro peças ou
culturas de comunidades de terreiros.
quatro sementes para o funcionamento do
jogo. Temos mancalas como o Yolé, com 30
Aware, um jogo milenar
africano
casas, organizadas em 5 colunas, e jogado
com 12 peças de cores diferentes em cada
casa.
Aware ou Oware é um jogo que era jogado especialmente pelos povos Ashanti, de
Na versão mais simples da Mancala, temos
Gana, e foi devido ao estudo deste povo que
o tabuleiro de 12 casas e o jogo começan-
tomei o primeiro conhecimento deste jogo
do com 4 peças em cada casa. O objetivo do
em 1982. Mas, depois, vim a saber que este
jogo é recolher o maior número possível de
jogo é encontrado em muitas regiões africa-
peças do jogador oponente. Para realizar o
nas, com diferentes nomes. Adi no Daomé,
jogo, um dos jogadores vai tomar as peças
Andot no Sudão, Wari ou Ouri, no Senegal e
de uma das suas casas e distribuí-las nas ca-
Mali. O jogo também chegou a diversas re-
sas do outro jogador, sendo uma por cada
giões das Américas, inclusive ao Brasil, com
casa, no sentido anti-horário. Neste sentido,
os nomes de Oulu, Walu, Adji e Ti. Estas de-
os depósitos das extremidades do tabuleiro
nominações fazem parte de um conjunto
têm a função de casa. Quando se passa pelo
de jogos e formas de cálculo em tabuleiros
próprio depósito, deixa-se aí uma das peças,
encontradas nas diversas partes da África e
quando na distribuição se passa pelo depósi-
da diáspora Africana, que podem ser gene-
to do oponente, se pula a distribuição.
217
Quando, na distribuição das peças de uma
BATISTA, Nair. Valentin da Fonseca e Silva.
casa para as outras, a última peça cai no seu
Revista do SPHAN, v. 4. Rio de Janeiro, 1940.
depósito, então você joga de novo. Mantém-se o mando do jogo. Ou seja, escolhe-se
uma casa e se distribuem as peças aí contidas, uma a uma, em sequência anti-horária.
Agora, na distribuição das peças, se a última
cair numa casa do seu lado, você leva para
o seu depósito todas as peças aí contidas.
Se o buraco estiver vazio, leva-se esta peça
e todas da casa do lado oposto. O jogo termina quando toda uma fileira de casas de
um jogador estiver vazia. Aí, são contadas as
peças contidas em cada depósito, vencendo
CARVALHO, Maria Alice Rezende. O Quinto
Século. André Rebouças e a Construção do
Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1998.
COSTA, Eliane Onuwale; CUNHA JUNIOR,
Henrique. Construções Históricas Africanas e Construtivismo Etnomatemático em
Sala de Aula de Escola Pública de Maioria
Afrodescendente. Anais do Segundo Congresso Brasileiro de Etnomatemática. CBEM2,
2004.
quem tiver maior número de peças. O jogo
COSTA, Luiz Augusto Maia. O Ideário Urba-
implica uma constante observação de qual
no Paulista na Virada do Século. Engenheiro
casa se começa a tirar as peças e qual o nú-
Teodoro Sampaio e Urbano Moderno (1886
mero de peças contidas para se manter a
– 1903). São Paulo: Dissertação de Mestrado.
continuidade de mando de jogo.
FAU – USP, 2001.
Em algumas regiões da África, o jogo é re-
CUNHA JUNIOR, Henrique e MENESES, Ma-
alizado na área, cavando-se pequenos bu-
rizilda. Formas Geométricas e Estruturas
racos em linha e utilizando pedregulhos ou
Fractais na Cultura Africana e dos Afrodes-
conchas como peças para os movimentos. O
cendentes. São Carlos: Anais do Segundo
mesmo pode ser realizado sobre uma mesa
Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros.
com pires de xícaras de café ou chá e um
2002.
prato de sobremesa como depósito.
CUNHA JUNIOR, Henrique. Africanidade,
Afrodescendência e Educação. Revista Educa-
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pp. 1549-1551. ISBN 85 89120-12.0.
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ZASLOVSKY, Claudia. How African count. In:
Quirino: Entre Letras e Lutas. Bahia, 1851-
African counts, numbers and patterns in Africa
1923. Tese de Doutoramento em História.
culture. S.l.: Prindle Weber and Smidt, 1973.
PUC - São Paulo, 2004.
p. 39-51.
219
III. A multiculturalidade na educação estética1
Ana Mae Barbosa2
Apresentação
Ser um professor multiculturalista é ser um
professor que procura questionar os valores
A necessidade de uma educação democrá-
e os preconceitos.
tica está sendo reivindicada internacionalmente, nos dias de hoje. Contudo, somente
uma educação que fortalece a diversidade
cultural pode ser entendida como democrá-
Sabemos que, no Brasil, há preconceito contra a própria ideia de multiculturalismo.
Para os mais preconceituosos, é coisa de
feminista histérica ou de “crioulo”; para ou-
tica.
tros, é invenção de americano, que não tem
A multiculturalidade é o denominador co-
nada que ver conosco porque, dizem, vive-
mum dos movimentos atuais em direção
mos numa democracia racial e as mulheres
à democratização da educação em todo o
aqui têm acesso ao poder e os negros não
mundo. Os códigos elaborados pelos euro-
são discriminados.
peus e pelos norte-americanos brancos não
são os únicos válidos, apesar de serem os
O crítico de cinema norte-americano Ro-
mais valorizados na escola, por razões fun-
bert Stam, em entrevista à Folha de S. Paulo
dadas na dependência econômica, que se
(04/07/95), lembra que o multiculturalismo
intensifica com a dependência cultural. A
tem tudo a ver com o Brasil. O modernis-
preocupação com o pluralismo cultural, a
mo de Mário de Andrade, a antropofagia de
multiculturalidade e o interculturalismo nos
Oswald de Andrade e a “Tropicália” de Cae-
leva necessariamente a considerar e respei-
tano e Gil são exemplos de um conceito de
tar as diferenças, evitando uma pasteuriza-
multiculturalidade mais amplo até do que o
ção homogeneizante na escola.
que os americanos estão manejando.
1
Debates: Multiculturalismo e Educação – 2002 / PGM 3.
2
Professora da ECA-USP (Pós-graduação, linha de pesquisa em Arte Educação).
220
Desenvolvimento
1.Compreender que a Arte pode conferir
identidade às pessoas através de sím-
O ideal mesmo será começar indagando porque o professor de Arte precisa trazer para
sua sala de aula a preocupação com as diferenças culturais.
bolos. Um exemplo: a Arte Haida e a
Arte contemporânea, no Canadá, e a
Arte Marajoara, no Brasil. Por que a
Arte Marajoara perdeu sua força para
conferir identidade e a Arte Haida,
A resposta, embora pareça óbvia, foi até ago-
também indígena da mesma América,
ra pouco considerada pelos educadores: em
tornou-se dignificadora para os seus
uma sala de aula, especialmente na escola
descendentes e respeitada pelos in-
pública, se inter-relacionam indivíduos de
divíduos de outras culturas, inclusive
diferentes grupos culturais, que terão sem-
dominantes? Atitudes pós-colonialis-
pre que lidar com outros indivíduos também
tas podem ser alimentadas pela atitu-
de diferentes culturas e subculturas.
de pluralista em relação à cultura.
Os grupos culturais que se imbricam podem
Uma criança negra que visite um museu
ser identificados pela raça, gênero, orienta-
que exiba arte ou “artefato” africano pode-
ção sexual, idade, locação geográfica, renda,
rá de lá sair com seu ego cultural reforçado
idade, classe social, ocupação, educação, re-
pelo conhecimento, apreciação e identifi-
ligião.
cação com os valores vivenciais e estéticos
da Arte Africana, ou completamente des-
As principais questões que norteiam a atitu-
possuído culturalmente e desidentificado
de multiculturalista no ensino da Arte são:
com a gênese de sua cultura, dependendo
da orientação que o profissional do museu
1. Como diferentes grupos culturais po-
que o receba der a sua visita. Já vi orientado-
dem encontrar um lugar para a Arte
res de museu ao falarem de Arte africana se
em suas vidas?
referirem apenas à escravidão e aos fazeres
manuais dos escravos para contextualizar
2. Entender que grupos culturais diferen-
os objetos e em nenhum momento se re-
tes têm também necessidade da Arte,
ferirem às suas qualidades estéticas. Entre-
mas que o próprio conceito de Arte
tanto, quando se confrontavam com a Arte
pode diferir de um grupo cultural para
de código europeu e norte-americano bran-
outro.
co, a contextualização era institucional e a
apreciação transcendental, apelando para a
A consciência de que estas questões são bá-
sensibilidade estética, a valoração econômi-
sicas, embora pareçam simples, ajudaria a:
ca e a identificação com status social. Além
221
disso, a consciência relativa a estas questões
sugere uma interpretação para a qual co-
também contribui para:
laboram uma gramática, uma sintaxe, um
campo de sentido decodificável, a decodifi-
2. Sensibilizar para problemas de deficiência física e diferença de raças, nacio-
cação do mundo e a poética pessoal do decodificador.
nalidade, naturalidade, classe social,
religião.
A ênfase na contextualização é essencial em
todas as vertentes da educação contempo-
3. Libertar-se de atitudes discriminatórias
rânea, quer seja ela baseada em Paulo Freire,
em relação a pessoas de origem étnica
Vygotski, Apple, ou genericamente constru-
e ou cultural diferente.
tivista. Sem o exercício da contextualização,
corremos o risco de que, do ponto de vis-
4. Ser capaz de responder à diversidade
racial, cultural e de gênero de maneira
ta da Arte, a pluralidade cultural se limite a
uma abordagem meramente aditiva.
positiva e socialmente responsável.
A multiculturalidade aditiva vem sendo veÉ através da contextualização de produtos e
ementemente criticada por sociólogos, an-
valores estéticos que a atitude multicultura-
tropólogos, educadores e arte educadores.
lista é desenvolvida.
Por abordagem aditiva entendemos a atitude de apenas adicionar à cultura dominante
Para uma experiência cognoscente que im-
alguns tópicos relativos a outras culturas.
pulsione a percepção da cultura do outro
e relativize as normas e valores da cultura
Multiculturalidade não é apenas fazer cocar
de cada um teríamos que considerar o fazer
no “Dia do Índio”, nem tampouco fazer ovos
(ação), a leitura das obras de Arte (aprecia-
de Páscoa ucranianos ou dobraduras japo-
ção) e a contextualização, quer seja históri-
nesas ou qualquer outra atividade clichê de
ca, cultural, social, ecológica, etc.
outra cultura.
Os PCNs preferiram designar a decodifica-
O que precisamos é manter uma atmosfe-
ção da obra de arte como apreciação. Cos-
ra investigadora na sala de aula acerca das
tumo usar a expressão “leitura” da obra de
culturas compartilhadas pelos alunos, tendo
Arte em lugar de apreciação, por temer que
em vista que cada um de nós participa no
o termo apreciação seja interpretado como
exercício da vida cotidiana de mais de um
um mero deslumbramento, que vai do arre-
grupo cultural.
pio ao suspiro romântico. A palavra leitura
222
Por exemplo, eu me defino, ao mesmo tem-
turais, preconceitos, discriminação,
po, como mulher, do ponto de vista de gêne-
racismo.
ro; nordestina, do ponto de vista da locação
cultural; arte educadora, do ponto de vista
4. Enfatizar o estudo de grupos particula-
da ocupação; branca, do ponto de vista da
res e/ou minoritários do ponto de vis-
etnia; heterossexual, do ponto de vista da
ta do poder como mulheres, índios e
orientação sexual; classe média, do ponto de
negros.
vista da renda. Portanto, pertenço a alguns
grupos de cultura dominante, mas também
5. Possibilitar a confrontação de proble-
pertenço a grupos culturais discriminados,
mas tais como racismo, sexismo, defi-
como o de mulheres e de nordestinos em
ciência física ou mental, participação
São Paulo. Além disso, como arte educado-
democrática, paridade de poder.
ra, sou discriminada por artistas, historiadores e críticos, os grupos dominantes na área
de Arte.
Diria que, para termos uma educação multiculturalista, crítica em Arte, é necessário:
6. Examinar a dinâmica de diferentes culturas.
7. Desenvolver a consciência acerca dos
mecanismos de manutenção da cultura dentro de grupos sociais.
1. Promover o entendimento de cruzamentos culturais através da identificação de similaridades, particularmente
8. Incluir o estudo acerca da transmissão
de valores.
nos papéis e funções da arte, dentro e
entre grupos culturais.
9. Questionar a cultura dominante, latente ou manifesta, e todo tipo de opres-
2. Reconhecer e celebrar diversidade ra-
são.
cial e cultural em Arte em nossa sociedade, enquanto também se potenciali-
10. Destacar a relevância da informação
za o orgulho pela herança cultural em
para a flexibilização do gosto e do juí-
cada indivíduo.
zo acerca de outras culturas.
3. Incluir em todos os aspectos do ensino
Embora isto esteja com cara de 10 manda-
da Arte (produção, apreciação e con-
mentos da multiculturalidade em Arte, ar-
textualização) problematizações acer-
riscaria dizer que não são um regulamento,
ca de etnocentrismo, estereótipos cul-
mas lembretes críticos que, se postos em
223
prática, desmentiriam muitos preconceitos
culturais,como, por exemplo, a ideia de que
3. A relativização de valores em relação ao
tempo.
a melhor Arte é a produzida pelos europeus
e a ideia de que a pintura a óleo e a escultura
Propor atividades, como identificar as for-
em mármore são as mais importantes for-
mas de Arte que importam em uma varie-
mas de Arte. Estas ideias só reforçam o códi-
dade de culturas e subculturas, seria uma
go hegemônico. Outra ideia preconceituosa
estratégia que poderia levar a uma atitude
de que a melhor Arte tem sido produzida
multiculturalista.
por homens também seria desmentida se
a contextualizássemos em relação ao papel
Educação Multiculturalista permite ao alu-
secundário que as sociedades têm determi-
no lidar com a diferença de modo positivo
nado para as mulheres. A diferença hierár-
na Arte e na Vida.
quica entre artesanato e Arte, que é também
preconceituosa, seria contestada se anali-
Não adianta nada fugir do uso de palavras
sássemos o valor dos saberes dos pobres e
como branco, negro, raça, etc. A chamada
dos ricos auferido pela cultura dominante.
linguagem politicamente correta, como diz
Gloria Steinem, foi criada pelas feministas
Para chegarmos à desmistificação de muitos
para ironizar o comportamento masculino
preconceitos é necessário discutir:
que buscava escamotear a discriminação.
O engraçado é que todos levaram a sério,
1. A função da Arte em diferentes culturas;
quando a luta antidiscriminatória consiste
em falar a verdade abertamente, dar o ver-
2.O papel do artista em diferentes culturas;
dadeiro nome que designa o preconceito e
não se adaptar aos novos tempos através
de designações científicas ou supostamen-
3. O papel de quem decide o que é Arte e
o que é Arte de boa qualidade em dife-
te respeitosas, como etnia em vez de raça,
afro-brasileiro em vez de negro.
rentes culturas;
Ao substituirmos raça por etnicidade, um
Estas discussões contribuiriam para:
1. O respeito às diferenças;
princípio de organização socioeconômico e
de coesão, inadvertidamente negamos a historia do racismo (JAN JAGODZINSKI, 1997).
2. O reconhecimento de manifestações
Isto significa que a responsabilidade dos
culturais que não se encaixam no sis-
brancos pela exploração e opressão dos ne-
tema de valores que subscrevemos;
gros e índios é suavizada pela demissão da
224
história. Continuaremos a mostrar a nossos
alunos o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, como uma magnífica obra de Arte,
sem analisar o fato de que ela comemora um
episódio colonialista de nossa história, no
qual a matança e a escravização dos nativos
– os índios – atingiu proporções dizimadoras?
1997.
JAGODZINSKI, Jan. “The politics of difference:
the fate of art in an age of identity crisis”. In:
Phoebe Farris-Dufrene (ed.). Voices of color .
Atlantic Highlands, New Jersey, Humanities
Press, 1997.
MCLAREN,Peter. Multiculturalismo Crítico.
O politicamente correto é um clichê.
São Paulo, Instituto Paulo Freire/ Editora
Cortez, 1997.
O que acontece em geral é que mudou a linguagem, mas o preconceito permanece ago-
MARCUS, George E. and MYERS, Fred R. The
ra disfarçado.
traffic in culture. Berkeley, University of California Press, 1995.
Militância multiculturalista é compromisso
com o desmonte de preconceitos e não com
linguagem atenuante.
MEMMI, Albert. The colonizer and the colonized. Boston, Beacon Press, 1970.
RETAMAR, Roberto Fernandes. Caliban. In:
REFERÊNCIAS
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SAID, Edward. Orientalism. New York, Pan-
BANKS, James; BANKS, Cherry Mcgee. Multicultural Education. Boston, Allyn and Bacon,
1997.
BERGER, Manfred. Rio Grande do Sul, DIFEL,
1976.
theon Books, 1978.
SHOTTER, John. Cultural politics of everyday
life. Toronto, University of Toronto Press,
1993.
SHUSTERMAN, Richard. Pragmatist aesthe-
CHALMERS, Graeme. Celebrating Pluralism.
tics: living beauty, rethinking art. Oxford, Bla-
Los Angeles, The Getty Education Institute
ckwell, 1992.
for the Arts, 1996.
TAYLOR, Charles. Multiculturalism: exami-
FREIRE, Paulo. A educação como prática de
ning the politics of recognition. New Jersey,
liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968.
Princeton University Press, 1994.
GLAZER, Nathan. We are all multiculturalists
TREND, David. Cultural Pedagogy: Art/Educa-
now. Cambridge, Harvard University Press,
tion/Politics. New York, Bergin& Garvey, 1992.
225
IV. A construção estético-cultural de um espaço1
Laura Maria Coutinho2
“As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança,
torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira,
ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos
mais exatos, um signo linguístico, comunica ou expressa alguma coisa3”.
Assim como a primeira imagem da vida, a
O que faz o cinema, então? Cria imagens que
que se refere Pasolini na epígrafe acima, cada
são, ao mesmo tempo que as vemos como
um de nós traz consigo a imagem da sua pri-
reais, expressão de coisas e pessoas com as
meira escola ou ainda a primeira imagem de
quais convivemos em nossas lembranças. E
uma escola, ainda que esta nem tenha sido
as lembranças têm origem em muitos luga-
a sua.O primeiro professor, ou professora
res e situações: nas histórias que ouvimos
- geralmente as mulheres atuam mais nes-
em casa, nas experiências pessoais de cada
ses anos iniciais de escolarização -, também
um, na televisão, nos filmes. Também por
compõem nosso banco pessoal de imagens,
isso gosto da ideia de que o cinema é uma
escolares ou não. Os primeiros colegas... a
arte da memória4. As cenas que vemos es-
turma, a fotografia da turma - quando isso
tampadas nas telas não dizem somente da-
fosse possível. Todas essas imagens ensinam
quelas personagens cuja história se desen-
e conformam a ideia que vamos ter dos lu-
volve à nossa frente, no tempo que durar a
gares sociais por onde transitamos. É assim
projeção, mas remetem a todas as outras
com a escola, a família, o trabalho, a cidade,
histórias e personagens que habitam as nos-
os hospitais, os hospícios, as prisões...
sas lembranças. O cinema, com alguns dos
2
Professora da Faculdade de Educação da UnB. Consultora desta série. Participaram de uma discussão na
disciplina “Imagem e educação”, de onde se originou este texto, os professores Maria Madalena Torres, Cristiane
Terraza, Neusa Deconto, Paula Miranda, Mário Maciel-Marel.
3
Pasolini, Pier Paolo. “Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas” em: Os jovens infelizes: antologia de
ensaios corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 125.
4Ver Almeida, Milton José de. Cinema - arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999.
226
seus filmes, nos faz até mesmo sentir sau-
histórias, os personagens nos acompanham,
dade de lugares aonde nunca pisamos e de
solitárias, para além do filme, às vezes para
pessoas com as quais jamais estivemos. E o
sempre. Na escola, quando o filme termina,
faz em realidade e ficção.
é possível conversar sobre ele e construir
uma ou quantas outras histórias cada pes-
No cinema, são os ambientes que (re)-conhe-
soa que viu quiser acrescentar.
cemos claramente que sugerem ações, comportamentos, atitudes que podem, além de
São muitas as razões que justificam o cine-
nos fazer olhar para o filme, olhar também
ma na escola. A sala de aula não é uma sala
para os lugares onde vivemos e, igualmente,
de cinema. Talvez por isso mesmo possa se
para a vida que levamos em casa, na cidade,
constituir em um outro ambiente, que não
na escola. Disse (re)-conhecemos, porque
é nem um nem outro, nem a simples soma
embora possamos estar vendo os lugares fic-
dos dois. Pode se transformar em algo novo,
cionados que o cinema apresenta, pela pri-
tão ou mais rico em possibilidades expres-
meira vez, os mecanismos de construção da
sivas e reflexivas: os filmes, na escola, são
linguagem cinematográfica ativam as lem-
projetados em telas de tevê e o videocassete
branças e assim, vemos as imagens na tela
proporciona outras formas de ver. Pode-se
não somente com o que objetivamente nos
parar o filme, voltar a fita, ver novamente.
mostram, mas também em reminiscências.
Acontece uma outra relação com os filmes
Por meio da linguagem do cinema, é possí-
que, no cinema, uma vez iniciados, seguem
vel ver tudo o que as imagens nos sugerem.
certo percurso espaço-temporal sem ser in-
No momento da projeção, acontece sempre
terrompido. Ainda que o espectador possa
um jogo entre a objetividade das imagens e
levantar e sair da sala, o filme prossegue, a
a subjetividade das lembranças de cada um
menos que falte luz. É bom lembrar, portan-
dos espectadores.
to, que estamos falando de linguagens que
dependem de energia elétrica.
Por isso, o cinema na escola pode ser tão
rico. Mais do que os conteúdos que cada fil-
Professores e alunos podem utilizar filmes
me possa trazer, a presença do cinema na
por muitos motivos: para enriquecer o con-
escola pode se constituir em momentos de
teúdo das matérias, para introduzir novas
reflexão que transcendam os próprios filmes
linguagens à experiência escolar, para mo-
e incluam o olhar de cada um à narrativa que
tivar os alunos para certo tipo de aprendi-
o diretor propôs e nos ofereceu, em imagens
zagem, para o desempenho de determinada
e sons. Quando vamos ao cinema, às salas
função, para entretenimento. Não que o ci-
escuras de projeção, ao final, as imagens, as
nema chegue na escola sem conflitos. Talvez
227
o cinema na escola deva mesmo se consti-
Um dos múltiplos cenários que o cinema
tuir em oportunidades para a explicitação
contempla é a própria escola. Inúmeros
dos conflitos com os quais a escola e a edu-
filmes tratam dela. Assim, direta ou indire-
cação têm de lidar.
tamente, os filmes nos ajudam a construir
nossa imagem de escola, de professores,
Milton José de Almeida diz que “o filme é
de alunos e, até mesmo, da forma como a
produzido dentro de um projeto artístico,
educação escolarizada se insere ou deve se
cultural e de mercado - um objeto da cul-
inserir na sociedade. Convido, então, a uma
tura para ser consumido dentro da liber-
breve reflexão sobre como a escola é vista
dade maior ou menor do mercado. Porém,
pelo cinema, ou como alguns filmes tratam
quando é apresentado na escola, a primeira
as relações que ocorrem nesse espaço so-
pergunta que se faz é: ‘adequado para que
cial. Os personagens que por ali transitam,
série, que disciplina, que idade etc.?’ Às ve-
os papéis que desempenham, as tramas, os
zes ouvimos dizer que um filme não pode
desafios, os conflitos. Penso que a filmogra-
ser passado para a 6ª série, por exemplo,
fia que tem a escola como cenário principal
e no entanto ele é assistido em casa pelo
da narrativa não é tão extensa quanto a que
alunos, juntamente com seus pais.(...) [A
tem como cenário as prisões, por exemplo.
escola] está presa àquela pergunta sobre a
Talvez porque para haver um filme é preci-
adequação, à ideia de fases, ao currículo,
so algum tipo de conflito e os conflitos, nas
ao programa. Parece que a escola está em
prisões, são mais evidentes do que nas esco-
constante desatualização, que é sublinhada
las, têm mais impacto visual. É bom lembrar
pela separação entre a cultura e a educação.
que estamos falando de filmes de ficção e
A cultura localizada num saber-fazer e a es-
não de documentários.
cola num saber-usar, e nesse saber-usar restrito desqualifica-se o educador, que vai ser
Os campeões de audiência, ou os sucessos de
sempre um instrumentista desatualizado”5.
bilheteria, nas escolas, são os filmes que tra-
Entendo a provocação proposta por Milton
tam de situações escolares-educacionais, ou
Almeida como um desafio a todos os edu-
de outras que acontecem dentro delas, ou,
cadores que estão nas escolas e encontram
ainda, que têm as escolas como referência,
nos filmes e na linguagem cinematográfica
pano de fundo. Penso que o que professores
uma forma de ver o mundo em seus múlti-
e alunos buscam, ao levar esses filmes para
plos cenários.
a escola, são as situações exemplares que o
5Almeida, Milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994, p.8.
228
cinema tão bem retrata. Não quero aqui res-
O mundo visto pelo cinema tem matizes
tringir o que chamo de exemplar, a simples
próprios, embora os filmes retratem a vida
exemplo a ser seguido. Talvez fosse melhor
como ela é, cheia de contradições, as histó-
dizer modelar, como alguma coisa que pode
rias apontam para a transformação, para a
conformar a nossa imaginação e a nossa
mudança. Talvez porque a escola seja mes-
memória e, até mesmo, a nossa maneira
mo um ambiente propício às mudanças ou
de perceber o mundo e a sociedade que nos
porque o filme não se concretizaria sem
cerca. Encontrei em muitos escritos, filmes,
que cumprisse a sua estrutura narrativa:
programas de tevê, uma ideia sobre isso e
apresentação, desenvolvimento, conflito,
que pode ser traduzida mais ou menos as-
clímax, desenlace. “A narrativa parece ser o
sim: toda imaginação é uma espécie de me-
modo mais simples e eficaz de nosso conhe-
mória6.
cimento, o modo pelo qual apresentamos o
mundo e os homens de forma que, por um
Assim retorno ao que já expus no início do
momento, sejam inteligíveis para nós mes-
texto: a linguagem cinematográfica, os fil-
mos. Conhecer pode ser apenas isto: contar
mes que vemos - na escola ou fora dela -,
uma história onde o espaço e o tempo do
as situações que imaginamos depois dos
mundo se conjugam na sucessão linear dos
filmes, irão compor, em estética e magia, a
acontecimentos”7.
memória de cada um. A ideia que cada um
de nós tem de escola transita, em realida-
Muitas das escolas que conhecemos nos
de e ficção, pelas imagens reais das escolas
filmes trazem a marca da sociedade ameri-
onde estivemos e imagens ficcionais que co-
cana. Somos alfabetizados audiovisualmen-
nhecemos através do cinema, da televisão.
te pelo cinema feito nos Estados Unidos.
Recorremos às nossas lembranças, sejam
Gosto da ideia de que o cinema americano
elas boas ou ruins, sempre que queremos
é o maior do mundo porque retrata uma so-
imaginar, projetar, criar alguma coisa nova.
ciedade que acredita no milagre. Talvez por
Ensinar e aprender são atos de criação; re-
isso mesmo tenha se apropriado, como ne-
correr aos filmes pode ser apenas parte des-
nhuma outra, da linguagem cinematográfi-
se esforço criativo.
ca, e feito dela uma de suas mais poderosas
6Esta frase encontrei no livro de Shirley Maclaine, (Dançando na luz, Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 37.)
que, talvez não por acaso, é atriz e roteirista, embora esse livro não trate de cinema.
7 Lázaro, André. Cultura e emoção: sentimento, sonho e realidade. In: Rocha, Everardo. (org.) Cultura &
Imaginário. Rio de Janeiro: Maud, 1998, p.151.
229
indústrias. Pequenos milagres se realizam a
vel professor; Conrak; Sociedade dos poetas
cada filme. Como a redenção da escola po-
mortos, Perfume de mulher (EUA), Adeus, me-
bre, de bairro mais pobre ainda, no filme
ninos (França). Assistimos a histórias com-
“Meu mestre, minha vida” do diretor John
pletamente possíveis, não há nelas nenhum
G. Avildsen. Lá os alunos estavam reféns de
efeito especial de linguagem. Os professo-
traficantes, vândalos e toda sorte de bandi-
res sobretudo, os diretores, os alunos, pais
dos e, pela intervenção de um novo diretor
cumprem a sua função e seu papel. Ora es-
com métodos nada convencionais de ensi-
tão mais próximos do herói redentor, ora do
nar e administrar uma instituição escolar,
bandido mais prosaico. A magia do cinema
conseguem vencer o exame estadual em
ali, é o próprio cinema, com a sua lingua-
tempo recorde.
gem que se expressa por meio da realidade,
mesmo sendo ficção. Procurando os filmes
Lembro que este filme deixa claro o fato de
brasileiros que passam em escola, encontrei
basear-se em uma história real. Uma vez
poucos. É bom lembrar que a nossa filmo-
mais realidade e ficção se fundem para rea-
grafia não é mesmo muito extensa por mui-
lizar o milagre de uma sociedade estratifica-
tos motivos que não cabem neste escrito. E
da, hierarquizada, legalista, centrada no es-
escrevendo este texto fiquei pensando que,
forço individual e na vida comunitária, qual
talvez, diferente dos americanos, sejamos
seja, formar vencedores. E o que é ser um
um povo que não acredita no milagre, mas
vencedor? A resposta a essa pergunta pode-
na vida como ela é. Talvez por isso não este-
mos encontrar em quase todas a imagens do
jamos cuidando o bastante do nosso ensino
filme, mas sobretudo num dos discursos do
público e tenhamos deixado o cinema para
diretor a seus alunos: precisamos mudar esta
os americanos e para alguns poucos obsti-
escola, pois vocês estão muito longe do sonho
nados conterrâneos que, além de acreditar
americano que vemos na tevê. Mas uma vez
no milagre do cinema, acreditam também
vemos as narrativas audiovisuais - do cine-
neste país.
ma e da televisão - constituindo a vida de
uma nação, ou pelo menos o seu imaginário.
Para encerrar esta nossa reflexão, recorro a
Jean-Claude Carrière8 quando diz que a na-
São muitas as histórias que envolvem a es-
ção que não produzir suas próprias imagens
cola que o cinema retrata, posso citar algu-
está fadada a desaparecer. Por isso penso
mas: A corrente do bem; Mr. Holland, adorá-
no cinema que vem de países que se dão a
8Roteirista e escritor. Presidente da FEMIS, escola francesa de cinema, autor do livro A linguagem secreta do
cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
230
conhecer por seus filmes de forma comple-
REFERÊNCIAS
tamente diversa da que vemos nos noticiários da tevê. A tevê nos revela imagens cons-
COUTINHO, Evaldo. A imagem autônoma: en-
truídas por um olhar estrangeiro. Os filmes
saio de teoria do cinema. Recife: UFP/Editora
por um olhar próprio. São assim os filmes
Universitária, 1972.
Os filhos do paraíso e Gabet; ambos tratam
com delicadeza e poesia situações escolares.
Muito diferentes do que vemos no cinema
americano, embora a educação para todos
os povos se constitua em um processo de
transformação. Talvez não seja exagero dizer, e se o for, deixo como forma de provo-
LEBEL, Jean-Patrik. Cinema e ideologia. São
Paulo: Mandacaru, 1989.
Lugar Comum - Estudos de mídia, cultura e
democracia. Núcleo de Estudos e Projetos
em Comunicação da Escola de Comunicação
da UFRJ, nº 9-10 set. 1999 abr. 2000.
car o debate, que a nação que não recorrer
às suas próprias imagens para educar suas
MIGUEL, Antonio; ZAMBONI, Ernesta (Orgs.).
crianças e seus jovens estará fadada a de-
Representações do espaço: multidisciplinarida-
saparecer duplamente. Mas como lembra
de na educação. Campinas: Autores Associa-
Manoel de Barros, “o mundo não foi feito
dos, 1996.
em alfabeto” e também não em linguagens
audiovisuais. Talvez possamos reunir todas
ROCHA, Everardo. (Org.) Cultura & Imagi-
as linguagens e construir, como ainda diz o
nário: interpretação de filmes e pesquisa de
poeta “uma didática da invenção”9.
ideias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
9BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1998.
231
V. O
espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão
de mensagens sobre afro-brasileiros1
Heloisa Pires Lima2
Se “é de pequenino que se torce o pepino”,
para a superação de desigualdades históri-
o velho dito popular não deixa de nos aler-
cas. É preciso, sobretudo, superar o silêncio
tar sobre o fato de que é mais fácil deixar
oficial, que consiste na ausência de um ma-
de introduzir um preconceito do que retirá-
terial de apoio bem cuidado, para referên-
-lo depois. A percepção dos afro-brasileiros
cia, o que resulta numa deficiente prepara-
também atravessa o ambiente escolar, onde
ção dos educadores.
estudantes são informados e formados no
que devem acreditar e valorizar a respeito
destes. Outro alerta está em não nos esquecermos de que o processo de construção de
identidades sempre necessita de referenciais. No entanto, se centralizarmos, para
análise, o repertório sobre afro-brasileiros
que entra através dos vídeos em sala de
aula, há de se concluir que ele, como motivo
de reflexão, é restrito e raro. Esta é uma das
formas cúmplices na reprodução das estereotipias que sobrevivem no cotidiano escolar,
base para percepções.
Como pressuposto primeiro, há para considerar o circuito dos meios de comunicação
eficazes, com suas representações da realidade, sendo o videográfico uma poderosa
linguagem transmissora de mensagens. Se
há críticas, que em sua maioria não são positivas, por que não potencializar esse instrumental a favor de uma educação baseada
nos valores inspirados nas perspectivas da
Lei n. 10. 639? Antes, porém, o exercício de
leitura dos conteúdos sempre se torna relevante. Tomemos, para exemplo, a representação de um personagem escravizado
Por outro lado, a demanda social por uma
bastante recorrente como referência para
cidadania plena para essa população tem no
a identidade sobre afro-brasileiros. A chave
espaço educacional um grande potencial
emocional do sofrimento como associação
1 Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 3
2 Consultora para a série Repertório afro-brasileiro. Antropóloga, Mestre e doutoranda pela USP, escritora
de livros infanto-juvenis como Histórias da Preta (1998).
232
pode ser uma armadilha para a correspon-
não estão nem com um pandeiro na mão,
dência. Um telespectador, se afrodescen-
nem como uma bola no pé e nem com uma
dente, tem que lidar com a dor exposta na
arma AR-15 na mão. A maioria negra, na opi-
tela e reviver constrangimentos históricos.
nião de Jéferson De, não mexe com pandei-
Não sendo, esta memória pode ainda levar a
ro, não mexe com uma AR-15 e não trabalha
concluir ser a população escravizada tão so-
com bola de futebol3.
mente um grupo de perdedores sociais. Retomar a escravização, geralmente com relações de poder unilaterais, reifica uma marca
social. O caso de reavivar um passado é mais
complicado ainda, visto serem os modelos
de referência sobre afro-brasileiros muito
restritos como leque de representações. O
problema não é ser escravizado, mas ser tão
somente e apenas escravizado. Isto sem falarmos no histórico dessas abordagens que
idiotizaram, tornaram paisagem, perpetuando a ideia de objetos posta na escravização, sem problematizar essa ideia. Ou, então, quando esses personagens se tornam
protagonistas, passam por um processo de
branqueamento infalível.
Dá para perceber, então, que acompanhando a questão dos livros que circulam na sala
de aula, o acervo ficcional de vídeos disponíveis deve ser selecionado de modo a ampliar
o repertório de associações sobre afro-brasileiros. Soma-se a isto o problema da abordagem nesses clichês, mais agravada quando o
público dessa produção é o infanto-juvenil.
Cabe atribuir aos meios de comunicação
uma alta cota de responsabilidade na oferta
de materiais que garantam o bem-estar social, moral, espiritual e mental da criança, o
que não pode ser deixado por conta da boa
vontade profissional e ética dos realizadores. É fundamental trabalhar a capacitação
dos telespectadores, incentivar o debate,
É importante acompanharmos o debate pro-
aprimorar formas seletivas que visem pre-
posto por uma inédita geração de cineastas
miar roteiros inovadores e cuidadosos. De-
negros, como a fala de Jeferson De, um dos
ve-se ressaltar o fenômeno do filme Kiriku e
idealizadores do Dogma Feijoada. Ao comen-
a Feiticeira, que tem inspirado inúmeras ini-
tar sobre uma presença de protagonistas ne-
ciativas de educadores atentos à qualidade
gros nos filmes nacionais, chama a atenção
da construção da figura humana africana. A
para o fato de que em todos foi colocada
afetividade que acompanha o personagem
uma arma na mão. Diferentemente, os ne-
demonstra um caminho para a inversão cul-
gros que ele procura retratar nos seus filmes
tural necessária como representação. Outro
3Entrevista realizada em 17/12/2002 - Por Thiago P. Ribeiro no site: htpp://www.cinemando.com.br
233
exemplo é O menino, a favela e a tampa de pa-
no entendimento das leis próprias desse có-
nela, do diretor Cao Hamburguer, que retra-
digo visual. Essa alfabetização também ne-
ta uma favela, referência como repertório
cessita ser iniciada.
associado aos afro-brasileiros. No entanto,
o que de fato é roteirizado é a história da
afetividade nas relações entre o herói real,
no ambiente real, mas que não é desvalorizado por ser espaço de pobreza. Tem uma
mãe que tem um abração do tamanho do
mundo, um guri que cumpre uma tarefa,
enfim um enredo que emociona e que valoriza positivamente, dignamente, e é preciso
ainda apontar, que humaniza o imaginário
sobre a vida na favela.
Uma variedade de possibilidades pode ser
observada na construção da África como
material cinematográfico, depois circulando como vídeo. Se sempre existe um ponto
de vista, uma abordagem na arquitetura da
representação, vale alertar que os africanos
foram retratados por décadas a partir de
representações caricaturais, de onde emanaram canibais, ingênuos, boçais, infantis,
macaqueadores do branco, travestis dos
europeus e incapazes de se governarem por
Outro aspecto, ao pensarmos no potencial
si mesmos. Eles não tinham inteligência e
da videoteca, está em promover o diálogo
não realizavam feitos pessoais. Carregados
entre pesquisadores e cineastas, o que seria
de faltas, circularam nas telas com o reforço
tão salutar quanto incentivar o registro por
de não terem a boa pele, o bom cabelo, a
educadores de suas atividades nessa lingua-
boa língua, a boa religião. Essa foi uma Áfri-
gem. A desconstrução da teia de ideias pos-
ca produzida por europeus e americanos,
ta numa película se aperfeiçoa no domínio
num elaborado sistema de ideias-imagens,
dessa tecnologia particular. O exercício pode
que montou um esquema de referências que
se estender aos alunos, que serão mais crí-
dá legitimidade à ordem vigente. Historica-
ticos e compreenderão melhor o processo,
mente, a África e os africanos são apresen-
se também se posicionarem como produto-
tados sob a viscosidade do paternalismo, em
res, seguidos pela avaliação da comunidade.
filmes onde geralmente apareceram estúpi-
Assim, eles estarão mais bem preparados
dos, subevoluídos, ridículos, selvagens, no
quando expostos a violências simbólicas na
patamar da animalidade, articulados num
difusão de mensagens que possam cons-
universo de desigualdade e troça.
tranger, oprimir, hierarquizar. A forma de
ver o filme em sala de aula, seguida de ativi-
E é exatamente por isso que as autoridades
dades participativas a ele relacionadas ou à
não podem permanecer indiferentes em re-
linguagem audiovisual do deleite, influencia
lação à garantia da qualidade do que é vei-
234
culado para as jovens idades. Quanto mais
____________. Estratégias e políticas de com-
tenras, menor a defesa para internalizar
bate à discriminação racial na mídia. In:
crenças e valores que circulam vinculadas
Munanga, K. (org.). Estratégias e políticas de
a estratégias de poder, à mediocridade pro-
combate à discriminação racial. São Paulo:
gramada, ao consumo, etc.
Edusp/Estação Ciência, 1996.
A Lei Federal n. 10.639, vinda de encontro a
FEILITZEN, Cecília von & Bucht, Catharina.
antigas reivindicações dos movimentos so-
Perspectivas sobre a criança e a mídia. Bra-
ciais negros, atinge o sistema de produção
sília: UNESCO, SEDH/Ministério da Justiça,
de material de apoio quando focaliza a vi-
2002.
deoteca pendente, ora para sua avaliação,
ora para o seu potencial para as mudanças
necessárias. Nesse contexto, vale salientar
ainda o espaço estratégico para programas
que discutam, atualizem, sejam vitrine das
IBEAC. A imagem do negro nos meios de comunicação. Relatório do Seminário realizado
em São Paulo, 1986.
produções, como é o caso dos programas
educativos, programas documentais com
JOLY, Martine. Introdução à análise de ima-
matérias que problematizem percepções de
gens, Campinas, Papirus, 2002.
mundo.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do munO encanto produzido por uma obra pode vir a
do. São Paulo, Cosac & Naif, 2002.
ser um instrumento de valorização positiva e
construtiva dos referenciais afro-brasileiros.
RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e
o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
REFERÊNCIAS
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AVELAR, José Carlos. Imagem e som - imagem
e ação. São Paulo, Paz e Terra, 1982.
ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo, Editora Senac, 2000.
realismo e representação racial. In: Imagens,
ago./dez., Campinas, São Paulo.
VASCONCELOS, Paulo C. Comunicação e imaginário na cultura infanto-juvenil. São Paulo:
Ed. Zouk, 2002.
235
VOVELE, Michel. Imagens e imaginário na
História. São Paulo, Ática.
VIDEOGRAFIA - CINEMATOGRAFIA
A Revolta do Video Tape - Rogério Moura (Bra-
Gênesis - Jefferson De (Brasil)
Geraldo Filme - Carlos Cortiz (Brasil)
Kirikou e a Feiticeira - Michel Ocelot (França)
La ultima Cena - Tomás Gutiérrez (Cuba)
sil)
Little Senegal - Rachid Bouchareb (Alg./Fr./
Abolição - Zózimo Bulbul (Brasil)
Al.)
Aruanda - Linduarte Noronha (Brasil)
Minoria Absoluta - Arthur Autran (Brasil)
Assalto ao Trem Pagador - Roberto Farias
O menino, a favela e as tampas de panela- Cao
(Brasil)
Hamburger (Brasil)
Cafundó - Joel Yamaji (Brasil)
O Rito de Ismael Ivo - Ari Candido (Brasil)
Candombe - Rafael Deugênio (Uruguai)
Carolina- Jéferson De
Redenção de Ogun - Moira Toledo (Brasil)
Um reino Xingu - Helena Tassara (Brasil)
Cecília - Humberto Solás (Cuba)
Rio 40 Graus - Nelson Pereira S. (Brasil)
Chico Rei - André Reis Martins (Brasil)
Rio Zona Norte - Nelson Pereira S. (Brasil)
Faça a Coisa Certa - Spike Lee (EUA)
Família Alcântara - Daniel Santiago (Brasil)
Filhas do Vento - Joel Zito Araújo (Brasil)
Ganga Zumba - Carlos Diegues (Brasil)
Ritmo N´Angola - Antônio Ole (Angola)
Vista Minha Pele - Joel Zito Araújo (Brasil)
Wild Style - Fab 5 Freddy (EUA)
236
VI. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural1
Maria Elisa Ladeira2
O problema teórico implícito nas propostas
esta escolha: em qual língua a alfabetização
educacionais relativas à aquisição da escri-
deveria ser efetivada3?
ta pelos povos indígenas esteve reduzido a
uma perspectiva metodológica (o processo
de alfabetização deve ser iniciado na língua
portuguesa ou na língua materna/indígena?)
e consumiu, durante décadas, educadores,
linguistas e antropólogos. Os argumentos e
ações envolvendo esta questão estavam voltados para o atendimento de uma demanda
muito concreta dos povos indígenas: o falar,
ler e escrever em língua portuguesa.
A opção pela “alfabetização em português”
tem tido como subtexto o fornecer ferramentas para esta decodificação (leitura)4 e
codificação (escrita), atendendo às exigências dos índios em se apropriarem desta
língua estrangeira, justificada em seus discursos como um instrumento de controle
da chamada “sociedade dominante”. Assim,
“(la) escritura aunque es ajena en una lengua
ajena sirve para ayudar en la lucha, evitar el
Como um subtexto sempre latente, este
engano, es vista como una herramienta de pro-
impasse teórico – que na realidade trata os
téccion e de defensa.” (Túlio R. Curieux. In:
povos indígenas apenas e tão somente ou
Reflexiones sobre el paso de la oralidad a la es-
como povos ágrafos ou como cidadãos anal-
critura ). O momento em que esta ferramen-
fabetos – teve a sua discussão reduzida a
ta será significada (politicamente), quando a
1 Oralidade, memória e formação – 2006 / PGM 1.
2 Coordenadora do Centro de Trabalho Indígena – CTI. Professora Dra. em Sociolinguística/ Semiótica pela USP.
3
“Uma das justificativas técnicas de que a alfabetização na língua deve preceder a alfabetização em
português é a de que o indivíduo é alfabetizado uma única vez, e que o ler e escrever numa segunda língua envolve
somente uma transposição do código aprendido. Portanto, seria mais fácil e mais rápido ser alfabetizado em sua
língua materna” (Ladeira, 1981).
4 Tendo em conta que ler é decodificar signos, quaisquer que sejam estes, aí poderíamos ampliar para as
várias leituras possíveis de um mesmo texto/contexto, o que esvazia a concepção de leitores passivos. Não existe
passividade na leitura, tanto quanto na escritura: quem lê/escreve o faz de uma determinada posição/lugar com
seus olhos, olhar dado pelo lugar que ocupa no mundo, pela interação que estabelece com esse mundo, por sua
história de vida e pela relação social construída por um dado povo com este estrangeiro em cuja língua se fala e se
escreve.
237
leitura/escrita passa a ser algo culturalmen-
em que possibilita a criação de neologismos
te significativo para a comunidade indígena
e alterações linguísticas em função da situa-
ou para a própria vida pessoal, independe, no
ção de contato, indicando um vigor linguís-
entanto, da ação e prática alfabetizadoras.
tico surpreendente (idem, ib., p. 170). O que
Ou seja, este tipo de domínio instrumental
pressupõe considerar estas sociedades tanto
da escrita não acarreta em si mudança al-
como resultado de uma história (seu “obje-
guma nos códigos internos de comunicação
to”) como sujeitos dela, na medida em que
e expressão da comunidade indígena. A es-
são capazes de construir estratégias de convi-
crita/leitura em português apresenta aí um
vência (ou sobrevivência, no sentido de resis-
caráter puramente utilitário e de alcance
tência e adaptação). E estas estratégias estão
limitado e, por isso, podemos considerá-las
inscritas na continuidade das práticas sociais
(porque se reproduzem culturalmente deste
e representações das sociedades indígenas –
modo) como “culturas ágrafas”.
que são, por sua vez, recriadas cotidianamente, seja como marcadores identitários “para
É neste contexto que ganha corpo a concepção segundo a qual “a língua indígena con-
fora”, ou como marcadores diferenciais internos ao mundo pan-indígena mais genérico.
tinua sendo um sistema de conhecimento e
categorização cultural do mundo, em que a
O outro lado da questão, aquele da alfa-
transmissão de conhecimentos, isto é, a rela-
betização se dar primeiramente na língua
ção única do indivíduo com seu mundo cultu-
materna, tem como subtexto o argumento
ral, só é possível através da língua do grupo”
segundo o qual os povos indígenas apre-
e da sua forma oral de transmissão (LADEIRA,
sentam uma falta, uma ausência do “letra-
2001, p. 170). Neste caso, o português (falado
mento”, que precisa ser sanada. Considera
e escrito) é empregado tão somente como
ainda que esta ausência fragilizaria não só a
língua-de-contato e em um contexto no qual
manutenção e uso da língua indígena, mas
os dois mundos, o indígena e o não-indígena,
o próprio povo em sua reprodução cultural.
se concebem como excludentes – e no qual
Logo, para suprir tal ausência, busca-se, en-
também a estabilidade das relações no inte-
tão, criar no seio de sociedades ágrafas o
rior do sistema linguístico é decorrente da
lugar da escrita, independentemente da in-
clara delimitação dos âmbitos de uso da lín-
tenção originária e que concretamente leva
gua. Podemos considerar tal atitude como
ou tem levado os povos indígenas a buscar
uma estratégia cultural da sociedade indígena
na escola o saber “estrangeiro”5. O que está
na manutenção da língua original, na medida
por detrás desta concepção, portanto, é que
5Escola, o principal dos lugares em que impomos como imprescindível para poderem se apropriar desses
estrangeiros, nós.
238
os povos ágrafos não passariam de cidadãos
bas, permitindo que antigas funções sejam
analfabetos. E para que esta necessidade da
desempenhadas de maneira nova e que, as-
escrita se faça mais rápida, independente-
sim, novas funções possam ser propostas ou
mente da situação e do contexto histórico
emergirem6. Entre estas duas concepções é
de um determinado povo, se impõe a neces-
que as propostas “educativas” para os povos
sidade de uma escrita “na língua” indígena.
indígenas se alicerçam, sendo que grande
parte delas não problematiza o alcance de
Tal posição teórica determina, equivocada-
suas propostas. Para aquelas que concebem
mente penso, a escrita como o lugar/espaço
um continuum entre oralidade e escrita, há
indispensável para a manutenção da cultura
como uma “naturalização” (uma evolução
de um povo, pelas seguintes razões:
latente) na passagem das sociedades ágrafas
para o mundo letrado. E, assim, a questão se
1) Exalta a língua independentemente do
reduz a uma falsa eficiência, na qual basta a
povo que a fala e de sua situação de uso; 2)
elaboração de materiais didáticos adaptados
esquece que não existe língua sem a atuali-
ao universo de interesses do povo em ques-
zação concreta da fala; 3) que esta atualiza-
tão, de formação/letramento de professores
ção é dada pelo contexto histórico e social
indígenas, e principalmente da criação de
daquela comunidade de falantes e 4) que
uma grafia para a língua indígena para que
como todo processo sociocultural, a língua
estes povos possam ter o mesmo estatuto
se altera/é alterada ao longo do tempo.
que a sociedade nacional.
A partir desses pressupostos iniciais, é possí-
Apesar do etnocentrismo subjacente, que vê
vel delinear duas teorias que embasariam es-
a escrita como a passagem para o esclareci-
tas duas concepções sobre o lugar/papel da
mento e a modernidade, já ter sido denun-
escrita para os povos indígenas. Uma, que
ciado pelas mais diversas correntes teóricas,
concebe um continuum entre a oralidade e
as preocupações de muitos pesquisadores
a escrita, considerando-as como meios lin-
com o possível desaparecimento da diversi-
guísticos essencialmente equivalentes para
dade linguística existente no Brasil têm re-
o desempenho de funções semelhantes.
sultado em ações que encontram respaldo
Outra, que estabelece um “divisor” entre a
na postura “continuísta” e parecem ter se
oralidade e a cultura escrita, embora reco-
esquecido da asserção etnocêntrica mencio-
nhecendo a importância interativa de am-
nada.
6
“Escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: é uma operação que influi necessariamente
nas formas escolhidas e nos conteúdos referenciais” (Gnerre, M. p.8).
239
De fato, dados históricos do desaparecimen-
frase lapidar: “a reflexão linguística de caráter
to das línguas indígenas no Brasil induzem
formal sistemático foi inevitavelmente coagida
o temor do linguista em relação à perda do
a adotar em relação às línguas vivas uma posi-
seu objeto de estudo em curto prazo. E este
ção conservadora e acadêmica, isto é, a tratar
medo subsidia a proposta em voga dos “cur-
a língua viva como se fosse algo acabado, o que
sos de formação de professores indígenas”,
implica uma atitude hostil em relação a todas
centrados no estudo da sua própria língua
as inovações linguísticas” (BAKTHIN, 1979, p.
(catalogação, organização de verbetes/dicio-
89 apud GNERRE, op. cit., p. 16).
nário) objetivando-a deste modo, sob o argumento de que a sua documentação con-
É no contexto do contato com a sociedade
tribuiria para diminuir o risco de sua perda.
nacional que a escrita na língua portugue-
Não discuto a procedência de se formarem
sa é exigida pelos índios, e aos quais tem-se
linguistas (ou antropólogos, ou médicos, ou
respondido com a imposição de que, para
advogados) indígenas; o que estou tentan-
dominar a língua portuguesa escrita, pre-
do apontar é que este tipo de pesquisa não
cisam primeiro aprender a escrever na sua
basta para afugentar o temor dos linguistas
própria língua – argumento embasado no
pelo “desaparecimento das línguas indíge-
pressuposto teórico, do qual não comparti-
nas”. O fato de um povo abandonar o uso de
lho, do continuum entre as formas da orali-
sua própria língua tem a ver com as condi-
dade e da escrita.
ções históricas impostas pelo contato com
a sociedade nacional e as estratégias encon-
Pretendo agora realçar alguns argumentos
tradas por este povo para sua reprodução
em relação à justificativa para a necessidade
física nestas condições.
da escrita da língua indígena, que me pare-
A história das línguas, como muitos já demonstraram, é nada mais, nada menos
cem extremamente perigosos do ponto de
vista político:
que a série dos contatos/intercâmbios entre povos. Portanto, querer transformar as
mudanças que ocorrem nas línguas, suas
inovações, em ameaças ou em “comprometimento linguístico”, o que afetaria o destino e a identidade dos povos indígenas, parece-me deslocar equivocadamente o eixo da
questão. Bakthin ilustra e complementa o
que estamos procurando apontar com uma
1. O de que a criação de uma língua indígena escrita passa a ser uma proposta elaborada pelo linguista (ainda que
com a participação dos falantes dessa
língua como informantes) para dar
conta de um dilema posto etnocentricamente por nós, o “comprometimento linguístico”.
240
2. O de que, para diminuir o impacto desse “comprometimento linguístico”, a
dar ou resgatar, pensando estar garantindo
a sua permanência através da escrita?
escrita a ser criada o será tendo por
parâmetro sua fonetização, isto é, a es-
Primeiramente, tenho a dizer que os segre-
crita deverá ser transparente, em grau
dos da oralidade não estão no comporta-
máximo, à palavra falada; com isso se
mento da língua usada na conversação, mas
crê estar “guardando” ou “reforçan-
na língua empregada para o armazenamen-
do” a língua indígena falada por meio
to de informações. A língua oral (a oralidade)
da sua escrita, já que responderia à
tem dois requisitos básicos: o ritmo e a nar-
sua voz – o que é, penso, um equívoco
rativa. Sua sintaxe, por outro lado, sempre
perigoso, já que desvaloriza o funda-
descreve uma ação ou paixão e raramente
mental na manutenção de qualquer
princípios ou conceitos. As epopeias gregas
língua: a oralidade.
(e depois homerizadas) são hoje entendidas
por muitos pesquisadores como imensos re-
3. E, por último, que essa “transparência
positórios de informação oral para fixação
pura” da escrita e da fala (que quali-
e para transmissão da cultura helenística. A
fica como primordial para a primeira
chamada “tradição” só pode ser armazena-
a correspondência unívoca entre fo-
da pela língua, a qual é memorizada e trans-
nemas e grafemas) impõe um limite
mitida de geração em geração.
físico para essa “língua” (fonetizada),
dado que atinge os falantes que vivem
As artes das tradições orais têm como um
geograficamente em um mesmo espa-
dos seus objetivos na transmissão de conhe-
ço, em uma determinada terra indíge-
cimentos a memorização (armazenamento)
na; com tal postura, alguns linguistas
destes. Um dos objetivos tanto do épico na
reforçam a imposição de fronteiras
Grécia Clássica quanto do repertório de can-
fictícias entre povos indígenas, erigin-
tos Timbira é o armazenamento de material
do uma fronteira social e cultural en-
(informações) na memória oral. E são imen-
tre eles, já que cada diferença dialetal
sos repositórios de informação cultural. Mas
passa a se constituir em uma “língua”
para isso há todo um conjunto de regras que
diferente, fragmentando os povos in-
governam a composição oral, como marca-
dígenas em “comunidades linguísti-
dores que conduzem a narrativa, à medida
cas” estanques.
que esta se desenvolve. Estas regras são
fundamentais porque ficam armazenadas
E de qual “língua” estão, pois, falando os lin-
na memória do narrador, do cantador, do
guistas? Qual “língua” eles pretendem guar-
chamador, dos mestres que dominam estas
241
artes para entrarem em ação sempre que
trazer ao processo cognitivo? Luria (1976)
necessário. E, porque este corpus de conhe-
estudou os principais desvios que ocorrem
cimento faz parte de um patrimônio social
na atividade mental na medida em que as
compartilhado com os demais membros da
pessoas adquirem a cultura escrita “cleri-
sociedade, estes marcadores estão armaze-
cal”. Seus processos cognitivos deixam de
nados na memória apenas como instrumen-
ser principalmente concretos e situacio-
tos de ajuda para facilitar a retórica. Por
nais. Começam a estabelecer inferências
isso, a importância da memorização nestas
não apenas na base de sua experiência pes-
sociedades. E, por isso deve-se refletir quan-
soal, mas também nos conceitos formula-
do a “liturgia da escolaridade” (para empre-
dos pela língua.
gar um termo de Ivan Illich), levada pelos
programas de educação indígena, valoriza a
Parece que os povos ágrafos contemporâne-
aprendizagem por meio da “improvisação”,
os, na situação de desigualdade que carac-
da “criatividade” (em seu sentido mais lite-
teriza as relações entre povos indígenas e
ral), em descompasso total em relação aos
sociedade nacional, percebem com clareza
métodos tradicionais de aprendizagem dos
que, na nossa sociedade, a oralidade e a cul-
povos indígenas que repousam na recitação,
tura escrita podem ser vistas como interli-
na cópia, na observação, na imitação, técni-
gadas. A relação entre elas tem o caráter de
cas fundamentais para a noção de memori-
uma tensão mútua e criativa, na qual estes
zação.
povos encontram referências para definir
as suas políticas linguísticas. Para nós, para
A questão da distância entre fala e escrita,
que uma língua continue viva, isto é, fala-
que aponta que as normas da escrita não
da, é necessário que sejam incrementados
se aplicam à fala, que há uma distância en-
os contextos de uso da língua indígena em
tre a língua codificada na gramática/escri-
questão, ou seja, que sejam valorizados e
ta e a realidade das variações da fala, tudo
multiplicados os momentos/espaços em
isto já foi tratado por especialistas. Porém,
que um determinado povo usa privilegiada-
suas consequências têm passado ao largo
mente a sua língua7. Para isso, o linguista
das propostas de letramento para os po-
e o antropólogo deveriam estar juntos, na-
vos indígenas que vemos entre linguistas e
quilo que o sociolinguista delimita como
educadores. Quais seriam, por exemplo, as
seu campo de ação. Esta estratégia política
alterações que a aquisição da escrita pode
está de acordo, assim, com a teoria do “divi-
7 Uma política pública que estivesse preocupada com essa questão estaria muito além do apoio à elaboração
de materiais didáticos escritos, estaria apoiando a realização dos rituais, lócus privilegiado da expressão cultural
plena.
242
sor” apontada inicialmente, que afirma que
to e modernização da língua indígena,
a oralidade e a cultura escrita possuem for-
indispensável para sua sobrevivência
mas distintas de expressão e de reprodução,
futura.” (In: Letramento e educação in-
embora reconhecendo a importância interati-
dígena: línguas indígenas e a fabricação
va de ambas, permitindo que antigas funções
de seus leitores e escritores. Wilmar da
sejam desempenhadas de maneira nova (como
Rocha d’Angelis).
o exemplo Timbira nos mostra) e que assim
novas funções possam ser propostas ou emer-
Este talvez possa ser um dos futuros das lín-
girem.
guas indígenas. Em todo o caso, essa forma
somente será eficaz se validada politicamen-
Há atualmente uma avaliação, por justifi-
te pelos usuários de cada língua e muito
cativas um pouco diversas das apontadas
além dos processos educativos que lhes são
acima, que considera que a escrita de uma
impostos pela sociedade dominante. Mas
língua indígena é fundamental para o seu
estaremos então nos referindo não somente a
não desaparecimento. Propõe que a questão
uma possível solução para o comprometimen-
central seria a da necessidade de se dotar
to linguístico como uma tendência subordina-
uma determinada língua indígena de leito-
da de resistência linguística, mas a uma redefi-
res, e por consequência, a necessidade de
nição do lugar e da relação destes povos com a
formar escritores indígenas como forma de
sua língua originária.
fortalecê-la. Assim,
Mas pensar por meio da escrita – pois só
“A única forma de se opor, concretamen-
assim se cria internamente, creio eu, a ne-
te, ao desaparecimento de uma língua
cessidade da escrita – não seria também jus-
indígena é fazer frente, deliberadamen-
tificar a necessidade da invenção de um pas-
te, à perda de espaços para a língua por-
sado histórico para as sociedades indígenas?
tuguesa, garantindo (ou criando), para
Como pensar sociedades cujo passado como
a língua indígena, funções e usos sociais
referência não faz sentido? O estado presente
relevantes e prestigiados. Desenvolver
é contínuo, criado pelo movimento eterno e
a escrita em língua indígena é uma das
constante da repetição. Repetição da repeti-
formas importantes e, possivelmente,
ção da repetição, num movimento infinito,
das mais eficazes, para uma política de
cuja fissura da mudança é anulada porque
resistência da língua indígena às pres-
não tem referência no passado. Sem dúvida
sões da língua majoritária. E é também
que a mudança existe, no sentido de que a
um dos instrumentos mais eficazes de
repetição da repetição da repetição não recria
uma política linguística de fortalecimen-
o mesmo, mas uma outra coisa que será re-
243
petida; nesse gesto de se buscar criar, sem-
O campo da nossa reflexão tem se movimen-
pre o mesmo, as “mudanças simplesmente
tado assim em uma dicotomia estanque: de
ocorrem”, mas não são consideradas como
um lado, a reificação da permanência de
objeto de uma reflexão, como algo que deva
uma tradição imemorial, concebida como
ser analisado criticamente. Na prática da
o horizonte de resistência destas socieda-
existência cotidiana, estão incorporadas no
des ao nosso mundo e, de outro, a assimi-
eterno presente. Tais mudanças são anula-
lação passiva de novos saberes e técnicas,
das enquanto história. Este distanciamento
tendo como horizonte a sua aculturação a
e a sua marcação entre tempos – isto que
este mundo novo. A história assim prevista
entendemos como história – são instaura-
condena as sociedades indígenas a desapa-
dos pela escrita, como já amplamente de-
recerem paulatinamente ou as encerra em
monstrado há décadas.
um “primitivismo” eterno (BOCARRA, 2001).
Os programas de Educação Indígena correm
Somente podemos escapar desse etnocen-
o risco de estarem se transformando em
trismo, que caracteriza nosso modo de en-
programas acelerados de mudança, ao com-
focar as possibilidades de futuro desses po-
partimentarem o tempo nestas três estações
vos, se pensarmos a história e as relações
(passado, presente, futuro). Os nossos livros
de contato destes povos com a sociedade
de “história” ou “etno-história” procuram re-
nacional a partir das estratégias políticas (e
fazer, pela escrita, esta trajetória, muitos sem
linguísticas) desenvolvidas por eles, na qual
estarem atentos a este dilema. E deste modo
o dilema da escrita, imposto por nós, se re-
reificam, eternizam ou desmitificam, em seu
faz pelo uso e sentido que dão a ela em fun-
sentido mais concreto, uma duração de tem-
ção de uma redefinição da noção de frontei-
po, desprendendo-o do movimento cíclico,
ra. E não mais concebida como um espaço
instaurando uma duração sequencial e linear
marcando um limite real entre mundo “pri-
do tempo, abrindo fissuras na forma canôni-
mitivo” e mundo “civilizado”, mas como um
ca dos povos ágrafos resistirem à mudança.
campo social em que as práticas e represen-
Ou, em outras palavras, de trabalharem com
tações relativas à construção destes limites
as mudanças que lhes são impostas.
são estratégias constitutivas destes povos.
244
VII. No tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores...1
Narcimária Correia do Patrocínio Luz2
Introdução
professoras que atuam nas escolas brasileiras. Não é fácil, sabemos! Ou seja, aprender
Abrimos este texto com um alerta:
a lidar com a riqueza de vida que nos cerca,
para além dos muros, ou melhor, a arquite-
[...] A vida não é só isso que se vê, é um
tura dos currículos submetidos ao monopó-
pouco mais... Que os olhos não conse-
lio da fala3 sobre educação, que se restringe
guem perceber, e as mãos não ousam to-
a reproduzir teorias e metodologias fixadas
car, que os pés recusam pisar. Sei lá não
ao modo de existir característico dos valores
sei, sei lá não sei não. Não sei se toda be-
e linguagens europocêntricos, que passam a
leza de que lhes falo sai, tão-somente do
ser referência absoluta para as políticas de
meu coração. Em Mangueira a poesia,
Educação. O que vemos circular, no cotidia-
num sobe e desce constante, anda des-
no dos currículos das nossas escolas, são
calço ensinando um modo novo da gente
repertórios sobre crianças, jovens e adultos
viver, de cantar, de sonhar, de vencer. Sei
completamente afastados das dinâmicas
lá não sei, sei lá não sei não, a Manguei-
existenciais que caracterizam suas comuni-
ra é tão grande que nem tem explicação.
dades, principalmente aquelas que se des-
(Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho
dobram a partir das civilizações indígena e
da Viola).
africana.
Esse alerta é um exercício e/ou um desafio
Essa vida plena de poesia que transborda na
que se impõe todos os dias aos professores e
Mangueira no Rio de Janeiro é uma pequena
1Oralidade, memória e formação – 2006 / PGM 2.
2
Professora Titular do Departamento de Educação I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutora
em Educação; pesquisadora no campo da Diversidade Cultural e Educação; coordenadora do PRODESE - Programa
Descolonização e Educação; autora dos livros: Abebe - a criação de novos valores na educação, Salvador: Edições
SECNEB/2000; (Org.) Pluralidade cultural e educação .Salvador: Edições SECNEB: Secretaria da Educação do Estado
da Bahia, 1996.
3Categoria elaborada por Muniz Sodré tendo, como referência o sistema midiático de comunicação.
245
e bela ilustração da pulsão de vida e modos
Vamos nos dedicar a abordar aspectos do
de existir que caracterizam diversas comu-
universo simbólico da ancestralidade africa-
nidades no Brasil que (re)criam, de modo
na, e deles extrair perspectivas teórico-me-
extraordinário, os valores e linguagens mile-
todológicas que contribuam para fortalecer
nares, um legado dos seus ancestrais.
a autoestima das nossas crianças, jovens e
adultos.
Nas Américas, o Brasil representa um dos
principais pólos irradiadores das civilizações
africana e indígena, e, apesar das características dessa realidade que constitui o patri-
Ancestralidade, memória e
continuidade
mônio histórico-cultural da nação, o Estado
brasileiro, até hoje, não conseguiu absorver
e integrar a sua diversidade cultural, numa
proposta de política educacional.
Para entendermos o princípio de ancestralidade, uma pergunta se torna fundamental: como preservar e expandir os valores da
diversidade da vida para que esse mundo não
O desafio, portanto, é implementar políticas
se acabe?
de Educação que aproximem os/as professores/as de referências teóricas e metodológicas que os façam identificar e assumir, com
sabedoria, a riqueza da diversidade cultural
que caracteriza o Brasil contemporâneo.
As sociedades contemporâneas vivem essa
angústia, o que tem estimulado iniciativas
coletivas de educadores, em todo o mundo,
que buscam uma nova e urgente abordagem
sobre educação, que valorize e respeite a di-
A série Oralidade, memória e formação apre-
versidade civilizatória dos povos e toda a di-
senta a indagação: quais transformações se-
nâmica da vida que os envolve. É importan-
riam necessárias para afirmar que a “escola
te estabelecer canais, no cotidiano escolar,
tem futuro”4?
atentos à angustiante procura da compreensão sobre o estar no mundo, no univer-
A contribuição que trazemos para enrique-
so, as histórias que inauguram o patrimônio
cer esse debate enfatiza a importância da
ético-estético que caracteriza as culturas,
ancestralidade como princípio fundamental
os princípios milenares que atravessam os
para prover o cotidiano escolar de lingua-
tempos influenciando as gerações sucesso-
gens e valores que estabeleçam uma ética
ras, enfim, o processo dinâmico da existên-
do futuro para as atuais e futuras gerações.
cia.
4
Cf. Indagação apresentada na proposta pedagógica elaborada por Pedro Garcia para o programa Salto
para o Futuro, série Oralidade, memória e formação. Rio de Janeiro: TV Escola, março de 2006.
246
A ancestralidade, portanto, constitui a cor-
carregado/a de poesia mítica, demonstrando
rente sucessiva de gerações que mantêm,
que o conhecimento a ser transmitido vem
com dignidade, o legado dos seus antepas-
de tempos imemoriais, isto é, desde que o
sados, repõem e expandem o universo mí-
mundo é mundo.
tico-simbólico que sustenta as tradições de
um povo, suas instituições, organizações
Os/as mais antigos/as nos contam que quan-
territoriais e políticas, valores, linguagens,
do Oxalá, orixá que representa o ar, veio a
formas de comunicação através de narrati-
esse mundo, criou os seres humanos, e para
vas míticas, modos de afirmação existencial
cada ser humano criou uma árvore. As árvo-
e sociabilidades.
res carregam o princípio da ancestralidade,
representam, portanto, os ancestrais e são
Estamos diante de uma concepção sobre
elas que estabelecem a dinâmica da relação
educação capaz de acolher linguagens cuja
entre os seres humanos e a natureza.
matriz seja “[...] a criação emocional e poética
dos povos que mobiliza e abre caminhos, pon-
Oxalá está relacionado à cor branca, “[...] o
tes de aproximação entre comunidades diver-
axé, sangue branco... caracterizado por subs-
sas” (SANTOS, 2002, p. 26).
tâncias minerais como o giz, metais brancos,
como prata e chumbo, pela seiva da palmeira
É ao sabor desse universo mítico-simbólico,
igi-ope, pelo algodão, pelo sêmen, pelos ossos e
que caracteriza o discurso e as linguagens
pela chuva. Pela chuva-sêmen que fertiliza e fe-
da elaboração de mundo africano, que nasce
cunda a terra regenerando-a e proporcionando
o título deste texto “no tempo em que os seres
o brotar das sementes. [...] Apresenta represen-
humanos conversavam com as árvores...”.
tações simbólicas de progenitura, capacidade
de gerar filhos, de expandir a descendência,
É assim que os/as mais antigos/as costu-
multiplicação dos seres tanto no aiyê como
mam transmitir saberes aos/às mais novos/
no orun” (LUZ, 1995, p. 89)5 (grifos nossos).
as nas comunidades de matriz africana.
Oxalá possui poderes que garantem a exis-
Cada história, conto, cantiga, parábola, pro-
tência e, pela sua importância no panteão
vérbio anunciado/a com essa introdução era
nagô, merece respeito e atenção. Se for con-
5Cf. SANTOS,1985, p.39. O axé expressa a força que assegura a existência, permite o acontecer e o devir, e
as possibilidade do ciclo vital. Como toda força o àsé é transmitido e conduzido por meios materiais simbólicos e
acumulável, portanto, só pode ser adquirido por introjeção ou contato aos seres humanos ou aos objetos. Axé em nagô
significa força invisível, mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa. Nas comunidadesterreiro nagô, a existência é elaborada em dois planos: o àiyé o mundo, e o òrun , que representa o além. O àiyé é o
universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais precisamente, os ará-àiyé
ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. Já o orun corresponde ao espaço sobrenatural, o outro mundo, o
além, algo imenso e infinito. Nele habitam os ara-òrun , que são os seres ou entidades sobrenaturais.
247
trariado ou desrespeitado, ele pode causar
ficas de transmissão de valores religio-
grandes danos, tal o seu poder.
sos, éticos e sociais da tradição dos mais
velhos aos mais jovens. Eles se caracte-
Das árvores criadas, algumas se destacam
rizam como um aspecto da pedagogia
nessa relação simbólica, a exemplo do den-
negra iniciática, transmitidos numa si-
dezeiro com seus frutos, folhas e taliscas. Os
tuação, aqui e agora, a qual faz alusão,
frutos do dendezeiro compõem os instru-
constituindo a experiência vivida em
mentos de Ifá, ou seja, a forma tradicional
sabedoria acumulada. A comunicação
que o povo nagô/iorubá utiliza para consul-
se processa de maneira direta, pessoal
tar sobre os destinos dos seres humanos.
ou intergrupal, dinâmica, muitas vezes
As folhas estão relacionadas ao culto dos
acompanhada por cânticos, danças e
ancestrais masculinos, os mariô, represen-
dramatizações” (LUZ, 1977, p. 60).
tando filhos, descendência ininterrupta. As
taliscas de onde as folhas se desprendem re-
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o
presentam os ancestrais. Nesta estética do
Mestre Didi Asipá, como é conhecido um
sagrado, as árvores são as responsáveis pela
dos mais expressivos sacerdotes da tradi-
purificação do ar para que os seres huma-
ção nagô, possui um riquíssimo acervo de
nos tenham plenitude de vida.
contos, cujas narrativas expressam modos
de sociabilidades singulares. As narrativas
Para aprendermos mais sobre o princípio de
dos contos de Mestre Didi caracterizam-se
ancestralidade, nada mais oportuno do que
pelas analogias, plasticidade das imagens,
apelar para um conto mítico que se desdo-
dramatizações, recriações, que ilustram a
bra do universo existencial característico da
dinâmica dos textos e o complexo contexto
ancestralidade e visão de mundo africanas.
simbólico nagô.
Nele, tradição e contemporaneidade se intercambiam, estruturando linguagens e va-
Adaptamos especialmente para a série Orali-
lores do patrimônio simbólico.
dade, memória e formação, o conto “O Filho
de Oxalá que se chamava Dinheiro”, extraí-
Os contos míticos reúnem sabedorias mile-
do do acervo literário de Mestre Didi, ilus-
nares, cujos princípios éticos conduzem, in-
trando de modo extraordinário o modo afri-
fluenciam e atualizam o viver cotidiano das
cano de educar. Nossos filhos costumam ser
comunidades de base africana.
educados com os valores éticos transmitidos pelos contos, e a partir deles, aprendem
“Os contos, em sua originalidade, se
a lidar com a dinâmica da vida exigida pelo
constituem também em formas especí-
mundo contemporâneo.
248
O Filho de Oxalá que se
chamava Dinheiro
Depois que Dinheiro ouviu vários comentários sobre a atitude dele, levantou-se e
comentou ironicamente:
No tempo em que os seres humanos
conversavam com as árvores, Oxalá ti-
– Ah! Agora eu já sei tudo o que precisa-
nha um filho conhecido por Dinheiro,
va saber e já sei como agir.
que era um homem muito metido, egoísta, arrogante e muito prepotente. Um
dia, Dinheiro, querendo aparecer como
muito poderoso na frente de várias pessoas, desafiou seu pai, o rei Oxalá, dizendo que conseguia andar com Iku, a
Morte, e levá-la para qualquer lugar que
se possa imaginar.
Saiu com uma rede em direção à casa de
Iku, foi entrando e tocando os tambores,
instrumento que a dona da casa utilizava para realizar o seu trabalho de levar
as pessoas para o outro mundo, o orun.
Dinheiro ficou na espreita aguardando a
Morte aparecer reclamando dos toques
dos tambores.
Para mostrar que era capaz de dominar
Iku, Dinheiro resolveu ir buscar a Morte
e trazê-la à presença de Oxalá. Para isso,
ele resolveu deitar numa encruzilhada,
ficar quieto por um tempo, esperando a
oportunidade para pegar Iku.
As pessoas passavam pela estrada, ficavam chocadas com a situação e comentavam:
Não demorou muito, Iku aparece chateada, querendo saber quem era o atrevido que tocava seus tambores. Desprevenida, foi capturada por Dinheiro, que
jogou a rede, prendendo-a.
Dinheiro, com toda a sua arrogância, arrastou a Morte até o palácio de Oxalá e
foi entrando e dizendo:
– Não disse que traria Iku a vossa pre-
– Oxente! Que absurdo é esse! Como
sença?
pode esse homem ficar deitado aqui
nessa encruzilhada com a cabeça vira-
Oxalá, na mesma hora, repreendeu-o e
da na direção da casa de Iku e os pés
disse-lhe:
virados um para o lado da moléstia e o
outro para o lado da desavença. É de-
– Saia daqui agora mesmo com Iku! Você
mais! O que ele está querendo mostrar
é o causador de todas as coisas de bem e
com isso?
mal que existem no mundo. Leve a Morte!
249
Por este motivo é que, por causa do di-
tativas de obtenção de um poder absoluto, o
nheiro, todas as qualidades de crimes
desrespeito à ancestralidade, tudo isso está
têm sido e continuam a ser praticadas.
contido na mensagem do conto.
O dinheiro no mundo africano tem uma ou-
“A ética para o futuro, no contexto des-
tra conotação e representação, diferente do
te mito africano, apresenta-se como
mundo europeu. O “dinheiro”, como modo de
valores, linguagens, modos e formas de
troca, está ligado à fertilidade e à restituição.
sociabilidade que contemplam a trans-
Nos antigos reinos iorubá, a moeda eram os
cendência do Ancestral - esse pai que,
búzios, os quais tinham um valor inestimá-
mesmo morto, determina. O culto aos
vel, pois representam ancestralidade.
ancestrais responde pelo poder do pai
morto. A ética, enquanto discurso da
Os ornamentos de determinados orixás
autoridade ancestral, é holística, comu-
apresentam constelações de búzios, carac-
nitária, consubstanciando a força do
terizando expansão de famílias, comunida-
grupo.” (SODRÉ, 1992, p.11).
des e sucessão de ancestralidade.
A ética do futuro, dentro dessa dinâmica
Na concepção de fertilidade, está presente
ancestral, elabora e faz expandir o direito
a ideia implícita de restituição e de morte.
à existência, às condutas individuais e co-
Assim, o poder da fertilidade e o de restitui-
letivas. Este princípio ético tem vigor nas
ção andam juntos. No conto, o desafio do
formas tradicionais das comunidades de
mais novo ao mais velho, inclusive conside-
origem africana, onde o ato de educar é con-
rando o poder ancestral contido em Oxalá,
cebido como uma dinâmica capaz de fazer
é uma quebra de valores significativos da
irradiar os mistérios transcendentes da vida
tradição e compromete a harmonia e a coe-
e da morte.
são da comunidade. Neste relato, o desafio
do filho ao pai é motivado pelo grande po-
Na tradição nagô/ioruba, a educação realiza
der de representação do Dinheiro ao qual
o “[...] poder de tornar presente a linguagem
nos referimos.
abstrato-conceitual e emocional elaborada
desde as origens[...]. Poder de tornar presen-
O poder, no contexto do mundo contempo-
tes os fatos passados, de restaurar e renovar a
râneo, é caracterizado pelo dinheiro e toda
vida. Reconduzir e recriar todo o sistema cog-
a onipotência que ele pode exprimir. A arro-
nitivo emocional, tanto em relação ao cosmos
gância, o egoísmo, o poder de destruição, a
como em relação ‘a realidade humana’.” (SAN-
desarmonia, a banalização da morte, as ten-
TOS, 1997, p. 4).
250
A perspectiva que destacamos nos inspira
REFERÊNCIAS:
a perseguir iniciativas em prol das Diversidades Culturais, produzindo possibilida-
Sobre a presença da civilização africana nas
des didático-pedagógicas que afirmem que
Américas e suas contribuições para elabo-
EDUCAR é repor os valores e princípios her-
rarmos perspectivas educacionais promisso-
dados e reelaborados – legado ancestral. É
ras, recomendamos:
expansão socioexistencial da diversidade
humana, fruto de civilizações milenares
LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da civi-
que inauguraram diversos territórios em
lização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA,
todos os cantos do planeta, e que lutam há
2001.
séculos, tenazmente, para mantê-lo viável
à vida.
______. Do tronco ao Opa Exin . Rio de Janeiro:
Pallas, 2002.
Por fim, gostaríamos de reverenciar os nossos ancestrais que, nas suas trajetórias de
vida, lutaram com afinco para assegurar o
______. Cultura negra em tempos pós-modernos. Salvador: EDUFBA, 2002.
direito às condições existenciais necessárias
______. Alguns Aspectos da Comunicação na
para que as gerações sucessoras expandis-
Cultura Negra. In: Revista Vozes, Petrópolis,
sem seu legado civilizatório.
n. 9, p. 60-72, 1977.
“Mo juba.
Gbogbo asse tinu ara
LUZ, Narcimária (Org.) Pluralidade cultural e
educação. Salvador: Secretaria da Educação
do Estado da Bahia: SECNEB, 1996.
Saúdo e venero
______. ABEBE: a criação de novos valores na
A todos os asese, nossas origens,
Contidos em nosso corpo comunitário.
As origens e sua permanente recriação
permitem o existir da comunidade.
Bibi bibi lo bi wa
educação. Salvador: Edições SECNEB, 2000.
SANTOS, Juana Elbein. Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1985.
SANTOS, Deoscóredes M.; SANTOS, Juana Elbein. A Cultura Nagô no Brasil. In: Revista da
USP, n. 18., p. 29-40, 1993.
Nascimento do nascimento que nos traz
o existir.” (SANTOS, Deoscóredes; SAN-
SANTOS, Juana Elbein (Org.). O emocional lú-
TOS, Juana, 1993, p.29).
cido. Salvador: SECNEB, 2002.
251
SODRÉ, Muniz . O monopólio da fala. Petró-
SANTOS, Deoscóredes. Contos crioulos da
polis: Vozes, 1977.
Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.
______. Claros e escuros. Petrópolis: Vozes,
1999.
SEMENTES CADERNO DE PESQUISA. Salvador:
Departamento de Educação Campus I, Universidade do Estado da Bahia-UNEB, 20002003.
______. Contos Crioulos da Bahia, Creole Tales
of Bahia, Àkójopó Ìtan Àtenu’denu Iran Omo
Oùduwà ni Ilè Bahia. Salvador: Núcleo Cultural Níger Ikàn, 2004.
______. Contos crioulos da Bahia e contos negros da Bahia. Salvador: Corrupio, 2003.
Para conhecer o repertório dos contos de
Mestre Didi, desdobramentos da ancestrali-
______. Contos negros da Bahia. Rio de Janei-
dade africana:
ro: GRD, 1961.
252
VIII. Os
versos sagrados de ifá: base da tradição
civilizatória iorubá1
Juarez Tadeu de Paula Xavier2
Oxum, graciosa mãe, plena de sabedoria!/
Que enfeita seus filhos com bronze,/
Que fica muito tempo no funda das águas gerando riquezas,/
Que se recolhe ao rio para cuidar das crianças/
Que cava e cava e nela enterra dinheiro/
Mulher poderosa que não pode ser atacada
Os Versos Sagrados de Ifá guardam o mul-
cultural têm acesso aos conhecimentos das
tiverso de conhecimento da tradição ioru-
forças místicas e cósmicas que comandam
bá. Essas grandes narrativas contêm infor-
o universo, seus destinos, as relações terre-
mações com categorias universais – dados
nas, históricas e culturais. A exemplo de ou-
científicos sobre a natureza e os seus fenô-
tros povos africanos, os iorubás têm na ora-
menos e manifestações – singulares – do
lidade os arquivos de sua civilização. Para
dia a dia da vivência tradicional dos povos
esse povo africano, conhecido como nagô
iorubanos – e particulares – os valores cultu-
no Brasil, a palavra enunciada carrega a for-
rais dessa milenar tradição africana. É esse
ça da realização. Eles consideram a mentira
reservatório de preservação, transformação
como um câncer, pois ele corrói a constru-
e produção de conhecimento social do real
ção de cenários favorecedores da suas reali-
deu base para a reinvenção da arquitetura
zações primordiais na vida: viver muito, vi-
civilizatória desse importante povo da África
ver com condições de sacralizar o universo,
Ocidental.
amar, ter filhos e vencer as adversidades do
mundo. Dessa forma, a oralidade assume a
Os mitos sagrados trazem os conhecimen-
função de meio condutor dos conhecimen-
tos das cartografias cosmológica e geográ-
tos ancestrais e civilizatórios que ordenam a
fica iorubanas. As crianças desse universo
trajetória dos seus descendentes.
1Valores afro-brasileiros na educação – 2005 / PGM 5.
2
Jornalista. Doutor em Comunicação e Cultura-Programa de Pós-Graduação em Integração da América
Latina da Universidade de São Paulo (Prolam – USP).
253
ILE ASÉ: Esses conhecimentos permitiram
novas soluções e respostas. Uma nova folha,
aos iorubás reorganizarem, pelo mundo afo-
uma nova forma de transmissão, um novo
ra, suas estruturas culturais. As grandes nar-
modelo de organização. O xirê orixá, cantado
rativas, as pequenas histórias do cotidiano
no início dos atos litúrgicos públicos, é uma
e as canções rituais preservaram a moral, a
prova dessa sagacidade e inteligência ances-
ética e a deontologia de suas relações huma-
tral. Nele, as novas gerações conheciam as
nas. A moral iorubana permitiu a reconsti-
formas místicas que comandam o universo
tuição da cartografia original no ile ase (ter-
sagrado iorubá, em especial a relação dinâ-
ra sacralizada pela força ancestral). Na linha
mica entre o orun (dimensão imaterial da
histórica das principais casas e terreiros or-
existência) e o aiyê (dimensão material e
ganizados no país, tem-se o registro da ação
histórica da existência), e entravam em con-
de homens e mulheres africanos que per-
tato com as energias cósmicas desse povo
sistiram na reconstrução de seu universo,
– representações das forças do universo, dos
destruído pelas forças da escravidão. A força
pontos energéticos da terra, das polaridades
moral e o tirocínio desses primeiros africa-
de gênero, das cores e suas funções –, com
nos escravizados nas Américas foi o motor
o universo social e sua ordenação tradicio-
propulsor dessa reorganização. No início,
nal – cargos, funções e responsabilidades so-
esses espaços de reconstrução tradicional
ciais de sacerdotisas e sacerdotes –, e ainda,
criaram uma linha de força que preservou a
aprendiam as canções tradicionais, as dan-
originalidade dessa civilização, ante a força
ças e toques rituais e a relação pedagógica
destrutiva da sociedade global. Nesses espa-
entre as gerações: o aprendizado da boca
ços de rearticulação tradicional, os africanos
dos mais velhos para os ouvidos e olhos dos
reconstituíam, paulatinamente, seus valores
mais novos. Cada uma dessas opções feitas
morais civilizatórios. Tais valores formaram
pelas velhas gerações implicava opções éti-
o chassi da reconstrução negra fora da Áfri-
cas, filosóficas, culturais e civilizatórias.
ca. As linhas-mestras dessa reconstrução foram os Versos Sagrados de Ifá, vivos na me-
Ante a divinação e a iniciação nos segredos
mória coletiva dessa população. A palavra é
sagrados desse universo, as novas gerações
uma força fundamental que emana do ser
entravam em contato com as suas poten-
supremo iorubá: Olodumaré. Por isso, ela
cialidades e limitações sacerdotais: o que
possui um caráter sagrado e divino.
comer, vestir, como se comportar ante o
sagrado, ante a comunidade, ante o corpo
A cada novo desafio, a cada nova situação,
sacerdotal da comunidade e ante a força da
os velhos e velhas africanos reinventavam
sociedade global.
254
ÉTICA, MORAL E DEONTOLOGIA: Assim, no
Ensinam-se canções rituais, mitos cosmoló-
universo da educação civilizatória, articula-
gicos vinculados às deidades iorubanas, à na-
vam-se dimensões morais, condutoras dos
tureza terapêutica e ritualística das plantas
comportamentos coletivos e sociais dessa
e à presença dos elementos dessa cultura no
civilização; éticas, condutoras das opções e
universo simbólico do brasileiro, na música,
reflexões cotidianas, que implicavam ações
dança, literatura, artes plásticas e ciência.
filosóficas e culturais; e deontológicas, con-
Os núcleos que enfeixam os conhecimentos
dutoras do comportamento ante a comuni-
iorubás são ricos em fornecer informações
dade de iniciados e a social global.
em todas as áreas do conhecimento: universos da divinação; dos processos iniciáticos e
Todo esse universo conceitual era trans-
da relação com os orixás; do contato com as
mitido pelas equivalências universais que
energias ancestrais, e com o conhecimento
caracterizam a civilização iorubá em qual-
litúrgico das folhas.
quer parte do mundo: a divinação sagrada
aos pés de Ifá, para a revelação dos desíg-
Dessa forma, universalizam-se as possibili-
nios humanos; a iniciação, marco de or-
dades de transmissão dos conhecimentos
denação da transição entre o profano e o
civilizatórios do universo iorubá, dos conhe-
sagrado; e pelo conhecimento mitológico
cimentos dos seus valores, e do aprendizado
do panteão: deidades e forças que organi-
em duas dimensões: o da escolarização e o
zam o cosmo iorubá. Durante muito tem-
da educação dos valores universais, presen-
po, o conhecimento da magnitude desse
tes nos Versos Sagrados de Ifá, infraestrutura
universo cultural ficou restrito às pessoas
conceitual sobre a qual repousam os conhe-
que se iniciavam nesse universo religioso,
cimentos ancestrais iorubá. O percurso des-
excetuando-se os trabalhos acadêmicos e
sa experiência evidencia a presença de fortes
as publicações.
e profundos elementos africanos e afrodescendentes no universo imaginário brasileiro,
Porém, algumas experiências foram reali-
no seu dia a dia, na sua visão de mundo e no
zadas na transmissão desses valores via es-
modo de se relacionar com o universo.
colarização. Alguns terreiros de candomblé
organizaram escolas nos seus espaços co-
REFERÊNCIAS
munitários. Essas escolas, além das disciplinas formais do currículo escolar, acrescen-
ABIMBOLÁ, W. The literature of the Ifá cult. In:
tam elementos do conhecimento ancestral
Sources of Yorùbá history. Ì bàdàn. Universiry
iorubá.
Press, 1987.
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Companhia, 1978.
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Pàdè, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986
VERGER, P. Orixás: deuses Yorùbás na África e
no Novo mundo. Bahia: Corrupio, 1981.
XAVIER, J.T.P Exu, ikin e egan: as equivalên-
RAMOS, A. As culturas negras no novo mundo.
cias universais no bosque das identidades
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comparativo da religião tradicional ioruba
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Paulo: Ed, Oduduwa, 1992.
sidade de S. Paulo (PROLAM/USP), 2000.
256
IX. Cantos e re-encantos: vozes africanas
e afro-brasileiras1
Andréia Lisboa de Sousa2
Ana Lúcia Silva Souza3
Os mitos são, realmente, as histórias sociais que curam. Isso porque nos são
mais do que o desfecho moral que aprendemos associar, há muito tempo, às
quadrinhas infantis e aos contos de fada. Lidos apropriadamente, os mitos nos
deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam a lidar com
as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o nosso
relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento
dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida
(FORD, Clyde W. O herói com rosto africano. Mitos da África).
O objetivo deste texto é ressaltar a impor-
da, em especial, na literatura oral expressa
tância dos contos, orais e escritos, africanos
pelos mitos, lendas, provérbios, contos etc.,
e afro-brasileiros, destacando-os como mar-
ou, ainda, servindo como base da literatura
cas das experiências humanas de um povo
escrita desta natureza.
ao longo dos tempos. São narrativas com
rosto africano.
No Brasil, uma das matrizes que informam a
tradição oral diz respeito às influências dos
A história e a memória de vários povos afri-
africanos aqui escravizados que para cá vie-
canos adentram e permanecem como parte
ram, guardiões e guardiãs responsáveis por
de nossa cultura. Cultura essa materializa-
recriar a memória dos fatos e feitos de seus
1Conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / PGM 3.
2
Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Mestre em
Educação pela FEUSP. I ntegra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN. Fellow do Fundo Riochi
Sasakaua/USP. Consultora na área de Educação e Relações Étnico-Raciais. Atualmente, é pesquisadora sobre cultura
afro-brasileira em materiais didático-pedagógicos e Subcoordenadora de Políticas Educacionais da CGDIE/SECAD/
MEC.
3
Doutoranda em Linguística Aplicada - Unicamp/IEL. Estuda as interfaces entre práticas de letramento,
relações raciais e juventude. I ntegra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN - SP. Organiza e
assessora projetos relacionados à leitura e à dinamização de acervos de literatura. Coordenadora do VI Concurso
Negro e Educação pela Ação Educativa/ANPED.
257
antepassados, ressignificando a vida nos no-
ou história, como também ciências na-
vos lugares de morada. Foram também po-
turais ou humanas de todo tipo. Era um
etas, músicos, dançarinos, estudiosos, mes-
conhecimento (...) segundo a competên-
tres, conselheiros, denominados, de modo
cia de cada um, uma espécie de ‘ciência
geral, como contadores de histórias.
da vida’; vida, considerada aqui como
uma unidade em que tudo é interligado,
Trouxeram para cá o significado da pala-
interdependente e interativo; em que o
vra na cultura africana – o uso da palavra
material e o espiritual nunca estão dis-
se constitui no diálogo, no argumento e no
sociados. E o ensinamento nunca era
conselho, que se mostraram como práticas
sistemático, mas deixado ao sabor das
essenciais do dia a dia nas comunidades
circunstâncias, segundo os momentos
Para a cultura africana, as palavras têm um
favoráveis ou a atenção do auditório
poder de ação, e ignorar aquilo que é pro-
(Bâ, 2003, p. 174-175).
nunciado e verdadeiro é cometer uma falha
grave, que pode ser comparada ao ato de ti-
Como aponta Bâ, o poder da palavra garante
rar uma parte dos elementos essenciais do
e preserva ensinamentos, uma vez que pos-
nosso corpo, o que nos faria perder a vida ou
sui uma energia vital, com capacidade cria-
uma parte de nós.
dora e transformadora do mundo. Energia
que possui diferentes denominações para as
Recorremos a Amadou Hampâté Bâ, filó-
diversas civilizações, por exemplo, para os
sofo, escritor e intelectual africano, para
bantus essa energia é hamba, já para o povo
exemplificar a relação entre a palavra, o co-
iorubá a energia é o axé.
nhecimento e o saber vivenciados na escola
dos mestres da palavra:
Tal é a importância da palavra na África que
existe um papel específico desempenha-
Um mestre contador de histórias afri-
do pelos profissionais da tradição oral – os
cano não se limitava a narrá-las, mas
griots – pessoas que têm o ofício de guardar
podia também ensinar sobre numero-
e ensinar a memória cultural na comunida-
sos outros assuntos (...) porque um ‘co-
de. Eles armazenam séculos e mais séculos
nhecedor’ nunca era um especialista no
de segredos, crenças, costumes, lendas e
sentido moderno da palavra mas, mais
lições de vida, recorrendo à memorização.
precisamente, uma espécie de generalis-
Existem também mulheres que exercem es-
ta. O conhecimento não era comparti-
sas funções, conhecidas como griotes. Ham-
mentado. O mesmo ancião (...) podia ter
pâté Bâ comenta sobre uma célebre canto-
conhecimentos profundos sobre religião
ra, Flateni, antiga griote do rei Aguibou Tall,
258
cujos “cantos arrancavam lágrimas até dos
conhecer e que se encontra latente em tudo o
mais empedernidos” (2003, p. 255). Há ainda
que nos transmitiram, assim como o baobá já
outras categorias de contadores de histórias
existe em potencial em sua semente (TIERNO
na África, como os Doma4, tidos como os
BOKAR, apud BÂ, 2003, p. 175).
mais nobres contadores, porque desempenham o papel de criar harmonia, de organi-
É interessante salientar que hoje nós temos
zar o ambiente e as reuniões da comunida-
a escrita como forma de apontamento de
de. Eles jamais podem usar a mentira, pois
nossas memórias, mas que ela não é a única
isso faria com que perdessem sua energia
forma de registrarmos os conhecimentos, a
vital, provocando um desequilíbrio no gru-
oralidade serviu e serve para preservar a cul-
po ao qual pertencem (Caderno de Educação
tura africana no Brasil.
– ÁFRICA ILÊ AIYÊ, 2001).
A tradição oral pode ser vista como uma cacimba de ensinamentos, saberes que veicu-
Nas trilhas das histórias
afro-brasileiras
lam e auxiliam homens e mulheres, crianças, adultos/as velhos/as a se integrarem no
tempo e no espaço e nas tradições. Sem poder ser esquecida ou desconsiderada, a oralidade é uma forma encarnada de registro,
tão complexa quanto a escrita, que se utiliza
de gestos, da retórica, de improvisações, de
canções épicas e líricas e de danças como
modos de expressão.
De acordo com Nelly Novaes Coelho, não temos mais os contadores “descendentes dos
narradores primordiais, isto é, aqueles que
não inventavam: contavam o que tinham ouvido e ou conhecido” e que “representavam
a memória dos tempos a ser preservada pela
palavra e transmitida de povo para povo ou
de geração para geração” (COELHO, 2000, p.
109). Contudo, podemos afirmar que a tra-
Mais uma vez recorrendo a Bâ: “A escrita é
dição de narrar mantém a sua força. Como
uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fo-
escreve Celso Sisto, “O homem já nasce pra-
tografia do saber, mas não o saber em si. O
ticamente contando histórias. Está inserido
saber é uma luz que existe no homem. É a he-
numa história que o antecede e com certeza
rança de tudo que nossos ancestrais puderam
irá sucedê-lo” (SISTO, 2001, p. 91).
4Conforme mencionado no Caderno de Educação – África Ilê Aiyê (2001, p. 25) “Os profissionais da tradição
mais reconhecidos na África tradicional e contemporânea são os Griots e os Domas. Os Griot é um nome de origem
Bambará, para personagens africanos denominados contadores de histórias, que eles sabem de memória e acumulam,
reunindo séculos e mais séculos de crenças, costumes, lendas, contos, lições de sabedoria. O Doma é a categoria
mais nobre de contadores de história, aquele que tem o papel de criar harmonia, de colocar ordem em volta do
ambiente, da audiência nas reuniões da comunidade”.
259
Todos nós temos histórias para contar, imer-
dominou uma referência a se seguir, em que
sos que estamos, ainda que por vezes sem
as personagens brancas reinavam como pa-
perceber, no patrimônio cultural informado
drão de representação literária e, por muito
por mitos, lendas, provérbios, contos, can-
tempo, esse modelo ocidental eurocêntrico
ções, sátiras de todas as matrizes.
foi quase que exclusivo. Esse contexto vem
sendo alterado pelas ações dos movimentos
As narrativas orais expressam hábitos e va-
sociais negros, pelas influências de novas
lores cujo compartilhamento se dá no am-
visões e concepções de educação, além dos
biente familiar, religioso, comunitário, es-
dispositivos legais que atualmente orientam
colar. Todo este patrimônio está no corpo e
os currículos das escolas.
na mente das pessoas, onde quer que elas
estejam.
Há, atualmente, vários livros publicados que
se propõem a desvendar o universo de algu-
Essas histórias, que também estão nos livros,
mas culturas africanas e da afro-brasileira.
nos jornais, na rede informatizada, sugerem
Só para citar alguns temos: Bichos da África,
troca, intimidade e proximidade e, conforme
Volumes I, II, III e IV, Contos ao redor da fo-
Ford “nos ajudam a lidar com as inevitáveis
gueira e Histórias africanas para contar e re-
transições da vida e fornecem modelos para o
contar, de Rogério Barbosa; Que mundo Ma-
nosso relacionamento com as sociedades em
ravilhoso, de Julius Lester; Bruna e a galinha
que vivemos e para o relacionamento dessas
d’Angola, de Gercilga de Almeida; A cor da
sociedades com o mundo que partilhamos com
vida, de Semíramis Paterno; Tanto, Tanto, de
todas as formas de vida” (FORD, 1999, p. 9).
Trish Cooke; Chica da Silva, de Lia Vieira e As
tranças de Bintou, de Sylviane Diouf. Existem
As culturas africanas e afro-brasileiras pre-
outros dentro do mercado editorial, o qual
servam, também na escrita, narrativas que
tem se interessado pelo tema, apresentando
podem ser associadas ao que a crítica literá-
novas opções.
ria ocidental classifica como contos, lendas,
fábulas, provérbios, canções, etc. É funda-
Encontramos também livros que retomam
mental compreender que a base de todas as
traços e símbolos da cultura negra, tais
histórias guarda reminiscências na tradição
como: a capoeira, a dança, os mecanismos
oral.
de resistência diante das discriminações
e outros que fazem alusão direta às religi-
As narrativas literárias são textos estéticos,
ões de matriz africana ou que remetem às
lúdicos, que suscitam a criatividade, o imagi-
divindades afro-brasileiras: Pai Adão era
nário da/o leitora/or. Nesse tipo de texto pre-
Nagô, de Inaldete Andrade; Rainha Quixim-
260
bi; O presente de Ossanha; Gosto de África e
Ao ampliar nossos conhecimentos, bem
Dudu Calunga, de Joel Rufino; Na terra dos
como desenvolver com os alunos e alunas
Orixás, de Ganymedes José; Lenda dos orixás
projetos e aulas significativos, percebere-
para crianças, de Maurício Pestana; Ifá, o adi-
mos que o universo afro-brasileiro é múlti-
vinho, Xangô, o rei do trovão, Os príncipes do
plo e que existem várias Áfricas que infor-
destino: histórias da mitologia afro-brasileira,
mam nossa cultura. Nas palavras de Braz:
de Reginaldo Prandi.
Na verdade, não existe apenas uma ÁfriJúlio Emilio Braz, por exemplo, nos estimu-
ca, mas incontáveis, ricas em histórias
la a imergir no universo de algumas lendas
e tradições. Do norte islamizado até o
africanas, a fim de aguçar nossa curiosida-
sul dividido em incontáveis crenças e
de, durante a leitura. Afinal, indaga ele:
religiões, muitas delas fruto dos anos
de colonização europeia, passando por
Quantas histórias sobre os tuaregues, o
lendário povo nômade do norte da África, já ouviram?
Qualquer um deles conhece a história de
reinos tão poderosos quanto desconhecidos como de Ghana e Achanti? E sobre
um império Mali? O que ouviram? Songai? Kanem-bornu? Bambara?
uma surpreendente diversidade ecológica e geográfica que vai dos desertos escaldantes como o Saara e o Kalahari às
maravilhas florestais como Okavango e
às extensas savanas em países como o
Quênia (2001, p. 4).
Ainda como nos alerta o autor, é importante estarmos atentos e re-vermos o quanto
Pouco ou nada se falou sobre a África
a cultura africana impregnou-se na cultura
para os jovens de hoje, afrodescenden-
brasileira:
tes ou não. E quando se falou, buscou-se
mais a discussão sobre as religiões ou o
A riqueza étnica é impressionante, res-
folclore, quando não o estereótipo. Para
ponsável por uma herança cultural e ar-
muitos a África ainda é um mistério ou,
tística e precisamos conhecê-la, uma vez
pior ainda, quando aparece nos notici-
que ainda a conhecemos pouco, apesar
ários, é como palco de terríveis guerras
de a África ter uma influência decisiva
civis, epidemias pavorosas ou de países
nos hábitos e nos costumes mesmo da-
muito próximos de barbárie, onde a civi-
queles brasileiros que não são afrodes-
lização parece não existir (2002, p. 4-5).
cendentes (BRAZ, 2001, p. 4 e 5).
261
Tecendo os pontos para
contar os contos
teresse, tristeza, perguntas, anseios e
compreensões que fazem aflorar [imagens do nosso inconsciente](...). No en-
O aqui e agora dos espaços das narrativas,
tanto, (...) em cada fragmento de histó-
com seus personagens intrigantes, enredos
ria está a estrutura do todo (CLARISSA
carregados de metáforas e desfechos sur-
ESTES, 1999, p. 30).
preendentes, falam de valores importantes
para descortinar as múltiplas dimensões da
Começar a busca em nosso acervo de memó-
vida na sociedade atual. Conhecer este uni-
ria pode ser significativo, considerando que
verso significa poder contribuir, em sentido
estes conhecimentos, de alguma maneira,
amplo, para a promoção da igualdade das
fazem parte de nossa formação identitária.
relações étnico-raciais na escola e fora dela.
Quais contos já ouvimos ou lemos? Quando foi? Quem nos apresentou as narrativas?
Talvez uma das maiores riquezas do traba-
Quais foram os sentimentos e emoções mo-
lho com os contos seja o exercício da bus-
bilizados?
ca coletiva, da pesquisa, das trocas e das
descobertas. Os contos, sejam eles orais ou
Este pode ser um primeiro passo. Olhar para
escritos, estão por toda a parte para serem
nós e para nossa história de vida, para saber
recolhidos e oferecidos para nosso deleite,
que lugar ocupam os contos, os mitos, os
num tecido poético bordado de símbolos e
provérbios, e nos prepararmos para, no am-
ensinamentos.
biente escolar, lançar mão de ações simples
Para Clarissa Estes, nas histórias estão incrustadas orientações que nos guiam a respeito da complexidade da vida. Elas se apresentam, muitas vezes, como ingredientes
medicinais, que aliviam, que curam:
As histórias são bálsamos medicinais.
e organizadas e contribuir para as artes de
falar e de escutar, destacando as fundamentais para a convivência e o exercício da cidadania na atual sociedade.
Como destaca Rogério Barbosa sobre a arte
de contar histórias:
(...). Elas têm uma força! Não exigem que
se faça nada, que se seja nada, que se aja
Seja bem-vindo ao mundo da literatura
de nenhum modo – basta que prestemos
oral. (...) Não se limite apenas a ler ou
atenção. A cura para qualquer dano ou
a ouvir. Vibre intensamente com as his-
para resgatar algum impulso psíquico
tórias como se fizesse parte da atenta
perdido nas histórias. Elas suscitam in-
plateia.
262
Aprecie os contos que explicam a origem
missos firmados no sentido de conhecer a
do comportamento de determinados
história, valorizar a memória e a herança
habitantes da floresta. Depois, leia as
cultural dos diferentes povos. Quais são
histórias em voz alta e tente reproduzir
as atividades e projetos que a escola, ou
o andar e os diálogos travados pelos in-
parte dela, já realiza ou realizou? Como
críveis personagens. Afinal, as histórias,
têm sido desenvolvidas e divulgadas?
principalmente na África, foram feitas
para serem contadas e recontadas. (...)
• Incentivar a prática da pesquisa junto aos
alunos e alunas. Discuta e elabore com
Uma das tradições africanas são os contos etiológicos, que procuram explicar
as origens das coisas e o comportamento de determinados animais. Histórias
africanas para contar e recontar surgiu de uma seleção e adaptação desses
contos... (Barbosa, 2004 – introdução e
biografia).
eles a coleta de depoimento oral de pessoas da família ou da comunidade. O que
importa neste momento é valorizar as
histórias e investir na construção de um
mapa cultural e social, que pode ajudar na
construção de uma rede de sociabilidade,
fortalecendo a autoestima dos envolvidos
neste processo. É importante também
pensar na sistematização e comunicação
Ampliando horizontes: o
ofício de fazer
do material coletado;
• Dinamizar as reuniões de responsáveis,
pais e mães, fazendo também desta opor-
A seguir, apontamos algumas possibilidades.
tunidade um espaço de valorização de sa-
É com a mão na massa que podemos pensar
beres, de trocas e descobertas, por meio
as nossas posturas investigativas, repensar
da coleta e ressignificação das memórias
atividades escolares como espaços de um di-
dos contos. As reuniões também são boas
álogo emocionado:
oportunidade para que as pessoas presentes conheçam os projetos que estão sendo
• Convidar nossos/as colegas professores
desenvolvidos na escola e tenham conta-
para o exercício de rememorar as narrati-
to com os livros e outros materiais traba-
vas que fazem parte das histórias pessoais,
lhados no espaço escolar;
o que pode ser bastante instigante. Trabalhar em grupo, nas reuniões pedagógicas,
• Realizar buscas na internet, para conhe-
é também excelente oportunidade para
cer sites de países africanos e conhecer
analisar o projeto político-pedagógico da
contos que estão disponíveis na rede, tais
escola, verificando quais são os compro-
como:
263
www.casadasfricas.com.br;
• Estabelecer contato com grupos do movi-
www.mestredidi.org;
mento social negro e outras entidades para
www.mundonegro.com.br;
conjuntamente organizar eventos – ativida-
www.portalafro.com.br;
des, cursos, palestras – que valorizem a cul-
www.navedapalavra.com.br
tura e a história africana e afro-brasileira
www.docedeletra.com.br .
e sejam incorporados ao projeto político-pedagógico e ao currículo da escola.
• Buscar outras fontes, tais como filmes, um
deles Kiriku e a feiticeira, narrativa africana
encantadora traduzida para a linguagem
fílmica. Acessar séries educativas, como
os programas de vídeo do projeto A Cor
da Cultura5 (www.acordacultura.org.br), a
série Repertórios Afro-Brasileiros, veiculada
pela TV Escola/Programa Salto para o Futuro, em 2004, dentre outras (www.tvebrasil.
com.br/salto). Conhecer as experiências de
professores, voltadas para a promoção da
igualdade racial/étnica no ambiente escolar, as quais foram selecionadas e divulgadas pelo Prêmio Educar para a Igualdade
Racial do CEERT (www.ceert.org.br).
Mantendo a tradição africana, de trabalhar
coletivamente, mostra-se fundamental pensar com a comunidade escolar outras possibilidades de tessitura de relações com compromisso. Desta forma, salientamos que o
trabalho com os contos é interdisciplinar
e pode tomar um dos lugares centrais no
projeto político-pedagógico e nos currículos
das escolas, de forma a disseminar e valorizar o uso da palavra oral, como uma das
mais importantes modalidades da linguagem. Afinal, somos contadores e contadoras
de histórias.
O ato de contar, de ouvir histórias parece
• Visitar, em feiras e congressos, os estandes
ainda manter um sentido universal que re-
de editoras e ONGs, buscando materiais
side na sustentação do espaço de sociabili-
especificamente relacionados à temática.
dade. Contar história é trocar, compartilhar
O mercado editorial tem investido na pro-
vivências e saberes. Trata-se de escutar a voz
dução de materiais sobre diversidade. São
do outro que, ao contar, exerce O direito de
dezenas de livros que, analisados com cri-
ler em voz alta, como aponta Pennac em Di-
térios, enriquecem o trabalho;
reitos Imprescritíveis do Leitor6.
5A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, realizado por uma
parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan – Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, a TV
Globo, MEC/ e a Seppir – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
6
Daniel Pennac, no livro Como um romance (p. 139), aponta os 10 direitos imprescritíveis do leitor: O direito
de não ler; de pular páginas, de não terminar de ler um livro; de reler; de ler qualquer coisa; ao bovarismo (doença
textualmente transmissível); o direito de ler em qualquer lugar, de ler uma frase aqui e outra ali, de ler em voz alta,
de calar.
264
A possibilidade de escolher determinada his-
Espero que vocês saiam e deixem que as
tória nos permite ocupar o lugar de um griot
histórias lhes aconteçam, que vocês as
e o próprio poder de usar a fala pode ser to-
elaborem, que as reguem com seu san-
mado como um espaço de autoafirmação.
gue, suas lágrimas e seu riso até que
Trata-se de escutar a voz do outro. E quem
elas floresçam, até que você mesma es-
escuta aprende a respeitar e deleitar-se na
teja em flor. Então, você será capaz de
voz da outra pessoa.
ver os bálsamos que elas criam, bem
como onde e quando aplicá-los. É essa a
Continuando a conversa:
libertando vozes
missão. A única missão (ESTES, 1999, p.
570).
A missão do poder da palavra está conos-
Quando nos referimos à cultura afro-brasileira, sempre fazemos uso dos incontáveis
conhecimentos e saberes trazidos por outros povos e pelos africanos escravizados em
suas estratégias de resistência e construção
de suas identidades – o canto, as rezas, os
gestos corporais, o som dos instrumentos,
co. Basta sabermos usá-la, como os sábios
contadores de outrora, e mergulharmos nos
mistérios desconhecidos, que nos revelam
como lidar com os conflitos, com as mudanças, com as diferenças, com a convivência
em sociedade nas singularidades das formas
de ser e viver.
os usos da palavra cantada ou versada. Todos esses elementos se entrelaçam e comu-
Novos conceitos são construídos por meio
nicam e nos comunicam algo sobre nosso
da disseminação de outras ideias e con-
território, nossa cultura, nossa língua, en-
cepções, capazes de promover e sustentar
fim, nossa história.
comportamentos favoráveis à convivência e
ao respeito, à igualdade nas relações entre
Podemos ser os novos guardiões e guardiãs,
crianças e jovens, homens e mulheres para
responsáveis por construir novas histórias,
além do aspecto jurídico, constituído pelo
re- criar enredos éticos e dignos, valorizar
princípio de que todos os homens são iguais
culturas e sermos portadores das vozes es-
perante a lei.
quecidas de um passado mais longínquo
(dos mitos, dos ancestrais), assim como de
Fica o convite ao compromisso para desfiar a
um passado mais próximo, de séculos de
trama cultural, nos seus múltiplos sentidos
ocultamento da história da África como ma-
e tessituras, recuperar, produzir histórias e
triz da trajetória da humanidade. Basta abrir
– na própria voz dos sujeitos – buscar for-
as portas e deixar as histórias aflorarem:
mas de alterar as condições atuais, contar
265
ou retomar outras novas histórias, coletiva-
De acordo com o Parecer, é fundamental a:
mente, como rezam as tradições das Áfricas.
Edição de livros e de materiais didáticos,
As leis contam e aumentam
pontos
para diferentes níveis e modalidades de
ensino, que atendam ao disposto neste
parecer, em cumprimento ao disposto
no Art. 26A da LDB, e, para tanto, abor-
Atualmente, a cultura africana e afro-brasileira está na agenda educacional de nosso
País. É importante ressaltar que o movimento social negro brasileiro – incluímos
também o movimento de mulheres negras
– nas últimas décadas do século XX e início
do XXI – tem desempenhado papel preponderante nessa tendência de valorização da
cultura negra, por meio de suas denúncias e
reivindicações. Todo esse contexto permite,
dem a pluralidade cultural e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já
publicadas sobre a história, a cultura, a
identidade dos afrodescendentes, sob o
incentivo e supervisão dos programas de
difusão de livros educacionais do MEC –
Programa Nacional do Livro Didático e
Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).
gradativamente, vislumbrar livros de Lite-
266
ratura Infanto-Juvenil com novas propostas
A Resolução retoma esse assunto quando in-
(LISBOA DE SOUSA, 2005).
forma no Art. 7º que “Os sistemas de ensino
orientarão e supervisionarão a elaboração e
Vale chamar a atenção em relação à alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de n°. 9.394/96 (LDBEN), trazida
pela Lei Federal de n°. 10.639/03, que torna
obrigatório o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira no currículo oficial de Ensino e da regulamentação da Lei 10.639/03
pelo Parecer CNE/CP 003/2004 e pela Resolução CNE/CP 1/2004, que dispõem sobre as
edição de livros e outros materiais didáticos,
em atendimento ao disposto no Parecer CNE/
CP 003/2004”. Esses dispositivos legais são
fundamentais para as mudanças atuais na
história da educação no país, pois contribuem para que educadores, gestores, editores, leitores etc., possam redimensionar as
práticas de leitura e a concepção de livros
de literatura.
Diretrizes Curriculares para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
Em 2005, a Secretaria de Educação Continu-
História e Cultura Afro-Brasileira e Africa-
ada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),
na.
por intermédio da Coordenação Geral de
Diversidade e Inclusão Educacional, enviou
estimulam o respeito à diversidade. Salien-
ofícios para várias editoras, informando so-
tamos que tais ações precisam integrar os
bre os dispositivos legais acima citados, com
currículos das escolas e serem incorporadas
o intuito de que as editoras inscrevessem li-
ao cotidiano escolar.
vros sobre o tema no Programa Nacional de
Biblioteca da Escola (PNBE). As Diretrizes do
REFERÊNCIAS
referido Programa apontavam o tema da diversidade como enfoque. O resultado foi positivo, na medida em que livros importantes
sobre o tema foram selecionados em 2005,
BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino
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aos quais os/as educadores/as e estudantes
terão acesso via PNBE.
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Por um lado, algumas Secretarias de Edu-
de Estudos Afro-asiáticos, 2000.
cação organizaram materiais específicos
para contemplar a cultura afro-brasileira. À
Caderno de Educação do Ilê Aiyê. África Ven-
guisa de exemplo, temos a Bibliografia Afro-
tre Fértil do Mundo. Salvador, número IX,
-Brasileira na Rede Municipal de São Paulo /
2001. Site: www.ileayie.com.br
SP, distribuída em 2003; o Kit de Literatura
Afro-Brasileira, da Secretaria Municipal de
BRASIL. Ministério da Cultura, Revista Palma-
Educação de Belo Horizonte/MG, distribuído
res – cultura Afro-Brasileira. Ano 1, n. 1, agos-
em 2004; o material orientador sobre rela-
to de 2005.
ções raciais e cultura afro-brasileira da Secretaria Municipal de Educação de Salvador/
BRAZ, Júlio E. Lendas Negras. São Paulo: FTD,
BA e o material de formação de professores
2001.
da Secretaria Estadual de Educação do Mato
Grosso do Sul.
As leis estão saindo fora do papel e ganhando corpo, uma vez que educadores de Norte
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Paulo: Quíron, 2ª ed., 1984.
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271
X. Conto popular, literatura e formação
de leitores1
Ricardo Azevedo2
Parte considerável dos contos populares pare-
“Uma filha de chefe e um rapaz se apai-
ce ser originária de mitos arcaicos. Os mitos
xonaram, mas os pais da jovem não
são, em princípio, narrativas sagradas, rela-
aprovavam a união da filha (...). Um dia,
tando fatos que teriam ocorrido num tempo
a moça desapareceu. Descobriu-se que
ou mundo anterior ao nosso e que, em geral,
tinha fugido para as colinas refugiando-
tentam explicar a origem e a existência das
-se entre animais e pássaros. Enviaram
coisas: como e porque surgiram o mundo, os
embaixadas e mais embaixadas até ela,
homens, os costumes, as leis, os animais, os
para convencê-la a voltar, mas em vão: o
vegetais, os fenômenos da natureza etc.3 Em
desgosto a tinha tornado surda e insen-
outras palavras, através de histórias, as cul-
sível. Um feiticeiro declarou que só um
turas criaram (e criam) mitos com o objetivo
grande choque poderia tirá-la daquela
de tornar compreensíveis e interpretáveis a
letargia. Anunciou-se então à heroína a
existência humana e tudo o que existe.
falsa morte de seu amado. Ela deu um
pulo e desapareceu, transformada em
Vejamos trechos de dois relatos míticos
Engole-vento”4.
recolhidos pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em sua passagem pelo Brasil, na década de 40. Ambos tentam explicar porque o
pássaro Engole-vento é como é. O primeiro
Sobre o mesmo pássaro, cujo canto é muito triste, o ilustre pesquisador apresentou o
mito karajá. Eis um trecho:
corresponde a um mito guarani:
1 Conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / PGM 1.
2 Escritor e desenhista, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Lúcio vira bicho, Cia. das
Letras, Contos de espanto e alumbramento, Scipione e A hora do cachorro louco, Ática, entre outros.
3 O assunto ultrapassa os limites desse artigo. Há, naturalmente, mitos modernos e contemporâneos. O
termo costuma ser utilizado de forma imprecisa, seja meramente como “relatos fantásticos” ou “seres fabulosos”
seja como “crenças inverídicas” ou mesmo simples mentiras. A noção de mito é bem mais complexa que isso. Para
mais informações c.f. por exemplo ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo, Perspectiva, 1972.
4 LÉVI-STRAUSS, Claude. A oleira ciumenta. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 55.
272
“(...) certa noite, a mais velha entre duas
mais diversas culturas, teriam sofrido um
irmãs, admirando a beleza da estrela
processo de dessacralização, ou seja, com
vespertina, desejou-a. No dia seguinte, a
o passar do tempo, deixaram de ser inter-
estrela entrou em sua casa sob a forma
pretadas com fé religiosa. Algumas delas,
de um velho curvado, enrugado e de ca-
por serem muito bonitas, continuaram a ser
belos brancos, e declarou estar disposto
contadas e, de boca em boca, sofrendo natu-
a se casar com ela. A mulher, horroriza-
ralmente todo tipo de alteração e influência
da, rejeitou-o. Sua irmã mais nova ficou
– “quem conta um conto aumenta um pon-
com pena e aceitou o velho como ma-
to” – transformaram-se no que conhecemos
rido. No dia seguinte, descobriram que
hoje como contos populares.
aquele corpo não passava de um invólucro, sob o qual havia um belo rapaz, ri-
Esses contos, é bom lembrar, são típicas ex-
camente paramentado, que sabia fazer
pressões de culturas orais (sem escrita), ou
crescer as plantas alimentares que os
seja, culturas que não contam com recur-
índios ainda não conheciam. A mais ve-
sos para fixar informações. De narrador em
lha sentiu ciúme da irmã por sua sorte,
narrador, guardados, através dos séculos,
e sentiu vergonha de sua própria estu-
na plasticidade da memória e da voz, viaja-
pidez. Transformou-se então no Engole-
ram para todos os lados sendo disseminados
-vento, de grito desconsolado”5.
pela transmissão boca a boca. Nesse processo, sofreram todo tipo de modificação:
Como se vê, a associação entre narrativas
míticas e contos populares pode ser bastante nítida.
Ressalto que o que chamo aqui de “conto
popular” é sinônimo de “conto de fadas”,
“conto maravilhoso” ou “conto de encantamento”, narrativas que no Nordeste brasileiro também são conhecidas como “histórias de Trancoso”.
fusões, acréscimos, cortes, substituições e
influências. Em tese, numa simplificação, de
um mesmo mito (narrativa sagrada arcaica)
europeu, por exemplo, podem ter surgido
infindáveis e variadas histórias, marcadas
pelas diversas culturas por onde passaram
e recriadas por um sem número de contadores (cada um com seu estilo).
Eis porque os contos populares são tão ri-
Em grandes linhas, é possível colocar a
cos, multifacetados e complexos e também
questão nos seguintes termos: acredita-se
porque costuma ser perda de tempo preten-
que muitas narrativas míticas, oriundas das
der identificar sua “verdadeira origem”.
5
Idem,ibidem, p. 58. 8 Idem, ibidem, p. 179.
273
O tema é amplo. Para abordá-lo no curto es-
viaja pelo mundo, enfrenta perigos e um
paço desse texto, será preciso dividi-lo em
sem número de aventuras, desobedece uma
tópicos.
recomendação, é castigado, foge, liberta a
princesa das garras do monstro, retorna,
O primeiro deles diz respeito a algumas ca-
é traído, luta, vence, casa-se com ela e em
racterísticas, entre outras, dos contos po-
termos temporais, aparentemente, nada
pulares: 1) São sempre assumidamente de
mudou. Crianças, jovens e velhos começam
ficção, ou seja, não pretendem ter aconte-
e terminam a história mantendo, em geral,
cido de fato (ao contrário, por exemplo, do
suas respectivas idades.
“causo” ou da “lenda”); 2) Trazem, muitas
vezes, a possibilidade do elemento maravi-
Não são poucas as exceções, mas que surgem
lhoso: a existência de forças desconhecidas,
para confirmar a recorrência dos pontos ali-
feitiços, monstros, encantos, instrumentos
nhavados acima de forma esquemática.
mágicos, vozes do além, viagens extraordinárias e amigos ou inimigos sobrenaturais;
Um segundo tópico merece ser destacado.
3) Não costumam ocorrer num tempo deter-
Na maioria das vezes, os contos populares,
minado (ou histórico), mas – como os mitos
ou de encantamento, não obedecem a uma
– num passado ou numa dimensão anterio-
moral de princípios. Em tese, a moral corres-
res e desconhecidos. Note-se que seu desen-
ponde a um conjunto de normas de compor-
volvimento acontece “certa vez”, “há muito
tamento destinadas a regular as relações en-
tempo...”, “no tempo em que os animais fa-
tre os indivíduos6. Estamos acostumados e
lavam”, “há milhares de anos quando nada
condicionados a pensar na moral como um
existia do que hoje existe” etc.; 4) Com suas
acervo de princípios abstratos, gerais e uni-
personagens acontece algo semelhante. Por
versais de comportamento que deve ser res-
vezes, nem nome têm: são “o pai e seus três
peitado por todos, seja qual for a situação:
filhos, o mais velho, o do meio e o caçula”,
não mentir, não roubar, não matar, valorizar
ou “a bela adormecida no bosque”, ou “cer-
a busca da justiça, da imparcialidade, da im-
to rei muito poderoso pai de uma princesa
pessoalidade, da isonomia, da isenção e da
mais linda do que as flores do campo” e, por
neutralidade. Pois bem, a moral dos contos
último, 5) Neles, em geral, a passagem do
de encantamento, chamada por alguns de
tempo inexiste. O herói despede-se do pai,
moral ingênua, costuma seguir outros para-
6A ética, vale lembrar, é a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja,
ela representa um “conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento
humano moral” (Vazquez). Enquanto a moral é inseparável da atividade prática, a ética constitui-se na avaliação,
reflexão e crítica sobre esta atividade. Sobre o assunto, c.f. VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética . Civilização Brasileira,
1999 e ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Universidade de Brasília, 1992.
274
digmas. Segundo ela, tudo o que favorece
troca os benefícios do Estado – segurança,
o herói é o Bem e tudo o que prejudica o
moradia, educação, transporte, saúde e tra-
herói é o Mal. Trata-se, em outras palavras,
balho –, seja igual à moral de uma socieda-
de uma moral relativa, flexível e pragmática,
de desequilibrada, onde cada um luta por si
ligada não a princípios abstratos e univer-
para poder sobreviver? São questionamen-
sais mas a atuações e situações concretas
tos que mereceriam uma discussão urgente,
do aqui-agora. É ela que, por exemplo, pode
principalmente se levarmos em conta a so-
fazer com que certa mãe diga: “Meu filho
ciedade brasileira.
cometeu um crime, mas errar é humano.
Nossa Senhora da Penha vai perdoá-lo e fazer com que a polícia jamais o encontre.”
Note-se que, de acordo com a moral ingênua, errar costuma ser bem mais humano
quando a gente gosta de quem errou.
A questão também pode ser vista por outro
viés: o do livre-arbítrio. A lei, um princípio
geral e abstrato, nos obriga a não ultrapassar a velocidade de 60 km por hora nos perímetros urbanos. Estamos, por exemplo,
com uma pessoa gravemente ferida dentro
do carro. Devemos cumprir a lei ou não?
Tento demonstrar que a questão da moral
ingênua implica dissenso e contradição e
que boa parte dos contos populares obede-
Passo para um terceiro aspecto dos contos
populares: seu caráter eminentemente narrativo.
Para compreender esse ponto, é preciso
abordar, mesmo que de passagem, um tema
relevante e muito amplo, embora nem sempre levado em conta: a oralidade, suas características e implicações.
Sabemos que os contos populares, em princípio, nascem em culturas orais, ou seja, são
histórias criadas, recriadas e preservadas ao
longo do tempo – sempre com modificações
– através da narração e da memória, recursos típicos das culturas que não dispõem de
instrumentos de fixação como a escrita.
ce a uma moral que, embora eventualmen-
Mesmo em versões contemporâneas feitas
te condenável em termos da sociabilidade,
por escrito, o conto popular continua mar-
pode trazer à baila situações e conflitos hu-
cado pela narrativa oral, pois tende a man-
manos de grande interesse.
ter certas características do discurso falado
e pressupõe sempre uma voz que narra e um
Ainda neste tópico, um último exemplo
ouvinte.
(que, por sinal, vincula a moral ingênua à
cultura popular): como exigir que a moral de
Refiro-me a um escritor que, de certo modo,
uma sociedade civilizada e justa, onde todos
escreve como quem fala e a um leitor que lê
os cidadãos pagam impostos e recebem em
como quem ouve.
275
Podemos, claro, escrever solitariamente
tor, na verdade, independe completamente
sem nos preocuparmos com o eventual lei-
do seu leitor.
tor mas, convenhamos, quem narra em voz
alta, sozinho, para ninguém, corre o risco
Já um orador – seja ele um contador de his-
de ser internado à força em alguma clínica
tórias, um professor, um político, ou um
psiquiátrica.
padre durante o sermão – quando se dirige
a uma plateia face a face, “ao vivo”, vê-se
A narrativa, portanto, é, em princípio, essen-
diante de uma situação bastante diferente
cialmente dialógica e tem como substrato,
da vivida pelo escritor.
paradigma e pressuposto básico, sempre e
sempre, a comunicação entre pessoas feita
Sabe que suas palavras, seu tom de voz, seus
face a face, em suma, de um eu que se dirige
gestos, seus olhos, o ambiente, a reação da
a um outro situado.
plateia e a energia estabelecida entre ele e a
plateia fazem parte de seu discurso e jamais
Explico-me melhor: há textos marcados prin-
poderão ser completamente reproduzidos,
cipalmente pela cultura escrita. Isso signifi-
mesmo que seu discurso seja gravado, fil-
ca, em resumo, que são fixados e conserva-
mado ou fixado por texto, pois a diferença
dos por texto, o que garante sua perenidade
entre uma aula e o filme dessa aula é tão
e a possibilidade de serem lidos e interpre-
grande quanto a diferença entre um discur-
tados em qualquer lugar, época ou contex-
so ao vivo e sua transcrição numa folha de
to histórico. Um escritor sabe que, mesmo
papel. Sabe que seu discurso tem um alto
depois de morto, sua obra poderá ser lida.
grau de efemeridade. Sabe que precisa ser
Sabe que seu livro poderá ser distribuído
necessariamente compreendido, ou seja,
pelo mundo afora e que ele jamais verá o
evita falar para ser “interpretado” pois isso
rosto nem saberá a opinião da maioria de
demandaria tempo, distanciamento, análise
seus leitores. Sabe que pode se dar ao luxo
e reflexão por parte do ouvinte. Sabe que se
de escrever de forma fragmentada, recorrer
alguém da plateia não compreender seu dis-
a vocabulário e sintaxes incomuns, de uti-
curso poderá perguntar, portanto, sabe que,
lizar metáforas obscuras, fazer citações ou
se for o caso, pode improvisar e utilizar pa-
de ser experimental (pois o leitor pode ler,
lavras não previstas – ou seja, modificar seu
reler e analisar o texto com calma). Pode ser
discurso – para transmitir uma ideia. Sabe
indiferente ao fato de ser ou não compreen-
que não poderia fazer seu discurso se esti-
dido. Se quiser, pode até ser agressivo com
vesse morto. Sabe que sua plateia se resume
o leitor. Em tese, e considerando o meio de
às pessoas que estão à sua frente e precisa
expressão que utiliza – a escrita – um escri-
estar atento à reação dessas pessoas. Não
276
pode, portanto, se dar ao luxo de falar de
compartilhável construído através de uma
forma fragmentada, recorrer a vocabulá-
linguagem familiar e acessível.
rio e sintaxes incomuns, utilizar metáforas
obscuras, fazer citações ou ser experimen-
Abro parênteses para lembrar que a narrati-
tal, pois correrá o risco de não ser compre-
va é um recurso humano vital e fundamen-
endido. Sabe que se for agressivo e ofender
tal. Sem ela, a sociabilidade, e mesmo a vi-
as pessoas da plateia pode até tomar uma
são que temos de nós mesmos, não poderia
surra. Em tese, e considerando o meio de
ser construída. Narramos nossas experiên-
expressão que utiliza – a voz – um orador
cias cotidianas, nosso dia no trabalho, fatos
depende completamente do seu ouvinte.
acontecidos, lembranças, sonhos, projetos
e desejos. Narramos, mesmo de forma so-
Dei tantos exemplos para defender a seguin-
litária, em pensamento, para nós mesmos,
te ideia: há textos escritos marcados pela
episódios acontecidos que de alguma forma
cultura escrita e textos escritos marcados
não ficaram claros. Para além de um recur-
pela cultura oral. Esses últimos tentam sem-
so literário, a narrativa pode ser considera-
pre recuperar a situação do orador diante
da um dos procedimentos através dos quais
de uma plateia, o discurso falado no conta-
tornamos a vida e o mundo interpretáveis.
277
to face a face. Textos assim, claros, diretos,
concisos e dependentes da plateia (do lei-
Na verdade, a narrativa sempre foi:
tor), são exatamente aqueles utilizados pelo
escritor de contos populares. Além da busca
(...) uma tendência definidora do ser
da comunicação imediata, da linguagem pú-
humano: da escrita rupestre entreme-
blica e direta, da concisão e dos temas pas-
ada de sons guturais à elaboração da
síveis de identificação e compartilhamento,
linguagem narrativa, observamos que o
um de seus vários recursos é a narratividade.
homem conta a história de si mesmo e
do mundo. A necessidade dos ancestrais
Naturalmente, o termo “narrativa” é am-
de reunirem-se à volta do fogo para se
plo e pressupõe a possibilidade de diversas
guarnecerem do frio e das feras está
abordagens. Refiro-me a uma narrativa que
acompanhada do pressentimento de
se pretenda popular, que seja linear, cons-
que algo poderia ser revelado na fala do
truída acumulativamente, com começo,
sacerdote. E, na atualidade, não é com
meio e fim, que tenha continuidade, que te-
outro pressentimento que o homem ro-
nha como objetivo contar uma história de
deia o aparelho de televisão, à espera de
interesse geral, abordando temas que per-
um sacerdote dessacralizado da mídia:
mitam identificação imediata, um discurso
todos aguardamos notícias, revelações,
reconstruções de eventos, através das
tos marcados pela cultura oral, podem ser
narrativas7.
experiências interessantes para o leitor jovem, em fase de compreender a literatura e
Ainda sobre o tema, vejamos as palavras de
situar-se diante dela.
Clóvis Barbosa, um homem do povo, pescador e contador de histórias em São Romão,
Falei em “tornar compreensível a experiên-
Minas Gerais:
cia de vida” e isso nos remete a meu último
tópico: os temas e imagens recorrentes nos
Gosto de contá história (...). Qualqué
contos populares.
história eu gosto de contá. Se é um caso
alegre, de brincá com os otro, eu vô con-
Ao contrário do que se poderia pensar, o fato
tano e vô rino. Se é história de sofrimen-
de serem de ficção e poderem conter aspec-
to, eu vô falano, o coração vai doeno e
tos mágicos e de encantamento, nem de lon-
tem vez que dá choro. Aí nós chora junto
ge tira dos contos populares sua extraordi-
e lembra tudo de difici que nós passô. É
nária capacidade de abordar a vida concreta
um choro manso, uma chuva fininha8.
e, mais ainda, de especular sobre ela. Tanto
assim que neles nos deparamos com prince-
A construção narrativa, em suma, é um pro-
sas que nascem mudas e recuperam sua voz
cedimento que, sem dúvida, ajuda a estrutu-
quando encontram o homem por quem se
rar e tornar compreensível a experiência de
apaixonam. Pessoas que se deitam na cama e
vida, não de forma solitária, mas sim, note-
ficam “adormecidas” até serem despertadas
-se, por meio da sociabilidade e do contato
por um sentimento forte. Mães ou madras-
dialógico com o outro. Como disse o conta-
tas que, ao notarem que suas filhas cresce-
dor de histórias mineiro “aí nós chora junto
ram e tornaram-se mulheres, mandam matá-
e lembra tudo de difíci que nós passô”.
-las. Injustiças e transgressões. Gigantes que
aprisionam moças em castelos. Irmãos que
Não por acaso, a narratividade é uma carac-
mentem e traem. Pais que tentam desposar
terística central do conto popular.
suas próprias filhas. Heróis tolos que fazem
tudo errado mas mesmo assim se dão bem.
Perceber que há textos narrativos e textos
Moças ou moços que não conseguem rir e
não-narrativos, assim como perceber que há
se dispõem a se casar com alguém que saiba
textos marcados pela cultura escrita e tex-
alegrá-los. Traições, ciúmes, orgulhos, men-
7 GOMES, Núbia P.M. & PEREIRA, Edimilson P. Mundo encaixado – Significação da cultura popular. Belo
Horizonte, Mazza Edições, 1992. p. 112.
8
Idem, ibidem, p. 179.
278
tiras, vaidades, vinganças, invejas e ódios.
à condição humana vital e concreta, suas
Heróis malandros. Enigmas e adivinhações.
buscas, seus conflitos, seus paradoxos, suas
Heróis que arriscam a vida e colocam os in-
transgressões e suas ambiguidades.
teresses da coletividade acima dos seus interesses pessoais. Lutas de fracos contra fortes.
Na minha visão, os contos populares, in-
Animais que falam e se comportam como
dependentemente de rótulos como “cultu-
gente. Seduções de todo o tipo. Heróis que
ra popular”, “folclore” e outros, podem ser
tentam enganar a morte. Pactos com o dia-
considerados uma excelente introdução à
bo e seus preços. Homens sábios. Príncipes e
literatura, pois nada mais fazem do que tra-
princesas que lutam para escapar de castelos
zer ao leitor, de forma acessível e comparti-
no fundo do mar. Pessoas e cidades transi-
lhável, enredos, imagens e temas recorren-
toriamente transformadas em pedra. Sinas e
tes na ficção e na poesia.
manias. Moços que precisam aprender a linguagem dos pássaros para conquistar suas
É muito bom quando alguém – principalmen-
amadas. Truques e ardis. Heróis transforma-
te se for um jovem – descobre que, além de
dos em animais ou monstros em busca de
regras, informações e lições, um livro pode
sua identidade perdida. Não é pouco!
abordar os temas da vida humana concreta.
Terá, creio, uma boa chance de tornar-se um
Através dos contos populares, chamados
leitor e, mais, cheio de entusiasmo diante
também de contos de encantamento, de
do que leu, indicará o texto a seus amigos,
fadas etc., temos a oportunidade de entrar
contribuindo assim para a formação de ou-
em contato com temas que dizem respeito
tros leitores.
279
XI. Literatura e pluralidade cultural1
Marisa Borba2
“A literatura é a escola da complexidade humana, do entendimento da vida”.
(Edgar Morin)
No território brasileiro convivem diferentes
escola a instituição criada para apresentar
grupos sociais, com características étnicas e
às crianças e aos jovens os conhecimentos
culturais distintas, permeadas por grandes
acumulados e sistematizados da história do
desigualdades socioeconômicas. Vivemos
país e da humanidade (democratizando as-
num país que se apresenta cheio de contra-
sim o acesso ao saber produzido pela classe
dições, no qual ainda encontramos relações
dominante). Neste sentido o ethos (a identi-
sociais discriminatórias, aliadas a práticas
dade de um povo, grupo ou comunidade, a
excludentes, gerando injustiça social e vio-
marca de suas manifestações e realizações
lência. País que também se apresenta com
culturais) precisa ser discutido amplamente
grande riqueza cultural. País complexo,
pelos educadores, para que se aproximem e
país plural, necessitando de pluralidade de
se apropriem de um conhecimento que se
alternativas. Para solidificar esta sociedade
torna cada dia mais universal.
brasileira plural, será preciso ampliar o plural que potencialmente está em cada indi-
Se queremos construir uma sociedade mais
víduo. A escola pública terá neste momen-
justa e democrática, na qual todos tenham
to uma função muito importante, primeiro
acesso à educação, à cultura, ao esporte, ao
porque é o espaço em que podem conviver
emprego, à moradia, ao saneamento básico,
crianças e jovens de origens e níveis socio-
à saúde; se queremos uma sociedade em que
econômicos diferentes, com costumes e vi-
haja efetivamente participação democrática
sões de mundo diferentes; é também o es-
(inclusive nas discussões sobre elaboração
paço público para a vivência democrática
de políticas públicas e nas decisões sobre o
com a diferença e, finalmente, porque é a
uso das verbas públicas), em que haja quali-
1
Literatura e temas transversais – 2000 / PGM 2.
2Marisa Borba é pedagoga, com experiência em alfabetização, bibliotecas escolares da rede pública e
particular do Município do Rio de Janeiro. Membro do PROLER e júri da FNLIJ.
280
dade social na prestação dos serviços; se que-
no desempenho de seus papéis sexuais. Os
remos a plenitude da cidadania para todos,
livros didáticos apresentam homens e mu-
teremos, como pressuposto básico que dis-
lheres segregados em mundos diferentes.
cutir a diversidade cultural, reconhecê-la e
Mulher é modelo do lar e homem represen-
valorizá-la. Precisamos também buscar a su-
ta trabalho e sustento, levando à discrimi-
peração das discriminações, atuando concre-
nação filhos de homens e mulheres que não
tamente sobre os mecanismos de exclusão.
se enquadrem nestes modelos. Muitos livros
não refletem nossa realidade, uma vez que
Ressaltamos a importância da Lei de Diretri-
não atentam para nossa pluralidade cultu-
zes e Bases da Educação, desdobrada nos Pa-
ral, nem levam em conta as novas situações
râmetros Curriculares Nacionais, que vem
de desempenho de papéis sexuais, criados
trazer o tema pluralidade cultural para ser
pela transformação social. Se não refletem
pensado e vivido por professores e alunos,
nossa realidade, muito menos a questio-
uma vez que, historicamente, temos tido
nam. Apresentam a realidade como algo
dificuldade em lidar com a temática do pre-
pronto, acabado, inquestionável e sem pos-
conceito e da discriminação étnica.
sibilidade de interferência humana. Assim a
escola contribui para a reificação do status
O preconceito no livro
didático
quo, o que não deve ser o seu papel.
Estudiosos e críticos da ilustração de livros
didáticos ou de literatura infantil e juvenil
Pesquisas acadêmicas há muito denunciam
livros didáticos com conteúdos indevidos,
até mesmo errados, favorecendo assim a
disseminação de preconceitos de diversas
formas como, por exemplo, o privilégio da
cultura da classe dominante, única aceita
também há algum tempo têm apontado
para esta questão: preconceitos também são
passados sutilmente através de imagens que
são mostradas a crianças e jovens. Exemplo
clássico é a ilustração da mulher de avental
e lenço na cabeça, enquanto o homem apa-
como correta, bem como a hierarquização
rece sentado numa cadeira lendo o jornal
das culturas entre si.
(ilustração recorrente em livros didáticos
quando se quer representar uma família de
Livros didáticos nos mostram o homem e
médio poder aquisitivo).
a mulher de forma estereotipada, sem nenhuma relativização; predominam deter-
Embora saibamos que a educação sozinha
minados modelos de homem e mulher, en-
não irá resolver o problema da discrimina-
quadrando-os em comportamentos rígidos,
ção em suas manifestações mais perver-
não considerando nenhum tipo de variável
sas, se queremos uma sociedade mais justa
281
devemos atuar para promover processos,
preciso que o agente deste processo - o(a)
conhecimentos e atitudes que colaborem
professor(a) - também se liberte, através de
com a transformação social. Por exemplo,
autoconhecimento e do desenvolvimento de
podemos promover práticas de respeito e
sua consciência profissional e crítica. O(a)
solidariedade para com os portadores de
professor(a) deve saber porque está ali, por-
necessidades especiais, através de esclareci-
que ensinar e o que ensinar, uma vez que só
mentos, uma vez que muitas situações dis-
um sujeito crítico e consciente politicamen-
criminatórias ocorrem por desconhecimen-
te tem condições de modificar o real.
to das causas ou das formas como é possível
encaminhar pedagogicamente tais casos.
Nas questões de gênero, deparamo-nos com
histórias de injustiças para com as mulheres
em seus cotidianos na vida privada, em situações familiares ou situações profissionais.
Estas injustiças de gênero podem e frequentemente são agravadas quando acrescidas
de injustiça por motivo de etnia, cultura ou
exclusão socioeconômica . Vale lembrar que
a maior parte do magistério é constituída
por mulheres (de quem se espera que reproduzam o discurso masculino do poder). Conflitos, contradições, preconceitos, discriminações que hoje percebemos no universo
escolar são resultados do lento e doloroso
processo de libertação da mulher, principalmente no nosso século.
No nosso modelo de sociedade, os preconceitos e estereótipos foram desenvolvidos
em função de antagonismos do tipo homem/mulher, negro/branco, senhor/escravo, e minoria dominante/maioria explorada
e, ainda, reforçados pelas agências socializadoras como a família e a escola, que reforçam e reproduzem nas gerações mais jovens
a visão de mundo que justificou e garantiu
a continuidade no poder do grupo dominante, através da educação diferenciada. Mas o
ideal de democracia que permeia nosso sistema, independente da condição de classe,
gênero ou etnia fez com que se instalassem
contradições. A partir daí recorremos a reflexões teóricas, ao pensamento acadêmico, à
investigação sistemática para explicar estas
mesmas contradições, respondendo sempre
E na medida em que os alunos, na maioria
que possível ao desafio proposto, como for-
das vezes, pertencem a grupos sociais eco-
ma de resolução do conflito.
nomicamente desfavorecidos, estes conflitos estarão sempre presentes e são de gênero, etnia e classe (preconceitos oriundos
A escola e a pluralidade
cultural
de nossa formação histórica). Para que a
escola promova um processo transforma-
A história da sociedade brasileira é marcada
dor em relação à pluralidade cultural, será
pela diversidade cultural: encontramos dife-
282
rentes características regionais, diferentes
vivência da pluralidade cultural, na medida
manifestações de cosmologias que ordenam
em que, entre outras estratégias e metodo-
de maneiras diferenciadas a apreensão do
logias, consegue democratizar o acesso ao
mundo, formas diferentes de organização
livro de literatura de qualidade, formando
social nos diferentes grupos e regiões, mul-
professores e alunos leitores críticos.
tiplicidade de relações com a natureza, de
vivência do sagrado e de sua relação com o
A literatura, enquanto arte da palavra, nos
profano. O espaço rural e o espaço urbano
põe diante da complexidade da vida, nos
propiciam às suas populações vivências e
apresenta possibilidades de repensarmos o
respostas culturais muito diferenciadas que
real, o cotidiano, de reinventarmos a própria
implicam ritmos de vida, ensinamentos de
vida ou até mesmo entender sua multiplici-
valores e formas de solidariedade distintas.
dade.
A migração interna faz com que grupos sociais com diferenças de fala, de costumes,
de valores, de projetos de vida se inter-re-
Que livros oferecer à
criança e ao jovem?
lacionem, principalmente na escola em que
esta diversidade cultural está presente e tem
Precisamos ter alguns cuidados ao sele-
sido ignorada, silenciada ou minimizada.
cionarmos os livros que vamos oferecer às
crianças e jovens, pois não existe obra cultu-
Assim, quando pomos em discussão a plura-
ral inocente; todas estão carregadas de uma
lidade cultural, podemos também acoplar o
determinada visão de mundo, a do autor.
tema da educação diferenciada, começando
Para não ficarmos enredados na concepção
por reconhecer a existência de padrões de
de mundo dos outros e por ela não sermos
socialização baseados em estereótipos sexu-
manipulados, precisamos desenvolver uma
ais que determinam, a priori, o lugar da me-
leitura crítica.
nina e do menino na escola, e por extensão,
mais tarde, na sociedade. Estes estereótipos
Escolhendo bons livros e oferecendo ao mes-
são tão bem urdidos, que são absorvidos, na
mo tempo uma grande variedade e diversi-
maioria dos casos, como algo “natural” e
dade deles faremos com que um texto dis-
“normal” através da escola.
corde do outro, o conteste e sugira outras
alternativas. É importante a leitura de livros
A escola pública, já citada como espaço
variados, de culturas e opiniões diversas,
privilegiado da vivência democrática e de
com visões de mundo diferentes umas das
desenvolvimento do potencial criador de
outras, de modo que a leitura de um texto
seus alunos, contribuirá para a discussão e
dialogue permanentemente com a dos ou-
283
tros. Assim, cada leitor irá se enriquecendo
Sylvia Orthof, mostra a ovelha Maria que só
e a sociedade irá tecendo sua pluralidade. Se
ia aonde as outras iam e que sofria as con-
concordamos com estes pressupostos e que-
sequências de não pensar por si mesma, de
remos montar ou revigorar uma biblioteca,
ter criticidade, de refletir e tirar conclusões.
teremos como subsídios para este acervo:
Era uma vez duas avós, de Naumim Aizem e
livros de imagens; clássicos da literatura in-
Patrícia Gwinner, apresenta diferenças en-
fanto-juvenil - Grimm , Andersen, Perrault,
tre duas avós, com modos distintos de en-
entre outros; a obra de Monteiro Lobato,
carar a vida e como se pode tirar proveito
além de poesias, livros informativos, dicio-
da convivência com pessoas que pensam e
nários, enciclopédias e, principalmente, au-
agem diferente de nós (temos aí uma das fa-
tores que façam parte da moderna literatura
cetas da riqueza da complexidade humana).
infantil e juvenil, assim como jornais e re-
Mudanças no galinheiro mudam as coisas por
vistas. A variedade de autores e materiais de
inteiro, de Sylvia Orthof, relata a história de
leitura fará da biblioteca um lugar destinado
uma galinha que resolveu cantar de galo e,
à leitura de textos literários e um pólo de
dessa forma, promove grandes mudanças
discussão da pluralidade cultural, através de
em seu núcleo familiar. Faca sem ponta, ga-
atividades como debates de textos e livros
linha sem pé, de Ruth Rocha: nessa obra a
lidos, entrevistas, conversas com autores e
autora conta a história de dois irmãos (um
outros profissionais.
menino e uma menina), que recebiam uma
educação diferenciada, o que leva a sérios
Ressaltamos, assim, autores da moderna
atritos entre eles. Em O Soldado que não era,
literatura infantil e juvenil que trabalham
Joel Rufino dos Santos nos traz a saga de Ma-
com a desconstrução de modelos clássi-
ria Quitéria, de forma muito rica e interes-
cos, tradicionais, ou que fazem denúncias
sante, proporcionando uma boa discussão
de algum tipo de opressão, que promovem
sobre preconceitos. Neste sentido, vários
rupturas com o discurso dominante, de for-
textos de Ana Maria Machado e Lygia Bojun-
ma radical ou não. Dentro desta perspecti-
ga são revolucionários. Em Angélica e A Bolsa
va podemos citar A fada que tinha ideias, de
Amarela, Lygia coloca a menina no interior
Fernanda Lopes de Almeida, em que aparece
do grupo familiar, questionando, refletindo,
uma proposta de reforma de estrutura fa-
buscando reverter situações incômodas. An-
miliar. A curiosidade premiada, também de
gélica nega a mentira sobre a qual se apoia
Fernanda Lopes de Almeida, apresenta uma
a celebridade da família das cegonhas. Ra-
personagem feminina curiosa, questionado-
quel, dona da bolsa amarela, sente o peso
ra, que tenta obter respostas para todas as
de ser criança e menina e suas vontades de
suas perguntas. Maria-vai-com-as-outras, de
ser menino, adulto e escritora crescem den-
284
tro da bolsa amarela. Maria, personagem
Ruth Rocha, em Procurando firme apresenta
de A Corda Bamba, apresenta uma autêntica
situações que também podem ser discutidas
emancipação. Em Tchau! encontramos a co-
sobre a questão da educação diferenciada
ragem enorme da mãe que larga a família
homem/mulher.
para viver uma grande e maravilhosa paixão
e para realizar seus desejos. A filha questiona a desagregação da família, e se sente
dividida entre o pai e a mãe. Lygia faz uma
ruptura com o modelo de mulher adulta de
comportamentos tradicionais e também faz
uma crítica à filha que não entende a reação
da mãe. Lygia consegue assim, com esta pluralidade de pontos de vista, dialogar com as
múltiplas linguagens sociais.
Ana Maria Machado, em muitas de suas
obras, nos presenteia com protagonistas que
assumem atitudes de rebeldia ante a passividade reinante, que buscam mudanças e alcançam seus objetivos, juntando-se a outros,
Alguns autores tratam com muita sensibilidade e visão crítica os excluídos pela sociedade. Paula Saldanha, em O Praça Quinze,
mostra a realidade de meninos que vivem
nas ruas, mesclando realidade e fantasia.
Roseana Murray apresenta os direitos da
criança e do adolescente num texto bastante poético.
Entrevidas, também de Paula Saldanha, Coisas de Menino, de Eliane Ganen, Rosarito rosa-choque, Zé Beleza e Nus, como no Pontal,
de Terezinha Éboli, nos mostram um Brasil
geralmente ocultado pela escrita literária
mais tradicional.
agindo com solidariedade e cooperação, so-
Trazendo nossa pesquisa para um período
bressaindo o espírito coletivo em detrimento
mais recente (década de 90) encontramos
do individualismo. Sua recente obra intitula-
diversos títulos por meio dos quais os pro-
da Mas que festa! nos mostra um pouco de
fessores podem abordar a questão da plura-
nossa diversidade cultural, assim como o já
lidade cultural. São exemplos:
“clássico” Menina bonita do laço de fita.
Uma história só para mim, de Moacyr Scliar;
No conto “A moça tecelã”, de Marina Cola-
Mulher que bicho é esse, de Lia Zatz; Meus
santi, do livro Doze reis e a moça do labirinto
vários quinze anos, de Sylvia Orthof; Felicida-
do vento, há o questionamento do mito de
de não tem cor, de Júlio Emílio Brás; Preto e
que o casamento resolve o problema da so-
branco, de Milton Camargo; Nó na gargan-
lidão da mulher e a submissão aos padrões
ta, de Mirna Pisky; Uma vitória diferente, de
comportamentais estabelecidos pela socie-
Marcos Bagno; O povo Pataxó e suas histórias,
dade. Ao tecer o tapete, a moça constrói e
de Angthichay Pataxó e outros; Meu livro de
reconstrói a sua vida...
folclore, de Ricardo Azevedo.
285
Estes e muitos outros títulos de literatura
escravo.” O que vem corroborar nossa
para crianças e jovens abordam questões de
tese da necessidade da leitura de bons
gênero, falam sobre as diferentes etnias, dis-
livros, pois esta é a leitura que nos dá
cutem questões sociais, falam de preconcei-
argumentos para que não nos intimide-
tos, enfim, apresentam a múltiplas expres-
mos, uma vez que a palavra é um instru-
sões culturais do povo brasileiro.
mento de libertação.
Algumas considerações
Assim, acreditamos que através da leitura
dos livros de literatura de autores brasilei-
A pluralidade cultural presente em nossa
ros, como este citados, atingiremos um
moderna literatura infantil e juvenil poderá
desenvolvimento mais pleno e plural dos
chegar ao nosso aluno através do texto lite-
indivíduos, com mais consciência da im-
rário de qualidade, do texto que leve a for-
portância de sua participação nas decisões
mulações de perguntas e a indagações, que
coletivas, contemplando assim os diferentes
não apresente estereótipos como ponto de
grupos sociais, étnicos e culturais
partida, que não fira a ética e a estética. Esta
literatura não será ponto de chegada e sim
ponto de partida para outras leituras, outras
indagações, e também outras descobertas
de situações cada vez mais inesperadas. Esta
literatura deverá fazer pensar, questionar,
decifrar e interrogar e, depois de nos exigir
algum esforço, nos fará sair dela diferentes,
transformados de alguma forma. E para nos
transformar, deverá nos atrair, viver dentro
de nós.
Gianni Rodari, no belíssimo A Gramática da
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“Todos os usos da palavra a todos, pa-
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rece um bom lema, sonoramente democrático. Não exatamente porque todos
______. Estatuto da Criança e do Adolescente.
sejam artistas, mas porque ninguém é
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286
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VYGOSTKY, L. S. A formação social da mente.
Jou,1977.
São Paulo, Martins Fontes, 1991.
287
XII. Novas bases para o ensino da história
da África no Brasil1
Carlos Moore2
Introdução3
1. Singularidades africanas
A obrigatoriedade4 do ensino da história da
No contexto da história geral da humanida-
África nas redes de ensino no Brasil con-
de, a África apresenta, em planos diversos,
fronta o universo docente brasileiro com o
um conjunto impressionante de singularida-
desafio de disseminar, para o conjunto da
des que remetem a interpretações conflitu-
sua população, num curto espaço de tempo,
osas e, muitas vezes, contraditórias. É pro-
uma gama de conhecimentos multidiscipli-
vável que nenhuma das regiões habitadas
nares sobre o mundo africano.
do planeta apresente uma problemática de
abordagem histórica tão complexa quanto a
A generalização do ensino da história da
África, e isto se deve a muitos fatores, den-
África apresenta problemas específicos. Nes-
tre os quais podemos destacar:
te texto assinalamos, de maneira sumária e
a título indicativo, alguns dentre os quais
• a sua extensão territorial (30.343.551 km2,
deverão ser levados em conta na formação
o que corresponde a 22% da superfície só-
inicial e continuada das/os professoras/es
lida da Terra), que vai desde a região do
das redes de ensino, incumbidos/as dessa
Pólo Sul até o Mediterrâneo e do oceano
missão.
Atlântico ao oceano Índico, apresentando
(...)
uma grande variedade climática5;
1Sinopse retirada ao artigo publicado no livro Educação anti-racista - caminhos abertos pela Lei Federal nº
10.639/03. MEC/SECAD, Valores afro-brasileiros na educação – 2005 / PGM 1.
2 Etnólogo e historiador. Doutor em Etnologia e doutor em Ciências Humanas pela Universidade de Paris-VII (França).
Especialista em Relações Raciais (África, América Latina, Caribe, Pacífico).
3Nota da edição do Boletim do Salto para o Futuro: A partir da sinopse do artigo citado, fizemos uma edição do
texto focalizando alguns pontos essenciais para o debate. O texto pode ser conhecido na íntegra em Educação anti-racista:
caminhos abertos pela Lei Federal n. 10. 639/03. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília,
Ministério da Educação, 2005. (Coleção Educação para todos)
4A Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, das Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O Parecer
5No interior do continente as distâncias são imensas – os 7.000 quilômetros que separam o Cabo da Boa Esperança,
ao sul, do Cairo, ao norte, são aproximadamente a mesma distância entre Dacar, a oeste, e a extremidade do Chifre da
África, a leste.
288
• uma topografia extremamente variada:
O continente africano, palco exclusivo dos
grandes savanas, vastas regiões desérti-
processos interligados de hominização e
cas ou semidesérticas (Sahel), altiplanos,
de sapienização, é o único lugar do mundo
planícies, regiões montanhosas e imensas
onde se encontram, em perfeita sequência
florestas;
geológica, e acompanhados pelas indústrias
• a existência e interação de mais de 2.000
povos com diferentes modos de organização socioeconômica e de expressão tecnológica;
• a mais longa ocupação humana de que
se tem conhecimento (2 a 3 milhões de
líticas ou metalúrgicas correspondentes,
todos os indícios da evolução da nossa espécie a partir dos primeiros ancestrais hominídeos. A humanidade, antiga e moderna,
desenvolveu-se primeiro na África e logo,
progressivamente e por levas sucessivas, foi
povoando o planeta inteiro7.
anos até o presente) e, consequentemente, uma maior complexidade dos fluxos e
Portanto, as atuais diferenças morfofenotí-
refluxos migratórios populacionais.
picas entre populações humanas – as chamadas “raças” – são um fenômeno recente
1.1. Berço da humanidade
na história da humanidade (presumivelmente do final do paleolítico superior, 25.000-
A mais marcante das singularidades africa-
10.000). E a ciência já descartou como an-
nas é o fato de seus povos autóctones terem
ticientífica a ideia de que o morfofenótipo
sido os progenitores de todas as populações
possa incidir de algum modo nos processos
humanas do planeta, o que faz do continente
intelectuais de socialização ou de aquisição/
africano o berço único da espécie humana.
aprimoramento de conhecimentos8.
Os dados científicos que corroboram tanto
as análises do DNA mitocondrial6 quanto
Esta tradição, eurocêntrica e hegemônica,
os achados paleoantropológicos apontam
costuma alinhar o fato histórico com a apa-
constantemente nesse sentido.
rição, recente, da expressão escrita, criando
6
DNA mitocondrial humano é um pequeno DNA circular presente nas mitocôndrias (as usinas energéticas da
célula) no citoplasma. Este DNA tem uma série de características genéticas peculiares, destacando-se o fato de ter herança
puramente materna. Em outras palavras, todo o DNA mitocondrial de um indivíduo vem de sua mãe apenas, sem nenhuma
contribuição paterna.
7Grupos de humanos anatomicamente modernos deixaram o continente africano pela primeira vez há
aproximadamente 100.000 anos. Essa população humana ancestral, que tinha apenas dois mil indivíduos, migrou
progressivamente para os outros continentes, atingindo a Ásia e a Austrália há 40 mil anos, a Europa há 30-35 mil anos, e,
finalmente chegando ao continente americano há pelo menos 18 mil anos.
8Convém esclarecer um ponto: o fato de que a noção de “raça” não traduz uma realidade biológica não quer dizer
que “raça” não exista como construção histórica. Neste caso, ela corresponde não a uma realidade genotípica (biológica),
mas sim a um fato sócio-histórico baseado numa realidade morfofenotípica concreta à qual se deu uma interpretação
ideológica e política. A ficção é a de se pretender que “raça” seja unicamente um fato que deve ser enquadrado na biologia.
Infelizmente, raça não é uma ficção. Ela é uma realidade sociológica e política bem ancorada na história e que regula
as interações entre os povos desde a Antiguidade. Desde há séculos, os povos africanos e afrodescendentes têm de se
defrontar no cotidiano com essa concretude da raça.
289
os infelizes conceitos de povos “com histó-
sas, turcos, árabes), até o sudeste asiático
ria” e de povos “sem história” que, eventu-
(indonésios).
almente, o etnólogo Lucien LEVY-BRUHL iria
transformar em “povos lógicos” e “povos
pré-lógicos” . Mas a história propriamente
9
dita é a interação consciente entre a huma-
1.3. Alvo da escravidão racial
e dos tráficos negreiros
transoceânicos
nidade e a natureza, por uma parte, e dos
seres humanos entre si, por outra. Por conseguinte, a aparição da humanidade como
espécie diferenciada no reino animal, abre
o período histórico. O termo “pré-história”,
tão abusivamente utilizado pelos especialistas das disciplinas humanas, é uma dessas
criações que doravante deverá ser utilizada
com maior circunspeção.
A singularidade do continente africano, que
teve a maior repercussão negativa sobre o
seu destino, determinando o que é a África
de hoje, foi a de ter sido o primeiro e único
lugar do planeta onde seres humanos foram
submetidos às experiências sistemáticas de
escravidão racial e de tráfico humano transoceânico em grande escala. O chamado
“continente negro” – como é designado o
1.2. Berço das primeiras
civilizações mundiais
continente africano, ainda que nenhum historiador tenha se referido à Europa como
continente “branco” ou à Ásia como o conti-
Uma das singularidades da África decorre do
nente “amarelo” – foi transformado, durante
fato de esse continente ter sido o precursor
um período de um milênio, num verdadeiro
mundial das sociedades agrossedentárias e
terreno de caça humana e de carnificina. O
dos primeiros Estados burocráticos, particu-
impacto negativo cumulativo dessa reali-
larmente ao longo do rio Nilo (Egito, Kerma
dade sobre o desenvolvimento econômico,
e Kush). Ao longo dos séculos, as riquezas
tecnológico, político, demográfico, cultural
destes Estados, assim como as riquezas do
e psicológico dos povos africanos está ain-
império de Axum, na parte oriental do con-
da por ser determinado. Mas as complexas
tinente, e do império de Cartago, situado
interconexões existentes entre as singulari-
na porção setentrional, aguçaram a cobiça
dades apresentadas e a visão depreciativa
de inúmeros povos vizinhos, desde o Me-
que permeia tudo o que se refere à herança
diterrâneo europeu (gregos e romanos) e o
histórica e cultural dos povos africanos já
Oriente Médio semita (hicsos, assírios, per-
começam a aparecer.
9Ver: LEVY-BRUHL, Lucien, La mentalité primitive. Paris: Presses Universitaires de France, 1947.
290
1.4. Alvo dos mitos raciológicos
desprovidas de coerência orgânica. Sabe-se
que na ótica materialista, hegemônica e line-
Às singularidades próprias do continente se
ar do Ocidente e do Oriente Médio, a expres-
agrega outra, de construção totalmente ex-
são “escrita”, a organização em “estados” e
terna: uma mitologia preconceituosa erigida
a utilização de “moeda” são sinônimos de
por seus sucessivos conquistadores (hicsos,
inteligência, superioridade e civilização.
assírios, gregos, romanos, persas, turcos,
árabes, indonésios e europeus), que sobrevi-
A racialização de tudo tocante à África é
ve atualmente na maioria das obras eruditas
uma prática tão universalmente insidiosa,
produzidas pelos africanistas de todos os con-
que os próprios historiados nem a perce-
tinentes, e pelos historiadores em particular.
bem mais como um elemento de violenta
desumanização do ser humano africano.
O ensino da história da África apresenta,
Ainda hoje, a visão raciológica continua a
pois, problemas específicos de interpretação
afetar boa parte das obras consagradas ao
com os quais o pesquisador nunca se defron-
continente africano, tanto na Europa e nos
tará ao percorrer a história dos outros povos
Estados Unidos, como também no Oriente
do planeta; povos cuja inteligência, dinamis-
Médio e na América Latina onde, de modo
mo, capacidade de empreender, aprender e
geral, os incipientes estudos africanistas
de adaptar-se às condições e meios diversos
são meras prolongações dos conceitos e
jamais foram questionadas.
preconceitos urdidos pela academia euro-
No caso da África, chegou-se a afirmar que
a civilização do Egito faraônico tivesse sido
peia e norte-americana.
(...)
“trazida de fora” por misteriosos povos
“de pele branca”, supostamente vindos do
Oriente Médio. Numídia e Cartago sofreram
desde então a mesma sorte, e a África foi
ideologicamente dividida entre uma “África
2. Para uma nova
periodização africana
(antiga e moderna)
negra” e uma “África branca”, para marcar
a coincidência entre o conceito de raça e o
A periodização é um padrão conceitual que
conceito de civilização.
facilita a apreensão de uma longínqua trama
histórica ou pré-histórica, tornando-a inteli-
Os povos africanos ao sul do Saara foram
gível para nós. Se descartarmos definitiva-
apresentados, durante longo tempo, como
mente o conceito de “pré-história” no que
gente “sem história”, “sem escrita”, “sem es-
diz respeito à África posterior há 2,5 milhões
tados”, e “sem moeda”, ou seja, sociedades
de anos, o ciclo histórico de qualquer perio-
291
dização se iniciaria nesse continente com a
tra-africanos desde a antiguidade nubio-
aparição da primeira humanidade arcaica
-egípcia até a contemporaneidade;
como espécie diferenciada dentro da família dos hominídeos. No estado atual de nossos conhecimentos, esse evento aconteceu
efetivamente pelo menos há 2,5 milhões de
anos. Somente uma periodização de longa
duração poderia refletir esses fatos históri-
• as invasões do exterior;
• a conquista e colonização árabe da África
setentrional;
• os tráficos negreiros intracontinentais e
transoceânicos;
cos, que a ciência moderna legitima, e refletir aquelas singularidades que são próprias à
historiografia africana.
• rocessos de desintegração de espaços sócio-históricos constituídos;
• a conquista e colonização europeia de
Por conseguinte, há várias formas de abor-
todo o continente africano;
dagem para potencializar a inteligibilidade
desses grandes períodos de uma história de
tal extensão. Aquela que propomos consiste
num padrão de periodização que levaria em
conta tanto a produção das ideias filosóficas, religiosas e morais, como a produção
do conhecimento científico e tecnológico
pelas distintas sociedades:
• o processo de hominização;
• o povoamento do continente africano
pela humanidade arcaica;
• as lutas de libertação e a descolonização
da África;
• as lutas da pós-independência.
292
Essa abordagem apresenta a vantagem de
um enfoque panorâmico que, sem desnaturar ou desfigurar a experiência histórica dos
povos africanos, coloca-os numa posição de
maior inteligibilidade para o estudo por parte daqueles que inclusive não possuem, de
início, uma grande familiaridade com essas
questões.
• os êxodos do continente e o subsequente
povoamento do planeta;
2.1. O marco referencial antigo
• os processos de migração intra-africana,
sedentarização e assentamento agrícola;
• o processo da construção dos primeiros
Estados agroburocráticos da história;
Antiguidade
Pré-histórica
(7.000.000
–
2.500.000 anos) - o processo de hominização e
a aparição de várias espécies de Hominídeos.
• as lutas e rivalidades políticas entre povos
Antiguidade Remota I (2.500.000 – 1.000.000
e nações africanas, os expansionismos in-
de anos) - surgimento, sucessivamente, de
dois troncos prototípicos da família huma-
que “os ecossistemas atuais do continente
na arcaica (Homo Habilis, Homo Erectus) e
africano se constituíram entre 12.000 e 3.000
primeiras migrações fora da África (Oriente
anos a.C., dando ao continente essa confi-
Médio, Ásia).
guração ambiental que explica o desenvolvimento das práticas agrícolas” (M’BOKOLO,
Antiguidade Remota II (1.000.000 – 200.000
2003, p. 51). Por isso, privilegiamos o Neolí-
anos) - surgimento da família humana proto-
tico como o ponto de referência para deter-
moderna (Homo Sapiens Neandertalensis) e
minar aquelas configurações histórico-de-
migrações para o Oriente Médio e a Europa.
mográfico-culturais que designamos como
“espaços civilizatórios”.
Antiguidade Remota III (200.000 – 10.000
anos) - surgimento da família humana
Atentos ao fenômeno de longa continuidade
anatomicamente moderna (Homo Sapiens
na ocupação do solo e das complexas dinâ-
Sapiens); povoamento definitivo do plane-
micas migratórias intracontinentais, pare-
ta por levas sucessivas a partir da África;
ce-nos apropriado utilizar o período que vai
aparição de novos “troncos fenotípicos” na
desde o início do Neolítico (10.000 a.C.)10 até
Eurásia (protoeuropoides e proto-sino-nipô-
meados do século XIX, como o grande marco
nico-mongóis); migrações dos povos leuco-
histórico referencial para uma periodização
dermes europoides; migrações dos povos
suficientemente flexível. Atendendo a essas
leucodermes sino-nipônico-mongóis.
considerações, a historiografia africana dos
últimos dez milênios pode conceber-se no
2.2. O marco referencial
formador
interior de cinco grandes períodos, respectivamente denominados como “clássico”,
“neoclássico”, “ressurgente”, “colonial” e
O Neolítico se apresenta como o momento
em que os ancestrais imediatos das famílias
linguísticas correspondentes aos povos e sociedades que conhecemos atualmente chegaram ao habitat que ocupam hoje. Embora
“contemporâneo”.
Antiguidade Próxima (10.000 a.C. – 5.000
a.C.) - aparição das primeiras sociedades sedentárias agrícolas nos diferentes espaços
civilizatórios.
ainda não tenhamos um desenho geral concreto sobre esse período, com a abrangência
Antiguidade Clássica (5.000 a.C.- 200 d.C.) -
e a meticulosidade que se requer, sabe-se
aparição, apogeu e declínio das primeiras
10Convencionalmente, o período entre 10.000 e 4.000 a.C. está dividido em Mesolítico (de 10.000 a 8.000 a.C.)
e Neolítico (de 8.000 à 4.000 a.C.). Privilegiamos a unificação destes, para constituir um só período abrangente:
Neolítico (de 10.000 à 4.000 a.C.).
293
civilizações agroburocráticas clássicas: Egi-
A dominação imperial europeia e o tráfico
to, Kerma, Kush, Cartago, Axum (primeiras
escravista transoceânico pelo Atlântico (sé-
potências africanas), atendendo:
culos XV-XIX).
• à organização social; à extensão imperial;
Período Colonial (1870 – 1960) - a destruição
às rivalidades políticas interafricanas; às
pela Europa dos Estados agroburocráticos
invasões pelos povos europeus-mediterrâ-
ressurgentes e a colonização do continente
neos (“povos do mar”); às invasões pelos
africano.
povos semitas (hicsos); à rivalidade com
o mundo semita emergente (hititas, assírios, persas); e às confrontações com o
mundo greco-romano.
O processo de subdesenvolvimento do continente africano pela Europa e o surgimento
da supremacia planetária do mundo ocidental.
Antiguidade Neoclássica (200 d.C. - 1.500
d.C.) - aparição, apogeu e declínio dos Es-
As lutas dos povos africanos pela descoloni-
tados agroburocráticos neoclássicos nos
zação do continente e o surgimento da ideo-
diferentes espaços civilizatórios (Ghana, Ka-
logia panafricanista11 na África e nas diáspo-
nem-Bornu, Mali, Mwenemotapa, Songoi...).
ras africanas12.
O império árabe e os tráficos escravistas
Período Contemporâneo (a partir de 1960) -
pelo Saara, pelo Oceano Índico e pelo Mar
do sonho libertacionista ao pesadelo neoco-
Vermelho (séculos VIII-XVI).
lonialista.
2.3. O marco referencial moderno
As independências políticas africanas: a decapitação política da África e a implantação
do neocolonialismo ocidental.
Período Ressurgente (1500 – 1870) - aparição,
apogeu e declínio dos Estados agroburocrá-
A África em crise I: as elites vassalas.
ticos ressurgentes nos diferentes espaços
civilizatórios (Kongo, Oyo, Walo, Tekrur, Ma-
A África em crise II: os conflitos entre na-
cina, Segu, Kayor, Diolof, KwaZulu, Buganda,
ções.
Bunyoro...).
11
Pan-africanismo: ideologia política elaborada no século XIX, logo após a abolição da escravatura, por pensadores
afrodescendentes nas Américas, dos quais os mais proeminentes são, Edward Wilmot Blyden, Sylvester Williams, W. E.
B. DuBois, Marcus Garvey, Caseley Hayford, George Padmore, C. L. R. James. Centra-se na ação política e econômica
sustentada, em prol da descolonização do continente africano e ao estabelecimento de nações soberanas.
12 Diáspora Africana: conjunto de comunidades de afrodescendentes em diferentes continentes.
294
O futuro da África: globalização neoliberal,
ce-nos ser a de considerar cada povo e as
ou invenção de uma via alternativa africana?
instituições por ele produzidas ao longo do
tempo no contexto da sua própria inscrição
3. Como catalogar as
estruturas sociais africanas
histórica.
O primeiro pressuposto a descartar é, sem
dúvida, uma ótica unilinear e universal,
3.1. As formações sociais, ou
modos de produção
como a que surgiu do dogmatismo marxista,
a partir dos desacertos da própria metodologia de Karl Marx13. Nem dentro nem fora da
Diversas e complexas estruturas socioeco-
África houve um modo de desenvolvimento
nômicas, chamadas de “modos de produ-
histórico universalmente linear. A história
ção” ou “formações sociais”, marcaram a
da humanidade, felizmente, é bem mais
vida social dos diferentes povos africanos
complexa do que isso, como o demonstrou
através dos tempos. Por diversas razões, as
o cientista senegalês Cheikh Anta Diop14.
quais nem todas nos são conhecidas, essas
sociedades se encontram hoje em diferentes
situações de adaptação socioeconômica e
tecnológica.
3.2. As categoriais servis
Apesar da enorme produção analítica so-
Um momento único de desenvolvimento
bre a escravidão no mundo inteiro15, não se
humano, em que mais de 2.000 povos esti-
chegou até hoje a uma teoria geral sobre a
vessem no mesmo patamar socioeconômico
escravidão que seja suficientemente abran-
e tecnológico nunca existiu na África, como
gente e flexível para permitir o desmembra-
não se deu também nas outras regiões do
mento tipológico desse sistema particular
mundo. Portanto, a maneira mais racional
de trabalho opressor atendendo às especifi-
e dinâmica de se abordar o problema pare-
cidades de épocas e de sociedades.
13Ver: BAECHLER, Jean, Les origines du capitalisme. Paris: Gallimard, 1971.
14 DIOP, Cheikh Anta, L’Unité Culturelle de l’Afrique Noire. Paris: Présence Africaine, 1959.
15Com relação à escravidão em geral, ver: VERLINDEN, Charles, L’Esclavage dans l’Europe Médiévale. Bruges: De
Tempel, 1955. Ver também: DAVIS, David Brion, O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001; FINLEY, Moses I., Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: GRAAL Editora, 1991; BAKIR, Abd
el-Mohsen, Slavery in Pharaonic Egypt. Cairo, 1952; CHANANA, Dev Raj, Slavery in Ancient Índia: as Depicted in Pali and
Sanskrit Texts. New Delhi, 1960; MENDELSOHN, Isaac, Slavery in the Ancient Near East: a Comparative Study of Slavery in
Babylonia, Assyria, and Palestine, from the Middle of the Third Millennium to the End of the First Millennium. New York:
Oxford University Press, 1949; WESTERMANN, William L., The Slave. Systems of Greek and Roman Antiquity. Philadelphia:
American Philosophical Society, 1974. Sobre a Ásia, ver: WILBUR, C. Martin, Slavery in China during the Former han Dynasty,
206B.C.-A.D. 25. Chicago: Field Museum of Natural History, 1943; WATSON, James (org.), Asian and African Systems of
Slavery, New York: Oxford Press, 1980.
295
A África, no seu percurso de estruturação
Américas. Não parece haver surgido em par-
de diferentes formas de relações sociais, co-
te alguma do continente, em qualquer épo-
nheceu diversos modelos de relações de tra-
ca que se considere, um modo de produção
balho e de produção baseados no trabalho
dominante – sobre o qual tivesse repousado
servil escravo16. A questão que continua sen-
o conjunto da sociedade, como foi o caso na
do o problema é: de que tipo de escravatura
Europa greco-romana, no Oriente Médio, e
se trata? Como conceber uma tipologização
nas Américas – baseado no trabalho escravo.
de formas especificamente africanas de trabalho servil à base de escravos?
4. A questão didática
A escravatura existente na África, principalmente no período pré-islâmico e pré-
4.1. As fontes de ensino
-colonial, continua a desafiar as tentativas
de tipologização, sendo motivo das mais
É possível antecipar que a implantação do
divergentes e contraditórias análises . Todo
ensino da história da África no Brasil apre-
o assunto gira em torno da questão: houve
sentará problemas que também tiveram que
escravatura sem sistema escravista que en-
ser enfrentados e resolvidos no continente
globasse a totalidade da sociedade na Áfri-
africano. Considerando a visão negativa so-
ca? Com base nas pesquisas cada vez mais
bre a África que predominou na sociedade
precisas que estão sendo realizadas pelos
brasileira durante tanto tempo, o primeiro
especialistas africanos, começa a emergir
desses problemas e, talvez, o de maior sig-
uma visão que remete a uma complexidade
nificado, tem a ver com o pesado legado de
maior do que se pensava.
fontes bibliográficas eruditas “poluídas”.
As formas de regime de trabalho escravo na
Trata-se aqui do problema de “retroalimen-
África foram tão variadas quanto complexas
tação”, ou seja, da reintrodução no ensino
envolvendo, na sua maioria, o trabalho es-
contemporâneo de teorias desacreditadas
cravo serviçal, sem se chegar nunca a uma
pelos estudos científicos. Ora legitimadas
situação de escravidão econômica generali-
por novos argumentos, ora envoltas nestas
zada e, muito menos, de escravidão-racial
latitudes numa nova roupagem acadêmica,
como aquela que predominou nas planta-
não é inconcebível que a maioria das obras
tion do Oriente Médio e, mais tarde, das
sobre a África estejam sutilmente imbuídas
17
16 Sobre a escravatura africana, ver o excelente trabalho: MEILLASSOUX, Claude, Antropologia da escravidão: o
ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995
17Ver: MEILLASSOUX, Claude, L´esclavage en Afrique précoloniale. Paris: Maspéro, 1975; BARRY, Boubakar, Le
royaume du Wallo, Paris: Karthala, 1985; Le Senegal avant la conquête. Paris: Karthala, 1985; e CISSOKO, Sekene Mody,
Tombouctou et l´Émpire Songhay. Dakar: Nouvelles Editions Africaines (NEA), 1975.
296
de tenazes e profundos preconceitos contra
gonias, línguas e estruturas que moldaram
os povos e as civilizações africanas.
aquelas sociedades ao longo da mais extensa história do planeta.
4.2. A avaliação das fontes de
ensino
Conclusão
Há em toda a América Latina uma carência
(...)
de material didático sobre a África, em línguas portuguesa e espanhola. Esta questão
não será resolvida tão cedo, considerando
que a tradução e publicação das obras estão
submetidas a considerações de mercado e
da política das grandes editoras. Corre-se o
grande risco de que se privilegiem para a tradução em língua portuguesa, precisamente,
obras preconceituosas ou desatualizadas,
situação com a qual haverá que coexistir durante um longo tempo.
4.3. Obras dos cientistas africanos
O avanço constante do conhecimento científico sobre a África, em especial nos campos da paleontologia e da antropobiologia,
não cessam de confirmar que esse continente foi o lugar privilegiado onde surgiu a
consciência humana e onde se elaboraram
as experimentações que conduziram à vida
em sociedade. Contudo, a lentidão da assimilação/integração desses dados revolucionários, pelo meio acadêmico, continua
sendo um problema, razão pela qual a reatualização dos conhecimentos deverá constituir peça importante do processo didático. À
primeira vista, uma das formas eficientes de
Até os anos sessenta do século XX, a pro-
alcançar esses objetivos seria a organização
dução sobre a história da África esteve in-
de oficinas de formação para agentes multi-
questionavelmente monopolizada por afri-
plicadores selecionados, preferencialmente,
canistas europeus, americanos e árabes,
entre os docentes das disciplinas humanas,
majoritariamente imbuídos de uma visão
e não somente na disciplina histórica.
fundamentalmente essencialista e raciológica. Essa tendência tem diminuído em parte,
A sensibilidade do docente determinará, em
mas não desaparecido, com o crescimen-
muitos casos, a predisposição à aceitação, ou
to exponencial de especialistas e cientistas
à rejeição, das teses raciológicas e das mani-
africanos dedicados ao estudo do passado
pulações legitimadoras que, inevitavelmente,
de seu próprio continente. Trata-se de espe-
vestirão a roupagem “acadêmica”. O docente
cialistas que conhecem a África a partir de
incumbido do ensino da matéria africana de-
dentro, através das mentalidades, cosmo-
verá cultivar sua sensibilidade em relação aos
297
povos e culturas oriundos deste continente.
nas novas descobertas científicas; e uma in-
Num país como o Brasil, onde as tradições
terdisciplinaridade capaz de entrecruzar os
e culturas africanas nutrem de maneira tão
dados mais variados dos diferentes horizon-
vigorosa a personalidade do povo brasileiro,
tes do conhecimento atual para se chegar a
a empatia para com a África apareceria como
conclusões que sejam rigorosamente com-
algo natural, mas ela não é, apesar de todos
patíveis com a verdade.
os brasileiros serem herdeiros das tradições e
cosmovisões desse continente.
Esses três pré-requisitos estão vinculados
ao problema mais geral que se radica na ne-
Os novos desafios
cessidade de chegar-se a um maior grau de
compreensão das diferenças e da alteridade,
A/O professor/a incumbido/a da missão do
ensino da matéria africana se verá obrigado/a
durante longo tempo a demolir os estereótipos e preconceitos que povoam as abordagens sobre essa matéria18. Estamos diante de
novas tentativas de banalização dos efeitos
do racismo e das agressões imperialistas por
parte de verdadeiros soldados ideológicos
da visão e das estruturas hegemônicas que
tomaram conta do planeta.
como fatores estruturantes da convivência
humana. O conhecimento do Outro, de sua
identidade étnica, cultural, sexual ou racial,
do seu percurso humano, de sua verdadeira
inscrição histórica, possibilita a convivência
confortável, se não feliz, com as diferenças
fundamentais.
A/O professor/a incumbida/o da missão do
ensino da historia dos povos e das civilizações da África – que, como já vimos não é
Os estudos sobre a historia da África, espe-
uma história qualquer – dificilmente poderá
cificamente no Brasil, deverão ser conduzi-
permanecer insensível a todas essas consi-
dos na conjunção de três fatores essenciais:
derações. Pensamos que, pelo contrário, a
uma alta sensibilidade empática para com
sua eficácia pedagógica terá uma maior re-
a experiência histórica dos povos africanos;
percussão e abrangência na medida em que
uma constante preocupação pela atualiza-
a sua sensibilidade empática para a matéria
ção e renovação do conhecimento baseado
e para o seu entorno social seja elevado.
18 Ver, a esse respeito: OBENGA, Theophile, Le sens de la lutte contre l´africanisme eurocentriste. Paris:
L´Harmattan e Khepera, 2001; TEMU, A., SWAI, B., Historians and Africanist History: A Critique. Post-Colonial
Historiography Examined. Londres: Zed Press, 1981.
298
Bibliografia19
Bibliografia mínima norteadora
de obras básicas sobre a África
DAVIS, David Brion. O Problema da Escravidão
na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civiliza-
BARRY, Boubakar. Le royaume du Wallo. Le
ção Brasileira, 2001.
Senegal avant la conquête. Paris: Karthala,
1985.
FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: GRAAL Editora,
CISSOKO, Sekene Mody. Histoire de l´Afrique
1991.
occidentale. Moyen Age et Temps Modernes
(VIIè siècle-1850). Paris: Présence Africaine,
HUBBE, M.O.R, ATUI, J.P.V, AZEVEDO, E.T.&
1966.
NEVES, W.A. A Primeira Descoberta da América. Evolução Humana. Sociedade Brasilei-
______. Tombouctou et l´Émpire Songhay.
ra de Genética. Ribeirão Preto: Atheneu,
Dakar: Nouvelles Editions Africaines (NEA),
2003.
1975.
KI-ZERBO, Joseph. Historie de l’Áfrique Noire.
DIAGNE, Pathé. Pouvoir politique en Afrique
Paris: Hatier, 1978.
occidentale. Paris: Présence Africaine, 1967;
Histoire générale de l´Afrique noire, vol. 2.
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África. Uma
Paris: UNESCO, 1978.
historia de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
DIOP, Cheikh Anta. L’Uni té Culturelle de
l’Afrique Noire. Paris: Présence Africaine,
M’ BOKOLO, Elikia. África Negra. História e
1959, 1982.
Civilizações, tomo I (até o Século XVIII). Lisboa: Vulgata, 2003.20
______. Nations nègres et Culture. Paris: Présence Africaine, 1954, 1964, 1979.
MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de
______. L´Afrique Noire pré-coloniale. Paris:
Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Présence Africaine, 1960, 1987.
19Nota da edição do Boletim: O autor relaciona uma extensa Bibliografia, da qual selecionamos as obras
editadas em Português. Para conhecer a Bibliografia completa, consultar a obra citada (ver nota de rodapé n. 3).
20O volume 1 foi publicado em português: M’BOKOLO, Elikia, África negra. História e civilizações, tomo I até o
século XVIII. Lisboa: Editora Vulgata, 2003.
299
______. Civilisation ou Barbárie. Paris: Présen-
ditionnelle de l’Afrique centrale. Paris: Pré-
ce Africaine, 1981, 1988.
sence Africaine, 1976.
KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África ne-
______. Les Bantu, Langues-Peuples-Civilisa-
gra, volumes I e II (3a. ed.). Portugal: Publi-
tions. Paris: Présence Africaine, 1985.
cações Europa-América, 2002.
______. La Philosophie africaine de la période
M’BOKOLO, Elikia. Afrique noire histoire et ci-
pharaonique – 2780-330 avant notre ère. Pa-
vilisations, jusqu’au XVIII ème siècle, Tomos I
ris: L´Harmattan, 1990.
et II. Paris: Hatier-Aupelf, 1995( .
20)
OBENGA,
Theophile.
L´Afrique
dans
l´Antiquiré. Égypte ancienne-Afrique noire.
Paris: Présence Africaine, 1973.
______. Afrique centrale précoloniale. Docu-
______. Origine comune de l´égyptien ancien,
du copte et des langues negro-africaines
modernes. Introduction à la linguistique
historique africaine. Paris: L´Harmattan,
1993.
ments d’histoire vivante. Paris: Présence
Africaine, 1974.
______. Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx.
Contribuition de Cheikh Anta Diop à
______. La Cuvette Congolaise. Les hommes et
l’Historiographie mondiale. Paris: Présence
les structures. Contribuition à l’histoire tra-
Africaine e Khepera, 1996.
300
XIII. Enfrentando os desafios: a história da África
e dos africanos no Brasil na nossa sala de aula1
Mônica Lima
No dia 9 de janeiro de 2003 foi aprovada a
comunidade acadêmica, desde há muito,
Lei n. 10.639, que tornou obrigatório o ensi-
reivindicam esta inclusão. Para falar apenas
no sobre História e Cultura afro-brasileira,
da história mais recente, houve um período,
bem como de História da África e dos afri-
na década de 90, em que os estudantes de
canos em todos os estabelecimentos de en-
História organizavam, no ano intermediário
sino, públicos e privados, no Brasil. Nestes
aos seus encontros nacionais4, um Encon-
conteúdos estariam incluídos, ainda segun-
tro Nacional de História da África. Em par-
do o texto da lei, a luta dos negros no nosso
tes diferentes do Brasil, distantes em geral
país, a cultura negra brasileira e a contribui-
dos grandes centros5, nunca menos de qui-
ção dos negros na formação da sociedade
nhentos estudantes passavam uma semana
nacional - como subtemas que passariam a
às voltas com cursos, mesas-redondas e ati-
ser necessários nos estudos de História do
vidades ligadas ao tema. Paralelamente, a
Brasil. O Conselho Nacional de Educação já
ANPUH (Associação Nacional de Professores
emitiu parecer detalhado, de autoria da Pro-
Universitários de História) não poucas vezes
fessora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva,
se pronunciou favorável à inserção de disci-
regulamentando a alteração da Lei de Dire-
plinas de História da África nos cursos uni-
trizes e Bases da Educação Nacional3.
versitários de História. E outras entidades e
grupos, bem como intelectuais e ativistas do
Esta lei tem uma história. Grupos ligados
movimento docente, apresentaram a mes-
ao movimento negro e representantes da
ma reivindicação.
1Repertório afro-brasileiro – 2004 / PGM 1. As ideias deste texto encontram-se desenvolvidas mais
extensamente nos artigos da autora citados na bibliografia.
2
Professora de História do Colégio de Aplicação da UFRJ (Ensino Fundamental e Médio) , de História da
África nos cursos de Pós-Graduação do PENESB/UFF e na Universidade Cândido Mendes(UCAM) , doutoranda em
História na Universidade Federal Fluminense(UFF).
3
Parecer CNE/CP 003/2004.
4Os ENEH - Encontros Nacionais de Estudantes de História, que se faziam a cada dois anos.
5O III Encontro Nacional de História da África, por exemplo, foi na cidade de Aquidauana - Mato Grosso do
Sul.
301
Ou seja: não se pode em nenhum momen-
A negação desta história esteve sempre as-
to dizer que esta lei foi uma criação de um
sociada nitidamente a formas de controle
governo sem um movimento prévio que a
social e dominação ideológica, além do inte-
apoiasse e a pusesse na pauta da educação
resse na construção de uma identidade bra-
brasileira. Ela resulta de um processo no
sileira despida de seu conteúdo racial, den-
qual diferentesagentes sociais atuaram para
tro do chamado desejo de branqueamento
que se tornasse realidade, e por acreditarem
de nossa sociedade. Característico da segun-
na importância da medida. Claro que a lei
da metade do século XIX, este desejo ainda
não basta. Nenhuma medida legal é sufi-
vigora dentro de alguns setores sociais mais
ciente, se não nos debruçarmos sobre ela
retrógrados, embora a luta por mudanças
para refletir e se não nos engajarmos na sua
no campo do ensino da História tenha cria-
execução. E neste caso, em especial, estes
do embates ao longo do século XX.
dois movimentos se fazem necessários.
Se quisermos olhar com um certo distanciamento, podemos perguntar-nos: por que
a necessidade de uma lei para fazer valer a
presença de um conteúdo tão evidentemente fundamental na História geral e em especial na História de grupos humanos que
participaram diretamente da formação do
nosso país?
Podemos observar que até hoje existem nos
currículos dos cursos de História das universidades brasileiras poucas disciplinas específicas sobre África, assim como praticamente
se ignora o tema nos estudos de História
Geral do Ensino Fundamental e Médio. Ao
tornar obrigatória sua inclusão na Educação
Básica, estaremos frente a uma imensa dificuldade: que História será esta a ser apresentada, se a maioria dos professores em
sala não teve contato com ela?
A raiz deste ocultamento estava no preconceito e na ignorância sobre a vida social e a
Isto não tira a importância da medida. É cer-
história destes grupos humanos e, sobretu-
to, muitos fomos e somos aqueles que recla-
do, na necessidade de domínio sobre eles,
maram espaços para estes temas. Mas fren-
com objetivos de escravizá-los ou colonizá-
te a este espaço oferecido, temos que definir
-los. Esta raiz, portanto, se situava na própria
objetivos, discutir as abordagens - ou seja,
história das relações com os povos africanos
aonde chegar, e como chegar? Responder
por parte daqueles grupos dominantes das
a estas perguntas nos coloca frente a ques-
sociedades nas quais nossos primeiros his-
tões muito profundas. Ora, se resgatar esta
toriadores se espelharam para construírem
memória é elaborar nova matéria-prima da
os saberes oficiais sobre o Brasil.
nossa identidade como povo, estamos em
302
face de um desafio: quem somos? E ainda:
Em primeiro lugar é fundamental formar-
quem desejamos ser?
-se, atualizar-se nos temas, e não partir do
pouco que se sabe para ocupar um lugar que
Não há receitas prontas, não existe um
nunca esteve ocupado. Temos a responsabi-
‘como fazer’, e por isso a necessidade de
lidade de tratar com muito profissionalismo
muitos espaços de discussão e troca inte-
estes conteúdos. Por isto, devemos estu-
lectual - e não apenas entre os reconheci-
dar, procurar leituras específicas e, sempre
dos como “intelectuais” mas com os movi-
que possível, capacitar-nos em cursos e em
mentos sociais. Não podemos, a despeito da
discussões acadêmicas. Nossas precárias
exigência da Lei, sair repassando nas nossas
condições de trabalho e de vida não podem
salas de aula informações equivocadas, ou
justificar uma ausência de esforço neste
tratar o tema de uma maneira folclorizadae
sentido. Estamos falando da re-escritura de
idealizada. Este é um grande temor: repetir
uma História que nos foi negada, estamos
modelos para fazer com que estes conteúdos
lidando com a base de uma identidade que
curriculares fiquem parecidos com os que já
está para ser reconstruída. O que está em
trabalhávamos ao tratarmos da História e
jogo é mais do que nossa competência - é o
das contribuições culturais comumente es-
nosso compromisso.
303
tudadas é um caminho fácil e perigosíssimo.
São temas diferentes e sua abordagem ne-
É essencial cobrar das autoridades, em espe-
cessariamente deve ser diferenciada.
cial dos gestores de instituições de ensino, o
apoio para fazer da iniciativa da lei uma re-
Nossos alunos certamente terão muito a
alidade. Foi estabelecida a obrigatoriedade,
dizer, mas devemos ter um imenso cuidado
mas ela não basta, para que o obrigatório
com o senso comum, que pode surgir tan-
se torne viável e produtivo tem que haver
to para desvalorizar como para criar mitos
investimento na formação. Estudantes uni-
- os quais, ao se desfazerem, redobrarão o
versitários: militem pela inclusão destes as-
peso da desilusão e do desgaste da autoesti-
suntos nas disciplinas dos currículos de suas
ma. Trata-se de um equilíbrio delicado entre
faculdades, institutos, departamentos. Isto
o resgate de uma História que deverá servir
é possível, e já vem sendo feito. Professores:
para elevar o orgulho de pertencer a ela e a
solicitem da rede de ensino a realização de
valorização de posturas estreitas que tendem
cursos - isto é possível, e também já é reali-
a criar esquemas explicativos maniqueístas.
dade em alguns lugares6. Busquem e criem
6A rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro, na gestão Benedita da Silva em 2002, promoveu curso
de especialização em História da África para professores de História em Campos e no Rio de Janeiro, organizado pelo
Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes, instituição com tradição neste ramo.
espaços (seminários, mesas-redondas, deba-
africanos, além de mão-de-obra, eram pes-
tes, simpósios) e cursos onde se estimule o
soas que produziam cultura - mas não bas-
aprofundamento no estudo destes temas e
ta dizer, isto tem que ser algo vivido para
as reflexões sobre práticas pedagógicas ade-
começar a abalar as velhas estruturas dos
quadas7. Pode não ser fácil, mas é um bom
preconceitos, as quais se alimentam da ig-
caminho.
norância.
Temos também que aprender a ouvir e a in-
No segundo segmento do Ensino Fundamen-
teragir com setores dos movimentos sociais
tal, já podemos trabalhar com conteúdos
organizados, que vêm criando, com esforço
mais precisos, falar da Pré-História - ques-
próprio, materiais pedagógicos e de divulga-
tionando o termo, pois não é a escrita que
ção sobre temas da História dos africanos
cria a história - como o tempo do processo
no Brasil e da História da África. Com estes
de hominização, que se deu na África, an-
grupos também devemos buscar discutir e
tes que em outros lugares do planeta. Expli-
refletir sobre as concepções e conceitos des-
car os porquês, falar dos primeiros homo
te campo do conhecimento. Não devemos
sapiens africanos que saíram a povoar o
nos acreditar os únicos donos deste saber.
mundo... Não deixar de comentar todo o esplendor e a pompa do Antigo Egito - tema
Para os professores de Educação Básica,
que fascina nesta idade - lembrando sempre
apresentamos aqui algumas sugestões de
que este fica na África, algo que parece tão
caráter geral. Nas séries iniciais do Ensino
óbvio, mas que acaba sendo esquecido. Cer-
Fundamental, pode-se introduzir temas da
tamente, o Egito era também lugar de desi-
cultura africana e afro-brasileira através de
gualdades - quem disse que os africanos não
lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Já
as viveram em sua terra? Procurar lembrar
existe produção (livros, sobretudo) para se
os grandes reinos do Sudão ocidental, que
tomar como referência. Nas aulas de Inte-
durante a Idade Média ergueram cidades,
gração Social, falar da presença dos africa-
com universidades, mercados de livros, con-
nos na História do Brasil para além da rea-
tatos com o Oriente e Europa - e encanta-
ção à escravidão: levá-los a ver marcas desta
ram tantos viajantes e despertaram a cobiça
presença viva, nas músicas, nas festas, no
de outros povos com suas minas de ouro8.
vocabulário, nos hábitos alimentares. Os
E, certamente, ao estudar o tráfico de escra-
7Como os cursos de Extensão e Especialização oferecidos pelo Programa de Estudos sobre o Negro na
Sociedade Brasileira / PENESB da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
8No dizer de um importante historiador francês, Pierre Vilar, falar em ouro na Europa Medieval era falar da
África ( em seu livro Oro y Moneda en la História, 1450-1920. Barcelona, 1974. p.61)
304
vos, não se limitar a falar do intercâmbio
Sabemos que nossa memória constrói nos-
de pessoas por riquezas, mas também das
sas percepções sobre nós mesmos e sobre
riquezas transportadas por estas pessoas
os outros - voltando a dizer: constrói nossa
dentro de si, no maior processo de migração
identidade. Cabe a nós multiplicar iniciati-
forçada da História da humanidade, que le-
vas como esta e fazer com que haja desdo-
vou a uma verdadeira diáspora africana pelo
bramentos concretos, e que se estimule a
Novo Mundo.
pesquisa, a formação, a produção sobre estes temas. Trata-se de resgatar a História da
No Ensino Médio, ao retomar alguns conte-
África e, de uma certa maneira, africanizar a
údos, debater as grandes visões, situar o sur-
História do Brasil.
gimento do racismo como projeto científico
e político - utilizando estratégias que per-
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
mitam aos alunos construir e desestruturar
ideias através de pesquisas, júris simulados,
dramatizações. E sempre assinalar a fratura exposta da desigualdade racial brasileira.
Nunca é demais repetir: nossa pobreza tem
cor, nossa exclusão tem cor. Estes dados,
porém, não devem ser naturalizados. Assim
como foram fruto de uma História, fazer
BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino
fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfricas, 2003.
BELUCCI, Beluce. Introdução à História da
África e da Cultura Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: CEAA-UCAM/CCBB, 2003.
uma outra História pode mudar o quadro.
CANEN, Ana. Relações raciais e currículo. ReOutro ponto fundamental de caráter geral
flexões a partir do multiculturalismo. In: Ca-
no ensino de História da África e dos africa-
dernos Pedagógicos PENESB n. 3. Niterói:
nos para estudantes brasileiros é pensar for-
Editora da UFF, 2001, p.65-77.
mas de ampliar sua dimensão, dando destaque aos aspectos da afro-americanidade
LIMA, Mônica. A África na sala de aula. In:
e introduzindo elementos que aproximam
Nossa História nº4. Rio de Janeiro: Fundação
e diferenciam esta parte da nossa história
Biblioteca Nacional, 2004. p.84-87.
da história dos afrodescendentes em todo o
continente. Sabemos que temos uma histó-
____________. Fazendo soar os tambores: o en-
ria comum não apenas entre África e Brasil,
sino de História da África e dos africanos no
como entre os africanos e seus descenden-
Brasil. In: Cadernos PENESB n. 5. Niterói:
tes nascidos no Novo Mundo.
EdUFF, 2004. p.159-173.
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2004.
Campus/Elsevier, 2004.
306
XIV. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira1
Mônica Lima2
“À volta da fogueira,
os mais velhos disseram
vão então caçar nuvens
que já fogem de nossos olhos.
Nós pedimos um guia
armas, munições
e farnel para a longa jornada.
Mas eles sorriram
terão de levar apenas
estes sons de tambores
na memória.”
307
(Caçadores de Nuvens , do poeta angolano João Melo)
A aprovação da Lei n. 10.639 de 9 de janeiro
ocasionadas pela citada Lei ainda estão em
de 2003, que tornou obrigatório o ensino de
processo. E não influenciarão apenas os edu-
História da África e da História dos africanos
cadores. Elas podem trazer resultados para o
nas escolas de todo o país, além de atender
amplo grupo que pretendem atingir. Crian-
a uma antiga e justa reivindicação, trouxe
ças e adolescentes, jovens e adultos entra-
uma série de consequências para o ensino
rão em contato com o tema. O alcance das
desta área/disciplina em sua totalidade e
transformações pode ser grande – e muito
para a formação dos profissionais que atu-
positivo. E elas poderão ser aceleradas ou
am no magistério, em especial aqueles des-
adquirirem um ritmo mais lento, conforme
ta área específica – a História. As mudanças
a capacidade de setores interessados intervi-
1Espaços educativos e ensino de história – 2006 / PGM 4.
2
Professora de História do CAP- UFRJ, de História da África nos cursos de Pós-Graduação do Programa
de Estudos sobre o Negro na Sociedade Brasileira da Universidade Federal Fluminense (PENESB/UFF) e do Centro
de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes(UCAM/RJ). Doutoranda em História na Universidade
Federal Fluminense(UFF).
rem no processo. O impacto da medida me-
Só para lembrar: não importa nossa origem
recerá certamente estudos aprofundados,
familiar: todos nós, brasileiros, carregamos
preferencialmente tendo como base dados
‘áfricas’ dentro de nós. Essas ‘áfricas’ (no
vindos de diferentes partes do país, com
plural, pois são múltiplas) são e foram per-
suas diversas experiências.
manentemente reinventadas aqui no Brasil,
mas revelam sua profunda origem a cada
O ensino-aprendizagem destes conteúdos
momento: no vocabulário (moleque, qui-
abre muitas perspectivas para o trabalho
tanda, cafuné, cocada, entre tantas palavras
com espaços educativos não-formais. Mu-
– vale uma pesquisa!), nos costumes, na ex-
seus, centros culturais, sítios históricos
pressão de fé, na comida.
(tombados ou não) são lugares de memória
e objetos de estudo e de sensibilização para
a aprendizagem por excelência. Os exemplos são os mais diversos, se pensarmos em
termos de Brasil: igrejas, casas de cultura,
terreiros, espaços públicos de reunião e festejos também são locais para se aprender e
ensinar a história afro-brasileira.
Todos estes aspectos convergem para a
abertura de muitas possibilidades de trabalhar com o ensino de História em espaços
não-formais e em situações não-formais.
Estes lugares e momentos certamente enriquecerão nossos estudos e a aprendizagem
que com eles se viabiliza.
Estaremos lidando com uma matéria-prima
E, se pensarmos no nosso patrimônio ima-
fascinante e delicada: os diversos matizes
terial, este universo se amplia ainda mais:
da nossa formação cultural, a memória dos
histórias, contos populares, contos infantis
nossos ancestrais e, especialmente, suas he-
de matriz africana e/ou afro-brasileira, can-
ranças, tão longamente invisibilizadas. Todo
tigas, canções de festas religiosas populares
o cuidado será sempre pouco para não res-
(assim como a Congada, por exemplo) po-
valarmos pelas trilhas aparentemente fáceis
dem tornar-se um mote e o próprio objeto
do maniqueísmo, da simplificação e da fol-
de estudo, trazendo viva a africanidade da
clorização. Vamos pensar, então, na preven-
cultura brasileira. Além destes de caráter
ção destes perigosos males que podem en-
mais geral, estão presentes, em diversas de
fraquecer nossa percepção e nos distanciar
nossas comunidades, os mais velhos que po-
dos nossos objetivos. Alguns destes cuidados
dem relembrar e trazer para nossos alunos
podem parecer óbvios, mas muitas vezes o
muito deste patrimônio em momentos de
aparentemente óbvio merece ser re-visto e
congraçamento e aprendizagem.
re-visitado, para refletirmos sobre ele.
308
Vamos lá...
tre nós. O racismo é um fenômeno que
influiu e influi nas mentalidades, num
• Os africanos e seus descendentes nascidos
modo de agir e de ver o mundo. E as di-
da diáspora no Novo Mundo (as Américas,
ferentes sociedades interagiram com ele
incluindo o Brasil) eram seres humanos,
de diversas maneiras – o Brasil não tem
dotados de personalidade, desejos, ímpe-
a mesma história de relações raciais que
tos, valores. Eram também seres contra-
os Estados Unidos, para usar um exem-
ditórios, dentro da sua humanidade. Ti-
plo clássico. No entanto, durante muito
nham seus interesses, seu olhar sobre si
tempo se defendeu a ideia de que aqui
mesmos e sobre os outros. Tinham suas
não havia discriminação e, ainda, que o
experiências de vida – vinham muitas ve-
que separava as pessoas era ‘apenas’ sua
zes de sociedades não-igualitárias nem
condição social. Hoje, não só vemos pelos
equânimes na África ou nasciam aqui
dados da demografia da pobreza brasilei-
em plena escravidão. Não há como uni-
ra que ela tem uma inequívoca marca de
formizar atitudes, condutas e posturas e
cor, como sabemos que um olhar mais
idealizarmos um negro sempre ao lado da
atento à História e à vida dos afrodescen-
justiça e da solidariedade. O que podemos
dentes no país revela a nossa convivência
e devemos ressaltar são os exemplos des-
permanente com o preconceito e seus
tes valores de humanidade, presentes em
efeitos perversos. Mas, para podermos
muitos, e injustamente negados e torna-
enxergar isso, tivemos que ouvir relatos,
dos invisíveis pela sociedade dominante,
ver dados e entender como foi esta Histó-
durante tanto tempo. Mas sugerimos, ve-
ria. Só assim pudemos desnaturalizar as
ementemente, evitar dividir o mundo em
desigualdades e ver a face hostil do nosso
‘brancos maus’ e ‘negros bons’, o que não
‘racismo envergonhado’. O que isto quer
ajuda a percebermos o caráter complexo
dizer? Que devemos nos dedicar ao tema:
dos grupos humanos. A ideia é valorizar o
estudar, ler, nos informar, sempre e mais.
positivo, mas sem idealizar.
Afinal, o que está em jogo é bem mais
que a nossa competência profissional, é
• O nosso desconhecimento sobre a história
o nosso compromisso com um país mais
e a cultura dos africanos e dos seus des-
justo e com um mundo melhor para todos
cendentes no Brasil e nas Américas pode
e todas.
fazer muitas vezes com que optemos por
utilizar esquemas simplificados de expli-
• Nós nos acostumamos a ver as manifesta-
cação para um fenômeno tão multiface-
ções culturais de origem africana confina-
tado quanto a construção do racismo en-
das ao reduto do chamado ‘folclore’. Este
309
conceito de folclore, que remete às tradi-
maneiras de ser próprias, construídas ao
ções e práticas culturais populares, não
longo de sua História. Referir-se a “o afri-
tem em si nenhum aspecto que o desqua-
cano” ou “a africana”, como uma ideia
lifique, mas o olhar que foi estabelecido
no singular é um equívoco. Podemos até
sobre o que chamamos de ‘manifestações
utilizar estes termos quando tratarmos de
folclóricas’, sim. E, sobretudo no mundo
processos históricos vividos por diversos
contemporâneo, em que a modernida-
nativos da África, mas sempre sabendo
de está repleta de significados positivos,
que não se trata de um todo homogêneo
o folclore e o popular se identificam não
e sim de uma ideia genérica que inclui al-
poucas vezes com o atraso – algo curioso,
guns indivíduos, em situações muito es-
exótico, porém de menos valor. Logo, se
pecíficas. Por exemplo: podemos dizer “o
não problematizarmos a inserção da cul-
tráfico de escravos africanos” – ou seja,
tura africana neste registro, correremos o
estamos nos referindo à atividade econô-
risco de não criar a identidade nem esti-
mica cujas mercadorias eram indivídu-
mular o orgulho de a ela pertencermos.
os nativos da África, conhecido nos seus
Podemos desmistificar a ideia de folclore
anos de declínio como “o infame comér-
presente no senso comum e, também,
cio”. Nestes tipos de caso, vale dizer, de
mostrar o quão complexa e sofisticada é
um modo geral, ‘africanos’ ou ‘negros
a nossa cultura negra brasileira. Envolve
africanos’. Mas, devemos evitar atribuir a
saberes, técnicas e toda uma elaboração
estas pessoas qualidades comuns, como
mental para ser construída e se expressar.
se fossem tipos característicos.
E, assim como nós, está em permanente
mudança e não é nada óbvia.
• Um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e afrodescendentes, é
Além destes três cuidados básicos de caráter
com relação às suas práticas religiosas e
geral, há outros dados sobre os quais deve-
um suposto caráter maligno contido nes-
mos refletir e estar sempre atentos:
tas. Este tipo de afirmação não resiste ao
confronto com nenhum dado mais consis-
• A África é um amplo continente, em que
tente de pesquisa sobre as religiões africa-
vivem e viveram desde os princípios da
nas e sobre a maioria das religiões afro-
humanidade (afinal, segundo pesquisas,
-brasileiras. Por exemplo: não há a figura
foi na região onde atualmente se localiza
do diabo nas religiões da África tradicio-
o Continente Africano que a humanidade
nal nem de nenhum ser ou entidade que
surgiu), grupos humanos diferentes, com
personifique todo o Mal. As divindades
línguas, costumes, tradições, crenças e
africanas e suas derivadas no Brasil, em
310
geral, se encolerizam se não forem cultu-
REFERÊNCIAS
adas e consideradas, e podem vingar-se;
mas jamais agem para o mal de forma
BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino
independente dos agentes humanos que
fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfri-
a elas demandam. O grande adversário
cas, 2003.
das “forças do Bem” não existe, não há
este poder em nenhum ente do sagrado
BELUCCI, Beluce. Introdução à História da
africano, a não ser naquelas religiões in-
África e da Cultura Afro-Brasileira. Rio de Ja-
fluenciadas pelo monoteísmo cristão, ou
neiro: CEAA - UCAM/CCBB, 2003.
pelo monoteísmo islâmico. Não é certo
considerar Elegbará, Elegbá, Exu, como
CANEN, Ana. Relações raciais e currículo. Re-
um demônio ou seu representante. Exu
flexões a partir do multiculturalismo. In: Ca-
é o mensageiro, o embaixador dos pedi-
dernos Pedagógicos PENESB, n. 3, Niterói:
dos humanos aos orixás, e exige seu pa-
Editora da UFF, 2001. p.65-77.
gamento pelo serviço e se aborrece se
não for atendido. Mas não tem nenhuma
maldade congênita, como nenhuma outra divindade do panteão africano.
Como vimos, toda a atenção é necessária e
o exercício permanente que fazemos de ouvir pessoas e valorizar saberes não nos deve
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de
aula. Visita à História Contemporânea. São
Paulo: Selo Negro, 2005.
LIMA, Mônica. A África na sala de aula. In:
Nossa História n. 4, Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p.84-87.
eximir de estarmos atentos às armadilhas
LIMA, Mônica: Fazendo soar os tambores: o
do senso comum. E no mais, deixemo-nos
ensino de História da África e dos africanos no
encantar pela história africana e afro-brasi-
Brasil. In: Cadernos Pedagógicos PENESB n.
leira, porque, como bem sabemos, a apren-
4,. Niterói: Editora da UFF, 2004. p.65-77.
dizagem se dá pela rota da sensibilidade, e
nada melhor que a via do afeto para (re)ver
MATTOS, Hebe. O ensino de História e a luta
preconceitos. Esta é a perspectiva amorosa
contra a discriminação racial no Brasil. In:
de trabalho que valorizamos: que inclui res-
ABREU, Martha e SOHIET, Rachel. Ensino de
peito à diferença, que convoca e se propõe
História. Conceitos, temáticas e Metodologia .
à participação, e que atua cooperativa e so-
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312

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