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REVISTA DA
SOCIEDADE DE
PSICOLOGIA DO
RIO GRANDE
DO SUL
E D I T O R I A L
A Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, denominada Diaphora, desde 2012, fez jus a palavra de origem grega que
significa diferença. Com o fechamento de mais esse número, a equipe editorial, sob a gestão do Psic. Leonardo Della Pasqua, acredita estar
cumprindo sua missão, a de fazer a Diferença.
Diferença na forma de divulgar as diversas perspectivas da Psicologia, teorias e formas de produzir a ciência e as práticas psicológicas.
Diferença na forma de idealizar e socializar o conhecimento científico para os seus diferentes públicos.
Diferença na editoração, tendo se alinhado aos qualificados periódicos científicos nacionais e internacionais.
A diferença marcou os ideais de um projeto, inicialmente ambicioso, para um periódico exclusivamente impresso e sem indexadores
que dessem visibilidade às suas produções. Hoje, com a publicação deste terceiro número, abre-se a porta de ingresso a indexadores
importantes como Redalyc, Clase, Latindex, Pepsic. Consideramos uma vitória, chegarmos a estas possibilidades.
O fechamento de mais um número sempre é um momento importante e de extrema gratificação, momento no qual esquecemos as
incontáveis horas de trabalho, revisões, tensões. A emoção de vermos um trabalho de equipe e de qualidade cumprido nos reporta a essência
fundamental de um periódico científico: lançar à comunidade científica e profissional, resultados de estudos e pesquisas para o conhecimento
e debate público.
O desafio assumido pela Gestão 2011-2013 e Equipe Editorial foi enfrentado com a confiança depositada pelos autores e pareceristas,
nacionais e internacionais. Dentre as várias manifestações da comunidade científica acerca da Diaphora, a fundamental para não medirmos
esforços e tempo para este empreendimento, foi o reconhecimento dos pares.
Finalizamos agradecendo a Diretoria da SPRGS pela confiança depositada, assim como aos articulistas, pareceristas e membros do
Conselho Editorial.
Desejamos a todos que nos acompanharam até o momento, uma boa leitura e agradecemos a parceria.
Os Editores
Mary Sandra Carlotto
Tânia Rudnicki
Angela Marin
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R E L ATO D E P E S Q U I S A
Percepções parentais acerca dos conflitos e benefícios associados com a
gestão da família e do trabalho
Parental perceptions on the conflicts and benefits of combining work and family
Manuela Veríssimo(a)*, Mauro Pimenta(b), Patrícia Borges(c), Inês Pessoa e Costa(d), Ligia Monteiro(e),
Nuno Torres(f), Carla Martins(g)
Resumo: O presente estudo teve como objetivo analisar a existência do possível conflito entre a gestão da vida
profissional e familiar, analisando variáveis sociodemográficas características das famílias em estudo. Participaram 532
famílias bi-parentais, em que ambos os pais trabalham, com crianças com idades compreendidas entre os 2 e os 5 anos
de idade oriundas de vários distritos de Portugal continental. Os resultados indicam que, na perspetiva de ambos os
pais, os benefícios associados aos dois contextos parecem sobrepor-se aos constrangimentos. Os resultados indicam
que níveis mais elevados das habilitações literárias de ambos os pais estão associados à perceção materna de maiores
benefícios na relação entre o trabalho e a família. Quanto mais horas as mães trabalham, mais constrangimentos e
sentimentos de interferência do trabalho na família percecionam. Verificou-se, ainda, diferenças em função do género
para os pais nas dimensões de recompensa. Os resultados serão discutidos no contexto das teorias expansionistas.
Palavras-chave: Conflito entre Trabalho e Família, Experiências Parentais.
Abstract: The main goal of the present study was to assess the existence of conflict between family and work, in
bi-parental working families, considering the effects of socio-demographic variables. Five hundred and thirty two
families from different regions of Portugal and with children aged 2 to 5 years of age attending day-care programs
participated. Results show that according to both parents the benefits associated with the participation in both family
and work override constrains. Higher levels of education of both parents are associated with maternal perceptions
of benefits related to the balance between these domains. The hours mothers spend at work are related to their
perceptions and feeling of constrains and conflict between family and work. Differences related with child gender
were found for fathers’ perceptions of rewards. Results were discussed using the Expansionist Theory.
Key words: Conflict between work and family, Parental Experiences.
a Professora Associado, Doutorada em Psicologia do Desenvolvimento, Unidade de Investigação em Psicologia Cognitiva, do Desenvolvimento e da Educação, ISPA-IU.
*E-mail: [email protected]
b Psicólogo, Doutorado em Psicologia da Educação, Unidade de Investigação em Psicologia Cognitiva, do Desenvolvimento e da
Educação, ISPA-IU.
c Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica, ISPA-IU.
d Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica, ISPA-IU.
e Professora Auxiliar, Doutorada em Psicologia da Educação, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIS-IUL.
f Investigador, Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, Unidade de Investigação em Psicologia Cognitiva, do Desenvolvi­
mento e da Educação, ISPA-IU.
g Professora Auxiliar, Doutorada em Psicologia do Desenvolvimento, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, Campus de Gualtar.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 01-08
Nas últimas décadas, diversos estudos têm procurado
caracterizar os diferentes aspetos e as consequências associadas
à multiplicidade de papéis, nomeadamente, ao nível da
saúde física e mental de homens e mulheres, dado que os
papéis desempenhados, ao nível profissional e familiar, são
considerados parte integrante da identidade do adulto (Frone,
2000).
As alterações sociais, demográficas e económicas que
ocorreram durante o século XX levaram a mulher a adotar
um papel mais ativo fora de casa, associando-se um maior
investimento na carreira à necessidade económica da família,
com o seu salário a poder atenuar as mesmas (Blank, 1988).
No entanto, não foram apenas os papéis maternos a sofrer
alterações. Os pais, embora continuem a despender menos
tempo nos cuidados prestados às crianças comparativamente
com as mães (Gershuny, 2001) estão, hoje em dia, cada vez mais
envolvidos nas dinâmicas e rotinas familiares, não assumindo
o trabalho a primazia que, no passado, era inquestionável.
Continuam, porém, a ser confrontados com a prioridade do
trabalho, o que os leva a estar menos tempo com a família
(Theunissen, Vuuren & Visser, 2003), sobretudo se pretendem
alcançar um patamar económico e social mais confortável para
si e para as suas famílias. Estes fatores têm contribuído para o
aumento do conflito entre família e trabalho.
Um aspeto a considerar que pode, ainda, contribuir para
um potencial conflito entre os elementos do casal, nos casos
em que ambos trabalham, será a competitividade entre estes,
nomeadamente, ao nível salarial e de estatuto, pelo menos se
comparados com os casais tradicionais, onde a competitividade
é praticamente inexistente (Greenhaus, Callanan & Godshalk,
2000). Assumindo o marido o papel de suporte financeiro, cabia
à mulher a educação das crianças e a gestão da casa, pelo que
a sobreposição de funções era praticamente nula e eliminava a
possibilidade de competição entre o casal e entre os próprios
papéis a desempenhar por cada um, o que poderá não suceder
nos casos em que a partilha de responsabilidade abarca a família
e o trabalho.
O conflito entre o trabalho e a família é uma fonte de stress
ao nível individual, do casal, podendo ter repercussões negativas
ao nível das próprias empresas. Este tem sido associado a
consequências negativas, como o pior desempenho na família
e no trabalho, o absentismo e a redução da satisfação de um
modo geral (Duxburry & Higgins, 1991; Frone et al., 1992). Este
conflito, consoante o desequilíbrio provocado, pode até afectar a
relação do casal levando mesmo à sua rutura (Sumer & Knight,
2001). O esforço para tentar equilibrar o trabalho e a família
pode conduzir à depressão (Goff, Mount & Jamison, 1990),
aumentar os riscos de saúde, podendo, em certas circunstâncias
estar associado com o suicídio (Duxbury & Higgins, 1991; Jones
& Fletcher, 1996).
Neste sentido, e de acordo com os trabalhos de Allen,
Herst, Bruck e Sutton (2000) e de Carlson e Frone (2003), as
consequências do conflito entre o trabalho e a família podem
sentir-se em três dimensões: a) na relação com o trabalho,
quando surge algum desencanto no emprego, despontando
intenções de menor investimento laboral; b) na relação com a
família, através de uma reduzida adesão às atividades familiares,
do afastamento dos momentos importantes da vida familiar
e das dificuldades de interação com os filhos (Frone, 2000a),
para além do modo como a emergente insatisfação se pode
associar a condutas desajustadas; c) no bem-estar individual,
se o desequilíbrio em causa potencia o comportamento de
ansiedade ou de depressão do sujeito (MacEwen & Barling,
1994; Greenberger & O´Neil, 1993), a baixa autoestima, o
aumento do consumo de substâncias aditivas e a fraca saúde
física (Frone, Russel & Barnes, 1996).
A teoria expansionista e os benefícios da
multiplicidade de papéis
A multiplicidade de papéis pode ser benéfica para ambos
os pais, ao nível da saúde mental, física e relacional dos
indivíduos (e.g., Thoits, 1983). A multiplicidade de papéis não
só cria oportunidades de sucesso como, também, aumenta a
possibilidade do surgimento de frustrações e stress. Deste modo
e em sintonia com Barnett e Hyde (2001), a diversidade de
papéis parece melhorar as pessoas, oferecendo um contributo,
que não deve ser ignorado, no sentido de as ajudar a tornaremse melhores mães e pais. Por exemplo, Repetti, Matthews e
Waldron (1989) concluíram que o emprego surge associado
a maior qualidade de saúde, quer nas mães solteiras, quer
nas casadas. Alguns estudos (e.g. Aneshensel, 1986; Crosby,
1991) verificaram que as mulheres empregadas tendem a
ser menos depressivas, comparativamente com as mulheres
desempregadas.
Wethington e Kessler (1989) verificaram que as mulheres
que reduziam o tempo de permanência no trabalho, passando
de tempo inteiro (35 h semanais) para part-time (entre 10
e 19 h semanais) ou que se haviam tornado donas de casa
apresentavam um aumento dos sintomas de depressão. O
mesmo parece acontecer com os pais, cuja saúde física (Gore
& Mangione, 1983) e mental parece beneficiar do empenho
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distribuído por diversas tarefas (e.g. Barnett, Marshall & Pleck,
1992; Lein et al., 1974; Veroff, Douvan & Kulka, 1981). De modo
particular, o papel desempenhado pelos homens na família
é central para o seu bem-estar físico e psicológico (Pleck,
1985), sendo que uma maior partilha na sustentabilidade
financeira familiar oferece benefícios a ambos os progenitores
(Wilkie, Ferree & Ratcliff, 1998). Ao contrário do que poderia ser
expectável, os pais mais envolvidos nos cuidados das crianças
apresentavam menores índices de stress ao nível psicológico
(Ozer, Barnett, Brennan & Sperling, 1998).
Para além dos benefícios já associados à multiplicidade de
papéis, segundo Barnett, Marshall e Pleck (1992), o impacto
negativo provocado por um desempenho menos conseguido
numa das áreas pode ser reduzido através do sucesso e satisfação
obtidos num domínio diferente. A multiplicidade de papéis
amplia as oportunidades de suporte social, que por sua vez
aumentam as possibilidades de bem-estar (Polasky & Holahan,
1998), oferece diferentes oportunidades para experimentar
o sucesso e desenvolver sentimentos de auto-confiança e a
auto-eficácia (e.g. Bussey & Bandura, 1999), além de permitir
um maior número de oportunidades para a descentração,
facultando a mais fácil compreensão de diferentes perspetivas
(Crosby, 1991; Crosby & Jaskar, 1993).
Quanto maior a complexidade do indivíduo, maior será
a sua resistência aos possíveis efeitos negativos provocados
por eventos stressantes (Linville, 1985). Quando ambos
os progenitores partilham o trabalho e a responsabilidade
familiar, as suas experiências diárias aproximam-se, facilitando
a comunicação e a qualidade relacional do casal (Cowan et al.,
1985). O facto de ambos os progenitores trabalharem pode
ainda facilitar o eliminar de conceitos estereotipados baseados
única e exclusivamente no género, um maior vencimento e o
equilíbrio de poder entre os dois elementos do casal (Muchinsky,
Kriek & Schreuder, 1998). Deste modo, o comprometimento
com o trabalho não parece implicar o descomprometimento
com a família ou vice-versa, o que contraria a tese funcionalista
(Barnett & Hyde, 2001).
Todavia, os benefícios da partilha parental no que diz
respeito ao trabalho e à família são mais evidentes nos casais
que assumem uma ideologia não tradicional (não baseada na
distribuição convencional de papéis em função do género),
comparativamente com pais que têm uma visão tradicional
acerca dos seus papéis (Brennan, Barnett & Gareis, 2001; James,
Barnett & Brennan, 1998).
Apesar de benéfica, a multiplicidade de papéis, poderá,
no entanto, ter consequências negativas quando estes são em
demasia ou demasiado exigentes para os indivíduos, ou quando
as exigências de um papel colidem com o desempenho de outro.
Mais importante que a quantidade de tempo despendida num
dos domínios ou a própria quantidade de papéis assumidos é
a qualidade do papel assumido. No caso de o trabalho não
ser sentido como satisfatório ou quando a pessoa é vitima de
discriminação, os benefícios psicológicos associados ao trabalho
não se verificam (Barnett & Hyde, 2001).
A análise das relações entre os papéis assumidos na esfera
familiar e no mundo laboral, na perspetiva de mães e pais, em
famílias bi-parentais, foi o objetivo central do presente estudo.
Assume-se que esta relação tanto poderá ser geradora de
conflito, provocando constrangimentos (Duxburry & Higgins,
1991) como poderá estar associada a efeitos benéficos (e.g.
Gore & Mangione, 1983; Thoits, 1983). Procura-se, assim,
compreender se o trabalho se associa de modo positivo (e.g.
Barnett & Hyde, 2001; Grzywacz & Bass, 2003) ou negativo (e.g.
Russell & Hwang, 2004) ao papel parental.
Método
Participantes
Neste estudo participaram 532 famílias bi-parentais,
casados ou em união de fato. As mães tinham idades
compreendidas entre os 19 e os 50 anos (M = 34.24; DP =
4.76) e os pais entre os 23 e os 60 anos (M = 36.44; DP = 4.76).
As habilitações literárias das mães variavam entre os 4 e os 21
anos de escolaridade (M = 12.99, DP = 4.25), tal como as dos
pais (M = 11.62, DP = 3.81). As idades das crianças oscilavam
entre os 32 e os 77 meses (M =56.38; DP =9.88), sendo 287 do
sexo feminino e 244 do sexo masculino. O início de frequência
da creche oscilou entre os 3 e os 63 meses (M = 22.76, DP =
14.29) e as crianças passavam entre 3 e 12 horas por dia (M =
8.36, DP = 1.29) em contexto escolar. As crianças frequentavam
Jardins-de-Infância de vários distritos de Portugal.
Instrumentos
Escala Conciliar Trabalho e Família (Combining Work and
Family; NICHD, 1991, traduzida e adaptada por Martins, Martins,
Mateus, Osório & Fonseca, 2008). A escala foi elaborada no
âmbito do “Study of Early Child Care and Youth Development”
do NICHD (National Institute of Child Health and Human
Development) e procura analisar a aliança do papel parental
com o papel profissional, medindo as interferências negativas
e positivas, assim como o próprio stress. É um questionário de
auto-administração constituído por 21 itens tratados através
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de uma escala de Likert de 4 pontos, onde 1 corresponde a
“Nada Verdadeira”, e 4 a “Muito Verdadeira”. É composta por três
subescalas: 1) Benefícios Família-Trabalho, constituída por 8
itens (alfa de .68 para a mãe e para o pai); 2) Constrangimentos
Família-Trabalho, constituída por 13 itens (alfa de .82 para a
mãe e .83 para o pai); 3) Valor Global correspondente ao stress
associados à tentativa de conciliar trabalho e família (alfa de
0.86 para a mãe e de .87 para o pai).
Escala de Experiências Parentais (Parent Role Quality Scale
NICHD, 1991, traduzida e adaptada por Martins, Martins,
Mateus, Osório & Fonseca, 2008). Elaborada no âmbito do “Study
of Early Child Care and Youth Development” do NICHD propõe-se
examinar as preocupações, recompensas e stress associados
à parentalidade, sendo constituída por duas subescalas: 1)
Recompensas e 2) Preocupações, constituídas ambas por 10
itens, permitindo, ainda, calcular o stress parental no geral. É
composto por 20 itens respondidos numa escala de Likert de 4
pontos, que oscila entre (1) - “Não é de todo uma preocupação”
ou “Nada” e (4) - “Preocupação Extrema” ou “Extremamente”. A
escala de Recompensas apresentou um alfa de .80 para a mãe e
de .78 para o pai; a escala de Preocupações um alfa de .83 para a
mãe e de .91 para o pai, e a escala stress parental um alfa de .76
para a mãe e de .81 para o pai.
Procedimentos
As famílias foram recrutadas para o estudo através dos
Jardins-de-infância que frequentavam. Após a autorização das
escolas para contactar os pais, foram enviadas cartas para todas
as famílias com crianças em idade pré-escolar, informando os
pais dos objectivos e procedimentos do estudo. Foi-lhes pedido
que indicassem se aceitavam ou não participar; se sim, assinaram
um consentimento informado. Todos os procedimentos éticos,
relativos à recolha e tratamento dos dados foram respeitados.
Este projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Proteção de
Dados (organismo Português que tutela a recolha de dados). Os
instrumentos foram respondidos individualmente por mães e
pais. Finalmente os dados foram tratados utilizando o programa
estatístico SPSS.
que sugere que ambas as figuras parentais tendem a demonstrar
visões concordantes sobre a conciliação da vida profissional com
a vida familiar.
Variáveis sociodemográficas parentais e a conciliação entre trabalho e
família
Obtiveram-se correlações positivas significativas entre a
dimensão dos benefícios na perspetiva da mãe e as habilitações
literárias maternas, r = .12; p = .01, e paternas , r = .08; p =
.04. Estas, apesar de fracas, indicam que a mãe tende a retirar
mais benefícios da relação entre o trabalho e a família quando
ambos os progenitores possuem habilitações literárias mais
elevadas. Verificou-se, também, uma correlação positiva
significativa entre o número de horas que a mãe trabalha e as
respostas maternas na dimensão Constrangimentos FamíliaTrabalho, r = .13; p = .01). Na perspetiva materna, quanto mais
horas passadas no emprego maior a interferência do trabalho
na família, indicador das dificuldades em conciliar estes dois
domínios. Não se verificaram outras correlações significativas
das dimensões da conciliação trabalho-família com as variáveis
sociodemográficas associadas às figuras paternas ou às crianças.
Concordância parental nas três dimensões da Escala de Experiências
Parentais: Preocupação, recompensa e stress parental
Analisou-se, ainda, o grau de concordância entre as
respostas maternas e paternas nas três dimensões: Preocupação,
r = .46, p = .00, Recompensa, r = .37, p = .00, e Stress parental, r
= .38, p = .00, sendo as correlações significativamente positivas
significativas e moderadas sugerindo que as figuras parentais
tendem a partilhar a sua visão das experiências parentais.
Diferenças em função do género dos filhos nas Experiências Parentais
Para averiguar se existiam diferenças significativas em
função do género das crianças nas três dimensões da escala de
Experiências Parentais realizaram-se análises de variância de
medidas repetidas, com o género como variável inter-sujeitos e
as versões do pai e da mãe como variável intra-sujeitos.
Resultados
Concordância parental na escala Conciliar Trabalho e Família
De modo a avaliar o grau de concordância entre as respostas
maternas e paternas nas dimensões da escala Conciliar Trabalho
e Família, utilizou-se o Coeficiente de Correlação de Pearson.
Os valores, situados entre .29 e .40, revelam correlações
significativas moderadas e positivas entre todas as dimensões, o
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Tabela 1. Média e desvio-padrão das respostas maternas e paternas consoante
o género das crianças nas três dimensões da Escala de Experiências Parentais
Dimensões
Raparigas
Rapazes
M
DP
M
DP
Preocupação
Mãe 2.30
0.51 2.25
0.51
Pai
2.25
0.52 2.22
0.49
Recompensa
Mãe
Pai
3.80
3.77
0.27
0.33
3.81
3.70
0.27
0.45
Stress Parental
Mãe
Pai
3.09
3.04
0.30
0.33
3.06
2.99
0.31
0.37
A única diferença significativa entre as experiências
parentais em função do género foi registada na subescala de
recompensa na perspetiva do pai, F (1, 531) = 4.1, p<.05,
considerando este que a recompensa na experiência parental é
superior quando filhos são raparigas.
A conciliação entre o trabalho e a família e as experiências parentais
Utilizando-se o Coeficiente de Correlação de Pearson,
analisou-se associação entre as diferentes dimensões das
escalas “Conciliar Trabalho e Família” e “Experiências Parentais”.
Os resultados ilustrados na tabela 2, apontam para a existência
de resultados significativos (embora fracos ou moderados) entre
as diferentes dimensões do conflito trabalho/família e a escala
de preocupação e de stress parental. Os pais sentem um maior
nível de preocupação e de stress quando tem maior dificuldade
em conciliar o trabalho com a família. Finalmente foi encontrado
uma correlação significativa entre os benefícios do trabalho e a
dimensão recompensa.
Tabela 2. Correlações entre as Escalas: Conciliar Trabalho e Família e
Experiências Parentais
Preocupação Recompensa Stress Parental
Mãe Pai
Mãe Pai Mãe Pai
Stress FamíliaMãe .32** .16**
.26** .14**
Trabalho
Pai .10* .26**
.18* .18**
Constrangimentos Mãe .32** .17**
Família-Trabalho
Pai .13** .31**
Benefícios Família- Mãe
Trabalho
Pai
Nota: **p<.01; *p<.05
.23** .12**
.09*
.18**
.11**
.10* .29**
.21**
Discussão
Nos últimos anos a sociedade tem sofrido profundas
alterações que se refletem em alterações nos papéis assumidos
por homens e de mulheres e nas dinâmicas entre os diferentes
contextos em que se movem. Quer o homem, quer a mulher
parecem reconhecer e assumir atualmente a importância
dos papéis desempenhados na esfera familiar e profissional
procurando um equilíbrio entre a satisfação pessoal e profissional.
O mundo laboral, nomeadamente, as empresas têm vindo a
tomar consciência de que a inflexibilidade pode ter um efeito
adverso na produtividade, aumentando proporcionalmente
os níveis de stress dos seus colaboradores, de absentismo e de
insatisfação no trabalho (Theunissen et al., 2003). Porém, nem
sempre o equilíbrio entre o trabalho e a família é possível ou fácil
de atingir.
No presente estudo as respostas de ambos os pais sugerem
o sentimento de que o trabalho tende a interferir mais com a
família do que o inverso, o que poderá indicar que desejariam
ter maior disponibilidade para a família (Theunissen et al.,
2003). No entanto, não deixam de admitir que os benefícios
resultantes da relação entre estes dois domínios se sobrepõem
aos seus constrangimentos. Os resultados obtidos enquadramse na teoria expansionista (Barnett & Hyde, 2001), que sustenta
os efeitos positivos advindos da multiplicidade de papéis
assumidos por ambos os pais, afastando-se da ideia preconizada
pela teoria funcionalista (Parsons & Bales, 1955, cit. por Barnett
& Hyde, 2001) que esta pluralidade de papéis acarreta efeitos
nocivos. Nesta amostra a relação entre os domínios família e
trabalho não parece ser conflituosa. Com efeito, os pais indicam
a possibilidade de uma convivência que reflete maioritariamente
um desempenho onde ambos os contextos se parecem ter
influência benéficas (e.g. Barnett & Hyde, 2001; Grzywacz &
Bass, 2003; Muchinsky et al., 1998; Wilkie, Ferree & Ratcliff,
1998).
Relativamente às experiências parentais, é a dimensão da
recompensa que assume maior destaque, na opinião de ambos
os progenitores indicando que a parentalidade está associada
mais a sentimentos positivos do que à preocupação ou ao stress.
A literatura sugere ser expectável que a preocupação e o
stress parental surjam mais facilmente associados a contextos
onde, na opinião dos progenitores, se verifique a interferência de
um destes domínios no outro, emergindo mesmo uma relação
entre o trabalho e a família pautada pelos constrangimentos e
pela insatisfação (e.g. Duxburry & Higgins, 1991; Frone et al.,
1992). Os benefícios resultantes da relação entre trabalho e
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família estão, também, positivamente associados às experiências
parentais em concreto às dimensões de recompensa (na opinião
de ambos os pais) e de stress parental, mas neste caso apenas na
perspectiva paterna.
O facto da dimensão dos benefícios surgir associada de
forma positiva à recompensa explica-se na medida em que uma
boa relação entre trabalho e família se relaciona mais facilmente
com uma experiência parental gratificante, como defendido
pelas teorias expansionistas (Barnett & Hyde, 2001). No entanto,
tal não se verifica em relação à associação entre os benefícios e o
stress parental na perspetiva paterna. É possível que a conquista
de benefícios, resultantes da relação entre o trabalho e a família,
não se faça sem sacrifícios, podendo associar-se a um esforço
paterno considerável, onde a correspondência às exigências
de ambos os contextos se pode traduzir numa parentalidade,
também, marcada pelo stress. As atuais exigências,
designadamente a nível social, cultural e económico, podem
justificar tais resultados (Magnusson & Stattin, 1998; Gershuny,
2001; Theunissen et al., 2003; Plantin, 2007).
Verificou-se, ainda, que os benefícios percecionado pelas
mães e as habilitações literárias de ambos os progenitores
encontram-se significativamente correlacionados. As profissões
associadas a habilitações literárias superiores poderão usufruir
de um horário laboral mais flexível, facilitando, assim, um
melhor equilíbrio entre o trabalho e as atividades familiares.
Adicionalmente, o facto de as mulheres com habilitações
literárias superiores tenderem a investir mais nas suas carreiras
profissionais poderá levá-las a facultar e a ambicionar uma
participação paterna mais ativa ao nível da organização e
prestação de cuidados (Monteiro et al., 2006), podendo
contribuir para uma relação mais equilibrada e conciliatória entre
o trabalho e a família. Contrariamente, os trabalhos de Marshall
e Barnett (1993) indicam que os pais com empregos de maior
prestígio, mais conotados com habilitações literárias elevadas,
têm maior probabilidade para relatar uma relação conflituosa
entre o trabalho e a família. Por outro lado, os resultados revelam
também que as mães referem maior interferência do trabalho
na família e maiores constrangimentos em função do número
de horas que passam no emprego, o que vai ao encontro do
reportado por Marshall e Barnett (1993).
Por fim, registaram-se diferenças significativas em função
do género das crianças para as respostas paternas sobre a
recompensa parental. Segundo os progenitores as experiências
vivenciadas nas relações com as suas filhas parecem ser mais
gratificantes, comparativamente, com as relações com os
rapazes. Esta associação poderá dever-se ao facto dos rapazes
serem mais conotados com a agressividade do que as raparigas
(Turner & Gervai, 1995), tendo estas maior tendência a adotar
um comportamento empático, mais obediente e cooperante
com os pais, procurando, mais do que os rapazes, a aprovação
do adulto (Eisenberg, Fabes, Schaller & Miller, 1989). Por outro
lado, os próprios progenitores tendem a demonstrar mais afeto
com as raparigas do que com os rapazes, associando-as mais
facilmente a um comportamento meigo (Fagot & Hagan, 1991).
O estudo da ecologia familiar poderá contribuir para uma
melhor compreensão da organização das relações da criança
no micro-sistema familiar e do seu desenvolvimento social
posterior. Será importante repensar o papel materno e paterno.
As crianças necessitam de pais afetuosos e competentes, que
possam efetivamente satisfazer as suas necessidades e promover
o seu desenvolvimento emocional, social, cognitivo e físico. Elas
beneficiam, certamente, quando ambos os pais são capazes de
se envolver e estão investidos nos seus cuidados e educação.
Referências
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Recebido em novembro/2012
Revisado em fevereiro/2013
Aceito em abril/2013
**Agradecimentos: Os autores gostariam de agradecer a todas as mães e pais
que aceitaram participar neste estudo, financiado em parte pela F.C.T (PIHM/
GC/0008/2008) e pela Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género. Os
autores gostariam ainda de agradecer a todos os colegas da linha 1, Psicologia do
Desenvolvimento, da UIPCDE pelos seus comentários valiosos.
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REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Coming out: realidade social e conflito psíquico dos homossexuais*
Coming out: social reality and psychic conflict in homosexuals
Alexandra Maiffret(a)**, Doris Vasconcellos-Bernstein(b)
Resumo: As pesquisas atuais mostram que o coming-out é um caminho longo que pode liberar o sujeito mas que
também pode apresentar riscos psicopatológicos que decorrem da confrontação com os tabus da sociedade. Para
compreender este processo é preciso utilizar conceitos teóricos suficientemente amplos a fim de abarcar os pontos
de vista da psicologia e da sociologia. Por um lado, vamos expor a posição original de Freud sobre a homossexualidade,
a qual foi bastante distorcida pela Associação Psicanalítica Internacional que aderiu aos preconceitos do inicio do
século XX. Os terapeutas que acompanham seus pacientes no processo do coming-out precisam estar atentos aos
movimentos contra-transferenciais originados no preconceito inconsciente pois estes podem bloquear a elaboração
do paciente. Por outro lado, vamos abordar as pesquisas sociológicas contemporâneas que permitem constatar
objetivamente as diferentes etapas do processo do coming-out. Descreveremos as quatro etapas principais:
sensibilização, confusão identitária, conciliação e engajamento. O objetivo deste artigo é explicitar os processos
psíquicos em ação, e pôr em evidência os mecanismos de defesa do Ego mobilizados para reduzir a dissonância e o
sofrimento do indivíduo.
Palavras-chave: Homossexualidade, Coming-out, Psicopatologia, Sociologia, Psicanálise.
Abstract: Current research shows that coming out is a long process that can release the subject but it can also
present psychopathological risks resulting from the confrontation to the society taboos. To understand this process it
is necessary to use theoretical concepts sufficiently broad to encompass the views of psychology and sociology. On
one hand, we expose the original Freud’s position on homosexuality, which was quite distorted by the International
Psychoanalytic Association that adhered to the prejudices of the early twentieth century. Therapists who assist
their patients in the process of coming-out need to be aware of the counter-transference movements originated
on unconscious prejudice because they can block the patient’s perlaboration. On the other hand, we address the
contemporary sociological research that allows an objective observation of the different stages of the process of
coming out. We describe the four main steps: sensitization, identity confusion, reconciliation and engagement. The
purpose of this article is to explain the psychological processes at work, and to highlight the defense mechanisms of
the ego mobilized to reduce the dissonance and suffering of the individual.
Keywords: Homosexuality, Coming-Out, Psychopathology, Sociology, Psychoanalysis.
* Este artigo foi publicado em francês na revista L’Information Psychiatrique, 2004 ; 80 (5) : 395-401. Coming out : réalité sociale et
conflit psychique chez les homosexuels. http://www.jle.com/fr/revues/medecine/ipe/e-docs/00/04/01/A7/article.phtml
a Psicóloga clínica.
**E-mail:[email protected]
b PhD, Professora de psicopatologia clínica, Instituto de Psicologia, Universidade Paris Descartes.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
9
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16
Atualmente a homossexualidade parece se integrar como
modo de vida cada vez mais reconhecido nas sociedades
ocidentais. O casamento homossexual em países como a França,
e em certos estados dos Estados Unidos da América (Califórnia,
Oregon, ...) ratificou a visibilidade institucional que se instala
progressivamente no nosso pais. Este processo de aceitação
social se desenvolveu desde os anos ’60 nos Estados Unidosa,
levando a Associação Americana de Psiquiatria a modificar
o DSM III (Disease Statistical Manual) [3]. A partir de 1973, a
homossexualidade não foi mais considerada como um estado
patológico. Ela desapareceu da nosografia do DSM IV, mas os
profissionais da saúde mental continuam a encontrar pessoas
para as quais ainda é difícil se fazer aceitar com sua inclinação
homossexual. A transição (coming out), percebida como
necessária e finalmente essencial à coerência psíquica, continua
a provocar um pesado sofrimento psíquico.
O sofrimento psíquico provém da dissonânciab consciente
entre a pulsão, que é atraída por uma pessoa do mesmo sexo, e
o julgamento de valor relativo a esta atração que foi integrado
à identidade do sujeito. O desejo homossexual é reconhecido,
mas imediatamente rejeitado por ser egodistônico. Este conflito
intrapsíquico decorre da interiorização dos preconceitos da
cultura veiculados pelos pais, como observou Freud (1905):
“… nas sociedades em que a inversão não é considerada como
um crime, podemos constatar que ela corresponde plenamente
às inclinações sexuais de um número não negligenciável de
indivíduos”. Na prática clínica, observamos que este caso de
figura é o mais frequente. O objetivo deste artigo é explicitar
o processo psíquico que permite reduzir a dissonância e o
sofrimento do indivíduo.
Sabemos que certos indivíduos acabam encontrando
espontaneamente as vias de libertação que lhe permitem
elaborar o conflito; eles então se aceitam como homossexuais.
Entretanto não sabemos qual é a frequência de autolimitação da
perturbação na ausência de tratamento.
homossexual. Mas a utilização do verbo to come na forma
progressiva – coming – veicula a ideia da dimensão temporal,
de uma ação que se prolonga no tempo.
Por um lado, certas pesquisas atuais no campo das ciências
sociais mostram que o coming-out é um caminho longo que
pode levar à liberação mas que representa também riscos
psicopatológicos. Correlações significativas foram encontradas
entre homossexualidade e depressão e/ou suicídio (Trembaly,
1995), ansiedade (Bosker, 2003), vergonha e solidão. Estes
sintomas testemunham de uma retração pessoal e social
associadas ao sofrimento psíquico; eles são o resultado de
um conflito intrapsíquico. Por outro lado, pesquisadores
(Pennebaker, Kiekolt-Glaser, Glaser, 1988) documentaram os
efeitos benéficos sobre a saúde somática correlatos à revelação
de um segredo traumático. Esta constatação que corrobora a
observação clinica mostra o interesse de apoiar o paciente que
deseja tentar esta empreitada. Compreender os riscos desta
provação pode esclarecer os profissionais da saúde mental que
são levados a acompanhar indivíduos ao longo deste percurso.
O coming-out é um processo psicodinâmico pelo qual os
componentes do Ideal do Ego são reorganizados de maneira
a estabelecer uma reavaliação positiva das pulsões e permitir
assim uma certa restauração narcísica do Ego.
O conceito de normal e de patologia está longe de ser
independente do contexto social no qual se integra. O relativo
reconhecimento social aferido à homossexualidade nestas
últimas décadas ainda não conseguiu neutralizar os efeitos
destruidores do preconceito cultural. Se o conflito se passe
no espaço psíquico entre o Ego e a pulsão, ele foi ai inoculado
pela internalização dos julgamentos do meio social afetivo.
Para compreender este processo é preciso utilizar conceitos
teóricos suficientemente amplos a fim de abarcar os pontos de
vista psicanalítico e sociológico pondo assim em evidência os
mecanismos mobilizados nestes dois níveis.
Perspectiva psicanalítica
Problemática
Um longo caminho cheio de ciladas leva o indivíduo desde
o primeiro reconhecimento de uma excitação homossexual até
ele se definir como homossexual. Os anglofones chamam a este
processo coming-out. Em geral o que se retém desta expressão
é a sua finalidade, ou seja, a reivindicação publica da identidade
a Os acontecimentos de Stonewall do dia 27 de junho de 1969
deram origem ao movimento gay pride.
bDissonância: conceito introduzido por Carl Rogers.
Corresponde à noção de conflito intrapsíquico.
O enigma da homossexualidade interessava muito a Freud
(1905) para quem “… o interesse sexual exclusivo do homem pela
mulher também é um problema que requer uma explicação e não
alguma coisa que seja óbvia …”. Nesta mesma nota adicionada
aos Três ensaios sobre a teoria sexual em 1915, Freud deixa clara
a sua hostilidade a toda forma de discriminação dizendo que
“a pesquisa psicanalítica se opõe com a maior determinação à
tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos
enquanto grupo particularizado”.
10
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16
Freud (1905) considera a identidade sexual como uma
variável independente da escolha de objeto: “ … nos homens,
a mais completa virilidade psíquica é compatível com a inversão”.
Mas é preciso reconhecer, no entanto, que a homossexualidade
permanece ainda frequentemente incriminada na literatura
psicanalítica atualmente. O que Freud diz a este respeito
sempre foi prudente e comedido ao longo de toda a sua obra.
Nos últimos anos, Rudinesco (2002) publicou um trabalho
de análise documentada a este respeito, e seu esclarecimento
é muito edificante. Compreendemos assim como foi que,
desde 1921, a política pragmática adotada pela Associação
Psicanalitica Internacional instaurou a repressão contra a
homossexualidade argumentando então que, aos olhos do
mundo, a homossexualidade “é um crime repugnante: se um
dos nossos membros o cometesse, atrairia um grave descrédito à
nossa teoria”. A homofobia se torna assim a doutrina oficial da
Associação Psicanalítica Internacional desafiando a opinião de
Freud.
Nosso artigo explora o paradigma da homossexualidade
masculina, mas, no essencial, o processo de aceitação e de
revelação da homossexualidade feminina pode ser comparável.
Mencionaremos as variantes mais significativas quando for o
caso.
Stoller (1968) descreveu como se organiza a identidade
de gênero do sujeito durante o desenvolvimento psicossexual
em função das mensagens explicitas e implícitas, assim
como das fantasias dos pais. A identidade de gênero se fixa
muita cedo, desde o terceiro ano de vida. Ela será em seguida
enriquecida e colorida pelas identificações secundárias durante
o desenvolvimento. Mas a identidade de gênero não determina
automaticamente a escolha do objeto sexual, a qual se
constrói durante o período edipiano. A identidade de gêneroc
se articula à escolha de objeto sexual pela experiência afetiva
da criança, correlata às mensagens parentais correspondendo
frequentemente à heterossexualidade. Quando acontece que a
pulsão se dirija para objetos do mesmo sexo biológico, o sujeito
se vê em falta face ao que ele percebeu como esperado dele de
acordo com a sua identidade de gênero. O Ideal do Ego repele o
Ego considerando-o em falta devido ao fato de abrigar pulsões
c A identidade de gênero é um conceito introduzido por Money
et al. em 1955 [7]. O conceito de identidade sexual utilizado
correntemente se compõe na realidade do sexo biológico
combinado à identidade psíquica que corresponde ao papel
culturalmente esperado das pessoas pertencentes a este sexo
biológico. O mais das vezes estes dois aspectos se superpõem
mas pode acontecer que eles não coincidam. O caso mais
impressionante é o dos transexuais quando um indivíduo com
um sexo biológico perfeitamente normal desenvolve uma
identidade psíquica que corresponde ao sexo oposto.
que o sujeito sempre percebeu como sendo desprezadas.
Para Freud (1915), o Ideal do Ego apresenta m aspecto
individual integrado ao complexo de Édipo mas igualmente um
aspecto social pois se trata do “Ideal comum de uma família, de
uma classe social, de uma nação”. Ele se formou sob a influência
crítica dos pais, representantes da Cultura. Este conflito entre o
Ideal do Ego, que condena a homossexualidade, e o Ego, que
deve controlar a pulsão, tem consequências graves. Por um
lado as repercussões depreciam a autoestima do sujeito e o
sentimento de pertencer a um grupo que o ama e o aceita. Por
outro lado, conformar-se às regras do grupo torna-se impossível.
A perspectiva clínica de Freud (1920) mostra que é inútil
procurar « curar » um sujeito da sua homossexualidade quando
esta está instalada. A cura psicanalítica não deve em caso algum
ter este objetivo: “.. transformar um homossexual plenamente
desenvolvido em um heterossexual é um projeto que tem tanta
possibilidade de êxito quanto o projeto inverso (tornar um
heterossexual homossexual) salvo que, por boas razões práticas,
este último nunca é tentado”. Portanto é mais possível reorientar
os conteúdos do ideal do Ego que tentar modificar a direção da
pulsão.
Na adolescência, a pulsão se intensifica e busca se satisfazer
no investimento de um objeto exterior. Porque ela ataca o Ideal
do Ego, a libido homossexual é inibida e volta ao Ego para
ser transformada, sob a influência da consciência moral, em
angústia, vergonha e culpa. Esta consciência da culpa era, para
Freud (1920), “a angústia de ser castigado pelos pais, ou mais
exatamente, perder o amor deles” e podemos encontrar esta
angústia no medo de ser rejeitado que manifestam os indivíduos
homossexuais. Segundo este modelo, esta incompatibilidade
libera a libido narcísica, o que provoca uma diminuição da
autoestima devido à não-realização do Ideal. Assim sendo,
o Ego deve enfrentar um dilema: satisfazer as exigências do
Ideal do Ego ou satisfazer a pulsão mas, como quer que seja,
uma das duas exigências permanecerá insatisfeita. Quer esta
frustração atinja a capacidade para gozar da sua sexualidade
ou a capacidade de satisfazer o modelo de comportamento
culturalmente esperado, de toda maneira ela determina uma
ruptura da libido provocando uma ferida narcísica e uma
diminuição da autoestima.
Devemos considerar aqui a hipótese de R. Stoller (1971)
sobre as consequências da perda do sentimento de ser um
homem. Segundo este autor, a identidade sexual e o sentimento
de pertencimento que lhe está ligado são essenciais para uma
definição de si. No medo da homossexualidade, Stoller vê uma
ameaça à masculinidade. O sentimento de pertencer ao grupo
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16
de homens se repercute sobre a própria identidade do sujeito e
do seu sentimento de existir. Compreende-se assim que tomar
consciência desta incompatibilidade, sentida como inata, marca,
para o indivíduo, uma fase de inibição e de isolamento na qual
seus desejos e suas necessidades sexuais permanecem (na sua
grande maioria) ocultos.
Perspectiva sociológica
No fim do século XX, numerosas publicações tentaram
construir modelos teóricos de integração identitária da
homossexualidade. Todas elas referem-se a diferentes estágios
neste percurso (Cass, 1979; Cass, 1984 ; Coleman, 1982; Lee,
1977; Troiden, 1977) . Podemos reter quatro, mas é preciso
lembrar que estas etapas não são nem lineares nem exclusivas,
e que pode existir flutuações e regressões. Mais ainda, para cada
etapa, tentaremos cruzar os dados provenientes da observação
sociológicas com aqueles, mais específicos da dinâmica
intrapsíquica da teoria psicanalítica.
Primeira fase: sensibilização
Esta sensibilização é mobilizada durante a infância, antes
da puberdade. Ela se caracteriza por uma percepção geral da
marginalidade e do sentimento de diferença em relação aos
pares do mesmo sexo.
Uma pesquisa de Bell et al. (1981) mostra que os
homossexuais (homens) são quase duas vezes mais numerosos
que os heterossexuais (homens) a se sentir diferentes durante
a infância (72 % versus 39 % para, respectivamente, N = 573
e N = 284). Esta constatação se refere essencialmente aos
comportamentos de gênero: estes meninos estão menos
interessados do que os outros no que concerne o esporte e
a atração pelas meninas. Muitos se sentem mais femininos,
mais inclinados para ocupações femininas. Da mesma maneira,
as moças homossexuais, quando meninas, se sentiam mais
masculinas e mais investidas em atividades esperadas do
outro sexo. Bell mostra que as experiências sociais da infância
desempenham um papel mais importante no sentimento de
diferença do que as esferas emocionais ou sexuais. Podemos
compreender esta observação se consideramos que a infância
é a fase chave da socialização dos critérios de gênero, e que
as categorizações sociais em termos de homossexualidade, de
heterossexualidade e de bissexualidade ainda não adquiriram
um sentido de comportamento sexualizado.
Se evocamos os conceitos psicanalíticos, e principalmente
os trabalhos de Stoller (1968), observamos que a infância
é a fase durante a qual se constrói a identidade sexual. Sob a
influência dos pais, da família, dos meios de comunicação
de massa e da sociedade em geral, o menino se separa da
feminidade da sua mãe para constituir o que será mais tarde
a sua identidade masculina (Greenson, 1968). Em função das
atitudes percebidas no meio ambiente ele aprendera os critérios
da virilidade e se definirá como membro do grupo dos homens.
O modelo masculino está em estreita relação com o modelo
do desenvolvimento heterossexual. Assim, um homem deve
ser forte, ativo, independente, responsável, mas também, por
analogia, gostar de mulheres e ter filhos com elas. As mídias
difundem amplamente esta imagem que é enfatizada pela
própria sociedade no interesse da reprodução da espécie. Assim
sendo, podemos dizer que o menino ao crescer adquire o papel
de gênero próprio ao seu sexo biológico, assim como o modelo
de tornar-se heterossexual de acordo com o Ideal do Ego e a
norma social. A outra face do Ideal do Ego, individual, integrada
ao complexo de Édipo, permanece ligada aos valores dos objetos
primários, referência graças à qual o menino vai avaliar seus
próprios desejos e seus comportamentos. A libido homossexual,
longe de corresponder às formações ideais individuais e
culturais, ao aceder à consciência assinala uma discordância com
as exigências do Ideal do Ego. Assim, a autoimagem é alterada
de maneira desfavorável e o sentimento de valor pessoal
enfraquece.
Segunda fase: confusão identitária
Esta fase se organiza durante a adolescência quando o jovem
começa a pensar que seus sentimentos e seus comportamentos
podem ser percebidos como « homossexuais ». Mas a ideia
de que ele é potencialmente homossexual é dissonante com
a autoimagem preponderante até então. Este é o ponto mais
característico desta fase, pois este estado sexual de ambiguidade
cria a confusão identitária.
Segundo Schäfer (1976), quatro fatores concorrem para
esta confusão:
a) O primeiro corresponde à alteração da percepção. O
fato de se perceber como diferente dos outros cristaliza-se na
percepção de si como sexualmente diferente dos outros durante
a adolescência. O despertar da pulsão atrai as experiências
emocionais e a excitação sexual.
b) O segundo fator responsável é a dimensão de realização
sexual que agora é acessível. Estes indivíduos descobrem aos
poucos que a sua atração sexual e o tipo de excitação que sentem
12
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16
não se constrói pelo mesmo modelo que o de seus pares e que a
sua realização está condenada.
c) O terceiro fator explicativo é o estigma que cerca a
homossexualidade. Com efeito, ele desencoraja o adolescente a
descobrir a sua sexualidade e os seus desejos.
d) Enfim, o quarto fator corresponde ao nível de
conhecimento adquirido sobre a homossexualidade. A este
respeito, as cidades e as vilas não conhecem os mesmos limites.
Assim sendo, o conhecimento especifico desta orientação sexual
e dos seus membros pode ser colorido por representações sociais
mais ou menos valorizadas mas jamais neutras.
Esta confusão identitária demanda o uso de estratégias de
defesa. Cinco modalidades foram descritas: a negação (Cass,
1979; Coleman, 1982), a reparação (Schäfer, 1976), a evitação
(Cass, 1979), a redefinição e a aceitação (Cass, 1979; Troiden,
1977).
a) A negação corresponde à recusa do sujeito de reconhecer
o seu comportamento homossexual, os seus sentimentos e as
suas fantasias. Uma clivagem profunda e penosa se instala na
personalidade.
b) A reparação é a tentativa de erradicação dos desejos
homossexuais pelo investimento de outros setores da vida
(profissional, artístico, politico, ...). Este deslocamento dos
investimentos sobre valores caucionados pelo Ideal do Ego pode
ser provisório. A sublimação pode fazer parte desta estratégia.
c) A evitação é um modo de defesa através da formação
reacional que pode tomar formas diferentes ainda que todas
impliquem na negação das tendências homossexuais julgadas
inaceitáveis pelo sujeito. Esta defesa pode dar lugar a diferentes
manobras: – o investimento excessivo das características
masculinas para se conformar com o ideal de virilidade
(Humphreys, 1972) esperado;
– o estabelecimento de relações heterossexuais a fim
de evitar dúvidas da família e amigos quanto a uma eventual
homossexualidade;
– a recusa de tomar conhecimento de qualquer coisa
que se refira à homossexualidade através do isolamento das
representações com o fim de impedir toda confirmação da sua
realidade na vida do sujeito.
– a adoção de uma atitude homofóbica resultante de um
mecanismo de conversão da pulsão no seu contrário que visa a
manter à distância toda atração homossexual;
– a multiplicação de experiências heterossexuais ou
sua utilização como procedimento terapêutico através do
comportamento;
– o uso de substâncias tóxicas na esperança de escapar
virtualmente ao conflito é um mecanismo próprio às
personalidades dependentes.
Esta lista não é exaustiva. E possível que outros mecanismos
de defesa sejam empregados, mas estes devem ser então
compreendidos com relação à organização psicodinâmica de
cada sujeito em particular.
d) A redefinição da orientação sexual é um método de
defesa contra a confusão identitária na qual o sujeito se define
finalmente como bissexual ou como homossexual provisório. A
pessoa reconhece os seus desejos e os integra na imagem global
que se faz dela mesma.
e) A estratégia de aceitação corresponde ao reconhecimento
de experiências da infância, de sentimentos, de fantasias e de
comportamentos homossexuais como fazendo parte do sujeito
sem que estes sejam rejeitados. Um maior conhecimento das
características do grupo social homossexual e de seus membros
facilita esta aceitação pois ela permite sair do isolamento e
modificar a referência do Ideal do Ego. Quando a definição da
homossexualidade só está ligada a conteúdos desqualificados,
o sujeito permanece sem elementos cognitivos para proceder a
uma reavaliação mais positiva da pulsão e continua impedido de
aceder à aceitação.
É frequente que esta segunda etapa do desenvolvimento da
identidade homossexual seja prolongada porque ela necessita
a redefinição e a explicação de comportamentos socialmente
condenados e cercados por um estereótipo pejorativamente
conotado de maneira muito acentuada. Esta etapa marca
assim uma fase na qual o sujeito sente-se em conflito entre
seus desejos e o que é esperado dele. Podemos articular estes
dados com a antiga classificação psiquiátrica conhecida como
homossexualidade egodistônica (contraria ao Ego). Deve-se
proceder a uma avaliação muito cuidadosa quando o sujeito
verbaliza o desejo de mudar a orientação da sua escolha de
objeto. A resolução deste conflito não pode evitar o tempo
indispensável à perlaboração. Um grande risco pode se introduzir
insidiosamente quando o clinico adere aos estereótipos sociais
e teóricos (Eizirik 1993): a contratransferência pode levar à
falta de neutralidade quanto aos valores pessoais do terapeuta
(Vasconcellos, 2001).
Terceira fase: conciliação
Esta fase torna-se possível quando a estratégia de aceitação
reabsorveu ao menos parcialmente a confusão identitária. Esta
fase começa no fim da adolescência. Os elementos fundamentais
residem na auto definição de si como homossexual, a aceitação
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16
da identidade homossexual, a associação com outros do mesmo
grupo, as primeiras experiências sexuais e a exploração da cultura
homossexual. Esta é a primeira etapa do processo mais amplo de
atualização da identidade também chamado coming-out.
Cass (1979) insiste no fato de que nesta fase a identidade é
mais tolerada do que deliberadamente aceita. Se as experiências
são positivas, o grupo é percebido como estruturado e os
sentimentos de isolamento e de alienação diminuem. Por outro
lado, se as primeiras experiências são negativas, o indivíduo se
crispa nos processos de defesa que já citamos.
Segundo Humphreys (1972), a pessoa, nesta fase, deve
reorganizar o estigma e encontrar uma saída. Quatro estratégias
são possíveis: A primeira consiste em « capitular », isto é,
renunciar à satisfação pulsional homossexual. Esta estratégia
significa a interiorização do estereótipo social. O Ideal do Ego
não consegue reformular seus valores e o Ego se inclina.
A segunda estratégia, chamada minsterlization em inglês,
consiste na adesão ao proselitismo adotando uma atitude
homossexual fortemente estereotipada. O grupo homossexual
toma o lugar do Ideal. O terceiro método consiste em conservar
os atributos e os comportamentos de gênero próprios da
heterossexualidade mas se definindo como homossexual ao
mesmo tempo. Estas pessoas admitem viver uma “vida dupla”.
Este compromisso demanda um esforço psíquico continuo para
manter o mecanismo de clivagem consciente, o qual se alimenta
de energia inconsciente. Freud (1912) assinalou a dificuldade
para realizar a síntese de emoções e de desejos sexuais num
conjunto coerente, no qual o parceiro é visto como objeto de
amor e de prazer sexual unindo as correntes terna e sensual. Freud
considera esta tarefa especifica da adolescência, e ele a considera
árdua, especialmente para as pessoas de sexo masculino. O
desenvolvimento da sexualidade humana civilizada demanda a
instauração da clivagem entre a ternura e a sexualidade durante
a fase do Édipo, encorajando o recalcamento e a proibição da
pulsão sexual. Na adolescência, todo ser humano deve tecer os
vínculos entre a ternura e a sexualidade para dirigi-los ao objeto
de amor. Ora, o objeto de amor homossexual não facilita esta
revalorização pulsional. Uma consequência psicopatológica
pode ser então a instauração da clivagem dos objetos: um
objeto homossexual que herda a corrente de ternura e objetos
sexuais pulsionais anônimos, alvos da pulsão vergonhosa e tão
desprezíveis quanto ela. Esta psicopatologia não é exclusiva da
homossexualidade e Freud a descreveu a variação heterossexual
deste mesmo processo de clivagem dos objetos: a mãe e a puta
(Freud, 1910).
A quarta estratégia refere-se ao investimento massivo
do grupo homossexual que pode chegar até a contestação da
heterossexualidade a qual é assimilada à causa do estigma.
Esta estratégia é descrita por Chasseguet-Smirgel (1984) como
característica das personalidades perversas.
Esta terceira fase na edificação da identidade homossexual
(conciliação) aparece no fim da adolescência. Durante esta fase,
a pulsão sexual reaparece na sua forma adulta, procurando
a satisfação numa relação de intimidade. Esta fase também
questiona os ideais parentais e sociais e corresponde à busca de
novos modelos identificatórios para permitir que a pulsão sexual
encontre um modo de satisfação adaptado.
As teorias sociológicas expliquam que o sujeito que não
encontra no seu grupo uma imagem valorizada dele mesmo terá
tendência a procurar outro grupo que veicule uma representação
mais positiva. No melhor dos casos, o sujeito encontrara um
modelo satisfatório proposto pelos homossexuais no seio do
seu próprio grupo. Esta seria a imagem de uma pessoa realizada
tanto do ponto de vista físico como afetivo, cujo comportamento
é regido por regras, códigos e normas próprios ao grupo de
pertencimento em questão.
Vale lembrar que nesta fase a identidade é mais tolerada
do que deliberadamente aceita. Isto pode significar que o lado
social da instância idealizada ainda está em construção devido
às diferentes identificações, mas que a libido narcísica ainda
não se fixou de volta ao Ego e não pode portanto garantir um
sentimento de autoestima suficiente para a livre circulação da
pulsão sexual.
Quarta e última fase: engajamento
Esta fase corresponde à adoção da homossexualidade como
modo de vida. Plummer (1975) a descreve como “mais fácil,
mais atraente e menos custosa que tentar ser heterossexual” Em
outros termos, trata-se da aceitação de si com a identidade e a
escolha de objeto homossexual.
Este engajamento tem implicações internas e externas
para o indivíduo: Em nível interno, concerne vários elementos:
o significado atribuído à identidade homossexual a qual,
encorajada pelo grupo, se aproxima mais de um estilo de vida,
de uma identidade própria, que de um simples comportamento
sexual; a percepção de uma identidade autêntica, conforme aos
desejos e às necessidades profundos, e que pode ser qualificada
de satisfatória; o grau de alivio e de bem-estar ligado à revelação
destas tendências.
Em nível externo, as relações de amor terno e sensual
estabelecidas com uma pessoa do mesmo sexo são sinal de
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16
um engajamento na homossexualidade. Da mesma forma,
a revelação de sua identidade a pessoas não homossexuais
corresponde a uma etapa suplementar no processo de comingout : amigos heterossexuais, família, colegas de trabalho,
superiores hierárquicos, etc. Nota-se, entretanto, segundo os
resultados da enquete de Bell e Weinberg (1978), que esta
revelação não se faz sempre diante de todas estas pessoas: 54 %
das moças homossexuais e 53 % dos rapazes homossexuais
disseram aos seus amigos heterossexuais; 85 % das moças e
76 % dos rapazes dizem que o seu empregador não está a par.
Quanto aos pais, 37 % das moças e 31 % dos rapazes disseram
ao pai, enquanto, respectivamente, 42 % e 49 % disseram à
sua mãe.
O último índice de engajamento externo reside nas novas
estratégias personalizadas de enfrentamento do estereotipo
social. Mesmo reconhecendo seu pertencimento ao grupo dos
homossexuais, certos indivíduos abandonam as estratégias
anteriormente desenvolvidas para privilegiar a discrição e a
invisibilidade social.
Para concluir
Esta dupla perspectiva, sociológica e psicanalítica, permitiu
mostrar como o estereotipo social da homossexualidade afeta
profundamente a formação e a organização da identidade do
sujeito que experimenta pulsões homossexuais. Não podemos
esquecer que a « escolha » de objeto sexual não é nem racional
nem deliberada: ninguém “escolhe” ser heterossexual nem
homossexual. A heterossexualidade, no entanto, está mais
facilmente de acordo com os ideais herdados dos pais e da
sociedade. Para os homossexuais, um trabalho psíquico intenso
de reorganização das referências ideais é necessário para chegar
a uma síntese identitária integrando as pulsões ao Ego.
Do ponto de vista psicanalítico, o sujeito deve conseguir
a integração progressiva das diferentes identificações num
conjunto coerente ao seio do Ego. Esta reformulação se torna
compatível com as exigências do Ideal do Ego, permitindo
o retorno da libido narcísica para o Ego e a liberação da
libido homossexual que poderá então buscar satisfação num
objeto desejado e querido. Daí resulta certa compreensão do
que se chama o « orgulho homossexual » ou gay pride que
corresponderia à nova possibilidade de realização pelo Ego
das exigências do Ideal reconstruído. Então esta escolha de
objeto sexual seria percebida como adequada à norma do
grupo de referência e traria um sentimento de identidade e de
pertencimento, com a autoestima reconquistada.
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Recebido em abril/2013
Revisado em junho/2013
Aceito em junho/2013
16
R E L ATO D E P E S Q U I S A
A relação materno-filial na anorexia nervosa: um estudo psicanalítico
The maternal-filial relationships in anorexia nervosa: a psychoanalytic study
Márcia Rosane Moreira Santana(a)*, Martha Marlene Wankler Hoppe(b)
Resumo: Este artigo aborda a relação materno-filial em meninas adolescentes com anorexia nervosa. O tema é
tratado por meio de conceitos da psicopatologia psicanalítica na integração com aspectos da relação mãe e filha.
Trata-se de um estudo de caso explanatório. As participantes da pesquisa foram duas meninas anoréxicas e suas
mães. As categorias analisadas foram a configuração familiar, a dinâmica da relação materno-filial e o papel materno
na construção da subjetividade da menina anoréxica. A partir da análise destas categorias, concluiu-se que as mães
não permitiram que suas filhas se constituíssem enquanto sujeitos separados destas. Assim, a anorexia desenvolve-se
como uma tentativa desesperada da menina na direção de tornar-se independente e criar um sentido de self diferente
de sua mãe. As mães das meninas anoréxicas, possivelmente, “faltaram”,quando não investiram de forma dosada
em suas filhas e, atualmente, estas meninas estão acometidas de um sintoma, o qual acaba, em uma dimensão
intrapsíquica, por representar esta falha materna.
Palavras-chave: Psicanálise; Anorexia Nervosa; Relação Materno-Filial.
Abstract: This article talks about the maternal-filial relationships in teenager girls with anorexia nervosa. This subject
is treated with concepts of the psychoanalytic psychopathology which are integrated in the mother-daughter
relationships. It is an explanatory case study. The subject of research was two anorexic teenager girls and their
mothers. The categories analyzed were the familiar configuration, the dynamic of mother-daughter relationships and
the mother role in construction of subjectivity of anorexic teenagers. From these categories, it was concluded that
the mothers did not permit her daughters to be separated from. This way, the anorexia is developed like a desperate
attempt of a teenager girl in the direction to become independent and to create a sense of self different than her
mother. The mothers of anorexic girls, possibly “missed” when not invested so measured in their daughters and currently,
these girls are afflicted with a symptom, which ends in an intrapsychic dimension, to represent this maternal failure.
Keywords: Psychoanalysis; Anorexia nervosa; Maternal-filial relationships
a Psicóloga, Especialista em Informação Científica e Tecnológica em Saúde pelo Grupo Hospitalar Conceição/ FIOCRUZ, Mestranda em
Ciências Médicas: Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
*E-mail: [email protected].
b Psicóloga, Dra. em Psicologia do Desenvolvimento e Orientadora do trabalho.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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A anorexia nervosa é um transtorno do comportamento
alimentar que se desenvolve principalmente em meninas
adolescentes e mulheres jovens. Caracteriza-se por uma grave
restrição da ingesta alimentar, busca incessante pela magreza,
distorção da imagem corporal e amenorréia. Este processo
psicopatológico é influenciado por fatores biopsicossociais
(Cordás, 2004).
O presente artigo versará sobre a relação materno-filial em
meninas com anorexia nervosa, partindo do pressuposto da
psicanálise de que a relação da mãe com o bebê nos primeiros
anos de vida é significante e decisiva para a constituição psíquica
da criança.
Para o desenvolvimento do tema são apresentados conceitos
de autores clássicos tais como Freud, Winnicott, Melanie Klein
e Françoise Dolto, os quais serão complementados com o
entendimento de estudiosos psicanalíticos contemporâneos.
O estudo propõe que o tema seja analisado frente a três
categorias: Configuração Familiar; Entendimento Dinâmico da
Relação Materno-Filial na Anorexia Nervosa, e O Papel Materno
na Construção da Subjetividade da Menina Anoréxica. Nestas
categorias serão englobados os aspectos relevantes encontrados
nas duas duplas pesquisadas, onde será possível perceber
que o sintoma pode estar representando, em uma dimensão
intrapsíquica, uma falha materna.
Por fim, será possível compreender como se caracteriza a
configuração familiar da menina anoréxica, investigando os
aspectos pertinentes da relação mãe e filha e o papel materno
na construção da subjetividade destas meninas. Buscando
encontrar fatores comuns entre as duplas de mães e filhas
pesquisadas.
Método
Delineamento
Para realização desta pesquisa foi utilizado o delineamento
qualitativo tendo como estratégia de pesquisa o estudo de casos.
Minayo (1993), destaca que a pesquisa qualitativa
trabalha com o universo de significativos, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes que não podem ser quantificados,
e que corresponde a um espaço mais profundo das relações,
dos processos e dos fenômenos. Deste modo, para examinar
acontecimentos contemporâneos relevantes, utiliza-se como
estratégia o estudo de caso. Yin, (2001), destaca que o objetivo
dos estudos de caso exploratórios são estipular um conjunto
de elos causais em relação ao fenômeno, sendo apresentado
normalmente sob a forma de narrativa.
Participantes
Participaram do estudo, duas meninas, de 15 e 16 anos,
portadoras de Anorexia Nervosa, que estavam em tratamento
no Centro de Atenção Psicossocial e na Internação Psiquiátrica
do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), e suas mães. O
trabalho segue as normas da Resolução 196/96, sendo aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, sob o número 07-585.
Instrumentos
O principal instrumento utilizado para elaboração do
presente artigo foi uma entrevista semiestruturada, realizada
com as meninas anoréxicas, buscando compreender como se
configurou a dinâmica da relação materno-filial. A entrevista
contemplou aspectos referentes ao desenvolvimento da menina,
sua percepção em relação à doença, forma como percebe sua
história de vida, expectativas sobre o futuro, sendo aprofundada
nas questões referente a sua relação com a mãe. Posteriormente,
foi realizada uma entrevista com as mães, com o objetivo de
estudar como se estabelece a relação mãe e filha. A entrevista
com a mãe iniciou-se com uma amamnese, e após foi explorada
a percepção da mãe em relação ao desenvolvimento da filha,
assim como aspectos da relação entre elas.
A entrevista semiestruturada apresenta certo grau de
estruturação, já que se guia por uma relação de pontos de
interesse do entrevistador, que ele vai explorando ao longo do
curso (Gil, 1999).
Procedimento de coleta de dados
A autora do estudo participou como observadora do grupo
de transtornos alimentares ocorrido no Centro de Atenção
Psicossocial do HCPA. Após, as adolescentes, participantes
do grupo foram convidadas para a pesquisa. Duas meninas
manifestaram interesse em participar, logo após houve o convite
para as suas mães. Uma das entrevistas ocorreu na internação
psiquiátrica do referido Hospital, pois uma das adolescentes
necessitou de internação durante o decorrer do estudo. As
entrevistas com as duas duplas foram realizadas no consultório
médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sendo estas
gravadas para posterior transcrição.
Análise dos resultados
Os resultados obtidos por meio das entrevistas com as
duplas pesquisadas foram analisados frentes às seguintes
questões norteadoras: Como ocorreu a relação mãe-bebê nestes
casos? Quais as expectativas da mãe em relação a esta filha?
Qual a percepção da adolescente sobre sua mãe? Quais aspectos
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relevantes da relação materno-filial em meninas anoréxicas? Por
Ana comenta: “eu gostaria que minha mãe tivesse me dado
fim, será identificado fatores comuns entre as duplas de mães mais limites”. Porém quando relata este desejo, ela novamente
e filhas pesquisadas, mais especificamente buscando aspectos não cita os pais e sim somente a mãe, o que reafirma a hipótese
relevantes da relação materno-filial em meninas anoréxicas.
citada anteriormente de que o pai não exerce um papel de
importância nesta configuração, sendo que Ana não consegue
Resultados
vê-lo como um pai que esteve junto à mãe, proporcionando a
educação dos filhos.
Para melhor entendimento e compreensão, os casos serão
Desta forma, percebe-se que se o pai não consegue
expostos mediante três categorias: Configuração Familiar; exercer sua função na família, permanecendo como uma
Entendimento Dinâmico da Relação Materno-Filial na Anorexia sombra materna, ele, provavelmente, também não conseguiu
Nervosa, e O Papel Materno na Construção da Subjetividade apresentar-se na relação entre a mãe e filha. Assim, podeda Menina Anoréxica. Nestas categorias serão englobados os se inferir que ele não exerceu sua função de pai, que seria
aspectos relevantes encontrados nas duas duplas pesquisadas. proporcionar o “corte” na relação narcísica primitiva de mãe
Serão usados nomes fictícios para as duplas, sendo que no e filha. Sendo assim, esta pode ser uma característica paterna
primeiro caso, Maria será a mãe e Ana (16) a filha. Já no segundo, que influenciou para que a dupla mãe-filha continuasse por se
Sabrina será o nome atribuído à mãe e Fernanda (15) à filha.
perceber unida narcisicamente, em uma relação em que o outro
não é percebido (como será abordado a seguir).
Configuração Familiar
Esta configuração familiar é bastante preocupante, pois o
A configuração familiar é um fator relevante na constituição bebê, para sair do narcisismo primário, precisa de um pai que
de algumas patologias. Desta forma, será feito um breve relato proporcione a castração, mostrando para o bebê que existe um
para situar a configuração das famílias em que estão inseridas as terceiro na relação que até então era simbiótica entre a mãe e a
meninas anoréxicas participantes desta pesquisa.
criança. A presença paterna possibilita que o bebê tenha uma
No primeiro caso, Ana é uma menina de 16 anos, que visão de mundo externo, proporcionando desta forma, a saída
começou a desenvolver anorexia aos 14 anos. Seus pais são para um pensar livre, ou seja, pensar sobre a mãe, desta vez,
casados e têm dois filhos, Ana e outro menino um ano e oito como um ser separado dela.
meses mais novo.
Já no caso de Fernanda, seus pais são separados e ela não
O pai nesta família parece exercer uma posição bastante possui irmãos. A figura paterna também parece configurar-se
passiva, pois durante as entrevistas percebe-se que sempre foi e como “inoperante”. Sabrina comenta: “Pedro nunca deu amor
é Maria quem toma todas as decisões familiares. Como exemplo, e carinho para Fernanda, ele atendeu sempre somente as
pode-se citar a situação da doença de Ana, na qual o pai esteve necessidades financeiras... ele acha que é só dar as coisas, mas
sempre presente fisicamente, porém nota-se que ele não tem ela precisa de atenção”, e ainda completa: “Ah! O Pedro nunca
autonomia, parecendo não ocupar a função paterna dentro do foi nem sequer uma reunião da escola da Fernanda, ele nunca
ciclo familiar. Ana relata: “meu pai sempre foi muito sentimental, foi em nada, era sempre somente eu quem estava presente em
mas sempre fica atrás de minha mãe... quando eu estava doente todos os eventos da vida dela”. Por meio deste comentário, fazele foi guerreiro também, porém todas as decisões de me se necessário pensar que Sabrina passou à Fernanda a imagem
internar e procurar minha cura foram da minha mãe”.
de um pai distante, não presente. Fernanda, por sua vez, por não
Maria, por sua vez, quando comenta sobre as mudanças na ter recebido o carinho e amor do pai, pode ter mergulhado mais
vida familiar após a anorexia desenvolvida por Ana, diz: “minha intensamente nesta relação com a mãe (como será abordado no
vida mudou muito, eu passei 80 dias internada com ela, meu próximo capítulo).
marido ah..., é, meu filho teve que aprender a se virar sozinho,
Fernanda relata com muita tristeza que seu pai a chamou
pois sempre era eu quem fazia tudo pra ele”. Neste trecho fica de “louca” e por isso, ela tentou suicidar-se. Percebe-se, aqui,
evidente que o pai ocupa um segundo plano nesta família, uma diferença entre a relação que se estabeleceu nos dois casos:
encoberto pela função da mãe, pois mãe e filha não conseguem No caso de Ana, o pai parece nem ter figurado enquanto pai,
em nenhum momento de suas narrativas, sequer comentar sobre permitindo uma relação simbiótica entre mãe e filha. Já no caso
a atuação da figura paterna na relação familiar, transmitindo a de Fernanda pode ter havido um “reconhecimento” do pai, no
imagem de um pai “inoperante”.
momento em que há uma escuta da fala paterna (apesar de ser
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de crítica e não de apoio). Porém, a triangulação propriamente
dita, parece não ter ocorrido, pois não há a presença de um
terceiro, considerado como outro diferente da dupla mãe-bebê.
Fernanda pode ter iniciado o processo de triangulação, mas não
a vivenciou em sua plenitude. Ou seja, houve um preâmbulo do
Complexo de Édipo, pois a menina reconhece a figura paterna,
e demonstra isto, por meio da preocupação com o que o pai
“pensa” a respeito dela. Contudo, não houve uma castração bem
sucedida, pois Sabrina demonstra através de seu relato (citado
anteriormente), que o pai parece não ter sido “suficiente” para
estabelecer o corte na relação da filha com a mãe.
Logo, esta menina não tendo uma saída Edípica bem
sucedida, ela fica presa no ir e vir entre a indiferenciação com
a mãe e a busca do reconhecimento do pai. Ou seja, de acordo
com Dolto (2007), com a castração paterna a criança percebe
seu lugar enquanto filha deste homem e desta mulher, porém
não havendo esta fase, a menina fica eternamente com o
questionamento “Quem sou eu?”.
Neste âmbito poderia ser pensado: Por que os pais destas
meninas não conseguiram exercer suas funções de pai? Como
[uma tentativa de] explicação, vale citar o entendimento de
autores clássicos tais como Freud (1920/1996) e Winnicott
(1978), bem como autores atuais como Checchinato (2007), que
entendem que é importante que a mãe deixe que a criança sinta
um espaço vazio, para que ela consiga reconhecer-se enquanto
sujeito. Assim, a ausência da mãe é o único meio da criança se
reconhecer enquanto separada desta, e também reconhecer
um terceiro na relação. Este fato remete-nos ao comentário de
Sabrina: “[...] eu nunca deixei que Fernanda precisasse de nada,
eu sempre dei tudo o que eu podia e sempre estive por perto
para defendê-la [...]”. Portanto pode-se inferir que esta mãe não
permitiu que a menina sentisse a “ausência” necessária, para a
construção de sua subjetividade. Contudo, com a “sufocante”
presença materna, a filha acaba ficando presa na mãe, e não se
autoriza a desejar o amor deste pai, pois, apesar de ter havido
o reconhecimento da presença paterna, a mãe parece que
impossibilitou que ele ocupasse seu espaço de pai na relação,
não permitindo que a castração se efetivasse. Assim, a mãe,
querendo suprir sozinha todas as necessidades da menina,
transmite para Fernanda uma imagem negativa de figura
paterna.
Sabrina conta que, atualmente, está vivendo com um
namorado, ao qual Fernanda pediu para chamá-lo de pai, porém
a mãe não permitiu. Nota-se que Fernanda pede para a mãe
um espaço diferenciado desta, por meio do pedido de um pai.
Este pedido da menina é mais um indicativo de que ela passou
pelo processo de triangulação, pois reconhece e sente falta de
um terceiro na relação entre ela e a mãe. A menina parece fazer
uma tentativa para que a mãe permita que “alguém” ocupe este
terceiro lugar faltante na relação, porém a mãe parece não estar
disposta a deixar que outra pessoa faça parte desta relação mãe
e filha.
Neste sentido, observa-se que Maria também parece
não exercer adequadamente sua função materna com Ana,
pois ambas descrevem sua relação de mãe e filha como uma
relação de “amizade”. Maria conta: “confidencio para minha
filha coisas sobre seu relacionamento com meu esposo, não
para jogá-la contra o pai mas para ela saber como realmente é
um casamento”. Nota-se no discurso de Maria que ela utiliza a
negação secundáriaa, visto que ela inconscientemente desejaria
“jogar a filha contra o pai”. Por meio do mecanismo utilizado por
Maria na sua narrativa, pode-se pensar que o Pai não exerceu
sua função nesta configuração, também, por que a mãe parece
não ter permitido que isto ocorresse.
Assim, parece que Ana e Fernanda se desenvolveram dentro
de famílias cuja característica principal é um pai que confere com
as características citadas por Morgan (2002), sendo este distante
e pouco afetivo, ou seja, inerte, que não ocupou seu espaço na
relação mãe e filha, não exercendo sua função na interdição da
overdose materna. Neste sentido, o pai permanece, em um “outro
patamar”, deixando que mãe e filha vivessem intensamente a
relação narcísica. São pais que, talvez, não exerceram sua função
porque havia uma mãe que demandava suprir sozinha todas
as necessidades de sua filha, fazendo com que, desta forma, a
menina se percebesse como uma extensão da mãe.
Entendimento Dinâmico da Relação Materno-Filial na Anorexia Nervosa
Depois de ter uma visão sobre a configuração familiar das
meninas anoréxicas, pode-se pensar que, se estas mães fixam
uma relação narcísica com suas filhas, não permitindo a entrada
do pai, será que elas são capazes de investir libidinalmente de
forma constante e dosada nestas meninas?
Quanto ao desenvolvimento de Ana, Maria diz: “sempre
ocorreu tudo normal com Ana [...], porém, a única coisa que eu
me culpo é de ter deixado ela um ‘pouquinho’ de lado quando
nasceu o meu outro filho”. Apesar de negar mais tarde esta
afirmação, dizendo que é coisa de “sua cabeça”, Maria também se
defende constantemente, dizendo que Ana sempre teve as duas
avós por perto as quais a auxiliaram nos cuidados com a menina.
Observa-se que Maria, ao negar a afirmação, utilizou o que Freud
a
Conceito explicado por Freud no texto A Negativa (1925/1976),
como sendo uma negação do desejo inconsciente que por
alguns instantes emergiu para o campo consciente.
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(1925/1976) chamou de mecanismo de defesa da denegação,
pois acolheu na consciência uma idéia reprimida, embora não
fosse capaz de reconhecer o vínculo afetivo correspondente.
Portanto, percebe-se na narrativa que realmente houve
uma descontinuidade no investimento materno de Maria em
Ana. Em outro momento, Maria diz: “quando eu tinha que levar
um filho no médico ou precisava sair, o outro tinha que ficar com
as avós”, porém em seu discurso constata-se que o fato ocorria
com freqüência, sendo sempre Ana quem ficava com as avós.
Esta poderá ser uma atitude que demonstre o quão intenso
foi o desinvestimento de Maria em Ana, parecendo que a mãe
não conseguiu ser mãe para os dois filhos, tendo então que
“abandonar” Ana quando nasceu seu segundo filho.
Dolto (2007) diz que o bebê precisa de uma constância
objetal, ou seja, o objeto não necessariamente precisa ser a mãe,
mas ele deve ser sempre o mesmo. Porém, percebe-se que Ana
não teve um objeto constante, pois parece que suas necessidades
ora eram atendidas pelas avós, ora pela mãe, o que pode ter
sido mais um motivo que fez com que Ana não conseguisse
reconhecer seu corpo de maneira adequada, acarretando com
que a menina criasse uma imagem inconsciente de corpo
distorcidab.
Ana comenta ainda que, quando estava muito mal, sua mãe
a obrigava a comer, mas ela tinha vontade de morrer. Este desejo
de Ana pode ter ocorrido por que a menina talvez não estivesse
suportando a hostilidade causada pela internalização destes
objetos ruins. Objetos estes que são, de acordo com Fernandes
(2006), introjetados muito precocemente. Sendo assim, a
menina passa a atacar o corpo como forma de ataque a estes
objetos maus.
Já no segundo caso, Sabrina, quando descobriu que estava
grávida, foi rejeitada por seu pai, tendo que sair de casa; além
disto, seu companheiro e pai do bebê, envolvia-se muito
pouco com a gravidez. Sabrina diz: “passei a entender que
era só eu e ela, acabou sendo uma relação mãe e filha muito
forte [...] passei a entender que a única pessoa que eu tinha a
partir daquele momento era a Fernanda”. Percebe-se que esta
relação bastante intensa que se estabeleceu entre mãe e filha,
quando o bebê nem havia nascido, mostra o quão intenso foi
o investimento de Sabrina sobre seu bebê, o qual nasceria com
um papel inconscientemente já estabelecido pela mãe: “ser sua
fiel companheira”.
Fernandes (2006) comenta que a mãe, gradativamente,
vai permitindo ao bebê a construção das categorias de tempo,
b Para Françoise Dolto (2007), a imagem inconsciente de corpo
é a representação mental de corpo que o indivíduo tem de si
mesmo e esta ligada a sua história.
espaço, a distinção entre fora e dentro, vazio e cheio. De acordo
com Winnicott (1978), possibilitar a experiência do vazio
supõe que a mãe tenha capacidade para introduzir intervalos
de tempo entre as necessidades do bebê e sua resposta.
Porém, Sabrina mostra, por meio de sua narrativa, que nunca
permitiu que Fernanda chorasse, pois a menina tinha horário
para todas as refeições, ela apenas “resmungava” e a mãe
atendia imediatamente aos apelos da filha. Portanto, pode-se
pensar que Fernanda não teve o seu espaço, para se reconhecer
enquanto um Ser separado de sua mãe, e dona de um corpo, o
qual tem sua autonomia e que suas necessidades muitas vezes
não serão atendidas narcisicamente.
Seguindo este raciocínio, vale destacar novamente o trecho
em que Sabrina comenta: “[...] eu nunca deixei que Fernanda
precisasse de nada, eu sempre dei tudo o que eu podia e sempre
estive por perto para defendê-la [...]”. Assim, quando Sabrina
não possibilita a Fernanda intervalos entre sua presença e
ausência, não permite que a filha se dê conta de que existe um
meio externo, e assim acaba por reforçar o narcisismo primário
da menina, reafirmando a percepção errônea do bebê de que ele
é uma extensão de sua mãe. Deste modo, é relevante destacar
Checchinato (2007) que comenta: “ser pai e ser mãe é a arte
de saber marcar a presença ou ser inútil, dispensável, na hora
certa”. Assim, o bebê pode se dar conta de que ele não tem
tudo o que precisa, para que sua libido possa deixar de ser toda
investida no ego e passe a ser parcialmente investida no objeto,
possibilitando de acordo com Freud (1914/1996) que o bebê
saia do narcisismo e comece a se apropriar do mundo externo.
Observa-se, no caso de Fernanda, que Sabrina talvez
tenha “pecado pelo excesso”, não proporcionando intervalos
de vazio, parecendo “sufocar” Fernanda com cuidados materno
exagerados, pois esta menina parece que não teve “tempo” para
se perceber enquanto próprio corpo. Já Maria, no momento
em que se afastou de Ana com o nascimento do segundo filho,
pode ter atendido somente as necessidades físicas de Ana,
sem o correspondente afeto que o bebê necessita. Percebe-se
neste caso que a mãe teve uma separação “brusca” de sua filha,
quando “escolhe” o bebê mais novo para ser cuidado por ela.
Assim, Ana não conseguiu se apropriar de suas sensações e
continuou por perceber-se como uma extensão da mãe, ou seja,
Maria pode ter “pecado pela falta”. O modo como estas meninas
foram cuidadas por suas mães remete-nos a Fernandes (2006),
quando ele comenta que, para que a mãe possa interpretar os
sinais do corpo do bebê, que não lhe pertence mais, ela precisa
dar provas de sua capacidade de investir libidinalmente, e de
forma suficiente, nesse corpo. Desta forma, como colocaria
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25
Winnicott (1978), a mãe tem uma função decisiva na construção
da saúde mental de seu bebê.
Sabrina e Maria atenderam as necessidades das filhas,
por meio das suas necessidades, não percebendo suas filhas
como seres autônomos, mas como uma extensão delas. Nestas
condições, o bebê se desenvolve preso na impotência e na
dependência desse objeto primário.
Pode-se dizer que estas mães provavelmente falharam, ou
melhor, faltaram na relação com suas filhas. Esta falta pode se
caracterizar pela falta do “vazio”, no caso de Fernanda, ou pela
falta de investimento, no caso de Ana. Porém, esta falta vivida
como falha materna, inconscientemente estabelecida, pode
ter feito com que a menina não conseguisse desenvolver um
sentido de self, pois o investimento materno parece ter sofrido
descontinuidades, e assim, estas jovens não conseguiram se
apropriar de seu corpo e este, então, se ausentou enquanto corpo
próprio.
As mães das anoréxicas, de acordo com Fernandes (2006),
parecem desvalorizar a expressão dos sentimentos e dos afetos,
o que ocorre com Maria, quando salienta que “as avós sempre
estiveram por perto... mas os cuidados de mãe eu sempre dei”.
Demonstrando-se pouco continentes diante dos sofrimentos
decorrentes das experiências de vida e, assim, passando a
preocupar-se somente com os cuidados físicos, pois Maria
refere-se sempre à filha como “um bebê fofinho”, “sem doenças”,
“apenas teve bronquite que foi curada antes da anorexia”.
Sabrina, por sua vez, também se refere à Fernanda como
um bebê “bem cuidado”, que sempre teve hora para todas as
refeições, então ela nunca permitiu que Fernanda chorasse
pedindo a comida, pois dava imediatamente. Percebe-se que
ambas as mães, quando indagadas sobre o desenvolvimento das
filhas, respondem somente citando características físicas destas
meninas, não reconhecendo os fatores emocionais presentes
neste contexto.
Por meio disto, pode-se pensar que estas mães, desde
cedo, investiram em um corpo físico, pois Maria comenta que
sonhava que Ana emagrecesse, mas nunca deixou que Ana
percebesse seu desejo. Porém inconscientemente, ou por vezes
até conscientemente, ela poderia estar transmitindo este desejo
à filha, o que, de acordo com Morgan (2002), pode ter sido um
fator preditivo de insatisfação corporal. Desta forma, a menina
faz de tudo para atingir as expectativas desta mãe. Gabbard
(1998), diz que estas meninas tentam atingir as expectativas
das mães, porque não se reconhecem como donas de um self
indiferenciado de suas mães, portanto não suportam a idéia de
distanciarem-se destas.
Para Bagattini (1997), citado por Cimenti (1998), as
anoréxicas têm o seu corpo e as vicissitudes dele apropriados
por sua mãe através de um perverso controle obsessivo de
suas funções. Observa-se no presente estudo que essas mães
passam a ser donas do corpo das filhas. Sabrina comenta que,
desde pequena, Fernanda é muito vaidosa, e que ela elogia
constantemente o corpo bonito da filha, estimulando-a a
frequentar academia e estéticas. No caso de Ana, é possível
deparar-se com um trecho da entrevista onde Maria relata:
“apesar de gorda, Ana era bonitinha”. Neste comentário, a mãe
demonstra explicitamente o desejo, ao qual ela nomeia de
“sonho”, de que a filha emagrecesse. Deste modo, evidencia-se
um vínculo entre mãe e filha de característica perversa, no qual
a menina mostra condutas demasiadamente adaptadas de “boa
menina”, que é um convite ao elogio e que preenche o vazio
narcisista de ambas.
O Papel Materno na Construção da Subjetividade da Menina Anoréxica
Conforme analisado anteriormente, a descontinuidade
do investimento de Maria na relação mãe-bebê com Ana e
a sufocante presença materna nos primeiros anos de vida de
Fernanda podem ter feito com que estas meninas não tenham
conseguido se constituir enquanto sujeitos independentes de
suas mães e donas de um próprio corpo. Ou seja, estes conflitos
existentes entre mãe-bebê influenciaram para que o ego destas
meninas tenha sofrido perturbações, prejudicando a formação
da subjetividade, e assim, fazendo com que estas delineassem
um self de acordo com o de suas mães, pois Ana e Fernanda
não são capazes de se perceberem enquanto sujeitos distantes
de suas mães e donas de uma vida independente. As duas
meninas dizem que suas mães são sua fortaleza, comentam que
são melhores amigas e que suas mães são indispensáveis para
o seu viver.
Nota-se nestas meninas que, por terem desenvolvido um
falso self, não conseguem desprender-se destas mães e se
aceitar como uma adolescente que faz parte de um grupo e que
tem seus interesses próprios desta fase. Ana comenta: “eu amo
estar com minha mãe, ela é minha fortaleza, não gosto de me
separar dela [...] passamos muito tempo juntas, eu até aprendi
a fazer crochê para ficar mais com ela”. Já Fernanda diz: “minha
mãe é tudo pra mim, eu gosto mais de sair com ela e com suas
amigas do que com minhas próprias amigas”. Percebe-se que
Ana e Fernanda precisam estar ao lado de suas mães, vivendo
de acordo com a vida destas, demonstrando-se incomodadas
quando tem que se afastar das mães.
Vighietti (2001) comenta que a anoréxica nunca foi
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preparada para a experiência de separação e individuação da
mãe, própria da adolescência, pois com a intrusividade materna
a menina não consegue desenvolver autonomia. Levando em
conta as considerações do autor acima citado, pode-se dizer que
as meninas pesquisadas também não conseguiram se separar de
suas mães, pois elas comentam que somente sentem-se felizes
quando estão ao lado de suas mães e realizando atividades com
elas.
Percebe-se que, imediatamente antes dos sintomas
anoréxicos surgirem, houve uma tentativa destas jovens de
tornarem-se independentes. Ana, no início da adolescência
começou a fazer parte de um grupo de roqueiras; já no caso
de Fernanda, Sabrina conta que, antes da doença, estava
começando a independizar a filha, estimulando que ela saísse
com os amigos e fizesse coisas diferentes das suas: “ela estava
em momento em que já estava se virando sozinha”. Porém, é
interessante observar que foi exatamente neste momento
de possível independização de suas mães que estas meninas
começaram a desenvolver a anorexia nervosa. Pode-se pensar
que estas meninas não suportaram o distanciamento de suas
mães, pois elas percebem-se como parte integrante do self da
mãe, então, separando-se dela é como se estivessem deixando
parte de si.
Diante desta ineficiência, não resta às meninas outra saída,
a não ser tentar, como cita Busse (2004), ter o controle do corpo,
como forma de ter o domínio de si, transferindo para o peso e
para o comer todas suas ansiedades e problemas psicológicos.
O mesmo autor ainda segue dizendo que o sintoma anoréxico
é uma tentativa da menina de estabelecer uma fronteira
entre ela e a mãe. Assim, salienta-se que a Anorexia Nervosa
surge por meio de uma tentativa de auto-cura das meninas
em busca de um real sentido para o self, pois quando tentam
tornar-se independentes, percebem que não são capazes de se
apropriarem de suas vidas.
Porém, esta tentativa de cura através do corpo não tem
sucesso e, conforme Ballone (2003), com o aparecimento da
doença as anoréxicas voltam a ter sentimentos infantis arcaicos
de dependência materna. Este fato apontado confere com os
casos pesquisados, pois Sabrina comenta que Fernanda busca,
atualmente, em alguns momentos “o tratamento que tinha na
infância, a questão do colo, dormir no meu quarto, quando ela
não está bem, é como se ela quisesse voltar para o útero”.Já no
caso de Ana a mãe comenta: “parece que ela gostaria que eu
cuidasse dela como quando era criança”.
Portanto, observa-se no discurso das mães que elas têm
uma influência significativa na fase de independização de suas
filhas, pois tanto Maria quanto Sabrina, demonstraram em
suas narrativas a dificuldade de proporcionar autonomia para
suas filhas. Sabrina comenta: “eu gostaria de criar minha filha
em um castelo de vidro, onde ninguém pudesse machucá-la”.
Esta mãe passa uma imagem durante a entrevista de uma mãe
muito controladora, e isto se nota também pelo comportamento
dela diante das desavenças escolares da filha, em que ela nunca
permitiu que a menina conseguisse responder por si, pois
sempre quando a filha se envolvia em algum conflito com as
coleginhas, era Sabrina quem ia até a escola resolver o problema
por Fernanda. Deste modo, pode-se inferir que esta proteção
materna não foi saudável, pois impediu que Fernanda vivesse
sua própria vida.
Sabrina completa: “a Fernanda é a pessoa mais importante
de minha vida e se depender de mim, estaremos sempre juntas,
tentando resolver tudo o que puder vir a acontecer [...] antes da
anorexia, a Fernanda já estava começando a me ajudar nos meus
problemas”. A mãe de Fernanda demonstra não ter capacidade
para assumir a independência da filha; assim, percebe-se que ela
pressiona a menina no momento que a filha está conseguindo
se independizar, jogando sobre esta a responsabilidade de agora
ajudar e cuidar da mãe. Percebe-se que se delineia um vínculo
de amizade entre mãe e filha, onde Sabrina não deixa marcada
sua função, pois parece que ela não suporta reconhecer que
Fernanda é sua filha e que precisa ter uma vida diferenciada da
sua, e então no momento de possível afastamento, a mãe coloca
na filha também a responsabilidade de sua vida.
Maria conta que, antes da doença, Ana era muito
independente, fazia parte de um grupo de roqueiras e comenta:
“neste grupo eles acham que são independentes”. Percebe-se,
por meio de sua expressão verbal, que esta mãe, igualmente a
Sabrina, não suporta pensar que a filha estava se independizando
dela e se constituindo como ser separado.
Maria parou de trabalhar desde a doença da filha,
parecendo ter deixado sua vida para viver a de Ana. Ela diz: “eu
vivo para meus filhos, porém não me sinto realizada, pois eu
sei que um dia Ana irá casar e eu ficarei sozinha, sem ter me
dedicado o suficiente para mim”. Desta forma, Maria, deixa
entendido que, quando ela precisar, Ana não estará ao seu lado,
isto, consequentemente, põe sobre Ana mais um empecilho
para tornar-se independente, com seus próprios interesses,
pois ela parece já estar “pré destinada” por sua mãe para viver
integralmente e absolutamente ao lado desta.
É notável que estas mães colocam nas filhas a
responsabilidade de acompanhá-las durante toda a vida. Porém
é relevante salientar que Maria comenta que ficará sozinha, com
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25
a possível saída de Ana rumo à vida adulta. Podemos então,
retornar ao entendimento da configuração familiar descrito
na primeira categoria e considerar este trecho como mais um
indicativo de que a mãe criou sua filha para ela, e não permitiu
a entrada de um pai e nem de um marido na relação, pois
seria mais adequado que esta mãe visse o marido como seu
companheiro e não a filha.
Por outro lado, poderíamos retornar ao trecho citado na
primeira categoria, em que Maria comenta: “eu confidencio para
minha filha coisas da minha relação com meu esposo”. Esta fala
de Maria mostra que além de não restringir o espaço da relação
que deveria ser somente do casal, ela ainda invade a menina com
a sua vida conjugal. Assim sendo, introduz na filha uma imagem
negativa de vida a dois, despertando na menina “medo” sobre a
sexualidade e a feminilidade, parecendo não suportar que esta
“se desprenda” da relação narcísica para buscar um parceiro e
assumir as demandas de uma nova fase de vida.
Nota-se, portanto, que Sabrina e Maria são mães que se
apropriaram em parte, do papel de mãe, estabelecendo com
suas filhas uma relação bastante consistente de “amizade e
companheirismo”. Estas mães não ofereceram uma hierarquia
e limites às filhas, evidenciando uma falta da função paterna
instaurada na mãe e pela mãe. Relação esta que pode
dificultar ainda mais com que estas meninas se tornem
independentes, pois, além de assumirem suas vidas, ainda terão
a responsabilidade sobre a vida das mães.
De acordo com Ballone (2003), quando a menina não
consegue comer ela está demonstrando a falha primordial do
desejo de sua mãe para que ela vivesse, pois talvez a vida de
uma filha fizesse com que a mãe não suportasse a sua própria
vida. Assim, observemos o comentário de Ana: “antes da
doença, minha mãe e eu conversávamos muito pouco, mas eu
queria que tivéssemos conversado mais, pois assim eu saberia
desde criança que eu tinha uma amiga”. Poderíamos pensar
diante deste relato, que Maria e Ana nunca assumiram uma
relação de mãe e filha, pois antes da anorexia, parece que
“não se relacionavam” e atualmente são “amigas”. No segundo
caso, Sabrina, com a gravidez de Fernanda, passou por muitos
problemas (rejeição do pai, falta de apoio do companheiro),
o que nos faz pensar que para ela este momento também foi
muito difícil e insuportável, então, ela, como Maria, buscou na
filha laços de amizade, pois para estas mulheres, parece que
seria insuportável psiquicamente serem mães.
Diante dos fatos apresentados, percebe-se que Fernanda e
Ana não aprenderam a gerenciar suas próprias vidas, não sendo
capazes de dirigi-las sozinhas, mostrando-se convictas de que
não possuem qualquer poder e que são ineficientes. Elas vivem
somente de acordo com o self materno, ficando impossibilitadas
de desenvolverem o senso de autonomia, não conseguindo
assim, assumir uma vida diferenciada das de suas mães.
Considerações Finais
Após a análise dos casos apresentados, observa-se que
existem muitos fatores comuns nas duplas pesquisadas. É
possível concluir que as mães destas meninas anoréxicas,
possivelmente, “faltaram” com seus bebês. Porém, esta falta se
deu de forma distinta nos dois casos pesquisados: no caso de
Ana, houve uma falta de investimento da mãe no momento
que nasce seu segundo filho; no caso de Fernanda, esta falta
caracteriza-se como falta de espaço, no momento em que
a mãe sufoca a filha com seus cuidados exagerados. Assim,
compreende-se que as mães das meninas anoréxicas, aqui
estudadas, não investiram de forma dosada em suas filhas e,
atualmente, estas meninas estão acometidas de um sintoma,
o qual acaba, em uma dimensão intrapsíquica, por representar
esta falha materna.
Acredita-se que esta falta materna inconscientemente
estabelecida, influenciou para que as meninas não conseguissem
se desenvolver separadamente das mães e se apropriarem de
seu corpo. Consequentemente, as jovens percebem-se como
uma extensão de suas mães, logo, esta condição faz com que
as anoréxicas desenvolvam um self submetido ao ambiente
e não às próprias necessidades, ou seja, um self submetido
à subjetividade materna. Esta condição de desenvolver um
self submetido ao ambiente e não às próprias necessidades,
Winnicott (1978), chamou de falso self. Além disto, observa-se
claramente que estas mães realizam um provimento material
em detrimento do afetivo, o que contribuiu para a dificuldade de
expressão do verdadeiro self.
A função paterna apresentou-se também de forma diferente
em cada um dos casos, porém não há dúvidas de que estes
pais foram “inoperantes”. No caso de Ana este foi inoperante
por não se apresentar na relação mãe e filha, deixando a filha
mergulhada na relação narcísica com sua mãe. Já no segundo
caso, o pai parece ter se apresentado na relação primitiva de
mãe-bebê, porém não teve “fôlego” suficiente para ingressar
ativamente na díade mãe e filha e proporcionar a castração.
No entanto, permite-se dizer que se estes pais foram
inoperantes, é porque talvez as mães tenham impossibilitado
que estes exercessem suas funções. Percebe-se, por meio de
suas narrativas, que estas mães não permitem a entrada do pai
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25
na relação materno-filial, demonstrando terem uma imensa
dificuldade de independizar suas filhas, parecendo amedrontálas sobre a independência, colocando sobre estas meninas uma
responsabilidade imensa sobre suas vidas, fazendo com que
as meninas não se constituam enquanto sujeitos separados da
figura materna e perpetuem sua condição narcísica.
Acredita-se que a anorexia surgiu na adolescência como
uma reação às demandas das jovens por maior independência.
Estas meninas, que até então viveram de total acordo com
os desejos maternos, tentam na adolescência experimentar
situações próprias que lhes permitam o sentimento de existência.
Porém, por terem construído um falso self, estas meninas não
suportaram se perceber longe das mães. Desta forma, diante de
total ineficiência, é através do controle do corpo que a menina
tenta estabelecer o comando de sua vida e marcar a fronteira
entre ela e a mãe.
Em níveis de estrutura familiar, pode-se pensar que as
trocas amorosas e a afetividade do casal conjugal apresentamse muito pobres. Logo, a afetividade na parentalidade também
se caracteriza de forma precária, o que possivelmente, afeta o
investimento libidinal dos pais sobre seus filhos.
Diante do exposto, acredita-se que esta pesquisa investigou
aspectos que possam estar relacionados com a constituição da
anorexia nervosa tais como, a configuração familiar, dinâmica
da relação materno-filial e o papel materno na construção da
subjetividade da menina anoréxica. Porém, vale salientar que
não são somente estas relações as causas da anorexia nervosa,
pois tal transtorno apresenta uma etiologia multifatorial.
Por fim, estima-se que este artigo possa contribuir de
alguma forma para futuras pesquisas na área. Para tanto
considera-se importante que, em um próximo estudo, a amostra
seja ampliada, a fim de permitir maior abrangência na discussão
acerca do tema e a obtenção de dados mais concisos sobre a
relação materno-filial na anorexia nervosa.
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Cordás, T.A. (2004). Transtornos alimentares: classificação e diagnóstico.
25
R E L ATO D E P E S Q U I S A
A entrevista motivacional e sua aplicabilidade em diferentes contextos:
uma revisão sistemática
Motivational interviewing and their applicability in different contexts:
a systematic review
Lucas Poitevin Bandinelli(a)* , Hosana Alves Gonçalves(b), Rochele Paz Fonseca(c)
Resumo: Este estudo objetivou verificar a ampliação da aplicabilidade da Entrevista Motivacional (EM) nos cuidados à
saúde para além do seu uso nos casos de dependência química devido a ampla gama de estudos que já demonstraram
sua eficácia nesta demanda. O método utilizado foi o da revisão sistemática, com três construtos-pilares: (1) práticas de
cuidado, (2) pressupostos teórico-metodológicos da EM e (3) contexto de saúde. Consultaram-se as bases de dados
PubMed, Medline e EMBASE. Encontraram-se 73 artigos, incluindo-se 16 destes, sendo nenhum latinoamericano. A EM
mostrou-se eficaz em 75% dos estudos, sendo utilizada em sua maioria (n=8) em internação hospitalar, ambulatório
hospitalar (n=4), clínica (n=1), postos de saúde (n=2). Desta forma, verifica-se que a aplicabilidade da EM precisa ser
mais bem estudada e amplificada na saúde brasileira e latinoamericana, em busca de práticas eficazes nos cuidados
aos pacientes.
Palavras-chave: Entrevista Motivacional; Psicologia Hospitalar; Intervenção.
Abstract: This study aimed to verify the expansion on the applicability of the Motivational Interviewing (MI) in
health care beyond its use in cases of addiction because of the wide range of studies that have demonstrated
their effectiveness in this demand. The method used was the systematic review, with three constructs-pillars: (1)
care practices, (2) theoretical and methodological assumptions of MS and (3) health context. Have consulted the
databases PubMed, Medline and EMBASE. 73 items were found, including 16 of these, and any Latin American. MI was
effective in 75% of studies and is used mostly (n = 8) in hospital, outpatient hospital (n = 4), clinical (n = 1), health (n
= 2). Thus, it appears that the applicability of MS needs to be further studied and amplified in the Brazilian and Latin
American health, in search of effective practices in patient care.
Keywords: Motivational interviewing; Hospital psychology; Intervention.
a
b
c
Psicólogo, Residente em Onco-Hematologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
*E-mail: [email protected]
Psicóloga, Mestranda em Cognição Humana no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUCRS.
Prof. Adjunta da Faculdade de Psicologia da PUCRS, Programa de Pós-graduação em Psicologia, área de concentração Cognição
Humana.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
26
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
A Entrevista Motivacional (EM) foi desenvolvida por Miller
e Rollnick e tem como objetivo principal auxiliar o indivíduo nos
processos de mudanças comportamentais, eliciando a resolução
da ambivalência para mudanças de comportamento e estimular
o comprome­timento para a realização dessa mudança por
meio de abordagem psicoterápica convincente e encorajadora
(Miller & Rollnick, 2001). Desta forma, o processo de mudança
de comportamento seria gerado através de uma motivação,
podendo esta ser entendida como um processo dinâmico
segundo o modelo transteórico, desenvolvido por Prochaska e
DiClemente (1983).
O modelo de estágios de mudança (Prochaska & DiClemente,
1983) descreve este processo em etapas de modificação do
comportamento pelas quais o indivíduo passa de forma nãolinear, estando em tratamento ou não. Segundo estes autores,
os estágios observados seriam os de pré-contemplação do
problema, o de contemplação, o de preparação e manutenção.
Utilizada usualmente para casos que envolvam dependências
químicas, com comprovada eficácia nesta demanda, a EM é
uma abordagem relativamente simples e com baixo custo,
sendo baseada em princípios cognitivos como o entendimento
dos problemas e as reações emocionais frente a eles, e visa
estabelecer alternativas para a modificação dos padrões de
pensamentos implementando soluções (Bundy, 2004).
Amplificando esta ideia, Miller e Rollnick (2001) citam
que a EM ao invés de indicar soluções para o paciente, oferece
condições de crítica que propiciem ao mesmo tempo o espaço
para uma mudança natural. Sendo assim, tenta-se buscar as
razões para a mudança em vez de impor ou tentar persuadir a
pessoa sobre ela. Em resumo, a EM orienta os pacientes para
tornarem-se conscientes sobre a transformação necessária,
objetivando sua melhora. Suarez (2011) aponta a aplicação da
EM na adesão dos pacientes em programas de reabilitação e
cita o papel da família neste processo, já que ela acaba atuando
muitas vezes como suporte na compreensão da importância de
aceitar, bem como, trabalhar o que foi recomendado ao paciente.
Em concordância com esta noção, Jungerman e Laranjeira
(1999) salientam a importância de se estudar a aplicabilidade
da EM no Brasil em outras situações clínicas já que hoje em dia
apenas poucos serviços especializados em dependência química
utilizam esta abordagem e ela ainda não foi difundida, apesar
de sua eficácia já ser demonstrada (Andretta & Oliveira, 2005;
Castro & Passos, 2005) dentro deste contexto, podendo ser
estendida para outras formas de atenção em saúde.
Desta forma, podemos caracterizar cuidados em saúde
como intervenções que possibilitem mudanças no quadro
clínico dos pacientes, muitas vezes fornecidas através de
diferentes recomendações nutricionais, farmacológicas e
comportamentais. Contudo, o tratamento para a recuperação
global do paciente envolve igualmente aspectos cognitivos
e emocionais, tendo uma relação direta entre a sua história,
a doença e os significados e crenças atribuídos nesta etapa
(Calvetti, Pelisoli, Nallem & Piccoloto, 2011). Portanto, pensar
em uma ferramenta que viabilize este processo de mudança se
faz necessário, principalmente para os psicólogos que atuam em
contextos de saúde tais como hospitais e postos de atendimento.
Sendo assim, frequentemente ao pensarmos em saúde e
em formas de cuidado, relacionamos essas ideias diretamente
ao ambiente hospitalar, justamente por este se caracterizar
como instituição máxima no que diz respeito ao bem-estar
físico e mental. Confirmando esta premissa, Rosen (1980) cita
que a introdução da medicina profissional dentro do hospital, a
redefinição de seu perfil institucional, o aproveitamento racional
dos recursos disponíveis e as especificações terapêuticas inseridas
dentro deste ambiente, fizeram com que o hospital geral se
convertesse no que hoje conhecemos como um estabelecimento
dedicado exclusivamente aos atendimentos no trato da saúde.
Assim, a inserção do psicólogo enquanto profissional da saúde
neste âmbito se fez necessária, contribuindo para as práticas
existentes na atenção e no cuidado aos pacientes hospitalizados.
Nesse contexto, torna-se importante compreender a
prática da Psicologia Hospitalar, que é um ramo considerado
relativamente novo, tendo em vista que só foi regulamentada há
cerca de duas décadas e, portanto, torna-se necessário explorar
todas as suas variáveis, aprofundando seus conceitos e sua
aplicação (Romano, 1999). Dentro do hospital, o profissional da
psicologia depara-se com diferentes adversidades com as quais
não está preparado, tendo de adaptar-se a este novo contexto e
moldar sua prática clínica de acordo com as necessidades e as
demandas que surgem.
Os pacientes hospitalizados geralmente trazem consigo
problemas relacionados a múltiplas esferas de suas vidas.
Nesse sentido, o trabalho multidisciplinar se constitui em uma
alternativa para auxiliar nos cuidados ao paciente e considerar
as particularidades de todas as áreas da saúde envolvidas neste
processo, auxiliando e orientando as condutas necessárias
para que se obtenha um resultado positivo (Maldaner, Beuter,
Brondami, Budó & Pauletto, 2008).
Através das diferentes abordagens existentes, o psicólogo
poderá utilizar inúmeras técnicas para auxiliar a equipe médica
na resolução do conflito que impede a adesão e no seguimento
do paciente ao tratamento recomendado. De acordo com
27
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
Mazutti e Kitayama (2008), a intervenção psicológica feita no
hospital geral pode se ocupar do alívio dos sintomas depressivos
dos pacientes com relação ao seu período de internação, no
alívio dos quadros de ansiedade, na escuta ativa dos problemas
que envolvem o estar hospitalizado e no manejo verbal com os
pacientes permitindo mudanças cognitivas e comportamentais.
Uma das abordagens que pode ser recomendada para estes
objetivos é a EM, entretanto, sua aplicabilidade como recurso
próprio para auxiliar em outros cuidados de saúde, ultrapassando
o viés da dependência química, ainda não foi estudada em
grande escala merecendo ser explorada devido à eficácia que
possui no auxílio ao indivíduo e nos seus processos de mudanças
comportamentais, propiciando a resolução da ambivalência
para que ocorram tais transformações.
O objetivo deste estudo é o de explorar e avaliar a
aplicabilidade da EM na atenção à saúde além do seu uso na
questão da dependência química, justamente por este tema já
ser muito bem avaliado, além de analisar os resultados obtidos
através da implementação desta ferramenta através de um
panorama traçado à luz de uma revisão da literatura internacional.
Como contexto de aplicabilidade desta ferramenta, pensouse em pesquisar o hospital como local de prática, unindo as
demandas apresentadas na psicologia hospitalar e o uso da EM
como auxílio.
Para alcançar estes objetivos, esta revisão se propõe a
responder às seguintes questões norteadoras: [1] Quais os
lugares, em nível mundial, têm se proposto a estudar a utilização
da EM dentro do contexto hospitalar como ferramenta de auxílio
nos cuidados em saúde? Mais especificamente, qual a inserção
de estudos brasileiros neste panorama internacional? [2] Que
objetivos foram estabelecidos nos estudos analisados? [3]
Dos estudos que se propuseram a analisar sua eficácia/efeito
terapêutico, quais os resultados obtidos? [4] Que evidências
podemos ter para avaliar a sua aplicabilidade dentro do contexto
brasileiro de saúde? Estas questões de pesquisa foram exploradas
principalmente no contexto hospitalar ou a ele relacionado, por
ser muito representativo da atenção terciária à saúde.
teórico-metodológicos da entrevista motivacional e (3)
contexto de saúde. Respectivamente, as palavras-chave foram
as que seguem por construto, não representando sua tradução:
(1) [treatment OR intervention OR health OR assessment OR
evaluation], AND (2) [motivational interview OR motivational
interviewing], AND (3) [hospital]. Os critérios de inclusão foram
redação em português, inglês ou espanhol, publicação entre os
anos de 2005 e 2011, relato de estudos empíricos com no mínimo
um caso investigado, tendo como participante(s) adultos (>18
anos) e/ou idosos (>60 anos) atendidos no contexto de saúde.
Foram excluídos todos os trabalhos que referiam a utilização da
EM nos casos de dependência química justamente por esse não
ser o foco de atenção.
Desta forma, todos os artigos, sem contabilizar os repetidos,
que não se enquadravam nestes critérios foram retirados da
pesquisa. Para a análise dos artigos e dos critérios de inclusão e
exclusão foi utilizado o método duplo-cego a partir do qual dois
avaliadores escolheram independentemente os artigos a serem
incluídos na revisão pelo julgamento dos critérios de inclusão.
Para um consenso no caso de ausência de concordância entre
estes dois avaliadores, um terceiro avaliador participou julgando
como incluído ou excluído cada artigo. Assim incluíram-se
os abstracts com consenso de no mínimo dois avaliadores.
Inicialmente encontraram-se 73 trabalhos que, após analisados
de acordo com os critérios pré-estabelecidos e de terem passado
pelo consenso do terceiro juiz, resultaram em 18 artigos
completos incluídos.
Resultados
Através da Figura 1 pode-se observar o fluxograma
demonstrativo do trajeto de análise dos artigos e os principais
motivos para a não inclusão dos mesmos.
73 abstracts
Busca Inicial
Avaliação dos abstracts
através dos critérios estabelecidos
Método
A revisão sistemática da literatura foi realizada no segundo
semestre de 2011, tendo como consulta às bases de dados online
PubMed, Medline e EMBASE, visto que as mesmas abrangem
boa parte dos trabalhos publicados da área. Utilizaram-se as
palavras-chave de três construtos pilares de reflexão no presente
artigo: (1) práticas de cuidado de saúde, (2) pressupostos
55 abstracts
excluídos
18 abstracts
incluídos
Motivos da exclusão:
Utilização da EM para cessar o uso de tabaco=14
Utilização da EM para cessar o uso de álcool =18
Utilização da EM para abuso de substâncias em geral = 8
Outros = 15
28
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
Na Tabela 1, são apresentadas informações gerais que
caracterizam os 18 estudos incluídos em um primeiro momento
a partir da análise de abstracts, quanto ao ano, periódico e
localidade. Destes, observa-se que 44% (n=8) foram realizados
nos Estados Unidos e o restante na Europa, tendo maior
frequência para Inglaterra (n=3) e Irlanda (n=2). Observa-se
também que parece ter havido um aumento importante de
estudos publicados nos anos de 2007 e, maior ainda, em 2009.
Tabela 1 - Artigos incluídos na revisão
Nº Autoria
Ano
Periódico
Localidade
01
Watkins, C.L. et al.
Stroke
Inglaterra
02
Minet, L.K., Wagner, L.,
Lonvig, E.M., Hjelmborg, 2011
J. & Henriksen, JE.
Diabetologia
Dinamarca
03
Sherwood, A. et al.
Estados
Unidos
04
Gillham, S. & Endacott, 2010
R.
Ahmad, A., Hugtenburg,
J., Welschen, L.M.,
2010
Dekker, J.M. & Nijpels, G.
Journal of
Cardiac Failure
Clinical
Rehabilitation
Inglaterra
BMC Public
Health
Holanda
BMC Public
Health
British Medical
Journal
Drug and
Alcohol
Dependence
Psychiatric
Services
Patient
Education and
Counseling
Espanha
05
2011
2010
06
Valero, C. et al.
2009
07
Murphy, AW. et al.
2009
08
Otto, C. et al.
2009
09
Sherman, M.D. et al.
2009
10
Huisman, S. et al.
2009
11
DiIorio, C., Reisinger, E.L.,
Yeager, K.A. & McCarty, 2009
F.
12
Fernandez,W.G. et al.
2008
13
Golin, CE. et al.
2007
14
2007
15
Nollen, C., Drainoni,
M.L., & Sharp, V.
Watkins, C.L. et al.
2007
16
Casey, D.
2007
17
Wilhelm, S.L., Stepans,
M.B., Hertzog. M.,
2006
Rodehorst, T.K. &
Gardner, P.
18
Riegel, B. et al.
2006
Epilepsy &
Behavior
Na Tabela 2, verificam-se os objetivos e aspectos
metodológicos, assim como os resultados obtidos pela utilização
EM. Houve redução de dois estudos (número 05 e 06) cujos
abstracts encontram-se descritos na Tabela 1, na medida em que
após análise dos textos completos foram categorizados como
projetos de protocolo de EM a serem aplicados.
Irlanda
Alemanha
Estados
Unidos
Holanda
Estados
Unidos
Society for
Academic
Estados
Emergency
Unidos
Medicine
Aids And
Estados
Behavior
Unidos
Aids And
Estados
Behavior
Unidos
Stroke
Inglaterra
Nursing & Health Irlanda
Sciences
Journal of
Obstetric,
Gynecologic, Estados
Unidos
& Neonatal
Nursing
Journal of
Estados
Cardiovascular Unidos
Nursing
29
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
Tabela 2 - Objetivos, aspectos metodológicos e resultados dos estudos analisados
Núm.
Autoria
Objetivos
Método
Delineamento
Resultados
Amostra (n)
Estudo aberto, randomizado Adultos (>18 anos)
e controlado.
(n=411)
Utilização da EM
1
Watkins et al.
Determinar se a EM, pode beneficiar
no humor dos pacientes pós-AVC
(Acidente Vascular Cerebral) e reduzir
o índice de mortalidade.
2
Rosenbek Minet, LK., Wagner,
L., Lonvig, EM., Hjelmborg, J. &
Henriksen, JE.
Medir a eficácia da EM em
Estudo de grupo controle,
comparação com os cuidados
randomizado.
habituais sobre as mudanças no
controle glicêmico e da competência
de diabetes auto-gestão em pacientes
com diabetes mellitus.
3
Sherwood, A. et al.
Testar a eficácia do programa Coping
Effectively with Heart Failure (COPEHF) - que envolve EM -, em pacientes
com Insuficiência Cardíaca.
4
Gillham, S. & Endacott, R
Avaliar se a prevenção secundária
Estudo controlado,
reforçada influencia significativamente randomizado, follow-up.
na prontidão para a mudança de
comportamento de saúde, após AVC
Isquêmico transitório, em comparação
com a prevenção secundária
convencional do AVC.
Idade média de 68,3 anos Utilizou-se uma escala Houve um efeito clinicamente
(n=52)
baseada em princípios significativo no comportamento de
da EM.
exercício e dieta relatados no grupo
de intervenção.
7
Murphy, AW. et al.
Testar a eficácia de uma
intervenção complexa projetada,
dentro de um quadro teórico,
para melhorar resultados para
pacientes com doença cardíaca
coronária.
Idade média de 68,5 anos Foram utilizados
(n=903)
princípios da EM
apenas.
Houve redução do número de
internações dos pacientes que
participaram do estudo.
8
Otto, C. et al.
Avaliar a eficácia das sessões de EM
Estudo randomizado e
sobre o uso abusivo de medicamentos controlado, com follow-up.
prescritos após 12 meses.
Adultos (>18 anos) e
Idosos (até 69 anos)
(n= 126)
(n= 126)
2 sessões de EM
durante 12 meses
Não foi encontrado na amostra
global nenhum efeito de
intervenção significativa.
9
Sherman, MD. et al.
Descrever a estratégia de
Não especificado.
recrutamento utilizada em um
programa de nove meses que envolve
psicoeducação familiar para veteranos
com doença mental grave ou
transtorno de estresse pós-traumático
(TEPT).
Não especificado
(n= 505)
2 sessões de 20-30
Houve um resultado efetivo
min. antes de iniciar o no recrutamento de soldados
programa.
para engajarem o programa de
psicoeducação junto de suas
famílias.
10
Huisman, S. et al.
Avaliar a eficácia de uma intervenção
de auto-regulação na redução de
peso, nutrição, exercício, índice de
massa corporal (IMC), hemoglobina
glicosilada (HbA1c) (resultados
primários), e qualidade de vida
(desfechos secundários).
Adultos (>18 anos)
(n= 129)
3 sessões de 1 hora
(primeira avaliação,
follow-up após 3 e 6
meses).
Estudo randomizado.
Estudo randomizado,
multicêntrico e controlado,
com follow-up.
Não especificado.
4 sessões semanais
de EM.
A EM melhora o humor dos
pacientes e reduz a mortalidade
pós-AVC
Adultos (>18 anos)
(n=349)
5 sessões de 45 min.
durante 1 ano, no
1º,3º,6º, 9º e 12º
mês.
Não houve diferença significativa
entre o grupo controle e o grupo de
intervenção.
Adultos (>18 anos)
(n=200)
Sessões semanais de
30 minutos durante
16 semanas
Houve melhor manejo e mudanças
de comportamento nos pacientes
que participaram do programa.
Não houve influencia significativa
nos resultados. Porém, ocorreram
positivas mudanças nos níveis
HbA1c dentro do grupo que
participou da intervenção.
30
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
Tabela 2 (continuação) - Objetivos, aspectos metodológicos e resultados dos estudos analisados
Núm.
Autoria
Objetivos
Método
Resultados
Delineamento
Amostra (n)
Utilização da EM
11
DiIorio, C., Reisinger,
EL., Yeager, KA. &
McCarty, F.
Testar a viabilidade de um programa
de auto-gestão por telefone para
adultos com epilepsia. O programa
foi baseado na teoria social
cognitiva e princípios da EM.
Não especificado.
Adultos (>18 anos)
(n=22)
5 sessões com uma
Enfermeira treinada (1
presencial e 4 sessões por
telefone).
Houve uma aceitação
positiva dos participantes
ao estudo, mostrando
um modelo por telefone
eficiente de auto-gestão
no monitoramento de
sintomas e na adesão aos
medicamentos.
12
Fernandez,WG. et al.
Testar o uso da EM breve
direcionada para aumentar o autorelato do uso do cinto de segurança
entre pacientes de uma Unidade de
Emergência
Estudo controlado e
randomizado.
Adultos (>21 anos)
(n=432)
5-7 minutos de
intervenção, adaptado de
técnicas clássicas da EM
por um intervencionista
treinado.
Foi relatado maior uso
do cinto de segurança no
follow-up comparados aos
do grupo controle.
13
Golin, CE. et al..
Descrever o desenvolvimento
do programa Start Talking
About Risks (STAR) que orienta
jovens sobre sexo seguro através
de um site.
Não especificado.
Adultos (>18 anos) (n=68)
Sessões mensais de 30-40
min. durante 3 meses.
Houve boa aceitação dos
jovens ao programa. Não
foi testada a redução de
comportamentos de riscos.
14
Nollen, C., Drainoni,
ML., & Sharp, V.
Apresentar as lições aprendidas a
partir de uma intervenção projetada
para fornecer aconselhamento sobre
prevenção do HIV dentro de um
hospital multidisciplinar.
Não especificado.
Adultos (>18 anos)
(n=231)
4 sessões de 30 min. cada
durante 6 meses.
Notou-se que o modelo
Prevenção Positiva criado
não é recomendado
como melhor modelo de
prevenção do HIV para a
replicação em alto volume,
dentro de ambientes
hospitalares.
15
Watkins, CL. et al.
Determinar se a EM pode beneficiar
no humor dos pacientes três meses
após o AVC.
Estudo aberto,
randomizado e
controlado.
Adultos (>18 anos)
(n=411)
4 sessões semanais de
30-60 min. 3 meses após
o AVC.
Houve melhora no humor
dos pacientes após os 3
meses da ocorrência do AVC.
16
Casey, D.
Desenvolver um programa de
treinamento de habilidades de
ensino com foco no aspecto de
educação em saúde sobre o papel
do enfermeiro de promoção da
saúde.
Pesquisa-ação.
Não especificado
Foram utilizados princípios
da EM apenas.
Houveram mudanças e
melhorias na prática das
enfermeiras em educação
em saúde.
17
Wilhelm, SL., Stepans.
MB., Hertzog. M.,
Rodehorst, TK. &
Gardner, P.
Explorar a viabilidade de utilizar a
EM para promover a amamentação
sustentada com a intenção de uma
mãe amamentar por seis meses
resultando em sua auto-eficácia da
amamentação.
Estudo longitudinal.
Adultos (>19 anos) (n=73)
2 sessões de EM durante o
período de amamentação.
O número médio de dias
que as mães no grupo de
intervenção amamentaram
foi de 98 dias, em
comparação à média de
81 dias pelo grupo de
comparação.
31
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
Com relação aos objetivos traçados para os estudos
analisados, a revisão possibilitou verificar a distribuição dos
mesmos entre as seguintes categorias: avaliação de eficácia/
efeito terapêutico (n=7), relatos de procedimentos/experiência
(n=5), programas pilotos (n=3) e adesão ao tratamento (n=1),
tendo, portanto, destaque para os estudos que se detiveram em
avaliar de alguma forma os efeitos terapêuticos do uso da EM.
Observa-se, em relação aos aspectos metodológicos,
de forma geral, os poucos estudos que classificaram seus
delineamentos se caracterizaram como sendo de grupo
controle, randomizado, principalmente do tipo follow-up. As
amostras em geral foram bem descritas, destacando-se os
estudos que continham exclusivamente adultos (>18 anos),
representando 66 % (n=10) dos achados, com uma amplitude
com relação ao número de participantes (n) correspondente a
15 e 903. Com relação aos cuidados em sáude em que foram
empregadas as técnicas de EM, verifica-se que dos 16 estudos
analisados, 3 dedicaram-se a questão do AVC, 2 detiveram-se
sobre HIV, 2 sobre insuficiência cardíaca, 2 para diabetes mellitus,
2 para o engajamento de programas de saúde, e 1 de cada para
amamentação, epilepsia, abuso de medicamentos, doenças
cardíacas em geral e uso do cinto de segurança. Analisando o
ambiente em que foram efetuados os estudos, observa-se que
em sua maioria (n=8) a realização deu-se exclusivamente
em internação hospitalar, ficando o restante distribuído entre
ambulatório hospitalar (n=4), clínica (n=1), postos de saúde
(n=2) e não-especificado (n=1).
Quanto aos procedimentos, tais aspectos foram os menos
descritos nos estudos incluídos, destacando-se a variável
número de sessões de EM como a mais frequentemente
explicitada. A amplitude de sessões dos 16 estudos foi de 2 a
16 sessões, contendo variações no tempo. De todos os estudos
identificados, observa-se que 75% (n=12) dos analisados
relataram benefícios associados ao uso desta ferramenta.
Desta forma, esta discussão será norteada a partir de cada
questão de pesquisa formulada na introdução.
Quais os lugares, em nível mundial, têm se proposto a estudar a
utilização da EM como ferramenta de auxílio nos cuidados em saúde?
Efetuar um mapeamento da utilização da EM no contexto
mundial nos últimos anos e avaliar a sua aplicabilidade em
diferentes contextos permitiram que algumas considerações
pudessem ser feitas a partir dos resultados encontrados.
Assim, observa-se que todos os artigos encontrados nas bases
pesquisadas estavam escritos na língua inglesa, e eram oriundos
em grande parte dos EUA (44%) e o restante se concentrava na
Europa, sendo que nenhuma publicação advinha da América
Latina. Ressalta-se que o fato de o objetivo se caracterizar dentro
de um panorama internacional, verificando-se qual a inserção
de estudos brasileiros neste cenário, pode ter contribuído para
tal achado, na medida em que o método para responder a tal
objetivo foi buscar apenas em bases internacionais. Desta forma,
demonstra-se a importância de se pesquisar mais amplamente
este tema dentro do contexto social e de dinâmica da saúde
pública em âmbito brasileiro e latinoamericano em futuras
investigações teóricas e empíricas.
Que objetivos foram estabelecidos nos estudos analisados?
A utilização da EM para casos que envolvam abusos
de substâncias e comportamentos adictos é reconhecida
mundialmente como uma abordagem eficaz no auxílio na
resolução destes conflitos (Miller & Brown, 1991). Esta questão
pôde ser ilustrada através deste trabalho, visto que 54% (n=40)
dos estudos buscados inicialmente tratavam justamente da
utilização da EM para estes casos, comprovando, de certa forma,
a grande produção em termos de publicação que existe com esta
demanda. Através da análise dos trabalhos incluídos, percebese que em sua maioria (n=7), o principal objetivo foi testar a
eficácia/efeito terapêutico do uso da EM como alternativa nos
cuidados à saúde, principalmente para casos relacionados à
Discussão
AVC e HIV. Destaca-se também a objetivação de estudos que se
preocuparam em relatar experiências e procedimentos, utilizando
A presente revisão sistemática trouxe indícios para a EM como ferramenta secundária a outras intervenções.
reflexões acerca da aplicabilidade da EM nas práticas de saúde,
principalmente no contexto da saúde hospitalar e a ambientes a Dos estudos que se propuseram a analisar sua eficácia/efeito terapêutico,
ela relacionados. Em geral, os estudos encontrados objetivaram quais os resultados obtidos?
Avaliar a eficácia desta ferramenta dentro de outros
verificar a eficácia de técnicas de EM, em amostras clínicas
variadas, priorizado follow-ups, grupos controle e randomização contextos que não o da dependência química se tornou possível
na escolha dos participantes. Em suma, a maioria das pesquisas na medida em que foram encontrados e avaliados os resultados
referiu melhora terapêutica dentro dos seus respectivos objetivos obtidos através dos estudos empíricos realizados. Sendo assim,
planejados, avaliando, portanto, como positiva o uso da EM. observa-se que 75% dos estudos analisados relataram algum
32
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
benefício obtido através da utilização da EM, tendo em vista
seus objetivos primários. Ressalta-se que o número de sessões
e o tempo das mesmas não se concretizam como fatores
fundamentais para a obtenção de sucesso na utilização da EM.
Quanto à correta aplicação da EM, verifica-se que o manejo,
a relação terapêutica estabelecida e o profissional que utiliza
esta ferramenta podem se constituir em variáveis associadas ao
sucesso ou insucesso desta prática. Neste mesmo sentido, Melo,
Oliveira, Araújo e Pedroso (2008) relatam que os resultados em
relação ao desempenho da EM pode ter influência de muitas
variáveis envolvidas, como o nível de treinamento das equipes
e a garantia de homogeneização no uso das técnicas. Desta
forma, treinamentos protocolados e específicos em EM pode ser
uma alternativa para que exista melhora no seu desempenho
em outros contextos, fazendo com que um número maior de
profissionais possa utilizar esta abordagem.
Comprovadamente eficaz nos casos de abuso de substâncias
e dependências químicas, a EM atualmente ganha novo espaço,
fazendo com que as pesquisas agora visem a sua utilização
em outros cuidados em saúde, trazendo consigo resultados
positivos nesta prática. Observa-se que em casos de doenças
crônicas, como o HIV, a insuficiência cardíaca, AVC e a epilepsia
os resultados se mostraram bastante contundentes, trazendo
benefícios a estes pacientes. Algumas pesquisas neste sentido
já haviam sido efetuadas no Brasil, principalmente como auxílio
na adesão ao tratamento anti-retroviral (Leite, Drachler, Centeno,
Pinheiro, & Silveira, 2002), porém, sem citar a EM como possível
ferramenta de auxílio nestes casos.
e possível aplicabilidade no contexto hospitalar.
O baixo custo do uso da EM também deve ser considerado,
principalmente quando nos remetemos ao Sistema Único de
Saúde (SUS), onde os recursos em sua maioria são escassos
e a demanda é extrema. Sendo assim, sua utilização como
ferramenta para o psicólogo que pretende trabalhar dentro
do âmbito hospitalar necessita ser avaliada, justamente por
configurar uma alternativa rápida e eficiente para trabalhar as
demandas existentes neste ambiente, visto que, ainda no Brasil
a entrada do psicólogo neste local faz com que ele tenha que
adaptar sua técnica e as suas teorias para dar conta dos desafios
que se sucedem a partir desta sua inserção (Romano, 1999).
Embora esta revisão possa ter trazido contribuições
importantes para se refletir sobre a aplicabilidade da EM no
contexto da saúde, há algumas limitações a serem apontadas.
Primeiramente, destacam-se aspectos dos próprios resumos/
estudos encontrados, com características de construção
inadequada, incompleta ou confusa, fazendo com que se
tornassem dúbios os seus entendimentos. Além disso, salientase a falta de trabalhos escritos na língua portuguesa que
falassem do uso da EM para além dos casos de dependência
química e pouca descrição das técnicas utilizadas em si. Em um
segundo momento, esta revisão sistemática deve ser replicada
em outros contextos primários e secundários de atenção à
saúde, para abarcar outros estudos além do âmbito hospitalar,
não se limitando apenas a este contexto.
Que evidências podem ser obtidas para avaliar a sua aplicabilidade
dentro do contexto brasileiro de saúde?
Avaliar a aplicabilidade da EM dentro de outros contextos
e traçar um panorama geral do seu uso mundialmente foram
os principais objetivos deste trabalho. Sendo assim, observouse que nas bases pesquisadas nenhum estudo brasileiro e
latinoamericano foi encontrado, fazendo com que sejam
pensadas novas pesquisas com esta temática para que resultem
em benefícios para a população usuária do sistema de saúde
brasileiro.
A eficácia da EM pôde ser observada, fazendo com que
ela se propague para além dos casos de dependência química,
podendo ser difundida em outros contextos, mantendo seus
princípios e sua efetividade. Desta forma, reaplicá-la e adaptá-la
à realidade brasileira, levando em conta a população (em geral
mais carente, de baixo nível sócio-econômico) que se beneficia
dos recursos do SUS, se faz de suma importância por se tratar de
um conjunto de técnicas breves, diretiva se com baixo custo que
poderão vir a suprir boa demanda nos nossos serviços de saúde.
O primeiro fator que podemos avaliar para pensarmos
em sua aplicabilidade dentro do nosso contexto de saúde é
justamente a sua eficácia/efeito terapêutico comprovada nos
estudos analisados nesta revisão. Corroborando esta ideia, os
autores Jungerman e Laranjeira (1999) já explicitavam a sua
preocupação em estudar e aplicar a EM no Brasil em diferentes
contextos, já que apesar de sua comprovada eficácia ela ainda
é pouco difundida nas universidades e nos programas de
assistência a saúde. Bundy (2004) cita o baixo custo destas
técnicas e a sua curta duração, tornando-a perfeitamente
compatível com o ambiente hospitalar, que exige rapidez,
eficiência e resposta rápida e que, se caracteriza como sendo um
dos principais focos de aplicação da EM. Como observado nos
achados, a amplitude de sessões das aplicações de EM são de 2
a 16 sessões, comprovando a sua curta duração para a obtenção
de resultados efetivos e corroborando com sua compatibilidade
Conclusão
33
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34
história da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal.
Assim, sugere-se que sejam realizados mais estudos empíricos
Suarez,
M. (2011). Application of motivational interviewing to
para que se possa avaliar de forma concreta a aplicabilidade
neuropsychology practice: a new frontier for evaluations and
da EM dentro do contexto hospitalar e dos sistemas de saúde
rehabilitation. Em M. Schoenberg & J. G. Scott (Eds.), The little black
brasileiro.
st
book of neuropsychology: a syndrome-based approach. (1 ed.)(pp.
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Recebido em dezembro/2012
Revisado em maio/2013
Aceito em junho/2013
34
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Condições organizacionais enquanto terceiras variáveis entre
burnout e engagement
Organizational conditions while third variables between burnout and work engagement
Pedro Guilherme Basso Machado(a)*, Paulo Cesar Porto-Martins(b)
Resumo: Tradicionalmente começou-se a estudar o sofrimento do trabalhador seguindo o modelo médico
tradicional. Com passar do tempo, em decorrência de movimentos como o da psicologia positiva, surgiram conceitos
como o engagement no trabalho. Concomitantemente, muitos pesquisadores deixaram de focar suas atenções
exclusivamente na relação causa-efeito e passaram a se dedicar também às variáveis mediadoras, também conhecidas
como terceiras variáveis. Neste trabalho visou-se analisar as Condições Organizacionais como terceiras variáveis
frente à relação burnout e engagement no trabalho (work engagement). A amostra foi de N=701 profissionais de
diferentes categorias ocupacionais. O método de analise foi através do macro INDIRECT de Preacher e Hayes (2008).
Consideraram-se dois grupos de analises: o primeiro considerando as dimensões do coração do burnout como
varáveis independentes, as condições organizacionais como variáveis mediadoras e as dimensões do coração do
engagement no trabalho como variáveis dependentes. Para o segundo enfoque, foram consideradas as dimensões
do coração do engagement enquanto variáveis independentes, as condições organizacionais como mediadoras e o
coração do burnout como dependentes. Em relação aos resultados, as “Condições Organizacionais” exerceram efeito
indireto significativo (p>0,01) em cinco das seis verificações, ou seja, são partes relevantes na dinâmica de processos
positivos e negativos da saúde no trabalho.
Palavras Chave: Engagement no Trabalho; Burnout; Mediação.
Abstract: Originally the suffering of the workers have been studied following the traditional medical model. With
passage of time, due to movements like the positive psychology, concepts emerged such as the “work engagement”.
Concurrently, many researchers stopped to focus most on the cause-effect relationship and started to dedicate also on
the mediation processes (mediator variables), also known as third variables. This study aimed to analyze the Organizational
Conditions as third variables in the relationship of burnout and work engagement. The sample was N= 701 professionals
from different occupational categories. The method of analysis was through the INDIRECT macro of Preacher and Hayes
(2008). We considered two bias analyzes: first considering the core dimensions of burnout as independent variables,
the organizational conditions as mediators variables and the core dimensions of work engagement as dependent
variables. For the second approach we considered the core dimensions of work engagement as independent variables,
organizational conditions as mediators and the core dimensions of burnout as dependent variables. Regarding the
results, the “Organizational Conditions” exerted significant indirect effect (p>0,01) as mediating variables of analysis, so
we conclude that are the relevant parts of the dynamic processes of positive and negative health at work.
Key-Words: Work Engagement; Burnout; Mediation.
a Psicólogo, Especialista. Doutorando Universidad Autónoma de Madrid / Docente Instituto Federal do Paraná.
*Email:[email protected]
b Psicólogo, Especialista, Doutorando Universidad Autónoma de Madrid Docente PUCPR e UP.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
35
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44
A atividade profissional é uma constante na história da
humanidade. Contudo, a saúde laboral só começou a ser estudada
com maior rigor apenas a partir do século XIX, principalmente
após a revolução industrial inglesa (Dejours, 1992).
No âmbito acadêmico as pesquisas científicas sobre
aspectos positivos são minoria quando comparados aos aspectos
negativos da saúde (Bakker, Demerouti, Taris, Schaufeli &
Scheurs, 2008; Salanova & Schaufeli, 2009). Fato que se acentua
quando analisamos a realidade das publicações referente à
saúde psicológica laboral, onde o modelo médico tradicional
ainda impera.
Dentro deste contexto, ressalta-se a importância de se
estudar os aspectos positivos da saúde no trabalho, uma vez
que esta gera incremento na qualidade de vida dos profissionais
assim como competitividade organizacional. A dinâmica dos
fatores positivos e negativos tem consequências “contagiosas”
para a organização, seja de processos negativos ou positivos
(Bakker et al., 2008; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Fatores
estes concomitantes e negativamente correlacionados (GilMonte, 2005; Gil-Monte, 2007; Salanova & Schaufeli, 2009).
Entre os diversos constructos decorrentes do movimento da
Psicologia Positiva, o qual prioriza processos positivos (e não os
negativos) da saúde, destacamos o engagement no trabalho, do
termo original“work engagement”, o qual será traduzido somente
o termo “work” conforme orientações de Salanova e Schaufeli
(2009). Este constructo resulta como consequência de estudos
sobre aspectos ocupacionais negativos, mais especificamente
da síndrome de burnout (Carvalho, Calvo, Martín, Campos
& Castillo, 2006; Durán, Extremera, Montalban & Rey, 2005;
González-Romá, Schaufeli, Bakker & Lloret, 2006; Maslach et
al., 2001). Síndrome esta que é relacionada exclusivamente
com as condições de trabalho, sendo uma resposta a um estado
prolongado e crônico de estresse laboral, e caracterizada por:
Esgotamento (Exaustão Emocional), Cinismo (Distanciamento
Emocional - Despersonalização) e Reduzida Realização Pessoal
no Trabalho (Benevides-Pereira, 2002; Gil-Monte, 2005; GilMonte, 2007; González-Romá et al., 2006; Leiter & Maslach,
1988; Maslach et al., 2001; Maslach & Leiter, 2008; MorenoJiménez, 2007).
Em relação ao engagement no trabalho, é possível definilo como um constructo motivacional positivo, caracterizado por
vigor, dedicação e absorção, sempre relacionado com o trabalho,
o qual implica sentimento de realização, envolve estado
cognitivo positivo, sendo persistente no tempo e possuindo
natureza motivacional e social (Bakker, Demerouti, Hakanen
& Xanthopoulu, 2007; Bakker et al., 2008; Llorens, Schaufeli,
Bakker & Salanova, 2007; Salanova & Schaufeli, 2009; Schaufeli
& Bakker, 2004).
Os dois constructos, síndrome de burnout e engagement no
trabalho são associados com o mundo laboral e de forma geral,
se correlacionam negativamente (Bakker et al., 2008; Machado,
Porto-Martins & Amorim, 2012; Salanova & Schaufeli, 2009).
Ainda, dentro desta tendência, destacam-se diversos estudos
como por exemplo os de Bakker et al. (2007); Bakker et al.
(2008); Bakker e Leiter (2010); Carvalho et al. (2006); GonzálezRomá et al., 2006; Llorens et al. (2007); Maslach e Leiter (2008);
Salanova e Schaufeli (2009); Schaufeli e Bakker (2003, 2004).
A relação histórica entre a síndrome de burnout e
engagement no trabalho pode ser visualizada com maior
riqueza no modelo representado na figura 1.
Figura 1 – Esquema teórico sobre burnout e engagement no trabalho.
Fonte: Porto-Martins, 2011 em Machado, Porto-Martins e Amorim (2012).
De acordo com o modelo apresentado na figura 1, os estudos
sobre o burnout apresentam uma tendência de considerar a
Exaustão e a Desumanização como elementos nucleares da
síndrome, positivamente relacionados e consistentes entre
si (Maslach & Leiter, 2008; Moreno-Jiménez, Zuñiga, SanzVergel, Muñoz & Pérez, 2010) sendo chamados de o “coração
do burnout” (Demerouti, Bakker, Nachreiner & Schaufeli,
2001; González-Romá et al., 2006). Já a realização profissional
denota uma atuação diferente, mais independente das outras
dimensões (Carvalho et al., 2006; González-Romá et al., 2006;
Moreno-Jiménez, 2007).
Analogamente ao “coração do burnout”, encontram-se
estudos apontando que as dimensões Vigor e Dedicação são
consideradas como o núcleo (coração) do engagement no
trabalho (Bakker et al., 2008; Bakker & Leiter, 2010; GonzálezRomá et al., 2006; Moreno-Jiménez et al., 2010). Já a dimensão
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44
Absorção, assim como a Realização Profissional no burnout,
não faz parte deste núcleo (González-Romá et al., 2006; Prieto,
Salanova, Martínez & Schaufeli, 2008).
Há autores que estudaram a Exaustão e o Vigor como dois
polos de um mesmo continuum e de uma mesma dimensão
chamada “energia”, assim como o Cinismo (Distanciamento
Emocional / Desumanização) associado à Dedicação seriam os
polos de uma dimensão chamada “identificação” (Bakker et al.,
2008; Bakker & Leiter, 2010; González-Romá et al., 2006).
Por fim, destaca-se que, relacionando trabalho, saúde e
psicologia ocupacional, há basicamente dois processos, um
de deterioro da saúde, relacionado com demandas laborais
(Condições Organizacionais Negativas) e outro positivo,
relacionado com os recursos laborais (Condições Organizacionais
Positivas), independentemente de qual organização e/ou da
ocupação exercida (Demerouti et al., 2001; Moreno-Jiménez et
al., 2010; Salanova & Schaufeli, 2009).
Método
propriedades psicométricas adequadas como por exemplo alfa
de Cronbach superior a 0,70.
ISB - Inventário de Síndrome de Burnout, instrumento que
foi construído especificamente para a população brasileira para
a verificação da síndrome de burnout, instrumento este que
apresenta qualidades psicométricas adequadas em especial alfa
de Cronbach superior a 0,70 (Benevides-Pereira, 2010; Machado
& Benevides-Pereira, 2010; Porto-Martins & Benevides-Pereira,
2009) assim como apresentou correlação de Pearson significativa
(a nível p>0,01) com as dimensões do MBI, instrumento
considerado padrão mundial para avaliação da síndrome de
burnout (Bresó; Salanova & Schaufeli, 2007; Gil-Monte, 2005;
Moreno-Jiménez, 2007; Schaufeli & Enzmann, 1998). O ISB é
formado por duas partes, a primeira é dedicada exclusivamente
as“Condições Organizacionais-CO”(Positivas –“COP”e Negativas
“CON”) e a segunda parte contendo as dimensões diretamente
ligadas ao burnout (Exaustão Emocional, Distanciamento
Emocional, Desumanização e Realização Profissional). Ao todo
este instrumento é formado por 35 itens.
Esta pesquisa teve um método empírico, transversal, Procedimentos
A aplicação do inventário foi realizada por protocolo
exploratório, descritivo e ex post facto.
eletrônico, gerado no próprio sistema de intranet da organização,
Amostra
que foi elaborado pelos responsáveis pelo departamento de TI
A população deste estudo foi de N=2.050, procedentes de com supervisão dos pesquisadores responsáveis. Destaca-se o
distintas categorias profissionais de diversas cidades do estado cuidado ético de condicionar que os profissionais de TI não teriam
do Paraná, este contingente foi convidado a participar de maneira acesso a tabulação dos resultados, somente encaminhariam
voluntária. Desta população obteve-se taxa de retorno de estes aos pesquisadores responsáveis.
34,20% (N=701), maiores detalhes referente às características
Este projeto foi submetido ao comitê de ética e pesquisa
dos participantes são apresentados nos Resultados.
de uma instituição de nível superior e aprovado por ele,
sendo que todos os participantes assinaram o “termo livre e
Instrumentos
esclarecido”, bem como, foram realizadas as devidas devolutivas
UWES – Utrecht Work Engagement Scale (de Wilmar para as partes envolvidas. Em suma, a pesquisa respeitou os
Schaufeli & Arnold Bakker, 2003) – é um instrumento específico 35 princípios éticos contidos na Declaração de Helsinki (1964,
para a avaliação do engagement no trabalho. Este questionário reformulada em 1975, 1983, 1989, 1996, 2000 e 2008), da
é constituído de 17 itens, com escala tipo Likert de sete pontos World Medical Association (Associação Médica Mundial) assim
(desde “muito baixo” até “muito alto”), composto por três como as Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de
dimensões: VI - Vigor (contando com seis itens, como por Saúde – Ministério da Saúde.
exemplo “Em meu trabalho, sinto-me repleto – cheio – de
As análises presentes neste artigo foram os cálculos das
energia”), DE - Dedicação (com cinco itens, como “Eu acho que Médias, Desvio Padrão, Correlações de Pearson, Alpha de
o trabalho que realizo é cheio de significado e propósito”) e AB Crombach e principalmente a ferramenta “INDIRECT”, a qual se
- Absorção (com seis itens, como “O tempo voa quando estou concentra na verificação de terceiras variáveis. Para Hayes (2013)
trabalhando”). Ainda o instrumento conta com uma escala Global e Preacher e Hayes (2008) uma variável mediadora (terceira
(WE) formada pelos 17 itens do instrumento. As propriedades variável) influencia na direção e/ou força da relação entre
psicométricas da versão traduzida para o português do Brasil, variável independente e a dependente (VI →VD).
(que contou com retrotradução para o inglês) segundo pesquisa
O macro INDIRECT de Preacher e Hayes (2008) possibilita
dos autores (Machado & Benevides-Pereira (2010) apresentou
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a verificação de múltiplas mediações. Este método estima
os coeficientes path em um modelo de múltiplas mediações
gerando bootstrap em intervalos de confiança. Como
configuração foi adotado o valor de bootstrap sample igual a
20.000 seguindo as orientações de Preacher e Hayes (2008) que
afirmam que o único inconveniente de adotar valores superiores
a 1.000 é a demora dos computadores em realizar os devidos
cálculos. Este macro é instalado no programa SPSS em sua
versão 21 para plataforma Windows 8.
Os modelos elaborados foram constituídos em convergência
com o paradigma de indicadores positivos e negativos de saúde/
enfermidade laboral (burnout versus engagement no trabalho)
em uma amostra multi ocupacional.
Assim como apresentado no marco teórico os aspectos
positivos e negativos existem mutuamente e são negativamente
associados. Neste estudo se consideraram como indicadores
de saúde laboral as Condições Organizacionais Positivas (ISB)
assim como as dimensões Vigor e Dedicação (UWES). Como
indicadores negativos, de deterioro da saúde, se consideraram
as Condições Organizacionais Negativas, Exaustão Emocional,
Distanciamento Emocional e Desumanização (ISB).
De forma geral, as condições organizacionais são
importantes aspectos no desenvolvimento ou não de indicadores
de saúde laboral (Dejours, 1992; Salanova e Schaufeli 2009), seja
positivamente ou negativamente (ex.: os recursos e as demanda
laboral, Demerouti et al., 2001). Ainda, cabe ressaltar que os
indicadores de burnout e engagement no trabalho podem ser
tanto causas como consequências de determinados processos
dinâmicos em relação ao trabalho, pela própria saúde no
trabalho ser um processo multideterminado e não um estado.
Assim sendo, se consideraram dois Grupos de análises:
Primeiro Grupo: considerando as dimenções do coração
do burnout como variáveis independentes, as condições
organizacionais como variáveis mediadoras e as dimensões
do coração do engagement no trabalho como variáveis
dependentes, como segue:
EE/ISB → VI/UWES (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras)
DEm/ISB → DE/UWES (COP/ISB e CON/ISB como
mediadoras)
DEs/ISB→DE/UWES (COP/ISB e CON/ISB como
mediadoras)
como segue:
VI/UWES → EE/ISB (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras)
DE/UWES → DEm/ISB (COP/ISB e CON/ISB como
mediadoras)
DE/UWES → DEs/ISB (COP/ISB e CON/ISB como
mediadoras)
Ressalta-se que todas as relações entre VI → VD
apresentaram correlações de Pearson significativas (a nível
p<0,01), com as polaridades em sintonia com o pressuposto
teórico, dados que foram confirmados através da prova de
Coeficiente Intraclasse.
A dicotomização entre a relação das dimensões do coração
do burnout e do engagement no trabalho foi inspirada com
base em estudos, como citado no marco teórico, onde Vigor e
Exaustão Emocional foram considerados como parte dos polos
de um mesmo continuum assim como Dedicação e Cinismo
(Distanciamento Emocional / Desumanização) (Bakker et al.,
2008; Bakker e Leiter, 2010; González-Roma et al., 2006).
Resultados e Discussão
Sociodemográficos
Referente a variável gênero, 36,81% (N=258) da amostra
foi constituída por homens e 63,19% (N=443) de mulheres.
A idade média foi de 35,09 anos, com 44,65% (N=313) entre
18 e 25 anos. Mais da metade dos participantes, 52,06%
(N=365) tinham pelo menos um filho. Com relação ao nível
de instrução acadêmica, 56,92% (N=399) apresentaram nível
de pós graduação completo e 24,25% (N=170) com nível
superior completo. No que tange as regiões geográficas onde
os trabalhadores exerciam suas atividades, 58,06% (N=407)
trabalhavam em Curitiba ou região metropolitana e 41,94%
(N=294) nas demais regiões do estado do Paraná.
Dados Psicométricos
Em conformidade com os dados apresentados na descrição,
ambos os instrumentos obtiveram índices de alpha de cronbach
assim como o índice Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) superiores a
0,70, considerados adequados (Hair, Babin, Money e Samouel,
2005), conforme detalhado na tabela 1:
Segundo Grupo: consideraram-se as dimensões do coração
do engagement no trabalho como variáveis independentes,
as condições organizacionais como variáveis mediadoras e as
dimensões do coração do burnout como variáveis dependentes,
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Dimensão
Média
Média P.
DP
Min
Max
α
KMO
Tabela 1 - Médias, Médias Ponderadas, Desvio Padrão, Mínimo, Máximo,
Alphas de Cronbach e KMO do ISB e do UWES.
COP
CON
EE
AEm
DEs
23,39
12,46
6,88
6,56
4,20
2,92
1,56
1,38
1,31
1,05
5,89
6,03
4,49
4,21
3,55
0,00
0,00
0,00
0,00
0,00
32,00
32,00
20,00
20,00
16,00
0,88
0,81
0,86
0,83
0,77
0,898
0,862
0,833
0,810
0,785
RP
14,84
2,96
4,71
VI
DE
AB
WE
27,30
22,73
26,26
76,29
5,46
4,55
4,38
4,49
6,79
6,85
6,82
19,31
0,00 20,00
2,00 36,00
0,00 30,00
1,00 36,00
9,00 102,00
0,91
0,89
0,93
0,83
0,95
0,833
0,870
0,892
0,851
0,961
Nota: Média P.= Média Ponderada; DP= Desvio Padrão; COP= Condições Organizacionais
Positivas; CON= Condições Organizacionais Negativas; EE= Exaustão Emocional;
DEm=Distanciamento Emocional; DEs= Desumanização; RP= Realização Professional; VI= Vigor;
DE= Dedicação; AB= Absorção; WE=Escala Global UWES; KMO= Kaiser Meyer Olkin.
De acordo com a tabela 1, a média ponderada das condições
organizacionais positivas (M=2,92) foi superior à média das
condições organizacionais negativas (M=1,56) para a presente
amostra. Referente as dimensões do coração do burnout, a exaustão
emocional apresentou maior média ponderada (M= 4,49), assim
como as dimensões do engagement no trabalho a dimensão vigor
apresentou a maior média (M=5,46). Ainda os instrumentos
apresentaram Qui-quadrado estatisticamente significativo ISB
(1798,778) UWES (931,688) assim como outros indicadores de
bondade de ajuste dão suporte a este resultado: a razão ci2/gl foi de
3,275 (ISB) e 8,548 (UWES), com um AGFI para o ISB de 0,841 e para
UWES de 0,789, e o RMSEA, 0,057 (ISB) e 0,104 (UWES). O NNFI foi
de 0,892 para o ISB e 0,896 para o UWES assim como o CFI adequado
para ISB (0,900) assim como para o UWES (0,917).
Referente as correlações de Pearson, estas obtiveram resultados
concordantes com o pressuposto teórico. Todas as correlações de
Pearson internas, tanto do ISB como do UWES, foram significativas
a nível p<0,01 conforme segue nas tabelas 2 e 3:
Tabela 2 – Correlações internas do UWES.
Dimensão
VI
VI
Correlação 1
p
DE
Correlação 0,871**
p
,000
AB
Correlação 0,819**
p
0,000
WE
Correlação 0,949**
p
0,000
DE
AB
WE
1
0,821**
0,000
0,951**
0,000
1
0,932**
0,000
Nota: VI= Vigor; DE= Dedicação; AB= Absorção; WE= Escala Global UWES.
** A correlação foi significativa a nível 0,01 (bi-caudal).
1
Observa-se na tabela 03 que todas as correlações foram
positivas e significativas, as mais elevadas foram entre as
dimensões específicas e a Escala Global (WE-VI, r= 0,949 > RPWE, r= 0,951 > RP-VI, r= 0,932), mesmo porque as dimensões
específicas são parte integrante da própria escala global. No que
se refere as outras correlações, o valor mais elevado se deu entre
VI-DE (r= 0,871), contudo todos os valores foram expressivos
(r>0,819).
Os resultados das correlações internas do ISB estão
discriminados na tabela 3.
Tabela 3 – Correlações internas do ISB.
Dimensão
COP
CON AE
COP
Correlação 1
p
CON
Correlação -0,632** 1
p
0,000
EE
Correlação -0,360** 0,367** 1
p
0,000 0,000
AEm
Correlação -0,446** 0,525** 0,468**
p
0,000 0,000 0,000
DEs
Correlação -0,444** 0,522** 0,491**
p
0,000 0,000 0,000
RP
Correlação 0,493** -0,243** -0,370**
p
0,000 0,000 0,000
AEm
DEs
RP
1
0,660** 1
0,000
-0,246** -0,261** 1
0,000 0,000
Nota: COP= Condicições Organizacionais Positivas; CON= Condicições Organizacionais Negativas;
EE= Exaustão Emocional; AEm= Distanciamento Emocional; DEs= Desumanização; RP=
Realização Profissional
** A correlação foi significativa a nível 0,01 (bi-caudal).
De acordo com a tabela 3, a mais alta correlação entre as
dimensões do ISB foi entre AEm-DEs (r= 0,660), que por sua
vez também tiveram valores significativos de correlação com a
dimensão EE (r= 0,468 y r= 0,491 respectivamente), dando
suporte a concepção do “coração do burnout” para o ISB. Ainda,
as condições organizacionais positivas e negativas (COP-CON: r=
0,632) também se correlacionaram com um valor sensivelmente
superior aos demais (r≤ 0,525).
Quando verificadas as correlações entre as dimensões do
ISB com as dimensões do
UWES, os resultados mantiveram-se de acordo com as
premissas de cada instrumento e escala, conforme a tabela 4.
As correlações da tabela 4 foram todas significativas
(p<0,01) apresentando sintonia com o marco teórico. As mais
altas correlações entre os instrumentos ISBßàUWES foram entre
a dimensão positiva do ISB (RP) e as dimensões do UWES (RPDE, r=0,817 > RP-WE, r=0,780 > RP-VI, r=0,706 > RP-AB,
r=0,686). Assim sendo a realização profissional mostrou-se
altamente correlacionada com os indicadores e o constructo
“engagement no trabalho”. Ainda, as dimensões do coração do
burnout “EE, AE e DEs” apresentaram correlações negativas e
39
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44
Tabela 4 – Correlação entre ISB e UWES.
COP
CON
COP
Correlação 1
p
CON
Correlação -0,632** 1
p
0,000
EE
Correlação -0,360** 0,367**
p
0,000
0,000
**
Aem
Correlação -0,446
0,525**
p
0,000
0,000
**
Des
Correlação -0,444
0,522**
p
0,000
0,000
**
RP
Correlação 0,493
-0,243**
p
0,000
0,000
VI
Correlação 0,588**
-0,266**
p
0,000
0,000
**
DE
Correlação 0,565
-0,270**
p
0,000
0,000
**
AB
Correlação 0,482
-0,175**
p
0,000
0,000
**
WE
Correlação 0,577
-0,251**
p
,000
0,000
AE
AEm
DEs
RP
VI
DE
AB
WE
1
0,468**
0,000
0,491**
0,000
-0,370**
0,000
-0,518**
0,000
-0,455**
0,000
-0,321**
0,000
-0,457**
0,000
1
,0660**
0,000
-0,246**
0,000
-0,361**
0,000
-0,328**
0,000
-0,242**
0,000
-0,329**
0,000
1
-0,261**
0,000
-0,346**
0,000
-0,319**
0,000
-0,214**
0,000
-0,310**
0,000
1
0,706**
0,000
0,817**
0,000
0,686**
0,000
0,780**
0,000
1
0,871**
0,000
0,819**
0,000
0,949**
0,000
1
0,821**
0,000
0,951**
0,000
1
0,932**
0,000
1
Nota: COP= Condições Organizacionais Positivas; CON= Condições Organizacionais Negativas; EE= Exaustão Emocional; DEm=Distanciamento Emocional; DEs= Desumanização; RP= Realização
Professional; VI= Vigor; DE= Dedicação; AB= Absorção; WE=Escala Global UWES.
** A correlação foisignificativa a nível de 0,01 (bi-caudal).
significativas frente as dimensões do engagement no trabalho: Tabela 5 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadoras entre
VI-EE (r=-0,518) assim como DE-AEm (r=-0,328) e DE-DEs Exaustão – Vigor.
Coeff.
se
T
p
(r=-0,319).
Efeito Total de VI em DI (c path) -0,7823 0,0489 -16,0056 0,0000
Observa-se também que a dimensão COP se correlacionou Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,5965 0,0444 -13,4295 0,0000
significativa e positivamente com o coração do engagement
Coeficientes
(COP-VI: r= 0,588 / COP-DE: r= 0,565 / COP-AB: r= 0,482 /
Est.
se
Z
p
COP-WE: r= 0,577), o que possibilita a compreensão de que Total
-0,1859
0,0325 -5,7169 0,0000
-0,3345
0,0380 -8,8108 0,0000
as condições organizacionais positivas estão associadas com COP
COM
0,1486
0,0242 6,1391 0,0000
a promoção do engagement no trabalho. Coerentemente,
as Condições Organizacionais Negativas se correlacionaram
Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado.
negativamente, mesmo que com menor expressão, com as
mesmas dimensões (CON-VI, r= -0,266 / CON-DE, r= -0,270 /
De acordo com os resultados da tabela 6, o efeito Total entre
CON-AB: r= -0,175 / CON-WE: r= -0,251).
VI e VD foi de -0,7823 (se=0,0489; t= -16,0056; p= 0,0000)
e o efeito Direto de -0,5965 (se= 0,0444; t= -13,4295; p=
Primeiro Grupo
0,0000), ambos significativos. Assim sendo, se evidencia um
Neste modelo, se considerou a categoria “Exaustão” como efeito Indireto total significativo (p<0,01) de -0,1859 entre as CO
variável independente, a dimensão “Vigor” como variável e a relação EE → VI. Estes resultados estão em sintonia com os
dependente e as Condições Organizacionais como terceiras pressupostos teóricos.
variáveis na relação VI → VD. Os resultados se encontram na
Referente às“Condições Organizacionais”, tanto CON (0,1486
tabela 5.
/ p= 0,0000) como principalmente COP (-0,3345 / p= 0,0000),
por um valor expressivamente mais elevado, presentaram efeito
40
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44
Indireto significativo. Ainda, nesta perspectiva a polaridade
corrobora com as premissas de cada escala. Assim sendo, a
dimensão COP obteve efeito Indireto negativo e significativo no
processo de atenuação do desgaste de VI por meio da presença
de EE. Coerentemente as CON presentaram efeito Indireto
positivo e significativo no processo de intensificação da Exaustão
e diminuição do Vigor.
Por último, de acordo com os resultados, a Exaustão está
relacionada negativa e significativamente com Vigor, efeito que é
atenuado significativamente pelas Condiciones Organizacionais
(-0,1859 / p= 0,0000). Isso se deve especialmente pelo efeito
protetor das COP ter sido mais protetor que o efeito degradativo
de CON desde a Exaustão →Vigor nesta amostra, gerando assim
um efeito total significativo das Condições Organizacionais.
No segundo Modelo do Primeiro Grupo, se considerou
a categoria “Distanciamento Emocional” como variável
independente, a dimensão “Dedicação” como variável
dependente e as Condições Organizacionais como terceiras
variáveis na relação VI → VD. Os resultados se encontram na
tabela 6.
Tabela 6 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadoras entre
Distanciamento Emocional X Dedicação.
Coeff.
se
T
p
Efeito Total de IV em DI (c path) -0,5334
0,0581 -9,1835 0,0000
Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,2582
0,0592 -4,3575 0,0000
Coeficientes
Est.
se
Z
P
Total
-0,2573
0,0442 -6,2312 0,0000
COP
-0,4536
0,0450 -10,0824 0,0000
CON
0,1783
0,0375 4,7557 0,0000
Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado.
Referente aos resultados da tabela 6, o efeito Total entre a
variável VI →VD foi de -0,5334 (se= 0,0581; t= -9,1835; p=
0,0000) e o efeito Direto de -0,2582 (se= 0,0592; t= -4,3575;
p= 0,0000), os dois efeitos significativos. Ainda, o efeito Indireto
total foi de -0,2573 e também significativo (p< 0,01) na relação
entre “CO” e DEm (VI) →DE(VD). Dados que estão convergentes
com os pressupostos teóricos.
De acordo com os resultados, a polaridade foi convergente
com as premissas. Ainda, as COP obtiveram efeito Indireto
negativo e significativo (-0,3345 / p= 0,0000), inclusive por
um valor expressivamente mais elevado que o efeito das CON
(0,1486 / p= 0,0000) que também foi significativo. Assim
sendo, o Distanciamento Emocional está relacionado negativa
e significativamente com a Dedicação (o DEm enquanto VI
tende a diminuir a DE enquanto VD) efeito que é atenuado
significativamente pelas Condições Organizacionais (-0,2573
/ p= 0,0000). Ainda, o efeito das CO nesta análise é mais
atenuado pelas COP que promovidos pelas CON.
Neste terceiro modelo do Primeiro Grupo, se considerou
a categoria “Desumanização” como variável independente, a
dimensão “Dedicação” como variável dependente e as Condições
Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI → VD. Os
resultados se encontram na tabela 08.
Tabela 7 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadoras entre
Desumanização x Dedicação.
Coeff.
se
t
p
Efeito Total de IV em DI (c path) -0,6162 0,0692 -8,9004 0,0000
Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,2816 0,0704 -4,0000 0,0001
Coeficientes
Est.
Se
Z
p
Total
-0,3346 0,0525 -6,3727 0,0000
COP
-0,5394 0,0536 -10,0693 0,0000
COM
0,2048
0,0442 4,6281 0,0000
Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado.
Para os resultados da tabela 7, o efeito Total entre VI e VD
foi de -0,6162 (se= 0,0692; t= -8,9004; p= 0,0000) e o efeito
Direto de -0,2816 (se= 0,0704; t= 4,0000; p= 0,0001), os dois
significativos. O efeito Indireto total das“CO”na relação DEs →DE
foi de -0,3346 também significativo (p<0,01). Resultados que
convergem com os pressupostos teóricos.
De acordo com os resultados, as COP obtiveram efeito
direito negativo e significativo (-0,5394 / p= 0,0000) sendo
um efeito mais expressivo que o efeito também significativo de
CON (0,2048 / p= 0,0000). Ainda, a polaridade foi convergente
com as premissas. A Desumanização está relacionada negativa
e significativamente com a Dedicação, efeito que é atenuado
(assim como no viés 1 – análises 1 e 2) significativamente pelas
Condições Organizacionais (-0,3346 / p= 0,0000). É possível
interpretar que isto ocorre pelo fato de que os resultados de
COP presentaram efeito protetor mais intenso que o efeito
degradativo das CON nestes modelos.
Segundo Grupo
Na primeira análise do segundo grupo, o Vigor foi
considerado como variável independente, a dimensão Exaustão
como variável dependente e as Condições Organizacionais
como terceiras variáveis na relação VI →VD. Os resultados se
encontram na tabela 09.
41
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44
Tabela 8 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadora entre
Vigor X Exaustão.
Coeff.
se
T
p
Efeito Total de IV em DI (c path) -0,3428
0,0214 -16,0056 0,0000
Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,3446
0,0257 -13,4295 0,0000
Coeficientes
Est.
se
Z
P
Total
0,0018
0,0167 ,1087
0,9135
COP
0,0588
0,0190 3,0961 0,0020
CON
-0,0569
0,0106 -5,3933 0,0000
Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado.
No modelo, o efeito Total entre a variável VI e VD foi de
-0,3428 (se= 0,0214; t= -16,0056; p= 0,0000) e o efeito
Direto de -0,3446 (se= 0,0257; t= -13,4295; p= 0,0000) os
dois significativos. Todavia, o efeito Indireto total das “CO” não foi
significativo (0,0018 / p= 0,9135). Denotando que as CO não
exercem efeito Indireto na relação de VI →EE. Mesmo porque
se observa nos dados que os valores de COP (0,0588 / p=
0,0000) e CON (0,0569 / p= 0,0000) são ambos significativos e
semelhantes em suas equações, mas com polaridades inversas.
Assim sendo é possível interpretar que as condições
organizacionais positivas e negativas se atenuam, gerando um
efeito total não significativo. Mesmo porque, realizando um teste
separadamente entre VI → (COP) → EE (0,0329 / p= 0,0352),
assim como com VI → (CON) →EE (0,0433 / p= 0,0000)
também se obtém efeitos Indiretos significativos (p<0,05).
Para o segundo modelo da Segunda Parte, se considerou
a dimensão Dedicação como variável independente, o
Distanciamento Emocional como variável dependente e as
Condições Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI
→VD. Os resultados se encontram na tabela 10.
→DEm. Este efeito foi influenciado mais pelas CON, todavia
também as COP que por sua vez também presentaram efeito
com polaridade negativa, potencializando o efeito Indireto final
das CO.
Assim as condições organizacionais não protegem os
dedicados de se distanciar emocionalmente, diferentemente do
esperado nem as COP (-0,0277 / p= 0,0950) que presentaram
polaridade negativa e relação não significativa, tampouco e
especialmente as CON (-0,0714 / p= 0,0000) que exacerbam
significativamente o efeito Indireto.
Para o último modelo verificado, se considerou a categoria
Dedicação como variável independente, Desumanização
como variável dependente e as Condições Organizacionais
como terceiras variáveis na relação VI →VD. Os resultados se
encontram na tabela 10.
Tabela 10 – Resultados do Teste Indirect de COP e CON como mediadora entre
Dedicação x Desumanização.
Coeff.
se
t
p
Efeito Total de IV em DI (c path) -0,1652 0,0186 -8,9004 0,0000
Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,0797 0,0199 -4,0000 0,0001
Coeficientes
Est.
se
Z
p
Total
-0,0855 -0,0145 -5,8874 0,0000
COP
-0,0262 0,0140 -1,8641 0,0623
CON
-0,0594 0,0098 -6,0390 0,0000
Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado.
Referente aos resultados da tabela 11, o efeito Total entre
a variável VI e VD foi de -0,1652 (se= 0,0186; t= -8,9004; p=
0,0000) e o efeito Direto de -0,0797 (se= 0,0199; t= -4,0000;
p= 0,0001). Ainda, o efeito Indireto total foi significativo
(p<0,01) de -0,2573. Dados que estão convergentes com a
Tabela 9 – Resultados do Teste Indirect de COP e CON como mediadora entre
teoria.
Dedicação X Distanciamento Emocional.
Assim como na análise anterior, o efeito Indireto foi
Coeff.
se
t
p
Efeito Total de IV em DI (c path) -0,2018 0,0220 -9,1835 0,0000
influenciado mais significativamente pelas CON (-0,0594 / p=
Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,1027 0,0236 -4,3575 0,0000
0,0000) que pelas COP (-0,0262 / p= 0,0623) que também
Coeficientes
presentaram polaridade negativa, mas não significativa frente a
Est.
se
Z
p
este efeito. É possível inferir que as CO exercem efeito Indireto
Total
-0,0991 0,0172 -5,7606 0,0000
nesta relação para atenuação do processo (VI →VD), ou seja,
COP
-0,0277 0,0166 -1,6694 0,0950
CON
-0,0714 0,0118 -6,0738 0,0000
não protegem os dedicados de se “Desumanizarem” frente às
pessoas em situação de trabalho (nem as COP).
Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado.
Conclusão
Neste modelo, o efeito Total entre a variável VI e VD foi de
-0,2018 (se= 0,0220; t= -9,1835; p= 0,0000) e o efeito Direto
Nas seis análises realizadas, as polaridades foram de acordo
de -0,1027 (se= 0,0236; t= -4,3575; p= 0,0000) ambos
significativos. O efeito Indireto por sua vez foi de -0,2573 e com os pressupostos teóricos, com exceção das análises entre CO
também significativo (p<0,01) entre as CO e a relação DE (mediadora) e DE (VI) → AEm (VD) assim como CO (mediadora)
42
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44
DE (VI) →DEs (VD) aonde o efeito Indireto total de COP não
atenuou as pessoas dedicadas a se afastarem emocionalmente
e/ou desumanizarem no trabalho.
Em relação aos modelos, as “Condições Organizacionais”
exerceram efeito Indireto significativo em cinco dos seis casos
referentes às relações entre dimensões nucleares do burnout
e do engagement no trabalho (tanto consideradas como
variáveis independentes como dependentes). A única exceção
foi na relação VI →EE. Mesmo pelo fato de que as COP e CON
obtiveram resultados significativos e que se atenuam um ao
outro.
De acordo com os resultados das análises separadamente,
no Grupo 1 - Modelo 1, a Exaustão Emocional está correlacionada
negativa e significativamente com o Vigor, efeito que é atenuado
significativamente pelas Condições Organizacionais (isto se deve
mais pelo efeito protetor das COP que pelo efeito degradativo
de CON). No Primeiro Grupo - Modelo 2, o Distanciamento
Emocional está correlacionado negativa e significativamente
com a Dedicação, efeito atenuado significativamente pelas
Condições Organizacionais (mais atenuado pelas COP que
promovidos pelas CON). No Segundo Grupo - Modelo 3, assim
como no modelo 1 e 2, a Desumanização está correlacionada
negativa e significativamente com a Dedicação, efeito que é
atenuado significativamente pelas Condições Organizacionais
(mais pelo fato dos resultados de COP presentarem efeito
protetor intenso que pelo efeito atenuador das CON).
Conclui-se que para esta amostra COP protege mais contra
as dimensões do burnout (enquanto VI) que as CON degradam.
Um estímulo positivo em uma situação aversiva pode apresentar
maior magnitude.
Para o Grupo 2 - Modelo 1, o Vigor está significativa e
negativamente correlacionado com a Exaustão Emocional,
efeito que não é atenuado pelas Condições Organizacionais
pois as Positivas e Negativas possuem valores significativos e de
polaridades opostas, que se atenuam. Para o Grupo 2 – Modelo
2 e Modelo 3 as Condições Organizacionais não protegem os
dedicados de se afastar emocionalmente e se “desumanizarem”,
diferentemente do esperado, nem as COP ajudaram a atenuar
o processo, tampouco e especialmente as CON que são
correlacionadas significativamente com DEm e com DEs.
Também se infere que para esta amostra, CON degrada mais
contra as dimensões do engagement no trabalho (enquanto VI)
que as COP protegem. Mesmo porque um estímulo aversivo em
uma situação positiva pode apresentar maior magnitude.
Em concordância com estudos de distintos autores (Bakker
et al., 2007; Demerouti et al., 2001; Prieto et al., 2008; Salanova e
Schaufeli, 2009; Schaufeli & Bakker, 2004), é possível interpretar
que as Condições Organizacionais assim como os processos de
burnout e engagement, se associam e são importantes fatores
nos processos de saúde e enfermidade laboral.
Por fim, conclui-se que ambos os instrumentos, ISB e UWES,
apresentaram resultados psicométricos adequados. Contudo,
para poder generalizar esta constatação faz-se necessária a
ampliação de estudos envolvendo estas variáveis assim como a
publicação de seus resultados em periódicos científicos.
Referências
Bakker, A., Demerouti, E., Hakanen, J. J., & Xanthopoulu, D. (2007). Job
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Recebido em maio/2012
Revisado em junho/2013
Aceito em junho/2013
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R E L ATO D E P E S Q U I S A
Percepção de comportamentos de retaliação:
frequência e avaliação de justiça
Perception of retaliation behaviors: frequency and evaluation of justice
Letícia Gomes Maia(a)*
Resumo: Este artigo tem como objetivo investigar a percepção de comportamentos de retaliação e a avaliação se
tais comportamentos são considerados justos pela ótica dos servidores de uma organização pública. Em termos
de percepção do fenômeno, quase 40% das pessoas que responderam a pesquisa percebem baixa frequência
de comportamentos retaliatórios e 88% consideram a retaliação injusta. Os comportamentos retaliatórios menos
percebidos são: “fazer o serviço malfeito de propósito”; “alterar a forma de fazer as coisas com o intuito de prejudicar a
organização”; e “tumultuar o ambiente de trabalho, propositalmente”. Por outro lado, os comportamentos percebidos
com maior frequência pelos participantes da pesquisa estão relacionados à produtividade baixa, intervalos maiores
do que o permitido e “corpo mole”. Os resultados sugerem que sejam realizados estudos mais aprofundados que
busquem refletir sobre as relações entre percepção e julgamento de comportamentos de retaliação e cultura
organizacional, relacionamentos entre chefias e subordinados e variáveis psíquicas individuais.
Palavras-chave: Retaliação; Justiça; Administração Pública.
Abstract: This article is aimed to investigate the perception of a public institution in relation to the phenomenon
of retaliation from the perspective of their workers. In terms of perception of the phenomenon, almost 40% of
people who responded to the survey perceived low frequency of retaliatory behavior, and 88% consider it unfair. The
retaliatory behaviors that individuals less perceive are: “doing shoddy service on purpose,” “change the way of doing
things in order to undermine the organization” and “disrupt the work environment, on purpose”. On the other hand,
the behaviors most often perceived by the participants are related to low productivity, longer breaks than allowed
and being lazy. The results show that further studies should be done in order to get to know more about relations
between perception and judgment of retaliatory behavior and culture of organization, relationships between
managers and subordinates and individual psychological variables.
Key words: Retaliation, Justice, Public Administration.
a Doutoranda em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*E-mail : [email protected].
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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O ambiente produtivo da atualidade impele as
organizações a produzirem cada vez mais, com cada vez menos.
Consequentemente, é preciso buscar o aperfeiçoamento dos
resultados e o aproveitamento máximo da capacidade produtiva.
As organizações não podem se permitir o luxo de cultivar
comportamentos prejudiciais à sua efetividade, que deve se
pautar pela busca do desenvolvimento contínuo de todas as
pessoas que compõem o corpo funcional.
Nesse sentido, os estudos científicos desenvolvidos na área
buscam compreender o que precede, estimula, cria e mantém
os comportamentos positivos em termos de produtividade
e favoráveis ao desenvolvimento, que são geralmente bem
aceitos no ambiente organizacional. Esses comportamentos são
desejados socialmente e favorecem a efetividade.
Porém, também é necessário investigar os comportamentos
que podem prejudicar a manutenção da efetividade já alcançada,
ou até causar um decréscimo da mesma. Os comportamentos
disfuncionais são todos aqueles que causam prejuízo à
efetividade da organização, emitidos no contexto de relações de
trabalho. Esses comportamentos têm sido pouco pesquisados
comparativamente a outros.
No Brasil, são poucos os estudos sobre os desvios de
comportamento no local de trabalho, apesar de ser de
conhecimento geral que as atitudes retaliatórias têm elevados
custos para as organizações. O presente estudo visa colaborar
para o desenvolvimento dessa relevante temática de pesquisa
no país.
O objeto de análise dessa pesquisa é um tipo de
comportamento disfuncional, a retaliação. Pode-se definir
retaliação como “comportamentos que sofrem influência de
atributos pessoais dos atores organizacionais, que são emitidos
de maneira sutil ou agressiva, em resposta à percepção de
injustiça no trabalho, contra a organização ou pessoas que dela
fazem parte” (Mendonça, 2003, p. 25). Por meio da geração de
conhecimento sobre a retaliação, intenta-se proporcionar uma
melhor compreensão do fenômeno nas organizações.
Os comportamentos contraproducentes podem causar um
impacto negativo significativo, com perda de produtividade,
elevados custos de mão de obra, elevação das taxas de turnover
e prejuízo ao clima organizacional. (Hung, Chi & Lu, 2010).
Esses aspectos apontados por Hung et al (2010) constituem a
principal justificativa para que se investigue comportamentos
contraproducentes como a retaliação nas organizações.
O conceito clássico de retaliação refere-se à lei de talião,
o antigo ditado popular olho por olho, dente por dente, que
significa revanche, vingança, o retorno do que se faz em igual
medida (Tamayo, Mendonça & Paz, 2008, p. 252). De acordo
com Skarlicki e Folger (1997), os comportamentos retaliatórios
são o subconjunto dos comportamentos negativos que ocorrem
com o objetivo de punir a organização ou seus representantes.
Esses autores definem retaliação como o comportamento que
ocorre quando as pessoas percebem que estão sendo tratadas
injustamente no trabalho e encontram formas de contra-atacar
e descontar.
Skarlicki e Folger (1997) optaram por denominar esses
comportamentos de retaliatórios para finalidade de pesquisa
por dois motivos: pela conotação pejorativa que outro termo,
como “comportamentos negativos” poderia ter, presumindo uma
conduta negativa e errada somente por parte do funcionário. O
segundo motivo seria o de procurar não afetar a disposição do
respondente da pesquisa, convidando-o a considerar fatores
situacionais.
A percepção de justiça dos trabalhadores em três diferentes
tipos: distributiva, processual e interacional. Esses autores
pesquisaram a relação de cada um dos tipos de justiça com
comportamentos de retaliação organizacional. A justiça
distributiva se refere à percepção de justiça que as pessoas têm
em relação aos pagamentos, benefícios e quaisquer retribuições
que elas recebam pelo serviço prestado. A processual diz
respeito à forma como as decisões são tomadas, nos quesitos
acuridade, consistência, ética, correção, representatividade. A
justiça interacional é relativa às percepções individuais de justiça
no tratamento recebido pelos chefes e tomadores de decisão,
é representada por ações que demonstraram sensibilidade,
empatia e respeito, repercutido em tratamento com dignidade.
Um exemplo de justiça interacional é a consideração em dar
explicações adequadas para decisões tomadas que impactam
diretamente o trabalho do indivíduo em questão.
A conclusão da pesquisa desenvolvida por Skarlicki e Folger
(1997) apresentou um modelo correlacional preditor entre
percepção de justiça organizacional e retaliação. Com relação
aos tipos de justiça, constataram que os comportamentos de
retaliação tinham correlações aproximadamente iguais para
todas, sendo diferenciadamente maior apenas para a justiça
interacional. Revelaram também que a justiça processual e
interacional interagem na predição da retaliação e sugeriram que
poderiam funcionar como substitutas uma da outra. Townsend e
Elkins (2000) reforçaram essa teoria no que diz respeito à justiça
interacional ao relacionar a retaliação à troca insatisfatória entre
chefias e subordinados.
Jones (2000) investiga como os indivíduos interpretam
a ocorrência ou não de injustiça a partir da busca de equidade
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entre a maneira como o chefe reagiu diante de situação parecida
no passado (informação que advém de seus pares) e como está
reagindo no presente. A informação social recebida dos pares
teria influência direta na percepção de justiça interacional e
retaliação. Para Tamayo et al (2008), os efeitos positivos de
trocas entre líder e liderado de alta qualidade têm sido bem
documentados na literatura de liderança, mas muito menos é
sabido a respeito dos potenciais efeitos prejudiciais de trocas
pobres nesse tipo de relação.
Comportamentos retaliatórios seriam uma das
consequências de relações pobres de troca entre líderes e
liderados. Townsend e Elkins (2000) pesquisaram trocas
entre líderes e liderados e relatos de supervisores a respeito
de comportamentos retaliatórios, performance e cidadania
organizacional dos funcionários e encontraram correlação
positiva entre boas relações e perfomance e cidadania
organizacional e correlação positiva entre más relações e
retaliação organizacional.
Nessa relação de troca, cabe ressaltar que não apenas
subordinados são passíveis de acabarem insatisfeitos, mas
também os ocupantes das posições de chefias. Dessa forma,
a retaliação também pode ser pensada sob outra perspectiva,
a do empregador e, nesse sentido, a retaliação seria um ato
adverso contra o funcionário em decorrência de reclamações do
mesmo. (Sincoff, Slonakera & Wendta, 2006; Long, 2007) Esse,
no entanto, é um campo não explorado por este artigo, que se
atém à perspectiva do funcionário.
Além disso, de acordo com Townsend e Elkins (2000), a
retaliação não é um comportamento direcionado apenas aos
chefes ou à organização, mas também pode ser direcionado aos
colegas. Pode ocorrer de maneira mais explícita ou bem sutil, na
busca de restaurar a percepção de justiça. Sendo direcionado para
colegas ou chefes, se as relações de poder forem assimétricas,
o comportamento de retaliação é influenciado. De acordo com
Ismal, Mohideen e Togok (2009), se o poder da pessoa que
se percebe objeto de injustiça é menor que o da fonte que ela
percebe como geradora da injustiça, a ação de retaliação tende
a ser mais indireta.
A retaliação conforme definição de Skarlicki e Folger (1997)
é pensada sob a dimensão organizacional, desconsiderando
a influência de variáveis individuais e intrapsíquicas. Em meta
análise sobre os preditores de comportamentos agressivos
no ambiente de trabalho, Hershcovis, Turner, Barling, Arnold,
Dupre e Innes (2007) demonstraram a importância tanto de
características individuais quanto situacionais para a ocorrência
de comportamentos agressivos no trabalho. Dessa perspectiva
adotada, a retaliação pode ser definida como “comportamentos
negligentes que sofrem influência de atributos pessoais dos
atores organizacionais e que ocorrem de maneira explícita ou
sutil em resposta a um estado de insatisfação no trabalho, contra
a organização ou pessoas que dela fazem parte” (Maia & Bastos,
2011).
Skarlicki, Folger e Tesluk (1999) investigaram a moderação
exercida por variáveis de personalidade sobre os comportamentos
de retaliação. Os resultados dessa pesquisa apontam que as
pessoas reagem de maneira distinta a situações de injustiça e
forneceram evidências que apoiam a perspectiva interacional
para explicar a retaliação organizacional. Afetividade negativa e
tendência a concordância moderaram a relação entre a equidade
e os comportamentos de retaliação. Por exemplo, uma pessoa
com baixo nível de concordância, que tem tendência a discordar
e confrontar apresentará comportamentos de retaliação mais
prontamente do que uma pessoa cooperativa de acordo com
esse estudo. Em conjunto, estes resultados sugeriram a limitação
na elaboração de modelos comportamentais de retaliação que
considerassem só variáveis situacionais ou disposicionais e não
incluíssem a interação entre elas.
A raiva e o ressentimento associados à percepção de
procedimentos injustos podem energizar os indivíduos para se
engajarem em retaliação. Os tratamentos injustos podem gerar
um desejo de retribuição da pessoa objeto da injustiça, que
acaba agindo contra a organização. Os estudos de Allred (2000)
demonstraram que a raiva exerce uma influência poderosa para
os comportamentos de retaliação e sugerem, dessa maneira,
que as emoções exercem um papel mediador entre a percepção
de injustiça e a tendência a retaliar.
Não obstante todos os prejuízos que podem causar os
comportamentos contraproducentes como a retaliação para as
organizações, os estudos dedicados a investigá-los são poucos.
Apesar da crescente tendência de crescimento da importância
atribuída ao setor público, à medida que as organizações públicas
são confrontadas com um crescimento na demanda por serviços
de alta qualidade no contexto de recursos limitados, os estudos
nessa área pública de comportamentos contraproducentes
também são poucos, já que a temática em si ainda é pouco
investigada, principalmente no Brasil.
A administração pública no Brasil é mais recente, se
comparada a outros países, mas o tempo discorrido já é mais
do que suficiente para caracterizar uma cultura - uma forma
de funcionamento e interação muito própria, verdadeira teia
de significados que se movimentam e interagem dentro de
um contexto e lógica bem particulares. Um aspecto cultural do
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52
brasileiro pode ser destacado como exemplo, dada a sua relação
com os comportamentos contraproducentes, objeto de estudo
deste artigo. Diante de comportamentos autoritários, herança
das origens culturais e do processo de formação histórica,
o brasileiro prefere sabotar, ao invés de enfrentar, fazendo a
“revolução silenciosa” (Ramos, 1983, p.66). Ora, a sabotagem
é um tipo de retaliação e dessa forma tem-se que o brasileiro,
segundo essa perspectiva de Ramos (1983), teria uma tendência
cultural à retaliação. Nesse sentido, cabe observar que as
disfunções típicas do setor público brasileiro, marcado por um
histórico de ineficiência decorrente de um excessivo aparato
burocrático, são conhecidas, todavia, conforme ressaltado
anteriormente, pouco estudadas.
Este estudo objetiva investigar a percepção global de uma
organização pública de abrangência federal em relação ao
fenômeno da retaliação pela ótica de seus funcionários, com o
intuito de compreender como a retaliação pode afetar a eficácia
organizacional e prejudicar a manutenção de comportamentos
socialmente aceitos. Dessa forma, cabe questionar: quão
frequente os funcionários dessa organização pública, objeto do
estudo, percebem o fenômeno da retaliação em suas rotinas
diárias? Qual o julgamento que fazem desses comportamentos:
justos ou injustos?
Uma justificativa adicional para esse estudo é a
possibilidade de colaboração para o desenvolvimento ou a
consolidação de um instrumento de diagnóstico que permita
identificar os comportamentos legítimos de retaliação mais
frequentes e os mais e menos aceitos entre os funcionários. A
partir desse diagnóstico, tem-se a possibilidade de criar uma
linha construtiva de gestão de pessoas e conflitos, por meio da
qual se possa trabalhar com as mudanças necessárias para a
organização.
São objetivos específicos: (1) Analisar a percepção que os
funcionários têm em relação à emissão de comportamentos de
retaliação: frequência e avaliação de justiça; e (2) Investigar a
relação entre a percepção e julgamento dos comportamentos
retaliatórios com algumas variáveis demográficas pessoais e
funcionais.
Método
A pesquisa adotou método quantitativo, sendo caracterizada
como um estudo transversal simples (Vergara, 2010). A unidade
de análise foi uma organização pública com representações em
dez capitais do Brasil na qual foram recrutados os participantes
do estudo, e a unidade de observação, o funcionário. Todos os
participantes faziam parte do quadro de servidores efetivos da
organização, haviam ingressado por meio de concurso público e
gozavam de estabilidade.
População, amostra e participantes
A amostragem foi aleatória e estratificada, proporcional
por área de atuação (departamentos) dentro da organização
objeto desse estudo. A técnica de amostragem inicial foi
probabilística e selecionou aproximadamente 30% do total de
4.671 funcionários, o que significou uma amostra inicial de 1452
indivíduos. Dentre esses, 705 visitaram o sítio da pesquisa e 575
efetivamente a responderam (índice de resposta de 39,6%),
resultando em uma amostra não probabilística, por conveniência
do respondente (o servidor escolheu responder ou não, o que
torna a amostra tendenciosa).
Do tratamento do banco de dados resultou que, das 575
respostas, 55 foram excluídas da amostra por motivo de falta
de dados sobre uma ou mais variáveis. Assim, todas as análises
foram baseadas em uma amostra de 520 respondentes. Dessa
forma, a amostra resultante equivale a 11% da população.
Instrumento
Neste estudo foi utilizado um questionário composto por
questões sócio demográficas e pelo instrumento: Escala de
percepção e julgamento da retaliação organizacional – EPJR.
O EPJR (Mendonça, Tamayo & Paz, 2004) foi escolhido porque
possui parâmetros psicométricos adequados e por ser o único
de que se tenha conhecimento desenvolvido no Brasil até o
momento. Diante da adequação do instrumento citado, não
se justificaria o desenvolvimento de um próprio, ciente que a
proliferação de instrumentos para avaliação do mesmo fenômeno
não contribui para o desenvolvimento de conhecimento na área.
O conceito de retaliação adotado para o desenvolvimento
do EPJR foi o de “comportamento que ocorre sutilmente em
resposta a injustiça no trabalho e é emitido contra a organização
ou às pessoas que dela fazem parte” (Tamayo et al. 2008). A
escala foi construída com base naquela de Skarlicki e Folger
(1997), adaptada ao contexto brasileiro. Foram identificados
inicialmente 31 itens em pesquisa exploratória, posteriormente
submetidos a procedimentos de validação em dois estudos. Os
autores do instrumento utilizaram o método dos componentes
principais e estipularam o critério de carga fatorial de 0,40, o que
levou à permanência na solução final de apenas 15, dos 31 itens
originais.
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O método da observação indireta é adotado, em lugar
do auto relato. Essa opção dos autores do instrumento se
justifica como mais adequada à pesquisa de comportamentos
socialmente indesejados, como é o caso da retaliação. O EPJR
avalia as dimensões perceptivas e avaliativas do comportamento
de retaliação. Dessa forma, o instrumento é dividido em duas
subescalas, de percepção e julgamento, que demonstraram ter
validade fatorial. Cada uma delas utilizou uma escala de cinco
pontos: variando de 1 = nunca a 5 = sempre, para análise da
percepção de frequência e de 1 = muito injusto a 5 = justíssimo,
para investigar a atribuição de justiça ao comportamento de
retaliação. Assim como os estudos de Skarlicki e Folger (1997),
Mendonça et al (2004) demonstraram que a retaliação no
trabalho se estrutura em um único eixo.
O pré-teste foi realizado entre cinco funcionários, e foi
utilizada a análise protocolar, pedindo aos entrevistados que
“pensassem em voz alta”ao responder ao questionário, enquanto
anotações eram feitas. As observações e críticas assimiladas no
pré-teste serviram para que se adaptasse o texto introdutório, o
convite e demais mensagens associadas.
Procedimentos
Os convites para a pesquisa foram enviados por correio
eletrônico. Neste correio, havia um texto que apresentava a
pesquisa e um link externo para o questionário. Após uma
semana de coleta, foi realizado um novo convite para aqueles
que não haviam respondido até então.
As 520 respostas obtidas foram tabuladas por meio do
Microsoft Excel e posteriormente analisadas estatisticamente
por meio do software PASW Statistics 18. Tais análises foram
elaboradas de modo que pudessem abranger de maneira
adequada todos os objetivos propostos para a pesquisa.
Inicialmente, uma análise descritiva preliminar foi
conduzida, produzindo-se as médias, desvios padrões e
variâncias item a item. Essa análise inicial permitiu a identificação
dos comportamentos mais e menos percebidos e positivamente
e negativamente julgados pelos respondentes.
Em seguida, com a finalidade de se produzir mais análises,
mas de uma maneira mais sintética, sobre um ou mais conjuntos
de itens, foi considerada a adoção da análise fatorial, técnica
estatística multivariada que representa por meio de fatores,
conjuntos de variáveis inter-relacionadas. Para isso, foi realizado
o cálculo da medida de adequação da amostra de Kaiser-MeyerOlkin (KMO), que demonstrou adequação para a técnica de
análise fatorial.
Em função dos resultados obtidos na análise fatorial,
analisou-se a média das avaliações dos itens por respondente
e, por fim, foram realizados testes bivariados de Pearson para
identificar se as variáveis demográficas estavam correlacionadas
com as percepções e julgamentos da retaliação pelos
respondentes.
Resultados
A análise estatística descritiva mostrou que os
comportamentos retaliatórios mais percebidos foram: “Produzir
abaixo da capacidade que possui”; “Gastar mais tempo
no intervalo do que o permitido”; e “Fazer corpo mole”. Os
comportamentos de retaliação menos percebidos foram: “Fazer
o serviço malfeito de propósito”; “Alterar a forma de fazer as
coisas com o intuito de prejudicar a organização”; e “Tumultuar o
ambiente de trabalho, propositalmente”.
Tabela 1. Percepção de comportamentos de retaliação.
Item
M
Produzir abaixo da capacidade que possui
Gastar mais tempo no intervalo do que o
permitido
Fazer corpo mole
Fingir que está ocupado
Influenciar negativamente os colegas de
trabalho
Ficar indiferente às solicitações feitas pela
chefia
Deixar de colaborar com os colegas de
trabalho
Falar mal da organização para pessoas
estranhas ao serviço
Negar informações necessárias a um colega
Tratar com indiferença as pessoas que
buscam os serviços prestados pela
organização
Descumprir as normas da empresa
Trabalhar contra a política da empresa
Tumultuar o ambiente de trabalho,
propositalmente
Alterar a forma de fazer as coisas com o
intuito de prejudicar a organização
Fazer o serviço malfeito de propósito
DP
Variância
3,35
3,25
1,03
1,03
1,06
1,05
3,12
2,97
2,78
1,03
1,00
1,02
1,06
1,00
1,04
2,73
1,01
1,01
2,71
0,93
0,87
2,66
1,18
1,39
2,47
2,35
0,99
1,02
0,98
1,04
2,22
2,10
2,09
0,97
0,97
0,99
0,93
0,94
0,99
2,08
0,89
0,79
2,04
0,94
0,89
Os comportamentos retaliatórios julgados como mais
justos foram: “Produzir abaixo da capacidade que possui”;
“Gastar mais tempo no intervalo do que o permitido”; e “Ficar
indiferente às solicitações feitas pela chefia”. Os avaliados como
mais injustos foram: “Tratar com indiferença as pessoas que
49
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Uma interpretação possível para os resultados e viabilizada
buscam os serviços prestados pela organização”; “Fazer o serviço
malfeito de propósito”; e “Tumultuar o ambiente de trabalho, pela análise fatorial, que chegou a apenas um fator agrupando
todos os itens, é a de que a média da avaliação dos itens
propositalmente”.
inferior a 2,5 significa baixa percepção, no caso dessa escala,
Tabela 2. Julgamento de comportamentos de retaliação.
ou julgamento negativo, no caso da outra escala. Por sua vez, a
Item
M
DP
Variância
média das avaliações atribuídas aos itens entre 2,5 e 3,4 significa
Produzir abaixo da capacidade que
um posicionamento de dúvida por parte do respondente. Igual
2,33 1,01
1,02
possui.
ou acima de 3,5 significa percepção de frequência elevada de
Gastar mais tempo no intervalo do que o 2,23 0,85
0,73
comportamentos retaliatórios ou julgamento positivo dos
permitido.
mesmos.
Ficar indiferente às solicitações feitas pela 2,10 0,87
0,76
chefia.
Dessa maneira, pode-se afirmar que 39,6% dentre os
Fazer corpo mole.
2,04 0,88
0,77
pesquisados têm a percepção de baixa frequência na emissão
Fingir que está ocupado.
2,02 0,79
0,63
de comportamentos retaliatórios, de maneira geral (médias
Falar mal da organização para pessoas
1,89
0,98
0,97
iguais ou inferiores a 2,5 na avaliação de percepção). Nessa
estranhas ao serviço.
mesma linha de análise, apenas 11,1% tiveram a média igual
Influenciar negativamente os colegas de 1,79 0,76
0,58
trabalho.
ou superior a 3,5, indicando uma relativamente baixa percepção
Deixar de colaborar com os colegas de
1,75 0,74
0,54
da ocorrência do fenômeno, de maneira geral na organização.
trabalho.
Por outro lado, em termos de julgamento, 88% dos
Trabalhar contra a política da empresa.
1,67 0,75
0,56
funcionários participantes da pesquisa consideraram injusta
Alterar a forma de fazer as coisas com o
1,64 0,67
0,45
intuito de prejudicar a organização.
a emissão de comportamentos retaliatórios em resposta
Descumprir as normas da empresa.
1,61 0,74
0,55
às injustiças recebidas. O posicionamento favorável aos
Negar informações necessárias a um
1,58 0,70
0,48
comportamentos retaliatórios é pequeno, de menos de 1%,
colega.
classificando dessa forma aqueles que avaliaram os itens em
Tumultuar o ambiente de trabalho,
1,46 0,66
0,44
propositalmente.
médias superiores a 3,5.
Fazer o serviço malfeito de propósito.
1,45 0,63
0,40
Ademais, foram feitos estudos de correlação bivariada
Tratar com indiferença as pessoas que
(coeficiente
de Pearson), para se investigar possíveis
buscam os serviços prestados pela
1,44 0,63
0,40
relações entre os fatores, considerando cada uma das escalas
organização.
separadamente e cada uma das variáveis demográficas,
Para análise da matriz de correlação dos itens, considerou- resumindo assim a intensidade de associação entre eles. Como
se a adoção da técnica de análise fatorial. A recomendação variáveis demográficas, foram analisadas idade, tempo de
técnica para análise fatorial é de que a amostra seja pelo menos trabalho na organização e exercício ou não de cargo de chefia.
A percepção de comportamentos retaliatórios tem correlação
cinco vezes a quantidade de itens (Malhotra, 2011). Nesse
caso, considerando as escalas separadamente, há mais de 17 negativa significativa com a idade, ou seja, quanto maior a idade,
respondentes por item. Para a escala de percepção, o valor da menor a percepção. O coeficiente de Pearson encontrado foi de
estatística KMO foi 0,962, superior a 0,5, conforme recomendado -0,130 e o valor da probabilidade de erro nessa correlação foi de
por Tabachnick e Fidell (2013). Para a escala de julgamento, o 0,003, o que é bem abaixo do recomendado, ou seja, menor que
valor da estatística KMO foi 0,939. Assim, a análise fatorial foi 0,05. Apesar da significância considerável, a correlação pode
ser considerada pequena. A correlação do fator de percepção
adotada como técnica apropriada.
O método dos componentes principais (eigenvalue > 1,0) da retaliação com a variável tempo de trabalho na organização
foi utilizado, em contrapartida à análise fatorial comum, para se também é pequena, negativa e significativa (embora menos
considerar a variância total dos dados. A determinação de apenas um significativa que a relação com a idade): coeficiente de -0,105
fator levou em consideração a decisão dos autores do instrumento e significância de 0,016. A correlação do fator de percepção com
(Mendonça et al 2004) e foi corroborada pela análise do gráfico de a situação de exercício ou não de cargo de chefia é positiva,
declive gerado e com base também na percentagem da variância. A ou seja, para aqueles que exercem função, a percepção de
escala de percepção de retaliação explica 59,45% da variância total e comportamentos retaliatórios é mais frequente. Coeficiente de
correlação de Pearson encontrado foi de 0,168, com significância
a de julgamento explica 50,71%.
50
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52
de 0,000. A correlação entre o fator de julgamento e idade foi
negativa, pequena e significativa: coeficiente de Pearson de
-0,173 e significância de 0,000. A correlação do mesmo fator
com o tempo de trabalho na organização foi também negativa,
pequena e significativa: coeficiente de Pearson de -0,138 e
significância de 0,002. A correlação entre julgamento e função
não foi significativa (probabilidade maior que 0,05: 0,075) e,
portanto, não foi elencado como um resultado a ser considerado
nessa análise, além do mais, a correlação era muito pequena,
módulo menor que 0,1.
Discussão
Da análise da percepção que os funcionários têm em
relação à emissão de comportamentos de retaliação, percebese que apenas 11,1% percebem elevada frequência na
emissão de comportamentos retaliatórios e 39,6% percebem
baixa frequência. Se a retaliação é compreendida como uma
resposta às incongruências nas relações de troca estabelecidas,
diante desses resultados, há uma possibilidade de que essa
incongruência também seja relativamente baixa para a
organização em estudo. Reforça essa linha dedutiva o resultado
segundo o qual 88% julgam negativamente a emissão de
comportamentos retaliatórios, considerando-os injustos e
menos de 1% se posicionam favoravelmente.
O segundo objetivo proposto, de verificar a influência de
algumas variáveis demográficas pessoais e funcionais (idade,
tempo de trabalho na organização e exercício ou não de cargo
de chefia) nas variáveis analisadas foi alcançado por meio
de estudos de correlação bivariada (coeficiente de Pearson).
Oportuno lembrar que correlação não significa causalidade,
mas apenas a força da relação entre as variáveis estudadas. As
correlações encontradas foram pequenas, porém significativas.
Com relação à idade do pesquisado e seu tempo de trabalho,
foi encontrado que quanto maior, ou seja, se mais idoso ou com
mais tempo de organização, a percepção que ele tem em relação
aos comportamentos de retaliação é que eles ocorrem com
menor frequência. Quanto mais idoso ou mais tempo de casa
tem, mais o julgamento desses comportamentos tende a ser
negativo, em outras palavras, a geração mais experiente tende
a considerar a atitude de retaliação mais injusta que as gerações
mais jovens, com menos tempo de trabalho na organização.
Esses resultados fazem sentido se for considerado que os
funcionários vão com a passagem do tempo cada vez mais se
fidelizando em relação a organização.
Um resultado interessante diz respeito ao exercício ou não
de cargo de chefia, pois para aqueles que exercem função a
percepção de comportamentos retaliatórios é mais frequente.
Esse achado pode significar que a pessoa em situação de
responder pela produtividade da equipe, uma posição de chefe,
por exemplo, tende a observar mais e, portanto registrar como
mais frequente a ocorrência de comportamentos de retaliação
na organização.
Conclusão
Esta pesquisa buscou colaborar para a compreensão de
um tipo de comportamento organizacional que não recebe a
merecida atenção, mas que afeta a efetividade organizacional
de maneira considerável, seja direta ou indiretamente. Os
resultados demonstraram que os comportamentos retaliatórios
são percebidos e incomodam, pois a maioria considera injusta
essa maneira de reagir. A possibilidade de se desenvolver uma
linha construtiva de gerenciamento das causas desse tipo
de comportamento, visando um incremento na efetividade
organizacional, estimula o estudo dos antecedentes, sem
prescindir de outros estudos que investiguem a ocorrência e o
impacto do fenômeno nas organizações.
O delineamento e a condução das mudanças necessárias
na organização para adoção dessa linha construtiva de
gerenciamento frente a comportamentos legítimos de retaliação
devem considerar também a hipotética influência da questão
cultural. Não obstante, a influência de atributos pessoais não
deve ser desprezada. Os resultados sugerem que a atuação junto
aos públicos de faixas etárias diferentes ou tempos de trabalho
na organização diferentes ou que exercem ou não cargos de
chefia deveria ser também diferenciada, por exemplo.
Nesse sentido, as análises de correlações entre as variáveis
demográficas e a percepção e julgamento da retaliação podem
fornecer informações relevantes para a idealização de uma linha
construtiva de gerenciamento. Além disso, a investigação sobre
a ocorrência desse tipo de comportamento negativo e seus
antecedentes pode levar também à construção de um modelo
aprimorado para as relações entre chefias e subordinados, um
estímulo à busca da disseminação da cultura de meritocracia, do
desenvolvimento e amadurecimento das relações, do incremento
à prática do feedback, do reconhecimento e da avaliação com
mais justiça.
Uma limitação deste estudo se deve ao fato de que
os resultados demonstraram a percepção de frequência de
comportamentos de retaliação e não a frequência em si, ou a
intensidade, de maneira que os dados são indiretos e mais
51
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52
imprecisos. Ademais, os comportamentos investigados podem
não ser de retaliação, ou seja, podem ocorrer não em resposta
à percepção de uma situação de desequilíbrio nas relações de
troca no trabalho, mas por diversos outros fatores de ordem
pessoal ou situacional externas ao trabalho. Não obstante, a
confiabilidade do instrumento aplicado foi averiguada e sua
utilização pode ser recomendada para aquelas organizações que
queiram investigar a percepção global de seus funcionários em
relação ao fenômeno da retaliação.
Como sugestão para futuras pesquisas, recomenda-se
a realização de estudos mais aprofundados que investiguem
aspectos da cultura organizacional em paralelo à percepção e
julgamento de comportamentos de retaliação. Recomendase também o acréscimo de outros elementos de investigação
como relacionamentos entre chefias e subordinados e variáveis
psíquicas individuais. Outra forma de aplicação para mensuração
de frequência e intensidade também seria interessante para o
desenvolvimento dessa linha de estudo. Além disso, seria
interessante a aplicação do mesmo instrumento a outras
organizações públicas e a instituições privadas, seja para
conhecer melhor a ocorrência do fenômeno, seja para tentar
identificar as prováveis diferenças existentes em relação à
ocorrência da retaliação em organizações públicas e privadas.
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Recebido em março/2013
Revisado em maio/2013
Aceito em junho/2013
52
R E L ATO D E P E S Q U I S A
Cuidado do trabalhador: vivências a partir da reforma psiquiátrica
Care workers: experiences from the psychiatric reform
Julyana Sontag(a)*, Márcio André Schiefferdecker(b), Silvia Virginia Coutinho Areosa(c)
Resumo: Este artigo retrata uma pesquisa que buscou identificar como os trabalhadores de um CAPS II, no município
de Santa Cruz do Sul, vivenciam e dão sentido à reforma psiquiátrica, e como as experiências no serviço têm afetado
a sua saúde. Para tanto, buscou-se conhecer as principais dificuldades enfrentadas no trabalho desenvolvido no
CAPS. Além disso, procurou-se identificar a existência de mecanismos de prevenção e tratamento ao adoecimento
dos profissionais, e como estes entendem o cuidado de si. O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa
conforme estabelece resolução 196/96 do CONEP e utilizou-se de um roteiro de entrevista semi-estruturada em uma
abordagem de caráter qualitativo, com questões relacionadas a temas referentes a reforma psiquiátrica, implementação
do CAPS, adoecimento, saúde mental, e cuidado. Dentre os resultados, verifica-se que os trabalhadores mencionam
dificuldades relacionadas à crescente demanda de atendimento, trabalho em equipe, a influência de decisões
políticas e carga horária exaustiva.
Palavras chaves: Reforma Psiquiátrica, Trabalhadores, Cuidado.
Abstract: This article shows a survey to identify how the workers of a CAPS II, in Santa Cruz do Sul, experience and
give meaning to the psychiatric reform, and how the service experiences have affected their health. To this end, we
sought to understand the main difficulties in the work of the PCC. In addition, we sought to identify the existence
of mechanisms for the prevention and treatment of occupational illness and how they understand their self care.
The project was approved by the Research Ethics Committee as established by resolution 196/96 CONEP and used a
structured interview in a semi-structured qualitative approach, with questions related to issues relating to psychiatric
reform, implementation of CAPS, illness, mental health, and care. Among the results, it appears that the workers
mentioned difficulties related to the growing demand for care, teamwork, influence policy decisions and workload
exhaustive.
Keywords: Psychiatric Reform, Workers, Care.
a Psicóloga formada pela UNISC, funcionária do CAPS I de Vacaria.
*E-mail:[email protected]
b Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
c Psicóloga. Dra. em Serviço Social e Bolsista PDJ/CNPq pela PUCRS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional da UNISC.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
53
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O trabalho ocupa um papel fundamental para o ser humano
para muitos é ele quem dá sentido à vida. O trabalho é fator
relevante na constituição da identidade e também na inserção
social dos indivíduos e, pode aparecer como fator constitutivo de
adoecimento e/ou de saúde mental (Abreu et al., 2002).
Segundo Albarnoz (2000), o termo trabalho (tripalium –
tortura) nos remete a noção de sofrimento e padecimento. Já
para Dejours (1992), não é o trabalho que adoece, mas sim sua
organização, que inclui a divisão de tarefas, o seu conteúdo e a
divisão dos trabalhadores para executá-la.
Ramminger (2006), ao contextualizar historicamente a
trajetória e a subjetivação do trabalhador de saúde mental,
pontua períodos onde a organização do trabalho se fez
notadamente presente, como no século XIX. Nesta época, os
cuidados com o doente mental eram reservados ao médico
psiquiatra, detentor do poder, e ao enfermeiro psiquiátrico, que
sempre acompanhava os confinados, com a função de vigilante.
No Brasil, a reforma psiquiátrica surge mais concretamente
no final da década de 70, com a redemocratização, em um
momento político e social extremamente facilitador, que tinha
como fundamentos não apenas uma crítica ao sistema nacional
de saúde mental, mas também – e principalmente – uma crítica
ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas. O movimento da
reforma psiquiátrica oscila entre uma proposta de transformação
psiquiátrica e de uma organização de trabalhadores que
reivindicam direitos. Essa organização dos trabalhadores da área
foi denominada como Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental – MTSM, e assumiu um papel fundamental na reforma a
ser realizada (Amarante, 1995).
A política de saúde mental brasileira baseia-se na Reforma
Psiquiátrica Italiana que propõe mudanças significativas no
antigo modelo de assistência, prevendo a substituição do
modelo asilar, para um modelo psicossocial. Desta forma ocorre
um processo denominado desinstitucionalização, que se refere à
construção de uma rede de serviços alternativos, na qual recursos
governamentais são destinados ao atendimento comunitário
(Silva & Costa, 2008).
Entretanto o processo de desinstitucionalização é mais
abrangente do que transformar o modelo hospitalocêntrico
de atenção, substituindo-o por uma rede de atenção integral
à saúde mental. Essa ruptura do antigo modelo assistencial
à saúde mental para o proposto pela reforma psiquiátrica
corresponde a um deslocamento do foco centrado na doença
mental para os cuidados dirigidos à pessoa doente. O processo
de desinstitucionalização não poderia ser reduzido ao “simples
fechamento dos velhos, sujos e violentos hospícios. Mais do
que derrubar paredes, muros e grades, desinstitucionalizar
significa desmontar estruturas mentais (formas de olhar) que se
‘coisificam’ e se transformam em instituições sociais” (Melman,
2006, p. 59).
A retirada do hospital psiquiátrico do centro das ações no
tratamento da loucura fez surgir à necessidade de criação de
programas e serviços destinados a auxiliar aqueles portadores
de grave e persistente sofrimento psíquico. Com esta proposta
surgiram os CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, que são os
resultados das reflexões relativas aos movimentos da reforma
psiquiátrica, com iniciativas inovadoras e visão de saúde
comprometida com a atenção psicossocial (Silva, 2007).
Os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS constituem-se
em serviços de tratamento intensivo e diário aos portadores de
sofrimento psíquico grave, configurando-se numa alternativa
ao modelo centrado no hospital psiquiátrico, caracterizado
por internações de longa permanência e regime asilar.
Fundamentado na reforma psiquiátrica, trouxe novos olhares,
exigências e formas de se relacionar com a loucura (Brasil, 2004).
A nova forma de tratamento considerada recente por
autores como Koda e Fernandes (2007), Onocko-Campos e
Furtado (2006), e Ramminger (2006), surgiu há pouco mais
de vinte anos em nosso país, despertando grandes interesses
que culminam nas mais variadas pesquisas e estudos,
principalmente sobre as vantagens de se “tratar loucura” em
CAPS. Os pesquisadores, porém, parecem não vislumbrar que o
sucesso e a crescente disseminação desses serviços substitutivos
dependem, essencialmente, dos profissionais que neles atuam.
No que se refere a organização do trabalho/cuidado em
saúde mental, a inclusão de diferentes profissionais da área,
simpatizantes ou não com o movimento proporcionam novas
reflexões. Desta forma as vivências e modos de significar esse
processo por parte dos mesmos, atravessam e subjetivam estes
trabalhadores (Ramminger, 2006).
Ainda hoje, a forma como estes serviços se constituem,
obedece a uma organização hierárquica e a uma forma de
controle. Nesse sentido, pode-se perceber, apesar de negada e
contestada, uma divisão de poder, como referida por Foucault
(1997), que permanece visível nos CAPS, o que contradiz
relatórios e apologia do movimento antimanicomial.
Pode-se somar a isso o fato de a grande maioria dos
técnicos do CAPS são servidores públicos concursados que, em
troca da estabilidade financeira, enfrentam além das angústias
do trabalho em si, práticas que os sobrecarregam, discursos
políticos mal contextualizados, troca de gestores e colegas,
poucas perspectivas de crescimento profissional e salarial, falta
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62
de investimento e autonomia, pressão no ambiente de trabalho,
principalmente quanto a sua produção, e a redução de custos
e verbas, que prejudica sua capacitação, desenvolvimento de
projetos e, conseqüentemente, seu desempenho. Outro item que
pesa é o da carga horária a cumprir, além do temor e vergonha
de se reconhecer adoecido e toda a implicação que isso causaria
(Ramminger, 2006).
Enfim, a Reforma Psiquiátrica trouxe além das exigências
e das “novas” formas de lidar com a loucura, um contexto real
que difere do preconizado por suas propostas. Por se tratar
de problematizações recentes, são poucas as pesquisas que
abordam sobre o trabalhador de saúde mental ou suas vivências,
bem como, as que lançam olhares para a saúde do profissional
desta área e as políticas de cuidado com a sua saúde.
Conforme Dejours (1992), ainda hoje em dia há
uma tendência no mercado de trabalho de não aceitar ou
reconhecer o sofrimento mental e a fadiga, mas somente
doenças que sejam confirmadas por um profissional da saúde.
Complementando, Ramminger (2006) expõe que há uma
dificuldade de se estabelecer relação entre o sofrimento mental
e o trabalho, em função destes sofrimentos acabarem travestidos
como problemas funcionais para com a chefia ou organização,
atritos nas relações interpessoais fora do trabalho, ou ainda, por
manifestações orgânicas.
Desta forma esta pesquisa buscou verificar como os
trabalhadores do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS II de
Santa Cruz do Sul vivenciam e dão sentido à reforma psiquiátrica,
e se as experiências no serviço têm afetado a saúde destes,
procurando conhecer as principais dificuldades enfrentadas no
trabalho desenvolvido no local, bem como se a carga horária
e conseqüentemente o tempo de permanência com o usuário
traz algum adoecimento ao trabalhador. Além disso, procurouse identificar a existência de mecanismos de prevenção e
tratamento ao adoecimento dos profissionais cuidadores e a
existência de políticas públicas direcionadas aos mesmos.
Método
A amostra constituiu-se de oito participantes, seis com nível
de escolaridade superior e dois com nível médio, trabalhadores
do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS II, de Santa Cruz do
Sul. A pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada utilizandose de um roteiro de entrevista semi-estruturada, constituído por
dezenove perguntas.
Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da
UNISC-CAAE nº 0174.0.109.000-09 foi realizado contato com
o local e solicitado relação dos profissionais interessados em
participar da pesquisa, bem como os dias e horários disponíveis
para as entrevistas. Inicialmente o critério estabelecido para
participação era de quatro sujeitos com nível de escolaridade
média e quatro de nível de escolaridade superior, com tempo de
trabalho no local de pelo menos três anos. Porém houve pouca
adesão à proposta da pesquisa, sendo necessário refazer os
critérios para a participação e utilizar estratégias de divulgação
e aderência à mesma. Para tanto foi necessário fazer uso de
recursos tais como esclarecimentos referentes aos objetivos
deste estudo aos trabalhadores do serviço, que se deu através
de contatos tanto por telefone quanto pessoalmente no CAPS
II. Também foi elaborado e posteriormente exposto um cartaz
com dados referentes aos objetivos da pesquisa, nome dos
pesquisadores e telefone para contato.
Através da relação dos inscritos, estabeleceu-se contato
para agendar a data e o horário das entrevistas. As entrevistas
foram realizadas conforme a disponibilidade dos profissionais no
próprio serviço, sempre com a presença de dois pesquisadores.
Antes das entrevistas foram esclarecidas dúvidas, explicada a
proposta da pesquisa e entregue o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido para ser assinado. As entrevistas foram
gravadas com o consentimento dos entrevistados, representados
por nomes fictícios e depois de transcritas na íntegra, foram
descartadas. Após análise, construiu-se um mapa de associação
de ideias, mantendo-se as falas bem como sua sequência
inalterada, aparecendo as intervenções dos pesquisadores.
Este mapa tem o objetivo, segundo Spink (2000), de
sistematizar o processo de análise das práticas discursivas
em busca dos aspectos formais da construção lingüística, dos
repertórios utilizados nessa construção e da fala implícita na
produção de sentidos. Segundo a autora, a construção dos
mapas inicia-se pela definição de categorias gerais, de natureza
temática que refletem, sobretudo, os objetivos da pesquisa.
Spink (2000) discorre que na perspectiva construcionista,
tanto o sujeito como o objeto são construções sócio-históricas
que precisam ser problematizadas e desfamiliarizadas. A
pesquisa com esse entendimento é um convite a examinar essas
convenções e, entendê-las como regras socialmente construídas
e, historicamente localizadas.
Segundo a autora o enfoque nas falas não deve apenas
recair sobre a regularidade e consenso, mas principalmente sobre
a volubilidade, bem como, a polissemia das mesmas, ou seja, o
foco sobre as práticas discursivas e não sobre o discurso. Desta
forma a interpretação das falas não se dá de forma cristalizada,
mas pelo contrario, esta é circular e inacabada, bem como, os
55
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62
sentidos do encontro entrevistador-entrevistado, concedendo agendamentos, o que pode contribuir para o não adoecimento,
possibilidades infinitas a cada trama gerada.
pois, segundo Dejours (1997), a inflexibilidade da organização
do trabalho impede a expressão do desejo do trabalhador, que
Resultados e Discussão
não consegue se constituir a partir de seu trabalho, o que lhe
traz sofrimento e adoecimento. O trabalho favorável à saúde
Das entrevistas realizadas, procurou-se estabelecer das pessoas é aquele que tem a sua organização flexível,
categorias a fim de identificar discursos e sentidos que possibilitando que o trabalhador possa adaptá-la a seus desejos,
contemplassem os objetivos da pesquisa. Assim elencaram- às necessidades de seu corpo e às variações do seu estado de
se quatro grandes categorias: Características do trabalho espírito.
(subdividida em: especificidades, contato com usuário, e
Dentre as dificuldades relatadas estão a superlotação
dificuldades enfrentadas); Adoecimento do Cuidador; Prevenção do CAPS II, além do tempo que é dedicado aos pacientes do
e Tratamento do Cuidador; e Reforma Psiquiátrica.
ambulatório. Amarante (1995) discorre sobre a mudança de
modelo provindo da Reforma Psiquiátrica onde é previsto
Características do Trabalho
uma gradativa substituição dos serviços ofertados. Nesse
Com relação às especificidades do trabalho, a carga horária sentido o reforço da rede de saúde também aparece na fala
dos entrevistados varia entre 20 a 36 horas semanais. A maioria dos profissionais do local, onde este precisaria ser ainda muito
dos participantes referiu estar mais de 80% de seu tempo de melhorado.
serviço em contato direto com os usuários. Apesar de considerar
“às vezes o que nos atrapalha é a grande demanda de
apropriado, alguns discorrem que esse tempo de trabalho paciente e a gente acaba com aquela sensação de será que
poderia ser planejado ou otimizado, se não fosse a grande estamos dedicando tanto tempo o quanto deveríamos pros
demanda por atendimentos.
pacientes de CAPS ou será que a gente ta se dedicando mais pros
“Eu acho que é um tempo (...) para talvez também se pacientes de ambulatório?” (Clarissa).
dedicar a outras coisas que tragam benefício ao usuário, que fosse
Cabe aos CAPS promover a reinserção social bem como
interessante, que é a questão de se estar fazendo projetos. É um ações intersetoriais, a supervisão a atenção à saúde mental na
tempo que nos falta realmente. É uma coisa complicada, é um rede básica, de forma que sua inserção possa vir a ultrapassar
tempo que talvez tenha que ser qualificado” (Anabella).
a própria estrutura física do serviço, em busca de maior suporte
O tempo e a intensidade no contato com o usuário é, social, o que poderia potencializar as ações. Para isso, é necessário
segundo Ramminger (2007), proporcional ao esgotamento um bom funcionamento da rede de atenção, sendo a falta de
emocional e estresse crônico dos trabalhadores em saúde recursos sociais, mais uma das dificuldades apresentadas, pois
mental. Nas entrevistas observa-se que grande parcela dos dificulta uma rede integrada que possa dar conta da história,
profissionais entrevistados acredita que uma carga horária cultura, vida cotidiana, bem como da singularidade do sujeito,
superior a 20 horas semanais pode vir a ser muito desgastante assim como a reinserção deste na sociedade (Brasil, 2004).
aos trabalhadores do CAPSII.
O preconceito atua na contracorrente deste modelo, desde
“Eu acho que é pesado (...) tu ter tantas horas em contato o preconceito da sociedade, das famílias, e também da própria
com o sofrimento é pesado né, mas ao mesmo tempo é rede de saúde. Foi apontada nas entrevistas a necessidade
gratificante porque tu vê a evolução dos que se envolvem com o do apoio da família, de que essa assuma responsabilidades
tratamento (...) mais do que 20h no local de trabalho eu acho que para com o tratamento do usuário. O exercício da cidadania e
é massacrante, eu acho que o pessoal que trabalha 36h e 40h é inclusão social dos usuários, bem como, de suas famílias parece
pra matar, eu acho que ai é muito pesado” (Marie).
ficar comprometido quando estes são rotulados como “loucos”,
De acordo com Onocko-Campos, citada por Ferrer (2007) “empurrados ou passados adiante” desta forma ao CAPS II como
o trabalho na área da saúde acarreta em um contato direto com se este fosse o “lugar” do doente mental. Preconceitos como
o sofrimento alheio, culminando em um desgaste diferente este, demonstram a necessidade do diálogo e discussão sobre o
dos profissionais de outras áreas, por ficarem constantemente tema, logo, pressupõe um espaço para tal. Acredita-se que este
expostos a dor, sofrimento, e até a morte das pessoas doentes. espaço não deva ser apenas em congressos de Saúde Mental,
Em contraponto a isso, alguns profissionais relatam ter controle mas possa haver uma circulação mais corriqueira do tema, em
com relação a demanda atendida, por exemplo através dos diversos setores da saúde.
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Essa segregação dos usuários ligados ao local de tratamento
também parece contribuir mais com o aumento da demanda.
O funcionamento do serviço como um ambulatório, segundo
o relato dos entrevistados, divide a atenção entre os pacientes,
o que possivelmente levaria a esta insegurança com relação
à dedicação que é dada aos usuários portadores de graves e
persistentes sofrimentos psíquicos.
Por conta de uma demanda expressiva a questão da
produção aparece em diversos momentos nas entrevistas, nas
quais segundo relatos o trabalho que não se dá diretamente
com os usuários, como o realizado para consolidar redes de
atendimento, não é reconhecido como produção, que muitas
vezes acaba sendo confundido com agendas lotadas. Desta
forma, cabe questionar qual a atenção que se dá a qualidade
dos serviços substitutivos, pois a pressão por conta do número
de atendimentos parece vir não tão somente da demanda, mas
também dos próprios profissionais que tentam dar conta disso e,
assim, a cobrança aparece de forma velada.
Em princípio, na percepção da maioria dos entrevistados,
não há no local, pressões relacionadas a questões políticas. No
entanto, conforme os mesmos refletiam sobre o tema, percebiam
que a interferência política por vezes também vem a dificultar o
trabalho no CAPS II, principalmente com relação a questões mais
administrativas. Isso parece ocorrer principalmente nas falas que
relatam os momentos onde a equipe não está muito unida,
podendo estar mais propensa a submissão, seja por pedidos de
atendimentos, ou por troca de pessoal.
Em geral os funcionários de nível superior parecem gozar de
boa autonomia em seu trabalho, onde os mesmos têm liberdade
de criar espaços terapêuticos, porém parece bem saliente o fato
de essas possibilidades serem levadas e decididas na reunião
da equipe. Já os técnicos de nível médio parecem não dispor da
autonomia relatada até então. Segundo os dados das entrevistas
eles aparentam se submeter a muitas coisas, mas por outro lado,
também tem a liberdade de levar suas inquietações à reunião.
Como aponta Ramminger, Palombini e Silva (2007), não é algo
simples romper com um modelo hierarquizado das funções,
onde mesmo nos serviços de Saúde Mental há ainda uma
divisão social do trabalho.
Foram levantadas nas entrevistas vivências dos profissionais
no CAPS II que falam das possíveis ameaças de agressão recebidas
de pacientes, ou por questões emocionais intensas, que levam
os mesmos a se depararem com uma gama muito grande de
conflitos. O trabalho dentro deste serviço é certamente muito
complexo, e pressupõe uma grande rede de relações entre as
pessoas, conforme essa relação se estende desde os saberes,
poderes, afetos e desejos dos trabalhadores da Saúde Mental,
onde é fundamental o desenvolvimento de tarefas em conjunto,
sendo o todo maior que a soma das partes (Fortuna et al. citado
por Filizola, Milioni & Pavarini, 2008) .
Por ser um ambiente complexo, por vezes é exigido mais
dos profissionais do que suas especialidades, além disso, o
contato direto com o usuário pode expor tais profissionais a
intenso sofrimento. Nos CAPS, os profissionais de saúde se
deparam com uma gama de demandas que necessitam de
trabalho interdisciplinar e multiprofissional, que são cotidianas,
como o sofrimento psíquico intenso, além da agressividade
por parte dos usuários. Tais situações podem vir a afastar o
usuário do profissional, assim a relação de cuidado se daria a
nível institucional, ao invés de uma relação de cuidado do tipo
médico-paciente (Ballarin, Carvalho & Ferigato, 2009).
Do Adoecimento ao Tratamento e Prevenção
A partir das falas dos entrevistados, evidencia-se a crença
relacionada ao fato de grande parte da equipe ser concursada,
o que contribui para o seu posicionamento frente a questões
políticas, como a promoção de igualdade de acesso e tratamento
a todos que buscam o serviço. Outros fatores mencionados
foram a união da equipe e o tempo de existência do serviço, o
que promove o cumprimento dos “trâmites” de entrada para
atendimento, mais uma vez evidenciando a percepção da
existência de igualdade no acolhimento dos usuários.
Com relação a este aspecto, aparece na fala de um
entrevistado, que o fato da equipe ser concursada contribui
para que se protejam da pressão política e de produtividade,
se posicionando tecnicamente em relação aos atendimentos.
Assim, pode-se evidenciar que há movimentos em busca de
soluções para as questões que se apresentam, havendo menor
pressão no local de trabalho, o que se relaciona diretamente a
uma amenização do sofrimento dos trabalhadores (Dejours,
1992).
Na Grécia antiga o cuidado estava diretamente relacionado
ao cuidado de si, mas voltado ao coletivo, a partir da crença de
que para bem governar, primeiro é preciso governar bem a si
próprio (Ramminger et al., 2007). Assim verificou-se que alguns
entrevistados trazem em suas respostas a preocupação em estar
bem consigo mesmo para desempenhar um bom trabalho.
Isso aparece através de falas que mencionam a importância
dos trabalhadores buscarem tratamento psicológico para
enfrentar as dificuldades no atendimento aos pacientes e evitar
o seu adoecimento, já que trabalham em contato direto com o
sofrimento do outro.
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“tu precisa estar minimamente bem contigo para ouvir o
outro. (...) tu vai querer entrar em contato com o sofrimento, e pra
ti conseguir fazer isso de forma a auxiliar a contribuir com aquela
pessoa, tu tem que ta minimamente bem contigo. (...) É essencial
para tu não misturar os teus problemas, pra tu saber o limite do
teu envolvimento com o paciente”(Jane).
“a gente acaba se tratando pra que isso não perturbe demais.
(...) eu acho bem importante que as pessoas da nossa área
tenham seus tratamentos em algum momento da vida”(Clarissa).
A existência desse reconhecimento de cuidado com a
saúde por parte dos trabalhadores do serviço é positiva, na
medida em que contribuem para a transformação do modo de
trabalho, podendo inclusive conduzir o profissional a uma nova
construção da identidade e, consequentemente, contribuir para
a autorrealização no cuidado de si e do outro (Machado, citado
por Silva & Costa, 2008).
Apesar dos profissionais da saúde passarem a impressão de
que cuidam de si mesmos, os trabalhadores sofrem um grande
desgaste emocional (Fernandes et al., citado por Damas, Munari
& Siqueira, 2004). Mesmo assim, o adoecimento apareceu na
minoria das respostas dos entrevistados, e não diretamente
relacionado com o trabalho. A maioria dos entrevistados cita
pessoas conhecidas que adoeceram no trabalho com saúde
mental, apesar de tomarem cuidado ao considerar que o
trabalho pode ter contribuído.
Também apareceu na pesquisa a percepção de que
funcionários estagiários estariam mais propensos ao
adoecimento, por falta de preparo e experiência. O adoecimento
assim parece ser associado mais facilmente ao nível de
experiência do profissional da saúde, sendo que quanto menos
experiência profissional, maiores os riscos de adoecer. Nesse
sentido, é importante a implantação de planos voltados ao
desenvolvimento pessoal e profissional destes trabalhadores,
devendo buscar o fortalecimento das relações interpessoais, e
a prevenção/promoção em saúde física e mental dos mesmos.
Quando questionados sobre a existência de políticas de
cuidado com o trabalhador, a percepção dos entrevistados é a
de que não há uma política clara, entendendo que há somente
ações individuais e não voltadas para a prevenção. Os mesmos
evidenciam dúvidas na definição de ações que poderiam ser
adotadas para promover o cuidado dos trabalhadores e sentem
falta de um olhar voltado para esta questão. Para alguns, cuidar
do cuidador constitui-se em proporcionar cursos, promover
condições dignas de trabalho e promoção de espaços para
discussão. É evidente a expectativa de cuidado, sendo citada a
supervisão como uma forma de cuidado com os trabalhadores
e com o serviço, auxiliando no questionamento das práticas
adotadas no local, a partir de um olhar externo, ou seja, um
espaço para discussão.
“Não existe uma política clara. Isso é uma coisa que agente
sonha que a coordenação municipal consiga construir” (Marie).
“(...) é mais ou menos assim, cada um que faça por si”
(Clarissa).
“a gente fala tanto em políticas do cuidador, tanto na
necessidade disso (...) mas não existe não, assim uma coisa que
seja determinada” (Anabella).
“pra mim fica muito abstrato o que é cuidar do cuidador né?
Afinal de contas o que é cuidar o que é possível ser feito nesses
espaços que possam ser espaços também de cuidado de quem
cuida?” (Jane).
Analisando esta expectativa, pode-se entender que estes
espaços para discussão de fato contribuem para o cuidado dos
trabalhadores, à medida que promovem a reflexão sobre as suas
práticas e experiências. Porém não se entende como suficiente
somente investir em capacitação e formação.
O cuidado é um conceito complexo, que está ligado a
história de sobrevivência da humanidade e provavelmente se
constitui como a mais antiga prática da história. O significado
de cuidado envolve dois sentidos que se inter-relacionam, e que
dizem respeito a uma atitude de atenção e zelo voltada ao outro.
Há também preocupação e inquietação relacionadas a um laço
afetivo criado a partir deste cuidado (Boff, citado por Damas et
al., 2004).
De acordo com Ballarin et al. (2009), a partir da Reforma
Psiquiátrica as transformações das práticas de cuidado só
são possíveis com a valorização de novos saberes, e pelo
reconhecimento do saber do outro, pois tanto usuário quanto
profissional estão “em cena”. Já de acordo com a perspectiva
ética, o cuidado não está relacionado apenas a uma atitude ou
ato, mas a uma reflexão, onde a prática profissional pressupõe o
respeito pela natureza humana, um a priori existencial.
Ainda para o autor, o cuidado deve possibilitar a
reorganização do processo de trabalho, com a implicação
dos profissionais de saúde mental, que possibilite a escuta,
a atenção e o respeito às pessoas. Deve também pressupor
o reconhecimento e a aceitação de si mesmo, no sentido de
incrementar a consciência do sujeito com relação aos seus
problemas, e a partir daí desmistificá-los, visando um resgate da
cidadania, procurando voltar à totalidade do ser humano.
Na dimensão política, o cuidado relaciona-se a autonomia,
a garantir direitos de cidadania, levando em consideração
o contexto histórico onde são geradas as relações de ajuda-
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poder. Ou seja, conhecer para cuidar melhor, e cuidar para
emancipar, buscando o reconhecimento da pessoa humana e
suas implicações dentro desse contexto, visando à reconstrução
da autonomia e o resgate da cidadania.
Portanto, mesmo atitudes já citadas como a implantação
de planos voltados ao desenvolvimento pessoal e profissional,
são de grande importância e constituem-se em atitudes de
cuidado. Nestes, é deveras importante buscar o fortalecimento
das relações interpessoais, e a prevenção/promoção em saúde
física e mental dos profissionais (Fernandes et al., citado por
Damas et al., 2004).
O foco do cuidado com o cuidador, além de ser um assunto
muito recente (Ramminger, 2006) apresenta certas questões que
parecem bem problemáticas, como o fato de os atendimentos
dos trabalhadores da área da saúde, quando adoecem, se dar no
próprio serviço.
“Acontece, colegas da prefeitura acontece, agora, a gente ahn,
vinha um tempo atrás falando sobre isso, e dizendo, e as vezes se
negando atender, porque achava que não era isso, que não era o
melhor para as pessoas e tal”(Lina).
Apesar da maioria dos profissionais entrevistados
mencionarem gostar do que fazem, aparece nas falas, a
percepção de a carga horária excessiva poder contribuir para o
adoecimento dos trabalhadores.
“Se tu viver 24 horas o teu trabalho tu acaba virando o teu
trabalho, e ai com o que tu lida? Com doenças, sofrimento. (...)
Uma das coisas é esta questão de tu ter assim alternativas né, ter
lazer, ter férias, te dar folga, por isso eu acho que quem ta mais
com carga horária tem tendências a adoecer um pouco mais”
(Marie).
intrínsecas atreladas a essa nova forma de tratamento.
Corroborando com as falas de que “não vamos dar conta da Saúde
Mental do município” ou, da necessidade para que “o paciente
possa circular e não pensar que tem que se tratar só no CAPS”,
o Ministério da Saúde pontua a necessidade de articulação de
um trabalho em rede. Este é inerente à proposta da reforma
antimanicomial, sendo fundamental para sua consolidação
pois, somente um serviço ou equipamento, não conseguirá dar
conta da demanda, nem garantirá resolutividade, promoção da
autonomia e da cidadania das pessoas com transtornos mentais
(Brasil, 2005).
Assim, com o aumento da demanda é imprescindível a
ampliação da rede de atendimento à saúde mental, como foco
de pautas, de conversações entre os diferentes dispositivos de
atenção à saúde mental no Brasil. Em especial no CAPS II de
Santa Cruz do Sul, esse trabalho apesar de ser reconhecido como
de suma importância, começou a ser desenvolvido há pouco
mais de dez anos.
Para a formação e sustento de uma rede é necessária
permanente articulação entre instituições, associações,
cooperativas e demais espaços que tendem a ser habitados,
consolidando-se assim como comunitária. Neste sentido o
território passa a ser entendido não apenas como uma área
geográfica, mas de pessoas, instituições, redes e cenários da
comunidade (Brasil, 2005).
Em síntese, a rede precisa acolher e atender também essa
demanda, e entender
“(...) que não é só CAPS reforma, CAPS é só um dispositivo.
Acho que a gente tem que sair do pensamento que reforma
psiquiátrica é CAPS para poder trabalhar mais dentro de outros
conceitos também, por exemplo, em Santa Cruz do Sul a gente
Nesse sentido, uma reflexão sobre o trabalho, bem como, vem conseguindo hoje, juntar a atenção básica pra poder ampliar,
as vivências no mesmo são fundamentais para a construção de se não a gente volta a ter umas novas institucionalizações que são
um serviço que pressupõe movimento e participação de diversos dentro de um serviço especializado, né”(Anabella).
atores.
Os CAPS como dispositivos não são os responsáveis
Reforma Psiquiátrica
únicos pelo atendimento e organização da rede de atenção às
O processo da Reforma Psiquiátrica avança lapidado por pessoas com transtornos mentais no município. Eles seriam os
desafios, impasses, conflitos e tensões. Assim, pode-se falar que articuladores estratégicos, o cerne de uma nova clínica produtora
ele trouxe além das exigências e das “novas” formas de lidar com de autonomia, que convida o usuário à responsabilização e ao
a loucura, um contexto real diferenciado do preconizado por protagonismo em toda a trajetória do seu tratamento (Brasil,
suas propostas (Ramminger, 2006).
2005).
Nesta pesquisa ficaram aparente diferentes vivências
Conforme Rabelo e Torres (2005), as palavras que norteiam
relacionadas à Reforma Psiquiátrica, principalmente pautadas as práticas da reforma psiquiátrica são a cidadania, a reinserção
na importância da sua implantação e conseqüentemente, na e compromisso técnico-político, o que garante e aponta para
mudança da forma de atendimento, além das dificuldades vantagens de se “tratar a loucura”em CAPS. Dentre estas práticas,
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ressalta-se as estratégias terapêuticas que são repensadas
semanalmente nas reuniões de equipe, como ter um ambiente
acolhedor e promovedor de saúde, formular planos individuais
terapêuticos a cada usuário, oferecer atividades terapêuticas e
de geração de renda, prestar orientação e acompanhamento
de medicação, visitas domiciliares, atenção e atendimento
a familiares de usuários, e a maior delas, prevenir e evitar o
confinamento dos doentes mentais em hospitais psiquiátricos.
Os CAPS não são serviços intermediários entre a
hospitalização e os ambulatórios, são centros de referência por
excelência, é o dispositivo principal, não restrito a uma clientela
fixa (psicóticos crônicos que necessitam de cuidados intensivos,
passando a incluir ações de cuidado semi-intensivo e não
intensivo). Os CAPS, portanto, atendem pessoas portadoras
de graves e crônicos transtornos mentais, e auxiliam a rede a
acolher a demanda de atendimentos tidos como mais leves,
para assim não centralizar o atendimento, nem transformar
o local, que seria um serviço de alta complexidade, ou seja,
especializado, num grande ambulatório (Ramminger, 2006).
No CAPS II de Santa Cruz do Sul, segundo o relato dos
entrevistados, há uma grande reflexão referente à questão do
atendimento oferecido. Para a maioria há uma preocupação
com o atendimento aos usuários deste serviço, que estaria
funcionando como um grande ambulatório,
“(...) acho que o Caps ta virando ambulatório. E aí a
gente passa a não investir na questão da ressocialização, essa
reabilitação. Essa sim eu acho que é uma das coisas que cabe
mais pra nossa realidade aqui em Santa Cruz do Sul, damos conta
de um ambulatório acho que muito bem, Mas ainda temos que
pensar que se a gente seguir dando conta de um ambulatório, o
Caps vai ficando um pouquinho mais escondido” (Anabella).
Essa preocupação de repensar e reformular as práticas, a
rotina do local e a dos trabalhadores é referida por Rabelo e Torres
(2005) como fundamentais. Ramminger (2006) menciona que a
Reforma Psiquiátrica evidencia esta importância, principalmente
quando argumenta que o serviço pode voltar a funcionar
em suas práticas, com alguns resquícios da antiga forma de
tratamento e, refere que as propostas da reforma psiquiátrica
não devem ser reduzidas à mera desospitalização, pois, sua luta
é pela desinstitucionalização, ou seja, por outras formas de se
relacionar com a “loucura”.
Na construção de novas práticas, Nassere (2007) salienta
que é de responsabilidade dos profissionais a sua organização,
atentando para que se mantenham alinhadas às premissas da
Reforma Psiquiátrica. O trabalhador de saúde mental hoje se
constituiria nessa ambivalência entre o continuar exercendo
suas atividades diariamente, ou parar e repensar suas ações e
da instituição onde trabalha. Seria habitar um espaço tenso,
atravessado por diferentes formações discursivas, até chegar a
um entendimento de que não basta apenas o seu conhecimento
técnico-científico, mas também envolvimento político e afetivo.
Quando questionados sobre como era lidar diária e
diretamente com as premissas da Reforma Psiquiátrica, as
experiências variaram entre respostas que apontaram para uma
proposta importante, humanizadora e curiosa, mas também
difícil e desafiadora, pois estaria constantemente sendo
ameaçada, além de referirem que há ambivalências no dia a dia.
“uma série de coisas dentro da própria reforma que a gente
faz questionamentos e reflete no nosso dia a dia. Isso faz parte
das discussões mesmo, de construções, de mudanças” (Anabella).
Esses movimentos ambivalentes dentro da própria reforma,
afetam e induzem os trabalhadores a uma militância:
“A gente precisa lutar e precisa marcar um espaço, e precisa
lidar com o preconceito também, que ainda é grande” (Jane).
“é uma batalha, a gente às vezes fica com aquela sensação
de que aquilo que a gente conquistou, ta conquistado e que
ninguém mexe, e a gente vê que seguidamente agora vem esses
questionamentos de falta de leito psiquiátrico, que é culpa da
reforma, então a gente se vê assim tendo que repensar algumas
conquistas que a gente tinha como certas, e a gente tem que ta
sempre batalhando por elas” (Clarissa).
Ramminger (2007, p.1) refere que o trabalho em saúde
mental constrói-se, hoje, com base em diferentes formações
discursivas, que vão desde a crença de que,
cuidar é uma forma de caridade (discurso religioso),
passando pela afirmação de que é a ciência que pode falar do
tratamento da loucura (discurso científico), até o entendimento
de que não basta apenas conhecimento técnico-científico, mas
também implicação política e afetiva com a construção de um
outro modo de se relacionar com a loucura (discurso da reforma
psiquiátrica).
Para Rabelo e Torres (2005), isso caracterizaria, novamente,
a separação entre o discurso oficial e as práticas concretas
desenvolvidas nos serviços de atenção à saúde mental, e seria
outro indício dessa imprecisão vivenciada diariamente pelo
profissional da saúde mental.
“(...) tem muita coisa assim que precisa ser reafirmada, gente
se sente constantemente ameaçado, tem um grupo grande que
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por questões econômicas vem lutando contra a lei para poder
abrir, achar uma brecha, para poder abrir hospitais psiquiátricos,
para ganhar financeiramente com isso,(...) então é essa discussão
que a gente faz, de que a sociedade é conduzida a pensar que
essa lei tá errada, que essa lei prejudica, e é conduzida a pensar
que só trata internando né, que tem toda uma mídia por trás que
é comprada também, e que também ta favorecendo essa pessoas
que querem ganhar em cima da Saúde Mental que da muito
dinheiro, já se sabe disso, a custos baixíssimos, né, dando um
serviço muito precário e ganhando muito em cima dessa pessoas
né”(Jane).
Em Santa Cruz do Sul, foi a partir de 1996 que ocorreram
as primeiras reivindicações acerca das mudanças do cenário
manicomial, graças às criticas dos novos profissionais da saúde
aprovados em concurso público municipal que denunciaram
a precariedade dos serviços de Saúde Mental prestados no
município, e que eram realizados até então pela “Clínica Vida
Nova”. Estes profissionais se reuniram para discutir e refletir sobre
as novas formas de políticas de Saúde Mental, calcadas nas
premissas da Reforma Psiquiátrica. Além desta já vir ocorrendo
em diversas regiões do Brasil, começou a se evidenciar questões
como o abandono dos pacientes pelos familiares, soberania da
classe médica, gastos públicos exorbitantes com os tratamentos,
devido às constantes reinternações que denunciavam a
inadequação dos mesmos, além da exclusão social e, ausência
de direitos dos pacientes mentais.
No entanto, esse processo de desinstitucionalização não se
daria de forma fácil, pois não ia apenas contra o saber da ciência
médica, mas contra uma forma de perceber a “loucura” pelo
senso comum. Contra todas as resistências, em 17 de março de
1997 foi inaugurado o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS
II de Santa Cruz do Sul, e assim mesmo a Clinica Vida Nova
continuou funcionando, vindo a fechar somente em 1999.
O relato dos participantes indica que a região do Vale do
Rio Pardo estaria bem ofertada de serviços de CAPS. E o CAPS
II de Santa Cruz do Sul, estaria garantindo dignidade para os
pacientes, acreditando que o serviço daria conta das premissas
que a Reforma Psiquiátrica preconiza.
“acho que teve muitas conquistas, os CAPS são um exemplo
disso como serviços substitutivos com aquela ideia assim de que
tem que internar, tem que segregar, ficar isolado né, não que
não necessite internar (...) a gente precisa ter internações, mas a
grande parte da nossas internações são aqui no Hospital Santa
Cruz, então não precisa ir pra um hospital psiquiátrico, alguns
casos até precisa, mas são bem menores (...) não vamos dizer
que a internação não é válida, não é necessária, ela é, mas cada
vez menos e é isso que a gente tenta fazer aqui” (Jane).
Segundo Silva (2007), os CAPS possuem um modelo
organizacional que orienta o seu funcionamento, porém cada
um tem suas próprias características relacionadas à sua história e
ao contexto no qual o mesmo está inserido. No entanto a autora
destaca que os CAPS não estão baseados em modelos “prontos”,
ou seja, as práticas não estão cristalizadas, pois se trata de um
serviço em construção, logo é importante que haja espaço para
discussão. A questão do trabalho em equipe e suas oscilações
aparecem tanto como um aspecto positivo, no sentido da união
e fortalecimentos em busca de uma visão diferenciada da
saúde mental, como negativo, quando não transcende relações
hierarquizadas e cristalizadas, sendo que por vezes chegam a ser
multi, mas não interdisciplinares. Com relação à carga horária ao
mesmo tempo em que há satisfação, fica claro que esta pode ser
cansativa para os profissionais, sobretudo, para aqueles de nível
médio de escolaridade.
Infelizmente, questões referentes ao serviço são
implementadas sem consentimento ou conhecimento dos
profissionais que ali trabalham, pois são decisões políticas a
mercê das trocas de gestão. Entende-se que a autonomia está
intrinsecamente atrelada a decisões de toda a equipe, que pode
por um lado enriquecer as relações, mas por outro, tende a
burocratizar projetos e ações tanto internas como externas.
Considerações Finais
A partir desta pesquisa pode-se verificar que os
trabalhadores mencionam dificuldades relacionadas à crescente
demanda de atendimento, que acaba transformando o local em
um grande ambulatório. Tal situação é agravada pelo preconceito
que ainda existe por parte da sociedade com o portador de
sofrimento psíquico.
Nota-se que no CAPS II em estudo, o cuidado com o cuidador
é um tema que não está muito claro para os profissionais, em
parte devido à complexidade referente ao cuidado na área da
saúde. Evidencia-se em suas práticas discursivas uma ênfase
no cuidado do outro, à medida que o cuidado de si se justifica
apenas em prol deste outro, vindo, portanto, a acrescentar na
qualidade do serviço prestado.
Enfim, este é um tema recente, porém de fundamental
importância. É a partir das vivências dos atores que compõem a
Saúde Mental que ocorre o movimento responsável por manter
viva a Reforma Psiquiátrica. Assim, fica perceptível na fala dos
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participantes a produção de sentidos, conforme discorriam sobre Ramminger, T. (2006). Trabalhadores de saúde mental: reforma psiquiátrica,
saúde do trabalhador e modos de subjetivação nos serviços de saúde
seu trabalho e suas vivências, o que contribui significativamente
mental. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.
para a problematização dos pressupostos deste movimento.
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Recebido em março/2013
Revisado em junho/2013
Aceito em junho/2013
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R E V I S ÃO D A L I T E R AT U R A
Revisão literária sobre a relação de resiliência com
conceitos psicanalíticos
Literature review on the relationship of resilience with psychoanalytic concepts
Mariana Steiger Ungarettia
Resumo: O presente artigo pretende relacionar alguns conceitos que originalmente provém de abordagens
aparentemente distintas, todavia, ao termos um entendimento do psiquismo humano, percebemos as semelhanças
entre estes conceitos. Ao realizarestudos sobreresiliência (termo da física que se baseia na capacidade de um objeto
recuperar-se, de se moldar novamente depois de ter sido comprimido, expandido ou dobrado, voltando ao seu
estado original), percebe-se a possibilidade de relacionar essaideiaa abordagens psicanalíticas. Através de teorias
trazidas por Freud e seus contemporâneos, este trabalho enfatiza a importância da relação do sujeito incipiente com
seu objeto primordial para a formação de recursos psíquicos que proporcionam o desenvolvimento da capacidade
de resiliência. Como auxilio para a construção desta revisão teórica, estabelecerei um enfoque em situações de abuso
sexual por ser um trauma recorrente da atualidade a fim de tornar inteligíveis os conceitos abordados.
Palavras-chave: Resiliência; Recurso Psíquico; Relações de Objeto.
Abstract: This article intend to relate some concepts that originally comes from apparently different approaches,
howeverwe realize the similarities between them. When we start the studies of the concept of resilience (a term from
physics that is based on ability to recover an object, to re-shape after being compressed, expanded or folded back to
its original state), we see the possibility to relate this concept with psychoanalytic approaches. Through the concepts
brought by Freud and his contemporaries, this paper focuses the importance of the relationship between individuals
and their primary object to the development of the psychic resources that makes possible the development of
resilience. As an aid to the construction of this theoretical review, established a focus on cases of sexual abuse to be a
recurring trauma of today in an attempt to make intelligible the concepts covered.
Key words: Resilience, Psychic Resources, Object Relationship.
a Psicóloga, psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica
* E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Ao buscar conceitos que sustentassem o estudo sobre
resiliência, foram encontrados os autores Dell’Aglio, Koller
e Yunes (2006) que abordam, em seu livro “Resiliência e
Psicologia Positiva”, estudos longitudinais realizados por
Werner e Smith, com início nos anos 50, como exemplo de
uma pesquisa direcionada para asconseqüências dos efeitos
cumulativos da pobreza, do estresse perinatal e dos cuidados
familiares deficientes no desenvolvimento da criança. Estes
estudiosos perceberam que nem todas as crianças que
passaram por esses fatores de risco apresentavam dificuldade
de aprendizado ou comportamento. Embora não tivessem como
objetivo primordial estudar a resiliência, já nesse trabalho podese observar a existência dessas características em comum nas
crianças estudadas, despertando, assim, uma maior curiosidade
acerca deste assunto.
Para Kotliarenco, citado por Junqueira e Deslandes (2003),
desde os fins dos anos 70 se discute que algumas crianças criadas
por pais alcoólatras não apresentavam ‘carências’ biológicas ou
psicossociais, mas sim uma ‘adequada’ qualidade de vida. Dos
anos 80 em diante há um interesse crescente por conhecer essa
habilidade/capacidade de enfrentar de forma positiva fatores
estressores. Segundo Slap (2001), a evolução da pesquisa sobre
resiliência deu-se, entre outros motivos, com o intuito de explicar
aqueles adolescentes que, contra todas as expectativas, evitavam
comportamentos prejudiciais e vivenciavam bons resultados de
saúde. Estruturas sociais em mudança, migração do campo para
cidade e rupturas familiares eram fatores associados a uma lista
de ‘novas morbidades sociais’, que incluíam lesões corporais,
violência, abuso de substâncias químicas, doenças sexualmente
transmissíveis e gestações não planejadas.
No artigo de Slap (2001), é citado que, em uma conferência
realizada anteriormente, Robert Blum sugere uma abordagem
de problemas para a saúde do adolescente enfatizando que a
presença da autoestima, da união familiar que gera proteção de
modo universal e do aumento dos recursos sociais, permitem a
melhoria das suas capacidades de lidar com situações adversas
futuras. Neste mesmo encontro, Bengt Lingstrom apresentou
um conceito de resiliência baseado em fatores individuais,tanto
características biológicas (inatas do ser humano), como as
psicológicas e sociais, contexto ambiental, acontecimentos ao
longo da vida e fatores de proteção. Esses componentes, segundo
Lingstrom, citado por Slap (2001), se unem para formar um
banco de recursos que pode proteger o adolescente que possui
capacidade de usá-lo.
Desta forma, a resiliência pode ser vista como o resultado
da interação entre aspectos individuais, contexto social,
quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida
e os chamados fatores de proteção encontrados na família e no
meio em que vive. Segundo Junqueira e Deslandes (2003), cabe
notar que embora o conceito de resiliência seja uma novidade
para a saúde publica, o campo da psicologia busca a elaboração
simbólica diante do sofrimento humano. Para eles, a resiliência
não é um processo estanque nem linear, visto que um indivíduo
pode se apresentar como resiliente em determinada situação,
mas posteriormente não o ser frente à outra.
A partir dessas constatações, é possível discutir se,
conceitualmente, pode-se estabelecer uma relação entre
o entendimento da capacidade de resiliência e conceitos
psicanalíticos, que, mesmo aparentemente diferentes, podem
ter na psicanálise uma teorização de como o ser humano tornase capaz de desenvolver essa capacidade perante situações
traumáticas e acontecimentos inesperados.
Diante de traumas e demais situações adversas se
observam, na psicanálise, implicações fundamentais que
demonstram como o sujeito adquiriu recursos para lidar com
os fatos. É trazida, principalmente, a importância do Outro nas
funções inaugurais das primeiras marcas psíquicas da criança.
Desta forma, para Moraes e Macedo (2011), é na qualidade dos
atendimentos às necessidades da criança via ação especifica
proporcionada pelo semelhante que está o alicerce para fundar
o sujeito como ‘sujeito psíquico’. Nesse sentido, fica atribuído
ao que está no início da vida do bebê, a condição de ponto de
partida, de base de desenvolvimento.
A partir de 1910, Freud passa a introduzir, em sua
teorização, o conceito de narcisismo,bem como diversos quadros
psicopatológicos como as psicoses e as neuroses narcísicas.
Nesses quadros psicopatológicos, o trauma começa a ocupar
um local de destaque, passando a ser olhado com mais atenção.
Desta forma, se pode pensar na relação entre trauma, objetos e
simbolização.
Trauma e resiliência
Segundo Freud, em sua obra “Além do princípio do prazer”
(1920), são denominadas traumáticas as excitações externas
que rompem a camada protetora do ego contra estímulos. Esse
acontecimento pode provocar grave perturbação na economia
energética do organismo e acionar todos os mecanismos de
defesa, o principio do prazer é colocado fora de ação. Assim,
Freud conclui que só resta ao organismo tentar lidar com esse
excesso de estímulos capturando e enlaçando-o psiquicamente
para poder processá-lo. Percebe-se, então, a existência da
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capacidade do ser humano de processar esse excesso. Na falta
de recursos psíquicos mais complexos, a partir de uma matriz
forjada pelo excesso, o resultado final dá-se em ato, descrevendo
a dinâmica psíquica do traumático. Para Moraes e Macedo
(2011), a predominância de intensidades em um psiquismo
precário que não encontra na simbolização uma possibilidade
de expressão, o ato aparecerá como ‘válvula de escape’.
Outra questão na qual se percebe que, freqüentemente, a
conseqüência acaba sendo no ato diante da falta de recursos,
seria no caso do abuso sexual. Ao pensarmos o abuso como
um trauma, salienta-se a importância de reconhecer que
este fato pode trazer intensas conseqüências para o futuro do
sujeito abusado, ampliando, assim, o entendimento de como o
sujeito lida com a satisfação e a insatisfação das pulsões diante
do trauma. Segundo Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005), para
que se dê a satisfação da pulsão e a representação desta, é
preciso que existam objetos primordiais, isto é, o autoerotismo
e o narcisismo surgirão da satisfação da pulsão e do objeto
auto-erótico. É necessário ter havido um objeto real, a mãe,
que através da sua função de para-exitações, ensina ao bebê o
caminho da simbolização. Assim, passa a existir a possibilidade
de recalcamento, não entrando em cena a compulsão à repetição.
Portanto, a existência do objeto materno que proporciona a ação
especifica, é fundamental. Semo qual, o sujeito fica submetido
aos objetos que existem concretamente como forma de descarga
pulsional, o que caracteriza o trauma.
Partindo do princípio que a capacidade de resiliência se
desenvolve desde os primeiros tempos do bebê, antes mesmo da
ocorrência de situações possivelmente traumáticas, Laplanche
e Pontalis (2001) definem trauma como “um acontecimento
da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela
incapacidade que se encontra o sujeito de reagir a ele de
forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos
duradouros que provoca na organização psíquica”(p. 522). Os
autores conceituam,então, o trauma como excitações excessivas
perante a capacidade do sujeito de elaborar psiquicamente essas
excitações.
O tema do trauma é abordado por Freud inicialmente ligado
à realidade do vivido e posteriormente considerando a existência
da fantasia, proporcionando a discriminação entre realidade
externa e interna. Moraes e Macedo (2011) entendem o trauma
como experiência de excesso, que escapa à seqüência de
tradução interna do ocorrido, gerando ausência representacional
do fato no psiquismo. Desta forma, trata-se de resgatar a vivência
de satisfação como uma experiência primeira de enfrentamento
entre intensidades e recursos de metabolização. Percebe-se,
assim, uma singular articulação dessas intensidades na vida do
sujeito.
Freud menciona em “Além do princípio do prazer” (1920),
mais um modo especifico de lidar com as excitações internas que
provocam um aumento excessivo de desprazer. É abordada, neste
momento, uma tendência a lidar com essas excitações internas
como se elas viessem do exterior, para poder utilizar contra elas
os mesmos mecanismos de defesa empregados pela camada
protetora externa contra os estímulos externos, sendo esta a
origem da projeção. Na mesma obra, Freud traz a importância
do conceito de susto na teoria do choque, pois caracteriza o
susto como ausência de prontidão para o medo. Tal prontidão,
portanto, implicaria a existência de um sobreinvestimento de
camadas de energia depositado nos sistemas que receberão
os afluxos de estímulos antes dos outros. Freud supõe, enfim,
que, para um grande número de traumas, o fator decisivo para a
resolução talvez resida no fato de alguns sistemas não estarem
preparados para enfrentar o medo, ao passo que outros, devido
ao estoque de sobreinvestimento de cargas de energia, já estão
preparados.
Relações de Objeto
As experiências de prazer com o objeto capaz de realizar a
ação específica modelam o psiquismo, segundo Elzirik, Aguiar
e Schestatsky (2005). Todavia, observa-se outra vertente da
capacidade de simbolização realizada pelo objeto materno: o
desenvolvimento psíquico relaciona-se também com a perda
da relação inicial com o objeto primordial, tendo esse objeto
uma função tanto por sua presença como por sua ausência em
um momento posterior. A perda da relação inicial com o objeto
materno é essencial à simbolização, assim, se instalando, na
questão da ausência, a criatividade que possibilita a simbolização.
Entretanto, acontece que nem sempre a ausência do objeto
leva à simbolização, pois a falta do objeto pode ter vários destinos
e a elaboração dessa falta pode ser de diferentes modos. Portanto,
frente ao traumatismo inicial, o abusador é o real que lhe resta,
a relação abusador/abusado se da na base da compulsão à
repetição, do sadismo e do masoquismo respectivamente
(Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005). Assim,Junqueira e
Deslandes (2003, p. 6), dizem que, “Se a resiliência pode ser
desenvolvida através de relações de confiança e apoio, o foco de
atenção na saúde das crianças e adolescentes desloca-se para o
cuidar, isto é, para o fato de elas serem cuidadas e acreditadas
como sujeito em desenvolvimento”.
Além do abuso sexual, existem outras possibilidades
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de maus tratos, sendo os mais conhecidos: físicos, sexuais,
psicológicos e a negligência. Cyrulnik (1999) e Steinhauer
(2001), citado por Junqueira e Deslandes (2003), ponderam que
a possibilidade de re-significação do trauma sofrido em distintas
fases da vida (na própria infância, na adolescência e mesmo na
idade adulta) seria uma importante contribuição do conceito de
resiliência para tal problemática dos maus tratos. A resiliência,
portanto, deseja representar um novo olhar, uma re-significação
do problema, mas que não o elimine, pois constitui parte da
historia do sujeito.
Segundo Junqueira e Deslandes (2003), o fato de a pessoa
ter passado por situações traumáticas como o abuso, não
significa que ela vai tender a ser agressor, mas pode desenvolver
seqüelas outras tais como: tentativas de suicídio e abuso de
álcool e drogas, como é abordado muitas vezes em algumas
leituras deterministas. No entanto, a resiliência rompe com
uma noção através da qual o agredido vira agressor, isto é, onde
sujeito se vê aprisionado a um ciclo sem saída.
Na questão do abuso sexual intrafamiliar, talvez seja
mais polêmica a aplicação do conceito de resiliência, pois um
dos tópicos centrais seria o estabelecimento de uma relação
de confiança da criança com um adulto de referência. Nessa
circunstância, o adulto que deveria ocupar o lugar de suporte
da criança viola um dos tabus mais graves de nossa sociedade,
o incesto. A criança busca então a compreensão de outro adulto
suporte, de forma a poder elaborar o que passou. Porém esse
outro adulto (ou mesmo o agressor), não admitindo a verdade
das palavras da criança, nega, desmentindo-a. O desmentido
incide sobre o desamparo desta criança, levando-a a uma cisão
onde ela se sente inocente e culpada, negando qualquer chance
de a criança dar sentido psíquico ao que passou (Junqueira &
Deslandes, 2003).
No caso do abuso pode se observar que, em geral, existe uma
história prévia do sujeito com os objetos antes da cena de abuso
sexual, uma historia anterior traumática de abandono, gerando,
assim, uma dificuldade do sujeito de simbolizar o fato ocorrido.
Portanto, poderíamos considerar a situação de abuso como
traumatismo secundário, um segundo tempo do traumático
sucedido por traumatismos precoces, bem como citado no
livro de Moraes e Macedo (2011), ao abordarem as implicações
traumáticas da indiferença vivida com o objeto primordial.
Portanto, as autoras concluem que a leitura metapsicologica do
trauma implica evidenciar a importância do acontecimento nas
experiências primordiais do sujeito com o objeto cuidador.
A partir desses propostos, Moraes e Macedo (2011)
sublinham a função do outro no controle do campo de
intensidades, tanto na realização de uma função apaziguadora,
como na falta dessa função, deixando o psiquismo incipiente,
desprotegido de excessos. Assim, aborda-se a importância da
qualidade dessa tramitação de energia, que geram recursos para
investimentos objetais posteriores.
Baseando-se em aportes freudianos de “Projeto para
uma psicologia científica”, Moraes e Macedo (2011) apontam
a importância do encontro com o semelhante no cenário do
desamparo como condição de inauguração do psiquismo
incipiente, resultando em capacidades de estruturação do si
mesmo. Assim, o desenvolvimento de tal raciocínio gera uma
reflexão no que diz respeito à articulação dessas intensidades na
vida do ser humano. As autoras concluem, então, que é a
condição e a ajuda alheia que permitem à criança experienciar
uma estabilidade no atendimento de suas necessidades e
instaurar vias colaterais que inaugurem certa autonomia em
relação à ausência do objeto. Desta forma, enfatizam o valor das
vivências primordiais do encontro com o outro e seus efeitos a
posteriori.
Ao abordar todas essas questões, os autores referidos acima,
trazem um importante conceito, que demonstra de maneira
clara, a forma com que o semelhante influencia na formação
do psiquismo desamparado. Questões trazidas nos textos
sobre Narcisismo demonstram a relevância do movimento
identificatório no processo de construção do si mesmo. Nesse
cenário, o conceito de narcisismo retoma a importância da
qualidade das relações existentes entre o eu e os objetos. Propõese, assim, que aquilo que é oferecido pelo objeto externo terá
papel decisivo na configuração da imagem de si. Nesse sentido,
é trazido que,para que haja autoconservação, esse eu tem que
ter sido narcisizado. Quando o narcisismo mostra a possibilidade
de investimento sexual no eu, evidencia a qualidade do que é
oferecido de fora ao aparelho psíquico incipiente. Assim, via
internalização dos enunciados identificatórios parentais, a
história da construção do sujeito conta o que passou a fazer parte
de si mesmo.
Moraes e Macedo (2011) pontuam que a condição para
formação da pessoa como sujeito psíquico se refere ao fato de
que esta seja cuidada com uma qualidade libidinal prazerosa, de
maneira que o outro consiga diferenciar-se da criança. Ter sido
visto como ‘um outro’, para o outro primordial, permite com que
o ‘eu’ possa investir o outro no campo da alteridade. Para Macedo
(2005), para que ocorra essa etapa do desenvolvimento libidinal,
chamada narcisismo, é necessário que o eu, uma nova ação
psíquica, some-se ao auto-erotismo. No momento em que o eu
se diferencia do não-eu, isto é, tem uma imagem unificada de si
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mesmo, toma forma o narcisismo. Neste momento, o ego toma
a si como objeto de amor, isto é, a libido encontra um objeto
de investimento. Assim, é fundamental para a constituição do
eu um investimento parental, caracterizada por uma sensação
ilusória do bebê de plenitude.
Observa-se no texto de Freud “Sobre o Narcisismo: uma
introdução” (1914), que este enfatiza a influência da atitude
dos pais em relação aos filhos, fazendo parte do momento de
narcisização do sujeito. Aborda em sua obra o fato de essa atitude
ser uma revivência e reprodução de seu próprio narcisismo:
assim, os pais se encontram na situação de atribuir todas as
perfeições ao filho. Além disso, para Freud, esses pais sentem-se
inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento
de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi
forçado a respeitar, e renovar em nome dela as reivindicações
aos privilégios há muito por eles próprios abandonados.
Neste momento de sua obra, caracteriza essa etapa como ‘sua
majestade,o bebê’, é trazido que o amor dos pais nada mais é
senão seu narcisismo renascido, que transformado em amor
objetal, revela sua natureza anterior.
Ainda sobre esse aspecto, Macedo (2005) enfatiza a
importância de Freud trazer em sua obra a função narcisista que
as relações de objeto têm, definindo como função que o objeto
pode ter para o eu como sustentação da autoestima e de sua
própria identidade.
Percebe-se, portanto, a influência do período chamado
narcisismo para a formação do sujeito, viabilizando a criação de
recursos psíquicos conforme essa fase da vida que se desenvolve.
Freud refere em sua obra “Luto e Melancolia” (1915/1917),
uma base narcísica encontrada na escolha objetal. Compara os
sujeitos que, diante de uma perda real, realizam um luto normal
com aqueles que não investiam sua libido nos objetos perante
as perdas e, desta forma, substituíam o investimento objetal por
uma identificação, chamando melancolia. Assinala, portanto,
que enquanto na vivência de um luto normal o sujeito trabalhará
psiquicamente para, aos poucos, desligar-se do objeto perdido,
reinvestindo sua libido em outros, na melancolia o sujeito
começa a culpar-se pela perda ocorrida.
No livro “Vivência de indiferença” de Moraes e Macedo
(2011), as autoras fazem uma análise do mito de Narciso
trazendo questões que ilustram a teoria do narcisismo.
Segundo as mesmas, Narciso não é desejado pelos pais, pois
está ausente no mito todo o processo descrito por Freud em
relação ao fato de o filho representar para os pais um objeto de
investimento amoroso. Assim, o outro, ou seja, os pais como
objetos primordiais, por sua pobreza afetiva, condenam o eu
incipiente a uma história de repetição em suas relações externas,
expressando-se com ódio e rancor.
As pessoas que construíram um eu resiliente, segundo
conceitos abordados por Taralli e Thomé (2009), contaram com
a presença de figuras significativas e estabeleceram vínculos,
seja de apoio ou de admiração. Essas experiências de apego e
confiança permitiram com que houvesse um desenvolvimento
da autoestima e autoconfiança. Ao discutir tais questões por um
aporte relacional, diferentemente do aporte pulsional abordado
até então, percebemos contribuições significativas na teoria de
Winnicott. O autor traz a importância do ambiente em que a
criança se encontra para a constituição dos recursos psíquicos de
seu psiquismo, contribuindo, então, para nossa idéia de entender
arelação dos recursos psíquicos desenvolvidos desde a primeira
infância com a capacidade de resiliência do ser humano.
Para Winnicott (1982), o ego seria a parte da personalidade
que tende a se integrar a uma unidade, desde que sob condições
favoráveis. Neste caso, a mãe suficientemente boa é aquela que
é capaz de satisfazer as necessidades da criança tão bem que na
saída da matriz do relacionamento mãe e filho é capaz de ter
uma breve experiência de onipotência. Desta forma, o lactante
começa a acreditar na realidade externa que surge e se comporta
como por mágica; a mãe age de modo a não colidir com a
onipotência do bebê.
Quando a mãe não é suficientemente boa, a criança não
é capaz de começar a maturação do ego, ou então ao fazê-lo
o desenvolvimento do ego ocorre necessariamente distorcido
em certos aspectos vitalmente importantes. Uma satisfação
alimentar, por exemplo, pode ser uma sedução e pode ser
traumática se chega a criança sem apoio do funcionamento do
ego (Winnicott, 1982). Quando o autor faz referência à saúde
psíquica, trás que esta deve ser considerada em termos de
crescimento emocional, consistindo assim em uma questão de
maturidade que envolve gradualmente o ser humano em uma
relação de responsabilidade com o ambiente.
Na teoria de Milner, de 1934, citado por Winnicott (1975),
a continuidade do cuidado tornou-se característica central
na visão de ambiente facilitador e somente assim, o bebê
em dependência pode ter continuidade na linha de sua vida,
evitando-se o estabelecimento de um padrão de reagir ao
imprevisível e sempre começar novamente.
Interessa para Winnicott (1975), a riqueza da felicidade
que se constrói na saúde e que não se constrói na falta de saúde
psíquica. Refere que nem sempre um ambiente com riquezas
materiais, necessariamente vai ser um ambiente facilitador,
valorizando as relações parentais como primordiais, independente
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69
das possibilidades financeiras. Dirigindo o olhar à miséria e à
pobreza, não somente com aversão, mas também considerando
a possibilidade de que para uma criança pequena, uma família
pobre pode ser mais segura e melhor do que uma família
em uma casa encantadora, onde não exista superpopulação,
inanição, insetos ou ameaça constante de doenças físicas, mas
que, no entanto, a criança pode sofrer por negligência dos pais.
Desta forma, é possível concluir pelos escritos de Winnicott que,
mesmo que uma criança tenha vivido na total miséria, se ela foi
criada em um ambiente suficientemente bom, isto é, recebendo
os devidos cuidados e afetos parentais, ela pode, sim, ter grande
capacidade de resiliência perante situações adversas futuras.
Ao entendermos a importância da fase inicial de vida
do ser humano para o desenvolvimento de recursos psíquicos,
percebemos a relação dessa fase como conceito de resiliência
trazido por Moraes e Koller (2004), citado por Dell’Aglio, Koller
e Yunes (2006), que levam em consideração a interação do
indivíduo com o ambiente em que freqüenta. Utilizam também
o entendimento dinâmico dos fatores de risco e de proteção,
em que os fatores de risco seriam relacionados a eventos que,
quando estão presentes na vida do cidadão, aumentam a
probabilidade deste apresentar problemas físicos, psicológicos e
sociais. Já os fatores de proteção estão ligados a influências que
modificam, melhoram ou alteram conseqüências individuais a
riscos de desadaptação.
Cowan e Schults, na década de 90, citados por Dell’Aglio,
Koller e Yunes (2006) relacionam a resiliência ao risco da
seguinte forma: “resiliência refere-se aos processos que operam
na presença de risco para produzir conseqüências boas ou
melhores do que aquelas obtidas na ausência de risco”(p.14).
Para Junqueira & Deslandes (2003), embora o enfoque de
risco e a resiliência sejam diferentes, são aspectos que se
complementam. Slap (2001) lembra que resiliência não é o
oposto a risco e não deve ser vista como um fator de proteção.
Voltando ao aporte pulsional, percebe-se a questão da
sublimação que não deixaria de ser também uma forma de
resiliência. Para que a pessoa desenvolva o recurso da sublimação
(em quese observa a presença sexual em expressões culturais,
na arte, na religião), é preciso que ela tenha uma base psíquica
desenvolvida ebem narcisizada, capaz de direcionar sua libido
em diversos objetos não sexuais.
No livro “Sublimação: clínica e metapsicologia” (Castiel,
2007) são trazidas colocações sobre a forma que a sexualidade
participa do processo psíquicos da sublimação. Processo esse,
conceituado pela autora como uma realização pulsional que se
dá mediante a simbolização e que se transformará em criação do
sujeito na cultura. Trazendo também contribuições de Laplanche
e Pontalis (2001), observa-se a conclusão de que a sublimação
está ligada ao traumatismo, assim, abrindo o caminho para
a ligação e a simbolização ao invés de seguir o caminho da
compulsão a repetição. Segundo Castiel (2007), na sublimação
abre-se a possibilidade de se constituir outros objetos,
vinculando este processo ao desenvolvimento da alteridade e
formas alternativas de obter prazer. A partir desses pressupostos,
podemos concluir a contribuição do processo sublimatório para
o desenvolvimento da capacidade de resiliência do sujeito.
De maneira que esse processo ocorre mais facilmente em
um psiquismo com um certo recurso psíquico desenvolvido,
percebe-se que, portanto, a sublimação é uma forma saudável
de elaborar e descarregar pulsões que demandam liberação no
sistema inconsciente. Castiel (2007) traz que no ato de sublimar
percebe-se uma capacidade de obter prazer a partir de outras
formas de satisfação que não sejam as originalmente desejadas.
Para o entendimento de sublimação, é trazida no livro uma
comparação com o conceito de retorno do recalcado, que por sua
vez, gera um sintoma, diferente do processo de sublimação. No
recalcamento, a satisfação da pulsão é impedida em relação a um
objeto, permeada por um contra-investimento do psiquismo,
que impede a descarga total dessa pulsão inconsciente. Percebese, portanto, que o processo sublimatório constitui-se de
maneira distinta do recalcamento para conter a força pulsional.
Desta forma, mesmo mantendo-se uma demanda pulsional, a
descarga na sublimação é dessexualizada, ou seja, a libido se
satisfaz a partir de outros objetos e não de uma forma imediata.
Considerações Finais
Ao entendermos a relação do sujeito com seu objeto
primordial, percebemos sua importância na constituição de seu
psiquismo, bem como na elaboração de capacidade simbólica
desse sujeito. Encontramos nas relações de objeto, a origem dos
recursos psíquicos que podem, futuramente, proporcionar uma
capacidade de resiliência para o sujeito. Capacidade esta, que
graças aos recursos proporcionados em sua criação primordial,
permite que um ser humano vivencie as mais diversas situações
adversas e consiga elaborá-las. Desta forma, observa-se a
importância do processo de narcisização, no qual o bebê de fato
tenha ocupado seu lugar de majestade e vivenciado sensações
de apaziguamento de suas tensões.
Diante do estado de estresse, Taralli e Thomé (2009)
trazem que o indivíduo, como meio de mobilizar recursos que
viabilizem a adaptação, aciona diversos sistemas do corpo
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69
humano (como nervoso, endócrino, imunológico) liberando
neurotransmissores e hormônios. Alguns estudos afirmam que,
mesmo diante de uma situação ameaçadora, algumas pessoas
demonstram capacidade de resiliência, apesar da dificuldade
do fato. Resiliência, portanto, é uma força que algumas pessoas
possuem de enfrentar as situações traumáticas e de reorganizarse, transformando essa experiência em acréscimo de melhores
recursos e habilidades pessoais.
Ao pensar as possibilidades de intervenção pelo viés da
resiliência, Junqueira e Deslandes (2003), apostam no reforço
do diálogo e na tolerância no seio da família, reafirmando a
importância da autoestima das crianças e adolescentes, da
divulgação de seus direitos e do respeito a seu corpo. Outra
forma de intervenção seria buscar um fim a serie de abusos,
oferecendo a vitima e a família uma ajuda assim que desvelada
e interrompida a violência. Por fim, o terceiro tipo de intervenção
seriam as diversas modalidades de psicoterapia, de modo a
prevenir consequências mais desastrosas, auxiliando a criança
e sua família a dar sentido e a elaborar o evento. Em ambos os
casos a prevenção encontra-se baseada na escuta da criança,
onde ouvi-la e acreditar nela fará toda uma diferença no processo
de superação do trauma.
Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005) trazem os conceitos
de patético em oposição ao trágico em seu livro. O patético é
quando o sujeito torna-se presa de uma realidade material, ou
seja, quando o acidental traumático impede a construção de
enigmas sobre o acontecimento. Já o trágico, relaciona-se aos
enigmas que alguém tenta responder frente ao que lhe acontece.
Para os autores, então, estar no domínio do trágico relaciona-se
com questionar-se sobre qual o destino do sujeito e o porquê dos
objetos através dos quais a pulsão se satisfaz. Estar na dimensão
do trágico relaciona-se a que um sujeito se responsabilize pelo
seu futuro e seu destino, podendo ultrapassar a questão da culpa
do outro ou da própria. Desta forma, questiono se esse conceito
de trágico usado não poderia ser entendido também como
capacidade de resiliência do ser humano, visto que, o sujeito
passa a ter a possibilidade de não permanecer preso à situação
traumática, estabelecendo formas mais saudáveis de lidar com
o ocorrido.
Elzirik, C., Aguiar, R., & Schestatsky, S. (2005). Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre:
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Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
Recebido em dezembro/2012
Revisado em abril/2013
Aceito em maio/2013
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Dell’Aglio, D., Koller, S., & Yunes, M. (2006). Resiliência e Psicologia
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69
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Interlocuções entre psicologia crítica e método histórico
Dialogue between critical psychology and historical method
Heriel Luza, Branca Maria de Menesesb, Alexandra Ayache Anachec
Resumo: O objetivo desse artigo é o de refletir sobre as considerações e concepções da história que balizam as
metodologias dos pesquisadores Merani (1977), Figueiredo (1992/2007) e Horkheimer (1932/1990) buscando
apontar pistas para uma Psicologia Histórica. A escolha por esses autores de períodos e epistemologias distintas
decorreu de suas posturas analíticas e da tomada que fizeram da história enquanto produção e realização humanas,
razão por que cada um deles contribui para a construção de vertentes críticas em diferentes áreas da psicologia.
Apesar de seus distanciamentos teóricos buscou-se, por meio do recurso da dialética, produzir um diálogo entre
eles convidando ainda outros autores à discussão, sem com isso justapô-los ou reconciliá-los. Almeja-se, a partir das
questões suscitadas aqui, contribuir para interlocução entre psicologia crítica e história.
Palavras-chave: Psicologia histórica; Dialética; Revisão.
Abstract: The aim of this article is to reflect on the concepts and considerations that outline the history in the
methodologies of researches Merani (1977), Figueiredo (1992/2007) and Horkheimer (1932/1990) seeking to identify
clues for a Historical Psychology. The choice for these authors from distinct periods and epistemologies was due to
their analytical postures and historical takes on human production and realization, reason why each has contributed
for the construction of critical pillars in distinct Psychology areas. Despite the diferences in their theories it was
attempted, by means of the dialectical resouce, to induce a dialog about their theories adding further ideas from
other authors, avoiding overlaps or reconciliation. The main goal is to allow the exchange between Critical Psychology
and History by approaching critical topics throughout this article.
Keywords: Historical Psychology; Dialectical; Review.
a Aluno Bolsita do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, nível Mestrado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.
*E-mail:[email protected]
b Professora, Doutora do Programa em Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.
c Professora, Doutora do Programa em Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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O objetivo deste artigo é apontar para a possibilidade,
baseada em uma interlocução entre o método histórico e
psicologia, de um delineamento do conceito de Psicologia
Histórica. Para isso serão analisados, por meio de revisão
bibliográfica fundamentada na análise dialética, os sentidos
atribuídos à história e à psicologia entre alguns teóricos de
referenciais críticos. Essa síntese, contudo, nem de longe esgota
as possibilidades de análise e não teve a pretensão de chegar a
uma ontologia conceitual do termo ‘psicologia histórica’, e sim
construir possibilidades de diálogo entre pesquisadores dessa
temática, evidenciando as contribuições de Merani (1977),
Figueiredo (1992/2007) e Horkheimer (1932/2007), cujos
referenciais teóricos ora se aproximam e ora se distanciam.
O primeiro dos autores aqui apresentados destacou
brevemente a história da inserção da psicologia enquanto um
conjunto de técnicas fabris úteis à maximização da demanda
e do consumo capitalistas, sem a eleição de um objeto
homogêneo; o segundo apontou para a constituição históricocultural da subjetividade, assumindo-a como a grande questão
da investigação em psicologia, recorrendo a fontes culturais
diversas, como a arte, a filosofia, a sociologia, o direito, etc;
o último, por sua vez, buscou analisar e construir a partir da
filosofia, um método de análise histórica que faça da psicologia
um instrumento de denúncia à opressão. A possibilidade de
assunção da história como recurso crítico em psicologia, porém,
excede o proposto pelos autores, por sua riqueza, amplitude e
tensão oriundas da contradição que engendra. No entanto, tendo
em vista a necessária circunscrição da temática e buscando-se
destacar o emprego feito por cada um deles, esses três autores
foram aqui privilegiados.
Merani e o lugar da história em uma Psicologia a
serviço do capital
Para Merani (1977), a história aplicada à psicologia,
mesmo aquela factual, deve ter um papel duplo, de produção
de conhecimento e denúncia, embora essa tarefa seja difícil. Em
primeiro lugar porque exige a dedicação e esforços constantes
necessários à produção de uma práxis sólida e, em segundo
lugar, porque obriga ao auto-desmascaramento, posto que
a história da psicologia coincide com a do desenvolvimento
das organizações capitalistas contemporâneas, cujo objetivo é
acumular capital a qualquer custo.
Segundo esse autor, o florescer da ciência psicológica
conjuntamente com o desenvolvimento das formas de produção
capitalistas não ocorreu por mero acaso, pelo contrário, ela deu
apoio ao poder e inseriu o campo da investigação psicológica
no alicerce da exploração do trabalhador. Embora os estudos da
psique possam resultar na melhoria das condições de vida do
homem, quando a ciência psicológica se afasta de sua função
crítica, ela acaba por desvirtuar seu próprio princípio, anulandose como conhecimento científico e filosófico, convertendo-se
em máscara para velar a alienação e manter a ordem de coisas.
Além disso, preterindo a história, tanto a metodologia como seu
objeto de investigação passam a coincidir imediatamente com
a irracionalidade da exploração do homem, mascarando-se a
opressão sob a couraça do humanismo.
O conjunto de técnicas desenvolvidas pela psicologia ao
lado da administração produz a Human Engineering, para que
se coloque o ‘homem certo no lugar certo’. Decorre disso a
necessidade de se analisar o ofício para se atingir as metas de
produção previamente estabelecidas. Cria-se então uma gama
de teorias que buscam compreender e controlar o homem, não
só em seu ambiente fabril, mas também em seus intervalos e
descanso. Assim, “a condição humana fica submetida a requisitos
abstratos de seleção profissional e é, sob todos os aspectos um
‘negócio’, questão de lucro ou de interesse” (Merani, 1977, p.27).
O autor ainda identifica e justapõe às leis de produção
fabril, as do conhecimento científico, posto que o artefato final
dessa prática laboral também se apresenta como demanda a
ser consumida, uma vez que as “atividades [do homem], seus
interesses vitais, tudo o que mantém a organização vital de sua
vida está submetido às mesmas leis que regem o ciclo econômico”
(p.13). A ação do cientista está sob a égide da produção, da
demanda e do consumo. Por isso, realizar uma análise da história
da ciência psicológica coincidirá necessariamente com a do
desenvolvimento das forças produtivas do sistema capitalista de
produção. Contudo, transformada em mito pela justificação do
presente pelo próprio presente, essa identificação está encoberta,
cabendo ao cientista descrever, registrar e fazer apologia aos
fatos, destacando-os de suas determinações histórico-sociais.
Ainda para o autor, a forma de contrapor-se a essa
determinação seria dada pela renúncia à pressão do capitalismo
que exige da ciência psicológica maior eficiência ao preço da
alienação. Para isso, a história seria instrumento imprescindível
porque permitiria dissecar as condições sociais em que a psicologia
encontra-se imersa, dando a ver aquelas determinações que a
constituem, e apontaria para uma saída possível de sua condição
de alienação. Entretanto, assumir o vocábulo história por si e
em si simplesmente, conduz novamente à posição mitológica,
como afirmou Valèry, citado por Merani (1977, p.33) “[mito é o]
nome de tudo que existe e subsiste tendo apenas a palavra como
71
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76
causa”. Depreende-se disso que o próprio conceito encerrado no
vocábulo história tem uma constituição.
Porém, o autor não se propõe nessa obra realizar uma
investigação do referido conceito e ainda assume a psicologia
apenas em sua relação econômica. A ciência psicológica,
conforme as arguições de Merani (1977), parece mais com
um conjunto de técnicas, como o fora nos rudimentos da
administração taylorista, carecendo de um objeto e, por
conseguinte, de cientificidade. O chão da fábrica pode ser
comparado com o do laboratório ou da clínica. Destarte, tomada
como conjunto de técnicas, suas contradições desaparecem,
e com elas sua própria identidade, o que poderia conduzir a
um anacronismo que coloca num mesmo bojo Freud, Watson,
Bergson, Dewey e Taylor. Daí a necessidade de se perseguir um
objeto de análise que caracterizará a identidade de dado campo
da ciência psicológica.
História e produção cultural da subjetividade em
Figueiredo: objetos convergentes de análise?
Elegendo um objeto de análise e tomando-o como
invenção da modernidade, Figueiredo (1992/2007) discute a
história da psicologia a partir da constituição daquele que ele
entende ser o objeto de conhecimento da ciência psicológica,
a saber, a subjetividade. Diferentemente de Merani, a análise
de Figueiredo (1992/2007) se estende para além das
considerações econômico-filosóficas. Todavia nem por isso o
autor as desconsidera, entretanto prefere ater-se à tensão entre
o público e o privado vendo nela a gênese e desenvolvimento da
psicologia a partir da subjetividade privatizada.
Em linhas gerais, para Figueiredo (1992/2007) a
subjetividade privatizada se constitui como exigência
à instabilidade social perceptível desde a Reforma e a
Contra-reforma; ao embate entre monarquia e igreja; ao
enfraquecimento do Estado absolutista; à derrocada da
aristocracia e ascensão da burguesia, dentre outros fatores, que
culminaram com o Iluminismo e com as mais variadas revoluções
sociais. Isso porque, para ele, abandonado à sua sorte, o homem
necessitou construir seu próprio caminho. E o fez produzindo e
transformando seu mundo, pelos saberes das diversas áreas do
conhecimento, sobretudo nas artes (iluminista e romântica), na
filosofia e nas ciências. Essa revolução do conhecimento, reflexo
de uma radical transformação social, exigiu o estudo desse novo
homem, agora embalado principalmente pelo ideário francês
deflagrado pela burguesia: liberdade, igualdade e fraternidade.
Vários teóricos dos diversos saberes se propuseram tal
tarefa, e dentre eles Thomas Hobbes merece destaque, por ser
“o grande teórico desta separação entre o ‘interno’ e o ‘externo’,
entre os domínios da consciência e das opiniões e os domínios
da ação” (Figueiredo, 1992/2007, p. 107). Nas obras de Hobbes
o homem aparece claramente cindido entre uma esfera pública
e outra particular. Koselleck, citado por Figueiredo (1992/2007)
afirma que embora o homem de Hobbes possuísse uma opinião
própria, este deveria guardá-la em segredo do Estado, cuja
função seria a de impedi-las de se tornarem ação prática, o
que nem sempre era possível. Essa separação aparentemente
diplomática engendra o antagonismo entre o desejo privado e o
público, irrompendo em uma dupla tensão que gera de um lado
revoltas sociais, com mudanças na esfera jurídica, política e nos
aparelhos de controle do Estado e de outro um recrudescimento
da subjetividade privatizada.
Buscando apaziguar a tensão gerada pelo nascimento
da esfera privatizada, autores como os empiristas Locke,
Rousseau, Hume e Berkeley buscarão no campo filosófico
definir qual a função e o lugar pertinente ao Estado, contudo
sem descaracterizar esse ‘eu’ nascente, e pretendendo desvendar
sua natureza. Há então uma penetração simultânea, onde uma
esfera não pode mais ser compreendida sem a outra. Disso
deriva o aprofundamento dos estudos pelo viés empirista, das
epistemologias e das ontologias, posto que o conhecimento
passa a ser produto de uma relação entre o ser e o mundo.
Em outro campo, mas concordando com o ideário liberal,
desenvolve-se no campo das artes a prerrogativa romântica do
‘olho interior’, como forma de resistência ao intelectualismo e
ao empirismo presente na filosofia daquele momento. A tônica
recai sobre o sujeito do conhecimento que agora privatizado,
tornou-se capaz de conhecer-se pelo aprofundamento interior
de si, e toma para isso a intuição como instrumento pelo qual
será conduzido à ética e à reação estética.
Figueiredo (1992/2007) mostra ainda que essa transformação
permitiu o nascimento de “diversos dispositivos sociais, formas
de existência e instrumentos de representação e expressão da
subjetividade privada” (p.113). Estes se exibiram nos campos da
arquitetura, com o modelo de construção dos jardins ingleses
e franceses; na criação de clubes privados e pubs, necessários
naquele momento à representação da vida; na prática de esportes
como a caça, onde se foge do espetáculo público das cidades;
nas atividades turísticas onde é possível ser um ‘esteta diletante’;
por fim, nos romances com uma série de novelas e óperas que
supervalorizavam as experiências subjetivas e da vida familial.
Atreladas ao absolutismo, essas formas de expressão ganharam
rapidamente a conotação de contestadoras, porque traduziam
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76
uma nova forma de comportamento e ordenação da vida.
O quadro acima delineado tomou paulatinamente o
cenário europeu, todavia não sem resistência, e desenrolou-se
de outra forma nos demais países europeus, embora a essência
iluminista e romântica se mantivesse. Sob essa essência,
Figueiredo (1992/2007) elege Mesmer como o personagem
cuja vida e obra melhor sintetizam esse momento. Esse médico
suíço pretendeu realizar a união entre iluminismo e romantismo
para sua prática terapêutica, promovendo curas interiores pela
reequilibração magnética do corpo animal. O desequilíbrio
cujos sintomas eram crises histéricas, transes, convulsões ou
desmaios, indicavam uma desordem de uma personalidade
singular, que só poderia ser reestabelecida pela imposição de
mãos ou por uma prática íntima e potencialmente erótica entre
o terapeuta e o paciente.
A transgressão pela terapêutica mesmeriana, seu sucesso
financeiro e a necessidade de uma organização disciplinar dos
corpos mostram o surgimento e consolidação de uma nova
forma de subjetivação, embora nesse momento não houvesse
ainda um conhecimento psicológico autêntico e tampouco
fosse a subjetividade um genuíno objeto de investigação. Para
isso, diz Figueiredo, seria necessário que essa privacidade agora
fortalecida pelas práticas sociais entrasse em crise.
Buscando compreender a subjetividade inserida na
dinâmica triádica do Iluminismo, do Romantismo e do Regime
Disciplinar, Figueiredo (1992/2007) assume ordenadamente
as proposições de Polany (1980), Gusdorf (1982) e Foucault
(1977) para defender a assertiva de que “o espaço psicológico,
tal como hoje conhecemos, nasceu e vive precisamente da
articulação conflitiva daquelas três formas de pensar e praticar a
vida em sociedade” (Figueiredo, 1992/2007, p.129). A forma de
ordenamento do aparelho público, sua separação em poderes,
sua regulação e leis, embora sejam hoje muito mais complexas
do que na deflagração da Revolução Francesa, encontram lá
alguns de seus fundamentos. Cabe agora ao ideário burguês,
inserido no contexto do Estado moderno, garantir a felicidade
geral de sua coletividade, ainda que disso resulte sofrimento
para uma minoria. Assim, é necessário quantificar essa felicidade
garantida pelo Estado e de acordo com seus resultados, criar
mecanismos de controle para ampliação da felicidade em
detrimento da dor.
Nesse contexto elaboram-se teorias que assumem o
homem como escravo de dois senhores: da dor e do prazer.
Dentre elas as propostas formuladas por Bentham (1789/1989)
e Mill (1859/1963) seguem caminhos semelhantes, embora
para o primeiro a garantia da felicidade se dê pelo controle
exercido pelo Estado enquanto para o segundo essa felicidade
só pode ser adquirida pelo autoconhecimento. Isso conduz a
um refinamento da subjetividade privada que agora se torna
ainda mais profunda na tentativa de fuga a esse controle estatal,
que pode produzir felicidade, todavia não sem cerceamento.
Entretanto, como indica Tocqueville (1835/1987), essa
supervalorização da individualidade adquirida por seu ritual de
isolamento, destrói a independência, ameaça a liberdade e gera
uma sensação de desamparo. Tal situação desobriga o indivíduo
a contrapor-se às imposições do Estado que se torna um
estranho para ele, minando assim suas possibilidades políticas
de ação e confinando-o na indolência.
A crítica de Tocqueville (1835/1987) estende-se
principalmente às formas vigentes de democracia, cuja
gênese eclodida nos Estados Unidos da América espalhou-se
gradativamente pelo mundo via França e Inglaterra. Nelas a
tutela completa do Estado subsiste, os desejos individuais são
ditados de fora e o controle do Estado é solicitado via autonomia
e liberdade dos indivíduos. Tal disposição permitirá que o poder
estatal dirigido por grandes oligarquias econômicas apareça sob
a máscara da opinião pública, levando os indivíduos a assumirem
como seus o desejo imposto de fora, mas sob a ilusão da decisão.
Esse quadro ilustrado por Tocqueville (1835/1987), que
data de mais de 150 anos, assemelha-se ao que vivenciamos na
contemporaneidade no que tange às ações ditas democráticas.
Não só ele, mas as propostas de Benthan e Mill, citados por
Figueiredo (1992/2007) mantêm-se vivas, participando da
constituição das matrizes do pensamento psicológico, embora
as escolas mais pragmáticas procurem por vezes negar tal fato
e ignorar seu processo constitutivo. Todavia, sendo o espaço do
campo psicológico aquele que abriga as forças alienadas dessa
subjetividade tensionada entre os três vértices apresentados –
Iluminismo, Romantismo e Regime Disciplinar, é fundamental
resgatar sua constituição para pensar uma psicologia não só a
serviço da ‘reidentificação’, mas também da desidentificação.
Assim, Figueiredo (1992/2007) assevera que mais do
que escolher arbitrariamente entre essa ou aquela escola, os
psicólogos deveriam conhecer a história do ‘psicológico’, e
sobre isso lança um questionamento: “Será possível, contudo,
empreender a recordação como tarefa crítica conservandose no lugar do psicólogo?” (p. 149). O autor localiza esse lugar
do psicólogo como sendo, talvez, o “lugar-nenhum em que os
saberes ‘psi’, a história, a filosofia e as artes se encontram e se
perdem no exercício do mero pensar” (p. 164).
A experiência romântica de uma subjetividade privatizada, o
controle das crises advindas da desagregação dessa subjetividade
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pela confrontação à não realização do ideário iluminista
apregoado pela burguesia apontam para uma psicologia em
especial: a clínica. Analisar e compreender a subjetividade do
homem burguês e estendê-la a todos os demais homens pode
produzir dificuldades à compreensão da relação entre história e
psicologia; algumas delas seriam: a psicologização da história,
pela eleição de heróis; o encobrimento da cisão em classes
essenciais à compreensão do desenvolvimento do sistema
capitalista de produção e a função exercida pela psicologia
nesse contexto; a supremacia da subjetividade burguesa em
detrimento de uma subjetividade negada à classe trabalhadora
e aos miseráveis, para quem caberia apenas perseguir
ideologicamente àquela; dentre outros fatores. Outra questão
patente está em compreender a dimensão do termo história.
Merani (1977), ao justapor a prática da administração à
da psicologia, ofereceu outro recorte à compreensão da relação
entre história e psicologia. O sistema taylorista e as escalas
psicométricas de Binet-Simon reformuladas por Stanford, por
exemplo, não se orientavam pela prerrogativa da desintegração
da experiência privada da subjetividade, mas respondiam
à demanda da maximização da produção nas fábricas e, no
segundo caso, à necessidade de seleção de soldados para os
campos de batalha. Mesmo que nesse caso a ciência psicológica
fosse generalizadora e bem menos humanista, ela cumpriria
uma função diferente e para além da tríade proposta por
Figueiredo. Também Merani (1977) acredita que ela deva se
autorrever, utilizando-se para isso da história como instrumento
de autorreflexão.
O percurso filosófico do pensamento de Horkheimer
e a assunção crítica da história como fundamento
metodológico para uma psicologia histórica
Nessa mesma direção, mas invertendo a lógica proposta
por Merani, Horkheimer (1932/1990) caracterizará o papel da
psicologia enquanto uma teoria histórica adequada ao âmbito
das ciências sociais, tomando-a como instrumento possível
de reflexão e denúncia da história. Para tanto, ele perfilará
dialeticamente o processo de constituição deste conceito,
conduzindo suas análises desde sua utilização na filosofia
subjetivista kantiana - que ascendeu como reação à tendência
materialista da ciência e da sociedade daquela época -, até o
período entre as duas Grandes Guerras.
O autor destaca que na filosofia kantiana, a essência da
natureza é derivativa da dedução sistemática do fenômeno por
métodos de análise, ofertando mais importância à sistemática
do ato de conhecer do que propriamente àquilo que se pretende
conhecer. Essa premissa, que para Kant (1781/1983) embasa
todo o tipo de produção intelectiva, aplica-se também à história.
Assim, expor os fatos históricos significa refazer o caminho de
sua formação. Por isso, Horkheimer (1932/1990) afirma que
o método kantiano não permitiria uma crítica à historiografia,
estando encerrado em uma apologética.
Outro conceito analisado pelo por Horkheimer
(1932/1990), ainda no campo filosófico da fenomenologia,
mantém a contraposição ao materialismo, ao empirismo e à
dialética. Nele, porém, Scheler e Heidegger ferrenhos críticos do
método histórico, buscarão capta-lo como “historicidade interior
do existir” relegando ao processo histórico real um simples
entrelaçamento “superficial e ilusório” (Horkheimer, 1932/1990,
p.14). O fundamento da história para eles é a atualidade da
apresentação do ser onde “a partir desta maneira originária de
acontecer deve a história ganhar sentido como tema histórico”
(idem). A história é interior, subjetiva e psicológica. Arguindo
acerca disso, Horkheimer (1932/1990) por sua vez, assevera
que ocupar-se com a história externa também conduz à
compreensão do existir, visto estar o interior condicionado à
realidade exterior. Desta feita, negando-se a materialidade,
corre-se o risco de rumar ao perigoso solo do psicologismo que
aniquila a compreensão da história. Desta feita, para o autor,
críticas como as de Fichte quanto ao vazio na psicologia ou como
as de Rickert quanto à falta de uma identidade histórica do
campo psicológico encontrariam guarida, caso essa perspectiva
mentalista se mantenha.
Uma forma de embate às censuras acima apresentadas
seria assumindo uma filosofia do conhecimento capaz de captar
o entrelaçamento dialético desse movimento entre o ser e a
realidade, sem negá-los ou excluí-los mutuamente. Por essa
razão Horkheimer (1932/1990) avançará até a filosofia hegeliana,
cujo fundamento à compreensão da história é a dialética. Nela, a
história é ao mesmo tempo empírica e filosófica e a ideia impõese à realidade material para que ela avance rumo à sua completa
realização. Para isso é preciso um desenvolvimento qualitativo
que responda à necessidade posta pela realidade, o que garante
seu sentido e evolução. Nessa dinâmica, os interesses e as
paixões humanas servem como motor à história e a potência
subjetiva oculta do ser torna-se capaz de fazer a roda da história
girar. Por isso, Hegel (1807/1996) ilustrará suas proposições com
a história dos heróis, seguindo sua tradição iluminista, mas não
atribuirá a ela a compreensão da essência do desenvolvimento
histórico uma vez que o poder que se impõe à história estaria
em sua opinião, para além dessa psique individual ou mesmo
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76
das massas.
Após a derrocada do sistema hegeliano, a visão liberal de
homem ascende. Nela, tanto a ideia de uma força suprassensível
como o movimento de forças dinâmicas para a compreensão
da história perderam seu valor. O que passa a importar são as
realizações pessoais dos indivíduos, suas ações e idiossincrasias,
sob o pano de fundo da harmonia de interesses. Assim o cerne
dessa ideia coincide diretamente com a essência do psicologismo
e a dialética é novamente abandonada.
Buscando resgatá-la pelo viés do materialismo, Horkheimer
(1932/1990) mostra que Marx e Engels mantêm a convicção
hegeliana de forças supraindividuais e dinâmicas na evolução
histórica, sem com isso assumir a fé como potência interna
do desenvolvimento histórico. A história para eles não pode
prescindir de sua realidade, mas deve tomá-la como sua
realização mediada por instrumentos que condicionam sua
dinâmica. Assim, as relações sociais determinam o conhecimento
do desenvolvimento histórico pela dialética de seu confronto
com a natureza. A psicologia aqui é acessória à compreensão da
história onde o fundamental serão as relações econômicas, bem
como a atividade que condiciona o processo de produção que
constitui a cultura e a consciência de seus participantes.
Sobre a teoria marxista, Horkheimer (1932/1990)
mostra ainda que sua postura crítica fragilizou-se quando
nela se substituiu a metafísica hegeliana pela dogmática do
antagonismo de classes como força propulsora da dinâmica
histórico-social. Outro limite teórico está em conceber a
intersecção entre psicologia e história somente a partir dos
condicionantes econômicos, muito embora a vida econômica
de uma sociedade constitua a formação psíquica de seus
membros. O anacronismo estaria em limitá-la apenas a esse
aspecto, o que acabaria por invalidar a ciência psicológica e seu
papel no desenvolvimento histórico. Sobre isso diz Horkheimer
(1932/1990, p.20): “Está o objeto da psicologia de tal maneira
entrelaçado na história que o papel do indivíduo não é redutível
a simples função das condições econômicas”. Há, contudo, outros
determinantes na constituição psíquica como mostraram, por
exemplo, os estudos da psicanálise que desvelaram as pulsões
da psicologia profunda. Desconsiderar isso poderia destruir o
objeto da psicologia, o indivíduo.
Entretanto, não se pode negar que os condicionantes
socioeconômicos exercem grande poder sobre a constituição
da psique. Assim, a importância de seu estudo está em
desvelar a conformação psíquica que se apresenta em dado
momento do processo histórico-social, o que torna a psicologia
uma ferramenta útil à história. Destarte a ciência psicológica
cumpre um importante papel de desmascaramento das forças
coercitivas irracionais, na medida em que propicia uma análise
dos dispositivos de controle e do caráter assumido por dado
momento histórico.
Assumir a psicologia como instrumento de denúncia da
história aponta para a função política dessa ciência. Nessa
direção, deve-se garantir a tensão entre o interno e o externo,
entre o público e o privado, em oposição à massificação que leva
os indivíduos a agirem contra seus interesses e renunciarem a
seus próprios desejos. Para Crochik (1995, p.52) “uma das tarefas
políticas é lutar para que os indivíduos sejam diferenciados e
possam, através da razão, perseguir interesses universais”. Assim,
cumpre à psicologia ser instrumento de denuncia da história
contra a massificação e à história engendrar a essência técnica e
metodológica da psicologia a fim de que ela não se constitua em
mera ferramenta de alienação. Então ambas poderão contribuir
com a melhoria das condições de vida humana, sendo uma
forma de resistência à opressão e à barbárie.
Algumas Considerações
Há muitas razões que conduzem à necessidade de análise
do entrelaçamento entre história e psicologia, e devido aos
limites desse artigo, apenas algumas foram apontadas. Apesar
disso, houve um empenho constante em produzir este diálogo
numa perspectiva analítico-crítica, buscando-se a partir do
delineamento das ideias dos autores, uma possível síntese à
‘psicologia histórica’ – no sentido que a lógica dialética atribui
ao termo.
Aparentemente a eleição desse termo pode sugerir que a
história está sendo posta em um plano secundário e que se está
concedendo à psicologia primazia entre as ciências. Entretanto,
o que se pretendeu aqui foi caminhar exatamente no sentido
contrário. É a história, conforme Marx e Engels (1846/1987), a
única ciência possível, que oferece às ciências gerais, aqui no caso
a psicologia, sua condição de existência, seus instrumentos e seu
método. Por isso ela foi tomada como práxis social e cultural, que
pode ou não ser sistematizada por marcos. Caso fosse tomada
essa sistemática sim, correr-se-ia o risco de superestimar a
ciência psicológica e ignorar seus antagonismos, controvérsias
e sua dinâmica. Por essa razão, os primeiros parágrafos desse
artigo já apontaram para uma saída à historiografia.
Essa historiografia que participa da composição e resgate
de uma memória histórica exige cautela em seu emprego.
Benjamin (1931/1994) mostra como é fácil ceder às seduções do
historicismo e como a história tradicional representa apenas uma
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76
fração da história, onde está exposta somente a que diz respeito
aos vencedores. Contudo há outra, a dos vencidos, que espera
ser resgatada. Outro limite de uma análise historiográfica está
em sua concepção estática do tempo, posto que ela estabelece
marcos linearizados aos eventos. O tempo da história, porém,
não coincide com o do ponteiro do relógio. “A temporalidade
é histórica, as formas de lidar com o tempo são construídas
historicamente” (Masson, 2010, p.60).
A sistemática do modelo atual da contagem newtoniana
do tempo, base para o algoritmo taylorista que quantifica a
maximização da produção é recente e está no cerne do modelo
capitalista. Mas paralela a ela existe outra, uma concepção
metafísica e abstrata que aparece, por exemplo, na filosofia
kantiana. A partir de uma análise crítica, tanto a primeira como
a segunda seriam insuficientes, posto que elas não explicitam
a dialética do movimento histórico. Para Masson (2010), o
caráter do tempo só pode ser desvelado resgatando o passado
e perfazendo o movimento do pensamento que se apropria da
realidade e a rememora.
Nesse sentido a arte literária poderia ser um recurso
importante para a discussão sobre a dinâmica do tempo. Na
peça teatral O Jardim das Cerejeiras de Tchekhov (1904/2009),
há a disjunção entre o tempo mecânico linear e a história,
o que mostra que aquele está condicionado à percepção
psicológica das transformações sociais, não sendo por tanto
tão determinante a questão de data cronológica, como o foi
a da experiência da realidade dos personagens da peça. Essa
perspectiva engendrada no teatro de Tchekhov foi estendida
às análises aqui empreendidas. Deste modo, resgatou-se o
psicológico enquanto práxis histórica e não como um fenômeno
em separado, aceitando que o sentido encerrado no vocábulo
‘história’ incide sobre a psicologia, chegando-se dessa maneira à
compreensão do termo Psicologia Histórica.
Investir nesse termo, na mesma medida em que
esclarece também expõe sua responsabilidade política. Nesse
sentido Crochík (1995) expõe a fragilidade da perspectiva
política e os limites de ação de um indivíduo cuja autonomia
está comprometida pelo narcisismo e pela massificação e
irracionalidade impostas pelo imperativo do consumo. Este
sujeito, prescindindo da mediação histórica, tem sua constituição
subjetiva comprometida em prol da falácia da ordem e do
progresso sociais. Então, o papel de uma psicologia histórica
precisa escapar ao de mera reprodução da ordem existente e
apontar para novas direções possíveis.
Concordando com as considerações de Crochik (1995),
Pedrossian (2010, p. 13) afirma que “na contemporaneidade,
a noção de progresso integra tecnologia e ciência, mascarando
com sagacidade a regressão da sociedade”. Assim, compreender
a psicologia como práxis histórica significa clarear seu “objetivo
maior [que] é o de criar condições reais para superação da
hegemonia de um modelo social que produz e reproduz a
barbárie” (idem p.32). Deste modo, a psicologia deixaria de ser a
ciência do homem ideal – o protótipo do liberalismo, para ser a
ciência do homem histórico.
Referências
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Recebido em fevereiro/2012
Revisado em maio/2013
Aceito em junho/2013
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