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REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL E D I T O R I A L A Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, denominada Diaphora, desde 2012, fez jus a palavra de origem grega que significa diferença. Com o fechamento de mais esse número, a equipe editorial, sob a gestão do Psic. Leonardo Della Pasqua, acredita estar cumprindo sua missão, a de fazer a Diferença. Diferença na forma de divulgar as diversas perspectivas da Psicologia, teorias e formas de produzir a ciência e as práticas psicológicas. Diferença na forma de idealizar e socializar o conhecimento científico para os seus diferentes públicos. Diferença na editoração, tendo se alinhado aos qualificados periódicos científicos nacionais e internacionais. A diferença marcou os ideais de um projeto, inicialmente ambicioso, para um periódico exclusivamente impresso e sem indexadores que dessem visibilidade às suas produções. Hoje, com a publicação deste terceiro número, abre-se a porta de ingresso a indexadores importantes como Redalyc, Clase, Latindex, Pepsic. Consideramos uma vitória, chegarmos a estas possibilidades. O fechamento de mais um número sempre é um momento importante e de extrema gratificação, momento no qual esquecemos as incontáveis horas de trabalho, revisões, tensões. A emoção de vermos um trabalho de equipe e de qualidade cumprido nos reporta a essência fundamental de um periódico científico: lançar à comunidade científica e profissional, resultados de estudos e pesquisas para o conhecimento e debate público. O desafio assumido pela Gestão 2011-2013 e Equipe Editorial foi enfrentado com a confiança depositada pelos autores e pareceristas, nacionais e internacionais. Dentre as várias manifestações da comunidade científica acerca da Diaphora, a fundamental para não medirmos esforços e tempo para este empreendimento, foi o reconhecimento dos pares. Finalizamos agradecendo a Diretoria da SPRGS pela confiança depositada, assim como aos articulistas, pareceristas e membros do Conselho Editorial. Desejamos a todos que nos acompanharam até o momento, uma boa leitura e agradecemos a parceria. Os Editores Mary Sandra Carlotto Tânia Rudnicki Angela Marin 1 R E L ATO D E P E S Q U I S A Percepções parentais acerca dos conflitos e benefícios associados com a gestão da família e do trabalho Parental perceptions on the conflicts and benefits of combining work and family Manuela Veríssimo(a)*, Mauro Pimenta(b), Patrícia Borges(c), Inês Pessoa e Costa(d), Ligia Monteiro(e), Nuno Torres(f), Carla Martins(g) Resumo: O presente estudo teve como objetivo analisar a existência do possível conflito entre a gestão da vida profissional e familiar, analisando variáveis sociodemográficas características das famílias em estudo. Participaram 532 famílias bi-parentais, em que ambos os pais trabalham, com crianças com idades compreendidas entre os 2 e os 5 anos de idade oriundas de vários distritos de Portugal continental. Os resultados indicam que, na perspetiva de ambos os pais, os benefícios associados aos dois contextos parecem sobrepor-se aos constrangimentos. Os resultados indicam que níveis mais elevados das habilitações literárias de ambos os pais estão associados à perceção materna de maiores benefícios na relação entre o trabalho e a família. Quanto mais horas as mães trabalham, mais constrangimentos e sentimentos de interferência do trabalho na família percecionam. Verificou-se, ainda, diferenças em função do género para os pais nas dimensões de recompensa. Os resultados serão discutidos no contexto das teorias expansionistas. Palavras-chave: Conflito entre Trabalho e Família, Experiências Parentais. Abstract: The main goal of the present study was to assess the existence of conflict between family and work, in bi-parental working families, considering the effects of socio-demographic variables. Five hundred and thirty two families from different regions of Portugal and with children aged 2 to 5 years of age attending day-care programs participated. Results show that according to both parents the benefits associated with the participation in both family and work override constrains. Higher levels of education of both parents are associated with maternal perceptions of benefits related to the balance between these domains. The hours mothers spend at work are related to their perceptions and feeling of constrains and conflict between family and work. Differences related with child gender were found for fathers’ perceptions of rewards. Results were discussed using the Expansionist Theory. Key words: Conflict between work and family, Parental Experiences. a Professora Associado, Doutorada em Psicologia do Desenvolvimento, Unidade de Investigação em Psicologia Cognitiva, do Desenvolvimento e da Educação, ISPA-IU. *E-mail: [email protected] b Psicólogo, Doutorado em Psicologia da Educação, Unidade de Investigação em Psicologia Cognitiva, do Desenvolvimento e da Educação, ISPA-IU. c Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica, ISPA-IU. d Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica, ISPA-IU. e Professora Auxiliar, Doutorada em Psicologia da Educação, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIS-IUL. f Investigador, Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, Unidade de Investigação em Psicologia Cognitiva, do Desenvolvi mento e da Educação, ISPA-IU. g Professora Auxiliar, Doutorada em Psicologia do Desenvolvimento, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, Campus de Gualtar. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 1 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 01-08 Nas últimas décadas, diversos estudos têm procurado caracterizar os diferentes aspetos e as consequências associadas à multiplicidade de papéis, nomeadamente, ao nível da saúde física e mental de homens e mulheres, dado que os papéis desempenhados, ao nível profissional e familiar, são considerados parte integrante da identidade do adulto (Frone, 2000). As alterações sociais, demográficas e económicas que ocorreram durante o século XX levaram a mulher a adotar um papel mais ativo fora de casa, associando-se um maior investimento na carreira à necessidade económica da família, com o seu salário a poder atenuar as mesmas (Blank, 1988). No entanto, não foram apenas os papéis maternos a sofrer alterações. Os pais, embora continuem a despender menos tempo nos cuidados prestados às crianças comparativamente com as mães (Gershuny, 2001) estão, hoje em dia, cada vez mais envolvidos nas dinâmicas e rotinas familiares, não assumindo o trabalho a primazia que, no passado, era inquestionável. Continuam, porém, a ser confrontados com a prioridade do trabalho, o que os leva a estar menos tempo com a família (Theunissen, Vuuren & Visser, 2003), sobretudo se pretendem alcançar um patamar económico e social mais confortável para si e para as suas famílias. Estes fatores têm contribuído para o aumento do conflito entre família e trabalho. Um aspeto a considerar que pode, ainda, contribuir para um potencial conflito entre os elementos do casal, nos casos em que ambos trabalham, será a competitividade entre estes, nomeadamente, ao nível salarial e de estatuto, pelo menos se comparados com os casais tradicionais, onde a competitividade é praticamente inexistente (Greenhaus, Callanan & Godshalk, 2000). Assumindo o marido o papel de suporte financeiro, cabia à mulher a educação das crianças e a gestão da casa, pelo que a sobreposição de funções era praticamente nula e eliminava a possibilidade de competição entre o casal e entre os próprios papéis a desempenhar por cada um, o que poderá não suceder nos casos em que a partilha de responsabilidade abarca a família e o trabalho. O conflito entre o trabalho e a família é uma fonte de stress ao nível individual, do casal, podendo ter repercussões negativas ao nível das próprias empresas. Este tem sido associado a consequências negativas, como o pior desempenho na família e no trabalho, o absentismo e a redução da satisfação de um modo geral (Duxburry & Higgins, 1991; Frone et al., 1992). Este conflito, consoante o desequilíbrio provocado, pode até afectar a relação do casal levando mesmo à sua rutura (Sumer & Knight, 2001). O esforço para tentar equilibrar o trabalho e a família pode conduzir à depressão (Goff, Mount & Jamison, 1990), aumentar os riscos de saúde, podendo, em certas circunstâncias estar associado com o suicídio (Duxbury & Higgins, 1991; Jones & Fletcher, 1996). Neste sentido, e de acordo com os trabalhos de Allen, Herst, Bruck e Sutton (2000) e de Carlson e Frone (2003), as consequências do conflito entre o trabalho e a família podem sentir-se em três dimensões: a) na relação com o trabalho, quando surge algum desencanto no emprego, despontando intenções de menor investimento laboral; b) na relação com a família, através de uma reduzida adesão às atividades familiares, do afastamento dos momentos importantes da vida familiar e das dificuldades de interação com os filhos (Frone, 2000a), para além do modo como a emergente insatisfação se pode associar a condutas desajustadas; c) no bem-estar individual, se o desequilíbrio em causa potencia o comportamento de ansiedade ou de depressão do sujeito (MacEwen & Barling, 1994; Greenberger & O´Neil, 1993), a baixa autoestima, o aumento do consumo de substâncias aditivas e a fraca saúde física (Frone, Russel & Barnes, 1996). A teoria expansionista e os benefícios da multiplicidade de papéis A multiplicidade de papéis pode ser benéfica para ambos os pais, ao nível da saúde mental, física e relacional dos indivíduos (e.g., Thoits, 1983). A multiplicidade de papéis não só cria oportunidades de sucesso como, também, aumenta a possibilidade do surgimento de frustrações e stress. Deste modo e em sintonia com Barnett e Hyde (2001), a diversidade de papéis parece melhorar as pessoas, oferecendo um contributo, que não deve ser ignorado, no sentido de as ajudar a tornaremse melhores mães e pais. Por exemplo, Repetti, Matthews e Waldron (1989) concluíram que o emprego surge associado a maior qualidade de saúde, quer nas mães solteiras, quer nas casadas. Alguns estudos (e.g. Aneshensel, 1986; Crosby, 1991) verificaram que as mulheres empregadas tendem a ser menos depressivas, comparativamente com as mulheres desempregadas. Wethington e Kessler (1989) verificaram que as mulheres que reduziam o tempo de permanência no trabalho, passando de tempo inteiro (35 h semanais) para part-time (entre 10 e 19 h semanais) ou que se haviam tornado donas de casa apresentavam um aumento dos sintomas de depressão. O mesmo parece acontecer com os pais, cuja saúde física (Gore & Mangione, 1983) e mental parece beneficiar do empenho 2 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 01-08 distribuído por diversas tarefas (e.g. Barnett, Marshall & Pleck, 1992; Lein et al., 1974; Veroff, Douvan & Kulka, 1981). De modo particular, o papel desempenhado pelos homens na família é central para o seu bem-estar físico e psicológico (Pleck, 1985), sendo que uma maior partilha na sustentabilidade financeira familiar oferece benefícios a ambos os progenitores (Wilkie, Ferree & Ratcliff, 1998). Ao contrário do que poderia ser expectável, os pais mais envolvidos nos cuidados das crianças apresentavam menores índices de stress ao nível psicológico (Ozer, Barnett, Brennan & Sperling, 1998). Para além dos benefícios já associados à multiplicidade de papéis, segundo Barnett, Marshall e Pleck (1992), o impacto negativo provocado por um desempenho menos conseguido numa das áreas pode ser reduzido através do sucesso e satisfação obtidos num domínio diferente. A multiplicidade de papéis amplia as oportunidades de suporte social, que por sua vez aumentam as possibilidades de bem-estar (Polasky & Holahan, 1998), oferece diferentes oportunidades para experimentar o sucesso e desenvolver sentimentos de auto-confiança e a auto-eficácia (e.g. Bussey & Bandura, 1999), além de permitir um maior número de oportunidades para a descentração, facultando a mais fácil compreensão de diferentes perspetivas (Crosby, 1991; Crosby & Jaskar, 1993). Quanto maior a complexidade do indivíduo, maior será a sua resistência aos possíveis efeitos negativos provocados por eventos stressantes (Linville, 1985). Quando ambos os progenitores partilham o trabalho e a responsabilidade familiar, as suas experiências diárias aproximam-se, facilitando a comunicação e a qualidade relacional do casal (Cowan et al., 1985). O facto de ambos os progenitores trabalharem pode ainda facilitar o eliminar de conceitos estereotipados baseados única e exclusivamente no género, um maior vencimento e o equilíbrio de poder entre os dois elementos do casal (Muchinsky, Kriek & Schreuder, 1998). Deste modo, o comprometimento com o trabalho não parece implicar o descomprometimento com a família ou vice-versa, o que contraria a tese funcionalista (Barnett & Hyde, 2001). Todavia, os benefícios da partilha parental no que diz respeito ao trabalho e à família são mais evidentes nos casais que assumem uma ideologia não tradicional (não baseada na distribuição convencional de papéis em função do género), comparativamente com pais que têm uma visão tradicional acerca dos seus papéis (Brennan, Barnett & Gareis, 2001; James, Barnett & Brennan, 1998). Apesar de benéfica, a multiplicidade de papéis, poderá, no entanto, ter consequências negativas quando estes são em demasia ou demasiado exigentes para os indivíduos, ou quando as exigências de um papel colidem com o desempenho de outro. Mais importante que a quantidade de tempo despendida num dos domínios ou a própria quantidade de papéis assumidos é a qualidade do papel assumido. No caso de o trabalho não ser sentido como satisfatório ou quando a pessoa é vitima de discriminação, os benefícios psicológicos associados ao trabalho não se verificam (Barnett & Hyde, 2001). A análise das relações entre os papéis assumidos na esfera familiar e no mundo laboral, na perspetiva de mães e pais, em famílias bi-parentais, foi o objetivo central do presente estudo. Assume-se que esta relação tanto poderá ser geradora de conflito, provocando constrangimentos (Duxburry & Higgins, 1991) como poderá estar associada a efeitos benéficos (e.g. Gore & Mangione, 1983; Thoits, 1983). Procura-se, assim, compreender se o trabalho se associa de modo positivo (e.g. Barnett & Hyde, 2001; Grzywacz & Bass, 2003) ou negativo (e.g. Russell & Hwang, 2004) ao papel parental. Método Participantes Neste estudo participaram 532 famílias bi-parentais, casados ou em união de fato. As mães tinham idades compreendidas entre os 19 e os 50 anos (M = 34.24; DP = 4.76) e os pais entre os 23 e os 60 anos (M = 36.44; DP = 4.76). As habilitações literárias das mães variavam entre os 4 e os 21 anos de escolaridade (M = 12.99, DP = 4.25), tal como as dos pais (M = 11.62, DP = 3.81). As idades das crianças oscilavam entre os 32 e os 77 meses (M =56.38; DP =9.88), sendo 287 do sexo feminino e 244 do sexo masculino. O início de frequência da creche oscilou entre os 3 e os 63 meses (M = 22.76, DP = 14.29) e as crianças passavam entre 3 e 12 horas por dia (M = 8.36, DP = 1.29) em contexto escolar. As crianças frequentavam Jardins-de-Infância de vários distritos de Portugal. Instrumentos Escala Conciliar Trabalho e Família (Combining Work and Family; NICHD, 1991, traduzida e adaptada por Martins, Martins, Mateus, Osório & Fonseca, 2008). A escala foi elaborada no âmbito do “Study of Early Child Care and Youth Development” do NICHD (National Institute of Child Health and Human Development) e procura analisar a aliança do papel parental com o papel profissional, medindo as interferências negativas e positivas, assim como o próprio stress. É um questionário de auto-administração constituído por 21 itens tratados através 3 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 01-08 de uma escala de Likert de 4 pontos, onde 1 corresponde a “Nada Verdadeira”, e 4 a “Muito Verdadeira”. É composta por três subescalas: 1) Benefícios Família-Trabalho, constituída por 8 itens (alfa de .68 para a mãe e para o pai); 2) Constrangimentos Família-Trabalho, constituída por 13 itens (alfa de .82 para a mãe e .83 para o pai); 3) Valor Global correspondente ao stress associados à tentativa de conciliar trabalho e família (alfa de 0.86 para a mãe e de .87 para o pai). Escala de Experiências Parentais (Parent Role Quality Scale NICHD, 1991, traduzida e adaptada por Martins, Martins, Mateus, Osório & Fonseca, 2008). Elaborada no âmbito do “Study of Early Child Care and Youth Development” do NICHD propõe-se examinar as preocupações, recompensas e stress associados à parentalidade, sendo constituída por duas subescalas: 1) Recompensas e 2) Preocupações, constituídas ambas por 10 itens, permitindo, ainda, calcular o stress parental no geral. É composto por 20 itens respondidos numa escala de Likert de 4 pontos, que oscila entre (1) - “Não é de todo uma preocupação” ou “Nada” e (4) - “Preocupação Extrema” ou “Extremamente”. A escala de Recompensas apresentou um alfa de .80 para a mãe e de .78 para o pai; a escala de Preocupações um alfa de .83 para a mãe e de .91 para o pai, e a escala stress parental um alfa de .76 para a mãe e de .81 para o pai. Procedimentos As famílias foram recrutadas para o estudo através dos Jardins-de-infância que frequentavam. Após a autorização das escolas para contactar os pais, foram enviadas cartas para todas as famílias com crianças em idade pré-escolar, informando os pais dos objectivos e procedimentos do estudo. Foi-lhes pedido que indicassem se aceitavam ou não participar; se sim, assinaram um consentimento informado. Todos os procedimentos éticos, relativos à recolha e tratamento dos dados foram respeitados. Este projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (organismo Português que tutela a recolha de dados). Os instrumentos foram respondidos individualmente por mães e pais. Finalmente os dados foram tratados utilizando o programa estatístico SPSS. que sugere que ambas as figuras parentais tendem a demonstrar visões concordantes sobre a conciliação da vida profissional com a vida familiar. Variáveis sociodemográficas parentais e a conciliação entre trabalho e família Obtiveram-se correlações positivas significativas entre a dimensão dos benefícios na perspetiva da mãe e as habilitações literárias maternas, r = .12; p = .01, e paternas , r = .08; p = .04. Estas, apesar de fracas, indicam que a mãe tende a retirar mais benefícios da relação entre o trabalho e a família quando ambos os progenitores possuem habilitações literárias mais elevadas. Verificou-se, também, uma correlação positiva significativa entre o número de horas que a mãe trabalha e as respostas maternas na dimensão Constrangimentos FamíliaTrabalho, r = .13; p = .01). Na perspetiva materna, quanto mais horas passadas no emprego maior a interferência do trabalho na família, indicador das dificuldades em conciliar estes dois domínios. Não se verificaram outras correlações significativas das dimensões da conciliação trabalho-família com as variáveis sociodemográficas associadas às figuras paternas ou às crianças. Concordância parental nas três dimensões da Escala de Experiências Parentais: Preocupação, recompensa e stress parental Analisou-se, ainda, o grau de concordância entre as respostas maternas e paternas nas três dimensões: Preocupação, r = .46, p = .00, Recompensa, r = .37, p = .00, e Stress parental, r = .38, p = .00, sendo as correlações significativamente positivas significativas e moderadas sugerindo que as figuras parentais tendem a partilhar a sua visão das experiências parentais. Diferenças em função do género dos filhos nas Experiências Parentais Para averiguar se existiam diferenças significativas em função do género das crianças nas três dimensões da escala de Experiências Parentais realizaram-se análises de variância de medidas repetidas, com o género como variável inter-sujeitos e as versões do pai e da mãe como variável intra-sujeitos. Resultados Concordância parental na escala Conciliar Trabalho e Família De modo a avaliar o grau de concordância entre as respostas maternas e paternas nas dimensões da escala Conciliar Trabalho e Família, utilizou-se o Coeficiente de Correlação de Pearson. Os valores, situados entre .29 e .40, revelam correlações significativas moderadas e positivas entre todas as dimensões, o 4 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 01-08 Tabela 1. Média e desvio-padrão das respostas maternas e paternas consoante o género das crianças nas três dimensões da Escala de Experiências Parentais Dimensões Raparigas Rapazes M DP M DP Preocupação Mãe 2.30 0.51 2.25 0.51 Pai 2.25 0.52 2.22 0.49 Recompensa Mãe Pai 3.80 3.77 0.27 0.33 3.81 3.70 0.27 0.45 Stress Parental Mãe Pai 3.09 3.04 0.30 0.33 3.06 2.99 0.31 0.37 A única diferença significativa entre as experiências parentais em função do género foi registada na subescala de recompensa na perspetiva do pai, F (1, 531) = 4.1, p<.05, considerando este que a recompensa na experiência parental é superior quando filhos são raparigas. A conciliação entre o trabalho e a família e as experiências parentais Utilizando-se o Coeficiente de Correlação de Pearson, analisou-se associação entre as diferentes dimensões das escalas “Conciliar Trabalho e Família” e “Experiências Parentais”. Os resultados ilustrados na tabela 2, apontam para a existência de resultados significativos (embora fracos ou moderados) entre as diferentes dimensões do conflito trabalho/família e a escala de preocupação e de stress parental. Os pais sentem um maior nível de preocupação e de stress quando tem maior dificuldade em conciliar o trabalho com a família. Finalmente foi encontrado uma correlação significativa entre os benefícios do trabalho e a dimensão recompensa. Tabela 2. Correlações entre as Escalas: Conciliar Trabalho e Família e Experiências Parentais Preocupação Recompensa Stress Parental Mãe Pai Mãe Pai Mãe Pai Stress FamíliaMãe .32** .16** .26** .14** Trabalho Pai .10* .26** .18* .18** Constrangimentos Mãe .32** .17** Família-Trabalho Pai .13** .31** Benefícios Família- Mãe Trabalho Pai Nota: **p<.01; *p<.05 .23** .12** .09* .18** .11** .10* .29** .21** Discussão Nos últimos anos a sociedade tem sofrido profundas alterações que se refletem em alterações nos papéis assumidos por homens e de mulheres e nas dinâmicas entre os diferentes contextos em que se movem. Quer o homem, quer a mulher parecem reconhecer e assumir atualmente a importância dos papéis desempenhados na esfera familiar e profissional procurando um equilíbrio entre a satisfação pessoal e profissional. O mundo laboral, nomeadamente, as empresas têm vindo a tomar consciência de que a inflexibilidade pode ter um efeito adverso na produtividade, aumentando proporcionalmente os níveis de stress dos seus colaboradores, de absentismo e de insatisfação no trabalho (Theunissen et al., 2003). Porém, nem sempre o equilíbrio entre o trabalho e a família é possível ou fácil de atingir. No presente estudo as respostas de ambos os pais sugerem o sentimento de que o trabalho tende a interferir mais com a família do que o inverso, o que poderá indicar que desejariam ter maior disponibilidade para a família (Theunissen et al., 2003). No entanto, não deixam de admitir que os benefícios resultantes da relação entre estes dois domínios se sobrepõem aos seus constrangimentos. Os resultados obtidos enquadramse na teoria expansionista (Barnett & Hyde, 2001), que sustenta os efeitos positivos advindos da multiplicidade de papéis assumidos por ambos os pais, afastando-se da ideia preconizada pela teoria funcionalista (Parsons & Bales, 1955, cit. por Barnett & Hyde, 2001) que esta pluralidade de papéis acarreta efeitos nocivos. Nesta amostra a relação entre os domínios família e trabalho não parece ser conflituosa. Com efeito, os pais indicam a possibilidade de uma convivência que reflete maioritariamente um desempenho onde ambos os contextos se parecem ter influência benéficas (e.g. Barnett & Hyde, 2001; Grzywacz & Bass, 2003; Muchinsky et al., 1998; Wilkie, Ferree & Ratcliff, 1998). Relativamente às experiências parentais, é a dimensão da recompensa que assume maior destaque, na opinião de ambos os progenitores indicando que a parentalidade está associada mais a sentimentos positivos do que à preocupação ou ao stress. A literatura sugere ser expectável que a preocupação e o stress parental surjam mais facilmente associados a contextos onde, na opinião dos progenitores, se verifique a interferência de um destes domínios no outro, emergindo mesmo uma relação entre o trabalho e a família pautada pelos constrangimentos e pela insatisfação (e.g. Duxburry & Higgins, 1991; Frone et al., 1992). Os benefícios resultantes da relação entre trabalho e 5 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 01-08 família estão, também, positivamente associados às experiências parentais em concreto às dimensões de recompensa (na opinião de ambos os pais) e de stress parental, mas neste caso apenas na perspectiva paterna. O facto da dimensão dos benefícios surgir associada de forma positiva à recompensa explica-se na medida em que uma boa relação entre trabalho e família se relaciona mais facilmente com uma experiência parental gratificante, como defendido pelas teorias expansionistas (Barnett & Hyde, 2001). No entanto, tal não se verifica em relação à associação entre os benefícios e o stress parental na perspetiva paterna. É possível que a conquista de benefícios, resultantes da relação entre o trabalho e a família, não se faça sem sacrifícios, podendo associar-se a um esforço paterno considerável, onde a correspondência às exigências de ambos os contextos se pode traduzir numa parentalidade, também, marcada pelo stress. As atuais exigências, designadamente a nível social, cultural e económico, podem justificar tais resultados (Magnusson & Stattin, 1998; Gershuny, 2001; Theunissen et al., 2003; Plantin, 2007). Verificou-se, ainda, que os benefícios percecionado pelas mães e as habilitações literárias de ambos os progenitores encontram-se significativamente correlacionados. As profissões associadas a habilitações literárias superiores poderão usufruir de um horário laboral mais flexível, facilitando, assim, um melhor equilíbrio entre o trabalho e as atividades familiares. Adicionalmente, o facto de as mulheres com habilitações literárias superiores tenderem a investir mais nas suas carreiras profissionais poderá levá-las a facultar e a ambicionar uma participação paterna mais ativa ao nível da organização e prestação de cuidados (Monteiro et al., 2006), podendo contribuir para uma relação mais equilibrada e conciliatória entre o trabalho e a família. Contrariamente, os trabalhos de Marshall e Barnett (1993) indicam que os pais com empregos de maior prestígio, mais conotados com habilitações literárias elevadas, têm maior probabilidade para relatar uma relação conflituosa entre o trabalho e a família. Por outro lado, os resultados revelam também que as mães referem maior interferência do trabalho na família e maiores constrangimentos em função do número de horas que passam no emprego, o que vai ao encontro do reportado por Marshall e Barnett (1993). Por fim, registaram-se diferenças significativas em função do género das crianças para as respostas paternas sobre a recompensa parental. Segundo os progenitores as experiências vivenciadas nas relações com as suas filhas parecem ser mais gratificantes, comparativamente, com as relações com os rapazes. Esta associação poderá dever-se ao facto dos rapazes serem mais conotados com a agressividade do que as raparigas (Turner & Gervai, 1995), tendo estas maior tendência a adotar um comportamento empático, mais obediente e cooperante com os pais, procurando, mais do que os rapazes, a aprovação do adulto (Eisenberg, Fabes, Schaller & Miller, 1989). Por outro lado, os próprios progenitores tendem a demonstrar mais afeto com as raparigas do que com os rapazes, associando-as mais facilmente a um comportamento meigo (Fagot & Hagan, 1991). O estudo da ecologia familiar poderá contribuir para uma melhor compreensão da organização das relações da criança no micro-sistema familiar e do seu desenvolvimento social posterior. Será importante repensar o papel materno e paterno. As crianças necessitam de pais afetuosos e competentes, que possam efetivamente satisfazer as suas necessidades e promover o seu desenvolvimento emocional, social, cognitivo e físico. Elas beneficiam, certamente, quando ambos os pais são capazes de se envolver e estão investidos nos seus cuidados e educação. Referências Allen, T. D., Herst, D. E. L., Bruck, C. S., & Sutton, M. (2000). Consequences associated with work-family conflict: a review and agenda for future research. Journal of Occupational Health Psychology, 5, 278-308. Aneshensel, C. S. (1986). Marital and employment role-strain, social support and depression among adult women. In S. E. Hobfoll (Ed.), Stress, social support and women (pp. 99-114). New York: Hemisphere. Barnett, R. C., & Hyde, J. S. (2001). Women, men, work, and family: an expansionist theory. American Psychologist, 56, 781-796. Barnett, R. C., Marshall, N. L., & Pleck, J. H. (1992). Men’s multiple roles and their relationships to men’s psychological distress. Journal of Marriage and the Family, 54, 358-367. Blank, R. M. (1988). Women’s paid work, household income and household well-being. In S. 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Recebido em novembro/2012 Revisado em fevereiro/2013 Aceito em abril/2013 **Agradecimentos: Os autores gostariam de agradecer a todas as mães e pais que aceitaram participar neste estudo, financiado em parte pela F.C.T (PIHM/ GC/0008/2008) e pela Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género. Os autores gostariam ainda de agradecer a todos os colegas da linha 1, Psicologia do Desenvolvimento, da UIPCDE pelos seus comentários valiosos. 8 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Coming out: realidade social e conflito psíquico dos homossexuais* Coming out: social reality and psychic conflict in homosexuals Alexandra Maiffret(a)**, Doris Vasconcellos-Bernstein(b) Resumo: As pesquisas atuais mostram que o coming-out é um caminho longo que pode liberar o sujeito mas que também pode apresentar riscos psicopatológicos que decorrem da confrontação com os tabus da sociedade. Para compreender este processo é preciso utilizar conceitos teóricos suficientemente amplos a fim de abarcar os pontos de vista da psicologia e da sociologia. Por um lado, vamos expor a posição original de Freud sobre a homossexualidade, a qual foi bastante distorcida pela Associação Psicanalítica Internacional que aderiu aos preconceitos do inicio do século XX. Os terapeutas que acompanham seus pacientes no processo do coming-out precisam estar atentos aos movimentos contra-transferenciais originados no preconceito inconsciente pois estes podem bloquear a elaboração do paciente. Por outro lado, vamos abordar as pesquisas sociológicas contemporâneas que permitem constatar objetivamente as diferentes etapas do processo do coming-out. Descreveremos as quatro etapas principais: sensibilização, confusão identitária, conciliação e engajamento. O objetivo deste artigo é explicitar os processos psíquicos em ação, e pôr em evidência os mecanismos de defesa do Ego mobilizados para reduzir a dissonância e o sofrimento do indivíduo. Palavras-chave: Homossexualidade, Coming-out, Psicopatologia, Sociologia, Psicanálise. Abstract: Current research shows that coming out is a long process that can release the subject but it can also present psychopathological risks resulting from the confrontation to the society taboos. To understand this process it is necessary to use theoretical concepts sufficiently broad to encompass the views of psychology and sociology. On one hand, we expose the original Freud’s position on homosexuality, which was quite distorted by the International Psychoanalytic Association that adhered to the prejudices of the early twentieth century. Therapists who assist their patients in the process of coming-out need to be aware of the counter-transference movements originated on unconscious prejudice because they can block the patient’s perlaboration. On the other hand, we address the contemporary sociological research that allows an objective observation of the different stages of the process of coming out. We describe the four main steps: sensitization, identity confusion, reconciliation and engagement. The purpose of this article is to explain the psychological processes at work, and to highlight the defense mechanisms of the ego mobilized to reduce the dissonance and suffering of the individual. Keywords: Homosexuality, Coming-Out, Psychopathology, Sociology, Psychoanalysis. * Este artigo foi publicado em francês na revista L’Information Psychiatrique, 2004 ; 80 (5) : 395-401. Coming out : réalité sociale et conflit psychique chez les homosexuels. http://www.jle.com/fr/revues/medecine/ipe/e-docs/00/04/01/A7/article.phtml a Psicóloga clínica. **E-mail:[email protected] b PhD, Professora de psicopatologia clínica, Instituto de Psicologia, Universidade Paris Descartes. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 9 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16 Atualmente a homossexualidade parece se integrar como modo de vida cada vez mais reconhecido nas sociedades ocidentais. O casamento homossexual em países como a França, e em certos estados dos Estados Unidos da América (Califórnia, Oregon, ...) ratificou a visibilidade institucional que se instala progressivamente no nosso pais. Este processo de aceitação social se desenvolveu desde os anos ’60 nos Estados Unidosa, levando a Associação Americana de Psiquiatria a modificar o DSM III (Disease Statistical Manual) [3]. A partir de 1973, a homossexualidade não foi mais considerada como um estado patológico. Ela desapareceu da nosografia do DSM IV, mas os profissionais da saúde mental continuam a encontrar pessoas para as quais ainda é difícil se fazer aceitar com sua inclinação homossexual. A transição (coming out), percebida como necessária e finalmente essencial à coerência psíquica, continua a provocar um pesado sofrimento psíquico. O sofrimento psíquico provém da dissonânciab consciente entre a pulsão, que é atraída por uma pessoa do mesmo sexo, e o julgamento de valor relativo a esta atração que foi integrado à identidade do sujeito. O desejo homossexual é reconhecido, mas imediatamente rejeitado por ser egodistônico. Este conflito intrapsíquico decorre da interiorização dos preconceitos da cultura veiculados pelos pais, como observou Freud (1905): “… nas sociedades em que a inversão não é considerada como um crime, podemos constatar que ela corresponde plenamente às inclinações sexuais de um número não negligenciável de indivíduos”. Na prática clínica, observamos que este caso de figura é o mais frequente. O objetivo deste artigo é explicitar o processo psíquico que permite reduzir a dissonância e o sofrimento do indivíduo. Sabemos que certos indivíduos acabam encontrando espontaneamente as vias de libertação que lhe permitem elaborar o conflito; eles então se aceitam como homossexuais. Entretanto não sabemos qual é a frequência de autolimitação da perturbação na ausência de tratamento. homossexual. Mas a utilização do verbo to come na forma progressiva – coming – veicula a ideia da dimensão temporal, de uma ação que se prolonga no tempo. Por um lado, certas pesquisas atuais no campo das ciências sociais mostram que o coming-out é um caminho longo que pode levar à liberação mas que representa também riscos psicopatológicos. Correlações significativas foram encontradas entre homossexualidade e depressão e/ou suicídio (Trembaly, 1995), ansiedade (Bosker, 2003), vergonha e solidão. Estes sintomas testemunham de uma retração pessoal e social associadas ao sofrimento psíquico; eles são o resultado de um conflito intrapsíquico. Por outro lado, pesquisadores (Pennebaker, Kiekolt-Glaser, Glaser, 1988) documentaram os efeitos benéficos sobre a saúde somática correlatos à revelação de um segredo traumático. Esta constatação que corrobora a observação clinica mostra o interesse de apoiar o paciente que deseja tentar esta empreitada. Compreender os riscos desta provação pode esclarecer os profissionais da saúde mental que são levados a acompanhar indivíduos ao longo deste percurso. O coming-out é um processo psicodinâmico pelo qual os componentes do Ideal do Ego são reorganizados de maneira a estabelecer uma reavaliação positiva das pulsões e permitir assim uma certa restauração narcísica do Ego. O conceito de normal e de patologia está longe de ser independente do contexto social no qual se integra. O relativo reconhecimento social aferido à homossexualidade nestas últimas décadas ainda não conseguiu neutralizar os efeitos destruidores do preconceito cultural. Se o conflito se passe no espaço psíquico entre o Ego e a pulsão, ele foi ai inoculado pela internalização dos julgamentos do meio social afetivo. Para compreender este processo é preciso utilizar conceitos teóricos suficientemente amplos a fim de abarcar os pontos de vista psicanalítico e sociológico pondo assim em evidência os mecanismos mobilizados nestes dois níveis. Perspectiva psicanalítica Problemática Um longo caminho cheio de ciladas leva o indivíduo desde o primeiro reconhecimento de uma excitação homossexual até ele se definir como homossexual. Os anglofones chamam a este processo coming-out. Em geral o que se retém desta expressão é a sua finalidade, ou seja, a reivindicação publica da identidade a Os acontecimentos de Stonewall do dia 27 de junho de 1969 deram origem ao movimento gay pride. bDissonância: conceito introduzido por Carl Rogers. Corresponde à noção de conflito intrapsíquico. O enigma da homossexualidade interessava muito a Freud (1905) para quem “… o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher também é um problema que requer uma explicação e não alguma coisa que seja óbvia …”. Nesta mesma nota adicionada aos Três ensaios sobre a teoria sexual em 1915, Freud deixa clara a sua hostilidade a toda forma de discriminação dizendo que “a pesquisa psicanalítica se opõe com a maior determinação à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos enquanto grupo particularizado”. 10 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16 Freud (1905) considera a identidade sexual como uma variável independente da escolha de objeto: “ … nos homens, a mais completa virilidade psíquica é compatível com a inversão”. Mas é preciso reconhecer, no entanto, que a homossexualidade permanece ainda frequentemente incriminada na literatura psicanalítica atualmente. O que Freud diz a este respeito sempre foi prudente e comedido ao longo de toda a sua obra. Nos últimos anos, Rudinesco (2002) publicou um trabalho de análise documentada a este respeito, e seu esclarecimento é muito edificante. Compreendemos assim como foi que, desde 1921, a política pragmática adotada pela Associação Psicanalitica Internacional instaurou a repressão contra a homossexualidade argumentando então que, aos olhos do mundo, a homossexualidade “é um crime repugnante: se um dos nossos membros o cometesse, atrairia um grave descrédito à nossa teoria”. A homofobia se torna assim a doutrina oficial da Associação Psicanalítica Internacional desafiando a opinião de Freud. Nosso artigo explora o paradigma da homossexualidade masculina, mas, no essencial, o processo de aceitação e de revelação da homossexualidade feminina pode ser comparável. Mencionaremos as variantes mais significativas quando for o caso. Stoller (1968) descreveu como se organiza a identidade de gênero do sujeito durante o desenvolvimento psicossexual em função das mensagens explicitas e implícitas, assim como das fantasias dos pais. A identidade de gênero se fixa muita cedo, desde o terceiro ano de vida. Ela será em seguida enriquecida e colorida pelas identificações secundárias durante o desenvolvimento. Mas a identidade de gênero não determina automaticamente a escolha do objeto sexual, a qual se constrói durante o período edipiano. A identidade de gêneroc se articula à escolha de objeto sexual pela experiência afetiva da criança, correlata às mensagens parentais correspondendo frequentemente à heterossexualidade. Quando acontece que a pulsão se dirija para objetos do mesmo sexo biológico, o sujeito se vê em falta face ao que ele percebeu como esperado dele de acordo com a sua identidade de gênero. O Ideal do Ego repele o Ego considerando-o em falta devido ao fato de abrigar pulsões c A identidade de gênero é um conceito introduzido por Money et al. em 1955 [7]. O conceito de identidade sexual utilizado correntemente se compõe na realidade do sexo biológico combinado à identidade psíquica que corresponde ao papel culturalmente esperado das pessoas pertencentes a este sexo biológico. O mais das vezes estes dois aspectos se superpõem mas pode acontecer que eles não coincidam. O caso mais impressionante é o dos transexuais quando um indivíduo com um sexo biológico perfeitamente normal desenvolve uma identidade psíquica que corresponde ao sexo oposto. que o sujeito sempre percebeu como sendo desprezadas. Para Freud (1915), o Ideal do Ego apresenta m aspecto individual integrado ao complexo de Édipo mas igualmente um aspecto social pois se trata do “Ideal comum de uma família, de uma classe social, de uma nação”. Ele se formou sob a influência crítica dos pais, representantes da Cultura. Este conflito entre o Ideal do Ego, que condena a homossexualidade, e o Ego, que deve controlar a pulsão, tem consequências graves. Por um lado as repercussões depreciam a autoestima do sujeito e o sentimento de pertencer a um grupo que o ama e o aceita. Por outro lado, conformar-se às regras do grupo torna-se impossível. A perspectiva clínica de Freud (1920) mostra que é inútil procurar « curar » um sujeito da sua homossexualidade quando esta está instalada. A cura psicanalítica não deve em caso algum ter este objetivo: “.. transformar um homossexual plenamente desenvolvido em um heterossexual é um projeto que tem tanta possibilidade de êxito quanto o projeto inverso (tornar um heterossexual homossexual) salvo que, por boas razões práticas, este último nunca é tentado”. Portanto é mais possível reorientar os conteúdos do ideal do Ego que tentar modificar a direção da pulsão. Na adolescência, a pulsão se intensifica e busca se satisfazer no investimento de um objeto exterior. Porque ela ataca o Ideal do Ego, a libido homossexual é inibida e volta ao Ego para ser transformada, sob a influência da consciência moral, em angústia, vergonha e culpa. Esta consciência da culpa era, para Freud (1920), “a angústia de ser castigado pelos pais, ou mais exatamente, perder o amor deles” e podemos encontrar esta angústia no medo de ser rejeitado que manifestam os indivíduos homossexuais. Segundo este modelo, esta incompatibilidade libera a libido narcísica, o que provoca uma diminuição da autoestima devido à não-realização do Ideal. Assim sendo, o Ego deve enfrentar um dilema: satisfazer as exigências do Ideal do Ego ou satisfazer a pulsão mas, como quer que seja, uma das duas exigências permanecerá insatisfeita. Quer esta frustração atinja a capacidade para gozar da sua sexualidade ou a capacidade de satisfazer o modelo de comportamento culturalmente esperado, de toda maneira ela determina uma ruptura da libido provocando uma ferida narcísica e uma diminuição da autoestima. Devemos considerar aqui a hipótese de R. Stoller (1971) sobre as consequências da perda do sentimento de ser um homem. Segundo este autor, a identidade sexual e o sentimento de pertencimento que lhe está ligado são essenciais para uma definição de si. No medo da homossexualidade, Stoller vê uma ameaça à masculinidade. O sentimento de pertencer ao grupo 11 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16 de homens se repercute sobre a própria identidade do sujeito e do seu sentimento de existir. Compreende-se assim que tomar consciência desta incompatibilidade, sentida como inata, marca, para o indivíduo, uma fase de inibição e de isolamento na qual seus desejos e suas necessidades sexuais permanecem (na sua grande maioria) ocultos. Perspectiva sociológica No fim do século XX, numerosas publicações tentaram construir modelos teóricos de integração identitária da homossexualidade. Todas elas referem-se a diferentes estágios neste percurso (Cass, 1979; Cass, 1984 ; Coleman, 1982; Lee, 1977; Troiden, 1977) . Podemos reter quatro, mas é preciso lembrar que estas etapas não são nem lineares nem exclusivas, e que pode existir flutuações e regressões. Mais ainda, para cada etapa, tentaremos cruzar os dados provenientes da observação sociológicas com aqueles, mais específicos da dinâmica intrapsíquica da teoria psicanalítica. Primeira fase: sensibilização Esta sensibilização é mobilizada durante a infância, antes da puberdade. Ela se caracteriza por uma percepção geral da marginalidade e do sentimento de diferença em relação aos pares do mesmo sexo. Uma pesquisa de Bell et al. (1981) mostra que os homossexuais (homens) são quase duas vezes mais numerosos que os heterossexuais (homens) a se sentir diferentes durante a infância (72 % versus 39 % para, respectivamente, N = 573 e N = 284). Esta constatação se refere essencialmente aos comportamentos de gênero: estes meninos estão menos interessados do que os outros no que concerne o esporte e a atração pelas meninas. Muitos se sentem mais femininos, mais inclinados para ocupações femininas. Da mesma maneira, as moças homossexuais, quando meninas, se sentiam mais masculinas e mais investidas em atividades esperadas do outro sexo. Bell mostra que as experiências sociais da infância desempenham um papel mais importante no sentimento de diferença do que as esferas emocionais ou sexuais. Podemos compreender esta observação se consideramos que a infância é a fase chave da socialização dos critérios de gênero, e que as categorizações sociais em termos de homossexualidade, de heterossexualidade e de bissexualidade ainda não adquiriram um sentido de comportamento sexualizado. Se evocamos os conceitos psicanalíticos, e principalmente os trabalhos de Stoller (1968), observamos que a infância é a fase durante a qual se constrói a identidade sexual. Sob a influência dos pais, da família, dos meios de comunicação de massa e da sociedade em geral, o menino se separa da feminidade da sua mãe para constituir o que será mais tarde a sua identidade masculina (Greenson, 1968). Em função das atitudes percebidas no meio ambiente ele aprendera os critérios da virilidade e se definirá como membro do grupo dos homens. O modelo masculino está em estreita relação com o modelo do desenvolvimento heterossexual. Assim, um homem deve ser forte, ativo, independente, responsável, mas também, por analogia, gostar de mulheres e ter filhos com elas. As mídias difundem amplamente esta imagem que é enfatizada pela própria sociedade no interesse da reprodução da espécie. Assim sendo, podemos dizer que o menino ao crescer adquire o papel de gênero próprio ao seu sexo biológico, assim como o modelo de tornar-se heterossexual de acordo com o Ideal do Ego e a norma social. A outra face do Ideal do Ego, individual, integrada ao complexo de Édipo, permanece ligada aos valores dos objetos primários, referência graças à qual o menino vai avaliar seus próprios desejos e seus comportamentos. A libido homossexual, longe de corresponder às formações ideais individuais e culturais, ao aceder à consciência assinala uma discordância com as exigências do Ideal do Ego. Assim, a autoimagem é alterada de maneira desfavorável e o sentimento de valor pessoal enfraquece. Segunda fase: confusão identitária Esta fase se organiza durante a adolescência quando o jovem começa a pensar que seus sentimentos e seus comportamentos podem ser percebidos como « homossexuais ». Mas a ideia de que ele é potencialmente homossexual é dissonante com a autoimagem preponderante até então. Este é o ponto mais característico desta fase, pois este estado sexual de ambiguidade cria a confusão identitária. Segundo Schäfer (1976), quatro fatores concorrem para esta confusão: a) O primeiro corresponde à alteração da percepção. O fato de se perceber como diferente dos outros cristaliza-se na percepção de si como sexualmente diferente dos outros durante a adolescência. O despertar da pulsão atrai as experiências emocionais e a excitação sexual. b) O segundo fator responsável é a dimensão de realização sexual que agora é acessível. Estes indivíduos descobrem aos poucos que a sua atração sexual e o tipo de excitação que sentem 12 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16 não se constrói pelo mesmo modelo que o de seus pares e que a sua realização está condenada. c) O terceiro fator explicativo é o estigma que cerca a homossexualidade. Com efeito, ele desencoraja o adolescente a descobrir a sua sexualidade e os seus desejos. d) Enfim, o quarto fator corresponde ao nível de conhecimento adquirido sobre a homossexualidade. A este respeito, as cidades e as vilas não conhecem os mesmos limites. Assim sendo, o conhecimento especifico desta orientação sexual e dos seus membros pode ser colorido por representações sociais mais ou menos valorizadas mas jamais neutras. Esta confusão identitária demanda o uso de estratégias de defesa. Cinco modalidades foram descritas: a negação (Cass, 1979; Coleman, 1982), a reparação (Schäfer, 1976), a evitação (Cass, 1979), a redefinição e a aceitação (Cass, 1979; Troiden, 1977). a) A negação corresponde à recusa do sujeito de reconhecer o seu comportamento homossexual, os seus sentimentos e as suas fantasias. Uma clivagem profunda e penosa se instala na personalidade. b) A reparação é a tentativa de erradicação dos desejos homossexuais pelo investimento de outros setores da vida (profissional, artístico, politico, ...). Este deslocamento dos investimentos sobre valores caucionados pelo Ideal do Ego pode ser provisório. A sublimação pode fazer parte desta estratégia. c) A evitação é um modo de defesa através da formação reacional que pode tomar formas diferentes ainda que todas impliquem na negação das tendências homossexuais julgadas inaceitáveis pelo sujeito. Esta defesa pode dar lugar a diferentes manobras: – o investimento excessivo das características masculinas para se conformar com o ideal de virilidade (Humphreys, 1972) esperado; – o estabelecimento de relações heterossexuais a fim de evitar dúvidas da família e amigos quanto a uma eventual homossexualidade; – a recusa de tomar conhecimento de qualquer coisa que se refira à homossexualidade através do isolamento das representações com o fim de impedir toda confirmação da sua realidade na vida do sujeito. – a adoção de uma atitude homofóbica resultante de um mecanismo de conversão da pulsão no seu contrário que visa a manter à distância toda atração homossexual; – a multiplicação de experiências heterossexuais ou sua utilização como procedimento terapêutico através do comportamento; – o uso de substâncias tóxicas na esperança de escapar virtualmente ao conflito é um mecanismo próprio às personalidades dependentes. Esta lista não é exaustiva. E possível que outros mecanismos de defesa sejam empregados, mas estes devem ser então compreendidos com relação à organização psicodinâmica de cada sujeito em particular. d) A redefinição da orientação sexual é um método de defesa contra a confusão identitária na qual o sujeito se define finalmente como bissexual ou como homossexual provisório. A pessoa reconhece os seus desejos e os integra na imagem global que se faz dela mesma. e) A estratégia de aceitação corresponde ao reconhecimento de experiências da infância, de sentimentos, de fantasias e de comportamentos homossexuais como fazendo parte do sujeito sem que estes sejam rejeitados. Um maior conhecimento das características do grupo social homossexual e de seus membros facilita esta aceitação pois ela permite sair do isolamento e modificar a referência do Ideal do Ego. Quando a definição da homossexualidade só está ligada a conteúdos desqualificados, o sujeito permanece sem elementos cognitivos para proceder a uma reavaliação mais positiva da pulsão e continua impedido de aceder à aceitação. É frequente que esta segunda etapa do desenvolvimento da identidade homossexual seja prolongada porque ela necessita a redefinição e a explicação de comportamentos socialmente condenados e cercados por um estereótipo pejorativamente conotado de maneira muito acentuada. Esta etapa marca assim uma fase na qual o sujeito sente-se em conflito entre seus desejos e o que é esperado dele. Podemos articular estes dados com a antiga classificação psiquiátrica conhecida como homossexualidade egodistônica (contraria ao Ego). Deve-se proceder a uma avaliação muito cuidadosa quando o sujeito verbaliza o desejo de mudar a orientação da sua escolha de objeto. A resolução deste conflito não pode evitar o tempo indispensável à perlaboração. Um grande risco pode se introduzir insidiosamente quando o clinico adere aos estereótipos sociais e teóricos (Eizirik 1993): a contratransferência pode levar à falta de neutralidade quanto aos valores pessoais do terapeuta (Vasconcellos, 2001). Terceira fase: conciliação Esta fase torna-se possível quando a estratégia de aceitação reabsorveu ao menos parcialmente a confusão identitária. Esta fase começa no fim da adolescência. Os elementos fundamentais residem na auto definição de si como homossexual, a aceitação 13 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16 da identidade homossexual, a associação com outros do mesmo grupo, as primeiras experiências sexuais e a exploração da cultura homossexual. Esta é a primeira etapa do processo mais amplo de atualização da identidade também chamado coming-out. Cass (1979) insiste no fato de que nesta fase a identidade é mais tolerada do que deliberadamente aceita. Se as experiências são positivas, o grupo é percebido como estruturado e os sentimentos de isolamento e de alienação diminuem. Por outro lado, se as primeiras experiências são negativas, o indivíduo se crispa nos processos de defesa que já citamos. Segundo Humphreys (1972), a pessoa, nesta fase, deve reorganizar o estigma e encontrar uma saída. Quatro estratégias são possíveis: A primeira consiste em « capitular », isto é, renunciar à satisfação pulsional homossexual. Esta estratégia significa a interiorização do estereótipo social. O Ideal do Ego não consegue reformular seus valores e o Ego se inclina. A segunda estratégia, chamada minsterlization em inglês, consiste na adesão ao proselitismo adotando uma atitude homossexual fortemente estereotipada. O grupo homossexual toma o lugar do Ideal. O terceiro método consiste em conservar os atributos e os comportamentos de gênero próprios da heterossexualidade mas se definindo como homossexual ao mesmo tempo. Estas pessoas admitem viver uma “vida dupla”. Este compromisso demanda um esforço psíquico continuo para manter o mecanismo de clivagem consciente, o qual se alimenta de energia inconsciente. Freud (1912) assinalou a dificuldade para realizar a síntese de emoções e de desejos sexuais num conjunto coerente, no qual o parceiro é visto como objeto de amor e de prazer sexual unindo as correntes terna e sensual. Freud considera esta tarefa especifica da adolescência, e ele a considera árdua, especialmente para as pessoas de sexo masculino. O desenvolvimento da sexualidade humana civilizada demanda a instauração da clivagem entre a ternura e a sexualidade durante a fase do Édipo, encorajando o recalcamento e a proibição da pulsão sexual. Na adolescência, todo ser humano deve tecer os vínculos entre a ternura e a sexualidade para dirigi-los ao objeto de amor. Ora, o objeto de amor homossexual não facilita esta revalorização pulsional. Uma consequência psicopatológica pode ser então a instauração da clivagem dos objetos: um objeto homossexual que herda a corrente de ternura e objetos sexuais pulsionais anônimos, alvos da pulsão vergonhosa e tão desprezíveis quanto ela. Esta psicopatologia não é exclusiva da homossexualidade e Freud a descreveu a variação heterossexual deste mesmo processo de clivagem dos objetos: a mãe e a puta (Freud, 1910). A quarta estratégia refere-se ao investimento massivo do grupo homossexual que pode chegar até a contestação da heterossexualidade a qual é assimilada à causa do estigma. Esta estratégia é descrita por Chasseguet-Smirgel (1984) como característica das personalidades perversas. Esta terceira fase na edificação da identidade homossexual (conciliação) aparece no fim da adolescência. Durante esta fase, a pulsão sexual reaparece na sua forma adulta, procurando a satisfação numa relação de intimidade. Esta fase também questiona os ideais parentais e sociais e corresponde à busca de novos modelos identificatórios para permitir que a pulsão sexual encontre um modo de satisfação adaptado. As teorias sociológicas expliquam que o sujeito que não encontra no seu grupo uma imagem valorizada dele mesmo terá tendência a procurar outro grupo que veicule uma representação mais positiva. No melhor dos casos, o sujeito encontrara um modelo satisfatório proposto pelos homossexuais no seio do seu próprio grupo. Esta seria a imagem de uma pessoa realizada tanto do ponto de vista físico como afetivo, cujo comportamento é regido por regras, códigos e normas próprios ao grupo de pertencimento em questão. Vale lembrar que nesta fase a identidade é mais tolerada do que deliberadamente aceita. Isto pode significar que o lado social da instância idealizada ainda está em construção devido às diferentes identificações, mas que a libido narcísica ainda não se fixou de volta ao Ego e não pode portanto garantir um sentimento de autoestima suficiente para a livre circulação da pulsão sexual. Quarta e última fase: engajamento Esta fase corresponde à adoção da homossexualidade como modo de vida. Plummer (1975) a descreve como “mais fácil, mais atraente e menos custosa que tentar ser heterossexual” Em outros termos, trata-se da aceitação de si com a identidade e a escolha de objeto homossexual. Este engajamento tem implicações internas e externas para o indivíduo: Em nível interno, concerne vários elementos: o significado atribuído à identidade homossexual a qual, encorajada pelo grupo, se aproxima mais de um estilo de vida, de uma identidade própria, que de um simples comportamento sexual; a percepção de uma identidade autêntica, conforme aos desejos e às necessidades profundos, e que pode ser qualificada de satisfatória; o grau de alivio e de bem-estar ligado à revelação destas tendências. Em nível externo, as relações de amor terno e sensual estabelecidas com uma pessoa do mesmo sexo são sinal de 14 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 09-16 um engajamento na homossexualidade. Da mesma forma, a revelação de sua identidade a pessoas não homossexuais corresponde a uma etapa suplementar no processo de comingout : amigos heterossexuais, família, colegas de trabalho, superiores hierárquicos, etc. Nota-se, entretanto, segundo os resultados da enquete de Bell e Weinberg (1978), que esta revelação não se faz sempre diante de todas estas pessoas: 54 % das moças homossexuais e 53 % dos rapazes homossexuais disseram aos seus amigos heterossexuais; 85 % das moças e 76 % dos rapazes dizem que o seu empregador não está a par. Quanto aos pais, 37 % das moças e 31 % dos rapazes disseram ao pai, enquanto, respectivamente, 42 % e 49 % disseram à sua mãe. O último índice de engajamento externo reside nas novas estratégias personalizadas de enfrentamento do estereotipo social. Mesmo reconhecendo seu pertencimento ao grupo dos homossexuais, certos indivíduos abandonam as estratégias anteriormente desenvolvidas para privilegiar a discrição e a invisibilidade social. Para concluir Esta dupla perspectiva, sociológica e psicanalítica, permitiu mostrar como o estereotipo social da homossexualidade afeta profundamente a formação e a organização da identidade do sujeito que experimenta pulsões homossexuais. Não podemos esquecer que a « escolha » de objeto sexual não é nem racional nem deliberada: ninguém “escolhe” ser heterossexual nem homossexual. A heterossexualidade, no entanto, está mais facilmente de acordo com os ideais herdados dos pais e da sociedade. Para os homossexuais, um trabalho psíquico intenso de reorganização das referências ideais é necessário para chegar a uma síntese identitária integrando as pulsões ao Ego. Do ponto de vista psicanalítico, o sujeito deve conseguir a integração progressiva das diferentes identificações num conjunto coerente ao seio do Ego. Esta reformulação se torna compatível com as exigências do Ideal do Ego, permitindo o retorno da libido narcísica para o Ego e a liberação da libido homossexual que poderá então buscar satisfação num objeto desejado e querido. Daí resulta certa compreensão do que se chama o « orgulho homossexual » ou gay pride que corresponderia à nova possibilidade de realização pelo Ego das exigências do Ideal reconstruído. Então esta escolha de objeto sexual seria percebida como adequada à norma do grupo de referência e traria um sentimento de identidade e de pertencimento, com a autoestima reconquistada. Referências Bell, A. P., Weinberg, M. S., & Hammersmith, S. K. (1981). Sexual preference: its development in men and women. Bloomington: Indiana University Press. Bell, A. P., & Weinberg, M. S. (1978). Homosexualities: a study of diversity among men and women. New York: Simon & Schuster. Bosker, M. J. (2003). 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Recebido em abril/2013 Revisado em junho/2013 Aceito em junho/2013 16 R E L ATO D E P E S Q U I S A A relação materno-filial na anorexia nervosa: um estudo psicanalítico The maternal-filial relationships in anorexia nervosa: a psychoanalytic study Márcia Rosane Moreira Santana(a)*, Martha Marlene Wankler Hoppe(b) Resumo: Este artigo aborda a relação materno-filial em meninas adolescentes com anorexia nervosa. O tema é tratado por meio de conceitos da psicopatologia psicanalítica na integração com aspectos da relação mãe e filha. Trata-se de um estudo de caso explanatório. As participantes da pesquisa foram duas meninas anoréxicas e suas mães. As categorias analisadas foram a configuração familiar, a dinâmica da relação materno-filial e o papel materno na construção da subjetividade da menina anoréxica. A partir da análise destas categorias, concluiu-se que as mães não permitiram que suas filhas se constituíssem enquanto sujeitos separados destas. Assim, a anorexia desenvolve-se como uma tentativa desesperada da menina na direção de tornar-se independente e criar um sentido de self diferente de sua mãe. As mães das meninas anoréxicas, possivelmente, “faltaram”,quando não investiram de forma dosada em suas filhas e, atualmente, estas meninas estão acometidas de um sintoma, o qual acaba, em uma dimensão intrapsíquica, por representar esta falha materna. Palavras-chave: Psicanálise; Anorexia Nervosa; Relação Materno-Filial. Abstract: This article talks about the maternal-filial relationships in teenager girls with anorexia nervosa. This subject is treated with concepts of the psychoanalytic psychopathology which are integrated in the mother-daughter relationships. It is an explanatory case study. The subject of research was two anorexic teenager girls and their mothers. The categories analyzed were the familiar configuration, the dynamic of mother-daughter relationships and the mother role in construction of subjectivity of anorexic teenagers. From these categories, it was concluded that the mothers did not permit her daughters to be separated from. This way, the anorexia is developed like a desperate attempt of a teenager girl in the direction to become independent and to create a sense of self different than her mother. The mothers of anorexic girls, possibly “missed” when not invested so measured in their daughters and currently, these girls are afflicted with a symptom, which ends in an intrapsychic dimension, to represent this maternal failure. Keywords: Psychoanalysis; Anorexia nervosa; Maternal-filial relationships a Psicóloga, Especialista em Informação Científica e Tecnológica em Saúde pelo Grupo Hospitalar Conceição/ FIOCRUZ, Mestranda em Ciências Médicas: Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. *E-mail: [email protected]. b Psicóloga, Dra. em Psicologia do Desenvolvimento e Orientadora do trabalho. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 17 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 A anorexia nervosa é um transtorno do comportamento alimentar que se desenvolve principalmente em meninas adolescentes e mulheres jovens. Caracteriza-se por uma grave restrição da ingesta alimentar, busca incessante pela magreza, distorção da imagem corporal e amenorréia. Este processo psicopatológico é influenciado por fatores biopsicossociais (Cordás, 2004). O presente artigo versará sobre a relação materno-filial em meninas com anorexia nervosa, partindo do pressuposto da psicanálise de que a relação da mãe com o bebê nos primeiros anos de vida é significante e decisiva para a constituição psíquica da criança. Para o desenvolvimento do tema são apresentados conceitos de autores clássicos tais como Freud, Winnicott, Melanie Klein e Françoise Dolto, os quais serão complementados com o entendimento de estudiosos psicanalíticos contemporâneos. O estudo propõe que o tema seja analisado frente a três categorias: Configuração Familiar; Entendimento Dinâmico da Relação Materno-Filial na Anorexia Nervosa, e O Papel Materno na Construção da Subjetividade da Menina Anoréxica. Nestas categorias serão englobados os aspectos relevantes encontrados nas duas duplas pesquisadas, onde será possível perceber que o sintoma pode estar representando, em uma dimensão intrapsíquica, uma falha materna. Por fim, será possível compreender como se caracteriza a configuração familiar da menina anoréxica, investigando os aspectos pertinentes da relação mãe e filha e o papel materno na construção da subjetividade destas meninas. Buscando encontrar fatores comuns entre as duplas de mães e filhas pesquisadas. Método Delineamento Para realização desta pesquisa foi utilizado o delineamento qualitativo tendo como estratégia de pesquisa o estudo de casos. Minayo (1993), destaca que a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significativos, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que não podem ser quantificados, e que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos. Deste modo, para examinar acontecimentos contemporâneos relevantes, utiliza-se como estratégia o estudo de caso. Yin, (2001), destaca que o objetivo dos estudos de caso exploratórios são estipular um conjunto de elos causais em relação ao fenômeno, sendo apresentado normalmente sob a forma de narrativa. Participantes Participaram do estudo, duas meninas, de 15 e 16 anos, portadoras de Anorexia Nervosa, que estavam em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial e na Internação Psiquiátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), e suas mães. O trabalho segue as normas da Resolução 196/96, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sob o número 07-585. Instrumentos O principal instrumento utilizado para elaboração do presente artigo foi uma entrevista semiestruturada, realizada com as meninas anoréxicas, buscando compreender como se configurou a dinâmica da relação materno-filial. A entrevista contemplou aspectos referentes ao desenvolvimento da menina, sua percepção em relação à doença, forma como percebe sua história de vida, expectativas sobre o futuro, sendo aprofundada nas questões referente a sua relação com a mãe. Posteriormente, foi realizada uma entrevista com as mães, com o objetivo de estudar como se estabelece a relação mãe e filha. A entrevista com a mãe iniciou-se com uma amamnese, e após foi explorada a percepção da mãe em relação ao desenvolvimento da filha, assim como aspectos da relação entre elas. A entrevista semiestruturada apresenta certo grau de estruturação, já que se guia por uma relação de pontos de interesse do entrevistador, que ele vai explorando ao longo do curso (Gil, 1999). Procedimento de coleta de dados A autora do estudo participou como observadora do grupo de transtornos alimentares ocorrido no Centro de Atenção Psicossocial do HCPA. Após, as adolescentes, participantes do grupo foram convidadas para a pesquisa. Duas meninas manifestaram interesse em participar, logo após houve o convite para as suas mães. Uma das entrevistas ocorreu na internação psiquiátrica do referido Hospital, pois uma das adolescentes necessitou de internação durante o decorrer do estudo. As entrevistas com as duas duplas foram realizadas no consultório médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sendo estas gravadas para posterior transcrição. Análise dos resultados Os resultados obtidos por meio das entrevistas com as duplas pesquisadas foram analisados frentes às seguintes questões norteadoras: Como ocorreu a relação mãe-bebê nestes casos? Quais as expectativas da mãe em relação a esta filha? Qual a percepção da adolescente sobre sua mãe? Quais aspectos 18 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 relevantes da relação materno-filial em meninas anoréxicas? Por Ana comenta: “eu gostaria que minha mãe tivesse me dado fim, será identificado fatores comuns entre as duplas de mães mais limites”. Porém quando relata este desejo, ela novamente e filhas pesquisadas, mais especificamente buscando aspectos não cita os pais e sim somente a mãe, o que reafirma a hipótese relevantes da relação materno-filial em meninas anoréxicas. citada anteriormente de que o pai não exerce um papel de importância nesta configuração, sendo que Ana não consegue Resultados vê-lo como um pai que esteve junto à mãe, proporcionando a educação dos filhos. Para melhor entendimento e compreensão, os casos serão Desta forma, percebe-se que se o pai não consegue expostos mediante três categorias: Configuração Familiar; exercer sua função na família, permanecendo como uma Entendimento Dinâmico da Relação Materno-Filial na Anorexia sombra materna, ele, provavelmente, também não conseguiu Nervosa, e O Papel Materno na Construção da Subjetividade apresentar-se na relação entre a mãe e filha. Assim, podeda Menina Anoréxica. Nestas categorias serão englobados os se inferir que ele não exerceu sua função de pai, que seria aspectos relevantes encontrados nas duas duplas pesquisadas. proporcionar o “corte” na relação narcísica primitiva de mãe Serão usados nomes fictícios para as duplas, sendo que no e filha. Sendo assim, esta pode ser uma característica paterna primeiro caso, Maria será a mãe e Ana (16) a filha. Já no segundo, que influenciou para que a dupla mãe-filha continuasse por se Sabrina será o nome atribuído à mãe e Fernanda (15) à filha. perceber unida narcisicamente, em uma relação em que o outro não é percebido (como será abordado a seguir). Configuração Familiar Esta configuração familiar é bastante preocupante, pois o A configuração familiar é um fator relevante na constituição bebê, para sair do narcisismo primário, precisa de um pai que de algumas patologias. Desta forma, será feito um breve relato proporcione a castração, mostrando para o bebê que existe um para situar a configuração das famílias em que estão inseridas as terceiro na relação que até então era simbiótica entre a mãe e a meninas anoréxicas participantes desta pesquisa. criança. A presença paterna possibilita que o bebê tenha uma No primeiro caso, Ana é uma menina de 16 anos, que visão de mundo externo, proporcionando desta forma, a saída começou a desenvolver anorexia aos 14 anos. Seus pais são para um pensar livre, ou seja, pensar sobre a mãe, desta vez, casados e têm dois filhos, Ana e outro menino um ano e oito como um ser separado dela. meses mais novo. Já no caso de Fernanda, seus pais são separados e ela não O pai nesta família parece exercer uma posição bastante possui irmãos. A figura paterna também parece configurar-se passiva, pois durante as entrevistas percebe-se que sempre foi e como “inoperante”. Sabrina comenta: “Pedro nunca deu amor é Maria quem toma todas as decisões familiares. Como exemplo, e carinho para Fernanda, ele atendeu sempre somente as pode-se citar a situação da doença de Ana, na qual o pai esteve necessidades financeiras... ele acha que é só dar as coisas, mas sempre presente fisicamente, porém nota-se que ele não tem ela precisa de atenção”, e ainda completa: “Ah! O Pedro nunca autonomia, parecendo não ocupar a função paterna dentro do foi nem sequer uma reunião da escola da Fernanda, ele nunca ciclo familiar. Ana relata: “meu pai sempre foi muito sentimental, foi em nada, era sempre somente eu quem estava presente em mas sempre fica atrás de minha mãe... quando eu estava doente todos os eventos da vida dela”. Por meio deste comentário, fazele foi guerreiro também, porém todas as decisões de me se necessário pensar que Sabrina passou à Fernanda a imagem internar e procurar minha cura foram da minha mãe”. de um pai distante, não presente. Fernanda, por sua vez, por não Maria, por sua vez, quando comenta sobre as mudanças na ter recebido o carinho e amor do pai, pode ter mergulhado mais vida familiar após a anorexia desenvolvida por Ana, diz: “minha intensamente nesta relação com a mãe (como será abordado no vida mudou muito, eu passei 80 dias internada com ela, meu próximo capítulo). marido ah..., é, meu filho teve que aprender a se virar sozinho, Fernanda relata com muita tristeza que seu pai a chamou pois sempre era eu quem fazia tudo pra ele”. Neste trecho fica de “louca” e por isso, ela tentou suicidar-se. Percebe-se, aqui, evidente que o pai ocupa um segundo plano nesta família, uma diferença entre a relação que se estabeleceu nos dois casos: encoberto pela função da mãe, pois mãe e filha não conseguem No caso de Ana, o pai parece nem ter figurado enquanto pai, em nenhum momento de suas narrativas, sequer comentar sobre permitindo uma relação simbiótica entre mãe e filha. Já no caso a atuação da figura paterna na relação familiar, transmitindo a de Fernanda pode ter havido um “reconhecimento” do pai, no imagem de um pai “inoperante”. momento em que há uma escuta da fala paterna (apesar de ser 19 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 de crítica e não de apoio). Porém, a triangulação propriamente dita, parece não ter ocorrido, pois não há a presença de um terceiro, considerado como outro diferente da dupla mãe-bebê. Fernanda pode ter iniciado o processo de triangulação, mas não a vivenciou em sua plenitude. Ou seja, houve um preâmbulo do Complexo de Édipo, pois a menina reconhece a figura paterna, e demonstra isto, por meio da preocupação com o que o pai “pensa” a respeito dela. Contudo, não houve uma castração bem sucedida, pois Sabrina demonstra através de seu relato (citado anteriormente), que o pai parece não ter sido “suficiente” para estabelecer o corte na relação da filha com a mãe. Logo, esta menina não tendo uma saída Edípica bem sucedida, ela fica presa no ir e vir entre a indiferenciação com a mãe e a busca do reconhecimento do pai. Ou seja, de acordo com Dolto (2007), com a castração paterna a criança percebe seu lugar enquanto filha deste homem e desta mulher, porém não havendo esta fase, a menina fica eternamente com o questionamento “Quem sou eu?”. Neste âmbito poderia ser pensado: Por que os pais destas meninas não conseguiram exercer suas funções de pai? Como [uma tentativa de] explicação, vale citar o entendimento de autores clássicos tais como Freud (1920/1996) e Winnicott (1978), bem como autores atuais como Checchinato (2007), que entendem que é importante que a mãe deixe que a criança sinta um espaço vazio, para que ela consiga reconhecer-se enquanto sujeito. Assim, a ausência da mãe é o único meio da criança se reconhecer enquanto separada desta, e também reconhecer um terceiro na relação. Este fato remete-nos ao comentário de Sabrina: “[...] eu nunca deixei que Fernanda precisasse de nada, eu sempre dei tudo o que eu podia e sempre estive por perto para defendê-la [...]”. Portanto pode-se inferir que esta mãe não permitiu que a menina sentisse a “ausência” necessária, para a construção de sua subjetividade. Contudo, com a “sufocante” presença materna, a filha acaba ficando presa na mãe, e não se autoriza a desejar o amor deste pai, pois, apesar de ter havido o reconhecimento da presença paterna, a mãe parece que impossibilitou que ele ocupasse seu espaço de pai na relação, não permitindo que a castração se efetivasse. Assim, a mãe, querendo suprir sozinha todas as necessidades da menina, transmite para Fernanda uma imagem negativa de figura paterna. Sabrina conta que, atualmente, está vivendo com um namorado, ao qual Fernanda pediu para chamá-lo de pai, porém a mãe não permitiu. Nota-se que Fernanda pede para a mãe um espaço diferenciado desta, por meio do pedido de um pai. Este pedido da menina é mais um indicativo de que ela passou pelo processo de triangulação, pois reconhece e sente falta de um terceiro na relação entre ela e a mãe. A menina parece fazer uma tentativa para que a mãe permita que “alguém” ocupe este terceiro lugar faltante na relação, porém a mãe parece não estar disposta a deixar que outra pessoa faça parte desta relação mãe e filha. Neste sentido, observa-se que Maria também parece não exercer adequadamente sua função materna com Ana, pois ambas descrevem sua relação de mãe e filha como uma relação de “amizade”. Maria conta: “confidencio para minha filha coisas sobre seu relacionamento com meu esposo, não para jogá-la contra o pai mas para ela saber como realmente é um casamento”. Nota-se no discurso de Maria que ela utiliza a negação secundáriaa, visto que ela inconscientemente desejaria “jogar a filha contra o pai”. Por meio do mecanismo utilizado por Maria na sua narrativa, pode-se pensar que o Pai não exerceu sua função nesta configuração, também, por que a mãe parece não ter permitido que isto ocorresse. Assim, parece que Ana e Fernanda se desenvolveram dentro de famílias cuja característica principal é um pai que confere com as características citadas por Morgan (2002), sendo este distante e pouco afetivo, ou seja, inerte, que não ocupou seu espaço na relação mãe e filha, não exercendo sua função na interdição da overdose materna. Neste sentido, o pai permanece, em um “outro patamar”, deixando que mãe e filha vivessem intensamente a relação narcísica. São pais que, talvez, não exerceram sua função porque havia uma mãe que demandava suprir sozinha todas as necessidades de sua filha, fazendo com que, desta forma, a menina se percebesse como uma extensão da mãe. Entendimento Dinâmico da Relação Materno-Filial na Anorexia Nervosa Depois de ter uma visão sobre a configuração familiar das meninas anoréxicas, pode-se pensar que, se estas mães fixam uma relação narcísica com suas filhas, não permitindo a entrada do pai, será que elas são capazes de investir libidinalmente de forma constante e dosada nestas meninas? Quanto ao desenvolvimento de Ana, Maria diz: “sempre ocorreu tudo normal com Ana [...], porém, a única coisa que eu me culpo é de ter deixado ela um ‘pouquinho’ de lado quando nasceu o meu outro filho”. Apesar de negar mais tarde esta afirmação, dizendo que é coisa de “sua cabeça”, Maria também se defende constantemente, dizendo que Ana sempre teve as duas avós por perto as quais a auxiliaram nos cuidados com a menina. Observa-se que Maria, ao negar a afirmação, utilizou o que Freud a Conceito explicado por Freud no texto A Negativa (1925/1976), como sendo uma negação do desejo inconsciente que por alguns instantes emergiu para o campo consciente. 20 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 (1925/1976) chamou de mecanismo de defesa da denegação, pois acolheu na consciência uma idéia reprimida, embora não fosse capaz de reconhecer o vínculo afetivo correspondente. Portanto, percebe-se na narrativa que realmente houve uma descontinuidade no investimento materno de Maria em Ana. Em outro momento, Maria diz: “quando eu tinha que levar um filho no médico ou precisava sair, o outro tinha que ficar com as avós”, porém em seu discurso constata-se que o fato ocorria com freqüência, sendo sempre Ana quem ficava com as avós. Esta poderá ser uma atitude que demonstre o quão intenso foi o desinvestimento de Maria em Ana, parecendo que a mãe não conseguiu ser mãe para os dois filhos, tendo então que “abandonar” Ana quando nasceu seu segundo filho. Dolto (2007) diz que o bebê precisa de uma constância objetal, ou seja, o objeto não necessariamente precisa ser a mãe, mas ele deve ser sempre o mesmo. Porém, percebe-se que Ana não teve um objeto constante, pois parece que suas necessidades ora eram atendidas pelas avós, ora pela mãe, o que pode ter sido mais um motivo que fez com que Ana não conseguisse reconhecer seu corpo de maneira adequada, acarretando com que a menina criasse uma imagem inconsciente de corpo distorcidab. Ana comenta ainda que, quando estava muito mal, sua mãe a obrigava a comer, mas ela tinha vontade de morrer. Este desejo de Ana pode ter ocorrido por que a menina talvez não estivesse suportando a hostilidade causada pela internalização destes objetos ruins. Objetos estes que são, de acordo com Fernandes (2006), introjetados muito precocemente. Sendo assim, a menina passa a atacar o corpo como forma de ataque a estes objetos maus. Já no segundo caso, Sabrina, quando descobriu que estava grávida, foi rejeitada por seu pai, tendo que sair de casa; além disto, seu companheiro e pai do bebê, envolvia-se muito pouco com a gravidez. Sabrina diz: “passei a entender que era só eu e ela, acabou sendo uma relação mãe e filha muito forte [...] passei a entender que a única pessoa que eu tinha a partir daquele momento era a Fernanda”. Percebe-se que esta relação bastante intensa que se estabeleceu entre mãe e filha, quando o bebê nem havia nascido, mostra o quão intenso foi o investimento de Sabrina sobre seu bebê, o qual nasceria com um papel inconscientemente já estabelecido pela mãe: “ser sua fiel companheira”. Fernandes (2006) comenta que a mãe, gradativamente, vai permitindo ao bebê a construção das categorias de tempo, b Para Françoise Dolto (2007), a imagem inconsciente de corpo é a representação mental de corpo que o indivíduo tem de si mesmo e esta ligada a sua história. espaço, a distinção entre fora e dentro, vazio e cheio. De acordo com Winnicott (1978), possibilitar a experiência do vazio supõe que a mãe tenha capacidade para introduzir intervalos de tempo entre as necessidades do bebê e sua resposta. Porém, Sabrina mostra, por meio de sua narrativa, que nunca permitiu que Fernanda chorasse, pois a menina tinha horário para todas as refeições, ela apenas “resmungava” e a mãe atendia imediatamente aos apelos da filha. Portanto, pode-se pensar que Fernanda não teve o seu espaço, para se reconhecer enquanto um Ser separado de sua mãe, e dona de um corpo, o qual tem sua autonomia e que suas necessidades muitas vezes não serão atendidas narcisicamente. Seguindo este raciocínio, vale destacar novamente o trecho em que Sabrina comenta: “[...] eu nunca deixei que Fernanda precisasse de nada, eu sempre dei tudo o que eu podia e sempre estive por perto para defendê-la [...]”. Assim, quando Sabrina não possibilita a Fernanda intervalos entre sua presença e ausência, não permite que a filha se dê conta de que existe um meio externo, e assim acaba por reforçar o narcisismo primário da menina, reafirmando a percepção errônea do bebê de que ele é uma extensão de sua mãe. Deste modo, é relevante destacar Checchinato (2007) que comenta: “ser pai e ser mãe é a arte de saber marcar a presença ou ser inútil, dispensável, na hora certa”. Assim, o bebê pode se dar conta de que ele não tem tudo o que precisa, para que sua libido possa deixar de ser toda investida no ego e passe a ser parcialmente investida no objeto, possibilitando de acordo com Freud (1914/1996) que o bebê saia do narcisismo e comece a se apropriar do mundo externo. Observa-se, no caso de Fernanda, que Sabrina talvez tenha “pecado pelo excesso”, não proporcionando intervalos de vazio, parecendo “sufocar” Fernanda com cuidados materno exagerados, pois esta menina parece que não teve “tempo” para se perceber enquanto próprio corpo. Já Maria, no momento em que se afastou de Ana com o nascimento do segundo filho, pode ter atendido somente as necessidades físicas de Ana, sem o correspondente afeto que o bebê necessita. Percebe-se neste caso que a mãe teve uma separação “brusca” de sua filha, quando “escolhe” o bebê mais novo para ser cuidado por ela. Assim, Ana não conseguiu se apropriar de suas sensações e continuou por perceber-se como uma extensão da mãe, ou seja, Maria pode ter “pecado pela falta”. O modo como estas meninas foram cuidadas por suas mães remete-nos a Fernandes (2006), quando ele comenta que, para que a mãe possa interpretar os sinais do corpo do bebê, que não lhe pertence mais, ela precisa dar provas de sua capacidade de investir libidinalmente, e de forma suficiente, nesse corpo. Desta forma, como colocaria 21 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 Winnicott (1978), a mãe tem uma função decisiva na construção da saúde mental de seu bebê. Sabrina e Maria atenderam as necessidades das filhas, por meio das suas necessidades, não percebendo suas filhas como seres autônomos, mas como uma extensão delas. Nestas condições, o bebê se desenvolve preso na impotência e na dependência desse objeto primário. Pode-se dizer que estas mães provavelmente falharam, ou melhor, faltaram na relação com suas filhas. Esta falta pode se caracterizar pela falta do “vazio”, no caso de Fernanda, ou pela falta de investimento, no caso de Ana. Porém, esta falta vivida como falha materna, inconscientemente estabelecida, pode ter feito com que a menina não conseguisse desenvolver um sentido de self, pois o investimento materno parece ter sofrido descontinuidades, e assim, estas jovens não conseguiram se apropriar de seu corpo e este, então, se ausentou enquanto corpo próprio. As mães das anoréxicas, de acordo com Fernandes (2006), parecem desvalorizar a expressão dos sentimentos e dos afetos, o que ocorre com Maria, quando salienta que “as avós sempre estiveram por perto... mas os cuidados de mãe eu sempre dei”. Demonstrando-se pouco continentes diante dos sofrimentos decorrentes das experiências de vida e, assim, passando a preocupar-se somente com os cuidados físicos, pois Maria refere-se sempre à filha como “um bebê fofinho”, “sem doenças”, “apenas teve bronquite que foi curada antes da anorexia”. Sabrina, por sua vez, também se refere à Fernanda como um bebê “bem cuidado”, que sempre teve hora para todas as refeições, então ela nunca permitiu que Fernanda chorasse pedindo a comida, pois dava imediatamente. Percebe-se que ambas as mães, quando indagadas sobre o desenvolvimento das filhas, respondem somente citando características físicas destas meninas, não reconhecendo os fatores emocionais presentes neste contexto. Por meio disto, pode-se pensar que estas mães, desde cedo, investiram em um corpo físico, pois Maria comenta que sonhava que Ana emagrecesse, mas nunca deixou que Ana percebesse seu desejo. Porém inconscientemente, ou por vezes até conscientemente, ela poderia estar transmitindo este desejo à filha, o que, de acordo com Morgan (2002), pode ter sido um fator preditivo de insatisfação corporal. Desta forma, a menina faz de tudo para atingir as expectativas desta mãe. Gabbard (1998), diz que estas meninas tentam atingir as expectativas das mães, porque não se reconhecem como donas de um self indiferenciado de suas mães, portanto não suportam a idéia de distanciarem-se destas. Para Bagattini (1997), citado por Cimenti (1998), as anoréxicas têm o seu corpo e as vicissitudes dele apropriados por sua mãe através de um perverso controle obsessivo de suas funções. Observa-se no presente estudo que essas mães passam a ser donas do corpo das filhas. Sabrina comenta que, desde pequena, Fernanda é muito vaidosa, e que ela elogia constantemente o corpo bonito da filha, estimulando-a a frequentar academia e estéticas. No caso de Ana, é possível deparar-se com um trecho da entrevista onde Maria relata: “apesar de gorda, Ana era bonitinha”. Neste comentário, a mãe demonstra explicitamente o desejo, ao qual ela nomeia de “sonho”, de que a filha emagrecesse. Deste modo, evidencia-se um vínculo entre mãe e filha de característica perversa, no qual a menina mostra condutas demasiadamente adaptadas de “boa menina”, que é um convite ao elogio e que preenche o vazio narcisista de ambas. O Papel Materno na Construção da Subjetividade da Menina Anoréxica Conforme analisado anteriormente, a descontinuidade do investimento de Maria na relação mãe-bebê com Ana e a sufocante presença materna nos primeiros anos de vida de Fernanda podem ter feito com que estas meninas não tenham conseguido se constituir enquanto sujeitos independentes de suas mães e donas de um próprio corpo. Ou seja, estes conflitos existentes entre mãe-bebê influenciaram para que o ego destas meninas tenha sofrido perturbações, prejudicando a formação da subjetividade, e assim, fazendo com que estas delineassem um self de acordo com o de suas mães, pois Ana e Fernanda não são capazes de se perceberem enquanto sujeitos distantes de suas mães e donas de uma vida independente. As duas meninas dizem que suas mães são sua fortaleza, comentam que são melhores amigas e que suas mães são indispensáveis para o seu viver. Nota-se nestas meninas que, por terem desenvolvido um falso self, não conseguem desprender-se destas mães e se aceitar como uma adolescente que faz parte de um grupo e que tem seus interesses próprios desta fase. Ana comenta: “eu amo estar com minha mãe, ela é minha fortaleza, não gosto de me separar dela [...] passamos muito tempo juntas, eu até aprendi a fazer crochê para ficar mais com ela”. Já Fernanda diz: “minha mãe é tudo pra mim, eu gosto mais de sair com ela e com suas amigas do que com minhas próprias amigas”. Percebe-se que Ana e Fernanda precisam estar ao lado de suas mães, vivendo de acordo com a vida destas, demonstrando-se incomodadas quando tem que se afastar das mães. Vighietti (2001) comenta que a anoréxica nunca foi 22 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 preparada para a experiência de separação e individuação da mãe, própria da adolescência, pois com a intrusividade materna a menina não consegue desenvolver autonomia. Levando em conta as considerações do autor acima citado, pode-se dizer que as meninas pesquisadas também não conseguiram se separar de suas mães, pois elas comentam que somente sentem-se felizes quando estão ao lado de suas mães e realizando atividades com elas. Percebe-se que, imediatamente antes dos sintomas anoréxicos surgirem, houve uma tentativa destas jovens de tornarem-se independentes. Ana, no início da adolescência começou a fazer parte de um grupo de roqueiras; já no caso de Fernanda, Sabrina conta que, antes da doença, estava começando a independizar a filha, estimulando que ela saísse com os amigos e fizesse coisas diferentes das suas: “ela estava em momento em que já estava se virando sozinha”. Porém, é interessante observar que foi exatamente neste momento de possível independização de suas mães que estas meninas começaram a desenvolver a anorexia nervosa. Pode-se pensar que estas meninas não suportaram o distanciamento de suas mães, pois elas percebem-se como parte integrante do self da mãe, então, separando-se dela é como se estivessem deixando parte de si. Diante desta ineficiência, não resta às meninas outra saída, a não ser tentar, como cita Busse (2004), ter o controle do corpo, como forma de ter o domínio de si, transferindo para o peso e para o comer todas suas ansiedades e problemas psicológicos. O mesmo autor ainda segue dizendo que o sintoma anoréxico é uma tentativa da menina de estabelecer uma fronteira entre ela e a mãe. Assim, salienta-se que a Anorexia Nervosa surge por meio de uma tentativa de auto-cura das meninas em busca de um real sentido para o self, pois quando tentam tornar-se independentes, percebem que não são capazes de se apropriarem de suas vidas. Porém, esta tentativa de cura através do corpo não tem sucesso e, conforme Ballone (2003), com o aparecimento da doença as anoréxicas voltam a ter sentimentos infantis arcaicos de dependência materna. Este fato apontado confere com os casos pesquisados, pois Sabrina comenta que Fernanda busca, atualmente, em alguns momentos “o tratamento que tinha na infância, a questão do colo, dormir no meu quarto, quando ela não está bem, é como se ela quisesse voltar para o útero”.Já no caso de Ana a mãe comenta: “parece que ela gostaria que eu cuidasse dela como quando era criança”. Portanto, observa-se no discurso das mães que elas têm uma influência significativa na fase de independização de suas filhas, pois tanto Maria quanto Sabrina, demonstraram em suas narrativas a dificuldade de proporcionar autonomia para suas filhas. Sabrina comenta: “eu gostaria de criar minha filha em um castelo de vidro, onde ninguém pudesse machucá-la”. Esta mãe passa uma imagem durante a entrevista de uma mãe muito controladora, e isto se nota também pelo comportamento dela diante das desavenças escolares da filha, em que ela nunca permitiu que a menina conseguisse responder por si, pois sempre quando a filha se envolvia em algum conflito com as coleginhas, era Sabrina quem ia até a escola resolver o problema por Fernanda. Deste modo, pode-se inferir que esta proteção materna não foi saudável, pois impediu que Fernanda vivesse sua própria vida. Sabrina completa: “a Fernanda é a pessoa mais importante de minha vida e se depender de mim, estaremos sempre juntas, tentando resolver tudo o que puder vir a acontecer [...] antes da anorexia, a Fernanda já estava começando a me ajudar nos meus problemas”. A mãe de Fernanda demonstra não ter capacidade para assumir a independência da filha; assim, percebe-se que ela pressiona a menina no momento que a filha está conseguindo se independizar, jogando sobre esta a responsabilidade de agora ajudar e cuidar da mãe. Percebe-se que se delineia um vínculo de amizade entre mãe e filha, onde Sabrina não deixa marcada sua função, pois parece que ela não suporta reconhecer que Fernanda é sua filha e que precisa ter uma vida diferenciada da sua, e então no momento de possível afastamento, a mãe coloca na filha também a responsabilidade de sua vida. Maria conta que, antes da doença, Ana era muito independente, fazia parte de um grupo de roqueiras e comenta: “neste grupo eles acham que são independentes”. Percebe-se, por meio de sua expressão verbal, que esta mãe, igualmente a Sabrina, não suporta pensar que a filha estava se independizando dela e se constituindo como ser separado. Maria parou de trabalhar desde a doença da filha, parecendo ter deixado sua vida para viver a de Ana. Ela diz: “eu vivo para meus filhos, porém não me sinto realizada, pois eu sei que um dia Ana irá casar e eu ficarei sozinha, sem ter me dedicado o suficiente para mim”. Desta forma, Maria, deixa entendido que, quando ela precisar, Ana não estará ao seu lado, isto, consequentemente, põe sobre Ana mais um empecilho para tornar-se independente, com seus próprios interesses, pois ela parece já estar “pré destinada” por sua mãe para viver integralmente e absolutamente ao lado desta. É notável que estas mães colocam nas filhas a responsabilidade de acompanhá-las durante toda a vida. Porém é relevante salientar que Maria comenta que ficará sozinha, com 23 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 a possível saída de Ana rumo à vida adulta. Podemos então, retornar ao entendimento da configuração familiar descrito na primeira categoria e considerar este trecho como mais um indicativo de que a mãe criou sua filha para ela, e não permitiu a entrada de um pai e nem de um marido na relação, pois seria mais adequado que esta mãe visse o marido como seu companheiro e não a filha. Por outro lado, poderíamos retornar ao trecho citado na primeira categoria, em que Maria comenta: “eu confidencio para minha filha coisas da minha relação com meu esposo”. Esta fala de Maria mostra que além de não restringir o espaço da relação que deveria ser somente do casal, ela ainda invade a menina com a sua vida conjugal. Assim sendo, introduz na filha uma imagem negativa de vida a dois, despertando na menina “medo” sobre a sexualidade e a feminilidade, parecendo não suportar que esta “se desprenda” da relação narcísica para buscar um parceiro e assumir as demandas de uma nova fase de vida. Nota-se, portanto, que Sabrina e Maria são mães que se apropriaram em parte, do papel de mãe, estabelecendo com suas filhas uma relação bastante consistente de “amizade e companheirismo”. Estas mães não ofereceram uma hierarquia e limites às filhas, evidenciando uma falta da função paterna instaurada na mãe e pela mãe. Relação esta que pode dificultar ainda mais com que estas meninas se tornem independentes, pois, além de assumirem suas vidas, ainda terão a responsabilidade sobre a vida das mães. De acordo com Ballone (2003), quando a menina não consegue comer ela está demonstrando a falha primordial do desejo de sua mãe para que ela vivesse, pois talvez a vida de uma filha fizesse com que a mãe não suportasse a sua própria vida. Assim, observemos o comentário de Ana: “antes da doença, minha mãe e eu conversávamos muito pouco, mas eu queria que tivéssemos conversado mais, pois assim eu saberia desde criança que eu tinha uma amiga”. Poderíamos pensar diante deste relato, que Maria e Ana nunca assumiram uma relação de mãe e filha, pois antes da anorexia, parece que “não se relacionavam” e atualmente são “amigas”. No segundo caso, Sabrina, com a gravidez de Fernanda, passou por muitos problemas (rejeição do pai, falta de apoio do companheiro), o que nos faz pensar que para ela este momento também foi muito difícil e insuportável, então, ela, como Maria, buscou na filha laços de amizade, pois para estas mulheres, parece que seria insuportável psiquicamente serem mães. Diante dos fatos apresentados, percebe-se que Fernanda e Ana não aprenderam a gerenciar suas próprias vidas, não sendo capazes de dirigi-las sozinhas, mostrando-se convictas de que não possuem qualquer poder e que são ineficientes. Elas vivem somente de acordo com o self materno, ficando impossibilitadas de desenvolverem o senso de autonomia, não conseguindo assim, assumir uma vida diferenciada das de suas mães. Considerações Finais Após a análise dos casos apresentados, observa-se que existem muitos fatores comuns nas duplas pesquisadas. É possível concluir que as mães destas meninas anoréxicas, possivelmente, “faltaram” com seus bebês. Porém, esta falta se deu de forma distinta nos dois casos pesquisados: no caso de Ana, houve uma falta de investimento da mãe no momento que nasce seu segundo filho; no caso de Fernanda, esta falta caracteriza-se como falta de espaço, no momento em que a mãe sufoca a filha com seus cuidados exagerados. Assim, compreende-se que as mães das meninas anoréxicas, aqui estudadas, não investiram de forma dosada em suas filhas e, atualmente, estas meninas estão acometidas de um sintoma, o qual acaba, em uma dimensão intrapsíquica, por representar esta falha materna. Acredita-se que esta falta materna inconscientemente estabelecida, influenciou para que as meninas não conseguissem se desenvolver separadamente das mães e se apropriarem de seu corpo. Consequentemente, as jovens percebem-se como uma extensão de suas mães, logo, esta condição faz com que as anoréxicas desenvolvam um self submetido ao ambiente e não às próprias necessidades, ou seja, um self submetido à subjetividade materna. Esta condição de desenvolver um self submetido ao ambiente e não às próprias necessidades, Winnicott (1978), chamou de falso self. Além disto, observa-se claramente que estas mães realizam um provimento material em detrimento do afetivo, o que contribuiu para a dificuldade de expressão do verdadeiro self. A função paterna apresentou-se também de forma diferente em cada um dos casos, porém não há dúvidas de que estes pais foram “inoperantes”. No caso de Ana este foi inoperante por não se apresentar na relação mãe e filha, deixando a filha mergulhada na relação narcísica com sua mãe. Já no segundo caso, o pai parece ter se apresentado na relação primitiva de mãe-bebê, porém não teve “fôlego” suficiente para ingressar ativamente na díade mãe e filha e proporcionar a castração. No entanto, permite-se dizer que se estes pais foram inoperantes, é porque talvez as mães tenham impossibilitado que estes exercessem suas funções. Percebe-se, por meio de suas narrativas, que estas mães não permitem a entrada do pai 24 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 17-25 na relação materno-filial, demonstrando terem uma imensa dificuldade de independizar suas filhas, parecendo amedrontálas sobre a independência, colocando sobre estas meninas uma responsabilidade imensa sobre suas vidas, fazendo com que as meninas não se constituam enquanto sujeitos separados da figura materna e perpetuem sua condição narcísica. Acredita-se que a anorexia surgiu na adolescência como uma reação às demandas das jovens por maior independência. Estas meninas, que até então viveram de total acordo com os desejos maternos, tentam na adolescência experimentar situações próprias que lhes permitam o sentimento de existência. Porém, por terem construído um falso self, estas meninas não suportaram se perceber longe das mães. Desta forma, diante de total ineficiência, é através do controle do corpo que a menina tenta estabelecer o comando de sua vida e marcar a fronteira entre ela e a mãe. Em níveis de estrutura familiar, pode-se pensar que as trocas amorosas e a afetividade do casal conjugal apresentamse muito pobres. Logo, a afetividade na parentalidade também se caracteriza de forma precária, o que possivelmente, afeta o investimento libidinal dos pais sobre seus filhos. Diante do exposto, acredita-se que esta pesquisa investigou aspectos que possam estar relacionados com a constituição da anorexia nervosa tais como, a configuração familiar, dinâmica da relação materno-filial e o papel materno na construção da subjetividade da menina anoréxica. Porém, vale salientar que não são somente estas relações as causas da anorexia nervosa, pois tal transtorno apresenta uma etiologia multifatorial. Por fim, estima-se que este artigo possa contribuir de alguma forma para futuras pesquisas na área. Para tanto considera-se importante que, em um próximo estudo, a amostra seja ampliada, a fim de permitir maior abrangência na discussão acerca do tema e a obtenção de dados mais concisos sobre a relação materno-filial na anorexia nervosa. Revista de Psiquiatria Clínica, 31 (4), 154-157. Dolto, F. (2007). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva. Fernandes, M. H. (2006). Transtornos Alimentares. Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo. Freud, S. (1914/1996). Sobre o narcisismo uma introdução.In Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1920/1976). Além do Princípio do Prazer. In Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1925/1976). A Negativa. In Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. Gabbard, G. O. (1998). Psiquiatria Psicodinâmica. Porto Alegre: Artmed. Gil, A.C. (1994). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas. Klein, M. (1952/1991). Algumas conclusões teóricas relativas à vida emocional do bebê. In: Klein M. 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O método utilizado foi o da revisão sistemática, com três construtos-pilares: (1) práticas de cuidado, (2) pressupostos teórico-metodológicos da EM e (3) contexto de saúde. Consultaram-se as bases de dados PubMed, Medline e EMBASE. Encontraram-se 73 artigos, incluindo-se 16 destes, sendo nenhum latinoamericano. A EM mostrou-se eficaz em 75% dos estudos, sendo utilizada em sua maioria (n=8) em internação hospitalar, ambulatório hospitalar (n=4), clínica (n=1), postos de saúde (n=2). Desta forma, verifica-se que a aplicabilidade da EM precisa ser mais bem estudada e amplificada na saúde brasileira e latinoamericana, em busca de práticas eficazes nos cuidados aos pacientes. Palavras-chave: Entrevista Motivacional; Psicologia Hospitalar; Intervenção. Abstract: This study aimed to verify the expansion on the applicability of the Motivational Interviewing (MI) in health care beyond its use in cases of addiction because of the wide range of studies that have demonstrated their effectiveness in this demand. The method used was the systematic review, with three constructs-pillars: (1) care practices, (2) theoretical and methodological assumptions of MS and (3) health context. Have consulted the databases PubMed, Medline and EMBASE. 73 items were found, including 16 of these, and any Latin American. MI was effective in 75% of studies and is used mostly (n = 8) in hospital, outpatient hospital (n = 4), clinical (n = 1), health (n = 2). Thus, it appears that the applicability of MS needs to be further studied and amplified in the Brazilian and Latin American health, in search of effective practices in patient care. Keywords: Motivational interviewing; Hospital psychology; Intervention. a b c Psicólogo, Residente em Onco-Hematologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). *E-mail: [email protected] Psicóloga, Mestranda em Cognição Humana no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUCRS. Prof. Adjunta da Faculdade de Psicologia da PUCRS, Programa de Pós-graduação em Psicologia, área de concentração Cognição Humana. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 26 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 A Entrevista Motivacional (EM) foi desenvolvida por Miller e Rollnick e tem como objetivo principal auxiliar o indivíduo nos processos de mudanças comportamentais, eliciando a resolução da ambivalência para mudanças de comportamento e estimular o comprometimento para a realização dessa mudança por meio de abordagem psicoterápica convincente e encorajadora (Miller & Rollnick, 2001). Desta forma, o processo de mudança de comportamento seria gerado através de uma motivação, podendo esta ser entendida como um processo dinâmico segundo o modelo transteórico, desenvolvido por Prochaska e DiClemente (1983). O modelo de estágios de mudança (Prochaska & DiClemente, 1983) descreve este processo em etapas de modificação do comportamento pelas quais o indivíduo passa de forma nãolinear, estando em tratamento ou não. Segundo estes autores, os estágios observados seriam os de pré-contemplação do problema, o de contemplação, o de preparação e manutenção. Utilizada usualmente para casos que envolvam dependências químicas, com comprovada eficácia nesta demanda, a EM é uma abordagem relativamente simples e com baixo custo, sendo baseada em princípios cognitivos como o entendimento dos problemas e as reações emocionais frente a eles, e visa estabelecer alternativas para a modificação dos padrões de pensamentos implementando soluções (Bundy, 2004). Amplificando esta ideia, Miller e Rollnick (2001) citam que a EM ao invés de indicar soluções para o paciente, oferece condições de crítica que propiciem ao mesmo tempo o espaço para uma mudança natural. Sendo assim, tenta-se buscar as razões para a mudança em vez de impor ou tentar persuadir a pessoa sobre ela. Em resumo, a EM orienta os pacientes para tornarem-se conscientes sobre a transformação necessária, objetivando sua melhora. Suarez (2011) aponta a aplicação da EM na adesão dos pacientes em programas de reabilitação e cita o papel da família neste processo, já que ela acaba atuando muitas vezes como suporte na compreensão da importância de aceitar, bem como, trabalhar o que foi recomendado ao paciente. Em concordância com esta noção, Jungerman e Laranjeira (1999) salientam a importância de se estudar a aplicabilidade da EM no Brasil em outras situações clínicas já que hoje em dia apenas poucos serviços especializados em dependência química utilizam esta abordagem e ela ainda não foi difundida, apesar de sua eficácia já ser demonstrada (Andretta & Oliveira, 2005; Castro & Passos, 2005) dentro deste contexto, podendo ser estendida para outras formas de atenção em saúde. Desta forma, podemos caracterizar cuidados em saúde como intervenções que possibilitem mudanças no quadro clínico dos pacientes, muitas vezes fornecidas através de diferentes recomendações nutricionais, farmacológicas e comportamentais. Contudo, o tratamento para a recuperação global do paciente envolve igualmente aspectos cognitivos e emocionais, tendo uma relação direta entre a sua história, a doença e os significados e crenças atribuídos nesta etapa (Calvetti, Pelisoli, Nallem & Piccoloto, 2011). Portanto, pensar em uma ferramenta que viabilize este processo de mudança se faz necessário, principalmente para os psicólogos que atuam em contextos de saúde tais como hospitais e postos de atendimento. Sendo assim, frequentemente ao pensarmos em saúde e em formas de cuidado, relacionamos essas ideias diretamente ao ambiente hospitalar, justamente por este se caracterizar como instituição máxima no que diz respeito ao bem-estar físico e mental. Confirmando esta premissa, Rosen (1980) cita que a introdução da medicina profissional dentro do hospital, a redefinição de seu perfil institucional, o aproveitamento racional dos recursos disponíveis e as especificações terapêuticas inseridas dentro deste ambiente, fizeram com que o hospital geral se convertesse no que hoje conhecemos como um estabelecimento dedicado exclusivamente aos atendimentos no trato da saúde. Assim, a inserção do psicólogo enquanto profissional da saúde neste âmbito se fez necessária, contribuindo para as práticas existentes na atenção e no cuidado aos pacientes hospitalizados. Nesse contexto, torna-se importante compreender a prática da Psicologia Hospitalar, que é um ramo considerado relativamente novo, tendo em vista que só foi regulamentada há cerca de duas décadas e, portanto, torna-se necessário explorar todas as suas variáveis, aprofundando seus conceitos e sua aplicação (Romano, 1999). Dentro do hospital, o profissional da psicologia depara-se com diferentes adversidades com as quais não está preparado, tendo de adaptar-se a este novo contexto e moldar sua prática clínica de acordo com as necessidades e as demandas que surgem. Os pacientes hospitalizados geralmente trazem consigo problemas relacionados a múltiplas esferas de suas vidas. Nesse sentido, o trabalho multidisciplinar se constitui em uma alternativa para auxiliar nos cuidados ao paciente e considerar as particularidades de todas as áreas da saúde envolvidas neste processo, auxiliando e orientando as condutas necessárias para que se obtenha um resultado positivo (Maldaner, Beuter, Brondami, Budó & Pauletto, 2008). Através das diferentes abordagens existentes, o psicólogo poderá utilizar inúmeras técnicas para auxiliar a equipe médica na resolução do conflito que impede a adesão e no seguimento do paciente ao tratamento recomendado. De acordo com 27 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 Mazutti e Kitayama (2008), a intervenção psicológica feita no hospital geral pode se ocupar do alívio dos sintomas depressivos dos pacientes com relação ao seu período de internação, no alívio dos quadros de ansiedade, na escuta ativa dos problemas que envolvem o estar hospitalizado e no manejo verbal com os pacientes permitindo mudanças cognitivas e comportamentais. Uma das abordagens que pode ser recomendada para estes objetivos é a EM, entretanto, sua aplicabilidade como recurso próprio para auxiliar em outros cuidados de saúde, ultrapassando o viés da dependência química, ainda não foi estudada em grande escala merecendo ser explorada devido à eficácia que possui no auxílio ao indivíduo e nos seus processos de mudanças comportamentais, propiciando a resolução da ambivalência para que ocorram tais transformações. O objetivo deste estudo é o de explorar e avaliar a aplicabilidade da EM na atenção à saúde além do seu uso na questão da dependência química, justamente por este tema já ser muito bem avaliado, além de analisar os resultados obtidos através da implementação desta ferramenta através de um panorama traçado à luz de uma revisão da literatura internacional. Como contexto de aplicabilidade desta ferramenta, pensouse em pesquisar o hospital como local de prática, unindo as demandas apresentadas na psicologia hospitalar e o uso da EM como auxílio. Para alcançar estes objetivos, esta revisão se propõe a responder às seguintes questões norteadoras: [1] Quais os lugares, em nível mundial, têm se proposto a estudar a utilização da EM dentro do contexto hospitalar como ferramenta de auxílio nos cuidados em saúde? Mais especificamente, qual a inserção de estudos brasileiros neste panorama internacional? [2] Que objetivos foram estabelecidos nos estudos analisados? [3] Dos estudos que se propuseram a analisar sua eficácia/efeito terapêutico, quais os resultados obtidos? [4] Que evidências podemos ter para avaliar a sua aplicabilidade dentro do contexto brasileiro de saúde? Estas questões de pesquisa foram exploradas principalmente no contexto hospitalar ou a ele relacionado, por ser muito representativo da atenção terciária à saúde. teórico-metodológicos da entrevista motivacional e (3) contexto de saúde. Respectivamente, as palavras-chave foram as que seguem por construto, não representando sua tradução: (1) [treatment OR intervention OR health OR assessment OR evaluation], AND (2) [motivational interview OR motivational interviewing], AND (3) [hospital]. Os critérios de inclusão foram redação em português, inglês ou espanhol, publicação entre os anos de 2005 e 2011, relato de estudos empíricos com no mínimo um caso investigado, tendo como participante(s) adultos (>18 anos) e/ou idosos (>60 anos) atendidos no contexto de saúde. Foram excluídos todos os trabalhos que referiam a utilização da EM nos casos de dependência química justamente por esse não ser o foco de atenção. Desta forma, todos os artigos, sem contabilizar os repetidos, que não se enquadravam nestes critérios foram retirados da pesquisa. Para a análise dos artigos e dos critérios de inclusão e exclusão foi utilizado o método duplo-cego a partir do qual dois avaliadores escolheram independentemente os artigos a serem incluídos na revisão pelo julgamento dos critérios de inclusão. Para um consenso no caso de ausência de concordância entre estes dois avaliadores, um terceiro avaliador participou julgando como incluído ou excluído cada artigo. Assim incluíram-se os abstracts com consenso de no mínimo dois avaliadores. Inicialmente encontraram-se 73 trabalhos que, após analisados de acordo com os critérios pré-estabelecidos e de terem passado pelo consenso do terceiro juiz, resultaram em 18 artigos completos incluídos. Resultados Através da Figura 1 pode-se observar o fluxograma demonstrativo do trajeto de análise dos artigos e os principais motivos para a não inclusão dos mesmos. 73 abstracts Busca Inicial Avaliação dos abstracts através dos critérios estabelecidos Método A revisão sistemática da literatura foi realizada no segundo semestre de 2011, tendo como consulta às bases de dados online PubMed, Medline e EMBASE, visto que as mesmas abrangem boa parte dos trabalhos publicados da área. Utilizaram-se as palavras-chave de três construtos pilares de reflexão no presente artigo: (1) práticas de cuidado de saúde, (2) pressupostos 55 abstracts excluídos 18 abstracts incluídos Motivos da exclusão: Utilização da EM para cessar o uso de tabaco=14 Utilização da EM para cessar o uso de álcool =18 Utilização da EM para abuso de substâncias em geral = 8 Outros = 15 28 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 Na Tabela 1, são apresentadas informações gerais que caracterizam os 18 estudos incluídos em um primeiro momento a partir da análise de abstracts, quanto ao ano, periódico e localidade. Destes, observa-se que 44% (n=8) foram realizados nos Estados Unidos e o restante na Europa, tendo maior frequência para Inglaterra (n=3) e Irlanda (n=2). Observa-se também que parece ter havido um aumento importante de estudos publicados nos anos de 2007 e, maior ainda, em 2009. Tabela 1 - Artigos incluídos na revisão Nº Autoria Ano Periódico Localidade 01 Watkins, C.L. et al. Stroke Inglaterra 02 Minet, L.K., Wagner, L., Lonvig, E.M., Hjelmborg, 2011 J. & Henriksen, JE. Diabetologia Dinamarca 03 Sherwood, A. et al. Estados Unidos 04 Gillham, S. & Endacott, 2010 R. Ahmad, A., Hugtenburg, J., Welschen, L.M., 2010 Dekker, J.M. & Nijpels, G. Journal of Cardiac Failure Clinical Rehabilitation Inglaterra BMC Public Health Holanda BMC Public Health British Medical Journal Drug and Alcohol Dependence Psychiatric Services Patient Education and Counseling Espanha 05 2011 2010 06 Valero, C. et al. 2009 07 Murphy, AW. et al. 2009 08 Otto, C. et al. 2009 09 Sherman, M.D. et al. 2009 10 Huisman, S. et al. 2009 11 DiIorio, C., Reisinger, E.L., Yeager, K.A. & McCarty, 2009 F. 12 Fernandez,W.G. et al. 2008 13 Golin, CE. et al. 2007 14 2007 15 Nollen, C., Drainoni, M.L., & Sharp, V. Watkins, C.L. et al. 2007 16 Casey, D. 2007 17 Wilhelm, S.L., Stepans, M.B., Hertzog. M., 2006 Rodehorst, T.K. & Gardner, P. 18 Riegel, B. et al. 2006 Epilepsy & Behavior Na Tabela 2, verificam-se os objetivos e aspectos metodológicos, assim como os resultados obtidos pela utilização EM. Houve redução de dois estudos (número 05 e 06) cujos abstracts encontram-se descritos na Tabela 1, na medida em que após análise dos textos completos foram categorizados como projetos de protocolo de EM a serem aplicados. Irlanda Alemanha Estados Unidos Holanda Estados Unidos Society for Academic Estados Emergency Unidos Medicine Aids And Estados Behavior Unidos Aids And Estados Behavior Unidos Stroke Inglaterra Nursing & Health Irlanda Sciences Journal of Obstetric, Gynecologic, Estados Unidos & Neonatal Nursing Journal of Estados Cardiovascular Unidos Nursing 29 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 Tabela 2 - Objetivos, aspectos metodológicos e resultados dos estudos analisados Núm. Autoria Objetivos Método Delineamento Resultados Amostra (n) Estudo aberto, randomizado Adultos (>18 anos) e controlado. (n=411) Utilização da EM 1 Watkins et al. Determinar se a EM, pode beneficiar no humor dos pacientes pós-AVC (Acidente Vascular Cerebral) e reduzir o índice de mortalidade. 2 Rosenbek Minet, LK., Wagner, L., Lonvig, EM., Hjelmborg, J. & Henriksen, JE. Medir a eficácia da EM em Estudo de grupo controle, comparação com os cuidados randomizado. habituais sobre as mudanças no controle glicêmico e da competência de diabetes auto-gestão em pacientes com diabetes mellitus. 3 Sherwood, A. et al. Testar a eficácia do programa Coping Effectively with Heart Failure (COPEHF) - que envolve EM -, em pacientes com Insuficiência Cardíaca. 4 Gillham, S. & Endacott, R Avaliar se a prevenção secundária Estudo controlado, reforçada influencia significativamente randomizado, follow-up. na prontidão para a mudança de comportamento de saúde, após AVC Isquêmico transitório, em comparação com a prevenção secundária convencional do AVC. Idade média de 68,3 anos Utilizou-se uma escala Houve um efeito clinicamente (n=52) baseada em princípios significativo no comportamento de da EM. exercício e dieta relatados no grupo de intervenção. 7 Murphy, AW. et al. Testar a eficácia de uma intervenção complexa projetada, dentro de um quadro teórico, para melhorar resultados para pacientes com doença cardíaca coronária. Idade média de 68,5 anos Foram utilizados (n=903) princípios da EM apenas. Houve redução do número de internações dos pacientes que participaram do estudo. 8 Otto, C. et al. Avaliar a eficácia das sessões de EM Estudo randomizado e sobre o uso abusivo de medicamentos controlado, com follow-up. prescritos após 12 meses. Adultos (>18 anos) e Idosos (até 69 anos) (n= 126) (n= 126) 2 sessões de EM durante 12 meses Não foi encontrado na amostra global nenhum efeito de intervenção significativa. 9 Sherman, MD. et al. Descrever a estratégia de Não especificado. recrutamento utilizada em um programa de nove meses que envolve psicoeducação familiar para veteranos com doença mental grave ou transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Não especificado (n= 505) 2 sessões de 20-30 Houve um resultado efetivo min. antes de iniciar o no recrutamento de soldados programa. para engajarem o programa de psicoeducação junto de suas famílias. 10 Huisman, S. et al. Avaliar a eficácia de uma intervenção de auto-regulação na redução de peso, nutrição, exercício, índice de massa corporal (IMC), hemoglobina glicosilada (HbA1c) (resultados primários), e qualidade de vida (desfechos secundários). Adultos (>18 anos) (n= 129) 3 sessões de 1 hora (primeira avaliação, follow-up após 3 e 6 meses). Estudo randomizado. Estudo randomizado, multicêntrico e controlado, com follow-up. Não especificado. 4 sessões semanais de EM. A EM melhora o humor dos pacientes e reduz a mortalidade pós-AVC Adultos (>18 anos) (n=349) 5 sessões de 45 min. durante 1 ano, no 1º,3º,6º, 9º e 12º mês. Não houve diferença significativa entre o grupo controle e o grupo de intervenção. Adultos (>18 anos) (n=200) Sessões semanais de 30 minutos durante 16 semanas Houve melhor manejo e mudanças de comportamento nos pacientes que participaram do programa. Não houve influencia significativa nos resultados. Porém, ocorreram positivas mudanças nos níveis HbA1c dentro do grupo que participou da intervenção. 30 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 Tabela 2 (continuação) - Objetivos, aspectos metodológicos e resultados dos estudos analisados Núm. Autoria Objetivos Método Resultados Delineamento Amostra (n) Utilização da EM 11 DiIorio, C., Reisinger, EL., Yeager, KA. & McCarty, F. Testar a viabilidade de um programa de auto-gestão por telefone para adultos com epilepsia. O programa foi baseado na teoria social cognitiva e princípios da EM. Não especificado. Adultos (>18 anos) (n=22) 5 sessões com uma Enfermeira treinada (1 presencial e 4 sessões por telefone). Houve uma aceitação positiva dos participantes ao estudo, mostrando um modelo por telefone eficiente de auto-gestão no monitoramento de sintomas e na adesão aos medicamentos. 12 Fernandez,WG. et al. Testar o uso da EM breve direcionada para aumentar o autorelato do uso do cinto de segurança entre pacientes de uma Unidade de Emergência Estudo controlado e randomizado. Adultos (>21 anos) (n=432) 5-7 minutos de intervenção, adaptado de técnicas clássicas da EM por um intervencionista treinado. Foi relatado maior uso do cinto de segurança no follow-up comparados aos do grupo controle. 13 Golin, CE. et al.. Descrever o desenvolvimento do programa Start Talking About Risks (STAR) que orienta jovens sobre sexo seguro através de um site. Não especificado. Adultos (>18 anos) (n=68) Sessões mensais de 30-40 min. durante 3 meses. Houve boa aceitação dos jovens ao programa. Não foi testada a redução de comportamentos de riscos. 14 Nollen, C., Drainoni, ML., & Sharp, V. Apresentar as lições aprendidas a partir de uma intervenção projetada para fornecer aconselhamento sobre prevenção do HIV dentro de um hospital multidisciplinar. Não especificado. Adultos (>18 anos) (n=231) 4 sessões de 30 min. cada durante 6 meses. Notou-se que o modelo Prevenção Positiva criado não é recomendado como melhor modelo de prevenção do HIV para a replicação em alto volume, dentro de ambientes hospitalares. 15 Watkins, CL. et al. Determinar se a EM pode beneficiar no humor dos pacientes três meses após o AVC. Estudo aberto, randomizado e controlado. Adultos (>18 anos) (n=411) 4 sessões semanais de 30-60 min. 3 meses após o AVC. Houve melhora no humor dos pacientes após os 3 meses da ocorrência do AVC. 16 Casey, D. Desenvolver um programa de treinamento de habilidades de ensino com foco no aspecto de educação em saúde sobre o papel do enfermeiro de promoção da saúde. Pesquisa-ação. Não especificado Foram utilizados princípios da EM apenas. Houveram mudanças e melhorias na prática das enfermeiras em educação em saúde. 17 Wilhelm, SL., Stepans. MB., Hertzog. M., Rodehorst, TK. & Gardner, P. Explorar a viabilidade de utilizar a EM para promover a amamentação sustentada com a intenção de uma mãe amamentar por seis meses resultando em sua auto-eficácia da amamentação. Estudo longitudinal. Adultos (>19 anos) (n=73) 2 sessões de EM durante o período de amamentação. O número médio de dias que as mães no grupo de intervenção amamentaram foi de 98 dias, em comparação à média de 81 dias pelo grupo de comparação. 31 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 Com relação aos objetivos traçados para os estudos analisados, a revisão possibilitou verificar a distribuição dos mesmos entre as seguintes categorias: avaliação de eficácia/ efeito terapêutico (n=7), relatos de procedimentos/experiência (n=5), programas pilotos (n=3) e adesão ao tratamento (n=1), tendo, portanto, destaque para os estudos que se detiveram em avaliar de alguma forma os efeitos terapêuticos do uso da EM. Observa-se, em relação aos aspectos metodológicos, de forma geral, os poucos estudos que classificaram seus delineamentos se caracterizaram como sendo de grupo controle, randomizado, principalmente do tipo follow-up. As amostras em geral foram bem descritas, destacando-se os estudos que continham exclusivamente adultos (>18 anos), representando 66 % (n=10) dos achados, com uma amplitude com relação ao número de participantes (n) correspondente a 15 e 903. Com relação aos cuidados em sáude em que foram empregadas as técnicas de EM, verifica-se que dos 16 estudos analisados, 3 dedicaram-se a questão do AVC, 2 detiveram-se sobre HIV, 2 sobre insuficiência cardíaca, 2 para diabetes mellitus, 2 para o engajamento de programas de saúde, e 1 de cada para amamentação, epilepsia, abuso de medicamentos, doenças cardíacas em geral e uso do cinto de segurança. Analisando o ambiente em que foram efetuados os estudos, observa-se que em sua maioria (n=8) a realização deu-se exclusivamente em internação hospitalar, ficando o restante distribuído entre ambulatório hospitalar (n=4), clínica (n=1), postos de saúde (n=2) e não-especificado (n=1). Quanto aos procedimentos, tais aspectos foram os menos descritos nos estudos incluídos, destacando-se a variável número de sessões de EM como a mais frequentemente explicitada. A amplitude de sessões dos 16 estudos foi de 2 a 16 sessões, contendo variações no tempo. De todos os estudos identificados, observa-se que 75% (n=12) dos analisados relataram benefícios associados ao uso desta ferramenta. Desta forma, esta discussão será norteada a partir de cada questão de pesquisa formulada na introdução. Quais os lugares, em nível mundial, têm se proposto a estudar a utilização da EM como ferramenta de auxílio nos cuidados em saúde? Efetuar um mapeamento da utilização da EM no contexto mundial nos últimos anos e avaliar a sua aplicabilidade em diferentes contextos permitiram que algumas considerações pudessem ser feitas a partir dos resultados encontrados. Assim, observa-se que todos os artigos encontrados nas bases pesquisadas estavam escritos na língua inglesa, e eram oriundos em grande parte dos EUA (44%) e o restante se concentrava na Europa, sendo que nenhuma publicação advinha da América Latina. Ressalta-se que o fato de o objetivo se caracterizar dentro de um panorama internacional, verificando-se qual a inserção de estudos brasileiros neste cenário, pode ter contribuído para tal achado, na medida em que o método para responder a tal objetivo foi buscar apenas em bases internacionais. Desta forma, demonstra-se a importância de se pesquisar mais amplamente este tema dentro do contexto social e de dinâmica da saúde pública em âmbito brasileiro e latinoamericano em futuras investigações teóricas e empíricas. Que objetivos foram estabelecidos nos estudos analisados? A utilização da EM para casos que envolvam abusos de substâncias e comportamentos adictos é reconhecida mundialmente como uma abordagem eficaz no auxílio na resolução destes conflitos (Miller & Brown, 1991). Esta questão pôde ser ilustrada através deste trabalho, visto que 54% (n=40) dos estudos buscados inicialmente tratavam justamente da utilização da EM para estes casos, comprovando, de certa forma, a grande produção em termos de publicação que existe com esta demanda. Através da análise dos trabalhos incluídos, percebese que em sua maioria (n=7), o principal objetivo foi testar a eficácia/efeito terapêutico do uso da EM como alternativa nos cuidados à saúde, principalmente para casos relacionados à Discussão AVC e HIV. Destaca-se também a objetivação de estudos que se preocuparam em relatar experiências e procedimentos, utilizando A presente revisão sistemática trouxe indícios para a EM como ferramenta secundária a outras intervenções. reflexões acerca da aplicabilidade da EM nas práticas de saúde, principalmente no contexto da saúde hospitalar e a ambientes a Dos estudos que se propuseram a analisar sua eficácia/efeito terapêutico, ela relacionados. Em geral, os estudos encontrados objetivaram quais os resultados obtidos? Avaliar a eficácia desta ferramenta dentro de outros verificar a eficácia de técnicas de EM, em amostras clínicas variadas, priorizado follow-ups, grupos controle e randomização contextos que não o da dependência química se tornou possível na escolha dos participantes. Em suma, a maioria das pesquisas na medida em que foram encontrados e avaliados os resultados referiu melhora terapêutica dentro dos seus respectivos objetivos obtidos através dos estudos empíricos realizados. Sendo assim, planejados, avaliando, portanto, como positiva o uso da EM. observa-se que 75% dos estudos analisados relataram algum 32 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 benefício obtido através da utilização da EM, tendo em vista seus objetivos primários. Ressalta-se que o número de sessões e o tempo das mesmas não se concretizam como fatores fundamentais para a obtenção de sucesso na utilização da EM. Quanto à correta aplicação da EM, verifica-se que o manejo, a relação terapêutica estabelecida e o profissional que utiliza esta ferramenta podem se constituir em variáveis associadas ao sucesso ou insucesso desta prática. Neste mesmo sentido, Melo, Oliveira, Araújo e Pedroso (2008) relatam que os resultados em relação ao desempenho da EM pode ter influência de muitas variáveis envolvidas, como o nível de treinamento das equipes e a garantia de homogeneização no uso das técnicas. Desta forma, treinamentos protocolados e específicos em EM pode ser uma alternativa para que exista melhora no seu desempenho em outros contextos, fazendo com que um número maior de profissionais possa utilizar esta abordagem. Comprovadamente eficaz nos casos de abuso de substâncias e dependências químicas, a EM atualmente ganha novo espaço, fazendo com que as pesquisas agora visem a sua utilização em outros cuidados em saúde, trazendo consigo resultados positivos nesta prática. Observa-se que em casos de doenças crônicas, como o HIV, a insuficiência cardíaca, AVC e a epilepsia os resultados se mostraram bastante contundentes, trazendo benefícios a estes pacientes. Algumas pesquisas neste sentido já haviam sido efetuadas no Brasil, principalmente como auxílio na adesão ao tratamento anti-retroviral (Leite, Drachler, Centeno, Pinheiro, & Silveira, 2002), porém, sem citar a EM como possível ferramenta de auxílio nestes casos. e possível aplicabilidade no contexto hospitalar. O baixo custo do uso da EM também deve ser considerado, principalmente quando nos remetemos ao Sistema Único de Saúde (SUS), onde os recursos em sua maioria são escassos e a demanda é extrema. Sendo assim, sua utilização como ferramenta para o psicólogo que pretende trabalhar dentro do âmbito hospitalar necessita ser avaliada, justamente por configurar uma alternativa rápida e eficiente para trabalhar as demandas existentes neste ambiente, visto que, ainda no Brasil a entrada do psicólogo neste local faz com que ele tenha que adaptar sua técnica e as suas teorias para dar conta dos desafios que se sucedem a partir desta sua inserção (Romano, 1999). Embora esta revisão possa ter trazido contribuições importantes para se refletir sobre a aplicabilidade da EM no contexto da saúde, há algumas limitações a serem apontadas. Primeiramente, destacam-se aspectos dos próprios resumos/ estudos encontrados, com características de construção inadequada, incompleta ou confusa, fazendo com que se tornassem dúbios os seus entendimentos. Além disso, salientase a falta de trabalhos escritos na língua portuguesa que falassem do uso da EM para além dos casos de dependência química e pouca descrição das técnicas utilizadas em si. Em um segundo momento, esta revisão sistemática deve ser replicada em outros contextos primários e secundários de atenção à saúde, para abarcar outros estudos além do âmbito hospitalar, não se limitando apenas a este contexto. Que evidências podem ser obtidas para avaliar a sua aplicabilidade dentro do contexto brasileiro de saúde? Avaliar a aplicabilidade da EM dentro de outros contextos e traçar um panorama geral do seu uso mundialmente foram os principais objetivos deste trabalho. Sendo assim, observouse que nas bases pesquisadas nenhum estudo brasileiro e latinoamericano foi encontrado, fazendo com que sejam pensadas novas pesquisas com esta temática para que resultem em benefícios para a população usuária do sistema de saúde brasileiro. A eficácia da EM pôde ser observada, fazendo com que ela se propague para além dos casos de dependência química, podendo ser difundida em outros contextos, mantendo seus princípios e sua efetividade. Desta forma, reaplicá-la e adaptá-la à realidade brasileira, levando em conta a população (em geral mais carente, de baixo nível sócio-econômico) que se beneficia dos recursos do SUS, se faz de suma importância por se tratar de um conjunto de técnicas breves, diretiva se com baixo custo que poderão vir a suprir boa demanda nos nossos serviços de saúde. O primeiro fator que podemos avaliar para pensarmos em sua aplicabilidade dentro do nosso contexto de saúde é justamente a sua eficácia/efeito terapêutico comprovada nos estudos analisados nesta revisão. Corroborando esta ideia, os autores Jungerman e Laranjeira (1999) já explicitavam a sua preocupação em estudar e aplicar a EM no Brasil em diferentes contextos, já que apesar de sua comprovada eficácia ela ainda é pouco difundida nas universidades e nos programas de assistência a saúde. Bundy (2004) cita o baixo custo destas técnicas e a sua curta duração, tornando-a perfeitamente compatível com o ambiente hospitalar, que exige rapidez, eficiência e resposta rápida e que, se caracteriza como sendo um dos principais focos de aplicação da EM. Como observado nos achados, a amplitude de sessões das aplicações de EM são de 2 a 16 sessões, comprovando a sua curta duração para a obtenção de resultados efetivos e corroborando com sua compatibilidade Conclusão 33 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 26-34 história da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal. Assim, sugere-se que sejam realizados mais estudos empíricos Suarez, M. (2011). Application of motivational interviewing to para que se possa avaliar de forma concreta a aplicabilidade neuropsychology practice: a new frontier for evaluations and da EM dentro do contexto hospitalar e dos sistemas de saúde rehabilitation. Em M. Schoenberg & J. G. Scott (Eds.), The little black brasileiro. st book of neuropsychology: a syndrome-based approach. (1 ed.)(pp. 863-873). Springer Science Business Media. Referências Andretta, I., & Oliveira, M. (2005). A técnica da entrevista motivacional na adolescência. 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Com passar do tempo, em decorrência de movimentos como o da psicologia positiva, surgiram conceitos como o engagement no trabalho. Concomitantemente, muitos pesquisadores deixaram de focar suas atenções exclusivamente na relação causa-efeito e passaram a se dedicar também às variáveis mediadoras, também conhecidas como terceiras variáveis. Neste trabalho visou-se analisar as Condições Organizacionais como terceiras variáveis frente à relação burnout e engagement no trabalho (work engagement). A amostra foi de N=701 profissionais de diferentes categorias ocupacionais. O método de analise foi através do macro INDIRECT de Preacher e Hayes (2008). Consideraram-se dois grupos de analises: o primeiro considerando as dimensões do coração do burnout como varáveis independentes, as condições organizacionais como variáveis mediadoras e as dimensões do coração do engagement no trabalho como variáveis dependentes. Para o segundo enfoque, foram consideradas as dimensões do coração do engagement enquanto variáveis independentes, as condições organizacionais como mediadoras e o coração do burnout como dependentes. Em relação aos resultados, as “Condições Organizacionais” exerceram efeito indireto significativo (p>0,01) em cinco das seis verificações, ou seja, são partes relevantes na dinâmica de processos positivos e negativos da saúde no trabalho. Palavras Chave: Engagement no Trabalho; Burnout; Mediação. Abstract: Originally the suffering of the workers have been studied following the traditional medical model. With passage of time, due to movements like the positive psychology, concepts emerged such as the “work engagement”. Concurrently, many researchers stopped to focus most on the cause-effect relationship and started to dedicate also on the mediation processes (mediator variables), also known as third variables. This study aimed to analyze the Organizational Conditions as third variables in the relationship of burnout and work engagement. The sample was N= 701 professionals from different occupational categories. The method of analysis was through the INDIRECT macro of Preacher and Hayes (2008). We considered two bias analyzes: first considering the core dimensions of burnout as independent variables, the organizational conditions as mediators variables and the core dimensions of work engagement as dependent variables. For the second approach we considered the core dimensions of work engagement as independent variables, organizational conditions as mediators and the core dimensions of burnout as dependent variables. Regarding the results, the “Organizational Conditions” exerted significant indirect effect (p>0,01) as mediating variables of analysis, so we conclude that are the relevant parts of the dynamic processes of positive and negative health at work. Key-Words: Work Engagement; Burnout; Mediation. a Psicólogo, Especialista. Doutorando Universidad Autónoma de Madrid / Docente Instituto Federal do Paraná. *Email:[email protected] b Psicólogo, Especialista, Doutorando Universidad Autónoma de Madrid Docente PUCPR e UP. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 35 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 A atividade profissional é uma constante na história da humanidade. Contudo, a saúde laboral só começou a ser estudada com maior rigor apenas a partir do século XIX, principalmente após a revolução industrial inglesa (Dejours, 1992). No âmbito acadêmico as pesquisas científicas sobre aspectos positivos são minoria quando comparados aos aspectos negativos da saúde (Bakker, Demerouti, Taris, Schaufeli & Scheurs, 2008; Salanova & Schaufeli, 2009). Fato que se acentua quando analisamos a realidade das publicações referente à saúde psicológica laboral, onde o modelo médico tradicional ainda impera. Dentro deste contexto, ressalta-se a importância de se estudar os aspectos positivos da saúde no trabalho, uma vez que esta gera incremento na qualidade de vida dos profissionais assim como competitividade organizacional. A dinâmica dos fatores positivos e negativos tem consequências “contagiosas” para a organização, seja de processos negativos ou positivos (Bakker et al., 2008; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Fatores estes concomitantes e negativamente correlacionados (GilMonte, 2005; Gil-Monte, 2007; Salanova & Schaufeli, 2009). Entre os diversos constructos decorrentes do movimento da Psicologia Positiva, o qual prioriza processos positivos (e não os negativos) da saúde, destacamos o engagement no trabalho, do termo original“work engagement”, o qual será traduzido somente o termo “work” conforme orientações de Salanova e Schaufeli (2009). Este constructo resulta como consequência de estudos sobre aspectos ocupacionais negativos, mais especificamente da síndrome de burnout (Carvalho, Calvo, Martín, Campos & Castillo, 2006; Durán, Extremera, Montalban & Rey, 2005; González-Romá, Schaufeli, Bakker & Lloret, 2006; Maslach et al., 2001). Síndrome esta que é relacionada exclusivamente com as condições de trabalho, sendo uma resposta a um estado prolongado e crônico de estresse laboral, e caracterizada por: Esgotamento (Exaustão Emocional), Cinismo (Distanciamento Emocional - Despersonalização) e Reduzida Realização Pessoal no Trabalho (Benevides-Pereira, 2002; Gil-Monte, 2005; GilMonte, 2007; González-Romá et al., 2006; Leiter & Maslach, 1988; Maslach et al., 2001; Maslach & Leiter, 2008; MorenoJiménez, 2007). Em relação ao engagement no trabalho, é possível definilo como um constructo motivacional positivo, caracterizado por vigor, dedicação e absorção, sempre relacionado com o trabalho, o qual implica sentimento de realização, envolve estado cognitivo positivo, sendo persistente no tempo e possuindo natureza motivacional e social (Bakker, Demerouti, Hakanen & Xanthopoulu, 2007; Bakker et al., 2008; Llorens, Schaufeli, Bakker & Salanova, 2007; Salanova & Schaufeli, 2009; Schaufeli & Bakker, 2004). Os dois constructos, síndrome de burnout e engagement no trabalho são associados com o mundo laboral e de forma geral, se correlacionam negativamente (Bakker et al., 2008; Machado, Porto-Martins & Amorim, 2012; Salanova & Schaufeli, 2009). Ainda, dentro desta tendência, destacam-se diversos estudos como por exemplo os de Bakker et al. (2007); Bakker et al. (2008); Bakker e Leiter (2010); Carvalho et al. (2006); GonzálezRomá et al., 2006; Llorens et al. (2007); Maslach e Leiter (2008); Salanova e Schaufeli (2009); Schaufeli e Bakker (2003, 2004). A relação histórica entre a síndrome de burnout e engagement no trabalho pode ser visualizada com maior riqueza no modelo representado na figura 1. Figura 1 – Esquema teórico sobre burnout e engagement no trabalho. Fonte: Porto-Martins, 2011 em Machado, Porto-Martins e Amorim (2012). De acordo com o modelo apresentado na figura 1, os estudos sobre o burnout apresentam uma tendência de considerar a Exaustão e a Desumanização como elementos nucleares da síndrome, positivamente relacionados e consistentes entre si (Maslach & Leiter, 2008; Moreno-Jiménez, Zuñiga, SanzVergel, Muñoz & Pérez, 2010) sendo chamados de o “coração do burnout” (Demerouti, Bakker, Nachreiner & Schaufeli, 2001; González-Romá et al., 2006). Já a realização profissional denota uma atuação diferente, mais independente das outras dimensões (Carvalho et al., 2006; González-Romá et al., 2006; Moreno-Jiménez, 2007). Analogamente ao “coração do burnout”, encontram-se estudos apontando que as dimensões Vigor e Dedicação são consideradas como o núcleo (coração) do engagement no trabalho (Bakker et al., 2008; Bakker & Leiter, 2010; GonzálezRomá et al., 2006; Moreno-Jiménez et al., 2010). Já a dimensão 36 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 Absorção, assim como a Realização Profissional no burnout, não faz parte deste núcleo (González-Romá et al., 2006; Prieto, Salanova, Martínez & Schaufeli, 2008). Há autores que estudaram a Exaustão e o Vigor como dois polos de um mesmo continuum e de uma mesma dimensão chamada “energia”, assim como o Cinismo (Distanciamento Emocional / Desumanização) associado à Dedicação seriam os polos de uma dimensão chamada “identificação” (Bakker et al., 2008; Bakker & Leiter, 2010; González-Romá et al., 2006). Por fim, destaca-se que, relacionando trabalho, saúde e psicologia ocupacional, há basicamente dois processos, um de deterioro da saúde, relacionado com demandas laborais (Condições Organizacionais Negativas) e outro positivo, relacionado com os recursos laborais (Condições Organizacionais Positivas), independentemente de qual organização e/ou da ocupação exercida (Demerouti et al., 2001; Moreno-Jiménez et al., 2010; Salanova & Schaufeli, 2009). Método propriedades psicométricas adequadas como por exemplo alfa de Cronbach superior a 0,70. ISB - Inventário de Síndrome de Burnout, instrumento que foi construído especificamente para a população brasileira para a verificação da síndrome de burnout, instrumento este que apresenta qualidades psicométricas adequadas em especial alfa de Cronbach superior a 0,70 (Benevides-Pereira, 2010; Machado & Benevides-Pereira, 2010; Porto-Martins & Benevides-Pereira, 2009) assim como apresentou correlação de Pearson significativa (a nível p>0,01) com as dimensões do MBI, instrumento considerado padrão mundial para avaliação da síndrome de burnout (Bresó; Salanova & Schaufeli, 2007; Gil-Monte, 2005; Moreno-Jiménez, 2007; Schaufeli & Enzmann, 1998). O ISB é formado por duas partes, a primeira é dedicada exclusivamente as“Condições Organizacionais-CO”(Positivas –“COP”e Negativas “CON”) e a segunda parte contendo as dimensões diretamente ligadas ao burnout (Exaustão Emocional, Distanciamento Emocional, Desumanização e Realização Profissional). Ao todo este instrumento é formado por 35 itens. Esta pesquisa teve um método empírico, transversal, Procedimentos A aplicação do inventário foi realizada por protocolo exploratório, descritivo e ex post facto. eletrônico, gerado no próprio sistema de intranet da organização, Amostra que foi elaborado pelos responsáveis pelo departamento de TI A população deste estudo foi de N=2.050, procedentes de com supervisão dos pesquisadores responsáveis. Destaca-se o distintas categorias profissionais de diversas cidades do estado cuidado ético de condicionar que os profissionais de TI não teriam do Paraná, este contingente foi convidado a participar de maneira acesso a tabulação dos resultados, somente encaminhariam voluntária. Desta população obteve-se taxa de retorno de estes aos pesquisadores responsáveis. 34,20% (N=701), maiores detalhes referente às características Este projeto foi submetido ao comitê de ética e pesquisa dos participantes são apresentados nos Resultados. de uma instituição de nível superior e aprovado por ele, sendo que todos os participantes assinaram o “termo livre e Instrumentos esclarecido”, bem como, foram realizadas as devidas devolutivas UWES – Utrecht Work Engagement Scale (de Wilmar para as partes envolvidas. Em suma, a pesquisa respeitou os Schaufeli & Arnold Bakker, 2003) – é um instrumento específico 35 princípios éticos contidos na Declaração de Helsinki (1964, para a avaliação do engagement no trabalho. Este questionário reformulada em 1975, 1983, 1989, 1996, 2000 e 2008), da é constituído de 17 itens, com escala tipo Likert de sete pontos World Medical Association (Associação Médica Mundial) assim (desde “muito baixo” até “muito alto”), composto por três como as Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de dimensões: VI - Vigor (contando com seis itens, como por Saúde – Ministério da Saúde. exemplo “Em meu trabalho, sinto-me repleto – cheio – de As análises presentes neste artigo foram os cálculos das energia”), DE - Dedicação (com cinco itens, como “Eu acho que Médias, Desvio Padrão, Correlações de Pearson, Alpha de o trabalho que realizo é cheio de significado e propósito”) e AB Crombach e principalmente a ferramenta “INDIRECT”, a qual se - Absorção (com seis itens, como “O tempo voa quando estou concentra na verificação de terceiras variáveis. Para Hayes (2013) trabalhando”). Ainda o instrumento conta com uma escala Global e Preacher e Hayes (2008) uma variável mediadora (terceira (WE) formada pelos 17 itens do instrumento. As propriedades variável) influencia na direção e/ou força da relação entre psicométricas da versão traduzida para o português do Brasil, variável independente e a dependente (VI →VD). (que contou com retrotradução para o inglês) segundo pesquisa O macro INDIRECT de Preacher e Hayes (2008) possibilita dos autores (Machado & Benevides-Pereira (2010) apresentou 37 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 a verificação de múltiplas mediações. Este método estima os coeficientes path em um modelo de múltiplas mediações gerando bootstrap em intervalos de confiança. Como configuração foi adotado o valor de bootstrap sample igual a 20.000 seguindo as orientações de Preacher e Hayes (2008) que afirmam que o único inconveniente de adotar valores superiores a 1.000 é a demora dos computadores em realizar os devidos cálculos. Este macro é instalado no programa SPSS em sua versão 21 para plataforma Windows 8. Os modelos elaborados foram constituídos em convergência com o paradigma de indicadores positivos e negativos de saúde/ enfermidade laboral (burnout versus engagement no trabalho) em uma amostra multi ocupacional. Assim como apresentado no marco teórico os aspectos positivos e negativos existem mutuamente e são negativamente associados. Neste estudo se consideraram como indicadores de saúde laboral as Condições Organizacionais Positivas (ISB) assim como as dimensões Vigor e Dedicação (UWES). Como indicadores negativos, de deterioro da saúde, se consideraram as Condições Organizacionais Negativas, Exaustão Emocional, Distanciamento Emocional e Desumanização (ISB). De forma geral, as condições organizacionais são importantes aspectos no desenvolvimento ou não de indicadores de saúde laboral (Dejours, 1992; Salanova e Schaufeli 2009), seja positivamente ou negativamente (ex.: os recursos e as demanda laboral, Demerouti et al., 2001). Ainda, cabe ressaltar que os indicadores de burnout e engagement no trabalho podem ser tanto causas como consequências de determinados processos dinâmicos em relação ao trabalho, pela própria saúde no trabalho ser um processo multideterminado e não um estado. Assim sendo, se consideraram dois Grupos de análises: Primeiro Grupo: considerando as dimenções do coração do burnout como variáveis independentes, as condições organizacionais como variáveis mediadoras e as dimensões do coração do engagement no trabalho como variáveis dependentes, como segue: EE/ISB → VI/UWES (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras) DEm/ISB → DE/UWES (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras) DEs/ISB→DE/UWES (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras) como segue: VI/UWES → EE/ISB (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras) DE/UWES → DEm/ISB (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras) DE/UWES → DEs/ISB (COP/ISB e CON/ISB como mediadoras) Ressalta-se que todas as relações entre VI → VD apresentaram correlações de Pearson significativas (a nível p<0,01), com as polaridades em sintonia com o pressuposto teórico, dados que foram confirmados através da prova de Coeficiente Intraclasse. A dicotomização entre a relação das dimensões do coração do burnout e do engagement no trabalho foi inspirada com base em estudos, como citado no marco teórico, onde Vigor e Exaustão Emocional foram considerados como parte dos polos de um mesmo continuum assim como Dedicação e Cinismo (Distanciamento Emocional / Desumanização) (Bakker et al., 2008; Bakker e Leiter, 2010; González-Roma et al., 2006). Resultados e Discussão Sociodemográficos Referente a variável gênero, 36,81% (N=258) da amostra foi constituída por homens e 63,19% (N=443) de mulheres. A idade média foi de 35,09 anos, com 44,65% (N=313) entre 18 e 25 anos. Mais da metade dos participantes, 52,06% (N=365) tinham pelo menos um filho. Com relação ao nível de instrução acadêmica, 56,92% (N=399) apresentaram nível de pós graduação completo e 24,25% (N=170) com nível superior completo. No que tange as regiões geográficas onde os trabalhadores exerciam suas atividades, 58,06% (N=407) trabalhavam em Curitiba ou região metropolitana e 41,94% (N=294) nas demais regiões do estado do Paraná. Dados Psicométricos Em conformidade com os dados apresentados na descrição, ambos os instrumentos obtiveram índices de alpha de cronbach assim como o índice Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) superiores a 0,70, considerados adequados (Hair, Babin, Money e Samouel, 2005), conforme detalhado na tabela 1: Segundo Grupo: consideraram-se as dimensões do coração do engagement no trabalho como variáveis independentes, as condições organizacionais como variáveis mediadoras e as dimensões do coração do burnout como variáveis dependentes, 38 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 Dimensão Média Média P. DP Min Max α KMO Tabela 1 - Médias, Médias Ponderadas, Desvio Padrão, Mínimo, Máximo, Alphas de Cronbach e KMO do ISB e do UWES. COP CON EE AEm DEs 23,39 12,46 6,88 6,56 4,20 2,92 1,56 1,38 1,31 1,05 5,89 6,03 4,49 4,21 3,55 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 32,00 32,00 20,00 20,00 16,00 0,88 0,81 0,86 0,83 0,77 0,898 0,862 0,833 0,810 0,785 RP 14,84 2,96 4,71 VI DE AB WE 27,30 22,73 26,26 76,29 5,46 4,55 4,38 4,49 6,79 6,85 6,82 19,31 0,00 20,00 2,00 36,00 0,00 30,00 1,00 36,00 9,00 102,00 0,91 0,89 0,93 0,83 0,95 0,833 0,870 0,892 0,851 0,961 Nota: Média P.= Média Ponderada; DP= Desvio Padrão; COP= Condições Organizacionais Positivas; CON= Condições Organizacionais Negativas; EE= Exaustão Emocional; DEm=Distanciamento Emocional; DEs= Desumanização; RP= Realização Professional; VI= Vigor; DE= Dedicação; AB= Absorção; WE=Escala Global UWES; KMO= Kaiser Meyer Olkin. De acordo com a tabela 1, a média ponderada das condições organizacionais positivas (M=2,92) foi superior à média das condições organizacionais negativas (M=1,56) para a presente amostra. Referente as dimensões do coração do burnout, a exaustão emocional apresentou maior média ponderada (M= 4,49), assim como as dimensões do engagement no trabalho a dimensão vigor apresentou a maior média (M=5,46). Ainda os instrumentos apresentaram Qui-quadrado estatisticamente significativo ISB (1798,778) UWES (931,688) assim como outros indicadores de bondade de ajuste dão suporte a este resultado: a razão ci2/gl foi de 3,275 (ISB) e 8,548 (UWES), com um AGFI para o ISB de 0,841 e para UWES de 0,789, e o RMSEA, 0,057 (ISB) e 0,104 (UWES). O NNFI foi de 0,892 para o ISB e 0,896 para o UWES assim como o CFI adequado para ISB (0,900) assim como para o UWES (0,917). Referente as correlações de Pearson, estas obtiveram resultados concordantes com o pressuposto teórico. Todas as correlações de Pearson internas, tanto do ISB como do UWES, foram significativas a nível p<0,01 conforme segue nas tabelas 2 e 3: Tabela 2 – Correlações internas do UWES. Dimensão VI VI Correlação 1 p DE Correlação 0,871** p ,000 AB Correlação 0,819** p 0,000 WE Correlação 0,949** p 0,000 DE AB WE 1 0,821** 0,000 0,951** 0,000 1 0,932** 0,000 Nota: VI= Vigor; DE= Dedicação; AB= Absorção; WE= Escala Global UWES. ** A correlação foi significativa a nível 0,01 (bi-caudal). 1 Observa-se na tabela 03 que todas as correlações foram positivas e significativas, as mais elevadas foram entre as dimensões específicas e a Escala Global (WE-VI, r= 0,949 > RPWE, r= 0,951 > RP-VI, r= 0,932), mesmo porque as dimensões específicas são parte integrante da própria escala global. No que se refere as outras correlações, o valor mais elevado se deu entre VI-DE (r= 0,871), contudo todos os valores foram expressivos (r>0,819). Os resultados das correlações internas do ISB estão discriminados na tabela 3. Tabela 3 – Correlações internas do ISB. Dimensão COP CON AE COP Correlação 1 p CON Correlação -0,632** 1 p 0,000 EE Correlação -0,360** 0,367** 1 p 0,000 0,000 AEm Correlação -0,446** 0,525** 0,468** p 0,000 0,000 0,000 DEs Correlação -0,444** 0,522** 0,491** p 0,000 0,000 0,000 RP Correlação 0,493** -0,243** -0,370** p 0,000 0,000 0,000 AEm DEs RP 1 0,660** 1 0,000 -0,246** -0,261** 1 0,000 0,000 Nota: COP= Condicições Organizacionais Positivas; CON= Condicições Organizacionais Negativas; EE= Exaustão Emocional; AEm= Distanciamento Emocional; DEs= Desumanização; RP= Realização Profissional ** A correlação foi significativa a nível 0,01 (bi-caudal). De acordo com a tabela 3, a mais alta correlação entre as dimensões do ISB foi entre AEm-DEs (r= 0,660), que por sua vez também tiveram valores significativos de correlação com a dimensão EE (r= 0,468 y r= 0,491 respectivamente), dando suporte a concepção do “coração do burnout” para o ISB. Ainda, as condições organizacionais positivas e negativas (COP-CON: r= 0,632) também se correlacionaram com um valor sensivelmente superior aos demais (r≤ 0,525). Quando verificadas as correlações entre as dimensões do ISB com as dimensões do UWES, os resultados mantiveram-se de acordo com as premissas de cada instrumento e escala, conforme a tabela 4. As correlações da tabela 4 foram todas significativas (p<0,01) apresentando sintonia com o marco teórico. As mais altas correlações entre os instrumentos ISBßàUWES foram entre a dimensão positiva do ISB (RP) e as dimensões do UWES (RPDE, r=0,817 > RP-WE, r=0,780 > RP-VI, r=0,706 > RP-AB, r=0,686). Assim sendo a realização profissional mostrou-se altamente correlacionada com os indicadores e o constructo “engagement no trabalho”. Ainda, as dimensões do coração do burnout “EE, AE e DEs” apresentaram correlações negativas e 39 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 Tabela 4 – Correlação entre ISB e UWES. COP CON COP Correlação 1 p CON Correlação -0,632** 1 p 0,000 EE Correlação -0,360** 0,367** p 0,000 0,000 ** Aem Correlação -0,446 0,525** p 0,000 0,000 ** Des Correlação -0,444 0,522** p 0,000 0,000 ** RP Correlação 0,493 -0,243** p 0,000 0,000 VI Correlação 0,588** -0,266** p 0,000 0,000 ** DE Correlação 0,565 -0,270** p 0,000 0,000 ** AB Correlação 0,482 -0,175** p 0,000 0,000 ** WE Correlação 0,577 -0,251** p ,000 0,000 AE AEm DEs RP VI DE AB WE 1 0,468** 0,000 0,491** 0,000 -0,370** 0,000 -0,518** 0,000 -0,455** 0,000 -0,321** 0,000 -0,457** 0,000 1 ,0660** 0,000 -0,246** 0,000 -0,361** 0,000 -0,328** 0,000 -0,242** 0,000 -0,329** 0,000 1 -0,261** 0,000 -0,346** 0,000 -0,319** 0,000 -0,214** 0,000 -0,310** 0,000 1 0,706** 0,000 0,817** 0,000 0,686** 0,000 0,780** 0,000 1 0,871** 0,000 0,819** 0,000 0,949** 0,000 1 0,821** 0,000 0,951** 0,000 1 0,932** 0,000 1 Nota: COP= Condições Organizacionais Positivas; CON= Condições Organizacionais Negativas; EE= Exaustão Emocional; DEm=Distanciamento Emocional; DEs= Desumanização; RP= Realização Professional; VI= Vigor; DE= Dedicação; AB= Absorção; WE=Escala Global UWES. ** A correlação foisignificativa a nível de 0,01 (bi-caudal). significativas frente as dimensões do engagement no trabalho: Tabela 5 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadoras entre VI-EE (r=-0,518) assim como DE-AEm (r=-0,328) e DE-DEs Exaustão – Vigor. Coeff. se T p (r=-0,319). Efeito Total de VI em DI (c path) -0,7823 0,0489 -16,0056 0,0000 Observa-se também que a dimensão COP se correlacionou Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,5965 0,0444 -13,4295 0,0000 significativa e positivamente com o coração do engagement Coeficientes (COP-VI: r= 0,588 / COP-DE: r= 0,565 / COP-AB: r= 0,482 / Est. se Z p COP-WE: r= 0,577), o que possibilita a compreensão de que Total -0,1859 0,0325 -5,7169 0,0000 -0,3345 0,0380 -8,8108 0,0000 as condições organizacionais positivas estão associadas com COP COM 0,1486 0,0242 6,1391 0,0000 a promoção do engagement no trabalho. Coerentemente, as Condições Organizacionais Negativas se correlacionaram Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado. negativamente, mesmo que com menor expressão, com as mesmas dimensões (CON-VI, r= -0,266 / CON-DE, r= -0,270 / De acordo com os resultados da tabela 6, o efeito Total entre CON-AB: r= -0,175 / CON-WE: r= -0,251). VI e VD foi de -0,7823 (se=0,0489; t= -16,0056; p= 0,0000) e o efeito Direto de -0,5965 (se= 0,0444; t= -13,4295; p= Primeiro Grupo 0,0000), ambos significativos. Assim sendo, se evidencia um Neste modelo, se considerou a categoria “Exaustão” como efeito Indireto total significativo (p<0,01) de -0,1859 entre as CO variável independente, a dimensão “Vigor” como variável e a relação EE → VI. Estes resultados estão em sintonia com os dependente e as Condições Organizacionais como terceiras pressupostos teóricos. variáveis na relação VI → VD. Os resultados se encontram na Referente às“Condições Organizacionais”, tanto CON (0,1486 tabela 5. / p= 0,0000) como principalmente COP (-0,3345 / p= 0,0000), por um valor expressivamente mais elevado, presentaram efeito 40 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 Indireto significativo. Ainda, nesta perspectiva a polaridade corrobora com as premissas de cada escala. Assim sendo, a dimensão COP obteve efeito Indireto negativo e significativo no processo de atenuação do desgaste de VI por meio da presença de EE. Coerentemente as CON presentaram efeito Indireto positivo e significativo no processo de intensificação da Exaustão e diminuição do Vigor. Por último, de acordo com os resultados, a Exaustão está relacionada negativa e significativamente com Vigor, efeito que é atenuado significativamente pelas Condiciones Organizacionais (-0,1859 / p= 0,0000). Isso se deve especialmente pelo efeito protetor das COP ter sido mais protetor que o efeito degradativo de CON desde a Exaustão →Vigor nesta amostra, gerando assim um efeito total significativo das Condições Organizacionais. No segundo Modelo do Primeiro Grupo, se considerou a categoria “Distanciamento Emocional” como variável independente, a dimensão “Dedicação” como variável dependente e as Condições Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI → VD. Os resultados se encontram na tabela 6. Tabela 6 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadoras entre Distanciamento Emocional X Dedicação. Coeff. se T p Efeito Total de IV em DI (c path) -0,5334 0,0581 -9,1835 0,0000 Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,2582 0,0592 -4,3575 0,0000 Coeficientes Est. se Z P Total -0,2573 0,0442 -6,2312 0,0000 COP -0,4536 0,0450 -10,0824 0,0000 CON 0,1783 0,0375 4,7557 0,0000 Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado. Referente aos resultados da tabela 6, o efeito Total entre a variável VI →VD foi de -0,5334 (se= 0,0581; t= -9,1835; p= 0,0000) e o efeito Direto de -0,2582 (se= 0,0592; t= -4,3575; p= 0,0000), os dois efeitos significativos. Ainda, o efeito Indireto total foi de -0,2573 e também significativo (p< 0,01) na relação entre “CO” e DEm (VI) →DE(VD). Dados que estão convergentes com os pressupostos teóricos. De acordo com os resultados, a polaridade foi convergente com as premissas. Ainda, as COP obtiveram efeito Indireto negativo e significativo (-0,3345 / p= 0,0000), inclusive por um valor expressivamente mais elevado que o efeito das CON (0,1486 / p= 0,0000) que também foi significativo. Assim sendo, o Distanciamento Emocional está relacionado negativa e significativamente com a Dedicação (o DEm enquanto VI tende a diminuir a DE enquanto VD) efeito que é atenuado significativamente pelas Condições Organizacionais (-0,2573 / p= 0,0000). Ainda, o efeito das CO nesta análise é mais atenuado pelas COP que promovidos pelas CON. Neste terceiro modelo do Primeiro Grupo, se considerou a categoria “Desumanização” como variável independente, a dimensão “Dedicação” como variável dependente e as Condições Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI → VD. Os resultados se encontram na tabela 08. Tabela 7 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadoras entre Desumanização x Dedicação. Coeff. se t p Efeito Total de IV em DI (c path) -0,6162 0,0692 -8,9004 0,0000 Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,2816 0,0704 -4,0000 0,0001 Coeficientes Est. Se Z p Total -0,3346 0,0525 -6,3727 0,0000 COP -0,5394 0,0536 -10,0693 0,0000 COM 0,2048 0,0442 4,6281 0,0000 Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado. Para os resultados da tabela 7, o efeito Total entre VI e VD foi de -0,6162 (se= 0,0692; t= -8,9004; p= 0,0000) e o efeito Direto de -0,2816 (se= 0,0704; t= 4,0000; p= 0,0001), os dois significativos. O efeito Indireto total das“CO”na relação DEs →DE foi de -0,3346 também significativo (p<0,01). Resultados que convergem com os pressupostos teóricos. De acordo com os resultados, as COP obtiveram efeito direito negativo e significativo (-0,5394 / p= 0,0000) sendo um efeito mais expressivo que o efeito também significativo de CON (0,2048 / p= 0,0000). Ainda, a polaridade foi convergente com as premissas. A Desumanização está relacionada negativa e significativamente com a Dedicação, efeito que é atenuado (assim como no viés 1 – análises 1 e 2) significativamente pelas Condições Organizacionais (-0,3346 / p= 0,0000). É possível interpretar que isto ocorre pelo fato de que os resultados de COP presentaram efeito protetor mais intenso que o efeito degradativo das CON nestes modelos. Segundo Grupo Na primeira análise do segundo grupo, o Vigor foi considerado como variável independente, a dimensão Exaustão como variável dependente e as Condições Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI →VD. Os resultados se encontram na tabela 09. 41 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 Tabela 8 – Resultados do Test Indirect de COP e CON como mediadora entre Vigor X Exaustão. Coeff. se T p Efeito Total de IV em DI (c path) -0,3428 0,0214 -16,0056 0,0000 Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,3446 0,0257 -13,4295 0,0000 Coeficientes Est. se Z P Total 0,0018 0,0167 ,1087 0,9135 COP 0,0588 0,0190 3,0961 0,0020 CON -0,0569 0,0106 -5,3933 0,0000 Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado. No modelo, o efeito Total entre a variável VI e VD foi de -0,3428 (se= 0,0214; t= -16,0056; p= 0,0000) e o efeito Direto de -0,3446 (se= 0,0257; t= -13,4295; p= 0,0000) os dois significativos. Todavia, o efeito Indireto total das “CO” não foi significativo (0,0018 / p= 0,9135). Denotando que as CO não exercem efeito Indireto na relação de VI →EE. Mesmo porque se observa nos dados que os valores de COP (0,0588 / p= 0,0000) e CON (0,0569 / p= 0,0000) são ambos significativos e semelhantes em suas equações, mas com polaridades inversas. Assim sendo é possível interpretar que as condições organizacionais positivas e negativas se atenuam, gerando um efeito total não significativo. Mesmo porque, realizando um teste separadamente entre VI → (COP) → EE (0,0329 / p= 0,0352), assim como com VI → (CON) →EE (0,0433 / p= 0,0000) também se obtém efeitos Indiretos significativos (p<0,05). Para o segundo modelo da Segunda Parte, se considerou a dimensão Dedicação como variável independente, o Distanciamento Emocional como variável dependente e as Condições Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI →VD. Os resultados se encontram na tabela 10. →DEm. Este efeito foi influenciado mais pelas CON, todavia também as COP que por sua vez também presentaram efeito com polaridade negativa, potencializando o efeito Indireto final das CO. Assim as condições organizacionais não protegem os dedicados de se distanciar emocionalmente, diferentemente do esperado nem as COP (-0,0277 / p= 0,0950) que presentaram polaridade negativa e relação não significativa, tampouco e especialmente as CON (-0,0714 / p= 0,0000) que exacerbam significativamente o efeito Indireto. Para o último modelo verificado, se considerou a categoria Dedicação como variável independente, Desumanização como variável dependente e as Condições Organizacionais como terceiras variáveis na relação VI →VD. Os resultados se encontram na tabela 10. Tabela 10 – Resultados do Teste Indirect de COP e CON como mediadora entre Dedicação x Desumanização. Coeff. se t p Efeito Total de IV em DI (c path) -0,1652 0,0186 -8,9004 0,0000 Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,0797 0,0199 -4,0000 0,0001 Coeficientes Est. se Z p Total -0,0855 -0,0145 -5,8874 0,0000 COP -0,0262 0,0140 -1,8641 0,0623 CON -0,0594 0,0098 -6,0390 0,0000 Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado. Referente aos resultados da tabela 11, o efeito Total entre a variável VI e VD foi de -0,1652 (se= 0,0186; t= -8,9004; p= 0,0000) e o efeito Direto de -0,0797 (se= 0,0199; t= -4,0000; p= 0,0001). Ainda, o efeito Indireto total foi significativo (p<0,01) de -0,2573. Dados que estão convergentes com a Tabela 9 – Resultados do Teste Indirect de COP e CON como mediadora entre teoria. Dedicação X Distanciamento Emocional. Assim como na análise anterior, o efeito Indireto foi Coeff. se t p Efeito Total de IV em DI (c path) -0,2018 0,0220 -9,1835 0,0000 influenciado mais significativamente pelas CON (-0,0594 / p= Efeito Direto de VI em DI (c’path) -0,1027 0,0236 -4,3575 0,0000 0,0000) que pelas COP (-0,0262 / p= 0,0623) que também Coeficientes presentaram polaridade negativa, mas não significativa frente a Est. se Z p este efeito. É possível inferir que as CO exercem efeito Indireto Total -0,0991 0,0172 -5,7606 0,0000 nesta relação para atenuação do processo (VI →VD), ou seja, COP -0,0277 0,0166 -1,6694 0,0950 CON -0,0714 0,0118 -6,0738 0,0000 não protegem os dedicados de se “Desumanizarem” frente às pessoas em situação de trabalho (nem as COP). Nota: Est.= ponto de estimação, SE = erro padronizado. Conclusão Neste modelo, o efeito Total entre a variável VI e VD foi de -0,2018 (se= 0,0220; t= -9,1835; p= 0,0000) e o efeito Direto Nas seis análises realizadas, as polaridades foram de acordo de -0,1027 (se= 0,0236; t= -4,3575; p= 0,0000) ambos significativos. O efeito Indireto por sua vez foi de -0,2573 e com os pressupostos teóricos, com exceção das análises entre CO também significativo (p<0,01) entre as CO e a relação DE (mediadora) e DE (VI) → AEm (VD) assim como CO (mediadora) 42 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 35-44 DE (VI) →DEs (VD) aonde o efeito Indireto total de COP não atenuou as pessoas dedicadas a se afastarem emocionalmente e/ou desumanizarem no trabalho. Em relação aos modelos, as “Condições Organizacionais” exerceram efeito Indireto significativo em cinco dos seis casos referentes às relações entre dimensões nucleares do burnout e do engagement no trabalho (tanto consideradas como variáveis independentes como dependentes). A única exceção foi na relação VI →EE. Mesmo pelo fato de que as COP e CON obtiveram resultados significativos e que se atenuam um ao outro. De acordo com os resultados das análises separadamente, no Grupo 1 - Modelo 1, a Exaustão Emocional está correlacionada negativa e significativamente com o Vigor, efeito que é atenuado significativamente pelas Condições Organizacionais (isto se deve mais pelo efeito protetor das COP que pelo efeito degradativo de CON). No Primeiro Grupo - Modelo 2, o Distanciamento Emocional está correlacionado negativa e significativamente com a Dedicação, efeito atenuado significativamente pelas Condições Organizacionais (mais atenuado pelas COP que promovidos pelas CON). No Segundo Grupo - Modelo 3, assim como no modelo 1 e 2, a Desumanização está correlacionada negativa e significativamente com a Dedicação, efeito que é atenuado significativamente pelas Condições Organizacionais (mais pelo fato dos resultados de COP presentarem efeito protetor intenso que pelo efeito atenuador das CON). Conclui-se que para esta amostra COP protege mais contra as dimensões do burnout (enquanto VI) que as CON degradam. Um estímulo positivo em uma situação aversiva pode apresentar maior magnitude. Para o Grupo 2 - Modelo 1, o Vigor está significativa e negativamente correlacionado com a Exaustão Emocional, efeito que não é atenuado pelas Condições Organizacionais pois as Positivas e Negativas possuem valores significativos e de polaridades opostas, que se atenuam. Para o Grupo 2 – Modelo 2 e Modelo 3 as Condições Organizacionais não protegem os dedicados de se afastar emocionalmente e se “desumanizarem”, diferentemente do esperado, nem as COP ajudaram a atenuar o processo, tampouco e especialmente as CON que são correlacionadas significativamente com DEm e com DEs. Também se infere que para esta amostra, CON degrada mais contra as dimensões do engagement no trabalho (enquanto VI) que as COP protegem. Mesmo porque um estímulo aversivo em uma situação positiva pode apresentar maior magnitude. Em concordância com estudos de distintos autores (Bakker et al., 2007; Demerouti et al., 2001; Prieto et al., 2008; Salanova e Schaufeli, 2009; Schaufeli & Bakker, 2004), é possível interpretar que as Condições Organizacionais assim como os processos de burnout e engagement, se associam e são importantes fatores nos processos de saúde e enfermidade laboral. Por fim, conclui-se que ambos os instrumentos, ISB e UWES, apresentaram resultados psicométricos adequados. Contudo, para poder generalizar esta constatação faz-se necessária a ampliação de estudos envolvendo estas variáveis assim como a publicação de seus resultados em periódicos científicos. Referências Bakker, A., Demerouti, E., Hakanen, J. J., & Xanthopoulu, D. (2007). Job resources boost work engagement, particularly when job demands are high. Journal of Educational Psychology, 99(2), 274-284. Bakker, A. B., Schaufeli, W. B., Leiter, M. P., & Taris, T. W. (2008). Work engagement: an emerging concept in occupational health psychology. Work e Stress, 22(3), 187-200. Bakker, A. B., & Leiter, M. P. (2010). Where to go from here: integration and future research on work engagement. En: A. B. Bakker & M. P. Leiter (Eds.), Work engagement: a handbook of essential theory and research (pp.181-196). New York: Psychology Press. Benevides-Pereira, A. M. T. (2002). 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Os comportamentos retaliatórios menos percebidos são: “fazer o serviço malfeito de propósito”; “alterar a forma de fazer as coisas com o intuito de prejudicar a organização”; e “tumultuar o ambiente de trabalho, propositalmente”. Por outro lado, os comportamentos percebidos com maior frequência pelos participantes da pesquisa estão relacionados à produtividade baixa, intervalos maiores do que o permitido e “corpo mole”. Os resultados sugerem que sejam realizados estudos mais aprofundados que busquem refletir sobre as relações entre percepção e julgamento de comportamentos de retaliação e cultura organizacional, relacionamentos entre chefias e subordinados e variáveis psíquicas individuais. Palavras-chave: Retaliação; Justiça; Administração Pública. Abstract: This article is aimed to investigate the perception of a public institution in relation to the phenomenon of retaliation from the perspective of their workers. In terms of perception of the phenomenon, almost 40% of people who responded to the survey perceived low frequency of retaliatory behavior, and 88% consider it unfair. The retaliatory behaviors that individuals less perceive are: “doing shoddy service on purpose,” “change the way of doing things in order to undermine the organization” and “disrupt the work environment, on purpose”. On the other hand, the behaviors most often perceived by the participants are related to low productivity, longer breaks than allowed and being lazy. The results show that further studies should be done in order to get to know more about relations between perception and judgment of retaliatory behavior and culture of organization, relationships between managers and subordinates and individual psychological variables. Key words: Retaliation, Justice, Public Administration. a Doutoranda em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). *E-mail : [email protected]. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 45 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 O ambiente produtivo da atualidade impele as organizações a produzirem cada vez mais, com cada vez menos. Consequentemente, é preciso buscar o aperfeiçoamento dos resultados e o aproveitamento máximo da capacidade produtiva. As organizações não podem se permitir o luxo de cultivar comportamentos prejudiciais à sua efetividade, que deve se pautar pela busca do desenvolvimento contínuo de todas as pessoas que compõem o corpo funcional. Nesse sentido, os estudos científicos desenvolvidos na área buscam compreender o que precede, estimula, cria e mantém os comportamentos positivos em termos de produtividade e favoráveis ao desenvolvimento, que são geralmente bem aceitos no ambiente organizacional. Esses comportamentos são desejados socialmente e favorecem a efetividade. Porém, também é necessário investigar os comportamentos que podem prejudicar a manutenção da efetividade já alcançada, ou até causar um decréscimo da mesma. Os comportamentos disfuncionais são todos aqueles que causam prejuízo à efetividade da organização, emitidos no contexto de relações de trabalho. Esses comportamentos têm sido pouco pesquisados comparativamente a outros. No Brasil, são poucos os estudos sobre os desvios de comportamento no local de trabalho, apesar de ser de conhecimento geral que as atitudes retaliatórias têm elevados custos para as organizações. O presente estudo visa colaborar para o desenvolvimento dessa relevante temática de pesquisa no país. O objeto de análise dessa pesquisa é um tipo de comportamento disfuncional, a retaliação. Pode-se definir retaliação como “comportamentos que sofrem influência de atributos pessoais dos atores organizacionais, que são emitidos de maneira sutil ou agressiva, em resposta à percepção de injustiça no trabalho, contra a organização ou pessoas que dela fazem parte” (Mendonça, 2003, p. 25). Por meio da geração de conhecimento sobre a retaliação, intenta-se proporcionar uma melhor compreensão do fenômeno nas organizações. Os comportamentos contraproducentes podem causar um impacto negativo significativo, com perda de produtividade, elevados custos de mão de obra, elevação das taxas de turnover e prejuízo ao clima organizacional. (Hung, Chi & Lu, 2010). Esses aspectos apontados por Hung et al (2010) constituem a principal justificativa para que se investigue comportamentos contraproducentes como a retaliação nas organizações. O conceito clássico de retaliação refere-se à lei de talião, o antigo ditado popular olho por olho, dente por dente, que significa revanche, vingança, o retorno do que se faz em igual medida (Tamayo, Mendonça & Paz, 2008, p. 252). De acordo com Skarlicki e Folger (1997), os comportamentos retaliatórios são o subconjunto dos comportamentos negativos que ocorrem com o objetivo de punir a organização ou seus representantes. Esses autores definem retaliação como o comportamento que ocorre quando as pessoas percebem que estão sendo tratadas injustamente no trabalho e encontram formas de contra-atacar e descontar. Skarlicki e Folger (1997) optaram por denominar esses comportamentos de retaliatórios para finalidade de pesquisa por dois motivos: pela conotação pejorativa que outro termo, como “comportamentos negativos” poderia ter, presumindo uma conduta negativa e errada somente por parte do funcionário. O segundo motivo seria o de procurar não afetar a disposição do respondente da pesquisa, convidando-o a considerar fatores situacionais. A percepção de justiça dos trabalhadores em três diferentes tipos: distributiva, processual e interacional. Esses autores pesquisaram a relação de cada um dos tipos de justiça com comportamentos de retaliação organizacional. A justiça distributiva se refere à percepção de justiça que as pessoas têm em relação aos pagamentos, benefícios e quaisquer retribuições que elas recebam pelo serviço prestado. A processual diz respeito à forma como as decisões são tomadas, nos quesitos acuridade, consistência, ética, correção, representatividade. A justiça interacional é relativa às percepções individuais de justiça no tratamento recebido pelos chefes e tomadores de decisão, é representada por ações que demonstraram sensibilidade, empatia e respeito, repercutido em tratamento com dignidade. Um exemplo de justiça interacional é a consideração em dar explicações adequadas para decisões tomadas que impactam diretamente o trabalho do indivíduo em questão. A conclusão da pesquisa desenvolvida por Skarlicki e Folger (1997) apresentou um modelo correlacional preditor entre percepção de justiça organizacional e retaliação. Com relação aos tipos de justiça, constataram que os comportamentos de retaliação tinham correlações aproximadamente iguais para todas, sendo diferenciadamente maior apenas para a justiça interacional. Revelaram também que a justiça processual e interacional interagem na predição da retaliação e sugeriram que poderiam funcionar como substitutas uma da outra. Townsend e Elkins (2000) reforçaram essa teoria no que diz respeito à justiça interacional ao relacionar a retaliação à troca insatisfatória entre chefias e subordinados. Jones (2000) investiga como os indivíduos interpretam a ocorrência ou não de injustiça a partir da busca de equidade 46 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 entre a maneira como o chefe reagiu diante de situação parecida no passado (informação que advém de seus pares) e como está reagindo no presente. A informação social recebida dos pares teria influência direta na percepção de justiça interacional e retaliação. Para Tamayo et al (2008), os efeitos positivos de trocas entre líder e liderado de alta qualidade têm sido bem documentados na literatura de liderança, mas muito menos é sabido a respeito dos potenciais efeitos prejudiciais de trocas pobres nesse tipo de relação. Comportamentos retaliatórios seriam uma das consequências de relações pobres de troca entre líderes e liderados. Townsend e Elkins (2000) pesquisaram trocas entre líderes e liderados e relatos de supervisores a respeito de comportamentos retaliatórios, performance e cidadania organizacional dos funcionários e encontraram correlação positiva entre boas relações e perfomance e cidadania organizacional e correlação positiva entre más relações e retaliação organizacional. Nessa relação de troca, cabe ressaltar que não apenas subordinados são passíveis de acabarem insatisfeitos, mas também os ocupantes das posições de chefias. Dessa forma, a retaliação também pode ser pensada sob outra perspectiva, a do empregador e, nesse sentido, a retaliação seria um ato adverso contra o funcionário em decorrência de reclamações do mesmo. (Sincoff, Slonakera & Wendta, 2006; Long, 2007) Esse, no entanto, é um campo não explorado por este artigo, que se atém à perspectiva do funcionário. Além disso, de acordo com Townsend e Elkins (2000), a retaliação não é um comportamento direcionado apenas aos chefes ou à organização, mas também pode ser direcionado aos colegas. Pode ocorrer de maneira mais explícita ou bem sutil, na busca de restaurar a percepção de justiça. Sendo direcionado para colegas ou chefes, se as relações de poder forem assimétricas, o comportamento de retaliação é influenciado. De acordo com Ismal, Mohideen e Togok (2009), se o poder da pessoa que se percebe objeto de injustiça é menor que o da fonte que ela percebe como geradora da injustiça, a ação de retaliação tende a ser mais indireta. A retaliação conforme definição de Skarlicki e Folger (1997) é pensada sob a dimensão organizacional, desconsiderando a influência de variáveis individuais e intrapsíquicas. Em meta análise sobre os preditores de comportamentos agressivos no ambiente de trabalho, Hershcovis, Turner, Barling, Arnold, Dupre e Innes (2007) demonstraram a importância tanto de características individuais quanto situacionais para a ocorrência de comportamentos agressivos no trabalho. Dessa perspectiva adotada, a retaliação pode ser definida como “comportamentos negligentes que sofrem influência de atributos pessoais dos atores organizacionais e que ocorrem de maneira explícita ou sutil em resposta a um estado de insatisfação no trabalho, contra a organização ou pessoas que dela fazem parte” (Maia & Bastos, 2011). Skarlicki, Folger e Tesluk (1999) investigaram a moderação exercida por variáveis de personalidade sobre os comportamentos de retaliação. Os resultados dessa pesquisa apontam que as pessoas reagem de maneira distinta a situações de injustiça e forneceram evidências que apoiam a perspectiva interacional para explicar a retaliação organizacional. Afetividade negativa e tendência a concordância moderaram a relação entre a equidade e os comportamentos de retaliação. Por exemplo, uma pessoa com baixo nível de concordância, que tem tendência a discordar e confrontar apresentará comportamentos de retaliação mais prontamente do que uma pessoa cooperativa de acordo com esse estudo. Em conjunto, estes resultados sugeriram a limitação na elaboração de modelos comportamentais de retaliação que considerassem só variáveis situacionais ou disposicionais e não incluíssem a interação entre elas. A raiva e o ressentimento associados à percepção de procedimentos injustos podem energizar os indivíduos para se engajarem em retaliação. Os tratamentos injustos podem gerar um desejo de retribuição da pessoa objeto da injustiça, que acaba agindo contra a organização. Os estudos de Allred (2000) demonstraram que a raiva exerce uma influência poderosa para os comportamentos de retaliação e sugerem, dessa maneira, que as emoções exercem um papel mediador entre a percepção de injustiça e a tendência a retaliar. Não obstante todos os prejuízos que podem causar os comportamentos contraproducentes como a retaliação para as organizações, os estudos dedicados a investigá-los são poucos. Apesar da crescente tendência de crescimento da importância atribuída ao setor público, à medida que as organizações públicas são confrontadas com um crescimento na demanda por serviços de alta qualidade no contexto de recursos limitados, os estudos nessa área pública de comportamentos contraproducentes também são poucos, já que a temática em si ainda é pouco investigada, principalmente no Brasil. A administração pública no Brasil é mais recente, se comparada a outros países, mas o tempo discorrido já é mais do que suficiente para caracterizar uma cultura - uma forma de funcionamento e interação muito própria, verdadeira teia de significados que se movimentam e interagem dentro de um contexto e lógica bem particulares. Um aspecto cultural do 47 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 brasileiro pode ser destacado como exemplo, dada a sua relação com os comportamentos contraproducentes, objeto de estudo deste artigo. Diante de comportamentos autoritários, herança das origens culturais e do processo de formação histórica, o brasileiro prefere sabotar, ao invés de enfrentar, fazendo a “revolução silenciosa” (Ramos, 1983, p.66). Ora, a sabotagem é um tipo de retaliação e dessa forma tem-se que o brasileiro, segundo essa perspectiva de Ramos (1983), teria uma tendência cultural à retaliação. Nesse sentido, cabe observar que as disfunções típicas do setor público brasileiro, marcado por um histórico de ineficiência decorrente de um excessivo aparato burocrático, são conhecidas, todavia, conforme ressaltado anteriormente, pouco estudadas. Este estudo objetiva investigar a percepção global de uma organização pública de abrangência federal em relação ao fenômeno da retaliação pela ótica de seus funcionários, com o intuito de compreender como a retaliação pode afetar a eficácia organizacional e prejudicar a manutenção de comportamentos socialmente aceitos. Dessa forma, cabe questionar: quão frequente os funcionários dessa organização pública, objeto do estudo, percebem o fenômeno da retaliação em suas rotinas diárias? Qual o julgamento que fazem desses comportamentos: justos ou injustos? Uma justificativa adicional para esse estudo é a possibilidade de colaboração para o desenvolvimento ou a consolidação de um instrumento de diagnóstico que permita identificar os comportamentos legítimos de retaliação mais frequentes e os mais e menos aceitos entre os funcionários. A partir desse diagnóstico, tem-se a possibilidade de criar uma linha construtiva de gestão de pessoas e conflitos, por meio da qual se possa trabalhar com as mudanças necessárias para a organização. São objetivos específicos: (1) Analisar a percepção que os funcionários têm em relação à emissão de comportamentos de retaliação: frequência e avaliação de justiça; e (2) Investigar a relação entre a percepção e julgamento dos comportamentos retaliatórios com algumas variáveis demográficas pessoais e funcionais. Método A pesquisa adotou método quantitativo, sendo caracterizada como um estudo transversal simples (Vergara, 2010). A unidade de análise foi uma organização pública com representações em dez capitais do Brasil na qual foram recrutados os participantes do estudo, e a unidade de observação, o funcionário. Todos os participantes faziam parte do quadro de servidores efetivos da organização, haviam ingressado por meio de concurso público e gozavam de estabilidade. População, amostra e participantes A amostragem foi aleatória e estratificada, proporcional por área de atuação (departamentos) dentro da organização objeto desse estudo. A técnica de amostragem inicial foi probabilística e selecionou aproximadamente 30% do total de 4.671 funcionários, o que significou uma amostra inicial de 1452 indivíduos. Dentre esses, 705 visitaram o sítio da pesquisa e 575 efetivamente a responderam (índice de resposta de 39,6%), resultando em uma amostra não probabilística, por conveniência do respondente (o servidor escolheu responder ou não, o que torna a amostra tendenciosa). Do tratamento do banco de dados resultou que, das 575 respostas, 55 foram excluídas da amostra por motivo de falta de dados sobre uma ou mais variáveis. Assim, todas as análises foram baseadas em uma amostra de 520 respondentes. Dessa forma, a amostra resultante equivale a 11% da população. Instrumento Neste estudo foi utilizado um questionário composto por questões sócio demográficas e pelo instrumento: Escala de percepção e julgamento da retaliação organizacional – EPJR. O EPJR (Mendonça, Tamayo & Paz, 2004) foi escolhido porque possui parâmetros psicométricos adequados e por ser o único de que se tenha conhecimento desenvolvido no Brasil até o momento. Diante da adequação do instrumento citado, não se justificaria o desenvolvimento de um próprio, ciente que a proliferação de instrumentos para avaliação do mesmo fenômeno não contribui para o desenvolvimento de conhecimento na área. O conceito de retaliação adotado para o desenvolvimento do EPJR foi o de “comportamento que ocorre sutilmente em resposta a injustiça no trabalho e é emitido contra a organização ou às pessoas que dela fazem parte” (Tamayo et al. 2008). A escala foi construída com base naquela de Skarlicki e Folger (1997), adaptada ao contexto brasileiro. Foram identificados inicialmente 31 itens em pesquisa exploratória, posteriormente submetidos a procedimentos de validação em dois estudos. Os autores do instrumento utilizaram o método dos componentes principais e estipularam o critério de carga fatorial de 0,40, o que levou à permanência na solução final de apenas 15, dos 31 itens originais. 48 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 O método da observação indireta é adotado, em lugar do auto relato. Essa opção dos autores do instrumento se justifica como mais adequada à pesquisa de comportamentos socialmente indesejados, como é o caso da retaliação. O EPJR avalia as dimensões perceptivas e avaliativas do comportamento de retaliação. Dessa forma, o instrumento é dividido em duas subescalas, de percepção e julgamento, que demonstraram ter validade fatorial. Cada uma delas utilizou uma escala de cinco pontos: variando de 1 = nunca a 5 = sempre, para análise da percepção de frequência e de 1 = muito injusto a 5 = justíssimo, para investigar a atribuição de justiça ao comportamento de retaliação. Assim como os estudos de Skarlicki e Folger (1997), Mendonça et al (2004) demonstraram que a retaliação no trabalho se estrutura em um único eixo. O pré-teste foi realizado entre cinco funcionários, e foi utilizada a análise protocolar, pedindo aos entrevistados que “pensassem em voz alta”ao responder ao questionário, enquanto anotações eram feitas. As observações e críticas assimiladas no pré-teste serviram para que se adaptasse o texto introdutório, o convite e demais mensagens associadas. Procedimentos Os convites para a pesquisa foram enviados por correio eletrônico. Neste correio, havia um texto que apresentava a pesquisa e um link externo para o questionário. Após uma semana de coleta, foi realizado um novo convite para aqueles que não haviam respondido até então. As 520 respostas obtidas foram tabuladas por meio do Microsoft Excel e posteriormente analisadas estatisticamente por meio do software PASW Statistics 18. Tais análises foram elaboradas de modo que pudessem abranger de maneira adequada todos os objetivos propostos para a pesquisa. Inicialmente, uma análise descritiva preliminar foi conduzida, produzindo-se as médias, desvios padrões e variâncias item a item. Essa análise inicial permitiu a identificação dos comportamentos mais e menos percebidos e positivamente e negativamente julgados pelos respondentes. Em seguida, com a finalidade de se produzir mais análises, mas de uma maneira mais sintética, sobre um ou mais conjuntos de itens, foi considerada a adoção da análise fatorial, técnica estatística multivariada que representa por meio de fatores, conjuntos de variáveis inter-relacionadas. Para isso, foi realizado o cálculo da medida de adequação da amostra de Kaiser-MeyerOlkin (KMO), que demonstrou adequação para a técnica de análise fatorial. Em função dos resultados obtidos na análise fatorial, analisou-se a média das avaliações dos itens por respondente e, por fim, foram realizados testes bivariados de Pearson para identificar se as variáveis demográficas estavam correlacionadas com as percepções e julgamentos da retaliação pelos respondentes. Resultados A análise estatística descritiva mostrou que os comportamentos retaliatórios mais percebidos foram: “Produzir abaixo da capacidade que possui”; “Gastar mais tempo no intervalo do que o permitido”; e “Fazer corpo mole”. Os comportamentos de retaliação menos percebidos foram: “Fazer o serviço malfeito de propósito”; “Alterar a forma de fazer as coisas com o intuito de prejudicar a organização”; e “Tumultuar o ambiente de trabalho, propositalmente”. Tabela 1. Percepção de comportamentos de retaliação. Item M Produzir abaixo da capacidade que possui Gastar mais tempo no intervalo do que o permitido Fazer corpo mole Fingir que está ocupado Influenciar negativamente os colegas de trabalho Ficar indiferente às solicitações feitas pela chefia Deixar de colaborar com os colegas de trabalho Falar mal da organização para pessoas estranhas ao serviço Negar informações necessárias a um colega Tratar com indiferença as pessoas que buscam os serviços prestados pela organização Descumprir as normas da empresa Trabalhar contra a política da empresa Tumultuar o ambiente de trabalho, propositalmente Alterar a forma de fazer as coisas com o intuito de prejudicar a organização Fazer o serviço malfeito de propósito DP Variância 3,35 3,25 1,03 1,03 1,06 1,05 3,12 2,97 2,78 1,03 1,00 1,02 1,06 1,00 1,04 2,73 1,01 1,01 2,71 0,93 0,87 2,66 1,18 1,39 2,47 2,35 0,99 1,02 0,98 1,04 2,22 2,10 2,09 0,97 0,97 0,99 0,93 0,94 0,99 2,08 0,89 0,79 2,04 0,94 0,89 Os comportamentos retaliatórios julgados como mais justos foram: “Produzir abaixo da capacidade que possui”; “Gastar mais tempo no intervalo do que o permitido”; e “Ficar indiferente às solicitações feitas pela chefia”. Os avaliados como mais injustos foram: “Tratar com indiferença as pessoas que 49 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 Uma interpretação possível para os resultados e viabilizada buscam os serviços prestados pela organização”; “Fazer o serviço malfeito de propósito”; e “Tumultuar o ambiente de trabalho, pela análise fatorial, que chegou a apenas um fator agrupando todos os itens, é a de que a média da avaliação dos itens propositalmente”. inferior a 2,5 significa baixa percepção, no caso dessa escala, Tabela 2. Julgamento de comportamentos de retaliação. ou julgamento negativo, no caso da outra escala. Por sua vez, a Item M DP Variância média das avaliações atribuídas aos itens entre 2,5 e 3,4 significa Produzir abaixo da capacidade que um posicionamento de dúvida por parte do respondente. Igual 2,33 1,01 1,02 possui. ou acima de 3,5 significa percepção de frequência elevada de Gastar mais tempo no intervalo do que o 2,23 0,85 0,73 comportamentos retaliatórios ou julgamento positivo dos permitido. mesmos. Ficar indiferente às solicitações feitas pela 2,10 0,87 0,76 chefia. Dessa maneira, pode-se afirmar que 39,6% dentre os Fazer corpo mole. 2,04 0,88 0,77 pesquisados têm a percepção de baixa frequência na emissão Fingir que está ocupado. 2,02 0,79 0,63 de comportamentos retaliatórios, de maneira geral (médias Falar mal da organização para pessoas 1,89 0,98 0,97 iguais ou inferiores a 2,5 na avaliação de percepção). Nessa estranhas ao serviço. mesma linha de análise, apenas 11,1% tiveram a média igual Influenciar negativamente os colegas de 1,79 0,76 0,58 trabalho. ou superior a 3,5, indicando uma relativamente baixa percepção Deixar de colaborar com os colegas de 1,75 0,74 0,54 da ocorrência do fenômeno, de maneira geral na organização. trabalho. Por outro lado, em termos de julgamento, 88% dos Trabalhar contra a política da empresa. 1,67 0,75 0,56 funcionários participantes da pesquisa consideraram injusta Alterar a forma de fazer as coisas com o 1,64 0,67 0,45 intuito de prejudicar a organização. a emissão de comportamentos retaliatórios em resposta Descumprir as normas da empresa. 1,61 0,74 0,55 às injustiças recebidas. O posicionamento favorável aos Negar informações necessárias a um 1,58 0,70 0,48 comportamentos retaliatórios é pequeno, de menos de 1%, colega. classificando dessa forma aqueles que avaliaram os itens em Tumultuar o ambiente de trabalho, 1,46 0,66 0,44 propositalmente. médias superiores a 3,5. Fazer o serviço malfeito de propósito. 1,45 0,63 0,40 Ademais, foram feitos estudos de correlação bivariada Tratar com indiferença as pessoas que (coeficiente de Pearson), para se investigar possíveis buscam os serviços prestados pela 1,44 0,63 0,40 relações entre os fatores, considerando cada uma das escalas organização. separadamente e cada uma das variáveis demográficas, Para análise da matriz de correlação dos itens, considerou- resumindo assim a intensidade de associação entre eles. Como se a adoção da técnica de análise fatorial. A recomendação variáveis demográficas, foram analisadas idade, tempo de técnica para análise fatorial é de que a amostra seja pelo menos trabalho na organização e exercício ou não de cargo de chefia. A percepção de comportamentos retaliatórios tem correlação cinco vezes a quantidade de itens (Malhotra, 2011). Nesse caso, considerando as escalas separadamente, há mais de 17 negativa significativa com a idade, ou seja, quanto maior a idade, respondentes por item. Para a escala de percepção, o valor da menor a percepção. O coeficiente de Pearson encontrado foi de estatística KMO foi 0,962, superior a 0,5, conforme recomendado -0,130 e o valor da probabilidade de erro nessa correlação foi de por Tabachnick e Fidell (2013). Para a escala de julgamento, o 0,003, o que é bem abaixo do recomendado, ou seja, menor que valor da estatística KMO foi 0,939. Assim, a análise fatorial foi 0,05. Apesar da significância considerável, a correlação pode ser considerada pequena. A correlação do fator de percepção adotada como técnica apropriada. O método dos componentes principais (eigenvalue > 1,0) da retaliação com a variável tempo de trabalho na organização foi utilizado, em contrapartida à análise fatorial comum, para se também é pequena, negativa e significativa (embora menos considerar a variância total dos dados. A determinação de apenas um significativa que a relação com a idade): coeficiente de -0,105 fator levou em consideração a decisão dos autores do instrumento e significância de 0,016. A correlação do fator de percepção com (Mendonça et al 2004) e foi corroborada pela análise do gráfico de a situação de exercício ou não de cargo de chefia é positiva, declive gerado e com base também na percentagem da variância. A ou seja, para aqueles que exercem função, a percepção de escala de percepção de retaliação explica 59,45% da variância total e comportamentos retaliatórios é mais frequente. Coeficiente de correlação de Pearson encontrado foi de 0,168, com significância a de julgamento explica 50,71%. 50 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 de 0,000. A correlação entre o fator de julgamento e idade foi negativa, pequena e significativa: coeficiente de Pearson de -0,173 e significância de 0,000. A correlação do mesmo fator com o tempo de trabalho na organização foi também negativa, pequena e significativa: coeficiente de Pearson de -0,138 e significância de 0,002. A correlação entre julgamento e função não foi significativa (probabilidade maior que 0,05: 0,075) e, portanto, não foi elencado como um resultado a ser considerado nessa análise, além do mais, a correlação era muito pequena, módulo menor que 0,1. Discussão Da análise da percepção que os funcionários têm em relação à emissão de comportamentos de retaliação, percebese que apenas 11,1% percebem elevada frequência na emissão de comportamentos retaliatórios e 39,6% percebem baixa frequência. Se a retaliação é compreendida como uma resposta às incongruências nas relações de troca estabelecidas, diante desses resultados, há uma possibilidade de que essa incongruência também seja relativamente baixa para a organização em estudo. Reforça essa linha dedutiva o resultado segundo o qual 88% julgam negativamente a emissão de comportamentos retaliatórios, considerando-os injustos e menos de 1% se posicionam favoravelmente. O segundo objetivo proposto, de verificar a influência de algumas variáveis demográficas pessoais e funcionais (idade, tempo de trabalho na organização e exercício ou não de cargo de chefia) nas variáveis analisadas foi alcançado por meio de estudos de correlação bivariada (coeficiente de Pearson). Oportuno lembrar que correlação não significa causalidade, mas apenas a força da relação entre as variáveis estudadas. As correlações encontradas foram pequenas, porém significativas. Com relação à idade do pesquisado e seu tempo de trabalho, foi encontrado que quanto maior, ou seja, se mais idoso ou com mais tempo de organização, a percepção que ele tem em relação aos comportamentos de retaliação é que eles ocorrem com menor frequência. Quanto mais idoso ou mais tempo de casa tem, mais o julgamento desses comportamentos tende a ser negativo, em outras palavras, a geração mais experiente tende a considerar a atitude de retaliação mais injusta que as gerações mais jovens, com menos tempo de trabalho na organização. Esses resultados fazem sentido se for considerado que os funcionários vão com a passagem do tempo cada vez mais se fidelizando em relação a organização. Um resultado interessante diz respeito ao exercício ou não de cargo de chefia, pois para aqueles que exercem função a percepção de comportamentos retaliatórios é mais frequente. Esse achado pode significar que a pessoa em situação de responder pela produtividade da equipe, uma posição de chefe, por exemplo, tende a observar mais e, portanto registrar como mais frequente a ocorrência de comportamentos de retaliação na organização. Conclusão Esta pesquisa buscou colaborar para a compreensão de um tipo de comportamento organizacional que não recebe a merecida atenção, mas que afeta a efetividade organizacional de maneira considerável, seja direta ou indiretamente. Os resultados demonstraram que os comportamentos retaliatórios são percebidos e incomodam, pois a maioria considera injusta essa maneira de reagir. A possibilidade de se desenvolver uma linha construtiva de gerenciamento das causas desse tipo de comportamento, visando um incremento na efetividade organizacional, estimula o estudo dos antecedentes, sem prescindir de outros estudos que investiguem a ocorrência e o impacto do fenômeno nas organizações. O delineamento e a condução das mudanças necessárias na organização para adoção dessa linha construtiva de gerenciamento frente a comportamentos legítimos de retaliação devem considerar também a hipotética influência da questão cultural. Não obstante, a influência de atributos pessoais não deve ser desprezada. Os resultados sugerem que a atuação junto aos públicos de faixas etárias diferentes ou tempos de trabalho na organização diferentes ou que exercem ou não cargos de chefia deveria ser também diferenciada, por exemplo. Nesse sentido, as análises de correlações entre as variáveis demográficas e a percepção e julgamento da retaliação podem fornecer informações relevantes para a idealização de uma linha construtiva de gerenciamento. Além disso, a investigação sobre a ocorrência desse tipo de comportamento negativo e seus antecedentes pode levar também à construção de um modelo aprimorado para as relações entre chefias e subordinados, um estímulo à busca da disseminação da cultura de meritocracia, do desenvolvimento e amadurecimento das relações, do incremento à prática do feedback, do reconhecimento e da avaliação com mais justiça. Uma limitação deste estudo se deve ao fato de que os resultados demonstraram a percepção de frequência de comportamentos de retaliação e não a frequência em si, ou a intensidade, de maneira que os dados são indiretos e mais 51 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 45-52 imprecisos. Ademais, os comportamentos investigados podem não ser de retaliação, ou seja, podem ocorrer não em resposta à percepção de uma situação de desequilíbrio nas relações de troca no trabalho, mas por diversos outros fatores de ordem pessoal ou situacional externas ao trabalho. Não obstante, a confiabilidade do instrumento aplicado foi averiguada e sua utilização pode ser recomendada para aquelas organizações que queiram investigar a percepção global de seus funcionários em relação ao fenômeno da retaliação. Como sugestão para futuras pesquisas, recomenda-se a realização de estudos mais aprofundados que investiguem aspectos da cultura organizacional em paralelo à percepção e julgamento de comportamentos de retaliação. Recomendase também o acréscimo de outros elementos de investigação como relacionamentos entre chefias e subordinados e variáveis psíquicas individuais. Outra forma de aplicação para mensuração de frequência e intensidade também seria interessante para o desenvolvimento dessa linha de estudo. Além disso, seria interessante a aplicação do mesmo instrumento a outras organizações públicas e a instituições privadas, seja para conhecer melhor a ocorrência do fenômeno, seja para tentar identificar as prováveis diferenças existentes em relação à ocorrência da retaliação em organizações públicas e privadas. Referências Allred, K. G. (2000). Anger and retaliation in conflict. In M. Deutsch & P. T. Coleman (Eds.), The handbook of conflict resolution: theory and practice (pp.236-255). San Francisco: Jossey-Bass Publishers. Hershcovis, M. S., Turner, N., Barling, J., Arnold, K., Dupre, K. E., & Innes, M. (2007). Predicting workplace aggression: a meta-analysis. Journal of Applied Psychology, 92(1), 228–238. Hung, T. K., Chi, N. W., & Lu, W. L. (2009). 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O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa conforme estabelece resolução 196/96 do CONEP e utilizou-se de um roteiro de entrevista semi-estruturada em uma abordagem de caráter qualitativo, com questões relacionadas a temas referentes a reforma psiquiátrica, implementação do CAPS, adoecimento, saúde mental, e cuidado. Dentre os resultados, verifica-se que os trabalhadores mencionam dificuldades relacionadas à crescente demanda de atendimento, trabalho em equipe, a influência de decisões políticas e carga horária exaustiva. Palavras chaves: Reforma Psiquiátrica, Trabalhadores, Cuidado. Abstract: This article shows a survey to identify how the workers of a CAPS II, in Santa Cruz do Sul, experience and give meaning to the psychiatric reform, and how the service experiences have affected their health. To this end, we sought to understand the main difficulties in the work of the PCC. In addition, we sought to identify the existence of mechanisms for the prevention and treatment of occupational illness and how they understand their self care. The project was approved by the Research Ethics Committee as established by resolution 196/96 CONEP and used a structured interview in a semi-structured qualitative approach, with questions related to issues relating to psychiatric reform, implementation of CAPS, illness, mental health, and care. Among the results, it appears that the workers mentioned difficulties related to the growing demand for care, teamwork, influence policy decisions and workload exhaustive. Keywords: Psychiatric Reform, Workers, Care. a Psicóloga formada pela UNISC, funcionária do CAPS I de Vacaria. *E-mail:[email protected] b Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. c Psicóloga. Dra. em Serviço Social e Bolsista PDJ/CNPq pela PUCRS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UNISC. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 53 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 O trabalho ocupa um papel fundamental para o ser humano para muitos é ele quem dá sentido à vida. O trabalho é fator relevante na constituição da identidade e também na inserção social dos indivíduos e, pode aparecer como fator constitutivo de adoecimento e/ou de saúde mental (Abreu et al., 2002). Segundo Albarnoz (2000), o termo trabalho (tripalium – tortura) nos remete a noção de sofrimento e padecimento. Já para Dejours (1992), não é o trabalho que adoece, mas sim sua organização, que inclui a divisão de tarefas, o seu conteúdo e a divisão dos trabalhadores para executá-la. Ramminger (2006), ao contextualizar historicamente a trajetória e a subjetivação do trabalhador de saúde mental, pontua períodos onde a organização do trabalho se fez notadamente presente, como no século XIX. Nesta época, os cuidados com o doente mental eram reservados ao médico psiquiatra, detentor do poder, e ao enfermeiro psiquiátrico, que sempre acompanhava os confinados, com a função de vigilante. No Brasil, a reforma psiquiátrica surge mais concretamente no final da década de 70, com a redemocratização, em um momento político e social extremamente facilitador, que tinha como fundamentos não apenas uma crítica ao sistema nacional de saúde mental, mas também – e principalmente – uma crítica ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas. O movimento da reforma psiquiátrica oscila entre uma proposta de transformação psiquiátrica e de uma organização de trabalhadores que reivindicam direitos. Essa organização dos trabalhadores da área foi denominada como Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, e assumiu um papel fundamental na reforma a ser realizada (Amarante, 1995). A política de saúde mental brasileira baseia-se na Reforma Psiquiátrica Italiana que propõe mudanças significativas no antigo modelo de assistência, prevendo a substituição do modelo asilar, para um modelo psicossocial. Desta forma ocorre um processo denominado desinstitucionalização, que se refere à construção de uma rede de serviços alternativos, na qual recursos governamentais são destinados ao atendimento comunitário (Silva & Costa, 2008). Entretanto o processo de desinstitucionalização é mais abrangente do que transformar o modelo hospitalocêntrico de atenção, substituindo-o por uma rede de atenção integral à saúde mental. Essa ruptura do antigo modelo assistencial à saúde mental para o proposto pela reforma psiquiátrica corresponde a um deslocamento do foco centrado na doença mental para os cuidados dirigidos à pessoa doente. O processo de desinstitucionalização não poderia ser reduzido ao “simples fechamento dos velhos, sujos e violentos hospícios. Mais do que derrubar paredes, muros e grades, desinstitucionalizar significa desmontar estruturas mentais (formas de olhar) que se ‘coisificam’ e se transformam em instituições sociais” (Melman, 2006, p. 59). A retirada do hospital psiquiátrico do centro das ações no tratamento da loucura fez surgir à necessidade de criação de programas e serviços destinados a auxiliar aqueles portadores de grave e persistente sofrimento psíquico. Com esta proposta surgiram os CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, que são os resultados das reflexões relativas aos movimentos da reforma psiquiátrica, com iniciativas inovadoras e visão de saúde comprometida com a atenção psicossocial (Silva, 2007). Os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS constituem-se em serviços de tratamento intensivo e diário aos portadores de sofrimento psíquico grave, configurando-se numa alternativa ao modelo centrado no hospital psiquiátrico, caracterizado por internações de longa permanência e regime asilar. Fundamentado na reforma psiquiátrica, trouxe novos olhares, exigências e formas de se relacionar com a loucura (Brasil, 2004). A nova forma de tratamento considerada recente por autores como Koda e Fernandes (2007), Onocko-Campos e Furtado (2006), e Ramminger (2006), surgiu há pouco mais de vinte anos em nosso país, despertando grandes interesses que culminam nas mais variadas pesquisas e estudos, principalmente sobre as vantagens de se “tratar loucura” em CAPS. Os pesquisadores, porém, parecem não vislumbrar que o sucesso e a crescente disseminação desses serviços substitutivos dependem, essencialmente, dos profissionais que neles atuam. No que se refere a organização do trabalho/cuidado em saúde mental, a inclusão de diferentes profissionais da área, simpatizantes ou não com o movimento proporcionam novas reflexões. Desta forma as vivências e modos de significar esse processo por parte dos mesmos, atravessam e subjetivam estes trabalhadores (Ramminger, 2006). Ainda hoje, a forma como estes serviços se constituem, obedece a uma organização hierárquica e a uma forma de controle. Nesse sentido, pode-se perceber, apesar de negada e contestada, uma divisão de poder, como referida por Foucault (1997), que permanece visível nos CAPS, o que contradiz relatórios e apologia do movimento antimanicomial. Pode-se somar a isso o fato de a grande maioria dos técnicos do CAPS são servidores públicos concursados que, em troca da estabilidade financeira, enfrentam além das angústias do trabalho em si, práticas que os sobrecarregam, discursos políticos mal contextualizados, troca de gestores e colegas, poucas perspectivas de crescimento profissional e salarial, falta 54 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 de investimento e autonomia, pressão no ambiente de trabalho, principalmente quanto a sua produção, e a redução de custos e verbas, que prejudica sua capacitação, desenvolvimento de projetos e, conseqüentemente, seu desempenho. Outro item que pesa é o da carga horária a cumprir, além do temor e vergonha de se reconhecer adoecido e toda a implicação que isso causaria (Ramminger, 2006). Enfim, a Reforma Psiquiátrica trouxe além das exigências e das “novas” formas de lidar com a loucura, um contexto real que difere do preconizado por suas propostas. Por se tratar de problematizações recentes, são poucas as pesquisas que abordam sobre o trabalhador de saúde mental ou suas vivências, bem como, as que lançam olhares para a saúde do profissional desta área e as políticas de cuidado com a sua saúde. Conforme Dejours (1992), ainda hoje em dia há uma tendência no mercado de trabalho de não aceitar ou reconhecer o sofrimento mental e a fadiga, mas somente doenças que sejam confirmadas por um profissional da saúde. Complementando, Ramminger (2006) expõe que há uma dificuldade de se estabelecer relação entre o sofrimento mental e o trabalho, em função destes sofrimentos acabarem travestidos como problemas funcionais para com a chefia ou organização, atritos nas relações interpessoais fora do trabalho, ou ainda, por manifestações orgânicas. Desta forma esta pesquisa buscou verificar como os trabalhadores do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS II de Santa Cruz do Sul vivenciam e dão sentido à reforma psiquiátrica, e se as experiências no serviço têm afetado a saúde destes, procurando conhecer as principais dificuldades enfrentadas no trabalho desenvolvido no local, bem como se a carga horária e conseqüentemente o tempo de permanência com o usuário traz algum adoecimento ao trabalhador. Além disso, procurouse identificar a existência de mecanismos de prevenção e tratamento ao adoecimento dos profissionais cuidadores e a existência de políticas públicas direcionadas aos mesmos. Método A amostra constituiu-se de oito participantes, seis com nível de escolaridade superior e dois com nível médio, trabalhadores do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS II, de Santa Cruz do Sul. A pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada utilizandose de um roteiro de entrevista semi-estruturada, constituído por dezenove perguntas. Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UNISC-CAAE nº 0174.0.109.000-09 foi realizado contato com o local e solicitado relação dos profissionais interessados em participar da pesquisa, bem como os dias e horários disponíveis para as entrevistas. Inicialmente o critério estabelecido para participação era de quatro sujeitos com nível de escolaridade média e quatro de nível de escolaridade superior, com tempo de trabalho no local de pelo menos três anos. Porém houve pouca adesão à proposta da pesquisa, sendo necessário refazer os critérios para a participação e utilizar estratégias de divulgação e aderência à mesma. Para tanto foi necessário fazer uso de recursos tais como esclarecimentos referentes aos objetivos deste estudo aos trabalhadores do serviço, que se deu através de contatos tanto por telefone quanto pessoalmente no CAPS II. Também foi elaborado e posteriormente exposto um cartaz com dados referentes aos objetivos da pesquisa, nome dos pesquisadores e telefone para contato. Através da relação dos inscritos, estabeleceu-se contato para agendar a data e o horário das entrevistas. As entrevistas foram realizadas conforme a disponibilidade dos profissionais no próprio serviço, sempre com a presença de dois pesquisadores. Antes das entrevistas foram esclarecidas dúvidas, explicada a proposta da pesquisa e entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para ser assinado. As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados, representados por nomes fictícios e depois de transcritas na íntegra, foram descartadas. Após análise, construiu-se um mapa de associação de ideias, mantendo-se as falas bem como sua sequência inalterada, aparecendo as intervenções dos pesquisadores. Este mapa tem o objetivo, segundo Spink (2000), de sistematizar o processo de análise das práticas discursivas em busca dos aspectos formais da construção lingüística, dos repertórios utilizados nessa construção e da fala implícita na produção de sentidos. Segundo a autora, a construção dos mapas inicia-se pela definição de categorias gerais, de natureza temática que refletem, sobretudo, os objetivos da pesquisa. Spink (2000) discorre que na perspectiva construcionista, tanto o sujeito como o objeto são construções sócio-históricas que precisam ser problematizadas e desfamiliarizadas. A pesquisa com esse entendimento é um convite a examinar essas convenções e, entendê-las como regras socialmente construídas e, historicamente localizadas. Segundo a autora o enfoque nas falas não deve apenas recair sobre a regularidade e consenso, mas principalmente sobre a volubilidade, bem como, a polissemia das mesmas, ou seja, o foco sobre as práticas discursivas e não sobre o discurso. Desta forma a interpretação das falas não se dá de forma cristalizada, mas pelo contrario, esta é circular e inacabada, bem como, os 55 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 sentidos do encontro entrevistador-entrevistado, concedendo agendamentos, o que pode contribuir para o não adoecimento, possibilidades infinitas a cada trama gerada. pois, segundo Dejours (1997), a inflexibilidade da organização do trabalho impede a expressão do desejo do trabalhador, que Resultados e Discussão não consegue se constituir a partir de seu trabalho, o que lhe traz sofrimento e adoecimento. O trabalho favorável à saúde Das entrevistas realizadas, procurou-se estabelecer das pessoas é aquele que tem a sua organização flexível, categorias a fim de identificar discursos e sentidos que possibilitando que o trabalhador possa adaptá-la a seus desejos, contemplassem os objetivos da pesquisa. Assim elencaram- às necessidades de seu corpo e às variações do seu estado de se quatro grandes categorias: Características do trabalho espírito. (subdividida em: especificidades, contato com usuário, e Dentre as dificuldades relatadas estão a superlotação dificuldades enfrentadas); Adoecimento do Cuidador; Prevenção do CAPS II, além do tempo que é dedicado aos pacientes do e Tratamento do Cuidador; e Reforma Psiquiátrica. ambulatório. Amarante (1995) discorre sobre a mudança de modelo provindo da Reforma Psiquiátrica onde é previsto Características do Trabalho uma gradativa substituição dos serviços ofertados. Nesse Com relação às especificidades do trabalho, a carga horária sentido o reforço da rede de saúde também aparece na fala dos entrevistados varia entre 20 a 36 horas semanais. A maioria dos profissionais do local, onde este precisaria ser ainda muito dos participantes referiu estar mais de 80% de seu tempo de melhorado. serviço em contato direto com os usuários. Apesar de considerar “às vezes o que nos atrapalha é a grande demanda de apropriado, alguns discorrem que esse tempo de trabalho paciente e a gente acaba com aquela sensação de será que poderia ser planejado ou otimizado, se não fosse a grande estamos dedicando tanto tempo o quanto deveríamos pros demanda por atendimentos. pacientes de CAPS ou será que a gente ta se dedicando mais pros “Eu acho que é um tempo (...) para talvez também se pacientes de ambulatório?” (Clarissa). dedicar a outras coisas que tragam benefício ao usuário, que fosse Cabe aos CAPS promover a reinserção social bem como interessante, que é a questão de se estar fazendo projetos. É um ações intersetoriais, a supervisão a atenção à saúde mental na tempo que nos falta realmente. É uma coisa complicada, é um rede básica, de forma que sua inserção possa vir a ultrapassar tempo que talvez tenha que ser qualificado” (Anabella). a própria estrutura física do serviço, em busca de maior suporte O tempo e a intensidade no contato com o usuário é, social, o que poderia potencializar as ações. Para isso, é necessário segundo Ramminger (2007), proporcional ao esgotamento um bom funcionamento da rede de atenção, sendo a falta de emocional e estresse crônico dos trabalhadores em saúde recursos sociais, mais uma das dificuldades apresentadas, pois mental. Nas entrevistas observa-se que grande parcela dos dificulta uma rede integrada que possa dar conta da história, profissionais entrevistados acredita que uma carga horária cultura, vida cotidiana, bem como da singularidade do sujeito, superior a 20 horas semanais pode vir a ser muito desgastante assim como a reinserção deste na sociedade (Brasil, 2004). aos trabalhadores do CAPSII. O preconceito atua na contracorrente deste modelo, desde “Eu acho que é pesado (...) tu ter tantas horas em contato o preconceito da sociedade, das famílias, e também da própria com o sofrimento é pesado né, mas ao mesmo tempo é rede de saúde. Foi apontada nas entrevistas a necessidade gratificante porque tu vê a evolução dos que se envolvem com o do apoio da família, de que essa assuma responsabilidades tratamento (...) mais do que 20h no local de trabalho eu acho que para com o tratamento do usuário. O exercício da cidadania e é massacrante, eu acho que o pessoal que trabalha 36h e 40h é inclusão social dos usuários, bem como, de suas famílias parece pra matar, eu acho que ai é muito pesado” (Marie). ficar comprometido quando estes são rotulados como “loucos”, De acordo com Onocko-Campos, citada por Ferrer (2007) “empurrados ou passados adiante” desta forma ao CAPS II como o trabalho na área da saúde acarreta em um contato direto com se este fosse o “lugar” do doente mental. Preconceitos como o sofrimento alheio, culminando em um desgaste diferente este, demonstram a necessidade do diálogo e discussão sobre o dos profissionais de outras áreas, por ficarem constantemente tema, logo, pressupõe um espaço para tal. Acredita-se que este expostos a dor, sofrimento, e até a morte das pessoas doentes. espaço não deva ser apenas em congressos de Saúde Mental, Em contraponto a isso, alguns profissionais relatam ter controle mas possa haver uma circulação mais corriqueira do tema, em com relação a demanda atendida, por exemplo através dos diversos setores da saúde. 56 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 Essa segregação dos usuários ligados ao local de tratamento também parece contribuir mais com o aumento da demanda. O funcionamento do serviço como um ambulatório, segundo o relato dos entrevistados, divide a atenção entre os pacientes, o que possivelmente levaria a esta insegurança com relação à dedicação que é dada aos usuários portadores de graves e persistentes sofrimentos psíquicos. Por conta de uma demanda expressiva a questão da produção aparece em diversos momentos nas entrevistas, nas quais segundo relatos o trabalho que não se dá diretamente com os usuários, como o realizado para consolidar redes de atendimento, não é reconhecido como produção, que muitas vezes acaba sendo confundido com agendas lotadas. Desta forma, cabe questionar qual a atenção que se dá a qualidade dos serviços substitutivos, pois a pressão por conta do número de atendimentos parece vir não tão somente da demanda, mas também dos próprios profissionais que tentam dar conta disso e, assim, a cobrança aparece de forma velada. Em princípio, na percepção da maioria dos entrevistados, não há no local, pressões relacionadas a questões políticas. No entanto, conforme os mesmos refletiam sobre o tema, percebiam que a interferência política por vezes também vem a dificultar o trabalho no CAPS II, principalmente com relação a questões mais administrativas. Isso parece ocorrer principalmente nas falas que relatam os momentos onde a equipe não está muito unida, podendo estar mais propensa a submissão, seja por pedidos de atendimentos, ou por troca de pessoal. Em geral os funcionários de nível superior parecem gozar de boa autonomia em seu trabalho, onde os mesmos têm liberdade de criar espaços terapêuticos, porém parece bem saliente o fato de essas possibilidades serem levadas e decididas na reunião da equipe. Já os técnicos de nível médio parecem não dispor da autonomia relatada até então. Segundo os dados das entrevistas eles aparentam se submeter a muitas coisas, mas por outro lado, também tem a liberdade de levar suas inquietações à reunião. Como aponta Ramminger, Palombini e Silva (2007), não é algo simples romper com um modelo hierarquizado das funções, onde mesmo nos serviços de Saúde Mental há ainda uma divisão social do trabalho. Foram levantadas nas entrevistas vivências dos profissionais no CAPS II que falam das possíveis ameaças de agressão recebidas de pacientes, ou por questões emocionais intensas, que levam os mesmos a se depararem com uma gama muito grande de conflitos. O trabalho dentro deste serviço é certamente muito complexo, e pressupõe uma grande rede de relações entre as pessoas, conforme essa relação se estende desde os saberes, poderes, afetos e desejos dos trabalhadores da Saúde Mental, onde é fundamental o desenvolvimento de tarefas em conjunto, sendo o todo maior que a soma das partes (Fortuna et al. citado por Filizola, Milioni & Pavarini, 2008) . Por ser um ambiente complexo, por vezes é exigido mais dos profissionais do que suas especialidades, além disso, o contato direto com o usuário pode expor tais profissionais a intenso sofrimento. Nos CAPS, os profissionais de saúde se deparam com uma gama de demandas que necessitam de trabalho interdisciplinar e multiprofissional, que são cotidianas, como o sofrimento psíquico intenso, além da agressividade por parte dos usuários. Tais situações podem vir a afastar o usuário do profissional, assim a relação de cuidado se daria a nível institucional, ao invés de uma relação de cuidado do tipo médico-paciente (Ballarin, Carvalho & Ferigato, 2009). Do Adoecimento ao Tratamento e Prevenção A partir das falas dos entrevistados, evidencia-se a crença relacionada ao fato de grande parte da equipe ser concursada, o que contribui para o seu posicionamento frente a questões políticas, como a promoção de igualdade de acesso e tratamento a todos que buscam o serviço. Outros fatores mencionados foram a união da equipe e o tempo de existência do serviço, o que promove o cumprimento dos “trâmites” de entrada para atendimento, mais uma vez evidenciando a percepção da existência de igualdade no acolhimento dos usuários. Com relação a este aspecto, aparece na fala de um entrevistado, que o fato da equipe ser concursada contribui para que se protejam da pressão política e de produtividade, se posicionando tecnicamente em relação aos atendimentos. Assim, pode-se evidenciar que há movimentos em busca de soluções para as questões que se apresentam, havendo menor pressão no local de trabalho, o que se relaciona diretamente a uma amenização do sofrimento dos trabalhadores (Dejours, 1992). Na Grécia antiga o cuidado estava diretamente relacionado ao cuidado de si, mas voltado ao coletivo, a partir da crença de que para bem governar, primeiro é preciso governar bem a si próprio (Ramminger et al., 2007). Assim verificou-se que alguns entrevistados trazem em suas respostas a preocupação em estar bem consigo mesmo para desempenhar um bom trabalho. Isso aparece através de falas que mencionam a importância dos trabalhadores buscarem tratamento psicológico para enfrentar as dificuldades no atendimento aos pacientes e evitar o seu adoecimento, já que trabalham em contato direto com o sofrimento do outro. 57 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 “tu precisa estar minimamente bem contigo para ouvir o outro. (...) tu vai querer entrar em contato com o sofrimento, e pra ti conseguir fazer isso de forma a auxiliar a contribuir com aquela pessoa, tu tem que ta minimamente bem contigo. (...) É essencial para tu não misturar os teus problemas, pra tu saber o limite do teu envolvimento com o paciente”(Jane). “a gente acaba se tratando pra que isso não perturbe demais. (...) eu acho bem importante que as pessoas da nossa área tenham seus tratamentos em algum momento da vida”(Clarissa). A existência desse reconhecimento de cuidado com a saúde por parte dos trabalhadores do serviço é positiva, na medida em que contribuem para a transformação do modo de trabalho, podendo inclusive conduzir o profissional a uma nova construção da identidade e, consequentemente, contribuir para a autorrealização no cuidado de si e do outro (Machado, citado por Silva & Costa, 2008). Apesar dos profissionais da saúde passarem a impressão de que cuidam de si mesmos, os trabalhadores sofrem um grande desgaste emocional (Fernandes et al., citado por Damas, Munari & Siqueira, 2004). Mesmo assim, o adoecimento apareceu na minoria das respostas dos entrevistados, e não diretamente relacionado com o trabalho. A maioria dos entrevistados cita pessoas conhecidas que adoeceram no trabalho com saúde mental, apesar de tomarem cuidado ao considerar que o trabalho pode ter contribuído. Também apareceu na pesquisa a percepção de que funcionários estagiários estariam mais propensos ao adoecimento, por falta de preparo e experiência. O adoecimento assim parece ser associado mais facilmente ao nível de experiência do profissional da saúde, sendo que quanto menos experiência profissional, maiores os riscos de adoecer. Nesse sentido, é importante a implantação de planos voltados ao desenvolvimento pessoal e profissional destes trabalhadores, devendo buscar o fortalecimento das relações interpessoais, e a prevenção/promoção em saúde física e mental dos mesmos. Quando questionados sobre a existência de políticas de cuidado com o trabalhador, a percepção dos entrevistados é a de que não há uma política clara, entendendo que há somente ações individuais e não voltadas para a prevenção. Os mesmos evidenciam dúvidas na definição de ações que poderiam ser adotadas para promover o cuidado dos trabalhadores e sentem falta de um olhar voltado para esta questão. Para alguns, cuidar do cuidador constitui-se em proporcionar cursos, promover condições dignas de trabalho e promoção de espaços para discussão. É evidente a expectativa de cuidado, sendo citada a supervisão como uma forma de cuidado com os trabalhadores e com o serviço, auxiliando no questionamento das práticas adotadas no local, a partir de um olhar externo, ou seja, um espaço para discussão. “Não existe uma política clara. Isso é uma coisa que agente sonha que a coordenação municipal consiga construir” (Marie). “(...) é mais ou menos assim, cada um que faça por si” (Clarissa). “a gente fala tanto em políticas do cuidador, tanto na necessidade disso (...) mas não existe não, assim uma coisa que seja determinada” (Anabella). “pra mim fica muito abstrato o que é cuidar do cuidador né? Afinal de contas o que é cuidar o que é possível ser feito nesses espaços que possam ser espaços também de cuidado de quem cuida?” (Jane). Analisando esta expectativa, pode-se entender que estes espaços para discussão de fato contribuem para o cuidado dos trabalhadores, à medida que promovem a reflexão sobre as suas práticas e experiências. Porém não se entende como suficiente somente investir em capacitação e formação. O cuidado é um conceito complexo, que está ligado a história de sobrevivência da humanidade e provavelmente se constitui como a mais antiga prática da história. O significado de cuidado envolve dois sentidos que se inter-relacionam, e que dizem respeito a uma atitude de atenção e zelo voltada ao outro. Há também preocupação e inquietação relacionadas a um laço afetivo criado a partir deste cuidado (Boff, citado por Damas et al., 2004). De acordo com Ballarin et al. (2009), a partir da Reforma Psiquiátrica as transformações das práticas de cuidado só são possíveis com a valorização de novos saberes, e pelo reconhecimento do saber do outro, pois tanto usuário quanto profissional estão “em cena”. Já de acordo com a perspectiva ética, o cuidado não está relacionado apenas a uma atitude ou ato, mas a uma reflexão, onde a prática profissional pressupõe o respeito pela natureza humana, um a priori existencial. Ainda para o autor, o cuidado deve possibilitar a reorganização do processo de trabalho, com a implicação dos profissionais de saúde mental, que possibilite a escuta, a atenção e o respeito às pessoas. Deve também pressupor o reconhecimento e a aceitação de si mesmo, no sentido de incrementar a consciência do sujeito com relação aos seus problemas, e a partir daí desmistificá-los, visando um resgate da cidadania, procurando voltar à totalidade do ser humano. Na dimensão política, o cuidado relaciona-se a autonomia, a garantir direitos de cidadania, levando em consideração o contexto histórico onde são geradas as relações de ajuda- 58 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 poder. Ou seja, conhecer para cuidar melhor, e cuidar para emancipar, buscando o reconhecimento da pessoa humana e suas implicações dentro desse contexto, visando à reconstrução da autonomia e o resgate da cidadania. Portanto, mesmo atitudes já citadas como a implantação de planos voltados ao desenvolvimento pessoal e profissional, são de grande importância e constituem-se em atitudes de cuidado. Nestes, é deveras importante buscar o fortalecimento das relações interpessoais, e a prevenção/promoção em saúde física e mental dos profissionais (Fernandes et al., citado por Damas et al., 2004). O foco do cuidado com o cuidador, além de ser um assunto muito recente (Ramminger, 2006) apresenta certas questões que parecem bem problemáticas, como o fato de os atendimentos dos trabalhadores da área da saúde, quando adoecem, se dar no próprio serviço. “Acontece, colegas da prefeitura acontece, agora, a gente ahn, vinha um tempo atrás falando sobre isso, e dizendo, e as vezes se negando atender, porque achava que não era isso, que não era o melhor para as pessoas e tal”(Lina). Apesar da maioria dos profissionais entrevistados mencionarem gostar do que fazem, aparece nas falas, a percepção de a carga horária excessiva poder contribuir para o adoecimento dos trabalhadores. “Se tu viver 24 horas o teu trabalho tu acaba virando o teu trabalho, e ai com o que tu lida? Com doenças, sofrimento. (...) Uma das coisas é esta questão de tu ter assim alternativas né, ter lazer, ter férias, te dar folga, por isso eu acho que quem ta mais com carga horária tem tendências a adoecer um pouco mais” (Marie). intrínsecas atreladas a essa nova forma de tratamento. Corroborando com as falas de que “não vamos dar conta da Saúde Mental do município” ou, da necessidade para que “o paciente possa circular e não pensar que tem que se tratar só no CAPS”, o Ministério da Saúde pontua a necessidade de articulação de um trabalho em rede. Este é inerente à proposta da reforma antimanicomial, sendo fundamental para sua consolidação pois, somente um serviço ou equipamento, não conseguirá dar conta da demanda, nem garantirá resolutividade, promoção da autonomia e da cidadania das pessoas com transtornos mentais (Brasil, 2005). Assim, com o aumento da demanda é imprescindível a ampliação da rede de atendimento à saúde mental, como foco de pautas, de conversações entre os diferentes dispositivos de atenção à saúde mental no Brasil. Em especial no CAPS II de Santa Cruz do Sul, esse trabalho apesar de ser reconhecido como de suma importância, começou a ser desenvolvido há pouco mais de dez anos. Para a formação e sustento de uma rede é necessária permanente articulação entre instituições, associações, cooperativas e demais espaços que tendem a ser habitados, consolidando-se assim como comunitária. Neste sentido o território passa a ser entendido não apenas como uma área geográfica, mas de pessoas, instituições, redes e cenários da comunidade (Brasil, 2005). Em síntese, a rede precisa acolher e atender também essa demanda, e entender “(...) que não é só CAPS reforma, CAPS é só um dispositivo. Acho que a gente tem que sair do pensamento que reforma psiquiátrica é CAPS para poder trabalhar mais dentro de outros conceitos também, por exemplo, em Santa Cruz do Sul a gente Nesse sentido, uma reflexão sobre o trabalho, bem como, vem conseguindo hoje, juntar a atenção básica pra poder ampliar, as vivências no mesmo são fundamentais para a construção de se não a gente volta a ter umas novas institucionalizações que são um serviço que pressupõe movimento e participação de diversos dentro de um serviço especializado, né”(Anabella). atores. Os CAPS como dispositivos não são os responsáveis Reforma Psiquiátrica únicos pelo atendimento e organização da rede de atenção às O processo da Reforma Psiquiátrica avança lapidado por pessoas com transtornos mentais no município. Eles seriam os desafios, impasses, conflitos e tensões. Assim, pode-se falar que articuladores estratégicos, o cerne de uma nova clínica produtora ele trouxe além das exigências e das “novas” formas de lidar com de autonomia, que convida o usuário à responsabilização e ao a loucura, um contexto real diferenciado do preconizado por protagonismo em toda a trajetória do seu tratamento (Brasil, suas propostas (Ramminger, 2006). 2005). Nesta pesquisa ficaram aparente diferentes vivências Conforme Rabelo e Torres (2005), as palavras que norteiam relacionadas à Reforma Psiquiátrica, principalmente pautadas as práticas da reforma psiquiátrica são a cidadania, a reinserção na importância da sua implantação e conseqüentemente, na e compromisso técnico-político, o que garante e aponta para mudança da forma de atendimento, além das dificuldades vantagens de se “tratar a loucura”em CAPS. Dentre estas práticas, 59 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 ressalta-se as estratégias terapêuticas que são repensadas semanalmente nas reuniões de equipe, como ter um ambiente acolhedor e promovedor de saúde, formular planos individuais terapêuticos a cada usuário, oferecer atividades terapêuticas e de geração de renda, prestar orientação e acompanhamento de medicação, visitas domiciliares, atenção e atendimento a familiares de usuários, e a maior delas, prevenir e evitar o confinamento dos doentes mentais em hospitais psiquiátricos. Os CAPS não são serviços intermediários entre a hospitalização e os ambulatórios, são centros de referência por excelência, é o dispositivo principal, não restrito a uma clientela fixa (psicóticos crônicos que necessitam de cuidados intensivos, passando a incluir ações de cuidado semi-intensivo e não intensivo). Os CAPS, portanto, atendem pessoas portadoras de graves e crônicos transtornos mentais, e auxiliam a rede a acolher a demanda de atendimentos tidos como mais leves, para assim não centralizar o atendimento, nem transformar o local, que seria um serviço de alta complexidade, ou seja, especializado, num grande ambulatório (Ramminger, 2006). No CAPS II de Santa Cruz do Sul, segundo o relato dos entrevistados, há uma grande reflexão referente à questão do atendimento oferecido. Para a maioria há uma preocupação com o atendimento aos usuários deste serviço, que estaria funcionando como um grande ambulatório, “(...) acho que o Caps ta virando ambulatório. E aí a gente passa a não investir na questão da ressocialização, essa reabilitação. Essa sim eu acho que é uma das coisas que cabe mais pra nossa realidade aqui em Santa Cruz do Sul, damos conta de um ambulatório acho que muito bem, Mas ainda temos que pensar que se a gente seguir dando conta de um ambulatório, o Caps vai ficando um pouquinho mais escondido” (Anabella). Essa preocupação de repensar e reformular as práticas, a rotina do local e a dos trabalhadores é referida por Rabelo e Torres (2005) como fundamentais. Ramminger (2006) menciona que a Reforma Psiquiátrica evidencia esta importância, principalmente quando argumenta que o serviço pode voltar a funcionar em suas práticas, com alguns resquícios da antiga forma de tratamento e, refere que as propostas da reforma psiquiátrica não devem ser reduzidas à mera desospitalização, pois, sua luta é pela desinstitucionalização, ou seja, por outras formas de se relacionar com a “loucura”. Na construção de novas práticas, Nassere (2007) salienta que é de responsabilidade dos profissionais a sua organização, atentando para que se mantenham alinhadas às premissas da Reforma Psiquiátrica. O trabalhador de saúde mental hoje se constituiria nessa ambivalência entre o continuar exercendo suas atividades diariamente, ou parar e repensar suas ações e da instituição onde trabalha. Seria habitar um espaço tenso, atravessado por diferentes formações discursivas, até chegar a um entendimento de que não basta apenas o seu conhecimento técnico-científico, mas também envolvimento político e afetivo. Quando questionados sobre como era lidar diária e diretamente com as premissas da Reforma Psiquiátrica, as experiências variaram entre respostas que apontaram para uma proposta importante, humanizadora e curiosa, mas também difícil e desafiadora, pois estaria constantemente sendo ameaçada, além de referirem que há ambivalências no dia a dia. “uma série de coisas dentro da própria reforma que a gente faz questionamentos e reflete no nosso dia a dia. Isso faz parte das discussões mesmo, de construções, de mudanças” (Anabella). Esses movimentos ambivalentes dentro da própria reforma, afetam e induzem os trabalhadores a uma militância: “A gente precisa lutar e precisa marcar um espaço, e precisa lidar com o preconceito também, que ainda é grande” (Jane). “é uma batalha, a gente às vezes fica com aquela sensação de que aquilo que a gente conquistou, ta conquistado e que ninguém mexe, e a gente vê que seguidamente agora vem esses questionamentos de falta de leito psiquiátrico, que é culpa da reforma, então a gente se vê assim tendo que repensar algumas conquistas que a gente tinha como certas, e a gente tem que ta sempre batalhando por elas” (Clarissa). Ramminger (2007, p.1) refere que o trabalho em saúde mental constrói-se, hoje, com base em diferentes formações discursivas, que vão desde a crença de que, cuidar é uma forma de caridade (discurso religioso), passando pela afirmação de que é a ciência que pode falar do tratamento da loucura (discurso científico), até o entendimento de que não basta apenas conhecimento técnico-científico, mas também implicação política e afetiva com a construção de um outro modo de se relacionar com a loucura (discurso da reforma psiquiátrica). Para Rabelo e Torres (2005), isso caracterizaria, novamente, a separação entre o discurso oficial e as práticas concretas desenvolvidas nos serviços de atenção à saúde mental, e seria outro indício dessa imprecisão vivenciada diariamente pelo profissional da saúde mental. “(...) tem muita coisa assim que precisa ser reafirmada, gente se sente constantemente ameaçado, tem um grupo grande que 60 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 por questões econômicas vem lutando contra a lei para poder abrir, achar uma brecha, para poder abrir hospitais psiquiátricos, para ganhar financeiramente com isso,(...) então é essa discussão que a gente faz, de que a sociedade é conduzida a pensar que essa lei tá errada, que essa lei prejudica, e é conduzida a pensar que só trata internando né, que tem toda uma mídia por trás que é comprada também, e que também ta favorecendo essa pessoas que querem ganhar em cima da Saúde Mental que da muito dinheiro, já se sabe disso, a custos baixíssimos, né, dando um serviço muito precário e ganhando muito em cima dessa pessoas né”(Jane). Em Santa Cruz do Sul, foi a partir de 1996 que ocorreram as primeiras reivindicações acerca das mudanças do cenário manicomial, graças às criticas dos novos profissionais da saúde aprovados em concurso público municipal que denunciaram a precariedade dos serviços de Saúde Mental prestados no município, e que eram realizados até então pela “Clínica Vida Nova”. Estes profissionais se reuniram para discutir e refletir sobre as novas formas de políticas de Saúde Mental, calcadas nas premissas da Reforma Psiquiátrica. Além desta já vir ocorrendo em diversas regiões do Brasil, começou a se evidenciar questões como o abandono dos pacientes pelos familiares, soberania da classe médica, gastos públicos exorbitantes com os tratamentos, devido às constantes reinternações que denunciavam a inadequação dos mesmos, além da exclusão social e, ausência de direitos dos pacientes mentais. No entanto, esse processo de desinstitucionalização não se daria de forma fácil, pois não ia apenas contra o saber da ciência médica, mas contra uma forma de perceber a “loucura” pelo senso comum. Contra todas as resistências, em 17 de março de 1997 foi inaugurado o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II de Santa Cruz do Sul, e assim mesmo a Clinica Vida Nova continuou funcionando, vindo a fechar somente em 1999. O relato dos participantes indica que a região do Vale do Rio Pardo estaria bem ofertada de serviços de CAPS. E o CAPS II de Santa Cruz do Sul, estaria garantindo dignidade para os pacientes, acreditando que o serviço daria conta das premissas que a Reforma Psiquiátrica preconiza. “acho que teve muitas conquistas, os CAPS são um exemplo disso como serviços substitutivos com aquela ideia assim de que tem que internar, tem que segregar, ficar isolado né, não que não necessite internar (...) a gente precisa ter internações, mas a grande parte da nossas internações são aqui no Hospital Santa Cruz, então não precisa ir pra um hospital psiquiátrico, alguns casos até precisa, mas são bem menores (...) não vamos dizer que a internação não é válida, não é necessária, ela é, mas cada vez menos e é isso que a gente tenta fazer aqui” (Jane). Segundo Silva (2007), os CAPS possuem um modelo organizacional que orienta o seu funcionamento, porém cada um tem suas próprias características relacionadas à sua história e ao contexto no qual o mesmo está inserido. No entanto a autora destaca que os CAPS não estão baseados em modelos “prontos”, ou seja, as práticas não estão cristalizadas, pois se trata de um serviço em construção, logo é importante que haja espaço para discussão. A questão do trabalho em equipe e suas oscilações aparecem tanto como um aspecto positivo, no sentido da união e fortalecimentos em busca de uma visão diferenciada da saúde mental, como negativo, quando não transcende relações hierarquizadas e cristalizadas, sendo que por vezes chegam a ser multi, mas não interdisciplinares. Com relação à carga horária ao mesmo tempo em que há satisfação, fica claro que esta pode ser cansativa para os profissionais, sobretudo, para aqueles de nível médio de escolaridade. Infelizmente, questões referentes ao serviço são implementadas sem consentimento ou conhecimento dos profissionais que ali trabalham, pois são decisões políticas a mercê das trocas de gestão. Entende-se que a autonomia está intrinsecamente atrelada a decisões de toda a equipe, que pode por um lado enriquecer as relações, mas por outro, tende a burocratizar projetos e ações tanto internas como externas. Considerações Finais A partir desta pesquisa pode-se verificar que os trabalhadores mencionam dificuldades relacionadas à crescente demanda de atendimento, que acaba transformando o local em um grande ambulatório. Tal situação é agravada pelo preconceito que ainda existe por parte da sociedade com o portador de sofrimento psíquico. Nota-se que no CAPS II em estudo, o cuidado com o cuidador é um tema que não está muito claro para os profissionais, em parte devido à complexidade referente ao cuidado na área da saúde. Evidencia-se em suas práticas discursivas uma ênfase no cuidado do outro, à medida que o cuidado de si se justifica apenas em prol deste outro, vindo, portanto, a acrescentar na qualidade do serviço prestado. Enfim, este é um tema recente, porém de fundamental importância. É a partir das vivências dos atores que compõem a Saúde Mental que ocorre o movimento responsável por manter viva a Reforma Psiquiátrica. Assim, fica perceptível na fala dos 61 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 53-62 participantes a produção de sentidos, conforme discorriam sobre Ramminger, T. (2006). Trabalhadores de saúde mental: reforma psiquiátrica, saúde do trabalhador e modos de subjetivação nos serviços de saúde seu trabalho e suas vivências, o que contribui significativamente mental. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. para a problematização dos pressupostos deste movimento. Referências Abreu, K. L., Stoll, I., Ramos, L. S., Baumgardt, R. Aveline, & Kristensen, C. H. (2002). Estresse ocupacional e Síndrome de Burnout no exercício profissional da psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 22 (2), 22-29. Albarnoz, S. (2000). O que é Trabalho. São Paulo: Braziliense. 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Recebido em março/2013 Revisado em junho/2013 Aceito em junho/2013 62 R E V I S ÃO D A L I T E R AT U R A Revisão literária sobre a relação de resiliência com conceitos psicanalíticos Literature review on the relationship of resilience with psychoanalytic concepts Mariana Steiger Ungarettia Resumo: O presente artigo pretende relacionar alguns conceitos que originalmente provém de abordagens aparentemente distintas, todavia, ao termos um entendimento do psiquismo humano, percebemos as semelhanças entre estes conceitos. Ao realizarestudos sobreresiliência (termo da física que se baseia na capacidade de um objeto recuperar-se, de se moldar novamente depois de ter sido comprimido, expandido ou dobrado, voltando ao seu estado original), percebe-se a possibilidade de relacionar essaideiaa abordagens psicanalíticas. Através de teorias trazidas por Freud e seus contemporâneos, este trabalho enfatiza a importância da relação do sujeito incipiente com seu objeto primordial para a formação de recursos psíquicos que proporcionam o desenvolvimento da capacidade de resiliência. Como auxilio para a construção desta revisão teórica, estabelecerei um enfoque em situações de abuso sexual por ser um trauma recorrente da atualidade a fim de tornar inteligíveis os conceitos abordados. Palavras-chave: Resiliência; Recurso Psíquico; Relações de Objeto. Abstract: This article intend to relate some concepts that originally comes from apparently different approaches, howeverwe realize the similarities between them. When we start the studies of the concept of resilience (a term from physics that is based on ability to recover an object, to re-shape after being compressed, expanded or folded back to its original state), we see the possibility to relate this concept with psychoanalytic approaches. Through the concepts brought by Freud and his contemporaries, this paper focuses the importance of the relationship between individuals and their primary object to the development of the psychic resources that makes possible the development of resilience. As an aid to the construction of this theoretical review, established a focus on cases of sexual abuse to be a recurring trauma of today in an attempt to make intelligible the concepts covered. Key words: Resilience, Psychic Resources, Object Relationship. a Psicóloga, psicanalista em formação pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica * E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 63 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69 Ao buscar conceitos que sustentassem o estudo sobre resiliência, foram encontrados os autores Dell’Aglio, Koller e Yunes (2006) que abordam, em seu livro “Resiliência e Psicologia Positiva”, estudos longitudinais realizados por Werner e Smith, com início nos anos 50, como exemplo de uma pesquisa direcionada para asconseqüências dos efeitos cumulativos da pobreza, do estresse perinatal e dos cuidados familiares deficientes no desenvolvimento da criança. Estes estudiosos perceberam que nem todas as crianças que passaram por esses fatores de risco apresentavam dificuldade de aprendizado ou comportamento. Embora não tivessem como objetivo primordial estudar a resiliência, já nesse trabalho podese observar a existência dessas características em comum nas crianças estudadas, despertando, assim, uma maior curiosidade acerca deste assunto. Para Kotliarenco, citado por Junqueira e Deslandes (2003), desde os fins dos anos 70 se discute que algumas crianças criadas por pais alcoólatras não apresentavam ‘carências’ biológicas ou psicossociais, mas sim uma ‘adequada’ qualidade de vida. Dos anos 80 em diante há um interesse crescente por conhecer essa habilidade/capacidade de enfrentar de forma positiva fatores estressores. Segundo Slap (2001), a evolução da pesquisa sobre resiliência deu-se, entre outros motivos, com o intuito de explicar aqueles adolescentes que, contra todas as expectativas, evitavam comportamentos prejudiciais e vivenciavam bons resultados de saúde. Estruturas sociais em mudança, migração do campo para cidade e rupturas familiares eram fatores associados a uma lista de ‘novas morbidades sociais’, que incluíam lesões corporais, violência, abuso de substâncias químicas, doenças sexualmente transmissíveis e gestações não planejadas. No artigo de Slap (2001), é citado que, em uma conferência realizada anteriormente, Robert Blum sugere uma abordagem de problemas para a saúde do adolescente enfatizando que a presença da autoestima, da união familiar que gera proteção de modo universal e do aumento dos recursos sociais, permitem a melhoria das suas capacidades de lidar com situações adversas futuras. Neste mesmo encontro, Bengt Lingstrom apresentou um conceito de resiliência baseado em fatores individuais,tanto características biológicas (inatas do ser humano), como as psicológicas e sociais, contexto ambiental, acontecimentos ao longo da vida e fatores de proteção. Esses componentes, segundo Lingstrom, citado por Slap (2001), se unem para formar um banco de recursos que pode proteger o adolescente que possui capacidade de usá-lo. Desta forma, a resiliência pode ser vista como o resultado da interação entre aspectos individuais, contexto social, quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida e os chamados fatores de proteção encontrados na família e no meio em que vive. Segundo Junqueira e Deslandes (2003), cabe notar que embora o conceito de resiliência seja uma novidade para a saúde publica, o campo da psicologia busca a elaboração simbólica diante do sofrimento humano. Para eles, a resiliência não é um processo estanque nem linear, visto que um indivíduo pode se apresentar como resiliente em determinada situação, mas posteriormente não o ser frente à outra. A partir dessas constatações, é possível discutir se, conceitualmente, pode-se estabelecer uma relação entre o entendimento da capacidade de resiliência e conceitos psicanalíticos, que, mesmo aparentemente diferentes, podem ter na psicanálise uma teorização de como o ser humano tornase capaz de desenvolver essa capacidade perante situações traumáticas e acontecimentos inesperados. Diante de traumas e demais situações adversas se observam, na psicanálise, implicações fundamentais que demonstram como o sujeito adquiriu recursos para lidar com os fatos. É trazida, principalmente, a importância do Outro nas funções inaugurais das primeiras marcas psíquicas da criança. Desta forma, para Moraes e Macedo (2011), é na qualidade dos atendimentos às necessidades da criança via ação especifica proporcionada pelo semelhante que está o alicerce para fundar o sujeito como ‘sujeito psíquico’. Nesse sentido, fica atribuído ao que está no início da vida do bebê, a condição de ponto de partida, de base de desenvolvimento. A partir de 1910, Freud passa a introduzir, em sua teorização, o conceito de narcisismo,bem como diversos quadros psicopatológicos como as psicoses e as neuroses narcísicas. Nesses quadros psicopatológicos, o trauma começa a ocupar um local de destaque, passando a ser olhado com mais atenção. Desta forma, se pode pensar na relação entre trauma, objetos e simbolização. Trauma e resiliência Segundo Freud, em sua obra “Além do princípio do prazer” (1920), são denominadas traumáticas as excitações externas que rompem a camada protetora do ego contra estímulos. Esse acontecimento pode provocar grave perturbação na economia energética do organismo e acionar todos os mecanismos de defesa, o principio do prazer é colocado fora de ação. Assim, Freud conclui que só resta ao organismo tentar lidar com esse excesso de estímulos capturando e enlaçando-o psiquicamente para poder processá-lo. Percebe-se, então, a existência da 64 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69 capacidade do ser humano de processar esse excesso. Na falta de recursos psíquicos mais complexos, a partir de uma matriz forjada pelo excesso, o resultado final dá-se em ato, descrevendo a dinâmica psíquica do traumático. Para Moraes e Macedo (2011), a predominância de intensidades em um psiquismo precário que não encontra na simbolização uma possibilidade de expressão, o ato aparecerá como ‘válvula de escape’. Outra questão na qual se percebe que, freqüentemente, a conseqüência acaba sendo no ato diante da falta de recursos, seria no caso do abuso sexual. Ao pensarmos o abuso como um trauma, salienta-se a importância de reconhecer que este fato pode trazer intensas conseqüências para o futuro do sujeito abusado, ampliando, assim, o entendimento de como o sujeito lida com a satisfação e a insatisfação das pulsões diante do trauma. Segundo Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005), para que se dê a satisfação da pulsão e a representação desta, é preciso que existam objetos primordiais, isto é, o autoerotismo e o narcisismo surgirão da satisfação da pulsão e do objeto auto-erótico. É necessário ter havido um objeto real, a mãe, que através da sua função de para-exitações, ensina ao bebê o caminho da simbolização. Assim, passa a existir a possibilidade de recalcamento, não entrando em cena a compulsão à repetição. Portanto, a existência do objeto materno que proporciona a ação especifica, é fundamental. Semo qual, o sujeito fica submetido aos objetos que existem concretamente como forma de descarga pulsional, o que caracteriza o trauma. Partindo do princípio que a capacidade de resiliência se desenvolve desde os primeiros tempos do bebê, antes mesmo da ocorrência de situações possivelmente traumáticas, Laplanche e Pontalis (2001) definem trauma como “um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica”(p. 522). Os autores conceituam,então, o trauma como excitações excessivas perante a capacidade do sujeito de elaborar psiquicamente essas excitações. O tema do trauma é abordado por Freud inicialmente ligado à realidade do vivido e posteriormente considerando a existência da fantasia, proporcionando a discriminação entre realidade externa e interna. Moraes e Macedo (2011) entendem o trauma como experiência de excesso, que escapa à seqüência de tradução interna do ocorrido, gerando ausência representacional do fato no psiquismo. Desta forma, trata-se de resgatar a vivência de satisfação como uma experiência primeira de enfrentamento entre intensidades e recursos de metabolização. Percebe-se, assim, uma singular articulação dessas intensidades na vida do sujeito. Freud menciona em “Além do princípio do prazer” (1920), mais um modo especifico de lidar com as excitações internas que provocam um aumento excessivo de desprazer. É abordada, neste momento, uma tendência a lidar com essas excitações internas como se elas viessem do exterior, para poder utilizar contra elas os mesmos mecanismos de defesa empregados pela camada protetora externa contra os estímulos externos, sendo esta a origem da projeção. Na mesma obra, Freud traz a importância do conceito de susto na teoria do choque, pois caracteriza o susto como ausência de prontidão para o medo. Tal prontidão, portanto, implicaria a existência de um sobreinvestimento de camadas de energia depositado nos sistemas que receberão os afluxos de estímulos antes dos outros. Freud supõe, enfim, que, para um grande número de traumas, o fator decisivo para a resolução talvez resida no fato de alguns sistemas não estarem preparados para enfrentar o medo, ao passo que outros, devido ao estoque de sobreinvestimento de cargas de energia, já estão preparados. Relações de Objeto As experiências de prazer com o objeto capaz de realizar a ação específica modelam o psiquismo, segundo Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005). Todavia, observa-se outra vertente da capacidade de simbolização realizada pelo objeto materno: o desenvolvimento psíquico relaciona-se também com a perda da relação inicial com o objeto primordial, tendo esse objeto uma função tanto por sua presença como por sua ausência em um momento posterior. A perda da relação inicial com o objeto materno é essencial à simbolização, assim, se instalando, na questão da ausência, a criatividade que possibilita a simbolização. Entretanto, acontece que nem sempre a ausência do objeto leva à simbolização, pois a falta do objeto pode ter vários destinos e a elaboração dessa falta pode ser de diferentes modos. Portanto, frente ao traumatismo inicial, o abusador é o real que lhe resta, a relação abusador/abusado se da na base da compulsão à repetição, do sadismo e do masoquismo respectivamente (Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005). Assim,Junqueira e Deslandes (2003, p. 6), dizem que, “Se a resiliência pode ser desenvolvida através de relações de confiança e apoio, o foco de atenção na saúde das crianças e adolescentes desloca-se para o cuidar, isto é, para o fato de elas serem cuidadas e acreditadas como sujeito em desenvolvimento”. Além do abuso sexual, existem outras possibilidades 65 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69 de maus tratos, sendo os mais conhecidos: físicos, sexuais, psicológicos e a negligência. Cyrulnik (1999) e Steinhauer (2001), citado por Junqueira e Deslandes (2003), ponderam que a possibilidade de re-significação do trauma sofrido em distintas fases da vida (na própria infância, na adolescência e mesmo na idade adulta) seria uma importante contribuição do conceito de resiliência para tal problemática dos maus tratos. A resiliência, portanto, deseja representar um novo olhar, uma re-significação do problema, mas que não o elimine, pois constitui parte da historia do sujeito. Segundo Junqueira e Deslandes (2003), o fato de a pessoa ter passado por situações traumáticas como o abuso, não significa que ela vai tender a ser agressor, mas pode desenvolver seqüelas outras tais como: tentativas de suicídio e abuso de álcool e drogas, como é abordado muitas vezes em algumas leituras deterministas. No entanto, a resiliência rompe com uma noção através da qual o agredido vira agressor, isto é, onde sujeito se vê aprisionado a um ciclo sem saída. Na questão do abuso sexual intrafamiliar, talvez seja mais polêmica a aplicação do conceito de resiliência, pois um dos tópicos centrais seria o estabelecimento de uma relação de confiança da criança com um adulto de referência. Nessa circunstância, o adulto que deveria ocupar o lugar de suporte da criança viola um dos tabus mais graves de nossa sociedade, o incesto. A criança busca então a compreensão de outro adulto suporte, de forma a poder elaborar o que passou. Porém esse outro adulto (ou mesmo o agressor), não admitindo a verdade das palavras da criança, nega, desmentindo-a. O desmentido incide sobre o desamparo desta criança, levando-a a uma cisão onde ela se sente inocente e culpada, negando qualquer chance de a criança dar sentido psíquico ao que passou (Junqueira & Deslandes, 2003). No caso do abuso pode se observar que, em geral, existe uma história prévia do sujeito com os objetos antes da cena de abuso sexual, uma historia anterior traumática de abandono, gerando, assim, uma dificuldade do sujeito de simbolizar o fato ocorrido. Portanto, poderíamos considerar a situação de abuso como traumatismo secundário, um segundo tempo do traumático sucedido por traumatismos precoces, bem como citado no livro de Moraes e Macedo (2011), ao abordarem as implicações traumáticas da indiferença vivida com o objeto primordial. Portanto, as autoras concluem que a leitura metapsicologica do trauma implica evidenciar a importância do acontecimento nas experiências primordiais do sujeito com o objeto cuidador. A partir desses propostos, Moraes e Macedo (2011) sublinham a função do outro no controle do campo de intensidades, tanto na realização de uma função apaziguadora, como na falta dessa função, deixando o psiquismo incipiente, desprotegido de excessos. Assim, aborda-se a importância da qualidade dessa tramitação de energia, que geram recursos para investimentos objetais posteriores. Baseando-se em aportes freudianos de “Projeto para uma psicologia científica”, Moraes e Macedo (2011) apontam a importância do encontro com o semelhante no cenário do desamparo como condição de inauguração do psiquismo incipiente, resultando em capacidades de estruturação do si mesmo. Assim, o desenvolvimento de tal raciocínio gera uma reflexão no que diz respeito à articulação dessas intensidades na vida do ser humano. As autoras concluem, então, que é a condição e a ajuda alheia que permitem à criança experienciar uma estabilidade no atendimento de suas necessidades e instaurar vias colaterais que inaugurem certa autonomia em relação à ausência do objeto. Desta forma, enfatizam o valor das vivências primordiais do encontro com o outro e seus efeitos a posteriori. Ao abordar todas essas questões, os autores referidos acima, trazem um importante conceito, que demonstra de maneira clara, a forma com que o semelhante influencia na formação do psiquismo desamparado. Questões trazidas nos textos sobre Narcisismo demonstram a relevância do movimento identificatório no processo de construção do si mesmo. Nesse cenário, o conceito de narcisismo retoma a importância da qualidade das relações existentes entre o eu e os objetos. Propõese, assim, que aquilo que é oferecido pelo objeto externo terá papel decisivo na configuração da imagem de si. Nesse sentido, é trazido que,para que haja autoconservação, esse eu tem que ter sido narcisizado. Quando o narcisismo mostra a possibilidade de investimento sexual no eu, evidencia a qualidade do que é oferecido de fora ao aparelho psíquico incipiente. Assim, via internalização dos enunciados identificatórios parentais, a história da construção do sujeito conta o que passou a fazer parte de si mesmo. Moraes e Macedo (2011) pontuam que a condição para formação da pessoa como sujeito psíquico se refere ao fato de que esta seja cuidada com uma qualidade libidinal prazerosa, de maneira que o outro consiga diferenciar-se da criança. Ter sido visto como ‘um outro’, para o outro primordial, permite com que o ‘eu’ possa investir o outro no campo da alteridade. Para Macedo (2005), para que ocorra essa etapa do desenvolvimento libidinal, chamada narcisismo, é necessário que o eu, uma nova ação psíquica, some-se ao auto-erotismo. No momento em que o eu se diferencia do não-eu, isto é, tem uma imagem unificada de si 66 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69 mesmo, toma forma o narcisismo. Neste momento, o ego toma a si como objeto de amor, isto é, a libido encontra um objeto de investimento. Assim, é fundamental para a constituição do eu um investimento parental, caracterizada por uma sensação ilusória do bebê de plenitude. Observa-se no texto de Freud “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914), que este enfatiza a influência da atitude dos pais em relação aos filhos, fazendo parte do momento de narcisização do sujeito. Aborda em sua obra o fato de essa atitude ser uma revivência e reprodução de seu próprio narcisismo: assim, os pais se encontram na situação de atribuir todas as perfeições ao filho. Além disso, para Freud, esses pais sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios há muito por eles próprios abandonados. Neste momento de sua obra, caracteriza essa etapa como ‘sua majestade,o bebê’, é trazido que o amor dos pais nada mais é senão seu narcisismo renascido, que transformado em amor objetal, revela sua natureza anterior. Ainda sobre esse aspecto, Macedo (2005) enfatiza a importância de Freud trazer em sua obra a função narcisista que as relações de objeto têm, definindo como função que o objeto pode ter para o eu como sustentação da autoestima e de sua própria identidade. Percebe-se, portanto, a influência do período chamado narcisismo para a formação do sujeito, viabilizando a criação de recursos psíquicos conforme essa fase da vida que se desenvolve. Freud refere em sua obra “Luto e Melancolia” (1915/1917), uma base narcísica encontrada na escolha objetal. Compara os sujeitos que, diante de uma perda real, realizam um luto normal com aqueles que não investiam sua libido nos objetos perante as perdas e, desta forma, substituíam o investimento objetal por uma identificação, chamando melancolia. Assinala, portanto, que enquanto na vivência de um luto normal o sujeito trabalhará psiquicamente para, aos poucos, desligar-se do objeto perdido, reinvestindo sua libido em outros, na melancolia o sujeito começa a culpar-se pela perda ocorrida. No livro “Vivência de indiferença” de Moraes e Macedo (2011), as autoras fazem uma análise do mito de Narciso trazendo questões que ilustram a teoria do narcisismo. Segundo as mesmas, Narciso não é desejado pelos pais, pois está ausente no mito todo o processo descrito por Freud em relação ao fato de o filho representar para os pais um objeto de investimento amoroso. Assim, o outro, ou seja, os pais como objetos primordiais, por sua pobreza afetiva, condenam o eu incipiente a uma história de repetição em suas relações externas, expressando-se com ódio e rancor. As pessoas que construíram um eu resiliente, segundo conceitos abordados por Taralli e Thomé (2009), contaram com a presença de figuras significativas e estabeleceram vínculos, seja de apoio ou de admiração. Essas experiências de apego e confiança permitiram com que houvesse um desenvolvimento da autoestima e autoconfiança. Ao discutir tais questões por um aporte relacional, diferentemente do aporte pulsional abordado até então, percebemos contribuições significativas na teoria de Winnicott. O autor traz a importância do ambiente em que a criança se encontra para a constituição dos recursos psíquicos de seu psiquismo, contribuindo, então, para nossa idéia de entender arelação dos recursos psíquicos desenvolvidos desde a primeira infância com a capacidade de resiliência do ser humano. Para Winnicott (1982), o ego seria a parte da personalidade que tende a se integrar a uma unidade, desde que sob condições favoráveis. Neste caso, a mãe suficientemente boa é aquela que é capaz de satisfazer as necessidades da criança tão bem que na saída da matriz do relacionamento mãe e filho é capaz de ter uma breve experiência de onipotência. Desta forma, o lactante começa a acreditar na realidade externa que surge e se comporta como por mágica; a mãe age de modo a não colidir com a onipotência do bebê. Quando a mãe não é suficientemente boa, a criança não é capaz de começar a maturação do ego, ou então ao fazê-lo o desenvolvimento do ego ocorre necessariamente distorcido em certos aspectos vitalmente importantes. Uma satisfação alimentar, por exemplo, pode ser uma sedução e pode ser traumática se chega a criança sem apoio do funcionamento do ego (Winnicott, 1982). Quando o autor faz referência à saúde psíquica, trás que esta deve ser considerada em termos de crescimento emocional, consistindo assim em uma questão de maturidade que envolve gradualmente o ser humano em uma relação de responsabilidade com o ambiente. Na teoria de Milner, de 1934, citado por Winnicott (1975), a continuidade do cuidado tornou-se característica central na visão de ambiente facilitador e somente assim, o bebê em dependência pode ter continuidade na linha de sua vida, evitando-se o estabelecimento de um padrão de reagir ao imprevisível e sempre começar novamente. Interessa para Winnicott (1975), a riqueza da felicidade que se constrói na saúde e que não se constrói na falta de saúde psíquica. Refere que nem sempre um ambiente com riquezas materiais, necessariamente vai ser um ambiente facilitador, valorizando as relações parentais como primordiais, independente 67 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69 das possibilidades financeiras. Dirigindo o olhar à miséria e à pobreza, não somente com aversão, mas também considerando a possibilidade de que para uma criança pequena, uma família pobre pode ser mais segura e melhor do que uma família em uma casa encantadora, onde não exista superpopulação, inanição, insetos ou ameaça constante de doenças físicas, mas que, no entanto, a criança pode sofrer por negligência dos pais. Desta forma, é possível concluir pelos escritos de Winnicott que, mesmo que uma criança tenha vivido na total miséria, se ela foi criada em um ambiente suficientemente bom, isto é, recebendo os devidos cuidados e afetos parentais, ela pode, sim, ter grande capacidade de resiliência perante situações adversas futuras. Ao entendermos a importância da fase inicial de vida do ser humano para o desenvolvimento de recursos psíquicos, percebemos a relação dessa fase como conceito de resiliência trazido por Moraes e Koller (2004), citado por Dell’Aglio, Koller e Yunes (2006), que levam em consideração a interação do indivíduo com o ambiente em que freqüenta. Utilizam também o entendimento dinâmico dos fatores de risco e de proteção, em que os fatores de risco seriam relacionados a eventos que, quando estão presentes na vida do cidadão, aumentam a probabilidade deste apresentar problemas físicos, psicológicos e sociais. Já os fatores de proteção estão ligados a influências que modificam, melhoram ou alteram conseqüências individuais a riscos de desadaptação. Cowan e Schults, na década de 90, citados por Dell’Aglio, Koller e Yunes (2006) relacionam a resiliência ao risco da seguinte forma: “resiliência refere-se aos processos que operam na presença de risco para produzir conseqüências boas ou melhores do que aquelas obtidas na ausência de risco”(p.14). Para Junqueira & Deslandes (2003), embora o enfoque de risco e a resiliência sejam diferentes, são aspectos que se complementam. Slap (2001) lembra que resiliência não é o oposto a risco e não deve ser vista como um fator de proteção. Voltando ao aporte pulsional, percebe-se a questão da sublimação que não deixaria de ser também uma forma de resiliência. Para que a pessoa desenvolva o recurso da sublimação (em quese observa a presença sexual em expressões culturais, na arte, na religião), é preciso que ela tenha uma base psíquica desenvolvida ebem narcisizada, capaz de direcionar sua libido em diversos objetos não sexuais. No livro “Sublimação: clínica e metapsicologia” (Castiel, 2007) são trazidas colocações sobre a forma que a sexualidade participa do processo psíquicos da sublimação. Processo esse, conceituado pela autora como uma realização pulsional que se dá mediante a simbolização e que se transformará em criação do sujeito na cultura. Trazendo também contribuições de Laplanche e Pontalis (2001), observa-se a conclusão de que a sublimação está ligada ao traumatismo, assim, abrindo o caminho para a ligação e a simbolização ao invés de seguir o caminho da compulsão a repetição. Segundo Castiel (2007), na sublimação abre-se a possibilidade de se constituir outros objetos, vinculando este processo ao desenvolvimento da alteridade e formas alternativas de obter prazer. A partir desses pressupostos, podemos concluir a contribuição do processo sublimatório para o desenvolvimento da capacidade de resiliência do sujeito. De maneira que esse processo ocorre mais facilmente em um psiquismo com um certo recurso psíquico desenvolvido, percebe-se que, portanto, a sublimação é uma forma saudável de elaborar e descarregar pulsões que demandam liberação no sistema inconsciente. Castiel (2007) traz que no ato de sublimar percebe-se uma capacidade de obter prazer a partir de outras formas de satisfação que não sejam as originalmente desejadas. Para o entendimento de sublimação, é trazida no livro uma comparação com o conceito de retorno do recalcado, que por sua vez, gera um sintoma, diferente do processo de sublimação. No recalcamento, a satisfação da pulsão é impedida em relação a um objeto, permeada por um contra-investimento do psiquismo, que impede a descarga total dessa pulsão inconsciente. Percebese, portanto, que o processo sublimatório constitui-se de maneira distinta do recalcamento para conter a força pulsional. Desta forma, mesmo mantendo-se uma demanda pulsional, a descarga na sublimação é dessexualizada, ou seja, a libido se satisfaz a partir de outros objetos e não de uma forma imediata. Considerações Finais Ao entendermos a relação do sujeito com seu objeto primordial, percebemos sua importância na constituição de seu psiquismo, bem como na elaboração de capacidade simbólica desse sujeito. Encontramos nas relações de objeto, a origem dos recursos psíquicos que podem, futuramente, proporcionar uma capacidade de resiliência para o sujeito. Capacidade esta, que graças aos recursos proporcionados em sua criação primordial, permite que um ser humano vivencie as mais diversas situações adversas e consiga elaborá-las. Desta forma, observa-se a importância do processo de narcisização, no qual o bebê de fato tenha ocupado seu lugar de majestade e vivenciado sensações de apaziguamento de suas tensões. Diante do estado de estresse, Taralli e Thomé (2009) trazem que o indivíduo, como meio de mobilizar recursos que viabilizem a adaptação, aciona diversos sistemas do corpo 68 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 63-69 humano (como nervoso, endócrino, imunológico) liberando neurotransmissores e hormônios. Alguns estudos afirmam que, mesmo diante de uma situação ameaçadora, algumas pessoas demonstram capacidade de resiliência, apesar da dificuldade do fato. Resiliência, portanto, é uma força que algumas pessoas possuem de enfrentar as situações traumáticas e de reorganizarse, transformando essa experiência em acréscimo de melhores recursos e habilidades pessoais. Ao pensar as possibilidades de intervenção pelo viés da resiliência, Junqueira e Deslandes (2003), apostam no reforço do diálogo e na tolerância no seio da família, reafirmando a importância da autoestima das crianças e adolescentes, da divulgação de seus direitos e do respeito a seu corpo. Outra forma de intervenção seria buscar um fim a serie de abusos, oferecendo a vitima e a família uma ajuda assim que desvelada e interrompida a violência. Por fim, o terceiro tipo de intervenção seriam as diversas modalidades de psicoterapia, de modo a prevenir consequências mais desastrosas, auxiliando a criança e sua família a dar sentido e a elaborar o evento. Em ambos os casos a prevenção encontra-se baseada na escuta da criança, onde ouvi-la e acreditar nela fará toda uma diferença no processo de superação do trauma. Elzirik, Aguiar e Schestatsky (2005) trazem os conceitos de patético em oposição ao trágico em seu livro. O patético é quando o sujeito torna-se presa de uma realidade material, ou seja, quando o acidental traumático impede a construção de enigmas sobre o acontecimento. Já o trágico, relaciona-se aos enigmas que alguém tenta responder frente ao que lhe acontece. Para os autores, então, estar no domínio do trágico relaciona-se com questionar-se sobre qual o destino do sujeito e o porquê dos objetos através dos quais a pulsão se satisfaz. Estar na dimensão do trágico relaciona-se a que um sujeito se responsabilize pelo seu futuro e seu destino, podendo ultrapassar a questão da culpa do outro ou da própria. Desta forma, questiono se esse conceito de trágico usado não poderia ser entendido também como capacidade de resiliência do ser humano, visto que, o sujeito passa a ter a possibilidade de não permanecer preso à situação traumática, estabelecendo formas mais saudáveis de lidar com o ocorrido. Elzirik, C., Aguiar, R., & Schestatsky, S. (2005). Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed. Freud, S. (2006). Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (L. A. Hanns, Trad.) Rio de Janeiro: Imago. (Obra Original publicada em 1915-1920). Freud, S. (1974). Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund (vol. XIV), Imago: Rio de Janeiro. Junqueira, M. F. P. S., & Deslandes S. F. (2003). Resiliência e maustratos à crianças.Cadernos de Saúde Pública, 19(1), 227-235. Laplanche J., & Pontalis J. (2001). Vocabulário da psicanálise. (4ª ed.). São Paulo: Martins fontes. Macedo, M. M. (2005). Neurose: leituras psicanalíticas. (2ª ed.) Porto Alegre: EDIPUCRS. Moraes, E. G., & Macedo, M. M. (2011). Vivência de indiferença: do trauma ao ato-dor. São Paulo: Casa do Psicólogo. Slap, B. G. (2001). Conceitos atuais, aplicações práticas e resiliência no novo milênio. Adolescencia Latino-americana, 2(3), 173-176. Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. (D. L. Bogomoletz, Trad.). Rio de Janeiro: Imago Ed. Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. (I. C. S. Ortiz, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas (Obra Original publicada em 1965). Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. Recebido em dezembro/2012 Revisado em abril/2013 Aceito em maio/2013 Referências Castiel, S. V. (2007). Sublimação: clínica e metapsicologia. São Paulo: Escuta. Dell’Aglio, D., Koller, S., & Yunes, M. (2006). Resiliência e Psicologia positiva: Interfaces de risco à proteção. São Paulo: Casa do Psicólogo. 69 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Interlocuções entre psicologia crítica e método histórico Dialogue between critical psychology and historical method Heriel Luza, Branca Maria de Menesesb, Alexandra Ayache Anachec Resumo: O objetivo desse artigo é o de refletir sobre as considerações e concepções da história que balizam as metodologias dos pesquisadores Merani (1977), Figueiredo (1992/2007) e Horkheimer (1932/1990) buscando apontar pistas para uma Psicologia Histórica. A escolha por esses autores de períodos e epistemologias distintas decorreu de suas posturas analíticas e da tomada que fizeram da história enquanto produção e realização humanas, razão por que cada um deles contribui para a construção de vertentes críticas em diferentes áreas da psicologia. Apesar de seus distanciamentos teóricos buscou-se, por meio do recurso da dialética, produzir um diálogo entre eles convidando ainda outros autores à discussão, sem com isso justapô-los ou reconciliá-los. Almeja-se, a partir das questões suscitadas aqui, contribuir para interlocução entre psicologia crítica e história. Palavras-chave: Psicologia histórica; Dialética; Revisão. Abstract: The aim of this article is to reflect on the concepts and considerations that outline the history in the methodologies of researches Merani (1977), Figueiredo (1992/2007) and Horkheimer (1932/1990) seeking to identify clues for a Historical Psychology. The choice for these authors from distinct periods and epistemologies was due to their analytical postures and historical takes on human production and realization, reason why each has contributed for the construction of critical pillars in distinct Psychology areas. Despite the diferences in their theories it was attempted, by means of the dialectical resouce, to induce a dialog about their theories adding further ideas from other authors, avoiding overlaps or reconciliation. The main goal is to allow the exchange between Critical Psychology and History by approaching critical topics throughout this article. Keywords: Historical Psychology; Dialectical; Review. a Aluno Bolsita do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, nível Mestrado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. *E-mail:[email protected] b Professora, Doutora do Programa em Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. c Professora, Doutora do Programa em Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 70 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76 O objetivo deste artigo é apontar para a possibilidade, baseada em uma interlocução entre o método histórico e psicologia, de um delineamento do conceito de Psicologia Histórica. Para isso serão analisados, por meio de revisão bibliográfica fundamentada na análise dialética, os sentidos atribuídos à história e à psicologia entre alguns teóricos de referenciais críticos. Essa síntese, contudo, nem de longe esgota as possibilidades de análise e não teve a pretensão de chegar a uma ontologia conceitual do termo ‘psicologia histórica’, e sim construir possibilidades de diálogo entre pesquisadores dessa temática, evidenciando as contribuições de Merani (1977), Figueiredo (1992/2007) e Horkheimer (1932/2007), cujos referenciais teóricos ora se aproximam e ora se distanciam. O primeiro dos autores aqui apresentados destacou brevemente a história da inserção da psicologia enquanto um conjunto de técnicas fabris úteis à maximização da demanda e do consumo capitalistas, sem a eleição de um objeto homogêneo; o segundo apontou para a constituição históricocultural da subjetividade, assumindo-a como a grande questão da investigação em psicologia, recorrendo a fontes culturais diversas, como a arte, a filosofia, a sociologia, o direito, etc; o último, por sua vez, buscou analisar e construir a partir da filosofia, um método de análise histórica que faça da psicologia um instrumento de denúncia à opressão. A possibilidade de assunção da história como recurso crítico em psicologia, porém, excede o proposto pelos autores, por sua riqueza, amplitude e tensão oriundas da contradição que engendra. No entanto, tendo em vista a necessária circunscrição da temática e buscando-se destacar o emprego feito por cada um deles, esses três autores foram aqui privilegiados. Merani e o lugar da história em uma Psicologia a serviço do capital Para Merani (1977), a história aplicada à psicologia, mesmo aquela factual, deve ter um papel duplo, de produção de conhecimento e denúncia, embora essa tarefa seja difícil. Em primeiro lugar porque exige a dedicação e esforços constantes necessários à produção de uma práxis sólida e, em segundo lugar, porque obriga ao auto-desmascaramento, posto que a história da psicologia coincide com a do desenvolvimento das organizações capitalistas contemporâneas, cujo objetivo é acumular capital a qualquer custo. Segundo esse autor, o florescer da ciência psicológica conjuntamente com o desenvolvimento das formas de produção capitalistas não ocorreu por mero acaso, pelo contrário, ela deu apoio ao poder e inseriu o campo da investigação psicológica no alicerce da exploração do trabalhador. Embora os estudos da psique possam resultar na melhoria das condições de vida do homem, quando a ciência psicológica se afasta de sua função crítica, ela acaba por desvirtuar seu próprio princípio, anulandose como conhecimento científico e filosófico, convertendo-se em máscara para velar a alienação e manter a ordem de coisas. Além disso, preterindo a história, tanto a metodologia como seu objeto de investigação passam a coincidir imediatamente com a irracionalidade da exploração do homem, mascarando-se a opressão sob a couraça do humanismo. O conjunto de técnicas desenvolvidas pela psicologia ao lado da administração produz a Human Engineering, para que se coloque o ‘homem certo no lugar certo’. Decorre disso a necessidade de se analisar o ofício para se atingir as metas de produção previamente estabelecidas. Cria-se então uma gama de teorias que buscam compreender e controlar o homem, não só em seu ambiente fabril, mas também em seus intervalos e descanso. Assim, “a condição humana fica submetida a requisitos abstratos de seleção profissional e é, sob todos os aspectos um ‘negócio’, questão de lucro ou de interesse” (Merani, 1977, p.27). O autor ainda identifica e justapõe às leis de produção fabril, as do conhecimento científico, posto que o artefato final dessa prática laboral também se apresenta como demanda a ser consumida, uma vez que as “atividades [do homem], seus interesses vitais, tudo o que mantém a organização vital de sua vida está submetido às mesmas leis que regem o ciclo econômico” (p.13). A ação do cientista está sob a égide da produção, da demanda e do consumo. Por isso, realizar uma análise da história da ciência psicológica coincidirá necessariamente com a do desenvolvimento das forças produtivas do sistema capitalista de produção. Contudo, transformada em mito pela justificação do presente pelo próprio presente, essa identificação está encoberta, cabendo ao cientista descrever, registrar e fazer apologia aos fatos, destacando-os de suas determinações histórico-sociais. Ainda para o autor, a forma de contrapor-se a essa determinação seria dada pela renúncia à pressão do capitalismo que exige da ciência psicológica maior eficiência ao preço da alienação. Para isso, a história seria instrumento imprescindível porque permitiria dissecar as condições sociais em que a psicologia encontra-se imersa, dando a ver aquelas determinações que a constituem, e apontaria para uma saída possível de sua condição de alienação. Entretanto, assumir o vocábulo história por si e em si simplesmente, conduz novamente à posição mitológica, como afirmou Valèry, citado por Merani (1977, p.33) “[mito é o] nome de tudo que existe e subsiste tendo apenas a palavra como 71 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76 causa”. Depreende-se disso que o próprio conceito encerrado no vocábulo história tem uma constituição. Porém, o autor não se propõe nessa obra realizar uma investigação do referido conceito e ainda assume a psicologia apenas em sua relação econômica. A ciência psicológica, conforme as arguições de Merani (1977), parece mais com um conjunto de técnicas, como o fora nos rudimentos da administração taylorista, carecendo de um objeto e, por conseguinte, de cientificidade. O chão da fábrica pode ser comparado com o do laboratório ou da clínica. Destarte, tomada como conjunto de técnicas, suas contradições desaparecem, e com elas sua própria identidade, o que poderia conduzir a um anacronismo que coloca num mesmo bojo Freud, Watson, Bergson, Dewey e Taylor. Daí a necessidade de se perseguir um objeto de análise que caracterizará a identidade de dado campo da ciência psicológica. História e produção cultural da subjetividade em Figueiredo: objetos convergentes de análise? Elegendo um objeto de análise e tomando-o como invenção da modernidade, Figueiredo (1992/2007) discute a história da psicologia a partir da constituição daquele que ele entende ser o objeto de conhecimento da ciência psicológica, a saber, a subjetividade. Diferentemente de Merani, a análise de Figueiredo (1992/2007) se estende para além das considerações econômico-filosóficas. Todavia nem por isso o autor as desconsidera, entretanto prefere ater-se à tensão entre o público e o privado vendo nela a gênese e desenvolvimento da psicologia a partir da subjetividade privatizada. Em linhas gerais, para Figueiredo (1992/2007) a subjetividade privatizada se constitui como exigência à instabilidade social perceptível desde a Reforma e a Contra-reforma; ao embate entre monarquia e igreja; ao enfraquecimento do Estado absolutista; à derrocada da aristocracia e ascensão da burguesia, dentre outros fatores, que culminaram com o Iluminismo e com as mais variadas revoluções sociais. Isso porque, para ele, abandonado à sua sorte, o homem necessitou construir seu próprio caminho. E o fez produzindo e transformando seu mundo, pelos saberes das diversas áreas do conhecimento, sobretudo nas artes (iluminista e romântica), na filosofia e nas ciências. Essa revolução do conhecimento, reflexo de uma radical transformação social, exigiu o estudo desse novo homem, agora embalado principalmente pelo ideário francês deflagrado pela burguesia: liberdade, igualdade e fraternidade. Vários teóricos dos diversos saberes se propuseram tal tarefa, e dentre eles Thomas Hobbes merece destaque, por ser “o grande teórico desta separação entre o ‘interno’ e o ‘externo’, entre os domínios da consciência e das opiniões e os domínios da ação” (Figueiredo, 1992/2007, p. 107). Nas obras de Hobbes o homem aparece claramente cindido entre uma esfera pública e outra particular. Koselleck, citado por Figueiredo (1992/2007) afirma que embora o homem de Hobbes possuísse uma opinião própria, este deveria guardá-la em segredo do Estado, cuja função seria a de impedi-las de se tornarem ação prática, o que nem sempre era possível. Essa separação aparentemente diplomática engendra o antagonismo entre o desejo privado e o público, irrompendo em uma dupla tensão que gera de um lado revoltas sociais, com mudanças na esfera jurídica, política e nos aparelhos de controle do Estado e de outro um recrudescimento da subjetividade privatizada. Buscando apaziguar a tensão gerada pelo nascimento da esfera privatizada, autores como os empiristas Locke, Rousseau, Hume e Berkeley buscarão no campo filosófico definir qual a função e o lugar pertinente ao Estado, contudo sem descaracterizar esse ‘eu’ nascente, e pretendendo desvendar sua natureza. Há então uma penetração simultânea, onde uma esfera não pode mais ser compreendida sem a outra. Disso deriva o aprofundamento dos estudos pelo viés empirista, das epistemologias e das ontologias, posto que o conhecimento passa a ser produto de uma relação entre o ser e o mundo. Em outro campo, mas concordando com o ideário liberal, desenvolve-se no campo das artes a prerrogativa romântica do ‘olho interior’, como forma de resistência ao intelectualismo e ao empirismo presente na filosofia daquele momento. A tônica recai sobre o sujeito do conhecimento que agora privatizado, tornou-se capaz de conhecer-se pelo aprofundamento interior de si, e toma para isso a intuição como instrumento pelo qual será conduzido à ética e à reação estética. Figueiredo (1992/2007) mostra ainda que essa transformação permitiu o nascimento de “diversos dispositivos sociais, formas de existência e instrumentos de representação e expressão da subjetividade privada” (p.113). Estes se exibiram nos campos da arquitetura, com o modelo de construção dos jardins ingleses e franceses; na criação de clubes privados e pubs, necessários naquele momento à representação da vida; na prática de esportes como a caça, onde se foge do espetáculo público das cidades; nas atividades turísticas onde é possível ser um ‘esteta diletante’; por fim, nos romances com uma série de novelas e óperas que supervalorizavam as experiências subjetivas e da vida familial. Atreladas ao absolutismo, essas formas de expressão ganharam rapidamente a conotação de contestadoras, porque traduziam 72 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76 uma nova forma de comportamento e ordenação da vida. O quadro acima delineado tomou paulatinamente o cenário europeu, todavia não sem resistência, e desenrolou-se de outra forma nos demais países europeus, embora a essência iluminista e romântica se mantivesse. Sob essa essência, Figueiredo (1992/2007) elege Mesmer como o personagem cuja vida e obra melhor sintetizam esse momento. Esse médico suíço pretendeu realizar a união entre iluminismo e romantismo para sua prática terapêutica, promovendo curas interiores pela reequilibração magnética do corpo animal. O desequilíbrio cujos sintomas eram crises histéricas, transes, convulsões ou desmaios, indicavam uma desordem de uma personalidade singular, que só poderia ser reestabelecida pela imposição de mãos ou por uma prática íntima e potencialmente erótica entre o terapeuta e o paciente. A transgressão pela terapêutica mesmeriana, seu sucesso financeiro e a necessidade de uma organização disciplinar dos corpos mostram o surgimento e consolidação de uma nova forma de subjetivação, embora nesse momento não houvesse ainda um conhecimento psicológico autêntico e tampouco fosse a subjetividade um genuíno objeto de investigação. Para isso, diz Figueiredo, seria necessário que essa privacidade agora fortalecida pelas práticas sociais entrasse em crise. Buscando compreender a subjetividade inserida na dinâmica triádica do Iluminismo, do Romantismo e do Regime Disciplinar, Figueiredo (1992/2007) assume ordenadamente as proposições de Polany (1980), Gusdorf (1982) e Foucault (1977) para defender a assertiva de que “o espaço psicológico, tal como hoje conhecemos, nasceu e vive precisamente da articulação conflitiva daquelas três formas de pensar e praticar a vida em sociedade” (Figueiredo, 1992/2007, p.129). A forma de ordenamento do aparelho público, sua separação em poderes, sua regulação e leis, embora sejam hoje muito mais complexas do que na deflagração da Revolução Francesa, encontram lá alguns de seus fundamentos. Cabe agora ao ideário burguês, inserido no contexto do Estado moderno, garantir a felicidade geral de sua coletividade, ainda que disso resulte sofrimento para uma minoria. Assim, é necessário quantificar essa felicidade garantida pelo Estado e de acordo com seus resultados, criar mecanismos de controle para ampliação da felicidade em detrimento da dor. Nesse contexto elaboram-se teorias que assumem o homem como escravo de dois senhores: da dor e do prazer. Dentre elas as propostas formuladas por Bentham (1789/1989) e Mill (1859/1963) seguem caminhos semelhantes, embora para o primeiro a garantia da felicidade se dê pelo controle exercido pelo Estado enquanto para o segundo essa felicidade só pode ser adquirida pelo autoconhecimento. Isso conduz a um refinamento da subjetividade privada que agora se torna ainda mais profunda na tentativa de fuga a esse controle estatal, que pode produzir felicidade, todavia não sem cerceamento. Entretanto, como indica Tocqueville (1835/1987), essa supervalorização da individualidade adquirida por seu ritual de isolamento, destrói a independência, ameaça a liberdade e gera uma sensação de desamparo. Tal situação desobriga o indivíduo a contrapor-se às imposições do Estado que se torna um estranho para ele, minando assim suas possibilidades políticas de ação e confinando-o na indolência. A crítica de Tocqueville (1835/1987) estende-se principalmente às formas vigentes de democracia, cuja gênese eclodida nos Estados Unidos da América espalhou-se gradativamente pelo mundo via França e Inglaterra. Nelas a tutela completa do Estado subsiste, os desejos individuais são ditados de fora e o controle do Estado é solicitado via autonomia e liberdade dos indivíduos. Tal disposição permitirá que o poder estatal dirigido por grandes oligarquias econômicas apareça sob a máscara da opinião pública, levando os indivíduos a assumirem como seus o desejo imposto de fora, mas sob a ilusão da decisão. Esse quadro ilustrado por Tocqueville (1835/1987), que data de mais de 150 anos, assemelha-se ao que vivenciamos na contemporaneidade no que tange às ações ditas democráticas. Não só ele, mas as propostas de Benthan e Mill, citados por Figueiredo (1992/2007) mantêm-se vivas, participando da constituição das matrizes do pensamento psicológico, embora as escolas mais pragmáticas procurem por vezes negar tal fato e ignorar seu processo constitutivo. Todavia, sendo o espaço do campo psicológico aquele que abriga as forças alienadas dessa subjetividade tensionada entre os três vértices apresentados – Iluminismo, Romantismo e Regime Disciplinar, é fundamental resgatar sua constituição para pensar uma psicologia não só a serviço da ‘reidentificação’, mas também da desidentificação. Assim, Figueiredo (1992/2007) assevera que mais do que escolher arbitrariamente entre essa ou aquela escola, os psicólogos deveriam conhecer a história do ‘psicológico’, e sobre isso lança um questionamento: “Será possível, contudo, empreender a recordação como tarefa crítica conservandose no lugar do psicólogo?” (p. 149). O autor localiza esse lugar do psicólogo como sendo, talvez, o “lugar-nenhum em que os saberes ‘psi’, a história, a filosofia e as artes se encontram e se perdem no exercício do mero pensar” (p. 164). A experiência romântica de uma subjetividade privatizada, o controle das crises advindas da desagregação dessa subjetividade 73 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76 pela confrontação à não realização do ideário iluminista apregoado pela burguesia apontam para uma psicologia em especial: a clínica. Analisar e compreender a subjetividade do homem burguês e estendê-la a todos os demais homens pode produzir dificuldades à compreensão da relação entre história e psicologia; algumas delas seriam: a psicologização da história, pela eleição de heróis; o encobrimento da cisão em classes essenciais à compreensão do desenvolvimento do sistema capitalista de produção e a função exercida pela psicologia nesse contexto; a supremacia da subjetividade burguesa em detrimento de uma subjetividade negada à classe trabalhadora e aos miseráveis, para quem caberia apenas perseguir ideologicamente àquela; dentre outros fatores. Outra questão patente está em compreender a dimensão do termo história. Merani (1977), ao justapor a prática da administração à da psicologia, ofereceu outro recorte à compreensão da relação entre história e psicologia. O sistema taylorista e as escalas psicométricas de Binet-Simon reformuladas por Stanford, por exemplo, não se orientavam pela prerrogativa da desintegração da experiência privada da subjetividade, mas respondiam à demanda da maximização da produção nas fábricas e, no segundo caso, à necessidade de seleção de soldados para os campos de batalha. Mesmo que nesse caso a ciência psicológica fosse generalizadora e bem menos humanista, ela cumpriria uma função diferente e para além da tríade proposta por Figueiredo. Também Merani (1977) acredita que ela deva se autorrever, utilizando-se para isso da história como instrumento de autorreflexão. O percurso filosófico do pensamento de Horkheimer e a assunção crítica da história como fundamento metodológico para uma psicologia histórica Nessa mesma direção, mas invertendo a lógica proposta por Merani, Horkheimer (1932/1990) caracterizará o papel da psicologia enquanto uma teoria histórica adequada ao âmbito das ciências sociais, tomando-a como instrumento possível de reflexão e denúncia da história. Para tanto, ele perfilará dialeticamente o processo de constituição deste conceito, conduzindo suas análises desde sua utilização na filosofia subjetivista kantiana - que ascendeu como reação à tendência materialista da ciência e da sociedade daquela época -, até o período entre as duas Grandes Guerras. O autor destaca que na filosofia kantiana, a essência da natureza é derivativa da dedução sistemática do fenômeno por métodos de análise, ofertando mais importância à sistemática do ato de conhecer do que propriamente àquilo que se pretende conhecer. Essa premissa, que para Kant (1781/1983) embasa todo o tipo de produção intelectiva, aplica-se também à história. Assim, expor os fatos históricos significa refazer o caminho de sua formação. Por isso, Horkheimer (1932/1990) afirma que o método kantiano não permitiria uma crítica à historiografia, estando encerrado em uma apologética. Outro conceito analisado pelo por Horkheimer (1932/1990), ainda no campo filosófico da fenomenologia, mantém a contraposição ao materialismo, ao empirismo e à dialética. Nele, porém, Scheler e Heidegger ferrenhos críticos do método histórico, buscarão capta-lo como “historicidade interior do existir” relegando ao processo histórico real um simples entrelaçamento “superficial e ilusório” (Horkheimer, 1932/1990, p.14). O fundamento da história para eles é a atualidade da apresentação do ser onde “a partir desta maneira originária de acontecer deve a história ganhar sentido como tema histórico” (idem). A história é interior, subjetiva e psicológica. Arguindo acerca disso, Horkheimer (1932/1990) por sua vez, assevera que ocupar-se com a história externa também conduz à compreensão do existir, visto estar o interior condicionado à realidade exterior. Desta feita, negando-se a materialidade, corre-se o risco de rumar ao perigoso solo do psicologismo que aniquila a compreensão da história. Desta feita, para o autor, críticas como as de Fichte quanto ao vazio na psicologia ou como as de Rickert quanto à falta de uma identidade histórica do campo psicológico encontrariam guarida, caso essa perspectiva mentalista se mantenha. Uma forma de embate às censuras acima apresentadas seria assumindo uma filosofia do conhecimento capaz de captar o entrelaçamento dialético desse movimento entre o ser e a realidade, sem negá-los ou excluí-los mutuamente. Por essa razão Horkheimer (1932/1990) avançará até a filosofia hegeliana, cujo fundamento à compreensão da história é a dialética. Nela, a história é ao mesmo tempo empírica e filosófica e a ideia impõese à realidade material para que ela avance rumo à sua completa realização. Para isso é preciso um desenvolvimento qualitativo que responda à necessidade posta pela realidade, o que garante seu sentido e evolução. Nessa dinâmica, os interesses e as paixões humanas servem como motor à história e a potência subjetiva oculta do ser torna-se capaz de fazer a roda da história girar. Por isso, Hegel (1807/1996) ilustrará suas proposições com a história dos heróis, seguindo sua tradição iluminista, mas não atribuirá a ela a compreensão da essência do desenvolvimento histórico uma vez que o poder que se impõe à história estaria em sua opinião, para além dessa psique individual ou mesmo 74 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76 das massas. Após a derrocada do sistema hegeliano, a visão liberal de homem ascende. Nela, tanto a ideia de uma força suprassensível como o movimento de forças dinâmicas para a compreensão da história perderam seu valor. O que passa a importar são as realizações pessoais dos indivíduos, suas ações e idiossincrasias, sob o pano de fundo da harmonia de interesses. Assim o cerne dessa ideia coincide diretamente com a essência do psicologismo e a dialética é novamente abandonada. Buscando resgatá-la pelo viés do materialismo, Horkheimer (1932/1990) mostra que Marx e Engels mantêm a convicção hegeliana de forças supraindividuais e dinâmicas na evolução histórica, sem com isso assumir a fé como potência interna do desenvolvimento histórico. A história para eles não pode prescindir de sua realidade, mas deve tomá-la como sua realização mediada por instrumentos que condicionam sua dinâmica. Assim, as relações sociais determinam o conhecimento do desenvolvimento histórico pela dialética de seu confronto com a natureza. A psicologia aqui é acessória à compreensão da história onde o fundamental serão as relações econômicas, bem como a atividade que condiciona o processo de produção que constitui a cultura e a consciência de seus participantes. Sobre a teoria marxista, Horkheimer (1932/1990) mostra ainda que sua postura crítica fragilizou-se quando nela se substituiu a metafísica hegeliana pela dogmática do antagonismo de classes como força propulsora da dinâmica histórico-social. Outro limite teórico está em conceber a intersecção entre psicologia e história somente a partir dos condicionantes econômicos, muito embora a vida econômica de uma sociedade constitua a formação psíquica de seus membros. O anacronismo estaria em limitá-la apenas a esse aspecto, o que acabaria por invalidar a ciência psicológica e seu papel no desenvolvimento histórico. Sobre isso diz Horkheimer (1932/1990, p.20): “Está o objeto da psicologia de tal maneira entrelaçado na história que o papel do indivíduo não é redutível a simples função das condições econômicas”. Há, contudo, outros determinantes na constituição psíquica como mostraram, por exemplo, os estudos da psicanálise que desvelaram as pulsões da psicologia profunda. Desconsiderar isso poderia destruir o objeto da psicologia, o indivíduo. Entretanto, não se pode negar que os condicionantes socioeconômicos exercem grande poder sobre a constituição da psique. Assim, a importância de seu estudo está em desvelar a conformação psíquica que se apresenta em dado momento do processo histórico-social, o que torna a psicologia uma ferramenta útil à história. Destarte a ciência psicológica cumpre um importante papel de desmascaramento das forças coercitivas irracionais, na medida em que propicia uma análise dos dispositivos de controle e do caráter assumido por dado momento histórico. Assumir a psicologia como instrumento de denúncia da história aponta para a função política dessa ciência. Nessa direção, deve-se garantir a tensão entre o interno e o externo, entre o público e o privado, em oposição à massificação que leva os indivíduos a agirem contra seus interesses e renunciarem a seus próprios desejos. Para Crochik (1995, p.52) “uma das tarefas políticas é lutar para que os indivíduos sejam diferenciados e possam, através da razão, perseguir interesses universais”. Assim, cumpre à psicologia ser instrumento de denuncia da história contra a massificação e à história engendrar a essência técnica e metodológica da psicologia a fim de que ela não se constitua em mera ferramenta de alienação. Então ambas poderão contribuir com a melhoria das condições de vida humana, sendo uma forma de resistência à opressão e à barbárie. Algumas Considerações Há muitas razões que conduzem à necessidade de análise do entrelaçamento entre história e psicologia, e devido aos limites desse artigo, apenas algumas foram apontadas. Apesar disso, houve um empenho constante em produzir este diálogo numa perspectiva analítico-crítica, buscando-se a partir do delineamento das ideias dos autores, uma possível síntese à ‘psicologia histórica’ – no sentido que a lógica dialética atribui ao termo. Aparentemente a eleição desse termo pode sugerir que a história está sendo posta em um plano secundário e que se está concedendo à psicologia primazia entre as ciências. Entretanto, o que se pretendeu aqui foi caminhar exatamente no sentido contrário. É a história, conforme Marx e Engels (1846/1987), a única ciência possível, que oferece às ciências gerais, aqui no caso a psicologia, sua condição de existência, seus instrumentos e seu método. Por isso ela foi tomada como práxis social e cultural, que pode ou não ser sistematizada por marcos. Caso fosse tomada essa sistemática sim, correr-se-ia o risco de superestimar a ciência psicológica e ignorar seus antagonismos, controvérsias e sua dinâmica. Por essa razão, os primeiros parágrafos desse artigo já apontaram para uma saída à historiografia. Essa historiografia que participa da composição e resgate de uma memória histórica exige cautela em seu emprego. Benjamin (1931/1994) mostra como é fácil ceder às seduções do historicismo e como a história tradicional representa apenas uma 75 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 13(1) | Jan/Jul | 70-76 fração da história, onde está exposta somente a que diz respeito aos vencedores. Contudo há outra, a dos vencidos, que espera ser resgatada. Outro limite de uma análise historiográfica está em sua concepção estática do tempo, posto que ela estabelece marcos linearizados aos eventos. O tempo da história, porém, não coincide com o do ponteiro do relógio. “A temporalidade é histórica, as formas de lidar com o tempo são construídas historicamente” (Masson, 2010, p.60). A sistemática do modelo atual da contagem newtoniana do tempo, base para o algoritmo taylorista que quantifica a maximização da produção é recente e está no cerne do modelo capitalista. Mas paralela a ela existe outra, uma concepção metafísica e abstrata que aparece, por exemplo, na filosofia kantiana. A partir de uma análise crítica, tanto a primeira como a segunda seriam insuficientes, posto que elas não explicitam a dialética do movimento histórico. Para Masson (2010), o caráter do tempo só pode ser desvelado resgatando o passado e perfazendo o movimento do pensamento que se apropria da realidade e a rememora. Nesse sentido a arte literária poderia ser um recurso importante para a discussão sobre a dinâmica do tempo. Na peça teatral O Jardim das Cerejeiras de Tchekhov (1904/2009), há a disjunção entre o tempo mecânico linear e a história, o que mostra que aquele está condicionado à percepção psicológica das transformações sociais, não sendo por tanto tão determinante a questão de data cronológica, como o foi a da experiência da realidade dos personagens da peça. Essa perspectiva engendrada no teatro de Tchekhov foi estendida às análises aqui empreendidas. Deste modo, resgatou-se o psicológico enquanto práxis histórica e não como um fenômeno em separado, aceitando que o sentido encerrado no vocábulo ‘história’ incide sobre a psicologia, chegando-se dessa maneira à compreensão do termo Psicologia Histórica. Investir nesse termo, na mesma medida em que esclarece também expõe sua responsabilidade política. Nesse sentido Crochík (1995) expõe a fragilidade da perspectiva política e os limites de ação de um indivíduo cuja autonomia está comprometida pelo narcisismo e pela massificação e irracionalidade impostas pelo imperativo do consumo. Este sujeito, prescindindo da mediação histórica, tem sua constituição subjetiva comprometida em prol da falácia da ordem e do progresso sociais. Então, o papel de uma psicologia histórica precisa escapar ao de mera reprodução da ordem existente e apontar para novas direções possíveis. Concordando com as considerações de Crochik (1995), Pedrossian (2010, p. 13) afirma que “na contemporaneidade, a noção de progresso integra tecnologia e ciência, mascarando com sagacidade a regressão da sociedade”. Assim, compreender a psicologia como práxis histórica significa clarear seu “objetivo maior [que] é o de criar condições reais para superação da hegemonia de um modelo social que produz e reproduz a barbárie” (idem p.32). Deste modo, a psicologia deixaria de ser a ciência do homem ideal – o protótipo do liberalismo, para ser a ciência do homem histórico. Referências Benjamin, W. (1931/1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. In: Obras Escolhidas Vol. I. São Paulo: Brasiliense. Bentham, J. (1789/1989). Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Nova Cultura. Crochik, J. L. (1995). A (im)possibilidade da psicologia política. In: Psicologia e política: reflexões sobre possibilidades e dificuldades desse encontro. São Paulo: Cortez. Figueiredo, L. C. M (1992/2007). A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação, 1500-1900. (7a ed.) São Paulo: Escuta. Gusdorf, G. (1982). Fondements du savoir romantique. Paris, Payot. Hegel, G. W. F (1807/1996). A fenomenologia do Espírito. In: Coleção os Pensadores (pp. 289-385). São Paulo: Nova Cultura, Horkheimer, M. (1932/1990). Teoria crítica: uma documentação. São Paulo: Perspectiva. 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