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Samba de roda de São Félix e Cachoeira: uma tradição da modernidade sob um ponto de vista
etnocenológico
Daniela Amoroso
Integrante do Grupo Botequim de Samba/ Salvador / Doutoranda PPGAC/UFBA
UFBA
Resumo
O presente trabalho trata do samba de roda de Cachoeira e São Félix a partir de um olhar
etnocenológico. A contextualização do sujeito, a pesquisa de campo e a prática foram os elementos
utilizados para construir esse ponto de vista. Entende-se que o samba de roda constitui uma das
matrizes estéticas da dança e da música brasileiras e que, compõe, o conjunto das 'tradições da
modernidade' no Brasil. A noção de Diáspora contribui aqui para investigar experiências do samba
de roda enquanto forma estética brasileira nascida na encruzilhada de memórias e heranças
africanas e portuguesas.
Palavras-chave: Samba-de-roda. Etnocenologia. Dança.
A etnocenologia é uma área do conhecimento humano que se inscreve dentre as etnociências
e seu desenvolvimento, desde o seu manifesto, vem sendo realizado graças ao trabalho científico e
artístico de pesquisadores como, Armindo Bião, Jean-Marie Pradier, Chérif khasnadar e Jean
Duvignaud. O manifesto da etnocenologia, que marca o nascimento desse campo de saberes, traz
um dos fundamentos da etnocenologia: a não separação do corpo e do espírito, na qual o corpo é o
lugar da manifestação do desejo do espírito ou da alma. Lembro-me de um episódio que vivi ao
lado de uma sambadeira, Beatriz da Conceição, em Cachoeira durante uma homenagem à Dona
Dalva Damiana dos Santos. Logo após o documentário, no qual ela – Dona Dalva – era a
personagem principal, ao receber um buquê de flores, pôs-se ao microfone para falar algumas
palavras de agradecimento. Dona Dalva agradeceu a Deus como sempre o faz, aos organizadores do
evento e expressou sua felicidade em ser reconhecida como Griô, ou seja, como detentora de
saberes populares. Antes de acabar sua fala, começou a bater a palma do samba e ‘puxou’ um de
seus sambas. Da plateia, Beatriz saltou da cadeira e correu para sambar sem olhar para trás. Era o
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samba chamando-a. Sambou, sorriu e cantou até a roda acabar. O samba chamou, o corpo obedeceu
e o espírito se deleitou...
Dessa forma, compreendo o que o Manifesto reforça acerca do simbólico, da alma e do
corpo. Acabo de me lembrar de um acontecimento durante o aniversário de um ano da Casa do
Samba de Santo Amaro, quando um senhor do grupo de samba de roda de Saubara me chamou a
atenção. Enquanto os tocadores das violas, do violão e do cavaquinho passavam o som, ele, sentado
com seu pandeiro entre as pernas, parecia dormir com o tronco inclinado para frente e com a cabeça
abandonada e encoberta por um chapéu. Cheguei a pensar que ele estava cochilando ou
descansando da viagem, da espera. Quando tudo estava pronto e a viola puxou o samba, esse
homem parecia ter tomado um choque elétrico, pôs-se a tocar com uma disposição notável. As
mãos no pandeiro, a que bate e a que segura, pareciam uma engrenagem tamanha a coordenação dos
movimentos. Um sorriso... É como se o espírito lhe saltasse pelos olhos e irradiasse seu corpo.
Espírito e corpo1 encontram-se espetacularmente na expressão que o samba de roda tem.
Nesse sentido, entendo que a etnocenologia trata também da leitura estética de uma expressão
popular e do corpo dentro da mesma, que, no seu fazer, promove uma experiência estética coletiva.
Trata-se de um olhar estético sobre um objeto que se torna espetacular2, seja porque ele está fora do
cotidiano, seja porque ele é um ritual ou um rito3, no qual corpo e espírito se encontram. O samba
de roda caracteriza-se como um ritual de caráter festivo, no qual a experiência e a expressão
encontram-se. É na roda que acontece a sensação estética do samba e é na vida, no antes, no durante
e no depois do samba que o dinâmico processo reflexivo continua impulsionado pela experiência da
alteridade. O samba de roda não acontece com uma pessoa isoladamente, ele é coletivo por
natureza. O processo reflexivo é constante, o jogo e a troca de experiência são vivências de quem
samba o passo do miudinho comunicando-se com a viola, através da expressão do corpo. Uma
1
O risco que está no centro de nosso propósito é uma das questões mais embaraçosas de nossa
herança cultural: a relação antagonista do orgânico e do simbólico, do corpo e do espírito, das
aparências e da verdade, do sensível e do invisível. Hoje, acrescenta-se: do biológico e do mental,
do somático e do psíquico. Estranha aporia da civilização! Esta é a dificuldade racional,
aparentemente sem saída, com o qual se depara o Ocidente há mais de dois milênios. Ela está bem
aí, neste mal-estar e na nossa impotência em admitir que o corpo dançante seja um corpo pensante,
que a vida deve ser entendida nas dimensões complementares, carnais e espirituais e que o espaço
da consciência não está fora do corpo. (PRADIER, 1995b).
2
De acordo com o Manifesto, “por espetacular deve-se compreender uma maneira de ser, de se
comportar, de se mover, de agir no espaço, de falar, de cantar e de se enfeitar que se destaca das
atividades banais do cotidiano ou as enriquecem e atribuem sentidos” (PRADIER, 1995a).
3
Ritos, rotinas, rituais e espetáculos são performances da vida individual e coletiva, são a forma
sensorial e perceptível pela qual experiência e expressão se reúnem, são jogos que se fazem com a
alteridade, em todos os sentidos, são comunicação (BIÃO, 1996).
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menina aprende a sambar, simultaneamente, nesse momento de experiência e de autorreflexão do
corpo e da alma.
A compreensão da alteridade4 presente no ritual do samba de roda, o entendimento do corpo
como o lugar dessa alteridade e a leitura estética desse mesmo ritual caracterizam um olhar
etnocenológico. Entendo que a abordagem estética etnocenológica dedicada a cada objeto está
condicionada à metodologia utilizada em cada pesquisa. Nesse contexto, chamo a atenção para a
problemática da metodologia da etnocenologia questionada por ela própria, ou seja, por um de seus
principais pensadores. Bião (1996) aponta essa problemática e a coloca como campo teórico para
debate. A etnocenologia prevê o envolvimento do pesquisador com o seu campo de pesquisa, em
concordância com a etnografia e mais ainda com a etnopesquisa crítica5 e em discordância repulsiva
ao preconceito etnocêntrico.
O entendimento do samba de roda e de outras expressões vivas da cultura brasileira como
formas de expressão teatral, corporal e musical corrobora com a proposição etnocenológica e
antietnocentrista. Nesse sentido, tanto o mapeamento do samba de roda, como o tombamento dessa
expressão como Patrimônio Imaterial da Humanidade, quanto os estudos aprofundados contribuem
para combater o perigo de que: “os jovens troquem as possibilidades autênticas de sua própria
cultura para tentar traduzir a fórmula europeia da cena de situações que lhe são incompatíveis”,
como alerta Duvignaud, no Manifesto já citado.
O etnocentrismo é, dessa forma, claramente banido da etnocenologia, mas de acordo com
Bião (1996), a questão metodológica não se resolve completamente. Restam dúvidas que marcam a
ambiguidade metodológica, como, por exemplo: como é que o pesquisador vai poder julgar seu
próprio preconceito etnocentrista? Ou como desvincular, como explicitar os preconceitos, ou as
simpatias, ou as antipatias? Como romper com os seus próprios tabus? De fato, não encontro
facilidade para responder esses questionamentos porque são questões presentes também nessa
pesquisa. Entendo, nesse momento, que a experiência e a vivência com o objeto da pesquisa, o
background do pesquisador e o processo reflexivo resultante da pesquisa podem, conjuntamente
4
Sem alteridade não há estética, que é a capacidade humana que permite conhecer o outro por meio
de si próprio. Não se sente o que existe completamente fora de si. Sem forma não há relação, sem
cotidiano não há extraordinário e sem coletivo não há pessoa (op. Cit.).
5
“A etnopesquisa crítica não considera os sujeitos do estudo um produto descartável de valor
meramente utilitarista. Entende como incontornável a necessidade de construir juntos [...] ”.
(MACEDO, 2006).
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favorecer a percepção e a expressão de preconceitos, de simpatias e de antipatias, de mudança de
pensamentos, de afirmação ou de negação de hipóteses iniciais.
A etnopesquisa crítica está sendo bastante relevante, no que se refere aos métodos porque ela
própria insere-se na proposição epistemológica que defende os métodos qualitativos e não os
quantitativos. Trata-se de uma linha de pesquisa que valoriza a contextualização cultural do objeto a
ser estudado. A postura do pesquisador e a caracterização do subjetivo como elemento crucial no
entendimento não etnocêntrico de um grupo de pessoas são comuns tanto à etnopesquisa como à
etnocenologia. Todavia, a etnocenologia traz um olhar particular e estético com relação às formas
de expressão culturais. Não se trata de descrever elementos estéticos do ponto de vista externo
àquele objeto de pesquisa. Trata-se de um aprendizado, adquirido através da pesquisa de campo, da
vivência, das entrevistas, das interações que são métodos e pré-requisitos para a qualidade dessa
leitura estética. E, ela será tão menos etnocêntrica quanto maior o envolvimento, o conhecimento e
o respeito desse pesquisador.
Nessa pesquisa em andamento, entendo que a observação participante em etnocenologia
requer a prática corporal das atividades da expressão cultural em questão. Isso porque existe um
campo vasto de subjetividades entre a apreciação estética e a vivência estética. Dessa relação
surgem identificações, conflitos, aprendizados, rompimentos de preconceitos... Note que se trata de
experiências distintas: ver uma sambadeira sambar e entrar na roda para sambar. Existe um
processo de cópia, interiorização, frustração e realização que sem a prática no corpo do pesquisador
não pode ser vivido e alcançado. Os olhos avaliam, diferenciam um passo do outro, um estilo do
outro, permitem que o corpo passe pelo prazer da fruição estética, mas não entendem corporalmente
o repinicado da viola, a batida do pandeiro e o calor do samba que só sente quem entra para sambar.
A dança é apreendida enquanto elo entre o pesquisador e o seu lócus. Não tenho-me contentado em
ver, não desisti de sambar, decidi me arriscar a fazer um passo de miudinho na frente de dona
Dalva, com toda responsabilidade, respeito e prazer. Entendo que é necessário romper essa fronteira
porque ao passar por ela o pesquisador também se revela.
Referências
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Sociedade. Brasília: TRANSE/UNB, 1996.
BIÃO, A. Etnocenologia, uma introdução. In: GREINER, C; Bião, A. (Orgs.), Etnocenologia:
textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
BIÃO, A. Matrizes Estéticas: o espetáculo da baianidade. In: ______ . Temas em
contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Annablume: GIPE-CIT, 2000.
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BIÃO, A. Um trajeto, muitos projetos. In: ______ . Artes do Corpo e do Espetáculo: Questões de
Etnocenologia. Salvador: P&A Editora, 2007.
ETHNOSCÉNOLOGIE Manifeste. Paris: Théâtre-Public 123. 1995.
GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução por Cid Knipel.
São Paulo; Rio de Janeiro: Ed. 34/Eniv. Candido Mendes, 2001.
MACEDO, R. S. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação. Brasília: Líber Livro Ed., 2006.
PRADIER, J. M. Ethnoscénologie, Manifeste. Paris:Théâtre-Public 123. 1995a.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia. In GREINER, C; BIÃO, A. (Orgs.). Etnocenologia: textos
selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
SANDRONI, C. Dossiê para o registro o samba de roda no Recôncavo Baiano. [Salvador: s.n,
2004].
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Palhaçaria: a dramaturgia da arte do palhaço
Demian Reis
Ator, palhaço, compositor, dramaturgo e diretor
Doutorando do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA
Resumo
Nesta comunicação pretendo lançar uma definição de palhaçaria como a dramaturgia da arte do
palhaço. Para isso desenvolvo uma definição do palhaço. Não tenho a pretensão de falar de nenhum
palhaço em especial, caracterizar nenhum momento histórico em particular. Trata-se de uma
iniciativa de estudar a arte dos palhaços a partir da descrição de seus dinamismos dramatúrgicos.
Explicitar diferentes estratégias, princípios e dispositivos específicos da palhaçaria. Esta pesquisa
de doutorado pode ser vista como um primeiro esforço de focar na palhaçaria, enfatizando o seu
valor dramatúrgico. Não há por hora a pretensão em desenhar uma teoria da palhaçaria ou da
técnica do palhaço porque acredito que este seria um eco do impulso colonizador que tenta reduzir
os fenômenos a um “estado puro” ideal. Prefiro acreditar na complexidade e diversidade cultural da
palhaçaria. Mas eu me permito formular discussões teóricas e propor ferramentas conceituais úteis
para pensar a palhaçaria e incentivar novos pensamentos e enriquecer um debate que acumula cada
vez mais incertezas.
Palavras-chave: Palhaço, dramaturgia e espetáculo
Eu, o palhaço, sou a pessoa cujo trabalho é fazer pessoas tristes felizes. Eu assumi o compromisso
de fazer os outros esquecer suas tristezas e seus sofrimentos. Esteja eu triste ou sofrendo eu mesmo,
preciso entrar no picadeiro.
Eu, o palhaço, não tenho direito de reclamar se estou faminto. Se tiver perdido um dos meus entes
queridos. Não tenho direito de segui-lo a seu último lugar de descanso, sem direito de chorar.
Eu, o palhaço, devo rir, mesmo quando meu coração está chorando.
(Rivel:1973, 271)
1. A questão
A dramaturgia teatral é uma noção que expandiu tanto a ponto de exigir que precisemos se estamos
falando da dramaturgia de um autor, como Nelson Rodrigues ou Samuel Beckett, se estamos falando da
dramaturgia do diretor como José Celso, Peter Brook, Barba ou Grotowski, ou da dramaturgia da dança
teatro, por exemplo, de Pina Bausch, ou o teatro físico de Denise Stockles. Hoje, inclusive, é freqüente se
falarmos em dramaturgia e composição do ator. A teórica e dramaturga Cleise Mendes recentemente apontou
que, muitas vezes, é a sinalização proveniente do ator com a platéia na hora da apresentação que determinará
o sentido e a inclinação dramatúrgica definitiva do material encenado. Mas para que haja uma mudança no
sentido da construção dramatúrgica, ou seja, na construção das ações, é necessária uma especial intervenção
do intérprete, redirecionando a caracterização da personagem ou o sentido da situação, por exemplo. De modo
que na hora da apresentação no palco, o ator detém e assume efetivamente o poder dos dramaturgos.
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Adicionaria que um co-dramaturgo em parceria com outros dramaturgos (outros atores e atrizes com
quem eventualmente contracena) e ainda outros co-dramaturgos composto pela platéia (os espectadores). De
modo que temos que nos abrir para a questão da recepção como atividade produtiva, ou seja, o espectador
como co-produtor do sentido, e não vê-lo unicamente na condição de um receptor passivo. Com tantas
perspectivas abertas certamente deve haver espaço para uma dramaturgia do palhaço que diz respeito ao seu
espetáculo cômico e características particulares de sua forma de atuação. Nomeio esta dramaturgia e forma de
atuação que a acompanha de palhaçaria.
Estou pensando o termo palhaçaria como derivado de palhaço. Um dos aspectos da palhaçaria é a sua
dimensão dramatúrgica. Entendendo dramaturgia como construção de ação, uma das dimensões da palhaçaria
diz respeito ao modo como os palhaços constroem suas ações cênicas. Se o termo dramaturgia goza de
independência do ator como único agente pelo qual a ação dramática pode ocorrer, o termo palhaçaria não,
estando para os propósitos desta visão, atrelado à figura do palhaço. O palhaço aqui, carrega e expõe de modo
risível características pessoais do ator visíveis em seu comportamento físico, seja a sua técnica oriunda dos
ditos tradicionais (herdeiros de saberes artísticos transmitidos em condições familiares ou da experiência
adquirida na prática circense) ou de novas situações de aprendizado configuradas especialmente a partir da
segunda metade do século XX disponibilizados por meio de oficinas de artistas com carreiras pessoais
distintas ou Escolas independentes como de Jacques Lecoq e Philip Gaulier ou recentemente a Escola de
clown de Barcelona.
Resta encontrar uma definição mais precisa e operacional de palhaço que não seja condicionada
unicamente a certas formas cômicas registradas na história. O seu registro na história é valiosa na medida em
que nos permite acompanhar o dinamismo de suas trajetórias em épocas distintas. Mas até para ver na história
o aspecto que interessa, isto é, investigar a natureza dramatúrgica dos recursos da palhaçaria, é preciso definir
o que se está buscando desvendar, pois o primeiro obstáculo para isso é que em geral os cômicos de cada
época empregam em sua arte uma multiplicidade de formas artísticas como música, mímica, malabarismo,
trabalho de ator, a dança, técnicas circenses técnicas narrativas entre tantas outras e adotam uma diversidade
de estratégias cômicas como a paródia, a alegoria, o humor, a piada, a chiste, a caricatura entre tantos outros
recursos para desenvolver a sua palhaçaria.
Se o sufixo ria tem relação com lugar, atelier e oficina como do alfaiate ou o mercado de venda de
peixe com peixaria, pão e padaria, então porque não palhaço e palhaçaria? O lugar onde consumimos o
produto palhaçaria é no corpo do palhaço, ele carrega e vende a sua palhaçaria para onde vai, seja nas ruas,
nos circos, teatros ou hospitais. O termo cenicidade, vem ajudar a destacar a cena apresentada no corpo de
cada um, sugeri este termo em artigo sobre etnocenologia e a criação do ator dançarino. (Repertório: 1999,
63) Empreguei a palavra cenicidade para referir-me a um conjunto de qualidades que atuam formando e
informando as corporeidades de cada um, definindo qualidades cênicas específicas. Para além da noção de
que existem técnicas corporais que orientam as nossas ações cotidianas, precisamos perceber que quanto
maior a freqüência e a intensidade de qualquer experiência física, maior será a sua influência ou a sua
presença em nosso corpo, na nossa consciência neuro-muscular, na nossa cenicidade. A cenicidade é a cena
apresentada pelo corpo de cada um; é o potencial cênico impregnado voluntário e/ou involuntariamente no
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corpo de cada um. A cenicidade do palhaço é a sua palhaçaria. A palhaçaria é a cenicidade de um corpo
risível, que traz a marca de um corpo que constantemente se coloca como objeto do riso dos outros. Este é um
dos lugares possíveis de se enxergar uma etnocenologia do palhaço.
2. Pausa para ajustar o foco
Um aspecto metodológico a ser elucidado é que o ângulo principal de minha fala parte da minha
condição e meu ponto de vista como pesquisador. Uma abordagem que privilegiasse minha ótica como artista
daria ênfase a outro ângulo de visão. Os meus quinze anos de experiência contínua com as artes cênicas, dos
quais dez dedicados à palhaçaria nutrem meu olhar que nesta comunicação volta-se para uma definição do
termo palhaçaria. Aproveito a oportunidade para fomentar o diálogo na academia entre artistas e intelectuais,
evitando polarizar suas atividades como registros de universos paralelos e incomunicáveis. Ainda não é fácil
evitar o óbvio erro de reproduzir os rótulos que dividem os primeiros em praticantes e os segundos em
teóricos. Todo artista é um estudioso e é dotado de uma técnica ainda que não se dê o trabalho de tomar
consciência dela por meio da reflexão e produção de um discurso. Mesmo porque, a maioria não é
remunerada para isso. O que torna o trabalho economicamente desinteressante e inviável. Por outro lado, os
estudiosos podem ser verdadeiros artistas na criação e no arranjo de suas idéias.
3. Palhaçaria no século XX
Um dos enganos em relação aos palhaços é acreditar que eles dizem a mesma “coisa”. Em geral essa
redução das possibilidades de leitura numa mesma “coisa” tem a ver com o fato de que, em se tratando da
apresentação de um palhaço, as diferenças, os temas, as técnicas ficam ofuscadas diante da força impactante e
reconhecível de um mesmo princípio em ação: uma pessoa que se coloca propositalmente como objeto do riso
dos outros. Erminia Silva resgatou uma entrevista feita em 1972 com o famoso palhaço brasileiro Piolin na
qual aos 75 anos ele comenta sobre período em que foi eleito pelos intelectuais da semana de 22 (entre os
quais Oswald de Andrade e Mário de Andrade): “Sem querer eu estava totalmente integrado no grupo e, só
não entendo porque os literatos que codificaram e historiaram as artes da época, não incluíram minhas
comédias.” (Silva, http://www.pindoramacircus.com.br)
A dificuldade em reconhecer, detectar e descrever a riqueza técnica e estética presente na palhaçaria
é sintomático no tratamento dado às artes que nos incitam o riso. Mas, apesar desta dificuldade, recorrente na
história, no curso do século XX, a maioria dos precursores de novas abordagens teatrais foi influenciada pela
palhaçaria clássica na revitalização de suas visões. Entendendo a palhaçaria clássica como aquela oriunda
principalmente das tradições circenses como no Brasil o Picolino e o próprio Piolin, de famílias que herdaram
estes saberes como os Colombaioni da Itália, mas também que compunham um amplo repertório utilizado no
Vaudeville e músic hall e mesmo que foram transpostas para o cinema mudo da primeira década do XX.
Vsevold Meyerhold, Jacques Coupeau, Jacques Lecoq, Bertold Brecht, Samuel Beckett e Dario Fo,
todos eles reconhecem a experiência como espectador de apresentações de palhaços como influência decisiva
de seus trabalhos. Esta comunicação vai, além disso, porque procura reconhecer e dispor da consciência
dramatúrgica da prática artística dos palhaços no próprio âmbito do que tenho nomeado aqui de palhaçaria.
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Não podemos mais assistir ao palhaço inglês Joey Grimaldi da virada do século XVIII para o XIX, ou o
palhaço negro brasileiro Benjamim Oliveira atuando na primeira metade do século XX, para observar suas
técnicas em cena, ou perceber como maneja seu corpo cômico, mas podemos imaginar diversos componentes
delas a partir de biografias e diversos outros registros escritos por espectadores de suas atuações. Por
exemplo, recentemente a historiadora Erminia Silva publicou um estudo histórico que acompanhou a
evolução da teatralidade circense entre 1870 e 1910 acompanhando a trajetória biográfica de Benjamim de
Oliveira. (Silva, 2007). Mário Bolognese deu foco para a palhaçararia circense brasileira atual trazendo para o
picadeiro dos estudos, palhaços como Jurubeba, Piquito, Biribinha e Bebé. (Bolognese, 2003) E o ator e
palhaço Marcio Libar fez uma reflexão auto-biográfica da sua experiência com a palhaçaria e do seu contato
com diversos palhaços do mundo incluindo, Nani e Leris Colombaioni (Itália), Chacovachi (Argentina) e
Tortel Poltrona (Espanha). (Libar, 2008).
4. Equívoco, pedagogia e provocação
Hoje há um equívoco que domina o entendimento da palhaçaria de muitos. Na história da palhaçaria
existe uma tradição clássica de relacionamento entre duplas de palhaços onde o chamado Augusto assume
uma postura mais boba, ingênua e desengonçada que se contrapõe ao identificado como Branco que tem uma
orientação de postura mais elegante, metido a inteligente e autoritário em sua relação com o augusto e mesmo
com a platéia. As pessoas hoje, tanto artistas como espectadores, têm uma noção que associa todo palhaço à
imagem do Augusto. É pertinente mencionar que o nariz vermelho associado como a característica principal
da maquiagem do Augusto, segundo a maioria dos historiadores, começou a se generalizar apenas a partir de
1869, a partir de uma experiência ocorrida na Alemanha. De outro lado, o palhaço Branco, é chamado como
tal, porque pintava seu rosto de branco, sobretudo quando atuava em dupla com o augusto. Mas hoje o nariz
vermelho domina como símbolo absoluto da figura do palhaço.
A proliferação desse equívoco, tanto em meios acadêmicos como extra-acadêmicos, por práticas e
apropriações auto intituladas contemporâneas e empreendimentos comerciais massivos ao longo do século
XX, colaram o nariz vermelho à figura do palhaço de modo a caracterizar e conferir-lhe a sua identidade
simbólica principal. Hoje podemos tranquilamente dizer que o nariz vermelho conquistou o status de signo do
palhaço aos olhos do público contemporâneo.
A metodologia de Lecoq deu grande amplitude e peso no processo de descoberta do palhaço pessoal
do ator a partir da exposição da sua fragilidade, desarmado, aberto, constrangido, ora, essas características, à
primeira vista, parecem marcar a imagem associada ao augusto. Lecoq redimensionou o uso do nariz
vermelho, que ao menos desde 1869 começou a ser usado como acessório que indicava a inclinação augusta
do palhaço, para trabalhar outros caminhos que não tinham, necessariamente, relação com a comicidade do
augusto. É possível que a atenção dada ao nariz vermelho, tomada como a menor máscara do mundo, aliada a
busca do palhaço pessoal, na sua pedagogia, tenha enfatizado a reprodução da atitude do augusto,
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favorecendo a lógica da ingenuidade, que nasce de situações de constrangimento extremas, como o caminho
principal para a descoberta do palhaço de cada um.
A sua escola formou gerações de alunos, influenciou a prática artística de grupos
teatrais desde a década de sessenta e disseminou um considerável contingente da técnica do
palhaço como caminho de pesquisa independente e desligado da palhaçaria clássica. Philip
Gaulier, Cal McCristal, Jos Houben, Philip Martz, Bernie Collins, Eisenberg Avner, Luis
Otávio Burnier, Ricardo Puccetti, e Carlos Simioni sendo exemplos de influência direta
e/ou indireta desta tradição, (são alguns dos quais assisti e conheci). Philip Gaulier é hoje o
mais popular pedagogo do clown proveniente desta linha de formação de Lecoq, gozando
do status de uma espécie de mestre desta tradição de abordagem do clown. Na sua
metodologia, (como) Lecoq adota a via negativa, que parece ser muito direcionada à quebra
da auto-imagem da personalidade das pessoas como mecanismo para a descoberta do
palhaço pessoal. Philip Gaulier, que foi formado por Lecoq e foi professor em sua escola,
nos sinaliza esta direção metodológica com o próprio título de seu livro: The tormentor (O
tormentador)
Outra tendência pedagógica que parece reforçar esta tendência de ver no Augusto a
essência do palhaço podemos encontrar em Jesús Jara que deixa claro a sua posição neste
trecho do seu livro sobre o clown:
Antes de nada, quiero aclarar que el término clown, de origen inglés y sinónimo de
payaso, lo utilizo en su concepción global. No me refiero, pues, al personaje de cara
blanca que representa la autoridad y las normas frente a su pareja, Augusto, que
representa la transgresión; y con el que ha formado una de las parejas más populares de
representaciones de payasos, especialmente en el circo. Augusto es, en mi opinión, el
verdadero payaso o clown, tanto por su completa personalidad como por su actitud y
comportamiento. (Jará: 2000, 20)
O modo como registra seu pensamento aqui parece expulsar o palhaço Branco de
pretender uma condição de palhaço. Seu modo de ver delimita, define e diferencia o Branco
do Augusto, reforçando a visão de que o universo do autêntico palhaço pertence e está
associado às características, atitudes e comportamentos do Augusto.
Nesse ambiente pedagógico, parece não haver muito oxigênio para o palhaço Branco, e outras
possíveis inclinações de palhaçaria se desenvolver. Parece que nesta disputa simbólica apenas o Bufão
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conseguiu assegurar seu espaço. Gaulier, por exemplo, tem no Bufão a sua marca registrada. Para Gaulier, o
Bufão é uma espécie de clown invertido que balança entre o grotesco e o charme. Gaulier, para explicar o
nascedouro do Bufão, ao menos na França, nos remete a uma alegoria de sua origem nas pessoas consideradas
feias durante a Renascença. Gaulier afirmou que pessoas excessivamente feias, leprosos e aqueles com
cicatrizes desfigurantes ou deformidades eram banidos para os pântanos. Com exceção no período dos
festivais, quando era esperado dos bufões (ou “pessoas feias”) que entretecem as “pessoas bonitas”. Durante
suas apresentações, o objetivo dos bufões era se sair insultando e enojando as “pessoas bonitas” o máximo
possível. Tipicamente, o Bufão atacava o setor dominante da sociedade como o governo e a Igreja Católica
Romana.
Mas sobre o desaparecimento, a impopularidade e a quase extinção de palhaços Brancos, o próprio
Leris Colombaioni, herdeiro da tradição de palhaçaria dos Colombaioni, se queixou recentemente em uma
oficina no Rio de Janeiro que os acordes e as cores do palhaço Branco estão faltando. Os acordes que
convocam o mundo do bobo e ingênuo a se friccionar com o peso da realidade que às vezes cabe ao palhaço
Branco encarnar. Mas também porque a atitude submissa, flexível, ingênua e tímida do Augusto não pode ser
a única trilha de reações às tragédias e situações que a nossa condição humana nos expõe. Ademais, é
interessante que o palhaço Augusto tenha obstáculos evidentes e definidos, pois muitas possibilidades
dramatúrgicas nascem dos conflitos e das contradições. Um dos problemas atuais da palhaçaria é uma
proliferação e onipresença de palhaços Augustos na máscara e na atitude, e esta presença se torna muitas
vezes monótona porque não converge para direção alguma, não há contraponto com realidades que poderiam
oferecer resistência e fricção na geração de uma comicidade mais rica e poderosa.
Um olhar atento para muitas apresentações que fazem uso da palhaçaria ou simplesmente se apropria
da figura simbólica do palhaço, mostram que parece haver uma crença de que a combinação de uma presença
psicofísica aberta, aparentemente sem medo de se expor e improvisação, são condições suficientes para dar
forma aos conflitos, fragilidades e contradições humanas de modo risível. Infelizmente, isso virou uma
fórmula aplicada com uma freqüência que muitas vezes satura, empobrecendo as trilhas dramatúrgicas que
podem levar a outros lugares de exposição da nossa humanidade. O perigo a ser evitado é de aceitar que o
estado de alegria auto-suficiente, amor próprio, ingenuidade e vergonha se tornem material interessante o
suficiente para ser apresentado. O fator variável sendo apenas a personalidade de quem estiver em cena. Em
certo sentido é uma visão de uma opressão terrível: a imposição de um mundo fechado, de um eterno e
previsível perdedor feliz, uma vítima satisfeita.
Os espectadores sentem que é chato porque é uma imagem opressiva de um mundo opressor. É uma
visão que, às vezes, reduz a imagem do ser humano a carneiros dispostos a serem dominados pelos pastores
das igrejas e instituições morais, sociais, políticas e ideológicas. O problema deste cardápio é que obriga a
platéia a engolir o mesmo prato. Se o público apenas vê no palco o Augusto, fazendo e agindo como tal, então
o espectador estará sempre sentado na cadeira do Branco, adulto, opressor, equilibrado e controlado. É uma
atitude que se acomoda em apenas provocar no espectador o riso social de Bérgson, colocando o espectador
no papel de rir da estupidez do outro, o riso da correção via a punição do ridículo. Sem chances de desconfiar
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ou dar espaço para ele perceber ou imaginar o quanto de fragilidade, contradição e loucura há em sua própria
condição.
5. Esta definição de palhaçaria
Antes de apresentar a definição que formulei gostaria de citar a definição de palhaço que circula na
legislação brasileira atual:
Segundo a definição das Diretrizes Legais que legislam as funções em que se
desdobram as atividades de artistas e técnicos em espetáculos de diversões hoje no
Brasil;
Palhaço – Realiza pantomimas, pilhérias e outros números cômicos, comunicando-se
com o público por meio de cenas divertidas; caracteriza-se através de roupas
extravagantes e empregando máscara constante, individual e intransferível ou
disfarces cômicos, para apresentar seus números; orienta-se por instruções recebidas
ou pela própria imaginação, fazendo gestos característicos, podendo se apresentar só
ou acompanhado. (Decreto No. 82.385, 1978)
Esta definição começa investindo numa atribuição do que o palhaço faz, segue traçando as
características do palhaço e termina abrindo para duas possibilidades de direção do seu trabalho criativo, por
alguém que lhe orienta ou pela própria imaginação. Sendo que pode se apresentar só ou acompanhado. A
definição que procuro usar pode estar nela, mas acho que a maioria dos comediantes também cabe nela já que
a caracterização do palhaço se dá, nesta definição, pelo uso de uma indumentária constante e individual ou
não, “através de roupas extravagantes e empregando máscara constante, individual e intransferível ou
disfarces cômicos”. A meu ver, esta definição tem o cuidado de se basear principalmente na figura do palhaço
clássico, e a esperteza de se abrir para outros disfarces cômicos, mas não toca, pelo menos não explicitamente,
no trabalho que distingue sua comicidade de outros, o princípio inevitável com que o palhaço constrói a sua
ação dramatúrgica: colocando-se como objeto e alvo do riso do público.
Na acepção que uso o termo palhaçaria, esta é a experiência cênica de um atuante (palhaço) engajando
a platéia (espectador) num estado lúdico, com consciência (técnica), usando principalmente o dispositivo de
expor (exposição) a si mesmo, como objeto do riso. Qualquer atuante que faz isso está usando, manejando e
se movimentando no universo da palhaçaria. É possível abordar a palhaçaria como um gênero dramatúrgico,
embora esta não seja meu objetivo principal aqui. Subentenda-se que palhaçaria e arte do palhaço são
definições aqui tomadas como praticamente sinônimas.
1.
palhaço
2.
platéia num estado de prazer lúdico, em que o riso é uma das reações físicas do espectador que
sinaliza sua receptividade, seu divertimento e sua conexão com a apresentação.
3.
consciência é técnica, propósito artístico. Consciência está vinculada a experiência técnica e criativa
e deriva de uma série de experiências individuais ou através da orientação de uma tradição. Tradição
249
deriva de família ou escolas artísticas. Você apenas chega à técnica por meio da experiência. Mas
experiência é sempre adquirida via sua incorporação pessoal e assimilação de transmissões e
apresentações.
4.
o uso do dispositivo da exposição de si mesmo como objeto do riso torna a sua técnica dramatúrgica
distinta de outras abordagens cômicas. O lugar e motivo que incita o riso estão necessariamente na
cena apresentada pelo corpo e comportamento cênico do próprio atuante.
Meu esforço em pensar a palhaçaria em sua singularidade não é para reinventar a palhaçaria como
gênero, ela serve mais para remover noções de comicidade que não lhe são próprio e assim obter uma
ferramenta útil para encontrar princípios reconhecíveis de palhaçaria através história e em diferentes culturas
e contextos teatrais. Pensar palhaçaria partindo da definição do palhaço como aquele atuante que produz na
platéia um efeito ou estado lúdico por meio de uma técnica consciente de exposição de aspectos da sua
personalidade, mediada por uma máscara ou não, como objeto de riso - esta é a chave que estou propondo
para pensar e pesquisar palhaçaria. Dividindo os elementos que formam a base do que gera palhaçaria, temos:
1. O palhaço; 2. evocação de um estado lúdico, de modo a despertar o interesse da platéia pelo riso; 3.
Consciência – toda essa operação é orquestrada com consciência técnica ou técnica artística; 4. A autoexposição de sua pessoa como objeto do riso como a principal técnica de atuação. As direções dramatúrgicas
do engajamento desses elementos por cada artista são tão vastas e diversas quanto o número de artistas e
abordagens propostas.
Retomando. Entendendo a palhaçaria como dramaturgia da arte do palhaço e definindo a arte do palhaço
como um atuante evocando uma platéia a um estado lúdico via uma técnica de exposição de si mesmo como
objeto de riso, duas conseqüências conceituais estão sendo sinalizadas: seu alcance se torna mais abrangente e
ao mesmo tempo mais específico. Mais abrangente porque estabelece que as técnicas próprias do palhaço préexistem ao modo como foi registrado na história européia, seja antes ou a partir do século XVIII. A
configuração das características do palhaço europeu moderno não define o único momento e modo em que o
ser humano usou seu corpo como objeto do riso do outro. Além disto, atividades que mobilizam estruturas
humanas equivalentes especializadas em incitar o riso em comunidades extra européias sempre existiram e
continuam existindo, embora cumpram funções sociais diferentes e situam-se em outras instancias culturais.
Mais específico no sentido de que o que pode ser apontado como aspectos próprios, singulares e
específicos do campo da palhaçaria podem ser reconhecidos com maior precisão dramatúrgica. No entanto
concordo com J. L. Austin que “seria um erro assumir que uma maior precisão constitua sempre um
aperfeiçoamento; pois, em geral, é mais difícil ser mais preciso; e, quanto mais preciso um vocabulário for,
menos fácil será adaptar-se às exigências de situações novas.” (Austin: 2004: 136) Um dos propósitos desta
definição de palhaçaria está na especificidade e universalidade que o seu alcance sugere. É um ponto a partir
do qual podemos surpreender uma diversidade cômica, uma multiplicidade de aspectos dramatúrgicos,
trajetos de palhaços e trajetórias de palhaçarias.
250
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251
A Dramaturgia do Circo-Teatro encenada em São Paulo entre 1927 e 1968
Eliene Benício Amâncio Costa
Instituição: Universidade Federal da Bahia
Palavras-chave: circo-teatro, dramaturgia, teatro popular
Resumo:
A pesquisa da dramaturgia do circo-teatro encenada em São Paulo, entre 1927 e 1968,
está sendo possível após o levantamento de textos no Arquivo Miroel Silveira, na Biblioteca da
Escola de Comunicações e Artes de São Paulo. Neste arquivo estão devidamente catalogadas
1088 peças de circo-teatro, as quais fazem parte dos 6.500 processos de censura prévia ao
teatro, documentação resgastada pelo professor Miroel Silveira em 1988, da Divisão de
Diversões Públicas do Estado de São Paulo. Nesta pesquisa o meu interesse é fazer uma
amostragem dessas peças, levando em consideração os autores e peças mais encenadas, assim
como a diversidade dos gêneros (comédias, dramas, melodramas, farsas, burletas, esquetes
etc.). Esta fase da pesquisa faz parte do meu projeto de pós-doutorado “O trânsito entre o Circo
e o Teatro: a construção da dramaturgia do circo-teatro brasileiro”, que está sendo realizado
por mim na UNESP, São Paulo, sob a supervisão do Prof.Dr. Mário Bolognesi.
O interesse deste estágio pós-doutoral reside na investigação da dramaturgia construída
para o circo-teatro que surgiu na primeira metade do século XX.
O circo-teatro é uma modalidade de circo, cuja autoria é dada ao palhaço Benjamim de
Oliveira, que na primeira década de 1900 apresentou no circo Spinelli, Rio de Janeiro, dramas
românticos e melodramas, em um palco, além do espaço do picadeiro. Nesta modalidade de
circo, o espetáculo circense é estruturado em duas partes. Na primeira são apresentados os
números de variedades, como acrobacia, trapézio, corda etc. Na segunda parte são realizadas
apresentações teatrais, destacando-se as pantomimas, farsas, comédias e dramas.
Durante a realização de minha tese de doutorado “Saltimbancos Urbanos: a influência do
circo na renovação do teatro brasileiro nas décadas de 80 e 90” foi possível constatar o quanto
o circo-teatro influenciou os encenadores e atores na construção de uma nova poética teatral
nos espetáculos e na interpretação de atores. Documentos levantados no Arquivo Multimeios
do Centro Cultural São Paulo apontavam para uma dramaturgia com características próprias,
produzida a partir de obras melodramáticas, dramas românticos, peças históricas, operetas e até
252
tragédias para o que é conhecido como o drama circense; nas comédias circenses as referências
apontam para as farsas, a commedia dell’arte, as chanchadas e pantomimas.
Na bibliografia levantada vários autores citam obras que haviam sido apresentadas
dentro dos circos. Em 23 de outubro de 1902, o jornal Comércio de São Paulo anuncia a
apresentação da pantomima “D.Antônio e os Guaranis”, inspirada no livro O Guarani de José
de Alencar, escrita por Manoel Braga, especialmente para a companhia do Circo Spinelli. A
pantomima possuía 22 quadros, 70 pessoas em cena e 22 números de música, sendo a mise-enscene de Benjamim Oliveira e Cruzet. ¹ Em 14 de janeiro de 1905 já aparece um cartaz do
Circo François, como Circo-Teatro François, anunciando a presença de Eduardo das Neves,
cantando suas modinhas no violão, assim como figurando nas pantomimas, entre as quais o
drama “Os Bandidos da Serra Morena” Outro cartaz de 22 de março de 1905, anuncia a peça
“O Olho do Diabo” ou “A Fada e o Satanaz”, escrita especialmente para essa companhia. O
Circo François apresentou outras pantomimas em São Paulo: “Janjão, o Pasteleiro”, de
Eduardo das Neves, “Nhô Bobó”, “Os Guaranis”, “Um Bicheiro em Apuros” e “Os Milagres
de Santo Antônio”. ²
Em outubro de 1910, um anúncio publicado em A Careta anuncia a peça “O Diabo e o
Chico” junto a outras farsas encenadas pela Companhia Spinelli: “Filho Assassino”,
“Irmãos Jogadores”, “Negro do Frade”, “Matutos na Cidade”, “Collar Perdido”, “Punhal
de Ouro”, “Filha do Campo”, “Princesa Crystal” e o drama “A Noiva do Sargento”, além de
uma revista sobre a vida artística de acrobatas e ginásticos, intitulada “Scenas da Vida Artística
ou Emprezarios Aventureiros”, ambas de autoria de Francisco Guimarães. ³
Os anúncios citados anteriormente mostram apresentações de dramas e farsas no circo,
apontando a existência de espetáculos desde 1902, assim como o anúncio de um circo-pavilhão
em São Paulo, em 1905.
Sem dúvida foi a dupla Spinelli-Benjamim que consolidou o circo-teatro no Brasil.
Levou para o circo os dramas, assim como as comédias ligeiras, as farsas e as chanchadas.
Durante 30 anos o Circo - Pavilhão de Spinelli ficou armado na Praça da Bandeira, no Rio de
Janeiro. Benjamim de Oliveira, além de palhaço era também o “ensaiador” ou diretor de cena.
Spinelli era um grande empresário e sabia divulgar seus espetáculos. Entre várias montagens
destacavam-se as duas maiores atrações de todos os tempos: “A Vida de Cristo”, célebre drama
em versos de Eduardo Garrido, apresentado nas quinta e sexta-feira santas, e “A Viúva
Alegre”.
Levantar essas obras anunciadas e outras que fazem parte do repertório do circo-teatro
brasileiro em busca de suas características quanto ao drama circense e à comédia, em arquivos
253
de São Paulo, a exemplo do Arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo, das Bibliotecas
da UNICAMP e USP (Arquivo Miroel Silveira), e outros arquivos referentes ao circo
paulistano; assim como nos arquivos da Escola Nacional de Circo do Rio de Janeiro e da
FUNARTE, será fundamental para a análise da construção do que hoje é considerada como a
dramaturgia do circo-teatro.
Carlos Alberto Soffredini, dramaturgo brasileiro que se dedicou a buscar as
características do drama circense, escreveu a peça “Vem buscar-me que ainda sou teu”,
baseado em diversas peças de circo-teatro que assistiu na periferia de São Paulo, na década de
1970. Ele criou uma obra meta-teatral na qual além de introduzir um drama circense na estória,
ele conta a trajetória de uma companhia de circo-teatro mambembe, mostrando exatamente a
decadência na qual se encontram essas companhias circenses em meados da década de 70.
Apesar das dificuldades vividas por essas companhias de circo-teatro sua produção
dramatúrgica mantém-se ainda presente após 1 (um) século ininterrupto. Necessário faz-se a
análise dessas “dramaturgias circenses”, considerando a sua variedade de estilos (dramas,
farsas, pantomimas e comédias) e se é possível de fato caracterizá-las como modelos singulares
que absorveram várias influências como o melodrama francês e as comédias surgidas nos
Theâtres de la Foire, na França, por influência da commedia dell”arte, italiana, além da
influência das companhias portuguesas e francesas que aqui chegaram com esquetes,
chanchadas e farsas.
NOTAS DE FINAL DE TEXTO:
1
ARAÚJO, Vicente de Paula. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo: Perspectiva,
1981.
2
ARAÚJO, Vicente de Paula. Op.Cit. p.116
3
RUIZ, Roberto. Hoje tem espetáculo? As origens do circo no Brasil. Rio de Janeiro: INACEN,
1987. p.37.
4
RUIZ, Roberto. Op. Cit. p.37.
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256
Enigmas da santidade:
Uma leitura antropológica da dramaturgia de Qorpo-Santo
Eva Beatriz Holland
Mestranda pelo Programa de Pós Graduação
em Antropologia Social – PPGAS
Universidade Federal do Paraná – UFPR
Resumo
A proposta deste trabalho é estabelecer as relações existentes entre a narrativa da
dramaturgia do escritor gaúcho Qorpo-Santo (1829-1883) e o chamado “Teatro do
Absurdo”, que teve sua expressão na França a partir da metade do século XX. Apresento as
dificuldades que encontro ao fazer uso da dramaturgia para analisar uma proposta cênica
para o século XIX, na qual pedofilia, homossexualismo e poligamia, baseadas em relações
de parentesco reais e ficcionais, seriam expostos no palco sob o formato de personagens
que se transformam ou desaparecem em um enredo ao mesmo tempo confuso e inovador.
Passo a considerar o processo narrativo que se manifesta através da performance da
linguagem, e que se constitui num campo propício para a interpretação da obra através das
noções de drama social e processo ritual, conforme Victor Turner. Entendendo a
monomania como um “comportamento espetacular” e analisando a noção de corpo presente
em Qorpo-Santo, busco na Etnocenologia elementos que me auxiliem a decifrar os enigmas
da santidade contidos nestes textos teatrais.
Palavras-chave: Antropologia – Etnocenologia. Teatro do absurdo – Qorpo-Santo
Introdução
Há tempos tenho-me inquietado com a “dramaturgia” de Qorpo-Santo, autor gaúcho
do século XIX, desde que tomei conhecimento destes textos quando fazia parte do já
extinto Grupo Qorpo de Teatro da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Por inquieta
que fiquei quanto à proposta cênica deste autor, tentei trazer o estudo de suas peças para o
campo das Ciências Sociais, discutindo-as em meu Trabalho de Conclusão de Curso, pelo
que não fui muito feliz, pois utilizei métodos de análise propostos pela dramaturgia, que
naquele momento não compreendia como insuficientes para apresentar respostas às minhas
inquietações. Ingressei no mestrado em Antropologia Social com novas questões, não mais
quanto à dramaturgia, mas quanto à narrativa que diz respeito à idéia de santidade e
impossibilidade de santificação, presentes nos textos de Qorpo-Santo. Há pouco tempo
257
tenho tomado conhecimento sobre a Etnocenologia, diante da qual crescem minha
curiosidade e expectativa para, junto à Antropologia, mesmo que não dar respostas
imediatas a perguntas já feitas, chegar o mais próximo possível das perguntas corretas sobre
esta narrativa e os enigmas da santidade nela presentes.
O que a dramaturgia me disse até agora a respeito de Qorpo-Santo e o Teatro do
Absurdo
Os textos teatrais de Qorpo-Santo foram-me apresentados como textos carregados de
grande carga de sexualidade e agressividade, como se o autor tivesse o intuito de chocar a
sociedade provinciana de Porto Alegre-RS no século XIX, e encenados pelo grupo Qorpo
de Teatro Universitário dentro de uma estética onde a sexualidade beirava a pornografia e a
agressividade atingia tons ainda mais viscerais, com o intuito do grupo de chocar a
“sociedade provinciana” de Toledo-PR no final do século XX. Posteriormente pude
perceber que a apropriação de textos de Qorpo-Santo por sua característica de ruptura
traduzida em uma estética de agressão é freqüente entre diretores e atores de outros grupos.
Na maioria das vezes, este autor é citado como pertencente à escola do “Teatro do
Absurdo”, o que gera divergências. Primeiramente porque os autores das primeiras peças
reunidas sob esta insígnia dizem que o “Absurdo” não foi exatamente uma “escola”. Depois
porque se diz que Qorpo-Santo não poderia fazer parte desta “escola”, pois seus textos
foram escritos aproximadamente 100 anos antes das primeiras manifestações das peças “do
Absurdo”. E para os mais extasiados, que tentaram conclamá-lo precursor desta “escola”,
existem os que dizem que nosso autor nem poderia ser considerado “dramaturgo”, tão
distantes estão suas peças de qualquer estilo teatral.
O Teatro do Absurdo teve início, segundo o crítico teatral Martin Esslin, por volta de
1950. As peças teatrais que surgiram, cujos principais autores citados por Esslin foram
Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Arthur Adamov e Jean Genet, mantiveram o propósito de
representar a sociedade atual, porém, “não mais seus mitos, mas a desconstrução deles”
(ESSLIN, 1968), tentando levar ao palco formas de representações estéticas e verbais que
condissessem com sua época. Esslin relacionou estas peças à filosofia existencialista
citando Franz Kafka e Albert Camus como expoentes para a reflexão das peças as quais
258
atribuiu a nomenclatura “Teatro do Absurdo”. O que, para Esslin, distancia os textos dos
filósofos, dos textos dos dramaturgos é que os primeiros contam nos palcos histórias de
maneira planejada, seguindo os padrões conhecidos pelo teatro clássico, com personagens
claramente identificáveis em um teatro sobre o absurdo. No segundo caso, Esslin reúne
estes e mais autores sob uma característica essencial, identificando suas peças como não
tendo a preocupação em manter uma ordem e, sequer apresentar um final. Desta forma, não
se preocupam em falar sobre o absurdo, mas representá-lo no palco sem a preocupação
estética da peça tradicional “bem-feita”.
Com a representação de peças do chamado “Teatro do Absurdo”, em 1966 foram
resgatadas peças de José Joaquim de Campos Leão (1829 – 1883), pseudônimo QorpoSanto. Os textos teatrais de Qorpo-Santo são parte da “Ensiqlopédia, ou Seis mezes de uma
enfermidade”, compêndio composto por poesias, aforismos, textos satíricos/humorísticos,
autobiográficos, estudos do Novo Testamento e também uma proposta para a simplificação
da gramática da Língua Portuguesa, cujas normas foram aplicadas em seu nome e em seus
textos. Suas peças possuíam um conteúdo talvez não tão estranho à época em que escreveu,
dado às peças de que temos registros, sendo, porém inovadoras quanto ao seu caráter cênico
e dramatúrgico. Rodrigo Costa Marinho, em sua dissertação de mestrado, nos traz um
panorama do teatro brasileiro no século XIX na tentativa de apontar possíveis influências e,
principalmente mostrar no que consistia a ruptura apresentada por Qorpo-Santo. Por suas
peças não terem sido representadas em sua época, não podendo, portanto, ter exercido
influência alguma no século XIX, é difícil situar Qorpo-Santo na História do Teatro
brasileiro. As críticas destinadas às peças de Qorpo-Santo são normalmente em virtude da
estrutura apresentada, que foge aos padrões da dramaturgia. São 17 comédias de curta
duração6, das quais uma está incompleta, aproximadamente 200 personagens, mais 40
menções a personagens (homens, mulheres, crianças, vozes, músicos), os quais nem sempre
mantém o mesmo nome no decorrer das peças, nem sempre são personagens distintos e por
Ordem cronológica das Peças de Qorpo-Santo, todas datadas de 1866: O Hóspede Atrevido ou O
Brilhante Escondido (31/01); A Impossibilidade da Santificação ou A Santificação Transformada
(12/02); O Marinheiro Escritor (16/02); Dous Irmãos (24/02); Duas Páginas em Branco (05/05);
Mateus e Mateusa (12/05); As Relações Naturais (14/05); Hoje eu sou um; e Amanhã Outro
(15/05); Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte (16/05); A Separação de Dous Esposos (18/05); O Marido
Extremoso ou O Pai Cuidadoso (24/05); Um Credor da Fazenda Nacional (26 e 27/05); Um
Assovio (06/06); Certa Entidade em Busca de Outra (10/06); Um Parto (16/06) e Uma Pitada de
Rapé (sem data e incompleta).
6
259
vezes, nem aparecem. É possível identificar muitos destes personagens como sendo o
próprio Qorpo-Santo, até mesmo mais de um em uma única peça. As noções de tempo e
espaço, lugar da ação e divisão de cenas são estranhas até mesmo ao século XX, e ainda se
apresentam como desafio a diretores e atores que se propõe a encená-los. Como afirmar se
isso se deve a um não conhecimento por parte do autor de estruturas de produção de textos
teatrais? Como afirmar que o uso destas estruturas não foi considerado como relevante e o
autor ignorou propositalmente seu uso? Não posso afirmar nem uma coisa nem outra. Um
texto teatral é reconhecido como tal por sua estrutura dramática ou pelo fato de ser
representado por alguém para alguém? Se a primeira opção for verdadeira, não posso
estudar as peças de Qorpo-Santo fazendo uso da dramaturgia. Se a segunda o for, ainda
assim a dramaturgia não me ajuda, uma vez que estas peças fogem à estrutura dramática,
sendo necessário outro método de análise para este “comportamento espetacular”. “Este”,
não o ato da representação, mas o ato da escrita.
O que a Etnocenologia está me dizendo a respeito de Qorpo-Santo e o Teatro do
Absurdo
O objeto da Etnocenologia, segundo Bião, são os comportamentos humanos
espetaculares organizados, destinados a um público ativo ou passivo, sendo tanto práticas
artísticas quanto práticas cotidianas dignas de atenção dos etnocenólogos. Restringindo às
práticas espetaculares, o que dizer de criações individuais e textos dramáticos? Como a
Etnocenologia pode me ajudar a entender Qorpo-Santo se do que disponho são de textos? O
que diferenciaria meu trabalho (de acadêmica de Antropologia que faz uso da
Etnocenologia) do de um acadêmico de Teatro (que faz uso da dramaturgia)? Poderia
aplicar a Etnocenologia ao estudo de peças de Qorpo-Santo que são representadas hoje, em
que há (alguma) aceitação por parte do público, tendo Qorpo-Santo encontrado respaldo no
Teatro do Absurdo para que suas peças fossem representadas 100 anos após serem
concebidas, e deixar seus textos para o estudo da dramaturgia. Mas, e se meu interesse é
mais pelo texto do que propriamente pelo espetáculo? Explico: posso tentar situar QorpoSanto na vertente da dramaturgia aberta, próxima ao Teatro do Absurdo, encontrando
respostas para um tipo de teatro encenado no século XX. Mas não posso ignorar que estou
260
diante de textos escritos no século XIX. Considerando que seus textos fogem às 200.141
possibilidades cênicas propostas por Souriau, me encontro até em dificuldade de enquadrálo como parte do teatro ocidental...
As questões abertas na “dramaturgia” de Qorpo-Santo causam estranhamento pela
aparente não relação do conteúdo das peças ao nome do autor. Por vezes perguntam-me
como temáticas como sexo, homossexualismo, pedofilia, adultério, e violência são
presentes em textos de um Qorpo que se quis Santo. A liberdade encontrada no palco é
indicada em rubricas, na fala dos personagens, nas intenções e nos comentários do autor
inclusos nas peças. E isto é estranho ao teatro produzido no século XIX, e não apenas pelo
fato de não se expor a sexualidade no palco, mas sim, e principalmente, pelo discurso sobre
o corpo ser outro. Segundo Marinho, Qorpo-Santo aproxima-se mais de nossa idéia atual
sobre o corpo do que a encontrada no século XIX, não no sentido “comercial” de exposição
do corpo, mas sim quanto a sua “dessacralização”.
Vendo dos desdobramentos da representação, utilização e ressignificação
do corpo na modernidade, compreendemos que já uma mensagem a ser
apreendida deste esquecido dramaturgo. Qorpo-Santo escrevia para
satisfazer seu próprio desejo, desnudava o corpo segundo os ditames de
sua sexualidade exacerbada, numa forma crua e honesta de representar o
humano. Este autor não expunha o corpo ou o desejo como estratagema
para abarcar o público. Buscava Dionísio.” (MARINHO, 2008, p. 45-46)
Não encontro na dramaturgia respostas sobre estes “esqritos”. Em Qorpo-Santo não
tenho apenas peças teatrais nas mãos; tenho uma densa narrativa a respeito dos enigmas da
santidade em um corpo. Se o texto é ou não dramático já é agora uma discussão que foge à
minha preocupação. Procurei situar Qorpo-Santo na História do Teatro para mostrar que ele
não cabe ali, para então estudar sua narrativa como presente em textos que se propunham
teatrais, mas representavam uma parte da ação da em sua vida: o próprio ato de escrever
peças como ação teatral diante da sociedade que se ocupava em se ver representada nos
palcos. Minha expectativa para com a Etnocenologia, ciência que estou descobrindo
enquanto tal é para que, juntamente com a Antropologia, encontre ferramentas para o
estudo deste enigmático autor, perigosamente situado entre o sagrado e o profano.
261
O que é comumente atribuído como motor desta “esqrita”, seja ela dramática ou
não, é o conflito que se dá entre o desejo do “qorpo” e a devoção ao sagrado. Este conflito
toma dimensões na narrativa que me leva a pensar em um Qorpo X Santo. Em sua
concepção de corpo, como fonte dos desejos que ultrapassa as crenças e se estabelece como
um impasse à transcendência, espero com a Etnocenologia encontrar um caminho para o
estudo de um “qorpo”: a estética e a performance da linguagem que ele propõe; o impulso
que o desejo promove para os caminhos da liberdade e sexualidade; e a noção de corpo
social, dramático e cênico, para assim, continuar no caminho que já tenho trilhado na
Antropologia no estudo do “Santo”.
Referências
BIÃO, Armindo (org.). Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia.
Salvador: P&A Editora, 2007.
CESAR, Guilhermino. Teatro de Machado de Assis, Qorpo-Santo e Coelho Neto. Rio de
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ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
FRAGA, Eudinyr. Qorpo-Santo: Surrealismo ou Absurdo? São Paulo: Perspectiva, 1988.
MARINHO, Rodrigo Costa. Santificar o louco ou enlouquecer o santo: loucura e ruptura
na dramaturgia de Qorpo-Santo. 2008. Dissertação (Mestrado) - Centro de Ensino Superior
de Juiz de Fora, Minas Gerais, 2008.
QORPO-SANTO. Teatro Completo. Rio de Janeiro: MEC-SEAC-FUNARTE-SNT, 1980.
PRADO, Décio de Almeida. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2003
262
O Sobrado: o comportamento espetacular do homem gaúcho transposto para a cena
Inês Alcaraz Marocco
Doutorado
Departamento de Arte Dramática/Instituto de Artes/UFRGS
Professora de Direção Teatral e Diretora Teatral
Resumo
A literatura é uma fonte inesgotável em material histórico e antropológico que nos permite estudar
na essência uma determinada cultura. Erico Veríssimo, na sua obra O Tempo e O Vento, retrata a
história do Rio Grande do Sul através da saga de duas famílias os Terra e os Cambará. Através da
descrição das situações e dos personagens visualizamos alguns princípios que caracterizam o
comportamento do homem gaúcho.Percebemos também que o contato com a natureza e a constante
situação de guerras moldou o comportamento dos homens e mulheres desta terra,diferenciando-os
das demais regiões do país. Através da pesquisa realizada no meu doutorado, na perspectiva da
Etnocenologia, sobre a questão do espetacular na cultura gaúcha, percebi que alguns
comportamentos do homem campeiro eram recorrentes independentemente do contexto em que se
encontrasse de trabalho, lazer ou de rotina. E que alguns desses princípios desses mesmos
comportamentos são contemplados no romance, descritos por Erico Verissimo. Na criação artística
sobre um fragmento da obra de Erico Veríssimo, intitulado O Sobrado, buscamos resgatar o
comportamento espetacular do homem gaúcho através de um trabalho prático enfocado na Máscara
Neutra e nos elementos da natureza, segundo o sistema pedagógico de Jacques Lecoq.
Palavras chaves- Arte do ator- Etnocenologia- Cultura gaúcha
A literatura é uma fonte inesgotável em material histórico e antropológico que nos permite
estudar na essência uma determinada cultura. Erico Veríssimo, na sua obra O Tempo e O Vento
retrata a história do Rio Grande do Sul através da saga de duas famílias os Terra e os Cambará.
Através da descrição das situações e dos personagens visualizamos alguns princípios que
caracterizam o comportamento do homem gaúcho. Pelo termo gaúcho devemos entender aqui
aquele habitante do interior do Rio Grande do Sul que vive em contato estreito com a natureza e os
animais.
Para entendermos o comportamento espetacular do homem desta cultura, faremos um breve
retrospecto histórico sob a perspectiva História da sensibilidade e da cultura desenvolvida pelo
antropólogo uruguaio José Pedro Barrán7. Abordaremos, para este estudo, somente o primeiro
período de 1800-1860 ao qual ele denomina como período bárbaro. Nesta época, o Uruguai, a
Argentina e o sul do Brasil formavam uma única região, e os habitantes viviam, segundo os
dirigentes políticos da época, um período bárbaro marcado pela sensibilidade dos excessos, a
7
Maiores informações no livro deste autor citado na bibliografía.
263
desordem dos instintos na vida cotidiana e em relação com a morte. Para este autor, a sensibilidade
dos excessos no jogo e lazer, na sexualidade, a violência, a exibição desrespeitosa da morte (...) se
opunha à ‘civilização’, no sentido de repressão da violência, do jogo, da sexualidade e da festa da
morte 8.
Através desta abordagem teremos uma visão mais ampla deste indivíduo que como
qualquer outro ser humano não pode ser compreendido na sua totalidade e complexidade se não
levarmos em conta seu contexto, meio ambiente, costumes e tradições além da história das suas
origens.
Um corpo ‘bárbaro’ modelado pela natureza
Em primeiro lugar temos que situar o contexto geográfico onde surge esse habitante: uma
“terra de Muitos” 9·: numa vasta extensão de terras onde grande parte era desértica, com muitos
animais, muitas frutas, muito silêncio, muitos mosquitos, abundância de água, entre outras tantas
coisas relatadas pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho, quando de sua vinda ao Rio
Grande do Sul. (Cesar, 1981, p 110-111)
Nesta terra de “excessos” habitada por uma população na sua grande maioria de homens,
conviviam índios missioneiros e aventureiros espanhóis num ambiente selvagem onde a
sobrevivência se estabelecia através do combate contra animais e natureza muitas vezes ariscos. Ao
mesmo tempo em que este homem a dominava, ele se identificava . Essa situação de excessos
gerou um tipo contrastante, o gaúcho conhecido também como um vagabundo e ladrão de gado.
Esse “grupo de machos”
10
aprendeu a montar cavalo com os espanhóis e desenvolveu
diferentes maneiras de cavalgar. Exímio cavaleiro, o habitante dessa região se tornou uma extensão
do animal11 e com ele tinha a sensação de dominar o mundo e a natureza ao seu redor.
Sociedade masculina, cavaleira e guerreira
Os depoimentos dos viajantes que atravessaram o Rio Grande do Sul no século XIX
descrevem o gaúcho como apresentando um tipo constratante: grosseiro, rude, cruel e ao mesmo
8
Idem,p.15.
Esta expressão foi utilizada pelo mestre de campo (mestre oficial) e 2° governador do Rio Grande do
Sul, André Ribeiro Coutinho para descrever suas impressões quanto a esta região no século XIX.
10
Essa expressão é utilizada por Ondina Fachel Leal na sua Tese “The ‘gauchos’: male culture and
identity in the Pampa. Tese de doutorado.University of California,Berkeley, 1989.
11
Roger Bastide faz menção a este aspecto, ao comentar que é muito difícil evocar o nascimento e o
desenvolvimento do tipo gaúcho sem fazer referência ao cavalo e ao gado. Segundo Bastide, o RGS seria
mesmo “a civilização do cavalo”. (Bastide, 1980,p.173).
9
264
tempo remarcável pela sua aparência física, generosidade, coragem, hospitalidade e atitude de
cavaleiro entre outras.
O meio ambiente modelou este indivíduo: natureza rigorosa (frio e calor em excesso); a
grande quantidade de animais (comportamento preguiçoso e ladrão, generosidade e hospitalidade
não deixando faltar comida nem cavalos aos visitantes; espírito de independência, insubordinação);
vasta extensão de terras (exímio cavaleiro, destreza, liberdade espacial, orgulho, sentimento de
superioridade e insolência como consciência do seu valor de cavaleiro); excesso de alimentação
com carne (violência), contato excessivo com o abate (indiferença à vida e a morte, crueldade);
meio ambiente silencioso (percepção aguda da natureza e comportamento caracterizado pela
economia de gestos e palavras).
A relação homem x animal era harmônica e ajudava a definir este indivíduo típico da
região. Para Leal (1992:148-149)
Ele celebra seu próprio corpo, sua força, sua virilidade (...). Essa é uma cultura
narcísica que lhe ensina a ter orgulho de si própria, a ser arrogante impositivo e
agressivo. Todos estes elementos se tornam parte da imagem que ele constrói de si
mesmo. Ele é onipotente em relação à natureza e sua fala é plena de metáforas,
tiradas da natureza: ele é um cavalo, ele é um touro, ele é um galo de rinha, ele é
um rio, ele é o vento
Além desse contato tão próximo com a natureza este homem conviveu desde suas origens
históricas até final do século XIX em situações de guerras e conflitos o que o colocava em constante
atitude de defesa e/ou ataques. Tudo contribuiu para fazer do gaúcho um indivíduo combativo desde
os primeiros conflitos em oposição aos bandeirantes paulistas que vinham capturá-los até as lutas
internas de reivindicação de uma maior autonomia para o estado, passando pelos combates pela
apropriação de territórios (entre os impérios espanhóis e portugueses), mas também com os países
vizinhos.
O pampa e o contexto militar e guerreiro nos quais vivam os homens gaúchos são
fundamentais se quisermos compreender o tipo que ele representava nesta época e que ainda
perdura até hoje na imagem que ele mesmo faz de si mesmo.
Como podemos perceber nos depoimentos dos viajantes europeus que estiveram nesta
região no século XIX, esta sociedade masculina, cavaleira e guerreira era a expressão e produto de
sua própria cultura, inclusive seus valores sociais, conforme Margareth Mead12, etnóloga e
psicóloga norte americana.
12
Para maiores informações sobre este assunto se referir a obra Moeurs et sexualité em Océanie. Paris:
Plon (Coll.Terre Humaine),1963.
265
O Sobrado
Percebemos então que o contato com a natureza e a constante situação de guerras moldou o
comportamento dos homens e mulheres desta terra, diferenciando-os das demais regiões do país.
Dois séculos depois, o tipo do gaúcho continua a atrair nosso olhar pelos seus comportamentos e
pelas suas técnicas corporais que são específicas, organizadas, eficazes e tradicionais. Sob o meu
olhar de diretora teatral e na perspectiva da Etnocenologia13, desenvolvi na tese “A questão do
espetacular na cultura gaúcha do RGS-Brasil”14, um estudo sobre as diferentes manifestações e
comportamentos culturais do homem campeiro que vive ainda hoje próximo a natureza no interior
do RGS, como sendo espetacular. Por espetacular, se deve compreender essa física particular da
mente cuja realização, explode numa maneira de ser, de se comportar, de se mover, de agir no
espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar que contrasta com as ações triviais do
cotidiano (Pradier, 1996, p.25).
No séc.XIX, o gaúcho atraia o olhar dos viajantes estrangeiros, pelo seu aspecto físico, sua
atitude superior, espírito orgulhoso e independente, elegância, movimentos eficazes, destemido,
espírito de liberdade ao mesmo tempo, rude, brutal e cruel, remarcável pela sua aparência física,
generosidade, coragem, hospitalidade e atitudes de cavaleiro entre outras. No Sobrado, os sete
capítulos que fazem parte dos dois volumes do Continente, que se passa em fins do século XIX,
percebemos essas mesmas características comportamentais nos personagens masculinos e
femininos. Esses ficam ainda mais aguçados pelas circunstâncias em que se encontram os
personagens: em plena revolução Federalista (1893-95), Licurgo Cambará o intendente ‘chimango’
da cidade de Santa Fé, invadida pelos oposicionistas, os ‘maragatos’, resolve resistir com a família e
os correligionários dentro de sua casa durante 10 dias. Neste período a situação da casa fica
precária, pois, as pessoas ficam doentes, sem comida e sem água.
Como resgatar essas características comportamentais em pleno século XXI?
Para realizar o espetáculo O Sobrado, em primeiro lugar procuramos um espaço que nos
remetesse a um sobrado de verdade e que lembrasse os prédios de fins do século XIX, pois como
pudemos comprovar através da História da sensibilidade e da cultura ,o homem é constituído
também pelo seu entorno, seu meio ambiente. Colocar os atores num espaço adequado a história
13
A disciplina da Ethnoscénologie foi criada em maio de 1995, em Paris, no Colóquio de Formação do
Centro Internacional de Ethnoscénologie. Esta disciplina visa o (...) estudo nas diferentes culturas das
práticas e dos comportamentos humanos espetaculares organizados (...). (Pradier,1996,p.16)
14
Esta Tese de Doutorado foi realizada na Universidade de Paris 8, Saint-Denis sob a orientação do prof.
Dr.Jean-Marie Pradier.
266
com certeza influenciaria na sua criação. Em relação ao processo de criação artística, a ênfase foi
dada para a técnica da Máscara Neutra, conforme o sistema pedagógico de Jacques Lecoq. Com o
intuito de resgatar o vínculo dos personagens e das situações do romance com a natureza,
enfatizamos o trabalho da máscara e os elementos da natureza: Terra, Água, Fogo e Ar. Depois,
esses elementos passaram a ser o alfabeto do grupo para o qual recorríamos a cada vez que
necessitávamos de uma inserção no clima e atmosfera das situações e também de subsídios para a
criação dos personagens. O trabalho com a Máscara Neutra e os elementos da natureza foi
essencial para a criação do espetáculo, pois além de contextualizar o ator nesta cultura que se
caracteriza por um contato estreito com a natureza, os elementos foram utilizados para pontuar,
reforçar ou narrar às situações criadas: o Fogo permeava os conflitos internos entre os membros da
família e externos com a situação de guerra que acontecia fora de casa; a Terra era visível na
composição dos personagens através de suas atitudes e posturas retratando uma educação e cultura
machista, autoritária e repressora; o Ar que se concretiza no vento, que perpassa toda a obra, se
viabilizava no espetáculo através dos movimentos de um coro formado pelas mulheres do grupo,
que a cada passagem em cena tinham a função de instaurar, prevenir ou justificar os acontecimentos
dramáticos da história. E por último, o elemento Água, que por sua falta, ocasionava as atitudes de
secura e frieza das pessoas, assim como a intolerância.
A guisa de conclusão podemos afirmar que, através da recepção do público e da crítica,
conseguimos atingir os nossos objetivos de entreter e envolver as pessoas , emocionando-as e
reportando-as para um outro universo, o da ficção, através do imaginário de cada um .Mas isso só
foi possível pelo longo processo realizado que tinha como princípio trabalhar com os elementos da
natureza, resgatando assim a essência do comportamento do gaúcho, com as suas especificidades
contrastantes e por isso espetacular.
Bibliografia:
BARRÁN,José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay.T.1: La cultura “bárbara”: 18001860,Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental/Facultad de Humanidades y Ciências,1990.
BASTIDE, Roger. O pampa e o cavalo: formação do RGS.In: Brasil: Terra de contrastes. São
Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980.
CESAR, Guilhermino.Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul 1605-1801.Estudo de fontes
primarias da historia rio-grandense acompanhado de varios textos. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 1981.
LEAL, Ondina Fachel. Honra, morte e masculinidade na cultura gaúcha.In: Cadernos de
Antropologia n°6,Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 1992.
PRADIER, Jean-Marie.Ethnoscénologie:La profondeur des émergences.In: Internationale de
l’imaginaire,nouvelle série,n°5- La scène et la terre,1996.
VERISSIMO, Erico. O Continente vol I e II . O Tempo e O Vento. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
267
Transposição da linguagem coreográfica dos salões para os palcos
Jomar Mesquita
Professor/Coreógrafo /Graduado
Associação Cultural Mimulus
Resumo
As danças de salão passaram por um processo de profissionalização com inúmeras transformações
nas últimas décadas. A partir do momento em que os bailes populares passaram a ser frequentados
pela classe média, a maneira como os dançarinos originais ensinavam e exibiam sua arte nos salões,
começou a sofrer várias modificações. Inicia-se o surgimento de escolas com um ensino
sistematizado; diversas mudanças nos bailes e seus rituais; a busca por inovações e por um caminho
para efetuar a transposição da linguagem coreográfica dos salões para os palcos como fazer
artístico; a contaminação sofrida por influência de outras modalidades de dança.
Palavras-chave: Dança de salão, Dança cênica, Dança contemporânea.
Hoje vivemos o momento em que se forma e se consolida o que alguns críticos de
dança passaram a denominar “dança de salão contemporânea”. Muitos erros são cometidos
nesta transposição do salão ao palco, nesta transformação do que era entretenimento e lazer
popular para um espetáculo de dança de cunho artístico. Mas ao mesmo tempo, obras
inovadoras e de qualidade inquestionável são convidadas a serem apresentadas nos mais
importantes festivais de dança contemporânea ao redor do mundo, com grande sucesso de
público e crítica, tirando o estigma de amadorismo e cafonice que o estilo carregava.
Ocorrem perdas na cultura popular dos salões, simultaneamente a um crescimento artístico
de suas manifestações cênicas.
Por abrangerem diversos objetivos na sua prática – lazer, entretenimento, esporte,
terapia, arte, exercício físico, socialização – as danças de salão acabam sofrendo por sua
indeterminação como objeto de pesquisa. Apesar de largamente praticadas, elas ficam
relegadas ao não lugar “ [...] dessa cultura quase sempre marginalizada pela historiografia
tradicional [...] ” (TINHORÃO, 1976). Às vezes é considerada pelo campo das ciências
sociais, mas raramente pelo campo da pesquisa artística que aborda somente as danças
consideradas cênicas.
268
Ao longo da história, as danças de salão seguiram um caminho divergente do das
danças cênicas, apesar de não haver distinção entre ambas, no período de seu surgimento,
na corte francesa. Uma época em que o espaço para o baile coincidia com o espaço cênico
onde a corte assistia às apresentações do que era, ao mesmo tempo, o embrião da dança
clássica e das danças sociais e de salão. Com o passar dos anos, o balé se volta para os
palcos, como fazer artístico, enquanto as danças dos salões de baile ficam restritas àqueles
espaços de manifestação da cultura popular, como lazer e entretenimento. Podemos
entender o baile e seus rituais também como um complexo e interessante espaço cênico, se
pensarmos que seus frequentadores são participantes ativos revezando-se, ora na posição de
performers (sob o ponto de vista de que estão dançando e naturalmente exibindo-se tanto
para o seu parceiro como para os que estão ao redor), ora como espectadores (quando estão
assentados nas mesas observando). E podemos observar nos bailarinos das danças cênicas
(balé clássico, dança contemporânea e outras), uma busca de atuação que se aproxime da
naturalidade e do clima do baile15. No entanto, entendendo-se o teatro como espaço cênico
por excelência, os gêneros de danças praticados nos bailes, se mantiveram dali afastados
por séculos, a não ser por apresentações curtas e esporádicas com objetivo de diversão, sem
pretensões artísticas. Somente nas últimas décadas do século XX, podemos observar o
surgimento de espetáculos que têm como base as técnicas das diferentes danças de salão
transpostas para os palcos dos teatros como criações artísticas.
No Brasil, as danças de salão passaram por um processo de profissionalização com
inúmeras transformações, nas últimas décadas. A partir do momento em que os bailes
populares e gafieiras passaram a ser frequentados pelas classes média e alta, a maneira
como os dançarinos originais ensinavam e exibiam sua arte nos salões, começou a sofrer
várias modificações. Inicia-se o surgimento de escolas com um ensino sistematizado. Até
então, a maneira como as danças eram transmitidas e ensinadas, dava-se no âmbito familiar,
de geração para geração; no próprio baile, com a prática e a observação; ou nas gafieiras,
em aulas particulares, normalmente ministradas de forma bastante amadora, por aqueles
dançarinos que se sobressaíam nos bailes. Raramente se via alguma escola especializada no
15
“Marie Taglioni (1827): ‘danse sur un théâtre come elle danserait au bal’. Jacq-Mioche (1998):
‘si elle danse sur scène comme au bal, c’est que la frontière entre le spectacle et la vie s’efface, dans
un mouvement lui aussi propre au romantisme où rêve et réalité fusionnent’. (APPRILL, 2005)
269
ensino das danças de salão. Com o surgimento destes estabelecimentos, inicia-se a busca
por uma formação adequada ao professor e à codificação de uma técnica. Chegando ao
ponto de hoje já termos cursos de graduação e pós-graduação em danças de salão. Ao
mesmo tempo, ocorre o desaparecimento das gafieiras e bailes tradicionais, sendo estes
transferidos para as escolas. Obviamente que estas transformações vão acabar afetando a
maneira de se dançar e os próprios rituais dos bailes. A verdade não é mais o que diz o
senso comum de que a pessoa tomaria aulas de dança para praticar nos bailes. O território
da prática passa a ser, na maioria das vezes, apenas a própria sala de aula. Da mesma
maneira, torna-se difícil de se encontrar num baile, aquele típico dançarino que ali aprendeu
sua técnica, sem nunca ter frequentado uma escola16.
Estes “novos” dançarinos de salão que começam a surgir a partir do final da década
de 1980, modificam também a maneira como aconteciam os “shows” de dança que eram
inseridos num determinado momento do baile. Se antes eram realizados como mera
exibição improvisada de casais, passam a ser coreografados em duos ou grupos formados
por professores e alunos avançados das escolas de dança. Vale lembrar também que isso se
dá num período em que os jovens voltam a se interessar pelas danças de salão –
consideradas démodé, nas décadas de 60, 70 e 80 – e quando diversos outros fatores
contribuem para sua retomada, após algumas décadas de hibernação, quando reinavam o
rock’n roll, o dançar separado e o feminismo (com ideias opostas a muitos dos rituais dos bailes e
preceitos básicos da relação entre um homem e uma mulher quando dançam abraçados). A busca
por inovações no momento de criar as coreografias foi natural. Bem como a busca por aprender
outras modalidades de dança e mesmo o trabalho de ator que, por terem como finalidade o espaço
cênico, poderiam supostamente contribuir nesta transformação da linguagem coreográfica dos
salões para a performance – além de uma preparação corporal mais adequada. No caminho inverso,
bailarinos de dança contemporânea, moderna, clássica e jazz se interessam por aprender e praticar
as danças de salão. Com isso, em muitos casos, intencionalmente ou não, o dançarino de salão sofre
influências e contaminações por estas outras linguagens artísticas.
Antes eram somente números curtos que eram apresentados nos bailes, festas ou
festivais das escolas. A partir do final da década de 1990, estes começam a se estender, com
16
Considerando que estamos tratando dos praticantes do que deve ser considerado como danças de
salão. Diferentemente das danças sociais: estilo menos técnico, como o praticado em bailes de
terceira idade e cerimônias, como bailes de formatura e cerimônias afins.
270
a pretensão de se tornarem um espetáculo com uma proposta artística, passando a ser
apresentados em teatros, por grupos e companhias independentes das escolas que lhes
davam origem. A maioria não conseguiu se desvencilhar da forte ligação das danças de
salão com o mero entretenimento, com uma certa cafonice impregnada e a cara de “show
para turista”. Alguns nem mesmo conseguiram fazer as devidas modificações espaciais
necessárias – ao passarem de um salão a um palco italiano. Outros acabaram danosamente
influenciados por outras técnicas, perdendo a essência de suas origens. Porém, algumas
referências fortes surgiram, com coreógrafos que conseguiram preservar a base da
linguagem coreográfica dos salões de forma inovadora17 e contemporânea; desconstruindo
e relendo as tradições dos salões, criando o que os críticos passaram a chamar “dança de
salão contemporânea”18, dando um tratamento profissional às produções19 e levando esta
nova linguagem a receber premiações e a ser apresentada em palcos e festivais, e para
público antes somente acostumado às danças anteriormente citadas como cênicas por
natureza.
Muitos erros são cometidos nesta transposição do salão ao palco, nesta transformação
do que era entretenimento e lazer popular para um espetáculo de dança de cunho artístico.
Mas ao mesmo tempo, obras originais e de qualidade inquestionável são convidadas a
serem apresentadas nos mais importantes festivais de dança contemporânea ao redor do
mundo, com grande sucesso de público e crítica, tirando o estigma de amadorismo e
17
“Se nada parece novo no mundo atual, não é porque tudo é clichê ou lugar-comum na
contemporaneidade, mas porque a maioria dos artistas usa os signos disponíveis de maneira
previsível. Como a Mimulus não pretende se render a isso, os rumos de cada cena de Dolores são
agradavelmente imprevisíveis.” (AVELLAR, 2008) (crítica a um dos espetáculos da Mimulus Cia.
de Dança, de Belo Horizonte, que faz criações tendo como base as danças de salão)
18
“La compañía brasileña de Belo Horizonte, Mimulus, bajo la batuta coreográfica de Jomar
Mesquita, desarrolla una serie de danzas a partir de los bailes de salón, transformándolos en un
nuevo concepto de danza contemporánea.” (SIMON, 2007). “Mimulus, a companhia que vem
melhor realizando em Minas – talvez no Brasil – uma criação contemporânea a partir de
elementos da dança de salão.” “O erro do raciocínio dos incautos é pensar que a Mimulus não
produz dança contemporânea. A relação de E Esse Alguém Sabe Quem com a dança de salão que
lhe serve de base transcende o gênero e seu simulacro” (AVELLAR, 2003).
19
“Dolores é um espetáculo que transcende a própria dança e, neste sentido, supera os trabalhos
anteriores da companhia. Sua complexidade, desde a estrutura até o jogo de movimento no cenário
e entre este e a luz, resulta em algo particularmente espetacular.” (AVELLAR, 2008) (“Dolores” é
um dos espetáculos da Mimulus Cia. de Dança)
271
cafonice que o estilo carregava. Podemos citar como exemplos festivais e teatros
internacionais como: Jacob’s Pillow Dance Festival, EUA; Madrid en Danza, Espanha;
Festival des Arts de Saint-Sauveur, Canadá; Maison de la Danse, França. Ocorrem perdas
na cultura popular dos salões, simultaneamente a um crescimento artístico de suas
manifestações cênicas.
Estamos caminhando para o empobrecimento das danças de salão como cultura
popular com consequente enriquecimento artístico desse estilo, já visto por alguns como
dança contemporânea? O ensino dos diferentes gêneros para se dançar nos bailes, caminha
para a área da educação – até mesmo acadêmica – e de elite, distanciando-se da área do
lazer e diversão popular? Qual é esse novo produto que está sendo formado? É terapêutico,
é artístico, é educacional? Provavelmente só teremos essas respostas daqui a algumas
gerações. Estamos sendo “assassinos” da cultura popular das danças de salão ou seus
transformadores em uma nova e rica vertente da dança contemporânea?
[...] quem vê o espetáculo não assiste a uma série de números de dança de
salão bons, mas eventualmente conhecidos. Assiste a uma obra que
transcende as técnicas em que se baseia, transforma a dança de salão em
matéria-prima para a construção de algo mais complexo e desconhecido.
(AVELLAR, 2001)
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(Caderno de Cultura).
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2005
273
A Construção de um Texto Cênico a partir da Narrativa Visual de Frida Kahlo
Lilih Curi
Mestranda do PPGAC-UFBA (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia)
Palavras-chave: Frida Kahlo. Narrativa. Imagem. Performance. Performer.
Resumo:
O texto cênico em questão configura-se uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento, sob
a orientação do Prof. Dr. Luiz Cláudio Cajaíba Soares, que consiste num estudo das relações
entre seus elementos constituintes – imagem, construção narrativa e performance. O estudo parte
do espetáculo multimídia “Yo soy o que a água me deu Frida”, do Teatro das Epifanias (SP). A
obra constrói uma narrativa por meio de imagens e textos não-dramáticos criando relações entre
Imagem e Performer, Imagem e Encenação, Imagem e Público. A relação Imagem e Performer é
tratada neste Colóquio: as imagens da obra pictórica da mexicana Frida Kahlo são matéria prima
do performer, o lugar onde ele bebe, se alimenta, e a partir das quais ele cria. Fala-se do corpo
deste artista como mídia primária, e discorre-se sobre os aspectos narrativos-expressivos deste
artista contemporâneo considerando sua historicidade, treinamento, experiência técnica e
artística: o corpo que fala, o corpo que narra. Por fim, discute-se o que o performer produz
cenicamente como construção narrativa na relação entre a poética (de Frida), o corpo e o corpoespaço-tempo: toma-se o performer como artista-criador, e mais especificamente como autor.
O texto cênico em questão configura-se uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento,
sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Cláudio Cajaíba Soares que visa analisar os processos de
construção do espetáculo multimídia “Yo soy o que a água me deu Frida”, do Teatro das
Epifanias, de São Paulo, e dos trabalhos que deram origem a ele – a performance “Na Cinza das
Horas”, o corpo-instalação “Misericórdia” e a Galeria de auto-retratos “corre-dor-de-frida” –
processos criativos estes que se valem da interseção entre a Linguagem da Performance20, as
imagens da obra da pintora mexicana Frida Kahlo e a narrativa realizada por meio de imagens e
por textos não-dramáticos.
As análises dos processos criativos acima citados visam tensionar, primeiramente, a
relação entre a Imagem e o Performer. Num segundo momento, Imagem e Encenação e num
último, Imagem e Público. A título de informação, abordaremos neste Colóquio apenas o
primeiro tópico, Imagem e Performer; e entenderemos, a partir de agora, a palavra Imagem como
figura, gravura, reprodução da obra da pintora Frida, e Performer como o artista cênico da soma
de linguagens (COHEN, 2002). Trataremos desta relação a fim de provocar reflexões acerca da
construção de um texto cênico a partir da idéia de um corpomídia (GREINER e KATZ, 2005) e
da sua conseqüente questão: a do performer como autor.
O texto que se segue pretende a primeira aproximação entre a teoria e a prática, persegue
a elaboração de um conceito a partir do relato de uma experiência.
Na Cinza das Horas: relato de uma experiência solo
“A minha dança é a reza para a vida. O que me faz dançar é o sofrimento que eu carrego dentro
do meu coração. A vida e a morte são inseparáveis, estão juntas dentro de mim enquanto eu
danço, a vida é a reza, a fé e a dança é também a mesma coisa”
Kazuo Ohno
20
De acordo com Renato Cohen: “(...) numa classificação topológica, a performance se colocaria no limite das artes
plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem hibrida que guarda características da primeira enquanto origem e da
segunda enquanto finalidade” (2002, p.30).
274
Atuando em “Os Sertões – A Terra” no Teatro Oficina, tive contato com a obra de
Guimarães Rosa através do conto “O espelho”. Enquanto desenvolvia improvisações a partir do
conto ganhei de presente de uma amiga artista, Ia Santanchê, uma coleção de cartões postais com
auto-retratos da pintora Frida. A obra pictórica de Kahlo serviu de matéria prima para a criação
da performance: foi o centro, a fonte, o instrumento originário do processo criativo, da
experiência, do acontecimento.
Na criação da performance “Na Cinza das horas”21, dentro de uma perspectiva de Working
in Progress, entre os anos de 1999 e 2004, vivi experiências únicas. Ao me debruçar sobre o
binômio vida-morte em Kahlo deixei vir à tona objetos que contribuíram para a criação de uma
atmosfera própria de rituais. O espaço branco e vazio do meu quarto era o local das
experimentações, onde o estado (l'état) de êxtase na cena se estabelecia. Vou tratar a partir daqui
este l'état por deslocamento.
Corporalmente, durante o deslocamento conseguia atingir um corpo estático, ou seja, de
um fenômeno não dinâmico, em que as ações eram sugestionadas pelo próprio deslocamento e se
aportavam no instrumento corpo na sua relação com o ambiente e os objetos. Era como se o meu
corpo fosse uma marionete e eu fosse guiada por fios de energia que me colocavam à mão cada
ação que desenhava/dançava no espaço. Cada apresentação era como um evento sagrado, de
fenômeno único e emoção particular. Às vezes em que eu atingia esse deslocamento, percebia
que tinha realizado um ato xamânico.
Estas experiências singulares eram comumente entendidas como transes por mim e os
artistas-colaboradores22 Camilo Brunelli e Marta Guerreiro; um deslocar-se do aqui e agora,
permitiam que as ações corporais e cênicas oriundas deste deslocamento não fossem passíveis de
repetição, de reescrição dos traços corporais, da cena, tão sutil, viva, presencial. Cada tentativa de
“fazer de novo”, soava a ação inoportuna, falsa, indevida.
Um vestido preto de brechó, uma estrutura de madeira em formato de quadro achada no
lixo, um box de cigarros free, um isqueiro qualquer, uma vela, um castiçal, uma máscara de
caveira, uma coroa de flores a la Frida Kahlo, eram os objetos que compunham o roteiro de
ações, o “esqueleto” da performance, que mais tarde vim a entender como estrutura dramática ou
narrativa.
Ao conceber “Na Cinza das Horas” eu tinha como objetivo comunicar ao espectador –
através do meu corpo, nas ações físicas que desenvolvia – cada Imagem que me estimulava. O
trabalho só teria função se o público pudesse ler cada fotografia que eu criava com meu corpo em
diálogo com a poética da pintora Frida Kahlo e com o espaço-tempo. A característica das ações
corporais lentas, fotometradas, de um tempo dilatado, alongado (como numa dança de Kazuo
Ohno) surgiu durante o deslocamento e teve como estímulo a música Images were introduced de
Michael Nyman apresentada pelo sound-designer Camilo Brunelli. Curiosamente, a música de
Nyman (em português, As imagens foram introduzidas) significava o processo de criação da
performance em si, as imagens de Frida foram em mim introduzidas e tinha eu o objetivo de
compartilhá-las, de maneira resignificada, com o público.
A performance, carregada das minhas mitologias, expressava a metáfora da morte e do
nascimento de Frida Kahlo através de imagens corporais que desenhava no espaço: meu corpo
supostamente representado por Frida (personagem), mas que já não era mais a personagem e sim
eu mesma, em diálogo com a poética dos quadros da pintora. A dinâmica das ações corporais –
lentas, fragmentadas, como se o meu corpo fosse invadido por ar internamente e dilatasse no
espaço – com características de uma dança butoh23 a la Kazuo Ohno, tinha como objetivo
viabilizar a maior apreensão do público e sua conseqüente contemplação e diálogo, comunicação.
21
Texto/poema do flyer de divulgação da performance: Uma dança. Um corpo e o poder de criar imagens. Um
encontro.Um diálogo entre rida Kahlo e o cigarro.A metáfora da morte e o renascimento.
22
Termo usado por Renato Cohen para justificar a horizontalidade no processo criativo do performer. (2002, p.101)
23
Forma marginal de expressão surgida na década de 60 em bares, boates, cabarés e ruas do submundo de Tóquio por
Tatsumi Hijikata chamada de Ankoku Butoh, dança das trevas. Hoje simplesmente Butoh. O japonês Kazuo Ohno,
275
A título de curiosidade repito aqui uma historinha contada por um amigo, ator e mímico,
Vinícius Della Libera: Kazuo ministrava uma palestra na Escola de Artes Dramáticas da
Universidade de São Paulo (EAD-USP), quando uma pessoa da platéia perguntou: É muito
bonito, mas por que é tão lento? Ele respondeu: Aqui no Brasil quando o time de vocês faz gol,
vocês não gostam de ver em câmera lenta, bem devagar para acompanhar cada detalhe, o tipo de
chute, a expressão que o jogador fez quando marcou o gol, não gostam disso? E o rapaz
respondeu: Sim, adoramos. Ohno finalizou: Pois é, aqui vocês gostam de Futebol, no Japão a
gente gosta de Teatro.
A propósito da opção pela lentidão dos movimentos era, ao meu entender, a melhor
maneira de comunicar as fotos, os gestos corporais, os “fotogramas” que em seqüência criavam
uma narrativa corporal visual para o espectador; a expressividade dos olhos, bocas, movimentos
da cabeça, tronco, pernas, braços, pés, mãos, etc, toda a gestualidade e mímica, somada ao uso
dos objetos cênicos, garantia a transmissão da mensagem.
Notas de final de texto:
A experiência em “Na Cinza das Horas” contribui para uma reflexão acerca da
construção de um texto cênico a partir da idéia de um corpomídia, o corpo constituído pelo
“processo evolutivo de selecionar informações” (GREINER e KATZ, 2005); informações
expressas pelos aspectos narrativos do corpo do performer – a sua historicidade, a sua
experiência técnica e artística, a especificidade do treinamento físico e os procedimentos da
criação cênica. A partir desta idéia, perseguindo a elaboração de um conceito, suponho que o
corpo cênico na performance é um texto em risco, em contínuo processo evolutivo. A
performance é assim reforçada como um “mundo especial” por apresentar um “conjunto
complexo de regras e engajamentos” (PEARSON, 1999). E a autoria desta experiência poética
surge nesta fricção entre um “corpo de risco” do performer (COHEN, 1998) na sua capacidade
de articular e emitir as informações.
Referências bibliográficas:
COHEN, Renato. Performance como linguagem – criação de um tempo-espaço de
experimentação. Ed. Perspectiva. São Paulo, 2002.
COHEN, Renato. Work in Progress na cena contemporânea. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1998.
GREINER, Christine e KATZ, Helena. Por uma teoria do Corpomídia. In: O corpo: pistas para
estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
KETTENMANN, Andrea. Frida Kahlo, 1907-1954: dor e paixão. Tradução Sandra Oliveira
Köln: Benedikt Taschen, 1994.
PEARSON, Mike. Reflexões sobre a etnocenologia. (trad. Ana Luíza Friedmann). In:
Etnocenologia – textos selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (organizadores).
Annablume. São Paulo, 1999.
Agradecimentos:
Ao meu orientador Prof. Dr. Luiz Cláudio Cajaíba Soares.
Aos amigos Carlos Ataíde e Franklin Albuquerque.
Ao companheiro de travessia, colega de mestrado, Leonel Henckes.
mundialmente conhecido como o pai da dança Butoh, define esta expressão como: “uma das mais arrojadas formas de
dança contemporânea, única do Japão. Expressa ao mesmo tempo tantas idéias diferentes que é impossível defini-la. Ela
somente choca e surpreende”. (In: www.butoh.com.br/taxon/dancabutoh.html em 06 de junho de 2009).
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Multiplicidade de vozes e discursos na obra Pinocchio do Giramundo Teatro de
Bonecos
Luciano Flávio de Oliveira
Mestrando em Teatro pela UDESC; Especialista em História da Cultura e da Arte pela
UFMG (2007) e Bacharel em Direção Teatral - UFOP
UDESC
Resumo
Objetiva-se levantar e analisar as múltiplas vozes presentes no espetáculo teatral Pinocchio, do
grupo belo-horizontino Giramundo Teatro de Bonecos. Para tanto, observa-se como se dão as
relações entre as diferentes instâncias discursivas quando se utilizam, neste espetáculo, diferentes
técnicas de construção e manipulação de bonecos. Partindo da premissa de que a linguagem teatral
em si é polifônica, inter e transdisciplinar, o teatro de animação também o é. Desta forma,
Pinocchio é repleto de vozes que dialogam entre si – recorre-se, por exemplo, a linguagens artísticas
como o vídeo e o cinema de animação – sendo, portanto, polifônico. Por fim, o presente artigo tem
como premissa indicar, em quais pontos, essa polifonia aparece de forma mais explícita e subjetiva,
partindo da teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos.
Introdução
Este artigo busca identificar as múltiplas vozes artísticas e discursos presentes no espetáculo de
formas animadas Pinocchio, do grupo belo-horizontino Giramundo Teatro de Bonecos, montagem de 2005,
dirigida a três vozes: Beatriz Apocalypse, Marcos Malafaia e Ulisses Tavares.
O exame pressupõe que a categoria, vozes artísticas, refere-se às sombras, aos
objetos, às projeções de vídeos e de imagens e, ademais, ao cinema de animação. Assim, o
sentido do termo vozes vai mais além de um conjunto de sons emitidos pelo aparelho
fonador humano.
Em outra perspectiva, a categoria discursos ― ou “instâncias discursivas”
(MALETTA, 2005, p. 25), aludiria, neste artigo, às distintas técnicas de manipulação
utilizadas pelo grupo em Pinocchio, a saber: luva, fio, balcão, tringle24, vara, pantins25,
24
Do francês tringle: vara. Boneco que tem o corpo sustentado por uma haste metálica fixada na
cabeça. (GIRAMUNDO, [198-?], p. 66).
277
sombra e boneco gigante. Obviamente, poderiam ser examinados outros discursos, como a
iluminação, a cenografia e os pontos de vista da direção. Não constituem, porém, objeto de
estudo deste trabalho. Em suma, pretende-se, como foi mencionado, identificar as vozes e
discursos presentes em Pinocchio, observando-se como se dão as interconexões entre estes
e aqueles. Além disso, apontaremos em que pontos tais interconexões aparecem de forma
mais objetiva.
Para concluir, objetivando-se tornar mais clara a utilização das categorias referidas,
traremos o conceito de polifonia, conforme Bakhtin (2002, p. 04): uma multiplicidade de
vozes e discursos e consciências equipolentes26, plenivalentes27, independentes e
imiscíveis. É importante salientar ainda que esse conceito extrapola o discurso verbal,
podendo ser aplicado às diversas linguagens, como ao Teatro de Animação ― gênero
teatral que inclui bonecos, máscaras, objetos, formas e sombras.
Pinocchio: Vozes, Discursos e Interconexões
Profundamente humanista, Pinocchio estabelece uma metáfora sobre o destino e a
condição do homem. O espetáculo foi montado utilizando-se o processo colaborativo, no
qual as vozes artísticas e os discursos, desde o princípio, possivelmente foram se
interconectando. O trabalho contou com a participação de importantes artistas e grupos de
Minas Gerais, que, de certa forma, também emprestaram, para a criação, os seus discursos
e as suas vozes: os atores do Galpão dublaram a maioria das personagens, o duo de música
contemporânea O Grivo foi responsável pela criação da trilha sonora e pelo design do som,
e, por fim, a bailarina e coreógrafa Thembi Rosa realizou a coreografia28.
25
Do
francês
pantin:
fantoche
ou
marionete.
Disponível
em:
<http://michaelis.uol.com.br/escolar/frances/index.php?
lingua=francesportugues&palavra=pantin>. Acesso em 24 jun. de 2009. Entretanto, essa tradução não é
satisfatória, porque, assim, é fácil confundir essa técnica com a de luva (ou fantoche) e com a de
fios (marionetes).
26
“Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de
absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER [sic] enquanto vozes e
consciências autônomas” (BAKHTIN, 2002, p. 4. Nota do tradutor.).
27
“Isto é, plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta
igualdade como participantes do grande diálogo” (Id., loc. cit. Nota do tradutor).
28
Ver a ficha técnica do espetáculo no site: < www.giramundo.org/teatro/pinocchio.htm>.
278
Nesta montagem, o Giramundo recorreu a oito diferentes discursos para dar vida aos
seres inanimados: luva, fio, balcão, tringle, vara, pantins, sombra e boneco gigante. Além
disso, recorreu às vozes: projeção de vídeos e cinema de animação. Somados aos outros
elementos visuais e sonoros do espetáculo e aos diferentes pontos de vista dos artistas
envolvidos no processo criativo, foram utilizados de maneira que conformassem uma obra
com uma intrincada rede de conexões.
Em primeiro lugar, quanto à personagem Pinóquio, que se encontra, sozinha,
representada por cinco discursos — que sugerem diferentes caracteres para o boneco de
pau. São eles: luva, fio, balcão, pantin e sombra.
O Pinóquio de luva29 é falastrão, esperto e mentiroso. Pertence à linhagem dos
tradicionais tipos europeus Punch, Guignol e Pulcinella, que também se encontram
figurados na obra do grupo mineiro.
Outra forma de representação dessa personagem dá-se pelo discurso fio30. Aqui o
narigudo de pau parece ser lânguido e inconstante. Além dele, outras personagens também
são animadas por meio de fios, como a Raposa, o Gato e o Pinóquio Burro.
Mais adiante, o boneco de madeira, que quer transformar-se num humano, é trazido
pelo discurso Pantin.
Quanto ao discurso balcão, no qual os bonecos ganham vida e agem numa superfície
plana ou balcão, não só o melodramático e elástico Pinóquio é animado por esse meio, mas
também outras personagens tagarelas como o Grilo Falante, a Fadinha, a Raposa, o Gato e
o Papagaio.
Ademais, outras instâncias discursivas podem ser notadas na obra do Giramundo,
como o boneco gigante e os bonecos de vara: peixinhos no fundo do mar, uma cobra grande
e assustadora no caminho, uma ave que ajuda o nosso herói a atravessar o oceano, e o
próprio Pinóquio fugindo de seu pai Gepeto, são algumas das personagens manipuladas por
varas. Já o amedrontador Senhor Cospe-Fogo é o único boneco gigante da peça.
29
Os bonecos de luva são os que se encaixam como uma luva na mão do manipulador.
30
Bonecos presos em fios e manipulados através de uma cruz ou cruzeta.
279
Dois personagens ganham vida por meio do discurso tringle: Pavio e Pavio Burro31.
Este, assim como Pinóquio, é transformado – em burro por ter ido para o País dos
Brinquedos, ao invés de se dirigir para a escola.
Na fortíssima cena do enforcamento32 de Pinóquio, nota-se a utilização da voz
artística sombra, que parece ser a conectora do mundo dos vivos com o mundo dos mortos.
Nela, como numa colagem, ocorre uma grande profusão de imagens e de sons (como a voz
de uma mulher e os latidos de um cão), os quais parecem representar a confusão mental, o
vazio e a solidão de um boneco, preso por uma corda num grande carvalho. Paralelamente,
vão surgindo sombras e projeções, que se conectam explicitamente à cena, como, por
exemplo, a imagem de um relógio que, indelével, marca o devir do tempo e o esvair da
vida. Outras imagens também vão nascendo: o último piscar de um olho; o menino que
continua balançando, como um pêndulo, numa árvore; a lua cheia, gorda e clara iluminando
a noite; uma ave solitária que passa; nuvens escuras que entram e saem sem nenhuma
pressa; e, por fim, o céu avermelhado pelo terror. Saliente-se, para concluir, outro momento
que utiliza sombras: é o da fuga33 de Pinóquio, a cena de abertura do espetáculo. Logo após
seu nascimento, repleto de energia e de vontade de conhecer o mundo, o serelepe boneco
foge a toda força de Gepeto, o seu velho e cansado pai. Nesta cena ocorre também uma
justaposição de imagens projetadas, como portas e geringonças, com as sombras de Gepeto
correndo atrás do filho.
Das vozes enumeradas até aqui, pode-se elucidar ainda o teatro de objetos: Gepeto é
construído a partir de peças de mobília; uma árvore é feita de cabideiros; a Sombra do Grilo
Falante é dada por uma lata de sardinha com uma vela acesa dentro; um blusão num cabide
representa a personagem que vende os burros Pinóquio e Pavio para o circo; etc.
Mais uma voz artística seria o teatro de mãos, no qual, pelas patas da Raposa e do
Gato, nosso herói é capturado e enforcado. Aqui, as mãos de dois atores são maquiadas
31
O Pavio à tringle possui uma haste metálica presa à cabeça que propicia um giro de 360º e fios
presos ao corpo que possibilitam movimentos laterais do tronco e das pernas. Já o Pavio Burro à
tringle possui a haste presa em seu dorso, que ajuda a sustentá-lo.
32
Ver um vídeo da cena no site mencionado.
33
Idem.
280
para que se criem imagens de patas de felinos famintos que perseguem e capturam a sua
presa.
Por último, é importante ressaltar ainda a força dramática conseguida no espetáculo
pela conexão entre o cinema de animação, a projeção de vídeos e os diferentes discursos
do Teatro de Animação. Destacam-se as cenas da morte da Fadinha; a viagem de Pinóquio
sobre uma ave em busca do pai; a saga de Pavio e de seu amigo narigudo até o País dos
Brinquedos; o mergulho do menino de pau até o fundo do mar, onde é engolido por um
tubarão; e, finalmente, a já citada cena de enforcamento.
Considerações finais
Dizer que o teatro é uma arte que dialoga com outras artes não é afirmação nova.
Entretanto, perceber, mesmo que sucintamente, de que forma Pinocchio se conecta com
outras vozes e discursos artísticos, e com eles se comunica, é o que nos entusiasma. No
entanto, o perigo da empreitada reside numa análise superficial do objeto apresentado. O
risco de omissões é enorme. Sendo assim, que sejam perdoadas ao autor as vozes e os
discursos esquecidos.
Em suma, Pinocchio pode ser caracterizada como uma obra polifônica, “onde
dialogam os múltiplos discursos provenientes das muitas vozes criadoras do espetáculo”
(MALETTA, 2005). Percebemos melhor essa polifonia quando explícita na encenação. Não
deixemos, porém, de notar as vozes e os discursos subjetivos, deixados num canto da sala
(de teatro) ou escondidos atrás dos bonecos, como são os pontos de vista e as impressões
trazidas pelos diretores, pelos atores-manipuladores, pelo cenógrafo, pelos dubladores, pelo
iluminador, pelos editores de vídeo, pelos músicos e por aí afora.
Logo, essa polifonia em Pinocchio em muito contribui para que Cupido, poeta alado
que se julga um Adônis – tornando-se ridiculamente amado –, atinja com suas flechas
radiantes os barulhentos e palpitantes corações dos espectadores que viram, sentiram e
ouviram as vozes e os discursos que vibraram no interior de tão belo espetáculo.
281
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra.
3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
GIRAMUNDO (Teatro de Bonecos). Construção Artesanal de Bonecos: Projeto “Manual
do Marionetista” ― apoio de Pesquisa VITAE. [S.l.: s.n., 198-?].
GIRAMUNDO. Disponível em: <www.giramundo.org/teatro/pinocchio.htm>.
MALETTA, Ernani de Castro. A Formação do Ator para uma Atuação Polifônica:
Princípios e Práticas. 2005. 367 p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.
MICHAELIS. Disponível em:
<www.michaelis.uol.com.br/escolar/frances/index.php?lingua=francesportugues&palavra=pantin>.
PINOCCHIO Giramundo Teatro de Bonecos. Direção de Ulisses Tavares. Belo Horizonte:
Departamento de Artes Gráficas do Museu Giramundo, 2005.
282
Quem conta um conto, (re) inventa um tempo
Luiz Carlos Costa Sarto
Graduando em Artes Cênicas / Bacharelado
Universidade Federal de Ouro Preto
Diretor/Ator
Ricardo Carvalho de Figueiredo
Mestre
Universidade Federal de Minas Gerais
Professor/Diretor
Resumo
A presente pesquisa – oriunda do Projeto de Extensão Universitária “Teatro e Memória na 3ª Idade”
desenvolvida na Universidade Federal de Ouro Preto durante o ano de 2009 – investiga o conceito
de memória/esquecimento em relação à formação cultural do sujeito. Temos utilizado como
procedimento de trabalho o “depoimento pessoal” em oficinas que focam a acumulação de um
“capital cultural” e toda sua influência na constituição do comportamento humano e suas
apropriações do espaço. O estudo encontra-se em processo e em constante transformação, dada a
natureza das experiências individuais e experimentações coletivas do projeto, que resultam numa
lúdica teatralidade das vivências e memórias dos participantes.
Palavras-chave: Teatro – Terceira idade. Teatro – Formação cultural.
A presente pesquisa em andamento – oriunda do Projeto de Extensão Universitária “Teatro
e Memória na 3ª Idade” desenvolvida na Universidade Federal de Ouro Preto durante o ano de 2009
– investiga os processos de criação cênica e o conceito de memória/esquecimento em relação à
formação cultural dos sujeitos idosos. Temos utilizado como procedimento de trabalho o
“depoimento pessoal” em oficinas que focam a ‘contação’ de histórias e “causos”.
Dessa forma tem sido tema de nossas inquietações o trabalho artístico com idosos da cidade
de Ouro Preto/ MG, por acreditarmos que essas pessoas são dotadas de uma capacidade ímpar de
trazer para as artes cênicas uma proposta de intervenção sobre os espaços de memória pessoais e
coletivos. Memórias essas que se entrelaçam com histórias “oficiais” e são entrecruzadas por
283
memórias pessoais, ligadas ao íntimo de cada uma delas.
Estar presente no mundo como sujeito atuante tem sido o maior desafio enfrentado pelos
idosos e estas são situações do cotidiano deste grupo. Eles têm pouco espaço numa sociedade
competitiva e consumista, sendo condenados, muitas vezes, ao abandono e à falta de oportunidades.
De acordo com Azambuja (1995) no final da vida os idosos veem-se condenados ao isolamento
social e cultural pela fragmentação da família, aposentadoria e por uma política insatisfatória de
atendimento às suas necessidades.
Nesse sentido, além de propiciar o contato/convívio dessas pessoas e proporcionar trocas de
experiências, temos buscado contribuir para que as histórias por elas contadas e relembradas sejam
recheadas pelos sujeitos que ali estão, reconhecendo seu lugar de protagonismo frente a uma
história que é sua e também, é dos outros – coletiva – a partir do instante em que é perpassada por
todos integrantes do coletivo.
Se pensarmos que o ambiente urbano e das grandes cidades tende a afastar as pessoas,
incentivando o individualismo e, consequentemente, favorecendo o isolamento do sujeito, a
memória vem na contramão dessa lógica, quando aliada aos fatores e pessoas que sustentam as
lembranças. Porém, realizar essa atividade numa cidade do interior mineiro, tem revelado novas
possibilidades...
A relevância do cotidiano
Petúnia relatou desde o nosso primeiro encontro uma dificuldade em ser criativa e “não
levar” jeito para as artes. Mas por que, então, inscreveu-se na oficina? – nos indagamos. “Para
passar o tempo?” – se julgarmos que o idoso tem muito tempo livre. “Para rever os amigos?” – caso
não encontre outros espaços para essa ação. Muitas respostas. Diversas possibilidades. Pessoas
tantas. Sujeitos idosos!
Trazer o cotidiano como elemento detonador de uma prática artística tem sido uma
novidade para muitos “ [...] até porque eu pensei que nós, velhos, nunca seríamos artistas.” –
Petúnia. Mas essa fala contempla, em grande parte, o que nossa sociedade ainda pensa sobre o
idoso e sobre as artes.
A maioria dos participantes trouxe alguma fala relacionada a “não ter DOM”. Essa
concepção é utilizada como forma de explicar o domínio de uma habilidade qualquer, sua variedade
e distribuição entre as pessoas. Infelizmente em teatro, esse ainda é um pensamento dominante do
senso comum e, pior, ainda existente no discurso de muitos profissionais da área. Assim nos
indagamos: “Como acreditar no dom, em aptidão, com pessoas que, em sua maioria, não tiveram a
oportunidade de terem experiências formais com alguma expressão artística? Não podemos
284
desenvolver alguma habilidade/competência quando estamos velhos ou não temos mais que
frequentar a escola?” Recorrermos ao conceito de “capital cultural” elaborado por Bourdieu (1998)
que, entendendo a cultura como forma de riqueza, ressalta que a diferença do acesso à mesma
separa os indivíduos, hierarquizando-os. E mais, o “capital cultural” não é algo adquirido de uma só
vez, na venda da esquina, é um processo que se dá ao longo das vivências do sujeito, com as
aprendizagens que adquire no decorrer de seus anos.
Dessa forma, temos investido na potencialidade do sujeito, que traz para os encontros a sua
história, o seu dia a dia, suas ações cotidianas e, quase sempre, mecanizadas, já sem cor.
Nosso processo de arte-educação visa no primeiro momento a ‘(des) condicionar’ esses
corpos, levando-os a exercitar o impulso da criação, já que cotidianamente somos invadidos pelas
intenções condicionadoras da sociedade. Recorremos às contribuições de Foucault (1987), onde
ressalta que a sociedade é disciplinadora e que possui regras de conduta explícitas e implícitas que
educam/castram os corpos. Quantos desses sujeitos do Projeto são criticados por fazerem parte de
um grupo de idosos? Quantos não são cobrados por deixarem de olhar os netos, para irem fazer
teatro?
A prática artística
Nossa prática tem se dado pelo desenvolvimento de jogos dramáticos e teatrais. O jogo
permite que o corpo expresse/questione/experimente sentimentos, desejos e percepções etc. Para
Lopes (1989, p. 24) o jogo é libertador, já que:
Vivemos o jogo dramático com a memória que possibilita recuperar a
experiência vivida ou imaginada. Reidentificamos o conhecido e
ampliamos as nossas referências. Está em jogo a nossa capacidade de ver,
ouvir, falar, apreender e aprender. A experiência intelectual que obtemos,
observando ou realizando (sobretudo praticando um jogo dramático), não
é um ato de análise distanciado e excludente da emoção e sensibilidade.
Fazer arte exige um equilíbrio de nossas capacidades e potencialidades de
comunicação.
O desconhecimento das capacidades dos idosos pode conduzir-nos à ideia de que estes são
apenas simples consumidores e, não mais podem desenvolver atividades com sofisticação artística.
Não obstante, ao trabalharmos com os idosos verificamos empiricamente que estes são também
grandes captadores e produtores culturais do meio social em que vivem, e manifestam essas trocas
em seu comportamento mesclando suas apropriações corporais e suas vivências – que ainda são
bastante vigentes e urgem – em forma de narrativas lúdicas e/ou reais.
285
O grande interesse de nosso trabalho, além de trazer à tona lembranças através de narrativas
e trocas experienciais – as quais foram muito presentes durante as oficinas realizadas – foi buscar
toda a teatralidade imanente a essas histórias de vida. Por vezes uma história triste dividida com os
colegas, se transformou em uma lembrança leve e saudável e todo o aprendizado intrínseco à
mesma era reconhecido coletivamente pelos idosos.
O método de trabalho consistiu em estimular os idosos a relatar individualmente suas
histórias para um grupo. O relato em forma de depoimento pessoal era escolhido pelo próprio
narrador, o qual também se tornava o protagonista da história contada, quando a mesma se tornava
“estória” teatralizada em forma de improvisação. Essas improvisações eram baseadas nas técnicas
de Viola Spolin (2003) e Boal (1983) e, a partir da narração e da utilização dessas técnicas, as
histórias de vida dos idosos eram teatralizadas em grupo e depois discutidas. Eram comuns as
pontuações sobre ensinamentos, dificuldades passadas, comportamentos e acontecimentos
históricos da época.
Como forma de documentação do trabalho, usamos o protocolo1. A cada encontro, um
integrante registrava o acontecido e as histórias contadas. Registramos também parte do trabalho em
forma de gravação de áudio, para que os próprios participantes pudessem ouvir e reconhecer a arte
presente em seus relatos.
Em consequência das experiências realizadas e incorporadas em suas histórias, os idosos
tornam-se verdadeiros agentes de preservação cultural. Inserido ativamente em uma cultura, o idoso
pode transmitir conhecimentos diversos e através de relatos de suas experiências de vida ele
singulariza o seu existir, e torna patente sua produção de crenças e ideias, a partir de seu referencial
cultural.
Outra forma de transferência desse conhecimento é a intervenção do idoso como ser
histórico, que se manifesta como um constante produtor, criando sua existência e construindo sua
trajetória de vida, sem deixar de lado as possibilidades do “vir-a-ser”, pois não é o avanço da idade
que marca as etapas mais significativas da vida: a velhice é, antes, um processo contínuo de
reconstrução.
No trabalho realizado nas oficinas de teatro e ‘contação’ de histórias, percebemos que
nossos alunos são como “livros vivos”. A partir de todo seu processo de vivência e experimentação,
eles guardam diversos tipos de registros culturais dentro de suas histórias. Esses registros
armazenados em lembranças nos remetem a tempos de outrora, e refletem aspectos referentes a
épocas, comportamentos, receitas, manifestações sociais e populares. Por as terem vivido, percebem
as diferenças da transformação da vida e da cultura.
286
Observamos que através da oralidade e da expressividade gestual, os idosos criam um
universo de relatos com ligações de tempo, espaço e afetividade próprios. Esses relatos são fruto da
absorção de vivências e intenso acúmulo de experiências, totalizando um considerável capital
cultural. A cada fase da vida eles adquirem uma gama cultural única, particular e ao mesmo tempo
social – alguns viveram em circunstâncias convergentes seus processos de infância, juventude e fase
adulta – que os influencia, recriando novas características de seus sujeitos. Destarte, a partir de seus
históricos de vida, recriam sua atual história, conceituando a cultura e seus registros em nossa
sociedade, no tempo e espaço, no aqui e agora.
Referências
AZAMBUJA, Thaís. Expressão e Criatividade na Terceira Idade. In: VERAS, Renato et al.
Terceira Idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1995.
BIRMAN, Joel. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. São
Paulo: Cortez, 1995.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 4. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1983.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete.
Pretrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1987.
LOPES, Joana. Pega Teatro. Campinas, SP: Papirus, 1989.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
287
A condição do corpo no cruzamento das manifestações circenses e teatrais
Marcos Francisco Nery Ferreira
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Resumo
No final do século XIX, no Brasil, a chamada tradição apostava no intercâmbio e no convívio entre artistas e
gêneros, que logo resultaram em grandes transformações do espetáculo e na consolidação da aproximação
entre o palco teatral e o picadeiro circense. Os artistas circenses foram ampliando o leque de apropriação e
divulgação dos gêneros teatrais e de outras manifestações artísticas inaugurando a ideia dos circos-teatros. Por
outro lado, o universo das manifestações, teatrais, a necessidade de um ator com virtuose técnica, sentido
absoluto de ritmo, agilidade corporal e precisão ganha força e se faz presente desde os saltimbancos dos
teatros de feira e dos cômicos dell’arte, tornando-se, também, um ponto indispensável nos trabalhos de alguns
encenadores do século XX.
Palavras-chave: Linguagem corporal. Treinamento. Ator. Circo.
Diversos são os caminhos, contudo, que podem ser adotados quando se menciona os
procedimentos criativos e técnicos do ator. Como aponta Mauro Meiches e Sílvia
Fernandes: “Nenhuma criação pode ser operada sem uma técnica, que não se separa do
treino, do processo de criação e do resultado observável na carreira teatral de um artista”. É
justamente nesta condição que se dá a passagem de um corpo “comum” para um corpo
“diferenciado” via um treinamento específico. Os saberes circenses, portanto, são
apropriados pelo ator e se constituem como técnica corporal aprimorando sua capacidade
expressiva.
A partir deste universo, o artigo pretende apontar os aspectos relativos ao
treinamento corporal, através dos saberes circenses e teatrais.
288
Territórios artísticos em cruzamento. No Brasil, o intercâmbio e convívio entre
artistas e gêneros, que a chamada “tradição” circense apostava, resultaram em profundas
transformações do espetáculo e na consolidação da aproximação entre o palco teatral e o
picadeiro circense. Por outro lado, a atividade teatral adota a linguagem do circo como
suporte para o treinamento físico do ator, visando a construir qualidades expressivas através
do movimento.
Para entender os procedimentos que consolidam esta outra qualidade física ao
trabalho do ator é necessário apontar, a princípio, os mecanismos de formação de um artista
circense. Para estes cujas famílias já estavam no circo, seu processo de aprendizagem se
inicia desde o seu nascimento; já para aqueles que não haviam nascido na lona, “os gente
da praça”, começava imediatamente um intenso processo de formação assim que eram
incorporados a ela. Contudo, nem todos desejavam aprender os números que provocassem
riscos, neste caso, eram incorporados de diversas outras maneiras nas atividades
circenses34.
No circo, as características que determinam as bases do seu espetáculo residem
numa transgressão dos limites que cercam o cotidiano e o real, explicitando a
espetacularidade, “onde a eficácia cênica, neste caso, tem um meio específico de
realização: o corpo humano” (BOLOGNESI, 2002, p. 2). A educação corporal a que os
circenses são submetidos durante sua formação, logo conduz a ações de um apurado
requinte técnico de caráter extracotidiano que visa a provocar uma intensidade de sensações
e emoções no espectador. O corpo, assim, revela-se como elemento primordial no circo e,
além disso, é colocado na condição de superar seu próprio limite constituindo uma ousada
fisicalidade através do risco. A presença desta qualidade corporal nas atividades teatrais,
porém, é medida como fator espetacular “insurge-se contra o realismo do teatro e o
psicologismo das personagens dramáticas; de maneira metafórica, o corpo desafia a morte,
ao jogar com a opressão do real” (ROMANO, 2005, p. 44). É a partir da apropriação destes
saberes, e da sua corporificação, que o ator cria instrumentos para alcançar uma nova
expressividade que modifique o estado do seu trabalho.
34
“Entravam em esquetes, atuavam em peças teatrais, participavam da organização do circo,
trabalhavam na armação e desarmação, na bilheteria.” (SILVA, 2007, p. 94).
289
A condição para o desenvolvimento destes saberes no corpo do ator é através do
treinamento técnico que induz a um determinado tipo de formação e, dependendo de suas
especificidades, pode exigir um longo caminho para a apropriação de seu desempenho. O
treinamento acrobático do circo, no entanto, é realizado de forma sistemática, gerando
materialidade e presença que expõe o corpo em ação carregado de virtuosismos, numa
superação de seus próprios limites. Sendo assim, a formação do acrobata solicita uma
disciplina rígida através de um treinamento intenso e longo. Pensar nestas condições de
treino não implica necessariamente na adoção total deste procedimento como suporte ao
processo de criação do ator. Pode-se não almejar à maturação completa de uma
determinada técnica, mas “propiciar ao intérprete atingir uma soltura tal que bastará para
ele expressar um ponto de vista imediato transcrito em linguagem teatral” (MEICHES;
FERNANDES, 1988, p. 164).
Os processos de trabalho, tanto técnico como de criação através de uma percepção
individual, e o cruzamento com a aprendizagem formalizada, instrumentaliza o ator
contemporâneo. O circo afirma uma técnica especificamente corporal e, como tal, solicita a
reunião das formas de como o indivíduo utiliza o corpo. Esta técnica solicita disciplina e
um constante desenvolvimento, de modo sistemático, a fim de construir formas e
significados.
Romano (2005) nos lembra o conceito de operacionalidade para definir as técnicas
do corpo no teatro. Quando algum intérprete atua num determinado tipo de teatro, busca
meios para adquirir desempenhos específicos. Através do aprimoramento dos processos,
desenvolvem-se tipos de atuação particulares, consolidando técnicas corporais que dilatam
o corpo do ator e o lançam no jogo teatral. Neste contexto, portanto, o treino caracteriza
uma técnica, a partir de uma adaptação do corpo do ator e do seu desempenho. Ao adotar o
treinamento circense como suporte para seu trabalho, torna-se explícita a passagem de um
corpo “comum” para um corpo “diferenciado”, tornando concreto o impulso criativo e
estabelecendo entre o intérprete e o seu “fazer” o fluxo de criação no e através do corpo. A
partir de então, observa-se no próprio corpo o surgimento de técnica específica,
consolidando uma forte presença cênica, vinculada a uma expressividade baseada no
movimento.
290
A constituição desta fisicalidade “diferenciada” revelada no cruzamento das
linguagens circenses e teatrais é o que possibilita sua eficácia na cena. Sendo assim, para
auxiliar esta reflexão, nos apropriaremos da teoria Corpomídia35. Greiner e Katz (2008)
36
apresentam o corpo como uma membrana que troca a cada milissegundo informações com
o ambiente em que está presente. A qualidade de qualquer informação – esta deve ser
entendida como algo que os nossos sentidos são capazes de reconhecer – o transforma e o
modifica em tempo real. No exato instante em que ela entra em contato com o corpo,
relaciona-se imediatamente com todas as outras informações que nele estão, portanto,
olhar o corpo representa sempre olhar o ambiente que constitui a sua
materialidade. O verbo precisa estar no presente (constitui) para dar ênfase ao
caráter processual dessas operações em fluxo inestancável, que fazem descer na
enxurrada que a sua argumentação teórica promove as antigas separações entre
natureza e cultura. (GREINER; KATZ, 2004, p. 14).
Deste modo, o corpo se apresenta como mídia dele mesmo. Devido a esta
capacidade de revelar a cada momento sua coleção de informações, consolida-se a
concepção de que eu sou o meu próprio corpomídia. No entanto, este corpo se refere à
mídia pensada como o meio de transmissão, que comunica a informação em tempo real, a
que “diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o
corpo. A informação se transmite em processo de contaminação” (GREINER; KATZ,
2008, p. 131). Falemos a partir de agora em estados do corpo: um corpo não é, ele apenas
está, daí a transitoriedade da sua forma.
Baseado nesta totalidade, o corpo está em um processo constante, transitório e
permanente, que assimila as trocas com o ambiente e as materializam. No entanto, a
quantidade percebida é demasiadamente alta impossibilitando a conscientização de todas as
informações. Só temos consciência e reconhecemos o pico destas por meio da repetição e
dos hábitos, sendo assim, é necessário ao corpo entrar em contato diversas vezes com a
mesma informação para torná-la consciente. A partir do entendimento de todo este processo
cabe refletirmos, então, o modo como se manifesta a coleção de informações assimiladas
durante o processo de criação.
35
Esta teoria nasceu no campo das Ciências da Comunicação. Para esta pesquisa proponho uma
articulação entre este saber com a condição do corpo em arte. A teoria corpomídia ganha
legitimidade aqui ao articular-se com os procedimentos que estruturam os processos de criação em
função da composição cênica.
291
Cabe aos procedimentos criativos acionar as informações armazenadas e torná-las
conscientes, rejeitando o princípio da causalidade – um evento que produz outro numa
relação imediata. É por meio dos ensaios e dos treinamentos que as trocas com o ambiente
ganham materialidade, como também, a partir do contato constante e prolongado com uma
determinada técnica que o corpo adquire uma predominância sobre a coleção de informação
que entra em contato. É através do treinamento, portanto, que a coleção de informação
ganha estabilidade.
Podemos afirmar, devido a estas referências, que o corpo produz outras
possibilidades de conceituação e movimento. A questão deste torna-se crucial: o
movimento é a matriz da comunicação. Ele possibilita a percepção, como também, é
preciso perceber para se movimentar, revelando-se como o meio mais potente de expressão
e criação para cena. É pertinente ressaltar, dessa maneira, a importância da relação entre
estes aspectos e os mecanismos internos do ator, numa perspectiva de integração
corpopsiquismo. O domínio puro do movimento não basta, é necessária a liberdade da
imaginação em constante exercício. Um salto mortal, para trás, sustentar-se todo o peso do
corpo com os calcanhares no trapézio e jogarem-se cinco claves de malabares, não são
suficientes, se não se estiver concatenado com a emoção. É necessário vida para oferecer
organicidade a todo este processo.
Sendo assim, a atividade corporal que o circo desenvolve, através de uma
movimentação que desafia constantemente o limite do próprio corpo, transforma
qualitativamente o trabalho de criação e interpretação para o ator. Este, logo
aprofunda seu conhecimento acerca de seu corpo e de seus recursos de expressão,
intensifica sua presença cênica, instaura o estado de atenção e prontidão
necessários à percepção das sensações, dos estados corporais, das idéias, dos
pensamentos e das imagens que o corpo produz. O ator desenvolve a consciência
e a compreensão de sua ação na cena. (MACHADO, 2004, p. 46).
Se este corpo “diferenciado” tem a necessidade de comunicar-se, organizando toda
sua coleção de informações e estando capacitado a utilizar os seus próprios meios
expressivos através do movimento, torna-se legítima a importância deste cruzamento entre
linguagens artísticas. Esta região de encruzilhada é encarada como potencializadora das
experiências de trocas entre corpo e ambiente, consolidando qualidades expressivas através
do movimento. Este, sim, é o que nos faz corpo.
292
Referências
BOLOGNESI,
Mário
Fernando.
O
circo
civilizado.
Disponível
<http://sitemason.vanderbilt.edu/files/gkif6w/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf>.
Acesso em: 18 mar. 2007.
em:
GREINER, Christine. Por uma dramaturgia da Carne: O Corpo como Mídia da Arte. In:
______ . Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo:
Annablume, 2000.
______; KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomídia. In: ______ . O corpo: pistas para
estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2008. p. 125-133.
______ . O meio é a mensagem: porque o corpo é objeto de comunicação. In: ______ .
Húmus 1. Caxias do Sul: S. Nora, 2004.
MACHADO, Maria A. Ambrosis Pinheiro. Corpo do ator e comunicação. In: ______ .
Húmus 1. Caxias do Sul: S. Nora, 2004.
MEICHES, Mauro; FERNANDES, Silva. Sobre o trabalho do ator. São Paulo:
Perspectiva, 1988.
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva,
2005. p. 179-181.
SILVA, Ermínia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil.
São Paulo: Altana, 2007.
293
24 de Julio 1967: A reconstituição imaginaria de uma performance
Marios Chatziprokopiou
Doctorant en Ethnoscénologie (Université Paris8), vidéaste.
Paris VIII
Resumo:
France, été 1967. Dans un terrain vague près de Saint-Tropez, une troupe dirigée par l’artiste JeanJacques Lebel présente la pièce surréaliste de Pablo Picasso Le désir attrapé par la queue. Après
chaque représentation, le groupe psychédélique des Soft Machine monte sur scène. Artistes et
public sont invités à participer à des happenings.
Les participants de cet événement d’art éphémère déclarent qu’ils n’ont volontairement pas laissé
de traces. Il n’en reste que peu d’indices matériels, et les souvenirs des témoins vivants : des
morceaux déformés, incompatibles, d’un puzzle perdu pour toujours.
L’anthropologue, dont le savoir repose sur sa présence sur le terrain, peut-il comprendre une
performance qu’il n’a pas vécue? Ce manque m’a demandé une quête heuristique, semblable à celle
des archéologues, mais en renonçant à la vérité historique. Incapable d’interpréter a priori, j’ai tenté
la reconstitution imaginaire d’une soirée de l’été 1967, sous forme d’un récit anthropologique et
d’un court métrage documentaire.
Vu la distance qui sépare toujours le moment de l’expérience de celui de l’écriture ou du montage,
les reconstitutions écrites ou visuelles des performances qu’on vit sont-elles moins imaginaires ? Et
quelles sont les limites des mots et des images quand l’objet d’étude est la vie ?
Palavras-chave:
documental.
Performance,
evento,
memoria,
reconstituição,
imaginario,
antropologia,
24 Juillet 1967. La reconstitution imaginaire d une performance.
Quatrième Workshop de la libre expression (juillet-août 1967). France, près de Saint
Tropez, dans un terrain vague donnant sur le carrefour de la Foux, sous un chapiteau. A vingt-deux
heures.
Il y avait toute sorte de spectateurs. De jeunes hippies dormant à la belle étoile, des
familles de campeurs qui logeaient aux alentours, des gens aisés en villégiature à Saint-Tropez, des
artistes, célèbres ou moins célèbres.
294
La soirée a commencé avec le groupe psychédélique des Soft Machine. Ensuite, on a
présenté la pièce de Pablo Picasso « Le désir attrapé par la queue ». C’était un texte non narratif,
sans queue ni tête, un délire verbal dans l’esprit de l'écriture surréaliste automatique. Les
”personnages” qui se nomment Tarte, Gros Pied, Oignon ou Bout Rond sont obsédés par l'Amour,
la Faim et le Froid. Pendant la représentation, on aura préparé des frites, cassé des vitres et
barboté dans une énorme baignoire d’où la Tarte sortira toute nue et pissera.
Ce sont des indications scéniques du poète-peintre, avec lesquelles il prédit certains points
des happenings artistiques des années '60. C'est d'ailleurs ce rapport qui avait inspiré JeanJacques Lebel, poète, peintre, et organisateur des premiers happenings en Europe, à mettre-en-jeu
(et non pas à mettre-en-scène) le texte de Pablo Picasso, donnant la place à l’improvisation et sans
trop de répétitions; comme un prétexte pour pouvoir faire du happening, vu que cette forme
d'expression était illégale en France depuis 1966.
Ainsi, ce n’était pas toujours clair de comprendre si les acteurs jouaient du théâtre ou bien
s’ils jouaient tout court. L'ex-stripteaseuse, Rita Renoir, dans le rôle de l'Angoisse Maigre
chevauchait et fouettait son partenaire, tout en récitant les jeux picassiens comme si c’était du
Racine. L'acteur de Warhol Taylor Mead dans le rôle de Deux Toutous se moquait d'elle et la
poursuivait en aboyant. L'acteur et trompettiste trotskiste Jacques Blot dans le rôle du Bout Rond
fêtait sur scène les revers américains au Vietnam ; tandis que d'autres, comme la noctambule
énigmatique Catherine Moreau dans le rôle du Silence, annulaient toute convention théâtrale et
s'endormaient sur scène. Lebel déclarait avoir comme objectif principal l'abolition des limites entre
l'acteur et le spectateur, entre le théâtre et la vie. Tout pouvait advenir. Et en effet, ce soir-là, les
imprévus étaient au rendez-vous : un tunisien est entré sous le chapiteau en compagnie de son
chameau. Ce dernier est monté sur scène et en est descendu en y laissant la puanteur de ses traces
volumineuses - un jeune spectateur a suivi son exemple mal odorant en rajoutant quelques insultes
adressées au public, enfin, d’autres spectateurs ont joint leurs inspirations plus raffinées avec
celles des acteurs.
A la suite de cette représentation, c’était plutôt un public de jeunes qui était resté sous le
chapiteau. Ils ont dîné tous ensemble du riz et des pâtes. Beaucoup d’entre eux ont fumé du
hachich. Certains ont commencé des jeux sexuels aux combinaisons variées. Puis, le guest star Ben
Vautier a fait son Fluxus Event: il s'est déculotté, en inspirant Taylor Mead qui l'a aussitôt imité.
Ensuite, les Soft Machine sont rentrés sur scène et se sont adonnés à des improvisations
interminables, tandis que de nombreux happenings survenaient. L’ex-dormante Catherine Moreau
servait du café chaud et froid avec ces mots inscrits sur ses seins nus. Quelqu'un sciait des planches
sur lesquelles une fille notait un mot pour les distribuer ensuite au gens. Une femme a lavé une
295
dizaine de culottes pour les porter toutes à la fois sans les essorer. Presque tout le monde a offert
l'une de ses chaussures pour créer un tas. Quelqu'un a envahi le chapiteau avec une grande
Chevrolet Cabriolet, il a distribué avec ses amis de la peinture et des bisous aux gens qui se sont
mis à taguer ensemble la voiture. On a distribué à tout le monde un morceau de sucre. On a égorgé
deux poulets sur le dos d'une fille nue. Les musiciens ont brulé leurs partitions. Délire général;
Blanc
La narration ci-dessus n'est qu'une représentation imaginaire d'une soirée du Quatrième
Workshop de la Libre Expression, une hypothèse de ce qu'un anthropologue travaillant sur le terrain
de cet événement artistique aurait pu noter. Mais est-il possible que l'anthropologie, science qui
repose sur la présence du chercheur sur le terrain, puisse décrire et comprendre une expérience du
passé ?
Le point de départ de ma recherche était justement le fait que je n'étais pas là. Il a donc fallu
fouiller sur ce morceau de vie qui m'échappait. Aux antipodes d’une approche d’histoire de l’art qui
l’analyserait en tant qu’œuvre morte, j'ai choisi de l’approcher dans son cadre historique et sociale,
en adaptant une méthode heuristique semblable à celle des archéologues mais sans prétention
d'exactitude historique. Incapable d'interpréter à priori, j'ai mis comme objectif central la
reconstitution d'une soirée de cet été, en guise de paradigme. En effet, ce sont les obstacles
méthodologiques qui ont requis le caractère imaginaire de la reconstitution.
Quarante ans nous séparent du Quatrième Workshop de la Libre Expression. La mémoire
des participants s’est fanée. De plus, la consommation d'alcool et de drogues aidant, il se peut que
certains d'entre eux ne se rappelaient pas le lendemain de leurs actes de la veille. Surtout, les
participants à cet événement d'art éphémère déclarent qu'ils ont vécu pour le présent”, et n’ont
volontairement pas laissé de traces. Il ne reste donc que peu d'indices matériels (l'affiche du
spectacle, certaines photos, fanées) et les souvenirs des témoins vivants : des morceaux
contradictoires, incompatibles, déformés, d'un puzzle perdu pour toujours.
Apres avoir fouillé dans les archives et écouté les récits des participants, j'ai conclu que la
description des actions humaines, présente inévitablement, des éléments imaginaires, vu que
personne n’est tout-voyant et que le temps de l'écriture est toujours postérieure a celui de
l'expérience. Même quand on écrit ce qu'on a vécu, on est toujours dans la situation que Jean Bazin
a nomme allochronie37; nous sommes les archéologues de notre propre mémoire. Et les moyens de
37
Dans Jean Bazin, « Interpréter ou décrire. Notes critiques sur la connaissance anthropologique », in J.
Revel, et N. Wachtel (éd.), Une école pour les sciences sociales. Paris, Cerf/Éditions de l’EHESS, 1996 : 401420.
296
secours par excellence comme les enregistrements audiovisuels ne produisent que des récits de la
réalité, choisis par le jugement subjectif du cadreur.
Comprendre le Quatrième Workshop s’avère difficile, vu les souvenirs contradictoires des
participants : certains, comme l'organisateur anarchiste Jean-Jacques Lebel, l’ont vu comme un
événement embrassé par les classes inférieures et de caractère subversif: « un lieu de vie et
d'expérimentation», une « Californie méditerranéenne», « qui a préparé Mai 68»38. Il est certain que
cette manifestation n’était pas anodine, d'ailleurs, le maire de Saint-Tropez avait pris soin de
l'interdire sur son territoire. Pourtant, d'autres interviewés contestent la subversivité politique du
Workshop, et mettent l'accent sur le capital économique du producteur américain et sur celui
culturel du peintre espagnol, sans oublier la « noble » provenance de certains membres du public et
de la troupe.
Le seul point où tous les interviewés sont d'accord c’est le fait qu'ils se sont amusés.
Pourrait-on interpréter l'amusement comme facteur de subversion et de transgression des valeurs
sociales établies ? Ce qui est sûr c’est qu’en France, dix mois avant mai ’68, ce ne sont pas deux
classes sociales qui sont en train de se confronter, mais deux côtés de la même élite. L'un est
gaulliste, policier, catholique, moraliste, l'autre anarchiste, créatif, libertaire, libertin. Les enfants de
Saint Tropez, membres de la première génération massivement entrée dans les universités
françaises, n'ont pas besoin de pain, mais de liberté. Leur fureur créatrice réagit contre la pression
morale de leurs parents et plus généralement des gens âgés qui, comme Hobsbawm l’a bien
constaté, gouvernaient le monde à l'époque39.
Est-ce que, comme dans un carnaval improvisé, ces jeunes ont justement fêté leur désir de
rire, de se moquer de leurs origines, de se libérer de leurs identités sociales, de jouer avec leurs
propres masques ? Si on accepte que le carnaval est un rite essentiellement ambivalent, contenant en
même temps les forces de l'intégration et de la subversion, on pourrait mieux saisir le caractère
ambivalent du workshop. A mon avis, à travers l’amusement, ces jeunes ont transgressé les
structures suffocantes de leur société, ne serait-ce que temporairement. Pourtant, ils ne l’ont pas
renversée et on ne peut pas savoir combien d'entre eux désiraient vraiment la renverser. De toute
façon, aujourd'hui, beaucoup d'entre eux jouissent d'une reconnaissance absolue au sein de cette
société, en tant qu'artistes, collectionneurs, galeristes, directeurs de festivals ou encore pasteurs!
Sans que cela ne traduise nécessairement leurs idées, une bonne partie des révoltés des
années soixante vivent aujourd'hui comme des bourgeois bien établis, car le système sait incorporer
tous ceux et tout-ce qui autrefois le menaçaient. Le marketing contemporain s'est fondé sur des
38
Entretien avec Jean-Jacques Lebel, chez lui, novembre 2005.
Dans Eric Hosbawm, L’époque des extrêmes : le bref vingtième siècle, voir le chapitre La révolution
culturelle, traduction grecque, Athènes, Themelio, 2001.
39
297
inspirations de mai ’68. La Presse et la Publicité ont adapté des mots comme happening,
communication, imagination. Ceux qui minaient jadis l'histoire de l'art sont enseignés ou enseignent
dans les universités, tandis que l'art officiel a intégré des expérimentations autrefois politiquement
dangereuses sous forme de motifs esthétiques. Je suis pourtant certain que le Workshop et par
extension, toute action des années soixante qui contestait avec la même intensité et le même style
les limites entre l'Art, la Vie et l'Insurrection, a fertilisé et fertilise encore, de façon rhizomatique,
toujours et partout, la Libre Expression.
Les considérations ci-dessus ne sont qu'une piste de compréhension proposée. Pour
répondre à ma première question, je dirais que la description et la compréhension anthropologique
d'une expérience du passé peut être possible. Elle reste toutefois soumise aux confins de la fiction
inévitable de toute description et à l'insuffisance de tout fil de compréhension. Mon essai de
produire un discours sur quelque chose qui échappait à la raison m’a amené à contester l'efficacité
de l'écriture quand elle se confronte à ce genre de sujet. En partant de l’hypothèse que pour
comprendre le processus créatif il faut soi-même créer, j'ai tourné un documentaire en court
métrage, mettant en récit l'aventure de ma recherche autour du Workshop. En même temps, inspiré
par des anthropologues comme Victor Turner ou Bernard Müller qui proposent la performance
comme outil d’enquête anthropologique, je me suis demandé si la reconstitution idéale du
Workshop, en étant le seul moyen qui nous permettrait peut-être de comprendre son essence, ne
serait qu’une performance d'aujourd'hui basée sur son canevas, mais où tout pourrait se passer.
BIBLIOGRAPHIE INDICATIVE
BAZIN, Jean, « Interpréter ou décrire. Notes critiques sur la connaissance anthropologique », in J.
REVEL, et N. Wachtel (éd.), Une école pour les sciences sociales. Paris, Cerf/Éditions de l’EHESS,
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299
A interpretação cômica da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes
Roberta Cristina Ninin
Atriz / arte-educadora / mestranda
Instituição: UNESP
Resumo
A Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, idealizada por Ednaldo Freire e Luís Alberto de
Abreu, busca por uma linguagem comunicativa, que contemple o universo cômico popular
brasileiro. Contemplada por projetos artístico-culturais desde a sua formação, em 1993, a Cia
tornou-se uma referência do teatro brasileiro contemporâneo, tendo em vista – principalmente a
partir de sua segunda fase do Projeto Comédia Popular Brasileira, intitulada Comédia Épica – a
participação ativa do público perante o fenômeno teatral.
Palavras-chave: Comédia brasileira. Preparação do ator. Personagem cômica.
A Cia referencia-se nos estudos de Mikhail Bakhtin e nas obras de Rabelais,
aproximando-se das formas populares de representação presentes: nas danças populares
brasileiras, nos autos e nas narrativas cômicas, no circo-teatro e no teatro de revista. Em sua
trajetória, o personagem brasileiro foi representado por tipos fixos, por heróis guerreiros
(inspirados em personagens das festas populares medievais) e, recentemente, por atores
saltimbancos que se apresentam com seus elementos de cena essenciais e, empregando a
narrativa, multiplicam-se em inúmeros personagens.
A partir das referências teóricas abordadas – Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp, Dario
Fo, Brecht – e privilegiando a versão cômica das três fases da Fraternal Cia, minha
pesquisa refere-se ao estudo da interpretação cômica e popular, concretizada
simbolicamente na concepção das personagens da Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes.
A Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes (São Paulo, SP), idealizada por Ednaldo
Freire e Luís Alberto de Abreu, busca por uma linguagem comunicativa, que contemple o
universo cômico popular brasileiro. Contemplada por projetos artístico-culturais desde a
sua formação em 1993, a Cia. tornou-se uma referência do teatro brasileiro contemporâneo,
tendo em vista – principalmente a partir de sua segunda fase do Projeto Comédia Popular
300
Brasileira, intitulada Comédia Épica – a participação ativa do público perante o fenômeno
teatral.
1 Segunda Fase da Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes
Ancorada por um projeto bem definido, constituída por atores, diretor e dramaturgo
fixos, a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, no ano de 1998, realizou seu quinto
trabalho: Iepe.
A peça foi inspirada no personagem Iepe, personagem escandinavo da
tradição oral europeia, registrado pelo dramaturgo norueguês do século XVIII, chamado
Ludwig Holbert. Foi naquele momento que há uma mudança em relação às personagens
concebidas pela Fraternal Cia.
Na primeira fase, as personagens fixas quem tomavam as rédeas do espetáculo,
personagens baseadas nos tipos fixos da commedia dell’arte, e, na segunda fase,
personagens próximas aos personagens das festas populares medievais, como o beberrão
Iepe, que protagonizam as peripécias. A narrativa cômica dessa personagem, casado com
Neli, uma lavadeira, retrata o momento da vida de Iepe quando este é travestido em nobre.
A pedido da mulher, Iepe sai para comprar sabão e para, num bar, para beber. Bêbado,
passa a noite na estrada e é abordado por um Barão que lhe prega uma peça: veste-o de
nobre e o faz acreditar que é um deles, levando-o para seu feudo. Posteriormente, mandos e
desmandos do novo barão, Iepe volta para casa, no “aconchego” das pauladas de sua
mulher.
No ano de 1999, é encenada a peça Till Eullenspiegel, personagem heróico da tradição
medieval alemã, aprofundando a pesquisa acerca das personagens das festas populares
medievais. As aventuras desse personagem pouco conhecido no Brasil, Till Eullenspiegel,
apesar da longitude, vizinha às aventuras de Pedro Malasartes, personagem ibérico de
importante referência para a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, desde o início do
Projeto Comédia Popular Brasileira. Em seus mais de 90 contos, traduzidos e interpretados
à brasileira pela Cia., enfatiza-se a necessidade de um maior mergulho nas profundezas da
narrativa popular e de tradição oral.
301
O próximo trabalho da Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes resultou em
“Masteclé – Tratado Geral da Comédia”, um espetáculo cômico que protagonizou a
própria comédia, a comédia desenvolvida pela Cia., nas encenações anteriores. Devido à
redução considerável do número de atores, de catorze para quatro, a proposta da Cia. foi
retomar, em um espetáculo, os resultados práticos alcançados durante a primeira e a
segunda fase de projeto, bem como apresentar a comédia épica enquanto proposta cênica. E
foi por meio do jogo do fazer teatral, da brincadeira, que os elementos cômicos
incorporados pelo projeto foram introduzidos à cena.
A finalização da segunda fase do projeto aconteceu no ano de 2002, com a encenação de
“Nau dos Loucos (Stultifera Navis) ”, encerrando a pesquisa sobre os heróis da cultura
universal. A peça traz à tona o personagem Peter Askalander, um norueguês imperialista, e
Pedro Lacrau, um índio desmemoriado, além de outras personagens como Deus e o
português Joaquim. Essas personagens, características de culturas diferentes, seguem suas
sagas cômicas a bordo da nau dos loucos, referência da imagem medieval da Stultifera
Navis, nau europeia que recolhia os intitulados loucos.
Para os atores da Fraternal Cia., os desafios da interpretação cômica aumentaram tendo
em vista a necessária apropriação da arte narrativa e do progressivo número de personagens
a serem representadas. A atriz Mirtes Nogueira, integrante da Cia., desde a sua primeira
fase, da representação de uma personagem, passou a representar até três personagens, a
cada encenação, graças ao recurso do teatro épico, certeira investida da Fraternal Cia., em
sua segunda fase.
Primeira Fase – atriz Mirtes Nogueira representa uma personagem: O Parturião
(Rosaura), O Anel de Magalão (Rosaura), Burundanga – A Revolta do Baixo-ventre
(Prefeita), Sacra Folia (Maria);
Segunda Fase - atriz Mirtes Nogueira representa no mínimo três personagens: Iepe
(Neli, Médico Homeopata, Povo), Till Eullenspiegel (Consciência, Bruxa 3, Camponesa),
Masteclé – Tratado Geral da Comédia (Neli, Bica-Aberta, Boracéia, Benedita), Nau dos
Loucos (Mãe, Nauta, Deus)
302
2 Maior participação do público
O maior objetivo da Fraternal Cia., em sua nova empreitada, foi conquistar maior
participação do público em seus espetáculos. Pretendeu-se uma relação mais próxima e
imaginativa com aquele que compartilha diretamente, durante o fenômeno teatral, com os
atores – seus pensamentos e suas sensações – construindo conjuntamente o espetáculo. É
ao público que se reportam, de imediato, as personagens da Fraternal Cia., logo no início do
espetáculo. Recurso presente nas três primeiras obras da segunda fase da Fraternal Cia. de
Arte e Malas-Artes, as personagens recebem o espectador com agrado ou provocando-o, de
forma a incorporá-lo prontamente ao contexto teatral.
Dario Fo, em “Manual Mínimo do Ator”, traz à tona o personagem provocador
inspirado em Boccaccione de Aristófanes. Seja na entrada ou no intervalo das cenas, essa
personagem objetiva insultar o público, contar lorotas e gracejos, atitude comparada ao
zanni da commedia dell’arte ou mesmo às personagens das farsas romanas. E cabe ao ator,
mais que as palavras do texto, imprimir a qualidade necessária que provoque o público,
utilizando-se da máscara e do ritmo em que emprega ao texto.
Nas catedrais da Idade Média, nos capitéis e nos frisos dos portais
podemos encontrar representações de cômicos bufos em atitudes
provocativas com animais, sereias, harpias, mostrando com escárnio
até mesmo o próprio sexo. (FO, 1999, p. 304)
Na Fraternal Cia., em “Masteclé”, há o correspondente dessa personagem apontada por
Dario Fo, denominado Bocarrão. Representada pelo ator Edgar Campos, Bocarrão é zelador
de teatro e personagem cômica, objeto de análise feito pelo personagem Acadêmico,
durante sua aula expositiva sobre a comédia. Já meio esclerosado, o funcionário irrita-se
com qualquer ação que a plateia possa ter; mostra-se ranzinza no jogo de estímulo e
resposta com a plateia. Ainda no segundo sinal, eis que Bocarrão brava:
BOCARRÃO (A ALGUÉM DO PÚBLICO) Que foi? Algum problema?
Levou facada ou a cara é assim mesmo? Nasceu assim ou foi acidente?
(FAZ UM GESTO DE DESAGRADO PARA A PLATEIA, VIRA-SE
PARA SAIR, MAS VOLTA IRRITADO. AO PÚBLICO EM GERAL)
Vocês estão pensando que não sou polido, não tenho educação, não nasci
em berço de ouro, não é mesmo? Então vou esclarecer uma coisa: é isso
mesmo! E mais: sou o zelador deste teatro. [...] E, se é difícil pra vocês
303
suportar a mim que sou um só, imaginem o que é, pra mim, suportar
todos vocês, todos os dias, durante todos esses anos! Mas já que, por azar
do destino, vamos ter essa breve convivência que ela seja, pelo menos,
tolerável! Saio, mas estarei lá atrás vigiando cada um de vocês! (SAI.
TOCA O TERCEIRO SINAL. ENTRA O ACADÊMICO COM
ALGUNS PAPÉIS).
A direção ao público, dessa maneira, só foi possível porque a Fraternal Cia. se dispôs a
investir mais radicalmente na forma do teatro épico, rompendo efetivamente a “quarta
parede” que delimita a relação entre palco e plateia, que separa a representação dos atores
da plateia que “assiste”. E o rompimento acontece por não ser propriamente a personagem
que se dirige ao público, mas o ator como porta-voz do autor, isto é, como narrador que não
se identificou por inteiro com o papel.
3 Era uma vez... A narrativa
A Fraternal Cia. partiu do princípio, como Walter Benjamin em “O Narrador” (1936),
que a arte de narrar está em vias de extinção. A perda da narrativa no teatro é gerada,
segundo Walter Benjamin, pela predominância da informação em detrimento da narrativa,
em detrimento da rica troca de experiências significativas.
Benjamin contextualiza que com a ascensão da burguesia houve o declínio das formas
épicas, pois cada vez mais a imprensa, instrumento da classe hegemônica no auge
capitalista, ameaçou a narrativa por meio da propagação desenfreada da informação. A
informação se apresenta de forma restrita; os fatos chegam acompanhados de explicações,
impondo um contexto psicológico ao leitor/espectador. Nesse sentido, o receptor da
informação não é livre para interpretar a história. Há a restrição característica desse modo
de comunicação em relação à amplitude possivelmente atingida quando um episódio é
narrado.
A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse
momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo
tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se
entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz
de se desenvolver. (BENJAMIN, 1994, p. 204).
304
Para a Fraternal Cia. de Arte e Malas-artes, na segunda fase do Projeto Comédia
Popular Brasileira, torna-se evidente a responsabilidade da narrativa em manter e criar um
imaginário comum constituído por troca e comunicação de experiências calcadas na
trajetória humana. Tendo em vista que o teatro também é forma de saber, de acesso ao
logos, à consciência histórica do tempo e dos acontecimentos vividos pelo homem, é por
meio da narrativa que o acesso à consciência histórica humana se concretiza. E a busca pelo
sentido da existência da personagem advém das relações entre esta e o meio histórico em
que está inserida, proporcionando ao público e ao conjunto dos narradores (dramaturgo,
diretor, atores) um modo épico de observar o mundo na sua amplidão, não enclausurado ao
restrito universo individualista de apreensão do mundo via seu próprio umbigo.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O
Contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
______ . Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999.
305
Jogando no Quintal:
investigações acerca do improviso e do cômico
Thaís Carvalho Hércules
Mestranda / atriz / arte-educadora
IA-UNESP
Resumo
O grupo paulistano Jogando no Quintal articula em seu trabalho – como condição para realização
do espetáculo – a linguagem do palhaço e a improvisação. Dois times de palhaços disputam jogos
diversos no “espetáculo-partida”. Cabe à plateia sugerir temas que servirão como mote para as
improvisações e decisões, ao final, sobre qual time melhor desenvolveu o jogo. Esta proposta,
oriunda das experiências dos matchs de improvisação, conhecidas amplamente na Europa e na
América Latina, tem crescido na última década, no Brasil. No caso particular do Jogando no
Quintal, o espetáculo lança questões a serem investigadas, no âmbito acadêmico e para a cena
contemporânea, como: de que maneira se dá a articulação da linguagem do palhaço e a
improvisação: a relação entre comicidade e improvisação; a explicitação do uso de jogos teatrais em
cena; a participação do espectador na construção do espetáculo; o esporte (futebol) como um
elemento estético. Como resposta a estas questões têm sido realizadas entrevistas com os atores e
acompanhamento de ensaios e apresentações. A pesquisa adota como referências teóricas os
trabalhos de Keith Johnstone, sobre improvisação, as obras de Richard Courtney, Viola Spolin,
Ingrid Dourmien Koudela, sobre o jogo, John Wright, que aborda a questão do ator-improvisador e
Jacques Lecoq, que é uma referência na formação dos palhaços do Jogando no Quintal.
Palavras-chave: Improvisação. Palhaço. Jogo teatral. Comicidade.
É impossível residir em território brasileiro e passar sem alguma lembrança de ruas
vazias em época de Copa do Mundo ou de fogos de artifício na comemoração de “gol” de
times populares na cidade, em tempos de final de campeonato. Torcedor ou não, ninguém
escapa de conversa de bar após o jogo, onde cada um dá sugestões e exerce seu lado de
“técnico” de time; da mobilização das torcidas nas ruas; das “peladas” realizadas nas
quadras de escolas, praças, terrenos baldios; do espaço amplamente dedicado na mídia
impressa, televisiva e na internet. Gostando ou não, brasileiro algum passa incólume à
experiência do futebol.
Em um outro espaço, que um dia foi um quintal, uma escola, e que ocupou um
teatro na cidade de São Paulo – mas que, em todos os lugares citados, pode-se chamar de
“Estádio” – espectadores assistem a um espetáculo teatral, sem o silêncio e a atitude
306
contemplativa que normalmente associamos às plateias de teatro. Assim como nos esportes,
a imprevisibilidade dá o tom de toda a encenação: uma partida de improvisação entre dois
times de palhaços. O futebol aparece como uma forte referência: hino, “ola”, times
uniformizados, juiz, regras específicas. O espectador não só assiste ativamente a todo o
espetáculo como também participa, ao dar temas para as improvisações, ao ser responsável
pelas marcações de “gol” – realizados por cada time (chamados de “placarzeiro”). Neste
aspecto a relação entre palhaço-atleta e espectador-torcedor é decisiva e direta; sem ela o
espetáculo não se realiza. Embora seja uma outra experiência, este espectador também não
passa ileso ao assistir a esta partida, entre dois times de palhaços, assim como o torcedor
comum de futebol.
O que move espectadores a observarem e a participarem de cada lance de uma
partida e/ou espetáculo nos dois eventos descritos? No “Primeiro Tempo” deste artigo,
proponho-me a traçar uma análise sobre a relação espectador-torcedor e o esporte, no caso,
o futebol. No “Segundo Tempo” comparo este torcedor com o espectador do espetáculo
Jogando no Quintal, que se vale do futebol como uma referência estética. Nestes dois
momentos, busco também situar o assunto dentro do campo da etnocenologia, segundo a
proposição de Bião (2009), na qual a etnocenologia também visa aos estudos de:
outras práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados,
dentre as quais [...] os fenômenos sociais extraordinários e, até, as formas
da vida cotidiana, quando pensadas enquanto fenômenos espetaculares.
1 Primeiro Tempo
O “país do futebol” por adoção é o Brasil, embora tenha a Inglaterra como país de
origem. Desde os primeiros anos em que o esporte bretão passou a participar da vida social
brasileira, existiram ardorosos defensores, como Freyre (1982), e pessoas que se opunham
ao fenômeno como o escritor Barreto (apud FREYRE, 1982). Ambos os lados apregoavam
que a identificação entre Brasil e futebol era a tal da malandragem – vista sob aspecto
positivo para o autor de “Casa Grande & Senzala” e negativamente para o criador de
Policarpo Quaresma. Para Penna (apud FREYRE, 1982), entusiasta, o sucesso do futebol se
devia ao fato do brasileiro ter como característica ser mais “homo ludens” que “homo
faber”, ao privilegiar mais o ócio e o jogo ao trabalho.
307
Entretanto, o futebol se configura como um fenômeno histórico e social ainda mais
complexo do que foi exposto acima. Há sim, um diálogo entre o esporte bretão com as
características da sociedade brasileira – que irá tornar o futebol uma cosmologia local. Mas
estas características estão para além do “homo ludens” e da malandragem. Deve-se também
analisar o futebol na perspectiva do esporte moderno, no contexto de consolidação da
sociedade capitalista e, em particular, em como se configura a sociedade brasileira na
passagem do século XIX para o XX.
Assim como as artes, os esportes são colocados em uma esfera separada do mundo
do trabalho. Ambos são considerados supérfluos, não contribuem diretamente para este
outro mundo, o do trabalho. Apreciar uma partida de futebol ou ver um espetáculo teatral
são momentos de pausa na vida de um trabalhador. Mas, mesmo que estando em uma
esfera separada do trabalho, o esporte carrega em si uma série de valores caros à sociedade
moderna.
Primeiro, o corpo do atleta se especializa e se destaca com relação aos demais.
Exige-se uma especialização do corpo para que este esteja apto para a competição. Um
segundo aspecto diz respeito à relação entre agon (a competição) e arete (busca da
excelência e da consequência) como observa Gumbrecht (2007)1 e também visto por
DaMatta (2009) (que não chega a nomear competição e excelência como agon e arete) em
uma disputa higiênica, que trivializa fracassos e derrotas, sem a morte dos adversários.
Basta lembrar que outrora os duelos terminavam fatalmente com a morte de um dos
oponentes ou dos jogos com bola, praticados nas sociedades pré-colombianas, quando o
time perdedor era sacrificado em nome dos deuses para manutenção do status quo. A
competição “higiênica” justifica a criação de campeonatos que se estendem por meses e
que levam espectadores a acompanharem-nos fase por fase. Este conjunto de jogos
dispostos nos campeonatos promovem o destaque individual de alguns jogadores, que
combinam excelência técnica (arete) com capacidade competitiva e, por isso, motiva
torcedores a acompanharem as ações deste jogador e enfatiza a importância do papel do
individual dentro do coletivo, um valor forjado pela sociedade moderna.
O futebol entra no país por meio de filhos de industriais que, ao viajarem para a
Inglaterra, entram em contato com o esporte. No Brasil, o esporte passa a se popularizar
entre os operários, o que assinala o começo de uma trajetória que une o futebol às classes
308
populares. Segundo Roberto DaMatta (2009), uma questão determinante é que o futebol
surge no país neste contexto do esporte moderno e não como um mero jogo. No país, o
futebol assume uma multivocidade: trata-se tanto de um ritual, um espetáculo de massas,
assim como também adquire uma estrutura empresarial. Mas é, sobretudo, sobre este
aspecto ritualístico e espetacular que o futebol atinge os torcedores no Brasil.
O alcance que o futebol tem dentro da sociedade brasileira em particular pode ser
explicado ao que Gumbrecht chama de arete. Como se trata de um esporte que não faz uso
das mãos e privilegia o uso das pernas, isto aumenta a imprevisibilidade do jogo e exige por
parte dos jogadores um grande domínio técnico. Vide o fascínio que provocavam os dribles
de Mané Garrincha, considerado um dos melhores jogadores de toda história do futebol.
Este uso privilegiado de partes do corpo da cintura para baixo possui significados no
contexto da cultura brasileira, se observarmos que muitas formas populares de danças por
aqui cultivadas e cultuadas privilegiam o uso destas partes.
2 Segundo Tempo
Jogando no Quintal é construído a partir de uma série de referências ao futebol. A
escolha óbvia por este esporte (paixão nacional) é um dos elementos que permitem a
integração entre espectador-torcedor e palhaços-atletas e irão diferenciar a plateia do
Jogando
no
Quintal
dos
demais
espetáculos
teatrais
convencionais.
Mas
é
fundamentalmente a improvisação que será o elemento que permitirá este contato direto
entre espectador-torcedor e palhaço-atleta e elevará o público ao status de coautor do
espetáculo. Esta relação de coautoria não se observa nas torcidas esportivas. Embora a
imprevisibilidade possa aproximar os palhaços do Jogando no Quintal dos jogadores de
esportes, a participação das torcidas esportivas motiva o desempenho dos jogadores em
ação, mas não tem o mesmo papel de coautoria como no espetáculo mencionado. Um
torcedor comum observa e torce motivado para que o seu time predileto vença. No caso do
Jogando no Quintal, o embate entre times adversários fica em segundo plano, pois o mais
importante é que se estabeleça uma relação de cumplicidade com o espectador-torcedor.
Este, por sua vez, não está ali motivado pela presença do seu time predileto, sabendo que as
equipes se formam na hora do espetáculo e é o próprio público que determina quem fez o
309
“gol” (e é um dos espectadores-torcedores que assume a função de “placarzeiro” e fica
responsável em marcar os gols no placar), mas sim por fazer parte de um jogo em que todo
o público vibra com acertos e especialmente com os eventuais erros e deslizes cometidos
pelos palhaços.
Os elementos das torcidas esportivas fazem com que a plateia se integre, pois a
presença física do público é condição fundamental tanto para o espetáculo quanto para a
partida de futebol. A “ola”, sempre realizada entre os times, antes dos jogos, permite que
público/torcedores se vejam presentes como um só corpo. Quando o espetáculo era
apresentado no quintal de uma casa da Rua Faustolo em São Paulo1 os palhaços também
distribuíam cornetas e bandeirolas como uma referência visual e auditiva presente nos
estádios.
Mas, ao contrário do que comumente se associa, ou seja, a palavra improvisação
com falta de preparo, os palhaços-atletas, do Jogando no Quintal, entendem improvisação
como uma técnica. Os ensaios são chamados de treinos pelos integrantes da Cia. do Quintal
e é nestes momentos que eles desenvolvem e aprimoram esta técnica. Há, assim, um
fascínio do público mais pela arete de Jogando no Quintal que pelo agon, porque mesmo
que o palhaço lide com a lógica do erro, daquilo que é inadequado, impróprio, ele também
tem de estar preparado e aberto para assumir, transformar e assimilar o erro à cena.
Um último elemento a ser analisado quanto esta relação entre palhaço-atleta e
espectador-torcedor é, curiosamente, a figura do palhaço-árbitro. Figura demonizada pelos
torcedores de futebol, o juiz, no Jogando no Quintal, mais do que arbitrar as improvisações,
assume a função de mestre de cerimônias, que medeia a relação entre cena e público, dá
destaque a elementos que podem contribuir para o desenvolvimento do espetáculo (reações
de um espectador específico, por exemplo), comenta a cena com a plateia e pontua os
momentos de entrada e saída da banda Gigante (presente em cena). O domínio de cena
exigido para esta função faz com que apenas 3 palhaços do elenco fixo se revezem, nos
espetáculos, devido ao grau de atenção e “jogo de cintura” para coordenar duas horas e
meia de espetáculo.
310
3 Mesa Redonda: Considerações finais
As aproximações e diferenciações sobre a participação dos espectadores entre o
espetáculo teatral descrito e uma partida de futebol foram aqui esboçadas e podem ser mais
aprofundadas dentro do campo da etnocenologia, sabendo que uma das correntes permite
também a análise de fenômenos sociais como o futebol e desta relação distinta entre atoresjogadores e espectadores-torcedores.
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