PDF - Comunicação e Cultura
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Editorial | 1 & Comunicação Cultura n.º 9 | primavera-verão 10 2 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito COMUNICAÇÃO & CULTURA Directora Isabel Capeloa Gil Editor José Alfaro Conselho Consultivo Arjun Appadurai (New York University), Gabriele Brandstetter (Freie Universität Berlin), Elisabeth Bronfen (Universität Zürich), Andreas Huyssen (Columbia University), Marcial Murciano (Universitat Autònoma de Barcelona), Ansgar Nünning (Justus-Liebig-Universität Giessen), Christiane Schönfeld (Huston School of Film, National University of Ireland), Michael Schudson (Journalism School, Columbia University), Michel Walrave (Universiteit Antwerpen), Barbie Zelizer (Annenberg School for Communication, University of Pennsylvania) Conselho Editorial Ana Maria Costa Lopes, Ana Gabriela Macedo, Aníbal Alves, Carlos Capucho, Estrela Serrano, Fernando Ilharco, Isabel Ferin, Jorge Fazenda Lourenço, José Augusto Mourão, José Miguel Sardica, José Paquete de Oliveira, Manuel Pinto, Maria Augusta Babo, Maria Luísa Leal de Faria, Mário Jorge Torres, Mário Mesquita, Rita Figueiras, Roberto Carneiro, Rogério Santos Conselho de Redacção Carla Ganito, Catarina Duff Burnay, Fátima Patrícia Dias, Maria Alexandra Lopes, Nelson Ribeiro, Verónica Policarpo Arbitragem Aníbal Alves, Carlos Capucho, Fernando Ilharco, Isabel Ferin, Jorge Fazenda Lourenço, José Augusto Mourão, José Paquete de Oliveira, José Miguel Sardica, Manuel Pinto, Maria Augusta Babo, Maria Luísa Leal de Faria, Mário Jorge Torres, Rita Figueiras, Roberto Carneiro, Rogério Santos Coordenação deste número Isabel Capeloa Gil e Carla Ganito Revisão Cláudia Maia, João Berhan, Marta Olias, Raul Henriques, coord. de Conceição Candeias (português); Kevin Rose (inglês) Edição Com uma periodicidade semestral, Comunicação & Cultura é uma revista do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa), editada por BonD – Books on Demand. O CECC é apoiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia. Artigos e recensões A revista Comunicação & Cultura aceita propostas de artigos para publicação que se enquadrem na área das Ciências da Comunicação e da Cultura. Todos os elementos relativos a essas colaborações – normas de apresentação de artigos, temas dos próximos números, princípios gerais de candidaturas, contactos e datas – devem ser consultados no final desta publicação. Assinatura anual Custo para Portugal e Espanha: 20 euros. Para outros países, contactar a editora. Os pedidos de assinatura devem ser dirigidos a: [email protected] | www.comunicacaoecultura.com.pt Impressão: Rolo & Filhos II, SA | Depósito legal: 258549/07 | ISSN: 1646-4877 Solicita-se permuta. Exchange wanted. On prie l’échange. Editorial | 3 & Comunicação Cultura n.º 9 | primavera-verão 10 pós-género Bon D BOOKS on DEMAND | 5 Índice Editorial Paródia, pastiche, perversão e política: a teoria no reino do pós-género................ 11 ISABEL CAPELOA GIL & CARLA GANITO dossier................................................................................................................................... 25 Pós-feminismo e cultura popular.............................................................................. 27 ANGELA MCROBBIE O artigo propõe enquadramentos conceptuais para o pós-feminismo – entendido este como um retrocesso nas conquistas do feminismo. Discute ainda os efeitos duais da cultura popular, que simultaneamente parece contribuir para o desconstruir do feminismo e para lhe dar resposta, apresentando vários pontos onde este desconstruir se torna visível. O pós-feminismo relega o feminismo para um segundo plano e considera-o antiquado e desenquadrado nos novos estilos de vida das mulheres, gerando um «duplo enredamento» em que o feminismo é visto como um dado adquirido e repudiado. Para ultrapassar este novo regime de género, o feminismo académico tem de se desmantelar para se reinventar. Palavras-chave: Pós-feminismo, Cultura popular, Desconstrução do feminismo 6 | “An affair of great importance” – Queen Christina of Sweden (1626-1689) ...............................................................43 ELIZABETH NIVRE A rainha Christina da Suécia (1626-1689) foi uma das mulheres europeias mais proeminentes do seu tempo e também uma personalidade controversa. O interesse dos seus contemporâneos relativamente ao que era feito e dito por ela foi imenso. Simultaneamente, o meio impresso desenvolveu-se rapidamente, abrindo caminho para novos géneros e canais de distribuição. O nome da rainha sueca surge nos primeiros jornais e almanaques modernos, em relatos historiográficos e textos biográficos e panagíricos, bem como em panfletos.Rumores e intrigas viajavam entre países e reinos, e a rainha era considerada frívola, imoral e andrógina. A tensão entre o desejo de determinar o sexo da rainha sueca e um interesse na funcionalidade do género presente na figura de Christina moldou a narrativa da sua vida. O objectivo deste artigo é o de discutir se uma rainha pré-moderna se enquadra na fluidez do debate sobre o pós-género. Palavras-chave: Rainha Cristina, celebridade, pós-género Sujeito pós-moderno: de andrógino a pós-humano................................................59 SÓNIA SEBASTIÃO No presente artigo, enquadramos a temática do género e da sua evolução para o estudo do pós-género – associado às transformações do corpo pelo recurso a instrumentos tecnológicos e a experiências científicas – nos estudos culturais contemporâneos. Desta forma, relacionamos o debate sobre os ciborgues com o corpo sem género, associado ao arquétipo do andrógino. Para demonstrar o papel do pós-humano nas trocas simbólicas e no imaginário global, ilustramos os nossos argumentos recorrendo a conhecidos conteú dos audiovisuais e literários. Palavras-chave: Estudos culturais, Eu pós-moderno, Pós-género, Pós-humano, Estu dos f ílmicos Women on the move: the mobile phone as a gender technology....................... 77 CARLA GANITO As nossas vidas são crescentemente vividas num contexto móvel. A tendência actual na Europa e nos EUA é a da paridade entre homens e mulheres no uso do telemóvel. No entanto paridade no uso não significa igualdade. Tal como acontece com outros artefactos tecnológicos, despreza-se muitas vezes o facto de as mulheres terem uma apropriação muito distinta do telemóvel. No âmbito dos estudos feministas dos media procurar-se-á perspectivar o telemóvel como uma «tecnologia de género» e demonstrar o seu contributo para a construção e transformação de género. | 7 O artigo começa por analisar o estado da arte dos estudos feministas dos media e prossegue com a discussão do telemóvel como um media e com o seu posicionamento dicotómico no que diz respeito ao género. O artigo termina com a proposta do telemóvel como uma «tecnologia de género», um local de transgressão e de possível transformação. Palavras-chave: Telemóvel, Tecnologia de Género, Estudos feministas dos media As desigualdades do amor........................................................................................... 89 CLÁUDIA ÁLVARES & DANIEL CARDOSO Este artigo pretende indagar das inclusões e exclusões patentes nos discursos sobre relacionamentos veiculados pelas revistas femininas portuguesas Cosmo, Activa e Máxima. Estes discursos, habitualmente centrando-se nos temas de amor e sexo, dirigem-se à «mulher» como se de uma «identidade» definida e concreta se tratasse. Partindo de uma análise de conteúdo comparativa, e recorrendo ao complemento da Análise Crítica do Discurso, procurar-se-á esclarecer quais os temas explicitados, por um lado, e quais os silenciados, por outro lado, no tocante ao processo de naturalização de determinados comportamentos e ideologias relativos aos relacionamentos. Procuraremos aqui também entender qual a influência do Feminismo Liberal e do Pós-Feminismo em publicações que pretendem dar voz às mulheres, inquirindo até que ponto a perspectiva heterocêntrica e patriarcal está ainda infundida nestes discursos. Por fim, os resultados serão contextualizados ao nível das transformações macro-sociais analisadas por Anthony Giddens, Ulrich Beck, Michel Foucault, Judith Butler, entre outros. Este artigo enquadra-se no âmbito do projecto de investigação «A Representação Discursiva da Mulher em Revistas Femininas e Masculinas Portuguesas» (PTDC/CCI/71865/2006). Palavras-chave: Revistas femininas, Relacionamentos, Feminilidade, Masculinidade, Feminismo liberal, Pós-feminismo outros artigos.................................................................................................................... 109 Whitman’s urban kaleidoscope....................................................................................111 LARA DUARTE Walt Whitman viveu em Nova Iorque e passou grande parte da sua vida em ambientes urbanos. Não será, portanto, de estranhar que logo no início de Leaves of Grass tenha declarado ser sua intenção cantar a vida urbana, constituindo-se, assim, como o primeiro poeta americano a celebrar a cidade. O que talvez muitos desconheçam é que, por detrás da pretensa atitude de orientação e de celebração da vida urbana, está uma compreensão do lado mais 8 | obscuro do ambiente citadino. Tal como um caleidoscópio, a poesia de Whitman apresenta um modelo de espelho-duplo que produz um fluxo constante de perspectivas, ou imagens em movimento, conforme prometido no Prefácio de 1855: «I will have nothing hang in the way, not the richest curtains [...] You shall stand by my side and look in the mirror with me.» Palavras-chave: Cidade, Visão, Caleidoscópio, Democracia As duas repúblicas: Portugal (1910-1926) e Espanha (1931-1936) Ensaio de interpretação sociológica comparada.....................................................123 FERNANDO AMPUDIA DE HARO O objectivo do artigo é realizar uma aproximação comparada aos períodos republicanos português e espanhol, a partir de uma perspectiva ligada à teoria sociológica figuracional proposta por Norbert Elias. Como tal, o advento da República em Espanha e em Portugal trouxe consigo um novo equilíbrio de poder que mereceu diferentes valorizações em função do grupo social considerado. Algumas destas valorizações fizeram do medo, como emoção colectiva, o seu eixo central; o medo ficou também ligado a determinadas definições da situação, em termos de desordem ou de ameaças de ruptura social, assim como ao apelo à autoridade como solução para os níveis de incerteza e de imprevisibilidade manifestados por certos sectores sociais. Palavras-chave: República, Espanha, Portugal, Norbert Elias, Equilíbrio de poder, Medo social Caminhos e atalhos do cinema e do audiovisual em Portugal............................145 LAURO ANTÓNIO entrevistas.......................................................................................................................... 153 Entrevista a Gilles Lipovetsky.................................................................................... 155 CARLA GANITO E ANA FABÍOLA MAURÍCIO Entrevista a Gaye Tuchman....................................................................................... 165 GONÇALO PEREIRA ROSA | 9 recensões............................................................................................................................ 173 Tamara Chaplin, Turning on the Mind: French Philosophers on Television (Rita Figueiras) Thomas M. Malaby, Making Virtual Worlds: Linden Lab and Second Life (Cátia Ferreira) Gilles Lipovetsky & Jean Serroy, O Ecrã Global (Carlos Capucho) montra de livros................................................................................................................ 185 agenda................................................................................................................................ 191 abstracts............................................................................................................................. 197 próximos números........................................................................................................... 203 normas para o envio de artigos e recensões............................................................. 208 EDITORIAL Paródia, pastiche, perversão e política: a teoria no reino do pós-género ISABEL CAPELOA GIL* CARLA GANITO ** 1. O mundo de Gaga «Como poderá uma figura tão calculista e artificial, tão clínica e estranhamente artificial, tão despida de erotismo genuíno, ter-se tornado o ícone da sua geração?» A pergunta formulada na edição de 12 de Setembro de 2010 do The Sunday Times Magazine pela feminista americana Camille Paglia, encimava a diatribe retórica contra a diva do déjà-vu, a celebridade líder da geração Y, apresentada como desatenta à vitalidade e ao talento vocal, imune ao afecto e à emotividade gestual, porque comunica de forma muda através de uma corrente inesgotável de mensagens telegráficas atomizadas. Em consequência, argumenta que a geração Twitter, que a idolatra, está presa na tecnocracia das NTI, subvertendo as fronteiras entre o público e o privado, imunizando-se relativamente ao contacto humano e glorificando o kitsch mercantilizado, o pastiche, que supera todas as distinções e as resolve de forma indistinta, em particular o género. O objecto da crítica, o «andróide plastificado» de que fala Paglia, foi considerado pela revista Time uma das pessoas mais influentes de 2009 e constitui a entrada mais alta para a lista Forbes 2010, situando-se em quarto lugar com ganhos anuais de 62 milhões de dólares. Falamos de Stefani Joanne Angelina Germanotta, aliás, Lady Gaga. _______________ * Directora e professora associada da Faculdade de Ciências Humanas da Univ. Católica Portuguesa. ** Assistente da Faculdade de Ciências Humanas e investigadora do CECC – Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa. 12 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito Que os ícones da cultura popular constituem barómetros da sociedade mais eficazes do que complexas reflexões de autocrítica, já Siegfried Kracauer afirmara em 1927, no estudo seminal «O Ornamento da Massa». O que as Tiller Girls representavam para Kracauer, enquanto exemplos da organização social capitalista, tem o seu contraponto na figuração da «Gaga», para pensar a problemática do pós-género. Afinal, na sua ambivalência entre apropriação, imitação, paródia e subversão das categorias sociais, estéticas, políticas e de género, a artista que a revista Vanity Fair considera responsável por uma «revolução cultural» (VF, Setembro 2010: 134-135) representa simultaneamente a crise e a plurissignificação do(s) feminismo(s) contemporâneo(s), situada numa encruzilhada de designação multiforme, desde feminismo de terceira vaga, até feminismo pós-género, feminismo pró-sexo, pós-feminismo, ciberfeminismo e contrafeminismo. Gaga usa a cultura popular como parte integrante da disseminação, mas também da afirmação e subversão da teoria contemporânea sobre a reflexão em torno do papel da mulher na sociedade. Antes de criticar o feminismo popular por este minar as possibilidades de empoderamento das mulheres, reduzindo-as a episódios paródicos, interessa entender a matriz plural dos feminismos, que, mais do que conceitos, exploram vivências, necessariamente variadas, opostas, inconciliáveis até. Estas designações, de forma alguma inter-referenciais, conceptualizam a «tremenda e infiel heteroglossia» que, segundo Donna Haraway, marca a diversidade das manifestações feministas (Haraway, 2002: 250), os seus anseios e frustrações, constituindo sobretudo figurações das diferenciadas culturas do feminino, como assinalou Ann Brooks (1997). Lady Gaga surge assim como sinal da krisis que marca o projecto feminista no século xxi. A sua estética da ambiguidade e da contradição é produtiva para entender três aspectos centrais e inter-relacionados da discussão contemporânea em torno da problemática do pós-género – referimo-nos às dimensões sociopolítica, estético-performativa e de epistemologia do género. Reconhecida a igualdade jurídica nas sociedades ocidentais, garantido o acesso ao trabalho, mas também à protecção social, tolerada a visibilidade cultural e artística, o projecto do feminismo de segunda vaga, fortemente ligado à concessão de direitos sociais, uma vez conquistados – pelo menos na lei – os direitos à representação política, parece terminado, como argumentava a conservadora Christina Hoff Sommers (Sommers, 1994). Opondo o discurso de um novo power feminism, ancorado no reconhecimento das conquistas sociais, ao modelo do victim feminism da luta política das «mães» feministas, Sommers considera que se iniciou o período de um pós-feminismo, que recusa a continuidade obsoleta de um discurso de emancipação, garantido já pela primeira vaga1, e que propõe Editorial | 13 um novo individualismo, ancorado na conciliação com os valores do patriarcado. A posição de Sommers, que se autodeclara como feminista antifeminista, surge no contexto das lutas culturais dos anos 90 nos EUA, e da discussão das políticas de discriminação positiva, sintoma efectivo do backlash contrafeminista, que Susan Faludi assinala (1992), em sintonia com a complexidade contraditória que marca o ambiente cultural e político no final do século xx e no princípio do xxi. A constatação de que os padrões de comportamento, as expectativas sociais e a percepção da mulher na sociedade se modificaram profundamente numa época em que aparentemente tudo lhe é permitido colide afinal com a incapacidade de encontrar nas novas formas sociais enquadramento que legitime a ambivalência profunda no seu papel. Do mesmo modo, o empenho na luta pela emancipação parece, depois da movimentação radical dos anos 60 e 70, ter remetido o activismo em prol das mulheres para segundo plano, relativamente a outros movimentos que reclamam direitos sociais, nomeadamente a nível étnico e de orientação sexual. Ao mesmo tempo que maternidade e/ou carreira parecem ao alcance de todas, os mecanismos de regulação sociocultural teimam em limitar o acesso e a escolha. Angela McRobbie, no ensaio que abre este volume, designa assim o duplo enredamento (double-entanglement) do pós-feminismo, comprimido entre a livre escolha de um destino e de uma identidade próprios e os constrangimentos institucionais que os regulam. A ansiedade provocada por este enredamento transforma o anjo da casa, da matriz vitoriana, na «malvada do lar» (Hanauer, 2002: xiii) do século xxi, que não quer perder os direitos duramente conquistados, nem a realização doméstica, mas se sente encolerizada e ansiosa ao ser duramente confrontada pelas limitações institucionais que constrangem a escolha. Afinal, a questão central com que o pós-feminismo, ou as feministas de terceira vaga, se debate é o facto de as estruturas liberais de oportunidade social, jurídica e política não deixarem de ser geridas por mecanismos de regulação que continuam a subverter a possibilidade efectiva de escolha livre (cf. Heywood & Drake, 1997: 11). Radical, provocadora e agente de uma extravagante estética kitsch, Lady Gaga constitui simultaneamente um produto e um sintoma desta crise de identificação. Oriunda da classe média nova-iorquina e educada em escolas de elite, a artista usa o modelo social sob a forma de apropriação inversa, isto é, usa o modelo da cultura dominante de fundo capitalista contra si própria. Invertendo os termos do duplo enredamento, não se trata apenas de figurar a contradição do projecto feminista, mas, sim, de usar as estruturas da culturalite – a construção da celebridade, os mecanismos de marketização, as novas tecnologias visuais – para mostrar a instabilidade que a suporta, por um lado, e para recusar a interpelação, por outro, tal como na canção «Telephone» (2010), onde joga com uma identidade queer e usa 14 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito o telefone como instrumento de cisão e não de comunicação. «Stop calling, stop calling, I don’t wanna hear anymore» apresenta a recusa simbólica da interpelação, que culmina na ruptura tecnológica e social a um tempo: «I have no service, I can’t hear you. You’re not going to reach my telephone». Esta dissidência faz-se contudo usando as estruturas dominantes que critica. Desde a escolha do nome artístico – inspirado na canção «Radio Ga Ga» dos Queen – à exagerada selecção de vestuário, sempre assinada em exclusivo por grandes estilistas, de Chanel a Hermès ou Versace, Lady Gaga assume-se como a figuração primordial do pastiche. Do mesmo modo, efectua uma apropriação artística de criadores como Madonna, Marlene Dietrich, David Bowie e mesmo a bailarina finissecular Loïe Fuller2, que Camille Paglia deslegitima como roubo e estética déjà-vu, mas que Gaga assume dentro do espírito da paródia crítica pós-moderna e das suas estratégias de sampling, morphing e cloning 3. Numa radicalização kitsch, que esbate os limites entre a identidade privada e a performance pública, Gaga usa a sua estética performativa como forma de tomar uma posição socialmente crítica, usando os mecanismos da cultura da celebridade como forma de subversão desta mesma cultura. Assim a estética de diva, que parecia adormecida perante os constrangimentos de uma cultura da celebridade baseada na curta duração, na construção, disseminação, canibalização, regurgitação e apagamento acelerado de personas-produto, parece no século xxi reforçar-se e ganhar a nova efectividade, referida por Elisabeth Bronfen (Bronfen, 2002: 117) no seu estudo sobre Madonna, com a emergência de Lady Gaga. Todavia, uma marca singular da reflexividade crítica da artista sobre a tradição da diva é precisamente o cultivo da ambiguidade sexual, não só explorando claramente uma abordagem queer nos seus vídeos e aparições públicas, mas igualmente o gender bending sugerido por Marlene Dietrich ou por Madonna. Por outro lado, o questionamento das categorias sexuais ocorre igualmente através do exagero e da acentuação excessiva da forma feminina, que convertem a figura assim criada numa paródia da feminilidade. O escândalo causado pelo vestido de carne que usa na cerimónia de entrega dos Video Music Awards (VMA) de 2010, provocando a ira de associações de defesa dos animais e causando um enorme desconforto junto dos outros participantes no evento, além de constituir um remake da performance de vanguarda e da sua intenção de épater le bourgeois, enuncia a frontal refutação da ontologia da essencialidade dos sexos, associada à crítica do sistema de celebridade de Hollywood que torna as actrizes e cantoras objectos-carne que a indústria canibaliza. Simultaneamente, toma posição relativamente à ambiguidade sexual que a produziu e que se transformou em estratégia de marketing do produto Gaga. Ou seja, não só usa a indústria para a criticar, como Editorial | 15 encena modelos críticos que produzem Gaga enquanto celebridade, renegando depois as estratégias utilizadas pela sua entourage para esta construção. A transgressão transforma-se em espiral que subverte a própria subversão, tocando perigosamente uma nova potencial afirmação4. O projecto Gaga apresenta assim as valências e as contradições da problemática pós-género: a conciliação crítica entre o sistema dominante e o activismo feminista; o uso da estética enquanto manifesto, ainda que contraditório, da acção política; a transgressão das categorias de género, quer através do cultivo da ambiguidade da diferença sexual, quer através da radicalização transgressiva, que evidenciam as dissonâncias através de uma teoria verdadeiramente encarnada (theory in the flesh), segundo a designação de Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga (Anzaldúa & Moraga, 1983: 25). 2. Pós-género, pós-moderno, media, cultura e sociedade Liz Lemon: I’m a businesswoman. Jack Donaghy: Oh, I don’t think that’s a word. 30 Rock (NBC, 2009) Tal como a boutade de Jack Donaghy na série 30 Rock, o problema da designação pós-género começa por se colocar ao nível da linguagem. E que a linguagem tem força performativa é uma tese consensual de J. L. Austin e John Searle a Judith Butler. Urge por isso começar por distinguir pós-género daquilo que não é, para se chegar a uma designação produtiva enquadrante dos ensaios coligidos neste número da revista Comunicação & Cultura. As formulações mais recorrentes do termo são inconciliáveis entre si. Distinguimos aqui quatro: uma associada ao feminismo liberal; a segunda conotada com o feminismo radical; a terceira, com o ciberfeminismo; e a última, que concilia pós-género com pós-modernismo. Em primeiro lugar, e decorrente da fixação no prefixo «pós», como aquilo que vem depois, o termo foi associado a algum feminismo liberal que questiona a tónica activista da geração anterior e que, considerando a causa feminista ultrapassada, postula uma nova era de conciliação com as estruturas sociais do patriarcado. Esta tendência concilia parceiras tão fora de comum como a já referida Christina Hoff Sommers, que defende o regresso aos valores da domesticidade, ou a própria Camille Paglia, que em Sexual Personae (1990) alega que a criatividade estética é apanágio exclusivo do masculino, uma vez que a mulher, pela sua biologia reprodutora, se pode afirmar apenas, ainda que como objecto na esfera artística, como figura sexual. 16 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito A designação está sobretudo profundamente conotada com as teses construtivistas de Judith Butler, geralmente considerada uma feminista pós-género por contraposição ao feminismo europeu da diferença5. Segundo Butler, a categoria de género torna-se efectiva através da repetição de actos performativos. O conceito de performatividade é aqui alargado do âmbito da pragmática austiniana (Austin: 1975) para se referir a todas as formas de acção social através das quais se institui sentido. A cena de constituição performativa do género é semelhante à cena teatral (Butler, 1988), mas desenrola-se no palco da sociedade. Trata-se de uma performance que age como ficção reguladora socialmente repetida, acabando por subsumir a própria categoria de sexo, que apenas tem realidade na medida em que é representada (performed). Assim, género apresenta-se como categoria instável, perturbada (gender trouble), como se lê na obra fundamental desta revolução construtivista (Butler, 1990). As teses de Butler conduzem à impugnação da diferença sexual enquanto binarismo culturalmente construído, e que, por isso mesmo, pode ser contestado através de performances alternativas. Em Undoing Gender (2004) defende que a nova tarefa do feminismo se situa não no acto de mostrar as cenas de constrangimento que constituem género, mas, pelo contrário, em mostrar o modo como este pode ser «desfeito» (become undone) (Butler, 2004: 1). Esta tarefa, associada aos movimentos de New Gender Politics, para além do binarismo da diferença social, repudia o novo humanismo, propondo, inversamente, a articulação com a tecnologia, e um repensar do humano a partir do conceito de fusão híbrida na figura do ciborgue. As teses do feminismo radical articulam-se assim com o tecnofeminismo ou com o ciberfeminismo na apresentação do pós-género como conceito difuso que se define a partir da desnaturalização do género e do seu binarismo, permitindo a configuração de novas categorias de organização entre o humano e o social, como aquele que é apresentado pelos organismos cibernéticos (ciborgues). Foi efectivamente o «Manifesto Ciborgue» de Donna Haraway (Haraway, 1991, 2002) que apresentou o ciborgue como figura paradigmática do mundo pós-género, um híbrido de máquina e organismo, a conciliar a crítica à ontologia da diferença sexual com a epistemologia irónica de uma criatura com realidade social e ficcional a um tempo. Haraway recupera de certa forma o conceito romântico de ironia para resolver na figura contraditória deste híbrido as aporias da sociedade ocidental, em particular a exploração da natureza, o capitalismo e o patriarcado, e para propor nesta figuração uma nova narrativa do mundo: um mundo sem género, sem génese e, hipoteticamente, sem fim. O mundo pós-género apresenta-se assim como um espaço de conciliação e contradição, de libertação dos constrangimentos institucionais e das narrativas que dominam os corpos reais das mulheres: Editorial | 17 [...] um mundo ciborgue poderia ter a ver com realidades sociais e corporais realmente vividas, um mundo onde as pessoas não têm medo da sua afinidade e ligação com os animais e as máquinas, da sua identidade permanentemente parcial, nem das posições contraditórias. (Haraway, 2002: 231) O já clássico ensaio de Haraway, inspirado nas utopias pós-género da ficção científica, dá assim início a uma nova corrente de expressão feminista, fundada num uso renovado da tecnologia, em particular das novas tecnologias e da Internet, como plataformas de empoderamento das mulheres. Denominado «ciber» ou «tecnofeminismo», dele decorre a assunção de que, através da tecnologia, a mulher pode escapar aos constrangimentos biológicos do corpo, propondo justamente o uso da tecnologia como suporte prostético para uma nova política feminista. À mudança de uma percepção fóbica da relação entre o feminino e a tecnologia para uma apreensão eufórica não é certamente estranha a radical disseminação do computador que conduziu a uma personalização quase fusional da máquina com a utilizadora, num segundo Eu, como defende Sherry Turkle (Turkle, 2008). Acresce que a metáfora do ciborgue, associada à portabilidade e leveza das TIC, de PC a telefones móveis, permite além do mais a superação das tradicionais distinções entre grupos feministas – raça, classe, geografia –, propondo em particular a apropriação da Internet como plataforma de acção global de um novo espaço público onde as mulheres são players privilegiadas. Usando a retórica combativa da segunda vaga, Sadie Plant, teórica de culto do cyberpunk, apresenta o ciberespaço como o espaço de liberdade social, estética e biológica por excelência, onde a cena do constrangimento do género é definitivamente superada através do jogo pleno da identidade: Cyberfeminism is information technology as a fluid attack, an onslaught on human agency and the solidity of identity. Its flows breach the boundaries between man and machine [...]. Cyberfeminism is simply the acknowledgement that patriarchy is doomed. (Plant, 1993: 12) Todavia, a generalização do uso da tecnologia produziu no ciberfeminismo igualmente uma variante de pendor mais liberal, que usa as presenças internáuticas como forma de contestar directamente os preconceitos estereotipados sobre o relacionamento secundário das mulheres com a tecnologia, usando precisamente representações de uma feminilidade tradicional, em sites de cor rosa ou com marcas de um gosto feminino tradicional, precisamente para demonstrar a capacidade de usar e manipular a contradição. Cybergrrrl, Geekgrrrl ou Netchick são nics de ciberfeministas que, ao mesmo tempo que se dissociam da retórica crítica da 18 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito segunda vaga, usam o espaço virtual como plataforma de domínio e afirmação social e política. Na verdade, a multiperspectivação dos utilizadores decorre da própria natureza fluida desta nova tecnologia, que assim se define como plataforma paritária e emancipatória para grupos subfigurados. Pós-género tem ainda vindo a ser conceptualizado por comparação com a constelação do pós-modernismo, no que este tem quer de emancipatório, quer de jogo e paródia. A tese apresentada inicialmente por Craig Owens (Owens, 1983) e subscrita depois por Susan Suleiman (Suleiman, 1991) ou Linda Nicholson (Nicholson, 1991) fundamenta a articulação entre pós-feminismo e pós-modernismo ao nível da resistência aos discursos do poder, ou seja, da resistência à sociedade patriarcal pelo pós-feminismo e da resistência aos modelos de representação dominante pelo pós-modernismo. Justamente neste entretecer se concebe pós-género como termo que decorre do impulso crítico do pós-modernismo, mas que com ele dialoga no fomento de uma estética da contradição e da complexificação. Como discutimos atrás, o conceito de pós-género é herdeiro da desconstrução dos essencialismos, da crítica do pensamento binário, da crítica da linguagem do pós-estruturalismo, mas recebe do pós-modernismo três elementos fundamentais: o primeiro, a tónica no jogo paródico com a cultura dominante; o segundo, o gerir da contradição e da ambivalência; e, finalmente, o uso da representação como plataforma de resistência através do jogo da ambiguidade. Lady Gaga, afinal, funde de forma singular o impulso crítico e paródico do pós-modernismo com o cultivo da contradição e da complexidade que define o feminismo pós-género. A revista Comunicação & Cultura dedica este número à discussão corrente sobre pós-género nas ciências da comunicação e da cultura. Procura ilustrar a fluidez do projecto do feminismo pós-género através de cinco artigos que abordam, também eles de forma multifacetada, as problemáticas centrais do pós-género. No artigo de abertura, «Pós-feminismo e cultura popular», Angela McRobbie apresenta-nos as tensões da articulação entre cultura popular e feminismo, onde este último resulta como projecto datado. A realidade portuguesa que será tratada em dois dos artigos subsequentes não é alheia a este fenómeno de recusa de identificação com o projecto feminista. Esta recusa estende-se igualmente ao não-reconhecimento da permanência de situações de discriminação de género, sendo o projecto feminista percepcionado como antifeminino, antimulher, esvaziando-se de significado e de valor. McRobbie guia-nos por este desmantelar ou desfazer do feminismo e pelo papel que a cultura popular assume nesse processo que conduz ao repúdio do projecto feminista, «sem a ocorrência de um feminismo reinventado» (McRobbie: 38). Editorial | 19 Se Lady Gaga é um dos ícones mais emblemáticos da cultura popular, a rainha Cristina da Suécia é-nos apresentada como um proto-ícone do pós-género na sua dimensão transgressiva. Em «“An affair of great importance” – Queen Christina of Sweden (1626-1689)», Elizabeth Nivre ilustra a problemática estético-performativa do pós-género propondo a rainha Cristina como uma figuração de desafio ao regime heterossexual e heteronormativo pela transgressão de normas e fronteiras alicerçadas nas convenções binárias da diferença sexual. Convenções que ainda hoje se afirmam como mecanismos de regulação sociocultural: What is truly surprising is that so little has changed over the past 350 years [...], which illustrates that it is not so much “Christina” that is the problem [...], but rather the search for definitions that force us to look beyond the hierarchical bias of man – woman. (Nivre: 54) A ambiguidade expressa tanto por Lady Gaga como pela rainha Cristina volta a ser explorada por Sónia Sebastião no seu artigo «Sujeito pós-moderno: de andrógino a pós-humano», sobre o arquétipo do andrógino. A manipulação tecnológica dos corpos e a descorporização inerente às novas tecnologias introduzem novas tensões no mundo do pós-género, e neste artigo a autora revela o conflito resultante da desconstrução dos essencialismos e da intersecção do pós-género com o pós-humano. Trata-se de uma intersecção que vive no equilíbrio difícil entre a utopia da libertação feminina do constrangimento biológico do corpo e a fobia da corrupção e da exploração tecnológica do mesmo corpo. Afinal, figura-se um equilíbrio longe do sonho de Katherine Hayles, de criar «uma versão do pós-humano que abraçasse as possibilidades das tecnologias de informação sem ser seduzido pelas fantasias de um poder ilimitado de uma imortalidade incorporal» (Hayles, 1999: 5). O papel da tecnologia na construção do género está também presente no artigo de Carla Ganito, «Women on the move: the mobile phone as a gender technology», em que a autora propõe o telemóvel como um local onde a conciliação e a contradição do mundo do pós-género se tornam visíveis. O telemóvel é entendido no quadro da proposta de Teresa de Lauretis: do género como produto de várias tecnologias sociais que abririam novas possibilidades de transformação. O telemóvel é-nos oferecido simultaneamente como um espaço de reforço dos estereótipos e dos papéis tradicionais de género e de performance de novos significados. Através da exploração da cor, das práticas de personalização e das negociações de espaço, a autora defende que se torna clara a natureza fluida do telemóvel como tecnologia de género e como ferramenta de representação e auto-representação multifacetadas. 20 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito Finalmente Claúdia Álvares e Daniel Cardoso abordam outra tecnologia de género: as revistas femininas e masculinas. No artigo «As desigualdades do amor», os autores demonstram a resistência do binário e as dificuldades de conciliação da ideologia patriarcal com as conquistas do sujeito feminino. Esta dificuldade é também abordada nas entrevistas que fazem parte deste número da revista. Gaye Tuchman refere a persistência dos estereótipos e do papel dos media neste processo, e Gilles Lipovetsky, o impacto da dinâmica individualista nas mulheres e nos processos de conciliação crítica que resultam do desenvolvimento de novas expectativas e aspirações. Mas se, como Lipovetsky afirma, «a hipermodernidade é também o reconhecimento da diferença», já que «o feminismo de hoje em dia não é o feminismo de outrora», então o que é hoje o projecto feminista? Será um feminismo parodiado e reinventado em figurações como as de Lady Gaga? Figurará simplesmente a tensão irresolúvel entre o exercício das novas conquistas e a manutenção dos modelos tradicionais? Pós-moderno, cibernético, liberal ou radical, a discussão em torno do problemático conceito de pós-género configura afinal a pluralidade imensa da discussão feminista contemporânea, as tensões não resolvidas dos seus variados modelos de transferência de saber, entre o individual e o comunitário, o familiar e o profissional, o activismo e a aceitação, a paródia e a crítica. Pós-género assume as tensões da reflexão feminista e ainda mais os limites da própria teoria, empenhada por vezes em agendas que, potenciando a radicalidade do pensamento, descuram a pluralidade das questões sociais, éticas e culturais com que as mulheres se debatem no complexo século xxi. Pós-género erige-se assim como conceito que, consciente dos limites teóricos da concepção de género e da sua variada apropriação, figura uma política emergente de teorização feminista fundada na ambivalência, na conciliação entre os opostos, mas também na força emancipatória das novas tecnologias na resistência às metamórficas constelações do novo patriarcado. Editorial | 21 NOTAS Entende-se por feminismo de primeira vaga o processo referente à conquista de direitos políticos para as mulheres e que está particularmente conotado com o feminismo liberal ou da igualdade. Historicamente, a primeira vaga abarca desde os escritos panfletários de Mary Wollstonecraft (A Vindication of the Rights of Women, 1792) e do movimento sufragista no início do século xx, até 1 ao discurso da igualdade formulado por Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo (1949). Influenciadas por Beauvoir, a partir dos anos 60, as feministas da segunda vaga têm preocupações de ordem político-representacional, aliando a defesa da emancipação feminina e da garantia dos direitos sociais com uma forte tónica na política do discurso e da representação e no seu impacto real na vida das mulheres. Interessa-lhes sobretudo chamar a atenção para a estrutura patriarcal hegemónica e para as estratégias de ocultamento e naturalização que retiram autonomia e visibilidade às mulheres, desde a estrutura da linguagem à política do corpo. Tanto a designação de feminismo de primeira como a de segunda vaga são constatações retóricas de pendor abstracto que obscurecem a diversidade do projecto de emancipação feminina e que por isso exigem que feminismo se grafe necessariamente no plural, como feminismos. Uma das críticas correntes a estas duas vagas é o facto de agirem sobre um pano de fundo ocidental e de esquecerem realidades culturais étnica, religiosa e geograficamente diversas. Por feminismo de terceira vaga ou pós-feminismo designam-se as tendências contraditórias do projecto de emancipação contemporâneo, marcado sobretudo pela contradição entre posições liberais e radicais, por formas de conciliação ambivalentes e pela forte crítica aos movimentos anteriores (vide Macedo & Amaral, 2005: 153-154, e Gamble, 1999: 298). Vejam-se em particular as fotografias de Nick Knight para a Vanity Fair (Robinson, 2010: 134-135), onde a artista invoca, através da dissolução da forma numa túnica de tom flamejante de Alexander McQueen, as imagens da Dança do Fogo (1895) de Fuller. 3 Num artigo para a revista Movie Maker, o realizador Jim Jarmusch assume a predominância da cópia como estratégia legítima da arte do século xxi, considerando, ao estilo de Godard, que, mais do que a influência ou a origem, interessa indicar a finalidade da apropriação. Trata-se, afinal, de deslegitimar a origem, numa estratégia conceptualmente fundada pela desconstrução, a favor de uma nova autenticidade, baseada na apropriação. «Authenticity is invaluable; originality is nonexistent. And don’t bother concealing your thievery – celebrate it if you feel like it. In any case, always remember what Jean-Luc Godard said: “It’s not where you take things from – it’s where you take them to”» (Jarmusch, 2004). 4 Numa crítica às construtivistas radicais, Elisa Glick considera que o feminismo pós-género, segundo Judith Butler, se auto-subverte através da excessiva tónica na transgressão e na passagem (queering) como postulado conceptualmente legitimador. Trata-se na sua óptica de uma afirmação hegemónica contraditória (Glick, 2000: 19-45). 5 Sobre o feminismo da diferença, constituído sob o impulso da segunda vaga e do reconhecimento da diferente acção da mulher na sociedade baseada na diferença sexual, veja-se Cixous & Clément, 1986, e Braidotti, 1994. 2 22 | Isabel Capeloa Gil | Carla Ganito BIBLIOGRAFIA Anzaldúa, Gloria; Moraga, Cherríe (coord.) (1983), This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color, São Francisco: Aunt Lute Books. Austin, J. L. 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