Onde dormem as crianças

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Onde dormem as crianças
 Onde dormem as crianças Versão originla: http://darbarnensover.aftonbladet.se/chapter/english‐version/ Fotografia: Magnus Wennman Um tem saudades da sua cama. Outra da sua boneca dos olhos negros. Um terceiro embala‐se em sonhos dos tempos em que a sua almofada não era o inimigo. A guerra na Síria dura há quase cinco anos e mais de dois milhões de crianças estão em fuga, dentro e fora das fronteiras do país. Deixaram os seus amigos, as suas casas e as suas camas. Algumas destas crianças ofereceram‐se para nos mostrar onde dormem agora, quando já não existe nada do que conheciam. Magnus Wennman, duas vezes vencedor do prémio World Press Photo e quatro vezes vencedor do prémio Fotógrafo do Ano na Suécia, conheceu, este ano, muitos refugiados em vários campos de refugiados e na sua viagem pela Europa. A história de quando a noite vem é uma narrativa viva e sem fim. O museu Fotografiska e o jornal Aftonbladet têm como objetivo reconhecer a vulnerabilidade da situação destas crianças deslocadas pela guerra apoiando a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Para ajudar a ACNUR a ajudar crianças a fugir da guerra, pode fazer o seu donativo na angariação de fundos da exposição ou enviar uma SMS com o texto FLYKT150 para o número 729 80 para doar 150 coroas à ACNUR. Pode também enviar um Swish com o valor que quer doar para 123 90 01 645. Lamar, 5 anos Horgos, Sérvia. Em casa, em Bagdade, ficaram os bonecos, o comboio de brincar e a bola; Lamar fala muitas vezes destes objetos quando fala da sua casa. A bomba mudou tudo. A família ia às compras quando caiu a bomba, perto de sua casa. Já não se podia lá viver, conta a avó de Lamar, Sara. Após duas tentativas de atravessar o mar pela Turquia, num pequeno barco de borracha, conseguiram chegar aqui, à fronteira fechada da Hungria. Agora, Lamar dorme num cobertor na floresta, assustado, gelado e triste. Mahdi, um ano e meio Horgos/Roszke. Mahdi tem um ano e meio. Só viveu a guerra e a fuga. Dorme profundamente apesar das centenas de refugiados que trepam à sua volta. Protestam porque não os deixam continuar a sua viagem pela Hungria. No outro lado da fronteira, encontram‐se centenas de polícias. Têm ordens do Primeiro‐ Ministro, Viktor Orbán, de proteger a fronteira a qualquer custo. A situação torna‐se cada vez mais desesperada e, no dia após a fotografia ter sido tirada, a polícia usou gás lacrimogénio e canhões de água contra os refugiados. Abdul Karim, 17 anos Atenas, Grécia. Abdul Karim Addo já não tem dinheiro. Comprou um bilhete de ferry para Atenas com os últimos euros. Agora passa as noites na Praça Omonoia, aonde chegam centenas de refugiados todos os dias. Aqui, os contrabandistas estão a fazer muito dinheiro vendendo passaportes falsos, bem como bilhetes de 1 autocarro e de avião a pessoas em fuga, mas Abdul não vai a lado nenhum. Conseguiu pedir um telefone emprestado e ligar à mãe que está na Síria, mas não lhe consegue dizer quão mal as coisas estão. "Ela chora e está assustada por mim, não a quero preocupar mais." Desenrola o seu cobertor no meio da praça e enrola‐se em posição fetal. "Sonho com duas coisas: dormir outra vez numa cama e abraçar a minha irmã mais nova." Ahmad, 7 anos Horgos/Roszke. Nem no sono estamos a salvo, pois é aí que o terror volta. Ahmad estava em casa quando a bomba atingiu a casa da sua família em Idlib. Foi atingido por estilhaços na cabeça mas sobreviveu. O seu irmão mais novo não. A família viveu paredes meias com a guerra durante vários anos, mas sem casa não tinham escolha. Foram obrigados a fugir. Agora, Ahmad está deitado ao lado de milhares de outros refugiados no asfalto, ao lado da autoestrada que leva à fronteira húngara fechada. Este é o 16.º dia da sua fuga. A família dormiu em paragens de autocarro, na estrada e na floresta, explica o pai de Ahmad. Shehd, 7 anos Shehd adora desenhar, mas recentemente os seus desenhos têm todos o mesmo tema: armas. "Ela via‐as a toda a hora, estão em todo o lado", explica a mãe quando a pequena dorme no chão, ao lado da fronteira fechada da Hungria. Agora já não desenha. A família não trouxe papel nem lápis de cor consigo. Shehd também já não brinca. A fuga da guerra obrigou as crianças a tornarem‐se adultos e a partilhar da preocupação do que acontece na hora seguinte, no dia seguinte. A família teve dificuldade em encontrar comida durante a sua viagem. Alguns dias tiveram de se contentar com maçãs que apanharam das árvores, ao longo do caminho. Se soubessem que a viagem seria tão difícil, teriam arriscado as suas vidas ficando na Síria. Sham, 1 ano Roszke/Horgos. Mesmo à frente do portão de ferro de 4 metros de altura, na fronteira entre a Sérvia e a Hungria, está Sham, nos braços da sua mãe. Apenas alguns centímetros atrás deles, está a Europa a que anseiam chegar. Há apenas um dia foram deixados passar os últimos refugiados e levados para a Áustria de comboio. Mas Sham e a sua mãe chegaram demasiado tarde, juntamente com milhares de outros refugiados que agora esperam do lado de fora da fronteira fechada da Hungria. Abdullah, 5 anos Belgrado, Sérvia. Abdullah tem uma doença de sangue. Nos últimos dois dias dormiu do lado de fora da estação central de Belgrado.
Assistiu à morte da sua irmã em Daraa. "Ainda está em choque e tem pesadelos todas as noites", conta a mãe. Abdullah está cansado e doente, mas a mãe não tem dinheiro nenhum para lhe comprar medicamentos. Juliana, 2 anos Horgos, Sérvia. Estão 34 graus Celsius. As moscas acumulam‐se na cara de Juliana e ela move‐se, inquieta no seu sono. A família da Juliana está a atravessar a Sérvia a pé há dois dias. Esta é a última fase de uma fuga que começou há três meses. A mãe cobre a filha deitada no chão com o seu lenço fino. Juliana sossega.
A alguns metros do local onde descansa, caminha uma corrente infindável de gente. Estamos em finais de Agosto e a Hungria está a barricar‐se com arame farpado para manter afastada esta torrente de 2 refugiados. Mas durante mais alguns dias, é possível passar a fronteira para a cidade de Horgos. Assim que chegar a noite, a família da Juliana passará a fronteira. Ahmed, 6 anos Horgos, Sérvia. Já passa da meia‐noite quando Ahmed adormece na relva. Os adultos ainda estão sentados a fazer planos para sair da Hungria sem se registarem junto das autoridades. Ahmed tem seis anos e carrega a sua própria mala pelos longos caminhos que a sua família percorre a pé. "É corajoso e só chora às vezes, à noite", diz o tio que toma conta de Ahmed desde que o pai morreu na sua terra natal, Deir ez‐Zor, na Síria. Shiraz, 9 anos Suruc. Shiraz, 9, tinha 3 meses quando foi acometida de uma terrível febre. O médico diagnosticou‐lhe poliomielite e aconselhou os pais a não gastarem muito dinheiro em medicamentos para a menina que "não tinha hipótese". Depois, veio a guerra. A mãe, Leila, começa a chorar quando descreve como enrolou a filha num cobertor e passou a fronteira de Kobane para a Turquia com ela ao colo. Shiraz, que não fala, recebeu um berço de madeira no campo de refugiados. Está aí deitada. Noite e dia. Mohammed, 13 anos Nizip. Mohammed, 13, adora casas. Na sua terra natal, Aleppo, gostava de andar pela cidade e ver as casas. Agora, muitos dos seus edifícios preferidos desapareceram, destruídos pelas bombas. Deitado numa cama de hospital, pergunta‐se se um dia cumprirá o sonho de se tornar arquiteto. – A coisa mais estranha da guerra é que nos habituamos a sentir medo. Nunca pensei que era possível, diz Mohammed. Iman, 2 anos Azraq. Iman, 2, tem pneumonia e uma infeção pulmonar. Este é o seu terceiro dia nesta cama de hospital. - Agora dorme a maior parte do tempo. Normalmente é uma menina alegre, mas agora está cansada. Quando está bem, corre por todo o lado. Adora brincar na areia, diz a mãe, Olah, 19. Gulistan, 6 anos Suruc. Há uma diferença entre fechar os olhos e dormir, como sabe Gulistan, uma menina de seis anos. Ela prefere fechar os olhos e fingir que dorme, porque sempre que adormece mesmo, começam os pesadelos. – Não quero dormir aqui. Quero dormir em casa, diz ela.
Tem saudades da almofada que tinha em Kobane. Às vezes, dorme encostada à mãe e usa‐a como almofada. Tamam, 5 anos Azraq. Tamam tem medo da sua almofada. Chora sempre que é hora de dormir. Os ataques aéreos na sua cidade natal, Homs, aconteciam sempre à noite e, embora já durma longe de casa há quase dois anos, ainda não percebeu que a almofada não é a fonte do perigo. Esra, 11, Esma, 8, e Sidra, 6 anos Majdal Anjar. Quando Selam 37, põe os filhos Esra, 11, Esma, 8, e Sidra, 6, na cama, conforta‐a saber que os filhos estão a salvo e que não serão atacados durante a noite. O que a entristece é que eles sonham constantemente com o pai que foi raptado e acordam perturbados. – Sonho muitas vezes que o pai me traz doces, diz Sidra. 3 Maram, 8 anos Amman. Maram, 8 anos, tinha acabado de chegar da escola quando um míssil atingiu a sua casa. Uma parte do telhado caiu‐lhe em cima. A mãe levou‐a para um hospital de campanha e daí foi transportada para a Jordânia. O traumatismo craniano causou uma hemorragia cerebral. Nos primeiros 11 dias, Maram esteve em coma. Agora está consciente mas tem o maxilar partido e não consegue falar. Ralia, 7 e Rahaf, 13 anos Beirut. Ralia, 7, e Rahaf, 13, vivem nas ruas de Beirute. São de Damasco, onde uma granada matou a mãe e o irmão. Há um ano que dormem na rua com o pai. Dormem junto uns aos outros nas suas caixas de cartão. Rahaf diz que tem medo dos "rapazes maus" e Ralia começa a chorar. Moyad, 5 anos Amman. Moyad, 5, e a mãe precisavam de comprar farinha para fazer uma tarte de espinafres. De mão dada, iam a caminho do mercado em Dar’a. Passaram ao lado de um táxi onde alguém tinha colocado uma bomba. A mãe de Moayd morreu imediatamente. O menino, que foi transportado para a Jordânia, tem estilhaços na cabeça, nas costas e na pélvis. Walaa, 5 anos Dar‐El‐Ias. Walaa, 5, quer ir para casa. Conta‐nos que, em Aleppo, tinha um quarto só para si. Aí, nunca chorava à hora de ir para cama. Aqui, no campo de refugiados, chora todas as noites. Encostar a cabeça à almofada é horrível, diz ela, porque a noite é horrível. Os ataques aconteciam à noite. Durante o dia, a mãe de Walaa constrói muitas vezes uma casa de almofadas para lhe mostrar que não as deve temer. Amir, 20 meses Zahle Fayda. Amir, 20 meses, nasceu refugiado. A mãe acha que o filho ficou traumatizado no ventre. "Amir nunca disse uma palavra", diz Shahana, 32. Na tenda de plástico onde a família agora vive, Amir não tem brinquedos, mas brinca com tudo o que encontra no chão. "Embora não fale, ri‐se muito", diz a mãe. Fara, 2 anos Azraq Fara, 2, adora futebol. O pai tenta fazer‐lhe bolas enrolando tudo o que encontra, mas não duram muito tempo. Todas as noites, o pai deseja boa noite a Fara e à sua irmã mais velha, Tisam, 9, na esperança de que o amanhã lhes traga uma bola de verdade para jogarem. Todos os outros sonhos parecem estar fora do seu alcance, mas deste não abre mão. Fatima, 9 anos Norberg, Suécia. Todas as noites, Fatima sonha que está a cair de um barco. Fatima, a mãe, Malaki e os dois irmãos fugiram da cidade de Idlib quando o exército nacional chacinou civis. Após dois anos num campo de refugiados no Líbano, a situação tornou‐se insuportável, e conseguiram chegar à Líbia, onde embarcaram num barco sobrelotado. No convés do barco, uma mulher deu à luz após doze horas debaixo de um sol abrasador. O bebé nasceu morto e foi atirado borda fora. Fatima viu tudo. Quando o barco de refugiados começou a meter água, foram recolhidos pela guarda costeira italiana. 4 

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