LITERATURA E EXÍLIO, Gilbert Chaudanne

Transcrição

LITERATURA E EXÍLIO, Gilbert Chaudanne
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
LITERATURA E EXÍLIO*
Gilbert Chaudanne é francês, formado em biologia, com mestrado em geologia, porém
escritor e pintor. Desde que saiu da França, tendo viajado por vários países, exerceu
diversas funções, de ajudante de pedreiro a entregador de cerveja, foi diretor e professor do
Colégio Sinjacy (Laos), diretor da Aliança Francesa de Teresina (PI), professor de
Literatura Francesa da Universidade Federal do Piauí, professor de Língua Francesa no
Centro de Línguas do Piauí e, por último, professor de Literatura do Curso Universitário
Nancy (França) na Aliança Francesa de Vitória-ES. Tem vários livros publicados, na
França e no Brasil, além de colaborar, nesses países, para revistas, cadernos e jornais de
cultura. Atualmente, realiza palestras de arte e literatura.
WILSON COELHO – Monsieur Gilbert Chaudanne, tomando emprestada a ideia de Léon
Tolstoi sobre a possibilidade de dizer do mundo a partir da sua aldeia, e levando em conta
sua condição de francês radicado no Brasil, depois de um grande período de sua existência
vivendo uma espécie de peregrinação, como você vê a relação entre literatura e exílio?
GILBERT CHAUDANNE – Primeiro, não concordo com a afirmação de Tolstoi de dizer
o mundo a partir da sua aldeia. Em francês tem uma expressão: “l’idiot du village” (o idiota
da aldeia) que é esse tipo de pessoa que talvez tenha problemas mentais, mas que é aceito e
não perseguido pela população, ele faz parte da aldeia e sobretudo de seu folclore. Quer
dizer, esse fechamento do lugar – lugarzinho – aldeia sobre si fabrica mais a idiotice que o
gênio literário. Essa maneira de ver é uma espécie de romantismo a la George Sand, onde
os matutos rudes têm delicadezas proustianas. Se os aldeões têm virtudes não é nesse
*
Entrevista realizada por Wilson Coelho - Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Literatura da Universidade Federal Fluminense, bolsista CAPES.
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sentido, mas no sentido de uma espécie de bom senso poético, às vezes até cômico, às
vezes profundo, às vezes muito quadrado. Ao oposto, você tem o escritor cosmopolita que
seria de uma certa maneira o grande opositor de Tolstoi na literatura russa: Dostoiévski
vivendo em vários países, porém sua obra é essencialmente localizada na Rússia. No Brasil,
esse debate de literatura e identidade nacional foi muito importante na época do
modernismo (1922), mas isso por razões históricas de libertação de uma imitação submissa
do modelo europeu, sobretudo francês. Mas a longo prazo, isso é um falso problema porque
a literatura é um discurso de ruptura em relação a identidade nacional e até ao sujeito que a
produz.
WILSON COELHO – E como você se enquadra nisso?
GILBERT CHAUDANNE – No meu caso, estou cansado de escutar as pessoas dizerem
que minha arte na pintura, mas não tanto na literatura, é tipicamente francesa. Ora, tenho
uma influência evidente na pintura do ícone bizantino e do expressionismo alemão.
Pergunto: onde está minha identidade francesa e respondo: a arte e a escrita não têm
passaporte. A literatura é um exílio nesse sentido. Porém um exílio que produz lucidez e
não alienação. Eu sou minha própria ilha e já morei em São Luis, que é uma ilha, moro em
Vitória, que é uma ilha e pensei em morar em Florianópolis que também é uma ilha. Mas
não foi intencional. Minha cidade na França, Besançon, é quase uma ilha, já que está presa
na curva meandro do rio que tem uma forma acentuada de uma ferradura.
WILSON COELHO – Você acredita que esta mistura de linguagens não provocaria uma
espécie de babelização?
GILBERT CHAUDANNE – Não necessariamente, pois acho que isso não pode ser
qualificado de babelização. Esse cosmopolitismo, essa multidimensionalidade é uma
maneira de aprender a abrir os olhos. Quem fica o tempo todo na sua cidade/ aldeia/ país,
acha que o mundo é igual a sua aldeia. Ora, o mundo – vasto mundo – é mais complexo:
“Verdade desse lado dos Pireneus, mentira do outro lado”, escrevia Pascal. Os países são
tão diferentes como as pessoas e, às vezes, são até da ordem do impossível – no sentido de
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aceitar certos costumes, tipo antropofagia! Mas não se pode cair na armadilha de pensar:
minha cultura é melhor que a daqui. Também há sempre uma espécie de retenção diante de
certos costumes de um país que não é seu e, aliás, até no seu.
WILSON COELHO – Nesse suposto encontro ou desencontro de culturas, qual é o lugar
do escritor?
GILBERT CHAUDANNE – O lugar do escritor é o exílio. Antes de tudo, um exílio
interior e não “administrativo” ou geográfico (Camus: O exílio e o reino). A escrita é uma
atividade de convento e não é por acaso que havia nos conventos da Idade Média o
scriptorium, onde se copiava os grandes livros da humanidade, como Aristóteles, Platão
etc.
WILSON COELHO – Então, independente do lugar, seria o escritor um solitário por
excelência?
GILBERT CHAUDANNE – De certa forma, sim, considerando que escrevo a partir da
minha solidão ou da singularidade do meu eu e não como solidariedade ao gênero humano.
Ou algo assim. A literatura não tem uma função educativa, pedagógica; ela é como uma
pedra, você pode tropeçar, chutar ou se machucar ou não percebê-la. Mas ela pode
funcionar como o despertar da consciência, seja na dor, seja na ausência, porém ela não tem
nenhuma boa intenção: não se faz literatura com bons sentimentos, mas também não se faz
literatura com maus sentimentos; se faz literatura com distração e não como distração. Não
como divertimento. E sempre achei meio mentiroso aquele negócio de Flaubert
reescrevendo eternamente sua Madame Bovary, fazendo correções, riscando para chegar
numa sobriedade quase seca, como Stendhal, cujo ideal era o código civil ou penal e isso,
ao contrário de Proust que sempre acrescentava alguma coisa, até nas provas impressas que
o editor mandava para a sua revisão, e isso deixava o editor num estado de nervo, perto da
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WILSON COELHO – O que significa você insistir na ideia de distração, ao afirmar que o
escritor escreve pela distração e não como distração?
GILBERT CHAUDANNE – Quero dizer que seu espírito tem que ser leve tipo “tô nem
aí” e, ao mesmo tempo, altamente concentrado, como o arqueiro zen, ou jogador de futebol
que vai cobrar o pênalti. Escrever não é um trabalho artesanal, mas não exclui o
treinamento, como o atleta. Escrever é algo que se faz apesar de mim. E esse apesar de mim
é o melhor que eu não tenho.
WILSON COELHO – Você nasceu em Besançon, terra de Victor Hugo, irmãos Lumière,
Proudhon, mas como é muito comum em sua fala afirma que Artaud não é francês, como
explica esse estado de não lugar ou a busca de pertencimento a um lugar?
GILBERT CHAUDANNE – Minha cidade é realmente uma terra de escritor – (pode
acrescentar Charles Nodier que está na origem do romantismo francês), uma terra de
cinema (lumière quer dizer luz, nome predestinado para inventar a arte da luz que é por
excelência o cinema. Proudhon, o anarquista, Fourrier, o socialismo utópico, uma tradição
libertária, aliás, antiga já que quando os franceses invadiram a região, o franco-condado, os
habitantes organizaram uma resistência. Mas meu grande mestre da escrita e até da vida
“meu mestre de vida” é Artaud. E realmente afirmo que ele tem pouco a ver com o espírito
francês. Por isso também que ele passou quase despercebido no seu tempo que, além de sua
escrita transtornada, ele revolucionou o teatro, quebrando os paradigmas do teatro clássico
francês.
WILSON COELHO – Mas Artaud não foi muito aceito na França, pelo menos, no seu
tempo.
GILBERT CHAUDANNE – Ele foi mais entendido nos Estados Unidos (Living Theatre,
de Julian Beck e Judith Malina), no Japão (butoh, de Kazuo Ohno) e no Brasil (Grupo
Tarahumaras, com Wilson Coêlho). É o que eu estava falando anteriormente: o passaporte
de um escritor, de um artista, não é um passaporte nacional. Ele pode ser francês e ter um
espírito chinês, já que o seu trabalho pode ser uma ruptura com a identidade nacional, mas
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não obrigatoriamente. Artaud no teatro não foi entendido, foi considerado exagerado e de
“mau gosto”, porque na França o mau gosto mata, já no Brasil, o mau gosto, o cafona, é
poesia (Nelson Rodrigues, Waldick Soriano, Sidney Magal, Tropicália). Artaud foi
procurar se encontrar na Irlanda e, sobretudo, no México, entre os índios Tarahumaras e
seus rituais no peyote, um cacto alucinógeno. Nada mais anticartesiano, antifrancês, apesar
dos paraísos artificiais, de Baudelaire, belo exemplo de experiência literária e não
existencial-ontológico como Artaud no meio dos Tarahumaras.
WILSON COELHO – Tendo em vista sua formação em biologia, matemática e geologia,
além de artista plástico, pintor, escritor, poeta, romancista, cenógrafo e amante da filosofia,
um homem que contempla o mundo na medida em que o contempla, como concebe a
diferença entre o exilado e o estrangeiro? Ou será que estes não passam de duas formas de
ver o mesmo?
GILBERT CHAUDANNE – O exilado é aquele que não está em casa em lugar nenhum,
até no seu próprio país, até no seu próprio eu. Ele é o estrangeiro no sentido do romance de
Camus, O estrangeiro. Ele não adere às coisas, nem ao amor, por exemplo, mola essencial
da existência. Há nele algo que diz não, que recusa o mundo, que se recusa a ser o que ele
é, do mundo. E ele também. “Eu não sou eu”, posso dizer, retomando de outra maneira “eu
é um outro”, de Rimbaud, ou “eu sou o outro”, de Nerval. Agora, o estrangeiro, no sentido
comum, administrativo da palavra e não no sentido de Camus, é alguém que vem de outro
país e, como tal, pode não se sentir tão conivente com os costumes deste novo país de
acolhimento. Esse efeito existe realmente, mas com o tempo vai diminuindo até quase
desaparecer. Há uma osmose-identificação com o país acolhedor, hospedeiro. Mas depende
do estrangeiro. Até aí falei mais do meu caso, mas há estrangeiros que vivem no Brasil e
que continuam com a cabeça e o coração na França, na China, na Alemanha, no seu país de
origem. É só olhar a dificuldade dos descendentes de alemães e pomeranos de serem
assimilados pela brasilidade. Mais de 150 anos depois da imigração, ainda se fala a língua
germânica, o que pode ser uma riqueza cultural para o Brasil, mas também uma espécie de
fechamento de uma comunidade. O italiano casou mais com a brasilidade. É
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completamente compreensível que se deve conservar a cultura do estrangeiro, mas não se
pode aceitar um país dentro do país. Todo país busca sua unidade “espiritual”, senão ele
corre o risco de explosão. A pluralidade é fecunda se ela se mantém na cultura e não
politicamente.
WILSON COELHO – E onde está a fronteira entre sua formação científica e sua prática
artística?
GILBERT CHAUDANNE – Minha formação científica, eu a reneguei e, hoje, sou escritor
e artista, apesar de ter sido apaixonado pelas ciências. Mas – talvez – essa formação
científica ainda me ajuda a ter um senso, acho eu, agudo da observação. E também tento
estabelecer pontes entre razão e intuição artística; e isso faz parte do meu trabalho na crítica
de arte e crítica literária. Uso tanto uma racionalidade não-delirante como um certo
discurso poético, às vezes, mal aceito.
WILSON COELHO – Como artista plástico (estudioso de matemática) num certo sentido
você pode ser entendido como um geômetra, entendendo que este tem por objeto o estudo
do espaço e das formas, considerando as figuras e corpos que estes contêm. Por outro lado,
na condição de andarilho, você também como navegante compartilha com a possibilidade
de ruptura com essa determinação de espaços. Que lugar é reservado à memória para que
você possa estabelecer uma espécie identidade entre os pontos de partida e de chegada?
GILBERT CHAUDANNE – O lado “matemática” que foi uma paixão intelectual muito
forte se refletiu numa fase do meu trabalho na pintura de Berlim (1971) até Natal-RN
(1979) já que tinha influência do cubismo. Depois, isso se diluiu mais e hoje talvez ainda
exista, porém por influência do ícone que é também uma geometrização (dessa vez, sacra
mística e não como marca registrada da objetividade científica como no cubismo). Agora, o
andarilho é o contrário do geômetra. O andarilho não gosta de auto-estrada tipo Via Dutra.
O andarilho gosta de caminhos com curvas, serpentinas, caminhos para flanar. Ele gosta de
curvas e do aleatório e é justamente nestas curvas que atua o fenômeno da memória: se
lembrar é voltar e voltar quer dizer curva, espaço pois não euclidiano reto, mas espaço
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curvo como o de Riemann e da relatividade geral de Einstein, como também a busca do
tempo perdido, de Proust. Há uma só entidade que é o espaço-tempo curvo.
WILSON COELHO – No que diz respeito à escrita, qual é a relação entre a viagem e a
memória?
GILBERT CHAUDANNE – A relação memória-viagem é imbricada, pelo menos no meu
caso. Consigo escrever sobre minhas viagens 20 ou 30 anos depois. Às vezes, não, é logo
depois. Parece então que há dois tipos de memória. Uma que trabalha no que acabou de
acontecer (meu livro Crepúsculo dos Cormorões) e outra, mais lenta, que amadurece, que
se curte como um vinho na adega do seu eu profundo e vai ressurgindo como a Madeleine
de Proust, subrepticiamente. É um tempo-espaço que fica curvo, permitindo a memória: a
volta.
WILSON COELHO – E como você vê a relação entre a memória e a identidade?
GILBERT CHAUDANNE – Se a gente considera a memória como o alicerce da
identidade e, a viagem, ligada à memória, as memórias de viagem têm uma radical
importância. Eu sei agora porque não entendia porque se falava no Brasil que um país sem
memória não tem identidade. Eu sei agora porque fiquei amnésico e a consequência de
minha amnésia é que eu não sabia quem eu era, quase esqueci até meu nome, e eu não sabia
sobretudo onde eu estava. No hospital, aqui em Vitória, o médico perguntou onde eu estava
e eu respondi: no Nepal! O doutor preencheu logo 40 páginas num sopro só.
WILSON COELHO – Mas isso não é uma questão do andarilho?
GILBERT CHAUDANNE – O perigo do andarilho é o de cair na errância de se tornar um
errante, não no sentido de estar errado, mas no sentido de estar de uma certa maneira sem
destino, até metafisicamente falando. A estrada flutua, o que é sua poesia de ser, mas há um
certo momento que se sente a necessidade de um novo enraizamento. O que era impossível
na França, porque me sentia mais estrangeiro lá, juntamente, no meu país! E assim fiquei
seduzido pelo Brasil e pela Índia e, finalmente, me radiquei (raiz) no Brasil: Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
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WILSON COELHO – E nesse processo de “sedução”, até que ponto você se sente
“afetado” pela brasilidade?
GILBERT CHAUDANNE – De uma certa maneira, quis ser brasileiro, mas não consegui,
só em partes. E quando voltei da França, em 1983, as pessoas me perguntavam de que país
eu era, porque eu falava francês com sotaque nordestino. Aí, eu percebi que eu não era mais
da França e, também não era do Brasil. Esse país que não é um país, se chama na estratégia
militar de “terra de ninguém”, que é o espaço, por exemplo, entre a trincheira francesa e a
trincheira alemã na primeira guerra mundial. Não há ponto de partida e não há ponto de
chegada. Eu fico suspenso. O que é exatamente a situação aqui em Vitória, do viaduto
Caramuru, no estilo eclético pré-modernoso, e no qual passam os trilhos dos antigos bondes
que não existem mais. E esses trilhos começam no início do viaduto e terminam no fim do
viaduto. Assim, eles vêm de lugar nenhum e não chegam a lugar algum: suspensão.
WILSON COELHO – A estrutura do viaduto já é uma espécie de suspensão...
GILBERT CHAUDANNE – Assim sou eu como suspenso, mas isso não é sofredor,
traumático, é o que é – sem espaço, sem tempo – entretanto, não é exatamente a eternidade.
É algo que é realmente da ordem do que é e não é ao mesmo tempo.
WILSON COELHO – E...
GILBERT CHAUDANNE – Agora estou falando diretamente com quem está me lendo:
você se sente suspenso?
WILSON COELHO – E o que pensa, hoje, o escritor na condição de exilado com
tendências de andarilho? Como imaginava o devir?
GILBERT CHAUDANNE – Pensei que, quando velho, e é o caso hoje, talvez eu pegaria
a estrada de novo, tipo velho andarilho, velho-monge, meio louco. Mas sintomaticamente,
como fiquei paralisado das pernas, ando sim, mas com muita dificuldade e a estrada é
totalmente excluída. O andarilho está morto. Só dá para andar dentro de minha cabeça, quer
dizer, escrevendo. Há de dizer também que junto à paralisia fiquei louco e, mesmo sendo
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louco, a posteriori observei a semelhança do processo de loucura e do processo de escrita:
os dois são deslizes semânticos.
WILSON COELHO – Mas há um processo de escrita que parece ser policiada ou, melhor,
auto-policiada...
GILBERT CHAUDANNE – Sim, concordo, mas mesmo numa escrita policiada, como a
de Machado de Assis, Stendhal, Flaubert, não deixa de carregar deslizes. Se Madame
Bovary Emma, em francês, pode ser “aima”, verbo amar no passado simples.
Foneticamente é a mesma coisa, que significa em francês “amar no passado” e é uma ação
breve, rápida. O que é justamente o que acontece com Madame Bovary. O sobrenome
Bovary, em francês, foneticamente, “le beau varie” (o belo varia): ela tem vários belos
amantes. Acaso ou inconsciente ou intenção de Flaubert? Acho mais que aquele deslize
semântico está simplesmente como princípio da escrita. Ninguém, sobretudo nenhum
escritor escapa da doce traição da língua. E é até isso que faz a literatura. O que o sujeito
quer dizer não é tão importante. O importante é o que ele não quer dizer, mas diz. O
milagre da literatura é isso, essa traição que é uma forma superior de sinceridade.
WILSON COELHO – Tendo em vista a arte e a ciência como uma possibilidade de
diálogo para expressar a ideia de mundo, como é esse processo na relação com a ideia de
conhecimento?
GILBERT CHAUDANNE – Hoje, o conhecimento é como as pinturas antigas: cheio de
craquelé. A ciência cresceu tanto que até nela tem divisões enormes e a arte literatura fica
isolada complicando-se ainda com o problema da técnica. A psicanálise, de certa maneira,
às vezes desajeitada ou abusiva, tenta fazer essa ligação ciência-arte-literatura. O nosso
sistema de ensino ocidental criou um vício mor: a especialização. E não se encontra mais,
ou raramente, uma pessoa capaz de navegar entre a teoria dos conjuntos (matemática) e a
poesia de Rimbaud ou Ezra Pound, bem como a teoria da deriva dos continentes.
Formamos técnicos robôs e não seres pensantes. O projeto é metrópoles, os robôs
tecnológicos não só perderam seu coração, mas também seu pensamento livre. Nisso tanto
o capitalismo selvagem como antigamente as ditaduras comunistas concordam: eles
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fabricam o homem unidimensional (Marcuse). E, se o comunismo quebrou a cara, o
capitalismo agressivo e seus executivos jovens lobos estão famintos para alienar a cultura.
WILSON COELHO – Até que ponto, como estrangeiro, sua condição de andarilho e
viajante contribuiu para o seu pensamento?
GILBERT CHAUDANNE – Acho que ter sido andarilho foi, claro, uma realidade
inalienável e uma verdadeira escola da estrada. Mas também, de uma certa maneira, foi
estar diante de algo que é da ordem do impossível: quando vi na Índia os hindus adorarem
um elefante vivo todo maquiado com arabescos brancos, quando percorri o Saara, mais de 2
mil quilômetros de caminhão sem ver um oásis. Esse tipo de experiência funciona como o
despertar interno, despertar da consciência. A paisagem se torna paisagem da consciência.
Ter consciência que o elefante é sagrado significa o quê? Ter consciência do que quer dizer
carnalmente deserto e a palavra deserto do Saara. Obviamente, só aprende na viagem
aquele que se desnuda do seu próprio eu. Da sua própria cultura e consegue assim, NU,
entrar no mundo que fala outra língua, mas que – paradoxalmente – termina sendo
compreensível além das linguagens.
WILSON COELHO – E como vê a academia nesse processo?
GILBERT CHAUDANNE – O conhecimento universitário fornece uma estrutura, mas
não o espírito que deve rechear essa estrutura, uma espécie de carne espiritual. A viagem
pode fazer isso. Só pode, mas não o faz obrigatoriamente. Um imbecil em Paris continua
um imbecil no Tibet. Há de ter uma disponibilidade, um poder de se abrir e de saber
receber (é importante saber se dar, mas também é importante saber receber). Ora, os meios
intelectuais estão bastante percorridos por alguns histriões que fazem muito barulho e
elaboram pouco pensamento substancial. Isso é facilitado por um certo tipo de mídia que
gosta do espetáculo oco e escandaloso.
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WILSON COELHO – Quais são os lugares por onde você passou?
GILBERT CHAUDANNE – Na França não passei, porque nasci lá, surgi ou brotei. Estive
na Suécia, Noruega Lapônia, Suíça, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Dinamarca, Itália,
Mônaco, Vaticano, Espanha, Portugal, Ex-Iuguslávia, Bulgária, Grécia, Turquia, Irã,
Afeganistão, Paquistão, Índia, Nepal, Barbados, Venezuela, Colômbia, Equador, Uruguai,
Peru, Bolívia, Argentina, Guiana Francesa, Tailândia, Laos, Morrocos, Argélia, Saara.
Agora estou no Brasil.
WILSON COELHO – E, nessas andanças, que países mais lhe impressionaram?
GILBERT CHAUDANNE – Os dois países que mais me marcaram foram o Brasil e a
Índia. Fiz até uma palestra comparando os dois países, aparentemente tão diferentes senão,
opostos.
WILSON COELHO – De certa forma, pode-se pensar em Brasil e Índia como uma
espécie de contraste com sua condição europeia, mas na Europa que não é francesa?
GILBERT CHAUDANNE – Na Europa, do que eu mais gostei foi Itália e Portugal
(praticamente Lisboa, na época da Revolução dos Cravos, em 1975. Ainda, fora da Europa,
o Saara e até as montanhas do centro desse deserto, o Hoggar, onde vivem os tuaregues: os
homens azuis, os “senhores do deserto”. A Europa sempre me deu um certo arrepio pelo
delírio da industrialização e o fechamento das pessoas sobre si. Saí da Europa e fui respirar
melhor, às vezes, até com uma certa dor, porém com mais sensação de estar vivo.
Dostoievski (não tenho a certeza de que é dele) fala que a Europa era um cemitério, o que
se confirmou nas duas guerras mundiais sobretudo com os campos de extermínio dos
nazistas. A Europa cultiva a morte.
WILSON COELHO – Sua escrita é ligada à viagem?
GILBERT CHAUDANNE – Minha escrita, minha literatura é ligada só em parte à
viagem, sobretudo, à narração meio autobiográfica de “O crepúsculo dos Cormorões”,
publicado na França, pelas edições Hors, mais ou menos em 1978. Também outros livros,
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“As fontes vivas”, “Tribulações”, “Transmutações”, “A guerra improvisada”. No Brasil,
publiquei em tiragem limitada, livros artesanais, feitos por mim, por exemplo: “A busca do
Santo Graal” e, com tiragem grande, “A passagem de Marina”, com segunda edição pelo
Núcleo Tipográfico da UFES. Nas minhas viagens fui várias vezes ajudante de pedreiro na
Marsille e Berlim (1971). Trabalhei em fábrica de produtos químicos “Inferno Notável”,
em Sedan, próximo de Charleville, a cidade de Rimbaud. Em fábrica de cerveja, na cidade
de Karlruhe, Alemanha. E de engarrafamento de vinho na França, em Besançon. Trabalhei
duas vezes na vindima, na França (Beaujolais e Champagne). Trabalhei como lenhador,
perto de Besançon, jardineiro em Paris. Professor do primário, na Alsacia (França),
professor de literatura francesa e diretor do Colégio Sinjacy (Vientiane, no Laos). Professor
de literatura e língua francesas na Universidade Federal do Piauí e curso da Universidade
de Nancy, na Aliança Francesa de Vitória. Fui diretor da Aliança Francesa de Teresina-PI,
representante de seda natural na Índia. Fui artesão (pulseiras, colares, brincos), entre 1977 a
1979. Minhas viagens foram feitas de carona, de trem, de navio, de avião e de ônibus. As
três regiões do mundo que mais me marcaram, que me formaram foram a Índia, o Brasil e o
Saara.
WILSON COELHO – Como você mesmo salientou, em determinada época, numa de suas
palestras, tentou estabelecer uma relação entre Brasil e Índia, como se dá essa possibilidade
de refletir sobre algo em comum entre estes dois países?
GILBERT CHAUDANNE – A Índia por ser um país continente, cuja riqueza cultural é
superior a do ocidente, sem desprezar nossa cultura que não deixa de ser grandiosa. Mas
que insiste em não entender certas coisas e que hoje se mercantiliza de uma maneira tétrica:
o espírito não tem preço e, hoje, por exemplo, os editores não se interessam com livro que
não tenha grandes vendas: daí uma falsa literatura de supermercado: Paulo Coelho, Sidney
Sheldon e outros. O Brasil é um pouco o complemento da Índia. A Índia, olhando para
dentro e, o Brasil, olhando para fora (barroco). O Brasil, como a Índia, é muito rico
culturalmente e é o país que contribuiu mais para minha formação como escritor e pintor.
De uma certa maneira, mas não totalmente, renego a França, pelo menos os franceses. Mas
não a cultura francesa, porque a França é um país que não me deu nada e que sempre me
repeliu quando precisei dela. Por isso, só me sinto francês como o primo de Rimbaud, de
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Artaud, e não como súdito de De Gaulle, Miterrant ou Sarkosi: a França é rançosa
(françosa) e não sabe amar.
WILSON COELHO – E você trocou a França pelo Brasil. Trata-se de um quase paradoxo
entre o exílio e o asilo...
GILBERT CHAUDANNE – O Brasil provocou também em mim uma reflexão sobre
minha própria identidade, sobre a identidade francesa e sobre a identidade brasileira. E
nesse último caso, quero dizer, essa reflexão, teve uma boa aceitação do meu trabalho com
algumas incompreensões, mas estou certo do que eu estou fazendo tanto na literatura como
na pintura e outras atividades culturais. Porque eu sou autêntico no meu amor pela cultura
e isso, pela sua transparência e simplicidade, desarranja os que usam a cultura como jogo
de poder e jogo financeiro.
WILSON COELHO – Pode-se dizer de uma liberdade de pensamento?
GILBERT CHAUDANNE – A liberdade de pensamento está sempre em perigo e se ela
existe na constituição, ela não existe sempre na prática, porque há certas coisas que o
público não quer ouvir, não quer entender.
WILSON COELHO – Voltando a um tema que lhe é muito caro, o que você chama o
“espírito do lugar”?
GILBERT CHAUDANNE – É isso: eu me encanto com a beleza de uma rua. Beleza que
talvez não corresponda aos critérios conhecidos da beleza, por exemplo, a Rua Dom
Fernando, aqui em Vitória, tem uma presença que me fala muito enquanto as belas avenidas
fartas da Praia do Canto podem despertar um certo deslumbramento formal, mas não uma
intimidade, quase visceral com as coisas. A partir de 83-84, desenvolvi na França uma
visão do mundo em relação a esse problema do lugar. Usa-se pouco a expressão “espírito
do lugar”, mas é isso que eu retratei no meu livro “Les Chants de Marie-Ganja”, doze
textos poemas que falam de doze lugares de vários países. Índia, Brasil, França, talvez mais
um ou dois países, ah, sim, a Colômbia.
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WILSON COELHO – Sim, mas e o “espírito do lugar”?
GILBERT CHAUDANNE – O que é o “espírito do lugar”? É algo que é da ordem do
imponderável, do que não se pode definir como Deus e a Mulher, mas que existem mais
que qualquer coisa com “marca registrada”. É algo assim como flutuante e que penetra,
uma cidade, uma montanha, o mar, como uma marca d’água numa nota. O lugar tem
espírito? Sim, o lugar pensa pelas suas montanhas, a cidade pensa pelas suas ruas.
WILSON COELHO – E é o caso de Vitória, Guananira, a Ilha do Mel?
GILBERT CHAUDANNE – E aqui em Vitória, encontrei uma cidade que me fala através
das suas ruas, seu mar, suas madonas, mas também seus demônios: a “Gruta da Onça”
produz emanações de hemoglobina que de vez em quando e com certa frequência se
derramam pelos becos da cidade, nas avenidas, e sobe o morro com a agilidade de um
macaco ou de uma onça.
WILSON COELHO – Então, o lugar se define pelo olhar?
GILBERT CHAUDANNE – A viagem, a literatura, sobretudo a poesia, a pintura são
antes de tudo uma escola do olhar e a viagem, sobretudo, porque quando você vai num país
que não é o seu, você o vê pela primeira vez: quer dizer, é uma espécie de virgindade do
olhar, por isso que, às vezes, um estrangeiro faz observações sobre seu país que lhe deixam
espantado por tanta justeza (mas, às vezes, fala besteira). Mas nessa escola do
olhar/viagem/literatura/pintura há uma armadilha: é o lugar que eu vejo ou é meu próprio
eu? Isso é o grande perigo porque certas pessoas vão a Paris, Katmandu ou Veneza e não
vêem Paris, Katmandu ou Veneza. Eles veem os postais, só. Ou eles veem o seu próprio eu,
eles veem seus devaneios exóticos e não uma epifania. Chegando à fase final da existência,
eu não me arrependo de minhas viagens e de minhas escolhas para a literatura e a arte.
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WILSON COELHO – E, no universo da liberdade que tanto defende, você acredita que
escolheu ou foi escolhido pelos caminhos que transitou e transita?
GILBERT CHAUDANNE – Eu não escolhi, fui escolhido. Por isso que escrevo livros tão
bons e pinto quadros notáveis. Eu fui um homem livre e isso incomoda todos aqueles que
não viveram e se mumificaram num papel determinado precisando ser marionetes para
aparecerem. Puro parecer de onde é excluído o existir: criar, pensar, tentar ser livre:
condicionalmente. E entre a Torre Eiffel e o Hoggar-Saara, escolho esse último porque o
deserto do Saara tem uma pureza mítica/mística/poética que a Torre Eiffel (apesar de sua
elegância) não tem. A Torre Eiffel pode ser bela, mas o Hoggar – Saara é sublime. É a
diferença estabelecida por Kant. Da mesma maneira que a “Triste Partida” de Patativa do
Assaré/Luiz Gonzaga é belíssima, mas a nona sinfonia de Beethoven é sublime. Eu sempre
tomei partido do sublime, até às vezes flertando com a morte que, além de seu caráter
terrível, tem esse lado sublime. A Dama branca te ama, meu filho! Não se faz
arte/literatura/poesia com talento. Se faz arte/literatura com uma espécie de transtorno
mental, melhor, espiritual. Os que não o tem, esse transtorno, são “fazedores” e não
criadores. São artistas de sala de espera de dentista.
WILSON COELHO – E, nessa sua trajetória em que atua tanto na pintura quanto na
literatura, como você se sente mais “compreendido”?
GILBERT CHAUDANNE – No meu trabalho como artista e escritor, há um pequeno
paradoxo: é que tanto na França como no Brasil (nordeste e aqui) minha pintura sempre foi
mais aceita, ou até festejada que minha escrita.
WILSON COELHO – E por que isso?
GILBERT CHAUDANNE – Há um problema de ordem geral. Estamos numa
“civilização” da imagem (e do som): televisão, cinema, rádio, celular. Assim, a escrita
recua como sendo algo chato, intelectualóide, cansativo. Um rapaz chegou a me dizer que
não leu meu artigo em A Gazeta (Vitória) porque era grande demais. E o texto era um
pouco mais que a
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metade de uma página, formato tabloide. Estamos vivendo um novo analfabetismo e
consequentemente um recuo do pensamento associado à escrita. Há um pensamento
também na oralidade. Por isso, atualmente, tenho feito.
WILSON COELHO – Mas como se dá então a pintura?
GILBERT CHAUDANNE – No meu caso, a minha pintura é de fácil leitura para o
brasileiro porque de uma certa maneira desposei a mentalidade/o espírito brasileiros: pinto
Madonas, cristos, santos e cenas de boemia, nu feminino, casarios, temas que são familiares
para os brasileiros, mesmo quando o faço de uma maneira que, às vezes, surpreende. No
lugar de cristos “açucarados”, pinto cristos gritando de dor-agonia, no horror e muitas vezes
os “fiéis” ficam horrorizados porque como diante do Cristo morto de Holbein, eles vão ter,
como Dostoievski uma crise epilética. (No caso desse gênio literário, a epilepsia, no caso
do nosso cidadão, ele vai ter medo). Mas ele não sabe que onde há medo, é lá que está o
Ser, Deus, a Essência. Mas observei com surpresa na última exposição que fiz recentemente
na Justiça Federal. Os quadros mais vendidos foram os “Cristos de Dor” e não as Madonas
da ternura. O público se educa com os artistas. Eu o fiz mudar de ponto de vista. Mas sou
um educador sem querer sê-lo.
WILSON COELHO – Então, vamos voltar à literatura.
GILBERT CHAUDANNE – Agora, o caso da literatura é da ordem do suicídio. Já que
não há leitor e quando há são analfabetos, mesmo com um doutorado debaixo do braço.
WILSON COELHO – Por que isso?
GILBERT CHAUDANNE – Porque para ler tem que ser virgem, o que, obviamente, não
é o caso de muita gente adulta. Na verdade, quero dizer que tem de ter uma virgindade
interna, espiritual. A carnal sendo apenas um cadeado se quebra. Mas a virgindade
espiritual é algo que não se quebra ou não deve se quebrar – é um cristal. E os leitores
foram basicamente idiotizados por Descartes = elas procuram um sentido racional. Ora, a
vida não sabemos o que ela é. Mas temos uma certeza: ela não é racional. E, para viver, tem
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que ser louco, o que todo mundo é, inclusive, os que pretendem curar a loucura (ver O
alienista, de Machado). A ciência, a ciência sim é uma forma de delírio altamente
sofisticado, mas um delírio que toca o real (em parte), aliás, como a loucura justamente.
Além de todos os conceitos, filosóficos, científicos, há a parte da noite, o prepúcio do diabo
que está rindo de tanto saber e se embriagando com o Dr. Fausto, enquanto Gretchen está se
prostituindo na próxima esquina. Aleluia Gretchen!
WILSON COELHO – E onde fica a teoria do conhecimento?
GILBERT CHAUDANNE – A bela construção da episteme ocidental é um bordel do
espírito e poucos o aceitaram, esse bordel, a não ser Nietsche que não por acaso foi
internado como louco declarado. Os outros pensadores construíram paredes para impedir o
dionisismo epidêmico de Nietsche e a peste artaudiana de se expandir no ocidente.
WILSON COELHO – Seus escritos têm um caráter autobiográfico?
GILBERT CHAUDANNE – Sim, mas eu faço meus escritos pular por cima de minha
biografia para entrar no imaginário puro, para sonhar de olhos abertos. E no nordeste,
encontrei essa ausência de limite entre o real e o imaginário, o ponto sintético onde a
realidade e o sonho deixam de ser percebidos de uma maneira contraditória (surrealismo,
alquimia, Jung e ying e yang). Há como uma visão sintética do real ou do chamado tal.
Quem sou eu? O que é o real? O que é devaneio, o imaginário?
WILSON COELHO – Convenhamos que a literatura não tem compromisso com o
absoluto.
GILBERT CHAUDANNE – A literatura não busca a verdade, ela busca as imagens (por
isso, para mim a importância da pintura, e uma completa a outra, quero dizer, a literatura
completa a pintura e a pintura completa a literatura: ilustro meus livros e escrevo um texto
atrás de meus quadros).
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WILSON COELHO – Você é um artista de grande fertilidade.
GILBERT CHAUDANNE – Tenho muitos trabalhos literários inéditos por falta de
editores, mas consegui publicar alguma coisa importante na FCCA (Fundação Ceciliano
Abel de Almeida) e Núcleo Tipográfico de Sandra Medeiros, ambos na UFES.
WILSON COELHO – Onde tem publicado ultimamente?
GILBERT CHAUDANNE – Escrevo nos jornais A Gazeta e A Tribuna. Houve uma
redução do espaço cultural, mas agora está crescendo de novo. Escrevi entre 80 e 83 nos
jornais e revistas culturais do Piauí. Na nossa sociedade, o papel da mídia é muito
importante e, às vezes, ela não divulga uma cultura de qualidade, o que condena o escritor
ao gueto ou ao alcoolismo. O papel das escolas e sobretudo das universidades é capital, mas
a televisão, ou uma certa televisão, fabrica os gurus de lanchonete tipo Paulo Coelho e isso
é bastante prejudicial à saúde mental da juventude. E até a doença mental dessa juventude.
Até a loucura pode ser pervertida pelos gurus de lanchonete. Não temos mais verdadeiros
loucos e, por isso, não temos mais verdadeiros poetas.
WILSON COELHO – Parece que sua obra, sobretudo, literária, o problema do
conhecimento é algo essencial. Você está de acordo?
GILBERT CHAUDANNE – É sim, quando minha consciência foi se despertando no
inicio da adolescência, tive quase simultaneamente uma paixão pela pintura, pela escrita e
pelas ciências, entre os 13 e 15 anos. Mas na verdade essas três paixões recobria uma só: a
do conhecimento. Saber é a grande ânsia do ser humano. Por isso que tem muita gente
burra porque o que você sabe é que você não sabe nada (Sócrates) e isso dá uma angústia
radical. É a consciência infeliz de Hegel, de Sartre, mas na prática da criação artística e na
pesquisa científica há também uma alegria: o saber feliz (Gaia Ciência dos poetas
provençais da Idade Média) retomado por Nietzsche. O ocidente sempre gostou da dor. O
oriente sempre procurou a abolição da dor. O Cristo é dor, Buda está sorrindo! E essa
complacência em relação à dor não criou um homem melhor, criou o homem sádico:
inquisição, nazismo, comunismo. O oriente sabe dizer sim, o ocidente sabe dizer não. E é
por isso que eu fui várias vezes no oriente e aprendi um pouco a dizer sim. Porque o não145
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europeu da revolta também (apesar de meus esforços) está muito enraizado em mim. Tentei
calar a boca do cão, mas ele continua latindo. Talvez ele tenha que latir e até morder,
sobretudo quando você é vítima de uma injustiça. A revolta pode ser uma mensagem de
otimismo, Albert Camus: “Je me révolte donc nous sommes”. Mas no que se trata do
conhecimento, hoje, depois de ter percorrido muitos caminhos possíveis, cheguei num
ponto que chamo de in-conhecimento. Sei que a palavra não existe, na verdade, seria
desconhecimento, mas gosto de in-conhecimento, há a idéia da impossibilidade do
conhecimento. E desconhecimento é apenas uma impossibilidade temporária. Um dia vai
ser conhecido, a coisa ou as Américas. Se usa também o termo incognoscível.
WILSON COELHO – Mas a arte e a literatura podem ser consideradas como
conhecimento?
GILBERT CHAUDANNE – Claro, mas nesse caso o conhecimento não é feito através
dos conceitos, mas através de relâmpados-intuição. A arte e a literatura têm uma percepção
intuitiva do real. Exemplo: a psicanálise colocou na moda palavras como sadismo e
masoquismo. Só que essas noções não são de Freud ou de um outro psicanalista. Elas veem
do nome de dois escritores: Sade e Sacher-Masoch que escreveram livros onde descrevem o
que é considerado como perversão: o sadismo e o masoquismo. Nesse caso, a literatura teve
um conhecimento anterior ao da ciência.
WILSON COELHO – Como se dissesse que a arte antecipa a ciência?
GILBERT CHAUDANNE – Colocaria hoje a arte e a literatura como um tipo possível de
conhecimento feliz (Nietzsche) deixando de lado as lamúrias neo-românticas e as
macaquices narcísicas.
WILSON COELHO – E então, o que pensar de 50 anos de literatura, pintura e viagens?
GILBERT CHAUDANNE – No que se trata da viagem, vou fazer uma observação
complementar. Às vezes, não são os lugares famosos como a Torre Eiffel, o Taj Mahal, as
igrejas de Ouro Preto, que marcam sua sensibilidade, mas uma rua anônima, uma cidade
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anônima, um olhar de um segundo no ônibus, uma palavra. Claro que o Taj Mahal é
deslumbrante, claro que Stambul é deslumbrante, mas a relação com o lugar depende
também de você e do seu olhar e, assim, o lugar é e não é você. E essa sintonia pode se
criar ou não e é filosoficamente falando fenomenológica e não essencialista.
WILSON COELHO – Criava diários de bordo?
GILBERT CHAUDANNE – O que eu nunca consegui fazer é um diário de viagem. Até
escrevia durante as viagens e tentei fazer um diário numa viagem à Índia que durou quase
um ano. Mas não funcionou. Escrevi mas não foi bom.
WILSON COELHO – Melhor, então, recorrer à memória?
GILBERT CHAUDANNE – Escrevo sobre minhas viagens depois e, em geral, muito
tempo depois, como se precisasse de uma espécie de digestão do que foi visto e vivido.
WILSON COELHO – Parece que muitos dos relatos de viagens se perdem na fantasia.
GILBERT CHAUDANNE – Duas armadilhas nos relatos de viagens: a folclorização ou
“cor local”, o pitoresco e o estilo “blasé” que diz que, finalmente, Veneza ou Rio de Janeiro
não é essa coisa toda: é a perda do poder de se deslumbrar como a criança. Viajei na Itália
com um compadre que era capaz de estragar da beleza ímpar desse país à imperial de
Veneza. Esse “impoder” (Artaud) de ficar deslumbrado é mais comum do que se pensa.
Falo do verdadeiro deslumbramento e não do deslumbramento de encomenda como certos
brasileiros que, automaticamente, ficam deslumbrados em Paris ou Nova York. Por que não
em Baixo Guandu ? E eles ficam deslumbrados porque é Paris ou Nova York e não porque
ficam simplesmente deslumbrados. E é chique ficar deslumbrado em Paris e em Nova
York, mas não em Baixo Guandu.
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WILSON COELHO – E então, o que pensar de 50 anos de criação literária e artística e de
10 anos de viagem?
GILBERT CHAUDANNE – Primeiro, não sei se há de pensar alguma coisa. Nós fazemos
e nós vamos embora. Na verdade, não vivemos, somos vividos. Se acredito na liberdade,
falei de uma liberdade condicional. E o que quer dizer uma liberdade condicional? Uma
liberdade condicional quer dizer que eu tenho de viver o que eu sinto e não o que os outros
querem que eu sinta. Parece bobo, sim, mas a liberdade é boba, porém gostosa, às vezes,
dolorosa também. A liberdade tem um lado Lolita e um lado Joana D’Arc. Condicional,
porque não sou dotado de asas, como um anjo para me abstrair da minha condição pessoal e
humana. Sou limitado mesmo se pretendo assinar um contrato com o infinito. Esse vai
surgir, mas só na obra de arte, se ele surge na vida, ele me mata. E ele já tentou fazer isso
três vezes e meia. Não posso dizer como.
WILSON COELHO – Fico contente que tenha contribuído com a Revista Icarahy,
considerando que o tema deste número tem muito a ver com sua trajetória entre a literatura
e o exílio.
GILBERT CHAUDANNE – Pois espero ter respondido e não respondido às suas
perguntas e agradeço a curiosidade porque ela é intelectual e não voyeur. Assim, você me
proporcionou a possibilidade de preservar meu pudor e, ao mesmo tempo, me deu a
possibilidade de expressar uma espécie de amor torto que me liga à vida.
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