A saga de Eva-Breve excurso nas vicitudes e percalços da mulher
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A saga de Eva-Breve excurso nas vicitudes e percalços da mulher
Augusto Guzzo • Revista Acadêmica Galileu do Amaral FIDELIS A saga de Eva - * Breve excurso n_ as vic~situdes e percalços da mulher, na luta por sua mserçao no mercado de trabalho. Resumo O presente artigo procura entrar na discussão sobre a questão da emancipação feminina, pontuando alguns aspectos, principalmente no contexto do trabalho. Embora avanços significativos tenham sido registrados nessa linha normalmente no âmbito legal, ainda existe um grande descompasso com relação à prática social. Abstract The object of the present article is to discuss the question of women emancipation by appointing some aspects, principally, in the work environment. In spite of significant advances have been registered on this direction under the legal point of view, there is a big discord concerning to the social practices as yet. As diferenças físico-anatómicas entre o homem e a mulher são evidentes - e é muito bom que assim seja! Todavia, a extrapolação das diferenças para o plano social, e mais, a sua configuração como dominação masculina, é cada vez mais questionada. Entretanto, o enraizamento ideológico que constrói o cenário da suposta "supremacia masculina" tem fortes pressupostos históricos e teóricos. Se, por exemplo, nos voltarmos para a sociedade de classes da Antigüidade ocidental (Grécia, Roma) ou oriental (China, Japão) ou, na Idade Média, para as sociedades da América pré-colo!fibiana (Incas e Astecas) ou para a sociedade de castas da Índia, nelas a vida social é dominada pelos homens . Possuir a terra da cidade, sacrificar aos deuses, defender suas terras de armas na mão, exercer a magistratura e a soberania política, desenvolver a Filosofia, a Matemática e o resto, esses eram privilégios mas- culinos na Atenas clássica. Para um grego, ser um homem plenamente é, antes de tudo, ser um homem e não uma mulher, ser livre e não escravo; ser ateniense e não estrangeiro. A mulher livre está presa pelos laços do matrimónio à família de seu mestre e marido, de quem ela dirige em parte a economia doméstica. O senhor dispõe a seu bel-prazer de suas escravas femininas para o sexo. Aliás, Aristóteles definiu claramente essas relações de sujeição, quando escreveu em A Política: "As partes primitivas e indivisíveis da família são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os filhos" e acrescentou: "Hesíodo teve razão ao dizer que a primeira família era composta pela mulher e o boi do arado. Na realidade, o boi ocupava o lugar do escravo para os pobres." Nota-se aqui a relação entre a estrutura da família e a estrutura do modo de produção, assim como os fundamentos de uma dupla submissão da mulher, na cidade de um lado, na família de outro. No entanto, não ocorria o mesmo em toda a Europa antiga. Basta lembrar da surpresa de Tácito, quando, enviado em missão aos bretões e germanos, descobriu que as mulheres participavam nos conselhos de guerra. O mesmo espanto se deu, dezesseis séculos mais tarde, quando os ingleses e franceses penetraram nas florestas americanas e descobriram que, entre os iraqueses e huronianos, as mulheres nomeavam os chefes. A questão que se coloca, inevitavelmente, é a de saber se a subordinação da mulher ao homem existe hoje em todas as sociedades e se ela sempre existiu. O exemplo dos germanos e dos iroqueses permite-nos duvidar disso. No plano teórico, as ciências sociais têm dis- * Professor das Faculdades Integradas Campos Salles e da PUC Campinas I cutido a questão da condição da "submissão" feminina, mas, ironicamente, caem na esparrela ao colocar a própria identificação de uma das áreas que são mais próximas à questão, como "ciência do homem"; é o caso da ''Antropologia", definida como "estudo do homem como ser social". É óbvio que, aí, o "homem" é considerado como categoria genérica, isto é, refere-se a seres humanos, homens e mulheres. Porém , a linha seguida pelos trabalhos antropológicos, em sua grande maioria, descrevem e analisam as culturas humanas privilegiando a visão e a experiência masculina dessas culturas. Esta assertiva poderá causar algumas reações de perplexidade, estranheza e negatividade por parte de sérios profissionais dessa ciência, pois poderão argumentar que a Antropologia, em todos os seus ramos e especializações, só pode ter estudado a experiência humana focalizando as atividades, sentimentos, rituais e costumes tanto de homens como de mulheres; que é impossível descrever uma economia, sem descrever as atividades de subsistência das mulheres tanto quanto as dos homens; que qualquer trabalho analítico, baseado num corpo teórico utilizado pelas diversas escolas de pensamento antropológico, pressupõe a totalidade social composta por ambos os sexos; que seria impossível descrever as características físicas de qualquer grupo humano, sem se deter nos caracteres tanto femininos como masculinos; que informantes lingüísticos têm sido escolhidos entre homens e mulheres que falam um mesmo idioma e que ambos os sexos têm sido representados nas entrevistas formais e informais organizadas por qualquer pesquisador atento e astuto. Tudo isso, porém, pode significar, entre outras coisas, que os papéis masculinos e a visão feminina da cultura têm sido privilegiados, a ponto de serem apresentados como portadores de toda uma vivência grupal, não exatamente porque antropólogos planejaram que fosse de tal forma, numa colocação consciente de seus trabalhos, mas porque tal visão tem sido a conseqüência lógica de trabalhos etnográficos realizados por homens ou mulheres que estudaram sob a I direção de homens. A reforçar essa argumentação, está a própria designação Homo Sapiens . Acontece que este termo genérico é altamente ambíguo, visto que não só se refere à espécie como um todo, mas também ao macho da espécie. Isto importa em que, ao usar o termo "homem", usa-se o pronome masculino, assim como adjetivo e concordância no masculino. Após a leitura de qualquer texto sobre o "homem", ou seja, a humanidade, em que todas as imagens falam do homem, dele, do seu, do nosso, eles, o caçador, o agricultor, o cientista, o profissional, o artesão, tudo isso enquanto possa estar se referindo a atividades exercidas também por mulheres ou grupos que envolvam mulheres, a imagem mental que se forma, depois de tal leitura, muito naturalmente é a de um homem mesmo, não homem e mulher, mas o macho da espécie, com todos seus caracteres físicos e biológicos específicos. Dessa forma, é dele, do macho, que tudo se origina, até mesmo a vida. Ele é realmente o ser onipresente e onipotente. A mulher vai ficando à sua sombra, através dos séculos, silenciosa, seguidora de seus passos criadores e inovadores. Qual a lógica real por detrás desta nomeação da humanidade como o reino do homem e, portanto, do macho?. É a fêmea realmente um ser secundário na formação da sociedade, um ser sempre à mercê dos desígnios e intenções dos homens? Mais relevante, talvez, seria perguntar-se como foi que este pressuposto de uma inferioridade feminina impregnou de tal forma a ciência da humanidade a ponto de designá-la como a "ciência do Homem", colocando seus pesquisadores predispostos a aceitarem tal impregnação, sem questioná-la, sem ao menos advertir-se de sua existência. O universo do trabalho É nas relações de trabalho que a problemática tem seu fulcro, pois é sobre as mulheres trabalhadoras que se acumulam todas as conseqüências negativas das diferenças entre os sexos. Uma delas, extremamente perversa, é a da acu- Augusto Guzzo • Revista Acadêmica mulação da jornada de trabalho. A mulher trabalhadora, mesmo quando recrutada para vender sua força de trabalho nas empresas públicas ou privadas, nunca deixa de produzir valores domésticos. Rigorosamente, pode-se falar em uma dupla jornada da mulher trabalhadora: o trabalho que executa na empresa e aquele que, antes e depois da empresa, executa no lar. Consta dessa segunda jornada: preparação das comidas, lavagem de roupas, confecção e reparos do vestuário e o cuidado com os filhos. Assinala-se o crescimento da mortalidade infantil e juvenil, enfim, os problemas assim chamados do "menor marginal" ou do "menor abandonado", precisamente em coincidência como o maior emprego da mulher como a força de trabalho. A insuficiência dos salários e a falta de uma infra-estrutura social, que permita à mulher diminuir seus encargos no lar, tomam impossível à trabalhadora desfrutar de tempos livres que permitam a recuperação da força de trabalho e a elevação do seu nível cultural. Pesquisas comparadas no plano internacional, feitas sob os auspícios da UNESCO, indicam que, em comparação com os maridos, as mães que trabalham dispõem de menos 2/3 de tempo livre. Suas horas de trabalho semanais situam-se entre 70 a 80. Um levantamento realizado por trabalhadores franceses indicou que, para uma mulher assalariada, esposa e mãe, a duração semanal do trabalho se encontra entre 80 e 90 horas. Por outro lado, o trabalho caseiro é fisicamente mais penoso do que normalmente se julga: um pedreiro que assenta tijolos ou pedras dispende a mesma quantidade de calorias que uma mulher limpando o chão ladrilhado, e menos do que a mulher que está arrumando camas, limpando çhão ou lavando roupas. Além disso, a quantidade de sono pode não libertar o trabalhador da fadiga mental da véspera. Compreende-se, desde logo, que, para igual esforço de trabalho, a mulher está em desvantagem em relação ao homem, devido a diversos fatores que diminuem ou perturbam o sono, entre eles os cuidados notumos para com os filhos e as discordâncias de horários de trabalho entre marido e mulher. É inadmissível que a entrada da mulher na força de trabalho implique no abandono do menor. A própria OIT reconhece que, apesar do aumento constante do número de trabalhadoras casadas e com filhos pequenos, as creches e outras instituições necessárias ao bem estar das crianças não têm acompanhado as necessidades reais na maioria dos países, principalmente no Brasil. A OIT ainda alerta que "já foi o tempo em que a sociedade podia se negar a prestar serviços de assistência à infância, na esperança de assim evitar que as mães deixassem os filhos para trabalhar fora". No campo, a situação é mais grave. Ou a mulher carrega as crianças para o trabalho ou as deixa em casa, muitas vezes sem nenhum adulto com elas. Quando levam as crianças, as mulheres consideram que as atividades na lavoura ou na pecuária são parte de suas obrigações de dona de casa. Estudo recente, da Universidade Federal Fluminense, demonstrou que 2,4 milhões de mulheres trabalhadoras no campo não recebem nenhuma remuneração salarial. É ilustrativo o exemplo apontado no referido estudo: " É difícil distinguir o ~rabalho por ela realizado na horta e no quintal de seu cotidiano de dona de casa, o que leva a uma subestimação da jornada dedicada à atividade agropecuária. A situação é dramática, porque, além de não receberem, essas mulheres trabalham mais que os homens, sem se darem conta da dupla jornada feminina. Em Dracena, região da Alta Paulista, Salvadora Torrente Casado exerce a dupla jornada há décadas, sem reclamar e sem ganhar nada. Aos 78 anos e já aposentada por invalidez, desde que perdeu um lado da visão, após ser picada por uma cobra, Salvadora continua trabalhando. Levanta cedo, prepara o café, adianta o almoço, limpa a casa e trata as galinhas. A segunda jornada não é menos cansativa: ela ajuda o marido, Felix Garcia Casado, na alimentação dos porcos, nas lavouras de café e amendoim, no trato da I horta e embalando as rapaduras da pequena fábrica da família." Além disso, conforme apontou a pesquisa, houve uma queda de fecundidade como ocorreu nos anos 90, em toda a sociedade brasileira e o envelhecimento precoce da trabalhadora rural. A maioria delas (cerca de 52%) tem entre 30 e 59 anos. A escolaridade é bastante baixa: 32,5% têm até três anos de estudo e 30 % são analfabetas. Deve-se levar em conta, ainda, como agravante, que o estudo foi realizado no interior paulista, isto é, no mais avançado estado da federação. Nas áreas urbanas, houve avanços. É mais fácil cobrar os direitos constitucionais e a Constituição Federal assegura à mulher igualdade no trabalho, em relação aos homens. No entanto, o direito positivo não muda de imediato o comportamento cultural. E o que ainda se vê são mulheres preteridas nas indicações para cargos de chefia. As mulheres são, também, maiores vítimas do desemprego em centros urbanos: a taxa é de 6% para a ala masculina, mas de 8,5% para a feminina. Pesquisa do Ipea, relacionando pouca escolaridade a baixos salários, revelou que a renda máxima de mulheres com grau médio é de R$ 553, valor que declina até R$ 369, aos 60 anos. Para homens com grau médio e superior, o salário só cresce até chegar a R$ 1.273, aos 60 anos. Só não há discrepância, quando as mulheres têm grau superior de instrução, pois mantêm a renda em torno de R$ 1.110. Estas, contudo, concentram-se nas faixas jovens, e nem todas podem dizer que não são forçadas a provar suas habilidades a todo momento num mercado que lhes abre as portas com hesitação. Um aspecto altamente positivo foi o avanço das mulheres urbanas quanto à instrução. Dos que concluíram o ensino fundamental, 53,5% são mulheres; também são mulheres 58,5% dos que terminaram o ensino médio e 61,4% o ensino superior, segundo dados da UNESCO. Todavia, conquistas formais têm uma concretização prática demorada. Em 1879, uma reforma do ensino superior possibilitou, pela primeira vez, o ingresso das mulheres nas faculdades brasileiras. Mas as primeiras que ousaram seguir uma carreira de nível superior, foram alvo da descrença geral, quando não de galhofas. Em 1887, a primeira médica brasileira colou grau, especializando-se em pediatria, mas as famílias não permitiam que atendesse seus filhos. Em 1932, o direito de votar e ser votado foi legalmente concedido às mulheres. Para a Assembléia Constituinte, que elaborou a Constituição de 1934, foi eleita apenas uma mulher! No Parlamento brasileiro atual, as mulheres estão em torno de 5%. E constituem a maioria da população. Mas, felizmente, as coisas mudam. Cada avanço funciona como um acelerador para novas mudanças! A marcha para o equilíbrio. A divisão eqüitativa aos espaços, a igualdade dos direitos entre o homem e a mulher, o trabalhador e a trabalhadora, é inexorável. Um dia essa igualdade ocorrerá, para o bem de toda sociedade, e dos homens, em especial ! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIER, Pierre(org.). El ofício de sociologo. México: Siglo Veintiuno, 1979. CARBONE, A. Marly. "Aspectos histórico-sociais do direito do trabalho da mulher" ln, Revista da APD, v.4. RONALDO, M.Z. e Louise L. (ed.) A Mulher, a Cultura, a Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. RODRIGUES, J.M., A Mulher Operária, um estudo sobre tecelãs. São Paulo: Hucitec, 1979. SACKS, Karen, Engels Revisited: Women, the Organization of Production, and Private Property, in: Reiter (org.), Toward and Antropology ofWomen. N.Y.: M.R.P., 1975 Jornal O Estado de São Paulo- 12 e 25 de Agosto de 2000. I
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