Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – CEP 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil Tel./Fax 55 51 3330-3845 | 3333-6857 www.sbpdepa.org.br e-mails: [email protected] | [email protected] | [email protected] v. 12, n. 2, 2010 revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde 1992, à FEPAL e à Federação Brasileira de Psicanálise A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma publicação semestral editada regularmente desde 1999. Encontra-se indexada na Base de Dados INDEX PSI Periódicos. Tem como finalidade publicar trabalhos selecionados de psicanalistas brasileiros das Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados à Associação Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber, visando aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A Revista publica também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas estrangeiros, ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas. Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (jan/dez. 1999)– . – Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, 1999– . v. ; 25 cm. Revista indexada na base de dados INDEX PSI Periódicos. Periodicidade: semestral a partir de 2001. ISSN 1518-398x 1. Psicanálise I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. CDU 615.851.1 Bibliotecária Responsável: Ananda Feix Ribeiro CRB-10/1814 Tiragem: 300 exemplares EDITORA Helena Surreaux CONSELHO EDITORIAL Alicia Beatriz Dorado de Lisondo | Ana Rosa C. Trachtenberg | André Green | Antonino Ferro | Carmen Médici de Steiner | Cesar Botella | Didier Lauru | Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) | Franco Borgogno | François Marty | Gildo Katz | Heloísa Helena Poester Fetter | João Baptista Novaes Ferreira França | Laura Ward da Rosa | Leopold Nosek | Leonardo Wender | Marcelo Viñar | Marco Aurélio Rosa | Maria Aparecida Quesado Nicoletti | Marta Petricciani | Miguel Leivi | Nilde Parada Franch | Raquel Zak de Goldstein | Rómulo Lander | Samuel Zysman | Sara Botella | Sara Zac de Filc | Sebastião Abrão Salim | Stefano Bolognini | Suad Haddad de Andrade COMISSÃO EDITORIAL Carmem Alice V. Escosteguy | Carmen Lúcia M. Moussalle | Carmen Saile Willrich | Helena Surreaux | Rosa Beatriz Santoro Squeff ASSISTENTE EDITORIAL E NORMATIZAÇÃO Ananda Feix Ribeiro CAPA E PROJETO GRÁFICO Paola Bulcão Manica EDITORAÇÃO Luiz Cezar F. de Lima PRODUÇÃO GRÁFICA Gráfica Agetra Ltda. REVISÃO DE PORTUGUÊS Prof. Antônio Paim Falcetta SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional DIRETORIA Presidente Dr. Gley Silva de Pacheco Costa Secretário Dr. José Luiz Freda Petrucci Tesoureiro Dra. Heloísa Helena Poester Fetter Coordenador da Comissão Científica Dr. Marco Aurélio Crespo Albuquerque Coordenador da Comissão de Comunicação Dra. Helena Surreaux Coordenador da Comissão de Relações com a Comunidade Dr. José Ricardo Pinto de Abreu Coordenador da Comissão Centro de Atendimento Psicanalítico Dra. Caroline Milman INSTITUTO DE PSICANÁLISE Diretor Dr. Júlio Roesch de Campos Secretário Dr. Fernando Kunzler Coordenador da Subcomissão de Formação Dr. Gildo Katz Coordenador da Subcomissão de Seminários Dr. Ignácio Alves Paim Filho Coordenador da Subcomissão da Infância e Adolescência Dra. Vera Maria Homrich Pereira de Mello Associação de Membros do Instituto Dra. Luciana Schmal NÚCLEOS Núcleo de Infância e Adolescência Dra. Mayra Dornelles Lorenzoni Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional Dra. Cynara Cezar Kopittke Núcleo Psicanalítico de Florianópolis Dr. Márcio José Dal-Bó MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa Newton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann PSICANÁLISE | v. 12 n. 2, 2010 revista da SBPPA Sumário EDITORIAL Palavras da Editora | 287 Helena Surreaux ARTIGOS TEMÁTICOS Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o sinistro no psiquismo parental | 295 Víctor Guerra A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao Longo da Infância | 321 Ane Marlise Port Rodrigues Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise | 335 Néstor Greco Interpretação e Adolescência | 357 Edmundo Saimovici Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes | 377 Ane Marlise Port Rodrigues, Camila de Matos Ávila, Fernanda Munhoz Driemeier, Fernanda Silveira, Jairo Treiguer, Letícia Dornelles Lacerda, Patrícia Espíndola Stefani, Sadi Machado OUTRAS CONTRIBUIÇÕES Reflexões sobre o Destino do SER MULHER | 397 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário | 411 Carlos de Almeida Vieira A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura | 425 Ignácio Alves Paim Filho O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19 | 437 Laura Ward da Rosa Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora como caminho | 441 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite ARTIGO ENCOMENDADO Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade | 455 Ana Paula Terra Machado RESENHAS Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman “História e Pré-história na Clínica com Crianças e Adolescentes” | 465 Abel Fainstein As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos – o pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje | 475 Ana Rosa Chait Trachtenberg Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade | 479 Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação | 483 PSICANÁLISE | v. 12 n. 2, 2010 revista da SBPPA Contents EDITORIAL Editor’s Words | 287 Helena Surreaux THEMATIC ARTICLES On Baby Sleep: the night, the nightmares, and uncanny in parental psychism | 295 Víctor Guerra The Night and its Sons (the Sleep and the Death) and Nightmares Along Childhood | 321 Ane Marlise Port Rodrigues Characterization of Puberty: empirical research and psychoanalysis | 335 Néstor Greco Interpretation and Adolescence | 357 Edmundo Saimovici Father Presence, Father Link and Father Function: thinking about the father in the actual psychoanalytical clinic of children and adolescents | 377 Ane Marlise Port Rodrigues, Camila de Matos Ávila, Fernanda Munhoz Driemeier, Fernanda Silveira, Jairo Treiguer, Letícia Dornelles Lacerda, Patrícia Espíndola Stefani, Sadi Machado OTHER CONTRIBUTIONS Reflections on the Fate of the FEMININE BEING | 397 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel Might W. R. Bion have read J. L. Borges? The literary aesthetic vertex | 411 Carlos de Almeida Vieira The Analyst’s Subjectivity in the Labyrinths of Cure | 425 Ignácio Alves Paim Filho The Day the Gestapo Showed Up at Bergasse 19 | 437 Laura Ward da Rosa From Creation of Bonds to the Bonds of Creation: metaphor as a tool | 441 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite RESQUESTED ARTICLE Joyce McDougall: a contemporary psychoanalyst | 455 Ana Paula Terra Machado BOOK REVIEWS Presentation of the Book Written by Ana Rozenbaum de Schwartzman Entitled History And Prehistory of Clinical Treatment of Children and Adolescents | 465 Abel Fainstein Two Analyses of a Phobia in a Five-year-old Boy – Little Hans: child psychoanalysis yesterday and today | 475 Ana Rosa Chait Trachtenberg Narrating, Being a Mom, Being a Dad, and Other Essays on Parenthood | 479 Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin Guidelines for Contributors and Standards for Publication | 483 editorial 287 Helena Surreaux Palavras da Editora É com orgulho que apresentamos o volume 12, número 2 de Psicanálise, segunda obra desta gestão. Aqui damos continuidade ao movimento de qualificação da revista, relatado em seu formato temático, o que naturalmente a converte em uma fonte de consulta mais eficiente. A nossa “contadora de histórias”, como defini Psicanálise no editorial anterior, adquire, além desse caráter revelador do pensamento psicanalítico contemporâneo, uma forma mais organizada, que permite ao leitor situar-se em relação as suas edições. O tema que nos convoca neste número é: “Psicanálise de crianças e adolescentes: teoria e clínica”, pensado para consagrar o início dessa formação na Brasileira. Dentro do assunto, a amplitude de aspectos abordados garante um panorama extremamente atraente e abarcador em relação às inquietações que movem os analistas dedicados ao trabalho com essas fases do desenvolvimento. Os distúrbios do sono em bebês e durante a infância, a função paterna e a presença do pai na vida da criança e do adolescente, as especificidades na análise de púberes e a técnica analítica na adolescência constituem alguns dos eixos aqui tratados. A noite, seus mistérios, a escuridão, o sinistro e a morte são os pilares que sustentam a organização da produção dos sintomas do sono na infância, segundo nosso eminente colega da Associação Psicanalítica do Uruguai, Victor Guerra. Em seu trabalho “Transtornos do sono em bebês: a noite, os pesadelos e o sinistro no psiquismo parental”, sua abordagem original situa o sintoma da criança na vivência de sinistro (Freud) que se estabelece no psiquismo dos pais em relação ao seu filho, quando este desliza do lugar de representante do desejo parental, ao truncarem- Palavras da Editora Psicanálise v. 12 nº 2, p. 287-292, 2010 288 se os processos de comunicação arcaica, baseados na tradução do bebê pela mãe, impedindo as devidas decifrações e criando as condições para um “desconhecimento angustiante”. A noção freudiana do sinistro é aqui articulada com a literatura borgiana e com as artes plásticas, através da pintura de Goya e com o estudo de elementos da cultura, o que, iluminado pela profunda sensibilidade expressa na compreensão do fenômeno clínico pelo autor, especialista no atendimento de mães e bebês, revela um trabalho brilhante. Também se ocupando dos distúrbios do sono na infância, Ane Marlise Port Rodrigues nos brinda com a publicação de seu artigo “A Noite e seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao Longo da Infância”, cuja notória qualidade distinguiu-o com o prêmio João Bosco Calábria de Oliveira, durante o vigésimo Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Brasília, em 2005. Aqui as angústias de morte e de perda de controle, protagonistas na produção dos distúrbios do sono na infância são abordadas através de uma aproximação com a mitologia, com o estudo de rituais culturais de passagem da adolescência para o mundo adulto, além do aporte do estudo dos ideais culturais contidos nas fábulas. Minha palavra é escassa para expressar a honra de contar com o artigo “Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e Psicanálise”, de Néstor Greco, colega da Associação Psicanalítica Argentina, já conhecido por estas bandas como o “descobridor da puberdade”. O artigo é resultado do profundo trabalho de mais de trinta anos no tratamento psicanalítico de púberes, plasmado em sua tese de mestrado, junto à Universidade de La Matanza. Seu esforço de revelar a puberdade como uma etapa evolutiva do psiquismo, discriminada da latência e da adolescência, com mecanismos de defesa, fantasias e dinamismo próprios vem iluminando a prática clínica daqueles que têm o privilégio de ler seu minucioso estudo. Como bibliografia para os seminários da formação em psicanálise de crianças e adolescentes da Brasileira é de inestimável valor. Edmundo Saimovici, prestigioso colega da Associação Psicanalítica Argentina, produz um artigo que pode ser definido como uma leitura necessária para aqueles que trabalham com adolescentes. Parte de uma conceitualização teórica da adolescência que a situa no entrecruzamento de alguns eixos principais que entram em cena no campo analítico: a oscilação edípica-pré-edípica, a dualidade independência-dependência, 289 Helena Surreaux o par idealização-desidealização e o par lutos pela infância versus elaboração do crescimento e conquista da genitalidade. Daí, empreende uma extensa reflexão sobre o ato, as consequências e a função de interpretar na adolescência, marcando a importância de libertar-nos do apego à interpretação dita clássica, com adultos neuróticos, abrindo lugar a toda uma gama de intervenções que compreende a nominação de afetos ou ansiedades desconhecidos, sinalizações, discriminação de atitudes contraditórias, conversa sobre assuntos de interesse do adolescente, assim como a presença do lúdico na sessão. Além disso, marca a importância do conhecimento da dinâmica pai-filhos e do entorno social e educacional do adolescente para poder operar com eficácia. Esta edição também conta com um acontecimento inédito e muito promissor para a nossa Sociedade: a presença de um artigo produzido em um dos grupos de estudo da Comissão de Relações com a Comunidade. A atividade é coordenada por Ane Marlise Port Rodrigues e tem a participação de Camila de Matos Ávila, Fernanda Munhoz Driemeier, Fernanda Silveira, Jairo Treiguer, Letícia Dornelles Lacerda, Patrícia Espíndola Stefani e Sadi Machado. O grupo “Casos Clínicos de Crianças – desenvolvimento normal e psicopatologia” nos brinda com o trabalho “Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes”, no qual refletem, através de vinhetas clínicas sobre a presença do pai no paciente, o que nele ficou assentado da função e do vínculo paternos. Apontam ainda para as repercussões possíveis das problemáticas dessa ordem na relação transferencial e na contratransferência do analista. Além do tema central, esta edição conta com várias contribuições que abarcam um amplo espectro de assuntos, como o feminino, questões da teoria, clínica, técnica e da estética ligada ao trabalho da análise, além de aportes relacionados à cultura. Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte e Sissi Vigil Castiel trazem o profundo “Reflexões sobre o Destino do SER MULHER”, que propõe uma densa discussão sobre o feminino e a feminilidade no contexto das transformações que a contemporaneidade vem gerando na subjetividade feminina. A partir de Freud e do “continente negro”, como a primeira incursão da teoria psicanalítica no universo feminino, as autoras Palavras da Editora Psicanálise v. 12 nº 2, p. 287-292, 2010 290 deslizam para os novos formatos nas relações que as mulheres hoje estabelecem com o homem, tanto na dimensão da sexualidade como na do amor. Carlos de Almeida Vieira, colega da Sociedade de Psicanálise de Brasília, que além de psicanalista é um grande conhecedor de música e do mundo das artes, sempre traz reflexões estéticas da mais alta consideração. No artigo “Teria W. R. Bion lido J. L. Borges? O vértice estético-literário” propõe aproximar os dois pensadores contemporâneos, chamando a atenção para as semelhanças em relação às leituras que influenciaram a ambos, sobretudo no que tange à literatura inglesa. Ressalta também a capacidade de observação dos fenômenos da alma humana, a importância da intuição e dos recursos estéticos como tarefa metodológica, assim como do estudo dos autores clássicos da literatura, a fim de desenvolver um repertório que capacite o analista a captar o que se encontra além do dito, do sensorial e do manifesto. Ignácio Paim Filho, nesta nova contribuição à nossa revista, com o artigo “A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura”, ocupa-se das ressonâncias ou interferências que trabalham no analista, durante o processo da análise. Para tanto, tomará como metáfora interlocutora a relação de Jung com Sabina, para refletir sobre a importância do inconsciente do analista no desenrolar da análise. Sempre fortemente ancorado em Freud, o autor buscará dar maior especificidade ao inconsciente, fundamento da subjetivação e marcará a importância vital da análise do analista, no sentido de dar consistência a sua subjetividade, colocada a serviço da direção da cura. “O dia em que a Gestapo chegou à Bergasse 19” é o ensaio de Laura Ward da Rosa que trata do dramático fato da irrupção da Gestapo no endereço da família Freud, levando Anna para depor no comando nazista que tomara Viena. A autora reflete sobre a importância desse fato na decisão de Freud em rumar para Londres. Sempre é estimulante contar com a participação de nossos Membros do Instituto na composição de uma revista, que deve ser a expressão de todas as vozes da Sociedade. Apresentamos “Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora como caminho”, de Luciana Saraiva Schmal e Paula Esteves Daudt Sarmento Leite. Nele, as autoras enfatizam a “exigência” 291 Helena Surreaux de uma forte disponibilidade afetiva por parte do analista, bem como do desenvolvimento da sensibilidade em relação ao outro e da criatividade como “ferramentas” básicas indispensáveis no trabalho analítico. A partir desse substrato básico da situação de análise, pode surgir a metáfora como um “precioso recurso de linguagem” para fortalecer a capacidade empática e o vínculo, bem como a ampliação das condições psíquicas do analisando. Refletem ainda sobre a função e as repercussões do uso da metáfora nas diferentes estruturas psíquicas. Na sessão “Artigo encomendado”, convidamos Ana Paula Terra Machado a defender Joyce McDougall, frente à pergunta “Por que Joyce McDougall?”. E o faz com grande convicção, nos apresentando “Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade”, no qual destaca as propostas teóricas da autora e sua compreensão do destino do afeto nos fenômenos psicossomáticos, a partir do estado de privação psíquica, assim como os conceitos de neossexualidade e de neonecessidade. Esta edição contém ainda três resenhas: “Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ‘História e préhistória na clínica com crianças e adolescentes” de Abel Fainstein, “As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos – o pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje” de Ana Rosa Chait Trachtenberg sobre a obra de Celso Gutfreind e “Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade”, do mesmo autor, resenhado por Claudia Kowarick Halperin e Celso Halperin. Chegar ao final de um editorial é sempre um momento de visão panorâmica e de reflexão sobre o trabalho realizado. Reúne-se em uma edição autores, obras e temas que constituirão uma gestalt única, que será lançada ao universo e que impactará e dialogará com cada leitor de uma forma singular. Gosto de pensar que cada revista que nasce é uma potencial “transformadora de mundos”... Algo do processo criativo que teve início com as primeiras ideias de cada autor e foi tratado pela comissão editorial, traduzido e aprimorado pelas várias revisões, será lançado como flechas de fogo sem destino certo e realizará uma aventura própria, da qual já não faremos parte. No entanto, a “transformação de mundos” já se operou em nós a partir das leituras, do trabalho com os artigos e de tudo o que essas Palavras da Editora Psicanálise v. 12 nº 2, p. 287-292, 2010 292 experiências foram suscitando em nós e que foi acaloradamente discutido e metabolizado em nosso trabalho de criação coletiva. Agradeço a todos os que dedicaram-se com alma a esse processo, os autores, que tornaram possível essa publicação e as queridas e indispensáveis interlocutoras de sempre Carmen M. Mousalle, Carmen Saile Willrich, Carmem Alice Escosteguy, Rosa Santoro Squeff e Ananda Feix. Desejo a todos uma leitura transformadora! Helena Surreaux Editora Porto Alegre 2º semestre de 2010 trabalhos temáticos 295 VÍctor Guerra Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o sinistro no psiquismo parental Ensaio Víctor Guerra Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica do Uruguai. 1 Introdução Não, Raja, eu devo começar a partir do que sou. Sou os monstros que habitam meus sonhos, os monstros que me ensinam quem eu sou. (C. MISLOSC apud PAZ, 2000). Um sintoma em um bebê pode ser conceitualizado a partir de diferentes perspectivas. Por um lado, é uma forma de indicar, marcar algo da ordem de uma disfunção em sua economia pulsional e relacional (na interação real e fantasiada entre ele e seus pais); e, por outro, geraria nos pais uma ideia de que entre eles e seu filho se instala um desconhecimento angustiante. Em geral, todos os pais e as mães, desde a gestação de seu filho, têm a ilusão de contar com um conhecimento e uma proximidade afetiva com seu filho, que os habilite a sentir a esse bebê como “seu” filho. Dessa maneira também (junto a outras leituras1), poderíamos entender o sintoma no bebê como uma espécie de “adaga” que fere o narcisismo parental 1 Diferentes autores, ao enfrentarem-se com a mesma situação, lhe outorgam um significado diferente. S. Lebovici (1980) relata um caso de transtorno de sono de um bebê de quinze meses, onde hierarquiza especialmente a primeira frase da mãe: “Viemos porque não conseguimos fazer dormir o nosso bebê”, e ele o traz em relação ao sentimento de ferida e fracasso. B. Cramer (1990) relata um caso no qual os pais, nos primeiros minutos da sessão, repetem alternadamente por quatro vezes a angústia de não saber o que ocorre a seu filho. Como veremos, ele o relaciona com o sinistro, a partir do ângulo da repetição. D. Daws assina- Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 296 e que os desaloja de seu lugar de pais – lugar que entendo em relação à ilusão de portar um saber sobre esse filho: “[...] ninguém conhece a meu filho como eu... sou a mãe”. B. Cramer (1990), no livro Profissão bebê, reflete sobre o tema dos sintomas nos bebês e, a partir de um caso (um bebê do sexo feminino, Marie, com crises de cólera), aporta a ideia de que os pais experimentariam a sensação algo “sinistra” (inquietante estranheza) pela angústia que geraria neles a presença do sintoma, porém sustenta que “[...] a inquietante estranheza se deve à aparição furtiva de fantasmas que surgem do passado da mãe”2. Como vemos, Cramer alude à presença dessa situação dada a reativação de aspectos reprimidos na mãe, que se revivem na relação com seu bebê. Concordo parcialmente com esse aspecto, porém entendo que há algo de uma ordem específica no que tange ao transtorno do sono. Em minha experiência, observei que tal sintoma, dada a particularidade das situações que engloba, parece gerar com mais facilidade esse tipo de vivência do que outros sintomas3. Como veremos mais adiante, em certas situações, o bebê ou a criança é vivido com uma tonalidade sinistra (no sentido freudiano do termo), como um “inimigo”, o que convoca uma ambiguidade muito marcada, onde, às vezes, é vivido como interditor, que tapa a sexualidade parental; e, também, em outras oportunidades (em um sentido mais arcaico), é vivido como elemento disruptor no casal e na possibilidade de descanso, retraimento e elaboração mental própria do onírico. la outro caso de transtorno de sono (um bebê de seis meses), no qual os pais, depois de haver “ensaiado tudo”, realizam (com dor) a pergunta: “Poderemos ser bons pais?”. L. Kreisler (1985) ressalta um caso de um bebê de dezoito meses, no qual a mãe resiste a aceitar a ajuda de outros. Mesmo havendo uma melhora importante do transtorno, “ela repetia com franqueza que havia vivido como fracasso ter-se visto obrigada a consultar”, e finaliza prematuramente o tratamento. 2 Inclusive em seu último livro (1999) cita como exemplo aspectos da vida do poeta A. Rimbaud, que estava “habitado” por um “visitante do eu”, ou seja, uma identificação com uma figura de seu passado (nesse caso, seu pai), que o haveria levado a produzir uma mudança importante em sua vida, repetindo o vivido em relação ao abandono paterno. 3 Não nego que sempre dependerá da inscrição subjetiva do sintoma no psiquismo dos pais, já que qualquer situação sintomática pode congregar a ideia do sinistro. Entretanto, sustento que é algo mais observável no transtorno do sono, pelos motivos que logo detalharei. 297 VÍctor Guerra Para tentar dar conta do caminho que foram tomando essas hipóteses, apelarei a duas ordens de experiência: 1) o campo da clínica, no qual tratarei de exemplificar como surgem tais vivências na relação dos pais com seus filhos, 2) o aporte da cultura e da arte, que nos permite apreciar, desde outra perspectiva, a significação possível que encontramos na experiência humana, relacionada com a noite e com o sinistro. 2 Vinheta Clínica Trata-se de uma mãe que consulta por seu bebê de oito meses, primeiro filho, que apresentou transtornos do sono quase desde o início de sua vida. A consulta é realizada com muitas dúvidas, já que ambos entendiam, ela e seu esposo, que o filho era pequeno demais para andar em consultas com psicólogos. O pediatra havia sugerido a possibilidade de medicar o bebê, porém os pais não estavam de acordo. Leram o livro Dorme, filho e o colocaram em prática por dois ou três dias, porém, isso levou a um aumento da angústia, já que, no primeiro dia, o bebê chorou mais de meia hora sem parar, gerando extremo mal-estar. Em vista de seu desespero e pela recomendação de uma amiga, decidiram realizar uma consulta. Fui chamado por telefone pela mãe, que me perguntou se era possível ter uma consulta sobre esse problema. Respondi que sim, e ela interrogou-me sobre se deveria ir com o bebê. Disse que preferia que o decidissem eles. Comparecem sozinhos, são um casal de cerca de 30 anos. Parecem nervosos, e dá a impressão, pela postura e forma de sentar-se, que a mãe é quem toma as iniciativas. Ante minha proposta de escutá-los, começam falando diretamente do tema do sono e é a mãe, a princípio, quem se espraia mais a respeito4. É algo que não sei, não podemos entender, é totalmente diferente do que havia pensado... a princípio, tudo ia bem, era um amor, comia e dormia bem... porém, foram passando os dias e não sei... passou a ter dificuldade para dormir, se acordava... Porém, de dia, passava bem... e assim, de noite, começou a despertar de três a quatro vezes... era um 4 O pai tem, nesse momento, uma participação passiva e concorda gestualmente com o proposto pela mãe. Esclareço que o que segue é um resumo do que foi colocado na primeira entrevista. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 298 verdadeiro inferno e, agora, chora e reclama todos os dias! E não sei o que fazer... um inferno e é como se fosse um demônio, pobrezinho, porque depois, de dia, é um anjo, de estar no colo e reclamar... porém, um anjo... eu me sinto tão má de pensar isso de meu filho... porém, na verdade, é como uma tortura... um pesadelo... insuportável, nós temos que dormir, fico com sono o dia todo, como se não tivesse descanso, é como um esgotamento mental também... tu ficas como confundida, já não sabes nada, nem o que fazer... e, ao final, o levamos para a cama. Até aqui, relato o caso e quero remarcar como essa breve vinheta condensa toda uma gama de vivências e significados que se repetiram em minha experiência no campo da interação pais-bebê, razão pela qual o trago como exemplo paradigmático dessas situações. Entre as múltiplas hipóteses que se podem desenvolver, desejaria hierarquizar o plano dinâmico em torno da conflitiva que emerge nesse caso “na” mãe. Observamos a emergência de dúvidas sobre a consulta, um núcleo conflitivo em torno do desconhecimento, o desamparo que gera nela a situação, a perda de certezas, a transformação da imagem do filho, a polaridade com que é vivida a trama representacional, o questionamento da imagem de si mesma como mãe e a culpa conseguinte, a ideia do filho e da situação como pesadelo, que contrasta com o “anjo diurno” e desarticula a possibilidade de pensar. Reitero, então, que, nessa dualidade pulsional, em que na noite passa a ser outra coisa, um inferno, algo desconhecido, algo sinistro, marcando, nesses casos de insônias primárias, a qualidade de algo quase enlouquecedor, que convoca especularmente nos pais algo desconhecido de si mesmos. Seria essa situação o que é vivenciado como disruptor, pesadélico, pelo que sustento a ideia de que o transtorno do sono do bebê cobra o estatuto de um pesadelo na vida psíquica dos pais e que é nesse sentido que o levá-lo à cama seria um movimento defensivo para evitar que eles experimentem a sensação do sinistro em relação ao filho e a si mesmos como pais. Tomarei essa ideia e tratarei de segui-la, valendo-me de alguns exemplos da literatura e da reflexão sobre esses conceitos, a partir da psicanálise. Uma pergunta guiou minhas reflexões: que angústias (e que prazeres) convocam a noite e o sono no ser humano? 299 VÍctor Guerra 3 Borges e o Sonho Borges (1990), em uma conferência sobre “o sonho e a poesia”, fala do sonho como um momento de “eclipse da razão” e marca isso em especial relação com o pesadelo (o interessante do assunto é que, muitas vezes, os pais falam do transtorno do sono do filho como um pesadelo) e faz uma comparação, em diferentes línguas, sobre as palavras que o designam. Por exemplo, cita que em francês se denomina cauchemar, em inglês, nightmare, que literalmente significaria “égua da noite” (como o denomina Shakespeare), e Victor Hugo, ao falar do pesadelo em Les contemplation, chama o pesadelo “le cheval noir de la nuit”: “o cavalo negro da noite”. Para Borges, “nightmare” significou originalmente “fábula da noite”, já que o pesadelo é uma ficção das horas da noite, ou, se não, “demônio da noite”, e, em alemão, a palavra alp corresponde a um modo antigo de dizer elfo, isto é, tudo equivaleria à ideia de demônio, do súcubo. Em grego, a palavra é muito linda também: “ephialtes”, que é o demônio que causa o pesadelo. Entende-se que esse demônio se deita, oprime o ventre de quem está dormindo e lhe dá o pesadelo – de modo que teríamos uma ideia parecida: nightmare, alp e ephialtes, todas ligadas à figura do demônio. Esse trânsito em Borges, que marca a relação entre o pesadelo, o noturno e o demoníaco, tem múltiplas vertentes de reflexão que não retomaremos. Apenas pensar a correlação com a sexualidade pela condição de pressão do ventre e, por sua vez, com o arriscado, o perigoso do demônio que ataca a “razão” (eclipsada) como o reino do inconsciente que emerge, pondo em risco o equilíbrio do sujeito5. Creio que estamos localizados sob a órbita plena da significação sexual (freudiana) do pesadelo. Até aqui, Borges e a palavra. A partir de uma perspectiva plástica, encontramos que o pintor alemão J. H. Füsli, que se formou em parte em relação com os artistas alemães do “Stum un Drang”, realiza uma pintura, em 1971, chamada O pesadelo, onde aparece plasmada a situação que descreve Borges em sua confe5 Como assinalou especialmente L. de Urubey em seu livro Freud et le Diable. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 300 rência. Nessa obra, aparece uma mulher adormecida e sentada sobre seu corpo e se observa um demônio que a observa de forma lasciva. Porém, atrás, emerge, a partir da escuridão, um cavalo com sua boca aberta e com um gesto violento. W. Vaughan (1995) assinala que Füsli não pretende tanto ilustrar um sonho, mas representar as sensações de terror e sufocante opressão experimentadas em um pesadelo. Sustenta, ademais, que o pintor, nesse momento, estava mais interessado pelo erotismo do que pelo irracional6. A conotação sexual do pesadelo pode pensar-se também como um elemento presente na época, já que se colocava que: [...] os pesadelos das jovens frequentemente são, como o Dr. J. Bond observou em 1753, induzidas por “um copioso fluxo de menstruação”. Tais sonhos sugeridos, tanto pela pressão no peito como pela posição supina da adormecida são, em geral, acerca de uma violenta agressão sexual... algumas vezes, se descreveu que o opressor aparecia na forma de um corcel fogoso (cheval noir de la nuit). Nessa situação, sustento a hipótese de que estamos imersos numa experiência pautada pela força do pulsional, que pressiona, insiste e fustiga a adormecida. 6 Ressaltado do autor, marcando especialmente esse ponto, já que creio que indica uma distinção em torno do pesadelo. Predomina o sexual ou algo mais arcaico – por exemplo, da ordem dos significantes arcaicos (significantes formais) descritos por B. Golxe, C. Bursztein e D. Anzieu. 301 VÍctor Guerra De volta ao terreno da interação pais-bebê e ao transtorno do sono, acredito que essa dinâmica se põe em jogo em alguns casos, porém, em outros, prevalecem aspectos mais arcaicos. Muito sumariamente e como introdução ao tema, proporei a hipótese sobre três tipos diferentes de situações que envolvem o transtorno do sono: 1) Onde emerge tal sintoma em forma solapada, a partir do meu pedido na consulta7 de que me relatassem alguns aspectos da vida da criança. Então, às vezes, sem aparente preocupação e, muitas vezes, com um sorriso na boca, os pais (a mãe) comentam que seu filho dorme na cama deles praticamente desde o princípio e que pensam em “trocar a cama por uma de três lugares”. Em muitos desses casos, esse aspecto de negação do sintoma do filho está sustentado a partir da posição na qual o bebê parece cumprir um rol de interditor edípico (cama de três lugares), ao mesmo tempo, dando expressão ao anelo incestuoso, interferindo na intimidade e na sexualidade parental. Esses pais, com essa atitude de complacência, não se encontram expostos à “luta” que implica o sono do bebê e postergam o enfrentamento com sua ambivalência. 2) Em outros casos, não alcançam tal protagonismo esses aspectos, mas entram em jogo os ideais parentais, sobre o que deveriam aportar afetivamente, e aparece a necessidade de “tapar” as culpas pela separação do filho nos casos em que os pais – ou, mais pontualmente, a mãe – se encontram ausente do lar durante muitas horas. Dessa maneira, “trazer” a criança à cama seria uma forma de compensar a ausência no dia. 3) Porém, em outras situações, existe uma preocupação pelo sintoma do filho, vivido como uma dificuldade em sua autonomia e como empecilho ao descanso e retraimento narcisista próprio do sono. Emerge mais claramente a ambivalência, estão mais expostos a experimentar uma angústia mais arcaica, de tom persecutório, além da vivência de sinistro, como foi detalhado anteriormente na vinheta clínica. Assim, nos aproximamos à ideia do sintoma como pesadelo no psiquismo dos pais. Sustento que provavelmente esse sintoma (o transtorno do sono com ou sem pesadelos) tem muitas vezes um estatuto especial como sinto7 Consulta cujo motivo geralmente é de outra ordem, como transtornos de alimentação ou de esfíncteres, dificuldade com os limites, etc. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 302 ma8 por sua correlação com as possíveis significações que emergem por seu particular cenário: o sonho... e o sinistro. Esse aspecto do transtorno do sono, em relação com o pesadelo e o sinistro como eixo central de minhas reflexões, será abordado primeiro partindo das reflexões de Freud e indo aos aportes de Goya, Hoffmann e outros artistas românticos. 4 Freud, os Sonhos e o Sinistro Foi Freud, com sua obra A interpretação dos sonhos (1900), quem marcou uma baliza central na tentativa de dar ao onírico um sentido de expressão da alma humana. É um trabalho extraordinário, no qual tomou como ponto de partida a análise de seu mundo onírico e o dos pacientes. Foi um passo epistemológico, que permitiu seguir ampliando o edifício teórico psicanalítico, cujo pilar estriba na presença do inconsciente e do desejo. Sabemos que Freud detalhou o trabalho do sonho em diferentes mecanismos (condensação, deslocamento, figurabilidade e elaboração secundária) e o eixo do mesmo na expressão de um desejo infantil que toma os restos diurnos como elementos que permitem uma expressão do inconsciente. Freud retomou o tema do sonho ao longo de sua obra, a partir das características da análise e da interpretação dos mesmos como “via régia” do inconsciente, e creio que seria interessante desenvolver as correlações existentes entre a experiência onírica e o sinistro. Tal conceito é objeto de estudo em Freud, em 19199 – território ainda da primeira tópica e prelúdio da passagem à segunda tópica e ao estudo, por exemplo, do papel do superego e da pulsão de morte, através da compulsão à repetição, como temas que estão inundados nesse trabalho. Ali, Freud define inicialmente ao sinistro como “algo que pertence à ordem do terrorífico, do que excita e desperta angústia e horror. Realiza um rastreamento etimológico da palavra em alemão e em outros 8 Inclusive, muitas vezes, certas patologias que emergem mais adiante, na infância ou na adolescência (pacientes borderline, anorexias, desarmonias evolutivas, etc.), foram precedidas por transtornos do sono severos no início da vida. 9 Por motivos que desenvolverei mais adiante, prefiro traduzir o título do artigo como O sinistro e não como O ominoso, tal como traduzido pela editora Amorrortu. 303 VÍctor Guerra idiomas. O vocábulo que o designa em alemão: unheimlich, define algo sinistro, que deixou de ser familiar, conhecido. Dita palavra provém de heimlich, que significa familiar, doméstico, seguro. A partir, portanto, dos aportes freudianos, seria aquilo familiar que passa a ter um signo contrário, não-familiar, e é assim que se torna funesto. Dessa busca, vai surgindo a ideia de “noite sinistra... de algo alheio... estranho... inquietante... lúgubre... suspeito... de mau agouro... horrendo... demoníaco”. Nesse texto, Freud propõe uma série de situações que se tornam sinistras (unheimlich) em relação a diferentes vivências e sentidos, por exemplo: a) Certas formas de incerteza intelectual: “Algo dentro do qual a pessoa não se orienta”. b) “Tudo que está destinado a permanecer em segredo, oculto e que sai à luz”. c) “Aquilo que foi subtraído do conhecimento, o inconsciente”. d) Dúvidas sobre se um objeto ou uma pessoa é animada ou inanimada. e) Situações de confusão e de grande incerteza. f) O pensamento mágico, a magia. g) A onipotência de pensamento. h) A figura do duplo e o monstruoso. i) O nexo com a morte. j) A repetição não-deliberada. k) O complexo de castração10. 10 Neste trabalho, não vou desenvolver esses aspectos. Mais adiante, retomarei parcialmente alguns desses pontos. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 304 Ao dar continuidade às acepções do vocábulo, observamos que, em francês, a tradução nos traz o conceito de “inquiétante étrangeté” (inquietante estranheza), o que daria conta desse matiz de algo alheio ao conhecimento egoico, que afunda mais suas raízes no inconsciente. No entanto, se tomamos o significado em espanhol e apelamos ao dicionário etimológico (Corominas), ali encontramos a ideia de sinistro: “esquerdo”, até 1140, e logo: “funesto, infeliz” pelo mau agouro que o povo acreditava estar relacionado com a aparição de aves pela mão esquerda. Do latim, “sinister, sinistras, sinistrum”, alterado vulgarmente em “sinixter”, por influência do oposto “dexter”, “direito”. Dessa definição, há dois aspectos que chamam minha atenção e me refiro ao que “aparece pela esquerda” e o “mau agouro”. 5 O Sinistro, a Esquerda e o Mau Agouro Em relação a esse ponto, “o esquerdo” (sinistrum), apelaremos a alguns aportes da sociologia e da antropologia. R. Hertz (1990) assinala como nos maoríes pode-se observar, assim como em outros povos, uma espécie de “dualismo fundamental”, onde, por exemplo, em suas crenças, o lado direito representa algo cognoscível, relacionado com a vida, enquanto que o lado esquerdo é o “lado da morte” e da debilidade. Pelo lado direito e pela direita é por onde nos entram as influências favoráveis e vivificantes e, ao inverso, é pela esquerda que penetram no coração de nosso ser a morte e a miséria. Segundo essa cultura, uma mão esquerda excessivamente bem dotada e ágil é sinal de uma natureza contrária à ordem, de uma disposição perversa e demoníaca... tudo surdo é um bruxo possível, do qual se desconfia. Segundo Hertz, viria desde a Idade Média a ideia de que “a preponderância exclusiva de uma mão direita, a repugnância a pedir algo à esquerda, é o sinal de uma alma extraordinariamente inclinada ao divino, fechada a tudo o que é profano ou impuro, tal como os santos cristãos que, desde o berço, levavam a piedade até o ponto de rejeitar o seio esquerdo da mãe”. 305 VÍctor Guerra Essa dicotomia entre o direito “são” e o esquerdo como “insano”, “demoníaco”, também se observa em outras culturas, como as tribos do baixo Níger, as tribos australianas dos wulwanga, os zunhis, etc. – observação também repetida entre algumas religiões, por exemplo, na religião católica. Na representação do juízo final, a mão direita levantada do senhor indica aos elegidos a sublime morada, enquanto que a mão esquerda, baixa, mostra aos condenados as monstruosas bocas abertas do inferno, preparadas para tragá-los. Assim como a ideia em torno da origem do homem de que Deus tomou, para formar a Eva, uma das costelas esquerdas de Adão, pois uma mesma essência caracteriza a mulher e a metade esquerda do corpo, que, na Idade Média, foi fundamentalmente relacionada com a tentação da sexualidade e o diabólico através da perseguição e da caça às bruxas. No entanto, também a mitologia das bruxas implica que estão amparadas pela obscuridade da noite e pelas “aves de mau agouro”. Os animais alados de mau agouro são representados por morcegos, corujas, corvos, etc. O dicionário de símbolos informa que a coruja mantém um conteúdo simbólico ambivalente. Por um lado, são dotadas de um olhar sábio e expectante, reflexivo e cavilador, e capazes de ver na escuridão. Por outro lado, na crença popular, a coruja desempenha um papel negativo por seu gênero de vida noturno, sua antissociabilidade, seu voo silencioso e sua voz lastimosa (ave de mau agouro) quando atacam. Em diferentes culturas, por sua qualidade noturna, foi associada ao demônio e às forças do mal. O morcego é um animal tipicamente sinistro em relação aos seus hábitos noturnos e por sua qualidade de chupar sangue-vida. Por outro lado, o Diabo, como anjo caído, está dotado na arte das asas de morcego, já que ele, como o mencionado animal, teme a luz (da razão). Por exemplo, entre os gregos, na Odisseia, se descrevem as almas dos mortos esvoaçando e piando como morcegos. Na Idade Média, inclusive nos mitos populares, se sustentava que esse animal tinha a qualidade de tirar, incorporar a doença do corpo do paciente e atraí-la para o seu. As aves de mau agouro, com figura noturna e sinistra “nos levarão” a outra forma de expressão artística: as pinturas de Goya. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 306 6 Goya e o Sonho Por que apelar, neste momento, a Goya? Entre outras coisas, porque, em algumas de suas obras, creio que se condensam esses dois aspectos que me interessam: o sonho e o sinistro. Miguel Cortés (1997), em seu livro Ordem e caos: um estudo cultural sobre o monstruoso na arte, dedica parte de seu trabalho a estudar o monstruoso no interior da mente e afirma: “O monstruoso surge no interior da mente: de Goya e Hoffmann a Freud”. Também assinala que “cada época, cada povo, cada classe e cada grupo social têm um diabo, o vivem, o evocam, o vencem, o imolam e o ressuscitam para matá-lo novamente”. Cita as obras do último período da vida de Goya (a partir de sua doença, em 1792). O artista abandona seu mundo ordenado e apacível dos cartões para tapetes (assunto e estilo impostos pelo gosto cortesão) e desenvolve em seus quadros umas cenas inéditas e obsessionantes, povoadas de estranhas figuras deformadas. Com Goya, nos assomamos aos abismos da miserável condição do homem, descobrimos que a conduta denominada desumana é, profunda e irremediavelmente, humana. Como dissera Charles Baudelaire em 1857: “O mérito principal de Goya consiste em sua habilidade para criar monstros críveis e tangíveis. Seus monstros são possíveis, têm as proporções adequadas. Ninguém se arriscou tanto no caminho da realidade grotesca. Todas essas contorções, caras bestiais e caretas diabólicas são profundamente humanas... Em uma palavra, é difícil precisar o ponto em que a realidade e a fantasia se confundem”. Em 6 de fevereiro de 1799, Goya anuncia no Diário de Madri a produção de uma série de 80 estampas (cujo desenho inicial é um autorretrato), que denominou “coleção de estampas, de assuntos caprichosos, inventadas e gravadas na água forte”. Explica que propôs nelas a censura dos erros e vícios humanos, que, até então, havia sido o objeto peculiar da poesia ou da eloquência. Por assuntos caprichosos, Goya se referia aos inventados pela fantasia, ou seja, pelo capricho e não copiados nem da natureza, nem de outras obras. “O caprichoso em relação à pintura seria o feito pela força do engenho, mais do que pela observação das regras da arte” (HELMAN, 1983). 307 VÍctor Guerra No entanto, apelando ao dicionário etimológico, encontramos que: Capricho: desejo, 1548-51. Do italiano capriccio: “ideia nova e estranha em uma obra de arte, “desejo” no século XVI. Em torno do século XII, antigamente: “Horripilação, calafrio”, que também tinha a forma “caporiccio” (século XVI), contração de: “capo”: cabeça e o adjetivo “riccio” (da mesma origem e significado que no castelhano “erizado” e no português, “eriçado”). Vemos, então, como aqui também se conjuga algo da ordem do irracional, que contravém o racionalmente seguro e gera calafrios, seguramente no sentido de algo descontrolado, surpresivo, horripilante. Porém, a série dos “Caprichos” havia sido anteriormente, em 1797, projetada pelo autor como uma coleção de setenta e duas pranchas, que contava com uma fachada diferente, já que seria o esboço do capricho número 43: “O sonho da razão produz monstros”, porém com uma inscrição diferente, tal nos fala da importância dessa obra nessa série. Pessoalmente, creio que está em relação ao peso do “noturno”, como fonte de angústia e de criação para Goya. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 308 7 O Sonho da Razão Produz Monstros Essa obra conformou-se com uma série de três esboços: 1) O primeiro esboço: De 1797; em tinta sépia, aparece um homem dormindo, sentado frente a uma mesa de escritório, e rodeiam ao homem uma multidão de “monstros”, entre os quais se “desenham” uma série de rostos desencaixados, e um deles parece o rosto mesmo do pintor. Do lado esquerdo do personagem, emergem animais alados, morcegos enormes com uma tonalidade sombria. 2) O segundo esboço: Datado também de 1797, tem algumas características similares e outras diferentes em relação ao anterior. O homem está quase na mesma posição, porém tem a cabeça mais afundada entre os braços e o cabelo, não tem o ar “leonino” do anterior, ainda que sua vestimenta seja a mesma. Em cima dele (do lado direito), aparece um espaço semicircular, de tom branco, e, do lado esquerdo, voltam a emergir animais alados, monstruosos: morcegos de grande tamanho, corujas e um lince com um olhar penetrante e atento. Sobre a parte visível do escritório, se lê uma frase que diz: “Idioma universal. Desenhado e gravado por Francisco de Goya, ano 1797”. 309 VÍctor Guerra 3) A terceira produção, intitulada também O sonho da razão produz monstros, foi realizada e publicada a princípios de 1799. Nela, o pintor está localizado na mesma posição em que a anterior; desapareceu o círculo claro da direita e dá a aparência de que uma luz tênue banha o protagonista e o monstro mais próximo a ele: quatro corujas (uma delas com um pincel na mão) e o lince que observa alerta a situação. Mais atrás, e tomada pela escuridão, se vê uma espécie de “legião” de morcegos e corujas que se aproximam (perigosamente?) pela esquerda, no sentido do pintor. O comentário de Goya a essa obra é o seguinte: “A fantasia abandonada da razão produz monstros impossíveis; unida com ela, é mãe das artes e origem das maravilhas” (STOICHITA; CODERCH, 2000). Esse comentário deixa abertos múltiplos jogos de sentido, por exemplo, pela inter-relação entre a fantasia e a razão como jogo de figurações do que poderíamos denominar processo primário e secundário. Por outro lado, pode evocar-nos o papel da sublimação, que afunda suas raízes nas pulsões parciais, como o assinalara Freud. Por outro lado, isso nos fala também de uma verdade do sujeito que emerge desde seu inconsciente, porém que, sem um processo de ligação e articulação, pode cair no lugar do “monstruoso impossível”, como metáfora da loucura? Ou, talvez, de uma verdade subjetiva, violenta sim, mas verdade no fim das contas? Em relação a isso, quero retomar o poema que usei como epígrafe, que é parte da obra de C. Mislosz (apud PAZ, 2000), que, no fim do seu poema Carta a Raja Rao (onde aparece um questionamento pessoal sobre o conhecimento de si mesmo, sobre quem é ele e o que busca), assinala: Não, Raja, eu devo começar a partir do que sou. Sou os monstros que habitam meus sonhos, os monstros que me ensinam quem eu sou De volta a Goya e seus “monstros noturnos”, R. Baroja (SANTOS TORROELA, 1992) se pergunta: Mas quem é o homem de cara quase quadrada, de nariz chata, de boca grande, que se disfarça com hábito de frade, de bandoleiro... Quem é o que às vezes muda de sexo e se envolve com os farrapos da men- Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 310 diga ou na mortalha de uma bruxa e passa pelo ar montada na vassoura ou recolhendo-se a saia, com ambas as mãos cruzadas sob os joelhos, e voa entre morcegos e aves de mau agouro11? Pois nada menos que Don Francisco de Goya y Lucienestes, pintor de câmara de Vossa Majestade Católica. Diz Leonardo Da Vinci que, quando o artista desenha de memória uma figura, tende a realizar seu autorretrato. Goya demonstra melhor que ninguém o acerto da afirmação de Leonardo. Vemos como essa passagem alude à qualidade projetiva da obra de arte, na qual uma dimensão do produzido diz respeito ao sujeito que a realiza, mesmo que não necessariamente a obra deva ser uma forma de leitura autobiográfica ou um fiel retrato de sua condição psíquica. Mais precisamente, pode pensar-se como um retrato das complexidades da alma humana. Entretanto, deliberadamente, marquei no texto o voo entre morcegos e aves de mau agouro, porque tento relacioná-lo com o que já assinalara sobre o sinistro. Marca a relação da pintura com esse aspecto, em uma inter-relação dos sonhos e algumas de suas características, com o enigmático, misterioso e “não-familiar” do psiquismo inconsciente. Mesmo que a obra de Goya nos convide a seguir pensando em outros aspectos, desejo limitar-me a pontuar a forma como se inscreve a relação entre a noite, os sonhos, o monstruoso (sinistro como expressão do inconsciente). Em relação a esse aspecto, diferentes autores assinalam como o conceito do sinistro marca a influência do Romantismo no pensamento freudiano. Ademais, justamente o conto que serviu de inspiração a Freud para formular o conceito, O homem de areia foi realizado por E. T. Hoffmann, um escritor tipicamente romântico. A propósito, quero referir-me brevemente à gestação do movimento romântico e sua relação com o inconsciente e o “noturno”. 8 O Homem de Areia, os Românticos e o Inconsciente O homem de areia foi escrito por Hoffmann em 1815. Nesse conto (do qual tomarei apenas uma parte), descrevem-se as peripécias de Nathaniel, 11 Grifo do autor. 311 VÍctor Guerra sua loucura, seu trágico fim e a correlação de sua “insanidade” em relação a vivências infantis. Entre elas, descreve-se a relação com o “homem de areia”, figura temível, que aparecia nas noites para encontrar-se com seu pai, aparentemente para fazer experimentos com a alquimia. A empregada lhes dizia: “É um homem mau que busca as crianças quando não querem dormir na cama e lhes atira punhados de areia nos olhos, até que estes, banhados em sangue, saltam da cabeça e depois os mete em uma bolsa e, nas noites de quarto crescente, os leva para dar de comer aos seus filhinhos, que estão no ninho e têm uns biquinhos curvos, como as corujas; com eles, picotam os olhos das criaturas que se portam mal”. Uma noite, Nathaniel se desliza ao quarto do pai e é surpreendido por Coppelius (o homem da areia), que afirma que vai matá-lo ou retirarlhe os olhos. Ali parece ficar instalado um “germe de loucura e terror” no pequeno Nathaniel. O conto depois narra a vida dele, a relação com sua noiva Clara e com o personagem diabólico Coppelius, que, depois, tomaria a identidade de Coppola; assim como seu doentio enamoramento por Olímpia, uma boneca de escala humana, onde Hoffmann plasma a temática do duplo. De todos esses aspectos, nesta oportunidade, tomarei unicamente a relação com o noturno, o sinistro e o castigo das crianças que não querem dormir para “ver” o que se passa à noite na cama dos pais12. Podemos apreciar como aparecem também as aves de mau agouro, figuradas nos filhos com bico de coruja, o papel da noite e a lua. Esses aspectos são prototípicos da estética romântica, da qual fazia parte Hoffmann (e, como veremos depois, Freud). Parece de suma importância para essas hipóteses desenvolver brevemente as características do Romantismo em relação com o noturno, o inconsciente e o sinistro. 9 O Romantismo A palavra romântico parte da antiga palavra francesa “romanz” (derivada da expressão vulgar “língua romana”) como designação genérica da poe12 Território, por uma parte da sexualidade infantil e da angústia de castração como castigo, mas também dos aspectos arcaicos através das figuras do duplo como construção narcisista. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 312 sia provençal e do adjetivo inglês “romantick”, derivado de romanticus, que compreendia os mais diversos âmbitos (por exemplo, a paisagem), ambos conceitos, em sua colaboração anticlassicista. Marcou-se, assim, uma ruptura com valores normativos, orientados à Antiguidade. Tal pode ser apreciado em parte do discurso que proferiu Sir Joshua Reynolds, presidente da Royal Academy de Londres, em 1722, que advertia aos estudantes: Se vos propondes a preservar a beleza mais perfeita em seu estado mais perfeito, não podeis expressar as paixões, todas as quais produzem distorção e deformação, mais ou menos, nos rostos mais belos... Não necessitamos mortificar-nos nem desanimarmo-nos por não ser capazes de levar a cabo as concepções de uma imaginação romântica (VAUGHAN, 1995). Havia, no movimento romântico, uma repulsa de: [...] uma razão todo-poderosa, socialmente garantida, abrindo ao indivíduo novos espaços, a saber, o próprio interior, e o espaço de fuga da natureza. Assim como a nostalgia de uma unidade perdida, determinava a interioridade do sujeito, tanto como seu espaço de reflexão, a paisagem romântica13. Segundo S. Matuschek (1998), o Romantismo marcou o começo da moderna problemática do sujeito. A partir do ponto de vista de uma história da mentalidade, tal pressupõe o descobrimento, no século XVIII, da sensibilidade. Um livro publicado na França por Madame de Staël, intitulado Da Alemanha, funcionou como porta de entrada do romantismo na Europa, marcando, ademais, um aspecto importante: o redescobrimento da Idade Média. Por exemplo, o primeiro capítulo aponta a importância das construções góticas e assinala: “Os monumentos góticos são os únicos interessantes na Alemanha, esses monumentos recordam os séculos da cavalaria”. Além disso, assinala: “O nome de romântico foi introduzido recentemente na Alemanha para designar a poesia cuja origem tem sido os cantos dos trovadores, a poesia que nasceu da cavalaria e do cristia13 Destacado pelo autor, para mostrar como isso pode correlacionar-se – a partir da Psicanálise – com a tentativa de acesso ao inconsciente e o valor da perda do objeto. 313 VÍctor Guerra nismo”. Porém, esse ressurgir do passado aponta, mais do que ao fato histórico, a importância da sensibilidade e da imaginação. Matuschek (1998) cita, por exemplo, que uma obra de F. de la Motte Fouqué, Undine (1811), é uma das peças mais populares da época do renascimento romântico da Idade Média. Assinala que ali se desenvolve uma história de amor entre uma dama e um cavaleiro, em uma cenografia medieval, onde aparecem castelos cavaleirescos, bosques encantados e espíritos que dão forma à expressão do maravilhoso, costurado em um drama com debruns emocionais e eróticos. Ao estímulo externo do colorido, agrega-se, assim, o estímulo interior de uma psicologia sexual sugestiva, irracional. A Idade Média fabulosa se transforma em um espaço de projeção daquela. Com música de E. T. Hoffmann14 e decorações de Karl Friederich Schinkel, dessa narração saiu a Ópera mágica, Undine, estreada com grande êxito em 1816. Para tomar outro exemplo da época, nos encontramos com a novela Enrique de Iofterdingen, de 1802, de Novalis, onde se descreve uma época melancólica e romântica (similar à Idade Média): “Quem não gosta de caminhar no crepúsculo, quando a noite quebra a luz e a luz da noite em mil formas e cores? Do mesmo modo, afundemo-nos de boa vontade nos anos nos quais viveu Enrique”. Vemos como a Idade Média aqui não é uma época histórica, mas uma ideia. Extraio esses exemplos para mostrar a atmosfera na qual estava envolvido Hoffmann (que, como vimos, realizou a música da obra assinalada) e pela importância de três aspectos que, depois, influenciaram a Freud e a psicanálise. São eles: 1) O papel das polaridades (luz-obscuridade, dia-noite, presente-passado). 2) O papel da regressão: “[...] afundemo-nos, incursionemos pelo passado, que ali encontraremos as raízes de nossa sensibilidade, de nossos sentimentos”. 14 Hoffmann, além de escritor, foi um músico de certa relevância em sua época. Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 314 3) O papel da regressão em relação à noite (e ao sonho) como forma de prazer e de criatividade. Nesse sentido é que T. Bedó e I. Maggi afirmam que “o romântico exalta a noção de indivíduo, sua unicidade e originalidade, o homem que poderia empatizar com a natureza e com outros homens, com uma rica vida interna, com a convicção no poder da inspiração, intuição e espontaneidade”. Como M. e H. Vermorel (1985) se perguntam: “Freud seria então um romântico por uma impregnação cultural, um conhecimento e uma inclinação pessoais que equilibrariam sua orientação materialista?”. Assinalam, ademais, que, entre os autores citados ao longo de sua obra, os que mais citações possuem são os de estirpe romântica, como Schiller, Goethe, Hoffmann, Richter, Schelling. Além disso, o peso da temática onírica estabeleceu uma ponte entre Freud e os românticos, conforme Novalis: “Pois, na literatura romântica, totalmente dedicada aos movimentos ocultos da alma, o sonho ocupa um lugar central (...) O sonho é um desgarramento significativo no misterioso telão cujas mil pregas caem bem no fundo de nós”. 10 Significações do Transtorno do Sono Ao retomar minha tentativa de articulação entre o sonho e o sinistro, acredito que é importante recordar que uma das definições que traz Freud está em relação com uma incerteza racional e engloba determinados exemplos, nos quais se dariam situações que rompem com os códigos racionais do sujeito, por exemplo, em relação com a compulsão à repetição e o “eterno retorno do igual”. Creio que não foi em vão que Freud o prefigurou, em 1919, como uma forma de expressão da pulsão de morte, como oposto à pulsão de vida, cuja função é produzir ligações maiores. Ao tomar esses aspectos, penso nos aportes de A. Green (1990), quando privilegia uma pulsão desagregadora, em vez de pulsão de morte, como uma falha na agregação, na ligação dos conteúdos psíquicos. Ocorre-me que o eterno retorno do igual implica uma detenção radical do processo de crescimento mental, como forma de ligação das representações (ou, como diz D. Ribas, de “intrincação”). Dita “detenção” seria vivenciada pelo sujeito como algo sinistro (e seria uma das formas nas quais se expressa 315 VÍctor Guerra essa vivência). O que ocorre, então, quando um bebê se desperta, noite após noite, repetidamente, impedindo a continuidade do sono dos pais? Creio que já uma resposta possível emerja da vinheta que ilustra este trabalho: é vivido como um pesadelo. Porém, nesses casos, sustento que (para os pais) quem exerce a função pesadélica é o bebê. E, retomando o que foi afirmado em relação a Goya e parafraseando-o, diríamos que agora “a falta de sonhos produz monstros”, e os pais, ante o desamparo da noite e da falta de ligação, veem emergir, não tanto a partir da esquerda, mas deles mesmos, a vivência do sinistro. 11 O Transtorno do Sono como Pesadelo Quero, agora, retomar uma hipótese proposta por Golse (1994) em relação aos pesadelos. O autor sustenta que, além de outras funções que pode ter no sujeito o sonhar: [...] na atividade onírica se repete, se reexperimenta cada noite, uma das etapas centrais da ontogênese do aparelho psíquico, a saber: o processo de ligação, de passagem dos processos originários (conforme proposto por Piera Aulagnier) aos processos primários, ou seja, a organização e a elaboração dos primeiros significantes em representações fantasmáticas mais sofisticadas15. Assim, afirma que certos pesadelos “testemunham o fracasso parcial ou total desse trabalho de repetição, no sentido teatral do termo, dos processos de ligação e de tradução dos significantes arcaicos. Mais precisamente, marcaria um fracasso na repressão de ditos significantes, gerando-se uma forma de enigma ou de espanto16, face à interiorização de uma função alfa falha”. Pessoalmente, tomaria essas reflexões no sentido de que o transtorno do sono (no bebê e na família) frearia esse trabalho de tradução, ligação, que provavelmente, pela regressão própria da “revolução do pós parto”, assi- 15 Tradução do autor. Significativamente, o termo em francês é “effroi” e estaria relacionado com “effrayant” – espantoso, pavoroso – e com “effraie”: coruja (ave de mau agouro). 16 Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 316 nalada por Cramer (1993), poderia encontrar-se incrementada. Poderíamos pensar que é em relação a isso também que surgiria a sensação do sinistro? Nesse sentido, uma mãe dizia que (o problema do despertar-se reiteradamente) era uma questão de necessidade de descanso, que “era insuportável, porque não podia descansar a cabeça, eu ficava embotada todo o resto do dia, não sei, não posso explicá-lo com palavras, como estar no ar e te vêm como sonhos à cabeça”. Penso que, nessas situações, não ficaríamos localizados em uma possível significação do sintoma do bebê (na família) em um plano sexual (o bebê como interditor edípico e, por sua vez, como objeto de prazer com quem “se compartilha a cama”), mas, como já assinalei, cobraria primazia o levar à cama o bebê como uma defesa dos pais para salvaguardar seu psiquismo e assegurar-se um descanso (e a atividade mental própria do onírico) e evitar experimentar a vivência do sinistro em relação a si mesmos como pais e em relação ao seu filho. 12 Os Significantes Formais Estaríamos nos localizando talvez em uma experiência similar a que descreve Anzieu (1990), quando fala dos pacientes que experimentam a vivência do que chama: “significantes formais”, como forma muito rudimentar de experiência psíquica, que emerge, por exemplo, em certas situações de pesadelos? É importante assinalar que, para esse autor, o significante formal tem uma estrutura diferente do fantasma. A sequência cênica fantasmática, característica da neurose, está construída sobre o modelo da frase com as seguintes características: a) É posterior ou contemporânea à aquisição da linguagem. b) Inclui um sujeito, um verbo, um complemento de objeto. c) O sujeito e o objeto são pessoas (ou animais). d) Pode-se agregar um espectador da ação. 317 VÍctor Guerra e) A ação, em geral, se desenvolve em um espaço tridimensional. f) O investimento pulsional se compõe de sexualidade e de agressividade. Ao contrário, os significantes formais: a) Estão constituídos por imagens propioceptivas, táteis, cenestésicas, etc. b) Sua colocação em palavras parece problemática, limita-se, às vezes, a um sujeito e um verbo, em geral, reflexivo. c) O sujeito é uma forma isolada ou um pedaço de corpo, não uma pessoa inteira. d) Não se trata de uma cena, mas de uma transformação de uma característica do objeto ou do corpo, que traz implícita uma deformação e uma possível destruição. e) A transformação se desenvolve sem espectador e tem um ar de alheidade. f) Desenvolve-se em um espaço bidimensional. g) Dá-se uma certa confusão dentro-fora. Segundo Anzieu, alguns exemplos de ditas vivências podem descrever-se como segue: “Um apoio cede,17 um volume se achata, uma borbulha se fecha sobre si mesma, um buraco aspira, um corpo líquido se esparrama, um corpo gasoso explode, um objeto se aproxima e me persegue, um objeto que se distancia me abandona, etc.”. O autor assinala que, seguindo o proposto por Freud em 1900, acerca do sonho: “Não apenas se produz no aparelho psíquico um movimento regrediente, desde o extremo motor ao extremo perceptivo, mas que essa regressão tópica se acompanha de um estado crepuscular, intermediário entre a vigília e o dormir. Amiúde, o significante formal é vivido pelo 17 Recordemos que a mãe da vinheta nominava a situação como “um pesadelo... insuportável” (in-suportável: sem suporte, sem sustentação, sem apoio). Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010 318 paciente como um sonho particularmente angustioso, como um pesadelo desperto”18 Sustento, portanto, que os pais, privados de sono por essa situação, poderiam experimentar no despertar reiterado a vivência psíquica de um ressurgir de ditos significantes formais, que os faz viver o transtorno como “um pesadelo desperto” como algo da ordem do sinistro. Essas reflexões visam marcar o estatuto especial que pode congregar o sintoma por si mesmo para o desenvolvimento do vínculo pais-filhos (mais além da sua possível etiologia) se acrescentaria essa particular (e possível) significação que tratei de transmitir neste texto19. Assim, poderia instalar-se uma circularidade negativa nesse eixo primário da constituição subjetiva como é o das interações precoces pais-bebê. Se parafraseamos parte do trabalhado, poderíamos dizer que, em certas situações, poderia configurar-se como um sintoma de “mau agouro” no desenvolvimento da criança. Referências ANZIEU, D. Los significantes formales y el yo piel. In: ______. Las envolturas psíquicas. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. BEDÓ, T.; MAGGI, I. A propósito de las contribuciones de Josef Breuer a los Estudios sobre la Histeria”. Revista de la Asociación Psicoanalítica Uruguaya, [19??]. BORGES, J. L. Arte poética. Barcelona: Critica, 2000. CORTÉS, J. 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Este trabalho recebeu o Prêmio “João Bosco Calábria de Oliveira”, para candidatos, durante o XX Congresso Brasileiro de Psicanálise. Brasília, 2005. Ane Marlise Port Rodrigues Psiquiatra de crianças, adolescentes e adultos. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Resumo: Através de uma aproximação com a mitologia sobre a Noite e seus filhos (o Sono e o Falecimento), a autora ressalta como angústias de morte ou de perda de controle podem invadir o sono e gerar distúrbios do sono na infância. São relatados alguns pesadelos em diferentes faixas etárias. Também é referido que a noite pode ser cenário de um ritual de passagem do adolescente para o mundo dos adultos, na busca da formação de casais. Finaliza com a fábula de Ceix e Alcíone e relaciona a formação do casal e a geração de bebês com a possibilidade de deixar junto o casal parental interno, seja dando prazer um ao outro, seja procriando ou descansando. Essa possibilidade é vista como favorecedora de menos barulho interno e como facilitadora do sono repousante. Palavras-chave: Adolescência. Infância. Morte. Pesadelos. Sono. 1 Introdução A maioria das crianças e adolescentes experimenta problemas de sono em algum momento de seu desenvolvimento, mesmo assim deve-se avaliar a persistência e o grau de prejuízo para si e para o ambiente. Problemas do sono podem ser fenômenos transitórios insignificantes ou ligados a patologias psíquicas ou orgânicas (apnéia obstrutiva, refluxo gastroesofágico etc.). Os distúrbios do sono em crianças eram vistos como manifestações do desenvolvimento neurofisiológico e considerava-se que haveria remis- A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 322 são com o crescimento. Isso não se comprovou inteiramente, pois fatores da criança (orgânicos, emocionais ligados à fase do desenvolvimento, emocionais ligados a distúrbios psiquiátricos), dos pais e do ambiente pesam no desenvolvimento do distúrbio do sono (HANDFORD; MATTISON; KALES, 1995). Não me deterei nas perturbações do sono ligadas a transtornos psiquiátricos (autismo, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, desordens afetivas, ansiedade, pânico, estresse pós-traumático, retardo mental, psicoses, drogas na adolescência). Também não enfatizarei perturbações do sono como o sonambulismo, o terror noturno, a enurese; nem tampouco, as alterações do sono na adolescência, quando fatores hormonais levam a modificações no ciclo sono/vigília. Mas será referido que a noite pode ser cenário de um ritual de passagem do adolescente para o mundo dos adultos na busca da formação de casais, bem como pretendo focar os pesadelos ao longo do desenvolvimento infantil. Os pesadelos são classificados como uma parassonia associada ao sono REM (Rapid Eye Movement) (ASDA, 1997). 2 Aspectos mitológicos e os pesadelos A Noite e seus filhos (MÉNARD, 1975): A Noite, mãe do Sono e do Falecimento, habita para além do país dos cimérios, onde o sol jamais ilumina com os seus raios... Nela os galos nunca anunciaram a volta da aurora. Os cães e os gansos que vigiam as casas nunca turbaram com os seus gritos o silêncio que reina eterno (p. 117). O Sono tem por atributo uma varinha com a qual adormece os mortais, ao tocá-Ios. São seus fIlhos os sonhos enganadores. Morfeu, rei dos sonhos, aparece, às vezes, na arte sob a forma de um ancião barbudo que segura uma papoula (p. 118). O Falecimento habita perto do Sono, seu irmão. O Sono é amigo dos mortais; passeia calmamente no meio deles, na Terra. Mas o Falecimento não conhece piedade e tem um coração de bronze. Nunca deixa o infeliz de que se apodera e inspira horror aos próprios deuses imortais. Coberto de uma veste negra, vai entre os homens, corta um anel de cabelos ao agonizante e consagra-o ao deus dos infernos; depois, bebe o sangue das vítimas imoladas à memória dos defuntos (p. 119). 323 Ane Marlise Port Rodrigues Os dois irmãos eram gêmeos e, frequentemente, representados juntos. A Morte, na Grécia, era do gênero masculino (gênio do repouso eterno), representada, em geral, como um adolescente nu e não tinha o caráter sinistro que lhe deu a Idade Média (p. 119). 3 Pesadelos: Como dormir com um barulho desses? Através da mitologia, podemos nos aproximar de determinados conteúdos presentes em fantasias inconscientes que tantas vezes assombram a noite. Seus filhos gêmeos – o sono e o falecimento – frequentemente se confundem na mente de quem dorme. A mãe, temerosa de que, enquanto ela própria estiver dormindo, seu bebê possa não estar mais respirando, vai até seu berço e o acorda. E ele pode seguir acordando em outras noites para tranquilizá-Ia e pode até estruturar um distúrbio do sono. Suas ansiedades de morte em relação ao bebê, ou seus temores por algum castigo temido, já não cabem mais dentro dela, escapam-lhe e habitam o sono do bebê. Quem sabe, alimentá-Io é mais seguro e assim podem ficar juntos. É tranquilizador. Levá-Io para a própria cama pode também acobertar a falta de desejo sexual do casal.O co-Ieito pode ir além da fase de bebê e é descrito, em nossa cultura, como fator que aumenta o risco de acordar à noite (HOBAN, 2004). A proximidade física não garante um apego seguro em relação à mãe. O apego inseguro é fonte de angústia para a criança, podendo interferir em sua capacidade de adormecer. Ritmos de sono REM e não-REM parecem determinados pela constituição, enquanto o ritmo acordar/dormir parece mais determinado pelo ambiente (DAWS, 1989). Os limites a partir dos pais e a instituição de hábitos ao dormir são fatores do ambiente que também interferem no sono. Não se pode isolar o que se passa durante o sono daquilo que se passa durante a vigília, pois o sono não é unicamente uma função neurofisiológica. A mãe é considerada uma verdadeira “guardiã” do sono de seu bebê, bem como o ambiente (MAZET; STOLERU, 1988). A evolução de um padrão de sono é precursor precoce do desenvolvimento do ego e produto da maturação biológica e da interação ambiental. Citando algumas importantes facetas do desenvolvimento inicial temos: a criança pequena que consegue iniciar o sono sem maiores problemas e A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 324 que, ao acordar, volta a dormir sem chamar os pais, atingiu um grande desenvolvimento psíquico que se relaciona com a possibilidade de usar objetos transicionais para dar conta da falta da mãe, dentro de um ambiente suficientemente bom (WINNICOTT, 1975); com a capacidade de rêverie materna (BION, 1988), quando, utilizando a função alfa da mente, a mãe ajuda o bebê a processar suas angústias; com a aquisição da constância de objeto por volta dos três anos (MAHLER, 1986), sinal de que avançou através das fases da separação – individuação bem apoiada pelos pais; com a função paterna, ou a Lei do Pai (LACAN, 1981), que pode exercer a interdição entre a mãe e o filho, aliviando angústias de indiferenciação e fusão. É referido que 60 a 70% dos bebês são capazes de autoacalmarem-se com um ano de idade (HANDFORD, MATTISON, KALES, 1995; LAMBERG, 2005). Alguns autores consideram o distúrbio do sono como característica do desenvolvimento entre 18 e 30 meses devido ao crescente reconhecimento em toda separação e da ausência da mãe (MAZET, STOLERU, 1988; HANDFORD et al., 1995; HOBAN, 2004). A ansiedade de separação leva à relutância em ir dormir; não ver a mãe é não ter a mãe. Sono e Falecimento novamente juntos. O escuro traz a noite, a vivência da separação, da solidão, do desamparo e do medo. Quantas vezes uma luzinha, mesmo tênue, aliviou o medo e a sensação de estar só e ajudou a criança pequena a dormir. Também temos a fase de controle esfincteriano, quando a criança pode ficar oposicionista e dizer não ao comando que pretendem ter sobre ela; tenta comandar seu sono ou sua hora de ir dormir. A luta pelo controle e pelo poder sobre si mesma e sobre o outro pode ter como cenário o momento de ir para a cama. Nessa época, o desenvolvimento cada vez maior da linguagem ajuda a aliviar a ansiedade e configura uma via mais simbólica de relação com os pais. Uma das tarefas da mãe é um trabalho de descorporalização na sua relação com o filho, inscrevendo-a num nível crescente de simbolização através da linguagem (GREEN, 1990). A depressão materna ou sua ansiedade excessiva, brigas conjugais ou outros fatores de estresse podem prejudicar o apoio seguro do qual a criança necessita. 325 Ane Marlise Port Rodrigues Dos 3 aos 6 anos, distúrbios leves e passageiros do sono são comuns devido às ansiedades da fase edípíca. De 10 a 50% das crianças de 3 a 5 anos têm pesadelos de intensidade suficiente para preocupar seus pais (APA, 1994). É referido que 57% das crianças entre 5 e 7 anos teriam pesadelos em algum momento (HOBAN, 2004). O adormecer pode tornar-se uma experiência apavorante para a criança, pois, além de separar-se da mãe e do pai, ficar no escuro é como ficar prisioneira de sua vida fantasmática e onírica (MAZET; STOLERU, 1988). Conflitos de amor e ódio em relação aos pais, irmãos e amigos, angústias com a masturbação, medo de perder o controle esfincteriano e angústias de castração podem levar aos pesadelos (ocorrem durante o sono REM). Ladrões e monstros, que, frequentemente, roubam ou tentam matar aquele que sonha ou algum representante de pais e irmãos, fazem com que a criança acorde por excesso de angústia e necessite, em geral, da presença dos pais para voltar a dormir. No entanto, quando André, aos 6 anos, começou a apresentar problemas de sono, custando a dormir devido a uma hipervigilância em relação a barulhos do vento que atribuía a ladrões e acordava com alguns pesadelos nos quais monstros queriam matá-Io, não deixei de sentir que nosso trabalho finalmente estava evoluindo para uma dimensão mais edípica, triangular. Nascido no interior do Rio Grande do Sul, a família mudara-se para Porto Alegre em busca de tratamento para o filho. Por três anos, vínhamos trabalhando em suas defesas quase autistas e num narcisismo de características malignas, que fazia com que, sistematicamente, ignorasse minha existência própria, separada dele. Desde a primeira sessão, tinha verdadeiros ataques de fúria à menor frustração, motivo pelo qual foi levado para tratamento antes de completar 3 anos. Já havíamos evoluído para o reconhecimento do outro, e, agora, a presença do terceiro aparecia com maior vigor. O atraso de linguagem estava bem melhor. “Tu é a minha marida”, dizia, quando se deu conta que eu era casada. Numa sessão de sexta-feira, brincávamos de jogar bolas de jornal um no outro – eram nossas bombas de cocô. Assim, eu ficaria bem fedorenta e suja, e meu marido não me quereria no fim de semana. “Mas eu vou querer”, dizia André, com ar maroto, e ambos começamos a rir. Depois de alguns meses, começou, novamente, a dormir bem, apesar das oscilações. Numa época em que a sexualidade da fase edípica deveria estar sendo alvo de maior repressão e sublimação, para preparar a entrada na latência, André está a pleno vapor. Isso nos sinaliza um atraso para estruturar a latência enquanto estado mental que dá conta das exigências escolares e sociais A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 326 (exigências exogâmicas que vão retirando da endogamia edípica) (URIBARRI, 1999). Marta, aos 7 anos, tem pesadelos com um lobisomem que quer devoráIa. Desde seu primeiro ano, enfrenta uma separação litigiosa entre os pais por sua guarda. A guarda está com a mãe, que se sente ameaçada pelo pai. A relação entre ambos é muito tensa e persecutória. Marta bate em colegas quando contrariada e não aceita limites na escola ou em casa. O que é isso que devora Marta? O litígio entre seus pais, em que é disputada vorazmente por eles? Sua oralidade, cuja intensidade não consegue controlar? Quando perde, enquanto jogamos, empaca e faz movimentos com a boca e dentes como se fosse me morder. No maternal, mordia outras crianças. Outra situação nos traz Tiago. Aos 9 anos, em plena latência, faz uma regressão após uma depressão da mãe. Fica fóbico, não quer ficar sozinho e começa com pesadelos com extraterrestres que querem levar alguém de quem gosta. Acorda assustado e acaba indo dormir no quarto dos pais. Após trabalharmos em torno de seu medo de que a depressão materna roubasse a mãe, ficando sem a mãe vitalizada, apareceram também conteúdos edípicos de se ver privado da mãe pelo pai. Quando deixou de ter os pesadelos, lamentou não ter mais essa desculpa para ir até o quarto dos pais, pois gostava de ficar no colchão posto no chão, do lado da mãe. A vivência de exclusão da cena primária tinha que ser melhor elaborada para uma retomada mais tranquila de sua latência. Aos 12 anos, Carlos acorda de um pesadelo em que foge de um monstro, que também parece uma mulher que corre atrás dele pela casa. Está apavorado e só se acalma quando encontra os familiares na cozinha. Fecha a porta da cozinha e come com eles. Vem semanalmente a Porto Alegre para se tratar, pois se sentia muito angustiado e queria ajuda. Temos aqui a puberdade e as angústias persecutórias ligadas ao monstro-mulher que poderia representar a mãe que não quereria seu crescimento; seu medo de crescer e se deparar com uma mulher que o assusta (como esconder dela seu medo do escuro?); sua parte feminina que o apavorava com angústias homossexuais ou outros possíveis entendimentos. A tranquilização vem com uma regressão oral e endogâmica. 327 Ane Marlise Port Rodrigues 4 Breve Passagem pela Adolescência A resistência em ir para a cama e a insônia aumentam com o crescimento, tendo seu ápice na adolescência. Os adolescentes, com as mudanças hormonais, começam a dormir mais tarde e menos durante a semana. O ciclo vigília/sono de adolescentes apresenta um atraso em relação ao ciclo vigília/sono de crianças, e isso leva a um distúrbio do sono relacionado ao ritmo circadiano. Ocorre, com isso, sonolência diurna, dormir excessivo, prejuízo das exigências diurnas e necessidade de sonecas de dia (HOBAN, 2004). A questão dos limites em relação à televisão, computador, som, video game, telefone e estímulos variados é fundamental para que não se estruture um distúrbio de sonolência excessivo (SPRUYT; O’BRIEN; CLUYDTS; VERLEYE; FERRI, 2005). Esse distúrbio se relaciona com o tipo de hábitos de dormir e falta de limites a partir dos pais. Ruídos e luz prejudicam o ambiente para o sono (HOBAN, 2004). A negociação em vários sentidos é parte da relação de pais e adolescentes. Além das mudanças hormonais e do corpo, o adolescente enfrenta uma grande revolução emocional nessa aproximação com o mundo dos adultos (ABERASTURY, KNOBEL, 1984; MELTZER,1998). Dentro das vicissitudes da separação-individuação, o adolescente poderia necessitar ver-se mais separado dos pais (ficar acordado, enquanto estes dormem), bem como dormir ao longo do dia, revivendo a situação passada de ser cuidado enquanto dorme, como quando bebê (ENCK1). Ir dormir tarde, vencer o sono e a noite podem ter também um caráter de ritual de passagem, como se fosse uma aventura no mundo dos grandes, primeiramente acompanhados pelo grupo de pares do mesmo sexo, posteriormente, formando-se grupos mistos. Um dia, emergem do grupo os casais de adolescentes. Na transformação do adolescente em adulto, novamente, buscará dormir acompanhado, na constante busca de suprir 1 ENCK, E. M. N. Informação verbal. Porto Alegre, 5 out. 2005. A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 328 uma eterna falta, que nunca mais se alcançará preencher. Lacan nos lembra da primeira mamada mítica, experiência de satisfação que inaugura o desejo de voltar a tê-Ia um dia (LANDER, 2000). A segunda mamada nunca mais será como a primeira, mas o desejo do encontro foi inaugurado. Freud (1905) já nos lembrava do efeito soporífico da relação sexual satisfatória, na qual é reeditada a satisfação do bebê que, após a mamada, cai em sono profundo. O comportamento em relação a festas também pode ser visto como uma aproximação com o mundo da noite, onde acontece a “festa”. Em adolescentes de classe média e alta, observa- se, principalmente em festas de 15 anos das moças que, tanto comparece a turma que é convidada e ganha a credencial para o ingresso, quanto a turma que vai “furar a festa” e tentar entrar até mesmo falsificando a credencial. “Furar a festa” torna-se um programa de rapazes e moças, mas principalmente de rapazes, e parece que a aniversariante e seus pais, de certa forma, já contam com os extras. Existe também a turma dos adolescentes que se vestem para a festa (traje social), mas que não vão furar, vão para “fazer frente”: ficar na frente do local da festa sem entrar (também podem ficar na frente de danceterias, sem entrar). Podemos pensar a festa como local de aproximação entre rapazes e moças e como metáfora da cena primária, da qual o adolescente se aproxima ou se afasta, bordeja ou receia invadir (KLOCHNER2). Possivelmente, a partir da experimentação nesse tipo de cenário, vai criando maior confiança em sua capacidade genital, fortalecendo sua identidade sexual e se autorizando a ter a sua própria cena. Em alguns adolescentes, essa experimentação pode ser evitada fobicamente, bem como gerar intensas angústias, favorecendo, por exemplo, o consumo de álcool ou outras drogas nesse contexto. 5 Ceix e Alcíone (BULFINCH, 1965): as Alcíones3 Juno, irmã e esposa de Júpiter (ou Zeus), senhora do Céu e da Terra, mandou Íris (sua filha e mensageira dos deuses) à casa letárgica do sono para 2 KLOCHNER, L. Informação verbal. Porto Alegre, 5 out. 2005. Alcíone: ave fabulosa, de canto plangente (triste, doloroso), considerada pelos gregos como de bom augúrio, porque passava para fazer seu ninho no mar, quando calmo (HOUAISS, 2001, p. 143). 3 329 Ane Marlise Port Rodrigues enviar uma visão à Alcíone, a fim de que ela soubesse que seu amado esposo Ceix estava morto. Juno dispensava especial proteção às esposas virtuosas. Ceix havia morrido devido a uma tempestade em alto mar, ao tentar chegar ao oráculo de ApoIo para consultar sobre presságios terríveis que passou a ter após a morte de seu irmão. Alcíone não queria que fosse, tentara dissuadi-Io, pois fora tomada de temores que a faziam estremecer e empalidecer ao lembrar da violência dos ventos no mar, pois era filha de Éolo, deus dos ventos. Quis ir junto, mas Ceix não permitiu. Não sabedora de sua morte, rezava todas as noites e aguardava, ansiosamente, seu retorno. Íris vai até o palácio do Rei do Sono. “Ali o deus se recosta e, em torno dele, estão os sonhos, seus filhos, apresentando várias formas, tantas quantas hastes têm os trigais, quantas folhas têm a floresta, ou quantos grãos de areia têm as praias” (BULFINCH, 1965, p. 68). “Sono – disse ela – tu, o mais gentil dos deuses, que tranquilizas os espíritos e curas os corações amargurados, Juno ordena-te que mandes um sonho a Alcíone, representando seu finado marido e todos os acontecimentos do naufrágio” (BULFINCH, 1965, p. 68). Sono chamou, então, Morfeu, um de seus inúmeros filhos, o mais hábil em simular formas humanas, para executar a ordem de Íris. Depois, encostou a cabeça no travesseiro e entregou- se ao grato repouso. Na sequência da fábula, Alcíone recebe a visão de Ceix e de sua morte. Desesperada, diz que já não existe mais e que pereceu com seu Ceix: “Desta vez, pelo menos, far-te-ei companhia. Na morte, se um só túmulo não pode conter-nos, um só epitáfio conterá; se não posso misturar minhas cinzas com as tuas, meu nome, pelo menos, não será separado do teu” (BULFINCH, 1965, p. 69). Vai à praia pela manhã e vê que se aproxima um corpo boiando. De longe, reconhece o marido. Sobe nos molhes construídos para conter a fúria do mar e se atira na direção do morto. Alcione salta sobre esta barreira e (coisa maravilhosa que o pudesse fazer) voa e, cortando o ar com asas que haviam surgido naquele instante, aflorou à superfície da água, transformada numa ave desventurada. Enquanto voava, saíam-lhe da garganta sons dolorosos, seme- A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 330 lhantes à voz de alguém que se lamenta. Ao tocar o corpo mudo e sem sangue, com as asas recém-formadas, tentou beijá-Io com seu bico ósseo. Se Ceix sentiu o contato, ou se foi simplesmente a ação das ondas, aqueles que contemplaram a cena não souberam dizer, mas o cadáver pareceu levantar a cabeça... Pela benevolência dos deuses, ambos os esposos foram transformados em aves. Acasalaram-se e reproduziram-se. Durante sete plácidos dias, no inverno, Alcíone choca os ovos no ninho, que flutua no mar. Então, as rotas são seguras para os marinheiros. Éolo, seu pai, rei dos ventos, impede que os ventos sacudam as profundezas das águas. O mar fica entregue, durante esse tempo, aos seus netos (p. 70). No verso de Keats: Maravilhoso sono! Benfazeja Ave que, no turbado mar da alma, Seu ninho faz, até que o mar esteja Tranquilo e manso, e a natureza calma (p. 70). 6 Comentários finais O sono REM parece regulado por mecanismos bioquímicos ainda desconhecidos e deve ter funções básicas de sobrevivência que seriam prioritárias à função relacionada com o sonhar (HANDFORD et aI., 1995). Conforme nos lembra Bion (1988), a mente necessita de estados de suspensão do pensamento a fim de não entrar em exaustão. As atividades de lazer e artísticas ajudariam nesse descanso. Também o sono, retirando-nos do estado consciente, traz uma suspensão do pensamento de vigília. No entanto, o inconsciente e as pulsões nele representadas nunca dormem e buscam, através dos sonhos e outras vias, algum acesso à consciência com auxílio de elementos que estão também no pré-consciente. Assim, nesse turbulento mar da alma, cuja natureza nunca é completamente calma (só o seria na morte), tentamos aninhar um casal e seus frutos, salvá-Ios de toda sorte de tempestades de ódio, ciúme, inveja. Poderiam, quem sabe, acasalar e fazer seu ninho dentro de nós, gerando seus bebês, como fizeram Ceix e Alcíone. Meltzer refere-se a esse casal 331 Ane Marlise Port Rodrigues como uma aquisição, configurando nossos objetos internos inspiracionais (UNGAR, 2004). O projeto de dar vida a esse casal não está garantido, porém pode sempre ser almejado. Alcançar essa possibilidade favorece, a meu ver, uma condição de menos barulho interno e facilitaria o sono repousante. Portanto, mesmo no sono, a natureza calma ou revolta se revela. Se o barulho não for intenso demais, permaneceremos dormindo, tendo sonhos. Ou, então, seremos acordados pelos pesadelos. Mas sempre teremos que lidar com inúmeros presságios. Oxalá, o barulho possa ser menos ruidoso e, assim, habitarmos com mais tranquilidade o palácio do Sono, com seus inúmeros filhos, os sonhos. The Night and its Sons (the Sleep and the Death) and Nightmares Along Childhood Abstract: Through an analogy with the myth about the Night and its sons (the Sleep and the Death), the author highlights how the angsts regarding death or the loss of control can invade the sleep and generate sleeping disorders in childhood. Some nightmares are reported at different ranges. Its is also reported that the night can be the scenario of a passage ritual from adolescence do adulthood, in the search of the couple formation, from a group of teenagers. The author finishes with the fable of Ceix and Alcione and relates the couple formation and the generation of babies with the possibility of leaving together the internal parental couple, either by giving one another pleasure, or procreating, or resting. This possibility is seen as an enhancer of less internal noise and as a facilitator of relaxing sleep. Keywords: Adolescence. Death. Infancy. Nightmares. Sleep. La Noche y sus Hijos (el Sueño y Ia Muerte) y Pesadillas a lo Largo de Ia Infancia Resumen: A través de una aproximación con Ia mitologia sobre Ia Noche y sus hijos (el Sueño y Ia Muerte), Ia autora resalta como Ias angustias de Ia muerte o Ia pérdida del control pueden invadir el sueño y generar disturbios del sueño en Ia infancia. Son relatadas algunas pesadillas en diferentes fajas etárias. También es referido que Ia noche puede ser el escenario de un ritual de pasage del adolescente para el mundo de los adultos, en búsqueda de Ia formación de parejas, a partir del grupo de adolescentes. Termina con Ia fábula de Ceix y Alcione y relaciona Ia formación de Ia pareja y Ia generación de bebés con Ia posibilidad de dejar junto a Ia pareja parental interna, sea dándole placer uno al otro, sea procreando ó descansando. A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 332 Esta posibilidad es vista como favorecedora de menos ruído interno y como facilitadora del sueño reparador. Palabras clave: Adolescencia. Infancia. Muerte. Pesadillas. Sueño. Referências ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescência Normal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984. ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV). 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Trabalho original publicado em 1994. 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Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010 334 335 Néstor Greco Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Artigo | O presente artigo é resultado de uma tese de mestrado em psicanálise, junto à Universidade nacional de La Matanza, Buenos Aires, Argentina. Foi apresentada em julho de 2004 e defendida em novembro desse mesmo ano. Néstor Greco Analista de Crianças e Membro Didata da Associação Psicanalítica Argentina. Resumo: O autor propõe que a puberdade é uma etapa do psiquismo com uma dinâmica e uma problemática específica, que não foi auscultada durante muito tempo pela clínica e pela teoria psicanalítica, que a subsumia nos fenômenos da adolescência. Na puberdade se produz (como correlato das mudanças hormonais) uma eclosão pulsional que não pode ser tramitada pelo ego, que se subtrai pela angústia. O incremento se dá nas pulsões eróticas em seus níveis oral, anal, uretral e fálico, porém, ainda sem entrar na matriz edípica, na qual adquirirá a sensualização, durante a adolescência. Esta elevação do pulsional também compromete as pulsões tanáticas. Ambas se expressarão ligadas na conduta agressiva, a linguagem escatológica, as fantasias, os micro-acidentes, o incremento da rivalidade, etc. O desligamento terá como consequência o incremento do rigor do superego e a consequente labilidade na sustentação da autoestima. Correm soltas as ansiedades referentes ao corpo, seu tamanho, funcionamento e conteúdos. Há uma busca inconsciente de restaurar o equilíbrio simbiótico narcisista com os pais préedípicos e, ao falhar essa operação, acrescentam-se as vivências de desamparo e de separação. Começam os processos de desidentificação e se instauram novos eixos de identificação com outros aspectos dos objetos. Palavras-chave: Angústia de Separação. Corpo. Desamparo. Desidentificação. Identificação. Puberdade. 1 Introdução Em minha prática profissional como psicanalista de crianças e adolescentes, muitas vezes tive que consultar bibliografia como uma fonte a mais de conhecimento que se articulasse com a atividade clínica. Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 336 Ao buscar tais referências bibliográficas, cheguei a formular-me a pergunta que se faz Alice em Através do espelho: “[…] a questão é saber se se pode fazer que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes...” . Com razão, pude comprovar que se usavam em forma indistinta as palavras adolescência e puberdade e eram tomadas como sinônimos: adolescência precoce, fim da latência, primeira adolescência, etapas precoces da puberdade, período pré-puberal, etc. Esse confuso estado da terminologia reflete uma importante imprecisão conceitual, que abarca um campo amplo e difuso na conceitualização clínica e teórica. Este foi meu ponto de partida para investigar a puberdade, esclarecendo que centralizei meu estudo em sujeitos do sexo masculino, porque considero que a evolução da psicossexualidade diverge enormemente entre os gêneros e isto faz com que devam ser estudados separadamente. 2 Especificidade da Puberdade Considero a puberdade uma etapa evolutiva do psiquismo com caracterísitcas específicas. Começa entre os nove/dez anos e se estende até os treze/quatorze anos. Tem como referentes somáticos externos em seu ápice a aparição da ejaculação no menino (e a menarca na menina). Esse fenômeno pode articular-se ou não com o trânsito da pressão hormonal global à predominância da zona genital, com prevalência de fantasias edípicas incestuosas inconscientes. Essa predominância inaugura a adolescência e, nesta, ocorrerá a tarefa intrapsíquica do sujeito que é a tramitação do Complexo de Édipo, a diluição da autoridade dos pais e a busca de um objeto sexual exogâmico, conjuntamente com o desenvolvimento dos papéis que lhe permitam uma inserção psicossocial considerada adulta a partir dos cânones culturais vigentes. Desejo ressaltar que no presente trabalho se dá ao termo puberdade uma acepção eminentemente psicológica e torna-se interessante delimitá-la, tanto a partir de sua antiga definição (FREUD, S., 1905; FREUD A., 1950, 1958; FENICHEL, 1934) que a assimilava à adolescência em toda a sua extensão, como a nomenclatura proposta por Blos (1986, 1991), quem reserva o termo para assinalar uma etapa do desenvolvimento somático e utiliza o vocábulo pré-adolescência para nomear as mudanças na evolução psíquica do sujeito. 337 Néstor Greco Nesse último caso, mesmo que a divisão seja esclarecedora, a adolescência funcionaria teoricamente à maneira de eixo que daria conta de fenômenos que girariam em torno dele. Nessa concepção ainda não configuraria a especificidade da puberdade, com um dinamismo psicológico único. A puberdade delimita um campo psicodinâmico com características próprias e diferenciais. É uma etapa articuladora entre a latência e a adolescência. Os fenômenos pulsionais e estruturais que cursam nela dão uma expressão fenomênica específica e, em seu conjunto, se atêm a uma problemática diferente da etapa que a precede e da que a prossegue. Em linhas gerais, há coincidências com os autores que sustentam que as etapas da puberdade e da adolescência são momentos de revisão de situações (habitualmente não tramitadas exaustivamente) da primeira infância, com um considerável poder de retificação (ou ressignificação). Desejo abrir uma interrogação: ao mudarem as condições egoicas e os sistemas homeostáticos narcisistas, tanto em nível individual como familiar, não nos encontramos ante uma situação com elementos inéditos no curso da vida do sujeito, quem deverá apelar tanto a recursos já conhecidos, como a criar ou pôr em função outros novos para tramitálas? As vivências de estranhamento, a desidentificação, etc. aos quais logo faremos referência, seriam alguns desses. 3 Puberdade Normal Ademais dos sintomas ou condutas pelos quais o púbere “é trazido” ao consultório – situação a qual acede habitualmente com boa disposição, mas certa reticência – desenvolve, nessa idade, uma série de condutas que podem ser relevadas ou não como problemáticas por seus progenitores, porém que chamam a atenção por sua especificidade e reiteração. Os temores relacionados com seu corpo, expressados primariamente como dores, aparecem também em conexão com o funcionamento de distintas partes do mesmo: com a rapidez ou lentidão do crescimento (pelo, tamanho dos genitais, estatura, etc) que trazem embutidas múltiplas fantasias de deformidade, malformação e consequente autosegregação e isolamento. Une-se a isso mudanças no apetite, tanto a partir do ângulo somático, como do psicológico; ingestas fenomenais podem ser alterna- Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 338 das por períodos de perda do apetite, com o correlato de fantasias orais de devoração como sinônimo de preencher o vazio angustioso ou a falta de crescimento. O prazer pela percepção dos odores corporais próprios, a emissão de sons (flatos, arrotos), gritos, sons onomatopeicos se unem à exploração das substâncias secretadas (cera das orelhas, mucosidades, cor da urina, etc.). Inaugura-se uma sorte de busca minuciosa de “neoformações corpóreas” – acne, cravos, manchas – de difícil acesso, mas que insumem interesse e tempo na exploração ante o espelho. A linguagem se torna procaz e escatológica, além de insuficiente para transmitir informações, sobretudo, a pertinente às vivências do sujeito: estados de exaltação lindantes com atitudes maníacas, estranhamento, temores de morte; hipocondríacos, de malformação; tristeza, angústia; marcado sentimento de menosvalia, de solidão, de abandono, falha de carinho, derrota ou rebaixamento da autoestima. Um paciente, Oscar, de doze anos, ocupa grande parte do tempo da sessão em contar piadas de judeus, cordobeses, ou de galegos. Ante uma intervenção minha, responde: Por quê tens que relacionar tudo!? Que saco! Lembra que no ano passado eu não te tratava de “tu”, mas de “senhor”? Lembra? Que idiota! Te chamar de “senhor”... Bom, é que ainda não tínhamos estabelecido uma confiança... Vou te contar uma piada: (conta várias de galegos)...Agora vou te contar uma de judeu...Melhor não...vai que tu é judeu e te ofendo... Bom, mas também, se é assim, azar! Vou contar igual (e conta)... Hoje soltei um arroto com a boca fechada e logo lancei o ar a um companheiro... Tinha um cheiro!...Ai... que vais dizer? Vai, vai, fala! Já vai fazer uma das tuas relações...! Seus movimentos oscilam entre o rígido controle que dá uma atitude hierática e o descontrole ou a defasagem entre distintas partes do corpo, que desenvolve uma kinesis protopática. Começam as preocupações por usar ou não determinada roupa e a manifestação de desejos pessoais a respeito da indumentária e das suas escolhas. A conduta lúdica conserva vigentes as brincadeiras típicas da latência: autinhos, soldadinhos, construções, colecionismo, jogos de sa- 339 Néstor Greco lão regrados, que são alternados pela fascinação dos videogames e de longas e letárgicas horas passadas frente ao televisor ou os jogos de PC. O interesse pela leitura, se houve, decresce, apesar de que começa a desenvolver-se o interesse epistemofílico ante temas que não são os incluídos no currículo escolar. Ressurge a atividade masturbatória: consequente, tenaz, sem ejaculação, carente de suporte, fantasiada, porém rodeada de fantasias quanto ao ato em si mesmo. Masturbação ainda não genitalizada, soma de excitação, prazer preliminar, sem capacidade orgástica, mais referida a reasseguramentos do corpo do que à triangulação edípica . Prazer de órgão vivido por um ego inundado de tensões. A outrora plácida vida familiar se vê alterada: a violência fraterna adquire proporções nunca vistas, nem esperadas, ciúmes e inveja em relação aos irmãos mais velhos, denegrimento e desprezo em relação aos menores, veiculizados pelo insulto, a intemperância e a ação. Em geral, pode-se observar uma aproximação temporária à mãe, que brevemente sustenta a ilusão de poder compreender o seu filho (que está na “idade da bobagem”) e de ser agora a tradutora entre ele e o mundo. No entanto, como reza o adágio latino “traduttore-tradittore”, pouco depois, é abandonada e execrada. Diferentemente de Blos (1991), não se pode comprovar uma aproximação ao pai, nem uma busca de sua companhia ou cumplicidade. Este é posicionado como distante, ausente, dominante e frustrante. Oscar, o paciente anteriormente citado, desenvolveu fortes transferências de idealização, com busca de proteção e cuidado. Porém, estimo que estas, de corte infantil, é claro, têm como sentido a busca de interlocutores mais distantes do núcleo familiar originário. Considero que este fenômeno se deve aos movimentos pulsionais e às mudanças de significação que afetam tanto ao sujeito como a seus objetos primários. Formam parte dessa situação as mudanças nos sistemas de ideais e valores da latência. Ponto de fratura: o abandono ou afrouxamento do ritmo familiar estabelecido quanto aos valores culturais – religiosos. Assim, o menino do colégio católico – ante o horror e a estranheza dos pais – se negará aos ritos da confissão e da missa dominical, tanto como o filho do judeu tomará como estandarte reivindicatório seu bar-mitzvá e sua concorrência ao templo, estampando aos estarrecidos pais sua falta de res- Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 340 peito à tradição e à religião. Essa atitude não perdurará: no funcionamento do inconsciente rege a magia contaminante: qualquer tentativa de aproximação parental provocará uma notória baixa no interesse sobre o tema em litígio. Diferentemente do adolescente, que busca ativamente sua participação em grupos de pares e do latente, que tem uma sorte de pertencimento adscrito ao seu grupo escolar, do qual destaca a alguns como amigos, o púbere deve ser o realizador solitário de ritos que o demarquem. Tanto no exterior, como na vida psíquica desenvolvem-se múltiplas fantasias de caráter agressivo: o sadismo corre solto e grande parte das relações interpessoais se resolvem na equação submeter-ser submetido; ganhador-perdedor, que leva a coligar-se, em forma esporádica, com pares, (grupos, gangues, patrulhas escolares) contra outros pares, à luz do narcisismo das pequenas diferenças. Referentes como o time de futebol, a cor da pele, a altura, a orientação religiosa, são desculpas fortuitas e sólidas para instaurar uma sorte de ataque defensivo para manter a própria e precária estabilidade. A vida social se alterna com momentos diários de retraimento e ocultamento. As fantasias que comprometem a estabilidade narcisista não podem colocar-se em palavras em uma espécie de terrível confissão dostoievskiana ante o amigo mais querido (ao qual também o ligam profundos sentimentos de inveja e competição). O já referido paciente, Oscar, cursa a sétima série e diz, com desgosto enquanto desenha displicentemente um sistema planetário: ... E pensar que na escola me tomam como um cara bárbaro... Claro, eu me dou bem. Defendo os meus amigos das besteiras das professoras; eu me destaco... Só que me dói a cabeça todas as manhãs, quando me levanto... A escola é um saco, uma prisão... Antes eu gostava: brincava com meus amigos, era legal. Porém, agora te exigem mais... Eu me cago de medo dos exames... A única pessoa para quem eu conto é para ti. Meu pai começaria a dizer que tenho inteligência de sobra e minha mãe faria cara de preocupada ou de histérica... Meus amigos tirariam com a minha cara... Viste? Pareço Robocop, estou feito metade de uma coisa e metade de outra... Outra via de expressão é a prevalência, que começa a tomar na vida do jovem sujeito, as atividades esportivas. Na Argentina, o futebol e, em menor medida, o rugby são os esportes de equipe que os convocam e 341 Néstor Greco provocam frequentes lesões corporais. O esporte é vivido com paixão, fanatismo e necessidade de protagonismo e reconhecimento. A relação com as meninas, no manifesto, se caracteriza por compartilhar momentos de atividades comuns, muito seletivas como uma saída a um cinema, uma lancheria, ou, esporadicamente frequentar bailes. Trata-se de um despregar de pseudo-sexualidade imposta por pressão cultural, a partir da necessidade de consumo como valor social de nossos tempos, alternada por frequentes comentários denegridores, gozações com os colegas que se animam a se aproximar das meninas, evitação a realizar tarefas escolares em grupos mistos, etc. O que subjaz é um desejo e um temor de aproximar-se ao desconhecido e diferente que, por razões obscuras ainda, intranquiliza, porém que é necessário apreendê-lo. A temporalidade adquire singulares características ao começar a regular-se desde o próprio sujeito e já não a partir dos pais. A pontualidade rigorosa coexiste com a vivência que cada experiência/entrevista/consulta é um episódio em si mesmo, vivido como um contínuo e sem noção de processo. A dimensão de futuro ainda é sumamente vaga. O púbere, atado à imediatez da tensão pulsional, busca seu autocontrole, sem o apoio protetor parental. A escolaridade, que era transitada sem problemas, se converte em uma angustiante tarefa, de cotidiana resolução, sem que fique inscrito na memória, à maneira de reasseguramento, o resultado de boas performances, tanto passadas, como atuais. Qual labirinto kafkaniano o púbere vive no sinistro clima do ameaçador que se repete. O fracasso está por trás de cada amanhecer. Os personagens idealizados, nos quais busca um modelo de identificação mudam. Os outrora heróis das revistas e as séries infantis já não satisfazem. Tin Tin, Asterix (pequenos protagonistas de maravilhosas sagas) são os novos heróis, que compartilham o privado Olimpo com o sujeito mesmo, que se identifica – chips e multimídias mediante – com guerreiros extraídos da TV ou do software nos ferozes videogames e que permitem, por um tempo, sustentar a ilusão de uma identidade poderosa e de um autoabastecimento gratificante. Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 342 Paralelamente, o mundo de interesses começa a ampliar-se e surgem inquietudes acerca de injustiças sociais, maus tratos a pessoas e animais (atitude ideológica que pode não ter nenhum correlato com a conduta despregada no interjogo com a realidade exterior). Aparece o desejo de conhecer por si o mundo fático cotidiano/ nomes de ruas, linhas de ônibus, preços de artigos, etc. Surgem também acirradas críticas aos que são considerados comportamentos anti-sociais inadequados ou injustos dos adultos. Por último, episódios linderos à crueldade com animais podem alternar com outros, no quais predomina o desejo de ter para sua propriedade algum animal doméstico (peixe, hamster, cachorro, etc.) que é objeto de múltiplas preocupações e cuidados. 4 Motivos de Consulta na Puberdade A experiência clínica me mostrou que são várias as vias de encaminhamento mais usuais desses pacientes. Cada uma delas filtrada pela inevitável intervenção familiar, que é fonte de consulta independente. 1) Através dos médicos pediatras ou hebiatras: os pacientes apresentam quadros de cefaléias, dores de tórax ou abdominais, que são descritas de forma difusa, incompleta e insatisfatória para uma aproximação semiológica. Dores migrantes e evanescentes por diferentes partes do corpo, que transitam, desde o agudo ao silencioso, as quais costumam considerar-se causa de dificuldades no rendimento esportivo, que começa a ser prevalente nessa idade. Em relação a essa atividade se incrementam os golpes, pequenos acidentes e fraturas ocasionais. Por vezes, aparecem estranhas febrícolas e dores “perto do coração”, em muitas ocasiões, fruto de mentiras conscientemente elaboradas pelo sujeito para evitar alguma situação de temor que não pode enfrentar. Também são frequentes transtornos do sono (pesadelos) ou da alimentação (bruscas mudanças no apetite), porém sem chegar a cristalizar-se em uma conduta habitual. 2) Enviado por professores ou gabinetes psicopedagógicos: ao redor dos dez, doze anos, irrompem dificuldades escolares que não coincidem com o anterior desempenho do sujeito (descarto as já pré-existentes para um modelo mais claro da etapa) e que não têm correlato com os testes 343 Néstor Greco psicodiagnósticos de inteligência. Habitualmente as funções mais comprometidas são a atenção; a compreensão de pautas socio-culturais. Há um notório desinteresse pelos estudos dos temas do currículo escolar. Também é motivo de consulta frequente o incremento da agressão no âmbito escolar, tanto com seus pares, como com a equipe docente, a qual a criança se enfrenta numa atitude desafiante, muitas vezes, até graus extremos. Assim Manuel, de onze anos, é trazido à consulta por desenvolver uma atitude desafiadora e oposicionista com seus professores na escola. Eram frequentes os ataques de ira, que se traduziam em agressões verbais e físicas a seus companheiros. Por essas razões era rejeitado e segregado por seus pares, a quem se referia denegrindo-os. Em sua casa, havia se autoimposto um estrito regime alimentar, que seguia rigorosamente, apesar de enfrentar-se com as reprimendas e castigos corporais por parte do pai. Em suas verbalizações, expressava ideias megalômanas de fortaleza física e poder destrutivo, ao mesmo tempo tinha uma profunda preocupação por sua baixa estatura. Tratava de dissimulá-la, usando sapatos três números maiores que o necessário, além de vários pares de meias. A elaboração da fantasia de estar preso em um corpo pequeno e descontrolado foi um passo importante em sua análise. 3) Por parte do grupo familiar. Aqui os caminhos se multiplicam. Por um lado, a família pode fazer eco do revelado pelos pediatras ou pela escola ou, por outro lado, a consulta se deve a: a) um incremento preocupante das lutas fraternas que se convertem em virtuais e repetidas batalhas a campo aberto com o irmão do mesmo sexo ou desprezo pelo irmão do outro sexo; b) dificuldades escolares: porém, não em relação ao rendimento em si, mas por uma atitude de angústia e temor por não poder sustentar a performance escolar ou não render segundo as expectativas familiares (reais ou fantasiadas) no âmbito educativo; c) dificuldades na interação familiar: condutas de rebeldia, oposicionismo, enfrentamento, teimosia, discussões violentas e até esboços de enfrentamento físico, com uma ou ambas figuras parentais. A esse respeito, pude observar a realização de alianças variáveis com um dos progenitores, em detrimento do outro e vice-versa. Porém, essa dinâmica é Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 344 de signo mutável e pode alternar-se pelo repúdio ou submissão massiva a ambos; d) percepção dos pais de situações de sofrimento do filho: terrores noturnos, vergonha pelo uso de óculos ou aparelhos ortodônticos, verbalização de temores a não crescer, ficar baixinho, etc. Mudança de hábitos de alimentação (voracidade ou exigência de regimes estritos) de sono e vigília: insônia noturna alterada pela sesta; de higiene; negativa de seguir com os hábitos de limpeza vigentes desde a latência, etc. 5 Eclosão Pulsional Estima-se que se produz um novo surto de pulsões orais, anais, uretrais – fálicas e/ou tanáticas em um lapso menor que na primeira infância e sem sequência de predomínios alternantes. Isto é, na puberdade não há uma zona erógena retora e em todo o corpo se inscrevem os diversos avatares pulsionais. O começo da puberdade está marcado pela eclosão de forças pulsionais que estavam silenciadas durante a latência e predominantemente comprometidas com a sublimação. O final da puberdade coincidirá com a incipiente primazia do genital e daí a reinstalação do Complexo de Édipo. No aparelho psíquico se produz um êxtase libidinal e tanático que não encontra uma instância interna – ego – que a possa processar e tampouco objetos (sua representação intrapsíquica) em que possa depositá-la. Os objeto nutrientes -incestuosos- de identificação, com os quais o aparelho foi se construindo e estabilizando até o momento são virtualmente avassalados pelas correntes pulsionais.Tal situação poderia se caracterizar como uma sorte de insuficiência do ego, ou situação traumática por impossibilidade de tramitação, que apresenta diferença com outros movimentos pulsionais dentro do aparelho. Por certo, não é produto de libido retraída dos objetos e que se instala nos objetos da fantasia (introversão, neurose) nem que vai como regressão ao ego (psicose) e não há como nesta uma diluição plena do mundo representacional. Nem libido narcisista que foi depositada em um objeto, como no caso do enamoramento. Como neles, há certa diluição da realidade, perda da representação de objetos. Em forma complementar, há drenagem massiva pulsional sobre outros aspectos dos objetos. Não há vivência de fim de mundo (psicose), 345 Néstor Greco apesar de que lá um certo, certo grau de megalomania, nem desinvestimento do mundo em prol de um objeto (enamoramento). Acredito que o mais frequente é observar uma “vivência de fim do ego”, como expressão de colapso da homeostase narcisista. A puberdade se caracteriza pela presença de um montante pulsional flutuante – tóxico – que se expressa à maneira das neuroses atuais, de carácter hipocondríaco, com mal-estares vários, astenia e certos equivalentes como a neurose de angústia. Outro exemplo de Oscar: desenha personagens com grande expressão de sofrimento, olhos injetados de sangue, os cabelos em pé e grandes orelhas. O grafismo da cara ocupa toda a página. São rostos sem corpo. Enquanto desenha, diz: Outra vez estou mal e não sei por quê! Não tenho vontade de fazer as coisas, quero só dormir toda a tarde e tenho medo de dormir todas as tardes... Depois de comer sinto ruídos na minha barriga. Isso me assusta... Terei algo grave? Li que podem crescer coisas, tumores. Creio... não sei... (seus olhos enchem-se de lágrimas)... Não entendo... E lá em casa, sabem ainda menos... O ego, mesmo sendo mais maduro que na primeira infância, é desbordado e carece de capacidade de psicologização (união da pulsão à representação: possibilidade de busca da ação específica) e então desenvolve várias manobras defensivas. Uma delas é a masturbação, como descarga, busca de alívio de tensão. Porém, nesta etapa ainda ocorre com as mesmas características da infância. Assim, ao dizer de Freud (1938), é insatisfatória em si mesma. Falha justamente na reação de orgasmo para a satisfação (“esperando sempre algo que nunca veio”) se aparentará em equivalentes em outros âmbitos: como ausências, estalidos de risos e pranto, etc. “A sexualidade infantil voltou a fixar aqui seu arquétipo” (FREUD, 1938). Ou seja, nos encontramos com uma masturbação ainda sem apoio na fantasia, mero prazer de órgão, sustentada mais em imagens provenientes da cultura do que nutrida pelas fantasias incestuosas. Manobra de reconhecimento corporal ou, melhor dito, de conhecimento de intranquilizadoras mudanças corporais que reeditam vivências de desamparo, inermidade, estranheza, ante forças das que não se pode fugir pois provêm do interior. Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 346 6 As Identificações – a desidentificação e o sentimento de identidade A situação do púbere é diferente da da criança da primeira infância. Nesta última, ante os estímulos de um id pulsátil, nos encontrávamos com um ego em formação, que “sentia as aspirações (do id) como necessidades...” (FREUD, 1923) e que – via identificação – se oferecia ao id como subjugado do objeto. No púbere, pelo contrário, nos encontramos com um ego mais solidamente constituído, com um repertório de identificações primárias e secundárias (pós-edípicas), antigas decantações de outrora cargas de objeto encaixadas: e um ideal do ego incipiente, provisório, sujeito -como muitos componentes do ego- à vincularidade com os pais, como correlato obrigatório da dependência infantil. Na sessão, Oscar mostra-se reticente e desconfiado. Assinalo-lhe seu estado. Responde: Estou brabo com a minha mãe... hoje veio histérica para casa, ficou braba comigo e me bateu... Me pediu que fizesse um trâmite e eu lhe perguntei se era tão importante... Então me disse que eu nunca colaborava, eu fiquei furioso e lhe disse que tinha minhas ocupações e então ela disse que nunca mais ia me fazer favores e me bateu (enquanto fala, corta em pedacinhos um barco feito com plasticola)... Já estou cansado de obedecer e de ser o menino bonzinho! No fim, a gente sempre tem que estar agradando eles... Na puberdade, junto com a grande eclosão pulsional, se produz um afrouxamento do encaixe conquistado durante o pós-Édipo infantil (latência). Leva-se a cabo um duplo processo: por um lado, certos aspectos das identificações até o momento “mudos” (isto é, não investidos nem participantes no interjogo estrutural) são catexizados e tomados como novos eixos de referência para a estruturação do sujeito. Por outro, iniciam-se os processos de desidentificação -conceitualizados por Baranger et. al (1989) e Kancyper (1990) – com a consequente defusão pulsional e seus ulteriores destinos. Ambos processos produzem profundas mudanças na estrutura do ego e do ideal do ego. A puberdade pode representar-se como um fotograma de um filme: nele cobram prevalência os fenômenos de sobrecarga, desunião e desligadura 347 Néstor Greco que, nesses momentos, dão conta da dificuldade na autoavaliação das possibilidades e potencialidades, assim como um marcado déficit na avaliação do desempenho escolar e na estimação do tempo cronológico. O púbere se acha preso na angústia que sente ante as figuras parentais e na necessidade infantil de contar com eles como referentes do que lhe acontece, do que lhe angustia e que não compreende. Tarefa, como logo exporei, destinada ao fracasso. As situações de sobrecarga, desunião e desligadura irão sendo tramitadas logo, ao longo do fotograma subsequente: a adolescência, etapa na qual, para poder distanciar-se, primeiro há que realizar uniões, e que se caracterizará pela crescente primazia do genital e pelo caminho no sentido de regulações autônomas da autoestima. Na latência, o fotograma antecedente, está caracterizado o predomínio da repressão e/ou sublimação dos impulsos pré-genitais e a atuação exitosa e contínua dos mecanismos de defesa, que têm firmemente costurada a pulsão e a utilizam como energia de trabalho para a tarefa de socialização e aprendizagem. Dessa maneira, a autoestima do sujeito é predominantemente heterônoma e basta com satisfazer as exigências escolares e certas normas de bom comportamento social, que estão fortemente apoiadas na resolução do Complexo de Édipo infantil. Até o momento, demos conta das vicissitudes das pulsões eróticas na etapa que se está estudando. Deve-se ilustrar o que acontece com a pulsão de morte. Pode-se considerar que os destinos de Tánatos, em virtude desse processo, são: a) volta a ligar com Eros para novas identificações; b) dirige-se ao superego, para fazê-lo mais severo (eloquente expressão nos vários terrores da puberdade: ruptura do equilíbrio tensional egosuperego, autoestima ameaçada constantemente); c) volta ao exterior: expressões de crueldade e sadismo, típicas da idade: em verbalizações e condutas nas quais predomina o tom denegritório e maníaco. Após expressar o que sucede com as pulsões, deve-se anotar as mudan- Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 348 ças acontecidas no objeto e alguns mecanismos do aparelho que cobram prevalência: o objeto, posicionado como modelo, sofre uma mudança de investidura. Como se uma representação coisa fosse investida por diferentes atributos, segundo o estado pulsional do sujeito (peito é-pode ser : eu-não-eu-odor-gosto-percepção visual = baixa de tensão) e esta mudança tem que ver intimamente com a historicidade vincular de satisfações e frustrações que houve na vida do púbere com os objetos parentais e que agora passa a ser revisada. “Vinho novo em odre velho”, caracteriza a situação. Às regressões temporais lhes agregam os processos mencionados (desidentificação, reestruturação de identificações, com um primeiro momento de desencaixe entre as já vigentes) e creio que isto mostra um elemento de novidade no psiquismo. Ademais das reedições e recaptulações, nos encontramos aqui com reestruturações de suma importância para a constituição mais acabada do aparelho psíquico. 7 Objetos Parentais Na parte anterior, me referi à hipótese da transformação do objeto como modelo. Desejo agora refletir sobre o objeto como auxiliar. Quero destacar que de suas posições de objeto sexual e de rival não me ocuparei neste contexto, pois creio que pode ver-se com maior riqueza de matizes durante a adolescência. Tomei como movimento inicial da puberdade a eclosão pulsional que sofre a criança e que inunda seu ego. Poderíamos dizer que em uma situação bastante similar se encontrava nos primeiros meses de sua vida. Neles contava com sua mãe (objeto auxiliar) quem, ao dizer de Gutton (1991): [...] imprime sua libido sobre o corpo biológico de seu recém-nascido. Contribui a traçar-lhe os contornos espaciais e os ritmos, cria uma excitabilidade em todos os lugares do corpo da criança. As zonas erógenas são lugares do intercambio entre o somático do lactante e o desejo materno...na puberdade, a desaparição da excitação originada nos pais deixa um vazio singular, nova passividade..., perda narcísica. É um verdadeiro ataque contra a realidade: a realidade excitante... Não há dúvida de que entre essa mãe que “imprime sua libido” e a que facilita a falta de “realidade excitante” há profundas mudanças que 349 Néstor Greco interjogam com o sujeito. A mãe da primeira infância continua a simbiose física da gestação em uma simbiose psíquica extrauterina. Nessa simbiose está capacitada para apreender as necessidades emanadas do corpo do lactante – capacidade de rêverie (BION, 1963) – decodificá-la e realizar a ação específica que baixe a tensão. Essa relação transcorre por canais vinculares preferentemente pré-verbais, empáticos e assomam a uma homeostase tensional satisfatória para ambos membros do binômio. Logo, esse tipo de compreensão vai se esgotando, cegando e é substituído pelo código da palavra (humanização do sujeito) que cobra importância cada vez maior. Este código, essencial para o humano, se baseia na ação de contracargas e derivados simbólicos e do ajuste a convenções que vão além do familiar, ligadas a sistemas de sinais sociais. Em torno do meio da sessão, tenho que segurar um paciente, quem tentava chutar-me, bater-me e cuspir-me. Assinalo sua necessidade de contato corporal comigo para sentir quais são seus limites, suas forças e seu próprio corpo. A tentativa de agressão continua, mas agora tingida de humor; é mais um jogo de forças que o desenvolvimento de um interesse lesivo. Diz: “Filho da puta!!! Como me agarraste! Mas já vou me soltar e a vingança será terrível! Cretino!”. Ao soltá-lo, ainda respirando em forma agitada, me diz: “Se meus pais me vissem fazendo isso! Lá em casa não pode ser assim... Lá só o que se tem que fazer é estudar e estar com cara de bunda...! É um tédio...!”. Ao chegar à puberdade, o sujeito, pleno de tensões, assim como o lactante, aproxima-se da mãe para que volte a cumprir com essa ação decodificadora de antanho. Entretanto, a simbiose já se cortou, as vias e canais de comunicação são outros e, ademais, uma densa história vincular pesa entre ambos. Ainda no melhor dos casos, a mãe atravessa a crise do início da adolescência (PÉREZ, 1976) que a enfrenta a suas próprias e importantes reacomodações narcísicas e já não é o receptor reclamado pelo filho. A situação se torna mais complexa, pois, nessa época, colidem as expectativas postas na criança, o que foi cumprido – aparentemente – por este durante a latência e os primeiros rangidos de desacoplamento que surgem ante este “não entendimento”, devido ao surgimento de um repertório, confuso ainda, mas próprio, de desejos e necessidades que não refletem o que havia sido depositado pelos pais nele. Este é um dos momentos em que o equilíbrio narcisista ou familiar se quebra, como um espelho e, se exploramos minuciosamente, veremos que se produz Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 350 por caminhos já pré-determinados. A criança da infância, ego ideal revivido dos pais, inicia a cerimônia de seu enterro. O sujeito retrai-se do contato com a mãe por frustração libidinal – a diferença de Blos (1986), quem afirma o terror à fusão com a mãe arcaica má e a aproximação ao pai – e o pai protetor pré-edípico começa a desmoronar-se: ele tampouco consegue significar o que sucede ao sujeito. Em breve se converterá em um rival. Há uma situação de desamparo e fragilidade, ruptura de equilíbrio narcisista. Dor, fúria, colapso de autoestima. O incremento da rivalidade fraterna, que se instala quase em primeiro plano, tem uma dupla sustentação: por um lado, uma sorte de luta, contato homossexual fraterno, como estação obrigatória em seu reverso, para logo poder acessar a competição parricida edípica. Uma confrontaçãoreunião entre pares preparatória para empresas de maior envergadura e risco posteriores. Por outro lado, uma “nova edição” da novela familiar do Édipo infantil; os irmãos são a prova cabal de que a mãe – tão necessitada em uma época – já não amou o suficiente e instaurou o abandono pelos irmãos. O púbere deve também enterrar sua ilusão, ele “tem” (ou não tem) uma mãe, não “é” a mãe. Sabemos que o “ter” é posterior, volta de contragolpe ao “ser”, pela perda do objeto (FREUD, 1938). O dito anteriormente seria a expressão dos objetivos da investigação: agudização da rivalidade e competição e dificuldades na interação familiar. Creio que a angústia predominante nessa etapa é, mais do que de castração –patognomônica da adolescência – angústia de separação ou de desamparo e alude à incompletude narcisista com a qual o sujeito tem que enfrentar-se. A ruptura da ilusão de união satisfatória com os pais nutrientes pré-edípicos amplia a tensão entre o ego e o ideal (ao mesmo tempo em que tende às condições de sua internalização) com os colapsos que descrevi e impulsiona o sujeito (ou isso é pelo processo de crescimento mesmo) à sexualidade fálico/genital e às representações incestuosas do Édipo. 8 Discussão Considero que a investigação realizada pode dar conta cabal da delimitação semântica e conceitual do termo puberdade (no jovem do sexo masculino), enquadrada entre a latência e a adolescência, possuindo características próprias e distinguíveis entre si. 351 Néstor Greco Este novo estado do conhecimento permite salvar as confusões e as pobres delimitações conceituais existentes na literatura psicanalítica, permitindo, ademais, realizar uma abordagem clínica mais ajustada ao trabalho psíquico do paciente. A esse respeito, basta-nos citar a Arminda Aberastury et al. (1984), quando se referem: “[...] as mudanças psicológicas que se produzem na adolescência e que são o correlato de mudanças corporais levam a uma nova relação com os pais, o que implica fazer o luto da relação com os pais da infância, o luto por seu corpo de criança e por sua identidade infantil”. É um processo longo e penoso; o corpo infantil desaparece para sempre. E é o luto pelo corpo o que desencadeia todo esse processo... Aberastury não diferencia nenhuma etapa mediadora entre a latência e a adolescência – a puberdade, com as caracterísitcas que assinalamos – e, dessa maneira, toma como um processo iniciador o luto pelo corpo infantil, o que, na realidade, é o final de um processo que começou com a eclosão pulsional, que trouxe consequências importantíssimas para o sujeito. Segundo a nomenclatura kleiniana da autora, a criança atravessaria uma situação esquizo-paranoide, em virtude das vivências de alheidade, descontrole dos impulsos e estranhamento de si mesmo, que deve ser convenientemente interpretada para poder abrir espaço ao posterior trabalho de luto, a ser desenvolvido na adolescência, propriamente dita, segundo sustento neste estudo. Characterization of Puberty: empirical research and psychoanalysis Abstract: The author postulates that puberty is a phase of the psyche with a dynamics and specific dilemma that, for a long time, had not been investigated by clinical psychoanalysis and by the psychoanalytic theory, which used to relegate it to phenomena of adolescence. At the pubertal stage, as a result of hormonal changes, the newly developed drive cannot be processed by the ego, which is then subtracted by anguish. There is a boost in erotic drives at the oral, anal, urethral and phallic levels, bypassing the oedipal matrix, in which sensualization will develop during adolescence. This increase in the drive also affects death drive. Both are expressed by aggressive behavior, by scatological language, by fantasies, by microaccidents, by the higher intensity of rivalry, etc. Detachment will result in excessive harshness Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010 352 of the superego and consequent lability in the support of self-esteem. The anxieties associated with the body, with its size, its functioning and its contents run free. There is an unconscious quest for restoring the narcissistic symbiotic balance with the preoedipal relationship with parents and, when this operation fails, helplessness and separation are experienced. That is when disidentification processes are triggered and new mechanisms of identification with other aspects of the object are introduced. Keywords: Body. Disidentification. Helplessness. Identification. Puberty. Separation Anxiety. Caracterización de la Pubertad: La investigación empírica y el psicoanalisis Resumen: El planteo que se realiza es, que la pubertad es una etapa del psiquismo con una dinámica y una problemática específica que no fue auscultada durante mucho tiempo por la clínica y la teoría psicoanalítica que la subsumía en los fenómenos de la adolescencia. En la pubertad se produce (como correlato de los cambios hormonales) una eclosión pulsional que no puede ser tramitada por el Yo, que se anega de angustia. El incremento se da en las pulsiones eróticas en sus niveles: oral, anal, uretral y fálico pero aún sin entrar en la matriz edípica, en la que adquirirá la sensualización, durante la adolescencia. Esta elevación de lo pulsional también compromete a las pulsiones tanáticas. Ambas se expresarán ligadas en la conducta agresiva, el lenguaje escatológico, las fantasías, los microaccidentes, el incremento de la rivalidad, etc. La desligación tendrá como consecuencia el incremento de la rigurosidad del Superyo, y la consecuente labilidad en el sostenimiento de la autoestima. Campean las ansiedades referentes al cuerpo, su tamaño, funcionamiento y contenidos. Hay una búsqueda inconciente de restaurar el equilibrio simbiótico narcisista con los padres preedípicos y al fallar esto se acrecientan las vivencias de desamparo y de separación. Comienzan los procesos de desidentificación y se instauran nuevos ejes de identificación con otros aspectos de los objetos. Los mecanismos de defensa más usuales son la disociación, proyección, omnipotencia, idealización, negación y transformación en lo contrario. La evolución transita hacia una mayor capacidad de verbalización, acercamiento maníaco a la sexualidad, búsqueda de ideales fuera del grupo familiar y paulatino reemplazo de las fantasías crueles por fantasías sexuales, aparecen deseos de “ser grande” y tentar el cumplimiento de roles culturales de los adultos. El aparato psíquico, una vez más compelido por el apremio de la vida, complejiza su funcionamiento. El niño, otrora dependiente de sus progenitores, se va desplazando de ese lugar. Le dice la Duquesa a Alicia en el País de las Maravillas (CAROLL, 1865): “[...] Nunca trates de ser distinta de como te ven los demás, porque lo que seas o hayas sido nunca será otra cosa que lo que les hayas parecido a los demás...”. La pubertad inicia la ruptura de ese espejo. Palabras clave: Angustia de separación. Cuerpo. Desamparo. Desidentificaón. Identificación. Pubertad. 353 Néstor Greco Referências ABERASTURY, A.; SALAS, E. La Paternidad. Buenos Aires: Kargieman, 1984. cap. IV. 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Concordamos com os autores que consideram o adolescente vivendo uma etapa com características próprias. Os eixos principais que se entrecruzam em grau variável no campo analítico no tratamento com adolescentes e que geram angústias específicas são, como já dissemos: a oscilação edípica-pré-edípica, a dualidade independência-dependência, o par idealização-desidealização e o par lutos pela perda da infância e bissexualidade versus elaboração do crescimento corporal e do desenvolvimento da genitalidade. A tarefa interpretativa (para a qual o timing, que depende da capacitação específica nesse tipo de tratamento, é fundamental) é composta de múltiplas possibilidades de abordagem, cuja finalidade última será conseguir a transformação da patologia do paciente adolescente e a tolerância a uma etapa conflituosa que, por si, é difícil. Assim, nominar ansiedades e afetos desconhecidos ou novos, utilizar intervenções não-interpretativas como sinalizadoras, pedidos diretos, assumir papéis, interpretação de jogos, desenhos, discriminações de atitudes contraditórias, certificações consensuais com respeito à realidade, conversar sobre assuntos de interesse do adolescente, estão implicados com a interpretação transferencial no momento oportuno das diferentes projeções que o paciente adolescente faz desde o seu lugar tanto edípico como pré-edípico. É indispensável conhecer a dinâmica pai-filhos e o entorno social e educacional do paciente para poder operar com eficácia. Nas patologias severas, podemos nos deparar com um esquecimento das características da adolescência. A abordagem terapêutica se parecerá mais aos mesmos quadros do adulto; nesses casos, a aparição do conflito adolescente será um sinal de melhora. Palavras-chave: Adolescência. Defesa. Dependência. Desidealização. Idealização. Independência. Regressão. 1 Introdução Sigmund Freud (1905a) inclui a adolescência como a etapa em que se jogam: a subordinação da pré-genitalidade à genitalidade, o estabeleci- Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 358 mento de novos objetivos sexuais, heterossexuais, a integração da corrente terna com a sexual, a consolidação da exogamia. Oferece-nos, também, dois históricos clínicos realizados com pacientes cuja idade nos permite incluir na adolescência, o caso Dora (1905b) e a jovem homossexual (1920), históricos que, por sua profundidade e difusão, foram utilizados por distintos autores para testar suas hipóteses e reformular ou completar as de Freud (BLOS, 1981; LACAN, 1972; SAIMOVICI et al., 1980). Também em um dos primeiros casos de tratamento de um púbere, em um esclarecedor desenho clínico, podemos apreciar a sutileza de sua abordagem para formular sua interpretação ao paciente púbere (FREUD, 1901). Anna Freud (1957) apresenta sua posição sobre a dificuldade do tratamento com adolescentes centralizando essa dificuldade, por um lado, naquela da reconstrução nas análises de adultos, do meio em que vive o adolescente; suas ansiedades, o auge de sua glória ou a profundidade do desespero total, as agudas e, por vezes, estéreis preocupações intelectuais e filosóficas, o desejo de liberdade, a solidão, a sensação de opressão de parte dos pais, a raiva impotente e o ódio ativo dirigidos contra o mundo dos adultos, as atrações eróticas – homo ou heterossexuais –, as fantasias suicidas. Os pacientes adolescentes podem passar repentinamente de um estado emocional ao seguinte, apresentá-los todos ao mesmo tempo ou em rápida sucessão, sem dar tempo para que o analista recupere suas forças ou modifique o manejo do caso de acordo com as necessidades impostas pelas circunstâncias mutantes. Anna Freud pensa que existe uma semelhança evidente entre as respostas dos adolescentes e aquelas observadas em pacientes que atravessam períodos de luto ou de infortúnios amorosos. A semelhança da posição libidinal do adolescente com esses estados residiria no fato de que também nele há uma luta emocional de extrema urgência e imediatismo, sua libido está a ponto de se desligar dos pais para investir novos objetos de significado; são inevitáveis o luto pelos objetos do passado e os amores afortunados ou desafortunados com adultos alheios ao meio familiar ou com outros adolescentes do sexo oposto ou do mesmo sexo; também é inevitável um certo retraimento narcisista para preencher os períodos em que nenhum objeto externo está investido de significado. Qualquer que seja o desenlace do conflito libidinal em 359 Edmundo Saimovici um determinado momento, estará sempre relacionado com o presente, e a porção da libido livre para investir de significado o passado ou o analista será escassa ou nula. Isso explicaria algumas das atitudes no curso do tratamento; não cooperar com a terapia ou com o analista, a tentativa de diminuir as sessões, a falta de pontualidade e as faltas à sessão, as bruscas interrupções do tratamento. Em contraste, se o próprio analista se converte no novo objeto de amor do adolescente, seus desejos de ser tratado se tornarão mais intensos, mas o analista terá que enfrentar a peremptoriedade de suas necessidades, sua intolerância à frustração e a tendência a utilizar todo tipo de relação como um meio de satisfazer seus desejos, mais que uma fonte de compreensão e esclarecimento. Por outro lado, P. Blos (1981) sustenta que a experiência clínica lhe ensinou que os persistentes e irreprimíveis impulsos pré-edípicos se fazem presentes no tratamento, exigindo intervenções terapêuticas capazes de alcançar as emoções primitivas e as necessidades infantis que surgem sob todo tipo de disfarces. Segundo P. Blos, na prática, a estratégia do tratamento oscila constantemente entre os âmbitos pré-edípicos e os edípicos, enquanto que o terapeuta tenta se relacionar com a situação atual do adolescente, ou vice-versa. Os veículos desse empenho são, respectivamente – em níveis de abstração cada vez maiores – o conselho, o julgamento, a explicação, a interpretação, a reconstrução. Na terapia de adolescentes, os conteúdos geralmente permanecem ocultos na atitude cautelosa, crítica e desconfiada do paciente, ou em sua irremovível expectativa de que o terapeuta lhe dê a “boa vida”. Um preciso sentimento de segurança deriva de se sentir parte do objeto idealizado, a mãe pré-edípica coisificada na pessoa do terapeuta. Seja como for, a reanimação da imagem parental idealizada na pessoa do analista (homem ou mulher) demanda uma tarefa sumamente delicada de desidealização do objeto. O desenlace desse processo, no melhor dos casos, é denominado de “confiança”, base da aliança terapêutica. P. Blos ressalta: “Sempre me impressiona o quão difícil e penoso resulta este processo de desidealização para o adolescente”. A. Aberastury (1971) descreve a adolescência como um dos três momentos fundamentais do processo de desprendimento (nascimento e organização genital precoce seriam os outros dois) e assinala o luto pelo corpo Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 360 infantil, quando os caracteres secundários impõem um novo status, como pela fantasia de bissexualidade exigida de ser abandonada pela definição que implicam a menstruação ou o sêmen, segundo o sexo. A renúncia ao incesto se faz, então, mais urgente, dada a possibilidade fática de consumá-lo. Segundo A. Aberastury, esses lutos são prolongados: a flutuação entre a infância e a adolescência é dolorosa. Surgem polaridades: nunca crescer ou crescer de vez. Assinala o papel da ambivalência dos pais nesses conflitos, pelos próprios conflitos não-resolvidos; luto pela perda da criança (“o menino”, “a menina”) e por deixar de ser o centro na vida de seus filhos. Devem, entre outras coisas, enfrentar a aceitação do futuro, do envelhecimento e da morte. Devem acompanhar o processo de desidealização que os filhos estão realizando. A situação é difícil não só para o adolescente, mas também para os pais. Seria de se suspeitar de inveja a atitude dos adultos de apenas assinalarem os aspectos ingratos da vida adolescente, deixando de lado a felicidade e a criatividade plenas que também caracterizam muitos períodos dessa etapa. A elaboração do luto nos adolescentes, em que são necessários ensaios permanentes de perda e recuperação, inclui técnicas defensivas como processos inevitáveis, como a desvalorização dos pais (para tapear os sentimentos de luto e perda) e a busca de figuras substitutas. A impossibilidade de manejar ou controlar as mudanças em seus corpos e identidades seria a origem das planificações do mundo externo e a verbalização, semelhante em sua ação defensiva à onipotência do pensamento e da palavra ao fim do primeiro ano de vida. D. Meltzer (1974) descreve como a mudança contínua do sentido de identidade produz a característica qualidade de instabilidade emocional observada em adolescentes; ao se basear no “splitting” subjacente, os variantes estados de ânimo estão em pouquíssimo contato uns com os outros. Daí a grande incapacidade do adolescente de cumprir com um compromisso com as outras pessoas, concretizar resoluções próprias ou compreender por que não podem ser delegadas a ele responsabilidades de pessoa adulta. 361 Edmundo Saimovici A transição, através da fluidez da adolescência, partindo de um “splitting em latência” excessivo e rígido e passando pela matriz de personalidade em que eventualmente deve se formar o splitting mais metódico e elástico e pela diferenciação da organização à personalidade adulta, inicia com o desmoronamento da ordem da latência; reaparecem as incertezas com respeito às diferenciações, interno-externo, adulto-criança, bom-mau e masculino-feminino, situação própria do desenvolvimento pré-edípico. Prevalecem tendências perversas devido à confusão de zonas erógenas, paralelamente à confusão entre amor sexual e sadismo; quando o ressurgimento da masturbação traz consigo uma forte tendência, manejada pela inveja oral infantil, a abandonar o self e apoderar-se da identidade de um objeto, por intrusão, se dá um tipo de ansiedade confusional que todos os adolescentes vivenciam em certo grau. Essa confusão está centralizada em seus corpos e aparece com o primeiro pelo pubiano, no desenvolvimento dos seios, na primeira ejaculação. De quem é este corpo? Em outras palavras, eles não podem distinguir com clareza seu estado adolescente da ilusão infantil de ser adulto, induzida pela masturbação, com a identificação projetiva nos objetos internos (que acompanha esse estado). Isso é o que há por trás da escravidão do adolescente com relação à roupa, o modo de combinar vestuário e acessórios e cabelos, o penteado, e que não é menor nos rapazes que nas meninas. Winnicott (1987) dá uma contribuição interessante para o tema do campo, no qual se deve emitir a interpretação ao paciente adolescente; a fantasia inconsciente que dominaria o pano de fundo da adolescência seria de assassinato, pois crescer nessa etapa significa ocupar o lugar do pai e, na fantasia, se realizaria sobre o cadáver do adulto. Na psicoterapia do adolescente, a morte e o triunfo pessoal aparecem como algo intrínseco ao processo de amadurecimento e da aquisição da categoria de adulto. Isso também apresenta dificuldades para os próprios adolescentes, que chegam com timidez ao assassinato e ao triunfo correspondente à maturação nessa etapa crucial. O tema inconsciente pode se tornar manifesto como a experiência de um impulso suicida ou um suicídio real. O melhor que os pais podem fazer é sobreviver, se manter intactos, sem abandonar nenhum princípio importante, sem que isso implique que não possam crescer eles mesmos; ou seja, devem poder enfrentar o desafio e não só compreendê-lo. A pessoa madura deverá Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 362 exigir o direito de ter um ponto de vista pessoal que conte com o respaldo de outras pessoas maduras. É útil acrescentar aqui as contribuições da psicologia do self, desenvolvida por H. Kohut (1978). O autor propôs como principal tarefa do processo adolescente a reorganização do self. Como consideram Wolf et al. (1972), no aprofundamento desse esquema referencial em relação à adolescência, o processo adolescente é uma transformação do self. O ideal do eu infantil não pode ser sustentado e se faz imperativo construir um novo ideal do eu. Uma intensa relação com os pares (que denominam Academia) serviria para manter o equilíbrio narcisista e a coesão do self, o que possibilitaria a desidealização das imagens parentais arcaicas e sua transformação em novas idealizações internalizadas; essas novas idealizações internalizadas se irão consolidar em um eu ideal estável, cuja função, segundo o autor, seria superar desilusões específicas dos objetos de self arcaicos. Ao comentar esses aportes, Carneiro Leão (1986) ressalta uma posição pessoal segundo a qual a adolescência não seria somente um estado cronológico, mas também um estado mental com características específicas, resultante da transformação do self, que conduz ao estabelecimento da identidade. A tarefa central da adolescência seria a busca da identidade que corresponde tanto à busca de coesão, integração e continuidade do self como à diferenciação dos objetos. 2 O Campo Analítico no Tratamento com Adolescentes Os aportes que selecionei entre os muitos autores que se dedicaram ao tema da adolescência são suficientes para delinear situações básicas que caracterizam o campo analítico que se estabelece nos tratamentos com pacientes adolescentes e que lhe outorgam especificidade à tarefa interpretativa. Assim: a) a relembrança de aspectos pré-edípicos alternando com os edípicos; b) a reativação de imagens arcaicas e a exigência de sua transformação; 363 Edmundo Saimovici c) lutos específicos pelos pais infantis, o corpo infantil, identidade e papel infantil e pela bissexualidade; d) o processo de desidealização-denegrimento; e) a alternância da dependência-independência; f) a ansiedade confusional pelo desmoronamento da ordem obsessiva da latência; g) a exigência de construção de um novo esquema corporal e de manejo das pulsões sexuais polimorfas e genitais; h) a presença simultânea de ansiedades de perda, confusionais e de castração; i) a ida para o mundo exogâmico, a necessidade de realização e de criatividade; j) o fenômeno característico do grupo, do consumo (de bebidas) com o grupo, academia, pares como partes de si mesmo projetados seja como espelho ou como objetos de transição. O analista deverá ser treinado especificamente (YAMPEY, SAIMOVICI, GIOANNINI, 1986) no trabalho analítico e interpretativo com pacientes adolescentes que atravessam uma etapa de vida com características próprias, que se intrincam com a patologia e que exigirão a tolerância de oscilações permanentes. Será útil que seja ou tenha sido psicanalista infantil, porque deverá poder interpretar uma variada gama de comunicações – incluindo jogos, desenhos, música, vestimentas, programas de televisão – a um ritmo mutante e estar acostumado a procurar e reconhecer a mídia expressiva própria do paciente adolescente. Nisso, ajudará a observação de adolescentes de diferentes idades e de ambos os sexos. Deverá conhecer e familiarizar-se intimamente com o mundo adolescente gradualmente com o próprio paciente, porque isso produzirá confiança e reciprocidade (KUSNETZOFF, 1973). O terapeuta deverá conhecer detalhadamente o meio social e a ideologia predominante e seu grau de obrigatoriedade (SAIMOVICI, 1985), o tipo de colégio, bairro, clube ou Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 364 país e a atitude dos pais e outros adultos com quem seu paciente convive habitualmente para poder tomar posições diante da realidade que o adolescente, em muitos momentos, lhe exigirá confirmar ou testemunhar. Também irá se beneficiar com a prática de abordagem de pacientes com transtornos narcisistas, com pacientes depressivos ou com transtornos psicopatas e o conhecimento dos esquemas referenciais e de tratamento desenvolvido por investigadores em diferentes áreas (KOHUT, 1978; WINNICOTT, 1979; JACOBSON, 1985; ZAC, 1977). O conceito de holding (WINNICOTT, 1979) será particularmente útil para a localização da função da interpretação para os pacientes do grupo da classificação proposta, pacientes que se assemelham aos adolescentes em processo de luto próprio da etapa. A tolerância à projeção de imagens idealizadas, alternando com desilusões denigritórias, dolorosas, é outra das exigências no tratamento com adolescentes. Para termos a possibilidade de acesso à compreensão do paciente adolescente e podermos realizar a tarefa interpretativa, devemos ter presente o nível de permeabilidade de que dispomos com relação à amnésia que se instala na saída da adolescência (PEARSON, 1973), amnésia de que padecemos parcialmente como analistas, já adultos. O alheamento emocional de ansiedades, expectativas, ideais, incertezas, perseguições, confusões, paixões amorosas, felicidades e tristezas adolescentes pode fazer com que sintamos que o melhor a propor ao adolescente é o modelo de nossa própria estrutura, refletida no tipo de setting próprio de adultos neuróticos, posição que fez alguns autores considerarem o adolescente como “inanalisável”. Da estabilidade de nossa posição adulta, que representa para o adolescente tanto o futuro desejado como o passado estável (latência) perdido, teremos que ressoar afetivamente, entrar em empatia e, por momentos, assumir o papel simétrico de pares, o qual será possível se dispusermos de flexibilidade e permeabilidade suficientes. O adolescente terá flutuações frequentes, mas o analista se parecerá a uma “matriz familiar suficientemente boa”. O jogo interno (interjuego) do analista adulto falando com e ouvindo um adolescente necessita da construção permanente de uma linguagem discriminada daquilo que cada um entende do que o outro diz, mas também das diferentes estruturas mentais, adultas e adolescentes. Haverá momentos de não-entendimento. 365 Edmundo Saimovici Esse trabalho inclui a abordagem da relação do adolescente com o mundo adulto em geral e os pais em particular e não descarta a terapia de família, os grupos de mães ou de pais, a orientação aos pais, simultâneos ou estrategicamente indicados no momento oportuno (KNOBEL, 1971). Segundo minha experiência, a patologia severa na adolescência empalidece, por assim dizer, as características conflituosas próprias dessa etapa, ainda que, em alguns casos, intensifique suas manifestações. Quando o conflito adolescente é suprimido pela patologia severa (neuroses graves, quadros de sobreadaptação, de carência, borderline), a abordagem técnica será semelhante à dos adultos nas mesmas condições; nesses casos, a aparição do conflito adolescente será um sinal de melhora. 3 A Tarefa Interpretativa com Pacientes Adolescentes Se considerarmos a tarefa interpretativa, destinada a que o paciente obtenha uma transformação favorável de sua patologia e conflitos, incluiremos nesta diferentes meios expressivos e estilos para conseguir que o paciente adolescente tenha uma compreensão transformadora de sua situação inconsciente. Pensamos que não se chega à interpretação mutante (STRACHEY, 1947-1948) sem o trabalho constante de construção de uma compreensão compartilhada com o paciente. Assim, incluiremos nessa tarefa, segundo diferentes níveis de abstração, o conselho, o julgamento, a explicação, a interpretação, a reconstrução (BLOS, 1981). A utilização de interpretações impessoais, lúdico-adolescentes, a sinalização de aspectos do mundo externo para discriminar as figuras que podem ter características e valores iguais ou ambivalentes, sinalizações alternadas, com o timing adequado, com interpretações transferenciais positivas ou negativas (KNOBEL, 1971); as intervenções não-interpretativas (KUSNETZOFF, 1973) tais como: pedidos diretos de informação, que implicam reconhecer autonomia do paciente e reduzir a onipotência projetada sobre o analista, as respostas diretas para algumas perguntas do paciente, respondendo ou dando motivos para não responder, especialmente nos princípios do tratamento, a atitude de assumir papeis e as dramatizações com o resgate Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 366 discriminado do eu observador do analista e do paciente, são diferentes meios de possibilitar a tarefa interpretativa. Nos adolescentes (SALAS, 1973), as interpretações devem ser curtas e espaçadas, sem revelar sua origem para não envergonhar o paciente quando se dá conta de que não pode controlar seus conteúdos; e o timing de aguardar o momento adequado para emiti-la funcionará como modelo mental da tão necessária capacidade de espera; esse papel de companheiro com paciência na indagação que o paciente possa fazer de si mesmo (autoconhecimento) fará com que ele se sinta contido. O encontro de uma forma de interpretar que faça o adolescente perceber o interesse na busca do sentido do que acontece, evitando, assim, a tendência a supor que o analista “sabe tudo”, as frases de introdução às intervenções interpretativas que se propõem como hipótese, convidando à participação no maior nível de simbolização possível, são recomendações, entre outras, surgidas das experiências com o tratamento com adolescentes (Aryan, 1985). A tarefa interpretativa deve levar em conta a simultaneidade de situações entrelaçadas ou duais que necessitam, por seu efeito condensador e passível de confusão, um trabalho detalhado ágil. Refiro-me às que se produzem nos eixos: edípico-pré-edípico, independência-dependência, idealização-desidealização. 4 Independência-Édipo-Desidealização-Luto O movimento para a independência se entrelaça com a fantasia edípica de assassinato do pai-adulto-terapeuta e geralmente é simultâneo com o denigrimento da imagem antes idealizada; portanto, vem acompanhado da intensificação tanto da ansiedade de perda das imagens infantis como da angústia de castração, pela qual, além de interpretar e discriminar esses conteúdos, é indispensável manter posições coerentes com respeito ao setting, posições que passam a representar aos pais-adultos que sobrevivem, sustentando seu terreno próprio. Deve-se interpretar o conteúdo de fantasia de matar ou ser morto incluído no movimento para a independência, fantasia que evita a solução que oferece a verdadeira independência-exogamia, que possibilita o estabelecimento de dois reinados (o reinado do pai e o reinado em construção do filho). 367 Edmundo Saimovici A abordagem da ansiedade de perda, precipitada pela desidealizaçãodenigrimento, deverá centrar-se no reconhecimento explícito de capacidades e valores do paciente e seus objetos e de sua capacidade de amar, atacados pela armadilha narcisista do tudo ou nada (desidealização castratória tanto no nível edípico como no pré-edípico). Nesse movimento para a independência, o fracasso de projetos onipotentes, idealizados, provoca sofrimento intenso e o autodenigrimento; o analisado deverá ser sustentado pelo analista, cuidando este para não se tornar “hiper-realista”, tanto para possibilitar que o paciente recupere sua capacidade que o humilha numa derrota sem esperança. 5 Dependência-Idealização-Pré-Édipo No movimento para a dependência, em geral, se entrelaçam: a) o reencontro com a identidade infantil e os pais infantis, o reencontro com a mãe idealizada pré-edípica; b) a regressão-defesa aplacatória ou culposa diante das fantasias de triunfo edípico do movimento anterior para a independência. A continuidade da presença e a coerência do setting do analista que tolera a idealização ou denigrimento temporário e que é vivido como que satisfazendo a necessidade de dependência pode, bruscamente, virar, se é vivenciado sob forma paranoide como uma mãe capturadora e castratória. A interpretação e a discriminação desse movimento para a dependência poderão reduzir a compulsão de escapar para a independência prematuramente. 6 A Dualidade Independência-Dependência no Adolescente e em seus Pais Outra intervenção terapêutica interpretativa-explicativa necessária é gerada por causa da simultaneidade e da dualidade da necessidade, por parte do adolescente, de provar seu domínio da realidade interna e externa ajudado pela sociedade de pares, ensaiando o futuro reinado próprio em seu movimento para a independência e a necessidade de seguir rece- Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 368 bendo educação, contradição que o desconcerta e faz com que se sinta angustiado, incoerente. Acrescentar-se-á, assim, essa confusão às ansiedades de castração e perda já descritas, que podem ser aliviadas, sinalizando-se a pertinência de sua existência dupla e simultânea. Por um lado, é preciso traduzir para o adolescente a dupla situação angustiante pela qual passam os pais, muitas vezes deslocada para exigências com relação à escola ou queixas pelo custo econômico que seus filhos dependentes representam: os pais, por um lado, necessitam seguir criando e desfrutar de muitas satisfações narcisistas (SAIMOVICI, 1983), que se associam à ideia de serem o centro de gravitação para os filhos, centro cuja perda pelo crescimento do filho significa para eles um luto pelo qual tenderão a ver o filho como despreparado e incapaz de se valer por si mesmo; e, por outro lado, ao mesmo tempo, aparecerá, junto com essa angústia de perda, uma angústia de castração frente à ideia de que seus filhos ainda não se garantem por si mesmos ou não conseguirão fazê-lo no futuro – e, então, se sentem na urgência de exigir provas de “maturidade” dos filhos. Não raro, as consultas ao psicanalista ocorrem por aparentes fracassos do filho nas conquistas que os pais necessitam por esse tipo de angústia. A explicação dessa dinâmica para o filho adolescente pode vir acompanhada, quando o sofrimento dos pais for intenso, da indicação complementar de uma terapia de orientação a ser realizada simultaneamente ao tratamento do filho. Concluiria com um tema comum a todos os autores e também coincidente com minha experiência: a faceta mais importante a ser considerada, a de interpretar com o paciente adolescente, que é o timing. O silêncio oportuno, o dar e dar-se tempo para entender, o acompanhar o processo de autoconhecimento, o tolerar agressões que denigrem alternando com momentos de intensa idealização, o poder tornar-se simétrico e assumir assim o papel de par, para poder sair desse papel e retomar a posição assimétrica adulto-adolescente, terapeuta-paciente são disposições a serem postas em jogo no tratamento com adolescentes, para o qual o timing é o fator fundamental. 369 Edmundo Saimovici 7 Síntese e Conclusões O ato de interpretar nos tratamentos com adolescentes deve ser abordado no marco de um amplo espectro de situações; algumas foram estudadas com base em diferentes esquemas referenciais e outras, em diferentes patologias. Isso não implica que a dificuldade técnica ou a compreensão psicanalítica dessa etapa esteja resolvida. Penso que o avanço pode continuar na medida em que se aprofunde na clínica adolescente. Estamos a uma altura do processo na qual não devemos nos desfazer de nenhum aporte pertinente nem forçar uma integração prematura. Concordamos com os autores que consideram o adolescente vivendo uma etapa com características próprias. Portanto, ainda que seja útil a experiência analítica com crianças (pela maior flexibilidade, agilidade e permeabilidade com relação à amnésia pós-adolescente) ou com pacientes narcisistas (pela sintonização do timing e a possibilidade de suportar idealizações e desidealizações bruscas), ou com pacientes depressivos (que presentearão o training para o manejo da autoestima e da dor) e ainda que a técnica kleiniana facilite o seguimento sutil das identificações projetivas e das fantasias inconscientes subjacentes, acreditamos que só a prática psicanalítica com pacientes adolescentes possibilitará a aquisição da técnica para abordar com uma interpretação bem-sucedida a questão dos conflitos do adolescente entrelaçada na patologia. Os eixos principais que se entrecruzam em grau variável no campo analítico no tratamento com adolescentes e que geram angústias específicas são, como já dissemos: a oscilação edípica-pré-edípica, a dualidade independência-dependência, o par idealização-desidealização e o par lutos pela perda da infância e bissexualidade versus elaboração do crescimento corporal e do desenvolvimento da genitalidade. O movimento para a independência mobiliza não só a ansiedade de castração, ao ser reativada a situação edípica, mas também a ansiedade de perda dos objetos infantis. Essa situação dual pode levar a contradições que acrescentem ansiedade confusional à situação. O tema do luto pelos pais infantis, o corpo infantil, deve ser diferenciado em sua abordagem, da permanência defensiva na situação regressiva (pela Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 370 angústia de castração e culpa edípica). O primeiro, próprio e normal na etapa adolescente, será contido e se interpretará com o timing adequado: o pesar por um período que se deixa inevitavelmente, ao mesmo tempo em que se sinalizarão as novas aquisições a serem integradas gradualmente no ser. Na regressão defensiva, será necessário interpretar o temor à represália, pelo suposto triunfo e assassinato edípico dos pais, ao mesmo tempo em que discriminar a saída exogâmica, ou seja, um reinado futuro próprio. A desidealização, um processo acompanhado de intenso sofrimento, exige um timing muito preciso, um tratamento sensível da autoestima, que, possibilitando a aparição de ideais alternativos, projetos a realizar, evite uma visão “hiper-realista”, vivida como uma afronta insolente pelo adolescente. Nos momentos de tentativas de independentização, a interpretação deve esclarecer, dentro do possível, a projeção sobre o analista do pai derrotado ou inimigo de morte, com o timing necessário para evitar que o paciente confunda a interpretação dessa projeção com uma tentativa aplacatória. Quando ocorre a projeção sobre o analista do par ou dos pares; que implica ser vivido como aliado da posição do adolescente, também é necessário poder tolerá-lo com o timing suficiente, pois isso fortalece transitoriamente o vínculo analítico. Mas há que poder interpretar também o desacordo, para não ser visto como o pai débil assassinado ou que abandona, que renuncia à sua posição de educador no momento da necessidade de dependência. Assim, é necessário poder interpretar a tripla situação independência, pares e dependência e sinalizar seu funcionamento ao paciente. É indispensável poder aceitar o próprio erro ou o não-conhecimento para não encarnar, com a infalibilidade presumida do analista, um pai onipotente e de um poder incontestável, que não pode ser destronado sob nenhuma hipótese; a interpretação tenderá a promover o autoconhecimento do adolescente, autoconhecimento que não se pretende livre de mudanças e variações, que é a tônica normal desse período da vida; por isso, não se pretenderá do adolescente um sentimento de identidade estável, mas por curtos períodos. 371 Edmundo Saimovici A tarefa interpretativa (para a qual o timing, que depende da capacitação específica nesse tipo de tratamento, é fundamental) é composta de múltiplas possibilidades de abordagem cuja finalidade última será conseguir a transformação da patologia do paciente adolescente e a tolerância a uma etapa conflituosa que, por si, é difícil. Assim, nominar ansiedades e afetos desconhecidos ou novos, utilizar intervenções não-interpretativas como sinalizadoras, pedidos diretos, assumir papéis, interpretação de jogos, desenhos, discriminações de atitudes contraditórias, certificações consensuais com respeito à realidade, conversar sobre assuntos de interesse do adolescente, estão implicados com a interpretação transferencial no momento oportuno das diferentes projeções que o paciente adolescente faz desde o seu lugar tanto edípico como pré-edípico. É indispensável conhecer a dinâmica pai-filhos e o entorno social e educacional do paciente para poder operar com eficácia. Nas patologias severas, podemos nos deparar com um esquecimento das características da adolescência. A abordagem terapêutica se parecerá mais aos mesmos quadros do adulto; nesses casos, a aparição do conflito adolescente será um sinal de melhora. Acredito que tanto na exposição como na síntese estão refletidas a multiplicidade e as exigências que são impostas ao terapeuta para que possa abordar o interpretar no tratamento de adolescentes. Interpretation and Adolescence Abstract: Interpretation in treatments of adolescents must be approached on the basis of a Wide range of situations; some of these have been studied in terms of different referential schemes and others in terms of diverse pathologies. We agree with those authors who consider that the adolescence is going through a stage having its own specific characteristics. The principal themes which intercross in varying degrees in the analytic field during treatment of adolescents and which generate specific anxieties, are: the Oedipal-pre-Oedipal oscillation, the duality between independence and dependence, the idealization-disidealization pair and the pair consisting in mourning for the loss of childhood and bisexuality versus the working-through of body growth and development of genitality. The work of interpretation (for which the timing acquired by specific training in this type of treatment is essential) is composed of many possible approaches whose ultimate aim is to achieve both the transformation of the pathology of the adolescent patient and also tolerance of a normally difficult and conflictive stage. Thus, naming new Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 372 or unknown anxieties and affects, using non-interpretative interventions such as descriptions of mechanisms, direct requests, role-talking, interpretation of games or drawings, differentiation of contradictory attitudes, consensual affirmations of reality, conversation on subjects of interest to the adolescent, all combine with the transference interpretation at the appropriate moment of the different projections that the adolescent patient makes from his Oedipal or pre-Oedipal position. Knowledge of parent-child dynamics in the patient’s family as well as of the patient’s social and educational milieu is indispensable if we are to operate effectively. In severe pathologies we may find that the characteristics of adolescence have become blurred. In consequence, the therapeutic approach will resemble the one we use for the same pathology in adults; in these cases, the onset of adolescent conflict is a sign of progress. Keywords: Adolescence. Defense. Dependence. Dis-idealization. Idealization. Independence. Regresión. Interpretación y Adolescência Resumen: El interpretar en tratamientos con adolescentes debe abordarse en el marco de un amplio espectro de situaciones; algunas de ellas fueron estudiadas desde diferentes esquemas referenciales y otras desde distintas patologías. Concordamos con los autores que consideran al adolescente viviendo una etapa con características propias. Los ejes principales que se entrecruzan en grado variable en el campo analítico en el tratamiento con adolescentes y que generan angustias específicas son: la oscilación edípica-preedípica, la dualidad independenciadependencia, el par idealización-desidealización y el par duelos por la pérdida de la infancia y bisexualidade versus la elaboración del crecimiento corporal y desarrollo de la genitalidad. La labor interpretativa (para la cual el timing, que depende de la capacitación específica en este tipo de tratamiento, es fundamental) se compone de múltiples posibilidades de abordaje cuya finalidad última será lograr la transformación de la patología del adolescente y la tolerancia a una etapa conflictiva de por sí difícil. Así, nominar ansiedades y afectos desconocidos o nuevos, utilizar interciones no interpretativas como señalamientos, pedidos directos, asunción de roles, interpretación de juegos, dibujos, discriminaciones de actitudes contradictorias, certificaciones consensuales respecto de la realidad, conversar sobre temas de interés del adolescente, se intrincan con la interpretación transferencial en el momento oportuno de las distintas proyecciones que el paciente adolescente hace desde su lugar tanto edípico como preedípico. Es indispensable el conocimiento de la dinámica padre-hijos y del entorno social y educacional del paciente para poder operar con eficacia. En las patologías severas podemos encontrarnos con un borramiento de las características de la adolescencia. El abordaje terapéutico se parecerá más a los mismo cuadros del adulto; en esos casos, la aparición del conflicto adolescente será un signo de mejoría. Palabras clave: Adolescencia. Defensa. Dependencia. Desidealización. Idealización. Independencia. Regresión. 373 Edmundo Saimovici Referências ABERASTURY, A. Adolescencia. In: ABERASTURY et al. Adolescencia. Buenos Aires: Kargieman, 1971. ARYAN, A. El processo psicoanalítico en la adolescencia. Psicoanálisis, v. VIII, n. 3, 1985. BLOS, P. La transición adolescente. Buenos Aires: Amorrortu, 1981. cap. 19. CARNEIRO LEAO, I. Identification in Adolescence. International Journal of Pshyco-Analysis, v. 67, p. 65, 1986. FREUD, A. Psicoanálisis del desarrollo del niño y del adolescente. Buenos Aires: Paidós, 1957. cap. XI. FREUD, S. (1901). Psicopatología de la vida cotidiana. In: Completas. Buenos Aires: Amorrortu, [s.d.]. t. 6. . Obras . (1905a). Tres ensayos de teoría sexual. In: FREUD, S. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, [s.d.]. t. 7. . (1905b). Fragmentos de análisis de un caso de histeria. In: FREUD, S. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, [s.d.]. t. 7. . (1920). Sobre la psicogénesis de un caso de homosexualidad femenina. In: FREUD, S. 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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Edmundo Saimovici Posadas 1466, 5º “D”, C1011ABJ Buenos Aires, Capital Federal – Argentina e-mail: [email protected] Interpretação e Adolescência Psicanálise v. 12 nº 2, p. 357-375, 2010 376 377 Ane Marlise Port Rodrigues et al. Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes Artigo | Trabalho elaborado pelo Grupo de Discussão de Casos Clínicos de Crianças – Desenvolvimento Normal e Psicopatologia, aberto a médicos, psiquiatras e psicólogos, dentro das atividades da SBPdePA com a Comunidade, em 2009/2010. Ane Marlise Port Rodrigues Membro Associado da SBPdePA. Coordenadora do Grupo de Discussão de Casos Clínicos de Crianças – Desenvolvimento Normal e Psicopatologia, da SBPdePA, 2009/2010. Camila de Matos Ávila Fernanda Munhoz Driemeier Fernanda Silveira Jairo Treiguer Letícia Dornelles Lacerda Patrícia Espíndola Stefani Sadi Machado Psicólogos. Integrantes do Grupo de Discussão de Casos Clínicos de Crianças – Desenvolvimento Normal e Psicopatologia, da SBPdePA, 2009/2010. Resumo: Verifica-se, na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes, uma maior presença e um maior envolvimento do pai no tratamento de seu filho. Observando o pai nesse contexto, os autores discutem, em vinhetas clínicas, como esse pai mostra sua presença na vida do filho, sua possibilidade de vínculo e de exercer ou não a função paterna. Iniciam lembrando da presença dessubjetivante do pai de Schreber em sua infância, relacionando-a com sua psicose. O analista, em sessões com o pai (ou os pais), durante a avaliação e o tratamento do paciente, defronta-se seguidamente com essa problemática em que o pai está ausente – ou até está presente e vinculado ao filho, mas não desempenha a função paterna. Por outro lado, também apontam o risco no analista de uma contratransferência que busca nesse pai (do paciente) o pai idealizado e fálico de sua própria infância, principalmente em analistas mulheres. Palavras-chave: Adolescência. Contratransferência. Função paterna. Infância. Vínculo. Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 378 1 Introdução A família se constitui como um conjunto de vínculos e de lugares (lugar do pai, da mãe, do filho) ocupados por sujeitos por meio de suas ações. Esses sujeitos podem somente repetir padrões transgeracionais ou criar algo novo (BERENSTEIN, 2007). Trabalhar com crianças e adolescentes é trabalhar num campo privilegiado de mobilização do novo, principalmente no próprio paciente. Por vezes, também a mãe e o pai, por amor ao filho, alcançam romper padrões transgeracionais patológicos e conseguem ocupar o seu lugar de pai e mãe, reconhecendo o filho como outro. Os ideais de igualdade de direitos entre homens e mulheres levaram a modificações na forma como tem sido percebida e exercida a função de pais e de mães, tendo surgido novas formas de parentalidade junto das modificações ocorridas na família nuclear; a figura paterna ficou fragilizada, ausente e até desnecessária para algumas mulheres (BORGES, 2005). Na modernidade, a família tem mostrado que as funções de cada um se distribuem de maneira mais fluida e não tão ligada aos lugares clássicos do parentesco (BERENSTEIN, 2007), ocorrendo uma dissolução crescente e deslocamentos desses lugares, e o pai ocupando muitas vezes um lugar desvalido (pai maternal) e não de autoridade, modelo, norma e lei (LANG, 1998). Por outro lado, é reconhecido que esse homem mostra-se mais afetivo, participando nas atividades domésticas e nos cuidados precoces dos filhos (BORGES, 2005). Nesse contexto, verifica-se, na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes, uma maior presença e um maior envolvimento do pai no tratamento de seu filho, sendo que, por vezes, é do pai a iniciativa de procurar ajuda. Inicialmente, o pai presente no cotidiano do filho, mas intrusivo, totalitário e falho na função paterna, será exemplificado com o caso de Schreber, que psicotizou. A seguir, a função paterna na mãe é descrita como fundamental na legitimação do lugar do pai. A fobia do Pequeno Hans pode ser entendida 379 Ane Marlise Port Rodrigues et al. como um chamamento do pai a uma função paterna não bem instalada na mãe, a qual não reconhecia a autoridade do pai. Após conceituar a função paterna, será enfocado, a partir de vinhetas clínicas, o modo como o pai mostra sua presença na vida do filho, sua possibilidade de vincular-se e de exercer ou não a função paterna. Seguidamente, o analista se defronta com essa problemática em que o pai ausente ou até presente não alcança desenvolver um vínculo significativo com o filho, ou não desempenha a função paterna. Também será pontuado o modo como o enquadre, e sua função analítica, simbolizam a função paterna para o analisando ou grupo familiar. Por vezes, observa-se no analista uma contratransferência que busca no pai de seu paciente o pai idealizado e fálico de sua própria infância, principalmente em analistas mulheres (GOLDSTEIN, 2010). 2 Presença do Pai e Vínculo com o Filho – lembrando Schreber Berenstein (2001) usa o termo vincular no sentido de uma estrutura inconsciente que une dois ou mais sujeitos com base numa relação de presença. O vínculo é uma combinação de como o outro se apresenta (sua presença no mundo externo) e sua representação psíquica no sujeito, tendo a peculiaridade de desaparecer da consciência e de constituir um inconsciente que determina modalidades de relação. Na resistência à vincularidade, existe a oposição a dar lugar a uma presença indicada pela condição que o outro tem de alheio, uma oposição a uma nova inscrição do outro (BERENSTEIN, 2007). A presença do outro estrangeiro, a nós mesmos, causa uma imposição de sua marca com a qual temos de lidar. Podemos anular-nos para sermos um com o outro ou fazer uma atividade conjunta cujo produto nunca teria sido alcançado por ações de um só. A imposição pode ser subjetivante (incorpora em um vínculo significativo o alheio e o marca como sujeito da relação) ou dessubjetivante (prima pelo excesso e pelo autoritarismo, anulando o próprio do outro) (BERENSTEIN, 2007). Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 380 Temos em Schreber (FREUD, 1911) um exemplo de uma imposição paterna dessubjetivante descrita por Schatzman (1999) em seu livro “El asesinato del alma: la persecución del niño en la familia autoritaria”. O autor procura demonstrar que várias das peculiares experiências de Schreber – que lhe valeram a etiqueta de paranoico, esquizofrênico e louco – podem vincular-se a procedimentos concretos de seu pai, ao aplicar seus métodos educativos torturantes e totalitários. Schreber tinha um irmão mais velho e três irmãs. Esse irmão psicotizou e cometeu suicídio. Sobre as filhas mulheres, não se tem muita informação, a não ser que uma permaneceu solteira, mentalmente não estava bem e era descrita como histérica. A mãe de Schreber apoiava o marido nos seus métodos de criar os filhos, tomando parte em todas as ideias, nos planos e projetos do marido, sendo sua íntima e fiel companheira para tudo (SCHATZMAN, 1999). Os métodos educativos do Dr. Schreber, pai – que lançou seu livro em 1852, com enorme penetração na Alemanha, sendo considerado por muitos o precursor espiritual do nazismo – preconizavam a regra de que as crianças tinham de obedecer aos pais a partir dos cinco ou seis meses de idade. A independência era considerada desobediência e tinha de ser eliminada (SCHATZMAN, 1999). Podemos imaginar as enormes feridas narcísicas no verdadeiro self do bebê Daniel Paul Schreber e sua impossibilidade de se tornar um sujeito de seu próprio desejo. Pensamos que não se trata apenas de que “teria sido desvirilizado” – segundo Schreber relatou sobre si mesmo –, mas, primeiro, impedido como ser e depois como homem viril. Nesse caso, os pais são ligados aos filhos, mas impuseram uma presença dessubjetivante que se manifestou nos dois filhos homens pela psicose e pela morte por suicídio de um deles (sem espaço para o alheio e próprio do filho: sem vínculo significativo, no sentido de Berenstein). O pai tinha uma presença cotidiana na vida dos filhos, mas não exercia a função paterna libertadora da fusão com a mãe – o próprio pai parecendo colocar-se no lugar dela, num conluio enlouquecedor. A mãe não pôde interditar o marido em seu gozo filicida sobre a prole, aliando-se a ele. Schatzman (1999) refere que, num historial clínico de uma hospitalização de Schreber, estava escrito que seu pai sofria de manifestações compulsivas com impulsos assassinos. 381 Ane Marlise Port Rodrigues et al. 3 A Função Paterna na Mãe e o Pequeno Hans O terceiro (pai, avô materno, tio materno ou equivalente) intervém de modo fundamental para a criança em sua relação com a mãe, como um “preexistente” à própria concepção da criança. Para que a mãe exerça sua função de mãe, é necessário que ela “tenha o pai na cabeça”, que não esteja numa relação na qual o terceiro esteja excluído, ou seja, uma mãe edípica que proíbe o incesto materno primário (MARTY, 2004). O pai na função paterna deve ser endossado por um acordo com a atitude materna em relação ao filho, a fim de alcançar os sucessivos tempos do complexo edípico e sua consequência estruturante, a castração simbólica. A mãe deseja algo que não é o filho, e esse algo está em outro lugar (no pai) (GOLDSTEIN, 1994). É a mulher que cumpre a função de colocar o pai em seu lugar, designálo, ciceronear o encontro entre pai e filho. Para muitos homens, sem a intermediação dela, não persiste esse vínculo que não se libertou de sua origem (a mulher) e acaba sucumbindo uma paternidade que não chegou a se instalar (CORSO; CORSO, 2010). A mãe pode desejar e fomentar a ausência do pai na vida do filho, bem como desejar que mantenha o contato (ou os deveres legais), mas não legitimar a função paterna do pai ao não ter a interdição incestuosa com o filho estruturada em seu psiquismo. Alguns autores entenderam a fobia do Pequeno Hans como um chamamento do pai à função paterna, na medida em que este não foi reconhecido como autoridade pela mãe; não conseguiu veicular a interdição entre mãe e filho no sentido simbólico, sendo a função paterna rechaçada ou inabilitada desde o lugar da mãe (GOLDSTEIN, 1994; LACAN, 1999). 4 A Função Paterna – o lugar do simbólico Mesmo considerando a prevalência da relação mãe-bebê, Aulagnier (1975) restitui a importância fundamental do lugar do pai nos primórdios da vida do sujeito psíquico. Enquanto representante dos outros além da mãe, Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 382 o pai entra como terceira referência que garante à criança uma ordem cultural à qual tanto ele quanto a mãe estão submetidos. Goldstein (1994) esclarece que é necessário diferenciar qualquer tipo de insuficiência paterna – que não chegue a prejudicar a efetividade da função paterna – das insuficiências materna e paterna em que a função não se instale. A função paterna, se instalada na mãe, permanece ativa mesmo que o pai esteja ausente, desaparecido ou morto. O pai pode ser presente, forte ou autoritário e não exercer a função paterna ao não retirar o filho da condição de falo de uma mãe que não aceita a castração. Conforme Leclaire (apud GOLDSTEIN, 1994), a questão que se coloca é a de transcender a imagem para captar a função. A mediação da função paterna adquire um papel preponderante na cena edípica quando o bebê se torna insuficiente como objeto de desejo da mãe: a mãe deseja o pai, e o pai também a deseja. O lugar fálico deixa de estar no filho e na mãe, e passa a ser ocupado pelo pai. É o momento do pai onipotente, absoluto, despótico e terrível (o pai paranoico de Schreber). Na sequência edípica, o pai permite o falo ao filho. O pai possui um pênis, mas não o falo, que circula por todos como um significante do poder. Também o pai (como o filho e a mãe) deve submeter-se à lei de não poder ser tudo e ter tudo (a castração) (GOLDSTEIN, 1994). Lacan (1995) nos fala do pai em seu aspecto tríplice de pai real, imaginário e simbólico, sendo que a função paterna é eminentemente simbólica. Não basta ter um pai encarnado para que sua lei seja efetiva. Na constituição do espaço triangular edípico, a figura do pai (ou o masculino) opera como ponto de equilíbrio e equidistância entre a criança e a mãe (ou o feminino), obstruindo a fusão e a confusão entre ambos, dando nascimento à percepção das diferenças e à simbolização. Esse paiparteiro e libertador do claustro materno também representa o filho que ele foi, libertado da mãe. É configurado como objeto interno a partir da imagem paterna valorizada que a mãe transmite ao filho no processo de seu crescimento, mesmo na ausência do pai biológico. A função paterna lança o filho para o mundo externo e para a cultura (PEREIRA, 2001; SIMEONE, 2010). Perelberg (2009) traz um exemplo clínico de um adolescente que foi em busca do pai ausente em sua vida. Esse pai estava interiorizado como um 383 Ane Marlise Port Rodrigues et al. aspecto do desejo da mãe (houve função paterna e interdição mãe-filho), mas esse lhe faltava enquanto vínculo de presença e estrutura de identificação. Podemos relacionar a regressão edípica na puberdade dos meninos (necessitando da mãe nutrícia, mas com medo da castradora mãe fálica) – quando há um incremento do Édipo negativo como defesa contra a dependência regressiva à mãe (GRECO, 2004) – com um novo chamamento ao pai, na busca de reforçar a função paterna que o retira da mãe e de ressignificar a identificação com ele. Marty (2004) refere que o adolescente coloca fim ao complexo edipiano púbere, recusando a satisfação dos desejos incestuosos e parricidas e se identificando com a função parental. Essa identificação com a função parental, e não mais com a pessoa do pai e da mãe (o que ocorreu na finalização do complexo edípico infantil), assinala o fim da adolescência e o coloca no campo social. Para poder cuidar do outro, é necessário primeiro cuidar de si: ser mãe de si mesmo ao interiorizar a função materna; ser pai de si mesmo ao interiorizar a função paterna, antes de poder ser pai de um filho. Na relação pai-filho se reatualizam ambivalências que marcaram a relação do pai com seu próprio pai. A criança é favorecida se houver uma boa identificação deste com seu próprio pai, tendo aceitado seu papel de filho, a diferenciação dos sexos e de gerações (COSTA; KATZ, 1992). Winnicott (1982, 1994) situa a importância do pai para o filho anteriormente às angústias de separação (eu/não-eu ainda não estabelecido) e às angústias de castração. Ao fornecer uma provisão ambiental adequada e favorecer o estado mental de preocupação materna primária, o pai apoia a mãe a ser suficientemente boa e a lidar com as angústias de aniquilamento do bebê, impedindo seu colapso clínico. 5 Função Analítica, Enquadre e Função Paterna O analista, qualquer que seja seu sexo efetivo, simboliza a função paterna para o analisando, mesmo que as vicissitudes da transferência lhe atribuam os mais variados papéis (BARANGER; GOLDSTEIN; GOLDSTEIN, 1981). Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 384 A relação transferencial pode ser vivida como uma função paterna que o paciente necessita experimentar (SIMEONE, 2010). No atendimento de crianças e adolescentes, essa necessidade pode provir do grupo familiar como um todo, principalmente quando predominam indiferenciações de papéis e lugares entre pai, mãe e filhos e patologias parentais narcísicas ou psicóticas. O próprio enquadre tem a finalidade de apoiar e proteger a relação analista-paciente, semelhante à função do pai em relação à díade mãe-bebê para Winnicott (SIMEONE, 2010). 6 Vinhetas Clínicas Carlos, quatro anos. Começou o tratamento com dois anos e cinco meses com terapeuta mulher. Veio encaminhado pela escola por dificuldades de adaptação na educação infantil, chorando muito ao ser deixado e tendo medos variados. Usava fraldas e tomava mamadeiras ao longo do dia e da noite. A mãe dormia numa cama ao lado de seu berço, pois acordava chorando e pedindo mamadeira, no que era atendido prontamente. Os pais se separaram quando estava com um ano. O pai mora no interior, não tem trabalho fixo, nunca alcançou autonomia financeira, sendo sustentado por seu próprio pai. Mostra-se ligado ao filho, telefona todos os dias e o vê uma vez ao mês. No entanto, Carlos não quer falar com ele, mostrando-se distante. É percebido pela mãe e pelo pai como muito grudado à mãe. O pai declara que “nunca me meti na relação dos dois”. Com o tratamento, pôde retirar as fraldas e mamadeiras, ficando bem na escola. Em períodos de progressos em sua individuação, costuma ficar resfriado e com febrículas. A mãe, imediatamente, deixa de levá-lo às sessões e à escola, permanecendo em casa com ele. Por vezes, arranja compromissos na hora da sessão, dizendo não ter como levá-lo. Observa-se em Carlos a presença de um pai ligado no filho, mas que não gera um vínculo significativo entre ambos e não é efetivo na função paterna, permanecendo mãe e filho ainda indiscriminados. O pai imaturo “toma as mamadeiras” que seu próprio pai lhe dá ao sustentá-lo economicamente aos quarenta e dois anos. A introjeção da função paterna é falha nesse pai-filho mamador. Também a mãe resiste à interdição, o que aparece no seu estímulo em manter o filho regredido e nos boicotes ao 385 Ane Marlise Port Rodrigues et al. vínculo do filho com o pai e com o tratamento. A função paterna que o setting exerce entre mãe e filho e as resistências da mãe às mudanças tornam-se evidentes. Gustavo, sete anos. Em tratamento há um ano com terapeuta mulher. A mãe o trouxe por pressão da escola, pois tem enurese diurna e noturna. Urina-se na sala de aula, estando frequentemente malcheiroso, sendo chamado de fedorento. Tem sérios problemas de relacionamento e aprendizado, é visto roubando o lanche dos colegas e nega, faz palhaçadas para chamar a atenção, briga muito e mente para a mãe. Seus pais separaram-se quando estava com um ano por agressões físicas do pai à mãe, o que resultou em internação hospitalar desta. O pai dela, mesmo com a filha hospitalizada, não aceitava que se separasse do marido agressor por questões religiosas. A mãe rompeu, então, com a própria família. No entanto, repete com o filho o padrão superegoico sádico: manda-o à escola com calça rasgada e suja para puni-lo pela enurese (“Tu tens que te ralar!”). Tem novo companheiro há quatro anos. Não aceita fazer os temas com a mãe, o que gera grandes brigas, mas aceita fazer com o padrasto, que demonstra paciência e interesse por ele. A mãe não autoriza o companheiro a chamá-lo de filho, mas o sobrecarrega com responsabilidades com Gustavo. O pai biológico não aceitou conversar com a terapeuta. É alcoolista, ausente e ilude o filho, prometendo visitas que nunca faz e presentes que nunca dá. Nas brincadeiras, ilustra a falta do pai criando famílias de animais sem pai. O pai teria sido atropelado e morto. Pôde “adotar” o padrasto como pai recentemente, chamando-o de pai do coração. A mãe começa a autorizar o lugar de pai para o padrasto e a acolher o funcionamento regressivo do filho. É como se Gustavo, através de sua impactante sintomatologia, estivesse pedindo por mãe (que acolhe e cuida) e pai (que separa da mãe e diz o que é certo e o que é errado). Falhas importantes na progressão edípica e na constituição de seu superego eram evidentes. Quando a mãe escolhe um companheiro com características maternas e paternas mais estruturadas, oportuniza para si e para o filho a possibili- Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 386 dade de reencontrar um pai benigno, presente no vínculo significativo e na função paterna (que parecia oscilante também na mãe). Sentimentos de acusação e crítica em relação ao pai e mãe biológicos faziam parte da contratransferência inicial da terapeuta. A realidade de um pai não vinculado terá de ser mais bem elaborada por Gustavo. A escolha de um bom companheiro e de bom padrasto mostra recursos da mãe de não simplesmente repetir o traumático (por exemplo, ter um pai que é sádico e que abandona). Mariana, oito anos. Há cinco meses em tratamento com terapeuta mulher. Tem uma irmã de seis anos. Os pais são vistos frequentemente. A mãe buscou ajuda espontaneamente, pois se preocupa com o jeito passivo do pai e teme estar ocupando o lugar dele na relação com as filhas e que isso venha a prejudicar a relação delas com os homens no futuro. O pai perdeu seu emprego há nove meses, está depressivo e sem iniciativa. É a mãe quem sustenta atualmente a casa. O pai reconhece que a perda do emprego abalou sua autoestima e que se retraiu com as filhas, deixando-as mais com a mãe, pois “não tenho mais papo com elas; vejo que entre elas se sintonizam superbem, e aí desisto de entrar na conversa”. Nessa situação, Mariana andava se mostrando triste, resultando em notas mais baixas na escola. Mas se trata de uma criança saudável numa família bem estruturada, com uma reação de tristeza e preocupação com o pai depressivo, mas que sempre esteve presente, vinculado e exercendo a função paterna. A mãe, com a função paterna instalada, sempre legitimou o lugar privilegiado do pai com as filhas e quer que o mantenha. Busca ajudá-lo, ao criar um espaço (o tratamento) para que essas questões possam ser pensadas e para que retome uma posição mais fálico-ativa. O pai também busca essa posição que momentaneamente perdeu, mas foi efetivo na função paterna entre mãe e filhas. O grupo familiar desenvolveu vínculos significativos entre seus membros que favorecem a inscrição do alheio e da relação entre sujeitos. 387 Ane Marlise Port Rodrigues et al. Duda, nove anos. Esse menino começou o tratamento com terapeuta homem aos dois anos e cinco meses, época da separação dos pais. A mãe o trouxe à terapia porque o menino gostava de se vestir com suas roupas, dizendo que era uma menina. Na escolinha, brincava apenas com meninas e era rechaçado pelos meninos. O pai tinha uma presença relutante e ambivalente na vida do filho, oscilando entre assumi-lo ou abandonálo. Fragmento de sessão aos seis anos: “Pegou os bonecos e disse que eu seria o médico e ele a mãe grávida (boneca com bebê embaixo do vestido)”. Duda – Tu fica aqui de pé ao lado dela porque tu é o médico. Agora pega aquele negócio de cortar que os médicos usam e corta a barriga dela para o bebê nascer. [Terapeuta segue suas indicações.] Isso! Ela está esperando. Ela queria que fosse uma menina, já tinha dito isso. Mas tu vai dizer pra ela que nasceu um menino. Terapeuta – Olha, mãe! Teu desejo era de que nascesse uma menina, mas acabou de nascer um menino. Percebe-se, nesse fragmento, como Duda-menino pôde ir nascendo das sessões em seu quarto ano de tratamento, referendado por um homem que diz para a mãe que o filho que nasceu é homem, e não sua menina desejada. O pai-parteiro está ali e faz o corte na intrusão narcísica materna, que se apodera de seu ser e o legitima como menino. Apesar do vínculo do pai com Duda não estar bem estabelecido (enquanto inscrição do alheio) e de ficar tempos sem vê-lo, o pai atendeu à convocação do terapeuta, envolvendo-se no tratamento e na vida do filho. Quanto à função paterna, a própria sintomatologia do menino (“sou a menina que a mãe quer que eu seja”) denunciava sua inoperância. A indiscriminação mãe-filho (sendo o falo da mãe) o condenava a um distúrbio de gênero. Na sessão, podemos reconhecer o imperioso pedido de Duda de que seja reconhecido como menino pela mãe e pelo pai. Numa sessão em que já se percebia claramente como menino, cobrou do terapeuta por que o deixava brincar com brinquedos de menina. Tam- Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 388 bém necessitava ser nomeado como menino pelo terapeuta, situando no setting a geração do simbólico, em que as coisas podem ser nomeadas e significadas. A partir do enquadre, a função paterna pôde ser reafirmada no pai, que assumiu Duda como seu filho homem. O vínculo começava a nascer. Também a mãe passou a reconhecê-lo como um menino com vida própria e a incentivar a presença do pai. Apesar de suas limitações e falhas (tendência a beber em excesso e a ser agressivo), o pai pôde ser valorizado em sua condição de homem e de pai para que Duda pudesse tornar-se Eduardo, e não Eduarda. A contratransferência no sentido de acolher as insuficiências do pai, de valorizá-lo e legitimar seu lugar foi fundamental para que se vinculasse ao terapeuta. Também precisava nascer um pai. E Eduardo sabia disso. Cristiane, doze anos. Em atendimento há dois anos com terapeuta homem. O pai procurou tratamento para a filha por achá-la muito triste. Relacionou sua tristeza com o fato de a mãe, da qual é separado há dez anos e que mora no norte do Brasil, não a procurar. O pai tem a guarda da filha, pois a mãe mostrava instabilidade emocional, tendo o diagnóstico de bipolaridade. Tinha condutas impulsivas, de risco e promiscuidade após a separação. Casou-se novamente há três anos, e a madrasta adotou a menina como sua filha, sendo que se dão muito bem. No entanto, o pai percebe que a filha tem “uma tristeza guardada no coração e não gosta de falar sobre a mãe”. Temos aqui um exemplo de novas configurações familiares nas quais o pai se mostra presente, vinculado, com função paterna, exercendo, ainda, funções maternas que a mãe não consegue. Sua sensibilidade e amor à filha o levaram a procurar ajuda para as tristezas dela. De fato, Cristiane se sentia sem importância para a mãe e temia nunca mais vê-la. Diogo, doze anos. Há dois anos em tratamento com terapeuta mulher. Os pais o trouxeram por dificuldades de relacionamento com colegas, impulsividade, agressividade verbal e dificuldade de focar a atenção no trabalho escolar. Pais casados, mas o relacionamento com problemas e o 389 Ane Marlise Port Rodrigues et al. casamento em risco. Tentaram terapia de casal, mas o marido a interrompeu, pois não queria e não via resultados. A relação de Diogo com o pai era muito difícil, com queixas constantes de o pai ser distante, não participar de sua vida e não se interessar verdadeiramente por ele. A mãe trazia a mesma queixa, o que era um dos motivos das brigas. Mostrava sentimentos agressivos com o pai e se angustiava com as constantes discussões do casal. Sentia a mãe mais próxima e interessada. Seus sintomas foram relacionados com um deslocamento aos colegas e à escola de sua vontade de brigar com o pai e de agredi-lo; com um estado de mente invadido pelos problemas conjugais dos pais, não se focando no aprendizado; com sentimentos de culpa por não ter o poder para resolver as brigas do casal e ainda ser, muitas vezes, o foco das mesmas; com sua imensa e legítima vontade de que o pai ocupasse o lugar de pai em sua vida; entre outros possíveis entendimentos. Atualmente, os pais são separados, sendo que a convivência entre pai e filho aumentou bastante. O pai participa mais de sua vida, e a sintomatologia de Diogo melhorou. Diogo é um menino com uma estrutura edípica, neurótica; tem uma mãe com função paterna introjetada e que lutava para que o pai se vinculasse mais ao filho. O pai mostrava-se inicialmente ausente e desvinculado do filho, mesmo morando na mesma casa. No entanto, a função paterna estava ativa na mãe, que queria o marido para ela, e não só o filho. Quando Diogo era bebê, o pai pôde cumprir seu papel de interditor e atender ao desejo da mãe por ele. Com o tempo, deixou de gostar dela e foi desinvestindo no filho. Com a separação, pôde diferenciar melhor a relação com o filho da relação com a mãe do filho, sua ex-mulher, e incrementar seu vínculo com Diogo. Nesse púbere, a criação dos sintomas poderia relacionar-se ao chamamento do pai para que se tornasse presente, vinculado e passível de identificações para fazer frente a sua adolescência. A terapeuta, inicialmente, teve de lidar com seus sentimentos de irritação e queixas em relação ao pai que via como um boneco inerme, numa identificação com Diogo. Seguidamente, ao lidar com as resistências do pai para se envolver com o tratamento do filho, irritava-se com seu descaso. A possibilidade de manter um vínculo com o pai possível de Diogo, e não Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 390 com o pai esperado, toca nas expectativas inconscientes e conscientes da terapeuta de que o pai se apresente ao filho com características mais fálicas e que o diferencie da mãe. Poder lidar com o pai, com suas falhas e fraquezas (pai incompleto e não idealizado), permitiu à terapeuta sustentar a relação com o mesmo, fortalecendo a possibilidade de vínculo entre pai e filho após a separação do casal. É frequente que, após a separação, o homem se desligue não só da mulher como do filho. 7 Comentários Finais Mesmo que se descreva, na atualidade, uma dissolução crescente dos lugares parentais e dos deslocamentos desses lugares, a intervenção do terceiro (“pai na cabeça” da mãe; função paterna; pai; padrasto; avô materno; tio materno ou equivalente) na díade mãe-filho segue sendo fundamental para impedir a relação fusional que adoece e assujeita a criança. Enquanto a disposição materna da mãe está diretamente relacionada ao bebê, a disposição paterna é considerada contingente (mãe certa/pai incerto) e mais instável; também o sentimento de inveja da capacidade da mulher de criar vida em seu interior é descrito como fator complicador para o bom desenvolvimento da função paterna no sentido amplo (SOUZA NETO, 2001). Mesmo assim, cada vez mais os homens instrumentam suas identificações materno-femininas sem abrir mão da autoridade de pai. Pelos exemplos clínicos, observam-se: o caráter estruturante para o filho da função paterna no psiquismo da mãe; que o pai pode não exercer a função paterna por fragilidade sua ou pela não autorização da mãe; que existem pais presentes na vida do filho que não alcançam exercer a função paterna e não fazem o vínculo significativo; que os pais e padrastos podem exercer seu lado maternal sem abandonar seu lugar de pai e sua função paterna. Birman (2006) traz uma interessante reflexão sobre a feminilidade como uma forma de sexo originário, diferente do masculino e do feminino – um outro sexo não marcado pela lógica do falo. As condições masculina e feminina seriam sempre fálicas em oposição a essa feminilidade originária, repudiada por sua condição imperfeita e obscura. Nesse sentido, a 391 Ane Marlise Port Rodrigues et al. feminilidade dos homens pais vem encontrando maior espaço na cultura atual. Lembrando Winnicott, a ideia de um pai e de uma mãe suficientemente bons inclui suas imperfeições e falhas. Também o setting analítico como um terceiro entre mãe e filho pode ajudar o pai e a mãe na instalação mais sólida da função paterna e materna. Suportar a condição imperfeita e obscura de pai e de mãe, abrindo mão das exigências de que sejam fálicos e poderosos, permite conter contratransferências que poderiam ameaçar os tratamentos. Father Presence, Father Link and Father Function: thinking about the father in the actual psychoanalytical clinic of children and adolescents Abstract: It is verified in the actual psychoanalytical clinic of children and adolescents a bigger presence and involvement of the father in his son’s treatment. Observing the father in this context, the authors discuss through clinical vignettes how the father shows his presence in his son’s life, his linking condition and the possibility of performing or not the father function. They begin by recalling Schreber’s father’s dessubjetivante presence in his childhood, relating it to his psychosis. The analyst, through sessions with the father (or parents), during the evaluation and treatment of the patient, continuously faces this issue where the father is absent or even present and linked with the child, but does not perform the father function. On the other hand, they also point to the risk in the analyst producing a countertransference that searches in this patient’s father the idealized and phallic father of his/her own childhood, mainly in female analysts. Keywords: Adolescence. Childhood. Countertransference. Father function. Link. Presencia Paterna, Vínculo y Función Paterna: pensando el padre en la clínica psicoanalítica actual de niños y adolescentes Resumen: Se verifica en la clínica psicoanalítica actual de niños y adolescentes una presencia e interacción más grande del padre en el tratamiento de su hijo. Observando el padre en este contexto, los autores discuten por medio de viñetas clínicas cómo este padre muestra su presencia en la vida del hijo, su posibilidad de vínculo y de ejercer ó no la función de padre. Empiezan recordando la presencia desubjetivante del padre de Schreber en su niñez, relacionándola con su psicosis. El analista, por medio de sesiones con el padre (ó padres), durante la evaluación y tratamiento del paciente, se encuentra a menudo con este problema del padre ausente ó hasta presente y vinculado al hijo, pero no desarrollando la función paterna. Por otro lado, también mencionan el riesgo en un analista de una Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 392 contratransferencia que busca en este padre de su paciente el padre idealizado y fálico de su propia niñez, principalmente en analistas mujeres. Palabras clave: Adolescencia. Contratransferencia. Función paterna. Niñez. Vínculo. Referências AULAGNIER, P. A Violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1975. BARANGER, W.; GOLDSTEIN, N.; GOLDSTEIN, R. Z. Las teorías analíticas y la matanza del padre. In: ______. Artesanias psicoanalíticas. Buenos Aires: Kargiemann, 1981. p. 421-428. BERENSTEIN, I. Del Ser al Hacer. 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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Ane Marlise Port Rodrigues Rua Carvalho Monteiro, 234/606 90470-100 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010 394 outras contribuições 397 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Artigo Augusta Gerchmann Psicanalista, Membro Titular e Didata da SBPdePA, Membro Pleno do CEPdePA, Membro Docente do Contemporâneo – Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade. Bárbara de Souza Conte Psicanalista, Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Presidente da Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Sissi Vigil Castiel Psicanalista, Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Diretora de ensino da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Autora do livro Sublimação: clínica e metapsicologia, Editora Escuta, São Paulo, 2007. Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão sobre o feminino e a feminilidade no contexto das transformações que a contemporaneidade vem gerando na intimidade do ser mulher, desde o que Freud chamou de “continente negro”, para caracterizar o feminino e sua constituição psíquica, até a relação que hoje estabelece com o homem, seja de sexo ou de amor. Para tanto, utilizamos, também, algumas ideias, por nós tramitadas, da representação que Almodóvar constrói sobre o feminino. Palavras-chave: Feminino. Identificação. Narcisismo. 1 Da Constituição do Ser ao Ser Mulher Eu não saberia dizer o que é o mais importante, a vida ou a criação. Às vezes a vida transforma-se em objeto de criação. (ALMODÓVAR, Pedro). Sabe-se que o ser humano nasce bissexual; sua sexualidade é perversopolimorfa e, desde o nascimento, necessita de auxílio alheio para vir a se Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 398 constituir como sujeito psíquico. Esta pode ser uma árdua tarefa, na atualidade, para meninos e para meninas, uma vez que aqueles com quem inicialmente poderiam ou deveriam contar nesse processo de constituição apresentam dificuldade de abrir mão de seu próprio narcisismo para realizar a ação específica, ou seja, realizar com o sujeito incipiente a primeira e funda-mental experiência de satisfação. Percebe-se, muitas vezes, na clínica, que as inscrições que estruturam o inconsciente recalcado dos sujeitos da atualidade carregam a marca do narcisismo daquele que executou a função materna. Partindo-se do princípio de que o outro demanda ao demandante sua própria necessidade, isso não coincide com o desejo daquele que ainda não sabe nomeá-lo. Assim, ao não saberem o que querem e na busca desenfreada de uma satisfação, aceitam aquilo que lhes é oferecido. Esse comportamento é característico do estabelecimento de relação do tipo narcisista não anaclítica e que, portanto, entendemos como obstáculo à construção da feminilidade ou do ser mulher. A partir da forma paradigmática da constituição narcísica na atualidade, como se daria a trajetória ao feminino? Freud referia que a resolução do conflito edípico é mais complexa para a menina do que para o menino. Para o fundador da psicanálise, a menina tem de mudar de objeto de desejo depois de realizada a identificação primária, devendo retornar à mãe a fim de realizar a identificação secundária. Assim, ela resolve seu conflito com aquela que foi sua principal rival – a mãe. Como ratifica Silvia Bleichmar (2006), em Paradojas de la sexualidad masculina: [...] enquanto a sexualidade feminina é o resultado de um trabalhoso caminho que implica uma mudança de zona e de objeto, a sexualidade masculina se articula em contiguidade com os primeiros tempos da vida, desde que o objeto primordial de amor, a mãe, é também o posterior objeto de desejo: a mulher (p. 79). Parece-nos que as peculiaridades da construção do amor narcisista podem trazer consequências para o exercício da feminilidade, uma vez que a mulher busca desenfreadamente o amor de um homem, com quem reedita o vínculo narcisista não desfeito com a mãe. 399 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel Percorramos o caminho dessa escolha. 2 Identificação Primária e seus Desdobramentos Na obra de Freud (1921), sobre a primeira forma de escolha objetal, encontramos que é reconhecida como identificação primária, conceito central para a compreensão do eu e do si mesmo. O autor define a identificação primária como a forma mais primitiva do laço emocional que o sujeito estabelece com outra pessoa, a primeira relação afetiva com seu semelhante. É uma relação direta, imediata, em que o sujeito tende a assimilar as atitudes e emoções do objeto. Para que essa primeira relação ocorra, é necessário que o outro se coloque no lugar do sujeito, de forma empática, a fim de poder compreendê-lo e traduzir sua demanda, relacionada à pulsão de autoconservação, em primeira instância, e, posteriormente, à pulsão sexual. Na medida em que a identificação primária é o primeiro laço emocional do sujeito com o outro, existe toda uma relação desta com o narcisismo. Com efeito, os apontamentos freudianos feitos em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) permitem supor que é através dela que se forma o ego: o sujeito se constitui a partir do que o outro diz que ele é. Ao autoerotismo deve-se acrescentar uma nova ação psíquica que constitui o narcisismo: a constituição de um Eu incipiente, que passará a identificar o que é prazer com o Eu e o que é desprazer com o Não-Eu. Lacan (1998) retoma os conceitos freudianos em O estádio do espelho como formador da função do eu, afirmando que o sujeito se apreende como corpo em uma experiência em referência ao outro; a origem do ego é, portanto, muito mais especular do que centrada no sistema percepção-consciência e no princípio de realidade. Assim sendo, o sujeito aprenderá a reconhecer seus próprios desejos através do outro, posteriormente, quando a linguagem entrar em jogo. Antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária e especular alienada do outro. Dessa forma, assumindo-se que o narcisismo do sujeito é sustentado pelo narcisismo dos pais, podemos supor em algumas situações que, se o outro – aquele que participa da experiência de satisfação – não puder abrir mão de seus desejos narcisistas, o sujeito poderá permanecer submetido ao desejo de seus pais. Quando submetido, não pode ir ao encontro de Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 400 seu próprio desejo, o que caracteriza o gozo do outro como aquela condição de gozo que aliena a criança ao desejo da mãe. Strauss (2008), em entrevista com Almodóvar, menciona que o cineasta surge com os impasses do feminino e do masculino em sua obra. Segundo declaração de Almodóvar: [...] esse período, depois da morte da minha mãe, coincidiu para mim com uma brutal tomada de consciência da passagem do tempo [...] Isso conferiu certa gravidade à minha vida, e a verdade é que não é uma sensação agradável: a consciência do tempo perpassando as coisas mais concretas, a deterioração física, o medo e a incompreensão da morte (p. 282). Na mesma entrevista aludiu que: [...] minha sensação é que esse medo da passagem do tempo me paralisa um pouco. É o que acontece quando olhamos sempre para o futuro, como fiz a minha vida inteira, sem nunca nos voltarmos para o passado (p. 282). O relato do cineasta é exemplo real de que a identificação é constitutiva do eu, porque permite a apropriação do que é do outro no si mesmo, enquanto o acesso à condição do feminino e do masculino supõe a separação e a perda dos objetos amados da infância. Ressalte-se que, a partir de um primeiro tempo de indiscriminação a respeito de quem é a criança e quem é a mãe, deverá ocorrer uma ruptura, um corte que corresponde à perda do objeto amoroso primário. Assim, se interrompe o gozo do outro. Essa problemática está documentada no filme Volver (Almodóvar, 2006) quando são retratados o incesto e a morte. Volver para mim era retornar à minha infância a fim de poder me despedir dela. Não foi o filme que me permitiu fazer o luto por minha mãe, pois eu já tinha deixado essa etapa para trás, mas foi o que me ajudou a considerar daí para frente minhas lembranças como lembranças [...] (p. 283-284). A partir das questões relativas à identificação primária, põe-se em destaque o primeiro tempo da constituição do eu, qual seja, a identificação e o 401 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel abandono do primeiro objeto de amor, percurso necessário para se lograr ser homem ou ser mulher. Freud (1921) reconhece que a identificação consiste na ação de se tornar idêntico ao seu semelhante, ou seja, idêntico a um ou muitos atributos do objeto que participa da experiência de satisfação. No entanto, o sujeito é inicialmente passivo em relação ao seu semelhante, daí se dizer que ele sofre os cuidados que lhe são conferidos, não havendo possibilidade de escolha. Esse tipo de identificação “desempenha um papel na préhistória do Complexo de Édipo” (p. 99) e sofrerá desdobramentos ao longo da vida adulta. As identificações que compõem a pré-história do Complexo de Édipo diferem na relação com o pai, no caso do menino, quando este toma o pai como ideal, sem, no entanto, ser uma atitude passiva ou feminina. Para Freud, essa é uma atitude “masculina por excelência”. Na identificação com a mãe, dá-se um investimento objetal segundo o tipo anaclítico, ou seja, um investimento sexual de objeto. Esses dois laços com a mãe e com o pai coexistem em um período e, apesar de diferirem, não se influenciam nem se perturbam mutuamente. De sua unificação – mais tarde, no desenvolvimento – nascerá o Complexo de Édipo. 3 Identificação Secundária A problemática edípica feminina está colocada por Freud (1925) em seu artigo Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, no qual enfatiza a pré-história do Complexo de Édipo na menina e o impacto que lhe causa “descobrir” que a mãe é castrada. Veja-se, in verbis: [...] enquanto o Complexo de Édipo do menino vai ao fundamento devido ao complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido por este último. Esta contradição se estabelece quando se reflete como o complexo de castração produz em cada caso efeitos no sentido de seu conteúdo: inibidores e limitadores da masculinidade, e promotores da feminilidade (p. 275). A castração, nessa perspectiva, está diretamente ligada à posse do pênis, que, no menino, assumiria a qualidade de castigo pela condição da perda Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 402 e, na menina, surgiria como premissa de que pudesse vir a ter um pênisbebê. A castração supõe, então, a perda, como elemento simbólico, e o abandono dos investimentos dos objetos edípicos, esforço de ambos os sexos do qual emerge uma nova dimensão do que é castração. Para que o sujeito faça a passagem do Complexo do Semelhante ao Complexo do Próximo, ou seja, reconheça o outro separado de si, torna-se necessário o interdito – interdição que separa dois corpos e dois desejos, a mãe desejante de seu homem, a filha ou o filho que deseje sua mãe, sem ter acesso a esta, para depois passar a desejar o pai e sofrer seu interdito em virtude do amor da mãe por este. O superego será precipitado do ego, consistindo em duas identificações: com o pai e com a mãe. Essa identificação, considerada secundária, seria posterior à herança deixada pelo narcisismo original, constituindo o Ideal do Eu. No entanto, seu início se dá a partir da identificação com o pai ideal da infância, que constituiu a identificação primária e o ego ideal, conforme descrito acima (FREUD, 1923). Nesse artigo, Freud diferencia a situação de uma criança identificada com seu pai ou mãe, ao querer ser como um deles, da situação em que os converte em seu objeto de escolha, ao desejar possuir um dos progenitores. Em situações de regressão, a escolha de objeto pode retornar a uma identificação quando, para compensar a perda de um objeto amado, o sujeito se identifica regressivamente com ele. Nesse caso, estaríamos adentrando o campo da melancolia. Previamente, apontou-se que as identificações primárias baseiam-se em uma relação direta com o objeto e são definidas a partir da ideia de que o sujeito é o que o outro diz que ele é. As identificações secundárias e o superego, por sua vez, são fundamentados na perda da relação direta com o objeto primordial. Depois do afastamento da mãe como objeto amoroso, pode-se pensar que a passagem do feminino à feminilidade ocorre em virtude do olhar erotizado do pai, o qual a reconhece “princesa” e por quem deverá ser admirada e olhada, podendo, inclusive, nesse processo, falicizar seu corpo de mulher, segundo Assoun (1994), “no momento em que precisamen- 403 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel te o vir a ser mulher se inscreve como transformação corporal” (p. 18, grifo nosso). Nesse contexto, o ser mulher surge para o olhar do outro – paterno, logo masculino. O destino do amor pelo outro, que nasceu do olhar do pai sobre a menina, “passará a depender da imagem do amor provocada por ela no outro, a quem ela colocará no lugar do pai” (ASSOUN, p. 19). No entanto, essa passagem do amor pela mãe para o amor pelo pai não é tarefa fácil, principalmente quando consideramos a ideia inicial dos impasses para a saída do vínculo narcisista com a mãe na atualidade. Nessas circunstâncias, não há uma escolha objetal por parte da mulher na vida adulta. Para dar lugar à feminilidade, a mulher deveria realizar o trabalho de renunciar ao seu próprio narcisismo, reconhecendo a presença do outro e o desejo por esse outro. Em função desses aspectos, consideramos que, na atualidade, o amor deu lugar ao sexo, e o objeto do sexo se tornou indiscriminado, uma vez que o objeto do sexo não coincide com o objeto de amor. Em primeira perspectiva, a redução do objeto de amor a objeto sexual ocorre pela não transposição do olhar da mãe para o olhar do pai; o objeto, assim, fica reduzido a um objeto de descarga que representa a ilusão de reencontrar o primeiro vínculo amoroso. Considere-se, nessa senda, a acepção que a palavra cuidador adquire no nosso tempo, quando a relação amorosa é buscada com a suposição subjacente de que um ou outro – homem ou mulher – necessita de cuidado, em lugar de se pensar em uma troca amorosa. Ainda no contexto dos impasses da relação da menina com a mãe e de seus impedimentos de se dirigir ao pai, percebe-se que, na feminilidade, a preocupação com o corpo diria respeito a encantar e seduzir o homem. Em contraposição, quando essa preocupação toma o rumo narcísico e se estabelece de forma desmesurada, fica o olhar sempre voltado para o próprio eu, desaparecendo o outro como aquele que se quer encantar. O encanto é o próprio corpo, e o seu excessivo cuidado, a forma narcísica de satisfação. Em outra perspectiva, podemos pensar, no caso da menina, a partir da transposição do passivo ao ativo, ou seja, da busca ativa da sedução, Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 404 objetivando um olhar outro que lhe dê a garantia de ser desejada como mulher, não mais impedida em sua feminilidade, o que configura caminho necessário para o ser mulher (CONTE, 2005). A passividade narcisista à qual está exposta a criança, neste caso, a menina, necessita ser transformada em atividade, e é o desengano – e não a inveja do pênis – o veículo desse movimento. O desengano vai mais além da percepção da ausência do pênis na mãe; torna-se a descoberta de que a mãe não mais sustentará o olhar de desejo da filha. O temor é a perda do amor da mãe, que necessariamente será substituído pelo amor de um homem. Esse trabalho se dará pela transformação da sedução infantil passiva em atividade de busca de outro amor. O paradigma edípico sustentado no falicismo da inveja do pênis adquire nova versão: a transformação do passivo em ativo. As fantasias edípicas passivas, femininas, masoquistas, de sofrer das mais variadas formas – inclusive ser espancada como expressão do ser amada – modificam-se em atividade e feminilidade, gerando novas formas de amar e ser amada e se desvinculando das condições de sofrimento. Esse destino não resta cumprido em Volver, no qual se vê mãe e filha que não se desprenderam. “As mulheres de Volver se conhecem de verdade quando se preparam para partilhar uma refeição [...]” (p. 286). Para Almodóvar, “[...] a mãe ficava deslumbrada por ter uma filha tão bonita: era sua perolazinha, e queria fazer dela uma atriz, maquiando-a e penteando-a. Na verdade, transformava a filha numa terrível tentação para os homens e, acima de tudo, para seu pai. Essa cena conta, de uma maneira evidentemente dissimulada, a origem da fantasia do pai, que virou de cabeça para baixo toda a história da família” (STRAUSS, 2008, p. 286). Assim, o olhar da mãe cedeu ao desejo incestuoso do pai, e o incesto foi consumado. Destino esse que, enquanto fantasia da filha que contém o olhar narcisista da mãe e o desejo não interditado do pai, cria um impasse no percurso de sua feminilidade. O componente erótico, nesse contexto, mais coloca em risco a integridade narcisista corporal, à medida que o amar perde seu lugar e nele se insere o incesto, como metáfora da posse do corpo para o gozo. Ultrapassar o tempo, passar do passivo ao ativo pressupõe, novamente, a renún- 405 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel cia do amor perdido e a contrapartida necessária da expropriação do corpo da criança pelas figuras parentais. 4 O Destino da Feminilidade e seus Impasses A subjetivação – ou produção de subjetividade – é entendida como conceito histórico-social e alude ao modo como cada sociedade determina as formas com as quais um sujeito se constitui como sujeito social e se insere no mundo. Dessa forma, podemos pensar que a produção de subjetividade no mundo contemporâneo contempla uma cisão entre o sujeito performático, perfeito, narcisista, e o sujeito do inconsciente, que supõe o limite da não satisfação. Poder-se-ia pensar, com base em Debord (1997), que uma indistinção entre o ser e o parecer, entre o espetáculo e a realidade, também implica o exercício da sexualidade, uma cisão entre o gozo e o recalque. Porém, a sexualidade, assim entendida em outro tempo como perversa, hoje em dia acompanha esse estado narcísico de desempenho e perfeição e de banalização dos relacionamentos amorosos. Bleichmar (2006) demonstra que a perversão é a “de-subjetivação” do outro e o caráter parcializado que seu corpo cumpre como lugar do gozo, quando o exercício da pulsão não está integrado aos componentes amorosos, ou seja, quando a pulsão não está ligada ao amor, gerando o fracasso da intersubjetividade (p. 85-86). Já os modos de exercício da sexualidade em sujeitos neuróticos “não raro são capturados em montagens perversas” (FLEIG, 2008, p. 35), instaurando novas formas de laços sociais e patologias. Nessa mesma perspectiva, McDougall (1997) aproxima as práticas sexuais aditivas, como masturbação, escolha indiscriminada e trocas de parceiros, a um “namoro com a morte” no jogo sexual. Nesse jogo, a angústia de castração fálica e os temores primordiais do aniquilamento e da morte se tornam perpetuamente erotizados, como uma saída e, ao mesmo tempo, uma chegada no modo perverso de sobrevivência psíquica (p. 219). No entanto, a satisfação esbarra sempre no vazio e se torna uma forma de prazer, apesar de invertido – pela erotização do terror como uma forma de sobrevivência do self (p. 222). Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 406 Para a autora, o triunfo da solução aditiva da masturbação, por exemplo, ou do uso de um outro indiscriminado é triplo, pelo desafio à mãe – objeto da identificação primária –, ao pai – que falhou na interdição – e à própria morte – quando a compulsão esbarra no vazio interno. O vazio, nesse sentido, são a perda de sua própria identidade – ser mulher – e a sua incapacidade de escolha, através da troca de parceiros. Esse tipo de escolha, que McDougall denominou de ‘neossexualidade’, é uma defesa, antes de tudo, ao temor de psicotizar, devido à vivência do desamparo inicial que é, assim, re-atualizado. Nesse contexto, a autora propõe a busca de um novo paradigma. Contudo, questionamos: em que ele estaria ancorado? Castiel (2009), compartilhando desse entendimento, afirma que o mandamento da cultura atual é “o que você quer você pode – e agora”, ou seja, o gozo imediato. A consequência que isso trouxe às relações entre homens e mulheres que acompanhamos na clínica e na vida refere-se ao direito a ter uma sexualidade satisfatória em iguais condições para ambos. No entanto, o vínculo entre o homem e a mulher se transformou não em uma intimidade maior entre ambos, pelo contrário, o encontro, muitas vezes, ficou reduzido ao exercício da sexualidade independente do objeto. Com isso, o objeto de amor foi reduzido a eventual parceiro sexual; a liberação sexual não trouxe profundidade de relacionamento. Estamos em tempos de sexo. O “você quer você pode” é lido em relação ao exercício da sexualidade, pura descarga. Enfim, o que os autores demonstram é que os jogos perversos e o narcisismo permeiam os relacionamentos da atualidade. As falhas do narcisismo dos “cuidadores” podem implicar falhas na constituição psíquica do sujeito, na medida em que são capturados pelo desejo do outro. Essas são marcas de nossa época que caracterizam um destino da feminilidade, em que o excesso de olhar para si mesmo não dá lugar à intimidade com o outro, mas sim a uma espécie de autossedução. 5 À Guisa de Conclusão Retornando a Freud, (1937), quando fala sobre o “leito de rocha”, pergunta-se até onde podemos ir numa análise, relacionando o seu término à inquestionável diferença entre os sexos. O leito de rocha repousa, na mulher, sobre “[...] a inveja do pênis, o positivo desejo de alcançar a pos- 407 Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel sessão de um genital masculino e, no homem, pela revolta contra sua atitude passiva ou feminina sobre outro homem [...]” (p. 252). Para ambos os sexos, nomeou-se esse fenômeno de complexo de castração. Tomou de Adler a designação de “protesta masculina”, que identifica a desautorização da feminilidade no homem e o trauma da castração na mulher, que encontra sua manifestação na inveja do pênis. Adverte que, em ambos os casos, o que cai sob a repressão é o próprio do sexo contrário (p. 252). Questionamos se a rocha sobre a qual repousa a questão tão atual do ser mulher não terá mudado seu paradigma. A inveja do pênis não parece mais o grande obstáculo a ser ultrapassado para nos encontrarmos em direção à cura. Entendemos que o obstáculo é a presença marcante da perpetuação do narcisismo e de seus desdobramentos sob a forma de jogos perversos, tanto no amor dirigido a um homem quanto no amor de transferência. Amor que, encerrado na solidão narcísica ou no jogo da crueldade, não proporciona a intimidade e a troca amorosa necessária, dando lugar ao ato criativo do encontro. Concluímos com Almodóvar, quando conta que “o que caracteriza as personagens de meus filmes tem muito a ver com minha vida pessoal, minha maneira de viver” (p. 278). O cineasta fala de sua solidão, mencionando que: Essa é a solidão que caracteriza a condição de todo ser humano, mas é também uma solidão que provoquei, que construí incansavelmente, isolando-me, mudando pouco a pouco meu estilo de vida, dedicandome cada vez mais à leitura, à escrita, todas essas coisas que só podemos dividir conosco. [...] Mas, depois desses longos anos de solidão, voluntária e imposta ao mesmo tempo, sinto que chegou a hora de voltar a me abrir para a realidade exterior. [...] Sinto vontade de me impregnar dessa nova realidade, que muda incessantemente. Volver fechou um ciclo, e eu gostaria de poder passar para outra coisa agora (2008, p. 279). Reflections on the Fate of the FEMININE BEING Abstract: This paper presents some reflections on the feminine and on femininity in the context of changes which the contemporaneous world has produced in the Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 408 intimacy of the female being, from what Freud referred to as “dark continent” – to characterize the feminine and its psychic constitution – to the sex or love relationship women foster with men nowadays. For that purpose, we also use, some ideas, raised by us, about the representation Almodóvar makes of the feminine. Keywords: Feminine. Identification. Narcissism. Reflexiones sobre el Destino del SER MUJER Resumen: Este trabajo propone una reflexión sobre el femenino y la feminidad en el contexto de las transformaciones que la contemporaneidad viene generando en la intimidad del ser mujer, desde lo que Freud nombró “continente negro”, para caracterizar el femenino y su constitución psíquica, hasta la relación que hoy establece con el hombre, sea de sexo o de amor. Para ello, utilizamos, también, algunas ideas, por nosotros tramitadas, de la representación que Almodóvar construye sobre lo femenino. Palabras clave: Femenino. Identificación. Narcisismo. Referências ASSOUN, P.L. Freud y La Mujer. Buenos Aires: Nueva Visión, 1994. BLEICHMAR, S. Paradojas de La Sexualidad Masculina. Argentina: Paidós, 2006. CASTIEL, S. V. Transformações na intimidade no século XXI. 2009. Mesa redonda no Colóquio Internacional sobre o Método Clínico, São Paulo, 2009. 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Buenos Aires: Amorrortu, 1989. tomo 23. KUNZLER, F.; CONTE, B. Cruzamentos 2. Pensando a violência. São Paulo: Escuta, 2005. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. MCDOUGALL, J. As Múltiplas Faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997. STRAUSS, F. Conversas com Almodóvar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Augusta Gerchmann Rua Florêncio Ygartua, 270/1107 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Bárbara de Souza Conte Tobias da Silva, 99/505 90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Sissi Vigil Castiel Rua Frei Henrique Trindade, 430 90480-140 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Reflexões sobre o Destino do SER MULHER Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010 410 411 Carlos de Almeida Vieira Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estéticoliterário Artigo Carlos de Almeida Vieira Membro Titular e Analista Didata da Sociedade de Psicanálise de Brasília, Analista com Funções Didáticas da Sociedade Psicanalítica de Recife e do Núcleo de Psicanálise de Aracajú. Resumo: O autor propõe, nesta comunicação, aproximar dois pensadores contemporâneos: J. L. Borges (1899-1986) e W. R. Bion (1897-1972). Coincidentemente, na biblioteca dos dois encontramos semelhantes leituras e autores, principalmente no que toca à literatura, especificamente a de língua inglesa. O artigo pretende chamar a atenção dos psicanalistas para a relevância do vértice estético-literário. Mostra a importância do pensamento de Borges, sua disciplina de ofício e recortes com os quais o autor espera colaborar para a formação de um psicanalista pelo viés de Bion. Ressalta também a capacidade de observação dos fenômenos da alma humana, a importância da intuição e dos recursos estéticos como tarefa metodológica e o treino, no que toca ao psicanalista, da necessidade de se dedicar ao estudo dos autores ditos “canônicos” em literatura, a fim de desenvolver, desse modo, sua sensibilidade para apreender aquilo que se encontra além do dito, do sensorial e do manifesto. Palavras-chave: Literatura. Formação psicanalítica. Poesia. 1 Introdução Se a intuição é tão importante, por que o treinamento e a educação de um analista não incluem atividades artísticas e poesia em particular? Bion – Provavelmente porque se precisa de tempo, e não porque o tema careça de importância. Espera-se que o candidato tenha adquirido experiência estética antes de começar sua formação psicanalítica. (BION, 1978, p. 79). Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 412 Por que não estudam diretamente os textos? Se esses textos lhes agradam muito, que bom; e se não lhes agradam, abandonem a leitura, já que a ideia de leitura obrigatória é uma ideia absurda: seria o mesmo que falar em felicidade obrigatória. Acredito que a poesia é algo que se sente, e se vocês não sentem a poesia, se não têm um sentimento de beleza, se uma história não os leva ao desejo de saber o que aconteceu depois, o autor não escreveu para vocês. (BORGES, 2006). W. R. Bion deixou clara a importância de se considerarem os fenômenos da mente sob três vértices de observação e estudo: o vértice científico, o místico-religioso e o estético-artístico. Neste trabalho, enfocarei especificamente o vértice estético-literário, extraindo e pensando vinhetas em escritos de Bion e, principalmente, de Jorge Luis Borges. Sabemos que na biblioteca de Bion autores como Milton, Dante, Shakespeare, Keats, Coleridge, Wordsworth, Erza Pound, William Blake e outros tantos poetas de língua inglesa estavam presentes, assim como na de Borges, e faziam parte de suas leituras. Desconhecemos se Borges estava lá. Há uma tentativa, por parte de Meg Harris (2009), de ver no “Tigre” de William Blake semelhanças com o “Tigre” de Borges, mas não há citações de Borges nos escritos de Bion em sua vasta obra – textos teóricos, supervisões, conferências e seminários clínicos – em que sempre esteve presente a necessidade do rigor e da disciplina da observação dos fenômenos da realidade psíquica, método que requer intuição e capacidade estética do analista, entre outros requisitos. Obviamente, não estou negando a importância da questão científica. Não me ocupo aqui em dar maior ênfase às vinhetas de trabalhos de Bion, e sim em apresentar Borges como um pensador, além de escritor e poeta. Uma pessoa que, coincidentemente, lia e relia os autores de língua inglesa acima mencionados e sempre procurava tirar proveito do trabalho deles para desenvolver e expandir suas ideias de labirinto – uma metáfora que o acompanhou por toda a sua vida à procura da verdade. Apreender a natureza humana, o sofrimento, a dor, a vitória e a capacidade do homem de procurar sempre o si mesmo, ainda que sempre acompanhado e confundido com o outro; essa duplicidade de Eus ou esse mistério da alma humana ter sempre uma natureza limítrofe: consciência-inconsciência, vida-morte, realidade interna-realidade externa, sonho-realidade. A propósito, um dos poetas visionários, William Blake, nos ensina que “sem os contrários não há pro- 413 Carlos de Almeida Vieira gressão”, em seu belo poema O casamento do céu com o inferno. Enfatizo, nesta comunicação, vinhetas e passagens, principalmente de três obras de Borges: Os ensaios sobre a poesia, Sobre o pesadelo e A memória de Shakespeare, além de fragmentos de outros escritos. O sonho Quando os relógios da meia-noite prodigarem Um tempo generoso, Irei mais longe que os vogas-avante de Ulisses À região do sonho, inacessível À memória humana. Dessa região imersa resgato restos Que não consigo compreender: Ervas de singela botânica, Animais um pouco diferentes, Diálogos com os mortos, Rostos que na verdade são máscaras, Palavras de linguagens muito antigas E às vezes um horror incomparável Ao que nos pode conceder o dia. Serei todos ou ninguém. Serei o outro Que sem saber eu sou, o que fitou Esse outro sonho, minha vigília. E a julga, Resignado e sorridente. (BORGES, 2009). Nesse poema, Borges, que sempre se dedicou ao tema dos sonhos em seus trabalhos, mostra-nos sua profunda capacidade de expor sobre a angústia do querer-se atingir a realidade última, mas ao mesmo tempo que sabe ser a tarefa impossível, isto não o faz desistir, como Freud e Bion. Sabemos que ela está lá, no “infinito informe”, de Milton, mas nunca a atingiremos, o que não nos mata a curiosidade, a ousadia e a coragem de seguirmos em frente. “Dessa região imersa resgato restos que não consigo compreender.” O inconsciente é essa região, na investigação psicanalítica. Wilfred Ruprecht Bion e Jorge Luis Borges foram dois pensadores do século XX envolvidos na busca da essência do Ser, dois visionários em seus campos de investigação. Bion chega ao fim de sua obra escrevendo, sob a forma de “literatura fantástica”, a sua visão abrangente do conhecimen- Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 414 to técnico e teórico da psicanálise. Borges fez de sua vida de poeta, escritor e ensaísta um misto de realidade e ficção, sempre apontando para o desconhecido da alma humana. Se o primeiro orientava-se em direção a O, à coisa-em-si de Kant, às formas ideais de Platão e à Teoria da Incerteza de Heisenberg, Borges passou sua vida entremeado entre alegrias e pavores diante do Espelho, diante da beleza e do horror do Tigre, lendo e relendo obras canônicas, resgatando autores, principalmente os poetas ingleses, os mesmos que estavam na biblioteca de Bion. Em seus escritos, Borges e Bion foram dois pensadores que, antes de afirmarem algo categórico, sempre duvidavam do saber instituído e afirmavam que as teorias encobriam a possibilidade da leitura dos homens, da leitura das pessoas, tentando apreender a essência ou dela sempre se aproximar. São obras insaturadas, obras provocativas, pois não se conformam nem se entusiasmam com ideias fundamentalistas de escolas, tanto nas artes como na ciência. Platão e Sócrates eram os esteios para que suas ideias não se fechassem e se tornassem “crenças”. Para isso, os dois se preocupavam com a disciplina da criação: Borges, na feitura dos versos e de sua prosa; Bion, na delicadeza de respeitar a observação dos fenômenos da alma humana. James Grotstein (2010) afirma que Bion somente tinha uma certeza na vida: a certeza de sua ignorância. Aliás, a única certeza de Bion é que nada é certo, daí a metodologia psicanalítica poder gerar “tolerância às incertezas” como suporte da capacidade negativa. Borges, citado por Solange Fernández Ordóñez (2009), em seu belo livro “O olhar de Borges – uma biografia sentimental” escreve: “Essa poderia ser a sua maneira de nos transmitir que a condição essencial da vida reside no misterioso, um modo de expressar o inalcançável das explicações finais, um recurso para mostrar o inevitável paradoxo do ser humano: o ato de buscar a razão de nossa existência, mesmo sabendo que nunca haveremos de encontrála”. Enfim, a título de preâmbulo, deixo uma ideia na poética de Borges e no pensamento de Bion: Heráclito Heráclito caminha pela tarde De Éfeso. A tarde o abandonou, Sem que sua vontade o decidisse, Na margem de um rio silencioso 415 Carlos de Almeida Vieira Cujo destino e cujo nome ignora. Há um Jano de pedra e alguns álamos. Olha-se no espelho fugitivo E descobre e trabalha a sentença Que gerações e gerações de homens Não deixarão cair. Sua voz declara: “Ninguém desce duas vezes às águas Do mesmo rio”. Detém-se. E então sente Com o assombro de um horror sagrado Que também ele é um rio e uma fuga. Deseja recobrar essa manhã E sua noite e véspera. Não pode. Repete a sentença.Vê-se impressa Em futuros e claros caracteres Em uma página qualquer de Burnet. Heráclito não sabe grego. Jano, O deus das portas, é um deus latino Heráclito sem ontem nem agora. É um simples artifício que sonhou. Um homem cinza às margens do Red Cedar, Um homem que entretece decassílabos Para não pensar tanto em Buenos Aires E nos rostos queridos. Falta um. (EAST LANSIG, 1976). Borges tinha a consciência da transitoriedade e, além disso, sabia que somos mutantes. Não se é mais hoje o que se foi ontem. A vida é sempre uma corrente transformadora – transformadora do ser, quando se tira proveito da experiência. Sua experiência revela que, mesmo a cada dia que perdia o sentido da visão, desenvolvia seus recursos pessoais para apreender o mundo interno e intuir ideias já embrionárias em sua mente. Ordóñez nos lembra, refletindo sobre a metáfora do rio de Heráclito: “Ao longo da vida nossa imagem mudará, e aquilo que nos revele, sejam vidros espelhados, água, olhar dos outros, retrato ou fotografia, e ainda os sonhos, irá assinalando as sucessivas transformações e irá marcando que cada vez somos outro para observar, conhecer e aceitar” (p. 72). É claro que se trata de uma leitura borgiana da autora. A experiência analítica se enriquece a cada momento com os conceitos de “transformações”, mudanças que nos fazem aproximar do nosso-ser- Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 416 real, do nosso O, da nossa Realidade Última, mesmo que não a atinjamos, mas é nesse rio que podemos navegar sempre em busca da Verdade. Na obra de Borges apreendem-se essas questões sobre a condição humana. Seu pensamento revela que somos ínfimos, limitados e tênues, mas que, ao longo da nossa jornada, a vida se torna mais bela e apavorante, pois, a cada momento ou de circunstâncias em circunstâncias poderemos deixar de ser, vir-a-ser e ser novamente, mas é nesse movimento oscilante que se desenvolve e se aprimora a consistência do Eu. Heráclito, em Borges, é instigante, é alguém como todos nós, vindo da condição de dependência, mas que, curioso, corajoso e ousado, procura ser: “E então sente com o assombro de um horror sagrado que também é um rio e uma fuga”. A verdade, de fato, é que somos curiosos por instinto e desejosos e apavorados pelo intuito de conhecermos o novo. Se existe alguma experiência bela e terrorífica, é aquela desenvolvida numa análise, em que experimentamos nossas mudanças e percebemos que não há retorno. Não se mergulha, flutua ou nada no mesmo rio. A transformação é revolução interna que nos remete à experiência de sermos novos a cada momento. Mas essa novidade, essa mudança nos renova e amedronta, pois sabemos que depois dela não há mais como pararmos, a não ser que a mudança catastrófica nos direcione para a loucura, como novo arranjo de nos livrarmos, ou melhor, de tentarmos nos evadir daquilo que somos. Finda essa introdução, gostaria de adentrar nos textos acima citados de Borges, no sentido de procurar, explorar e aprender com o poeta questões pertinentes ao trabalho do psicanalista, principalmente naquilo em que ele, acredito, contribui para a observação da alma humana, eixo de pesquisa e disciplina científica encontrada nos trabalhos de Bion. Nesse sentido, vejo que a questão do vértice estético também remete à pesquisa e à importância que a criação artística, a apreensão do verso e a disciplina para intuir os sentimentos e as emoções humanas do poeta têm para nós, psicanalistas, no sentido do aprimoramento do nosso método de pesquisa psicanalítica. 2 Primeiro Recorte: o pesadelo Em sua obra “As Sete Noites”, de 1980, Borges escreve um belo ensaio sobre o pesadelo e, logo em seguida, tece alguns pensamentos sobre os 417 Carlos de Almeida Vieira sonhos. “Não podemos examinar os sonhos diretamente. Podemos falar da memória dos sonhos. E, possivelmente, a memória dos sonhos não tem correspondência direta com os sonhos.” Outros acreditam que melhoramos os sonhos; se pensarmos que o sonho é uma obra de ficção (e eu acredito que seja) é possível que continuemos fabulando logo ao despertar e, depois, quando o contamos. Ao psicanalista cabe não esquecer que jamais chegamos à essência última do fenômeno-sonho. Por mais que o interpretemos, por mais que queiramos significar e explicar essa “obra de ficção”, ela nos vence na medida em que continua, na vigília, o trabalho onírico. Logo adiante, Borges, citando Frazer, escreve: “[...] os selvagens não fazem distinção entre a vigília e o sonho. Para eles, os sonhos são um episódio da vigília”. Enfim, sonhamos diurna e noturnamente, como dizia Bion, dando-nos a entender que o psicanalista teria de ouvir seu analisando como se estivesse ouvindo o sonho, o sonho da sessão. Shakespeare também afirmou que “somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos”, somos uma permanente criação artística, ficcional, que, através de uma simbologia e de uma linguagem sofisticadamente estética, criamos nosso romance. Narramos nossos personagens e adentramos numa história que traz os nossos antepassados e as nossas experiências ainda não nomeadas, e uma forma de podermos nomeá-las é treinarmos a intuição, base da apreensão estética, poética, metafórica e onírica. Quando examina a origem da palavra pesadelo, Borges caminha por vários sentidos etimológicos: em espanhol, pesadilla; em grego, efialtes. Efialtes é o demônio, é a ação infernal do terror onírico. No latim, continua, vai achar a palavra incubus: literalmente escreve: “O incubo é o demônio que oprime o adormecido e inspira-lhe o pesadelo”. É no inglês que o sentido fica mais forte – the nightmare – significa a “égua da noite”. Mas o sentido mais abrangente para o poeta vai ser buscado na raiz niht mare ou night mare, o demônio da noite. Se, por um lado, a “força demoníaca”, a força das pulsões constitui a matéria-prima do sonhar, e aqui estou me referindo “à parte psicótica da personalidade”, por outro lado, ainda Borges é capaz de tirar proveito dos seus pesadelos quando prioriza em seus sonhos dois tipos de pesadelos: um, “o pesadelo do labirinto”; o outro, “o pesadelo do espelho”. Labirintos e espelhos são experiências oníricas que nosso autor relaciona com questões da condição humana. No labirinto, observamos vários caminhos e arranjos percorridos por nossa mente em direção a saídas para pensarmos e agirmos; no pesadelo do espelho, apon- Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 418 ta-se para o horror de olhar para si mesmo. Olhar esse que revela ora enganos (as máscaras), ora o verdadeiro rosto, a verdadeira alma. A vida e a análise nos ensinam isso: é um jogo permanente de surpresas, sustos, alegrias, prazer e dor, quando estamos sempre entrando em contato com nossa realidade interna e externa. Borges chegou a afirmar algo de suma importância para nós psicanalistas: “Seja como for, nos pesadelos, o importante não são as imagens. O importante, como descobriu Coleridge (poeta de Bion e Borges) – decididamente, estou citando os poetas –, é a impressão que os sonhos produzem. As imagens são de menos, são efeitos. Já disse, no início, que tinha lido muitos tratados de psicologia nos quais não encontrei textos de poetas, que são singularmente iluminadores”. Em diálogos de Borges e Osvaldo Ferrari, no volume “Sobre os Sonhos e Outros Diálogos” (2009), há uma passagem muito ilustrativa que mostra a intimidade que Borges tinha com a função do sonhar. Escreve ele: “Agora, se o fato de sonhar fosse uma espécie de criação dramática, então aconteceria que o sonho é o mais antigo dos gêneros literários, inclusive anterior à humanidade, porque, como lembra um poeta latino, os animais também sonham. E viria a ser um fato de índole dramática, como uma peça na qual somos o autor, o ator e também o edifício, o teatro. Ou seja, à noite, somos todos, de alguma maneira, dramaturgos”. Bion amplia a versão, agregando a atividade onírica da vigília: assim, poderíamos afirmar que durante a noite e o dia somos dramaturgos. Na parte final do poema “O Sonho”, Borges expande a noção do onírico e da função do sonhar como comunicação do inconsciente, quando escreve: “Serei todos ou ninguém / serei o outro que sem sabê-lo sou / aquele que olhou esse outro sonho, minha vigília / a julga, resignado e sorridente”. Borges foi alguém que lia muito; lia mais do que escrevia. Fazia questão de enfatizar que era mais um leitor do que um escritor. Vários autores canônicos, filósofos, artistas e pensadores faziam parte de sua imensa biblioteca. Citando Thomas Browne, diz ele que “os sonhos dão-nos uma ideia de excelência da alma, já que a alma está livre do corpo e dá de brincar e sonhar”. Bela passagem que nos remete a pensar que a disciplina analítica de nos abster, o máximo possível, das luminosidades exte- 419 Carlos de Almeida Vieira riores, da corporeidade das atuações e estímulos dificulta e põe obstáculos ao sonhar do analista e do analisando. Petrônio, ainda citado por Borges nesse mesmo ensaio, dizia: “quando a alma está livre da carga do corpo, brinca”. Ainda que haja forças repressivas dentro do sonhar, sonhar é realmente uma construção imagética repleta de significados, funções e finalidades no trabalho analítico. Enquanto Bion nos fala da possibilidade de as experiências serem digeridas e transformadas em sonhos, os poetas parecem que fazem esses atos a cada momento. Os poetas são capazes de extrair das suas “pré-concepções”, realizando no conhecimento tanto as nossas alegrias, amores e satisfações quanto as nossas tristezas e desesperos. Concluo essa digressão, citando, mais uma vez, Borges: “E se os pesadelos forem estritamente sobrenaturais? se os pesadelos forem frestas do inferno? por que não? tudo é tão estranho que até isto é possível”. 3 Segundo Recorte: a poesia No Prólogo do livro “A Rosa Profunda”, Borges (1975) escreve: “A missão do poeta seria restituir à palavra, ao menos de modo parcial, sua primitiva e agora oculta virtude. Todo verso teria dois deveres: comunicar um fato preciso e tocar-nos fisicamente, como a proximidade do mar”. Adiante, prossegue: No fim de tantos – e demasiados anos de exercício de literatura, não professo uma estética. Por que acrescentar, aos limites naturais que nos impõem, o hábito de uma teoria qualquer? As teorias, como as convicções de ordem política e religiosa, não passam de estímulos. Ao percorrer as provas deste livro, noto com certo desagrado que a cegueira ocupa um lugar lastimoso que não ocupa minha vida. A cegueira é uma clausura, mas também é uma libertação, uma solidão propícia às invenções, uma chave e uma álgebra. (BORGES, 1975). Nosso escritor sabia e estava fornecendo um conselho, uma advertência: as crenças e as teorias usadas como defesas contra a ignorância têm pouca importância. O pensamento livre, o conhecimento a partir da liberdade, da “cegueira”, lembra-nos Freud, falando de “cegar-se artificialmente”, e Bion, enfatizando a teoria do negativo. Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 420 Borges intuía que o poeta, tal como Platão, admite que as experiências e os fatos instam a necessidade de serem aprendidos. Quando ele escrevia, dizia Borges, tinha a sensação de algo preexistente: “As coisas são assim. São assim, mas estão escondidas, e meu dever de poeta é encontrá-las”. Do psicanalista espera-se algo semelhante. Desenvolvemos uma atitude de escuta, intuímos e esperamos, livres de regras, desejos, intenções, que as ideias brotem em nossas mentes para formularmos conjeturas, palpites e formulações sobre a realidade psíquica do nosso analisando. No referido ensaio, a título de ensino, aparece uma ideia genial de Platão. Dizia ele que a poesia é uma experiência estética. Algo assim como a revolução no ensino. Que seria de um analista sempre em formação, sem ter e desenvolver uma capacidade estética? Será que podemos ensinar? Penso que podemos ajudar a desenvolver essa capacidade, caso exista, e, nesse sentido, os escritores, os poetas e os artistas nos subsidiam de disciplina metodológica. Veja o que nosso autor, adiante, nos alerta: “Acredito que a poesia é algo que se sente, e se vocês não sentem a poesia, se não têm um sentimento de beleza, se uma história não os leva ao desejo de saber (curiosidade) [grifo nosso], o autor não escreveu para vocês. O fato estético é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível quanto o amor, o sabor da fruta, a água”. A humildade de Borges, diante do mistério do pensar, diante da capacidade de sonhar e de se colocar grávido para receber o verso, mostra a atitude de tolerância, espera e paciência que subsidia uma conjectura interpretativa do psicanalista. A poesia reside no relato do analisando, na narrativa simples mas simbólica de sua linguagem, ou mesmo na incapacidade de nomear sua experiência, fenômeno que, às vezes, reflete que a mente ainda não pensa, mas apresenta sinais de uma gestação em busca do não pensado. O psicanalista tira proveito da sua sensibilidade poética para sonhar o sonho do analisando e poder comunicar – de uma forma simples, corriqueira, mas colorida pelo sentido estético – o sentido encoberto da consciência sensorial. O jogo analítico é um jogo de escuroclaro, consciência-inconsciência, vazio-presença, silêncio-verbalização. Browning, citado por Borges, adverte: “Quando nos sentimos mais seguros, ocorre algo, um pôr do sol, o fim de um coro de Eurípedes, e, de novo, estamos perdidos”. O labirinto que acompanhou Borges em todas as suas elaborações em direção à procura da Verdade expandia seu pensamento, 421 Carlos de Almeida Vieira abria alternativas, criava novos caminhos – esperava que novas conjecturas lhe viessem em forma de verso e prosa. A frase que ora leio, nesse esplêndido ensaio sobre a poesia, finaliza, de forma didática, para nós, psicanalistas, o momento da inspiração criadora: “rosa é sem por quê; floresce porque floresce”. Em Harvard, nos anos de 1967 e 1968, Borges, convidado para falar sobre poesia – conferências transformadas no livro “Esse ofício de verso” –, traz ideias tiradas da sua arte para serem usadas na disciplina de compor. A partir da sua humildade em dizer que duvidava se tinha “revelações a dizer”, lembrava reflexões de sua vida de poeta: “Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é na realidade: uma paixão e um prazer... Passamos à poesia, passamos à vida. E a vida, estou certo, é feita de poesia. A poesia não é alheia – a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante”. A ideia deste trabalho é a de direcionar o leitor para questões metodológicas e técnicas em psicanálise, privilegiando o vértice estéticoartístico. Ao psicanalista se faz necessário desenvolver sua sensibilidade estética e sua capacidade intuitiva, que tanto fundamentam o ofício dos artistas. O “ofício do verso” (BORGES, 2007), assim como o trabalho de um músico ou pintor, oferta ao psicanalista uma disciplina e uma atitude de trabalho, sem, contudo, minimizar a importância do método científico. Bion, após transitar pela matemática, pela física, pela religião, pela filosofia e, principalmente, devido a uma atitude epistemológica constante, termina sua vida convencido de que a linguagem para descrever suas observações da alma humana e suas questões e controvérsias sobre psicanálise é a linguagem literária. A obra “Uma Memória do Futuro” é a convicção bioniana de que, se ainda não temos uma linguagem, e penso que ainda estamos tentando procurar uma linguagem comum, a forma literária é uma saída para captarmos e intuirmos nossa realidade psíquica e a realidade externa, além de permitir-nos descrever mais profundamente os estados de alma humana. Bion deixou um desafio em sua forma de trabalhar: desenvolvermos a capacidade de pensar. Pensar a experiência emocional, aprendendo e transformando esse conhecimento em Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 422 direção à Verdade. Nesse contexto, lembro de um belo poema de Borges, em seu livro “A Cifra”, de 1981, inspirado em William Blake, poeta comum de Borges e Bion: Blake Onde estará a rosa que em tua mão Prodiga, sem saber, íntimos dons? Não está na cor, porque a flor é cega, Nem na doce fragrância inesgotável, Nem no peso da pétala. Essas coisas São alguns poucos e perdidos ecos A rosa verdadeira está bem longe. Pode ser um pilar ou uma batalha Ou um firmamento de anjos ou um mundo Infinito, secreto e necessário, Ou o júbilo de um deus que não veremos Ou um planeta de prata em outro céu Ou um arquétipo horrível que não tem A forma dessa rosa. Espero, com esta comunicação, ter aproximado dois autores, um psicanalista e um artista, poeta, ensaísta e pensador: Bion e Borges apontam para a importância do vértice estético-artístico em psicanálise. No primeiro momento, como um recurso para a observação, como técnica de observação; e, no segundo, como alternativa para apreender a experiência emocional humana. Afinal, a psicanálise hoje, não há dúvidas, é um dos olhares, métodos e recursos para se apreender a realidade inconsciente, e não a única. Bion expandiu essa visão e, nesse sentido, somos gratos a autores como J. L. Borges e tantos outros que nos auxiliam, nos ensinam e nos habilitam também na apreensão dos fenômenos da mente humana. Oxalá tenhamos a humildade de aprender com os escritores e poetas e, com isso, expandirmos, desenvolvermos e aprofundarmos nossa capacidade intuitiva e observacional em psicanálise. Might W. R. Bion have read J. L. Borges? The literary aesthetic vertex Abstract: In this communication, the author attempts to bring two contemporary thinkers: J. L. Borges (1899-1986) and W.R. Bion (1897-1972). Coincidentally, in both libraries we are able to find similar readings and authors, especially when it comes 423 Carlos de Almeida Vieira to literature, specifically English literature. The article intends to draw the attention of psychoanalysts to the importance of the aesthetic-literary vertice. It also shows the importance of Borges’ thought, his work discipline and clippings with which the author hopes to contribute to the formation of a psychoanalyst through Bion’s concepts. This work also highlights the ability to observe the human soul phenomena, the importance of intuition and aesthetic resources, as a methodological task, and the psychoanalyst training related to the need to devote to the study of the “canonical” authors in literature, in order to develop his /her sensitivity to grasp what lies beyond the sensory and the manifest. Keywords: Literature. Poetry. Psychoanalytic training. ¿W. R. Bion habría leído a J. L. Borges? El vértice estético literario Resumen: El autor intenta, en esta comunicación, aproximar dos pensadores: J.L.Borges(1899-1986) y W.R.Bion (1897-1972).Coincidentemente, en la biblioteca de los dos encontramos lecturas y autores semejantes, principalmente en lo que dice respecto a literatura, especifícamente de la lengua inglesa.El artículo pretende llamar la atención de los psicoanalistas para la importância del vértice-literário.Muestra la importância del pensamiento de Borges, su disciplina de ofício y recortes con los cuales el autor espera colaborar para la formación de um psicoanalista por el bies de Bion.Resalta también la capacidad de observación de los fenômenos del alma humana, la importância de la intuición y de los recursos estéticos, como tarea metodológica, y entrenamiento, en lo que toca al psicoanalista, de la necesidad de dedicarse al estudio de los autores dichos “canônicos” en la literatura, a fin de desarrollar, de esa manera, su sensibilidad para aprehender aquello que se encuentra más allá de lo dicho, de lo sensorial y de lo manifiesto. Palabras clave: Literatura. Formación psicoanalítica. Poesia. Referências BION, W. R. Seminarios de Psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1978. p.79. BORGES, J. L. A cifra. In: . Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. . A Poesia - Obras Completas III. São Paulo: Globo, 2006. . A rosa profunda. In: BORGES, J. L. Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. . As sete noites - Obras completas III. São Paulo: Globo, 1999. . Esse ofício de verso. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. . Sonho. In: BORGES, J. L. Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010 424 .; FERRARI, O. Sobre os sonhos e outros diálogos. São Paulo: Ed. Hedra, 2009. GROTSTEIN, J. Um facho de intensa escuridão. Porto Alegre: Artmed, 2010. HARRIS, M. As musas da psicanálise. Revista Mente & Cérebro, ed. esp. Memória da Psicanálise, São Paulo, v. 6, 2009. ORDÓÑEZ, S. F. O olhar de Borges – uma biografia sentimental. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Carlos de Almeida Vieira SHIS QI Lote E Bloco I Sala 310 Ed. Centro Clínico do Lago – Lago Sul 71625-009 Brasília – DF – Brasil e-mail: [email protected] 425 Ignácio Alves Paim Filho A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Artigo | Trabalho apresentado na VIII Jornada Científica da SBPdePA – A Pessoa do Analista na Clínica Contemporânea. Na mesa redonda: “A Interferência da Subjetividade do Analista”. Ignácio Alves Paim Filho Psicanalista, Membro Pleno do CEPdePA, Membro Associado da SBPdePA. Resumo: O autor tem como proposta pensar a subjetividade do analista e suas ressonâncias (interferências) no processo da cura. Para tanto, tomará como metáfora interlocutora a relação Jung–Sabina. Partindo desse encontro, com seus desencontros, retoma a importância do inconsciente do analista no desenrolar da análise. Nesse sentido, tece considerações sobre a análise do analista e sobre o seu papel como instrumento vital, para que a sua subjetividade possa ser potencializada e, com isso, seja possível facilitar a jornada empreendida pela dupla analítica nos labirintos da cura. Palavras-chaves: Inconsciente. Psicanalista. Subjetividade. Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no relacionamento analítico, que, na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir-se ser levado por suas inclinações (FREUD, 1938, p. 202). Subjetividade, eis aí um substantivo feminino carregado de complexidade; ao mesmo tempo em que explicita uma significação, encobre uma série de outros significados. Sabemos que é definido como do sujeito, pessoal; que não é concreto, exato ou objetivo. Ou ainda, nas palavras do autor do Dicionário de Filosofia (1998): Caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência, que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de “meus” (1998, p. 922). Decorrente dessa significação, uma pergunta se impõe: o que entendemos por sujeito? Recorrendo, novamente, aos dicionários da língua portuguesa, a palavra é conceituada nestes termos: “individual, aquele que pratica ou sofre uma ação” (GRANDE ENCICLOPÉDIA A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010 426 LAROUSSE, 1999). A partir dessa conceitualização, temos novas perguntas: esse ser que pratica e/ou sofre uma ação o faz desde onde? Responder a essas indagações, tendo como norte a subjetividade desde o viés psicanalítico, requer um pensar na constituição da psique. Se a subjetividade remete ao sujeito, a algo da ordem do não objetivo, do individual, do que faz de cada um de nós um ser único, então temos posto de forma discursiva o lugar central do inconsciente como determinante do sujeito psíquico1, produto de uma verdade histórica. Assim sendo, falar em subjetividade é, antes de tudo, falar da essência de cada sujeito, de como se estruturou o seu mundo fantasmático, o universo do desejo com toda a sua força e dinamismo psíquico. Ao postularmos que nossa subjetividade é produto do nosso inconsciente, estamos trazendo para o primeiro plano a ideia de que o estrangeiro que nos habita é que vai determinar o nosso peculiar jeito de ser. Portanto, olhar, pensar e sentir os derivados dessa terra desconhecida são meios para sabermos um pouco mais da nossa subjetividade. Somos o que não conhecemos – o que conhecemos, no âmbito do pré-conciente-consciente, são apenas os emissários (produtos da condensação e do deslocamento), oriundos do país de nossa origem. Com a criação dessa concepção, Freud inventou a psicanálise, portadora de uma teoria e de um método de investigação e tratamento, com o que forjou os instrumentos necessários para que o sujeito ampliasse a sua capacidade de conhecer o desconhecido, o que significa estar mais conectado com a verdade velada de seu inconsciente – sendo este constituído pelo desejo que, ao mesmo tempo, o constitui. Consequentemente, impõe-se refletir sobre a subjetividade e pensar nos destinos do desejo. Desejo este que, à medida que pode ser revelado, mesmo que de forma parcial, possibilita ao indivíduo adquirir o status de ser mais agente – e, portanto, menos assujeitado ao determinismo – nessa terra estrangeira chamada inconsciente. O conquistador do inconsciente desconcertou o pensamento filosófico ocidental de seu tempo, que pensava a subjetividade como um produto do eu racional, governado pela consciência de si – o sujeito só é pensável 1 A expressão sujeito psíquico foi concebida por Lacan. Segundo Porge (1996): “O sujeito é a própria hipótese”. Poderíamos dizer que Lacan retoma literalmente a expressão “hipótese do inconsciente” e substitui “hipótese” por “sujeito”. 427 Ignácio Alves Paim Filho enquanto sujeito do conhecimento. Poderíamos dizer que Descartes (15961650) é o grande representante desse cogito, com seu “penso, logo existo”, bem como Kant (1724-1804) e Husserl (1859-1938). Freud propôs o inédito, ao dizer que somos governados por nossas moções pulsionais e suas vicissitudes inconscientes e no inconsciente. Explicita esse pensar, que faz do eu da consciência um vassalo da força do inconsciente, no seu célebre aforismo de 1917: “O ego não é senhor da sua própria casa” (p. 178). Expandir o conhecimento de nossa subjetividade, sermos menos estrangeiros para nós mesmos é o grande objetivo de todo o processo analítico. Como diz Freud nos textos técnicos de 1912, tornar “consciente o inconsciente”. Essa proposta segue válida para toda a obra freudiana. O que modifica são as complexidades envolvidas nesse processo; entre elas, a importância da inter-relação entre o inconsciente recalcado e o não recalcado. Isso posto, o analista se vê convocado a repensar o seu trabalho via construções e interpretações. Tomando como base toda a relevância da subjetividade como produto do inconsciente, é extremamente significativo pensar que ressonâncias, ou interferências, são produzidas pela subjetividade do analista no exercício da sua função, que está sob a insígnia de uma tarefa impossível (FREUD, 1937). Portanto pensar, refletir e especular sobre a subjetividade do analista é ponderar o imponderável, uma vez que se trata da sua individualidade, da singularidade, o que lhe outorga a constituição do seu ser. Assim sendo, a subjetividade do analista ou seu inconsciente, portador do desejo, se fará sempre presente no decorrer do exercício da sua função, e será em nome dessa particularidade que Freud irá escrever os artigos que chamará de Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Nesse artigo, encontramos a seguinte afirmação: [...] o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações do paciente (1912, p. 154). A partir desse momento, temos em Freud a presença, de forma textual, do lugar distinto do inconsciente do analista, ou seja, da sua subjetividade no processo analítico. Está posto que o seu instrumento de trabalho é, por excelência, o seu inconsciente. A questão que se formula a partir dessa afirmação é: como se dá esse processo de, a partir do inconsciente do analista, viabilizar-se o acesso ao inconsciente do analisando? Penso A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010 428 que um bom caminho para especular uma resposta ao questionado anteriormente encontramos nesse mesmo texto quando Freud nos adverte: Mas se o médico quiser estar na posição de utilizar seu inconsciente desse modo, como instrumento da análise, deve ele próprio preencher determinada condição psicológica em alto grau (1912, p. 154). Freud demonstra sua preocupação com essa temática em vários momentos da sua produção. Porém, é necessário assinalar que nunca tratou de forma direta da questão da subjetividade do analista, embora possamos encontrá-la pelo viés de suas inquietudes com a importância do inconsciente do analista no processo da cura. Ao unirem-se inconsciente e subjetividade, está sendo proposta uma questão central para o pensamento psicanalítico: a construção do inconsciente, uma vez que ele vai se estabelecer a partir do encontro da pulsão com o objeto. Isso determinará a inscrição do mundo representacional, instaurador do poder da verdade histórica, que diz respeito ao que pensamos ter sucedido, e não ao que ocorreu nos encontros e desencontros com o objeto, sendo essa a subjetividade. Ao propor uma condição psicológica em alto grau, Freud está nos falando do lugar da análise do analista como um fator de extrema relevância no exercício do seu ofício, pois somente através dela poderá haver mais acesso à sua subjetividade, reconhecer o seu universo desejante. E se esse processo funcionar de maneira suficientemente boa, galgará o (re)confrontarse com o seu complexo de castração, habilitando-se a curvar-se diante da lei que a alteridade instituiu. Por saber o quanto é difícil haver-se com as renúncias, Freud, em 1912, postulará as suas recomendações para os que exercem a psicanálise, visando dar um enquadramento ao cenário analítico, ao setting. É importante ressaltar que as leis do setting têm a função de proteger a dupla analítica, tendo no analista o seu guardião. Entre elas, destaco o papel da abstinência2, o abster-se de... Partindo do pressuposto de que o analista tem a função de viabilizar o acesso ao inconsciente do analisando a partir do seu inconsciente, torna-se condição fundamental uma boa capaci- 2 Essa temática é abordada em maior profundidade no trabalho: “Novos tempos, velhas recomendações (sobre a função analítica)” (LEITE; PAIM FILHO, 2007). 429 Ignácio Alves Paim Filho dade de discriminar o seu próprio universo desejante e o do analisando3. Assim, ao buscar a subjetividade desse outro numa relação intersubjetiva, estará também conectado com o princípio ético da psicanálise, cujo compromisso é com a busca da verdade do inconsciente. Freud, em 1937, em seu último texto sobre a técnica, volta a ponderar sobre a importância do analista, ou melhor, da sua individualidade, ou, como diríamos nós, da subjetividade no processo da cura. Fiquemos atentos ao seu discurso: Entre os fatores que influenciam as perspectivas do tratamento analítico e se somam às suas dificuldades da mesma maneira que as resistências, deve-se levar em conta não apenas a natureza do ego do paciente, mas também a individualidade do analista (1937, p. 281). Devido a essa inquietante estranheza com os destinos da individualidade (subjetividade) do analista, Freud, no final do capítulo VII desse mesmo artigo, faz uma espécie de última recomendação aos analistas, tendo em mente o caráter interminável de toda análise, que tem por escopo trabalhar com a longa temporalidade da psique. Todo o analista deveria periodicamente – com intervalos de aproximadamente cinco anos – submeter-se mais uma vez à análise, sem sentir-se envergonhado por tomar essa medida (1937, p. 284). Portanto, temos posto de forma ratificadora que a análise do analista é fator primordial para o bom exercício da sua função, pois somente ela nos dará maiores recursos para fazermos uso de nossa subjetividade. Tendo esse pressuposto como balizador, pretendo levantar algumas especulações, no sentido de refletir os ganhos para o processo analítico quando bem instrumentalizada a subjetividade do analista. Não vou me ocupar dos seus aspectos psicopatológicos, produto dos pontos cegos, mas, sim, da efetividade da subjetividade no ofício analítico, com a pretensão de ir mais além da contratransferência – esta compreendida como resultante do processo transferencial. Para viabilizar tal objetivo, tomarei como estímulo fragmentos da análise de Sabina Spielrein com Jung. Enfatizo: não pretendo entrar nas ques3 Remeto o leitor ao trabalho: “Novos tempos, velhas recomendações II (função analítica: função de escuta)” (LEITE; PAIM FILHO, 2010). A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010 430 tões destrutivas, transferencial e contratransferencial, decorrentes desse processo que, inegavelmente, teve consequências lesivas para a dupla analítica. Entretanto, causa-me estranhamento que uma análise com um desenlace traumático, em que analista e analisando vivem em ato suas fantasias edípicas, que rompem a barreira do recalque, possa ter, em vários aspectos, evolução favorável. Diante disso, sinto-me convocado a buscar subsídios que possam lançar alguma luz sobre o seguinte interrogante: o que, no processo analítico de Sabina, foi, hipoteticamente, um dos elementos facilitadores para viabilizar o emergir de aspectos criativos e pró-vida que marcaram parte da sua história? Como, por exemplo, formar-se em medicina e psiquiatria, tornar-se analista – com trabalho clínico e teórico importante –, ser a segunda mulher a fazer parte da Sociedade Psicanalítica de Viena (1912) e casar-se e ter duas filhas? Tenho a ideia, especulativa, de que algo da ordem da subjetividade do seu analista – por exemplo, sua diferenciada capacidade perceptiva – tenha cumprido uma função importante nos destinos intermináveis do desfecho dessa análise. Recordemos que essa paciente ingressou em agosto de 1904 no Hospital Burghölzli, de Zurique, permanecendo lá até julho de 1905. Apresentava um quadro extremamente regressivo, contudo, recebeu o diagnóstico de histeria. Sinteticamente, sabemos que foi uma criança com imaginação aguçada, porém com sintomatologia importante, como angústia noturna, fobias por animais e doenças. Em torno dos quatro anos, começou a apresentar retenção fecal, acompanhada de rituais obsessivos; aos sete anos, masturbação compulsiva; aos dezoito anos, quadro sugestivo de depressão; e aos dezenove teve um surto, descrito por Roudinesco (1998) como psicótico, que culminou na sua internação. Jung, influenciado pelas ideias freudianas, recebe essa jovem paciente de uma forma muito singular, propondo-se a escutar seu discurso, mesmo que fosse, desde o conteúdo manifesto, sem sentido. Partindo da sua concepção de associar o verbal à associação livre de Freud, Jung estimula o uso da palavra e da busca de sentido que esta encobre e revela. Com a jovem russa, rompe com os métodos tradicionais de tratamento: a meta não é conter o delírio, mas, sim, deixá-lo falar. Parece-me que Sabina encontrará no setting criado no Burghölzli, representado por Jung, o ambiente propício para que a sua loucura seja escutada, sentida e pensada. Contudo, é pertinente ressaltar a intensidade do vínculo analítico que se 431 Ignácio Alves Paim Filho estabelece em tratamentos que ocorrem em instituições de internação que convidam à fusão e ao vínculo simétrico entre analista e analisando. Algo que Jung, enquanto um dos pioneiros da psicanálise – não analisado! –, não tinha como dimensionar. É importante destacar que o conceito de transferência vem à luz somente em 1905, no epílogo do caso Dora. Esse incipiente analista é um jovem psiquiatra fascinado por compreender a alienação mental e tem a sensibilidade de ser tocado pelos escritos de Freud. Encontrou na Interpretação dos sonhos (1900) um caminho para pensar o mais além da consciência, tocado pela força do inconsciente e dos seus derivativos. O sexual na etiologia das neuroses o intrigava, fazendo-o oscilar entre a crença e a descrença. Esse contexto lhe forneceu subsídios para teorizar e criar instrumentos a fim de trabalhar com o continente das psicoses. Tinha o mérito de ser um indivíduo arrojado, sempre disposto a inovar, evidentemente em busca de confirmar suas ideias. Essas características serão decisivas no seu envolvimento e na divulgação da psicanálise, bem como do pensamento freudiano. É por intermédio de Jung, por exemplo, que Abraham, em 1905, ao ir trabalhar no hospital de Zurique, tem os primeiros contatos com a psicanálise. Foi mérito seu que a psicanálise tenha chegado à América em 1909, viabilizando as conferências de Freud na Clark University. Tem produção teórica significativa, fundamentada na ciência criada por Freud, até 1912. Finalmente, em 1910, foi eleito o primeiro presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), sendo considerado até essa ocasião por Freud o “príncipe herdeiro”. Sua gestão irá até 1914, quando, já rompido com o psicanalista austríaco, se afasta definitivamente da psicanálise. Com Sabina, condizente com seu perfil, Jung vai ousar, vai realizar em um primeiro momento, provavelmente até o final de 19074, um adequa4 Em setembro, Jung, no I Congresso Internacional de Psiquiatria e Neurologia, relata sua experiência analítica com Sabina, que é descrita como um caso de histeria psicótica. Foi uma oportunidade para demonstrar a sua compreensão da teoria freudiana da histeria. Por sua correspondência com Sabina, podemos deduzir que, a partir de 1908, Jung entra de forma consciente nos dramas desse amor incestuoso que terá o término formal em 1909, com a inclusão de Freud para mediar o conflito. Pelo desenrolar da sua história, podemos inferir que Sabina mantém um vínculo não analítico, mas, sim, como aluna e menina-mulher, e busca elaborar o luto dessa paixão até 1912. Após essa data, segue uma correspondência até 1919, de início mais pessoal, mas que gradativamente adquire um tom impessoal, centrado em questões teóricas. A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010 432 do investimento libidinal, uma fala pulsionalizada pelo desejo da cura, propiciando à paciente se conectar com o seu sofrimento, com o seu caos psíquico e, a partir daí, reconstruir o seu mundo fantasmático. Um dos pontos dramáticos da sua crise consiste em não poder olhar e, talvez, também em não poder ser olhada; teme o que esses olhares podem denunciar. O olhar a mão paterna a excita e a leva à masturbação – marca de um erotismo ligado a episódios em que ela e o irmão eram castigados pelo pai, que batia em suas nádegas desnudas. Jung, diante desse turbilhão de sexualidade, suporta olhar e não se furta do seu lugar de propiciar uma possível escuta; se assusta, mas não a executa de forma proibitiva, de acordo com a moral sexual vigente. Conjecturo, relembrando nossa epígrafe, que nos primórdios dessa relação analítica temos um Jung que se permite ser levado por suas percepções, diferentemente de um período posterior, em que passa a ser levado por suas inclinações. Tais inclinações estão imbricadas no destino filicida5 que irá perpassar a história analítica e pós-analítica de Sabina. A título de ilustração, temos o total esquecimento e, por conseguinte, o não reconhecimento, pelo movimento psicanalítico, da vasta contribuição dessa pensadora6. Vejase a impossibilidade de realizar o seu desejo de se fixar na Europa, pois fez várias tentativas, todas frustradas. Em 10 anos, circulou pelas seguintes cidades: Zurique, Munique, Lausanne e Genebra, mas acabou por se ver compelida a retornar para a terra mãe, a Rússia, em 1923. Acredito que o final trágico dessa pioneira da psicanálise, assassinada pelas tropas de Hitler em 1942, seja também produto da sua impossibilidade de romper com os desígnios tanáticos engendrados pelas figuras parentais, dos quais Jung foi depositário e agente na perpetuação dessa repetição demoníaca. Dizem os seus biógrafos que ela sempre defendeu a ideia de que um povo tão culto como o alemão (Jung?) jamais seria capaz dessa barbárie. (Seria isso visto como um possível resíduo de uma transferência idealizada não elaborada?). 5 No trabalho “A ‘via-sacra’ do filicídio no processo analítico” (BORGES; PAIM, 2009), os autores abordam a temática da ação filicida do analista, no sentido do assassinato da alteridade do analisando. 6 Devo à psicanalista Renata Gronberg a possibilidade de refletir a respeito dessa pioneira da psicanálise. Em atividade realizada pelo Espaço Psicanalítico em Porto Alegre (03/09/ 2010), com a conferência: “Pulsão de Morte na História da Psicanálise: o esquecimento de Sabina Spielrein”. 433 Ignácio Alves Paim Filho A história desse processo analítico evoca-me outra história: o processo analítico inaugural da psicanálise, a relação Breuer–Berta P. (Anna O.). Aventuro-me a explorar a ideia do quanto possa ter sido terapêutica para Anna O. a possibilidade de ser escutada por Breuer, de forma sistemática, centrada no princípio do valor da palavra – que ela vai nomear talking cure (a cura pela fala). Essa relação teve um término também traumático. Contudo, a história posterior dessa paciente contempla uma vida produtiva, pois veio a ser a primeira assistente social da Alemanha com um trabalho dedicado às mulheres vítimas de violência. Poderíamos pensar que algo da subjetividade de Breuer esteve implicado nos destinos desse tratamento com a jovem judia de 21 anos? Bem, voltemos a nossa atenção a essa jovem analista de 27 anos, Spielrein. Em 1912, segundo historiadores, ela está totalmente curada do seu episódio psicótico. Nesse momento, publica seu mais célebre trabalho, A destruição como causa do devir, que vai ser imortalizado por Freud em nota de rodapé em Além do princípio do prazer (1920, p. 75). Talvez pudéssemos inferir que estava, também, de forma sublimatória, retratando o viés fecundo desse encontro analítico marcado por paradoxos, ambiguidades e interferências extrassetting. Quem sabe poderia ter dado o seguinte subtítulo a seu escrito: “O meu percurso da loucura (destruição) à sanidade (devir)”. Parece-me que esses fatos serão determinantes para que Freud escreva os textos técnicos, focando as recomendações aos que exercem a psicanálise. Pois é com eles que Freud trará para o primeiro plano o lugar do analista no processo analítico, ou melhor, buscará dar maior especificidade ao seu inconsciente, que é o fundamento da sua subjetividade. Nesse sentido, poderíamos dizer que a técnica analítica adquiriu sua singularidade e maturidade a partir dos desdobramentos de histórias analíticas como a de Jung e Sabina, ou, ainda, de Ferenczi e Gizella/Elma (1908– 1911)7 . 7 Em Budapeste, em consonância com o que vinha acontecendo em Zurique, Ferenczi relatava a Freud a situação que estava vivendo com Gizella, sua amante e depois sua paciente (1908). Em 1911, para complicar mais a situação, Ferenczi passa a ser analista de Elma, filha de Gizzella. Algum tempo depois, se diz apaixonado por Elma, anunciando sua ideia de casarse. Nesse caso, Freud intervém de forma mais ativa, fazendo com que Ferenczi contraia matrimônio com Gizella e renuncie a Elma. A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010 434 Encerrando essas divagações sobre a subjetividade do analista nos labirintos da cura, evoco o labirinto de Dédalo, recordando suas recomendações ao filho, Ícaro, quando da saída do labirinto: “Não voar tão alto que as asas (coladas com cera) derretessem ao calor do sol, nem tão baixo que as asas ficassem molhadas pela água do mar”. Parafraseando Dédalo, tendo Freud em mente, com suas recomendações técnicas, para aqueles que se atrevem a adentrar nos labirintos analíticos, proponho: não voar tão alto, para que venhamos a nos derreter diante do calor da “contra/ transferência”, nem tão baixo que fiquemos encharcados pela correnteza das águas abissais da psique. Não esquecendo que o radar que orienta cada analista, nesse voo, que foi nomeado por John Kerr como um método muito perigoso, é a sua subjetividade, ou melhor, a força pulsante do inconsciente. The Analyst’s Subjectivity in the Labyrinths of Cure Abstract: The author’s purpose is to consider the analyst’s subjectivity and its extents (interference) in the process of cure. For this achievement, the relation Jung-Sabina will be taken as a metaphoric interlocution. Starting from this encounter with its missed meetings, the importance of the analyst’s unconscious is pointed out in the progress of analysis. Considerations about the analyst’s personal training and his role as a vital instrument are made, so his subjectivity can be strengthened and, therefore, make the undertaken journey easier for the analytical pair in the labyrinths of the cure. Keywords: Psychoanalyst. Subjectivity. Unconscious. La Subjectividad del Analista en los Laberintos de la Cura Resumen: El autor tiene como propuesta pensar la subjectividad del analista y sus resonancias (interferencias) en el proceso de la cura. Para ello, tomará como metáfora interlocutora la relación Jung-Sabina. Partiendo de ese encuentro, con sus desencuentros, retoma la importancia del inconsciente del analista en el desarrollo del análisis. En ese sentido, teje consideraciones sobre el análisis del analista y sobre su rol como instrumento vital, para que su subjectividad pueda ser potencializada y, con ello, sea posible facilitar la jornada emprendida por la pareja analítica en los laberintos de la cura. Palabras clave: Inconsciente. Psicoanalista. Subjectividad. 435 Ignácio Alves Paim Filho Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BORGES, G; PAIM FILHO, I. A. A “via-sacra” do filicídio no processo analítico. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 43, n. 3, 2009. GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL. São Paulo: Plural Editora e Gráfica, 1999. v. 22. FREUD, S. (1900) Interpretação dos sonhos. In: completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 4 –5. . Obras psicológicas . (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 7. . (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 12. . (1917) Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 17. . (1920) Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 18. . (1937) Análise terminável e interminável . In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 23. . (1938). Esboço de psicanálise. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 23. JUNG, C. G. Freud e a psicanálise. In: Vozes, 1971. v. 4. . Obras completas. Petrópolis: LEITE, L. C.; PAIM FILHO, I. A. Novos tempos, velhas recomendações (sobre a função analítica). Psicanálise: Revista da SBPdePA, Porto Alegre, v. 9, n. 1, 2007. . Novos tempos, velhas recomendações II (função analítica: função de escuta). Psicanálise: Revista da SBPdePA, Porto Alegre, v. 12, n. 1, 2010. PORGE, É. Sujeito. In: KAUFMANN, P. (Org.). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Ignácio Alves Paim Filho Rua Felipe Néri 457/401 90440-150 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (51) 33213825 e-mail: [email protected] A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010 436 437 Laura Ward da Rosa O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19 Ensaio Laura Ward da Rosa Médica psicanalista. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Docente do Instituto de Psicanálise da SBPdePA. Docente do Curso de Pós-Graduação “Psicanálise e Educação” da UniRitter e SBPdePA. Aquele foi, certamente, o dia mais dramático e angustiante para Freud. Acostumado às turbulências despertadas por suas descobertas, ao trabalho clínico incessante e aos graves problemas de saúde, nada se poderia comparar ao que vivia naquela tarde de 22 de março de 1938, quando a Gestapo chegou à sua casa e levou Anna para depor no comando nazista, que tomara Viena, anexando a Áustria ao domínio de Hitler. Anna era muito mais que sua filha caçula, era sua colega de estudos, aluna dileta, revisora de seus textos, confidente dos embates e divergências entre os grupos de discípulos, colaboradora da pesquisa clínica, sua ex-analisanda e sua fé no seguimento dos ideais da psicanálise. Era também a herdeira confiável e fiel de seus ensinamentos e, nos últimos anos, a dedicada enfermeira que o acompanhara nas trinta e três cirurgias no orofaringe e na limpeza de sua prótese no maxilar direito. Anna era, sem dúvida, o seu amor mais caro e o amparo indispensável ao velho pai, vivendo seus últimos dias. “Ela é a minha Cordélia e também a minha Antígona”, brincava Freud, falando aos amigos, identificando-se aos pais possessivos: Rei Lear, de Shakespeare, e Édipo, de Sófocles. Acompanhara sua infância, velara seus sonhos, até publicando alguns, para ilustrar a realização do desejo nas crianças, como aquele em que a menina, aos dezenove meses, passara o dia de dieta, por apresentar vômitos e, durante o sono, murmurava: “Anna Freud, morangos, flan e mingau”. No verão, passeios pelos maravilhosos Alpes austríacos, brincadeiras, nas férias, na majestosa casa em Bellevue, O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19 Psicanálise v. 12 nº 2, p. 437-440, 2010 438 na colina aprazível onde o mestre sonhara o famoso “Sonho de injeção em Irma”, até hoje exemplo de construção onírica de variados conteúdos, estudados em todos os detalhes pelo próprio sonhante. Na adolescência de Anna, explicara-lhe sua ousada teoria da sexualidade infantil, origem de tantas discórdias no meio médico, motivo de sua exclusão dos convites para conferências e dez anos de “esplêndido isolamento”, como costumava definir esse período. Alguns dias antes, bateram à porta, e Martha, zelosa mãe da família, abrira, deparando-se com soldados nazistas que, sem cerimônia, entraram e passaram a revistar a casa. Essas “visitas” tornaram-se frequentes após a invasão, e os judeus eram saqueados e agredidos nas ruas de Viena. Temendo pelo pai, enfermo e debilitado, Anna abriu o cofre e retirou dele seis mil xelins austríacos, entregando-os para que fossem embora. Imediatamente repartiram o dinheiro e retiraram-se. A cena foi acompanhada por Ernest Jones, biógrafo de Freud, que viajara apressadamente da Inglaterra tão logo soubera da ocupação da cidade, temendo pela vida do mestre e organizando a sua retirada da Áustria. Freud negava-se a emigrar, recusando as ofertas de asilo. Temia viajar devido à idade avançada e à dificuldade de locomoção, além de considerar uma covardia, como a condição do comandante que abandona o barco que está naufragando. Naquela tarde, porém, quando voltaram para buscar Anna e a levaram para depor, Freud começou a admitir que, se ela voltasse viva, deveria concordar, para salvar a família. Sua angústia era maior da que sentira antes, frente aos muitos infortúnios, às dissidências, perdas, mortes, doenças e cirurgias. O que poderiam fazer com Anna? Que perguntas exigiriam de alguém sem nenhum envolvimento político, sem nenhum cargo público, unicamente voltada ao estudo e ao trabalho com crianças? Soube-se, então, que os nazistas estavam convencidos de que a Associação Psicanalítica Internacional, fundada por Freud em 1911, era um movimento político antifascista. As horas passavam sem notícias, e a apreensão era visível em todos os olhares. Freud já fumara tantos charutos que a sala enfumaçada escurecia o ar, impregnando o ambiente. Maria Bonaparte viajara à Viena para interceder junto ao comando nazista para que não prendessem o Professor, valendo-se de sua imunidade diplomática como princesa da Grécia. Planejava ela, como já o fizera com as cartas a Fliess, contrabandear as estatuetas gregas da coleção que Freud tanto amava, principalmente a 439 Laura Ward da Rosa da deusa Atena, que simbolizava a sabedoria e a coragem moral. Apesar de seus apelos, os alemães haviam colocado Freud na lista dos judeus comuns, ocuparam sua editora, dirigida pelo filho Martin, apropriaramse da caderneta de poupança, todos os seus recursos foram bloqueados e exigiam que pagasse uma suposta dívida da sua própria editora, somando expressivo valor que ele não poderia pagar, já que não havia como resgatar o seu dinheiro. Na sede da Gestapo, Anna respondia, com toda a calma, às perguntas que levantavam suspeitas, procurando explicar o trabalho científico do pai, suas pesquisas da alma humana para aqueles que não tinham a mínima noção do que se tratava, bem como da formação do movimento psicanalítico internacional, que congregava pessoas unicamente com o fim do estudo e do aprimoramento do trabalho clínico na área dos fenômenos psíquicos, sem nenhum objetivo de cunho político-partidário ou antifascista. Cita o fato de que Freud até havia autografado um livro para Mussolini da obra “Por que a Guerra?”, escrito em parceria com Einstein. Ao final do dia, serena como saíra, Anna retorna sua a casa, escoltada por quatro SS fortemente armados, num carro aberto. Alívio geral! Soube-se, então, que Max Schur, médico pessoal de Freud, dera a ela uma cápsula de veneno com o qual ela poderia matar-se, caso fosse torturada. Resolução unânime: deveriam deixar a Áustria o quanto antes. No dia 28 de março, chegou a notícia de que Jones conseguira, junto ao governo britânico, asilo a toda a família Freud e a todos os amigos do círculo vienense – no total, dezoito adultos e seis crianças. Maria Bonaparte pagara todas “as dívidas”, entregando vultuosa quantia aos nazistas, que autorizaram a saída e escoltaram o grupo até a fronteira, sob a condição de que Freud declarasse não ter sofrido nenhum constrangimento ou maltrato. Irônico, ele escreveu no livro que lhe foi indicado: “Declaro que fui muito bem tratado pelas forças do comando SS – recomendo-as a todos! Sigmund Freud”. O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19 Psicanálise v. 12 nº 2, p. 437-440, 2010 440 Referências EDMUNDSON, M. A morte de Freud, o legado de seus últimos anos. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2009. JONES, E. Vida e Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1989. SCHUR, M. Freud, vida e agonia – uma biografia. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Laura Ward da Rosa Rua Dona Laura, 207/402 90430-091 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] 441 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora como caminho Artigo | Trabalho apresentado como tema livre na VIII Jornada da SBP de PA, novembro de 2009. Luciana Saraiva Schmal Membro do Instituto da SBP de PA. Paula Esteves Daudt Sarmento Leite Membro do Instituto da SBP de PA. Resumo: O trabalho foi elaborado para apresentação como tema livre na VIII Jornada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, cuja temática foi: “A pessoa do analista”. A ideia das autoras é de que o vínculo pressupõe a presença de uma outra mente para auxiliar a construção de um novo espaço-mente no indivíduo. Seria então, através do vínculo analítico, a “exigência” para o profissional de uma forte disponibilidade afetiva, tato e criatividade como “ferramentas” básicas de trabalho e como artifícios técnicos indispensáveis na clínica. Como consequência deste trabalho da dupla analítica, a metáfora seria um precioso recurso de linguagem que podemos utilizar para fortificar a capacidade empática, o vínculo, bem como a ampliação das condições psíquicas do analisando. Também enfatizam, neste trabalho, a diferença da metáfora para pacientes mais estruturados, onde ela seria um produto da criação do trabalho analítico, e para outros pacientes mais regressivos, onde a metáfora seria como uma “ponte” inicial de contatos e possibilidades no percurso analítico. Utilizam, entre outros autores, Winnicott, Ferenczi, Bonaminio, Ekstein e Ogden. Palavras-chave: Criatividade. Metáfora. Vínculo. O trabalho tem por objetivo desenvolver a ideia de que a criatividade pode servir de mola propulsora, desde a criação do vínculo analítico até a sua expressão como meta da análise, fruto do par analista-analisando. O processo analítico é uma “viagem” repleta de incertezas, desafios e descobertas, que favorece a criação de várias produções, como os sonhos e as metáforas. O percurso que o trabalho vai recorrer, então, é o da utilização da metáfora como uma forma especial de linguagem no campo ana- Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 441-451, 2010 442 lítico, alimentando o vínculo, quando estamos diante de situações clínicas limítrofes ou produto do vínculo, nas condições onde já houve um maior amadurecimento psíquico. Conforme Winnicott (2006), a vida só vale a pena ser vivida a ponto da criatividade ser uma parte importante da experiência. Para ser criativa, uma pessoa tem que ter um sentimento de existência, não na forma de percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da qual vai funcionar. A criatividade seria, portanto, a manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo. Para o bebê, isso não é difícil se a mãe for capaz de se adaptar às suas necessidades, assegurando que a percepção do mundo não seja anterior à sua experiência de concebê-lo. O indivíduo que não tenha sido demasiadamente distorcido por uma introdução no mundo prematura dispõe de muitas oportunidades para fomentar esse atributo de ser criativo. E, para uma existência criativa, não é necessário nenhum talento especial, apenas a manutenção da capacidade de “ver tudo como se fosse a primeira vez”. Uma vez que somos capazes de surpreender a nós mesmos, estamos sendo criativos e descobrimos que podemos confiar em nossa inesperada originalidade. O fato é que aquilo que criamos já está lá, mas a criatividade reside no modo como somos capazes de perceber, ou seja, através da ilusão de que essa criação foi própria. Foi Winnicott (1975) quem melhor desenvolveu o estilo clínico sustentado nas figuras da regressão à dependência no campo transferencial e da expressão criadora através do jogar compartilhado. Para ele, não seria suficiente dizer que o brincar é por si só terapêutico; seria preciso acrescentar que o próprio trabalho psicanalítico se efetua na sobreposição das áreas do brincar do analisando e do analista, tanto no tratamento de crianças quanto no de adultos. Em sua teorização, o sentido do existir, a expressão maior da autenticidade do self, coincide com a possibilidade de um gesto espontâneo. A criatividade, por sua vez, depende da competência do ambiente em propiciar a experiência ilusória da onipotência, a partir da qual a criança transita- 443 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite rá em direção a uma contínua e gradual aceitação da realidade – por meio de um processo evolutivo que passa dos fenômenos transicionais para o brincar, deste para o brincar compartilhado e, finalmente, para as experiências culturais. Em contrapartida, a situação analítica seria concebida como uma forma “altamente especializada” de jogo, na qual o psicanalista assume como direção favorecer o acesso ao lúdico ao analisando. Tal direcionamento clínico implicaria a disponibilidade sensível do psicanalista, e foi Ferenczi quem desenvolveu primeiramente a noção da importância da pessoa real do analista. É nesse contexto que o “tato psicológico” (faculdade de sentir com) é resgatado, como uma convocação ao exercício da sensibilidade na clínica: saber quando se comunica algo ao analisando; como reagir a uma ação inesperada deste; quando se calar e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente. Kupermann (2008) considera que a empatia em Ferenczi não pode ser entendida por meio do paradigma técnico-cientificista promotor de um isolamento nos modos de experimentação subjetiva do acontecimento clínico, mas apenas em referência a um paradigma estético no qual estaria referida a um exercício de afetação mútua. Tratar-se-ia, assim, de uma modalidade sensível de conhecimento, na qual se podem experimentar sensações e afetos vivenciados no encontro com a alteridade por meio da abolição momentânea das fronteiras estabelecidas entre sujeito e objeto. Ferenczi salienta que o analista poderia resistir ao encontro promovido pela clínica, recusando esses modos de afetação mutua. Foi a constatação da frequência dessa resistência que fez com que o autor postulasse uma segunda regra fundamental da psicanálise: a exigência ética de uma análise autêntica e não-burocrática para o analista. As características de personalidade do analista poderiam servir como instrumento de “cura” analítica e, assim, sua potencialidade clínica estaria diretamente relacionada à sua própria análise. É justamente a presença sensível e o acolhimento promovido pelo psicanalista o que permite aos analisandos romper com a paralisia afetiva na qual se encontram e desfrutar da capacidade lúdica e criativa implicada na realização de um gesto singular. Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 441-451, 2010 444 Desta forma, compreendemos que a criatividade precisaria “ser” a base e “fazer-se” uma conquista no processo analítico. Criatividade, assim, “criada” por e entre analista e analisando. Mas de que maneira a experiência clínica poderia facilitar a emergência dos processos criativos? Acreditamos que a experiência psicanalítica tem uma dimensão poética intrínseca, ou seja, o elemento poético seria capaz de sustentar aspectos essenciais do trabalho analítico se o pensarmos em termos de criatividade. A metáfora seria um dos recursos que o analista possui para dar conta de sua tarefa “paradoxal”: usar a palavra para dar voz à não-palavra. A palavra é limitada, pode esmagar as entrelinhas, mas é só através da palavra – da metáfora, da palavra poética – que podemos alcançar, ainda que de modo precário e fugaz, as experiências mais fundamentais: quando se torna poética, a palavra ultrapassa seus próprios limites (ROSENFELD, 1998). Viderman (1990), ao escrever sobre a linguagem no campo da análise, destaca a necessidade de quebrarmos uma primeira linguagem inautêntica para possibilitarmos uma outra linguagem capaz de nomear e dar forma às experiências. As interpretações mais transformadoras serão aquelas que curto-circuitam a letra do discurso e incluem uma atmosfera emocional/transferencial única e indizível. “Representações esboçadas, vagas, obscuras; pulsões e desejos inominados que a palavra do analista nem traz a luz e nem descobre, mas sim, dando-lhes um nome, colocando-as em forma, as cria” (p. 58). A conversa analítica requer, do par, o desenvolvimento da linguagem metafórica adequada à criação de sons e significados que reflitam o que é pensar, sentir e vivenciar fisicamente em um dado momento. A linguagem não é considerada, simplesmente, um “pacote” que carrega as ideias e sentimentos, mas um meio no qual pensamentos e sentimentos são criados. Segundo Ogden (1997), a linguagem do analista deve incorporar em si que não existe um ponto imóvel de significado. O significado está continuamente em processo de se tornar algo novo e, ao fazer isso, está continuamente se desestruturando, deixando as certezas. Trachtenberg (2006) diz que as palavras se gastam rapidamente em seu poder de ressonância e deixam de ser eficazes para a transmissão de 445 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite uma ideia ou emoção. Por isso, Bion enfatiza a necessidade de buscar nas metáforas dos grandes poetas os instrumentos para tentar ressuscitar termos fossilizados, pois as teorias transformam nossa linguagem num jargão repetitivo sem capacidade de afetar aquele que a escuta. A linguagem exitosa deveria contribuir para que um analisando pudesse vir a ser ele mesmo, ter a coragem e o suficiente respeito pela sua personalidade para poder ser essa pessoa que deveria ter sido ou que poderá vir a ser. O enquadre na situação analítica é construído para propiciar o surgimento dessa palavra peculiar, dessa palavra que pode tocar mais profundamente. Assim, a fala do analisando e a escuta do analista ficam à disposição para livres mergulharem nos múltiplos sentidos e sonoridades das palavras – fala e escuta que se criam uma na outra e procriam novos sentidos. Para “escutar” nessa perspectiva, é preciso estar em uma zona intermediária, nem muito perto, nem muito longe, dentro e fora ao mesmo tempo. É o nome, a metáfora, que pode ir além do limiar da significação e comunicação, que, ao invés de exprimir-se ou fazer-se compreender, dá visibilidade, tem o poder de suscitar figuras. A palavra comum mantém as coisas no sono; o nome as desperta. A metáfora é a palavra pronunciada que contém, que dá ouvidos ao impronunciável. Ela nos convida a um movimento diferente que o de compreender um significado, trazendo luz ao escuro-traumático do paciente. Como diz Nietzsche em O alegre saber (1882): O que é a originalidade? É ver alguma coisa que ainda não tem nome, que ainda não pode ser chamada, embora esteja sob o olhar de todos. Assim são os homens habitualmente de tal forma que lhes é necessário, antes de tudo, um nome para que alguma coisa lhes seja visível. Originais, geralmente, foram aqueles que deram nome as coisas. No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, metáfora é definida como “[...] tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado”. A palavra metáfora vem do grego metaphorá, que significa transporte. O termo transferência (trans-fero), por sua vez, vem do verbo latino fero, que significa o mesmo que phorá em grego: levar, carregar, portar. A Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 441-451, 2010 446 metáfora transporta a palavra, o nome de uma coisa para outra (ROSENFELD, 1998). A palavra é desligada do uso literal, previsível e banal, e passa a ser usada em um contexto original, singular e inusitado. Abre para novos e inesperados significados. A palavra assim transportada desperta afetos e adquire uma potência incomum. Usamos a metáfora ao invés de uma linguagem mais literal justamente quando estamos diante de uma experiência que não tem nome, indizível, impensável. A metáfora sabe ouvir o indizível transportando-o para perto da experiência emocional do analisando. A metáfora tem o potencial de corporificar o irrepresentável, colaborando para a construção da subjetividade. Como diz Clarice Lispector em Água viva (1984): “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu”. A metáfora é essa palavra especial, diferente da palavra corriqueira e que tem uma força espantosa. A palavra comum enterra a imagem, metáfora, por sua vez, ao transportar um nome, ao fazer a palavra tocar a imagem enterrada, faz com que ela desperte e ganhe vida. E, nesse movimento, surge o novo, a transformação: a palavra deixa de ser comum e a imagem deixa de ser muda. Como o poeta que faz caber o incabível em sua lata-poesia, analista e analisando abrem sua lata-mente, através da metáfora: Por isso não se meta a exigir do poeta / que determine o conteúdo em sua lata/ Na lata do poeta tudo-nada cabe/ Pois ao poeta cabe fazer/ com que na lata venha caber/ O incabível /Deixe a meta do poeta, não discuta,/ Deixa a sua meta fora da disputa/ Meta dentro e fora, lata absoluta/ Deixe-a simplesmente metáfora. (GIL, Gilberto). Segundo Bonaminio (2008), o analista deve facilitar e salvaguardar a criação de um espaço privado para o paciente, um espaço no qual possa emergir sua individualidade e sua privacidade, protegendo-o constantemente das intrusões, da invasão de sua própria subjetividade, que todavia é a única posição a partir da qual ele pode conhecê-lo. A psicanálise é a crença na cocriação de duas mentes, tanto na situação clínica quanto 447 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite como agente de transformação. A posição do analista seria de promover e favorecer o ambiente para construção do espaço do sonho – e, poderíamos acrescentar, da metáfora. A ideia de vínculo remete a tudo que liga, ata e une, implicando a intersecção entre duas subjetividades, entre o privado e o compartilhado. Como o aparato psíquico é insuficiente para metabolizar as experiências emocionais, faz-se necessário sempre um Outro para compartilhar e transformar as vivências emocionais. Essa capacidade, que originariamente é fundada com a mãe, se amplia no vínculo analítico. A metáfora só ganhará potência se for uma criação legítima e fértil do analista e do paciente, como um “jogo do rabisco” com as palavras. Se não for uma criação mútua, a metáfora corre o risco de se tornar um perigoso instrumento de poder e sedução do analista, uma experiência de invasão. Para que esse canal de cocriação da metáfora possa existir, o analista precisa ter capacidade de suportar a abolição temporária das fronteiras intra e interpsíquicas, utilizando sua empatia, intuição, tolerância (tolerância à agressividade, ao erotismo, ao não-saber, à regressão) e delicadeza (ética do cuidado). A metáfora assim construída pode tocar o verdadeiro self, libertando-o do aprisionamento traumático e favorecendo que a criatividade seja o alimento da saúde emocional. Essa palavra especial não precisa ser sofisticada, apenas um representante genuíno do campo analítico. A metáfora não tem força por ser inédita e sim pela ilusão de que ela tenha sido criada e sustentada pelos “direitos autorais” de cada vínculo analítico. Muitas vezes, a metáfora vai figurar como um verbete “do pequeno dicionário amoroso” da dupla e, portanto, só compreendida no cerne dessa intimidade. Em um diálogo com Roberto Alifano, Jorge Luis Borges fala que as metáforas, se verdadeiras, existiriam desde sempre e sua grandeza não estaria em metáforas, o tempo e o rio; o viver e o sonhar; a morte e o dormir; as estrelas e os olhos; as flores e as mulheres: “Para mim, o importante é a entonação, a cadência que se dá à metáfora. Ou seja, a música!”. A música é a própria metáfora da intimidade da relação analítica, onde uma palavra só ganha sentido se for acolhida e escolhida pelo tom afetivo daquele encontro. Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 441-451, 2010 448 Pensando na clínica, pode-se distinguir o uso da metáfora em duas direções: uma que se dá com pacientes que dispõem de uma integração psíquica e que são capazes de sustentar a simbolização, reconhecidos como neuróticos, e outra que se dá com pacientes regressivos, com um nível simbólico precário, onde a qualidade “como se” do significado abstrato da metáfora não está presente e esta se converte em uma experiência concreta e imediata, no caso dos considerados fronteiriços e psicóticos. Essa direção aponta para a criação do vínculo, em que o analista respeita a distância que o paciente precisa manter dos conteúdos ameaçadores e se apresenta como alguém que se propõe a começar a brincar com ele e a construir uma zona de ilusão. A outra se volta mais para o vínculo de criação, onde analista e analisando inseridos num “espaço potencial” podem fazer uso da metáfora como um caminho descoberto. Entre as possibilidades de interpretação no processo psicanalítico, Ekstein (1966) propõe a interpretação dentro da metáfora, como técnica essencial para estabelecer gradualmente a comunicação e o insight inicial com pacientes fronteiriços e esquizofrênicos. O uso da metáfora torna-se valoroso para a manutenção do contato com esses pacientes que se encontram em perigo constante de serem inundados pela passagem de material procedente do processo primário, ou seja, formas arcaicas de pensamento. A metáfora pode, assim, ser considerada uma ponte entre as ilhas isoladas existentes dentro do ego, oriundas dos processos de cisão. A metáfora utiliza material do processo primário traduzindo e elevando seu significado a uma linguagem de processo secundário. O paciente fronteiriço encontra-se lutando contra as descontinuidades no funcionamento do ego, determinadas pela fragmentação e pela falta de defesas apropriadas. O uso da metáfora permite ao paciente estabelecer uma continuidade entre as funções isoladas do ego, ao mesmo tempo em que ajuda a manter suficiente descontinuidade entre o processo primário e o secundário, evitando, assim, maior regressão egoica. Conforme Ekstein (1966), torna-se importante destacar que normalmente é o paciente quem inicia o uso da metáfora, sendo essa linguagem a única de que ele dispõe para comunicar. O paciente que está próximo da psicose tende a usar a metáfora naquele ponto em que a organização psíquica está debilitada, quando os processos primários ameaçam o ego e quando a habilidade para se comunicar em um nível simbólico e abs- 449 Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite trato está desaparecida. Por outro lado, o paciente mais integrado usa a metáfora por escolha e criação, a serviço do pensamento abstrato, como forma de revelar e simultaneamente manter um segredo. A metáfora pode funcionar como “metáfora-mãe” ao servir de ligação, de suporte para o nascimento do vínculo, da empatia e da capacidade de compreender sem palavras. Pode-se dizer que a metáfora, nesse lugar, corresponderia a uma palavra para dois. Também pode funcionar como “metáfora-pai” ao produzir ruptura, abertura de um “outro” caminho e uma nova nomeação. Corresponderia, por sua vez, a uma palavra de três. A palavra poética permite que a linguagem seja compreendida desde dentro e não somente além, mantendo a relação analítica naquela posição criativa básica na qual devemos funcionar em direção a uma existência autêntica. A metáfora cria uma espécie de “estética analítica”, torna-se um valioso instrumento entre analista e analisando para manter a linguagem viva e não mortificada por explicações e certezas – para que, lembrando Shakespeare, o coração possa concordar com a língua (Henrique VI, 2a parte). From Creation of Bonds to the Bonds of Creation: metaphor as a tool Abstract: The paper was presented in a free session at the 8th Symposium of the Brazilian Society of Psychoanalysis of Porto Alegre, whose central theme revolved around “The Person of Analyst”. The authors posit that bonding takes for granted the presence of another mind to help construct an individual’s new mind-space. Through the analytic bond, a large affective availability, tact and creativity are demanded from the psychoanalyst as basic working “tools” and as essential techniques to be used in clinical practice. As a consequence of this analytic pair’s work, the metaphor would be a precious linguistic tool we can use to strengthen the capacity for empathy and bonding and to broaden the patient’s psychic states. This paper also highlights metaphor differences in patients with more progressive attitudes, for whom the metaphor would be a product of the creation of the psychoanalytic work, and metaphor differences in more regressive patients, for whom it would be an initial “bridge” of contacts and possibilities in psychoanalytical treatment. Winnicott, Ferenczi, Bonaminio, Ekstein and Ogden were some of the authors used as reference in this study. Keywords: Bonding. Creativity. Metaphor. Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 441-451, 2010 450 Desde la Creación del Vínculo al Vínculo de Creación: la metáfora como camino Resumen: El trabajo fue elaborado para presentación como tema libre en la VII Jornada de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de Porto Alegre, cuya temática fue: “La persona del analista”. La idea de las autoras es que el vínculo presupone la presencia de otra mente para auxiliar la construcción de un nuevo espacio-mente en el individuo. Sería entonces, mediante el vínculo analítico, la “exigencia” para el profesional de una fuerte disponibilidad afectiva, tacto y creatividad como “herramientas” básicas de trabajo y como artificios técnicos indispensables en la clínica. Como consecuencia de este trabajo de la pareja analítica, la metáfora sería un precioso recurso de lenguaje que se puede utilizar para fortificar la capacidad empática, el vínculo, así como la ampliación de las condiciones psíquicas del analizando. También enfatizan, en este trabajo, la diferencia de la metáfora para pacientes más estructurados, donde ella sería un producto de la creación del trabajo analítico, y para otros pacientes más regresivos, donde la metáfora sería como un “puente” inicial de contactos y posibilidades en el recorrido analítico. Utilizan, entre otros autores, Winnicott, Ferenczi, Bonaminio, Ekstein y Ogden. Palabras clave: Creatividad. Metáfora. Vínculo. Referências BONAMINIO, V. A Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade: a pessoa do analista como conceito central da psicanálise contemporânea. Roma, 2008. Trabalho inédito. EKSTEIN, R. La Psicosis Infantil. México, D. F.: Pax, México, 1969. KUPERMANN, D. Presença Sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. FERENCZI, S. Obras Completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MOGUILLANSKY, R. Vinculo y Relacion de Objeto. Buenos Aires: Polemos, 1999. NIETZSCHE, F. O Alegre Saber. Rio de Janeiro: Escala, 2008. OGDEN, T. Algumas considerações sobre o uso da linguagem em psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, v. XXXI, n. 3, 1997. ROSENFELD, H. K. Palavra pescando não palavra. 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Psicanálise v. 12 nº 2, p. 441-451, 2010 452 artigo encomendado 455 Ana Paula Terra Machado Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade Artigo Ana Paula Terra Machado Psicanalista, Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Resumo: O Artigo apresenta as propostas teóricas de Joyce McDougall, destacando sua compreensão do destino do afeto nos fenômenos psicossomáticos, a partir do estado de privação psíquica. Aborda, ainda, seus conceitos de neossexualidade e neonecessidade. Palavras-chave: Afeto. Neossexualidade. Psicossomática. 1 Introdução A obra de Joyce McDougall aborda, em especial, a dimensão traumática da alteridade e da diferença sexual que atinge a própria identidade do indivíduo. Suas propostas teóricas sobre a expressão psíquica dos traumas precoces são uma importante fonte de estudo para os desafios que a clínica nos impõe cotidianamente. Um dos traços marcantes nos seus textos é a forma como descreve o seu trabalho, expondo suas impressões, seus sentimentos contratransferenciais e mesmo relatando suas experiências pessoais, proporcionando uma leitura empática com suas ideias. Dotada de grande sensibilidade clínica, esboça suas reflexões e teorias numa linguagem clara e vívida, como a de quem tem o compromisso de se fazer entender pelo seu leitor. Nascida em Dunedin, na Nova Zelândia, parece ter tido seu destino de psicanalista traçado desde muito cedo. Essa é a impressão que se tem quando, no primeiro capítulo de seu livro “Teatros do Corpo”, relata uma experiência de sua infância. Aos cinco anos, comenta com sua mãe que a Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010 456 urticária que sempre lhe acometia na fazenda dos avós paternos, onde passava as férias, não era provocada pelo leite gordo das vacas Jersey, como todos imaginavam, mas por uma reação à ojeriza que sentia por sua despótica avó. Essa passagem infantil já revelava sua aguçada percepção que, posteriormente, seria instrumentalizada na sua clínica dos pacientes que apresentavam distúrbios psicossomáticos. Da ligação afetuosa com o avô paterno, professor de belas artes, resultou seu interesse pela arte. Anos mais tarde, ao ingressar na Faculdade de Artes e Ciências de Otago para estudar psicologia, frequentou também o clube de teatro como atriz e, principalmente, como diretora. Essa experiência pode ter contribuído para sua escolha da “metáfora do teatro” que ilustra seu pensamento clínico e teórico. Nessa mesma época, dedicou-se à leitura da obra de Freud e decidiu tornar-se psicanalista. Em 1950, ao imigrar com o marido e os filhos para Londres, entrou em contato com Winnicott e Anna Freud a fim de iniciar sua formação psicanalítica. Ao ser recebida por Winnitcott, foi convidada a participar de seu seminário. O estudo com ele teve influência decisiva em seu trabalho como analista. Também foi acolhida por Anna Freud, que a aceitou como aluna na clínica de Hampstead. Iniciou, a seguir, sua formação na Sociedade Britânica. Em tempos de rivalidade aguerrida na Instituição londrina, optou por um analista do “Middle Group”. Essa escolha implicou duas supervisões, uma com um annafreudiano e outra com um kleiniano. Em função do trabalho de seu marido, mudou-se para Paris, interrompendo sua formação. Na travessia do Canal da Mancha, levou consigo uma carta de recomendação de Anna Freud para apresentar-se a Marie Bonaparte. A chegada na França, em 1953, ocorreu num momento conturbado da Sociedade Psicanalítica de Paris, que culminou numa cisão e na fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise. Optou por permanecer na Sociedade Psicanalítica de Paris, na qual concluiu sua formação e posteriormente ocupou diversas funções como membro titular. Joyce McDougall é uma psicanalista reconhecida internacionalmente. Sua obra foi traduzida para mais de dez idiomas, sendo requisitada para con- 457 Ana Paula Terra Machado ferências em vários países, inclusive no Tibete, onde esteve a convite do Dalai Lama para explanar sobre a importância de Freud na cultura ocidental. No Brasil, onde esteve algumas vezes, seus trabalhos e artigos são fonte para o estudo da psicossomática e dos distúrbios da identidade sexual, tão frequentes na clínica da atualidade. Sua primeira publicação, em 1960, em colaboração com Serge Lebovici, foi sobre a análise de um caso de psicose infantil. Esse livro, prefaciado por Winnicott na edição inglesa, já esboça a integração que propõe entre a “psicanálise francesa” e a “psicanálise anglo-saxônica”, possivelmente pelas próprias peculiaridades de sua formação. Em Londres, conviveu com os embates entre os seguidores de Klein e os adeptos de Anna Freud, encontrando em Winnicott o suporte teórico para as ideias que posteriormente desenvolveu. Na França, vivenciou as cisões, fez suas escolhas, mas manteve-se numa posição independente. Sem filiação a qualquer “escola”, adota uma postura não dogmática, com o pensamento livre para avaliar as teorias, sempre que estas não alcançam a complexidade que observa e vivencia com seus pacientes. Suas teorizações se orientam no sentido da complementaridade entre a influência do ambiente e das representações psíquicas, enfatizando a função paterna nesse contexto. Utiliza a “metáfora do teatro” para expor suas ideias, considerando que cada indivíduo cria um teatro particular para exprimir as suas emoções e viver as suas fantasias. Essa ideia também é transposta para a cena psicanalítica que é, sobretudo, uma experiência da dupla, na qual analista e analisando representam seus papéis. A importância que concede aos sentimentos contratransferenciais é percebida ao longo de sua obra. Como uma espécie de fio condutor do trabalho analítico, a contratransferência é um instrumento fundamental na análise dos pacientes de estruturas não neuróticas. Enfatiza que as manifestações sintomáticas são a expressão de uma tentativa de autocura e visam salvaguardar a sobrevivência psíquica. Essa concepção sobre os dramas individuais evidencia sua disponibilidade interna para a escuta do sofrimento dos seus analisandos. Dentre as suas contribuições teóricas, destaca-se a investigação dos fenômenos psicossomáticos. Instigada pelas somatizações de seus pacientes, procura entender a dinâmica subjacente a essas manifestações, que Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010 458 impõem ao corpo arcar com as intensidades que não podem tramitar pelo psiquismo. Em relação à economia afetiva, propõe um quarto destino para a transformação do afeto, além dos três descritos por Freud (conversão histérica, deslocamento para representações de qualidades diferentes, como na neurose obsessiva, e transformação direta em angústia, o que ocorre na neurose atual). Acrescenta a rejeição (Verwerfung), no sentido em que foi descrita em “As Neuropsicoses de Defesa” (1894), quando Freud refere: “Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bemsucedida. Aqui, o ego rejeita a ideia incompatível juntamente com seu afeto e comporta-se como se a ideia jamais lhe tivesse ocorrido” (v. 3, p. 71). A rejeição incide não somente sobre a representação, mas também sobre o afeto ligado a ela. Essa acepção do termo rejeição foi nomeada por Lacan como forclusão, como um mecanismo característico das psicoses. McDougall observa, a partir de sua experiência clínica, que tal mecanismo pode gerar uma regressão a reações psicossomáticas. De acordo com essa ideia, o afeto ejetado para fora do psiquismo encontra no corpo a possibilidade de descarga. Nesse sentido, as regressões psicossomáticas se aproximam da psicose no que se refere à intensidade da angústia. Propõe, então, o termo “psicose atual”, em analogia às neuroses atuais descritas por Freud. Ao abordarem esse tema, Peres e Santos (2010) salientam que, embora a psicose atual seja desencadeada por situações do presente, tem como fatores etiológicos os traumatismos precoces. Embora haja essa ligação, pelo caráter da angústia, nos caminhos que vão determinar um desfecho na psicose ou nas psicossomatoses, devem ser considerados o papel simbólico da figura paterna e sua importância na constelação familiar. Quanto à forma de pensar, nas alucinações e delírios das psicoses, as palavras têm a função de preencher um vazio aterrorizante, enquanto, nas somatizações, há um esvaziamento do conteúdo afetivo das palavras, tornando-as “desafetadas”. A desafetação tem como finalidade dispersar a angústia intolerável e ameaçadora. Essa defesa radical permite manter o equilíbrio interno, ainda que à custa de uma exclusão das vivências emocionais das situações enfrentadas pelo indivíduo. Essa forma de reagir leva o indivíduo a uma sobreadaptação às demandas da 459 Ana Paula Terra Machado vida cotidiana – as tarefas e o cumprimento das obrigações são executados com grande eficácia e sob a aparência de uma normalidade –, a que McDougall designou “normopata”. Em princípio, todos têm um potencial somatizante que pode se manifestar em situações em que falham as defesas habituais diante do sofrimento psíquico. Entretanto, para determinados indivíduos, a somatização torna-se a via de descarga principal das intensidades que não podem ser expressas pelas palavras. Nessas circunstâncias, é o corpo que denuncia uma angústia indizível. Quando as palavras não cumprem sua função de ligação pulsional e as atividades mentais, como os sonhos, os devaneios e o pensamento reflexivo, não são possibilidades de alívio das tensões internas, configura-se o estado de privação psíquica. Essa forma de funcionamento mental foi objeto de pesquisa na Escola de Psicossomática de Paris (liderada inicialmente por C. David, M. Fain, P. Marty e M. de M’Uzan). Seus estudos resultaram no importante conceito de pensamento operatório definido por Marty e M. de M’Uzan (1963) como modo de pensar sem associações, estreitamente ligado à materialidade dos fatos, carente de simbolização. O sujeito está presente, mas “vazio” (1994, p. 165-174). Esse pensamento, desvitalizado e pragmático, ocorre em função de um bloqueio na capacidade de representar ou elaborar as demandas pulsionais do corpo dirigidas ao psíquico. Nesse mesmo campo de estudo, Nemiah e Syfenos, em Boston, postularam o conceito de alexitimia, descrito como a incapacidade de o indivíduo nomear os afetos correspondentes à situação vivenciada, acarretando uma indiscriminação dos estados afetivos (apud MCDOUGALL, 1991). Em relação a esses conceitos, McDougall enfatiza a ideia de que essas maneiras de pensar e de discriminar os afetos são defesas arcaicas contra uma angústia insuportável que ameaça a integridade psíquica. Ressalta ainda que, de acordo com sua experiência, muitos analisandos, apesar de apresentarem doenças psicossomáticas, não eram alexitímicos nem tinham uma forma de pensar operatória, vivenciando intensamente os conflitos de seu mundo interno. Nesses casos, considera a possibilidade de uma “histeria arcaica”, na qual os conflitos não dizem respeito à trama edípica, o que remete ao corpo erógeno, simbolizado, e configuram as interdições do desejo. A compreensão desse funcionamento psíquico está Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010 460 ligada a vivências traumáticas dos períodos iniciais do desenvolvimento, anteriores à aquisição da palavra. O corpo todo sofre uma erotização primitiva para manter sua unidade diante dos temores de fragmentação interna. Segundo McDougall, a fantasia que rege as primeiras trocas da mãe com o recém-nascido é a de um corpo para dois. Dessa fusão inicial com o corpo materno irá ocorrer, gradativamente, uma separação entre o próprio corpo e o mundo externo, representado inicialmente pelo seio materno. O movimento em direção à individualização será acompanhado de retornos ao estado de união, quando houver um aumento de tensão física ou psíquica. Cabe à mãe interpretar as demandas do seu bebê e proporcionar o alívio às tensões, assim como é da função materna possibilitar que o bebê possa adquirir a capacidade de separar-se dela. Esse duplo anseio da criança em ser ela própria e de poder fundir-se ao outro (mãe-universo) se encontra na origem da organização psíquica individual. Apoiada nas ideias de Winnicott, considera a qualidade do vínculo dessa interação inicial mãe-bebê e a consequente interiorização desse ambiente maternal como determinantes para a constituição da identidade subjetiva. As falhas oriundas desse processo estruturante determinam carências precoces que vão interferir na capacidade de a criança reconhecer como lhe pertencendo o seu corpo, os seus sentimentos e até o seu próprio psiquismo. Esses déficits aumentam a vulnerabilidade aos transtornos psicossomáticos, às adições e aos comportamentos de ação. Ao abordar as perversões, McDougall cunhou o termo neossexualidades para as expressões tanto homossexuais quanto heterossexuais da sexualidade infantil. Descreve essas sexualidades desviantes como verdadeiras invenções que giram em torno das fantasias da cena primária. A fixação nos aspectos pré-genitais é a solução encontrada diante de fragilidades narcísicas resultantes dos entraves no processo das internalizações, incorporações e identificações iniciais estruturantes do sentimento da identidade subjetiva e das identificações com a sexualidade e com os desejos eróticos inconscientes das figuras parentais – quando o falo não cumpre sua função de organizador da sexualidade. Nesse contexto dos desvios da sexualidade, restringe o uso do termo perversão aos relacionamentos quando o indivíduo impõe seus desejos sem o consentimento 461 Ana Paula Terra Machado do parceiro, ou seja, é o desprezo e a indiferença em relação ao desejo do outro o que configura uma perversão. Nas neossexualidades, os roteiros são predominantemente autoeróticos e restringem a vida sexual do indivíduo. Porém, muitas vezes é a única forma encontrada para se obterem as satisfações libidinais que não podem ser alcançadas pela sexualidade genital. Amplia a ideia de neossexualidade com a noção de neonecessidades quando o objeto ou as práticas sexuais são utilizados como droga. A relação de dependência do objeto, marcada pela compulsão, denuncia o fracasso da internalização e integração das funções parentais protetoras e tranquilizadoras. Essa incapacidade interna de tolerar a angústia impõe a busca de um objeto externo para descarregar as tensões psíquicas. Esse objeto é, então, vivenciado como bom, na medida em que proporciona um alívio, ainda que fugaz, do estado afetivo gerador da tensão. O entendimento da percepção do objeto droga como bom, que auxilia o indivíduo a suportar as exigências da vida, levou Joyce McDougall a adotar a palavra adição na França. Em detrimento do termo toxicomania, que tem seu significado associado a envenenar-se, o termo adição, transposto do inglês, é hoje de uso corrente nos textos psicanalíticos franceses, bem como em nosso meio. Compreende as adições, no seu amplo espectro, como uma tentativa de enfrentar angústias que podem ser de natureza neurótica ou de estados depressivos, sentimentos de vazio, ou ainda uma fuga diante de angústias psicóticas. Dessa forma, estão presentes em qualquer estrutura de funcionamento mental e se relacionam com determinadas etapas do desenvolvimento. A dimensão ocupada na economia psíquica do indivíduo e a escolha do objeto da adição são indicadores da extensão das falhas na constituição do self que esse objeto tenta, ilusoriamente, reparar. Esse olhar sobre a condição humana e a compreensão de que qualquer manifestação sintomática é um ato criativo e, acima de tudo, uma tentativa de autocura, norteiam o trabalho de Joyce McDougall. No prefácio de seu livro “Em Defesa de uma Certa Anormalidade” (1983), essa ideia é ratificada quando refere: “[...] se a criança oculta no fundo de todo homem é causa de seu sofrimento psíquico, também é a fonte da arte e da poesia da existência”. Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010 462 Joyce McDougall: a contemporary psychoanalyst Abstract: The paper presents theoretical propositions of Joyce McDougall, concerning her comprehension about the affect on psychosomatic phenomena from a state of psychic privation. It also emphasizes her concepts about neo-sexuality and neoneeds. Keywords: Affect. Neo-sexuality. Psychosomatics. Joyce McDougall: una analista de la contemporaneidad Resumen: El articulo presenta las proposiciones teóricas de Joyce McDougall, destacando su comprensión del destino de los afectos en los fenómenos psicosomáticos desde del estado de privación psíquica. Aborda aún sus conceptos de neo-sexualidad y neonecesidad. Palabras clave: Afecto. Neosexualidad. Psicosomática. Referências FREUD, S. (1894). As Neuropsicoses de Defesa. In: . Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.3. MCDOUGALL, J. Em Defesa de Uma Certa Anormalidade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. . Conferências Brasileiras. Rio de Janeiro: Xenon, 1987. . Teatros do Eu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. . Teatros do Corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. . As Múltiplas Faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MARTY, P.; M’UZAN, M. de. O Pensamento Operatório. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 28, n. 1, p. 165-174, 1994. MENAHEM, R. Joyce McDougall. São Paulo: Via Lettera, 1999. PERES, R. S.; Santos, M. A. O Conceito de Psicose Atual na Psicossomática Psicanalítica de Joyce McDougall. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 44, n. 1, p. 99-108, 2010. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Ana Paula Terra Machado Rua: Florêncio Ygartua, 271/402 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] resenhas 465 Abel Fainstein Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman “História e Préhistória na Clínica com Crianças e Adolescentes” Resenha | ROZENBAUM DE SCHVARTZMAN, Ana. Había una vez...: historia y prehistoria em la clínica con niños y adolescentes. Buenos Aires: Lumen, 2008. Abel Fainstein Analista de crianças. Membro Didata da Associação Psicanalítica Argentina. “Era uma vez...” é uma frase que nos traz lembranças. Nos recordamos das histórias infantis que nos contaram repetidas vezes e permanecem em nossa memória não apenas como lembranças. Sabemos que a memória nem sempre se baseia em lembranças. Algumas vezes são marcas que permanecem muito atuais e é necessário fazer com que elas tornem-se passado, isto é, historizar para prevenir o desenvolvimento traumático. Para aqueles que trabalham como psicanalistas, os contos infantis são produtos da fantasia de alguns privilegiados que têm estimulado precocemente nossa imaginação, nossas próprias fantasias e também as de nossos pacientes. No entanto, as histórias que nos contam e que contamos, em geral, referem-se a situações traumáticas. Quem não lembra de “João e Maria” ou da “Chapeuzinho Vermelho”, apenas para citar algumas. Fazer das marcas vivências passadas constitui boa parte de nossa prática, pois, como disse a protagonista de “Hiroshima meu amor”, Ana, “somente lembrando é possível esquecer”. Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010 466 Outra bela citação literária do livro que apresentamos: “Todos os sofrimentos podem ser suportados se os encaixarmos em uma história ou construirmos uma história sobre eles”, desta vez de Isak Dienesen. Na clínica psicanalítica, as histórias que nossos pacientes contam, ou as que construímos com eles, tentam simbolizar marcas potencialmente traumáticas. Por isso usamos esse recurso. Quando tal mecanismo é eficaz é possível controlar o desencadeamento da angústia, porém sabemos que em geral somos procurados quando essa tentativa falha, e através da cura se busca uma nova historização, que seja mais eficaz para esse objetivo. Ana Rozenbaum cita aqui Baranger y Mom, “[...] os analisandos vêm com uma história e terminam com outra, muito mais rica, com figuras mais matizadas, momentos de felicidade e infelicidade, pais bons e maus, etc.”. Essa historização, que pode às vezes ser a primeira e outras vezes suceder histórias prévias, tem uma característica peculiar do nosso trabalho. Ela é o resultado da atualização de situações passadas na transferência com o analista. Somente essa vivência as faz diferente de uma criação literária, e isto que muitas vezes vemos desvirtuado em muitos relatos clínicos é claramente descrito pela autora em cada um dos capítulos, mostrando assim a sua prática em transferência. Não lhes faz falta dizer que tudo isso é o trabalho nosso de cada dia. Por isso, a importância do assunto deste livro, muito bem e claramente escrito por uma analista experiente, que relata as histórias sobre suas próprias práticas. Ela tenta simbolizar criativamente, as marcas que a prática tem deixado nela própria. Longe de limitar-se descrever as particularidades do tema através de múltiplas articulações teóricas e clínicas, penso que um dos valores do livro é, também, poder contar com as perguntas que a autora se e nos formula e que nos convidam a pensar com ela sobre os temas. Sabemos que muitas vezes são melhores as boas perguntas do que as possíveis respostas, e a experiência vai ensinando também a nos perguntarmos e a perguntar. Concordo com Madé Baranger quando escreve no prólogo “a psicanálise tem muito para fazer e aprender”. Por isso, o prazer de apresentar para vocês um livro que nos introduz plenamente e de forma original à prática psicanalítica contemporânea. 467 Abel Fainstein Um livro como objeto pode, e é este o caso, ter um valor estético que o embeleza e que nos motiva a vê-lo com prazer e, logo, a lê-lo. Desde a sua atrativa capa, com o título “Era uma vez...” em meio a um desenho colorido, o livro de Ana nos introduz a temática que recorre suas páginas: História e Pré-História na clínica com crianças e adolescentes. O profundo prólogo de Madeleine Baranger faz honra ao texto. Ana Rozenbaum se descreve partidária das ideias dela e das de Willy Baranger sobre o campo analítico como campo dinâmico intersubjetivo, e da ampliação que Luis Kancyper faz para incluir os pais da criança ou do adolescente. Festejo, por este motivo, compartilhar com Luis esta apresentação. Tratarei de esboçar as ideias centrais que nos traz a autora para nos introduzir à sua leitura. O livro tem três partes. A primeira é sobre teoria e técnica, a segunda são histórias clínicas e a terceira se intitula ‘histórias psicanalíticas’. Este último capítulo transcende o tema particular do livro, centrado no valor da história e da pré-história na prática psicanalítica com crianças e adolescentes, mas nem por isso deixa de fora o valor destas no que diz respeito ao traumático. Tais histórias, uma de Marie Langer e outra do Departamento de Psicanálise de Crianças e Adolescentes da APA, da qual a Ana foi diretora, se referem às vicissitudes da psicanálise em nosso meio e dão conta de uma série de acontecimentos que, salvo necessárias distâncias, ainda requerem historizações simbolizantes – daí o valor do trabalho que nos propõe a autora. A respeito da teoria e da técnica da psicanálise com crianças e adolescentes, a autora destaca em sucessivos depoimentos o lugar dos pais e do analisando, as entrevistas preliminares, a historização, a relação entre lembrança e fantasia, e os riscos do conhecimento prévio do analista. Um rico desenvolvimento sobre a fantasia inclui a sua gênese e o seu itinerário, as fantasias de princípio e de fim da análise, as fantasias juvenis, as fantasias escritas, a novela familiar e as fantasias a serviço da história na análise. Quanto à lembrança, a autora descreve as relações Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010 468 entre a memória e o esquecimento, a memória testemunhal e a lembrança a serviço da história na análise. Como podemos ver, o fino entrelaçamento entre lembrança, fantasia e memória vai tecendo a análise em transferência que a autora pratica, seguindo o modelo freudiano. Trata-se de um relato de dois, onde o jogo transferência-contratransferência é a matriz do tecido. A primeira parte se completa com evoluções sobre o trauma na história do sujeito e sobre o que vai além da história, ou seja, o traumático na pré-história. Sabemos com Freud que não há processo psíquico mais ou menos importante que uma geração possa excluir da seguinte. A autora nos lembra que dita transmissão, da qual sempre haverá marcas em sucessivas gerações, pode não ser linear, mas sim circular, intermitente e perfurada. Nesse ponto, os ricos desenvolvimentos sobre transmissão entre as gerações sustentam o impacto do Holocausto e das migrações sobre o psiquismo dos danificados até a terceira geração. Cabem aqui, de maneira central, as perguntas que a autora se faz: “Que condições são necessárias para se ter a percepção clínica de que essa história oculta é constituinte do psiquismo do paciente, e não uma explicação que o psicanalista poderia construir fora do movimento transferencial? Como assumir ou livrar-se dessa herança? Como intervir sobre essas histórias que antecedem e sobre as quais irão constituir-se? Como pensar na eficácia e perdurabilidade do passado no presente? Penso que o texto convida a pensar que uma lembrança de pura atualidade – em que não há passado nem lembranças, somente marcas – requer que se faça desta passado, que se construa um passado. Sabe-se, porém, que, contra a necessária construção do passado a partir de ditas marcas, faltam referentes simbólicos que sirvam para organizar as mesmas. Esse é o caso de Funes, citado por Miguel Leivi, que ficou descapacitado e melancólico desde uma queda durante sua adolescência. Sabemos que o acting out e a necessária prevenção de passagens ao ato dominam a clínica com adolescentes, cheios de estímulos e com códigos que não podem seguir fazendo uso ou que não conseguem organizar. 469 Abel Fainstein A negação também opera contra essa tarefa de historização na busca da construção de um passado, e, por isso, a importância da memória testemunhal. Por esse motivo, estou de acordo com Esther Romano sobre a importância de objetos confiáveis e da função tutelar do estado, que ajudam a simbolizar as marcas potencialmente traumáticas, e não a negálas. O mesmo vale para as consequências dos efeitos do Holocausto e do terrorismo de estado, cabendo destacar o valor da memória testemunhal na procura, como disse Primo Levi citado pela autora, “de não somente não esquecer, e sim que o mundo não esqueça”. Avançando na leitura penso ser interessante e de importância clínica, a pontualização que Ana faz sobre as diferenças entre o trauma psíquico na infância e o trauma psíquico infantil, mediado pelo Nachträglichkeit. Algo pode perturbar a criança na sua infância tornar-se traumático e desorganizar seu psiquismo. A criança construída a partir da análise da transferência de um adulto, o traumático em relação às psiconeuroses aparece posteriormente. Essa diferença demarca campos distintos entre a patologia grave ou precoce, como a limítrofe e a patologia psiconeurótica. Também as abordagens são diferentes. No primeiro caso, existe a necessidade de um trabalho de simbolização, de significação até então inexistente. E, no outro, se trata de ressignificar por meio de uma nova transcrição. Seguem sendo separados, de acordo com a natureza do trauma, os efeitos primários e secundários. Também sobre aqueles traumas compartilhados com as pessoas que o rodeiam, especialmente os pais, já que afetam também sua função paternal e os referentes identificatórios que deles derivam. De qualquer modo, seguindo as ideias pioneiras de Ferenczi, e logo de Winicott, a autora aposta firmemente na intersubjetividade. Em todos os casos, o texto assinala como os pais ou a família podem neutralizar o efeito potencialmente traumático, e assim atuar a favor da chamada resiliência. Se não o fizerem, podem favorecer o desenvolvimento traumático por falta de ação, e não por serem, eles mesmos, violentos. Trauma e masoquismo, trauma e medo, trauma e repetição, trauma restitutivo e trauma encobridor e identidades traumáticas são algumas das outras questões a respeito do traumático. No livro, a autora faz um estudo cuidadoso a respeito do abuso da crian- Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010 470 ça. Somente gostaria de destacar, por sua importância clínica, a descrição que Ana nos traz de situações em que o paciente se recusa a curarse, construindo uma barreira de sentidos como proteção contra a revelação de um horror indescritível. Novamente a falta de confiança em quem deveria ser o cuidador causa danos mais graves. O segundo capítulo, como já disse, inclui históricos clínicos. “Depressão na infância e sua relação com o traumático”, tema de enorme presença na prática de nossos dias, é seguido por “Trauma, culpa e transmissão entre gerações”, que nos introduz na problemática da culpa do sobrevivente. Isso é feito a partir da análise de um paciente cuja irmã do primeiro casamento do pai foi assassinada pelos nazistas, o que nos faz lembrar do recente filme “Um segredo”, de Claude Miller. Trata-se da transmissão da culpa prevista por Freud, em 1912, citado pela autora: “Nenhuma geração tem a capacidade de ocultar da seguinte feitos psíquicos de alguma substantividade”. A problemática fraterna é também trabalhada a partir também dos desenvolvimentos de Kancyper sobre Complexo Fraterno, culpa e repetição. A segunda parte termina com um capítulo sobre o trauma no analista, subintitulado “O silêncio é saúde”, frase dos posters de rua da época. Trata-se de uma menina de quatro anos, atendida pela autora no início dos anos 80 durante a ditadura militar. Nessa época, como dizem Braun e Pelento citados por Ana, grande parte da sociedade estava afundada em uma conspiração de silêncio e acabou apelando para a renegação. A revelação tardia durante o tratamento da menina sobre a sua adoção, sendo em uma época de desaparecimentos e entregas de bebês, somada a uma apressada declaração de inocência de seus pais adotivos, nos introduz por inteiro em uma problemática ainda vigente que extrapola o campo da saúde para estar nas mãos da justiça. Gostaria de destacar aqui o valor dos parágrafos “Revisando a sintomatologia” e “Revisitando a consulta”, uma vez revelado o segredo da adoção, em que se veem os efeitos do impacto do traumático no analista. Novamente uma segunda olhada significa algo novo. Como lhes disse, a terceira parte do livro inclui um capítulo sobre a vida de Marie Langer e outro sobre a história do Departamento de Crianças e Adolescentes da APA. 471 Abel Fainstein O último capítulo, dentro do contexto da história da Argentina e do mundo nos últimos 60 anos, do desenvolvimento da psicanálise na Argentina e da história da APA, recorre à pré-história e à história do Departamento e de como foi mudando a prática nesse campo. Desde o início ligado às ideias de Arminda Aberastury e Melanie Klein até a atualidade, quando uma variedade de teorias e práticas é moeda corrente entre nós; a partir de um trabalho quase exclusivamente bipessoal até a inclusão crescente do lugar dos pais; da análise como panacéia e quase a única indicação com alta frequência de seções até a hierarquização da consulta, o tema em questão está muito trabalhado no livro, e há diferentes dispositivos terapêuticos que, em muitos casos, permitem seu uso em contextos hospitalares. Penso que esse valioso recorrido é uma justa homenagem a muitos colegas que foram pioneiros entre nós na introdução de distintas leituras e práticas de Klein, Winicott, Lacan e de outros autores. Refiro-me, com o risco de esquecer de alguns, a pessoas como Arminda Aberastury, Betty Garma, Susana Lustig de Ferrer, Aurora Perez, Diana Zamorano de Inglesini, Eduardo Salas, Miguel Angel Rubinstein e tantos outros queridos amigos que contribuíram com os desenvolvimentos descritos pela autora. Para concluir, apenas uma breve referência ao capítulo sobre “Marie Langer, a psicanalista maldita”. Escrito com base em entrevistas com aqueles que a conheceram como analista e também com seu filho Tommy – pessoas que providenciaram muitas informações e documentos. O artigo é um olhar afetuoso sobre essa mítica figura da psicanálise argentina e dos primórdios da APA. Seu nascimento na Europa, sua militância comunista, seu exílio frente ao nazismo, seu início na Argentina, onde fundou a APA e renunciou à militância, sua volta à militância após a morte do seu marido e sua renúncia à APA junto ao Grupo Plataforma são apenas alguns dos temas que o texto aborda. Conhecida por sua intensa militância política na Europa, e logo em nosso país, vale a pena destacar a opinião, citada por Ana, de Fidias Cesio, que foi um de seus pacientes: “Eu me analisei com Marie Langer durante oito anos. Somente conheci nela a analista exclusivamente dedicada à sua profissão, com toda responsabilidade”. Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010 472 O artigo faz uma interessante resenha histórica de Viena e da Europa em geral do início do século passado – Marie Langer nasceu em 1910. Também inclui muitos testemunhos de Marie sobre os momentos fundacionais da APA. Ana cita Marie: “[...] sentia que estávamos fundando algo importante [...]” e também “[...] nossa primeira tarefa foi uma leitura coletiva de Freud, coordenada por Garma”, ou “[...] falam de mim muitas vezes, às vezes de gozação, e às vezes a sério, assim como da Virgem Maria. Realmente eu não fui em nada como ela. Eu fui uma figura idealizada por um grupo e condenada como moralista e egocêntrica por outro”. A respeito de sua obra de 1968, Ana destaca o analisando do ano 2000, sobre o qual ela se pergunta: existirão analisandos no ano 2000? Mesmo que otimista, ela supõe que serão diferentes, assim como a análise praticada. Também são destaques Psicanálise e Ciência Fictícia, de 1969, Ideologia e Idealização, de 1963, Questionamos, de 1971 – em que justifica a ruptura com a APA – e, especialmente, Materinade e Sexo, de 1978 texto traduzido para vários idiomas. M. Langer dizia que neste sentido havia adotado a teoria kleiniana, porque, “desde o falocentrismo de Freud, não podia encontrar-me nem encontrar meus pacientes”. E, em troca, para ela, o marco kleiniano “não era feminista nem revolucionário, mas dava à mulher um lugar biológico e psicológico próprio”. Impactou-me, especialmente, a citação de Ana a respeito do velório de Evita Perón. M. Langer sentia por ela, como o que sentia por outras mulheres, uma especial admiração. Escrevia: “[...] admito que minha admiração por Evita é muito mais emocional. Fui ao seu velório. Entrei na longa fila que se aproximava lentamente a ela, cheguei, e como todos, beijei o cristal que protegia seu rosto de virgem de cera, e não tive vergonha. Saí do velório com tristeza e com a sensação de uma perda irreparável”. Ana acredita que talvez o irreparável tenha a ver com a dignificação da mulher, já que, para Marie Langer, a realização mais importante do século foi a introdução da mulher na história. Ana acrescenta que, tratando sempre de escapar do destino que sua época reservava às mulheres, Marie se perguntou ainda em sua velhice: “Essa nova mulher, que tem oportu- 473 Abel Fainstein nidades com que suas avós nem sonharam, é feliz?”. Então respondia: “Eu diria que sim, e em todo caso mais feliz que as pacientes de Freud”. Para encerrar seu texto, aposta que o tempo a ajudará a ter “uma visão de Marie Langer livre de preconceitos, protagonista e vítima como foi, comprometida e capturada como esteve na trama de acontecimentos do século, que lhe tocou viver”. Escolhi esse capítulo para encerrar meu comentário porque penso que ilustra o objetivo central do livro. Por mais que vá além do campo da clínica com crianças e adolescentes, o texto sobre a – assim chamada– psicanalista maldita é uma tentativa de historização das marcas deixadas em cada um de nós, muitas vezes desmentidas pelas próprias transformações institucionais, e que, isoladamente, em sucessivas histórias com suas marcas da pré-história, podem conformar-se como passado. Espero que tenham percebido, pelas observações sobre a minha leitura, que se trata de um livro que merece ser lido. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Abel Fainstein Avenida Santa Fe, 3044, 3º C1425BGS Buenos Aires – Argentina e-mail: [email protected] Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010 474 475 Ana Rosa Chait Trachtenberg As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos – o pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje Resenha | GUTFREIND, Celso. As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos – o pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. (Coleção Para Ler Freud). Ana Rosa Chait Trachtenberg Membro Titular e Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. A original proposta deste livro já se faz presente no próprio título, ‘As duas análises de uma fobia em um menino de cinco anos – o pequeno Hans’, sendo este o personagem principal do clássico historial clínico de Freud: o pequeno Hans. Anunciam-se, portanto, duas análises. Na primeira parte, ou na primeira das duas análises, Celso Gutfreind, o autor, misto de psicanalista e poeta, convida-nos a examinar o famoso pequeno Hans de Freud, revisando, à luz de rica e variada gama de autores pós-freudianos, cada segmento do texto original. O livro está tecido e entremeado pela presença de poetas e poesias, o que nos permite uma leitura ainda mais agradável. Na segunda parte, ou segunda análise, encontramos um texto literário, ficcional, quando algum pequeno Hans dos dias de hoje vai ao “divã”. Acompanhamos um texto literário que se apresenta quase como uma crônica, recheado de bom humor e bons motivos para a reflexão psicanalítica. Cruzamo-nos, então, com Hans Muller, um menino de cinco anos As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 475-478, 2010 476 do interior do Rio Grande do Sul com muitos medos, todos condizentes com o meio no qual ele vive. Seu pai, atento, leva-o à cidade grande e lá consultam com o “Dr. Sigismundo” e, logo, com a “Dra. Melania”, também especialista “dos nervos”, vinda dos lados de Lageado, interior do Rio Grande do Sul. Seguem-se consultas com a “Dra. Anna”, para logo chegar no Dr. Antonio, mais conhecido como “Tonho Ferro”. Finalmente, a família decide acudir para a impagável “Dra. Rita Aline”, que prescreve pílulas milagrosas. Com o passar do tempo, entram em cena os pais de Hans Muller, já que “não existe piá sozinho!”, e assim vamos acompanhando essa deliciosa análise/história cujo personagem vira músico e termina tocando viola para “além de seu pelego”. Voltando agora à primeira parte do livro, em que estão os comentários do original e clássico texto de Freud, Gutfreind destaca o aspecto saudável do menino, visto nos dias de hoje, graças à sua capacidade de brincar. O tema da curiosidade e sua interface com a sexualidade infantil e a busca do conhecimento também aparecem destacados, com especial realce para o brinquedo, exposto na visão atual sobre a importância do mesmo e da presença ou ausência da capacidade lúdica nas crianças (e também nos adultos). Diz Gutfreind: “[...] sem precursores para lhe dar alguma pista, conseguiu expressar o que hoje é fundamental: crianças precisam sonhar, brincar e desenhar para elaborar seus conflitos” (p. 38). Freud teria atuado como um verdadeiro supervisor do pai de Hans, que seria o real analista do pequeno. Analista e cuidador, diz Gutfreind, que, com esta afirmação, coloca-nos na esteira dos estudos recentes a respeito da parentalidade e insere Freud entre os precursores na valorização dos cuidadores de uma criança. Por outro lado, nosso autor destaca o caráter de flexibilidade de Sigmund Freud, pois, através da fina, atenta e não preconceituosa atitude, não atada às suas teorias anteriores, realiza uma sensível observação dos fenômenos descritos pelo pai de Hans. Freud reúne elementos para apoiar, a posteriori, as bases teóricas da existência da sexualidade infantil. Neste segmento do livro, referente à análise e à discussão do caso, podemos acompanhar Celso Gutfreind, que nos traz, cuidadosamente, passagens do clássico freudiano, enquanto o utiliza para construir um rico 477 Ana Rosa Chait Trachtenberg tecido de reflexões próprias, apoiado novamente em autores pósfreudianos, com especial destaque para a riqueza seminal desse texto do início do século XX. Assim, temos, como exemplo: “Ao oferecer a psicanálise para uma criança – no caso, Hans –, Freud foi precursor. [...] A tônica hoje está na possibilidade de representar os conflitos a partir do encontro, da brincadeira. [...] Dizer a Hans que desejar a morte do pai não é o mesmo que matá-lo. Pensar assim é mais do que meio caminho andado para o bem-estar psíquico” (p. 67). Outra discussão que o autor propõe refere-se à acusação feita a Freud sobre uma possível degeneração familiar da qual Hans estaria sofrendo, sendo uma época em que não era possível apreciar a importância da interação precoce mãe-bebê, do fator ambiental, da questão transgeracional, da caça aos fantasmas e dos afetos clandestinos, etc. Tudo germina a posteriori, graças ao plantio freudiano, particularmente aquele feito por Freud, o pequeno Hans e seu perspicaz pai. Ao longo do livro, Gutfreind nos promove encontros, como já foi dito, com autores e poetas. À guisa de exemplo, vemos que, logo no início podemos apreciar um interessante encontro de Bion com Freud, a propósito da “capacidade negativa“ deste último, pois segundo o autor, ele demonstrou, ao analisar Hans, ter podido esperar e observar em lugar de precipitar interpretações. Igualmente Gutfreind descortina algumas sutilezas no texto original, evidenciando, por exemplo, a satisfação de Freud pela oportunidade de realizar uma intervenção no começo de um processo patológico. Diz Gutfreind (p. 45): “Quanto a Freud, estava contente em poder intervir no começo do processo. Ali intuiu o que hoje valorizamos ainda mais, embora tenhamos as mesmas dificuldades de há cem anos: quanto mais cedo interviermos, melhor para o restabelecimento [...]”. Em outro momento, o autor nos chama a atenção para o nascimento de um sofrimento psíquico a partir de uma relação, pois Freud entende que a ansiedade de Hans está derivada de um apego excessivo (e erótico) deste com sua mãe. O autor traz também a mãe de Hans para o cenário de seus comentários, quando diz que a mesma, ao invés de acolher as angústias (sexuais) do filho, ameaçou cortar o pipi. Gutfreind diz, com As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos ... Psicanálise v. 12 nº 2, p. 475-478, 2010 478 Freud, que ali Hans começou a perder a liberdade, abrindo caminho para a sua neurose. Em outra passagem, com o suporte clínico de Arminda Aberastury, destaca aquilo que Freud não ressaltou: uma cirurgia de amígdalas em Hans desencadeou uma piora dos sintomas, pois a mesma atuou aumentando suas fantasias de castração. No presente livro, Gutfreind nos convida a viajar constantemente entre passado e presente, entre psicanalistas e poetas, traçando várias homenagens, ao longo do texto, com caráter libertário e revolucionário da psicanálise e de seu fundador. O autor nos remete, esperançosamente, ao século XXI, e diz que a “[...] curiosidade sexual das crianças está presente em qualquer menino ou menina que pode pensar em paz” (p. 33). Também aqui o livro se faz atual ao comentar uma obra centenária. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Ana Rosa Chait Trachtenberg Rua Mostardeiro, 05/806 90430-001 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] 479 Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade Resenha | GUTFREIND, Celso. Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. Claudia Kowarick Halperin Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Celso Halperin Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Em Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade, Celso nos narra. Narra o tempo todo sobre a importância de narrar. Narrar para ser pai, narrar para ser mãe, narrar para ser psicanalista, narrar para ser filho, narrar para ser alguém. Narrar para existir. Narrar sempre. Narrar com palavras, com gestos, com sons, com imagens, com movimentos, mas narrar. Narrando se constrói um mundo de metáforas, espaço transicional em que cada um pode percorrer o terreno das ilusões, o terreno da continuidade/descontinuidade entre o eu e o mundo não eu. Podemos falar em brincar. Pode-se brincar com nada ou com tudo. Podese brincar com bonecos, com bola, com música, com argila, com os astros, com tinta, com o amor, com o corpo e tudo mais. Celso fala do brincar com as palavras, com a narrativa. Ao narrar somos ouvidos, e ao ouvir criamos um narrador. Nesse espaço criado, a narrativa pode ser o fio condutor: a palavra, a musicalidade, a entonação, a harmonia vão instalando o simbólico. Do que há e do que não há. Mas mantendo o movimento e a mobilidade da busca da vida. Celso é radical: a parentalidade é produzida pela narratividade. Pais se tornam pais pela narratividade, por contarem suas histórias de filhos, de Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade Psicanálise v. 12 nº 2, p. 479-481, 2010 480 netos, de pais e todas as outras. Inclusive as inventadas. Narrar é promover o encontro, o encontro com o outro, o encontro com a palavra. Celso nos mostra no livro como se tornar escritor/pai/filho pela forma como narra ao leitor/filho/paciente. Se a parentalidade (e a psicanálise) se dá pela narrativa, saliente-se o papel ativo e dinâmico dos protagonistas, narradores e ouvintes, para que esse momento seja construído. A narrativa cria, ordena e seduz. E o autor chama a nossa atenção para a importância da narrativa que abra espaço. O espaço necessário para que o outro não só participe, mas, mais do que isso, que seja tentado e encorajado a também narrar, junto e/ou separado. Isso tudo porque é frágil a posição do narrador: ele tem que ter o aporte narcísico para assumir a narratividade e, portanto, a parentalidade, mas, por outro lado, corre o perigo natural de ficar locupletado com a própria narrativa. Corre o risco de se sentir não só um narrador, um narrador criativo, mas O narrador, em que só as suas criações têm lugar, em que o outro não consegue se colocar como ouvinte ou participante de outras narrativas, sente-se envolvido por um discurso opressor (Barthes) como no exemplo do filme Peixe-grande. E aqui Celso chama a atenção para o cuidado que os pais e os psicanalistas devem ter: todos podem ser narradores, protagonistas da narrativa; a começar pela própria história de cada um. O narrador cria e recria a função parental, inclusive para si próprio. E também para os outros e para si próprio através dos outros. É papel de o terapeuta cuidar (inclusive pela própria narrativa) para que todos os protagonistas em cena, no consultório ou na rua, sejam também narradores, sentindo-se assim participantes da história. Essa função analítica é muito bem sintetizada por D. Stern, trazido pelo autor, quando fala na necessária harmonização ou sintonia afetiva. Celso nos fala da importância da narrativa no geral e no específico, utilizando-se de histórias clínicas dele e outras da cultura. Quando nos fala de Alice no “maravilhoso país da parentalidade”, Celso ressalta o hino de amor às palavras, à prosódia, de uma narrativa sempre dentro do lúdico, buscando o real, construindo o maravilhoso mundo simbólico de Carrol. 481 Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin Ao abordar Por que sou gorda, mamãe? Celso faz uma interessante correlação desse livro da Cíntia com a famosa Carta ao pai, de Kafka, lembrando Lebovici na importância não só da narratividade dos pais, mas também no estímulo à capacidade narrativa dos filhos, inclusive para inventar os pais. Para que haja narratividade, Mario Quintana, trazido por Celso, fala-nos da importância do ritmo: “[...] Fora do ritmo, só há danação/Fora do ritmo, não há salvação”. E Quintana se confirma na forma narrativa empregada pelo Celso, em que somos apanhados em um embalo rítmico que se supera e alcança o ápice nas suas descrições clínicas. É comovente o relato poético que Celso faz do caso clínico “É fogo”. Aqui o autor aplica, com maestria, sua experiência de aluno leitor: “A ficção nos torna mais sensíveis do que o texto técnico e também guarda mais verdades”. Embora o livro não forneça receitas, aponta um caminho: aceitar o que se é (e o que se pode) e estar mais ou menos em dia com a sua história, com a sua infância, tal como nos ensina Fernando Pessoa: A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; Mas hoje, vendo que o que sou é nada, Quero ir buscar quem fui onde ficou (...) Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Claudia Kowarick Halperin Rua Mariante, 288/78 90430-180 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Celso Halperin Rua Mostardeiro, 157/905 90430-001 Porto Alegre – RS – Brasil e-mail: [email protected] Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade Psicanálise v. 12 nº 2, p. 479-481, 2010 482 483 Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação 1 Informações Gerais Psicanálise é uma publicação semestral, oficial, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre editada desde 1999. Tem por objetivo divulgar trabalhos não só do campo da psicanálise como também de suas interfaces com as diversas áreas do conhecimento tanto em nível nacional como internacional. Esses são apresentados sob forma de artigos, ensaios, conferências, entrevistas e reflexões. Os manuscritos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização por escrito da Comissão Editorial da revista. As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores. 2 Requisitos para submissão do manuscrito 2.1 o trabalho deve ser preferencialmente inédito (exceto os publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas ou Boletins de circulação interna de Sociedades Psicanalíticas) exceções serão consideradas; 2.2 não infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos clínicos; 2.3 respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor; Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação Psicanálise v. 12 nº 2, p. 483-487, 2010 484 2.4 não conter nenhum material que possa ser considerado ofensivo ou difamatório; 2.5 caso o trabalho seja encaminhado simultaneamente para outra publicação deve, o autor, comunicar explicitamente e por escrito a Comissão Editorial. A revista não colocará obstáculos à divulgação desse em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor; 2.6 por fim, o autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre está transferindo automaticamente o “copyrigth” para essa, salvo as exceções previstas pela lei. 3 Forma de apresentação do manuscrito 3.1 os originais deverão ser enviados à “Psicanálise” – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, preferencialmente por email para os endereços [email protected], [email protected], [email protected], [email protected]; 3.2 ter extensão máxima de 20 páginas (frente), fonte Times New Roman, tamanho 12 em espaço 1 ½, com numeração no canto superior direito. Caso seja enviado por Correio deverá acompanhar cópia em CD-ROM, digitado em word for windows, endereçado a Comissão Editorial da revista da SBPdePA na Rua Quintino Bocaiúva, 1362, CEP 90440-050, Porto Alegre/RS. 3.3 Folha de rosto identificada, contendo: – título do trabalho em português, inglês e espanhol (centralizado); – nome completo do(s) autor(es) na margem direita; – nota de rodapé com titulação e afiliação; – quando se tratar de trabalho apresentado em evento informar em nota de rodapé; 3.4 Resumo e palavras-chave em português, inglês e espanhol: – resumo, abstratc e resumen deverá conter no máximo 150 palavras se- 485 Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação guido das palavras-chave. O resumo e palavras-chave em português deverão localizar-se na folha de rosto após o título; resumos e palavraschave em inglês (abstract e keywords) e espanhol (resumen e palabras-llave) constarão no final do trabalho, antes das referências. 3.5 Texto 3.5.1 Citações As seguintes orientações seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 10520 – Informação e documentação – Citação em documentos – Apresentação. 3.5.1.1 deverão ser identificadas através do sobrenome do autor, ano de publicação e número da página, por exemplo: Freud (1918, p. 5) ou (FREUD, 1918, p. 5). Na citação direta curta (até 3 linhas), colocar entre aspas duplas; em citação direta longa (mais de 3 linhas), destacar com recuo de 4cm da margem esquerda com letra menor e sem aspas. 3.5.1.2 obras com dois autores, os dois devem ser mencionados, por exemplo, Marty, de M’Uzan (1963) ou (MARTY de M’UZAN, 1963). Caso existam mais de dois autores, indicar somente o primeiro seguido da expressão latina et al., pó exemplo Rodrigues et al. (1983) ou (RODRIGUES ... et al., 1983). 3.5.1.3 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome, seguido da data de publicação da obra consultada. 3.5.2 Referências As referências seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 6023 – Informação e documentação – Referências – Elaboração. 3.5.2.1 são apresentadas de forma completa, no final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome dos autores e suas obras pela ordem cronológica de publicação, correspondendo exatamente às obras citadas. Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação Psicanálise v. 12 nº 2, p. 483-487, 2010 486 3.5.2.2 obras publicadas de um mesmo autor no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c, etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que aparece como co-autor. Os autores não são repetidos, mas indicados por seis traços sem espaçamento entre eles; 3.5.2.3 os títulos dos livros devem ser grifados, sendo que as palavras mais significativas serão escritas em maiúsculas; o lugar da publicação, o nome do editor e a data de publicação também devem ser indicados, nesta ordem; 3.5.2.4 nos títulos de artigos somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula, seguido do título grifado da revista, volume, número e página inicial e final do artigo. 3.5.2.5 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após o nome; a data de publicação da obra consultada constará no final da referência. 3.6 Forma de apresentação de resenha A resenha deverá ter extensão máxima de quatro páginas (frente), fonte Times New Roman, tamanho 12 em espaço entrelinhas de 1,5 com numeração no canto superior direito. A resenha deverá mencionar: – Título, autor(es), editora, ano e número de páginas da obra resenhada; – síntese do conteúdo do livro; – comentário sobre a inserção, contribuição ou importância da obra no contexto da literatura psicanalítica. Considerações sobre a pessoa do autor ou da relação pessoal com ele devem ser evitadas. 487 Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação 4 Procedimentos de avaliação 4.1 todo artigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; 4.2 o avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o mesmo seja mantido pelo próprio avaliador; 4.3 sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa editorial estabelecido; 4.4 a Comissão Editorial reserva-se o direito de efetuar pequenas alterações no texto aceito para publicação, afim de adequá-lo aos critérios de coerência, clareza, fluidez, correção gramatical e padronização editorial adotados pela revista. A exatidão das informações é de responsabilidade do autor. 4.5 artigos que não forem publicados em 10 (dez) meses a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.