Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – CEP 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Tel./Fax 55 51 3330-3845 | 3333-6857
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v. 12, n. 2, 2010
revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
filiada à Associação Psicanalítica
Internacional desde 1992, à FEPAL e à
Federação Brasileira de Psicanálise
A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre é uma publicação semestral editada regularmente
desde 1999. Encontra-se indexada na Base de Dados
INDEX PSI Periódicos. Tem como finalidade publicar
trabalhos selecionados de psicanalistas brasileiros das
Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados
à Associação Psicanalítica Internacional e de autores
de notório saber, visando aprofundar, divulgar, ampliar
e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A
Revista publica também artigos originais ou traduções
de trabalhos de analistas estrangeiros, ainda de
candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São
aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades
e articulistas de comprovado saber, ligados de alguma
forma à psicanálise e às ciências humanas.
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (jan/dez.
1999)– . – Porto Alegre: Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre, 1999– .
v. ; 25 cm.
Revista indexada na base de dados INDEX PSI
Periódicos.
Periodicidade: semestral a partir de 2001.
ISSN 1518-398x
1. Psicanálise I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre.
CDU 615.851.1
Bibliotecária Responsável: Ananda Feix Ribeiro CRB-10/1814
Tiragem: 300 exemplares
EDITORA
Helena Surreaux
CONSELHO EDITORIAL
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo | Ana Rosa C. Trachtenberg | André
Green | Antonino Ferro | Carmen Médici de Steiner | Cesar Botella |
Didier Lauru | Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) | Franco
Borgogno | François Marty | Gildo Katz | Heloísa Helena Poester Fetter |
João Baptista Novaes Ferreira França | Laura Ward da Rosa | Leopold
Nosek | Leonardo Wender | Marcelo Viñar | Marco Aurélio Rosa | Maria
Aparecida Quesado Nicoletti | Marta Petricciani | Miguel Leivi | Nilde
Parada Franch | Raquel Zak de Goldstein | Rómulo Lander | Samuel
Zysman | Sara Botella | Sara Zac de Filc | Sebastião Abrão Salim |
Stefano Bolognini | Suad Haddad de Andrade
COMISSÃO EDITORIAL
Carmem Alice V. Escosteguy | Carmen Lúcia M. Moussalle | Carmen
Saile Willrich | Helena Surreaux | Rosa Beatriz Santoro Squeff
ASSISTENTE EDITORIAL E NORMATIZAÇÃO
Ananda Feix Ribeiro
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Paola Bulcão Manica
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
PRODUÇÃO GRÁFICA
Gráfica Agetra Ltda.
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Prof. Antônio Paim Falcetta
SOCIEDADE BRASILEIRA
DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
Presidente
Dr. Gley Silva de Pacheco Costa
Secretário
Dr. José Luiz Freda Petrucci
Tesoureiro
Dra. Heloísa Helena Poester Fetter
Coordenador da Comissão Científica
Dr. Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Coordenador da Comissão de Comunicação
Dra. Helena Surreaux
Coordenador da Comissão de Relações com a Comunidade
Dr. José Ricardo Pinto de Abreu
Coordenador da Comissão Centro de Atendimento Psicanalítico
Dra. Caroline Milman
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Dr. Júlio Roesch de Campos
Secretário
Dr. Fernando Kunzler
Coordenador da Subcomissão de Formação
Dr. Gildo Katz
Coordenador da Subcomissão de Seminários
Dr. Ignácio Alves Paim Filho
Coordenador da Subcomissão da Infância e Adolescência
Dra. Vera Maria Homrich Pereira de Mello
Associação de Membros do Instituto
Dra. Luciana Schmal
NÚCLEOS
Núcleo de Infância e Adolescência
Dra. Mayra Dornelles Lorenzoni
Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional
Dra. Cynara Cezar Kopittke
Núcleo Psicanalítico de Florianópolis
Dr. Márcio José Dal-Bó
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
Newton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann
PSICANÁLISE | v. 12 n. 2, 2010
revista da SBPPA
Sumário
EDITORIAL
Palavras da Editora | 287
Helena Surreaux
ARTIGOS TEMÁTICOS
Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o sinistro no
psiquismo parental | 295
Víctor Guerra
A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao Longo da
Infância | 321
Ane Marlise Port Rodrigues
Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise | 335
Néstor Greco
Interpretação e Adolescência | 357
Edmundo Saimovici
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai na clínica
psicanalítica atual de crianças e adolescentes | 377
Ane Marlise Port Rodrigues, Camila de Matos Ávila, Fernanda Munhoz
Driemeier, Fernanda Silveira, Jairo Treiguer, Letícia Dornelles Lacerda, Patrícia
Espíndola Stefani, Sadi Machado
OUTRAS CONTRIBUIÇÕES
Reflexões sobre o Destino do SER MULHER | 397
Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário | 411
Carlos de Almeida Vieira
A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura | 425
Ignácio Alves Paim Filho
O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19 | 437
Laura Ward da Rosa
Da Criação do Vínculo ao Vínculo de Criação: a metáfora como
caminho | 441
Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite
ARTIGO ENCOMENDADO
Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade | 455
Ana Paula Terra Machado
RESENHAS
Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman “História e
Pré-história na Clínica com Crianças e Adolescentes” | 465
Abel Fainstein
As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos – o
pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje | 475
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a Parentalidade | 479
Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin
Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação | 483
PSICANÁLISE | v. 12 n. 2, 2010
revista da SBPPA
Contents
EDITORIAL
Editor’s Words | 287
Helena Surreaux
THEMATIC ARTICLES
On Baby Sleep: the night, the nightmares, and uncanny in parental
psychism | 295
Víctor Guerra
The Night and its Sons (the Sleep and the Death) and Nightmares
Along Childhood | 321
Ane Marlise Port Rodrigues
Characterization of Puberty: empirical research and psychoanalysis | 335
Néstor Greco
Interpretation and Adolescence | 357
Edmundo Saimovici
Father Presence, Father Link and Father Function: thinking about the
father in the actual psychoanalytical clinic of children and adolescents | 377
Ane Marlise Port Rodrigues, Camila de Matos Ávila, Fernanda Munhoz
Driemeier, Fernanda Silveira, Jairo Treiguer, Letícia Dornelles Lacerda, Patrícia
Espíndola Stefani, Sadi Machado
OTHER CONTRIBUTIONS
Reflections on the Fate of the FEMININE BEING | 397
Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
Might W. R. Bion have read J. L. Borges? The literary aesthetic
vertex | 411
Carlos de Almeida Vieira
The Analyst’s Subjectivity in the Labyrinths of Cure | 425
Ignácio Alves Paim Filho
The Day the Gestapo Showed Up at Bergasse 19 | 437
Laura Ward da Rosa
From Creation of Bonds to the Bonds of Creation: metaphor as a
tool | 441
Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite
RESQUESTED ARTICLE
Joyce McDougall: a contemporary psychoanalyst | 455
Ana Paula Terra Machado
BOOK REVIEWS
Presentation of the Book Written by Ana Rozenbaum de Schwartzman
Entitled History And Prehistory of Clinical Treatment of Children and
Adolescents | 465
Abel Fainstein
Two Analyses of a Phobia in a Five-year-old Boy – Little Hans: child
psychoanalysis yesterday and today | 475
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Narrating, Being a Mom, Being a Dad, and Other Essays on Parenthood | 479
Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin
Guidelines for Contributors and Standards for Publication | 483
editorial
287
Helena Surreaux
Palavras da Editora
É com orgulho que apresentamos o volume 12, número 2 de Psicanálise,
segunda obra desta gestão.
Aqui damos continuidade ao movimento de qualificação da revista,
relatado em seu formato temático, o que naturalmente a converte em
uma fonte de consulta mais eficiente. A nossa “contadora de histórias”,
como defini Psicanálise no editorial anterior, adquire, além desse caráter
revelador do pensamento psicanalítico contemporâneo, uma forma mais
organizada, que permite ao leitor situar-se em relação as suas edições.
O tema que nos convoca neste número é: “Psicanálise de crianças e
adolescentes: teoria e clínica”, pensado para consagrar o início dessa
formação na Brasileira.
Dentro do assunto, a amplitude de aspectos abordados garante um
panorama extremamente atraente e abarcador em relação às
inquietações que movem os analistas dedicados ao trabalho com essas
fases do desenvolvimento. Os distúrbios do sono em bebês e durante a
infância, a função paterna e a presença do pai na vida da criança e do
adolescente, as especificidades na análise de púberes e a técnica
analítica na adolescência constituem alguns dos eixos aqui tratados.
A noite, seus mistérios, a escuridão, o sinistro e a morte são os pilares
que sustentam a organização da produção dos sintomas do sono na
infância, segundo nosso eminente colega da Associação Psicanalítica
do Uruguai, Victor Guerra. Em seu trabalho “Transtornos do sono em bebês:
a noite, os pesadelos e o sinistro no psiquismo parental”, sua abordagem
original situa o sintoma da criança na vivência de sinistro (Freud) que
se estabelece no psiquismo dos pais em relação ao seu filho, quando
este desliza do lugar de representante do desejo parental, ao truncarem-
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se os processos de comunicação arcaica, baseados na tradução do bebê
pela mãe, impedindo as devidas decifrações e criando as condições para
um “desconhecimento angustiante”. A noção freudiana do sinistro é aqui
articulada com a literatura borgiana e com as artes plásticas, através
da pintura de Goya e com o estudo de elementos da cultura, o que,
iluminado pela profunda sensibilidade expressa na compreensão do
fenômeno clínico pelo autor, especialista no atendimento de mães e
bebês, revela um trabalho brilhante.
Também se ocupando dos distúrbios do sono na infância, Ane Marlise
Port Rodrigues nos brinda com a publicação de seu artigo “A Noite e seus
Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao Longo da Infância”, cuja notória
qualidade distinguiu-o com o prêmio João Bosco Calábria de Oliveira,
durante o vigésimo Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Brasília, em
2005. Aqui as angústias de morte e de perda de controle, protagonistas
na produção dos distúrbios do sono na infância são abordadas através
de uma aproximação com a mitologia, com o estudo de rituais culturais
de passagem da adolescência para o mundo adulto, além do aporte do
estudo dos ideais culturais contidos nas fábulas.
Minha palavra é escassa para expressar a honra de contar com o artigo
“Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e Psicanálise”, de Néstor
Greco, colega da Associação Psicanalítica Argentina, já conhecido por
estas bandas como o “descobridor da puberdade”. O artigo é resultado
do profundo trabalho de mais de trinta anos no tratamento psicanalítico
de púberes, plasmado em sua tese de mestrado, junto à Universidade
de La Matanza. Seu esforço de revelar a puberdade como uma etapa
evolutiva do psiquismo, discriminada da latência e da adolescência, com
mecanismos de defesa, fantasias e dinamismo próprios vem iluminando
a prática clínica daqueles que têm o privilégio de ler seu minucioso
estudo. Como bibliografia para os seminários da formação em psicanálise
de crianças e adolescentes da Brasileira é de inestimável valor.
Edmundo Saimovici, prestigioso colega da Associação Psicanalítica
Argentina, produz um artigo que pode ser definido como uma leitura
necessária para aqueles que trabalham com adolescentes. Parte de uma
conceitualização teórica da adolescência que a situa no entrecruzamento
de alguns eixos principais que entram em cena no campo analítico: a
oscilação edípica-pré-edípica, a dualidade independência-dependência,
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Helena Surreaux
o par idealização-desidealização e o par lutos pela infância versus
elaboração do crescimento e conquista da genitalidade. Daí, empreende
uma extensa reflexão sobre o ato, as consequências e a função de
interpretar na adolescência, marcando a importância de libertar-nos
do apego à interpretação dita clássica, com adultos neuróticos, abrindo
lugar a toda uma gama de intervenções que compreende a nominação
de afetos ou ansiedades desconhecidos, sinalizações, discriminação de
atitudes contraditórias, conversa sobre assuntos de interesse do
adolescente, assim como a presença do lúdico na sessão. Além disso,
marca a importância do conhecimento da dinâmica pai-filhos e do
entorno social e educacional do adolescente para poder operar com
eficácia.
Esta edição também conta com um acontecimento inédito e muito
promissor para a nossa Sociedade: a presença de um artigo produzido
em um dos grupos de estudo da Comissão de Relações com a
Comunidade. A atividade é coordenada por Ane Marlise Port Rodrigues
e tem a participação de Camila de Matos Ávila, Fernanda Munhoz
Driemeier, Fernanda Silveira, Jairo Treiguer, Letícia Dornelles Lacerda,
Patrícia Espíndola Stefani e Sadi Machado. O grupo “Casos Clínicos de
Crianças – desenvolvimento normal e psicopatologia” nos brinda com o
trabalho “Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai na clínica
psicanalítica atual de crianças e adolescentes”, no qual refletem, através de
vinhetas clínicas sobre a presença do pai no paciente, o que nele ficou
assentado da função e do vínculo paternos. Apontam ainda para as
repercussões possíveis das problemáticas dessa ordem na relação
transferencial e na contratransferência do analista.
Além do tema central, esta edição conta com várias contribuições que
abarcam um amplo espectro de assuntos, como o feminino, questões
da teoria, clínica, técnica e da estética ligada ao trabalho da análise,
além de aportes relacionados à cultura.
Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte e Sissi Vigil Castiel trazem
o profundo “Reflexões sobre o Destino do SER MULHER”, que propõe uma
densa discussão sobre o feminino e a feminilidade no contexto das
transformações que a contemporaneidade vem gerando na subjetividade
feminina. A partir de Freud e do “continente negro”, como a primeira
incursão da teoria psicanalítica no universo feminino, as autoras
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deslizam para os novos formatos nas relações que as mulheres hoje
estabelecem com o homem, tanto na dimensão da sexualidade como
na do amor.
Carlos de Almeida Vieira, colega da Sociedade de Psicanálise de Brasília,
que além de psicanalista é um grande conhecedor de música e do mundo
das artes, sempre traz reflexões estéticas da mais alta consideração. No
artigo “Teria W. R. Bion lido J. L. Borges? O vértice estético-literário” propõe
aproximar os dois pensadores contemporâneos, chamando a atenção
para as semelhanças em relação às leituras que influenciaram a ambos,
sobretudo no que tange à literatura inglesa. Ressalta também a
capacidade de observação dos fenômenos da alma humana, a
importância da intuição e dos recursos estéticos como tarefa
metodológica, assim como do estudo dos autores clássicos da literatura,
a fim de desenvolver um repertório que capacite o analista a captar o
que se encontra além do dito, do sensorial e do manifesto.
Ignácio Paim Filho, nesta nova contribuição à nossa revista, com o artigo
“A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura”, ocupa-se das
ressonâncias ou interferências que trabalham no analista, durante o
processo da análise. Para tanto, tomará como metáfora interlocutora a
relação de Jung com Sabina, para refletir sobre a importância do
inconsciente do analista no desenrolar da análise. Sempre fortemente
ancorado em Freud, o autor buscará dar maior especificidade ao
inconsciente, fundamento da subjetivação e marcará a importância vital
da análise do analista, no sentido de dar consistência a sua subjetividade,
colocada a serviço da direção da cura.
“O dia em que a Gestapo chegou à Bergasse 19” é o ensaio de Laura Ward da
Rosa que trata do dramático fato da irrupção da Gestapo no endereço
da família Freud, levando Anna para depor no comando nazista que
tomara Viena. A autora reflete sobre a importância desse fato na decisão
de Freud em rumar para Londres.
Sempre é estimulante contar com a participação de nossos Membros do
Instituto na composição de uma revista, que deve ser a expressão de
todas as vozes da Sociedade. Apresentamos “Da Criação do Vínculo ao Vínculo
de Criação: a metáfora como caminho”, de Luciana Saraiva Schmal e Paula
Esteves Daudt Sarmento Leite. Nele, as autoras enfatizam a “exigência”
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Helena Surreaux
de uma forte disponibilidade afetiva por parte do analista, bem como do
desenvolvimento da sensibilidade em relação ao outro e da criatividade
como “ferramentas” básicas indispensáveis no trabalho analítico. A partir
desse substrato básico da situação de análise, pode surgir a metáfora
como um “precioso recurso de linguagem” para fortalecer a capacidade
empática e o vínculo, bem como a ampliação das condições psíquicas do
analisando. Refletem ainda sobre a função e as repercussões do uso da
metáfora nas diferentes estruturas psíquicas.
Na sessão “Artigo encomendado”, convidamos Ana Paula Terra Machado a
defender Joyce McDougall, frente à pergunta “Por que Joyce McDougall?”.
E o faz com grande convicção, nos apresentando “Joyce McDougall: uma
analista da contemporaneidade”, no qual destaca as propostas teóricas da
autora e sua compreensão do destino do afeto nos fenômenos
psicossomáticos, a partir do estado de privação psíquica, assim como
os conceitos de neossexualidade e de neonecessidade.
Esta edição contém ainda três resenhas: “Apresentação do Livro de Ana
Rozenbaum de Schwartzman ‘História e préhistória na clínica com
crianças e adolescentes” de Abel Fainstein, “As Duas Análises de uma
Fobia em um Menino de Cinco Anos – o pequeno Hans: a psicanálise da
criança ontem e hoje” de Ana Rosa Chait Trachtenberg sobre a obra de
Celso Gutfreind e “Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a
Parentalidade”, do mesmo autor, resenhado por Claudia Kowarick
Halperin e Celso Halperin.
Chegar ao final de um editorial é sempre um momento de visão
panorâmica e de reflexão sobre o trabalho realizado. Reúne-se em uma
edição autores, obras e temas que constituirão uma gestalt única, que
será lançada ao universo e que impactará e dialogará com cada leitor
de uma forma singular. Gosto de pensar que cada revista que nasce é
uma potencial “transformadora de mundos”... Algo do processo criativo
que teve início com as primeiras ideias de cada autor e foi tratado pela
comissão editorial, traduzido e aprimorado pelas várias revisões, será
lançado como flechas de fogo sem destino certo e realizará uma aventura
própria, da qual já não faremos parte.
No entanto, a “transformação de mundos” já se operou em nós a partir
das leituras, do trabalho com os artigos e de tudo o que essas
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experiências foram suscitando em nós e que foi acaloradamente
discutido e metabolizado em nosso trabalho de criação coletiva.
Agradeço a todos os que dedicaram-se com alma a esse processo, os
autores, que tornaram possível essa publicação e as queridas e
indispensáveis interlocutoras de sempre Carmen M. Mousalle, Carmen
Saile Willrich, Carmem Alice Escosteguy, Rosa Santoro Squeff e Ananda
Feix.
Desejo a todos uma leitura transformadora!
Helena Surreaux
Editora
Porto Alegre
2º semestre de 2010
trabalhos
temáticos
295
VÍctor Guerra
Transtornos do Sono em Bebês:
a noite, os pesadelos e o sinistro
no psiquismo parental
Ensaio
Víctor Guerra
Psicanalista, Membro da Associação
Psicanalítica do Uruguai.
1 Introdução
Não, Raja, eu devo começar a partir do que sou.
Sou os monstros que habitam meus sonhos,
os monstros que me ensinam quem eu sou.
(C. MISLOSC apud PAZ, 2000).
Um sintoma em um bebê pode ser conceitualizado a partir de diferentes
perspectivas. Por um lado, é uma forma de indicar, marcar algo da ordem de uma disfunção em sua economia pulsional e relacional (na
interação real e fantasiada entre ele e seus pais); e, por outro, geraria
nos pais uma ideia de que entre eles e seu filho se instala um desconhecimento angustiante.
Em geral, todos os pais e as mães, desde a gestação de seu filho, têm a
ilusão de contar com um conhecimento e uma proximidade afetiva com
seu filho, que os habilite a sentir a esse bebê como “seu” filho. Dessa
maneira também (junto a outras leituras1), poderíamos entender o sintoma no bebê como uma espécie de “adaga” que fere o narcisismo parental
1
Diferentes autores, ao enfrentarem-se com a mesma situação, lhe outorgam um significado diferente. S. Lebovici (1980) relata um caso de transtorno de sono de um bebê de
quinze meses, onde hierarquiza especialmente a primeira frase da mãe: “Viemos porque não
conseguimos fazer dormir o nosso bebê”, e ele o traz em relação ao sentimento de ferida e
fracasso. B. Cramer (1990) relata um caso no qual os pais, nos primeiros minutos da sessão,
repetem alternadamente por quatro vezes a angústia de não saber o que ocorre a seu filho.
Como veremos, ele o relaciona com o sinistro, a partir do ângulo da repetição. D. Daws assina-
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e que os desaloja de seu lugar de pais – lugar que entendo em relação
à ilusão de portar um saber sobre esse filho: “[...] ninguém conhece a
meu filho como eu... sou a mãe”.
B. Cramer (1990), no livro Profissão bebê, reflete sobre o tema dos sintomas
nos bebês e, a partir de um caso (um bebê do sexo feminino, Marie, com
crises de cólera), aporta a ideia de que os pais experimentariam a sensação algo “sinistra” (inquietante estranheza) pela angústia que geraria neles
a presença do sintoma, porém sustenta que “[...] a inquietante estranheza se deve à aparição furtiva de fantasmas que surgem do passado da
mãe”2.
Como vemos, Cramer alude à presença dessa situação dada a reativação
de aspectos reprimidos na mãe, que se revivem na relação com seu bebê.
Concordo parcialmente com esse aspecto, porém entendo que há algo de
uma ordem específica no que tange ao transtorno do sono. Em minha
experiência, observei que tal sintoma, dada a particularidade das situações que engloba, parece gerar com mais facilidade esse tipo de vivência
do que outros sintomas3.
Como veremos mais adiante, em certas situações, o bebê ou a criança é
vivido com uma tonalidade sinistra (no sentido freudiano do termo), como
um “inimigo”, o que convoca uma ambiguidade muito marcada, onde, às
vezes, é vivido como interditor, que tapa a sexualidade parental; e, também, em outras oportunidades (em um sentido mais arcaico), é vivido
como elemento disruptor no casal e na possibilidade de descanso, retraimento e elaboração mental própria do onírico.
la outro caso de transtorno de sono (um bebê de seis meses), no qual os pais, depois de haver
“ensaiado tudo”, realizam (com dor) a pergunta: “Poderemos ser bons pais?”. L. Kreisler (1985)
ressalta um caso de um bebê de dezoito meses, no qual a mãe resiste a aceitar a ajuda de
outros. Mesmo havendo uma melhora importante do transtorno, “ela repetia com franqueza
que havia vivido como fracasso ter-se visto obrigada a consultar”, e finaliza prematuramente
o tratamento.
2
Inclusive em seu último livro (1999) cita como exemplo aspectos da vida do poeta A.
Rimbaud, que estava “habitado” por um “visitante do eu”, ou seja, uma identificação com uma
figura de seu passado (nesse caso, seu pai), que o haveria levado a produzir uma mudança
importante em sua vida, repetindo o vivido em relação ao abandono paterno.
3
Não nego que sempre dependerá da inscrição subjetiva do sintoma no psiquismo
dos pais, já que qualquer situação sintomática pode congregar a ideia do sinistro. Entretanto,
sustento que é algo mais observável no transtorno do sono, pelos motivos que logo detalharei.
297
VÍctor Guerra
Para tentar dar conta do caminho que foram tomando essas hipóteses,
apelarei a duas ordens de experiência: 1) o campo da clínica, no qual
tratarei de exemplificar como surgem tais vivências na relação dos pais
com seus filhos, 2) o aporte da cultura e da arte, que nos permite apreciar, desde outra perspectiva, a significação possível que encontramos na
experiência humana, relacionada com a noite e com o sinistro.
2 Vinheta Clínica
Trata-se de uma mãe que consulta por seu bebê de oito meses, primeiro
filho, que apresentou transtornos do sono quase desde o início de sua
vida. A consulta é realizada com muitas dúvidas, já que ambos entendiam, ela e seu esposo, que o filho era pequeno demais para andar em
consultas com psicólogos. O pediatra havia sugerido a possibilidade de
medicar o bebê, porém os pais não estavam de acordo. Leram o livro Dorme, filho e o colocaram em prática por dois ou três dias, porém, isso levou
a um aumento da angústia, já que, no primeiro dia, o bebê chorou mais
de meia hora sem parar, gerando extremo mal-estar.
Em vista de seu desespero e pela recomendação de uma amiga, decidiram realizar uma consulta. Fui chamado por telefone pela mãe, que me
perguntou se era possível ter uma consulta sobre esse problema. Respondi que sim, e ela interrogou-me sobre se deveria ir com o bebê. Disse
que preferia que o decidissem eles.
Comparecem sozinhos, são um casal de cerca de 30 anos. Parecem nervosos, e dá a impressão, pela postura e forma de sentar-se, que a mãe é
quem toma as iniciativas. Ante minha proposta de escutá-los, começam
falando diretamente do tema do sono e é a mãe, a princípio, quem se
espraia mais a respeito4.
É algo que não sei, não podemos entender, é totalmente diferente do
que havia pensado... a princípio, tudo ia bem, era um amor, comia e
dormia bem... porém, foram passando os dias e não sei... passou a ter
dificuldade para dormir, se acordava... Porém, de dia, passava bem... e
assim, de noite, começou a despertar de três a quatro vezes... era um
4
O pai tem, nesse momento, uma participação passiva e concorda gestualmente com
o proposto pela mãe. Esclareço que o que segue é um resumo do que foi colocado na primeira
entrevista.
Transtornos do Sono em Bebês: a noite, os pesadelos e o ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 295-319, 2010
298
verdadeiro inferno e, agora, chora e reclama todos os dias! E não sei o
que fazer... um inferno e é como se fosse um demônio, pobrezinho,
porque depois, de dia, é um anjo, de estar no colo e reclamar... porém,
um anjo... eu me sinto tão má de pensar isso de meu filho... porém, na
verdade, é como uma tortura... um pesadelo... insuportável, nós temos que dormir, fico com sono o dia todo, como se não tivesse descanso, é como um esgotamento mental também... tu ficas como confundida, já não sabes nada, nem o que fazer... e, ao final, o levamos para a
cama.
Até aqui, relato o caso e quero remarcar como essa breve vinheta condensa
toda uma gama de vivências e significados que se repetiram em minha
experiência no campo da interação pais-bebê, razão pela qual o trago
como exemplo paradigmático dessas situações.
Entre as múltiplas hipóteses que se podem desenvolver, desejaria
hierarquizar o plano dinâmico em torno da conflitiva que emerge nesse
caso “na” mãe. Observamos a emergência de dúvidas sobre a consulta,
um núcleo conflitivo em torno do desconhecimento, o desamparo que
gera nela a situação, a perda de certezas, a transformação da imagem do
filho, a polaridade com que é vivida a trama representacional, o
questionamento da imagem de si mesma como mãe e a culpa conseguinte, a ideia do filho e da situação como pesadelo, que contrasta com
o “anjo diurno” e desarticula a possibilidade de pensar.
Reitero, então, que, nessa dualidade pulsional, em que na noite passa a
ser outra coisa, um inferno, algo desconhecido, algo sinistro, marcando,
nesses casos de insônias primárias, a qualidade de algo quase
enlouquecedor, que convoca especularmente nos pais algo desconhecido de si mesmos. Seria essa situação o que é vivenciado como disruptor,
pesadélico, pelo que sustento a ideia de que o transtorno do sono do
bebê cobra o estatuto de um pesadelo na vida psíquica dos pais e que é
nesse sentido que o levá-lo à cama seria um movimento defensivo para
evitar que eles experimentem a sensação do sinistro em relação ao
filho e a si mesmos como pais.
Tomarei essa ideia e tratarei de segui-la, valendo-me de alguns exemplos
da literatura e da reflexão sobre esses conceitos, a partir da psicanálise.
Uma pergunta guiou minhas reflexões: que angústias (e que prazeres)
convocam a noite e o sono no ser humano?
299
VÍctor Guerra
3 Borges e o Sonho
Borges (1990), em uma conferência sobre “o sonho e a poesia”, fala do
sonho como um momento de “eclipse da razão” e marca isso em especial relação com o pesadelo (o interessante do assunto é que, muitas vezes,
os pais falam do transtorno do sono do filho como um pesadelo) e faz
uma comparação, em diferentes línguas, sobre as palavras que o designam. Por exemplo, cita que em francês se denomina cauchemar, em inglês, nightmare, que literalmente significaria “égua da noite” (como o
denomina Shakespeare), e Victor Hugo, ao falar do pesadelo em Les
contemplation, chama o pesadelo “le cheval noir de la nuit”: “o cavalo
negro da noite”.
Para Borges, “nightmare” significou originalmente “fábula da noite”, já
que o pesadelo é uma ficção das horas da noite, ou, se não, “demônio da
noite”, e, em alemão, a palavra alp corresponde a um modo antigo de
dizer elfo, isto é, tudo equivaleria à ideia de demônio, do súcubo. Em grego, a palavra é muito linda também: “ephialtes”, que é o demônio que
causa o pesadelo. Entende-se que esse demônio se deita, oprime o ventre
de quem está dormindo e lhe dá o pesadelo – de modo que teríamos uma
ideia parecida: nightmare, alp e ephialtes, todas ligadas à figura do demônio.
Esse trânsito em Borges, que marca a relação entre o pesadelo, o noturno
e o demoníaco, tem múltiplas vertentes de reflexão que não retomaremos. Apenas pensar a correlação com a sexualidade pela condição de
pressão do ventre e, por sua vez, com o arriscado, o perigoso do demônio
que ataca a “razão” (eclipsada) como o reino do inconsciente que emerge,
pondo em risco o equilíbrio do sujeito5. Creio que estamos localizados
sob a órbita plena da significação sexual (freudiana) do pesadelo.
Até aqui, Borges e a palavra.
A partir de uma perspectiva plástica, encontramos que o pintor alemão
J. H. Füsli, que se formou em parte em relação com os artistas alemães do
“Stum un Drang”, realiza uma pintura, em 1971, chamada O pesadelo,
onde aparece plasmada a situação que descreve Borges em sua confe5
Como assinalou especialmente L. de Urubey em seu livro Freud et le Diable.
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300
rência. Nessa obra, aparece uma mulher adormecida e sentada sobre seu
corpo e se observa um demônio que a observa de forma lasciva. Porém,
atrás, emerge, a partir da escuridão, um cavalo com sua boca aberta e
com um gesto violento.
W. Vaughan (1995) assinala que Füsli não pretende tanto ilustrar um sonho, mas representar as sensações de terror e sufocante opressão experimentadas em um pesadelo. Sustenta, ademais, que o pintor, nesse momento, estava mais interessado pelo erotismo do que pelo irracional6.
A conotação sexual do pesadelo pode pensar-se também como um elemento presente na época, já que se colocava que:
[...] os pesadelos das jovens frequentemente são, como o Dr. J. Bond
observou em 1753, induzidas por “um copioso fluxo de menstruação”.
Tais sonhos sugeridos, tanto pela pressão no peito como pela posição
supina da adormecida são, em geral, acerca de uma violenta agressão
sexual... algumas vezes, se descreveu que o opressor aparecia na forma de um corcel fogoso (cheval noir de la nuit).
Nessa situação, sustento a hipótese de que estamos imersos numa experiência pautada pela força do pulsional, que pressiona, insiste e fustiga a
adormecida.
6
Ressaltado do autor, marcando especialmente esse ponto, já que creio que indica
uma distinção em torno do pesadelo. Predomina o sexual ou algo mais arcaico – por exemplo,
da ordem dos significantes arcaicos (significantes formais) descritos por B. Golxe, C. Bursztein
e D. Anzieu.
301
VÍctor Guerra
De volta ao terreno da interação pais-bebê e ao transtorno do sono, acredito que essa dinâmica se põe em jogo em alguns casos, porém, em outros, prevalecem aspectos mais arcaicos. Muito sumariamente e como
introdução ao tema, proporei a hipótese sobre três tipos diferentes de
situações que envolvem o transtorno do sono:
1) Onde emerge tal sintoma em forma solapada, a partir do meu pedido
na consulta7 de que me relatassem alguns aspectos da vida da criança.
Então, às vezes, sem aparente preocupação e, muitas vezes, com um sorriso na boca, os pais (a mãe) comentam que seu filho dorme na cama
deles praticamente desde o princípio e que pensam em “trocar a cama
por uma de três lugares”. Em muitos desses casos, esse aspecto de negação do sintoma do filho está sustentado a partir da posição na qual o
bebê parece cumprir um rol de interditor edípico (cama de três lugares),
ao mesmo tempo, dando expressão ao anelo incestuoso, interferindo na
intimidade e na sexualidade parental. Esses pais, com essa atitude de
complacência, não se encontram expostos à “luta” que implica o sono do
bebê e postergam o enfrentamento com sua ambivalência.
2) Em outros casos, não alcançam tal protagonismo esses aspectos, mas
entram em jogo os ideais parentais, sobre o que deveriam aportar
afetivamente, e aparece a necessidade de “tapar” as culpas pela separação do filho nos casos em que os pais – ou, mais pontualmente, a mãe –
se encontram ausente do lar durante muitas horas. Dessa maneira, “trazer” a criança à cama seria uma forma de compensar a ausência no dia.
3) Porém, em outras situações, existe uma preocupação pelo sintoma do
filho, vivido como uma dificuldade em sua autonomia e como empecilho
ao descanso e retraimento narcisista próprio do sono. Emerge mais claramente a ambivalência, estão mais expostos a experimentar uma angústia mais arcaica, de tom persecutório, além da vivência de sinistro,
como foi detalhado anteriormente na vinheta clínica. Assim, nos aproximamos à ideia do sintoma como pesadelo no psiquismo dos pais.
Sustento que provavelmente esse sintoma (o transtorno do sono com
ou sem pesadelos) tem muitas vezes um estatuto especial como sinto7
Consulta cujo motivo geralmente é de outra ordem, como transtornos de alimentação ou de esfíncteres, dificuldade com os limites, etc.
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ma8 por sua correlação com as possíveis significações que emergem
por seu particular cenário: o sonho... e o sinistro.
Esse aspecto do transtorno do sono, em relação com o pesadelo e o sinistro como eixo central de minhas reflexões, será abordado primeiro partindo das reflexões de Freud e indo aos aportes de Goya, Hoffmann e
outros artistas românticos.
4 Freud, os Sonhos e o Sinistro
Foi Freud, com sua obra A interpretação dos sonhos (1900), quem marcou
uma baliza central na tentativa de dar ao onírico um sentido de expressão da alma humana. É um trabalho extraordinário, no qual tomou como
ponto de partida a análise de seu mundo onírico e o dos pacientes. Foi
um passo epistemológico, que permitiu seguir ampliando o edifício teórico psicanalítico, cujo pilar estriba na presença do inconsciente e do desejo. Sabemos que Freud detalhou o trabalho do sonho em diferentes mecanismos (condensação, deslocamento, figurabilidade e elaboração secundária) e o eixo do mesmo na expressão de um desejo infantil que
toma os restos diurnos como elementos que permitem uma expressão
do inconsciente.
Freud retomou o tema do sonho ao longo de sua obra, a partir das características da análise e da interpretação dos mesmos como “via régia” do
inconsciente, e creio que seria interessante desenvolver as correlações
existentes entre a experiência onírica e o sinistro. Tal conceito é objeto de
estudo em Freud, em 19199 – território ainda da primeira tópica e prelúdio da passagem à segunda tópica e ao estudo, por exemplo, do papel do
superego e da pulsão de morte, através da compulsão à repetição, como
temas que estão inundados nesse trabalho. Ali, Freud define inicialmente ao sinistro como “algo que pertence à ordem do terrorífico, do que
excita e desperta angústia e horror.
Realiza um rastreamento etimológico da palavra em alemão e em outros
8
Inclusive, muitas vezes, certas patologias que emergem mais adiante, na infância ou
na adolescência (pacientes borderline, anorexias, desarmonias evolutivas, etc.), foram precedidas por transtornos do sono severos no início da vida.
9
Por motivos que desenvolverei mais adiante, prefiro traduzir o título do artigo como
O sinistro e não como O ominoso, tal como traduzido pela editora Amorrortu.
303
VÍctor Guerra
idiomas. O vocábulo que o designa em alemão: unheimlich, define algo
sinistro, que deixou de ser familiar, conhecido. Dita palavra provém de
heimlich, que significa familiar, doméstico, seguro.
A partir, portanto, dos aportes freudianos, seria aquilo familiar que passa
a ter um signo contrário, não-familiar, e é assim que se torna funesto.
Dessa busca, vai surgindo a ideia de “noite sinistra... de algo alheio... estranho... inquietante... lúgubre... suspeito... de mau agouro... horrendo... demoníaco”.
Nesse texto, Freud propõe uma série de situações que se tornam sinistras (unheimlich) em relação a diferentes vivências e sentidos, por exemplo:
a) Certas formas de incerteza intelectual: “Algo dentro do qual a pessoa
não se orienta”.
b) “Tudo que está destinado a permanecer em segredo, oculto e que sai à
luz”.
c) “Aquilo que foi subtraído do conhecimento, o inconsciente”.
d) Dúvidas sobre se um objeto ou uma pessoa é animada ou inanimada.
e) Situações de confusão e de grande incerteza.
f) O pensamento mágico, a magia.
g) A onipotência de pensamento.
h) A figura do duplo e o monstruoso.
i) O nexo com a morte.
j) A repetição não-deliberada.
k) O complexo de castração10.
10
Neste trabalho, não vou desenvolver esses aspectos. Mais adiante, retomarei parcialmente alguns desses pontos.
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Ao dar continuidade às acepções do vocábulo, observamos que, em francês, a tradução nos traz o conceito de “inquiétante étrangeté” (inquietante estranheza), o que daria conta desse matiz de algo alheio ao conhecimento egoico, que afunda mais suas raízes no inconsciente. No entanto, se tomamos o significado em espanhol e apelamos ao dicionário
etimológico (Corominas), ali encontramos a ideia de sinistro: “esquerdo”,
até 1140, e logo: “funesto, infeliz” pelo mau agouro que o povo acreditava
estar relacionado com a aparição de aves pela mão esquerda. Do latim,
“sinister, sinistras, sinistrum”, alterado vulgarmente em “sinixter”, por influência do oposto “dexter”, “direito”.
Dessa definição, há dois aspectos que chamam minha atenção e me refiro ao que “aparece pela esquerda” e o “mau agouro”.
5 O Sinistro, a Esquerda e o Mau Agouro
Em relação a esse ponto, “o esquerdo” (sinistrum), apelaremos a alguns
aportes da sociologia e da antropologia.
R. Hertz (1990) assinala como nos maoríes pode-se observar, assim como
em outros povos, uma espécie de “dualismo fundamental”, onde, por
exemplo, em suas crenças, o lado direito representa algo cognoscível, relacionado com a vida, enquanto que o lado esquerdo é o “lado da morte”
e da debilidade.
Pelo lado direito e pela direita é por onde nos entram as influências favoráveis e vivificantes e, ao inverso, é pela esquerda que penetram no coração de nosso ser a morte e a miséria. Segundo essa cultura, uma mão
esquerda excessivamente bem dotada e ágil é sinal de uma natureza
contrária à ordem, de uma disposição perversa e demoníaca... tudo surdo é um bruxo possível, do qual se desconfia.
Segundo Hertz, viria desde a Idade Média a ideia de que “a preponderância exclusiva de uma mão direita, a repugnância a pedir algo à esquerda,
é o sinal de uma alma extraordinariamente inclinada ao divino, fechada
a tudo o que é profano ou impuro, tal como os santos cristãos que, desde
o berço, levavam a piedade até o ponto de rejeitar o seio esquerdo da
mãe”.
305
VÍctor Guerra
Essa dicotomia entre o direito “são” e o esquerdo como “insano”, “demoníaco”, também se observa em outras culturas, como as tribos do baixo
Níger, as tribos australianas dos wulwanga, os zunhis, etc. – observação
também repetida entre algumas religiões, por exemplo, na religião católica. Na representação do juízo final, a mão direita levantada do senhor
indica aos elegidos a sublime morada, enquanto que a mão esquerda,
baixa, mostra aos condenados as monstruosas bocas abertas do inferno,
preparadas para tragá-los.
Assim como a ideia em torno da origem do homem de que Deus tomou,
para formar a Eva, uma das costelas esquerdas de Adão, pois uma mesma essência caracteriza a mulher e a metade esquerda do corpo, que, na
Idade Média, foi fundamentalmente relacionada com a tentação da sexualidade e o diabólico através da perseguição e da caça às bruxas. No
entanto, também a mitologia das bruxas implica que estão amparadas
pela obscuridade da noite e pelas “aves de mau agouro”.
Os animais alados de mau agouro são representados por morcegos, corujas, corvos, etc. O dicionário de símbolos informa que a coruja mantém
um conteúdo simbólico ambivalente. Por um lado, são dotadas de um
olhar sábio e expectante, reflexivo e cavilador, e capazes de ver na escuridão. Por outro lado, na crença popular, a coruja desempenha um papel
negativo por seu gênero de vida noturno, sua antissociabilidade, seu voo
silencioso e sua voz lastimosa (ave de mau agouro) quando atacam. Em
diferentes culturas, por sua qualidade noturna, foi associada ao demônio
e às forças do mal.
O morcego é um animal tipicamente sinistro em relação aos seus hábitos noturnos e por sua qualidade de chupar sangue-vida. Por outro lado,
o Diabo, como anjo caído, está dotado na arte das asas de morcego, já que
ele, como o mencionado animal, teme a luz (da razão).
Por exemplo, entre os gregos, na Odisseia, se descrevem as almas dos
mortos esvoaçando e piando como morcegos. Na Idade Média, inclusive
nos mitos populares, se sustentava que esse animal tinha a qualidade de
tirar, incorporar a doença do corpo do paciente e atraí-la para o seu. As
aves de mau agouro, com figura noturna e sinistra “nos levarão” a outra
forma de expressão artística: as pinturas de Goya.
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6 Goya e o Sonho
Por que apelar, neste momento, a Goya? Entre outras coisas, porque, em
algumas de suas obras, creio que se condensam esses dois aspectos que
me interessam: o sonho e o sinistro.
Miguel Cortés (1997), em seu livro Ordem e caos: um estudo cultural sobre o
monstruoso na arte, dedica parte de seu trabalho a estudar o monstruoso
no interior da mente e afirma: “O monstruoso surge no interior da mente: de Goya e Hoffmann a Freud”. Também assinala que “cada época,
cada povo, cada classe e cada grupo social têm um diabo, o vivem, o
evocam, o vencem, o imolam e o ressuscitam para matá-lo novamente”.
Cita as obras do último período da vida de Goya (a partir de sua doença,
em 1792). O artista abandona seu mundo ordenado e apacível dos cartões para tapetes (assunto e estilo impostos pelo gosto cortesão) e desenvolve em seus quadros umas cenas inéditas e obsessionantes, povoadas
de estranhas figuras deformadas. Com Goya, nos assomamos aos abismos da miserável condição do homem, descobrimos que a conduta denominada desumana é, profunda e irremediavelmente, humana. Como
dissera Charles Baudelaire em 1857: “O mérito principal de Goya consiste
em sua habilidade para criar monstros críveis e tangíveis. Seus monstros
são possíveis, têm as proporções adequadas. Ninguém se arriscou tanto
no caminho da realidade grotesca. Todas essas contorções, caras bestiais
e caretas diabólicas são profundamente humanas... Em uma palavra, é
difícil precisar o ponto em que a realidade e a fantasia se confundem”.
Em 6 de fevereiro de 1799, Goya anuncia no Diário de Madri a produção
de uma série de 80 estampas (cujo desenho inicial é um autorretrato),
que denominou “coleção de estampas, de assuntos caprichosos, inventadas e gravadas na água forte”. Explica que propôs nelas a censura dos
erros e vícios humanos, que, até então, havia sido o objeto peculiar da
poesia ou da eloquência.
Por assuntos caprichosos, Goya se referia aos inventados pela fantasia,
ou seja, pelo capricho e não copiados nem da natureza, nem de outras
obras. “O caprichoso em relação à pintura seria o feito pela força do engenho, mais do que pela observação das regras da arte” (HELMAN, 1983).
307
VÍctor Guerra
No entanto, apelando ao dicionário etimológico, encontramos que:
Capricho: desejo, 1548-51. Do italiano capriccio: “ideia nova e estranha em
uma obra de arte, “desejo” no século XVI. Em torno do século XII, antigamente: “Horripilação, calafrio”, que também tinha a forma “caporiccio” (século XVI), contração de: “capo”: cabeça e o adjetivo “riccio” (da mesma origem e significado que no castelhano “erizado” e no português, “eriçado”).
Vemos, então, como aqui também se conjuga algo da ordem do irracional, que contravém o racionalmente seguro e gera calafrios, seguramente no sentido de algo descontrolado, surpresivo, horripilante.
Porém, a série dos “Caprichos” havia sido anteriormente, em 1797, projetada pelo autor como uma coleção de setenta e duas pranchas, que contava com uma fachada diferente, já que seria o esboço do capricho número
43: “O sonho da razão produz monstros”, porém com uma inscrição
diferente, tal nos fala da importância dessa obra nessa série. Pessoalmente, creio que está em relação ao peso do “noturno”, como fonte de
angústia e de criação para Goya.
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7 O Sonho da Razão Produz Monstros
Essa obra conformou-se com uma série de três esboços:
1) O primeiro esboço: De 1797; em tinta sépia, aparece um homem dormindo, sentado frente a uma mesa de escritório, e rodeiam ao homem
uma multidão de “monstros”, entre os quais se “desenham” uma série de
rostos desencaixados, e um deles parece o rosto mesmo do pintor. Do
lado esquerdo do personagem, emergem animais alados, morcegos enormes com uma tonalidade sombria.
2) O segundo esboço: Datado também de 1797, tem algumas características similares e outras diferentes em relação ao anterior. O homem está
quase na mesma posição, porém tem a cabeça mais afundada entre os
braços e o cabelo, não tem o ar “leonino” do anterior, ainda que sua
vestimenta seja a mesma. Em cima dele (do lado direito), aparece um
espaço semicircular, de tom branco, e, do lado esquerdo, voltam a emergir animais alados, monstruosos: morcegos de grande tamanho, corujas
e um lince com um olhar penetrante e atento. Sobre a parte visível do
escritório, se lê uma frase que diz: “Idioma universal. Desenhado e gravado por Francisco de Goya, ano 1797”.
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VÍctor Guerra
3) A terceira produção, intitulada também O sonho da razão produz monstros, foi realizada e publicada a princípios de 1799. Nela, o pintor está
localizado na mesma posição em que a anterior; desapareceu o círculo
claro da direita e dá a aparência de que uma luz tênue banha o protagonista e o monstro mais próximo a ele: quatro corujas (uma delas com um
pincel na mão) e o lince que observa alerta a situação. Mais atrás, e tomada pela escuridão, se vê uma espécie de “legião” de morcegos e corujas que se aproximam (perigosamente?) pela esquerda, no sentido do pintor.
O comentário de Goya a essa obra é o seguinte: “A fantasia abandonada
da razão produz monstros impossíveis; unida com ela, é mãe das artes
e origem das maravilhas” (STOICHITA; CODERCH, 2000). Esse comentário deixa abertos múltiplos jogos de sentido, por exemplo, pela inter-relação entre a fantasia e a razão como jogo de figurações do que poderíamos denominar processo primário e secundário. Por outro lado, pode evocar-nos o papel da sublimação, que afunda suas raízes nas pulsões parciais, como o assinalara Freud. Por outro lado, isso nos fala também de
uma verdade do sujeito que emerge desde seu inconsciente, porém que,
sem um processo de ligação e articulação, pode cair no lugar do “monstruoso impossível”, como metáfora da loucura? Ou, talvez, de uma verdade subjetiva, violenta sim, mas verdade no fim das contas?
Em relação a isso, quero retomar o poema que usei como epígrafe, que é
parte da obra de C. Mislosz (apud PAZ, 2000), que, no fim do seu poema
Carta a Raja Rao (onde aparece um questionamento pessoal sobre o conhecimento de si mesmo, sobre quem é ele e o que busca), assinala:
Não, Raja, eu devo começar
a partir do que sou.
Sou os monstros que habitam meus sonhos,
os monstros que me ensinam quem eu sou
De volta a Goya e seus “monstros noturnos”, R. Baroja (SANTOS TORROELA,
1992) se pergunta:
Mas quem é o homem de cara quase quadrada, de nariz chata, de
boca grande, que se disfarça com hábito de frade, de bandoleiro... Quem
é o que às vezes muda de sexo e se envolve com os farrapos da men-
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diga ou na mortalha de uma bruxa e passa pelo ar montada na vassoura ou recolhendo-se a saia, com ambas as mãos cruzadas sob os
joelhos, e voa entre morcegos e aves de mau agouro11? Pois nada
menos que Don Francisco de Goya y Lucienestes, pintor de câmara de
Vossa Majestade Católica. Diz Leonardo Da Vinci que, quando o artista desenha de memória uma figura, tende a realizar seu autorretrato.
Goya demonstra melhor que ninguém o acerto da afirmação de Leonardo.
Vemos como essa passagem alude à qualidade projetiva da obra de arte,
na qual uma dimensão do produzido diz respeito ao sujeito que a realiza,
mesmo que não necessariamente a obra deva ser uma forma de leitura
autobiográfica ou um fiel retrato de sua condição psíquica. Mais precisamente, pode pensar-se como um retrato das complexidades da alma humana. Entretanto, deliberadamente, marquei no texto o voo entre morcegos e aves de mau agouro, porque tento relacioná-lo com o que já
assinalara sobre o sinistro. Marca a relação da pintura com esse aspecto,
em uma inter-relação dos sonhos e algumas de suas características, com
o enigmático, misterioso e “não-familiar” do psiquismo inconsciente.
Mesmo que a obra de Goya nos convide a seguir pensando em outros
aspectos, desejo limitar-me a pontuar a forma como se inscreve a relação entre a noite, os sonhos, o monstruoso (sinistro como expressão do
inconsciente).
Em relação a esse aspecto, diferentes autores assinalam como o conceito
do sinistro marca a influência do Romantismo no pensamento freudiano.
Ademais, justamente o conto que serviu de inspiração a Freud para formular o conceito, O homem de areia foi realizado por E. T. Hoffmann, um
escritor tipicamente romântico. A propósito, quero referir-me brevemente à gestação do movimento romântico e sua relação com o inconsciente
e o “noturno”.
8 O Homem de Areia, os Românticos e o
Inconsciente
O homem de areia foi escrito por Hoffmann em 1815. Nesse conto (do qual
tomarei apenas uma parte), descrevem-se as peripécias de Nathaniel,
11
Grifo do autor.
311
VÍctor Guerra
sua loucura, seu trágico fim e a correlação de sua “insanidade” em relação a vivências infantis. Entre elas, descreve-se a relação com o “homem
de areia”, figura temível, que aparecia nas noites para encontrar-se com
seu pai, aparentemente para fazer experimentos com a alquimia. A empregada lhes dizia: “É um homem mau que busca as crianças quando
não querem dormir na cama e lhes atira punhados de areia nos olhos,
até que estes, banhados em sangue, saltam da cabeça e depois os mete
em uma bolsa e, nas noites de quarto crescente, os leva para dar de comer aos seus filhinhos, que estão no ninho e têm uns biquinhos curvos,
como as corujas; com eles, picotam os olhos das criaturas que se portam
mal”. Uma noite, Nathaniel se desliza ao quarto do pai e é surpreendido
por Coppelius (o homem da areia), que afirma que vai matá-lo ou retirarlhe os olhos. Ali parece ficar instalado um “germe de loucura e terror” no
pequeno Nathaniel.
O conto depois narra a vida dele, a relação com sua noiva Clara e com o
personagem diabólico Coppelius, que, depois, tomaria a identidade de
Coppola; assim como seu doentio enamoramento por Olímpia, uma boneca de escala humana, onde Hoffmann plasma a temática do duplo.
De todos esses aspectos, nesta oportunidade, tomarei unicamente a relação com o noturno, o sinistro e o castigo das crianças que não querem
dormir para “ver” o que se passa à noite na cama dos pais12.
Podemos apreciar como aparecem também as aves de mau agouro, figuradas nos filhos com bico de coruja, o papel da noite e a lua. Esses aspectos são prototípicos da estética romântica, da qual fazia parte Hoffmann
(e, como veremos depois, Freud). Parece de suma importância para essas
hipóteses desenvolver brevemente as características do Romantismo em
relação com o noturno, o inconsciente e o sinistro.
9 O Romantismo
A palavra romântico parte da antiga palavra francesa “romanz” (derivada
da expressão vulgar “língua romana”) como designação genérica da poe12
Território, por uma parte da sexualidade infantil e da angústia de castração como
castigo, mas também dos aspectos arcaicos através das figuras do duplo como construção
narcisista.
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sia provençal e do adjetivo inglês “romantick”, derivado de romanticus, que
compreendia os mais diversos âmbitos (por exemplo, a paisagem), ambos conceitos, em sua colaboração anticlassicista. Marcou-se, assim, uma
ruptura com valores normativos, orientados à Antiguidade. Tal pode ser
apreciado em parte do discurso que proferiu Sir Joshua Reynolds, presidente da Royal Academy de Londres, em 1722, que advertia aos estudantes:
Se vos propondes a preservar a beleza mais perfeita em seu estado
mais perfeito, não podeis expressar as paixões, todas as quais produzem distorção e deformação, mais ou menos, nos rostos mais belos...
Não necessitamos mortificar-nos nem desanimarmo-nos por não ser
capazes de levar a cabo as concepções de uma imaginação romântica
(VAUGHAN, 1995).
Havia, no movimento romântico, uma repulsa de:
[...] uma razão todo-poderosa, socialmente garantida, abrindo ao indivíduo novos espaços, a saber, o próprio interior, e o espaço de fuga
da natureza. Assim como a nostalgia de uma unidade perdida, determinava a interioridade do sujeito, tanto como seu espaço de reflexão, a paisagem romântica13.
Segundo S. Matuschek (1998), o Romantismo marcou o começo da moderna problemática do sujeito. A partir do ponto de vista de uma história
da mentalidade, tal pressupõe o descobrimento, no século XVIII, da sensibilidade.
Um livro publicado na França por Madame de Staël, intitulado Da Alemanha, funcionou como porta de entrada do romantismo na Europa, marcando, ademais, um aspecto importante: o redescobrimento da Idade
Média. Por exemplo, o primeiro capítulo aponta a importância das construções góticas e assinala: “Os monumentos góticos são os únicos interessantes na Alemanha, esses monumentos recordam os séculos da cavalaria”. Além disso, assinala: “O nome de romântico foi introduzido recentemente na Alemanha para designar a poesia cuja origem tem sido
os cantos dos trovadores, a poesia que nasceu da cavalaria e do cristia13
Destacado pelo autor, para mostrar como isso pode correlacionar-se – a partir da
Psicanálise – com a tentativa de acesso ao inconsciente e o valor da perda do objeto.
313
VÍctor Guerra
nismo”. Porém, esse ressurgir do passado aponta, mais do que ao fato
histórico, a importância da sensibilidade e da imaginação.
Matuschek (1998) cita, por exemplo, que uma obra de F. de la Motte Fouqué,
Undine (1811), é uma das peças mais populares da época do renascimento
romântico da Idade Média. Assinala que ali se desenvolve uma história
de amor entre uma dama e um cavaleiro, em uma cenografia medieval,
onde aparecem castelos cavaleirescos, bosques encantados e espíritos
que dão forma à expressão do maravilhoso, costurado em um drama
com debruns emocionais e eróticos.
Ao estímulo externo do colorido, agrega-se, assim, o estímulo interior
de uma psicologia sexual sugestiva, irracional. A Idade Média fabulosa se transforma em um espaço de projeção daquela. Com música
de E. T. Hoffmann14 e decorações de Karl Friederich Schinkel, dessa
narração saiu a Ópera mágica, Undine, estreada com grande êxito em
1816.
Para tomar outro exemplo da época, nos encontramos com a novela Enrique de Iofterdingen, de 1802, de Novalis, onde se descreve uma época melancólica e romântica (similar à Idade Média): “Quem não gosta de caminhar no crepúsculo, quando a noite quebra a luz e a luz da noite em mil
formas e cores? Do mesmo modo, afundemo-nos de boa vontade nos
anos nos quais viveu Enrique”. Vemos como a Idade Média aqui não é
uma época histórica, mas uma ideia.
Extraio esses exemplos para mostrar a atmosfera na qual estava envolvido Hoffmann (que, como vimos, realizou a música da obra assinalada) e
pela importância de três aspectos que, depois, influenciaram a Freud e
a psicanálise. São eles:
1) O papel das polaridades (luz-obscuridade, dia-noite, presente-passado).
2) O papel da regressão: “[...] afundemo-nos, incursionemos pelo passado, que ali encontraremos as raízes de nossa sensibilidade, de nossos
sentimentos”.
14
Hoffmann, além de escritor, foi um músico de certa relevância em sua época.
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3) O papel da regressão em relação à noite (e ao sonho) como forma de
prazer e de criatividade.
Nesse sentido é que T. Bedó e I. Maggi afirmam que “o romântico exalta a
noção de indivíduo, sua unicidade e originalidade, o homem que poderia
empatizar com a natureza e com outros homens, com uma rica vida interna, com a convicção no poder da inspiração, intuição e espontaneidade”.
Como M. e H. Vermorel (1985) se perguntam: “Freud seria então um romântico por uma impregnação cultural, um conhecimento e uma inclinação pessoais que equilibrariam sua orientação materialista?”. Assinalam, ademais, que, entre os autores citados ao longo de sua obra, os que
mais citações possuem são os de estirpe romântica, como Schiller, Goethe,
Hoffmann, Richter, Schelling.
Além disso, o peso da temática onírica estabeleceu uma ponte entre Freud
e os românticos, conforme Novalis: “Pois, na literatura romântica, totalmente dedicada aos movimentos ocultos da alma, o sonho ocupa um
lugar central (...) O sonho é um desgarramento significativo no misterioso telão cujas mil pregas caem bem no fundo de nós”.
10 Significações do Transtorno do Sono
Ao retomar minha tentativa de articulação entre o sonho e o sinistro,
acredito que é importante recordar que uma das definições que traz Freud
está em relação com uma incerteza racional e engloba determinados
exemplos, nos quais se dariam situações que rompem com os códigos
racionais do sujeito, por exemplo, em relação com a compulsão à repetição e o “eterno retorno do igual”. Creio que não foi em vão que Freud o
prefigurou, em 1919, como uma forma de expressão da pulsão de morte,
como oposto à pulsão de vida, cuja função é produzir ligações maiores.
Ao tomar esses aspectos, penso nos aportes de A. Green (1990), quando
privilegia uma pulsão desagregadora, em vez de pulsão de morte, como
uma falha na agregação, na ligação dos conteúdos psíquicos. Ocorre-me
que o eterno retorno do igual implica uma detenção radical do processo
de crescimento mental, como forma de ligação das representações (ou,
como diz D. Ribas, de “intrincação”). Dita “detenção” seria vivenciada pelo
sujeito como algo sinistro (e seria uma das formas nas quais se expressa
315
VÍctor Guerra
essa vivência). O que ocorre, então, quando um bebê se desperta, noite
após noite, repetidamente, impedindo a continuidade do sono dos pais?
Creio que já uma resposta possível emerja da vinheta que ilustra este
trabalho: é vivido como um pesadelo. Porém, nesses casos, sustento que
(para os pais) quem exerce a função pesadélica é o bebê. E, retomando
o que foi afirmado em relação a Goya e parafraseando-o, diríamos que
agora “a falta de sonhos produz monstros”, e os pais, ante o desamparo
da noite e da falta de ligação, veem emergir, não tanto a partir da esquerda, mas deles mesmos, a vivência do sinistro.
11 O Transtorno do Sono como Pesadelo
Quero, agora, retomar uma hipótese proposta por Golse (1994) em relação aos pesadelos.
O autor sustenta que, além de outras funções que pode ter no sujeito o
sonhar:
[...] na atividade onírica se repete, se reexperimenta cada noite, uma
das etapas centrais da ontogênese do aparelho psíquico, a saber: o
processo de ligação, de passagem dos processos originários (conforme
proposto por Piera Aulagnier) aos processos primários, ou seja, a organização e a elaboração dos primeiros significantes em representações
fantasmáticas mais sofisticadas15.
Assim, afirma que certos pesadelos “testemunham o fracasso parcial ou
total desse trabalho de repetição, no sentido teatral do termo, dos processos de ligação e de tradução dos significantes arcaicos. Mais precisamente, marcaria um fracasso na repressão de ditos significantes, gerando-se uma forma de enigma ou de espanto16, face à interiorização de
uma função alfa falha”.
Pessoalmente, tomaria essas reflexões no sentido de que o transtorno do
sono (no bebê e na família) frearia esse trabalho de tradução, ligação, que
provavelmente, pela regressão própria da “revolução do pós parto”, assi-
15
Tradução do autor.
Significativamente, o termo em francês é “effroi” e estaria relacionado com “effrayant”
– espantoso, pavoroso – e com “effraie”: coruja (ave de mau agouro).
16
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316
nalada por Cramer (1993), poderia encontrar-se incrementada. Poderíamos pensar que é em relação a isso também que surgiria a sensação do
sinistro?
Nesse sentido, uma mãe dizia que (o problema do despertar-se
reiteradamente) era uma questão de necessidade de descanso, que “era
insuportável, porque não podia descansar a cabeça, eu ficava embotada
todo o resto do dia, não sei, não posso explicá-lo com palavras, como
estar no ar e te vêm como sonhos à cabeça”.
Penso que, nessas situações, não ficaríamos localizados em uma possível
significação do sintoma do bebê (na família) em um plano sexual (o bebê
como interditor edípico e, por sua vez, como objeto de prazer com quem
“se compartilha a cama”), mas, como já assinalei, cobraria primazia o
levar à cama o bebê como uma defesa dos pais para salvaguardar seu
psiquismo e assegurar-se um descanso (e a atividade mental própria do
onírico) e evitar experimentar a vivência do sinistro em relação a si mesmos como pais e em relação ao seu filho.
12 Os Significantes Formais
Estaríamos nos localizando talvez em uma experiência similar a que descreve Anzieu (1990), quando fala dos pacientes que experimentam a
vivência do que chama: “significantes formais”, como forma muito rudimentar de experiência psíquica, que emerge, por exemplo, em certas
situações de pesadelos?
É importante assinalar que, para esse autor, o significante formal tem
uma estrutura diferente do fantasma. A sequência cênica fantasmática,
característica da neurose, está construída sobre o modelo da frase com
as seguintes características:
a) É posterior ou contemporânea à aquisição da linguagem.
b) Inclui um sujeito, um verbo, um complemento de objeto.
c) O sujeito e o objeto são pessoas (ou animais).
d) Pode-se agregar um espectador da ação.
317
VÍctor Guerra
e) A ação, em geral, se desenvolve em um espaço tridimensional.
f) O investimento pulsional se compõe de sexualidade e de agressividade.
Ao contrário, os significantes formais:
a) Estão constituídos por imagens propioceptivas, táteis, cenestésicas, etc.
b) Sua colocação em palavras parece problemática, limita-se, às vezes, a
um sujeito e um verbo, em geral, reflexivo.
c) O sujeito é uma forma isolada ou um pedaço de corpo, não uma pessoa inteira.
d) Não se trata de uma cena, mas de uma transformação de uma característica do objeto ou do corpo, que traz implícita uma deformação e
uma possível destruição.
e) A transformação se desenvolve sem espectador e tem um ar de
alheidade.
f) Desenvolve-se em um espaço bidimensional.
g) Dá-se uma certa confusão dentro-fora.
Segundo Anzieu, alguns exemplos de ditas vivências podem descrever-se
como segue: “Um apoio cede,17 um volume se achata, uma borbulha se
fecha sobre si mesma, um buraco aspira, um corpo líquido se esparrama,
um corpo gasoso explode, um objeto se aproxima e me persegue, um
objeto que se distancia me abandona, etc.”.
O autor assinala que, seguindo o proposto por Freud em 1900, acerca do
sonho: “Não apenas se produz no aparelho psíquico um movimento
regrediente, desde o extremo motor ao extremo perceptivo, mas que essa
regressão tópica se acompanha de um estado crepuscular, intermediário entre a vigília e o dormir. Amiúde, o significante formal é vivido pelo
17
Recordemos que a mãe da vinheta nominava a situação como “um pesadelo... insuportável” (in-suportável: sem suporte, sem sustentação, sem apoio).
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paciente como um sonho particularmente angustioso, como um pesadelo desperto”18
Sustento, portanto, que os pais, privados de sono por essa situação, poderiam experimentar no despertar reiterado a vivência psíquica de um ressurgir de ditos significantes formais, que os faz viver o transtorno como
“um pesadelo desperto” como algo da ordem do sinistro.
Essas reflexões visam marcar o estatuto especial que pode congregar o
sintoma por si mesmo para o desenvolvimento do vínculo pais-filhos (mais
além da sua possível etiologia) se acrescentaria essa particular (e possível) significação que tratei de transmitir neste texto19. Assim, poderia instalar-se uma circularidade negativa nesse eixo primário da constituição
subjetiva como é o das interações precoces pais-bebê.
Se parafraseamos parte do trabalhado, poderíamos dizer que, em certas
situações, poderia configurar-se como um sintoma de “mau agouro” no
desenvolvimento da criança.
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. Técnicas psicoterápicas mãe-bebê. Porto Alegre: Artes Médicas,
1993.
. Que deviendront nos bébés? Paris : Odile Jacob, 1999.
18
Grifo do autor.
Esclareço que, em outros momentos da estruturação psíquica da criança, esse sintoma, da mesma forma que outros, conta também com outras significações e com a contribuição da conflitiva intrapsíquica da criança.
19
319
VÍctor Guerra
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Ane Marlise Port Rodrigues
A Noite e Seus Filhos (o Sono
e o Falecimento) e Pesadelos
ao Longo da Infância
Artigo | Versão modificada e adaptada para a RBP do trabalho apresentado na mesaredonda “Transtornos do sono ao longo do ciclo vital”, subtema “Transtorno do sono na
criança e adolescente”, durante a VII Jornada Gaúcha de Psiquiatria. Porto Alegre, 2005.
Este trabalho recebeu o Prêmio “João Bosco Calábria de Oliveira”, para candidatos, durante o
XX Congresso Brasileiro de Psicanálise. Brasília, 2005.
Ane Marlise Port Rodrigues
Psiquiatra de crianças, adolescentes e adultos.
Membro Associado da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre.
Resumo: Através de uma aproximação com a mitologia sobre a Noite e seus filhos
(o Sono e o Falecimento), a autora ressalta como angústias de morte ou de perda de
controle podem invadir o sono e gerar distúrbios do sono na infância. São relatados
alguns pesadelos em diferentes faixas etárias. Também é referido que a noite pode
ser cenário de um ritual de passagem do adolescente para o mundo dos adultos, na
busca da formação de casais. Finaliza com a fábula de Ceix e Alcíone e relaciona a
formação do casal e a geração de bebês com a possibilidade de deixar junto o casal
parental interno, seja dando prazer um ao outro, seja procriando ou descansando.
Essa possibilidade é vista como favorecedora de menos barulho interno e como
facilitadora do sono repousante.
Palavras-chave: Adolescência. Infância. Morte. Pesadelos. Sono.
1 Introdução
A maioria das crianças e adolescentes experimenta problemas de sono
em algum momento de seu desenvolvimento, mesmo assim deve-se avaliar a persistência e o grau de prejuízo para si e para o ambiente. Problemas do sono podem ser fenômenos transitórios insignificantes ou ligados a patologias psíquicas ou orgânicas (apnéia obstrutiva, refluxo
gastroesofágico etc.).
Os distúrbios do sono em crianças eram vistos como manifestações do
desenvolvimento neurofisiológico e considerava-se que haveria remis-
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são com o crescimento. Isso não se comprovou inteiramente, pois fatores
da criança (orgânicos, emocionais ligados à fase do desenvolvimento,
emocionais ligados a distúrbios psiquiátricos), dos pais e do ambiente
pesam no desenvolvimento do distúrbio do sono (HANDFORD; MATTISON;
KALES, 1995).
Não me deterei nas perturbações do sono ligadas a transtornos psiquiátricos (autismo, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, desordens afetivas, ansiedade, pânico, estresse pós-traumático, retardo mental, psicoses, drogas na adolescência). Também não enfatizarei perturbações do sono como o sonambulismo, o terror noturno, a enurese; nem
tampouco, as alterações do sono na adolescência, quando fatores
hormonais levam a modificações no ciclo sono/vigília. Mas será referido
que a noite pode ser cenário de um ritual de passagem do adolescente
para o mundo dos adultos na busca da formação de casais, bem como
pretendo focar os pesadelos ao longo do desenvolvimento infantil. Os
pesadelos são classificados como uma parassonia associada ao sono REM
(Rapid Eye Movement) (ASDA, 1997).
2 Aspectos mitológicos e os pesadelos
A Noite e seus filhos (MÉNARD, 1975):
A Noite, mãe do Sono e do Falecimento, habita para além do país dos
cimérios, onde o sol jamais ilumina com os seus raios... Nela os galos
nunca anunciaram a volta da aurora. Os cães e os gansos que vigiam
as casas nunca turbaram com os seus gritos o silêncio que reina eterno (p. 117). O Sono tem por atributo uma varinha com a qual adormece os mortais, ao tocá-Ios. São seus fIlhos os sonhos enganadores.
Morfeu, rei dos sonhos, aparece, às vezes, na arte sob a forma de um
ancião barbudo que segura uma papoula (p. 118).
O Falecimento habita perto do Sono, seu irmão. O Sono é amigo dos
mortais; passeia calmamente no meio deles, na Terra. Mas o Falecimento não conhece piedade e tem um coração de bronze. Nunca deixa o infeliz de que se apodera e inspira horror aos próprios deuses
imortais. Coberto de uma veste negra, vai entre os homens, corta um
anel de cabelos ao agonizante e consagra-o ao deus dos infernos; depois, bebe o sangue das vítimas imoladas à memória dos defuntos
(p. 119).
323
Ane Marlise Port Rodrigues
Os dois irmãos eram gêmeos e, frequentemente, representados juntos. A
Morte, na Grécia, era do gênero masculino (gênio do repouso eterno), representada, em geral, como um adolescente nu e não tinha o caráter
sinistro que lhe deu a Idade Média (p. 119).
3 Pesadelos: Como dormir com um barulho
desses?
Através da mitologia, podemos nos aproximar de determinados conteúdos presentes em fantasias inconscientes que tantas vezes assombram a
noite. Seus filhos gêmeos – o sono e o falecimento – frequentemente se
confundem na mente de quem dorme. A mãe, temerosa de que, enquanto ela própria estiver dormindo, seu bebê possa não estar mais respirando, vai até seu berço e o acorda. E ele pode seguir acordando em outras
noites para tranquilizá-Ia e pode até estruturar um distúrbio do sono.
Suas ansiedades de morte em relação ao bebê, ou seus temores por algum castigo temido, já não cabem mais dentro dela, escapam-lhe e habitam o sono do bebê. Quem sabe, alimentá-Io é mais seguro e assim podem ficar juntos. É tranquilizador. Levá-Io para a própria cama pode também acobertar a falta de desejo sexual do casal.O co-Ieito pode ir além
da fase de bebê e é descrito, em nossa cultura, como fator que aumenta o
risco de acordar à noite (HOBAN, 2004). A proximidade física não garante
um apego seguro em relação à mãe. O apego inseguro é fonte de angústia
para a criança, podendo interferir em sua capacidade de adormecer.
Ritmos de sono REM e não-REM parecem determinados pela constituição, enquanto o ritmo acordar/dormir parece mais determinado pelo
ambiente (DAWS, 1989). Os limites a partir dos pais e a instituição de
hábitos ao dormir são fatores do ambiente que também interferem no
sono. Não se pode isolar o que se passa durante o sono daquilo que se
passa durante a vigília, pois o sono não é unicamente uma função
neurofisiológica. A mãe é considerada uma verdadeira “guardiã” do sono
de seu bebê, bem como o ambiente (MAZET; STOLERU, 1988).
A evolução de um padrão de sono é precursor precoce do desenvolvimento do ego e produto da maturação biológica e da interação ambiental.
Citando algumas importantes facetas do desenvolvimento inicial temos:
a criança pequena que consegue iniciar o sono sem maiores problemas e
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que, ao acordar, volta a dormir sem chamar os pais, atingiu um grande
desenvolvimento psíquico que se relaciona com a possibilidade de usar
objetos transicionais para dar conta da falta da mãe, dentro de um ambiente suficientemente bom (WINNICOTT, 1975); com a capacidade de
rêverie materna (BION, 1988), quando, utilizando a função alfa da mente,
a mãe ajuda o bebê a processar suas angústias; com a aquisição da constância de objeto por volta dos três anos (MAHLER, 1986), sinal de que
avançou através das fases da separação – individuação bem apoiada pelos pais; com a função paterna, ou a Lei do Pai (LACAN, 1981), que pode
exercer a interdição entre a mãe e o filho, aliviando angústias de
indiferenciação e fusão. É referido que 60 a 70% dos bebês são capazes de
autoacalmarem-se com um ano de idade (HANDFORD, MATTISON, KALES,
1995; LAMBERG, 2005).
Alguns autores consideram o distúrbio do sono como característica do
desenvolvimento entre 18 e 30 meses devido ao crescente reconhecimento
em toda separação e da ausência da mãe (MAZET, STOLERU, 1988;
HANDFORD et al., 1995; HOBAN, 2004). A ansiedade de separação leva à
relutância em ir dormir; não ver a mãe é não ter a mãe. Sono e Falecimento novamente juntos. O escuro traz a noite, a vivência da separação,
da solidão, do desamparo e do medo. Quantas vezes uma luzinha, mesmo tênue, aliviou o medo e a sensação de estar só e ajudou a criança
pequena a dormir.
Também temos a fase de controle esfincteriano, quando a criança pode
ficar oposicionista e dizer não ao comando que pretendem ter sobre ela;
tenta comandar seu sono ou sua hora de ir dormir. A luta pelo controle e
pelo poder sobre si mesma e sobre o outro pode ter como cenário o momento de ir para a cama.
Nessa época, o desenvolvimento cada vez maior da linguagem ajuda a
aliviar a ansiedade e configura uma via mais simbólica de relação com
os pais. Uma das tarefas da mãe é um trabalho de descorporalização na
sua relação com o filho, inscrevendo-a num nível crescente de
simbolização através da linguagem (GREEN, 1990).
A depressão materna ou sua ansiedade excessiva, brigas conjugais ou
outros fatores de estresse podem prejudicar o apoio seguro do qual a
criança necessita.
325
Ane Marlise Port Rodrigues
Dos 3 aos 6 anos, distúrbios leves e passageiros do sono são comuns devido às ansiedades da fase edípíca. De 10 a 50% das crianças de 3 a 5 anos
têm pesadelos de intensidade suficiente para preocupar seus pais (APA,
1994). É referido que 57% das crianças entre 5 e 7 anos teriam pesadelos
em algum momento (HOBAN, 2004). O adormecer pode tornar-se uma
experiência apavorante para a criança, pois, além de separar-se da mãe e
do pai, ficar no escuro é como ficar prisioneira de sua vida fantasmática
e onírica (MAZET; STOLERU, 1988). Conflitos de amor e ódio em relação
aos pais, irmãos e amigos, angústias com a masturbação, medo de perder
o controle esfincteriano e angústias de castração podem levar aos pesadelos (ocorrem durante o sono REM). Ladrões e monstros, que, frequentemente, roubam ou tentam matar aquele que sonha ou algum representante de pais e irmãos, fazem com que a criança acorde por excesso de
angústia e necessite, em geral, da presença dos pais para voltar a dormir.
No entanto, quando André, aos 6 anos, começou a apresentar problemas
de sono, custando a dormir devido a uma hipervigilância em relação a
barulhos do vento que atribuía a ladrões e acordava com alguns pesadelos nos quais monstros queriam matá-Io, não deixei de sentir que nosso
trabalho finalmente estava evoluindo para uma dimensão mais edípica,
triangular. Nascido no interior do Rio Grande do Sul, a família mudara-se
para Porto Alegre em busca de tratamento para o filho. Por três anos,
vínhamos trabalhando em suas defesas quase autistas e num narcisismo
de características malignas, que fazia com que, sistematicamente, ignorasse minha existência própria, separada dele. Desde a primeira sessão,
tinha verdadeiros ataques de fúria à menor frustração, motivo pelo qual
foi levado para tratamento antes de completar 3 anos. Já havíamos evoluído para o reconhecimento do outro, e, agora, a presença do terceiro
aparecia com maior vigor. O atraso de linguagem estava bem melhor. “Tu
é a minha marida”, dizia, quando se deu conta que eu era casada. Numa
sessão de sexta-feira, brincávamos de jogar bolas de jornal um no outro
– eram nossas bombas de cocô. Assim, eu ficaria bem fedorenta e suja, e
meu marido não me quereria no fim de semana. “Mas eu vou querer”,
dizia André, com ar maroto, e ambos começamos a rir. Depois de alguns
meses, começou, novamente, a dormir bem, apesar das oscilações. Numa
época em que a sexualidade da fase edípica deveria estar sendo alvo de
maior repressão e sublimação, para preparar a entrada na latência, André
está a pleno vapor. Isso nos sinaliza um atraso para estruturar a latência
enquanto estado mental que dá conta das exigências escolares e sociais
A Noite e Seus Filhos (o Sono e o Falecimento) e Pesadelos ao ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 321-333, 2010
326
(exigências exogâmicas que vão retirando da endogamia edípica)
(URIBARRI, 1999).
Marta, aos 7 anos, tem pesadelos com um lobisomem que quer devoráIa. Desde seu primeiro ano, enfrenta uma separação litigiosa entre os
pais por sua guarda. A guarda está com a mãe, que se sente ameaçada
pelo pai. A relação entre ambos é muito tensa e persecutória. Marta bate
em colegas quando contrariada e não aceita limites na escola ou em casa.
O que é isso que devora Marta? O litígio entre seus pais, em que é disputada vorazmente por eles? Sua oralidade, cuja intensidade não consegue
controlar? Quando perde, enquanto jogamos, empaca e faz movimentos
com a boca e dentes como se fosse me morder. No maternal, mordia
outras crianças.
Outra situação nos traz Tiago. Aos 9 anos, em plena latência, faz uma
regressão após uma depressão da mãe. Fica fóbico, não quer ficar sozinho e começa com pesadelos com extraterrestres que querem levar alguém de quem gosta. Acorda assustado e acaba indo dormir no quarto
dos pais. Após trabalharmos em torno de seu medo de que a depressão
materna roubasse a mãe, ficando sem a mãe vitalizada, apareceram também conteúdos edípicos de se ver privado da mãe pelo pai. Quando deixou de ter os pesadelos, lamentou não ter mais essa desculpa para ir até
o quarto dos pais, pois gostava de ficar no colchão posto no chão, do lado
da mãe. A vivência de exclusão da cena primária tinha que ser melhor
elaborada para uma retomada mais tranquila de sua latência.
Aos 12 anos, Carlos acorda de um pesadelo em que foge de um monstro,
que também parece uma mulher que corre atrás dele pela casa. Está
apavorado e só se acalma quando encontra os familiares na cozinha.
Fecha a porta da cozinha e come com eles. Vem semanalmente a Porto
Alegre para se tratar, pois se sentia muito angustiado e queria ajuda.
Temos aqui a puberdade e as angústias persecutórias ligadas ao monstro-mulher que poderia representar a mãe que não quereria seu crescimento; seu medo de crescer e se deparar com uma mulher que o assusta
(como esconder dela seu medo do escuro?); sua parte feminina que o
apavorava com angústias homossexuais ou outros possíveis entendimentos. A tranquilização vem com uma regressão oral e endogâmica.
327
Ane Marlise Port Rodrigues
4 Breve Passagem pela Adolescência
A resistência em ir para a cama e a insônia aumentam com o crescimento, tendo seu ápice na adolescência.
Os adolescentes, com as mudanças hormonais, começam a dormir mais
tarde e menos durante a semana. O ciclo vigília/sono de adolescentes
apresenta um atraso em relação ao ciclo vigília/sono de crianças, e isso
leva a um distúrbio do sono relacionado ao ritmo circadiano. Ocorre, com
isso, sonolência diurna, dormir excessivo, prejuízo das exigências diurnas e necessidade de sonecas de dia (HOBAN, 2004).
A questão dos limites em relação à televisão, computador, som, video game,
telefone e estímulos variados é fundamental para que não se estruture
um distúrbio de sonolência excessivo (SPRUYT; O’BRIEN; CLUYDTS;
VERLEYE; FERRI, 2005).
Esse distúrbio se relaciona com o tipo de hábitos de dormir e falta de
limites a partir dos pais. Ruídos e luz prejudicam o ambiente para o sono
(HOBAN, 2004). A negociação em vários sentidos é parte da relação de
pais e adolescentes.
Além das mudanças hormonais e do corpo, o adolescente enfrenta uma
grande revolução emocional nessa aproximação com o mundo dos adultos (ABERASTURY, KNOBEL, 1984; MELTZER,1998).
Dentro das vicissitudes da separação-individuação, o adolescente poderia necessitar ver-se mais separado dos pais (ficar acordado, enquanto
estes dormem), bem como dormir ao longo do dia, revivendo a situação
passada de ser cuidado enquanto dorme, como quando bebê (ENCK1).
Ir dormir tarde, vencer o sono e a noite podem ter também um caráter de
ritual de passagem, como se fosse uma aventura no mundo dos grandes,
primeiramente acompanhados pelo grupo de pares do mesmo sexo, posteriormente, formando-se grupos mistos. Um dia, emergem do grupo os
casais de adolescentes. Na transformação do adolescente em adulto, novamente, buscará dormir acompanhado, na constante busca de suprir
1
ENCK, E. M. N. Informação verbal. Porto Alegre, 5 out. 2005.
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uma eterna falta, que nunca mais se alcançará preencher. Lacan nos
lembra da primeira mamada mítica, experiência de satisfação que inaugura o desejo de voltar a tê-Ia um dia (LANDER, 2000). A segunda mamada nunca mais será como a primeira, mas o desejo do encontro foi inaugurado. Freud (1905) já nos lembrava do efeito soporífico da relação sexual satisfatória, na qual é reeditada a satisfação do bebê que, após a
mamada, cai em sono profundo.
O comportamento em relação a festas também pode ser visto como uma
aproximação com o mundo da noite, onde acontece a “festa”. Em adolescentes de classe média e alta, observa- se, principalmente em festas de
15 anos das moças que, tanto comparece a turma que é convidada e
ganha a credencial para o ingresso, quanto a turma que vai “furar a festa” e tentar entrar até mesmo falsificando a credencial. “Furar a festa”
torna-se um programa de rapazes e moças, mas principalmente de rapazes, e parece que a aniversariante e seus pais, de certa forma, já contam
com os extras. Existe também a turma dos adolescentes que se vestem
para a festa (traje social), mas que não vão furar, vão para “fazer frente”:
ficar na frente do local da festa sem entrar (também podem ficar na
frente de danceterias, sem entrar).
Podemos pensar a festa como local de aproximação entre rapazes e moças e como metáfora da cena primária, da qual o adolescente se aproxima ou se afasta, bordeja ou receia invadir (KLOCHNER2).
Possivelmente, a partir da experimentação nesse tipo de cenário, vai criando maior confiança em sua capacidade genital, fortalecendo sua identidade sexual e se autorizando a ter a sua própria cena. Em alguns adolescentes, essa experimentação pode ser evitada fobicamente, bem como
gerar intensas angústias, favorecendo, por exemplo, o consumo de álcool
ou outras drogas nesse contexto.
5 Ceix e Alcíone (BULFINCH, 1965): as Alcíones3
Juno, irmã e esposa de Júpiter (ou Zeus), senhora do Céu e da Terra, mandou Íris (sua filha e mensageira dos deuses) à casa letárgica do sono para
2
KLOCHNER, L. Informação verbal. Porto Alegre, 5 out. 2005.
Alcíone: ave fabulosa, de canto plangente (triste, doloroso), considerada pelos gregos
como de bom augúrio, porque passava para fazer seu ninho no mar, quando calmo (HOUAISS,
2001, p. 143).
3
329
Ane Marlise Port Rodrigues
enviar uma visão à Alcíone, a fim de que ela soubesse que seu amado
esposo Ceix estava morto. Juno dispensava especial proteção às esposas
virtuosas.
Ceix havia morrido devido a uma tempestade em alto mar, ao tentar chegar ao oráculo de ApoIo para consultar sobre presságios terríveis que
passou a ter após a morte de seu irmão. Alcíone não queria que fosse,
tentara dissuadi-Io, pois fora tomada de temores que a faziam estremecer e empalidecer ao lembrar da violência dos ventos no mar, pois era
filha de Éolo, deus dos ventos. Quis ir junto, mas Ceix não permitiu. Não
sabedora de sua morte, rezava todas as noites e aguardava, ansiosamente, seu retorno.
Íris vai até o palácio do Rei do Sono. “Ali o deus se recosta e, em torno
dele, estão os sonhos, seus filhos, apresentando várias formas, tantas
quantas hastes têm os trigais, quantas folhas têm a floresta, ou quantos
grãos de areia têm as praias” (BULFINCH, 1965, p. 68). “Sono – disse ela –
tu, o mais gentil dos deuses, que tranquilizas os espíritos e curas os corações amargurados, Juno ordena-te que mandes um sonho a Alcíone, representando seu finado marido e todos os acontecimentos do naufrágio”
(BULFINCH, 1965, p. 68).
Sono chamou, então, Morfeu, um de seus inúmeros filhos, o mais hábil
em simular formas humanas, para executar a ordem de Íris. Depois, encostou a cabeça no travesseiro e entregou- se ao grato repouso.
Na sequência da fábula, Alcíone recebe a visão de Ceix e de sua morte.
Desesperada, diz que já não existe mais e que pereceu com seu Ceix:
“Desta vez, pelo menos, far-te-ei companhia. Na morte, se um só túmulo
não pode conter-nos, um só epitáfio conterá; se não posso misturar minhas cinzas com as tuas, meu nome, pelo menos, não será separado do
teu” (BULFINCH, 1965, p. 69).
Vai à praia pela manhã e vê que se aproxima um corpo boiando. De longe, reconhece o marido. Sobe nos molhes construídos para conter a fúria
do mar e se atira na direção do morto.
Alcione salta sobre esta barreira e (coisa maravilhosa que o pudesse
fazer) voa e, cortando o ar com asas que haviam surgido naquele instante, aflorou à superfície da água, transformada numa ave desventurada. Enquanto voava, saíam-lhe da garganta sons dolorosos, seme-
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lhantes à voz de alguém que se lamenta. Ao tocar o corpo mudo e sem
sangue, com as asas recém-formadas, tentou beijá-Io com seu bico
ósseo. Se Ceix sentiu o contato, ou se foi simplesmente a ação das
ondas, aqueles que contemplaram a cena não souberam dizer, mas o
cadáver pareceu levantar a cabeça... Pela benevolência dos deuses,
ambos os esposos foram transformados em aves. Acasalaram-se e reproduziram-se. Durante sete plácidos dias, no inverno, Alcíone choca
os ovos no ninho, que flutua no mar. Então, as rotas são seguras para
os marinheiros. Éolo, seu pai, rei dos ventos, impede que os ventos
sacudam as profundezas das águas. O mar fica entregue, durante esse
tempo, aos seus netos (p. 70).
No verso de Keats:
Maravilhoso sono! Benfazeja Ave que, no turbado mar da alma, Seu
ninho faz, até que o mar esteja Tranquilo e manso, e a natureza calma
(p. 70).
6 Comentários finais
O sono REM parece regulado por mecanismos bioquímicos ainda desconhecidos e deve ter funções básicas de sobrevivência que seriam
prioritárias à função relacionada com o sonhar (HANDFORD et aI., 1995).
Conforme nos lembra Bion (1988), a mente necessita de estados de suspensão do pensamento a fim de não entrar em exaustão. As atividades
de lazer e artísticas ajudariam nesse descanso.
Também o sono, retirando-nos do estado consciente, traz uma suspensão do pensamento de vigília. No entanto, o inconsciente e as pulsões
nele representadas nunca dormem e buscam, através dos sonhos e outras vias, algum acesso à consciência com auxílio de elementos que estão também no pré-consciente.
Assim, nesse turbulento mar da alma, cuja natureza nunca é completamente calma (só o seria na morte), tentamos aninhar um casal e seus
frutos, salvá-Ios de toda sorte de tempestades de ódio, ciúme, inveja. Poderiam, quem sabe, acasalar e fazer seu ninho dentro de nós, gerando
seus bebês, como fizeram Ceix e Alcíone. Meltzer refere-se a esse casal
331
Ane Marlise Port Rodrigues
como uma aquisição, configurando nossos objetos internos inspiracionais
(UNGAR, 2004). O projeto de dar vida a esse casal não está garantido,
porém pode sempre ser almejado. Alcançar essa possibilidade favorece,
a meu ver, uma condição de menos barulho interno e facilitaria o sono
repousante.
Portanto, mesmo no sono, a natureza calma ou revolta se revela. Se o
barulho não for intenso demais, permaneceremos dormindo, tendo sonhos. Ou, então, seremos acordados pelos pesadelos. Mas sempre teremos que lidar com inúmeros presságios. Oxalá, o barulho possa ser menos ruidoso e, assim, habitarmos com mais tranquilidade o palácio do
Sono, com seus inúmeros filhos, os sonhos.
The Night and its Sons (the Sleep and the Death) and
Nightmares Along Childhood
Abstract: Through an analogy with the myth about the Night and its sons (the
Sleep and the Death), the author highlights how the angsts regarding death or the
loss of control can invade the sleep and generate sleeping disorders in childhood.
Some nightmares are reported at different ranges. Its is also reported that the night
can be the scenario of a passage ritual from adolescence do adulthood, in the search
of the couple formation, from a group of teenagers. The author finishes with the
fable of Ceix and Alcione and relates the couple formation and the generation of
babies with the possibility of leaving together the internal parental couple, either
by giving one another pleasure, or procreating, or resting. This possibility is seen as
an enhancer of less internal noise and as a facilitator of relaxing sleep.
Keywords: Adolescence. Death. Infancy. Nightmares. Sleep.
La Noche y sus Hijos (el Sueño y Ia Muerte) y Pesadillas a lo
Largo de Ia Infancia
Resumen: A través de una aproximación con Ia mitologia sobre Ia Noche y sus hijos
(el Sueño y Ia Muerte), Ia autora resalta como Ias angustias de Ia muerte o Ia pérdida
del control pueden invadir el sueño y generar disturbios del sueño en Ia infancia.
Son relatadas algunas pesadillas en diferentes fajas etárias. También es referido
que Ia noche puede ser el escenario de un ritual de pasage del adolescente para el
mundo de los adultos, en búsqueda de Ia formación de parejas, a partir del grupo
de adolescentes. Termina con Ia fábula de Ceix y Alcione y relaciona Ia formación
de Ia pareja y Ia generación de bebés con Ia posibilidad de dejar junto a Ia pareja
parental interna, sea dándole placer uno al otro, sea procreando ó descansando.
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Esta posibilidad es vista como favorecedora de menos ruído interno y como
facilitadora del sueño reparador.
Palabras clave: Adolescencia. Infancia. Muerte. Pesadillas. Sueño.
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Néstor Greco
Caracterização da Puberdade:
pesquisa empírica e psicanálise
Artigo | O presente artigo é resultado de uma tese de mestrado em psicanálise, junto à Universidade nacional de La Matanza, Buenos Aires, Argentina. Foi apresentada em julho de 2004 e
defendida em novembro desse mesmo ano.
Néstor Greco
Analista de Crianças e Membro Didata da
Associação Psicanalítica Argentina.
Resumo: O autor propõe que a puberdade é uma etapa do psiquismo com uma
dinâmica e uma problemática específica, que não foi auscultada durante muito
tempo pela clínica e pela teoria psicanalítica, que a subsumia nos fenômenos da
adolescência. Na puberdade se produz (como correlato das mudanças hormonais)
uma eclosão pulsional que não pode ser tramitada pelo ego, que se subtrai pela
angústia. O incremento se dá nas pulsões eróticas em seus níveis oral, anal, uretral
e fálico, porém, ainda sem entrar na matriz edípica, na qual adquirirá a
sensualização, durante a adolescência. Esta elevação do pulsional também compromete as pulsões tanáticas. Ambas se expressarão ligadas na conduta agressiva,
a linguagem escatológica, as fantasias, os micro-acidentes, o incremento da rivalidade, etc. O desligamento terá como consequência o incremento do rigor do superego
e a consequente labilidade na sustentação da autoestima. Correm soltas as ansiedades referentes ao corpo, seu tamanho, funcionamento e conteúdos. Há uma busca inconsciente de restaurar o equilíbrio simbiótico narcisista com os pais préedípicos e, ao falhar essa operação, acrescentam-se as vivências de desamparo e de
separação. Começam os processos de desidentificação e se instauram novos eixos
de identificação com outros aspectos dos objetos.
Palavras-chave: Angústia de Separação. Corpo. Desamparo. Desidentificação. Identificação. Puberdade.
1 Introdução
Em minha prática profissional como psicanalista de crianças e adolescentes, muitas vezes tive que consultar bibliografia como uma fonte a
mais de conhecimento que se articulasse com a atividade clínica.
Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010
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Ao buscar tais referências bibliográficas, cheguei a formular-me a pergunta que se faz Alice em Através do espelho: “[…] a questão é saber se se
pode fazer que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes...” .
Com razão, pude comprovar que se usavam em forma indistinta as palavras adolescência e puberdade e eram tomadas como sinônimos: adolescência precoce, fim da latência, primeira adolescência, etapas precoces da puberdade,
período pré-puberal, etc. Esse confuso estado da terminologia reflete uma
importante imprecisão conceitual, que abarca um campo amplo e difuso
na conceitualização clínica e teórica.
Este foi meu ponto de partida para investigar a puberdade, esclarecendo
que centralizei meu estudo em sujeitos do sexo masculino, porque considero que a evolução da psicossexualidade diverge enormemente entre
os gêneros e isto faz com que devam ser estudados separadamente.
2 Especificidade da Puberdade
Considero a puberdade uma etapa evolutiva do psiquismo com
caracterísitcas específicas. Começa entre os nove/dez anos e se estende
até os treze/quatorze anos. Tem como referentes somáticos externos em
seu ápice a aparição da ejaculação no menino (e a menarca na menina).
Esse fenômeno pode articular-se ou não com o trânsito da pressão
hormonal global à predominância da zona genital, com prevalência de
fantasias edípicas incestuosas inconscientes. Essa predominância inaugura a adolescência e, nesta, ocorrerá a tarefa intrapsíquica do sujeito
que é a tramitação do Complexo de Édipo, a diluição da autoridade dos
pais e a busca de um objeto sexual exogâmico, conjuntamente com o
desenvolvimento dos papéis que lhe permitam uma inserção psicossocial
considerada adulta a partir dos cânones culturais vigentes.
Desejo ressaltar que no presente trabalho se dá ao termo puberdade uma
acepção eminentemente psicológica e torna-se interessante delimitá-la,
tanto a partir de sua antiga definição (FREUD, S., 1905; FREUD A., 1950,
1958; FENICHEL, 1934) que a assimilava à adolescência em toda a sua
extensão, como a nomenclatura proposta por Blos (1986, 1991), quem
reserva o termo para assinalar uma etapa do desenvolvimento somático
e utiliza o vocábulo pré-adolescência para nomear as mudanças na evolução psíquica do sujeito.
337
Néstor Greco
Nesse último caso, mesmo que a divisão seja esclarecedora, a adolescência funcionaria teoricamente à maneira de eixo que daria conta de fenômenos que girariam em torno dele. Nessa concepção ainda não configuraria a especificidade da puberdade, com um dinamismo psicológico único.
A puberdade delimita um campo psicodinâmico com características próprias e diferenciais. É uma etapa articuladora entre a latência e a adolescência. Os fenômenos pulsionais e estruturais que cursam nela dão uma
expressão fenomênica específica e, em seu conjunto, se atêm a uma problemática diferente da etapa que a precede e da que a prossegue.
Em linhas gerais, há coincidências com os autores que sustentam que as
etapas da puberdade e da adolescência são momentos de revisão de situações (habitualmente não tramitadas exaustivamente) da primeira infância, com um considerável poder de retificação (ou ressignificação).
Desejo abrir uma interrogação: ao mudarem as condições egoicas e os
sistemas homeostáticos narcisistas, tanto em nível individual como familiar, não nos encontramos ante uma situação com elementos inéditos
no curso da vida do sujeito, quem deverá apelar tanto a recursos já conhecidos, como a criar ou pôr em função outros novos para tramitálas? As vivências de estranhamento, a desidentificação, etc. aos quais
logo faremos referência, seriam alguns desses.
3 Puberdade Normal
Ademais dos sintomas ou condutas pelos quais o púbere “é trazido” ao
consultório – situação a qual acede habitualmente com boa disposição,
mas certa reticência – desenvolve, nessa idade, uma série de condutas
que podem ser relevadas ou não como problemáticas por seus progenitores, porém que chamam a atenção por sua especificidade e reiteração.
Os temores relacionados com seu corpo, expressados primariamente como
dores, aparecem também em conexão com o funcionamento de distintas
partes do mesmo: com a rapidez ou lentidão do crescimento (pelo, tamanho dos genitais, estatura, etc) que trazem embutidas múltiplas fantasias de deformidade, malformação e consequente autosegregação e isolamento. Une-se a isso mudanças no apetite, tanto a partir do ângulo
somático, como do psicológico; ingestas fenomenais podem ser alterna-
Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise
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das por períodos de perda do apetite, com o correlato de fantasias orais
de devoração como sinônimo de preencher o vazio angustioso ou a falta
de crescimento.
O prazer pela percepção dos odores corporais próprios, a emissão de sons
(flatos, arrotos), gritos, sons onomatopeicos se unem à exploração das
substâncias secretadas (cera das orelhas, mucosidades, cor da urina, etc.).
Inaugura-se uma sorte de busca minuciosa de “neoformações corpóreas”
– acne, cravos, manchas – de difícil acesso, mas que insumem interesse e
tempo na exploração ante o espelho.
A linguagem se torna procaz e escatológica, além de insuficiente para
transmitir informações, sobretudo, a pertinente às vivências do sujeito:
estados de exaltação lindantes com atitudes maníacas, estranhamento,
temores de morte; hipocondríacos, de malformação; tristeza, angústia;
marcado sentimento de menosvalia, de solidão, de abandono, falha de
carinho, derrota ou rebaixamento da autoestima.
Um paciente, Oscar, de doze anos, ocupa grande parte do tempo da sessão em contar piadas de judeus, cordobeses, ou de galegos. Ante uma
intervenção minha, responde:
Por quê tens que relacionar tudo!? Que saco! Lembra que no ano passado eu não te tratava de “tu”, mas de “senhor”? Lembra? Que idiota!
Te chamar de “senhor”... Bom, é que ainda não tínhamos estabelecido
uma confiança... Vou te contar uma piada: (conta várias de
galegos)...Agora vou te contar uma de judeu...Melhor não...vai que tu
é judeu e te ofendo... Bom, mas também, se é assim, azar! Vou contar
igual (e conta)... Hoje soltei um arroto com a boca fechada e logo lancei o ar a um companheiro... Tinha um cheiro!...Ai... que vais dizer?
Vai, vai, fala! Já vai fazer uma das tuas relações...!
Seus movimentos oscilam entre o rígido controle que dá uma atitude
hierática e o descontrole ou a defasagem entre distintas partes do corpo,
que desenvolve uma kinesis protopática.
Começam as preocupações por usar ou não determinada roupa e a manifestação de desejos pessoais a respeito da indumentária e das suas
escolhas. A conduta lúdica conserva vigentes as brincadeiras típicas da
latência: autinhos, soldadinhos, construções, colecionismo, jogos de sa-
339
Néstor Greco
lão regrados, que são alternados pela fascinação dos videogames e de longas e letárgicas horas passadas frente ao televisor ou os jogos de PC. O
interesse pela leitura, se houve, decresce, apesar de que começa a desenvolver-se o interesse epistemofílico ante temas que não são os incluídos
no currículo escolar.
Ressurge a atividade masturbatória: consequente, tenaz, sem ejaculação,
carente de suporte, fantasiada, porém rodeada de fantasias quanto ao
ato em si mesmo. Masturbação ainda não genitalizada, soma de excitação, prazer preliminar, sem capacidade orgástica, mais referida a
reasseguramentos do corpo do que à triangulação edípica . Prazer de órgão vivido por um ego inundado de tensões.
A outrora plácida vida familiar se vê alterada: a violência fraterna adquire proporções nunca vistas, nem esperadas, ciúmes e inveja em relação
aos irmãos mais velhos, denegrimento e desprezo em relação aos menores, veiculizados pelo insulto, a intemperância e a ação.
Em geral, pode-se observar uma aproximação temporária à mãe, que brevemente sustenta a ilusão de poder compreender o seu filho (que está na
“idade da bobagem”) e de ser agora a tradutora entre ele e o mundo. No
entanto, como reza o adágio latino “traduttore-tradittore”, pouco depois, é
abandonada e execrada. Diferentemente de Blos (1991), não se pode comprovar uma aproximação ao pai, nem uma busca de sua companhia ou
cumplicidade. Este é posicionado como distante, ausente, dominante e
frustrante. Oscar, o paciente anteriormente citado, desenvolveu fortes
transferências de idealização, com busca de proteção e cuidado. Porém,
estimo que estas, de corte infantil, é claro, têm como sentido a busca de
interlocutores mais distantes do núcleo familiar originário. Considero que
este fenômeno se deve aos movimentos pulsionais e às mudanças de
significação que afetam tanto ao sujeito como a seus objetos primários.
Formam parte dessa situação as mudanças nos sistemas de ideais e valores da latência. Ponto de fratura: o abandono ou afrouxamento do ritmo familiar estabelecido quanto aos valores culturais – religiosos. Assim,
o menino do colégio católico – ante o horror e a estranheza dos pais – se
negará aos ritos da confissão e da missa dominical, tanto como o filho do
judeu tomará como estandarte reivindicatório seu bar-mitzvá e sua concorrência ao templo, estampando aos estarrecidos pais sua falta de res-
Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise
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340
peito à tradição e à religião. Essa atitude não perdurará: no funcionamento do inconsciente rege a magia contaminante: qualquer tentativa
de aproximação parental provocará uma notória baixa no interesse sobre o tema em litígio. Diferentemente do adolescente, que busca ativamente sua participação em grupos de pares e do latente, que tem uma
sorte de pertencimento adscrito ao seu grupo escolar, do qual destaca a
alguns como amigos, o púbere deve ser o realizador solitário de ritos que
o demarquem.
Tanto no exterior, como na vida psíquica desenvolvem-se múltiplas fantasias de caráter agressivo: o sadismo corre solto e grande parte das relações interpessoais se resolvem na equação submeter-ser submetido; ganhador-perdedor, que leva a coligar-se, em forma esporádica, com pares,
(grupos, gangues, patrulhas escolares) contra outros pares, à luz do
narcisismo das pequenas diferenças. Referentes como o time de futebol,
a cor da pele, a altura, a orientação religiosa, são desculpas fortuitas e
sólidas para instaurar uma sorte de ataque defensivo para manter a própria e precária estabilidade. A vida social se alterna com momentos diários de retraimento e ocultamento. As fantasias que comprometem a estabilidade narcisista não podem colocar-se em palavras em uma espécie
de terrível confissão dostoievskiana ante o amigo mais querido (ao qual
também o ligam profundos sentimentos de inveja e competição).
O já referido paciente, Oscar, cursa a sétima série e diz, com desgosto
enquanto desenha displicentemente um sistema planetário:
... E pensar que na escola me tomam como um cara bárbaro... Claro,
eu me dou bem. Defendo os meus amigos das besteiras das professoras; eu me destaco... Só que me dói a cabeça todas as manhãs, quando
me levanto... A escola é um saco, uma prisão... Antes eu gostava: brincava com meus amigos, era legal. Porém, agora te exigem mais... Eu
me cago de medo dos exames... A única pessoa para quem eu conto é
para ti. Meu pai começaria a dizer que tenho inteligência de sobra e
minha mãe faria cara de preocupada ou de histérica... Meus amigos
tirariam com a minha cara... Viste? Pareço Robocop, estou feito metade
de uma coisa e metade de outra...
Outra via de expressão é a prevalência, que começa a tomar na vida do
jovem sujeito, as atividades esportivas. Na Argentina, o futebol e, em
menor medida, o rugby são os esportes de equipe que os convocam e
341
Néstor Greco
provocam frequentes lesões corporais. O esporte é vivido com paixão,
fanatismo e necessidade de protagonismo e reconhecimento.
A relação com as meninas, no manifesto, se caracteriza por compartilhar
momentos de atividades comuns, muito seletivas como uma saída a um
cinema, uma lancheria, ou, esporadicamente frequentar bailes. Trata-se
de um despregar de pseudo-sexualidade imposta por pressão cultural, a
partir da necessidade de consumo como valor social de nossos tempos,
alternada por frequentes comentários denegridores, gozações com os
colegas que se animam a se aproximar das meninas, evitação a realizar
tarefas escolares em grupos mistos, etc. O que subjaz é um desejo e um
temor de aproximar-se ao desconhecido e diferente que, por razões obscuras ainda, intranquiliza, porém que é necessário apreendê-lo.
A temporalidade adquire singulares características ao começar a regular-se desde o próprio sujeito e já não a partir dos pais. A pontualidade
rigorosa coexiste com a vivência que cada experiência/entrevista/consulta é um episódio em si mesmo, vivido como um contínuo e sem noção
de processo. A dimensão de futuro ainda é sumamente vaga. O púbere,
atado à imediatez da tensão pulsional, busca seu autocontrole, sem o
apoio protetor parental.
A escolaridade, que era transitada sem problemas, se converte em uma
angustiante tarefa, de cotidiana resolução, sem que fique inscrito na
memória, à maneira de reasseguramento, o resultado de boas
performances, tanto passadas, como atuais.
Qual labirinto kafkaniano o púbere vive no sinistro clima do ameaçador
que se repete. O fracasso está por trás de cada amanhecer.
Os personagens idealizados, nos quais busca um modelo de identificação mudam. Os outrora heróis das revistas e as séries infantis já não
satisfazem. Tin Tin, Asterix (pequenos protagonistas de maravilhosas
sagas) são os novos heróis, que compartilham o privado Olimpo com o
sujeito mesmo, que se identifica – chips e multimídias mediante – com
guerreiros extraídos da TV ou do software nos ferozes videogames e que
permitem, por um tempo, sustentar a ilusão de uma identidade poderosa e de um autoabastecimento gratificante.
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Paralelamente, o mundo de interesses começa a ampliar-se e surgem
inquietudes acerca de injustiças sociais, maus tratos a pessoas e animais
(atitude ideológica que pode não ter nenhum correlato com a conduta
despregada no interjogo com a realidade exterior). Aparece o desejo de
conhecer por si o mundo fático cotidiano/ nomes de ruas, linhas de ônibus, preços de artigos, etc. Surgem também acirradas críticas aos que
são considerados comportamentos anti-sociais inadequados ou injustos
dos adultos.
Por último, episódios linderos à crueldade com animais podem alternar
com outros, no quais predomina o desejo de ter para sua propriedade
algum animal doméstico (peixe, hamster, cachorro, etc.) que é objeto de
múltiplas preocupações e cuidados.
4 Motivos de Consulta na Puberdade
A experiência clínica me mostrou que são várias as vias de encaminhamento mais usuais desses pacientes. Cada uma delas filtrada pela inevitável intervenção familiar, que é fonte de consulta independente.
1) Através dos médicos pediatras ou hebiatras: os pacientes apresentam
quadros de cefaléias, dores de tórax ou abdominais, que são descritas de
forma difusa, incompleta e insatisfatória para uma aproximação
semiológica. Dores migrantes e evanescentes por diferentes partes do
corpo, que transitam, desde o agudo ao silencioso, as quais costumam
considerar-se causa de dificuldades no rendimento esportivo, que começa a ser prevalente nessa idade. Em relação a essa atividade se
incrementam os golpes, pequenos acidentes e fraturas ocasionais. Por
vezes, aparecem estranhas febrícolas e dores “perto do coração”, em
muitas ocasiões, fruto de mentiras conscientemente elaboradas pelo sujeito para evitar alguma situação de temor que não pode enfrentar. Também são frequentes transtornos do sono (pesadelos) ou da alimentação
(bruscas mudanças no apetite), porém sem chegar a cristalizar-se em
uma conduta habitual.
2) Enviado por professores ou gabinetes psicopedagógicos: ao redor dos
dez, doze anos, irrompem dificuldades escolares que não coincidem com
o anterior desempenho do sujeito (descarto as já pré-existentes para um
modelo mais claro da etapa) e que não têm correlato com os testes
343
Néstor Greco
psicodiagnósticos de inteligência. Habitualmente as funções mais comprometidas são a atenção; a compreensão de pautas socio-culturais. Há
um notório desinteresse pelos estudos dos temas do currículo escolar.
Também é motivo de consulta frequente o incremento da agressão no
âmbito escolar, tanto com seus pares, como com a equipe docente, a qual
a criança se enfrenta numa atitude desafiante, muitas vezes, até graus
extremos. Assim Manuel, de onze anos, é trazido à consulta por desenvolver uma atitude desafiadora e oposicionista com seus professores na
escola. Eram frequentes os ataques de ira, que se traduziam em agressões verbais e físicas a seus companheiros. Por essas razões era rejeitado
e segregado por seus pares, a quem se referia denegrindo-os. Em sua casa,
havia se autoimposto um estrito regime alimentar, que seguia rigorosamente, apesar de enfrentar-se com as reprimendas e castigos corporais
por parte do pai. Em suas verbalizações, expressava ideias megalômanas
de fortaleza física e poder destrutivo, ao mesmo tempo tinha uma profunda preocupação por sua baixa estatura. Tratava de dissimulá-la, usando sapatos três números maiores que o necessário, além de vários pares
de meias. A elaboração da fantasia de estar preso em um corpo pequeno
e descontrolado foi um passo importante em sua análise.
3) Por parte do grupo familiar. Aqui os caminhos se multiplicam. Por um
lado, a família pode fazer eco do revelado pelos pediatras ou pela escola
ou, por outro lado, a consulta se deve a:
a) um incremento preocupante das lutas fraternas que se convertem em
virtuais e repetidas batalhas a campo aberto com o irmão do mesmo
sexo ou desprezo pelo irmão do outro sexo;
b) dificuldades escolares: porém, não em relação ao rendimento em si,
mas por uma atitude de angústia e temor por não poder sustentar a
performance escolar ou não render segundo as expectativas familiares
(reais ou fantasiadas) no âmbito educativo;
c) dificuldades na interação familiar: condutas de rebeldia, oposicionismo,
enfrentamento, teimosia, discussões violentas e até esboços de
enfrentamento físico, com uma ou ambas figuras parentais. A esse respeito, pude observar a realização de alianças variáveis com um dos progenitores, em detrimento do outro e vice-versa. Porém, essa dinâmica é
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de signo mutável e pode alternar-se pelo repúdio ou submissão massiva
a ambos;
d) percepção dos pais de situações de sofrimento do filho: terrores noturnos, vergonha pelo uso de óculos ou aparelhos ortodônticos,
verbalização de temores a não crescer, ficar baixinho, etc. Mudança de
hábitos de alimentação (voracidade ou exigência de regimes estritos) de
sono e vigília: insônia noturna alterada pela sesta; de higiene; negativa
de seguir com os hábitos de limpeza vigentes desde a latência, etc.
5 Eclosão Pulsional
Estima-se que se produz um novo surto de pulsões orais, anais, uretrais –
fálicas e/ou tanáticas em um lapso menor que na primeira infância e
sem sequência de predomínios alternantes. Isto é, na puberdade não há
uma zona erógena retora e em todo o corpo se inscrevem os diversos
avatares pulsionais. O começo da puberdade está marcado pela eclosão
de forças pulsionais que estavam silenciadas durante a latência e predominantemente comprometidas com a sublimação. O final da puberdade
coincidirá com a incipiente primazia do genital e daí a reinstalação do
Complexo de Édipo.
No aparelho psíquico se produz um êxtase libidinal e tanático que não
encontra uma instância interna – ego – que a possa processar e tampouco
objetos (sua representação intrapsíquica) em que possa depositá-la.
Os objeto nutrientes -incestuosos- de identificação, com os quais o aparelho foi se construindo e estabilizando até o momento são virtualmente
avassalados pelas correntes pulsionais.Tal situação poderia se caracterizar como uma sorte de insuficiência do ego, ou situação traumática por
impossibilidade de tramitação, que apresenta diferença com outros movimentos pulsionais dentro do aparelho. Por certo, não é produto de libido retraída dos objetos e que se instala nos objetos da fantasia (introversão,
neurose) nem que vai como regressão ao ego (psicose) e não há como
nesta uma diluição plena do mundo representacional. Nem libido narcisista que foi depositada em um objeto, como no caso do enamoramento.
Como neles, há certa diluição da realidade, perda da representação de
objetos. Em forma complementar, há drenagem massiva pulsional sobre
outros aspectos dos objetos. Não há vivência de fim de mundo (psicose),
345
Néstor Greco
apesar de que lá um certo, certo grau de megalomania, nem
desinvestimento do mundo em prol de um objeto (enamoramento). Acredito que o mais frequente é observar uma “vivência de fim do ego”, como
expressão de colapso da homeostase narcisista.
A puberdade se caracteriza pela presença de um montante pulsional flutuante – tóxico – que se expressa à maneira das neuroses atuais, de
carácter hipocondríaco, com mal-estares vários, astenia e certos equivalentes como a neurose de angústia.
Outro exemplo de Oscar: desenha personagens com grande expressão de
sofrimento, olhos injetados de sangue, os cabelos em pé e grandes orelhas. O grafismo da cara ocupa toda a página. São rostos sem corpo. Enquanto desenha, diz:
Outra vez estou mal e não sei por quê! Não tenho vontade de fazer as
coisas, quero só dormir toda a tarde e tenho medo de dormir todas as
tardes... Depois de comer sinto ruídos na minha barriga. Isso me assusta... Terei algo grave? Li que podem crescer coisas, tumores. Creio...
não sei... (seus olhos enchem-se de lágrimas)... Não entendo... E lá em
casa, sabem ainda menos...
O ego, mesmo sendo mais maduro que na primeira infância, é desbordado
e carece de capacidade de psicologização (união da pulsão à representação: possibilidade de busca da ação específica) e então desenvolve várias
manobras defensivas. Uma delas é a masturbação, como descarga, busca de alívio de tensão. Porém, nesta etapa ainda ocorre com as mesmas
características da infância. Assim, ao dizer de Freud (1938), é insatisfatória
em si mesma. Falha justamente na reação de orgasmo para a satisfação
(“esperando sempre algo que nunca veio”) se aparentará em equivalentes em outros âmbitos: como ausências, estalidos de risos e pranto, etc.
“A sexualidade infantil voltou a fixar aqui seu arquétipo” (FREUD, 1938).
Ou seja, nos encontramos com uma masturbação ainda sem apoio na
fantasia, mero prazer de órgão, sustentada mais em imagens provenientes da cultura do que nutrida pelas fantasias incestuosas. Manobra de
reconhecimento corporal ou, melhor dito, de conhecimento de
intranquilizadoras mudanças corporais que reeditam vivências de desamparo, inermidade, estranheza, ante forças das que não se pode fugir
pois provêm do interior.
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6 As Identificações – a desidentificação e o
sentimento de identidade
A situação do púbere é diferente da da criança da primeira infância. Nesta última, ante os estímulos de um id pulsátil, nos encontrávamos com
um ego em formação, que “sentia as aspirações (do id) como necessidades...” (FREUD, 1923) e que – via identificação – se oferecia ao id como
subjugado do objeto. No púbere, pelo contrário, nos encontramos com
um ego mais solidamente constituído, com um repertório de identificações primárias e secundárias (pós-edípicas), antigas decantações de outrora cargas de objeto encaixadas: e um ideal do ego incipiente, provisório, sujeito -como muitos componentes do ego- à vincularidade com os
pais, como correlato obrigatório da dependência infantil.
Na sessão, Oscar mostra-se reticente e desconfiado. Assinalo-lhe seu estado. Responde:
Estou brabo com a minha mãe... hoje veio histérica para casa, ficou
braba comigo e me bateu... Me pediu que fizesse um trâmite e eu lhe
perguntei se era tão importante... Então me disse que eu nunca colaborava, eu fiquei furioso e lhe disse que tinha minhas ocupações e
então ela disse que nunca mais ia me fazer favores e me bateu (enquanto fala, corta em pedacinhos um barco feito com plasticola)... Já
estou cansado de obedecer e de ser o menino bonzinho! No fim, a
gente sempre tem que estar agradando eles...
Na puberdade, junto com a grande eclosão pulsional, se produz um afrouxamento do encaixe conquistado durante o pós-Édipo infantil (latência).
Leva-se a cabo um duplo processo: por um lado, certos aspectos das identificações até o momento “mudos” (isto é, não investidos nem participantes no interjogo estrutural) são catexizados e tomados como novos eixos
de referência para a estruturação do sujeito. Por outro, iniciam-se os processos de desidentificação -conceitualizados por Baranger et. al (1989) e
Kancyper (1990) – com a consequente defusão pulsional e seus ulteriores
destinos. Ambos processos produzem profundas mudanças na estrutura
do ego e do ideal do ego.
A puberdade pode representar-se como um fotograma de um filme: nele
cobram prevalência os fenômenos de sobrecarga, desunião e desligadura
347
Néstor Greco
que, nesses momentos, dão conta da dificuldade na autoavaliação das
possibilidades e potencialidades, assim como um marcado déficit na avaliação do desempenho escolar e na estimação do tempo cronológico.
O púbere se acha preso na angústia que sente ante as figuras parentais e
na necessidade infantil de contar com eles como referentes do que lhe
acontece, do que lhe angustia e que não compreende. Tarefa, como logo
exporei, destinada ao fracasso. As situações de sobrecarga, desunião e
desligadura irão sendo tramitadas logo, ao longo do fotograma
subsequente: a adolescência, etapa na qual, para poder distanciar-se,
primeiro há que realizar uniões, e que se caracterizará pela crescente
primazia do genital e pelo caminho no sentido de regulações autônomas
da autoestima. Na latência, o fotograma antecedente, está caracterizado
o predomínio da repressão e/ou sublimação dos impulsos pré-genitais e
a atuação exitosa e contínua dos mecanismos de defesa, que têm firmemente costurada a pulsão e a utilizam como energia de trabalho para a
tarefa de socialização e aprendizagem. Dessa maneira, a autoestima do
sujeito é predominantemente heterônoma e basta com satisfazer as exigências escolares e certas normas de bom comportamento social, que
estão fortemente apoiadas na resolução do Complexo de Édipo infantil.
Até o momento, demos conta das vicissitudes das pulsões eróticas na
etapa que se está estudando. Deve-se ilustrar o que acontece com a pulsão
de morte.
Pode-se considerar que os destinos de Tánatos, em virtude desse processo, são:
a) volta a ligar com Eros para novas identificações;
b) dirige-se ao superego, para fazê-lo mais severo (eloquente expressão
nos vários terrores da puberdade: ruptura do equilíbrio tensional egosuperego, autoestima ameaçada constantemente);
c) volta ao exterior: expressões de crueldade e sadismo, típicas da idade:
em verbalizações e condutas nas quais predomina o tom denegritório e
maníaco.
Após expressar o que sucede com as pulsões, deve-se anotar as mudan-
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ças acontecidas no objeto e alguns mecanismos do aparelho que cobram
prevalência: o objeto, posicionado como modelo, sofre uma mudança de
investidura. Como se uma representação coisa fosse investida por diferentes atributos, segundo o estado pulsional do sujeito (peito é-pode ser
: eu-não-eu-odor-gosto-percepção visual = baixa de tensão) e esta mudança tem que ver intimamente com a historicidade vincular de satisfações e frustrações que houve na vida do púbere com os objetos parentais
e que agora passa a ser revisada. “Vinho novo em odre velho”, caracteriza
a situação. Às regressões temporais lhes agregam os processos mencionados (desidentificação, reestruturação de identificações, com um primeiro momento de desencaixe entre as já vigentes) e creio que isto mostra um elemento de novidade no psiquismo. Ademais das reedições e
recaptulações, nos encontramos aqui com reestruturações de suma importância para a constituição mais acabada do aparelho psíquico.
7 Objetos Parentais
Na parte anterior, me referi à hipótese da transformação do objeto como
modelo. Desejo agora refletir sobre o objeto como auxiliar. Quero destacar que de suas posições de objeto sexual e de rival não me ocuparei
neste contexto, pois creio que pode ver-se com maior riqueza de matizes
durante a adolescência.
Tomei como movimento inicial da puberdade a eclosão pulsional que
sofre a criança e que inunda seu ego. Poderíamos dizer que em uma situação bastante similar se encontrava nos primeiros meses de sua vida.
Neles contava com sua mãe (objeto auxiliar) quem, ao dizer de Gutton
(1991):
[...] imprime sua libido sobre o corpo biológico de seu recém-nascido.
Contribui a traçar-lhe os contornos espaciais e os ritmos, cria uma
excitabilidade em todos os lugares do corpo da criança. As zonas
erógenas são lugares do intercambio entre o somático do lactante e o
desejo materno...na puberdade, a desaparição da excitação originada
nos pais deixa um vazio singular, nova passividade..., perda narcísica.
É um verdadeiro ataque contra a realidade: a realidade excitante...
Não há dúvida de que entre essa mãe que “imprime sua libido” e a que
facilita a falta de “realidade excitante” há profundas mudanças que
349
Néstor Greco
interjogam com o sujeito. A mãe da primeira infância continua a simbiose
física da gestação em uma simbiose psíquica extrauterina. Nessa simbiose
está capacitada para apreender as necessidades emanadas do corpo do
lactante – capacidade de rêverie (BION, 1963) – decodificá-la e realizar a
ação específica que baixe a tensão. Essa relação transcorre por canais
vinculares preferentemente pré-verbais, empáticos e assomam a uma
homeostase tensional satisfatória para ambos membros do binômio. Logo,
esse tipo de compreensão vai se esgotando, cegando e é substituído pelo
código da palavra (humanização do sujeito) que cobra importância cada
vez maior. Este código, essencial para o humano, se baseia na ação de
contracargas e derivados simbólicos e do ajuste a convenções que vão
além do familiar, ligadas a sistemas de sinais sociais.
Em torno do meio da sessão, tenho que segurar um paciente, quem tentava chutar-me, bater-me e cuspir-me. Assinalo sua necessidade de contato corporal comigo para sentir quais são seus limites, suas forças e seu
próprio corpo. A tentativa de agressão continua, mas agora tingida de
humor; é mais um jogo de forças que o desenvolvimento de um interesse
lesivo. Diz: “Filho da puta!!! Como me agarraste! Mas já vou me soltar e a
vingança será terrível! Cretino!”. Ao soltá-lo, ainda respirando em forma
agitada, me diz: “Se meus pais me vissem fazendo isso! Lá em casa não
pode ser assim... Lá só o que se tem que fazer é estudar e estar com cara
de bunda...! É um tédio...!”.
Ao chegar à puberdade, o sujeito, pleno de tensões, assim como o lactante,
aproxima-se da mãe para que volte a cumprir com essa ação
decodificadora de antanho. Entretanto, a simbiose já se cortou, as vias e
canais de comunicação são outros e, ademais, uma densa história vincular pesa entre ambos. Ainda no melhor dos casos, a mãe atravessa a crise
do início da adolescência (PÉREZ, 1976) que a enfrenta a suas próprias e
importantes reacomodações narcísicas e já não é o receptor reclamado
pelo filho. A situação se torna mais complexa, pois, nessa época, colidem
as expectativas postas na criança, o que foi cumprido – aparentemente –
por este durante a latência e os primeiros rangidos de desacoplamento
que surgem ante este “não entendimento”, devido ao surgimento de um
repertório, confuso ainda, mas próprio, de desejos e necessidades que
não refletem o que havia sido depositado pelos pais nele. Este é um dos
momentos em que o equilíbrio narcisista ou familiar se quebra, como
um espelho e, se exploramos minuciosamente, veremos que se produz
Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010
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por caminhos já pré-determinados. A criança da infância, ego ideal
revivido dos pais, inicia a cerimônia de seu enterro.
O sujeito retrai-se do contato com a mãe por frustração libidinal – a diferença de Blos (1986), quem afirma o terror à fusão com a mãe arcaica má
e a aproximação ao pai – e o pai protetor pré-edípico começa a desmoronar-se: ele tampouco consegue significar o que sucede ao sujeito. Em
breve se converterá em um rival. Há uma situação de desamparo e fragilidade, ruptura de equilíbrio narcisista. Dor, fúria, colapso de autoestima.
O incremento da rivalidade fraterna, que se instala quase em primeiro
plano, tem uma dupla sustentação: por um lado, uma sorte de luta, contato homossexual fraterno, como estação obrigatória em seu reverso, para
logo poder acessar a competição parricida edípica. Uma confrontaçãoreunião entre pares preparatória para empresas de maior envergadura e
risco posteriores. Por outro lado, uma “nova edição” da novela familiar do
Édipo infantil; os irmãos são a prova cabal de que a mãe – tão necessitada em uma época – já não amou o suficiente e instaurou o abandono
pelos irmãos. O púbere deve também enterrar sua ilusão, ele “tem” (ou
não tem) uma mãe, não “é” a mãe. Sabemos que o “ter” é posterior, volta
de contragolpe ao “ser”, pela perda do objeto (FREUD, 1938). O dito anteriormente seria a expressão dos objetivos da investigação: agudização da
rivalidade e competição e dificuldades na interação familiar.
Creio que a angústia predominante nessa etapa é, mais do que de castração –patognomônica da adolescência – angústia de separação ou de desamparo e alude à incompletude narcisista com a qual o sujeito tem que
enfrentar-se. A ruptura da ilusão de união satisfatória com os pais nutrientes pré-edípicos amplia a tensão entre o ego e o ideal (ao mesmo tempo em que tende às condições de sua internalização) com os colapsos
que descrevi e impulsiona o sujeito (ou isso é pelo processo de crescimento mesmo) à sexualidade fálico/genital e às representações incestuosas do Édipo.
8 Discussão
Considero que a investigação realizada pode dar conta cabal da delimitação semântica e conceitual do termo puberdade (no jovem do sexo masculino), enquadrada entre a latência e a adolescência, possuindo características próprias e distinguíveis entre si.
351
Néstor Greco
Este novo estado do conhecimento permite salvar as confusões e as pobres delimitações conceituais existentes na literatura psicanalítica, permitindo, ademais, realizar uma abordagem clínica mais ajustada ao trabalho psíquico do paciente.
A esse respeito, basta-nos citar a Arminda Aberastury et al. (1984), quando se referem: “[...] as mudanças psicológicas que se produzem na adolescência e que são o correlato de mudanças corporais levam a uma nova
relação com os pais, o que implica fazer o luto da relação com os pais da
infância, o luto por seu corpo de criança e por sua identidade infantil”. É
um processo longo e penoso; o corpo infantil desaparece para sempre. E
é o luto pelo corpo o que desencadeia todo esse processo...
Aberastury não diferencia nenhuma etapa mediadora entre a latência e
a adolescência – a puberdade, com as caracterísitcas que assinalamos –
e, dessa maneira, toma como um processo iniciador o luto pelo corpo
infantil, o que, na realidade, é o final de um processo que começou com a
eclosão pulsional, que trouxe consequências importantíssimas para o
sujeito.
Segundo a nomenclatura kleiniana da autora, a criança atravessaria uma
situação esquizo-paranoide, em virtude das vivências de alheidade, descontrole dos impulsos e estranhamento de si mesmo, que deve ser convenientemente interpretada para poder abrir espaço ao posterior trabalho de luto, a ser desenvolvido na adolescência, propriamente dita, segundo sustento neste estudo.
Characterization of Puberty: empirical research and
psychoanalysis
Abstract: The author postulates that puberty is a phase of the psyche with a
dynamics and specific dilemma that, for a long time, had not been investigated by
clinical psychoanalysis and by the psychoanalytic theory, which used to relegate it
to phenomena of adolescence. At the pubertal stage, as a result of hormonal changes,
the newly developed drive cannot be processed by the ego, which is then subtracted
by anguish. There is a boost in erotic drives at the oral, anal, urethral and phallic
levels, bypassing the oedipal matrix, in which sensualization will develop during
adolescence. This increase in the drive also affects death drive. Both are expressed
by aggressive behavior, by scatological language, by fantasies, by microaccidents,
by the higher intensity of rivalry, etc. Detachment will result in excessive harshness
Caracterização da Puberdade: pesquisa empírica e psicanálise
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 335-356, 2010
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of the superego and consequent lability in the support of self-esteem. The anxieties
associated with the body, with its size, its functioning and its contents run free.
There is an unconscious quest for restoring the narcissistic symbiotic balance with
the preoedipal relationship with parents and, when this operation fails, helplessness
and separation are experienced. That is when disidentification processes are
triggered and new mechanisms of identification with other aspects of the object
are introduced.
Keywords: Body. Disidentification. Helplessness. Identification. Puberty. Separation
Anxiety.
Caracterización de la Pubertad: La investigación empírica y el
psicoanalisis
Resumen: El planteo que se realiza es, que la pubertad es una etapa del psiquismo
con una dinámica y una problemática específica que no fue auscultada durante
mucho tiempo por la clínica y la teoría psicoanalítica que la subsumía en los
fenómenos de la adolescencia. En la pubertad se produce (como correlato de los
cambios hormonales) una eclosión pulsional que no puede ser tramitada por el Yo,
que se anega de angustia. El incremento se da en las pulsiones eróticas en sus
niveles: oral, anal, uretral y fálico pero aún sin entrar en la matriz edípica, en la que
adquirirá la sensualización, durante la adolescencia. Esta elevación de lo pulsional
también compromete a las pulsiones tanáticas. Ambas se expresarán ligadas en la
conducta agresiva, el lenguaje escatológico, las fantasías, los microaccidentes, el
incremento de la rivalidad, etc. La desligación tendrá como consecuencia el incremento de la rigurosidad del Superyo, y la consecuente labilidad en el sostenimiento
de la autoestima. Campean las ansiedades referentes al cuerpo, su tamaño,
funcionamiento y contenidos. Hay una búsqueda inconciente de restaurar el
equilibrio simbiótico narcisista con los padres preedípicos y al fallar esto se
acrecientan las vivencias de desamparo y de separación. Comienzan los procesos
de desidentificación y se instauran nuevos ejes de identificación con otros aspectos
de los objetos. Los mecanismos de defensa más usuales son la disociación,
proyección, omnipotencia, idealización, negación y transformación en lo contrario.
La evolución transita hacia una mayor capacidad de verbalización, acercamiento
maníaco a la sexualidad, búsqueda de ideales fuera del grupo familiar y paulatino
reemplazo de las fantasías crueles por fantasías sexuales, aparecen deseos de “ser
grande” y tentar el cumplimiento de roles culturales de los adultos. El aparato psíquico, una vez más compelido por el apremio de la vida, complejiza su
funcionamiento. El niño, otrora dependiente de sus progenitores, se va desplazando
de ese lugar. Le dice la Duquesa a Alicia en el País de las Maravillas (CAROLL, 1865):
“[...] Nunca trates de ser distinta de como te ven los demás, porque lo que seas o
hayas sido nunca será otra cosa que lo que les hayas parecido a los demás...”. La
pubertad inicia la ruptura de ese espejo.
Palabras clave: Angustia de separación. Cuerpo. Desamparo. Desidentificaón.
Identificación. Pubertad.
353
Néstor Greco
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Néstor Jorge Greco
Paraguay 1847, P.B.
C1121ABA Buenos Aires – Argentina
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357
Edmundo Saimovici
Interpretação e Adolescência
Artigo | Relato apresentado no XVII Congresso Latino-Americano de Psicanálise, FEPAL, São
Paulo, 1988.
Edmundo Saimovici
Analista de Crianças e Membro Didata da
Associação Psicanalítica Argentina.
Resumo: O ato de interpretar nos tratamentos com adolescentes deve ser abordado no marco de um amplo espectro de situações; algumas foram estudadas com
base em diferentes esquemas referenciais e outras, em diferentes patologias. Concordamos com os autores que consideram o adolescente vivendo uma etapa com
características próprias. Os eixos principais que se entrecruzam em grau variável
no campo analítico no tratamento com adolescentes e que geram angústias específicas são, como já dissemos: a oscilação edípica-pré-edípica, a dualidade independência-dependência, o par idealização-desidealização e o par lutos pela perda
da infância e bissexualidade versus elaboração do crescimento corporal e do desenvolvimento da genitalidade. A tarefa interpretativa (para a qual o timing, que
depende da capacitação específica nesse tipo de tratamento, é fundamental) é composta de múltiplas possibilidades de abordagem, cuja finalidade última será conseguir a transformação da patologia do paciente adolescente e a tolerância a uma
etapa conflituosa que, por si, é difícil. Assim, nominar ansiedades e afetos desconhecidos ou novos, utilizar intervenções não-interpretativas como sinalizadoras,
pedidos diretos, assumir papéis, interpretação de jogos, desenhos, discriminações
de atitudes contraditórias, certificações consensuais com respeito à realidade, conversar sobre assuntos de interesse do adolescente, estão implicados com a interpretação transferencial no momento oportuno das diferentes projeções que o paciente adolescente faz desde o seu lugar tanto edípico como pré-edípico. É indispensável conhecer a dinâmica pai-filhos e o entorno social e educacional do paciente para poder operar com eficácia. Nas patologias severas, podemos nos deparar com um esquecimento das características da adolescência. A abordagem terapêutica se parecerá mais aos mesmos quadros do adulto; nesses casos, a aparição
do conflito adolescente será um sinal de melhora.
Palavras-chave: Adolescência. Defesa. Dependência. Desidealização. Idealização.
Independência. Regressão.
1 Introdução
Sigmund Freud (1905a) inclui a adolescência como a etapa em que se
jogam: a subordinação da pré-genitalidade à genitalidade, o estabeleci-
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mento de novos objetivos sexuais, heterossexuais, a integração da corrente terna com a sexual, a consolidação da exogamia. Oferece-nos, também, dois históricos clínicos realizados com pacientes cuja idade nos
permite incluir na adolescência, o caso Dora (1905b) e a jovem homossexual (1920), históricos que, por sua profundidade e difusão, foram utilizados por distintos autores para testar suas hipóteses e reformular ou completar as de Freud (BLOS, 1981; LACAN, 1972; SAIMOVICI et al., 1980).
Também em um dos primeiros casos de tratamento de um púbere, em
um esclarecedor desenho clínico, podemos apreciar a sutileza de sua
abordagem para formular sua interpretação ao paciente púbere (FREUD,
1901).
Anna Freud (1957) apresenta sua posição sobre a dificuldade do tratamento com adolescentes centralizando essa dificuldade, por um lado,
naquela da reconstrução nas análises de adultos, do meio em que vive o
adolescente; suas ansiedades, o auge de sua glória ou a profundidade do
desespero total, as agudas e, por vezes, estéreis preocupações intelectuais e filosóficas, o desejo de liberdade, a solidão, a sensação de opressão de parte dos pais, a raiva impotente e o ódio ativo dirigidos contra o
mundo dos adultos, as atrações eróticas – homo ou heterossexuais –, as
fantasias suicidas. Os pacientes adolescentes podem passar repentinamente de um estado emocional ao seguinte, apresentá-los todos ao mesmo tempo ou em rápida sucessão, sem dar tempo para que o analista
recupere suas forças ou modifique o manejo do caso de acordo com as
necessidades impostas pelas circunstâncias mutantes.
Anna Freud pensa que existe uma semelhança evidente entre as respostas dos adolescentes e aquelas observadas em pacientes que atravessam
períodos de luto ou de infortúnios amorosos.
A semelhança da posição libidinal do adolescente com esses estados residiria no fato de que também nele há uma luta emocional de extrema
urgência e imediatismo, sua libido está a ponto de se desligar dos pais
para investir novos objetos de significado; são inevitáveis o luto pelos
objetos do passado e os amores afortunados ou desafortunados com adultos alheios ao meio familiar ou com outros adolescentes do sexo oposto
ou do mesmo sexo; também é inevitável um certo retraimento narcisista
para preencher os períodos em que nenhum objeto externo está investido de significado. Qualquer que seja o desenlace do conflito libidinal em
359
Edmundo Saimovici
um determinado momento, estará sempre relacionado com o presente, e
a porção da libido livre para investir de significado o passado ou o analista será escassa ou nula. Isso explicaria algumas das atitudes no curso do
tratamento; não cooperar com a terapia ou com o analista, a tentativa de
diminuir as sessões, a falta de pontualidade e as faltas à sessão, as bruscas interrupções do tratamento. Em contraste, se o próprio analista se
converte no novo objeto de amor do adolescente, seus desejos de ser tratado se tornarão mais intensos, mas o analista terá que enfrentar a
peremptoriedade de suas necessidades, sua intolerância à frustração e a
tendência a utilizar todo tipo de relação como um meio de satisfazer
seus desejos, mais que uma fonte de compreensão e esclarecimento.
Por outro lado, P. Blos (1981) sustenta que a experiência clínica lhe ensinou que os persistentes e irreprimíveis impulsos pré-edípicos se fazem
presentes no tratamento, exigindo intervenções terapêuticas capazes de
alcançar as emoções primitivas e as necessidades infantis que surgem
sob todo tipo de disfarces. Segundo P. Blos, na prática, a estratégia do
tratamento oscila constantemente entre os âmbitos pré-edípicos e os
edípicos, enquanto que o terapeuta tenta se relacionar com a situação
atual do adolescente, ou vice-versa. Os veículos desse empenho são, respectivamente – em níveis de abstração cada vez maiores – o conselho, o
julgamento, a explicação, a interpretação, a reconstrução.
Na terapia de adolescentes, os conteúdos geralmente permanecem ocultos na atitude cautelosa, crítica e desconfiada do paciente, ou em sua
irremovível expectativa de que o terapeuta lhe dê a “boa vida”. Um preciso sentimento de segurança deriva de se sentir parte do objeto idealizado, a mãe pré-edípica coisificada na pessoa do terapeuta. Seja como for, a
reanimação da imagem parental idealizada na pessoa do analista (homem ou mulher) demanda uma tarefa sumamente delicada de
desidealização do objeto. O desenlace desse processo, no melhor dos casos, é denominado de “confiança”, base da aliança terapêutica.
P. Blos ressalta: “Sempre me impressiona o quão difícil e penoso resulta
este processo de desidealização para o adolescente”.
A. Aberastury (1971) descreve a adolescência como um dos três momentos fundamentais do processo de desprendimento (nascimento e organização genital precoce seriam os outros dois) e assinala o luto pelo corpo
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infantil, quando os caracteres secundários impõem um novo status, como
pela fantasia de bissexualidade exigida de ser abandonada pela definição que implicam a menstruação ou o sêmen, segundo o sexo. A renúncia ao incesto se faz, então, mais urgente, dada a possibilidade fática de
consumá-lo.
Segundo A. Aberastury, esses lutos são prolongados: a flutuação entre a
infância e a adolescência é dolorosa. Surgem polaridades: nunca crescer
ou crescer de vez. Assinala o papel da ambivalência dos pais nesses conflitos, pelos próprios conflitos não-resolvidos; luto pela perda da criança
(“o menino”, “a menina”) e por deixar de ser o centro na vida de seus
filhos. Devem, entre outras coisas, enfrentar a aceitação do futuro, do
envelhecimento e da morte. Devem acompanhar o processo de
desidealização que os filhos estão realizando. A situação é difícil não só
para o adolescente, mas também para os pais.
Seria de se suspeitar de inveja a atitude dos adultos de apenas assinalarem os aspectos ingratos da vida adolescente, deixando de lado a felicidade e a criatividade plenas que também caracterizam muitos períodos
dessa etapa. A elaboração do luto nos adolescentes, em que são necessários ensaios permanentes de perda e recuperação, inclui técnicas defensivas como processos inevitáveis, como a desvalorização dos pais (para
tapear os sentimentos de luto e perda) e a busca de figuras substitutas.
A impossibilidade de manejar ou controlar as mudanças em seus corpos
e identidades seria a origem das planificações do mundo externo e a
verbalização, semelhante em sua ação defensiva à onipotência do pensamento e da palavra ao fim do primeiro ano de vida.
D. Meltzer (1974) descreve como a mudança contínua do sentido de identidade produz a característica qualidade de instabilidade emocional observada em adolescentes; ao se basear no “splitting” subjacente, os variantes estados de ânimo estão em pouquíssimo contato uns com os outros. Daí a grande incapacidade do adolescente de cumprir com um compromisso com as outras pessoas, concretizar resoluções próprias ou compreender por que não podem ser delegadas a ele responsabilidades de
pessoa adulta.
361
Edmundo Saimovici
A transição, através da fluidez da adolescência, partindo de um “splitting
em latência” excessivo e rígido e passando pela matriz de personalidade
em que eventualmente deve se formar o splitting mais metódico e elástico e pela diferenciação da organização à personalidade adulta, inicia com
o desmoronamento da ordem da latência; reaparecem as incertezas com
respeito às diferenciações, interno-externo, adulto-criança, bom-mau e
masculino-feminino, situação própria do desenvolvimento pré-edípico.
Prevalecem tendências perversas devido à confusão de zonas erógenas,
paralelamente à confusão entre amor sexual e sadismo; quando o ressurgimento da masturbação traz consigo uma forte tendência, manejada pela inveja oral infantil, a abandonar o self e apoderar-se da identidade de um objeto, por intrusão, se dá um tipo de ansiedade confusional
que todos os adolescentes vivenciam em certo grau. Essa confusão está
centralizada em seus corpos e aparece com o primeiro pelo pubiano, no
desenvolvimento dos seios, na primeira ejaculação. De quem é este corpo? Em outras palavras, eles não podem distinguir com clareza seu estado adolescente da ilusão infantil de ser adulto, induzida pela masturbação,
com a identificação projetiva nos objetos internos (que acompanha esse
estado). Isso é o que há por trás da escravidão do adolescente com relação à roupa, o modo de combinar vestuário e acessórios e cabelos, o penteado, e que não é menor nos rapazes que nas meninas.
Winnicott (1987) dá uma contribuição interessante para o tema do campo, no qual se deve emitir a interpretação ao paciente adolescente; a fantasia inconsciente que dominaria o pano de fundo da adolescência seria
de assassinato, pois crescer nessa etapa significa ocupar o lugar do pai e,
na fantasia, se realizaria sobre o cadáver do adulto.
Na psicoterapia do adolescente, a morte e o triunfo pessoal aparecem
como algo intrínseco ao processo de amadurecimento e da aquisição da
categoria de adulto. Isso também apresenta dificuldades para os próprios adolescentes, que chegam com timidez ao assassinato e ao triunfo
correspondente à maturação nessa etapa crucial. O tema inconsciente
pode se tornar manifesto como a experiência de um impulso suicida ou
um suicídio real. O melhor que os pais podem fazer é sobreviver, se manter intactos, sem abandonar nenhum princípio importante, sem que isso
implique que não possam crescer eles mesmos; ou seja, devem poder
enfrentar o desafio e não só compreendê-lo. A pessoa madura deverá
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exigir o direito de ter um ponto de vista pessoal que conte com o respaldo de outras pessoas maduras.
É útil acrescentar aqui as contribuições da psicologia do self, desenvolvida por H. Kohut (1978). O autor propôs como principal tarefa do processo
adolescente a reorganização do self. Como consideram Wolf et al. (1972),
no aprofundamento desse esquema referencial em relação à adolescência, o processo adolescente é uma transformação do self. O ideal do eu
infantil não pode ser sustentado e se faz imperativo construir um novo
ideal do eu. Uma intensa relação com os pares (que denominam Academia) serviria para manter o equilíbrio narcisista e a coesão do self, o que
possibilitaria a desidealização das imagens parentais arcaicas e sua transformação em novas idealizações internalizadas; essas novas idealizações
internalizadas se irão consolidar em um eu ideal estável, cuja função,
segundo o autor, seria superar desilusões específicas dos objetos de self
arcaicos.
Ao comentar esses aportes, Carneiro Leão (1986) ressalta uma posição
pessoal segundo a qual a adolescência não seria somente um estado cronológico, mas também um estado mental com características específicas, resultante da transformação do self, que conduz ao estabelecimento
da identidade. A tarefa central da adolescência seria a busca da identidade que corresponde tanto à busca de coesão, integração e continuidade
do self como à diferenciação dos objetos.
2 O Campo Analítico no Tratamento com
Adolescentes
Os aportes que selecionei entre os muitos autores que se dedicaram ao
tema da adolescência são suficientes para delinear situações básicas que
caracterizam o campo analítico que se estabelece nos tratamentos com
pacientes adolescentes e que lhe outorgam especificidade à tarefa
interpretativa. Assim:
a) a relembrança de aspectos pré-edípicos alternando com os edípicos;
b) a reativação de imagens arcaicas e a exigência de sua transformação;
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Edmundo Saimovici
c) lutos específicos pelos pais infantis, o corpo infantil, identidade e papel infantil e pela bissexualidade;
d) o processo de desidealização-denegrimento;
e) a alternância da dependência-independência;
f) a ansiedade confusional pelo desmoronamento da ordem obsessiva da
latência;
g) a exigência de construção de um novo esquema corporal e de manejo
das pulsões sexuais polimorfas e genitais;
h) a presença simultânea de ansiedades de perda, confusionais e de castração;
i) a ida para o mundo exogâmico, a necessidade de realização e de criatividade;
j) o fenômeno característico do grupo, do consumo (de bebidas) com o
grupo, academia, pares como partes de si mesmo projetados seja como
espelho ou como objetos de transição.
O analista deverá ser treinado especificamente (YAMPEY, SAIMOVICI,
GIOANNINI, 1986) no trabalho analítico e interpretativo com pacientes
adolescentes que atravessam uma etapa de vida com características próprias, que se intrincam com a patologia e que exigirão a tolerância de
oscilações permanentes. Será útil que seja ou tenha sido psicanalista infantil, porque deverá poder interpretar uma variada gama de comunicações – incluindo jogos, desenhos, música, vestimentas, programas de televisão – a um ritmo mutante e estar acostumado a procurar e reconhecer a mídia expressiva própria do paciente adolescente. Nisso, ajudará a
observação de adolescentes de diferentes idades e de ambos os sexos.
Deverá conhecer e familiarizar-se intimamente com o mundo adolescente gradualmente com o próprio paciente, porque isso produzirá confiança e reciprocidade (KUSNETZOFF, 1973). O terapeuta deverá conhecer detalhadamente o meio social e a ideologia predominante e seu grau
de obrigatoriedade (SAIMOVICI, 1985), o tipo de colégio, bairro, clube ou
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país e a atitude dos pais e outros adultos com quem seu paciente convive
habitualmente para poder tomar posições diante da realidade que o adolescente, em muitos momentos, lhe exigirá confirmar ou testemunhar.
Também irá se beneficiar com a prática de abordagem de pacientes com
transtornos narcisistas, com pacientes depressivos ou com transtornos
psicopatas e o conhecimento dos esquemas referenciais e de tratamento
desenvolvido por investigadores em diferentes áreas (KOHUT, 1978;
WINNICOTT, 1979; JACOBSON, 1985; ZAC, 1977). O conceito de holding
(WINNICOTT, 1979) será particularmente útil para a localização da função da interpretação para os pacientes do grupo da classificação proposta, pacientes que se assemelham aos adolescentes em processo de luto
próprio da etapa. A tolerância à projeção de imagens idealizadas, alternando com desilusões denigritórias, dolorosas, é outra das exigências no
tratamento com adolescentes.
Para termos a possibilidade de acesso à compreensão do paciente adolescente e podermos realizar a tarefa interpretativa, devemos ter presente o nível de permeabilidade de que dispomos com relação à amnésia
que se instala na saída da adolescência (PEARSON, 1973), amnésia de
que padecemos parcialmente como analistas, já adultos. O alheamento
emocional de ansiedades, expectativas, ideais, incertezas, perseguições,
confusões, paixões amorosas, felicidades e tristezas adolescentes pode
fazer com que sintamos que o melhor a propor ao adolescente é o modelo de nossa própria estrutura, refletida no tipo de setting próprio de adultos neuróticos, posição que fez alguns autores considerarem o adolescente como “inanalisável”.
Da estabilidade de nossa posição adulta, que representa para o adolescente tanto o futuro desejado como o passado estável (latência) perdido,
teremos que ressoar afetivamente, entrar em empatia e, por momentos,
assumir o papel simétrico de pares, o qual será possível se dispusermos
de flexibilidade e permeabilidade suficientes. O adolescente terá
flutuações frequentes, mas o analista se parecerá a uma “matriz familiar
suficientemente boa”. O jogo interno (interjuego) do analista adulto falando com e ouvindo um adolescente necessita da construção permanente
de uma linguagem discriminada daquilo que cada um entende do que o
outro diz, mas também das diferentes estruturas mentais, adultas e adolescentes. Haverá momentos de não-entendimento.
365
Edmundo Saimovici
Esse trabalho inclui a abordagem da relação do adolescente com o mundo adulto em geral e os pais em particular e não descarta a terapia de
família, os grupos de mães ou de pais, a orientação aos pais, simultâneos
ou estrategicamente indicados no momento oportuno (KNOBEL, 1971).
Segundo minha experiência, a patologia severa na adolescência empalidece, por assim dizer, as características conflituosas próprias dessa etapa, ainda que, em alguns casos, intensifique suas manifestações. Quando o conflito adolescente é suprimido pela patologia severa (neuroses
graves, quadros de sobreadaptação, de carência, borderline), a abordagem
técnica será semelhante à dos adultos nas mesmas condições; nesses
casos, a aparição do conflito adolescente será um sinal de melhora.
3 A Tarefa Interpretativa com Pacientes
Adolescentes
Se considerarmos a tarefa interpretativa, destinada a que o paciente obtenha uma transformação favorável de sua patologia e conflitos, incluiremos nesta diferentes meios expressivos e estilos para conseguir que o
paciente adolescente tenha uma compreensão transformadora de sua
situação inconsciente. Pensamos que não se chega à interpretação
mutante (STRACHEY, 1947-1948) sem o trabalho constante de construção de uma compreensão compartilhada com o paciente.
Assim, incluiremos nessa tarefa, segundo diferentes níveis de abstração,
o conselho, o julgamento, a explicação, a interpretação, a reconstrução (BLOS,
1981).
A utilização de interpretações impessoais, lúdico-adolescentes, a sinalização de
aspectos do mundo externo para discriminar as figuras que podem ter
características e valores iguais ou ambivalentes, sinalizações alternadas,
com o timing adequado, com interpretações transferenciais positivas ou negativas (KNOBEL, 1971); as intervenções não-interpretativas (KUSNETZOFF,
1973) tais como: pedidos diretos de informação, que implicam reconhecer
autonomia do paciente e reduzir a onipotência projetada sobre o analista, as respostas diretas para algumas perguntas do paciente, respondendo
ou dando motivos para não responder, especialmente nos princípios do
tratamento, a atitude de assumir papeis e as dramatizações com o resgate
Interpretação e Adolescência
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discriminado do eu observador do analista e do paciente, são diferentes
meios de possibilitar a tarefa interpretativa.
Nos adolescentes (SALAS, 1973), as interpretações devem ser curtas e
espaçadas, sem revelar sua origem para não envergonhar o paciente quando se dá conta de que não pode controlar seus conteúdos; e o timing de
aguardar o momento adequado para emiti-la funcionará como modelo
mental da tão necessária capacidade de espera; esse papel de companheiro com paciência na indagação que o paciente possa fazer de si mesmo (autoconhecimento) fará com que ele se sinta contido.
O encontro de uma forma de interpretar que faça o adolescente perceber
o interesse na busca do sentido do que acontece, evitando, assim, a tendência a supor que o analista “sabe tudo”, as frases de introdução às
intervenções interpretativas que se propõem como hipótese, convidando
à participação no maior nível de simbolização possível, são recomendações, entre outras, surgidas das experiências com o tratamento com adolescentes (Aryan, 1985).
A tarefa interpretativa deve levar em conta a simultaneidade de situações entrelaçadas ou duais que necessitam, por seu efeito condensador e
passível de confusão, um trabalho detalhado ágil. Refiro-me às que se
produzem nos eixos: edípico-pré-edípico, independência-dependência,
idealização-desidealização.
4 Independência-Édipo-Desidealização-Luto
O movimento para a independência se entrelaça com a fantasia edípica
de assassinato do pai-adulto-terapeuta e geralmente é simultâneo com
o denigrimento da imagem antes idealizada; portanto, vem acompanhado da intensificação tanto da ansiedade de perda das imagens infantis
como da angústia de castração, pela qual, além de interpretar e discriminar esses conteúdos, é indispensável manter posições coerentes com respeito ao setting, posições que passam a representar aos pais-adultos que
sobrevivem, sustentando seu terreno próprio. Deve-se interpretar o conteúdo de fantasia de matar ou ser morto incluído no movimento para a
independência, fantasia que evita a solução que oferece a verdadeira independência-exogamia, que possibilita o estabelecimento de dois reinados (o reinado do pai e o reinado em construção do filho).
367
Edmundo Saimovici
A abordagem da ansiedade de perda, precipitada pela desidealizaçãodenigrimento, deverá centrar-se no reconhecimento explícito de capacidades e valores do paciente e seus objetos e de sua capacidade de amar,
atacados pela armadilha narcisista do tudo ou nada (desidealização
castratória tanto no nível edípico como no pré-edípico). Nesse movimento para a independência, o fracasso de projetos onipotentes, idealizados,
provoca sofrimento intenso e o autodenigrimento; o analisado deverá ser
sustentado pelo analista, cuidando este para não se tornar “hiper-realista”, tanto para possibilitar que o paciente recupere sua capacidade que o
humilha numa derrota sem esperança.
5 Dependência-Idealização-Pré-Édipo
No movimento para a dependência, em geral, se entrelaçam:
a) o reencontro com a identidade infantil e os pais infantis, o reencontro
com a mãe idealizada pré-edípica;
b) a regressão-defesa aplacatória ou culposa diante das fantasias de triunfo edípico do movimento anterior para a independência.
A continuidade da presença e a coerência do setting do analista que tolera a idealização ou denigrimento temporário e que é vivido como que
satisfazendo a necessidade de dependência pode, bruscamente, virar, se
é vivenciado sob forma paranoide como uma mãe capturadora e
castratória. A interpretação e a discriminação desse movimento para a
dependência poderão reduzir a compulsão de escapar para a independência prematuramente.
6 A Dualidade Independência-Dependência no
Adolescente e em seus Pais
Outra intervenção terapêutica interpretativa-explicativa necessária é
gerada por causa da simultaneidade e da dualidade da necessidade, por
parte do adolescente, de provar seu domínio da realidade interna e externa ajudado pela sociedade de pares, ensaiando o futuro reinado próprio
em seu movimento para a independência e a necessidade de seguir rece-
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bendo educação, contradição que o desconcerta e faz com que se sinta
angustiado, incoerente. Acrescentar-se-á, assim, essa confusão às ansiedades de castração e perda já descritas, que podem ser aliviadas, sinalizando-se a pertinência de sua existência dupla e simultânea. Por um lado,
é preciso traduzir para o adolescente a dupla situação angustiante pela
qual passam os pais, muitas vezes deslocada para exigências com relação à escola ou queixas pelo custo econômico que seus filhos dependentes representam: os pais, por um lado, necessitam seguir criando e desfrutar de muitas satisfações narcisistas (SAIMOVICI, 1983), que se associam à ideia de serem o centro de gravitação para os filhos, centro cuja
perda pelo crescimento do filho significa para eles um luto pelo qual
tenderão a ver o filho como despreparado e incapaz de se valer por si
mesmo; e, por outro lado, ao mesmo tempo, aparecerá, junto com essa
angústia de perda, uma angústia de castração frente à ideia de que seus
filhos ainda não se garantem por si mesmos ou não conseguirão fazê-lo
no futuro – e, então, se sentem na urgência de exigir provas de “maturidade” dos filhos.
Não raro, as consultas ao psicanalista ocorrem por aparentes fracassos
do filho nas conquistas que os pais necessitam por esse tipo de angústia.
A explicação dessa dinâmica para o filho adolescente pode vir acompanhada, quando o sofrimento dos pais for intenso, da indicação complementar de uma terapia de orientação a ser realizada simultaneamente
ao tratamento do filho.
Concluiria com um tema comum a todos os autores e também coincidente com minha experiência: a faceta mais importante a ser considerada, a de interpretar com o paciente adolescente, que é o timing. O silêncio oportuno, o dar e dar-se tempo para entender, o acompanhar o processo de autoconhecimento, o tolerar agressões que denigrem alternando com momentos de intensa idealização, o poder tornar-se simétrico e
assumir assim o papel de par, para poder sair desse papel e retomar a
posição assimétrica adulto-adolescente, terapeuta-paciente são disposições a serem postas em jogo no tratamento com adolescentes, para o
qual o timing é o fator fundamental.
369
Edmundo Saimovici
7 Síntese e Conclusões
O ato de interpretar nos tratamentos com adolescentes deve ser abordado no marco de um amplo espectro de situações; algumas foram estudadas com base em diferentes esquemas referenciais e outras, em diferentes patologias. Isso não implica que a dificuldade técnica ou a compreensão psicanalítica dessa etapa esteja resolvida. Penso que o avanço pode
continuar na medida em que se aprofunde na clínica adolescente. Estamos
a uma altura do processo na qual não devemos nos desfazer de nenhum
aporte pertinente nem forçar uma integração prematura.
Concordamos com os autores que consideram o adolescente vivendo uma
etapa com características próprias. Portanto, ainda que seja útil a experiência analítica com crianças (pela maior flexibilidade, agilidade e
permeabilidade com relação à amnésia pós-adolescente) ou com pacientes narcisistas (pela sintonização do timing e a possibilidade de suportar
idealizações e desidealizações bruscas), ou com pacientes depressivos
(que presentearão o training para o manejo da autoestima e da dor) e
ainda que a técnica kleiniana facilite o seguimento sutil das identificações projetivas e das fantasias inconscientes subjacentes, acreditamos
que só a prática psicanalítica com pacientes adolescentes possibilitará a
aquisição da técnica para abordar com uma interpretação bem-sucedida
a questão dos conflitos do adolescente entrelaçada na patologia.
Os eixos principais que se entrecruzam em grau variável no campo analítico no tratamento com adolescentes e que geram angústias específicas são, como já dissemos: a oscilação edípica-pré-edípica, a dualidade
independência-dependência, o par idealização-desidealização e o par lutos
pela perda da infância e bissexualidade versus elaboração do crescimento corporal e do desenvolvimento da genitalidade.
O movimento para a independência mobiliza não só a ansiedade de castração, ao ser reativada a situação edípica, mas também a ansiedade de
perda dos objetos infantis. Essa situação dual pode levar a contradições
que acrescentem ansiedade confusional à situação.
O tema do luto pelos pais infantis, o corpo infantil, deve ser diferenciado
em sua abordagem, da permanência defensiva na situação regressiva (pela
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angústia de castração e culpa edípica). O primeiro, próprio e normal na
etapa adolescente, será contido e se interpretará com o timing adequado:
o pesar por um período que se deixa inevitavelmente, ao mesmo tempo
em que se sinalizarão as novas aquisições a serem integradas gradualmente no ser. Na regressão defensiva, será necessário interpretar o temor à represália, pelo suposto triunfo e assassinato edípico dos pais, ao
mesmo tempo em que discriminar a saída exogâmica, ou seja, um reinado futuro próprio.
A desidealização, um processo acompanhado de intenso sofrimento, exige um timing muito preciso, um tratamento sensível da autoestima, que,
possibilitando a aparição de ideais alternativos, projetos a realizar, evite
uma visão “hiper-realista”, vivida como uma afronta insolente pelo adolescente.
Nos momentos de tentativas de independentização, a interpretação deve
esclarecer, dentro do possível, a projeção sobre o analista do pai derrotado ou inimigo de morte, com o timing necessário para evitar que o paciente confunda a interpretação dessa projeção com uma tentativa
aplacatória.
Quando ocorre a projeção sobre o analista do par ou dos pares; que implica ser vivido como aliado da posição do adolescente, também é necessário poder tolerá-lo com o timing suficiente, pois isso fortalece transitoriamente o vínculo analítico. Mas há que poder interpretar também o
desacordo, para não ser visto como o pai débil assassinado ou que abandona, que renuncia à sua posição de educador no momento da necessidade de dependência. Assim, é necessário poder interpretar a tripla situação independência, pares e dependência e sinalizar seu funcionamento
ao paciente.
É indispensável poder aceitar o próprio erro ou o não-conhecimento para
não encarnar, com a infalibilidade presumida do analista, um pai onipotente e de um poder incontestável, que não pode ser destronado sob nenhuma hipótese; a interpretação tenderá a promover o autoconhecimento
do adolescente, autoconhecimento que não se pretende livre de mudanças e variações, que é a tônica normal desse período da vida; por isso, não
se pretenderá do adolescente um sentimento de identidade estável, mas
por curtos períodos.
371
Edmundo Saimovici
A tarefa interpretativa (para a qual o timing, que depende da capacitação
específica nesse tipo de tratamento, é fundamental) é composta de múltiplas possibilidades de abordagem cuja finalidade última será conseguir
a transformação da patologia do paciente adolescente e a tolerância a
uma etapa conflituosa que, por si, é difícil. Assim, nominar ansiedades e
afetos desconhecidos ou novos, utilizar intervenções não-interpretativas
como sinalizadoras, pedidos diretos, assumir papéis, interpretação de jogos, desenhos, discriminações de atitudes contraditórias, certificações
consensuais com respeito à realidade, conversar sobre assuntos de interesse do adolescente, estão implicados com a interpretação transferencial no momento oportuno das diferentes projeções que o paciente adolescente faz desde o seu lugar tanto edípico como pré-edípico.
É indispensável conhecer a dinâmica pai-filhos e o entorno social e educacional do paciente para poder operar com eficácia.
Nas patologias severas, podemos nos deparar com um esquecimento das
características da adolescência. A abordagem terapêutica se parecerá mais
aos mesmos quadros do adulto; nesses casos, a aparição do conflito adolescente será um sinal de melhora.
Acredito que tanto na exposição como na síntese estão refletidas a
multiplicidade e as exigências que são impostas ao terapeuta para que
possa abordar o interpretar no tratamento de adolescentes.
Interpretation and Adolescence
Abstract: Interpretation in treatments of adolescents must be approached on the
basis of a Wide range of situations; some of these have been studied in terms of
different referential schemes and others in terms of diverse pathologies. We agree
with those authors who consider that the adolescence is going through a stage
having its own specific characteristics. The principal themes which intercross in
varying degrees in the analytic field during treatment of adolescents and which
generate specific anxieties, are: the Oedipal-pre-Oedipal oscillation, the duality
between independence and dependence, the idealization-disidealization pair and
the pair consisting in mourning for the loss of childhood and bisexuality versus the
working-through of body growth and development of genitality. The work of
interpretation (for which the timing acquired by specific training in this type of
treatment is essential) is composed of many possible approaches whose ultimate
aim is to achieve both the transformation of the pathology of the adolescent patient
and also tolerance of a normally difficult and conflictive stage. Thus, naming new
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or unknown anxieties and affects, using non-interpretative interventions such as
descriptions of mechanisms, direct requests, role-talking, interpretation of games
or drawings, differentiation of contradictory attitudes, consensual affirmations of
reality, conversation on subjects of interest to the adolescent, all combine with the
transference interpretation at the appropriate moment of the different projections
that the adolescent patient makes from his Oedipal or pre-Oedipal position.
Knowledge of parent-child dynamics in the patient’s family as well as of the patient’s
social and educational milieu is indispensable if we are to operate effectively. In
severe pathologies we may find that the characteristics of adolescence have become
blurred. In consequence, the therapeutic approach will resemble the one we use for
the same pathology in adults; in these cases, the onset of adolescent conflict is a
sign of progress.
Keywords: Adolescence. Defense. Dependence. Dis-idealization. Idealization.
Independence. Regresión.
Interpretación y Adolescência
Resumen: El interpretar en tratamientos con adolescentes debe abordarse en el
marco de un amplio espectro de situaciones; algunas de ellas fueron estudiadas
desde diferentes esquemas referenciales y otras desde distintas patologías. Concordamos con los autores que consideran al adolescente viviendo una etapa con
características propias. Los ejes principales que se entrecruzan en grado variable
en el campo analítico en el tratamiento con adolescentes y que generan angustias
específicas son: la oscilación edípica-preedípica, la dualidad independenciadependencia, el par idealización-desidealización y el par duelos por la pérdida de la
infancia y bisexualidade versus la elaboración del crecimiento corporal y desarrollo
de la genitalidad. La labor interpretativa (para la cual el timing, que depende de la
capacitación específica en este tipo de tratamiento, es fundamental) se compone
de múltiples posibilidades de abordaje cuya finalidad última será lograr la
transformación de la patología del adolescente y la tolerancia a una etapa conflictiva
de por sí difícil. Así, nominar ansiedades y afectos desconocidos o nuevos, utilizar
interciones no interpretativas como señalamientos, pedidos directos, asunción de
roles, interpretación de juegos, dibujos, discriminaciones de actitudes contradictorias,
certificaciones consensuales respecto de la realidad, conversar sobre temas de
interés del adolescente, se intrincan con la interpretación transferencial en el momento oportuno de las distintas proyecciones que el paciente adolescente hace
desde su lugar tanto edípico como preedípico. Es indispensable el conocimiento de
la dinámica padre-hijos y del entorno social y educacional del paciente para poder
operar con eficacia. En las patologías severas podemos encontrarnos con un
borramiento de las características de la adolescencia. El abordaje terapéutico se
parecerá más a los mismo cuadros del adulto; en esos casos, la aparición del conflicto
adolescente será un signo de mejoría.
Palabras clave: Adolescencia. Defensa. Dependencia. Desidealización. Idealización.
Independencia. Regresión.
373
Edmundo Saimovici
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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Edmundo Saimovici
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Ane Marlise Port Rodrigues et al.
Presença Paterna, Vínculo e
Função Paterna: pensando o pai
na clínica psicanalítica atual de
crianças e adolescentes
Artigo | Trabalho elaborado pelo Grupo de Discussão de Casos Clínicos de Crianças – Desenvolvimento Normal e Psicopatologia, aberto a médicos, psiquiatras e psicólogos, dentro das atividades
da SBPdePA com a Comunidade, em 2009/2010.
Ane Marlise Port Rodrigues
Membro Associado da SBPdePA. Coordenadora
do Grupo de Discussão de Casos Clínicos de
Crianças – Desenvolvimento Normal e
Psicopatologia, da SBPdePA, 2009/2010.
Camila de Matos Ávila
Fernanda Munhoz Driemeier
Fernanda Silveira
Jairo Treiguer
Letícia Dornelles Lacerda
Patrícia Espíndola Stefani
Sadi Machado
Psicólogos. Integrantes do Grupo de Discussão de
Casos Clínicos de Crianças – Desenvolvimento
Normal e Psicopatologia, da SBPdePA, 2009/2010.
Resumo: Verifica-se, na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes, uma
maior presença e um maior envolvimento do pai no tratamento de seu filho. Observando o pai nesse contexto, os autores discutem, em vinhetas clínicas, como esse
pai mostra sua presença na vida do filho, sua possibilidade de vínculo e de exercer
ou não a função paterna. Iniciam lembrando da presença dessubjetivante do pai de
Schreber em sua infância, relacionando-a com sua psicose. O analista, em sessões
com o pai (ou os pais), durante a avaliação e o tratamento do paciente, defronta-se
seguidamente com essa problemática em que o pai está ausente – ou até está presente e vinculado ao filho, mas não desempenha a função paterna. Por outro lado,
também apontam o risco no analista de uma contratransferência que busca nesse
pai (do paciente) o pai idealizado e fálico de sua própria infância, principalmente
em analistas mulheres.
Palavras-chave: Adolescência. Contratransferência. Função paterna. Infância. Vínculo.
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
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1 Introdução
A família se constitui como um conjunto de vínculos e de lugares (lugar
do pai, da mãe, do filho) ocupados por sujeitos por meio de suas ações.
Esses sujeitos podem somente repetir padrões transgeracionais ou criar
algo novo (BERENSTEIN, 2007).
Trabalhar com crianças e adolescentes é trabalhar num campo privilegiado de mobilização do novo, principalmente no próprio paciente. Por vezes, também a mãe e o pai, por amor ao filho, alcançam romper padrões
transgeracionais patológicos e conseguem ocupar o seu lugar de pai e
mãe, reconhecendo o filho como outro.
Os ideais de igualdade de direitos entre homens e mulheres levaram a
modificações na forma como tem sido percebida e exercida a função de
pais e de mães, tendo surgido novas formas de parentalidade junto das
modificações ocorridas na família nuclear; a figura paterna ficou
fragilizada, ausente e até desnecessária para algumas mulheres (BORGES,
2005).
Na modernidade, a família tem mostrado que as funções de cada um se
distribuem de maneira mais fluida e não tão ligada aos lugares clássicos
do parentesco (BERENSTEIN, 2007), ocorrendo uma dissolução crescente
e deslocamentos desses lugares, e o pai ocupando muitas vezes um lugar
desvalido (pai maternal) e não de autoridade, modelo, norma e lei (LANG,
1998). Por outro lado, é reconhecido que esse homem mostra-se mais
afetivo, participando nas atividades domésticas e nos cuidados precoces
dos filhos (BORGES, 2005). Nesse contexto, verifica-se, na clínica psicanalítica atual de crianças e adolescentes, uma maior presença e um maior
envolvimento do pai no tratamento de seu filho, sendo que, por vezes, é
do pai a iniciativa de procurar ajuda.
Inicialmente, o pai presente no cotidiano do filho, mas intrusivo, totalitário e falho na função paterna, será exemplificado com o caso de Schreber,
que psicotizou.
A seguir, a função paterna na mãe é descrita como fundamental na
legitimação do lugar do pai. A fobia do Pequeno Hans pode ser entendida
379
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
como um chamamento do pai a uma função paterna não bem instalada
na mãe, a qual não reconhecia a autoridade do pai.
Após conceituar a função paterna, será enfocado, a partir de vinhetas
clínicas, o modo como o pai mostra sua presença na vida do filho, sua
possibilidade de vincular-se e de exercer ou não a função paterna.
Seguidamente, o analista se defronta com essa problemática em que o
pai ausente ou até presente não alcança desenvolver um vínculo significativo com o filho, ou não desempenha a função paterna.
Também será pontuado o modo como o enquadre, e sua função analítica, simbolizam a função paterna para o analisando ou grupo familiar.
Por vezes, observa-se no analista uma contratransferência que busca no
pai de seu paciente o pai idealizado e fálico de sua própria infância, principalmente em analistas mulheres (GOLDSTEIN, 2010).
2 Presença do Pai e Vínculo com o Filho –
lembrando Schreber
Berenstein (2001) usa o termo vincular no sentido de uma estrutura inconsciente que une dois ou mais sujeitos com base numa relação de presença. O vínculo é uma combinação de como o outro se apresenta (sua
presença no mundo externo) e sua representação psíquica no sujeito,
tendo a peculiaridade de desaparecer da consciência e de constituir um
inconsciente que determina modalidades de relação. Na resistência à
vincularidade, existe a oposição a dar lugar a uma presença indicada
pela condição que o outro tem de alheio, uma oposição a uma nova inscrição do outro (BERENSTEIN, 2007).
A presença do outro estrangeiro, a nós mesmos, causa uma imposição de
sua marca com a qual temos de lidar. Podemos anular-nos para sermos
um com o outro ou fazer uma atividade conjunta cujo produto nunca
teria sido alcançado por ações de um só. A imposição pode ser subjetivante
(incorpora em um vínculo significativo o alheio e o marca como sujeito
da relação) ou dessubjetivante (prima pelo excesso e pelo autoritarismo,
anulando o próprio do outro) (BERENSTEIN, 2007).
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Temos em Schreber (FREUD, 1911) um exemplo de uma imposição paterna dessubjetivante descrita por Schatzman (1999) em seu livro “El
asesinato del alma: la persecución del niño en la familia autoritaria”. O
autor procura demonstrar que várias das peculiares experiências de
Schreber – que lhe valeram a etiqueta de paranoico, esquizofrênico e
louco – podem vincular-se a procedimentos concretos de seu pai, ao aplicar seus métodos educativos torturantes e totalitários. Schreber tinha
um irmão mais velho e três irmãs. Esse irmão psicotizou e cometeu suicídio. Sobre as filhas mulheres, não se tem muita informação, a não ser
que uma permaneceu solteira, mentalmente não estava bem e era descrita como histérica. A mãe de Schreber apoiava o marido nos seus métodos de criar os filhos, tomando parte em todas as ideias, nos planos e
projetos do marido, sendo sua íntima e fiel companheira para tudo
(SCHATZMAN, 1999).
Os métodos educativos do Dr. Schreber, pai – que lançou seu livro em
1852, com enorme penetração na Alemanha, sendo considerado por
muitos o precursor espiritual do nazismo – preconizavam a regra de que
as crianças tinham de obedecer aos pais a partir dos cinco ou seis meses
de idade. A independência era considerada desobediência e tinha de ser
eliminada (SCHATZMAN, 1999). Podemos imaginar as enormes feridas
narcísicas no verdadeiro self do bebê Daniel Paul Schreber e sua impossibilidade de se tornar um sujeito de seu próprio desejo. Pensamos que não
se trata apenas de que “teria sido desvirilizado” – segundo Schreber relatou sobre si mesmo –, mas, primeiro, impedido como ser e depois como
homem viril.
Nesse caso, os pais são ligados aos filhos, mas impuseram uma presença
dessubjetivante que se manifestou nos dois filhos homens pela psicose e
pela morte por suicídio de um deles (sem espaço para o alheio e próprio
do filho: sem vínculo significativo, no sentido de Berenstein). O pai tinha
uma presença cotidiana na vida dos filhos, mas não exercia a função
paterna libertadora da fusão com a mãe – o próprio pai parecendo colocar-se no lugar dela, num conluio enlouquecedor. A mãe não pôde interditar o marido em seu gozo filicida sobre a prole, aliando-se a ele.
Schatzman (1999) refere que, num historial clínico de uma hospitalização
de Schreber, estava escrito que seu pai sofria de manifestações compulsivas com impulsos assassinos.
381
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
3 A Função Paterna na Mãe e o Pequeno Hans
O terceiro (pai, avô materno, tio materno ou equivalente) intervém de
modo fundamental para a criança em sua relação com a mãe, como um
“preexistente” à própria concepção da criança. Para que a mãe exerça
sua função de mãe, é necessário que ela “tenha o pai na cabeça”, que não
esteja numa relação na qual o terceiro esteja excluído, ou seja, uma mãe
edípica que proíbe o incesto materno primário (MARTY, 2004).
O pai na função paterna deve ser endossado por um acordo com a atitude materna em relação ao filho, a fim de alcançar os sucessivos tempos
do complexo edípico e sua consequência estruturante, a castração simbólica. A mãe deseja algo que não é o filho, e esse algo está em outro
lugar (no pai) (GOLDSTEIN, 1994).
É a mulher que cumpre a função de colocar o pai em seu lugar, designálo, ciceronear o encontro entre pai e filho. Para muitos homens, sem a
intermediação dela, não persiste esse vínculo que não se libertou de sua
origem (a mulher) e acaba sucumbindo uma paternidade que não chegou a se instalar (CORSO; CORSO, 2010).
A mãe pode desejar e fomentar a ausência do pai na vida do filho, bem
como desejar que mantenha o contato (ou os deveres legais), mas não
legitimar a função paterna do pai ao não ter a interdição incestuosa com
o filho estruturada em seu psiquismo.
Alguns autores entenderam a fobia do Pequeno Hans como um chamamento do pai à função paterna, na medida em que este não foi reconhecido como autoridade pela mãe; não conseguiu veicular a interdição entre mãe e filho no sentido simbólico, sendo a função paterna rechaçada
ou inabilitada desde o lugar da mãe (GOLDSTEIN, 1994; LACAN, 1999).
4 A Função Paterna – o lugar do simbólico
Mesmo considerando a prevalência da relação mãe-bebê, Aulagnier (1975)
restitui a importância fundamental do lugar do pai nos primórdios da
vida do sujeito psíquico. Enquanto representante dos outros além da mãe,
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o pai entra como terceira referência que garante à criança uma ordem
cultural à qual tanto ele quanto a mãe estão submetidos.
Goldstein (1994) esclarece que é necessário diferenciar qualquer tipo de
insuficiência paterna – que não chegue a prejudicar a efetividade da função paterna – das insuficiências materna e paterna em que a função não
se instale. A função paterna, se instalada na mãe, permanece ativa mesmo que o pai esteja ausente, desaparecido ou morto. O pai pode ser presente, forte ou autoritário e não exercer a função paterna ao não retirar o
filho da condição de falo de uma mãe que não aceita a castração. Conforme Leclaire (apud GOLDSTEIN, 1994), a questão que se coloca é a de transcender a imagem para captar a função.
A mediação da função paterna adquire um papel preponderante na cena
edípica quando o bebê se torna insuficiente como objeto de desejo da
mãe: a mãe deseja o pai, e o pai também a deseja. O lugar fálico deixa de
estar no filho e na mãe, e passa a ser ocupado pelo pai. É o momento do
pai onipotente, absoluto, despótico e terrível (o pai paranoico de Schreber).
Na sequência edípica, o pai permite o falo ao filho. O pai possui um pênis,
mas não o falo, que circula por todos como um significante do poder.
Também o pai (como o filho e a mãe) deve submeter-se à lei de não poder
ser tudo e ter tudo (a castração) (GOLDSTEIN, 1994). Lacan (1995) nos
fala do pai em seu aspecto tríplice de pai real, imaginário e simbólico,
sendo que a função paterna é eminentemente simbólica. Não basta ter
um pai encarnado para que sua lei seja efetiva.
Na constituição do espaço triangular edípico, a figura do pai (ou o masculino) opera como ponto de equilíbrio e equidistância entre a criança e
a mãe (ou o feminino), obstruindo a fusão e a confusão entre ambos,
dando nascimento à percepção das diferenças e à simbolização. Esse paiparteiro e libertador do claustro materno também representa o filho que
ele foi, libertado da mãe. É configurado como objeto interno a partir da
imagem paterna valorizada que a mãe transmite ao filho no processo de
seu crescimento, mesmo na ausência do pai biológico. A função paterna
lança o filho para o mundo externo e para a cultura (PEREIRA, 2001;
SIMEONE, 2010).
Perelberg (2009) traz um exemplo clínico de um adolescente que foi em
busca do pai ausente em sua vida. Esse pai estava interiorizado como um
383
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
aspecto do desejo da mãe (houve função paterna e interdição mãe-filho),
mas esse lhe faltava enquanto vínculo de presença e estrutura de identificação.
Podemos relacionar a regressão edípica na puberdade dos meninos (necessitando da mãe nutrícia, mas com medo da castradora mãe fálica) –
quando há um incremento do Édipo negativo como defesa contra a dependência regressiva à mãe (GRECO, 2004) – com um novo chamamento
ao pai, na busca de reforçar a função paterna que o retira da mãe e de
ressignificar a identificação com ele.
Marty (2004) refere que o adolescente coloca fim ao complexo edipiano
púbere, recusando a satisfação dos desejos incestuosos e parricidas e se
identificando com a função parental. Essa identificação com a função
parental, e não mais com a pessoa do pai e da mãe (o que ocorreu na
finalização do complexo edípico infantil), assinala o fim da adolescência
e o coloca no campo social. Para poder cuidar do outro, é necessário primeiro cuidar de si: ser mãe de si mesmo ao interiorizar a função materna; ser pai de si mesmo ao interiorizar a função paterna, antes de poder
ser pai de um filho.
Na relação pai-filho se reatualizam ambivalências que marcaram a relação do pai com seu próprio pai. A criança é favorecida se houver uma boa
identificação deste com seu próprio pai, tendo aceitado seu papel de filho, a diferenciação dos sexos e de gerações (COSTA; KATZ, 1992).
Winnicott (1982, 1994) situa a importância do pai para o filho anteriormente às angústias de separação (eu/não-eu ainda não estabelecido) e
às angústias de castração. Ao fornecer uma provisão ambiental adequada e favorecer o estado mental de preocupação materna primária, o pai
apoia a mãe a ser suficientemente boa e a lidar com as angústias de
aniquilamento do bebê, impedindo seu colapso clínico.
5 Função Analítica, Enquadre e Função Paterna
O analista, qualquer que seja seu sexo efetivo, simboliza a função paterna para o analisando, mesmo que as vicissitudes da transferência lhe
atribuam os mais variados papéis (BARANGER; GOLDSTEIN; GOLDSTEIN,
1981).
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010
384
A relação transferencial pode ser vivida como uma função paterna que o
paciente necessita experimentar (SIMEONE, 2010). No atendimento de
crianças e adolescentes, essa necessidade pode provir do grupo familiar
como um todo, principalmente quando predominam indiferenciações de
papéis e lugares entre pai, mãe e filhos e patologias parentais narcísicas
ou psicóticas.
O próprio enquadre tem a finalidade de apoiar e proteger a relação analista-paciente, semelhante à função do pai em relação à díade mãe-bebê
para Winnicott (SIMEONE, 2010).
6 Vinhetas Clínicas
Carlos, quatro anos. Começou o tratamento com dois anos e cinco meses
com terapeuta mulher. Veio encaminhado pela escola por dificuldades
de adaptação na educação infantil, chorando muito ao ser deixado e tendo medos variados. Usava fraldas e tomava mamadeiras ao longo do dia
e da noite. A mãe dormia numa cama ao lado de seu berço, pois acordava
chorando e pedindo mamadeira, no que era atendido prontamente. Os
pais se separaram quando estava com um ano. O pai mora no interior,
não tem trabalho fixo, nunca alcançou autonomia financeira, sendo sustentado por seu próprio pai. Mostra-se ligado ao filho, telefona todos os
dias e o vê uma vez ao mês. No entanto, Carlos não quer falar com ele,
mostrando-se distante. É percebido pela mãe e pelo pai como muito grudado à mãe. O pai declara que “nunca me meti na relação dos dois”.
Com o tratamento, pôde retirar as fraldas e mamadeiras, ficando bem na
escola. Em períodos de progressos em sua individuação, costuma ficar
resfriado e com febrículas. A mãe, imediatamente, deixa de levá-lo às
sessões e à escola, permanecendo em casa com ele. Por vezes, arranja
compromissos na hora da sessão, dizendo não ter como levá-lo.
Observa-se em Carlos a presença de um pai ligado no filho, mas que não
gera um vínculo significativo entre ambos e não é efetivo na função paterna, permanecendo mãe e filho ainda indiscriminados. O pai imaturo
“toma as mamadeiras” que seu próprio pai lhe dá ao sustentá-lo economicamente aos quarenta e dois anos. A introjeção da função paterna é
falha nesse pai-filho mamador. Também a mãe resiste à interdição, o que
aparece no seu estímulo em manter o filho regredido e nos boicotes ao
385
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
vínculo do filho com o pai e com o tratamento. A função paterna que o
setting exerce entre mãe e filho e as resistências da mãe às mudanças
tornam-se evidentes.
Gustavo, sete anos. Em tratamento há um ano com terapeuta mulher. A
mãe o trouxe por pressão da escola, pois tem enurese diurna e noturna.
Urina-se na sala de aula, estando frequentemente malcheiroso, sendo
chamado de fedorento. Tem sérios problemas de relacionamento e aprendizado, é visto roubando o lanche dos colegas e nega, faz palhaçadas
para chamar a atenção, briga muito e mente para a mãe.
Seus pais separaram-se quando estava com um ano por agressões físicas
do pai à mãe, o que resultou em internação hospitalar desta. O pai dela,
mesmo com a filha hospitalizada, não aceitava que se separasse do marido agressor por questões religiosas. A mãe rompeu, então, com a própria família. No entanto, repete com o filho o padrão superegoico sádico:
manda-o à escola com calça rasgada e suja para puni-lo pela enurese
(“Tu tens que te ralar!”). Tem novo companheiro há quatro anos.
Não aceita fazer os temas com a mãe, o que gera grandes brigas, mas
aceita fazer com o padrasto, que demonstra paciência e interesse por ele.
A mãe não autoriza o companheiro a chamá-lo de filho, mas o sobrecarrega com responsabilidades com Gustavo.
O pai biológico não aceitou conversar com a terapeuta. É alcoolista, ausente e ilude o filho, prometendo visitas que nunca faz e presentes que
nunca dá.
Nas brincadeiras, ilustra a falta do pai criando famílias de animais sem
pai. O pai teria sido atropelado e morto. Pôde “adotar” o padrasto como
pai recentemente, chamando-o de pai do coração. A mãe começa a autorizar o lugar de pai para o padrasto e a acolher o funcionamento regressivo do filho. É como se Gustavo, através de sua impactante sintomatologia,
estivesse pedindo por mãe (que acolhe e cuida) e pai (que separa da mãe
e diz o que é certo e o que é errado). Falhas importantes na progressão
edípica e na constituição de seu superego eram evidentes.
Quando a mãe escolhe um companheiro com características maternas e
paternas mais estruturadas, oportuniza para si e para o filho a possibili-
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010
386
dade de reencontrar um pai benigno, presente no vínculo significativo e
na função paterna (que parecia oscilante também na mãe).
Sentimentos de acusação e crítica em relação ao pai e mãe biológicos
faziam parte da contratransferência inicial da terapeuta. A realidade de
um pai não vinculado terá de ser mais bem elaborada por Gustavo. A
escolha de um bom companheiro e de bom padrasto mostra recursos da
mãe de não simplesmente repetir o traumático (por exemplo, ter um pai
que é sádico e que abandona).
Mariana, oito anos. Há cinco meses em tratamento com terapeuta mulher.
Tem uma irmã de seis anos. Os pais são vistos frequentemente. A mãe
buscou ajuda espontaneamente, pois se preocupa com o jeito passivo do
pai e teme estar ocupando o lugar dele na relação com as filhas e que
isso venha a prejudicar a relação delas com os homens no futuro. O pai
perdeu seu emprego há nove meses, está depressivo e sem iniciativa. É a
mãe quem sustenta atualmente a casa.
O pai reconhece que a perda do emprego abalou sua autoestima e que se
retraiu com as filhas, deixando-as mais com a mãe, pois “não tenho mais
papo com elas; vejo que entre elas se sintonizam superbem, e aí desisto
de entrar na conversa”.
Nessa situação, Mariana andava se mostrando triste, resultando em notas mais baixas na escola. Mas se trata de uma criança saudável numa
família bem estruturada, com uma reação de tristeza e preocupação com
o pai depressivo, mas que sempre esteve presente, vinculado e exercendo a função paterna.
A mãe, com a função paterna instalada, sempre legitimou o lugar privilegiado do pai com as filhas e quer que o mantenha. Busca ajudá-lo, ao
criar um espaço (o tratamento) para que essas questões possam ser pensadas e para que retome uma posição mais fálico-ativa. O pai também
busca essa posição que momentaneamente perdeu, mas foi efetivo na
função paterna entre mãe e filhas. O grupo familiar desenvolveu vínculos significativos entre seus membros que favorecem a inscrição do alheio
e da relação entre sujeitos.
387
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
Duda, nove anos. Esse menino começou o tratamento com terapeuta homem aos dois anos e cinco meses, época da separação dos pais. A mãe o
trouxe à terapia porque o menino gostava de se vestir com suas roupas,
dizendo que era uma menina. Na escolinha, brincava apenas com meninas e era rechaçado pelos meninos. O pai tinha uma presença relutante
e ambivalente na vida do filho, oscilando entre assumi-lo ou abandonálo.
Fragmento de sessão aos seis anos:
“Pegou os bonecos e disse que eu seria o médico e ele a mãe grávida
(boneca com bebê embaixo do vestido)”.
Duda – Tu fica aqui de pé ao lado dela porque tu é o médico. Agora pega
aquele negócio de cortar que os médicos usam e corta a barriga dela
para o bebê nascer. [Terapeuta segue suas indicações.] Isso! Ela está esperando. Ela queria que fosse uma menina, já tinha dito isso. Mas tu
vai dizer pra ela que nasceu um menino.
Terapeuta – Olha, mãe! Teu desejo era de que nascesse uma menina,
mas acabou de nascer um menino.
Percebe-se, nesse fragmento, como Duda-menino pôde ir nascendo das
sessões em seu quarto ano de tratamento, referendado por um homem
que diz para a mãe que o filho que nasceu é homem, e não sua menina
desejada. O pai-parteiro está ali e faz o corte na intrusão narcísica materna, que se apodera de seu ser e o legitima como menino.
Apesar do vínculo do pai com Duda não estar bem estabelecido (enquanto inscrição do alheio) e de ficar tempos sem vê-lo, o pai atendeu à convocação do terapeuta, envolvendo-se no tratamento e na vida do filho.
Quanto à função paterna, a própria sintomatologia do menino (“sou a
menina que a mãe quer que eu seja”) denunciava sua inoperância. A
indiscriminação mãe-filho (sendo o falo da mãe) o condenava a um distúrbio de gênero. Na sessão, podemos reconhecer o imperioso pedido de
Duda de que seja reconhecido como menino pela mãe e pelo pai. Numa
sessão em que já se percebia claramente como menino, cobrou do
terapeuta por que o deixava brincar com brinquedos de menina. Tam-
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010
388
bém necessitava ser nomeado como menino pelo terapeuta, situando no
setting a geração do simbólico, em que as coisas podem ser nomeadas e
significadas.
A partir do enquadre, a função paterna pôde ser reafirmada no pai, que
assumiu Duda como seu filho homem. O vínculo começava a nascer.
Também a mãe passou a reconhecê-lo como um menino com vida própria e a incentivar a presença do pai.
Apesar de suas limitações e falhas (tendência a beber em excesso e a ser
agressivo), o pai pôde ser valorizado em sua condição de homem e de pai
para que Duda pudesse tornar-se Eduardo, e não Eduarda.
A contratransferência no sentido de acolher as insuficiências do pai, de
valorizá-lo e legitimar seu lugar foi fundamental para que se vinculasse
ao terapeuta. Também precisava nascer um pai. E Eduardo sabia disso.
Cristiane, doze anos. Em atendimento há dois anos com terapeuta homem.
O pai procurou tratamento para a filha por achá-la muito triste. Relacionou sua tristeza com o fato de a mãe, da qual é separado há dez anos e
que mora no norte do Brasil, não a procurar. O pai tem a guarda da filha,
pois a mãe mostrava instabilidade emocional, tendo o diagnóstico de
bipolaridade. Tinha condutas impulsivas, de risco e promiscuidade após
a separação. Casou-se novamente há três anos, e a madrasta adotou a
menina como sua filha, sendo que se dão muito bem. No entanto, o pai
percebe que a filha tem “uma tristeza guardada no coração e não gosta
de falar sobre a mãe”.
Temos aqui um exemplo de novas configurações familiares nas quais o
pai se mostra presente, vinculado, com função paterna, exercendo, ainda, funções maternas que a mãe não consegue. Sua sensibilidade e amor
à filha o levaram a procurar ajuda para as tristezas dela. De fato, Cristiane
se sentia sem importância para a mãe e temia nunca mais vê-la.
Diogo, doze anos. Há dois anos em tratamento com terapeuta mulher. Os
pais o trouxeram por dificuldades de relacionamento com colegas,
impulsividade, agressividade verbal e dificuldade de focar a atenção no
trabalho escolar. Pais casados, mas o relacionamento com problemas e o
389
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
casamento em risco. Tentaram terapia de casal, mas o marido a interrompeu, pois não queria e não via resultados. A relação de Diogo com o
pai era muito difícil, com queixas constantes de o pai ser distante, não
participar de sua vida e não se interessar verdadeiramente por ele. A
mãe trazia a mesma queixa, o que era um dos motivos das brigas. Mostrava sentimentos agressivos com o pai e se angustiava com as constantes discussões do casal. Sentia a mãe mais próxima e interessada.
Seus sintomas foram relacionados com um deslocamento aos colegas e
à escola de sua vontade de brigar com o pai e de agredi-lo; com um estado de mente invadido pelos problemas conjugais dos pais, não se focando
no aprendizado; com sentimentos de culpa por não ter o poder para resolver as brigas do casal e ainda ser, muitas vezes, o foco das mesmas;
com sua imensa e legítima vontade de que o pai ocupasse o lugar de pai
em sua vida; entre outros possíveis entendimentos.
Atualmente, os pais são separados, sendo que a convivência entre pai e
filho aumentou bastante. O pai participa mais de sua vida, e a
sintomatologia de Diogo melhorou.
Diogo é um menino com uma estrutura edípica, neurótica; tem uma mãe
com função paterna introjetada e que lutava para que o pai se vinculasse mais ao filho. O pai mostrava-se inicialmente ausente e desvinculado
do filho, mesmo morando na mesma casa. No entanto, a função paterna
estava ativa na mãe, que queria o marido para ela, e não só o filho. Quando Diogo era bebê, o pai pôde cumprir seu papel de interditor e atender
ao desejo da mãe por ele. Com o tempo, deixou de gostar dela e foi
desinvestindo no filho. Com a separação, pôde diferenciar melhor a relação com o filho da relação com a mãe do filho, sua ex-mulher, e
incrementar seu vínculo com Diogo. Nesse púbere, a criação dos sintomas poderia relacionar-se ao chamamento do pai para que se tornasse
presente, vinculado e passível de identificações para fazer frente a sua
adolescência.
A terapeuta, inicialmente, teve de lidar com seus sentimentos de irritação
e queixas em relação ao pai que via como um boneco inerme, numa identificação com Diogo. Seguidamente, ao lidar com as resistências do pai
para se envolver com o tratamento do filho, irritava-se com seu descaso.
A possibilidade de manter um vínculo com o pai possível de Diogo, e não
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010
390
com o pai esperado, toca nas expectativas inconscientes e conscientes
da terapeuta de que o pai se apresente ao filho com características mais
fálicas e que o diferencie da mãe. Poder lidar com o pai, com suas falhas
e fraquezas (pai incompleto e não idealizado), permitiu à terapeuta sustentar a relação com o mesmo, fortalecendo a possibilidade de vínculo
entre pai e filho após a separação do casal. É frequente que, após a separação, o homem se desligue não só da mulher como do filho.
7 Comentários Finais
Mesmo que se descreva, na atualidade, uma dissolução crescente dos
lugares parentais e dos deslocamentos desses lugares, a intervenção do
terceiro (“pai na cabeça” da mãe; função paterna; pai; padrasto; avô materno; tio materno ou equivalente) na díade mãe-filho segue sendo fundamental para impedir a relação fusional que adoece e assujeita a criança.
Enquanto a disposição materna da mãe está diretamente relacionada ao
bebê, a disposição paterna é considerada contingente (mãe certa/pai incerto) e mais instável; também o sentimento de inveja da capacidade da
mulher de criar vida em seu interior é descrito como fator complicador
para o bom desenvolvimento da função paterna no sentido amplo (SOUZA NETO, 2001). Mesmo assim, cada vez mais os homens instrumentam
suas identificações materno-femininas sem abrir mão da autoridade de
pai.
Pelos exemplos clínicos, observam-se: o caráter estruturante para o filho
da função paterna no psiquismo da mãe; que o pai pode não exercer a
função paterna por fragilidade sua ou pela não autorização da mãe; que
existem pais presentes na vida do filho que não alcançam exercer a função paterna e não fazem o vínculo significativo; que os pais e padrastos
podem exercer seu lado maternal sem abandonar seu lugar de pai e sua
função paterna.
Birman (2006) traz uma interessante reflexão sobre a feminilidade como
uma forma de sexo originário, diferente do masculino e do feminino –
um outro sexo não marcado pela lógica do falo. As condições masculina
e feminina seriam sempre fálicas em oposição a essa feminilidade originária, repudiada por sua condição imperfeita e obscura. Nesse sentido, a
391
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
feminilidade dos homens pais vem encontrando maior espaço na cultura atual. Lembrando Winnicott, a ideia de um pai e de uma mãe suficientemente bons inclui suas imperfeições e falhas.
Também o setting analítico como um terceiro entre mãe e filho pode ajudar o pai e a mãe na instalação mais sólida da função paterna e materna.
Suportar a condição imperfeita e obscura de pai e de mãe, abrindo mão
das exigências de que sejam fálicos e poderosos, permite conter
contratransferências que poderiam ameaçar os tratamentos.
Father Presence, Father Link and Father Function: thinking about
the father in the actual psychoanalytical clinic of children and
adolescents
Abstract: It is verified in the actual psychoanalytical clinic of children and
adolescents a bigger presence and involvement of the father in his son’s treatment.
Observing the father in this context, the authors discuss through clinical vignettes
how the father shows his presence in his son’s life, his linking condition and the
possibility of performing or not the father function. They begin by recalling Schreber’s
father’s dessubjetivante presence in his childhood, relating it to his psychosis. The
analyst, through sessions with the father (or parents), during the evaluation and
treatment of the patient, continuously faces this issue where the father is absent or
even present and linked with the child, but does not perform the father function.
On the other hand, they also point to the risk in the analyst producing a
countertransference that searches in this patient’s father the idealized and phallic
father of his/her own childhood, mainly in female analysts.
Keywords: Adolescence. Childhood. Countertransference. Father function. Link.
Presencia Paterna, Vínculo y Función Paterna: pensando el padre
en la clínica psicoanalítica actual de niños y adolescentes
Resumen: Se verifica en la clínica psicoanalítica actual de niños y adolescentes
una presencia e interacción más grande del padre en el tratamiento de su hijo.
Observando el padre en este contexto, los autores discuten por medio de viñetas
clínicas cómo este padre muestra su presencia en la vida del hijo, su posibilidad de
vínculo y de ejercer ó no la función de padre. Empiezan recordando la presencia
desubjetivante del padre de Schreber en su niñez, relacionándola con su psicosis. El
analista, por medio de sesiones con el padre (ó padres), durante la evaluación y
tratamiento del paciente, se encuentra a menudo con este problema del padre ausente ó hasta presente y vinculado al hijo, pero no desarrollando la función paterna. Por otro lado, también mencionan el riesgo en un analista de una
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010
392
contratransferencia que busca en este padre de su paciente el padre idealizado y
fálico de su propia niñez, principalmente en analistas mujeres.
Palabras clave: Adolescencia. Contratransferencia. Función paterna. Niñez. Vínculo.
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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Ane Marlise Port Rodrigues
Rua Carvalho Monteiro, 234/606
90470-100 Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: [email protected]
Presença Paterna, Vínculo e Função Paterna: pensando o pai ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 377-393, 2010
394
outras
contribuições
397
Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
Reflexões sobre o Destino do
SER MULHER
Artigo
Augusta Gerchmann
Psicanalista, Membro Titular e Didata da SBPdePA,
Membro Pleno do CEPdePA, Membro Docente do
Contemporâneo – Instituto de Psicanálise e
Transdisciplinaridade.
Bárbara de Souza Conte
Psicanalista, Doutora em Psicologia pela
Universidade Autônoma de Madri, Presidente da
Sigmund Freud Associação Psicanalítica.
Sissi Vigil Castiel
Psicanalista, Doutora em Psicologia pela
Universidade Autônoma de Madri, Diretora de
ensino da Sigmund Freud Associação Psicanalítica,
Autora do livro Sublimação: clínica e
metapsicologia, Editora Escuta, São Paulo, 2007.
Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão sobre o feminino e a feminilidade no
contexto das transformações que a contemporaneidade vem gerando na intimidade do ser mulher, desde o que Freud chamou de “continente negro”, para caracterizar
o feminino e sua constituição psíquica, até a relação que hoje estabelece com o
homem, seja de sexo ou de amor. Para tanto, utilizamos, também, algumas ideias,
por nós tramitadas, da representação que Almodóvar constrói sobre o feminino.
Palavras-chave: Feminino. Identificação. Narcisismo.
1 Da Constituição do Ser ao Ser Mulher
Eu não saberia dizer o que é o mais importante, a vida ou a criação. Às
vezes a vida transforma-se em objeto de criação. (ALMODÓVAR, Pedro).
Sabe-se que o ser humano nasce bissexual; sua sexualidade é perversopolimorfa e, desde o nascimento, necessita de auxílio alheio para vir a se
Reflexões sobre o Destino do SER MULHER
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010
398
constituir como sujeito psíquico. Esta pode ser uma árdua tarefa, na atualidade, para meninos e para meninas, uma vez que aqueles com quem
inicialmente poderiam ou deveriam contar nesse processo de constituição apresentam dificuldade de abrir mão de seu próprio narcisismo para
realizar a ação específica, ou seja, realizar com o sujeito incipiente a primeira e funda-mental experiência de satisfação.
Percebe-se, muitas vezes, na clínica, que as inscrições que estruturam o
inconsciente recalcado dos sujeitos da atualidade carregam a marca do
narcisismo daquele que executou a função materna. Partindo-se do princípio de que o outro demanda ao demandante sua própria necessidade,
isso não coincide com o desejo daquele que ainda não sabe nomeá-lo.
Assim, ao não saberem o que querem e na busca desenfreada de uma
satisfação, aceitam aquilo que lhes é oferecido. Esse comportamento é
característico do estabelecimento de relação do tipo narcisista não
anaclítica e que, portanto, entendemos como obstáculo à construção da
feminilidade ou do ser mulher.
A partir da forma paradigmática da constituição narcísica na atualidade,
como se daria a trajetória ao feminino? Freud referia que a resolução do
conflito edípico é mais complexa para a menina do que para o menino.
Para o fundador da psicanálise, a menina tem de mudar de objeto de
desejo depois de realizada a identificação primária, devendo retornar à
mãe a fim de realizar a identificação secundária. Assim, ela resolve seu
conflito com aquela que foi sua principal rival – a mãe.
Como ratifica Silvia Bleichmar (2006), em Paradojas de la sexualidad masculina:
[...] enquanto a sexualidade feminina é o resultado de um trabalhoso
caminho que implica uma mudança de zona e de objeto, a sexualidade masculina se articula em contiguidade com os primeiros tempos
da vida, desde que o objeto primordial de amor, a mãe, é também o
posterior objeto de desejo: a mulher (p. 79).
Parece-nos que as peculiaridades da construção do amor narcisista podem trazer consequências para o exercício da feminilidade, uma vez que
a mulher busca desenfreadamente o amor de um homem, com quem
reedita o vínculo narcisista não desfeito com a mãe.
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Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
Percorramos o caminho dessa escolha.
2 Identificação Primária e seus Desdobramentos
Na obra de Freud (1921), sobre a primeira forma de escolha objetal, encontramos que é reconhecida como identificação primária, conceito central para a compreensão do eu e do si mesmo. O autor define a identificação primária como a forma mais primitiva do laço emocional que o sujeito estabelece com outra pessoa, a primeira relação afetiva com seu semelhante. É uma relação direta, imediata, em que o sujeito tende a assimilar as atitudes e emoções do objeto. Para que essa primeira relação
ocorra, é necessário que o outro se coloque no lugar do sujeito, de forma
empática, a fim de poder compreendê-lo e traduzir sua demanda, relacionada à pulsão de autoconservação, em primeira instância, e, posteriormente, à pulsão sexual.
Na medida em que a identificação primária é o primeiro laço emocional
do sujeito com o outro, existe toda uma relação desta com o narcisismo.
Com efeito, os apontamentos freudianos feitos em Sobre o narcisismo: uma
introdução (1914) permitem supor que é através dela que se forma o ego: o
sujeito se constitui a partir do que o outro diz que ele é. Ao autoerotismo
deve-se acrescentar uma nova ação psíquica que constitui o narcisismo:
a constituição de um Eu incipiente, que passará a identificar o que é prazer com o Eu e o que é desprazer com o Não-Eu.
Lacan (1998) retoma os conceitos freudianos em O estádio do espelho como
formador da função do eu, afirmando que o sujeito se apreende como corpo
em uma experiência em referência ao outro; a origem do ego é, portanto,
muito mais especular do que centrada no sistema percepção-consciência e no princípio de realidade. Assim sendo, o sujeito aprenderá a reconhecer seus próprios desejos através do outro, posteriormente, quando a
linguagem entrar em jogo. Antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária e especular alienada do outro.
Dessa forma, assumindo-se que o narcisismo do sujeito é sustentado pelo
narcisismo dos pais, podemos supor em algumas situações que, se o outro – aquele que participa da experiência de satisfação – não puder abrir
mão de seus desejos narcisistas, o sujeito poderá permanecer submetido
ao desejo de seus pais. Quando submetido, não pode ir ao encontro de
Reflexões sobre o Destino do SER MULHER
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 397-409, 2010
400
seu próprio desejo, o que caracteriza o gozo do outro como aquela condição de gozo que aliena a criança ao desejo da mãe.
Strauss (2008), em entrevista com Almodóvar, menciona que o cineasta
surge com os impasses do feminino e do masculino em sua obra. Segundo declaração de Almodóvar:
[...] esse período, depois da morte da minha mãe, coincidiu para mim
com uma brutal tomada de consciência da passagem do tempo [...]
Isso conferiu certa gravidade à minha vida, e a verdade é que não é
uma sensação agradável: a consciência do tempo perpassando as coisas mais concretas, a deterioração física, o medo e a incompreensão
da morte (p. 282).
Na mesma entrevista aludiu que:
[...] minha sensação é que esse medo da passagem do tempo me paralisa um pouco. É o que acontece quando olhamos sempre para o futuro, como fiz a minha vida inteira, sem nunca nos voltarmos para o
passado (p. 282).
O relato do cineasta é exemplo real de que a identificação é constitutiva
do eu, porque permite a apropriação do que é do outro no si mesmo, enquanto o acesso à condição do feminino e do masculino supõe a separação e a perda dos objetos amados da infância.
Ressalte-se que, a partir de um primeiro tempo de indiscriminação a respeito de quem é a criança e quem é a mãe, deverá ocorrer uma ruptura,
um corte que corresponde à perda do objeto amoroso primário. Assim, se
interrompe o gozo do outro. Essa problemática está documentada no filme Volver (Almodóvar, 2006) quando são retratados o incesto e a morte.
Volver para mim era retornar à minha infância a fim de poder me
despedir dela. Não foi o filme que me permitiu fazer o luto por minha
mãe, pois eu já tinha deixado essa etapa para trás, mas foi o que me
ajudou a considerar daí para frente minhas lembranças como lembranças [...] (p. 283-284).
A partir das questões relativas à identificação primária, põe-se em destaque o primeiro tempo da constituição do eu, qual seja, a identificação e o
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Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
abandono do primeiro objeto de amor, percurso necessário para se lograr
ser homem ou ser mulher.
Freud (1921) reconhece que a identificação consiste na ação de se tornar
idêntico ao seu semelhante, ou seja, idêntico a um ou muitos atributos
do objeto que participa da experiência de satisfação. No entanto, o sujeito é inicialmente passivo em relação ao seu semelhante, daí se dizer que
ele sofre os cuidados que lhe são conferidos, não havendo possibilidade
de escolha. Esse tipo de identificação “desempenha um papel na préhistória do Complexo de Édipo” (p. 99) e sofrerá desdobramentos ao longo da vida adulta.
As identificações que compõem a pré-história do Complexo de Édipo diferem na relação com o pai, no caso do menino, quando este toma o pai
como ideal, sem, no entanto, ser uma atitude passiva ou feminina. Para
Freud, essa é uma atitude “masculina por excelência”.
Na identificação com a mãe, dá-se um investimento objetal segundo o
tipo anaclítico, ou seja, um investimento sexual de objeto. Esses dois laços com a mãe e com o pai coexistem em um período e, apesar de diferirem, não se influenciam nem se perturbam mutuamente. De sua unificação – mais tarde, no desenvolvimento – nascerá o Complexo de Édipo.
3 Identificação Secundária
A problemática edípica feminina está colocada por Freud (1925) em seu
artigo Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos,
no qual enfatiza a pré-história do Complexo de Édipo na menina e o impacto que lhe causa “descobrir” que a mãe é castrada. Veja-se, in verbis:
[...] enquanto o Complexo de Édipo do menino vai ao fundamento devido ao complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido por este último. Esta contradição se estabelece quando se reflete
como o complexo de castração produz em cada caso efeitos no sentido de seu conteúdo: inibidores e limitadores da masculinidade, e promotores da feminilidade (p. 275).
A castração, nessa perspectiva, está diretamente ligada à posse do pênis,
que, no menino, assumiria a qualidade de castigo pela condição da perda
Reflexões sobre o Destino do SER MULHER
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e, na menina, surgiria como premissa de que pudesse vir a ter um pênisbebê. A castração supõe, então, a perda, como elemento simbólico, e o
abandono dos investimentos dos objetos edípicos, esforço de ambos os
sexos do qual emerge uma nova dimensão do que é castração.
Para que o sujeito faça a passagem do Complexo do Semelhante ao Complexo do Próximo, ou seja, reconheça o outro separado de si, torna-se necessário o interdito – interdição que separa dois corpos e dois desejos, a
mãe desejante de seu homem, a filha ou o filho que deseje sua mãe, sem
ter acesso a esta, para depois passar a desejar o pai e sofrer seu interdito
em virtude do amor da mãe por este.
O superego será precipitado do ego, consistindo em duas identificações:
com o pai e com a mãe. Essa identificação, considerada secundária, seria
posterior à herança deixada pelo narcisismo original, constituindo o Ideal
do Eu. No entanto, seu início se dá a partir da identificação com o pai
ideal da infância, que constituiu a identificação primária e o ego ideal,
conforme descrito acima (FREUD, 1923).
Nesse artigo, Freud diferencia a situação de uma criança identificada com
seu pai ou mãe, ao querer ser como um deles, da situação em que os
converte em seu objeto de escolha, ao desejar possuir um dos progenitores. Em situações de regressão, a escolha de objeto pode retornar a uma
identificação quando, para compensar a perda de um objeto amado, o
sujeito se identifica regressivamente com ele. Nesse caso, estaríamos
adentrando o campo da melancolia.
Previamente, apontou-se que as identificações primárias baseiam-se em
uma relação direta com o objeto e são definidas a partir da ideia de que o
sujeito é o que o outro diz que ele é. As identificações secundárias e o
superego, por sua vez, são fundamentados na perda da relação direta
com o objeto primordial.
Depois do afastamento da mãe como objeto amoroso, pode-se pensar
que a passagem do feminino à feminilidade ocorre em virtude do olhar
erotizado do pai, o qual a reconhece “princesa” e por quem deverá ser
admirada e olhada, podendo, inclusive, nesse processo, falicizar seu corpo de mulher, segundo Assoun (1994), “no momento em que precisamen-
403
Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
te o vir a ser mulher se inscreve como transformação corporal” (p. 18,
grifo nosso).
Nesse contexto, o ser mulher surge para o olhar do outro – paterno, logo
masculino. O destino do amor pelo outro, que nasceu do olhar do pai
sobre a menina, “passará a depender da imagem do amor provocada por
ela no outro, a quem ela colocará no lugar do pai” (ASSOUN, p. 19).
No entanto, essa passagem do amor pela mãe para o amor pelo pai não é
tarefa fácil, principalmente quando consideramos a ideia inicial dos
impasses para a saída do vínculo narcisista com a mãe na atualidade.
Nessas circunstâncias, não há uma escolha objetal por parte da mulher
na vida adulta. Para dar lugar à feminilidade, a mulher deveria realizar o
trabalho de renunciar ao seu próprio narcisismo, reconhecendo a presença do outro e o desejo por esse outro. Em função desses aspectos,
consideramos que, na atualidade, o amor deu lugar ao sexo, e o objeto do
sexo se tornou indiscriminado, uma vez que o objeto do sexo não coincide com o objeto de amor.
Em primeira perspectiva, a redução do objeto de amor a objeto sexual
ocorre pela não transposição do olhar da mãe para o olhar do pai; o objeto, assim, fica reduzido a um objeto de descarga que representa a ilusão
de reencontrar o primeiro vínculo amoroso. Considere-se, nessa senda, a
acepção que a palavra cuidador adquire no nosso tempo, quando a relação amorosa é buscada com a suposição subjacente de que um ou outro
– homem ou mulher – necessita de cuidado, em lugar de se pensar em
uma troca amorosa.
Ainda no contexto dos impasses da relação da menina com a mãe e de
seus impedimentos de se dirigir ao pai, percebe-se que, na feminilidade,
a preocupação com o corpo diria respeito a encantar e seduzir o homem.
Em contraposição, quando essa preocupação toma o rumo narcísico e se
estabelece de forma desmesurada, fica o olhar sempre voltado para o
próprio eu, desaparecendo o outro como aquele que se quer encantar. O
encanto é o próprio corpo, e o seu excessivo cuidado, a forma narcísica de
satisfação.
Em outra perspectiva, podemos pensar, no caso da menina, a partir da
transposição do passivo ao ativo, ou seja, da busca ativa da sedução,
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objetivando um olhar outro que lhe dê a garantia de ser desejada como
mulher, não mais impedida em sua feminilidade, o que configura caminho necessário para o ser mulher (CONTE, 2005). A passividade narcisista à qual está exposta a criança, neste caso, a menina, necessita ser transformada em atividade, e é o desengano – e não a inveja do pênis – o
veículo desse movimento. O desengano vai mais além da percepção da
ausência do pênis na mãe; torna-se a descoberta de que a mãe não mais
sustentará o olhar de desejo da filha. O temor é a perda do amor da mãe,
que necessariamente será substituído pelo amor de um homem. Esse
trabalho se dará pela transformação da sedução infantil passiva em atividade de busca de outro amor.
O paradigma edípico sustentado no falicismo da inveja do pênis adquire
nova versão: a transformação do passivo em ativo. As fantasias edípicas
passivas, femininas, masoquistas, de sofrer das mais variadas formas –
inclusive ser espancada como expressão do ser amada – modificam-se
em atividade e feminilidade, gerando novas formas de amar e ser amada
e se desvinculando das condições de sofrimento.
Esse destino não resta cumprido em Volver, no qual se vê mãe e filha que
não se desprenderam. “As mulheres de Volver se conhecem de verdade
quando se preparam para partilhar uma refeição [...]” (p. 286). Para
Almodóvar, “[...] a mãe ficava deslumbrada por ter uma filha tão bonita:
era sua perolazinha, e queria fazer dela uma atriz, maquiando-a e penteando-a. Na verdade, transformava a filha numa terrível tentação para os
homens e, acima de tudo, para seu pai. Essa cena conta, de uma maneira
evidentemente dissimulada, a origem da fantasia do pai, que virou de
cabeça para baixo toda a história da família” (STRAUSS, 2008, p. 286).
Assim, o olhar da mãe cedeu ao desejo incestuoso do pai, e o incesto foi
consumado. Destino esse que, enquanto fantasia da filha que contém o
olhar narcisista da mãe e o desejo não interditado do pai, cria um impasse
no percurso de sua feminilidade.
O componente erótico, nesse contexto, mais coloca em risco a integridade narcisista corporal, à medida que o amar perde seu lugar e nele se
insere o incesto, como metáfora da posse do corpo para o gozo. Ultrapassar o tempo, passar do passivo ao ativo pressupõe, novamente, a renún-
405
Augusta Gerchmann, Bárbara de Souza Conte, Sissi Vigil Castiel
cia do amor perdido e a contrapartida necessária da expropriação do corpo da criança pelas figuras parentais.
4 O Destino da Feminilidade e seus Impasses
A subjetivação – ou produção de subjetividade – é entendida como conceito histórico-social e alude ao modo como cada sociedade determina
as formas com as quais um sujeito se constitui como sujeito social e se
insere no mundo.
Dessa forma, podemos pensar que a produção de subjetividade no mundo contemporâneo contempla uma cisão entre o sujeito performático,
perfeito, narcisista, e o sujeito do inconsciente, que supõe o limite da não
satisfação. Poder-se-ia pensar, com base em Debord (1997), que uma
indistinção entre o ser e o parecer, entre o espetáculo e a realidade, também implica o exercício da sexualidade, uma cisão entre o gozo e o
recalque. Porém, a sexualidade, assim entendida em outro tempo como
perversa, hoje em dia acompanha esse estado narcísico de desempenho
e perfeição e de banalização dos relacionamentos amorosos.
Bleichmar (2006) demonstra que a perversão é a “de-subjetivação” do outro
e o caráter parcializado que seu corpo cumpre como lugar do gozo, quando o exercício da pulsão não está integrado aos componentes amorosos,
ou seja, quando a pulsão não está ligada ao amor, gerando o fracasso da
intersubjetividade (p. 85-86).
Já os modos de exercício da sexualidade em sujeitos neuróticos “não raro
são capturados em montagens perversas” (FLEIG, 2008, p. 35), instaurando novas formas de laços sociais e patologias. Nessa mesma perspectiva,
McDougall (1997) aproxima as práticas sexuais aditivas, como
masturbação, escolha indiscriminada e trocas de parceiros, a um “namoro com a morte” no jogo sexual. Nesse jogo, a angústia de castração fálica
e os temores primordiais do aniquilamento e da morte se tornam perpetuamente erotizados, como uma saída e, ao mesmo tempo, uma chegada
no modo perverso de sobrevivência psíquica (p. 219). No entanto, a satisfação esbarra sempre no vazio e se torna uma forma de prazer, apesar de
invertido – pela erotização do terror como uma forma de sobrevivência
do self (p. 222).
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Para a autora, o triunfo da solução aditiva da masturbação, por exemplo,
ou do uso de um outro indiscriminado é triplo, pelo desafio à mãe – objeto da identificação primária –, ao pai – que falhou na interdição – e à
própria morte – quando a compulsão esbarra no vazio interno. O vazio,
nesse sentido, são a perda de sua própria identidade – ser mulher – e a
sua incapacidade de escolha, através da troca de parceiros. Esse tipo de
escolha, que McDougall denominou de ‘neossexualidade’, é uma defesa,
antes de tudo, ao temor de psicotizar, devido à vivência do desamparo
inicial que é, assim, re-atualizado.
Nesse contexto, a autora propõe a busca de um novo paradigma. Contudo, questionamos: em que ele estaria ancorado?
Castiel (2009), compartilhando desse entendimento, afirma que o mandamento da cultura atual é “o que você quer você pode – e agora”, ou
seja, o gozo imediato. A consequência que isso trouxe às relações entre
homens e mulheres que acompanhamos na clínica e na vida refere-se ao
direito a ter uma sexualidade satisfatória em iguais condições para ambos. No entanto, o vínculo entre o homem e a mulher se transformou não
em uma intimidade maior entre ambos, pelo contrário, o encontro, muitas vezes, ficou reduzido ao exercício da sexualidade independente do
objeto. Com isso, o objeto de amor foi reduzido a eventual parceiro sexual; a liberação sexual não trouxe profundidade de relacionamento.
Estamos em tempos de sexo. O “você quer você pode” é lido em relação
ao exercício da sexualidade, pura descarga.
Enfim, o que os autores demonstram é que os jogos perversos e o
narcisismo permeiam os relacionamentos da atualidade. As falhas do
narcisismo dos “cuidadores” podem implicar falhas na constituição psíquica do sujeito, na medida em que são capturados pelo desejo do outro.
Essas são marcas de nossa época que caracterizam um destino da feminilidade, em que o excesso de olhar para si mesmo não dá lugar à intimidade com o outro, mas sim a uma espécie de autossedução.
5 À Guisa de Conclusão
Retornando a Freud, (1937), quando fala sobre o “leito de rocha”, pergunta-se até onde podemos ir numa análise, relacionando o seu término à
inquestionável diferença entre os sexos. O leito de rocha repousa, na
mulher, sobre “[...] a inveja do pênis, o positivo desejo de alcançar a pos-
407
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sessão de um genital masculino e, no homem, pela revolta contra sua
atitude passiva ou feminina sobre outro homem [...]” (p. 252). Para ambos
os sexos, nomeou-se esse fenômeno de complexo de castração. Tomou de
Adler a designação de “protesta masculina”, que identifica a
desautorização da feminilidade no homem e o trauma da castração na
mulher, que encontra sua manifestação na inveja do pênis. Adverte que,
em ambos os casos, o que cai sob a repressão é o próprio do sexo contrário (p. 252).
Questionamos se a rocha sobre a qual repousa a questão tão atual do ser
mulher não terá mudado seu paradigma. A inveja do pênis não parece
mais o grande obstáculo a ser ultrapassado para nos encontrarmos em
direção à cura. Entendemos que o obstáculo é a presença marcante da
perpetuação do narcisismo e de seus desdobramentos sob a forma de
jogos perversos, tanto no amor dirigido a um homem quanto no amor de
transferência. Amor que, encerrado na solidão narcísica ou no jogo da
crueldade, não proporciona a intimidade e a troca amorosa necessária,
dando lugar ao ato criativo do encontro.
Concluímos com Almodóvar, quando conta que “o que caracteriza as personagens de meus filmes tem muito a ver com minha vida pessoal, minha maneira de viver” (p. 278). O cineasta fala de sua solidão, mencionando que:
Essa é a solidão que caracteriza a condição de todo ser humano, mas
é também uma solidão que provoquei, que construí incansavelmente,
isolando-me, mudando pouco a pouco meu estilo de vida, dedicandome cada vez mais à leitura, à escrita, todas essas coisas que só podemos dividir conosco. [...] Mas, depois desses longos anos de solidão,
voluntária e imposta ao mesmo tempo, sinto que chegou a hora de
voltar a me abrir para a realidade exterior. [...] Sinto vontade de me
impregnar dessa nova realidade, que muda incessantemente. Volver
fechou um ciclo, e eu gostaria de poder passar para outra coisa agora
(2008, p. 279).
Reflections on the Fate of the FEMININE BEING
Abstract: This paper presents some reflections on the feminine and on femininity
in the context of changes which the contemporaneous world has produced in the
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intimacy of the female being, from what Freud referred to as “dark continent” – to
characterize the feminine and its psychic constitution – to the sex or love
relationship women foster with men nowadays. For that purpose, we also use, some
ideas, raised by us, about the representation Almodóvar makes of the feminine.
Keywords: Feminine. Identification. Narcissism.
Reflexiones sobre el Destino del SER MUJER
Resumen: Este trabajo propone una reflexión sobre el femenino y la feminidad en
el contexto de las transformaciones que la contemporaneidad viene generando en
la intimidad del ser mujer, desde lo que Freud nombró “continente negro”, para
caracterizar el femenino y su constitución psíquica, hasta la relación que hoy
establece con el hombre, sea de sexo o de amor. Para ello, utilizamos, también,
algunas ideas, por nosotros tramitadas, de la representación que Almodóvar
construye sobre lo femenino.
Palabras clave: Femenino. Identificación. Narcisismo.
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411
Carlos de Almeida Vieira
Teria W. R. Bion Lido J. L.
Borges? O vértice estéticoliterário
Artigo
Carlos de Almeida Vieira
Membro Titular e Analista Didata da Sociedade
de Psicanálise de Brasília, Analista com Funções
Didáticas da Sociedade Psicanalítica de Recife e
do Núcleo de Psicanálise de Aracajú.
Resumo: O autor propõe, nesta comunicação, aproximar dois pensadores contemporâneos: J. L. Borges (1899-1986) e W. R. Bion (1897-1972). Coincidentemente, na
biblioteca dos dois encontramos semelhantes leituras e autores, principalmente
no que toca à literatura, especificamente a de língua inglesa. O artigo pretende
chamar a atenção dos psicanalistas para a relevância do vértice estético-literário.
Mostra a importância do pensamento de Borges, sua disciplina de ofício e recortes
com os quais o autor espera colaborar para a formação de um psicanalista pelo
viés de Bion. Ressalta também a capacidade de observação dos fenômenos da alma
humana, a importância da intuição e dos recursos estéticos como tarefa
metodológica e o treino, no que toca ao psicanalista, da necessidade de se dedicar
ao estudo dos autores ditos “canônicos” em literatura, a fim de desenvolver, desse
modo, sua sensibilidade para apreender aquilo que se encontra além do dito, do
sensorial e do manifesto.
Palavras-chave: Literatura. Formação psicanalítica. Poesia.
1 Introdução
Se a intuição é tão importante, por que o treinamento e a educação
de um analista não incluem atividades artísticas e poesia em particular?
Bion – Provavelmente porque se precisa de tempo, e não porque o tema
careça de importância. Espera-se que o candidato tenha adquirido experiência estética antes de começar sua formação psicanalítica. (BION,
1978, p. 79).
Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010
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Por que não estudam diretamente os textos? Se esses textos lhes agradam muito, que bom; e se não lhes agradam, abandonem a leitura, já
que a ideia de leitura obrigatória é uma ideia absurda: seria o mesmo
que falar em felicidade obrigatória. Acredito que a poesia é algo que
se sente, e se vocês não sentem a poesia, se não têm um sentimento
de beleza, se uma história não os leva ao desejo de saber o que aconteceu depois, o autor não escreveu para vocês. (BORGES, 2006).
W. R. Bion deixou clara a importância de se considerarem os fenômenos
da mente sob três vértices de observação e estudo: o vértice científico, o
místico-religioso e o estético-artístico. Neste trabalho, enfocarei especificamente o vértice estético-literário, extraindo e pensando vinhetas em
escritos de Bion e, principalmente, de Jorge Luis Borges. Sabemos que na
biblioteca de Bion autores como Milton, Dante, Shakespeare, Keats,
Coleridge, Wordsworth, Erza Pound, William Blake e outros tantos poetas
de língua inglesa estavam presentes, assim como na de Borges, e faziam
parte de suas leituras. Desconhecemos se Borges estava lá.
Há uma tentativa, por parte de Meg Harris (2009), de ver no “Tigre” de
William Blake semelhanças com o “Tigre” de Borges, mas não há citações
de Borges nos escritos de Bion em sua vasta obra – textos teóricos, supervisões, conferências e seminários clínicos – em que sempre esteve presente a necessidade do rigor e da disciplina da observação dos fenômenos da realidade psíquica, método que requer intuição e capacidade estética do analista, entre outros requisitos. Obviamente, não estou negando a importância da questão científica. Não me ocupo aqui em dar maior
ênfase às vinhetas de trabalhos de Bion, e sim em apresentar Borges como
um pensador, além de escritor e poeta. Uma pessoa que, coincidentemente, lia e relia os autores de língua inglesa acima mencionados e sempre procurava tirar proveito do trabalho deles para desenvolver e expandir suas ideias de labirinto – uma metáfora que o acompanhou por toda
a sua vida à procura da verdade. Apreender a natureza humana, o sofrimento, a dor, a vitória e a capacidade do homem de procurar sempre o si
mesmo, ainda que sempre acompanhado e confundido com o outro; essa
duplicidade de Eus ou esse mistério da alma humana ter sempre uma
natureza limítrofe: consciência-inconsciência, vida-morte, realidade interna-realidade externa, sonho-realidade. A propósito, um dos poetas visionários, William Blake, nos ensina que “sem os contrários não há pro-
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Carlos de Almeida Vieira
gressão”, em seu belo poema O casamento do céu com o inferno.
Enfatizo, nesta comunicação, vinhetas e passagens, principalmente de
três obras de Borges: Os ensaios sobre a poesia, Sobre o pesadelo e A
memória de Shakespeare, além de fragmentos de outros escritos.
O sonho
Quando os relógios da meia-noite prodigarem
Um tempo generoso,
Irei mais longe que os vogas-avante de Ulisses
À região do sonho, inacessível
À memória humana.
Dessa região imersa resgato restos
Que não consigo compreender:
Ervas de singela botânica,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que na verdade são máscaras,
Palavras de linguagens muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode conceder o dia.
Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente.
(BORGES, 2009).
Nesse poema, Borges, que sempre se dedicou ao tema dos sonhos em
seus trabalhos, mostra-nos sua profunda capacidade de expor sobre a
angústia do querer-se atingir a realidade última, mas ao mesmo tempo
que sabe ser a tarefa impossível, isto não o faz desistir, como Freud e
Bion. Sabemos que ela está lá, no “infinito informe”, de Milton, mas nunca a atingiremos, o que não nos mata a curiosidade, a ousadia e a coragem de seguirmos em frente. “Dessa região imersa resgato restos que
não consigo compreender.” O inconsciente é essa região, na investigação
psicanalítica.
Wilfred Ruprecht Bion e Jorge Luis Borges foram dois pensadores do século XX envolvidos na busca da essência do Ser, dois visionários em seus
campos de investigação. Bion chega ao fim de sua obra escrevendo, sob a
forma de “literatura fantástica”, a sua visão abrangente do conhecimen-
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to técnico e teórico da psicanálise. Borges fez de sua vida de poeta, escritor e ensaísta um misto de realidade e ficção, sempre apontando para o
desconhecido da alma humana. Se o primeiro orientava-se em direção a
O, à coisa-em-si de Kant, às formas ideais de Platão e à Teoria da Incerteza de Heisenberg, Borges passou sua vida entremeado entre alegrias e
pavores diante do Espelho, diante da beleza e do horror do Tigre, lendo e
relendo obras canônicas, resgatando autores, principalmente os poetas
ingleses, os mesmos que estavam na biblioteca de Bion.
Em seus escritos, Borges e Bion foram dois pensadores que, antes de afirmarem algo categórico, sempre duvidavam do saber instituído e afirmavam que as teorias encobriam a possibilidade da leitura dos homens, da
leitura das pessoas, tentando apreender a essência ou dela sempre se
aproximar. São obras insaturadas, obras provocativas, pois não se conformam nem se entusiasmam com ideias fundamentalistas de escolas, tanto nas artes como na ciência. Platão e Sócrates eram os esteios para que
suas ideias não se fechassem e se tornassem “crenças”. Para isso, os dois
se preocupavam com a disciplina da criação: Borges, na feitura dos versos e de sua prosa; Bion, na delicadeza de respeitar a observação dos
fenômenos da alma humana.
James Grotstein (2010) afirma que Bion somente tinha uma certeza na
vida: a certeza de sua ignorância. Aliás, a única certeza de Bion é que
nada é certo, daí a metodologia psicanalítica poder gerar “tolerância às
incertezas” como suporte da capacidade negativa. Borges, citado por Solange Fernández Ordóñez (2009), em seu belo livro “O olhar de Borges –
uma biografia sentimental” escreve: “Essa poderia ser a sua maneira de
nos transmitir que a condição essencial da vida reside no misterioso, um
modo de expressar o inalcançável das explicações finais, um recurso para
mostrar o inevitável paradoxo do ser humano: o ato de buscar a razão de
nossa existência, mesmo sabendo que nunca haveremos de encontrála”. Enfim, a título de preâmbulo, deixo uma ideia na poética de Borges e
no pensamento de Bion:
Heráclito
Heráclito caminha pela tarde
De Éfeso. A tarde o abandonou,
Sem que sua vontade o decidisse,
Na margem de um rio silencioso
415
Carlos de Almeida Vieira
Cujo destino e cujo nome ignora.
Há um Jano de pedra e alguns álamos.
Olha-se no espelho fugitivo
E descobre e trabalha a sentença
Que gerações e gerações de homens
Não deixarão cair. Sua voz declara:
“Ninguém desce duas vezes às águas
Do mesmo rio”. Detém-se. E então sente
Com o assombro de um horror sagrado
Que também ele é um rio e uma fuga.
Deseja recobrar essa manhã
E sua noite e véspera. Não pode.
Repete a sentença.Vê-se impressa
Em futuros e claros caracteres
Em uma página qualquer de Burnet.
Heráclito não sabe grego. Jano,
O deus das portas, é um deus latino
Heráclito sem ontem nem agora.
É um simples artifício que sonhou.
Um homem cinza às margens do Red Cedar,
Um homem que entretece decassílabos
Para não pensar tanto em Buenos Aires
E nos rostos queridos. Falta um.
(EAST LANSIG, 1976).
Borges tinha a consciência da transitoriedade e, além disso, sabia que
somos mutantes. Não se é mais hoje o que se foi ontem. A vida é sempre
uma corrente transformadora – transformadora do ser, quando se tira
proveito da experiência. Sua experiência revela que, mesmo a cada dia
que perdia o sentido da visão, desenvolvia seus recursos pessoais para
apreender o mundo interno e intuir ideias já embrionárias em sua mente. Ordóñez nos lembra, refletindo sobre a metáfora do rio de Heráclito:
“Ao longo da vida nossa imagem mudará, e aquilo que nos revele, sejam
vidros espelhados, água, olhar dos outros, retrato ou fotografia, e ainda
os sonhos, irá assinalando as sucessivas transformações e irá marcando
que cada vez somos outro para observar, conhecer e aceitar” (p. 72). É
claro que se trata de uma leitura borgiana da autora.
A experiência analítica se enriquece a cada momento com os conceitos
de “transformações”, mudanças que nos fazem aproximar do nosso-ser-
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real, do nosso O, da nossa Realidade Última, mesmo que não a atinjamos,
mas é nesse rio que podemos navegar sempre em busca da Verdade. Na
obra de Borges apreendem-se essas questões sobre a condição humana.
Seu pensamento revela que somos ínfimos, limitados e tênues, mas que,
ao longo da nossa jornada, a vida se torna mais bela e apavorante, pois, a
cada momento ou de circunstâncias em circunstâncias poderemos deixar de ser, vir-a-ser e ser novamente, mas é nesse movimento oscilante
que se desenvolve e se aprimora a consistência do Eu.
Heráclito, em Borges, é instigante, é alguém como todos nós, vindo da
condição de dependência, mas que, curioso, corajoso e ousado, procura
ser: “E então sente com o assombro de um horror sagrado que também é
um rio e uma fuga”. A verdade, de fato, é que somos curiosos por instinto
e desejosos e apavorados pelo intuito de conhecermos o novo. Se existe
alguma experiência bela e terrorífica, é aquela desenvolvida numa análise, em que experimentamos nossas mudanças e percebemos que não há
retorno. Não se mergulha, flutua ou nada no mesmo rio. A transformação é revolução interna que nos remete à experiência de sermos novos a
cada momento. Mas essa novidade, essa mudança nos renova e amedronta, pois sabemos que depois dela não há mais como pararmos, a não
ser que a mudança catastrófica nos direcione para a loucura, como novo
arranjo de nos livrarmos, ou melhor, de tentarmos nos evadir daquilo
que somos.
Finda essa introdução, gostaria de adentrar nos textos acima citados de
Borges, no sentido de procurar, explorar e aprender com o poeta questões pertinentes ao trabalho do psicanalista, principalmente naquilo em
que ele, acredito, contribui para a observação da alma humana, eixo de
pesquisa e disciplina científica encontrada nos trabalhos de Bion. Nesse
sentido, vejo que a questão do vértice estético também remete à pesquisa e à importância que a criação artística, a apreensão do verso e a disciplina para intuir os sentimentos e as emoções humanas do poeta têm
para nós, psicanalistas, no sentido do aprimoramento do nosso método
de pesquisa psicanalítica.
2 Primeiro Recorte: o pesadelo
Em sua obra “As Sete Noites”, de 1980, Borges escreve um belo ensaio
sobre o pesadelo e, logo em seguida, tece alguns pensamentos sobre os
417
Carlos de Almeida Vieira
sonhos. “Não podemos examinar os sonhos diretamente. Podemos falar
da memória dos sonhos. E, possivelmente, a memória dos sonhos não
tem correspondência direta com os sonhos.” Outros acreditam que melhoramos os sonhos; se pensarmos que o sonho é uma obra de ficção (e
eu acredito que seja) é possível que continuemos fabulando logo ao despertar e, depois, quando o contamos. Ao psicanalista cabe não esquecer
que jamais chegamos à essência última do fenômeno-sonho. Por mais
que o interpretemos, por mais que queiramos significar e explicar essa
“obra de ficção”, ela nos vence na medida em que continua, na vigília, o
trabalho onírico. Logo adiante, Borges, citando Frazer, escreve: “[...] os selvagens não fazem distinção entre a vigília e o sonho. Para eles, os sonhos
são um episódio da vigília”. Enfim, sonhamos diurna e noturnamente,
como dizia Bion, dando-nos a entender que o psicanalista teria de ouvir
seu analisando como se estivesse ouvindo o sonho, o sonho da sessão.
Shakespeare também afirmou que “somos feitos da mesma matéria de
nossos sonhos”, somos uma permanente criação artística, ficcional, que,
através de uma simbologia e de uma linguagem sofisticadamente estética, criamos nosso romance. Narramos nossos personagens e adentramos
numa história que traz os nossos antepassados e as nossas experiências
ainda não nomeadas, e uma forma de podermos nomeá-las é treinarmos
a intuição, base da apreensão estética, poética, metafórica e onírica.
Quando examina a origem da palavra pesadelo, Borges caminha por vários sentidos etimológicos: em espanhol, pesadilla; em grego, efialtes. Efialtes
é o demônio, é a ação infernal do terror onírico. No latim, continua, vai
achar a palavra incubus: literalmente escreve: “O incubo é o demônio que
oprime o adormecido e inspira-lhe o pesadelo”. É no inglês que o sentido
fica mais forte – the nightmare – significa a “égua da noite”. Mas o sentido
mais abrangente para o poeta vai ser buscado na raiz niht mare ou night
mare, o demônio da noite. Se, por um lado, a “força demoníaca”, a força
das pulsões constitui a matéria-prima do sonhar, e aqui estou me referindo “à parte psicótica da personalidade”, por outro lado, ainda Borges é
capaz de tirar proveito dos seus pesadelos quando prioriza em seus sonhos dois tipos de pesadelos: um, “o pesadelo do labirinto”; o outro, “o
pesadelo do espelho”. Labirintos e espelhos são experiências oníricas que
nosso autor relaciona com questões da condição humana. No labirinto,
observamos vários caminhos e arranjos percorridos por nossa mente em
direção a saídas para pensarmos e agirmos; no pesadelo do espelho, apon-
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ta-se para o horror de olhar para si mesmo. Olhar esse que revela ora
enganos (as máscaras), ora o verdadeiro rosto, a verdadeira alma. A vida
e a análise nos ensinam isso: é um jogo permanente de surpresas, sustos,
alegrias, prazer e dor, quando estamos sempre entrando em contato com
nossa realidade interna e externa.
Borges chegou a afirmar algo de suma importância para nós psicanalistas: “Seja como for, nos pesadelos, o importante não são as imagens. O
importante, como descobriu Coleridge (poeta de Bion e Borges) – decididamente, estou citando os poetas –, é a impressão que os sonhos produzem. As imagens são de menos, são efeitos. Já disse, no início, que tinha
lido muitos tratados de psicologia nos quais não encontrei textos de poetas, que são singularmente iluminadores”.
Em diálogos de Borges e Osvaldo Ferrari, no volume “Sobre os Sonhos e
Outros Diálogos” (2009), há uma passagem muito ilustrativa que mostra
a intimidade que Borges tinha com a função do sonhar. Escreve ele: “Agora, se o fato de sonhar fosse uma espécie de criação dramática, então
aconteceria que o sonho é o mais antigo dos gêneros literários, inclusive
anterior à humanidade, porque, como lembra um poeta latino, os animais também sonham. E viria a ser um fato de índole dramática, como
uma peça na qual somos o autor, o ator e também o edifício, o teatro. Ou
seja, à noite, somos todos, de alguma maneira, dramaturgos”. Bion amplia a versão, agregando a atividade onírica da vigília: assim, poderíamos
afirmar que durante a noite e o dia somos dramaturgos.
Na parte final do poema “O Sonho”, Borges expande a noção do onírico e
da função do sonhar como comunicação do inconsciente, quando escreve: “Serei todos ou ninguém / serei o outro que sem sabê-lo sou / aquele
que olhou esse outro sonho, minha vigília / a julga, resignado e sorridente”.
Borges foi alguém que lia muito; lia mais do que escrevia. Fazia questão
de enfatizar que era mais um leitor do que um escritor. Vários autores
canônicos, filósofos, artistas e pensadores faziam parte de sua imensa
biblioteca. Citando Thomas Browne, diz ele que “os sonhos dão-nos uma
ideia de excelência da alma, já que a alma está livre do corpo e dá de
brincar e sonhar”. Bela passagem que nos remete a pensar que a disciplina analítica de nos abster, o máximo possível, das luminosidades exte-
419
Carlos de Almeida Vieira
riores, da corporeidade das atuações e estímulos dificulta e põe obstáculos ao sonhar do analista e do analisando. Petrônio, ainda citado por Borges
nesse mesmo ensaio, dizia: “quando a alma está livre da carga do corpo,
brinca”.
Ainda que haja forças repressivas dentro do sonhar, sonhar é realmente
uma construção imagética repleta de significados, funções e finalidades
no trabalho analítico. Enquanto Bion nos fala da possibilidade de as experiências serem digeridas e transformadas em sonhos, os poetas parecem que fazem esses atos a cada momento. Os poetas são capazes de
extrair das suas “pré-concepções”, realizando no conhecimento tanto as
nossas alegrias, amores e satisfações quanto as nossas tristezas e desesperos. Concluo essa digressão, citando, mais uma vez, Borges: “E se os
pesadelos forem estritamente sobrenaturais? se os pesadelos forem frestas do inferno? por que não? tudo é tão estranho que até isto é possível”.
3 Segundo Recorte: a poesia
No Prólogo do livro “A Rosa Profunda”, Borges (1975) escreve: “A missão
do poeta seria restituir à palavra, ao menos de modo parcial, sua primitiva e agora oculta virtude. Todo verso teria dois deveres: comunicar um
fato preciso e tocar-nos fisicamente, como a proximidade do mar”. Adiante, prossegue:
No fim de tantos – e demasiados anos de exercício de literatura, não
professo uma estética. Por que acrescentar, aos limites naturais que
nos impõem, o hábito de uma teoria qualquer? As teorias, como as
convicções de ordem política e religiosa, não passam de estímulos. Ao
percorrer as provas deste livro, noto com certo desagrado que a cegueira ocupa um lugar lastimoso que não ocupa minha vida. A cegueira é uma clausura, mas também é uma libertação, uma solidão
propícia às invenções, uma chave e uma álgebra. (BORGES, 1975).
Nosso escritor sabia e estava fornecendo um conselho, uma advertência:
as crenças e as teorias usadas como defesas contra a ignorância têm
pouca importância. O pensamento livre, o conhecimento a partir da liberdade, da “cegueira”, lembra-nos Freud, falando de “cegar-se artificialmente”, e Bion, enfatizando a teoria do negativo.
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Borges intuía que o poeta, tal como Platão, admite que as experiências e
os fatos instam a necessidade de serem aprendidos. Quando ele escrevia,
dizia Borges, tinha a sensação de algo preexistente: “As coisas são assim.
São assim, mas estão escondidas, e meu dever de poeta é encontrá-las”.
Do psicanalista espera-se algo semelhante. Desenvolvemos uma atitude
de escuta, intuímos e esperamos, livres de regras, desejos, intenções, que
as ideias brotem em nossas mentes para formularmos conjeturas, palpites e formulações sobre a realidade psíquica do nosso analisando. No
referido ensaio, a título de ensino, aparece uma ideia genial de Platão.
Dizia ele que a poesia é uma experiência estética. Algo assim como a
revolução no ensino. Que seria de um analista sempre em formação, sem
ter e desenvolver uma capacidade estética? Será que podemos ensinar?
Penso que podemos ajudar a desenvolver essa capacidade, caso exista, e,
nesse sentido, os escritores, os poetas e os artistas nos subsidiam de disciplina metodológica. Veja o que nosso autor, adiante, nos alerta: “Acredito que a poesia é algo que se sente, e se vocês não sentem a poesia, se
não têm um sentimento de beleza, se uma história não os leva ao desejo
de saber (curiosidade) [grifo nosso], o autor não escreveu para vocês. O
fato estético é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível quanto o
amor, o sabor da fruta, a água”.
A humildade de Borges, diante do mistério do pensar, diante da capacidade de sonhar e de se colocar grávido para receber o verso, mostra a
atitude de tolerância, espera e paciência que subsidia uma conjectura
interpretativa do psicanalista. A poesia reside no relato do analisando,
na narrativa simples mas simbólica de sua linguagem, ou mesmo na incapacidade de nomear sua experiência, fenômeno que, às vezes, reflete
que a mente ainda não pensa, mas apresenta sinais de uma gestação em
busca do não pensado. O psicanalista tira proveito da sua sensibilidade
poética para sonhar o sonho do analisando e poder comunicar – de uma
forma simples, corriqueira, mas colorida pelo sentido estético – o sentido
encoberto da consciência sensorial. O jogo analítico é um jogo de escuroclaro, consciência-inconsciência, vazio-presença, silêncio-verbalização.
Browning, citado por Borges, adverte: “Quando nos sentimos mais seguros, ocorre algo, um pôr do sol, o fim de um coro de Eurípedes, e, de novo,
estamos perdidos”. O labirinto que acompanhou Borges em todas as suas
elaborações em direção à procura da Verdade expandia seu pensamento,
421
Carlos de Almeida Vieira
abria alternativas, criava novos caminhos – esperava que novas
conjecturas lhe viessem em forma de verso e prosa. A frase que ora leio,
nesse esplêndido ensaio sobre a poesia, finaliza, de forma didática, para
nós, psicanalistas, o momento da inspiração criadora: “rosa é sem por
quê; floresce porque floresce”.
Em Harvard, nos anos de 1967 e 1968, Borges, convidado para falar sobre
poesia – conferências transformadas no livro “Esse ofício de verso” –, traz
ideias tiradas da sua arte para serem usadas na disciplina de compor. A
partir da sua humildade em dizer que duvidava se tinha “revelações a
dizer”, lembrava reflexões de sua vida de poeta: “Sempre que folheava
livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras
de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles
escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é
na realidade: uma paixão e um prazer... Passamos à poesia, passamos à
vida. E a vida, estou certo, é feita de poesia. A poesia não é alheia – a
poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a
qualquer instante”.
A ideia deste trabalho é a de direcionar o leitor para questões
metodológicas e técnicas em psicanálise, privilegiando o vértice estéticoartístico. Ao psicanalista se faz necessário desenvolver sua sensibilidade
estética e sua capacidade intuitiva, que tanto fundamentam o ofício dos
artistas. O “ofício do verso” (BORGES, 2007), assim como o trabalho de um
músico ou pintor, oferta ao psicanalista uma disciplina e uma atitude de
trabalho, sem, contudo, minimizar a importância do método científico.
Bion, após transitar pela matemática, pela física, pela religião, pela filosofia e, principalmente, devido a uma atitude epistemológica constante,
termina sua vida convencido de que a linguagem para descrever suas
observações da alma humana e suas questões e controvérsias sobre psicanálise é a linguagem literária. A obra “Uma Memória do Futuro” é a
convicção bioniana de que, se ainda não temos uma linguagem, e penso
que ainda estamos tentando procurar uma linguagem comum, a forma
literária é uma saída para captarmos e intuirmos nossa realidade psíquica e a realidade externa, além de permitir-nos descrever mais profundamente os estados de alma humana. Bion deixou um desafio em sua forma de trabalhar: desenvolvermos a capacidade de pensar. Pensar a experiência emocional, aprendendo e transformando esse conhecimento em
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direção à Verdade. Nesse contexto, lembro de um belo poema de Borges,
em seu livro “A Cifra”, de 1981, inspirado em William Blake, poeta comum de Borges e Bion:
Blake
Onde estará a rosa que em tua mão
Prodiga, sem saber, íntimos dons?
Não está na cor, porque a flor é cega,
Nem na doce fragrância inesgotável,
Nem no peso da pétala. Essas coisas
São alguns poucos e perdidos ecos
A rosa verdadeira está bem longe.
Pode ser um pilar ou uma batalha
Ou um firmamento de anjos ou um mundo
Infinito, secreto e necessário,
Ou o júbilo de um deus que não veremos
Ou um planeta de prata em outro céu
Ou um arquétipo horrível que não tem
A forma dessa rosa.
Espero, com esta comunicação, ter aproximado dois autores, um psicanalista e um artista, poeta, ensaísta e pensador: Bion e Borges apontam
para a importância do vértice estético-artístico em psicanálise. No primeiro momento, como um recurso para a observação, como técnica de
observação; e, no segundo, como alternativa para apreender a experiência emocional humana. Afinal, a psicanálise hoje, não há dúvidas, é um
dos olhares, métodos e recursos para se apreender a realidade inconsciente, e não a única. Bion expandiu essa visão e, nesse sentido, somos
gratos a autores como J. L. Borges e tantos outros que nos auxiliam, nos
ensinam e nos habilitam também na apreensão dos fenômenos da mente humana. Oxalá tenhamos a humildade de aprender com os escritores
e poetas e, com isso, expandirmos, desenvolvermos e aprofundarmos
nossa capacidade intuitiva e observacional em psicanálise.
Might W. R. Bion have read J. L. Borges? The literary aesthetic
vertex
Abstract: In this communication, the author attempts to bring two contemporary
thinkers: J. L. Borges (1899-1986) and W.R. Bion (1897-1972). Coincidentally, in both
libraries we are able to find similar readings and authors, especially when it comes
423
Carlos de Almeida Vieira
to literature, specifically English literature. The article intends to draw the attention
of psychoanalysts to the importance of the aesthetic-literary vertice. It also shows
the importance of Borges’ thought, his work discipline and clippings with which
the author hopes to contribute to the formation of a psychoanalyst through Bion’s
concepts. This work also highlights the ability to observe the human soul
phenomena, the importance of intuition and aesthetic resources, as a
methodological task, and the psychoanalyst training related to the need to devote
to the study of the “canonical” authors in literature, in order to develop his /her
sensitivity to grasp what lies beyond the sensory and the manifest.
Keywords: Literature. Poetry. Psychoanalytic training.
¿W. R. Bion habría leído a J. L. Borges? El vértice estético literario
Resumen: El autor intenta, en esta comunicación, aproximar dos pensadores:
J.L.Borges(1899-1986) y W.R.Bion (1897-1972).Coincidentemente, en la biblioteca de
los dos encontramos lecturas y autores semejantes, principalmente en lo que dice
respecto a literatura, especifícamente de la lengua inglesa.El artículo pretende llamar
la atención de los psicoanalistas para la importância del vértice-literário.Muestra
la importância del pensamiento de Borges, su disciplina de ofício y recortes con los
cuales el autor espera colaborar para la formación de um psicoanalista por el bies
de Bion.Resalta también la capacidad de observación de los fenômenos del alma
humana, la importância de la intuición y de los recursos estéticos, como tarea
metodológica, y entrenamiento, en lo que toca al psicoanalista, de la necesidad de
dedicarse al estudio de los autores dichos “canônicos” en la literatura, a fin de
desarrollar, de esa manera, su sensibilidad para aprehender aquello que se encuentra
más allá de lo dicho, de lo sensorial y de lo manifiesto.
Palabras clave: Literatura. Formación psicoanalítica. Poesia.
Referências
BION, W. R. Seminarios de Psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1978. p.79.
BORGES, J. L. A cifra. In:
. Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
. A Poesia - Obras Completas III. São Paulo: Globo, 2006.
. A rosa profunda. In: BORGES, J. L. Poesia. São Paulo: Cia. das Letras,
2009.
. As sete noites - Obras completas III. São Paulo: Globo, 1999.
. Esse ofício de verso. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
. Sonho. In: BORGES, J. L. Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
Teria W. R. Bion Lido J. L. Borges? O vértice estético-literário
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 411-424, 2010
424
.; FERRARI, O. Sobre os sonhos e outros diálogos. São Paulo: Ed.
Hedra, 2009.
GROTSTEIN, J. Um facho de intensa escuridão. Porto Alegre: Artmed, 2010.
HARRIS, M. As musas da psicanálise. Revista Mente & Cérebro, ed. esp.
Memória da Psicanálise, São Paulo, v. 6, 2009.
ORDÓÑEZ, S. F. O olhar de Borges – uma biografia sentimental. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Carlos de Almeida Vieira
SHIS QI Lote E Bloco I Sala 310
Ed. Centro Clínico do Lago – Lago Sul
71625-009 Brasília – DF – Brasil
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Ignácio Alves Paim Filho
A Subjetividade do Analista
nos Labirintos da Cura
Artigo | Trabalho apresentado na VIII Jornada Científica da SBPdePA – A Pessoa do Analista na
Clínica Contemporânea. Na mesa redonda: “A Interferência da Subjetividade do Analista”.
Ignácio Alves Paim Filho
Psicanalista, Membro Pleno do CEPdePA,
Membro Associado da SBPdePA.
Resumo: O autor tem como proposta pensar a subjetividade do analista e suas
ressonâncias (interferências) no processo da cura. Para tanto, tomará como metáfora interlocutora a relação Jung–Sabina. Partindo desse encontro, com seus
desencontros, retoma a importância do inconsciente do analista no desenrolar da
análise. Nesse sentido, tece considerações sobre a análise do analista e sobre o seu
papel como instrumento vital, para que a sua subjetividade possa ser potencializada
e, com isso, seja possível facilitar a jornada empreendida pela dupla analítica nos
labirintos da cura.
Palavras-chaves: Inconsciente. Psicanalista. Subjetividade.
Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no relacionamento analítico, que, na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir-se
ser levado por suas inclinações (FREUD, 1938, p. 202).
Subjetividade, eis aí um substantivo feminino carregado de complexidade; ao mesmo tempo em que explicita uma significação, encobre uma
série de outros significados. Sabemos que é definido como do sujeito, pessoal; que não é concreto, exato ou objetivo. Ou ainda, nas palavras do autor do
Dicionário de Filosofia (1998): Caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência, que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama
de “meus” (1998, p. 922). Decorrente dessa significação, uma pergunta se
impõe: o que entendemos por sujeito? Recorrendo, novamente, aos dicionários da língua portuguesa, a palavra é conceituada nestes termos:
“individual, aquele que pratica ou sofre uma ação” (GRANDE ENCICLOPÉDIA
A Subjetividade do Analista nos Labirintos da Cura
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 425-435, 2010
426
LAROUSSE, 1999). A partir dessa conceitualização, temos novas perguntas: esse ser que pratica e/ou sofre uma ação o faz desde onde? Responder a essas indagações, tendo como norte a subjetividade desde o viés
psicanalítico, requer um pensar na constituição da psique.
Se a subjetividade remete ao sujeito, a algo da ordem do não objetivo, do
individual, do que faz de cada um de nós um ser único, então temos
posto de forma discursiva o lugar central do inconsciente como
determinante do sujeito psíquico1, produto de uma verdade histórica.
Assim sendo, falar em subjetividade é, antes de tudo, falar da essência de
cada sujeito, de como se estruturou o seu mundo fantasmático, o universo do desejo com toda a sua força e dinamismo psíquico.
Ao postularmos que nossa subjetividade é produto do nosso inconsciente, estamos trazendo para o primeiro plano a ideia de que o estrangeiro
que nos habita é que vai determinar o nosso peculiar jeito de ser. Portanto, olhar, pensar e sentir os derivados dessa terra desconhecida são meios para sabermos um pouco mais da nossa subjetividade. Somos o que
não conhecemos – o que conhecemos, no âmbito do pré-conciente-consciente, são apenas os emissários (produtos da condensação e do deslocamento), oriundos do país de nossa origem. Com a criação dessa concepção, Freud inventou a psicanálise, portadora de uma teoria e de um método de investigação e tratamento, com o que forjou os instrumentos
necessários para que o sujeito ampliasse a sua capacidade de conhecer o
desconhecido, o que significa estar mais conectado com a verdade velada de seu inconsciente – sendo este constituído pelo desejo que, ao mesmo tempo, o constitui. Consequentemente, impõe-se refletir sobre a subjetividade e pensar nos destinos do desejo. Desejo este que, à medida que
pode ser revelado, mesmo que de forma parcial, possibilita ao indivíduo
adquirir o status de ser mais agente – e, portanto, menos assujeitado ao
determinismo – nessa terra estrangeira chamada inconsciente.
O conquistador do inconsciente desconcertou o pensamento filosófico
ocidental de seu tempo, que pensava a subjetividade como um produto
do eu racional, governado pela consciência de si – o sujeito só é pensável
1
A expressão sujeito psíquico foi concebida por Lacan. Segundo Porge (1996): “O sujeito é a própria hipótese”. Poderíamos dizer que Lacan retoma literalmente a expressão “hipótese do inconsciente” e substitui “hipótese” por “sujeito”.
427
Ignácio Alves Paim Filho
enquanto sujeito do conhecimento. Poderíamos dizer que Descartes (15961650) é o grande representante desse cogito, com seu “penso, logo existo”,
bem como Kant (1724-1804) e Husserl (1859-1938). Freud propôs o inédito, ao dizer que somos governados por nossas moções pulsionais e suas
vicissitudes inconscientes e no inconsciente. Explicita esse pensar, que
faz do eu da consciência um vassalo da força do inconsciente, no seu
célebre aforismo de 1917: “O ego não é senhor da sua própria casa” (p.
178). Expandir o conhecimento de nossa subjetividade, sermos menos
estrangeiros para nós mesmos é o grande objetivo de todo o processo
analítico. Como diz Freud nos textos técnicos de 1912, tornar “consciente
o inconsciente”. Essa proposta segue válida para toda a obra freudiana. O
que modifica são as complexidades envolvidas nesse processo; entre elas,
a importância da inter-relação entre o inconsciente recalcado e o não
recalcado. Isso posto, o analista se vê convocado a repensar o seu trabalho via construções e interpretações.
Tomando como base toda a relevância da subjetividade como produto do
inconsciente, é extremamente significativo pensar que ressonâncias, ou
interferências, são produzidas pela subjetividade do analista no exercício da sua função, que está sob a insígnia de uma tarefa impossível (FREUD,
1937). Portanto pensar, refletir e especular sobre a subjetividade do analista é ponderar o imponderável, uma vez que se trata da sua individualidade, da singularidade, o que lhe outorga a constituição do seu ser. Assim sendo, a subjetividade do analista ou seu inconsciente, portador do
desejo, se fará sempre presente no decorrer do exercício da sua função, e
será em nome dessa particularidade que Freud irá escrever os artigos
que chamará de Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912).
Nesse artigo, encontramos a seguinte afirmação:
[...] o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações do paciente (1912, p. 154).
A partir desse momento, temos em Freud a presença, de forma textual,
do lugar distinto do inconsciente do analista, ou seja, da sua subjetividade no processo analítico. Está posto que o seu instrumento de trabalho é,
por excelência, o seu inconsciente. A questão que se formula a partir
dessa afirmação é: como se dá esse processo de, a partir do inconsciente
do analista, viabilizar-se o acesso ao inconsciente do analisando? Penso
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que um bom caminho para especular uma resposta ao questionado anteriormente encontramos nesse mesmo texto quando Freud nos adverte:
Mas se o médico quiser estar na posição de utilizar seu inconsciente
desse modo, como instrumento da análise, deve ele próprio preencher
determinada condição psicológica em alto grau (1912, p. 154).
Freud demonstra sua preocupação com essa temática em vários momentos da sua produção. Porém, é necessário assinalar que nunca tratou de
forma direta da questão da subjetividade do analista, embora possamos
encontrá-la pelo viés de suas inquietudes com a importância do inconsciente do analista no processo da cura. Ao unirem-se inconsciente e subjetividade, está sendo proposta uma questão central para o pensamento
psicanalítico: a construção do inconsciente, uma vez que ele vai se estabelecer a partir do encontro da pulsão com o objeto. Isso determinará a
inscrição do mundo representacional, instaurador do poder da verdade
histórica, que diz respeito ao que pensamos ter sucedido, e não ao que
ocorreu nos encontros e desencontros com o objeto, sendo essa a subjetividade.
Ao propor uma condição psicológica em alto grau, Freud está nos falando do
lugar da análise do analista como um fator de extrema relevância no
exercício do seu ofício, pois somente através dela poderá haver mais acesso
à sua subjetividade, reconhecer o seu universo desejante. E se esse processo funcionar de maneira suficientemente boa, galgará o (re)confrontarse com o seu complexo de castração, habilitando-se a curvar-se diante
da lei que a alteridade instituiu.
Por saber o quanto é difícil haver-se com as renúncias, Freud, em 1912,
postulará as suas recomendações para os que exercem a psicanálise, visando dar um enquadramento ao cenário analítico, ao setting. É importante ressaltar que as leis do setting têm a função de proteger a dupla
analítica, tendo no analista o seu guardião. Entre elas, destaco o papel da
abstinência2, o abster-se de... Partindo do pressuposto de que o analista
tem a função de viabilizar o acesso ao inconsciente do analisando a partir do seu inconsciente, torna-se condição fundamental uma boa capaci-
2
Essa temática é abordada em maior profundidade no trabalho: “Novos tempos, velhas
recomendações (sobre a função analítica)” (LEITE; PAIM FILHO, 2007).
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dade de discriminar o seu próprio universo desejante e o do analisando3.
Assim, ao buscar a subjetividade desse outro numa relação intersubjetiva,
estará também conectado com o princípio ético da psicanálise, cujo compromisso é com a busca da verdade do inconsciente.
Freud, em 1937, em seu último texto sobre a técnica, volta a ponderar
sobre a importância do analista, ou melhor, da sua individualidade, ou,
como diríamos nós, da subjetividade no processo da cura. Fiquemos atentos ao seu discurso:
Entre os fatores que influenciam as perspectivas do tratamento analítico e se somam às suas dificuldades da mesma maneira que as resistências, deve-se levar em conta não apenas a natureza do ego do
paciente, mas também a individualidade do analista (1937, p. 281).
Devido a essa inquietante estranheza com os destinos da individualidade (subjetividade) do analista, Freud, no final do capítulo VII desse mesmo artigo, faz uma espécie de última recomendação aos analistas, tendo
em mente o caráter interminável de toda análise, que tem por escopo
trabalhar com a longa temporalidade da psique.
Todo o analista deveria periodicamente – com intervalos de aproximadamente cinco anos – submeter-se mais uma vez à análise, sem
sentir-se envergonhado por tomar essa medida (1937, p. 284).
Portanto, temos posto de forma ratificadora que a análise do analista é
fator primordial para o bom exercício da sua função, pois somente ela
nos dará maiores recursos para fazermos uso de nossa subjetividade.
Tendo esse pressuposto como balizador, pretendo levantar algumas especulações, no sentido de refletir os ganhos para o processo analítico
quando bem instrumentalizada a subjetividade do analista. Não vou me
ocupar dos seus aspectos psicopatológicos, produto dos pontos cegos,
mas, sim, da efetividade da subjetividade no ofício analítico, com a pretensão de ir mais além da contratransferência – esta compreendida como
resultante do processo transferencial.
Para viabilizar tal objetivo, tomarei como estímulo fragmentos da análise de Sabina Spielrein com Jung. Enfatizo: não pretendo entrar nas ques3
Remeto o leitor ao trabalho: “Novos tempos, velhas recomendações II (função analítica: função de escuta)” (LEITE; PAIM FILHO, 2010).
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tões destrutivas, transferencial e contratransferencial, decorrentes desse processo que, inegavelmente, teve consequências lesivas para a dupla
analítica. Entretanto, causa-me estranhamento que uma análise com um
desenlace traumático, em que analista e analisando vivem em ato suas
fantasias edípicas, que rompem a barreira do recalque, possa ter, em vários aspectos, evolução favorável. Diante disso, sinto-me convocado a
buscar subsídios que possam lançar alguma luz sobre o seguinte
interrogante: o que, no processo analítico de Sabina, foi, hipoteticamente, um dos elementos facilitadores para viabilizar o emergir de aspectos
criativos e pró-vida que marcaram parte da sua história? Como, por exemplo, formar-se em medicina e psiquiatria, tornar-se analista – com trabalho clínico e teórico importante –, ser a segunda mulher a fazer parte da
Sociedade Psicanalítica de Viena (1912) e casar-se e ter duas filhas? Tenho a ideia, especulativa, de que algo da ordem da subjetividade do seu
analista – por exemplo, sua diferenciada capacidade perceptiva – tenha
cumprido uma função importante nos destinos intermináveis do desfecho dessa análise.
Recordemos que essa paciente ingressou em agosto de 1904 no Hospital
Burghölzli, de Zurique, permanecendo lá até julho de 1905. Apresentava
um quadro extremamente regressivo, contudo, recebeu o diagnóstico de
histeria. Sinteticamente, sabemos que foi uma criança com imaginação
aguçada, porém com sintomatologia importante, como angústia noturna, fobias por animais e doenças. Em torno dos quatro anos, começou a
apresentar retenção fecal, acompanhada de rituais obsessivos; aos sete
anos, masturbação compulsiva; aos dezoito anos, quadro sugestivo de
depressão; e aos dezenove teve um surto, descrito por Roudinesco (1998)
como psicótico, que culminou na sua internação.
Jung, influenciado pelas ideias freudianas, recebe essa jovem paciente de
uma forma muito singular, propondo-se a escutar seu discurso, mesmo
que fosse, desde o conteúdo manifesto, sem sentido. Partindo da sua concepção de associar o verbal à associação livre de Freud, Jung estimula o
uso da palavra e da busca de sentido que esta encobre e revela. Com a
jovem russa, rompe com os métodos tradicionais de tratamento: a meta
não é conter o delírio, mas, sim, deixá-lo falar. Parece-me que Sabina
encontrará no setting criado no Burghölzli, representado por Jung, o ambiente propício para que a sua loucura seja escutada, sentida e pensada.
Contudo, é pertinente ressaltar a intensidade do vínculo analítico que se
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Ignácio Alves Paim Filho
estabelece em tratamentos que ocorrem em instituições de internação
que convidam à fusão e ao vínculo simétrico entre analista e analisando.
Algo que Jung, enquanto um dos pioneiros da psicanálise – não analisado! –, não tinha como dimensionar. É importante destacar que o conceito
de transferência vem à luz somente em 1905, no epílogo do caso Dora.
Esse incipiente analista é um jovem psiquiatra fascinado por compreender a alienação mental e tem a sensibilidade de ser tocado pelos escritos
de Freud. Encontrou na Interpretação dos sonhos (1900) um caminho para
pensar o mais além da consciência, tocado pela força do inconsciente e
dos seus derivativos. O sexual na etiologia das neuroses o intrigava, fazendo-o oscilar entre a crença e a descrença. Esse contexto lhe forneceu
subsídios para teorizar e criar instrumentos a fim de trabalhar com o
continente das psicoses. Tinha o mérito de ser um indivíduo arrojado,
sempre disposto a inovar, evidentemente em busca de confirmar suas
ideias.
Essas características serão decisivas no seu envolvimento e na divulgação da psicanálise, bem como do pensamento freudiano. É por intermédio de Jung, por exemplo, que Abraham, em 1905, ao ir trabalhar no hospital de Zurique, tem os primeiros contatos com a psicanálise. Foi mérito
seu que a psicanálise tenha chegado à América em 1909, viabilizando as
conferências de Freud na Clark University. Tem produção teórica significativa, fundamentada na ciência criada por Freud, até 1912. Finalmente,
em 1910, foi eleito o primeiro presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), sendo considerado até essa ocasião por Freud o “príncipe herdeiro”. Sua gestão irá até 1914, quando, já rompido com o psicanalista austríaco, se afasta definitivamente da psicanálise.
Com Sabina, condizente com seu perfil, Jung vai ousar, vai realizar em
um primeiro momento, provavelmente até o final de 19074, um adequa4
Em setembro, Jung, no I Congresso Internacional de Psiquiatria e Neurologia, relata
sua experiência analítica com Sabina, que é descrita como um caso de histeria psicótica. Foi
uma oportunidade para demonstrar a sua compreensão da teoria freudiana da histeria. Por
sua correspondência com Sabina, podemos deduzir que, a partir de 1908, Jung entra de forma
consciente nos dramas desse amor incestuoso que terá o término formal em 1909, com a
inclusão de Freud para mediar o conflito. Pelo desenrolar da sua história, podemos inferir que
Sabina mantém um vínculo não analítico, mas, sim, como aluna e menina-mulher, e busca
elaborar o luto dessa paixão até 1912. Após essa data, segue uma correspondência até 1919,
de início mais pessoal, mas que gradativamente adquire um tom impessoal, centrado em
questões teóricas.
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do investimento libidinal, uma fala pulsionalizada pelo desejo da cura,
propiciando à paciente se conectar com o seu sofrimento, com o seu caos
psíquico e, a partir daí, reconstruir o seu mundo fantasmático. Um dos
pontos dramáticos da sua crise consiste em não poder olhar e, talvez,
também em não poder ser olhada; teme o que esses olhares podem denunciar. O olhar a mão paterna a excita e a leva à masturbação – marca
de um erotismo ligado a episódios em que ela e o irmão eram castigados
pelo pai, que batia em suas nádegas desnudas. Jung, diante desse turbilhão de sexualidade, suporta olhar e não se furta do seu lugar de propiciar uma possível escuta; se assusta, mas não a executa de forma proibitiva,
de acordo com a moral sexual vigente. Conjecturo, relembrando nossa
epígrafe, que nos primórdios dessa relação analítica temos um Jung que
se permite ser levado por suas percepções, diferentemente de um período
posterior, em que passa a ser levado por suas inclinações.
Tais inclinações estão imbricadas no destino filicida5 que irá perpassar a
história analítica e pós-analítica de Sabina. A título de ilustração, temos
o total esquecimento e, por conseguinte, o não reconhecimento, pelo
movimento psicanalítico, da vasta contribuição dessa pensadora6. Vejase a impossibilidade de realizar o seu desejo de se fixar na Europa, pois
fez várias tentativas, todas frustradas. Em 10 anos, circulou pelas seguintes cidades: Zurique, Munique, Lausanne e Genebra, mas acabou por se
ver compelida a retornar para a terra mãe, a Rússia, em 1923. Acredito
que o final trágico dessa pioneira da psicanálise, assassinada pelas tropas de Hitler em 1942, seja também produto da sua impossibilidade de
romper com os desígnios tanáticos engendrados pelas figuras parentais,
dos quais Jung foi depositário e agente na perpetuação dessa repetição
demoníaca. Dizem os seus biógrafos que ela sempre defendeu a ideia de
que um povo tão culto como o alemão (Jung?) jamais seria capaz dessa
barbárie. (Seria isso visto como um possível resíduo de uma transferência idealizada não elaborada?).
5
No trabalho “A ‘via-sacra’ do filicídio no processo analítico” (BORGES; PAIM, 2009), os
autores abordam a temática da ação filicida do analista, no sentido do assassinato da alteridade
do analisando.
6
Devo à psicanalista Renata Gronberg a possibilidade de refletir a respeito dessa pioneira da psicanálise. Em atividade realizada pelo Espaço Psicanalítico em Porto Alegre (03/09/
2010), com a conferência: “Pulsão de Morte na História da Psicanálise: o esquecimento de Sabina
Spielrein”.
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Ignácio Alves Paim Filho
A história desse processo analítico evoca-me outra história: o processo
analítico inaugural da psicanálise, a relação Breuer–Berta P. (Anna O.).
Aventuro-me a explorar a ideia do quanto possa ter sido terapêutica para
Anna O. a possibilidade de ser escutada por Breuer, de forma sistemática,
centrada no princípio do valor da palavra – que ela vai nomear talking
cure (a cura pela fala). Essa relação teve um término também traumático.
Contudo, a história posterior dessa paciente contempla uma vida produtiva, pois veio a ser a primeira assistente social da Alemanha com um
trabalho dedicado às mulheres vítimas de violência. Poderíamos pensar
que algo da subjetividade de Breuer esteve implicado nos destinos desse
tratamento com a jovem judia de 21 anos?
Bem, voltemos a nossa atenção a essa jovem analista de 27 anos, Spielrein.
Em 1912, segundo historiadores, ela está totalmente curada do seu episódio psicótico. Nesse momento, publica seu mais célebre trabalho, A
destruição como causa do devir, que vai ser imortalizado por Freud em nota
de rodapé em Além do princípio do prazer (1920, p. 75). Talvez pudéssemos
inferir que estava, também, de forma sublimatória, retratando o viés fecundo desse encontro analítico marcado por paradoxos, ambiguidades e
interferências extrassetting. Quem sabe poderia ter dado o seguinte subtítulo a seu escrito: “O meu percurso da loucura (destruição) à sanidade
(devir)”.
Parece-me que esses fatos serão determinantes para que Freud escreva
os textos técnicos, focando as recomendações aos que exercem a psicanálise. Pois é com eles que Freud trará para o primeiro plano o lugar do
analista no processo analítico, ou melhor, buscará dar maior especificidade
ao seu inconsciente, que é o fundamento da sua subjetividade. Nesse
sentido, poderíamos dizer que a técnica analítica adquiriu sua singularidade e maturidade a partir dos desdobramentos de histórias analíticas
como a de Jung e Sabina, ou, ainda, de Ferenczi e Gizella/Elma (1908–
1911)7 .
7
Em Budapeste, em consonância com o que vinha acontecendo em Zurique, Ferenczi
relatava a Freud a situação que estava vivendo com Gizella, sua amante e depois sua paciente
(1908). Em 1911, para complicar mais a situação, Ferenczi passa a ser analista de Elma, filha
de Gizzella. Algum tempo depois, se diz apaixonado por Elma, anunciando sua ideia de casarse. Nesse caso, Freud intervém de forma mais ativa, fazendo com que Ferenczi contraia matrimônio com Gizella e renuncie a Elma.
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Encerrando essas divagações sobre a subjetividade do analista nos labirintos da cura, evoco o labirinto de Dédalo, recordando suas recomendações ao filho, Ícaro, quando da saída do labirinto: “Não voar tão alto que
as asas (coladas com cera) derretessem ao calor do sol, nem tão baixo
que as asas ficassem molhadas pela água do mar”. Parafraseando Dédalo,
tendo Freud em mente, com suas recomendações técnicas, para aqueles
que se atrevem a adentrar nos labirintos analíticos, proponho: não voar
tão alto, para que venhamos a nos derreter diante do calor da “contra/
transferência”, nem tão baixo que fiquemos encharcados pela correnteza das águas abissais da psique. Não esquecendo que o radar que orienta
cada analista, nesse voo, que foi nomeado por John Kerr como um método
muito perigoso, é a sua subjetividade, ou melhor, a força pulsante do inconsciente.
The Analyst’s Subjectivity in the Labyrinths of Cure
Abstract: The author’s purpose is to consider the analyst’s subjectivity and its extents
(interference) in the process of cure. For this achievement, the relation Jung-Sabina
will be taken as a metaphoric interlocution. Starting from this encounter with its
missed meetings, the importance of the analyst’s unconscious is pointed out in the
progress of analysis. Considerations about the analyst’s personal training and his
role as a vital instrument are made, so his subjectivity can be strengthened and,
therefore, make the undertaken journey easier for the analytical pair in the
labyrinths of the cure.
Keywords: Psychoanalyst. Subjectivity. Unconscious.
La Subjectividad del Analista en los Laberintos de la Cura
Resumen: El autor tiene como propuesta pensar la subjectividad del analista y sus
resonancias (interferencias) en el proceso de la cura. Para ello, tomará como metáfora interlocutora la relación Jung-Sabina. Partiendo de ese encuentro, con sus
desencuentros, retoma la importancia del inconsciente del analista en el desarrollo
del análisis. En ese sentido, teje consideraciones sobre el análisis del analista y
sobre su rol como instrumento vital, para que su subjectividad pueda ser
potencializada y, con ello, sea posible facilitar la jornada emprendida por la pareja
analítica en los laberintos de la cura.
Palabras clave: Inconsciente. Psicoanalista. Subjectividad.
435
Ignácio Alves Paim Filho
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BORGES, G; PAIM FILHO, I. A. A “via-sacra” do filicídio no processo analítico. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 43, n. 3, 2009.
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e Gráfica, 1999. v. 22.
FREUD, S. (1900) Interpretação dos sonhos. In:
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 4 –5.
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. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: FREUD, S.
Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 7.
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FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 12.
. (1917) Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: FREUD, S.
Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 17.
. (1920) Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 18.
. (1937) Análise terminável e interminável . In: FREUD, S. Obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. 23.
. (1938). Esboço de psicanálise. In: FREUD, S. Obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 23.
JUNG, C. G. Freud e a psicanálise. In:
Vozes, 1971. v. 4.
. Obras completas. Petrópolis:
LEITE, L. C.; PAIM FILHO, I. A. Novos tempos, velhas recomendações (sobre
a função analítica). Psicanálise: Revista da SBPdePA, Porto Alegre, v. 9, n. 1,
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. Novos tempos, velhas recomendações II (função analítica: função
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PORGE, É. Sujeito. In: KAUFMANN, P. (Org.). Dicionário enciclopédico de
psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
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Ignácio Alves Paim Filho
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Laura Ward da Rosa
O Dia em que a Gestapo
Chegou à Bergasse 19
Ensaio
Laura Ward da Rosa
Médica psicanalista. Membro Titular da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre. Docente do Instituto de Psicanálise da
SBPdePA. Docente do Curso de Pós-Graduação
“Psicanálise e Educação” da UniRitter e SBPdePA.
Aquele foi, certamente, o dia mais dramático e angustiante para Freud.
Acostumado às turbulências despertadas por suas descobertas, ao trabalho clínico incessante e aos graves problemas de saúde, nada se poderia comparar ao que vivia naquela tarde de 22 de março de 1938, quando
a Gestapo chegou à sua casa e levou Anna para depor no comando nazista, que tomara Viena, anexando a Áustria ao domínio de Hitler. Anna era
muito mais que sua filha caçula, era sua colega de estudos, aluna dileta,
revisora de seus textos, confidente dos embates e divergências entre os
grupos de discípulos, colaboradora da pesquisa clínica, sua ex-analisanda
e sua fé no seguimento dos ideais da psicanálise. Era também a herdeira
confiável e fiel de seus ensinamentos e, nos últimos anos, a dedicada
enfermeira que o acompanhara nas trinta e três cirurgias no orofaringe e
na limpeza de sua prótese no maxilar direito. Anna era, sem dúvida, o
seu amor mais caro e o amparo indispensável ao velho pai, vivendo seus
últimos dias.
“Ela é a minha Cordélia e também a minha Antígona”, brincava Freud,
falando aos amigos, identificando-se aos pais possessivos: Rei Lear, de
Shakespeare, e Édipo, de Sófocles. Acompanhara sua infância, velara seus
sonhos, até publicando alguns, para ilustrar a realização do desejo nas
crianças, como aquele em que a menina, aos dezenove meses, passara o
dia de dieta, por apresentar vômitos e, durante o sono, murmurava: “Anna
Freud, morangos, flan e mingau”. No verão, passeios pelos maravilhosos
Alpes austríacos, brincadeiras, nas férias, na majestosa casa em Bellevue,
O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 437-440, 2010
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na colina aprazível onde o mestre sonhara o famoso “Sonho de injeção
em Irma”, até hoje exemplo de construção onírica de variados conteúdos, estudados em todos os detalhes pelo próprio sonhante. Na adolescência de Anna, explicara-lhe sua ousada teoria da sexualidade infantil,
origem de tantas discórdias no meio médico, motivo de sua exclusão dos
convites para conferências e dez anos de “esplêndido isolamento”, como
costumava definir esse período.
Alguns dias antes, bateram à porta, e Martha, zelosa mãe da família, abrira,
deparando-se com soldados nazistas que, sem cerimônia, entraram e
passaram a revistar a casa. Essas “visitas” tornaram-se frequentes após a
invasão, e os judeus eram saqueados e agredidos nas ruas de Viena. Temendo pelo pai, enfermo e debilitado, Anna abriu o cofre e retirou dele
seis mil xelins austríacos, entregando-os para que fossem embora. Imediatamente repartiram o dinheiro e retiraram-se. A cena foi acompanhada por Ernest Jones, biógrafo de Freud, que viajara apressadamente da
Inglaterra tão logo soubera da ocupação da cidade, temendo pela vida do
mestre e organizando a sua retirada da Áustria. Freud negava-se a emigrar, recusando as ofertas de asilo. Temia viajar devido à idade avançada
e à dificuldade de locomoção, além de considerar uma covardia, como a
condição do comandante que abandona o barco que está naufragando.
Naquela tarde, porém, quando voltaram para buscar Anna e a levaram
para depor, Freud começou a admitir que, se ela voltasse viva, deveria
concordar, para salvar a família. Sua angústia era maior da que sentira
antes, frente aos muitos infortúnios, às dissidências, perdas, mortes, doenças e cirurgias. O que poderiam fazer com Anna? Que perguntas exigiriam de alguém sem nenhum envolvimento político, sem nenhum cargo
público, unicamente voltada ao estudo e ao trabalho com crianças? Soube-se, então, que os nazistas estavam convencidos de que a Associação
Psicanalítica Internacional, fundada por Freud em 1911, era um movimento político antifascista.
As horas passavam sem notícias, e a apreensão era visível em todos os
olhares. Freud já fumara tantos charutos que a sala enfumaçada escurecia o ar, impregnando o ambiente. Maria Bonaparte viajara à Viena para
interceder junto ao comando nazista para que não prendessem o Professor, valendo-se de sua imunidade diplomática como princesa da Grécia.
Planejava ela, como já o fizera com as cartas a Fliess, contrabandear as
estatuetas gregas da coleção que Freud tanto amava, principalmente a
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Laura Ward da Rosa
da deusa Atena, que simbolizava a sabedoria e a coragem moral. Apesar
de seus apelos, os alemães haviam colocado Freud na lista dos judeus
comuns, ocuparam sua editora, dirigida pelo filho Martin, apropriaramse da caderneta de poupança, todos os seus recursos foram bloqueados e
exigiam que pagasse uma suposta dívida da sua própria editora, somando expressivo valor que ele não poderia pagar, já que não havia como
resgatar o seu dinheiro.
Na sede da Gestapo, Anna respondia, com toda a calma, às perguntas
que levantavam suspeitas, procurando explicar o trabalho científico do
pai, suas pesquisas da alma humana para aqueles que não tinham a
mínima noção do que se tratava, bem como da formação do movimento
psicanalítico internacional, que congregava pessoas unicamente com o
fim do estudo e do aprimoramento do trabalho clínico na área dos fenômenos psíquicos, sem nenhum objetivo de cunho político-partidário ou
antifascista. Cita o fato de que Freud até havia autografado um livro para
Mussolini da obra “Por que a Guerra?”, escrito em parceria com Einstein.
Ao final do dia, serena como saíra, Anna retorna sua a casa, escoltada
por quatro SS fortemente armados, num carro aberto. Alívio geral! Soube-se, então, que Max Schur, médico pessoal de Freud, dera a ela uma
cápsula de veneno com o qual ela poderia matar-se, caso fosse torturada.
Resolução unânime: deveriam deixar a Áustria o quanto antes.
No dia 28 de março, chegou a notícia de que Jones conseguira, junto ao
governo britânico, asilo a toda a família Freud e a todos os amigos do
círculo vienense – no total, dezoito adultos e seis crianças. Maria Bonaparte
pagara todas “as dívidas”, entregando vultuosa quantia aos nazistas, que
autorizaram a saída e escoltaram o grupo até a fronteira, sob a condição
de que Freud declarasse não ter sofrido nenhum constrangimento ou
maltrato. Irônico, ele escreveu no livro que lhe foi indicado: “Declaro que
fui muito bem tratado pelas forças do comando SS – recomendo-as a
todos! Sigmund Freud”.
O Dia em que a Gestapo Chegou à Bergasse 19
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 437-440, 2010
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Referências
EDMUNDSON, M. A morte de Freud, o legado de seus últimos anos. Rio
de Janeiro: Odisséia Editorial, 2009.
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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
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Luciana Saraiva Schmal, Paula Esteves Daudt Sarmento Leite
Da Criação do Vínculo ao
Vínculo de Criação: a
metáfora como caminho
Artigo | Trabalho apresentado como tema livre na VIII Jornada da SBP de PA, novembro
de 2009.
Luciana Saraiva Schmal
Membro do Instituto da SBP de PA.
Paula Esteves Daudt Sarmento Leite
Membro do Instituto da SBP de PA.
Resumo: O trabalho foi elaborado para apresentação como tema livre na VIII Jornada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, cuja temática foi: “A pessoa do analista”. A ideia das autoras é de que o vínculo pressupõe a presença de
uma outra mente para auxiliar a construção de um novo espaço-mente no indivíduo. Seria então, através do vínculo analítico, a “exigência” para o profissional de
uma forte disponibilidade afetiva, tato e criatividade como “ferramentas” básicas
de trabalho e como artifícios técnicos indispensáveis na clínica. Como consequência
deste trabalho da dupla analítica, a metáfora seria um precioso recurso de linguagem que podemos utilizar para fortificar a capacidade empática, o vínculo, bem
como a ampliação das condições psíquicas do analisando. Também enfatizam, neste
trabalho, a diferença da metáfora para pacientes mais estruturados, onde ela seria
um produto da criação do trabalho analítico, e para outros pacientes mais regressivos, onde a metáfora seria como uma “ponte” inicial de contatos e possibilidades no
percurso analítico. Utilizam, entre outros autores, Winnicott, Ferenczi, Bonaminio,
Ekstein e Ogden.
Palavras-chave: Criatividade. Metáfora. Vínculo.
O trabalho tem por objetivo desenvolver a ideia de que a criatividade
pode servir de mola propulsora, desde a criação do vínculo analítico até
a sua expressão como meta da análise, fruto do par analista-analisando.
O processo analítico é uma “viagem” repleta de incertezas, desafios e descobertas, que favorece a criação de várias produções, como os sonhos e
as metáforas. O percurso que o trabalho vai recorrer, então, é o da utilização da metáfora como uma forma especial de linguagem no campo ana-
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lítico, alimentando o vínculo, quando estamos diante de situações clínicas limítrofes ou produto do vínculo, nas condições onde já houve um
maior amadurecimento psíquico.
Conforme Winnicott (2006), a vida só vale a pena ser vivida a ponto da
criatividade ser uma parte importante da experiência. Para ser criativa,
uma pessoa tem que ter um sentimento de existência, não na forma de
percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da qual vai
funcionar.
A criatividade seria, portanto, a manutenção através da vida de algo que
pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo. Para o
bebê, isso não é difícil se a mãe for capaz de se adaptar às suas necessidades, assegurando que a percepção do mundo não seja anterior à sua
experiência de concebê-lo. O indivíduo que não tenha sido demasiadamente distorcido por uma introdução no mundo prematura dispõe de
muitas oportunidades para fomentar esse atributo de ser criativo. E, para
uma existência criativa, não é necessário nenhum talento especial, apenas a manutenção da capacidade de “ver tudo como se fosse a primeira
vez”.
Uma vez que somos capazes de surpreender a nós mesmos, estamos sendo
criativos e descobrimos que podemos confiar em nossa inesperada originalidade. O fato é que aquilo que criamos já está lá, mas a criatividade
reside no modo como somos capazes de perceber, ou seja, através da
ilusão de que essa criação foi própria.
Foi Winnicott (1975) quem melhor desenvolveu o estilo clínico sustentado nas figuras da regressão à dependência no campo transferencial e da
expressão criadora através do jogar compartilhado. Para ele, não seria
suficiente dizer que o brincar é por si só terapêutico; seria preciso acrescentar que o próprio trabalho psicanalítico se efetua na sobreposição das
áreas do brincar do analisando e do analista, tanto no tratamento de
crianças quanto no de adultos.
Em sua teorização, o sentido do existir, a expressão maior da autenticidade do self, coincide com a possibilidade de um gesto espontâneo. A criatividade, por sua vez, depende da competência do ambiente em propiciar
a experiência ilusória da onipotência, a partir da qual a criança transita-
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rá em direção a uma contínua e gradual aceitação da realidade – por
meio de um processo evolutivo que passa dos fenômenos transicionais
para o brincar, deste para o brincar compartilhado e, finalmente, para as
experiências culturais. Em contrapartida, a situação analítica seria concebida como uma forma “altamente especializada” de jogo, na qual o
psicanalista assume como direção favorecer o acesso ao lúdico ao analisando.
Tal direcionamento clínico implicaria a disponibilidade sensível do psicanalista, e foi Ferenczi quem desenvolveu primeiramente a noção da
importância da pessoa real do analista. É nesse contexto que o “tato psicológico” (faculdade de sentir com) é resgatado, como uma convocação
ao exercício da sensibilidade na clínica: saber quando se comunica algo
ao analisando; como reagir a uma ação inesperada deste; quando se calar e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente.
Kupermann (2008) considera que a empatia em Ferenczi não pode ser
entendida por meio do paradigma técnico-cientificista promotor de um
isolamento nos modos de experimentação subjetiva do acontecimento
clínico, mas apenas em referência a um paradigma estético no qual estaria referida a um exercício de afetação mútua. Tratar-se-ia, assim, de
uma modalidade sensível de conhecimento, na qual se podem experimentar sensações e afetos vivenciados no encontro com a alteridade por
meio da abolição momentânea das fronteiras estabelecidas entre sujeito
e objeto.
Ferenczi salienta que o analista poderia resistir ao encontro promovido
pela clínica, recusando esses modos de afetação mutua. Foi a constatação
da frequência dessa resistência que fez com que o autor postulasse uma
segunda regra fundamental da psicanálise: a exigência ética de uma análise autêntica e não-burocrática para o analista. As características de
personalidade do analista poderiam servir como instrumento de “cura”
analítica e, assim, sua potencialidade clínica estaria diretamente relacionada à sua própria análise.
É justamente a presença sensível e o acolhimento promovido pelo psicanalista o que permite aos analisandos romper com a paralisia afetiva na
qual se encontram e desfrutar da capacidade lúdica e criativa implicada
na realização de um gesto singular.
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Desta forma, compreendemos que a criatividade precisaria “ser” a base e
“fazer-se” uma conquista no processo analítico. Criatividade, assim, “criada” por e entre analista e analisando. Mas de que maneira a experiência
clínica poderia facilitar a emergência dos processos criativos?
Acreditamos que a experiência psicanalítica tem uma dimensão poética
intrínseca, ou seja, o elemento poético seria capaz de sustentar aspectos
essenciais do trabalho analítico se o pensarmos em termos de criatividade. A metáfora seria um dos recursos que o analista possui para dar conta de sua tarefa “paradoxal”: usar a palavra para dar voz à não-palavra.
A palavra é limitada, pode esmagar as entrelinhas, mas é só através da
palavra – da metáfora, da palavra poética – que podemos alcançar, ainda
que de modo precário e fugaz, as experiências mais fundamentais: quando
se torna poética, a palavra ultrapassa seus próprios limites (ROSENFELD,
1998).
Viderman (1990), ao escrever sobre a linguagem no campo da análise,
destaca a necessidade de quebrarmos uma primeira linguagem
inautêntica para possibilitarmos uma outra linguagem capaz de nomear
e dar forma às experiências. As interpretações mais transformadoras serão aquelas que curto-circuitam a letra do discurso e incluem uma atmosfera emocional/transferencial única e indizível. “Representações
esboçadas, vagas, obscuras; pulsões e desejos inominados que a palavra
do analista nem traz a luz e nem descobre, mas sim, dando-lhes um nome,
colocando-as em forma, as cria” (p. 58).
A conversa analítica requer, do par, o desenvolvimento da linguagem
metafórica adequada à criação de sons e significados que reflitam o que
é pensar, sentir e vivenciar fisicamente em um dado momento. A linguagem não é considerada, simplesmente, um “pacote” que carrega as ideias
e sentimentos, mas um meio no qual pensamentos e sentimentos são
criados. Segundo Ogden (1997), a linguagem do analista deve incorporar
em si que não existe um ponto imóvel de significado. O significado está
continuamente em processo de se tornar algo novo e, ao fazer isso, está
continuamente se desestruturando, deixando as certezas.
Trachtenberg (2006) diz que as palavras se gastam rapidamente em seu
poder de ressonância e deixam de ser eficazes para a transmissão de
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uma ideia ou emoção. Por isso, Bion enfatiza a necessidade de buscar nas
metáforas dos grandes poetas os instrumentos para tentar ressuscitar
termos fossilizados, pois as teorias transformam nossa linguagem num
jargão repetitivo sem capacidade de afetar aquele que a escuta. A linguagem exitosa deveria contribuir para que um analisando pudesse vir a ser
ele mesmo, ter a coragem e o suficiente respeito pela sua personalidade
para poder ser essa pessoa que deveria ter sido ou que poderá vir a ser.
O enquadre na situação analítica é construído para propiciar o surgimento
dessa palavra peculiar, dessa palavra que pode tocar mais profundamente.
Assim, a fala do analisando e a escuta do analista ficam à disposição
para livres mergulharem nos múltiplos sentidos e sonoridades das palavras – fala e escuta que se criam uma na outra e procriam novos sentidos. Para “escutar” nessa perspectiva, é preciso estar em uma zona intermediária, nem muito perto, nem muito longe, dentro e fora ao mesmo
tempo.
É o nome, a metáfora, que pode ir além do limiar da significação e comunicação, que, ao invés de exprimir-se ou fazer-se compreender, dá visibilidade, tem o poder de suscitar figuras. A palavra comum mantém as
coisas no sono; o nome as desperta. A metáfora é a palavra pronunciada
que contém, que dá ouvidos ao impronunciável. Ela nos convida a um
movimento diferente que o de compreender um significado, trazendo
luz ao escuro-traumático do paciente. Como diz Nietzsche em O alegre
saber (1882):
O que é a originalidade? É ver alguma coisa que ainda não tem nome,
que ainda não pode ser chamada, embora esteja sob o olhar de todos.
Assim são os homens habitualmente de tal forma que lhes é necessário, antes de tudo, um nome para que alguma coisa lhes seja visível.
Originais, geralmente, foram aqueles que deram nome as coisas.
No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, metáfora é definida como “[...]
tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta
numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o
figurado”. A palavra metáfora vem do grego metaphorá, que significa transporte. O termo transferência (trans-fero), por sua vez, vem do verbo latino
fero, que significa o mesmo que phorá em grego: levar, carregar, portar. A
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metáfora transporta a palavra, o nome de uma coisa para outra
(ROSENFELD, 1998).
A palavra é desligada do uso literal, previsível e banal, e passa a ser usada em um contexto original, singular e inusitado. Abre para novos e inesperados significados. A palavra assim transportada desperta afetos e adquire uma potência incomum.
Usamos a metáfora ao invés de uma linguagem mais literal justamente
quando estamos diante de uma experiência que não tem nome, indizível, impensável. A metáfora sabe ouvir o indizível transportando-o para
perto da experiência emocional do analisando. A metáfora tem o potencial de corporificar o irrepresentável, colaborando para a construção da
subjetividade.
Como diz Clarice Lispector em Água viva (1984): “Então escrever é o modo
de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu”.
A metáfora é essa palavra especial, diferente da palavra corriqueira e
que tem uma força espantosa. A palavra comum enterra a imagem, metáfora, por sua vez, ao transportar um nome, ao fazer a palavra tocar
a imagem enterrada, faz com que ela desperte e ganhe vida. E, nesse
movimento, surge o novo, a transformação: a palavra deixa de ser comum e a imagem deixa de ser muda. Como o poeta que faz caber o
incabível em sua lata-poesia, analista e analisando abrem sua lata-mente, através da metáfora:
Por isso não se meta a exigir do poeta / que determine o conteúdo em
sua lata/ Na lata do poeta tudo-nada cabe/ Pois ao poeta cabe fazer/
com que na lata venha caber/ O incabível /Deixe a meta do poeta, não
discuta,/ Deixa a sua meta fora da disputa/ Meta dentro e fora, lata
absoluta/ Deixe-a simplesmente metáfora. (GIL, Gilberto).
Segundo Bonaminio (2008), o analista deve facilitar e salvaguardar a criação de um espaço privado para o paciente, um espaço no qual possa
emergir sua individualidade e sua privacidade, protegendo-o constantemente das intrusões, da invasão de sua própria subjetividade, que todavia é a única posição a partir da qual ele pode conhecê-lo. A psicanálise é
a crença na cocriação de duas mentes, tanto na situação clínica quanto
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como agente de transformação. A posição do analista seria de promover
e favorecer o ambiente para construção do espaço do sonho – e, poderíamos acrescentar, da metáfora.
A ideia de vínculo remete a tudo que liga, ata e une, implicando a
intersecção entre duas subjetividades, entre o privado e o compartilhado. Como o aparato psíquico é insuficiente para metabolizar as experiências emocionais, faz-se necessário sempre um Outro para compartilhar e
transformar as vivências emocionais. Essa capacidade, que originariamente é fundada com a mãe, se amplia no vínculo analítico.
A metáfora só ganhará potência se for uma criação legítima e fértil do
analista e do paciente, como um “jogo do rabisco” com as palavras. Se
não for uma criação mútua, a metáfora corre o risco de se tornar um
perigoso instrumento de poder e sedução do analista, uma experiência
de invasão. Para que esse canal de cocriação da metáfora possa existir, o
analista precisa ter capacidade de suportar a abolição temporária das
fronteiras intra e interpsíquicas, utilizando sua empatia, intuição, tolerância (tolerância à agressividade, ao erotismo, ao não-saber, à regressão) e delicadeza (ética do cuidado).
A metáfora assim construída pode tocar o verdadeiro self, libertando-o
do aprisionamento traumático e favorecendo que a criatividade seja o
alimento da saúde emocional. Essa palavra especial não precisa ser sofisticada, apenas um representante genuíno do campo analítico. A metáfora não tem força por ser inédita e sim pela ilusão de que ela tenha sido
criada e sustentada pelos “direitos autorais” de cada vínculo analítico.
Muitas vezes, a metáfora vai figurar como um verbete “do pequeno dicionário amoroso” da dupla e, portanto, só compreendida no cerne dessa
intimidade.
Em um diálogo com Roberto Alifano, Jorge Luis Borges fala que as metáforas, se verdadeiras, existiriam desde sempre e sua grandeza não estaria em metáforas, o tempo e o rio; o viver e o sonhar; a morte e o dormir;
as estrelas e os olhos; as flores e as mulheres: “Para mim, o importante é
a entonação, a cadência que se dá à metáfora. Ou seja, a música!”. A
música é a própria metáfora da intimidade da relação analítica, onde
uma palavra só ganha sentido se for acolhida e escolhida pelo tom afetivo
daquele encontro.
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Pensando na clínica, pode-se distinguir o uso da metáfora em duas direções: uma que se dá com pacientes que dispõem de uma integração psíquica e que são capazes de sustentar a simbolização, reconhecidos como
neuróticos, e outra que se dá com pacientes regressivos, com um nível
simbólico precário, onde a qualidade “como se” do significado abstrato
da metáfora não está presente e esta se converte em uma experiência
concreta e imediata, no caso dos considerados fronteiriços e psicóticos.
Essa direção aponta para a criação do vínculo, em que o analista respeita
a distância que o paciente precisa manter dos conteúdos ameaçadores e
se apresenta como alguém que se propõe a começar a brincar com ele e
a construir uma zona de ilusão. A outra se volta mais para o vínculo de
criação, onde analista e analisando inseridos num “espaço potencial”
podem fazer uso da metáfora como um caminho descoberto.
Entre as possibilidades de interpretação no processo psicanalítico, Ekstein
(1966) propõe a interpretação dentro da metáfora, como técnica essencial para estabelecer gradualmente a comunicação e o insight inicial com
pacientes fronteiriços e esquizofrênicos. O uso da metáfora torna-se valoroso para a manutenção do contato com esses pacientes que se encontram em perigo constante de serem inundados pela passagem de material procedente do processo primário, ou seja, formas arcaicas de pensamento. A metáfora pode, assim, ser considerada uma ponte entre as ilhas
isoladas existentes dentro do ego, oriundas dos processos de cisão. A
metáfora utiliza material do processo primário traduzindo e elevando
seu significado a uma linguagem de processo secundário.
O paciente fronteiriço encontra-se lutando contra as descontinuidades
no funcionamento do ego, determinadas pela fragmentação e pela falta
de defesas apropriadas. O uso da metáfora permite ao paciente estabelecer uma continuidade entre as funções isoladas do ego, ao mesmo tempo
em que ajuda a manter suficiente descontinuidade entre o processo primário e o secundário, evitando, assim, maior regressão egoica.
Conforme Ekstein (1966), torna-se importante destacar que normalmente é o paciente quem inicia o uso da metáfora, sendo essa linguagem a
única de que ele dispõe para comunicar. O paciente que está próximo da
psicose tende a usar a metáfora naquele ponto em que a organização
psíquica está debilitada, quando os processos primários ameaçam o ego
e quando a habilidade para se comunicar em um nível simbólico e abs-
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trato está desaparecida. Por outro lado, o paciente mais integrado usa a
metáfora por escolha e criação, a serviço do pensamento abstrato, como
forma de revelar e simultaneamente manter um segredo.
A metáfora pode funcionar como “metáfora-mãe” ao servir de ligação, de
suporte para o nascimento do vínculo, da empatia e da capacidade de
compreender sem palavras. Pode-se dizer que a metáfora, nesse lugar,
corresponderia a uma palavra para dois. Também pode funcionar como
“metáfora-pai” ao produzir ruptura, abertura de um “outro” caminho e
uma nova nomeação. Corresponderia, por sua vez, a uma palavra de três.
A palavra poética permite que a linguagem seja compreendida desde
dentro e não somente além, mantendo a relação analítica naquela posição criativa básica na qual devemos funcionar em direção a uma existência autêntica. A metáfora cria uma espécie de “estética analítica”, torna-se um valioso instrumento entre analista e analisando para manter a
linguagem viva e não mortificada por explicações e certezas – para que,
lembrando Shakespeare, o coração possa concordar com a língua
(Henrique VI, 2a parte).
From Creation of Bonds to the Bonds of Creation: metaphor as a
tool
Abstract: The paper was presented in a free session at the 8th Symposium of the
Brazilian Society of Psychoanalysis of Porto Alegre, whose central theme revolved
around “The Person of Analyst”. The authors posit that bonding takes for granted
the presence of another mind to help construct an individual’s new mind-space.
Through the analytic bond, a large affective availability, tact and creativity are
demanded from the psychoanalyst as basic working “tools” and as essential
techniques to be used in clinical practice. As a consequence of this analytic pair’s
work, the metaphor would be a precious linguistic tool we can use to strengthen
the capacity for empathy and bonding and to broaden the patient’s psychic states.
This paper also highlights metaphor differences in patients with more progressive
attitudes, for whom the metaphor would be a product of the creation of the
psychoanalytic work, and metaphor differences in more regressive patients, for
whom it would be an initial “bridge” of contacts and possibilities in psychoanalytical
treatment. Winnicott, Ferenczi, Bonaminio, Ekstein and Ogden were some of the
authors used as reference in this study.
Keywords: Bonding. Creativity. Metaphor.
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Desde la Creación del Vínculo al Vínculo de Creación: la metáfora
como camino
Resumen: El trabajo fue elaborado para presentación como tema libre en la VII
Jornada de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de Porto Alegre, cuya temática
fue: “La persona del analista”. La idea de las autoras es que el vínculo presupone la
presencia de otra mente para auxiliar la construcción de un nuevo espacio-mente
en el individuo. Sería entonces, mediante el vínculo analítico, la “exigencia” para el
profesional de una fuerte disponibilidad afectiva, tacto y creatividad como
“herramientas” básicas de trabajo y como artificios técnicos indispensables en la
clínica. Como consecuencia de este trabajo de la pareja analítica, la metáfora sería
un precioso recurso de lenguaje que se puede utilizar para fortificar la capacidad
empática, el vínculo, así como la ampliación de las condiciones psíquicas del
analizando. También enfatizan, en este trabajo, la diferencia de la metáfora para
pacientes más estructurados, donde ella sería un producto de la creación del trabajo
analítico, y para otros pacientes más regresivos, donde la metáfora sería como un
“puente” inicial de contactos y posibilidades en el recorrido analítico. Utilizan, entre otros autores, Winnicott, Ferenczi, Bonaminio, Ekstein y Ogden.
Palabras clave: Creatividad. Metáfora. Vínculo.
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artigo
encomendado
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Ana Paula Terra Machado
Joyce McDougall: uma analista
da contemporaneidade
Artigo
Ana Paula Terra Machado
Psicanalista, Membro Associado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Resumo: O Artigo apresenta as propostas teóricas de Joyce McDougall, destacando
sua compreensão do destino do afeto nos fenômenos psicossomáticos, a partir do
estado de privação psíquica. Aborda, ainda, seus conceitos de neossexualidade e
neonecessidade.
Palavras-chave: Afeto. Neossexualidade. Psicossomática.
1 Introdução
A obra de Joyce McDougall aborda, em especial, a dimensão traumática
da alteridade e da diferença sexual que atinge a própria identidade do
indivíduo. Suas propostas teóricas sobre a expressão psíquica dos traumas precoces são uma importante fonte de estudo para os desafios que
a clínica nos impõe cotidianamente.
Um dos traços marcantes nos seus textos é a forma como descreve o seu
trabalho, expondo
suas
impressões, seus
sentimentos
contratransferenciais e mesmo relatando suas experiências pessoais,
proporcionando uma leitura empática com suas ideias. Dotada de grande sensibilidade clínica, esboça suas reflexões e teorias numa linguagem
clara e vívida, como a de quem tem o compromisso de se fazer entender
pelo seu leitor.
Nascida em Dunedin, na Nova Zelândia, parece ter tido seu destino de
psicanalista traçado desde muito cedo. Essa é a impressão que se tem
quando, no primeiro capítulo de seu livro “Teatros do Corpo”, relata uma
experiência de sua infância. Aos cinco anos, comenta com sua mãe que a
Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010
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urticária que sempre lhe acometia na fazenda dos avós paternos, onde
passava as férias, não era provocada pelo leite gordo das vacas Jersey,
como todos imaginavam, mas por uma reação à ojeriza que sentia por
sua despótica avó. Essa passagem infantil já revelava sua aguçada percepção que, posteriormente, seria instrumentalizada na sua clínica dos
pacientes que apresentavam distúrbios psicossomáticos. Da ligação afetuosa com o avô paterno, professor de belas artes, resultou seu interesse
pela arte.
Anos mais tarde, ao ingressar na Faculdade de Artes e Ciências de Otago
para estudar psicologia, frequentou também o clube de teatro como atriz
e, principalmente, como diretora. Essa experiência pode ter contribuído
para sua escolha da “metáfora do teatro” que ilustra seu pensamento
clínico e teórico. Nessa mesma época, dedicou-se à leitura da obra de
Freud e decidiu tornar-se psicanalista.
Em 1950, ao imigrar com o marido e os filhos para Londres, entrou em
contato com Winnicott e Anna Freud a fim de iniciar sua formação psicanalítica. Ao ser recebida por Winnitcott, foi convidada a participar de seu
seminário. O estudo com ele teve influência decisiva em seu trabalho
como analista. Também foi acolhida por Anna Freud, que a aceitou como
aluna na clínica de Hampstead. Iniciou, a seguir, sua formação na Sociedade Britânica. Em tempos de rivalidade aguerrida na Instituição londrina, optou por um analista do “Middle Group”. Essa escolha implicou duas
supervisões, uma com um annafreudiano e outra com um kleiniano.
Em função do trabalho de seu marido, mudou-se para Paris, interrompendo sua formação. Na travessia do Canal da Mancha, levou consigo
uma carta de recomendação de Anna Freud para apresentar-se a Marie
Bonaparte.
A chegada na França, em 1953, ocorreu num momento conturbado da
Sociedade Psicanalítica de Paris, que culminou numa cisão e na fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise. Optou por permanecer na Sociedade Psicanalítica de Paris, na qual concluiu sua formação e posteriormente ocupou diversas funções como membro titular.
Joyce McDougall é uma psicanalista reconhecida internacionalmente. Sua
obra foi traduzida para mais de dez idiomas, sendo requisitada para con-
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Ana Paula Terra Machado
ferências em vários países, inclusive no Tibete, onde esteve a convite do
Dalai Lama para explanar sobre a importância de Freud na cultura ocidental. No Brasil, onde esteve algumas vezes, seus trabalhos e artigos são
fonte para o estudo da psicossomática e dos distúrbios da identidade
sexual, tão frequentes na clínica da atualidade.
Sua primeira publicação, em 1960, em colaboração com Serge Lebovici,
foi sobre a análise de um caso de psicose infantil. Esse livro, prefaciado
por Winnicott na edição inglesa, já esboça a integração que propõe entre
a “psicanálise francesa” e a “psicanálise anglo-saxônica”, possivelmente
pelas próprias peculiaridades de sua formação. Em Londres, conviveu com
os embates entre os seguidores de Klein e os adeptos de Anna Freud,
encontrando em Winnicott o suporte teórico para as ideias que posteriormente desenvolveu. Na França, vivenciou as cisões, fez suas escolhas,
mas manteve-se numa posição independente. Sem filiação a qualquer
“escola”, adota uma postura não dogmática, com o pensamento livre para
avaliar as teorias, sempre que estas não alcançam a complexidade que
observa e vivencia com seus pacientes. Suas teorizações se orientam no
sentido da complementaridade entre a influência do ambiente e das representações psíquicas, enfatizando a função paterna nesse contexto.
Utiliza a “metáfora do teatro” para expor suas ideias, considerando que
cada indivíduo cria um teatro particular para exprimir as suas emoções
e viver as suas fantasias. Essa ideia também é transposta para a cena
psicanalítica que é, sobretudo, uma experiência da dupla, na qual analista e analisando representam seus papéis. A importância que concede aos
sentimentos contratransferenciais é percebida ao longo de sua obra. Como
uma espécie de fio condutor do trabalho analítico, a contratransferência
é um instrumento fundamental na análise dos pacientes de estruturas
não neuróticas. Enfatiza que as manifestações sintomáticas são a expressão de uma tentativa de autocura e visam salvaguardar a sobrevivência psíquica. Essa concepção sobre os dramas individuais evidencia
sua disponibilidade interna para a escuta do sofrimento dos seus
analisandos.
Dentre as suas contribuições teóricas, destaca-se a investigação dos fenômenos psicossomáticos. Instigada pelas somatizações de seus pacientes, procura entender a dinâmica subjacente a essas manifestações, que
Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010
458
impõem ao corpo arcar com as intensidades que não podem tramitar
pelo psiquismo.
Em relação à economia afetiva, propõe um quarto destino para a transformação do afeto, além dos três descritos por Freud (conversão histérica, deslocamento para representações de qualidades diferentes, como
na neurose obsessiva, e transformação direta em angústia, o que ocorre
na neurose atual). Acrescenta a rejeição (Verwerfung), no sentido em que
foi descrita em “As Neuropsicoses de Defesa” (1894), quando Freud refere: “Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bemsucedida. Aqui, o ego rejeita a ideia incompatível juntamente com seu
afeto e comporta-se como se a ideia jamais lhe tivesse ocorrido” (v. 3, p.
71). A rejeição incide não somente sobre a representação, mas também
sobre o afeto ligado a ela. Essa acepção do termo rejeição foi nomeada
por Lacan como forclusão, como um mecanismo característico das psicoses. McDougall observa, a partir de sua experiência clínica, que tal mecanismo pode gerar uma regressão a reações psicossomáticas. De acordo
com essa ideia, o afeto ejetado para fora do psiquismo encontra no corpo
a possibilidade de descarga.
Nesse sentido, as regressões psicossomáticas se aproximam da psicose
no que se refere à intensidade da angústia. Propõe, então, o termo “psicose atual”, em analogia às neuroses atuais descritas por Freud. Ao abordarem esse tema, Peres e Santos (2010) salientam que, embora a psicose
atual seja desencadeada por situações do presente, tem como fatores
etiológicos os traumatismos precoces.
Embora haja essa ligação, pelo caráter da angústia, nos caminhos que
vão determinar um desfecho na psicose ou nas psicossomatoses, devem
ser considerados o papel simbólico da figura paterna e sua importância
na constelação familiar.
Quanto à forma de pensar, nas alucinações e delírios das psicoses, as
palavras têm a função de preencher um vazio aterrorizante, enquanto,
nas somatizações, há um esvaziamento do conteúdo afetivo das palavras, tornando-as “desafetadas”. A desafetação tem como finalidade dispersar a angústia intolerável e ameaçadora. Essa defesa radical permite
manter o equilíbrio interno, ainda que à custa de uma exclusão das
vivências emocionais das situações enfrentadas pelo indivíduo. Essa forma de reagir leva o indivíduo a uma sobreadaptação às demandas da
459
Ana Paula Terra Machado
vida cotidiana – as tarefas e o cumprimento das obrigações são executados com grande eficácia e sob a aparência de uma normalidade –, a que
McDougall designou “normopata”.
Em princípio, todos têm um potencial somatizante que pode se manifestar em situações em que falham as defesas habituais diante do sofrimento psíquico. Entretanto, para determinados indivíduos, a somatização
torna-se a via de descarga principal das intensidades que não podem ser
expressas pelas palavras. Nessas circunstâncias, é o corpo que denuncia
uma angústia indizível. Quando as palavras não cumprem sua função de
ligação pulsional e as atividades mentais, como os sonhos, os devaneios
e o pensamento reflexivo, não são possibilidades de alívio das tensões
internas, configura-se o estado de privação psíquica.
Essa forma de funcionamento mental foi objeto de pesquisa na Escola de
Psicossomática de Paris (liderada inicialmente por C. David, M. Fain, P.
Marty e M. de M’Uzan). Seus estudos resultaram no importante conceito
de pensamento operatório definido por Marty e M. de M’Uzan (1963) como
modo de pensar sem associações, estreitamente ligado à materialidade
dos fatos, carente de simbolização. O sujeito está presente, mas “vazio”
(1994, p. 165-174). Esse pensamento, desvitalizado e pragmático, ocorre
em função de um bloqueio na capacidade de representar ou elaborar as
demandas pulsionais do corpo dirigidas ao psíquico.
Nesse mesmo campo de estudo, Nemiah e Syfenos, em Boston, postularam o conceito de alexitimia, descrito como a incapacidade de o indivíduo nomear os afetos correspondentes à situação vivenciada, acarretando uma indiscriminação dos estados afetivos (apud MCDOUGALL, 1991).
Em relação a esses conceitos, McDougall enfatiza a ideia de que essas
maneiras de pensar e de discriminar os afetos são defesas arcaicas contra uma angústia insuportável que ameaça a integridade psíquica. Ressalta ainda que, de acordo com sua experiência, muitos analisandos, apesar de apresentarem doenças psicossomáticas, não eram alexitímicos nem
tinham uma forma de pensar operatória, vivenciando intensamente os
conflitos de seu mundo interno. Nesses casos, considera a possibilidade
de uma “histeria arcaica”, na qual os conflitos não dizem respeito à trama edípica, o que remete ao corpo erógeno, simbolizado, e configuram as
interdições do desejo. A compreensão desse funcionamento psíquico está
Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010
460
ligada a vivências traumáticas dos períodos iniciais do desenvolvimento,
anteriores à aquisição da palavra. O corpo todo sofre uma erotização primitiva para manter sua unidade diante dos temores de fragmentação
interna.
Segundo McDougall, a fantasia que rege as primeiras trocas da mãe com
o recém-nascido é a de um corpo para dois. Dessa fusão inicial com o
corpo materno irá ocorrer, gradativamente, uma separação entre o próprio corpo e o mundo externo, representado inicialmente pelo seio materno. O movimento em direção à individualização será acompanhado
de retornos ao estado de união, quando houver um aumento de tensão
física ou psíquica. Cabe à mãe interpretar as demandas do seu bebê e
proporcionar o alívio às tensões, assim como é da função materna possibilitar que o bebê possa adquirir a capacidade de separar-se dela. Esse
duplo anseio da criança em ser ela própria e de poder fundir-se ao outro
(mãe-universo) se encontra na origem da organização psíquica individual.
Apoiada nas ideias de Winnicott, considera a qualidade do vínculo dessa
interação inicial mãe-bebê e a consequente interiorização desse ambiente maternal como determinantes para a constituição da identidade subjetiva. As falhas oriundas desse processo estruturante determinam carências precoces que vão interferir na capacidade de a criança reconhecer como lhe pertencendo o seu corpo, os seus sentimentos e até o seu
próprio psiquismo. Esses déficits aumentam a vulnerabilidade aos transtornos psicossomáticos, às adições e aos comportamentos de ação.
Ao abordar as perversões, McDougall cunhou o termo neossexualidades
para as expressões tanto homossexuais quanto heterossexuais da sexualidade infantil. Descreve essas sexualidades desviantes como verdadeiras invenções que giram em torno das fantasias da cena primária. A fixação nos aspectos pré-genitais é a solução encontrada diante de fragilidades narcísicas resultantes dos entraves no processo das internalizações,
incorporações e identificações iniciais estruturantes do sentimento da
identidade subjetiva e das identificações com a sexualidade e com os
desejos eróticos inconscientes das figuras parentais – quando o falo não
cumpre sua função de organizador da sexualidade. Nesse contexto dos
desvios da sexualidade, restringe o uso do termo perversão aos relacionamentos quando o indivíduo impõe seus desejos sem o consentimento
461
Ana Paula Terra Machado
do parceiro, ou seja, é o desprezo e a indiferença em relação ao desejo do
outro o que configura uma perversão.
Nas neossexualidades, os roteiros são predominantemente autoeróticos
e restringem a vida sexual do indivíduo. Porém, muitas vezes é a única
forma encontrada para se obterem as satisfações libidinais que não podem ser alcançadas pela sexualidade genital. Amplia a ideia de
neossexualidade com a noção de neonecessidades quando o objeto ou as
práticas sexuais são utilizados como droga. A relação de dependência do
objeto, marcada pela compulsão, denuncia o fracasso da internalização
e integração das funções parentais protetoras e tranquilizadoras. Essa
incapacidade interna de tolerar a angústia impõe a busca de um objeto
externo para descarregar as tensões psíquicas. Esse objeto é, então,
vivenciado como bom, na medida em que proporciona um alívio, ainda
que fugaz, do estado afetivo gerador da tensão. O entendimento da percepção do objeto droga como bom, que auxilia o indivíduo a suportar as
exigências da vida, levou Joyce McDougall a adotar a palavra adição na
França. Em detrimento do termo toxicomania, que tem seu significado
associado a envenenar-se, o termo adição, transposto do inglês, é hoje de
uso corrente nos textos psicanalíticos franceses, bem como em nosso
meio.
Compreende as adições, no seu amplo espectro, como uma tentativa de
enfrentar angústias que podem ser de natureza neurótica ou de estados
depressivos, sentimentos de vazio, ou ainda uma fuga diante de angústias psicóticas. Dessa forma, estão presentes em qualquer estrutura de
funcionamento mental e se relacionam com determinadas etapas do
desenvolvimento. A dimensão ocupada na economia psíquica do indivíduo e a escolha do objeto da adição são indicadores da extensão das
falhas na constituição do self que esse objeto tenta, ilusoriamente, reparar.
Esse olhar sobre a condição humana e a compreensão de que qualquer
manifestação sintomática é um ato criativo e, acima de tudo, uma tentativa de autocura, norteiam o trabalho de Joyce McDougall. No prefácio de
seu livro “Em Defesa de uma Certa Anormalidade” (1983), essa ideia é
ratificada quando refere: “[...] se a criança oculta no fundo de todo homem é causa de seu sofrimento psíquico, também é a fonte da arte e da
poesia da existência”.
Joyce McDougall: uma analista da contemporaneidade
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 455-462, 2010
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Joyce McDougall: a contemporary psychoanalyst
Abstract: The paper presents theoretical propositions of Joyce McDougall, concerning
her comprehension about the affect on psychosomatic phenomena from a state of
psychic privation. It also emphasizes her concepts about neo-sexuality and
neoneeds.
Keywords: Affect. Neo-sexuality. Psychosomatics.
Joyce McDougall: una analista de la contemporaneidad
Resumen: El articulo presenta las proposiciones teóricas de Joyce McDougall, destacando su comprensión del destino de los afectos en los fenómenos psicosomáticos
desde del estado de privación psíquica. Aborda aún sus conceptos de neo-sexualidad
y neonecesidad.
Palabras clave: Afecto. Neosexualidad. Psicosomática.
Referências
FREUD, S. (1894). As Neuropsicoses de Defesa. In:
. Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.3.
MCDOUGALL, J. Em Defesa de Uma Certa Anormalidade. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1983.
. Conferências Brasileiras. Rio de Janeiro: Xenon, 1987.
. Teatros do Eu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
. Teatros do Corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
. As Múltiplas Faces de Eros. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
MARTY, P.; M’UZAN, M. de. O Pensamento Operatório. Revista Brasileira
de Psicanálise, v. 28, n. 1, p. 165-174, 1994.
MENAHEM, R. Joyce McDougall. São Paulo: Via Lettera, 1999.
PERES, R. S.; Santos, M. A. O Conceito de Psicose Atual na Psicossomática
Psicanalítica de Joyce McDougall. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 44,
n. 1, p. 99-108, 2010.
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resenhas
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Abel Fainstein
Apresentação do Livro de
Ana Rozenbaum de
Schwartzman “História e Préhistória na Clínica com
Crianças e Adolescentes”
Resenha | ROZENBAUM DE SCHVARTZMAN, Ana. Había una vez...: historia y prehistoria em
la clínica con niños y adolescentes. Buenos Aires: Lumen, 2008.
Abel Fainstein
Analista de crianças. Membro Didata da
Associação Psicanalítica Argentina.
“Era uma vez...” é uma frase que nos traz lembranças. Nos recordamos
das histórias infantis que nos contaram repetidas vezes e permanecem
em nossa memória não apenas como lembranças.
Sabemos que a memória nem sempre se baseia em lembranças. Algumas vezes são marcas que permanecem muito atuais e é necessário fazer com que elas tornem-se passado, isto é, historizar para prevenir o
desenvolvimento traumático.
Para aqueles que trabalham como psicanalistas, os contos infantis são
produtos da fantasia de alguns privilegiados que têm estimulado precocemente nossa imaginação, nossas próprias fantasias e também as de
nossos pacientes. No entanto, as histórias que nos contam e que contamos, em geral, referem-se a situações traumáticas. Quem não lembra de
“João e Maria” ou da “Chapeuzinho Vermelho”, apenas para citar algumas.
Fazer das marcas vivências passadas constitui boa parte de nossa prática, pois, como disse a protagonista de “Hiroshima meu amor”, Ana, “somente lembrando é possível esquecer”.
Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010
466
Outra bela citação literária do livro que apresentamos: “Todos os sofrimentos podem ser suportados se os encaixarmos em uma história ou
construirmos uma história sobre eles”, desta vez de Isak Dienesen.
Na clínica psicanalítica, as histórias que nossos pacientes contam, ou as
que construímos com eles, tentam simbolizar marcas potencialmente
traumáticas. Por isso usamos esse recurso. Quando tal mecanismo é eficaz é possível controlar o desencadeamento da angústia, porém sabemos que em geral somos procurados quando essa tentativa falha, e através da cura se busca uma nova historização, que seja mais eficaz para
esse objetivo. Ana Rozenbaum cita aqui Baranger y Mom, “[...] os
analisandos vêm com uma história e terminam com outra, muito mais
rica, com figuras mais matizadas, momentos de felicidade e infelicidade,
pais bons e maus, etc.”.
Essa historização, que pode às vezes ser a primeira e outras vezes suceder histórias prévias, tem uma característica peculiar do nosso trabalho.
Ela é o resultado da atualização de situações passadas na transferência
com o analista. Somente essa vivência as faz diferente de uma criação
literária, e isto que muitas vezes vemos desvirtuado em muitos relatos
clínicos é claramente descrito pela autora em cada um dos capítulos,
mostrando assim a sua prática em transferência.
Não lhes faz falta dizer que tudo isso é o trabalho nosso de cada dia. Por
isso, a importância do assunto deste livro, muito bem e claramente escrito por uma analista experiente, que relata as histórias sobre suas próprias práticas. Ela tenta simbolizar criativamente, as marcas que a prática
tem deixado nela própria. Longe de limitar-se descrever as particularidades do tema através de múltiplas articulações teóricas e clínicas, penso
que um dos valores do livro é, também, poder contar com as perguntas
que a autora se e nos formula e que nos convidam a pensar com ela
sobre os temas. Sabemos que muitas vezes são melhores as boas perguntas do que as possíveis respostas, e a experiência vai ensinando também
a nos perguntarmos e a perguntar.
Concordo com Madé Baranger quando escreve no prólogo “a psicanálise
tem muito para fazer e aprender”. Por isso, o prazer de apresentar para
vocês um livro que nos introduz plenamente e de forma original à prática psicanalítica contemporânea.
467
Abel Fainstein
Um livro como objeto pode, e é este o caso, ter um valor estético que o
embeleza e que nos motiva a vê-lo com prazer e, logo, a lê-lo. Desde a sua
atrativa capa, com o título “Era uma vez...” em meio a um desenho colorido, o livro de Ana nos introduz a temática que recorre suas páginas: História e Pré-História na clínica com crianças e adolescentes.
O profundo prólogo de Madeleine Baranger faz honra ao texto. Ana
Rozenbaum se descreve partidária das ideias dela e das de Willy Baranger
sobre o campo analítico como campo dinâmico intersubjetivo, e da ampliação que Luis Kancyper faz para incluir os pais da criança ou do adolescente. Festejo, por este motivo, compartilhar com Luis esta apresentação.
Tratarei de esboçar as ideias centrais que nos traz a autora para nos introduzir à sua leitura.
O livro tem três partes. A primeira é sobre teoria e técnica, a segunda são
histórias clínicas e a terceira se intitula ‘histórias psicanalíticas’.
Este último capítulo transcende o tema particular do livro, centrado no
valor da história e da pré-história na prática psicanalítica com crianças e
adolescentes, mas nem por isso deixa de fora o valor destas no que diz
respeito ao traumático. Tais histórias, uma de Marie Langer e outra do
Departamento de Psicanálise de Crianças e Adolescentes da APA, da qual
a Ana foi diretora, se referem às vicissitudes da psicanálise em nosso
meio e dão conta de uma série de acontecimentos que, salvo necessárias
distâncias, ainda requerem historizações simbolizantes – daí o valor do
trabalho que nos propõe a autora.
A respeito da teoria e da técnica da psicanálise com crianças e adolescentes, a autora destaca em sucessivos depoimentos o lugar dos pais e
do analisando, as entrevistas preliminares, a historização, a relação entre lembrança e fantasia, e os riscos do conhecimento prévio do analista.
Um rico desenvolvimento sobre a fantasia inclui a sua gênese e o seu
itinerário, as fantasias de princípio e de fim da análise, as fantasias juvenis, as fantasias escritas, a novela familiar e as fantasias a serviço da
história na análise. Quanto à lembrança, a autora descreve as relações
Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010
468
entre a memória e o esquecimento, a memória testemunhal e a lembrança a serviço da história na análise.
Como podemos ver, o fino entrelaçamento entre lembrança, fantasia e
memória vai tecendo a análise em transferência que a autora pratica,
seguindo o modelo freudiano. Trata-se de um relato de dois, onde o jogo
transferência-contratransferência é a matriz do tecido.
A primeira parte se completa com evoluções sobre o trauma na história
do sujeito e sobre o que vai além da história, ou seja, o traumático na
pré-história.
Sabemos com Freud que não há processo psíquico mais ou menos importante que uma geração possa excluir da seguinte. A autora nos lembra que dita transmissão, da qual sempre haverá marcas em sucessivas
gerações, pode não ser linear, mas sim circular, intermitente e perfurada.
Nesse ponto, os ricos desenvolvimentos sobre transmissão entre as gerações sustentam o impacto do Holocausto e das migrações sobre o
psiquismo dos danificados até a terceira geração. Cabem aqui, de maneira central, as perguntas que a autora se faz: “Que condições são necessárias para se ter a percepção clínica de que essa história oculta é constituinte do psiquismo do paciente, e não uma explicação que o psicanalista
poderia construir fora do movimento transferencial? Como assumir ou
livrar-se dessa herança? Como intervir sobre essas histórias que antecedem e sobre as quais irão constituir-se? Como pensar na eficácia e
perdurabilidade do passado no presente?
Penso que o texto convida a pensar que uma lembrança de pura atualidade – em que não há passado nem lembranças, somente marcas – requer que se faça desta passado, que se construa um passado. Sabe-se,
porém, que, contra a necessária construção do passado a partir de ditas
marcas, faltam referentes simbólicos que sirvam para organizar as mesmas. Esse é o caso de Funes, citado por Miguel Leivi, que ficou
descapacitado e melancólico desde uma queda durante sua adolescência. Sabemos que o acting out e a necessária prevenção de passagens ao
ato dominam a clínica com adolescentes, cheios de estímulos e com códigos que não podem seguir fazendo uso ou que não conseguem organizar.
469
Abel Fainstein
A negação também opera contra essa tarefa de historização na busca da
construção de um passado, e, por isso, a importância da memória testemunhal. Por esse motivo, estou de acordo com Esther Romano sobre a
importância de objetos confiáveis e da função tutelar do estado, que ajudam a simbolizar as marcas potencialmente traumáticas, e não a negálas. O mesmo vale para as consequências dos efeitos do Holocausto e do
terrorismo de estado, cabendo destacar o valor da memória testemunhal
na procura, como disse Primo Levi citado pela autora, “de não somente
não esquecer, e sim que o mundo não esqueça”.
Avançando na leitura penso ser interessante e de importância clínica, a
pontualização que Ana faz sobre as diferenças entre o trauma psíquico
na infância e o trauma psíquico infantil, mediado pelo Nachträglichkeit.
Algo pode perturbar a criança na sua infância tornar-se traumático e
desorganizar seu psiquismo. A criança construída a partir da análise da
transferência de um adulto, o traumático em relação às psiconeuroses
aparece posteriormente. Essa diferença demarca campos distintos entre
a patologia grave ou precoce, como a limítrofe e a patologia psiconeurótica.
Também as abordagens são diferentes. No primeiro caso, existe a necessidade de um trabalho de simbolização, de significação até então
inexistente. E, no outro, se trata de ressignificar por meio de uma nova
transcrição.
Seguem sendo separados, de acordo com a natureza do trauma, os efeitos primários e secundários. Também sobre aqueles traumas compartilhados com as pessoas que o rodeiam, especialmente os pais, já que afetam também sua função paternal e os referentes identificatórios que deles
derivam. De qualquer modo, seguindo as ideias pioneiras de Ferenczi, e
logo de Winicott, a autora aposta firmemente na intersubjetividade. Em
todos os casos, o texto assinala como os pais ou a família podem neutralizar o efeito potencialmente traumático, e assim atuar a favor da chamada resiliência. Se não o fizerem, podem favorecer o desenvolvimento
traumático por falta de ação, e não por serem, eles mesmos, violentos.
Trauma e masoquismo, trauma e medo, trauma e repetição, trauma
restitutivo e trauma encobridor e identidades traumáticas são algumas
das outras questões a respeito do traumático.
No livro, a autora faz um estudo cuidadoso a respeito do abuso da crian-
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ça. Somente gostaria de destacar, por sua importância clínica, a descrição que Ana nos traz de situações em que o paciente se recusa a curarse, construindo uma barreira de sentidos como proteção contra a revelação de um horror indescritível. Novamente a falta de confiança em quem
deveria ser o cuidador causa danos mais graves.
O segundo capítulo, como já disse, inclui históricos clínicos. “Depressão
na infância e sua relação com o traumático”, tema de enorme presença
na prática de nossos dias, é seguido por “Trauma, culpa e transmissão
entre gerações”, que nos introduz na problemática da culpa do sobrevivente. Isso é feito a partir da análise de um paciente cuja irmã do primeiro casamento do pai foi assassinada pelos nazistas, o que nos faz lembrar do recente filme “Um segredo”, de Claude Miller. Trata-se da transmissão da culpa prevista por Freud, em 1912, citado pela autora: “Nenhuma geração tem a capacidade de ocultar da seguinte feitos psíquicos
de alguma substantividade”. A problemática fraterna é também trabalhada a partir também dos desenvolvimentos de Kancyper sobre Complexo Fraterno, culpa e repetição.
A segunda parte termina com um capítulo sobre o trauma no analista,
subintitulado “O silêncio é saúde”, frase dos posters de rua da época. Trata-se de uma menina de quatro anos, atendida pela autora no início dos
anos 80 durante a ditadura militar. Nessa época, como dizem Braun e
Pelento citados por Ana, grande parte da sociedade estava afundada em
uma conspiração de silêncio e acabou apelando para a renegação.
A revelação tardia durante o tratamento da menina sobre a sua adoção,
sendo em uma época de desaparecimentos e entregas de bebês, somada
a uma apressada declaração de inocência de seus pais adotivos, nos introduz por inteiro em uma problemática ainda vigente que extrapola o
campo da saúde para estar nas mãos da justiça. Gostaria de destacar
aqui o valor dos parágrafos “Revisando a sintomatologia” e “Revisitando
a consulta”, uma vez revelado o segredo da adoção, em que se veem os
efeitos do impacto do traumático no analista. Novamente uma segunda
olhada significa algo novo.
Como lhes disse, a terceira parte do livro inclui um capítulo sobre a vida
de Marie Langer e outro sobre a história do Departamento de Crianças e
Adolescentes da APA.
471
Abel Fainstein
O último capítulo, dentro do contexto da história da Argentina e do mundo nos últimos 60 anos, do desenvolvimento da psicanálise na Argentina
e da história da APA, recorre à pré-história e à história do Departamento
e de como foi mudando a prática nesse campo.
Desde o início ligado às ideias de Arminda Aberastury e Melanie Klein até
a atualidade, quando uma variedade de teorias e práticas é moeda corrente entre nós; a partir de um trabalho quase exclusivamente bipessoal
até a inclusão crescente do lugar dos pais; da análise como panacéia e
quase a única indicação com alta frequência de seções até a
hierarquização da consulta, o tema em questão está muito trabalhado
no livro, e há diferentes dispositivos terapêuticos que, em muitos casos,
permitem seu uso em contextos hospitalares.
Penso que esse valioso recorrido é uma justa homenagem a muitos colegas que foram pioneiros entre nós na introdução de distintas leituras e
práticas de Klein, Winicott, Lacan e de outros autores. Refiro-me, com o
risco de esquecer de alguns, a pessoas como Arminda Aberastury, Betty
Garma, Susana Lustig de Ferrer, Aurora Perez, Diana Zamorano de
Inglesini, Eduardo Salas, Miguel Angel Rubinstein e tantos outros queridos amigos que contribuíram com os desenvolvimentos descritos pela
autora.
Para concluir, apenas uma breve referência ao capítulo sobre “Marie
Langer, a psicanalista maldita”. Escrito com base em entrevistas com
aqueles que a conheceram como analista e também com seu filho Tommy
– pessoas que providenciaram muitas informações e documentos. O artigo é um olhar afetuoso sobre essa mítica figura da psicanálise argentina e dos primórdios da APA. Seu nascimento na Europa, sua militância
comunista, seu exílio frente ao nazismo, seu início na Argentina, onde
fundou a APA e renunciou à militância, sua volta à militância após a
morte do seu marido e sua renúncia à APA junto ao Grupo Plataforma
são apenas alguns dos temas que o texto aborda.
Conhecida por sua intensa militância política na Europa, e logo em nosso
país, vale a pena destacar a opinião, citada por Ana, de Fidias Cesio, que
foi um de seus pacientes: “Eu me analisei com Marie Langer durante oito
anos. Somente conheci nela a analista exclusivamente dedicada à sua
profissão, com toda responsabilidade”.
Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010
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O artigo faz uma interessante resenha histórica de Viena e da Europa em
geral do início do século passado – Marie Langer nasceu em 1910. Também inclui muitos testemunhos de Marie sobre os momentos fundacionais
da APA.
Ana cita Marie: “[...] sentia que estávamos fundando algo importante [...]”
e também “[...] nossa primeira tarefa foi uma leitura coletiva de Freud,
coordenada por Garma”, ou “[...] falam de mim muitas vezes, às vezes de
gozação, e às vezes a sério, assim como da Virgem Maria. Realmente eu
não fui em nada como ela. Eu fui uma figura idealizada por um grupo e
condenada como moralista e egocêntrica por outro”.
A respeito de sua obra de 1968, Ana destaca o analisando do ano 2000,
sobre o qual ela se pergunta: existirão analisandos no ano 2000? Mesmo
que otimista, ela supõe que serão diferentes, assim como a análise praticada. Também são destaques Psicanálise e Ciência Fictícia, de 1969, Ideologia e Idealização, de 1963, Questionamos, de 1971 – em que justifica a
ruptura com a APA – e, especialmente, Materinade e Sexo, de 1978 texto
traduzido para vários idiomas. M. Langer dizia que neste sentido havia
adotado a teoria kleiniana, porque, “desde o falocentrismo de Freud, não
podia encontrar-me nem encontrar meus pacientes”. E, em troca, para
ela, o marco kleiniano “não era feminista nem revolucionário, mas dava
à mulher um lugar biológico e psicológico próprio”.
Impactou-me, especialmente, a citação de Ana a respeito do velório de
Evita Perón. M. Langer sentia por ela, como o que sentia por outras mulheres, uma especial admiração. Escrevia: “[...] admito que minha admiração por Evita é muito mais emocional. Fui ao seu velório. Entrei na
longa fila que se aproximava lentamente a ela, cheguei, e como todos,
beijei o cristal que protegia seu rosto de virgem de cera, e não tive vergonha. Saí do velório com tristeza e com a sensação de uma perda
irreparável”.
Ana acredita que talvez o irreparável tenha a ver com a dignificação da
mulher, já que, para Marie Langer, a realização mais importante do século foi a introdução da mulher na história. Ana acrescenta que, tratando
sempre de escapar do destino que sua época reservava às mulheres, Marie
se perguntou ainda em sua velhice: “Essa nova mulher, que tem oportu-
473
Abel Fainstein
nidades com que suas avós nem sonharam, é feliz?”. Então respondia:
“Eu diria que sim, e em todo caso mais feliz que as pacientes de Freud”.
Para encerrar seu texto, aposta que o tempo a ajudará a ter “uma visão
de Marie Langer livre de preconceitos, protagonista e vítima como foi,
comprometida e capturada como esteve na trama de acontecimentos do
século, que lhe tocou viver”.
Escolhi esse capítulo para encerrar meu comentário porque penso que
ilustra o objetivo central do livro.
Por mais que vá além do campo da clínica com crianças e adolescentes, o
texto sobre a – assim chamada– psicanalista maldita é uma tentativa de
historização das marcas deixadas em cada um de nós, muitas vezes
desmentidas pelas próprias transformações institucionais, e que, isoladamente, em sucessivas histórias com suas marcas da pré-história, podem conformar-se como passado.
Espero que tenham percebido, pelas observações sobre a minha leitura,
que se trata de um livro que merece ser lido.
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Apresentação do Livro de Ana Rozenbaum de Schwartzman ...
Psicanálise v. 12 nº 2, p. 465-473, 2010
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Ana Rosa Chait Trachtenberg
As Duas Análises de uma
Fobia em um Menino de Cinco
Anos – o pequeno Hans: a
psicanálise da criança ontem
e hoje
Resenha | GUTFREIND, Celso. As Duas Análises de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos
– o pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008. (Coleção Para Ler Freud).
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Membro Titular e Didata da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
A original proposta deste livro já se faz presente no próprio título, ‘As
duas análises de uma fobia em um menino de cinco anos – o pequeno
Hans’, sendo este o personagem principal do clássico historial clínico de
Freud: o pequeno Hans.
Anunciam-se, portanto, duas análises.
Na primeira parte, ou na primeira das duas análises, Celso Gutfreind, o
autor, misto de psicanalista e poeta, convida-nos a examinar o famoso
pequeno Hans de Freud, revisando, à luz de rica e variada gama de autores pós-freudianos, cada segmento do texto original. O livro está tecido e
entremeado pela presença de poetas e poesias, o que nos permite uma
leitura ainda mais agradável.
Na segunda parte, ou segunda análise, encontramos um texto literário,
ficcional, quando algum pequeno Hans dos dias de hoje vai ao “divã”.
Acompanhamos um texto literário que se apresenta quase como uma
crônica, recheado de bom humor e bons motivos para a reflexão psicanalítica. Cruzamo-nos, então, com Hans Muller, um menino de cinco anos
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do interior do Rio Grande do Sul com muitos medos, todos condizentes
com o meio no qual ele vive. Seu pai, atento, leva-o à cidade grande e lá
consultam com o “Dr. Sigismundo” e, logo, com a “Dra. Melania”, também
especialista “dos nervos”, vinda dos lados de Lageado, interior do Rio Grande do Sul. Seguem-se consultas com a “Dra. Anna”, para logo chegar no
Dr. Antonio, mais conhecido como “Tonho Ferro”.
Finalmente, a família decide acudir para a impagável “Dra. Rita Aline”,
que prescreve pílulas milagrosas. Com o passar do tempo, entram em
cena os pais de Hans Muller, já que “não existe piá sozinho!”, e assim
vamos acompanhando essa deliciosa análise/história cujo personagem
vira músico e termina tocando viola para “além de seu pelego”.
Voltando agora à primeira parte do livro, em que estão os comentários do
original e clássico texto de Freud, Gutfreind destaca o aspecto saudável
do menino, visto nos dias de hoje, graças à sua capacidade de brincar. O
tema da curiosidade e sua interface com a sexualidade infantil e a busca
do conhecimento também aparecem destacados, com especial realce para
o brinquedo, exposto na visão atual sobre a importância do mesmo e da
presença ou ausência da capacidade lúdica nas crianças (e também nos
adultos). Diz Gutfreind: “[...] sem precursores para lhe dar alguma pista,
conseguiu expressar o que hoje é fundamental: crianças precisam sonhar, brincar e desenhar para elaborar seus conflitos” (p. 38).
Freud teria atuado como um verdadeiro supervisor do pai de Hans, que
seria o real analista do pequeno. Analista e cuidador, diz Gutfreind, que,
com esta afirmação, coloca-nos na esteira dos estudos recentes a respeito da parentalidade e insere Freud entre os precursores na valorização
dos cuidadores de uma criança.
Por outro lado, nosso autor destaca o caráter de flexibilidade de Sigmund
Freud, pois, através da fina, atenta e não preconceituosa atitude, não atada às suas teorias anteriores, realiza uma sensível observação dos fenômenos descritos pelo pai de Hans. Freud reúne elementos para apoiar, a
posteriori, as bases teóricas da existência da sexualidade infantil.
Neste segmento do livro, referente à análise e à discussão do caso, podemos acompanhar Celso Gutfreind, que nos traz, cuidadosamente, passagens do clássico freudiano, enquanto o utiliza para construir um rico
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tecido de reflexões próprias, apoiado novamente em autores pósfreudianos, com especial destaque para a riqueza seminal desse texto do
início do século XX. Assim, temos, como exemplo: “Ao oferecer a psicanálise para uma criança – no caso, Hans –, Freud foi precursor. [...] A tônica
hoje está na possibilidade de representar os conflitos a partir do encontro, da brincadeira. [...] Dizer a Hans que desejar a morte do pai não é o
mesmo que matá-lo. Pensar assim é mais do que meio caminho andado
para o bem-estar psíquico” (p. 67).
Outra discussão que o autor propõe refere-se à acusação feita a Freud
sobre uma possível degeneração familiar da qual Hans estaria sofrendo,
sendo uma época em que não era possível apreciar a importância da
interação precoce mãe-bebê, do fator ambiental, da questão
transgeracional, da caça aos fantasmas e dos afetos clandestinos, etc.
Tudo germina a posteriori, graças ao plantio freudiano, particularmente
aquele feito por Freud, o pequeno Hans e seu perspicaz pai.
Ao longo do livro, Gutfreind nos promove encontros, como já foi dito,
com autores e poetas. À guisa de exemplo, vemos que, logo no início podemos apreciar um interessante encontro de Bion com Freud, a propósito da “capacidade negativa“ deste último, pois segundo o autor, ele demonstrou, ao analisar Hans, ter podido esperar e observar em lugar de
precipitar interpretações.
Igualmente Gutfreind descortina algumas sutilezas no texto original, evidenciando, por exemplo, a satisfação de Freud pela oportunidade de realizar uma intervenção no começo de um processo patológico. Diz Gutfreind
(p. 45): “Quanto a Freud, estava contente em poder intervir no começo do
processo. Ali intuiu o que hoje valorizamos ainda mais, embora tenhamos as mesmas dificuldades de há cem anos: quanto mais cedo interviermos, melhor para o restabelecimento [...]”.
Em outro momento, o autor nos chama a atenção para o nascimento de
um sofrimento psíquico a partir de uma relação, pois Freud entende que
a ansiedade de Hans está derivada de um apego excessivo (e erótico)
deste com sua mãe. O autor traz também a mãe de Hans para o cenário
de seus comentários, quando diz que a mesma, ao invés de acolher as
angústias (sexuais) do filho, ameaçou cortar o pipi. Gutfreind diz, com
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Freud, que ali Hans começou a perder a liberdade, abrindo caminho para
a sua neurose.
Em outra passagem, com o suporte clínico de Arminda Aberastury, destaca aquilo que Freud não ressaltou: uma cirurgia de amígdalas em Hans
desencadeou uma piora dos sintomas, pois a mesma atuou aumentando
suas fantasias de castração.
No presente livro, Gutfreind nos convida a viajar constantemente entre
passado e presente, entre psicanalistas e poetas, traçando várias homenagens, ao longo do texto, com caráter libertário e revolucionário da psicanálise e de seu fundador.
O autor nos remete, esperançosamente, ao século XXI, e diz que a “[...]
curiosidade sexual das crianças está presente em qualquer menino ou
menina que pode pensar em paz” (p. 33). Também aqui o livro se faz atual
ao comentar uma obra centenária.
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Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin
Narrar, Ser Mãe, Ser Pai &
Outros Ensaios sobre a
Parentalidade
Resenha | GUTFREIND, Celso. Narrar, Ser Mãe, Ser Pai & Outros Ensaios sobre a
Parentalidade. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
Claudia Kowarick Halperin
Membro Associado da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre.
Celso Halperin
Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Em Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade, Celso nos
narra. Narra o tempo todo sobre a importância de narrar. Narrar para ser
pai, narrar para ser mãe, narrar para ser psicanalista, narrar para ser
filho, narrar para ser alguém. Narrar para existir. Narrar sempre. Narrar
com palavras, com gestos, com sons, com imagens, com movimentos,
mas narrar. Narrando se constrói um mundo de metáforas, espaço
transicional em que cada um pode percorrer o terreno das ilusões, o terreno da continuidade/descontinuidade entre o eu e o mundo não eu.
Podemos falar em brincar. Pode-se brincar com nada ou com tudo. Podese brincar com bonecos, com bola, com música, com argila, com os astros, com tinta, com o amor, com o corpo e tudo mais. Celso fala do brincar com as palavras, com a narrativa. Ao narrar somos ouvidos, e ao ouvir criamos um narrador. Nesse espaço criado, a narrativa pode ser o fio
condutor: a palavra, a musicalidade, a entonação, a harmonia vão instalando o simbólico. Do que há e do que não há. Mas mantendo o movimento e a mobilidade da busca da vida.
Celso é radical: a parentalidade é produzida pela narratividade. Pais se
tornam pais pela narratividade, por contarem suas histórias de filhos, de
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netos, de pais e todas as outras. Inclusive as inventadas. Narrar é promover o encontro, o encontro com o outro, o encontro com a palavra. Celso
nos mostra no livro como se tornar escritor/pai/filho pela forma como
narra ao leitor/filho/paciente.
Se a parentalidade (e a psicanálise) se dá pela narrativa, saliente-se o
papel ativo e dinâmico dos protagonistas, narradores e ouvintes, para
que esse momento seja construído. A narrativa cria, ordena e seduz. E o
autor chama a nossa atenção para a importância da narrativa que abra
espaço. O espaço necessário para que o outro não só participe, mas, mais
do que isso, que seja tentado e encorajado a também narrar, junto e/ou
separado.
Isso tudo porque é frágil a posição do narrador: ele tem que ter o aporte
narcísico para assumir a narratividade e, portanto, a parentalidade, mas,
por outro lado, corre o perigo natural de ficar locupletado com a própria
narrativa. Corre o risco de se sentir não só um narrador, um narrador
criativo, mas O narrador, em que só as suas criações têm lugar, em que o
outro não consegue se colocar como ouvinte ou participante de outras
narrativas, sente-se envolvido por um discurso opressor (Barthes) como
no exemplo do filme Peixe-grande.
E aqui Celso chama a atenção para o cuidado que os pais e os psicanalistas devem ter: todos podem ser narradores, protagonistas da narrativa; a
começar pela própria história de cada um. O narrador cria e recria a função parental, inclusive para si próprio. E também para os outros e para si
próprio através dos outros. É papel de o terapeuta cuidar (inclusive pela
própria narrativa) para que todos os protagonistas em cena, no consultório ou na rua, sejam também narradores, sentindo-se assim participantes da história. Essa função analítica é muito bem sintetizada por D. Stern,
trazido pelo autor, quando fala na necessária harmonização ou sintonia
afetiva.
Celso nos fala da importância da narrativa no geral e no específico, utilizando-se de histórias clínicas dele e outras da cultura. Quando nos fala
de Alice no “maravilhoso país da parentalidade”, Celso ressalta o hino de
amor às palavras, à prosódia, de uma narrativa sempre dentro do lúdico,
buscando o real, construindo o maravilhoso mundo simbólico de Carrol.
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Claudia Kowarick Halperin, Celso Halperin
Ao abordar Por que sou gorda, mamãe? Celso faz uma interessante correlação desse livro da Cíntia com a famosa Carta ao pai, de Kafka, lembrando
Lebovici na importância não só da narratividade dos pais, mas também
no estímulo à capacidade narrativa dos filhos, inclusive para inventar os
pais.
Para que haja narratividade, Mario Quintana, trazido por Celso, fala-nos
da importância do ritmo: “[...] Fora do ritmo, só há danação/Fora do ritmo, não há salvação”. E Quintana se confirma na forma narrativa empregada pelo Celso, em que somos apanhados em um embalo rítmico que se
supera e alcança o ápice nas suas descrições clínicas. É comovente o relato poético que Celso faz do caso clínico “É fogo”. Aqui o autor aplica,
com maestria, sua experiência de aluno leitor: “A ficção nos torna mais
sensíveis do que o texto técnico e também guarda mais verdades”.
Embora o livro não forneça receitas, aponta um caminho: aceitar o que
se é (e o que se pode) e estar mais ou menos em dia com a sua história,
com a sua infância, tal como nos ensina Fernando Pessoa:
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou (...)
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Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação
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1 Informações Gerais
Psicanálise é uma publicação semestral, oficial, da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre editada desde 1999. Tem por objetivo divulgar trabalhos não só do campo da psicanálise como também de suas
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difamatório;
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2.6 por fim, o autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na
Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre está transferindo automaticamente o “copyrigth” para essa, salvo as exceções previstas pela lei.
3 Forma de apresentação do manuscrito
3.1 os originais deverão ser enviados à “Psicanálise” – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, preferencialmente por email para os endereços [email protected], [email protected],
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Caso seja enviado por Correio deverá acompanhar cópia em CD-ROM,
digitado em word for windows, endereçado a Comissão Editorial da revista da SBPdePA na Rua Quintino Bocaiúva, 1362, CEP 90440-050, Porto Alegre/RS.
3.3 Folha de rosto identificada, contendo:
– título do trabalho em português, inglês e espanhol (centralizado);
– nome completo do(s) autor(es) na margem direita;
– nota de rodapé com titulação e afiliação;
– quando se tratar de trabalho apresentado em evento informar em nota
de rodapé;
3.4 Resumo e palavras-chave em português, inglês e espanhol:
– resumo, abstratc e resumen deverá conter no máximo 150 palavras se-
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guido das palavras-chave. O resumo e palavras-chave em português deverão localizar-se na folha de rosto após o título; resumos e palavraschave em inglês (abstract e keywords) e espanhol (resumen e palabras-llave)
constarão no final do trabalho, antes das referências.
3.5 Texto
3.5.1
Citações
As seguintes orientações seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 10520 – Informação e
documentação – Citação em documentos – Apresentação.
3.5.1.1 deverão ser identificadas através do sobrenome do autor, ano de
publicação e número da página, por exemplo: Freud (1918, p. 5) ou (FREUD,
1918, p. 5). Na citação direta curta (até 3 linhas), colocar entre aspas duplas; em citação direta longa (mais de 3 linhas), destacar com recuo de
4cm da margem esquerda com letra menor e sem aspas.
3.5.1.2 obras com dois autores, os dois devem ser mencionados, por
exemplo, Marty, de M’Uzan (1963) ou (MARTY de M’UZAN, 1963). Caso
existam mais de dois autores, indicar somente o primeiro seguido da expressão latina et al., pó exemplo Rodrigues et al. (1983) ou (RODRIGUES ...
et al., 1983).
3.5.1.3 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após
o nome, seguido da data de publicação da obra consultada.
3.5.2 Referências
As referências seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 6023 – Informação e documentação – Referências – Elaboração.
3.5.2.1 são apresentadas de forma completa, no final do trabalho, em
ordem alfabética de sobrenome dos autores e suas obras pela ordem cronológica de publicação, correspondendo exatamente às obras citadas.
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3.5.2.2 obras publicadas de um mesmo autor no mesmo ano, deve-se
acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c, etc. Quando um autor é
citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as
obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que aparece
como co-autor. Os autores não são repetidos, mas indicados por seis traços sem espaçamento entre eles;
3.5.2.3 os títulos dos livros devem ser grifados, sendo que as palavras
mais significativas serão escritas em maiúsculas; o lugar da publicação,
o nome do editor e a data de publicação também devem ser indicados,
nesta ordem;
3.5.2.4 nos títulos de artigos somente a primeira palavra figurará em
letra maiúscula, seguido do título grifado da revista, volume, número e
página inicial e final do artigo.
3.5.2.5 consideração especial para as obras de Freud: as datas correspondentes aos seus textos deverão aparecer entre parênteses, logo após
o nome; a data de publicação da obra consultada constará no final da
referência.
3.6 Forma de apresentação de resenha
A resenha deverá ter extensão máxima de quatro páginas (frente), fonte
Times New Roman, tamanho 12 em espaço entrelinhas de 1,5 com numeração no canto superior direito.
A resenha deverá mencionar:
– Título, autor(es), editora, ano e número de páginas da obra resenhada;
– síntese do conteúdo do livro;
– comentário sobre a inserção, contribuição ou importância da obra no
contexto da literatura psicanalítica.
Considerações sobre a pessoa do autor ou da relação pessoal com ele
devem ser evitadas.
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4 Procedimentos de avaliação
4.1 todo artigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial
da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
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que o mesmo seja mantido pelo próprio avaliador;
4.3 sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto
à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e
do programa editorial estabelecido;
4.4 a Comissão Editorial reserva-se o direito de efetuar pequenas alterações no texto aceito para publicação, afim de adequá-lo aos critérios
de coerência, clareza, fluidez, correção gramatical e padronização editorial adotados pela revista. A exatidão das informações é de responsabilidade do autor.
4.5 artigos que não forem publicados em 10 (dez) meses a partir da data
de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse
tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.

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