Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de
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Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de
Educação e Pesquisa Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Education and Research Journal of the School of Education, University of São Paulo Universidade de São Paulo / University of São Paulo Reitor/Rector: Marco Antonio Zago Vice-Reitor/Vice-Rector: Vahan Agopyan Faculdade de Educação / School of Education Diretora/Dean: Belmira Amélia de Barros Oliveira Bueno Vice-Diretora/Vice-Dean: Diana Gonçalves Vidal Editoras / Editors Denise Trento Rebello de Souza - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Teresa Cristina Rego - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Editores Assistentes / Assistant Editors Cláudia Pereira Vianna - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Émerson de Pietri - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Lucia Helena Sasseron Roberto - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Maria Ângela Borges Salvadori - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Marília Pinto Carvalho - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Rosângela Gavioli Prieto - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Vinicio de Macedo Santos - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Secretaria de Edições / Editions Office Anna Cecília de Paula Cruz José Aguinaldo da Silva Conselho Editorial / Editorial Board António Nóvoa Maria Isabel da Cunha Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal UniSinos, Rio Grande do Sul, São Leopoldo, RS, Brasil Belmira A. de Barros O. Bueno Maria Machado Malta Campos Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, Brasil Carlos Roberto Jamil Cury Marie-Christine Josso Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Université de Genève, Genève, Suíça Elsie Rockwell Marília Fonseca Instituto Politécnico Nacional, Zacatenco, Distrito Federal, México Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil Frederick Erickson Martin Carnoy University of California, Berkeley, California, EUA Stanford University, Stanford, EUA Gilles Brougère Nelly Stromquist Université Paris-Nord, Villeteneuse, Paris, França University of Southern California, Los Angeles, CA, EUA Josep Maria Puig Rovira Olgária Matos Universidad de Barcelona, Barcelona, Espanha Universidade de São Paulo, São Paulo, SP,Brasil Jürgen Schriewer Silvina Gvirtz Humboldt Universiät, Berlin, Alemanha Universidad Nacional de Buenos Aires, Argentina Lucia Emília Nuevo Barreto Bruno Yves de La Taille Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Luciano Mendes de Faria Filho Zaia Brandão Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Luiz Antônio Cunha Zeila de Brito Fabri Demartini Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil Magda Becker Soares Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Revista financiada com recursos de Educação e Pesquisa revista da Educação e Pesquisa faculdade São Paulo v. 40 de educação n. 3 280 p. da usp jul./set. 2014 ISSN 1517-9702 Educação e Pesquisa, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014. EDUCAÇÃO E PESQUISA publica artigos inéditos na área de educação, em especial resultados de pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional. Educação e Pesquisa. São Paulo, FE/USP, 1975. Trimestral Publicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Continuação da Revista da Faculdade de Educação da USP ISSN 1517-9702 1. Educação. Indexada em / Indexed in: AERA SIG - Communication of Research (EUA, www.aera-cr.asu.edu) BBE - Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, INEP) CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (México, UNAM) DOAJ - Directory of Open Access Journals (Suécia) EDUBASE (Brasil, FE/Unicamp) ERA - Educational Research Abstracts (Inglaterra, www.tandf.co.uk/era/) IRESIE - Indice de Revistas de Educación Superior y Investigación Educativa (México, UNAM) LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, en Caribe, Espanã y Portugal (México) PSICODOC - Colegio Oficial de Psicólogos de Madrid (Espanha) SCIELO - Scientific Electronic Library Oline (Brazil) SCIMAGO - SCImago Journal and Country Rank (Elsevier) SCOPUS - Scopus citation database of peer-reviewed literature. SIBI- Portal de Revistas da USP (www.revistas.usp.br) SOCIOLOGICAL ABSTRACTS (EUA, www.csa.com/factsheets/supplements/sociossl.php) Versões on-line / Online versions: http://www.educacaoepesquisa.fe.usp.br http://dialnet.unirioja.es http://www.redalyc.com http://www.scimagojr.com http://www.scielo.org http://www.scopus.com Copidesque e revisão / Copy desk and proofreading: Ana Paula C. Renesto Editoração eletrônica / Desktop publishing: Anna Cecília de Paula Cruz Versão para o inglês / English version: Ana Paula C. Renesto e Luiz Ramires Neto Projeto gráfico e ilustrações / Graphic design and illustrations: Daniel Bueno e Fernando de Almeida E-mail: [email protected] Solicita-se permuta / Exchange is requested Tiragem: 800 exemplares Sumário 589 Editorial Artigos 599 La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios colombianos Miguel Ángel Gómez Mendoza; María Victoria Alzate Piedranhita 617 Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e processos 637 Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada em casos Maria Gabriela Parenti Bicalho; Maria Celeste Reis Fernandes Souza Andreia Cristina Metzner 651 O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC) Celina Hoffmann; Roselaine Ruviaro Zanini; Ângela Cristina Corrêa; Julio Cezar Mairesse Siluk; Vitor Francisco Schuch Júnior; Lucas Veiga Ávila 667 Contribuições da perspectiva crítica de base histórico-cultural para a produção científica em psicologia educacional Laísy de Lima; Simone Salviano Alves; Jaqueline Vilar Ramalho; Fabíola de Sousa Braz Aquino 683 Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP Marcos Cezar de Freitas 699 La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso latinoamericano Jaime Rogelio Calderón López-Velarde 717 O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar? Marília Pinto de Carvalho; Adriano Souza Senkevics; Tatiana Avila Loges 735 As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas 751 Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos 767 Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia solidária internacional Carlos Manoel Pimenta Pires Victor Andrade de Melo Antonio Takao Kanamaru 783 A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey 799 Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em Honneth e Rousseau Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco Claudio Almir Dalbosco 813 Experiência e linguagem em Walter Benjamin Eloiza Gurgel Pires Entrevista 829 Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer Entrevistador: Danilo R. Streck 845 Instruções aos colaboradores 859 Leia também Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014. Contents 589 Editorial Articles 599 Teaching and its relation to knowledge among Colombian university students 617 The relationship of higher education students to knowledge: learnings and processes Miguel Ángel Gómez Mendoza; María Victoria Alzate Piedranhita Maria Gabriela Parenti Bicalho; Maria Celeste Reis Fernandes Souza 637 A teaching proposal implemented in an undergraduate Physical Education program: case-Based Learning Andreia Cristina Metzner 651 Performance of Brazilian universities in view of the General Course Index (IGC) Celina Hoffmann; Roselaine Ruviaro Zanini; Ângela Cristina Corrêa; Julio Cezar Mairesse Siluk; Vitor Francisco Schuch Júnior; Lucas Veiga Ávila 667 Contributions of the cultural-historical-based critical perspective to scientific production in educational psychology Laísy de Lima; Simone Salviano Alves; Jaqueline Vilar Ramalho; Fabíola de Sousa Braz Aquino 683 Performance and adaptation of poor children to school: the research pattern of CRPE-SP Marcos Cezar de Freitas 699 Investigation on youth and adult education: the theses of a Latin American contest 717 School success of girls from poor communities: what is the role of family socialization? 735 The mortification of the flesh and the desire exposed: control over girls in Catholic institutions Jaime Rogelio Calderón López-Velarde Marília Pinto de Carvalho; Adriano Souza Senkevics; Tatiana Avila Loges Carlos Manoel Pimenta Pires 751 Body education – social dance in 19th century Rio de Janeiro: the Paranhos point of view Victor Andrade de Melo 767 Autonomy, cooperativeness and self-management in Freinet: foundations of an international solidarity pedagogy Antonio Takao Kanamaru 783 Progressive education today: the legacy of John Dewey Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco 799 The human condition and the virtuous education of the will: the depths of recognition in Honneth and Rousseau Claudio Almir Dalbosco 813 Experience and language in Walter Benjamin Eloiza Gurgel Pires Interview 829 Ecological rationality and citizenship education: interview with Gerd Gigerenzer Interviewer: Danilo R. Streck 845 Instructions to authors 859 See also Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014. Editorial O acesso a artigos científicos em meio digital evidenciou que a relação do leitor com o texto possa se fazer de modo um tanto mais direto, isto é, sem que necessariamente o leitor, no seu percurso em busca da referência bibliográfica, se depare com informações sobre o processo de edição que antecedeu e possibilitou a publicação do trabalho. Um dos efeitos que essa relação um leitor – um texto pode produzir é também a não necessária localização do artigo a ser lido no interior de um conjunto em que componha uma organização. A ideia de unificação que sustenta o processo de organização de um número de periódico científico pode se enfrentar, assim, com a prevalência da unidade e da autonomia de cada um dos textos sobre a ideia de organicidade que sustenta a edição de uma revista científica. O mundo digital nos fez perceber de modo mais decisivo que a parte pode sobressair ou se sobrepor ao todo. Mas é justamente nas condições em que a parte, o fragmento, o heterogêneo, encontram-se em lugar de relevo que a organização de um conjunto pode se mostrar tanto mais produtiva. Em razão de projetar um leitor não apenas em busca de seus interesses mais imediatos, projeta-se também um leitor que possa encontrar, no volume a ser lido, uma coletânea em que questionamentos se fortaleçam com base no próprio diálogo que se possa vislumbrar entre os textos aproximados para compor o conjunto. E isso é tanto mais interessante quando se considera a multiplicidade de perspectivas teóricas e metodológicas que compõem um campo como o da educação e a qualidade dos debates que se apresenta nas produções que se destinam à publicação em uma revista como Educação e Pesquisa. É com satisfação que se apresenta, portanto, o terceiro número que compõe o volume 40 de nosso periódico. Encontram-se nele artigos que propõem de modo instigante a observação de questões educacionais segundo pontos de vista que se pretendem distintos, inovadores, porque questionadores dos modos como estabelecidos, ou, por vezes, estabilizados, dos processos de elaboração teórica e/ou metodológica que sustentam as investigações em suas respectivas áreas. Os princípios que orientam a organização do presente número de Educação e Pesquisa são, assim, o questionamento das referências estabelecidas e a proposição de perspectivas diferenciadas para a produção de conhecimentos no campo educacional. Nesse sentido, abre a coletânea um conjunto de quatro artigos que se reúnem em torno do questionamento sobre relações estabelecidas com o saber produzido. No primeiro deles, “La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios colombianos”, Miguel Ángel Gómez Mendoza e María Victoria Alzate Piedranhita apresentam resultados de pesquisa que se orientou por conhecer quais mecanismos estariam dificultando o sucesso de estudantes universitários colombianos em seu percurso acadêmico, num contexto de massificação do acesso à universidade. Ao questionar os modos como estudantes universitários estabelecem suas relações com o saber em geral, e com o acadêmico em Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-970220144003001 589 particular, os autores partem do pressuposto de que não se trata de atribuir as dificuldades acadêmicas dos alunos a carências que trazem de seus contextos sociais de origem, mas a especificidades do ensino universitário e aos modos como se conduzem as práticas pedagógicas na academia. São esse pressuposto e o apoio em proposta teórico-metodológica referenciada na noção de relação com, elaborada por Bernard Charlot, que sustentam a observação acurada e a análise produtiva e reveladora sobre as relações do estudante universitário com o contexto de aprendizagem que encontra na universidade. O próximo texto desse primeiro conjunto também apresenta questionamentos sobre a relação do estudante universitário com o saber, mas, neste caso, em contexto brasileiro. Em “Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e processos”, Maria Gabriela Parenti Bicalho e Maria Celeste Reis Fernandes Souza também se referenciam na proposta teórico-metodológica de Bernard Charlot para observar os modos como alunos de uma instituição de ensino superior comunitária, privada, localizada em Minas Gerais, se relacionam com os saberes que se lhes apresentam em seu percurso universitário para a formação profissional. As autoras examinam os diferentes modos como os sujeitos da pesquisa representam a formação universitária e como valoram a função dessa experiência em relação a sua formação prévia, aos seus valores sociais e culturais trazidos da escola básica e da família, e a seus projetos presentes e futuros. Com a análise dos dados, evidenciam-se características do contexto observado que proporcionam questionamentos decisivos, quanto aos objetivos propostos e aos alcançados, para a formação profissional em Instituições de Ensino Superior, se consideradas as percepções dos estudantes sobre os modos de sua inserção nesse processo formativo. Em “Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada em casos”, Andreia Cristina Metzner problematiza a ordenação curricular centrada na noção de disciplina e na ausência de estabelecimento de relações entre as unidades curriculares que compõem os cursos do ensino superior. A formação de professores se depararia, assim, com a impossibilidade de elaboração de um currículo mais orgânico, o que, nesse sentido, estaria relacionado com a dificuldade de se realizar um processo formativo fundado na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade. Uma perspectiva de solução para essa ordem existente seria a organização do ensino em torno da aprendizagem baseada em casos. Os dados da pesquisa se produziram com o emprego dessa metodologia, em experiência desenvolvida em um curso de Educação Física de uma Instituição de Ensino Superior, localizada no interior do estado de São Paulo. Em torno da atividade formativa com os alunos, outras ações acadêmicas compuseram a experiência desenvolvida, de modo a se realizar um trabalho que respondesse aos princípios de inter e transdisciplinaridade que orientaram a pesquisa. Encerra este primeiro conjunto o artigo “O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC)”, de autoria de Celina Hoffmann, Roselaine Ruviaro Zanini, Ângela Cristina Corrêa, Julio Cezar Mairesse Siluk, Vitor 590 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. Francisco Schuch Júnior e Lucas Veiga Ávila. Trata-se também de trabalho em que se observam as relações dos sujeitos com os saberes acadêmicos, porém, neste caso, a partir da perspectiva institucional. Colocando-se em face das discussões críticas sobre os processos de avaliação das Instituições de Ensino Superior no Brasil, os autores apresentam os problemas historicamente apontados para esses processos, e os questionamentos sobre suas bases epistemológicas, suas diretrizes valorativas e suas consequências sociais. Após esses apontamentos, estabelecem posicionamento dissonante ao que fora revisado na literatura sobre o assunto, e propõem-se a considerar as contribuições que pode oferecer, para a avaliação da qualidade do ensino superior, a análise dos resultados do Índice Geral de Cursos, produzidos no interior do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES). No segundo conjunto de artigos a compor este número da revista Educação e Pesquisa, reúnem-se trabalhos produzidos com o objetivo de revisar o que se produziu historicamente nas áreas em que se inserem. Em “Contribuições da perspectiva crítica de base histórico-cultural para a produção científica em psicologia educacional”, Laísy de Lima, Simone Salviano Alves, Jaqueline Vilar Ramalho e Fabíola de Sousa Braz Aquino se propõem a mapear, dentre as produções em psicologia escolar e educacional, aquelas que se filiam à abordagem histórico-cultural de ascendência vigotskiana. O objetivo é o de reconhecer a produtividade em pesquisas que se alinham a essa vertente teórica, para contribuir com os processos de investigação que se realizem segundo essa perspectiva. Mais do que isso, encontra-se, no artigo, abordagem das produções analisadas que as posiciona em face da elaboração histórica que as tornou possível, com o que se oferece ao leitor, portanto, dimensão crítica de relevo para se observar a constituição de uma concepção teórica que, segundo as autoras, se associa ao compromisso da investigação científica com o que é do social e da cidadania. No artigo “Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP”, Marcos Cezar de Freitas observa de que modo se produziu um novo padrão de pesquisa no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE-SP), entre 1956 e 1963. O autor analisa as filiações teórico-metodológicas de dois de seus principais pesquisadores no período, Dante Moreira Leite e Luiz Pereira, e as proposições que desenvolvem para o tratamento das relações entre a constituição da cidade de São Paulo em metrópole, com o processo de urbanização por que passava o país naquele momento histórico, e, associadamente a esse processo, a chegada, à escola, de crianças pobres. O novo padrão de pesquisa desenvolvido conduziu à possibilidade de observar o desempenho insatisfatório da criança de periferia na escola não como decorrente de aspectos biológicos, mas de questões sociais, com o que se evidenciava o funcionamento de um princípio de exclusão a regular as avaliações sobre o aproveitamento escolar. Trata-se, portanto, de um momento de produtividade determinante para a pesquisa em sociologia da educação, tanto no que se refere às novas possibilidades teórico-metodológicas que se elaboravam, quanto aos resultados obtidos com as investigações realizadas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. 591 Em “La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso latino-americano”, Jaime Rogelio Calderón López-Velarde mapeia a distribuição, no contexto da América Latina e do Caribe, das investigações na área. Para tanto, discute a própria compreensão que tem sido historicamente construída do que seja a Educação de Jovens e Adultos e as consequências que têm produzido uma ou outra proposta de definição para o que a constitui. Considera, assim, os avanços obtidos nesse processo de (re)definições, e aponta para os desafios que a partir delas se apresentam. Ao tratar teórico-metodologicamente os dados de análise, observa, contrastivamente, as características das investigações em Educação de Jovens e Adultos desenvolvidas nos diferentes países representados pelos documentos que compõem o corpus da pesquisa. Mostra-se, assim, não apenas um painel histórico e geográfico sobre a produção de conhecimento na área, mas também dos modos diversos de inserção institucional que a Educação de Jovens e Adultos encontra nos contextos analisados. O terceiro conjunto de artigos se reúne em torno da temática do controle dos sujeitos e dos efeitos que as formas de controle produzem para os processos educativos. O artigo “O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar?”, de autoria de Marília Pinto de Carvalho, Adriano Souza Senkevics e Tatiana Avila Loges, apresenta resultados de pesquisa de caráter qualitativo, desenvolvida ao longo de 2011, com oito famílias de setores populares da cidade de São Paulo. O objetivo foi o de investigar como as diferenças na educação de meninos e na educação de meninas, tais como representadas e realizadas pelos sujeitos das famílias participantes da pesquisa, poderiam se associar ao desempenho mais e menos satisfatório de meninas e meninos na escola. Os autores se propuseram a romper com as abordagens dicotômicas encontradas em pesquisas que se voltaram anteriormente sobre a mesma temática, de maneira a não relacionar de modo estreito o sucesso escolar de meninas ao aprendizado da subordinação a que estariam social e historicamente submetidas. Antes disso, procuraram observar as respostas que os dados ofereceram às perguntas orientadoras da investigação e tratar dessas respostas seguindo o princípio de que as relações de poder ligadas ao gênero se constituem segundo dimensões contraditórias. Assim, dizem os autores: “para não reiterar pressupostos afirmados de antemão, buscamos apreender na análise tanto dimensões de ruptura quanto de manutenção das posições subordinadas das mulheres”. Artigo igualmente instigante é “As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas”, de Carlos Manoel Pimenta Pires. Em bases foucaultianas, o autor analisa o chamado Manual de piedade da donzela cristã, material didático utilizado para a educação de meninas em internatos e conventos, na segunda metade do século XIX e início do século XX, em Portugal. A hipótese com que trabalha é a de que, no século XIX, processou-se a formação de episteme e moral específicas da mulher, de modo a centrar o feminino como agente produtivo da moralidade para a sociedade que se organizaria então no mundo ocidental e de que muitos elementos nos encontrariam ainda hoje, na contemporaneidade. A tese é a de que as instruções eclesiais participaram decisivamente do processo de 592 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. formação desse sujeito feminino, com o que a Igreja teria pretendido, inclusive, oferecer uma solução para a tensão gerada entre a vida privada familiar e a convivência pública, no momento em que as sociedades soberanas começam a ceder espaço para as sociedades industriais. Também sobre o processo civilizatório, encerra esse terceiro conjunto o artigo “Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos”. Com a análise de crônicas publicadas no Jornal do Commercio por José Maria da Silva Paranhos, personagem decisivo para a conformação do Império brasileiro, Victor Andrade de Melo observa a importância dos bailes e das sociedades dançantes, não apenas para a vida social, política e cultural do Rio de Janeiro da época, mas, nesse caso, para a própria educação dos sujeitos que se constituíam nessa sociedade que buscava um processo de promoção da civilidade. Em seus escritos, Paranhos apresentou projetos para o Brasil, e o tratamento de temas relacionados aos bailes e às danças compunha um de seus meios para a representação do que se desejaria para uma nação não atrasada e para a evidência de uma elite em contraste com o povo não educado. As danças da elite e as danças do povo marcavam o lugar da separação entre uma e outra dessas classes sociais. Para a elite, os bailes e a dança significavam a chance de polir os costumes, segundo Paranhos, de modo a possibilitar conviver não elite e povo, mas os diferentes sociais que se encontravam para compor essa classe privilegiada. No último grupo de artigos que compõem este número de Educação e Pesquisa, encontram-se trabalhos que se aproximam no objetivo comum de dialogar com a obra de pensadores, direta ou não diretamente relacionados ao campo educacional, de modo a produzirem-se discussões e subsídios para processos educativos. Nesse sentido, em “Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia solidária internacional”, Antonio Takao Kanamaru propõe-se a observar o que seria um aspecto pouco considerado da obra do educador: “a solidariedade radical em seus meios e seus fins”. A hipótese defendida é a de que o cooperativismo e a autogestão seriam os pontos fundamentais das proposições de Freinet, porque se associariam a uma pedagogia solidária de caráter internacional. A defesa dessa hipótese se sustenta na observação de outra característica também pouco explorada da obra desse autor: a presença de uma interpretação heterodoxa do marxismo, sobre a alienação do sujeito produtor, as relações materiais de produção, e a doutrina internacionalista de Marx. Nessas bases, a pedagogia de Freinet se reinvestiria de ainda mais relevância na atualidade, pois contraposta aos cerceamentos que políticas educacionais de caráter tecnocrático e concorrencial, associadas a objetivos mercadológicos e financeiros, impõem à liberdade pedagógica. “A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey”, de autoria de Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco, contrasta também as propostas pedagógicas da educação progressiva aos impedimentos à liberdade que representam na atualidade as políticas educacionais de base neoliberal. Para responder ao objetivo de seu trabalho, a autora revisita a obra de John Dewey em busca de assinalar os conceitos centrais Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. 593 de seu pensamento pedagógico, para, em seguida, analisar como esses saberes foram apropriados e desenvolvidos pelos pesquisadores que se propuseram a dar continuidade ao trabalho do autor. Como no artigo anteriormente apresentado, também neste se observa a caracterização do posicionamento político subjacente à proposta pedagógica em análise, bem como aos modos como projetados os sujeitos sociais que se constituiriam num processo formativo assentado nas bases defendidas nessa concepção de ensino, de aprendizagem e de convivência democrática no espaço escolar. “Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em Honneth e Rousseau”, de Claudio Almir Dalbosco, apresenta ao leitor a proposta do autor de observar que a Rousseau deveria ser atribuído não mais apenas o papel de fundador da liberdade reflexiva, mas também da liberdade social. Para tanto, discute em que sentido é possível reconhecer, nas considerações de Rousseau que sustentam a teoria do reconhecimento, como a educação do amor próprio “apenas se deixa compreender adequadamente como teoria da formação virtuosa da vontade”. Segundo o autor, no reconhecimento recíproco, sustenta-se o respeito pelo outro, o que se opõe ao desejo de reconhecimento social fundado no amor próprio e na concorrência com os demais, em busca incessante por um lugar de superioridade. Assim, a formação do aluno para a igualdade social deveria se fazer desde a tenra infância, de modo a garantir que o processo educativo conduzisse ao respeito recíproco entre iguais, e, portanto, à liberdade social. Observa-se, assim, o quanto se mostram redutoras as propostas educacionais contemporâneas que se restringem ao tratamento dos processos de aprendizagem, limitando perigosamente, segundo o autor, “questões educacionais amplas e complexas”. Completa este último conjunto de artigos o trabalho “Experiência e linguagem em Walter Benjamin”, de Eloiza Gurgel Pires. A autora trata da função que possui a linguagem no pensamento benjaminiano, função de traduzir, de transmudar o mundo, o que é “o próprio movimento que constitui o conhecimento”. É nesse movimento que se sustentaria a educação, realizada ontogeneticamente no sujeito e fundamentada no caráter mimético da linguagem, concepção a que se opôs, historicamente, o pensamento abstrato, racional. “A partir desse experimentum linguae, descobrem-se os reflexos míticos e poéticos, bem como o sentido do sagrado frequentemente dissimulado nas atividades mais banais e cotidianas”. Desse modo, a obra benjaminiana se oporia a qualquer projeto educativo, a qualquer institucionalização do saber, pois esses seriam obstáculos à experiência total e concreta do conhecimento. Encerra o volume a entrevista de título “Racionalidade ecológica e formação de cidadania”, realizada por Danilo R. Streck com Gerd Gigerenzer, pesquisador do Max-Planck Institute for Human Development, em Berlim. Na entrevista, o pesquisador alemão apresenta suas críticas a respeito da validação dos modos de produção de conhecimento se apenas assentada em bases lógicas. Considera, assim, a necessidade de reconhecer a legitimidade dos conhecimentos produzidos com base em processos intuitivos. Seu ponto de vista se justifica na própria impossibilidade de totalização do 594 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. conhecimento sobre as realidades tomadas para investigação. Num mundo de incertezas, como o atual, a racionalidade ecológica sustentaria a produção de conhecimentos em contexto, isto é, em função das especificidades sociais e culturais que se apresentam ao pesquisador, que demandam tomadas de decisões autônomas e criativas, face ao insólito, ao inusitado, ao não-costumeiro, àquilo que escapa às generalizações fundadas na racionalidade da lógica científica. Temos, portanto, neste número de Educação e Pesquisa, artigos em que se apresentam perspectivas críticas, pontos de vista questionadores, o que enseja a reflexão e o movimento de posições nos debates contemporâneos no campo educacional. Reúnemse textos de áreas diversas da pesquisa em educação e, também, de filiações institucionais e proveniências regionais as mais diversas, o que responde de modo representativo à complexidade do campo. Apresenta-se, também, parte dos artigos vertida ao inglês, com o objetivo de contribuir para a ampliação dos modos de acesso ao periódico e para a constituição de uma comunidade leitora cada vez mais abrangente. Esperamos que esta edição de Educação e Pesquisa contribua para o desenvolvimento das investigações científicas sobre os processos educacionais, para a contínua revisão crítica dos modos de produção de conhecimentos na área, e para o necessário questionamento dos saberes já produzidos. Émerson de Pietri Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. 595 Artigos / Articles La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios colombianosI Miguel Ángel Gómez MendozaII María Victoria Alzate PiedranhitaII Resumen Se exponen los resultados de una investigación sobre las respuestas de los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes enseñados en la universidad desde la perspectiva de su relación con el saber. Estudio exploratorio, cualitativo, descriptivo y descriptivo en una muestra cualitativa con representatividad teórica de dieciséis estudiantes de seis cursos universitarios, que se desarrollaron en el segundo semestre de 2012 en la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia. Se adoptaron cinco dimensiones de la relación con el saber: (1) sentido; (2) dimensión de lo que es importante en el saber; (3) contrato didáctico; (4) relación de identidad y afectiva con el saber; y (5) actitudes de estudio. Tres rasgos generales surgen de la investigación: (1) si bien los estudiantes, aceptan en su relación con el saber la exigencia de la significación, esperan también los momentos de la designación; (2) obstáculo importante en la relación constituye la distancia entre lo que el curso propone y la representación que el estudiante puede tener de la práctica fuente y la práctica objetivo; (3) rasgo común para los cursos es la distancia entre la percepción de las exigencias del profesor antes y después de la evaluación. Se confirma la hipótesis comprensiva: la respuesta que dan los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes enseñados en la universidad dependen de su relación con el saber y de sus actitudes y tratativas o enfoques que esta relación implica. Palabras clave I- Artículo resultado del Convenio 708 de 2012 Ministerio de Educación Nacional de Colombia, Universidad Tecnológica de Pereira. Convocatoria Realización de estudios sobre Educación Superior 2012. (Código Vicerrectoría de Investigaciones, Extensión e Innovación de la Universidad Tecnológica de Pereira. VIIEUTP: 4-12-5. Código división financiera UTP: 5-11-3-234-25). II- Universidad Tecnológica de Pereira, Pereira, Risaralda, Colombia. Contactos: [email protected], [email protected] Saber — Relación con el saber — Educación superior — Enseñanza — Estudiantes — Universidad. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000008 599 Teaching and its relation to knowledge among Colombian university studentsI Miguel Ángel Gómez MendozaII María Victoria Alzate PiedranhitaII Abstract This article presents the results of an investigation into student responses to the demands of the forms of knowledge taught at the university from the perspective of their relation to knowledge. It is an exploratory, qualitative, and descriptive study with a qualitative sample with theoretical representativeness of sixteen students from six university courses offered in the second half of 2012 at Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia. Five dimensions of the relation to knowledge were adopted: (1) meaning, (2) dimension of what is important in knowledge, (3) didactic contract, (4) identity and affective relation to knowledge, and (5) study attitudes. Three general features have emerged from the research: (1) although students accepted the requirement of meaning in their relation to knowledge, they also expect moments of designation; (2) the distance between the course aims and the representation that the student may have of the source practice and target practice is a major obstacle in the relation; (3) the distance between the perception of the demands of the professor before and after evaluation is a common characteristic of the courses. The comprehensive hypothesis has been confirmed: the response given by students to the demands of the forms of knowledge taught at university depends on their relation to knowledge and the attitudes and negotiations or approaches that this relations implies. Keywords I- This article is a result of Agreement 708 of 2012 Ministry of National Education of Colombia, Universidad Tecnológica de Pereira. Call Realización de estudios sobre Educación Superior 2012. (Code Vicerrectoría de Investigaciones, Extensión e Innovación de la Universidad Tecnológica Knowledge — Relation to knowledge — Higher education — Education — Students — University. de Pereira. VIIE-UTP: 4-12-5. Financial division code UTP: 5-11-3-234-25). II- Universidad Tecnológica de Pereira, Pereira, Risaralda, Colombia. Contact: [email protected], [email protected] 600 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000008 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 599-615, jul./set. 2014. Algunos estudios han puesto en evidencia de manera global los procesos de diferenciación de las prácticas de estudio de los estudiantes universitarios, tanto en el plano de las estrategias de aprendizaje (ROMAINVILLE, 1993) como en el de las competencias lingüísticas y textuales (POLLET, 2001). El campo de de investigación que se exploró en esta ocasión es el de la relación que los estudiantes mantienen con las diferentes formas de saber que se les pide o demanda adquirir en la universidad. La noción de relación con el saber (rapport au savoir), ha tomado, desde hace veinte años, cada vez más importancia en el campo de las ciencias humanas y de la educación. Se trata de una noción que continúa en proceso de elaboración y que ha podido demostrar hasta ahora su real poder heurístico tanto por sus cuestionamientos, como por la relación con el campo de investigación e intervención que este concepto abre. Desde los años 90 del siglo pasado, en la tradición de investigación sociológica, psicológica y de las ciencias de la educación francesas, un buen número de investigadores apelan a esta noción de relación con el saber. Ella permite una nueva aproximación al logro, al fracaso y a la deserción escolar y universitaria. Dos equipos de investigación de manera sistemática han hecho uso de esta noción en sus trabajos: el grupo de investigación del CREF (Centre de Recherche Education et Formation de la Universidad Paris X – Nanterre) y el grupo ESCOL (Education, Socialisation, et Collectivités Locales de la Universidad Paris VIII - Saint Denis). Para Bernard Charlot (1997), promotor del segundo grupo (…) la relación con el saber es el conjunto (organizado) de las relaciones que un sujeto humano (esto es singular y social) mantiene con todo lo que surge o se deriva del ‘aprender’ y del saber: objeto, ‘contenido de pensamiento’, actividad, relación interpersonal, lugar, persona, situación, ocasión, obligación, etc., asociados de alguna manera al aprender y al saber. (p. 22) Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. Según Jacky Beillerot (1998) integrante del grupo CREF, indagar la relación con el saber, es (…) estudiar las situaciones donde se implementan los elementos de esta relación con el saber. Si se postula que la relación con el saber no es tanto un atributo como un proceso, él es entonces más accesible en situación, o a él el no es posible acceder sino en situación (provocada o natural). (p.7) Para investigadores de este grupo como Beillerot; Blanchart-Laville; Mosconi (1996), la referencia a la teoría psicoanalítica está netamente marcada. La noción de relación con el saber es analizada a través de la problemática del deseo de saber. Es la dimensión clínica que fundamenta la coherencia epistemológica de sus investigaciones. Ahora bien, en una perspectiva teórica, la relación con el saber es percibida en un primer momento, en el nivel de su génesis y en términos de relación de objeto. Al respecto, como lo han desarrollado Beillerot; Bouillet; Blanchard-Laville; Mosconi (1989), Beillerot (1998) y Blanchard-Laville (1996), en sus trabajos de elaboración teórica y la relación con el saber, las concepciones de Wilfred Bion y Donald Wood Winnicott, que tratan de la construcción psíquica precoz de la capacidad de aprendizaje, del pensamiento y de las primera experiencias de saber se plantean en primer lugar, junto a la teoría de Jacques Lacan relacionada con el concepto de deseo, de deseo de saber y de su insatisfacción es, como tal, central en esta perspectiva. Para Bernard Charlot, Élisabeth Bautier Jean-Yves Rochex (1992), investigadores del grupo ESCOL (Education, Socialisation, et Collectivités Locales de la Universidad Paris VIII - Saint Denis), la orientación de las indagaciones sobre la relación con el saber es más sociológica, incluso antropológica. Plantean la idea de una sociología del sujeto. Sus trabajos intentan dar una nueva dimensión a la cuestión del fracaso escolar en los niños 601 y jóvenes provenientes de medios sociales desfavorecidos. Sus estudios se focalizan sobre la relación con el saber y sobre la relación con la escuela de los jóvenes que frecuentan las escuelas secundarias de los barrios periféricos de las ciudades francesas. Lo que se destaca en primer lugar, son las lógicas complejas y múltiples que subyacen en el trabajo escolar a través del análisis de aspectos como la relación con el lenguaje y relación con el saber y con el mundo de los estudiantes de secundaria (liceo) herederos de familias favorecidas y de nuevos estudiantes de liceo de familias populares. Para este grupo, la reflexión teórica se articula alrededor de la noción de sentido dado a la experiencia escolar y los procesos de identidad en la formación de personalidad. La perspectiva empírica se focaliza sobre los retratos biográficos de los jóvenes estudiantes de liceo de secundaria a partir de un balance de saber. Estos últimos se componen de producciones escritas sobre las expectativas de los alumnos de liceo frente a su escolaridad y sus saberes adquiridos, escolares o no escolares. Es entonces en esta línea de estudios de este último grupo de investigadores (ESCOL, dirigido por Bernard Charlot), que se concibió esta investigación. Si bien, los estudios sobre la noción de relación con el saber implican, hasta ahora, solamente a la población de los alumnos de la escuela primaria y la educación secundaria francesa, en esta ocasión, se extiende el concepto de relación con el saber al ámbito de la educación superior o universitaria, para estudiar una población de estudiantes inscritos en la Universidad Tecnológica de Pereira-Colombia, con las precisiones y cuidados conceptuales y metodológicos pertinentes y propios del nivel superior o universitario del sistema educativo colombiano. Justificación del estudio En Colombia, según los datos del Ministerio de Educación Nacional de Colombia (2012): 602 En 2010, en todo el país hay 1.674.420 estudiantes en el sistema de la educación superior, de los cuales 1.587.928 se encuentran matriculados en programas de pregrado (técnico profesional, tecnológico o universitario) y 86.492 en programas de posgrado (especialización, maestría o doctorado). Y “La tasa de deserción por cohorte es de 45%, es decir que de cada 100 estudiantes que ingresan a la educación superior, 55 eventualmente se gradúan, mientras 45 nunca lo hacen”. En consecuencia, según el Ministerio de Educación de Colombia (2009): Uno de los principales problemas que enfrenta el sistema de educación superior colombiano concierne a los altos niveles de deserción académica en el pregrado. Pese a que los últimos años se han caracterizado por aumentos de cobertura e ingreso de estudiantes nuevos, el número de alumnos que logra culminar sus estudios superiores no es alto, dejando entrever que una gran parte de éstos abandona sus estudios, principalmente en los primeros semestres. Según estadísticas del Ministerio de Educación Nacional, de cada cien estudiantes que ingresan a una institución de educación superior cerca de la mitad no logra culminar su ciclo académico y obtener la graduación. El complejo fenómeno social y educativo de la deserción y el fracaso y el logro académico en la educación superior colombiana en los dos primeros semestres o primer año universitario — que toca en Colombia prácticamente a uno de cada dos estudiantes — nos conduce a cuestionarnos: si bien en los últimos doce años, la educación superior colombiana conoce una masificación importante, ¿se puede hablar igualmente de una democratización de la enseñanza? El desafío es doble. Se trata, en Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en... primer lugar, de asegurar la cualificación, mediante aprendizajes de calidad, entre otros factores, esperada y sancionada por los diplomas universitarios, que se fundamente sobre la investigación o sobre la profesionalización. Pero el otro desafío, es también, asumir esta masificación preguntándonos sobre los mecanismos de fracaso que frenan la democratización asociadas a las maneras como los estudiantes se relacionan con los saberes que les ofrece la universidad. En este contexto, surgen varias preguntas: ¿cómo el principal implicado, el estudiante aprendiz, vive esta situación y en particular sus aprendizajes? ¿Qué tipos de dificultades encuentra en esta relación con el saber universitario y cuáles son sus razones? Una abundante literatura (ROMAINVILLE, 1999, 2000; ALZATE; GÓMEZ, 2009, 2010a; ALZATE; DESLAULIERS; GÓMEZ, 2010), plantea diversas hipótesis que ponen en relieve los factores imputables al estudiante mismo. Estudios, como los de Alain Coulon (1997), exponen una correlación entre el origen sociocultural y las dificultades de los estudiantes para adaptarse a los códigos de la enseñanza universitaria: códigos lingüísticos, códigos asociados a los procesos de afiliación institucional y social, exigencias implícitas de la universidad, etc. Estas dificultades son entonces consideradas como el resultado de una falta o de un déficit: falta de motivación, falta de trabajo, falta de métodos, dominio insuficiente de la lengua materna, déficits cognitivos anteriores atribuidos a la enseñanza secundaria e incluso asociados a la categoría social. Ahora bien, si estos estudios han podido explicar, en parte, el origen de un cierto número de dificultades encontradas por los estudiantes, parece que otras dimensiones respecto al fracaso y la deserción universitaria, examinadas en otras poblaciones estudiantiles universitarias, no han sido todavía suficientemente exploradas en la educación superior. En consecuencia, para ayudar a los estudiantes universitarios en su proceso de logro Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. académico y así contribuir a la superación de la deserción y abandono estudiantil, es necesario también estudiar la relación que ellos mantienen con el saber en general, de una parte; y con la naturaleza específica de los saberes enseñados en la educación superior o universitaria, de otra parte. De esta manera, en lugar de partir del postulado que las dificultades experimentadas o vividas por muchos estudiantes provienen de las diversas carencias, hemos sometido a prueba en este estudio el supuesto comprensivo según la cual estas dificultades son efectos de diferentes maneras de ser y especialmente de concebir el saber y acceder a él, esto es, de la relación con el saber. La importancia de estudiar el problema de la relación con el saber en los estudiantes universitarios El campo de investigación sobre la enseñanza de los saberes universitarios ha sido preocupación nuestra en los últimos cinco años (2009, 2010, 2010a, 2010b, 2010c) y parte, ante todo, de la hipótesis, según la cual para ayudar a los estudiantes universitarios es necesario también estudiar la relación que ellos mantienen con el saber en general, de una parte; y con la naturaleza específica de los saberes enseñados en la educación superior o universitaria, de otra parte. De esta manera, en lugar de partir del postulado generalmente aceptado, que afirma que las dificultades experimentadas o vividas por muchos estudiantes provienen de sus diversas carencias, se considera que el estudio de la relación con el saber ofrece una perspectiva diferente para su análisis (POZO; ECHERRÍA, 2009; HOUGARDY; PAMBU KITA, 1999). En una investigación reciente, Enseñar en la Universidad. Saberes, prácticas y textualidad (ALZATE; GÓMEZ; ARBELÁEZ, 2011), nos limitamos de manera voluntaria a implementar las herramientas de análisis de las formas y sus contextos epistemológicos, textuales y didácticos de los saberes universitarios en 603 algunas disciplinas académicas universitarias en las asignaturas o cursos de: didáctica del lenguaje, sociología de la educación, física, introducción a la filosofía, psicología del desarrollo. No obstante, desde entonces aparecía en el horizonte una pregunta que se abordó en esta investigación: ¿cómo la forma del saber influye sobre el logro del estudiante universitario? Interrogante que se responde desde la la teoría de la relación con el saber. Una observación importante aparecía entonces en la investigación antes mencionada: en la operación compleja que es la práctica de enseñanza en la educación superior, el profesor intenta hacer acceder a los estudiantes ya sea a una práctica de investigación o a una práctica profesional. Se constató que esta transmisión universitaria plantea un cierto número de problemas. No existe una transmisión de una práctica en el sentido de una receta que haría a los estudiantes competentes, sino más bien enfoques o tratativas de enseñanza que exigen de estos últimos tomar en cuenta una serie de obligaciones con mucha frecuencia implícitamente declaradas: comprender los conceptos que no están claramente explícitos en el curso, enfrentamiento de saberes no estables y problemas específicos de una profesión, etc. La siguiente pregunta que surgió entonces en este marco, y que ahora orienta este artículo de investigación, se plantea así: ¿responder a las exigencias de las diferentes obligaciones de la enseñanza universitarias implica una cierta forma de relación con el saber, él mismo asociado a una relación con el mundo (una manera de vivir, ciertas actitudes ante el saber y el estudio universitario)? Este interrogante nos condujo entonces a una serie de preguntas complementarias que se respondieron en la investigación: (1) ¿Qué relaciones mantienen, de manera general, los estudiantes, con el saber universitario? Esta pregunta se plantea a partir del postulado, según el cual, esta relación con el saber está determinada por una cierta manera de vivir, por ciertas actitudes y por un cierto tipo de relación con el 604 mundo. (2) ¿Cómo los estudiantes perciben ciertas características de los saberes enseñados: formas de situación didáctica, elementos asociados al grado de problematización y de sentido de los enunciados, tipos e importancia de razonamientos específicos a ciertos cursos universitarios, relación afectiva con el saber, dificultades asociadas a las actitudes frente al estudio universitario y de contrato didáctico? (3) ¿Cómo interactúan los estudiantes con las características antes indicadas del saber universitario? (4) ¿Cómo perciben los estudiantes las actividades que se les pide cumplir y que ponen en juego o implementan para llevarlas a cabo? En este contexto, el enfoque descriptivo y comprensivo de la investigación realizada en ese entonces sobre la naturaleza de los saberes universitarios y sus procesos de transmisión, se examina, en esta ocasión, a través de la descripción de la forma que asume la relación con el saber de los estudiantes en la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia. Las cinco dimensiones de la relación con el saber: una aproximación inicial Se reitera, que relación con el saber se analizó a través de cinco dimensiones susceptibles de generar problemas o dificultades de aprendizaje1 universitario en los estudiantes universitarios para estudiar, a saber: (1) la dimensión del sentido; (2) la dimensión de lo que es importante en el saber; (3) el contrato didáctico; (4) la dimensión de la relación de identidad y afectiva con el saber; y (5) las actitudes de estudio. Se trató entonces de explorar en una muestra cualitativa con representación teórica de estudiantes universitarios, la manera cómo estos se relacionan con el saber que se ofrece en un cierto número número de cursos universitarios a través de las cinco dimensiones 1- Aquí la expresión dificultades de aprendizaje no debe entenderse en el sentido clínico y psicológico de grupo heterogéneo de alteraciones que se manifiestan en dificultades en la adquisición y uso de habilidades de escucha, habla, lectura, escritura, razonamiento o habilidades matemáticas. Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en... enunciadas, y que buscan dar cuenta de la relación con el saber de los estudiantes, así como de algunas dificultades y situaciones de fracaso que podrán resultar o surgir en el desarrollo de los cursos universitarios. Veamos a continuación una breve definición de estas dimensiones: (1) El sentido de los conceptos y de los enunciados. Se aborda esta cuestión, retomando de Gilles Deleuze (1990), la distinción que estableció entre la significación y la designación en la producción de sentido de un discurso universitario. En la educación universitaria, el discurso de la enseñanza se presenta con frecuencia como un texto. Con frecuencia, es un texto constituido de diferentes elementos: el discurso oral del profesor durante los cursos o sesiones, los soportes o apoyos proyectados en pantalla; el programa del curso, los documentos o las lecturas a las cuales los estudiantes son remitidos. Se trata, entonces, como afirma Bernard Rey (2002, 2005), de un texto, porque el conjunto de lo que es formulado tiene una coherencia (incluso si el texto es constituido de elementos dispersos). Igualmente, las palabras que constituyen estos enunciados no designan en general, las cosas exteriores que se podrían ver o tocar, ellas tienen sus sentidos y sus relaciones mutuas en el marco del texto. Entonces, el sentido de los discursos no se deriva ya de la relación que mantienen los enunciados con una realidad inmediata y concreta compartida entre los locutores universitarios — profesor y estudiantes — sino que emerge de la relación entre estos enunciados. En oposición, en la vida corriente, los enunciados sacan su sentido del hecho que ellos refieren a los objetos o a las acciones que constituyen el ambiente actual y familiar de los locutores. La palabra está entonces anclada en la situación del momento. Para expresar esto, se dice que el sentido del discurso del profesor, tal como él se presenta en la educación superior, nace no de la designación, sino de la significación. (2) Lo que es importante en el saber. Se adopta la hipótesis de Èlisabeth Bautier & Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. Jean-Yves Rochex (1998), quienes consideran que un gran número de dificultades en los estudios residen en la relación de “evidencia y de adherencia al lenguaje y a la experiencia que se tiene con él” (p. 6). Esta relación implicaría resistencias de reconocimiento del carácter construido del saber, e incluso, de reconocimiento de las formas de lenguaje simbólicas y discursivas que lo constituyen, en este caso, en la enseñanza universitaria. (3) El contrato didáctico. Guy Brousseau (1980) y Franc Morandi & René La Borderie (2006), consideran la noción de contrato y anotan que el carácter explícito de la implementación de un situación compromete a diferentes personas. Un contrato es firmado deliberadamente por las diferentes partes. En el contrato didáctico, se teje así una relación que determina lo que cada asociado, en este caso, el profesor y el estudiante universitarios, tendrá la responsabilidad de administrar y de la que será de una u otra manera, responsable frente al otro. (4) La relación de identidad y afectiva con el saber. El lenguaje en la enseñanza universitaria puede presentarse bajo una pluralidad de registros de enunciación. Las formas textuales empleadas pueden mostrar un estado de diferentes posturas que tiene el sujeto con el saber: el yo-mí de la experiencia vivida, el del relato, el que analiza y argumenta, etc. Aquí, se plantea como hipótesis que los estudiantes universitarios pueden tener problemas para pasar fácilmente de un registro al otro, o peor aún, pueden tener la tendencia a privilegiar el registro lingüístico yo-mí de la experiencia familiar y subjetiva. (5) Las dificultades asociadas a las actitudes de estudio. Con el vocablo estudio, se reúnen diversas actividades: la asistencia y las actividades del estudiante en los cursos universitarios, incluyendo aquellas que lleva a cabo fuera del local del curso y, en particular, la búsqueda de informaciones complementarias y sus actividades concretas para aprender. Cuando se pregunta a los estudiantes sobre sus prácticas de estudio y las maneras como ellos se movilizan, sus respuestas remiten a la hipótesis, 605 según la cual, ellas están asociadas a una cierta concepción del saber. Este concepción puede entonces tener un impacto sobre el éxito y logro universitario del estudiante. de antemano y planificadas en un orden preciso; — ella será llamada semi-dirigida cuando el entrevistador prevé algunas preguntas a plantear como puntos de orientación. (p. 13-14) Metodología2 En consecuencia, según los autores La metodología empleada se identifica con un enfoque descriptivo y comprensivo de los cursos universitarios, en esta ocasión complementado, con una descripción de la forma de la relación con el saber de los estudiantes. Al respecto Mattew B. Miles y Michele Huberman (2003), consideran que Los investigadores cualitativos trabajan con pequeñas muestras de personas, que viven en una situación familiar (en su ‘nicho’) en su contexto y se estudian en profundidad — a diferencia de los investigadores cuantitativos que buscan múltiples casos descontextualizados y apuntan a una representatividad estadística. (…) El tipo de muestra llamado ‘representatividad teórica’ busca encontrar los ejemplos de un constructo teórico y de esta manera elaborarlo y examinarlo. (p. 59-60) Ahora bien, según De Ketel & Roegiers (2009), se puede afirmar que (…) una entrevista puede ser libre, semidirigida o dirigida: — ella será llamada libre cuando el entrevistador se abstiene de plantear preguntas que apuntan a reorientar la entrevista; — ella será llamada dirigida cuando el discurso de la persona entrevistada constituye exclusivamente la respuesta a las preguntas preparadas 2- El tipo de entrevistas en esta investigación tiene esencialmente un enfoque exploratorio y cualitativo y se constituyó en punto de partida para otra investigación en marcha para construir, con más agudeza, un cuestionario dirigido al conjunto de la población de estudiantes implicados en los cursos que serán objeto del proyecto que se propone inicialmente. Se podrá entonces, en un segundo momento de la investigación (enfoque confirmativo y cuantitativo), validar la construcción de algunas dimensiones de la relación con el saber de los estudiantes y el repertorio de dificultades encontradas en una población más amplia. 606 (…) una entrevista semi-dirigida se identifica por la presencia de dos características: — produce de parte del entrevistado un discurso que no es lineal, lo que significa que el entrevistador orienta la entrevista en ciertos momentos; — las intervenciones del entrevistador no están siempre previstas de antemano. A lo más, este prevé algunas preguntas importantes, o algunos puntos de orientación (p.146) En consecuencia, y manteniendo una continuidad en el tema y campo de investigación antes indicado, limitamos este nuevo examen de la enseñanza universitaria en términos de relación con el saber, a una muestra cualitativa con representatividad teórica de estudiantes que asistieron durante el segundo semestre de 2012 a los siguientes cursos universitarios, como lo indica el cuadro. Cuadro 1 - Muestra cualitativa con representatividad teórica de estudiantes entrevistados según cursos universitarios. Introducción a la filosofía Competencias comunicativas I y II Didáctica de la lengua materna Procesos de desarrollo del lenguaje Construcción y didáctica del lenguaje escrito I, II y III Epistemología de la pedagogía Sociología de la educación Historia de la pedagogía Constitución política y democracia Modelos pedagógico contemporáneos Total: 13 cursos y 26 estudiantes entrevistados Fuente: Oficina de Registro y Control de la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia, 2012 Teniendo en cuenta el objetivo del estudio, explorar la relación con el saber de los Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en... estudiantes de los cursos indicados en el Cuadro 1, se concibieron y aplicaron los siguientes procedimientos: (1) Realización de entrevistas semi-directivas o semi-dirigidas con cada uno de los estudiantes universitarios de la muestra. La entrevista semi-dirigida tuvo los siguientes objetivos: (a) discernir, en una perspectiva global, la relación con el saber del estudiante, esto es, en una perspectiva biográfica; (b) abordar las dificultades que tienen los estudiantes asociadas a las cursos que siguen y a su manera de estudiar; (c) desde una perspectiva más sistemática, indagar por las maneras como los estudiantes conciben y practican el estudio con miras a la presentación de exámenes parciales y finales, y sus reacciones a este tipo de evaluaciones. (2) Obtención de información complementaria y matizada mediante un escrito que se les solicitó a los estudiantes: un balance de saber, como lo sugiere Élisabeth Bauthier y Jean-Yves Rochex (1998) con los estudiantes de la educación secundaria francesa, obviamente, con sus ajustes correspondientes a la especificidad de la enseñanza superior o educación universitaria. De esta manera, se propuso a los estudiantes redactar un corto texto con el objetivo de responder a dos preguntas o cuestiones: (a) ¿Aprender, es….?; (b) ¿Desde que usted nació, que ha aprendido, que es lo importante para usted? En principio ninguna otra recomendación y precisión se plantea para este balance de saber, con el fin de no influir ni sobre la manera de abordar o enfocar las respuestas a los asuntos asociados, ni sobre la manera de redactar de los estudiantes universitarios a los cuales se les solicitará su colaboración para obtener esta información sobre su relación con el saber. Resultados Visto en perspectiva, para el estudiante surge una especie de determinación preexistente al entrar y empezar en los estudios universitarios. La explicación sociológica enfatiza el factor de pertenencia o proveniencia Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. socio-cultural, los estudiantes que vienen de medios desfavorecidos consideran que tienen más riesgo y están expuestos al fracaso. Otra corriente de estudios, explica las dificultades en el logro de un estado de déficit en los métodos de trabajo, lagunas en el dominio de la lengua materna y los lenguajes especializados que se usan en la universidad. En la investigación realizada, se exploró una vía de explicación poco estudiada en la enseñanza universitaria: algunas de las dificultades que debe superar el estudiante universitario para tener éxito tienen que ver con lo que acontece y hace en los cursos a los que asiste. Las dificultades, probablemente tan diversas, visibles o ocultas, obstaculizarían la transmisión del saber del profesor al estudiante, y serían provocadas especialmente por la naturaleza específica de los saberes universitarios enseñados. La singularidad de la relación con el saber del estudiante se convirtió entonces en objeto de indagación. Con un intencionado objetivo de generalización, se agrupan u organizan las constataciones y resultados. Según algunos de los elementos que constituyen o identifican las cinco dimensiones de la relación con el saber adoptadas en el estudio. La relación con el saber específico ¿Qué es importante en el saber? Las respuestas de los estudiantes son testimonio de un interés por la validación del saber universitario enseñado, aceptando su carácter construido e inestable. También declaran privilegiar los razonamientos a los resultados, aceptar la revisión de nociones y conceptos vistas en los cursos cuando aparecen nuevas teorías (presencia de la práctica fuente). La importancia de tomar en cuenta de la práctica objetivo de manera concreta en los cursos universitarios se siente o reclama en las respuestas obtenidas. De este modo, algunas respuestas a las preguntas abiertas son evidencia de la búsqueda de la posible utilidad de los cursos en un plano o 607 marco profesional. Los estudiantes coinciden en la importancia de tomar en cuenta su futuro profesional en los cursos. Si bien los cursos que siguieron los estudiantes se distinguen por su objeto de estudio, ciertos aspectos considerados como posibles fuentes de dificulta no cambian tanto. Un sector de estudiantes juzga esencial las demostraciones conceptuales en la comprensión general de los cursos. Sin embargo, estas exposiciones y demostraciones conceptuales aparecen a menudo como complicadas de seguir. Enfrentar esta dificultad implica recurrir a los ejemplos, las ilustraciones con el riesgo de alejar a los estudiantes del acceso a la teoría científica del saber sabio. Las prácticas fuente y objetivo En la educación superior, los profesores intentan iniciar a sus estudiantes en la práctica que se encuentra en el origen del saber que ofrecen, es decir la práctica de investigación. Es a esta que se denomina-la práctica fuente. Los profesores de universidad lo hacen porque es justamente su especificidad de ser a la vez investigadores y profesores, productores y difusores de saberes. Tienen la convicción que un curso no consiste solamente en presentar los resultados de la ciencia, sino también en hacer conocer las operaciones que han llevado a esos resultados. Un saber significativo, no se limita al conocimiento de una continuidad de enunciados considerados como verdaderos, exige que se lleven a cabo los procedimientos que permiten afirmar que ellos son verdaderos. Idealmente, el profesor debería compartir con los estudiantes una práctica de investigación. Pero para familiarizar a los estudiantes en esta práctica, el profesor solo dispone de su discurso, es decir de un texto, lo que no siempre es suficiente. Se derivaría de aquí entonces una situación propia de la enseñanza universitaria: (a) el profesor quiere que los estudiantes no se contenten con escuchar (o leer) el texto del saber, sino que también se apropien de los 608 problemas científicos que allí están presentes, que se planteen y reconstituyan por sí mismos las actividades intelectuales que han conducido al saber. (b) Los mismos estudiantes, tienen la tendencia a apoyarse en el contrato didáctico, el cual puede enunciarse así: “Lo que el profesor exigirá en el examen debe habérsenos enseñado durante su curso”. Forzando el asunto, se podría decir que la exigencia de los estudiantes al profesor es la siguiente: “Díganos directamente lo que usted quiere que digamos o que hagamos en el examen”. (c) Cuando el profesor rechaza acceder a esta exigencia. Quisiera que los estudiantes realizaran el trabajo intelectual que conduce al saber y que hasta cierto punto lo reconstruyeran. La tarea de establecer el saber es devuelta por el profesor a los estudiantes. Es lo que se llama la devolución. La devolución, entonces es una actividad que en el proceso pedagógico y didáctico, en este caso universitario, va en una dirección casi inversa para que el saber sea pensado personalmente por el estudiante; la devolución debe integrarse a la actividad de pensamiento personal o individual. Ahora bien, en la enseñanza universitaria, el texto del saber lleva la marca de otra práctica diferente a la práctica fuente. Se trata de la práctica profesional en la que desemboca muchos de los curso seguidos por el estudiante. Es lo que se llama la prácticaobjetivo. Ella aparece, en el caso de la enseñanza superior, con una clara orientación de profesionalización. También está presente en las clases universitarias, para las cuales una salida profesional es siempre el horizonte preciso (derecho, medicina, administración, psicología, ciencias aplicadas, etc.). Ahora bien, como se ha visto, es difícil familiarizar al estudiante en una práctica (la profesión) a través de un texto (el saber). Porque un saber cubre un campo de fenómenos estrechamente circunscrito mientras que una práctica profesional se ejerce en un medio en el cual los fenómenos de naturaleza múltiple se producen. De este modo, un curso de física ofrecido a un futuro ingeniero, trata de Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en... los fenómenos que han sido delimitados por la construcción textual que se llama ciencia física. Pero el ingeniero deberá atender, en el ejercicio de su profesión, las determinaciones que serán físicas, pero también industriales, económicas, organizacionales, humanas, sociológicas, etc., y esto de manera simultánea. Los estudiantes están interesados tanto en la práctica fuente como en la práctica objetivo en la construcción y desarrollo de los cursos. Esta constatación se confirma además en las respuestas obtenidas. En efecto, si un número importante de estudiantes evocan positivamente las discusiones y debates, que tienen lugar durante el curso, otros insisten sobre el interés de los conocimientos adquiridos durante los cursos para su futura profesión. No obstante, los estudiantes consideran que la referencia explícita a la práctica fuente en un curso podría derivar en otro tipo de estudio, muy extenso para ser desarrollado en este escenario. Cuando la práctica objetivo está presente según los estudiantes entonces podría impedir comprender el interés de las materias universitarias por sí mismas, y acabar por considerarlas únicamente como herramientas de utilidad inmediata. La relación de identidad y afectiva con el saber Se observa que en la medida en que se desarrollan los semestres universitarios, una mayoría de estudiantes reconoce haber cambiado su mirada sobre el saber en general, así como la disciplina involucrada de manera más específica. Parece entonces que los estudiantes se dan cuenta de las transformaciones que se producen en su identidad intelectual y en el plano de las relaciones con sus pares e integrantes de sus familias, es decir, admiten la transformación de su yo intelectual y las relaciones que establecen en su vida universitaria. Igualmente, los estudiantes se distancian de sus convicciones que tienen un tinte egocéntrico y comienzan a ver nuevas perspectivas y puntos de vista. Se agrega en este contexto, que un sector Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. de estudiantes consideran al profesor y su enseñanza como factores determinantes en sus prácticas universitarias de saber. Las actitudes de estudio Algunos estudiantes afirman trabajar sus cursos cerca del fin de los semestres, otros insisten sobre la importancia de estudiar desde el comienzo, familiarizarse tempranamente con el curso y seguirlo de manera sistemática. Los análisis realizados permiten destacar o desvelar una situación un tanto paradójica. En efecto, si la mayoría de los estudiantes considera importante intentar encontrar las relaciones entre las ideas, conceptos y nociones que pertenecen a dominios o campos diferentes, otros prefieren estudiar cada parte del curso paso a paso. Las entrevistas indican que los estudiantes se dedican a comprender las nociones a medida que avanza el curso. Sin embargo, esta etapa podría llegar a veces más tarde que los exámenes parciales o finales, y entonces es necesario que los estudiantes entren en una segunda fase de estudio: la búsqueda de las relaciones y vínculos entre ideas, conceptos y nociones ofrecidos en la enseñanza universitaria. Un sector de estudiantes manifiesta comenzar el estudio para el examen acudiendo a los resúmenes y apuntes de curso sintéticos, manera parcial de estudiar que podría interpelar a los cursos universitarios que se exponen por un encadenamiento rigurosamente lógico porque los estudiantes perderían los eslabones de la cadena de razonamiento general del curso. El sentido de los conceptos y enunciados Si bien los estudiantes no señalan necesariamente la necesidad y posibilidad de dominar todos los enunciados del profesor de manera inmediata, sin embargo, muchos de ellos declaran la exigencia de la designación. Dicho de otra manera, para comprender una noción, concepto, teoría, tienen necesidad 609 de concretizarla en ejemplos. Esta demanda se presenta cuando no hay una comprensión inmediata del sentido de una noción y los estudiantes desean ver el saber contextualizado por un enfoque más concreto y explicado en un lenguaje familiar. El creciente interés por los cursos universitarios es un factor que contribuye a la aclaración de los nociones que en los inicios aparecen difíciles o incomprensibles. Sin embargo, cuando los cursos tienen una orientación didáctica más explícita los estudiantes no sugieren o exigen este proceso de traducción a un lenguaje más familiar a ellos. Se reitera que en ocasiones para diversas disciplinas universitarias los estudiantes privilegian la designación y se aferran a lo concreto para comprender, pero lo concreto puede implicar diferentes niveles. Este puede destacar los fenómenos de la vida corriente o las experiencias de las ciencias, como también las nociones de los cursos convertidas en objetos de referencia. Algunos estudiantes privilegian la significación y las relaciones entre las diferentes proposiciones de las disciplinas objeto de estudio de los cursos. Estos son los mismos que manifiestan la importancia y necesidad de que los profesores acudan simultáneamente a la designación y a la significación para darle un sentido más profundo a sus aprendizajes. No obstante, parece que establecer las relaciones entre las diversas proposiciones de un curso puede tener dos orígenes: de una parte, los estudiantes comprenden estas relaciones porque se les fueron explicadas acercándolas a la designación, y de otra parte, son ellos mismos quienes las determinan analizando desde su propia iniciativa antes de leer los documentos recomendados en el curso. Serían estos los estudiantes autónomos que darían un sentido verdadero a sus cursos. Se puede hablar de una figura de suspensión del sentido en los cursos universitarios. Los estudiantes esperan que los desarrollos posteriores que se dan en el curso contribuirán a una mejor comprensión, situación 610 que puede generar una actividad intelectual favorable a la construcción de sentido. Sin embargo, esta construcción o elaboración se apoya sobre el establecimiento de relaciones entre diferentes enunciados. Cuando algunas justificaciones se omiten para simplificar el curso, relaciones lógicas más profundas y complejas se pueden perder. Esta suspensión del sentido no podría conducir a una construcción posterior. En consecuencia, la presentación de ejemplos tiene sus riesgos. De un lado, permite comprender a través de un enfoque más concreto, más inmediato; y de otro lado, podría impedir la elaboración de las relaciones de sentido que existen en las teorías científicas. Intentar reducir un obstáculo que se encuentra en los estudiantes podría a veces generar otro. El contrato didáctico La idea de contrato, sugiere el carácter explícito de la creación de una situación que involucra varias personas. Un contrato está firmado deliberadamente por diferentes partes. En el contrato didáctico, se construye de esta forma una relación que determina lo que cada una de las partes, el profesor y el estudiante, tendrá la responsabilidad de gestionar o administrar y como cada uno será responsable frente al otro. Se construirá entonces entre enseñante y enseñado una serie de expectativas más o menos recíprocas que entrañaran y legitimaran ciertos comportamientos. Los estudiantes perciben la manera como el curso es orientado cuando el profesor manifiesta qué espera de ellos en los exámenes; es decir, cuando no hay un malentendido respecto a la evaluación. De este modo, si el curso universitario se presenta claramente estructurado, y si la forma de evaluación de formula de manera explícita, los estudiantes tampoco están exentos de las dificultades propias del estudio de las materias universitarias. De hecho, la comprensión de ciertos conceptos y la memorización de una terminología percibida como abundante y Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en... extensa solo aparecerá cuando se entra en el estudio de las relaciones entre nociones. De manera inversa, la evaluación puede sorprender a los estudiantes que privilegian una estrategia de estudio en función de una problematización fuerte del curso, mientras que los exámenes parciales y finales se elaboran por el profesor con un modelo de restitución de conocimientos. Los estudiantes afirman distinguir con relativa facilidad, en el discurso del profesor, lo que es esencial y lo que es anecdótico, un número significativo de ellos saben muy bien lo que se espera de ellos en los exámenes. El cuestionamiento de los estudiantes sobre los exámenes o la evaluación podría tener dos fuentes: una, la distancia entre lo que fue anunciado por el profesor (con frases incompletas) y los exámenes con preguntas abiertas para orientar su estudio que se mencionarían en el programa o en ciertos momentos del curso y que a la hora de la evaluación inducirían al error a los estudiantes; otra, sería el contraste entre el contexto agradable del curso y la exigencia asociada necesariamente a la prueba de evaluación o examen. Si los estudiantes piensan que en algunos cursos cada uno puede tener su opinión y percibe el examen como una formalidad como consecuencia de la vivencia distendida de las sesiones del curso, el riesgo del fracaso parece evidente. También, la evaluación de los cursos universitarios puede interesar a los estudiantes cuando los exámenes se elaboran teniendo como horizonte su futura profesión, en este caso, las preguntas serían ante todo de orden técnico-instrumental. Sin embargo, es necesario en este tipo de evaluación que el profesor comunique oportunamente estas exigencias para que se establezca de antemano el contrato didáctico necesario. Problematización Si la devolución no se logrará verdaderamente sino en las situaciones exteriores a las sesiones de cursos universitarios Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. propiamente dichas, no se excluye, obviamente, que pueda haber, en el marco de un curso de forma tradicional (curso magistral), episodios de devolución. Uno de los medios para que esto suceda es que el profesor exponga el saber bajo una forma problematizada. Esto sucede de manera práctica cuando en el marco de su discurso, los problemas se planteen para que los estudiantes puedan apropiarlos, es decir, para que puedan intentar responderlos. Dicho de otra manera, se trata que el saber no se presente solamente bajo la forma de enumeración de resultados, sino que los resultados aparezcan como respuestas a los problemas previamente planteados. Se podría decir, que en oposición a la problematización, se encontraría, por ejemplo, la enumeración (sin que esta última sea la única forma opuesta a la problematización). Entre más un curso se aproxime a la forma de enumeración, como sucesión de elementos presentados en una serie, como única razón de su articulación común, entonces menos la dimensión problemática estará presente. No habría en la enumeración, el hilo conductor que le da sentido, y que permite de esta manera a los estudiantes, volver a apropiarse del saber a través de un pensamiento propio. La presentación del saber como respuesta a los problemas, que constituye otra manera de devolución, presenta también la ventaja de ser análoga o semejante a lo que sucede en la práctica científica. El investigador es alguien que pasa su tiempo intentando resolver los problemas. De esta forma, una presentación problematizada del saber parece a primera vista, garantizar que habría devolución, y que los estudiantes darían sentido al saber. En realidad, las cosas son más complejas y puede haber formas de problematización del saber que no generen la devolución, porque los problemas son formulados de tal forma que el estudiante no pueda apropiárselos o que le aparezcan como arbitrarios. En consecuencia, no se puede entonces evitar la pregunta por las condiciones para que los problemas del saber tengan sentido para los estudiantes. 611 Cuando en los cursos los estudiantes se comprometen con la significación dan más importancia o prioridad a los razonamientos y a los debates contradictorios. De esta manera, se constata que entre los estudiantes que declaran encontrar con el paso del tiempo un creciente interés por sus cursos se hallan también aquellos que dan importancia a la problematización de las materias universitarias. Ahora bien, en la universidad los estudiantes siguen con interés los cursos donde se realizan diversos ejercicios o trabajos prácticos. Estos ofrecen una preparación para los exámenes y una aproximación las materias o disciplinas universitarias más concretas que la de los cursos teóricos. Sin embargo, esta aproximación debe ser matizada, porque existe una diferencia esencial, que los estudiantes podrían no percibir, entre la resolución de un problema que hace competentes a los estudiantes en una materia aprendida y la situación-problema que consiste en volver el saber problemático; también aquí los estudiantes no podrían percibir que la teoría abordada en el curso es necesaria para continuar el desarrollo del curso y el de los ejercicios. Conclusiones y consideraciones generales Más allá de las dificultades que parecen desprenderse de la naturaleza propia de las disciplinas universitarias, tres rasgos comunes y generales surgen de la investigación. El primero, no se identifica con una de las hipótesis iniciales que consideraba que el estudiante inscribe totalmente su actividad ya sea en una lógica de significación o en una lógica de designación. Cualquiera que sea el campo de estudio universitario, parece que si bien los estudiantes, parecen aceptar la exigencia de la significación de los estudios superiores, esperan sin embargo los momentos de la designación. Las explicaciones, las ilustraciones, los ejemplos le son necesarios. El segundo rasgo relevante es el obstáculo importante que constituye la distancia entre lo 612 que el curso propone y la representación que el estudiante puede tener de la práctica fuente y la práctica objetivo. Para los estudiantes los cursos con orientación teórica se distancian de la práctica objetivo y los cursos con orientación profesional de la práctica fuente. El tercer rasgo común para los cursos con sus diversas prácticas de enseñanza universitaria es la distancia entre la percepción de las exigencias del profesor antes y después de la evaluación. Las entrevistas y los balances del saber así lo indican. Las dificultades halladas varían los estudiantes y su manera de reaccionar a las formas del saber enseñado. Luego, se confirma la hipótesis comprensiva y general de la investigación: la respuesta que dan los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes enseñados en la universidad dependen en gran parte de su relación con el saber, y de sus actitudes y tratativas o enfoques que esta relación implica. Se reitera la idea hipotética del carácter singular e individual de la relación con el saber en los estudiantes universitarios. El estudio también arrojó otros resultados. Un conjunto de herramientas3 y elementos de naturaleza conceptual y práctica para llevar a cabo procesos de reflexión con el objetivo de examinar las prácticas de enseñanza y relación con el saber en los estudiantes de la educación superior. ¿A quiénes se dirigirían estas publicaciones? A los profesores universitarios que se preguntan o preocupan por sus prácticas, a los encargados o directivos de los cursos de formación de aptitudes pedagógicas universitarias, y a los consejeros psicopedagógicos de los estudiantes que existen en diversas universidades colombianas. Se ha mostrado que el concepto de relación con el saber en la perspectiva adoptada en este estudio efectivamente está construido con cierto grado de coherencia tal que puede 3- Las herramientas son: (1) Los cursos en la enseñanza universitaria: conceptos para determinar su especificidad en la relación con el saber; (2) Los campos de limitaciones del saber enseñado en la educación universitaria y su relación con el saber; (3) Las dimensiones de las dificultades de aprendizaje de los estudiantes y su relación con el saber. Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en... tener un estatuto de concepto en el campo y ámbito en que se ha aplicado. Sin embargo, la expresión relación con (rapport à) de uso corriente a veces no se distingue suficientemente de otras nociones cercanas. Así, Isabell Delcambre & Yves Reuter (2002) consideran que el concepto relación con es, a menudo, tratado sin una construcción teórica suficientemente elaborada, y la evidencia de esta situación es la multiplicidad de vocablos o términos empleados (posición, lugar, postura, punto de vista, identidad enunciativa, relación con, incluso estatuto o rol) de manera vacilante. Situación que llevaría al concepto de relación con a ser un objeto donde cabe todo: la puesta en escena del sujeto, sus relaciones (con el saber, con el lenguaje, con la escritura, con las tareas) la implementación de estas relaciones, las diversas dimensiones que las estructuran (cognitiva, efectiva), etc. En ausencia de límites o de una construcción precisa de los componentes y su articulación, se corre el riesgo de una dilución conceptual. A esta dilución conceptual se agrega el riesgo en el campo de las didácticas, que sería el de un uso sin precauciones de la noción para determinar las aptitudes de los alumnos en la educación media o de los estudiantes en la educación universitaria y encerrarlos de esta manera en una categorización, que para ser posible, necesita de investigaciones prudentes y complejas. En efecto, al menos dos riesgos son posibles por una colusión entre el concepto Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. de relación con elaborado teóricamente y un uso corriente de esta expresión: (a) por una reificación o cosificación de la noción, se puede rápidamente suponer que existe una relación con detectable a priori, sin tener en cuenta las situaciones concretas de la enseñanza y aprendizaje, en nuestro caso universitarias, lo que haría de la noción equivalente del hándicap socio-cultural, noción contra la cual fue precisamente construido el concepto de relación con: el interés del concepto reside precisamente en el hecho de no relacionar con el estudiante solo sus propias dificultades, sino tomar en consideración el contexto (escolar, universitario, entre otros) en el cual él evoluciona; (b) al querer determinar una relación con únicamente a partir de las producciones escolares de los alumnos y universitarias de los estudiantes, se corre el riesgo de confundirlas con una simple adecuación con las normas de la institución escolar o universitaria, planteadas a priori como indiscutibles, con el añadido de un juicio evaluativo que no es compatible con el enfoque descriptivo y comprensivo, en nuestro caso, de la relación con el saber. Finalmente, esta relación no implica solamente al estudiante universitario y sus aptitudes y comportamientos propios, sino también al profesor y a los otros actores del sistema universitario. Sin olvidar la posibilidad un principio que la relación con puede convertirse también en un contenido de enseñanza en la universidad. 613 Referencias ALZATE, María Victoria; DESLAURIERS, Jean-Pierre; GÓMEZ MENDOZA, Miguel Ángel. Cómo hacer tesis de maestría y doctorado: investigación, escritura y publicación. Bogotá: Ecoe, 2010. ALZATE PIEDRAHITA, María Victoria; GÓMEZ MENDOZA, Miguel Ángel. Enseñanza y didáctica universitaria: discurso y formación documental del estudiante. Bogotá: Ecoe, 2009. ______. La alegre entrada y el irresistible ascenso de las competencias en la universidad. Revista Educación y Educadores, Bogotá, Universidad de La Sabana, v. 13, p. 453- 474, 2010a. ______. El “oficio” de estudiante universitario: afiliación, aprendizaje y masificación de la universidad. 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O campo de pesquisa foi uma universidade comunitária localizada em um município de porte médio do estado de Minas Gerais, sendo que os sujeitos da pesquisa foram 400 estudantes de 24 cursos de graduação. A coleta de dados foi realizada por meio dos balanços de saber, instrumento proposto por Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um texto a respeito das aprendizagens do sujeito. Após a apresentação dos aspectos quantitativos da classificação das aprendizagens evocadas pelos estudantes, o artigo discute a preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal e utiliza as categorias mobilização e sentido para aprofundar a compreensão dos relatos produzidos pelos estudantes nos balanços de saber. Conclui que a relação com o saber dos sujeitos da pesquisa está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu desenvolvimento pessoal, inclusive ao tratarem do que aprenderam na universidade, e que uma parcela deles consegue reconhecer as especificidades dessa instituição como espaço de aprendizagem. A pesquisa identificou três polos nos quais se organizam os sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária: a conquista de uma vida melhor, a transformação da maneira de ver o mundo e a mobilização em relação ao saber em si. Palavras-chave Ensino superior — Relação com o saber — Estudantes. I- Universidade Federal de Juiz de Fora, Governador Valadares, MG, Brasil. Contato: [email protected]. II- Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000012 617 The relationship of higher education students to knowledge: learnings and processes Maria Gabriela Parenti BicalhoI Maria Celeste Reis Fernandes SouzaII Abstract This article presents the results of an investigation that sought to understand higher education students’ relationship to knowledge, using Bernard Charlot’s relationship to knowledge theory as a theoretical reference. The field studied was a community university in a mid-sized city in the state of Minas Gerais, Brazil, and the subjects were 400 students at 24 undergraduate courses. The collection of data was performed using balances of knowledge, a tool proposed by Bernard Charlot, which consists of asking subjects to produce a written composition about their learnings. After presenting the quantitative aspects of the classification of learnings mentioned by students, the article discusses the predominance of learnings related to personal development, and uses the categories of mobilization and meaning to achieve deeper understanding of the accounts produced by students in their balances of knowledge. We concluded that the subjects’ relationship to knowledge is based on the valuing of their personal development-related learnings also with regard to what they have learned in the university, and that some of them are able to recognize the specificities of that particular institution as a learning space. The study identified three core topics around which are organized the meanings attributed by students to undergraduate education: achievement of a better life, changes in their worldviews, and mobilization relating to knowledge itself. Keywords Higher education — Relationship to knowledge — Students. I- Universidade Federal de Juiz de Fora, Governador Valadares, MG, Brasil. Contact: [email protected]. II- Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil. Contact: [email protected] 618 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000012 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. Introdução Este artigo apresenta resultados de uma investigação que se propôs a compreender as relações com o saber de estudantes universi� tários, utilizando como referencial a teoria da relação com o saber de Bernard Charlot (1997, 1999, ��������������������������������������� 2000, 2001, 2005, 2009). A escolha des� sa abordagem teórica foi motivada pela consi� deração do caráter complexo da docência, da especificidade da atividade docente no ensino superior e das diferentes questões colocadas à área da educação pela expansão da oferta des� se nível de ensino. Encontramos nas discussões de Bernard Charlot a respeito da relação com o saber um referencial teórico que nos parece apropriado para a compreensão de diferentes aspectos envolvidos nas vivências educacionais dos estudantes universitários. O campo de pesquisa foi uma universida� de privada comunitária localizada em um muni� cípio de médio porte do estado de Minas Gerais. A pesquisa abrangeu os 24 ������������������������ (vinte e quatro) cur� sos de graduação oferecidos pela instituição, que estavam agrupados nas áreas de ciências ������������ hu� manas e sociais (administração, design gráfico, direito, história, jornalismo, letras, pedagogia, psicologia e serviço social); ciências agrárias e da saúde (agronomia, educação física, farmácia, fisioterapia, nutrição, odontologia, ciências bio� lógicas) e ciências exatas (arquitetura, ciências contábeis, ciências da computação, engenharia civil, engenharia civil e ambiental, engenharia elétrica, sistema de informação). Os sujeitos da pesquisa foram os alunos do penúltimo período de cada curso. Os 400 estudantes que compu� seram a população investigada apresentavam origem social, faixa etária e trajetórias escola� res diversas. Tomados em conjunto, entretanto, compartilhavam a condição de graduandos de uma instituição privada comunitária cujos cur� sos não ofereciam, à maior parte dos discentes, experiências acadêmicas que ultrapassassem o enfoque da formação profissional. Para coletar os dados, foi utilizado o balanço de saber, instrumento elaborado por Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um texto pelos sujeitos, a partir das seguintes questões: Desde que nasci, aprendi muitas coisas, em casa, na rua, na escola e em outros lugares... O quê? Com quem? O que é importante para mim nisso tudo? E agora, o que eu espero? (CHARLOT,1999, p. 7)1 Acompanhando essa proposição e bus� cando adequá-la ao nosso campo de investiga� ção, acrescentamos a esse texto a expressão “na universidade” antes da expressão “e em outros lugares”. Os textos produzidos pelos estudantes a partir dessa demanda constituíram o material por meio do qual discutimos diferentes proces� sos de suas relações com o saber. Na primeira seção deste artigo, apresen� tamos os pressupostos teóricos e metodológicos que embasam a investigação realizada. Na se� gunda seção, mostramos, através de gráficos e extratos dos balanços de saber, em que porcen� tagem e de que maneiras as diferentes apren� dizagens são evocadas e discutimos os dados encontrados a fim de compreender os processos de relação com o saber dos estudantes pesquisa� dos. Em outro movimento analítico propiciado pela leitura dos balanços de saber, utilizamos os conceitos de sentido e mobilização, a partir do mesmo referencial teórico, para compreender os relatos produzidos pelos estudantes, o que apresentamos na terceira seção do trabalho. Em nossas considerações finais, buscamos refletir, a partir dos dados, a respeito dos processos de ensinar e aprender no ensino superior. Uma pesquisa acerca da relação com o saber na universidade A relação com o saber é, na concepção de Charlot (2000, 2001, 2005, 2009), um conjunto de 1 - “Depuis que je suis né j’ai appris plein de choses, chez moi, dans la cité, à l’école et ailleurs... Quoi? Avec qui? Qu’est-ce qui est important pour moi dans tout ça? Et maintenant, qu’est-ce que j’attends?” (CHARLOT,1999, p. 7) Tradução nossa. 619 relações que o sujeito estabelece com o aprender – relações plurais, circunstanciais e, por vezes, contraditórias. O autor propõe a compreensão do sujeito como, ao mesmo tempo, e inteiramente, um ser humano, um ser social e um ser singular. Um ser de desejo em um mundo compartilhado com outros sujeitos; que ocupa uma posição social cuja primeira instância é a família e atribui sentidos e significados singulares a si próprio e ao mundo, na construção de uma história singular. Para esse sujeito, aprender é uma necessidade que marca sua presença em um mundo produtor de saberes. Essa atividade é central no processo de construção do ser humano, que envolve se tornar um membro da espécie humana (hominizar-se), tornar-se um ser humano único (singularizar-se) e tornarse membro de uma comunidade, ocupando nela um lugar (socializar-se). Por meio da educação produz-se a si mesmo e é produzido pelo mundo. Portanto, o sujeito e sua história são sempre totalmente sociais e singulares, sendo que o pertencimento a uma classe social é interpretado de maneira ativa pelo indivíduo na construção de uma história da qual é sujeito. Em diálogo com a sociologia da educação de Pierre Bourdieu, Bernard Charlot afirma que é preciso analisar as atividades que os indivíduos exercem, no contexto das posições sociais, para [...] conquistar, para manter, para ‘trans� mitir’ essas posições e é preciso conside� rar também outras perspectivas do que simplesmente a de sua posição social. (CHARLOT, 2005, p. 40) Frente à obrigação de aprender para ser, a qual, de acordo com o autor, é subjacente à condição humana, os sujeitos vivenciam diversos processos de aprender, nos quais estabelecem relações com distintos saberes, diferentes relações com o aprender em contextos diversos. A relação com o saber é o conjunto das re� lações que um sujeito estabelece com um objeto, um ‘conteúdo de pensamento’, uma 620 atividade, uma relação interpessoal, um lu� gar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber – consequen� temente, é também relação com a lingua� gem, relação com o tempo, com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação. (CHARLOT, 2005, p. 45) A relação com o saber é, portanto, constituída por um conjunto de relações empreendidas com diversas formas de aprender, que variam de acordo com a situação colocada pelo tipo de saber e pelas circunstâncias nas quais ocorre a aprendizagem. Assim, seria equivocado buscar encontrar a relação com o saber do sujeito, ignorando os diferentes espaços, situações e interações envolvidos no processo educativo do qual ele participa. Apesar de ser possível identificar uma forma dominante – ao menos em relação à questão analisada – (o autor admite a existência da uma unidade do sujeito, construída na diversidade das relações com o mundo), o mais importante é compreender as relações entre os diversos tipos de relação com o saber estabelecidos pelo sujeito. A pesquisa a respeito da relação com o saber deve analisar, portanto, os diferentes elementos que integram os processos construídos pelo sujeito nas diversas interações (CHARLOT, 2001, p. 23). É esse trabalho de identificação, de exploração, de construção de elementos e de processos que constitui a pesquisa sobre a relação com o saber – que, em última instância, permite compreender as formas (eventualmente contraditórias) de mobilização no campo do saber e do aprender. [...]. Isto quer dizer que a resposta a uma questão colocada em termos de relação com o saber deve ser uma resposta em termos de processo e não uma resposta em termos de categorias de relação com o saber – [...]. Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... Buscamos compreender o conjunto dessas relações com o saber vivenciadas pelos estudantes no ensino superior, considerando as especificidades dos processos de aprender nesse contexto, uma vez que a entrada na universidade demanda dos estudantes a adaptação a processos e relações diferentes daqueles com os quais se defrontaram nas etapas anteriores da escolarização (COULON, 2008). Nesse sentido: [...] aprender é exercer uma atividade em situação: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com a ajuda de pessoas que ajudam a aprender”. (CHARLOT, 2000, p. 68, grifos do autor) Ao produzirem os balanços de saber, os sujeitos da pesquisa escreveram sobre seus processos de aprender ao longo da vida e, de maneira específica, na universidade. Apesar de tratar da palavra de sujeitos singulares, ao analisar balanços de saber temos acesso aos processos pelos quais os sujeitos “colocam o mundo em ordem”, e não à construção de histórias escolares singulares. Por isso, “os balanços de saber são tratados como um texto só, onde se procuram encontrar regularidades que permitam identificar processos”. (CHARLOT, 2009, p. 20). Tratamos, portanto, do grupo de estudantes da universidade pesquisada. E o que encontramos nos textos produzidos por eles? Os balanços de saber não nos indicam o que o estudante aprendeu (objectivamente) mas o que ele diz ter aprendido no momento em que lhe colocamos a pergunta, nas condições em que a questão é colocada. Por um lado, isto significa que nós apreendemos não aquilo que o aluno aprendeu (o que seria impossível), mas o que, para ele, apresenta de forma suficiente a importância, o sentido, o valor para que ele o evoque no seu relato. (CHARLOT, 2009, p. 19) Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. Assim, buscamos identificar, ao analisar o que escreveram os 400 estudantes pesquisados, aquilo que fazia sentido para eles em relação a tudo que aprenderam em suas vidas. Essa análise foi levada a cabo por meio dos seguintes procedimentos: inicialmente, todos os balanços de saber foram lidos por uma professora pesquisadora e uma bolsista de iniciação à pesquisa. Em uma segunda leitura, foram relidos e as aprendizagens foram identificadas e classificadas, pelas mesmas duas pessoas. A seguir, foram contadas as aprendizagens de cada tipo em todos os textos. Foi utilizada a classificação proposta por Bernard Charlot (2009), dividindo as aprendizagens entre: • Relacionais/afetivas: relações interpessoais e comportamentos afetivo-emocionais, por exemplo, “aprendi a amar”, “aprendi a me relacionar com as pessoas”, “aprendi a conviver com as diferenças”. • Ligadas ao desenvolvimento pessoal: conquistas pessoais, maneiras de ser, valores, por exemplo, “aprendi a ser honesto”, “aprendi a não desistir diante das dificuldades”, “aprendi os valores”. • Cotidianas: tarefas e atividades do dia a dia, por exemplo, “aprendi a andar”, “aprendi a me vestir sozinho”. • Intelectuais/escolares: aprendizagens que en� volvem operações mentais, ou tarefas escolares, por exemplo, “aprendi a ler e escrever”, “aprendi a estudar”, “aprendi a fazer as lições”. • Profissionais: ligadas ao exercício da profissão, por exemplo, aprendizagens de práticas e conteúdos diretamente ligados às profissões. • Genéricas/tautológicas: por exemplo, “aprendi muitas coisas”, “aprendi muito”. Tal trabalho de análise permitiu visualizar em que proporção as diferentes aprendizagens foram evocadas pelos sujeitos da pesquisa, o que apresentamos a seguir. As diferentes aprendizagens e os processos da relação com o saber Considerando o conjunto dos estudantes pesquisados (gráfico 01) podemos verificar 621 que em um total de 1920 aprendizagens evocadas, 50,9% foram classificadas como ligadas ao desenvolvimento pessoal; 16,6% como relacionais/afetivas; 14,3% intelectuais/ escolares; 8,9% cotidianas; 5,8% genéricas/ tautológicas e 3,5% profissionais. Observa-se, portanto, em relação ao con� junto dos estudantes, o predomínio das apren� dizagens ligadas ao desenvolvimento pesso� al, que perfazem mais da metade do total de aprendizagens apresentadas nos balanços de saber. As aprendizagens intelectuais/escolares foram citadas em proporção três vezes menor, em quantidade pouco inferior à das aprendiza� gens relacionais e afetivas. Interessava-nos saber se essa distribuição variava de acordo com as áreas de conhecimento. Então, contabilizamos os dados por curso e, posteriormente, os agrupamos por área. A seguir, apresentamos os dados das três áreas, mostrando que não existe variação importante. Os 150 balanços produzidos pelos estu� dantes de administração, design gráfico, direito, história, jornalismo, letras, pedagogia, psicolo� gia e serviço social foram agrupados na área de ciências humanas. No ����������������������� gráfico 02, podemos ve� rificar que, de um total de 826 apreendizagens evocadas por esses estudantes, sobressaem-se as de desenvolvimento pessoal (49,1%) e as apren� dizagens relacionais/afetivas (16,7%). A seguir, apresentam-se as aprendizagens intelectuais/ escolares (14,5%); cotidianas (11,5%); genéricas (5,9%) e profissionais (2,3%). Observa-se no grupo de estudantes da área de ciências humanas, em relação à popu� lação pesquisada, praticamente a mesma pro� porção entre as aprendizagens genéricas, inte� lectuais/escolares, ligadas ao desenvolvimento pessoal (que continua, portanto, predominante) e relacionais/afetivas. Em relação ao total de estudantes, os de ciências humanas e sociais evocaram menos aprendizagens profissionais e mais aprendizagens cotidianas. A preponderância das aprendizagens li� gadas ao desenvolvimento pessoal também se observa no conjunto das 464 aprendizagens Gráfico 1 – Total de todas as áreas Total (%) Genéricas Profissionais 5,8 3,5 14,3 Intelectuais e escolares Cotidianas 8,9 50,9 Desenvolvimento pessoal Relacionais e afetivas 16,6 Fonte: Dados da pesquisa de campo. Casos válidos: 1920 aprendizagens. 622 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... Gráfico 2 – Área de ciências humanas e sociais Área de ciências humanas e sociais (%) Genéricas Profissionais 5,9 2,3 14,5 Intelectuais e escolares 11,5 Cotidianas 49,1 Desenvolvimento pessoal 16,7 Relacionais e afetivas Fonte: Dados da pesquisa de campo. Casos válidos: 826 aprendizagens. Gráfico 3 – Área de ciências agrárias e da saúde Área de ciências agrárias e da saúde (%) Genéricas Profissionais 7,1 5 Intelectuais e escolares Cotidianas 12,7 8 Desenvolvimento pessoal Relacionais e afetivas 50 17,2 Fonte: Dados da pesquisa de campo. Casos válidos: 464 aprendizagens. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 623 evocadas pelos 162 estudantes dos cursos de agronomia, ciências biológicas, educação físi� ca, farmácia, fisioterapia, nutrição, odontolo� gia, reunidos na área de ciências agrárias e da saúde. Como se pode verificar no gráfico 3, as aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pes� soal representam 50% do total, as relacionais/ afetivas somam 17.2%; as intelectuais/escolares 12.7%; as aprendizagens cotidianas 8%; as ge� néricas/tautológicas 7.1% e as profissionais 5%. Repete-se, portanto, o predomínio das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal. Em comparação com o total de pesquisados, os alunos dos cursos da área de ciências agrárias e da saúde evocaram em seus balanços de saber um número mais expressivo de aprendizagens profissionais, enquanto as aprendizagens intelectuais e escolares aparecem em maior número. Entre os estudantes dos cursos da área de ciências exatas (arquitetura, ciências contábeis, ciências da computação, engenharia civil, engenharia civil e ambiental, engenharia elétrica, sistema de informação) foram produzidos 88 balanços de saber, nos quais foram evocadas 431 aprendizagens. Como se pode ver abaixo (gráfico 04), 55% dessas aprendizagens estavam ligadas ao desenvolvimento pessoal, 17% eram relacionais/afetivas; 14,6% intelectuais/ escolares; 6,5% cotidianas; 3,1% genéricas e 3% profissionais. Gráfico 4 – Área de ciências exatas Área de ciências exatas (%) Genéricas Profissionais 3,9 3 Intelectuais e escolares Cotidianas 14,6 6,5 55 Desenvolvimento pessoal Relacionais e afetivas 17 Fonte: Dados da pesquisa de campo. Casos válidos: 88 estudandes e 431 aprendizagens. Em comparação com o grupo de estudantes pesquisados, portanto, os estudantes da área de ciências exatas evocaram um número maior de aprendizagens ligadas ao desenvolvimento 624 pessoal e um número menor de aprendizagens cotidianas e genéricas e tautológicas. A tabela 01, a seguir, permite visualizar essa comparação entre o total dos estudantes e cada uma das áreas. Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... Tabela 01 – Total dos estudantes e das áreas pesquisadas Tarefas das áreas Ciências humanas e sociais Ciências agrárias e da saúde Ciências exatas Genéricas / Tautológicas 5,8% 5,9% 7,1% 3,9% Profissionais 3,5% 2,3% 5% 3% Cotidianas 14,3% 14,5% 12,7% 14,6% Intelectuais / Escolares 8,9% 11,5% 8% 6,5% Desenvolvimento Pessoal 50,9% 49,1% 50% 55% Relacionais / Afetivas 16,6% 16,7% 17,2% 17% Fonte: dados da pesquisa de campo Casos válidos: 1920 aprendizagens Vemos, portanto, que, tanto de maneira geral quanto em cada uma das áreas, os proces� sos construídos pelos estudantes na relação que estabelecem com o saber são marcados por uma ênfase sobre as aprendizagens ligadas ao desen� volvimento pessoal. Ao mesmo tempo, aprendi� zagens que seriam esperadas em relação ao en� sino superior, como as intelectuais /escolares e as profissionais, aparecem com frequência me� nor. É interessante destacar que o predomínio das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal aparece em todas as áreas do conheci� mento, não sendo uma característica exclusiva dos cursos da área de ciências humanas, nos quais os conteúdos se referem de alguma forma ao desenvolvimento humano. Podemos pensar então que “aprender a viver” é importante para todos os estudantes, sendo que a universidade é um espaço dessa aprendizagem, não apenas por seus conteúdos, mas também pelas vivências interpessoais e por uma “preparação para o mercado de trabalho” que envolve aspectos individuais, maneiras de ser, conquistas pessoais, valores. Que reflexões podemos empreender a partir desses números? Como analisar o fato de que os estudantes universitários pesquisados citem, ao escrever acerca de suas Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. aprendizagens, uma quantidade muito maior de elementos de seu desenvolvimento pessoal, em relação às aprendizagens escolares e intelectuais/profissionais? Na busca pela construção dessas res� postas – e de outras perguntas – considera� mos importante abordar diretamente os textos produzidos pelos estudantes, complementando o movimento inicial de contabilizar as apren� dizagens. Enquanto os dados anteriores refe� rem-se a todas as aprendizagens evocadas nos balanços, os extratos a seguir, retirados dos balanços, abordam exclusivamente as apren� dizagens atribuídas a espaços e agentes liga� dos ao ensino superior. Ou seja, selecionamos aquilo que os estudantes dizem ter aprendido na universidade, no curso superior, com os professores da universidade e com os colegas da graduação. Ainda que apresentemos extratos de textos produzidos individualmente e, nesse segundo momento, não nos atenhamos mais à quantificação das aprendizagens, continuamos em uma análise que se refere ao conjunto dos estudantes, visto que a compreensão das lógicas e dos sentidos individuais exigiria outros procedimentos metodológicos. Ao trazer as falas dos estudantes, buscamos aproximar 625 nossa análise das diferentes maneiras pelas quais eles e elas organizaram a narrativa de suas aprendizagens. Nessa análise, de maneira geral, podemos considerar os sujeitos da pesquisa em dois grupos. O primeiro é formado pelos estudantes que, em seus balanços de saber, associam a universidade exclusivamente à aprendizagem de valores, maneiras de ser e regras de convivência. Em seus balanços de saber não são lembradas aprendizagens intelectuais/ escolares nem profissionais. À universidade são atribuídas apenas aprendizagens como as exemplificadas a seguir: Aprendi que vivemos em comunidade e que existem limites e direitos a serem respeita� dos, para que haja uma boa convivência. Esse aprendizado foi me passado pela minha família e por minha vivência na universida� de e no ambiente onde vivo. (Estudante de Agronomia, sexo masculino, 22 anos) Como estudante, aprendo a cada dia o quanto é importante a convivência com as pessoas, a simplicidade apesar de tantos desafios. (Estudante de Ciências Contábeis, sexo feminino, 21 anos) Desde que nasci aprendi valores importan� tes para cada pessoa: aprendi a conviver com pessoas diferentes, tanto no convívio quanto na forma de agir e pensar, princi� palmente dentro da faculdade. (Estudante de Fisioterapia, sexo feminino, 20 anos) Meus pais foram meus primeiros educado� res, mesmo sem saber ler direito. Com meus professores aprendi muita coisa, uma delas é ser companheira, e até hoje aprendo a cada dia, com meus filhos, com meu espo� so e com as pessoas que me cercam, princi� palmente aqui na universidade, que é uma verdadeira escola, compartilhar este viver é um aprendizado a cada dia. (Estudante de Nutrição, sexo feminino, 43 anos) 626 Nas escolas em que estudei e na univer� sidade em que estudo aprendi com pro� fessores e colegas a ser mais compreen� siva, mais dinâmica e mais comunicativa. (Estudante de Sistemas de Informação, sexo feminino, 20 anos) Aprendi na faculdade que podemos ser tudo que nossa imaginação conseguir criar e que nosso corpo permitir. Um grande lugar para se engajar no mercado de trabalho, para curtir as melhores festas, para ter a certeza de que realmente aprendeu sobre a vida. (Estudante de Sistemas de Informação, sexo masculino, 20 anos) Aqui na universidade estou aprendendo aquilo que é talvez a maior das lições; respeitar as diferenças e conviver bem com tudo aquilo que antes eu não achava tão comum, pois como aqui encontramos sempre pessoas de todos os tipos, ter respeito e compreensão é totalmente indispensável. (Estudante de Ciências Biológicas, sexo feminino, 21 anos) Nos balanços de saber dos quais esses extratos foram destacados, as aprendizagens na universidade aparecem como uma sequência não diferenciada daquelas realizadas na família e na rua. Esses estudantes não destacaram outras aprendizagens na universidade além das ligadas ao desenvolvimento pessoal e às relações afetivas, as quais são aprendidas na vivência das relações interpessoais. A realização do ensino superior é lembrada como aquisição de maneiras de viver e de relacionar-se, aprendizagens às quais eles atribuem a capacitação para a vida em sociedade e na profissão. Um segundo grupo de estudantes, ao contrário, citou as aprendizagens intelectuais/ escolares e as aprendizagens profissionais como elementos importantes de seu processo de aprendizagem. Em alguns balanços de saber, essas aprendizagens aparecem junto com as anteriores, em outros são exclusivas. O Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... conhecimento técnico-científico e a formação profissional são, em alguns textos, valorizados em relação a outras aprendizagens. Escola, universidade e professores são reconhecidos como espaços e sujeitos específicos, exclusivos para determinadas aprendizagens. Na escola aprendemos a ler e a escrever e na universidade a sermos profissionais. (Estudante de Agronomia, sexo feminino, 21 anos) Em casa, na rua, na escola, assim como na universidade, aprendi a exercitar tudo o que havia aprendido, tal como respeito ao próximo, lealdade, amizade, hones� tidade e também fui complementando o aprendizado técnico, que só lugares como a escola e a universidade poderiam me dar. (Estudante de Ciências Contábeis, sexo fe� minino, 22 anos) Nas escolas e universidades adquirimos conhecimentos científicos, além de colocar em prática toda nossa formação em casa através da família. (Estudante de Educação Física, sexo feminino, 21 anos) Na universidade, após a escolha da futura profissão, obtém-se o conhecimento teóri� co-científico, o conhecimento prático e a introdução na rotina da profissão ideali� zada, através dos estágios, trabalho e re� lacionamentos com colegas, professores e profissionais. (Estudante de Farmácia, sexo masculino, 20 anos) Na faculdade tenho aprendido coisas que certamente se eu não estivesse aqui não te� ria aprendido, através dos professores (es� tudante de Letras, sexo feminino, 22 anos) Aprendi que quando se coloca uma meta na vida e você luta por ela, normalmente é alcançada, aprendi a respeitar a todos e que ninguém é superior a ninguém, que Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. sacarose é muito prejudicial aos dentes e que você não precisa escovar os dentes 3 vezes ao dia (mas não diga isso ao paciente, pois ele não escovará nenhuma vez ao dia). Aprendi tantas coisas que é difícil descrever, pois nesses últimos 4 anos, teoricamente meu conhecimento triplicou. (Estudante de Odontologia, sexo masculino, 22 anos) Na universidade tive outras experiências, o aprendizado se processa de outras formas, através de atividades práticas, não apenas aulas expositivas, mas também o trabalho clínico e laboratorial. Foi possível não só aprender sobre as matérias relacionadas ao curso, mas também a grande importância da nossa futura profissão. (Estudante de Odontologia, sexo feminino, 21 anos) Na escola aprendi a construir verdadeiras amizades e a base para um futuro melhor. Na universidade aprendi mecanismos para uma boa intervenção profissional, sempre respeitando meu código de ética. No estágio consegui colocar em prática tudo o que me foi ensinado na academia. (Estudante de Serviço Social, sexo feminino, 21 anos) Com meus professores aprendi a escrever, a ler, fazer contas e sobre a história da hu� manidade, e atualmente estou aprendendo minha profissão. (Estudante de Serviço Social, sexo feminino, 20 anos) Aprendi a lidar com o paciente e suas particularidades com os professores de estágio e de comunicação terapêutica. Aprendi a ter uma visão holística do paciente a executar práticas sempre corretas com os professores de Semiologia e Fundamentos de Enfermagem. Aprendi com os professores de Ética, Saúde do Adulto, entre outras disciplinas que, como enfermeira, preciso ter postura de tal, ser ético e estar sempre à procura de 627 conhecimentos. (Estudante de Enfermagem, sexo feminino, 21 anos) No curso de pedagogia aprendi sobre di� versos campos de estudos como a Filosofia, Antropologia, Sociologia, Didática, Pesquisa em Educação, fundamentos que irão mos� trar o meu modo de pensar e me fazer nos lugares nos quais eu promova a constru� ção e formação de pessoas, conhecimentos e saberes. (Estudante de Pedagogia, sexo Feminino, 21 anos) Como vimos, portanto, esse segundo gru� po de estudantes vivencia a universidade como espaço de aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, ainda que alguns deles evoquem aprendizagens relacionais/afetivas ou ligadas ao desenvolvimento pessoal ao referir-se àquilo que aprendem em seus cursos de graduação. Como podemos analisar essa diferença entre os textos dos balanços de saber? Os estu� dantes que evocam aprendizagens intelectuais/ escolares e profissionais e as reconhecem como próprias da universidade estabelecem processos de relação com o saber diferentes daqueles que não o fazem? Em que consiste essa diferença? Essas perguntas somam-se àquelas relativas à preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal em relação às apren� dizagens intelectuais/escolares e às aprendiza� gens profissionais, levantadas anteriormente. Uma questão nos parece central: o que significa o fato de que os estudantes pesquisados evo� quem com maior frequência aprendizagens que não nos parecem as mais afeitas ao ensino na universidade, mesmo em uma pesquisa realiza� da em sala de aula? As análises realizadas por Bernard Charlot, a respeito dos dados que encontrou ao pesquisar a relação com o saber de jovens de liceus profissionalizantes de periferias de Paris, auxiliam-nos na tentativa de responder as questões colocadas. Os dados foram coletados entre 1993 e 1995, a partir de 533 balanços de saber produzidos pelos estudantes daquelas 628 instituições. Os resultados desse estudo mostram que as aprendizagens relacionais/ afetivas representam 38% das aprendizagens citadas e as ligadas ao desenvolvimento pessoal representaram 10% do total de aprendizagens citadas. As aprendizagens intelectuais/escolares representam 24% do total de aprendizagens evocadas, a maior parte delas consideradas pelo autor pouco ligadas à especificidade dos conteúdos e das atividades da escola: A relação com o saber propriamente dita surge de forma particularmente vaga. As actividades escolares básicas (ler, escrever, contar) têm muito significado para eles. Mas elas remetem para os inícios da esco� laridade e o que se segue parece não tê-los marcado. Eles vão à escola para fazer aquilo que se deve fazer quando se vai à escola e esperam que esta conformidade lhes permi� tirá ter “uma boa profissão”, ou pelo menos um emprego. (CHARLOT, 2009, p. 34) O mesmo pode ser dito, segundo o autor, em relação à esfera profissional, para a qual os jovens mostram-se pouco mobilizados. Ele conclui que para os jovens franceses estudantes dos liceus profissionalizantes: [...] aprender é, em primeiro lugar e sobretudo, desenvolver relações com os outros, ser capaz de desvencilharse no mundo, compreender a vida e as pessoas, e, se for o caso, saber defenderse. (CHARLOT, 2009, p. 34) Observa ainda que os jovens sujeitos da pesquisa consideram a escola muito importante, mas não se encontram mobilizados na escola, em relação às atividades da escola. Ou seja, não possuem um engajamento verdadeiro na atividade escolar e na apropriação dos saberes. Para isso, é necessário que “[...] o próprio saber (a formação, a cultura) surja como chave do futuro desejável antecipado” (CHARLOT, 2009, p. 77), mediação que o autor não encontrou Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... com frequência. O que aparece como mediação entre o presente e o futuro desejado não é o saber, são os estudos e o diploma. Nesses casos, a questão do saber não é central na relação do estudante com a instituição escolar. Charlot (2009) fala de uma oposição entre o saber e a vida, para compreender a relação dos jovens franceses com o saber. Para eles, o im� portante é a vida, não o saber, e, na escola, viver não é aprender, mas conviver com os colegas. Em relação a um aspecto, entretanto, a escola faz sentido para esses jovens: ela é um espaço rela� cional importante. Essa ênfase no aspecto rela� cional pode ser compreendida como um desvio: [...] o aluno está enganado em relação à função da escola, ele não se apercebe da sua especificidade, ele familiariza e trans� forma a instituição em lugar de conví� vio, que assim se afasta de seu objectivo. (CHARLOT, 2009, p. 83-84) Essa interpretação, apesar de correta, não é, segundo o autor, suficiente. É necessário consi� derar que “... a aprendizagem da relação com o ou� tro é também uma forma de cultura” (CHARLOT, 2009, p.84). Por isso, esses estudantes demandam uma cultura que permita compreender a vida, o mundo, os outros, as relações com os outros e consigo mesmos. As considerações do autor sobre as diferentes dimensões da ênfase sobre as apren� dizagens relacionais e afetivas nos parecem im� portantes, possibilitando uma compreensão mais ampla e complexa dos processos de relações com o saber dos sujeitos de nossa pesquisa. Em pesquisa realizada em 2009, adotamos o balanço de saberes para analisar a relação com o saber de 266 estudantes de Pedagogia de duas universidades privadas e uma universidade pública em Minas Gerais (BICALHO, 2011). Encontramos entre as alunas das instituições privadas que, do total de aprendizagens evocadas, 30% eram relacionais e afetivas, 40% ligadas ao desenvolvimento pessoal, 9% cotidianas, 15% escolares ou intelectuais, 1% profissionais e 5% genéricas ou tautológicas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. Os dados coletados na universidade pú� blica foram um pouco diferentes, sendo maior o percentual das aprendizagens intelectuais ou escolares, que representaram 26,9% do total de aprendizagens evocadas, e menor o percentual das aprendizagens relacionais e afetivas: 19,7%. Ainda assim, as aprendizagens ligadas ao desen� volvimento pessoal ocuparam a principal parcela nos balanços de saber das estudantes de peda� gogia da universidade pública: 36%. As apren� dizagens cotidianas responderam por 10,8% do total, as profissionais, por 2,3%, as genéricas ou tautológicas, por 4,2%. A análise dos textos produzidos pelas estudantes em seus balanços de saber mostrou que os saberes da escola foram construídos em relação com os saberes da vida: ou eram a continuidade desses ou seu sentido advinha da relação com a transformação da vida. O saber, para as estudantes de pedagogia pesquisadas, tinha sentido quando lhes possibi� litava ver o mundo de outra maneira, situar-se nele e relacionar-se com os outros. Assim, os resultados encontrados em nossa investigação com 400 estudantes de uma universidade comunitária não parecem ser uma idiossincrasia da instituição pesquisada. As análises realizadas por Charlot, a partir dos balanços de saber dos estudantes dos liceus profissionais, orientam-nos no sentido da “leitura positiva” de nossos dados, ou seja, uma postura epistemológica e metodológica que “[...] liga-se à experiência dos alunos, à sua interpretação do mundo, à sua atividade.” Nesse sentido: [...] praticar uma leitura não é apenas, nem fundamentalmente, perceber co� nhecimentos adquiridos ao lado das ca� rências, é ler de outra maneira o que é lido como falta pela leitura negativa”. (CHARLOT, 2000, p. 30, grifos do autor) Ao debruçarmo-nos sobre os dados de nossa pesquisa, buscamos, portanto, evitar uma leitura centrada naquilo que falta aos estudan� tes universitários investigados. Nessa leitura 629 negativa, destacaríamos a inadequação de suas expectativas e de sua ligação com a educação escolar (tanto básica quanto superior), privi� legiando uma formação pessoal, baseada em formas de viver e conviver, em detrimento da formação científica e profissional. Ao contrário, ao buscar uma leitura positiva, percebemos que os processos escolares de aprender abrangem, para os estudantes, tanto conteúdos e processos intelectuais quanto valores e maneiras de ser. Assim, aprender os conteúdos científi� cos e profissionais é um processo que implica mudanças na maneira de ver a si mesmos, aos outros e ao mundo. Graduar-se é, também, am� pliar os horizontes, adquirir outras formas de se relacionar com os outros: a formação pro� fissional é valorizada como formação pessoal. Retomando os extratos dos balanços de saber analisados anteriormente, encontramos, entre os estudantes que relacionam o ensino univer� sitário às aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, diferentes formas de combinar a formação pessoal com a formação científica e profissional. Podemos pensar ainda que a au� sência da referência a essas aprendizagens pode indicar a necessidade do desenvolvimento de processos de aprender que construam uma rela� ção mais forte com o saber acadêmico. No trabalho de análise dos balanços de saber, identificamos alguns elementos recorrentes nos relatos que nos pareceram elucidativos dos diferentes processos de relação com o saber vi� venciados pelos estudantes universitários sujeitos da pesquisa. Eles fazem parte do quadro formado pela ênfase dada às aprendizagens ligadas ao de� senvolvimento pessoal, e podem ser compreendi� dos com os conceitos de mobilização e sentido. Sentidos da formação universitária e mobilização em relação ao “saber em si” Charlot (2000) propõe os conceitos de mobilização, sentido e atividade para compreender os processos de relação com o saber. O conceito de mobilização remete à 630 dinâmica interna necessária para aprender. “Mobilizar é por recursos em movimento. Mobilizar-se é reunir suas forças, para fazer uso de si próprio como recurso” (CHARLOT, 2000, p. 55). A definição da mobilização envolve o conceito de atividade; o sujeito: [...] mobiliza-se, em uma atividade, quando investe nela, quando faz uso de si mesmo como de um recurso, quando é posto em movimento por móbeis que remetem a um desejo, um sentido, um valor. A atividade possui, então, uma dinâmica interna. Não se deve esquecer, entretanto, que essa dinâmica supõe uma troca com o mundo, onde encontra metas desejáveis, meios de ação e outros recursos que não ela mesma. (CHARLOT, 2000, p. 55) Segundo o autor, a adoção do termo atividade tem a intenção de ressaltar a presença de um sujeito que a realiza. Sujeito que se mobiliza, coloca-se em movimento em função de determinadas atividades. Para a compreensão dessa dinâmica, Charlot utiliza ainda o conceito de sentido, que se refere: à possibilidade do estabelecimento de relações em um sistema ou conjunto, à possibilidade de estabelecimento de relações com outros aspectos ou fatos da vida do sujeito e à produção de inteligibilidade sobre algo. Assim, tem sentido: [...] o que é comunicável e pode ser entendido em uma troca com os outros. Em suma, o sentido é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros. (CHARLOT, 2000, p. 57) Tomando como referência esses três conceitos – sentido, mobilização e atividade – buscamos novamente nos balanços de saber elementos que nos auxiliassem a compreender os processos de relação com o saber dos sujeitos da pesquisa. Nos textos produzidos, os estudantes expressaram a atribuição de Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... diferentes sentidos ao ensino superior, ao relatarem o que buscam na universidade, o que esperam a partir da conclusão do curso de graduação, como se veem enquanto estudantes e como projetam sua imagem como formados. Identificamos três polos de organização desses sentidos. O primeiro é o da formação universitária como o caminho para uma vida melhor, a superação de dificuldades, o reconhecimento no mercado profissional. É o que aparece nos relatos seguintes: Espero me formar e ter uma vida adequada, para suprir as dificuldades que já foram passadas, e ver isso como um aprendizado para o futuro. (Estudante de Arquitetura, sexo masculino, 22 anos) Espero que no futuro bem próximo todos esses conhecimentos sejam o suficiente para enfrentar esse mundo. (Estudante de Ciências Contábeis, sexo feminino, 21 anos) O que espero pra mim no futuro é ser feliz, formar, ter uma excelente família e arrumar um bom emprego, isso é tudo que eu quero. (Estudante de Farmácia, sexo masculino, 20 anos) Hoje me encontro aqui, dentro de uma universidade lutando para conseguir algo de melhor para mim e para meus filhos. Consequentemente poderei dar a eles tudo que não tive a oportunidade de ter, inclusive apoio quanto ao estudo. (Estudante de Letras, sexo feminino, 31 anos). Hoje estou prestes a me formar, sei que essa é uma oportunidade única e que abrirá as portas para que eu possa ter um futuro profissional brilhante, me tornando cada dia mais feliz. (Estudante de Psicologia, sexo feminino, 24 anos) A universidade significa, portanto, para vários estudantes, a garantia de uma vida Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. melhor e de um futuro estável. De que maneira esse sentido atribuído à universidade compõe as relações estabelecidas por eles com o saber? Propomos duas leituras: por um lado, atribuir à formação universitária o sentido de possibilidade de um futuro melhor – para si e também para outras pessoas – é uma forma de valorização desse processo, e pode ser um fator de mobilização dos estudantes em relação a seus estudos. Por outro lado, é importante perguntar, como faz Charlot (2009) na análise dos dados de suas pesquisas, qual é o lugar ocupado pelo aprender nessa valorização do ensino superior, sendo possível que, em alguns casos, a formação universitária seja valorizada sem a consideração das aprendizagens ali realizadas. Nesse segundo caso, pode acontecer uma trajetória universitária utilitarista, voltada apenas para a superação de etapas, sem o estabelecimento de relações com o saber da universidade. Identificamos um segundo polo de organização dos sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária: para vários deles, o processo da graduação ocasiona uma importante mudança pessoal, de perspectivas, maneiras de ver o mundo, maneiras de estar no mundo e relacionar-se com as pessoas. A seguir, alguns extratos de balanços que expressam esses sentidos: Ao entrarmos no ambiente escolar, o sentido da vida se define mais ainda. (Estudante de Educação Física, sexo mas� culino, 20 anos) Na faculdade, a nossa mente se torna mais “aberta”, muitos conceitos são repensados. (Estudante de Fisioterapia, sexo feminino, 20 anos) Ingressei na universidade apenas com o objetivo financeiro, mas com os novos conhecimentos adquiridos vi o mundo a minha volta com outra perspectiva, a de fazer algo, tentar mudar aquilo que ainda 631 se pode mudar. (Estudante de História, sexo masculino, 44 anos) Na universidade descobri que o universo não sou eu ou minha cidade. Fui informado que há infinitas galáxias e que sou insignificante perto delas, mas que no meu mundo sou tudo. Na graduação aprendi que muitas pessoas pensam igual ou diferente de mim, mas nem por isso sou mestre... ou doutor. Descobri que o conhecimento não tem fim e que a cada dia novas coisas são descobertas. Eu posso ser um inventor... de teorias. (Estudante de Jornalismo, sexo masculino, 21 anos) Na universidade vivo um novo momento, posso dizer que foi um divisor de águas em minha vida. O antes e o depois. Sua importância foi a minha descoberta como pessoa, autonomia e liberdade de ser eu mesma. (Estudante de Psicologia, sexo feminino, 33 anos) Cheguei na universidade e vi que eu não aprendi nada ainda da vida, que minha vida está começando aqui para o mundo lá fora. (Estudante de Serviço Social, sexo feminino, 26 anos) Com a oportunidade de agregar novos conhecimentos à minha vida conheci diversas formas de pensamento e práticas, que acabaram transformando minha forma de agir e pensar, o que penso ser. (Estudante de Pedagogia, sexo feminino, 23 anos) A experiência universitária vista como transformadora das maneiras de ver o mundo, dos horizontes e dos próprios sujeitos é um processo de relação com o saber que ajuda a compreender a importância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal nos balanços de saber. A atribuição desse sentido à universidade revela que as aprendizagens científicas e profissionais significam para os 632 sujeitos, também, aprendizagens relativas a suas maneiras de ver o mundo, de viver, a seus valores. Ou seja, durante o desenvolvimento de seus cursos de graduação, muitos estudantes vivenciam processos de mudança pessoal, que foram expressos nos balanços de saber e analisados por nós como aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal. Assim como refletimos anteriormente ao analisar os dados de maneira quantitativa, também a partir dos extratos dos balanços de saber apresentados nesta seção é possível identificar a ligação entre o processo de formação científica e profissional e os processos de desenvolvimento pessoal. Os sentidos atribuídos à formação uni� versitária estão ligados também à mobilização em relação ao saber tomado como conteúdo intelectual, ou a relação com o saber-objeto. Alguns balanços de saber expressam essa mo� bilização. Neles, os estudantes fazem referên� cia ao prazer, ao desejo de aprender, e o saber aparece como aquilo que o sujeito ama, pro� cura, que dá sentido a sua vida e faz parte de sua identidade. Aprendi como é bom aprender, estudar, ler... e o prazer que existe simplesmente em conhecer coisas interessantes. A questão da busca pelo aprendizado é válida em todas as áreas da vida: pessoal, acadêmica e profissional. Assim como as lembranças de momentos e de pessoas que amamos, o conhecimento que adquirimos são bens que ninguém pode nos tirar. (Estudante de Design, sexo feminino, 19 anos) Na escola e no mundo foi onde me achei, foi através deste desejo do saber que me impulsionou. (Estudante de Design, sexo masculino, 34 anos) Espero nunca parar de estudar porque sinto que não tem o menor cabimento estar e viver em sociedade sem entender o que ela produz, produziu e ainda vai produzir. (Estudante de Jornalismo, sexo masculino, 23 anos) Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... As melhores coisas aprendi na escola, lá descobri minha paixão: a literatura e o cinema. Na escola aprendi a gostar de estudar, odiar português, mas amar redação. Aprendi que mesmo não suportando números você pode ser bom com eles. Descobri que definitivamente sou um cientista por natureza, e um pesquisador em potencial. Não quero parar de ler e assistir filmes jamais. Isso me faz viver. (Estudante de Jornalismo, sexo masculino, 21 anos) Meus professores foram muito importantes para mim, serviram como reais transmissores de conhecimento, e foi com eles que aprendi a “gostar de aprender”. Defino assim a minha busca pelo saber. É esse desejo de conhecer coisas novas e conhecer o mundo que me impulsiona a sempre buscar o conhecimento e foi exatamente a percepção desse desejo que me trouxe ao curso de licenciatura. (Estudante de Letras, sexo feminino, 19 anos) Na universidade aprendo e aprendi a cada momento o prazer de aprender. Para minha vida essa experiência tem um valor inestimável. (Estudante de Psicologia, sexo feminino, 26 anos) Sendo assim, o conhecimento é o que me trouxe aqui, neste momento, e o que me mantém aqui. Além de ser a minha motivação e a minha razão para buscar algo maior para mim, e deixar minha contribuição para os que hão de vir. (Estudante de Engenharia Elétrica, sexo masculino, 22 anos) Nesses relatos, o conhecimento ocupa lugar central, é buscado, desejado e parece imprimir sentido à realização do curso de graduação. Charlot afirma: Eis que o problema do sentido e, por decorrência, o problema do prazer aparecem Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. como os problemas fundamentais da escola, do ensino e da aprendizagem. Longe de se esgotarem na disputa entre tradicionais e construtivistas, esses problemas apontam para o essencial que é saber se o aluno tem a possibilidade de ter uma atividade intelectual ou não. (CHARLOT, 2005, p. 23) A mobilização em relação ao saber em si – que identificamos como o terceiro polo dos sentidos atribuídos à formação universitária – serve como ferramenta teórica para a discussão dos outros dois polos (a valorização da universidade como caminho para a conquista de uma vida melhor e o reconhecimento do curso superior como transformador da maneira de ver o mundo). Isso porque, tanto em um caso quanto em outro, são necessárias, para que o estudante realmente se insira nos processos de aprender da universidade, a compreensão e a mobilização em relação aos saberes específicos do curso realizado. Novamente retomando a preponderância das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal, nos balanços de saber, entendemos que a construção de relações com o saber baseadas no engajamento intelectual e na mobilização intelectual (CHARLOT, 2005, p. 54) pode ser um caminho para que as aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, específicas da universidade, passem a fazer mais sentido para os estudantes. Considerações finais Retomando os dados e as discussões apresentadas neste artigo, podemos dizer que a relação com o saber dos estudantes universitários sujeitos da presente pesquisa está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu desenvolvimento pessoal. Considerando especificamente os processos de relação com o saber desenvolvidos na universidade, encontramos duas situações: um grupo de estudantes percebe essa instituição como mais uma etapa de seu processo de 633 formação pessoal, enquanto outro grupo atribui ao ensino superior, além da formação pessoal, outras funções, ligadas a aprendizagens intelectuais/escolares e profissionais, próprias do ensino superior. Entendemos então que a formação universitária é um processo de aprendizado de maneiras de ser e de relacionarse com os outros e com o mundo. É também, para uma parcela dos estudantes, espaço de aprendizado científico e de formação para o exercício de uma profissão. A compreensão dos processos de relação com o saber dos estudantes pesquisados foi construída também, neste trabalho, por meio dos conceitos de sentido e mobilização. Vimos que os sentidos atribuídos pelos estudantes à formação universitária organizam-se em torno de três polos: a busca por um futuro melhor; a transformação das maneiras de ver o mundo e a mobilização em relação ao saber em si. Analisando esses três polos de sentidos, chegamos à consideração de que as questões do desejo de aprender e da mobilização intelectual são centrais – e precisam ser construídas pelos estudantes – nos processos de ensinar e aprender na universidade. Reconhecer a universidade unicamente como espaço de formação pessoal, ligada a valores e modos de ser pode significar, nesse sentido, a não compreensão das especificidades do saber universitário. Essa é, em resumo, a compreensão acerca dos processos de relação com o saber dos estudantes universitários que construímos a partir da análise dos balanços de saber produzidos por eles. Essa é a resposta que oferecemos às perguntas que fizemos sobre os processos de relação com o saber dos estudantes de uma 634 universidade privada comunitária localizada em um município de porte médio do estado de Minas Gerais. Ao encontrá-la, voltamo-nos para as inquietações que justificaram a questão de pesquisa, e novas perguntas se apresentam: de que maneiras esses processos de relação com o saber refletem a respeito dos processos de ensinar e aprender no ensino superior? Que demandas e desafios colocam para as práticas pedagógicas na universidade? Trazemos novamente, para fundamentar esta reflexão, as considerações de Bernard Charlot (1997). Para ele, a entrada na universidade está diretamente ligada à compreensão e aquisição da lógica do saber universitário, o que exige operar com os saberes de forma descontextualizada e a ressignificação das experiências de vida e trabalho em outros sistemas de saberes. Portanto, o estar na universidade deveria desencadear outras relações com o saber. É essa constatação que tem nos levado a indagar sobre o sentido do conhecimento escolar e do papel da universidade na relação estabelecida com o saber por esses/essas estudantes, os significados da universidade em suas vidas, em que medida o estar na universidade propicia aprendizagens intelectuais e as coloca na condição de aprendizagens significativas. Cientes do papel da universidade na produção de determinados tipos de aprendiza� gem e da heterogeneidade do público universi� tário, especialmente no ensino superior priva� do, procuramos, com a discussão desenvolvida neste artigo, chamar a atenção para a impor� tância de que os cursos de graduação sejam realmente espaços de circulação, aquisição e produção de saber. Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:... Referências BICALHO, Maria Gabriela Parenti. Relação com o saber e processos de construção do eu epistêmico por estudantes de pedagogia de universidades privadas. In: CHARLOT, Bernard (Org.). Juventude popular e universidade: acesso e permanência. São Cristóvão: Editora UFS, 2011. CHARLOT, Bernard. Nouveaux publics, nouveaux rapports au savoir: nouvelles fonctions de l’université? Actes du colloque de l’Association des conseillers d’orientation psychologues de France. Le défi de la réussite, Sorbonne, p. 41-50. jan. 1997. ______. Rapport au savoir en milieu populaire: une recherche dans les lycées professionnels de banlieue. Paris: Anthropos, 1999. ______. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. Tradução de Bruno Magne. ______. (Org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001. ______. (Org.). Relação com o saber, formação dos Professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005. ______. A relação com o saber nos meios populares: uma investigação nos liceus profissionais de subúrbio. Porto: Livpsic, 2009. Tradução de Cataria Matos. COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: EDUFBA, 2008. Tradução de Georgina G. dos Santos, Sônia Maria R. Sampaio. Recebido em: 07.05.2013 Aprovado em: 27.06.2013 Maria Gabriela Parenti Bicalho é pós-doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Maria Celeste Reis Fernandes Souza é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CPNq), secretária adjunta de Educação da Secretaria Municipal de Educação de Governador Valadares/MG e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Numeramento – GEN/UFMG. Coordena projeto de educação social com pessoas jovens e adultas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 635 Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada em casos Andreia Cristina MetznerI Resumo O presente artigo tem como tema central a aprendizagem baseada em casos, também conhecida por estudo de casos. O objetivo deste estudo é apresentar uma proposta de trabalho implementada em um curso de licenciatura em educação física e estruturada a partir de um caso específico para a área escolar. A metodologia utilizada é de natureza qualitativa e do tipo pesquisa de campo. Participaram do estudo 25 alunos do último ano do curso de licenciatura em educação física pertencentes a uma instituição particular de ensino superior, localizada no interior do estado de São Paulo. As disciplinas selecionadas para o desenvolvimento das ações foram: metodologia da educação física na educação básica, seminário de conclusão de curso e estágio supervisionado. Os resultados da pesquisa apontam que a utilização de casos no curso de educação física promove tanto para o professor quanto para os alunos resultados positivos e necessários para a sua atuação profissional. Acredita-se que, quando a docência é desenvolvida de forma comprometida e a partir de uma prática pedagógica crítica e reflexiva, por meio de desafios instigantes, tanto o professor quanto os alunos alcançam resultados positivos. Para isso, o professor precisa desvencilhar-se da rotina e da zona de conforto propiciada pelas aulas expositivas e enraizadas pelas metodologias tradicionais. Palavras-chave Educação física — Aprendizagem baseada em casos — Ensino superior. I- Centro Universitário UNIFAFIBE, Bebedouro, SP, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091464 637 A teaching proposal implemented in an undergraduate Physical Education program: case-based learning Andreia Cristina MetznerI Abstract This article focuses on Case-based learning, also known as case study. the aim of this study is to present a work proposal implemented in an undergraduate Physical Education program and structured from a specific case for the education area. The study’s methodology is qualitative and field research type. Its participants were 25 students of the final year of program the aforementioned from a private institution of higher education located in the interior of São Paulo state. The disciplines selected for developing actions were: Methodology of Physical Education in Basic EducationII, Course Completion Seminar and Supervised Internship. The research results indicate that the use of cases in the Physical Education course provides both the professor and the students with results that are positive and necessary for their professional performance. Also, when teaching is developed in a committed way and from a critical and reflective pedagogical practice by means of exciting challenges, both the professor and the students achieve positive results. For this, professors need to extricate themselves from the routine and the “comfort zone” afforded by class lectures and classes rooted in traditional methodologies. Keywords Physical education — Case-based learning — Higher education. I- Centro Universitário UNIFAFIBE, Bebedouro, SP, Brasil. Contact: [email protected] II- Translator’s note: In Brazil, basic education comprises early childhood, primary and secondary education. 638 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091464 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. Introdução A docência, durante muito tempo, foi concebida como um dom ou vocação. Ou seja, as pessoas que gostavam e tinham facilidade para ensinar tornavam-se professores. Hoje, sabemos que a docência vai muito além do gostar de ensinar e do domínio dos conteúdos de suas matérias de ensino. Os desafios atuais da docência requerem conhecimento científico e prático. Trata-se da necessidade do docente estar em constante formação, ser capaz de cumprir as exigências das instituições de ensino, atender as necessidades e expectativas dos alunos, ter criatividade para trabalhar com turmas heterogêneas e saber lidar com as diferenças, conseguir articular diferentes conteúdos, acompanhar os avanços tecnológicos, cumprir o programa de ensino, aliar ensino e pesquisa etc. O exercício da docência nunca é estático ou permanente. Segundo Cunha (2004, p. 526), “a docência é um processo que se constrói permanentemente, aliando o espaço da prática com o da reflexão teorizada”. As novas informações, as pesquisas, os alunos, as diferentes instituições de ensino modificam a forma de o professor ministrar as suas aulas. Dessa forma, visando a garantir a qualidade do ensino e a aprendizagem efetiva dos alunos, o professor do ensino superior precisa articular os conteúdos de sua disciplina com os das demais disciplinas do curso. A prática pedagógica no ensino superior necessita superar a visão de ensino fragmentado, transformando as partes em um todo significativo. O primeiro passo é estabelecer interconexões entre as disciplinas do curso; em seguida, permitir a interconexão dos conteúdos, buscando a unificação do conhecimento. Esses dois fatores são denominados interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, respectivamente. O termo interdisciplinaridade pode ser entendido como um conjunto de disciplinas interligadas, ou seja, o conteúdo e as atividades desenvolvidas nas disciplinas que compõem a grade curricular de um curso não podem Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. ser vistas de forma isolada ou fragmentada. A interdisciplinaridade “surgiu nos anos 70 como resposta às necessidades de uma abordagem mais integradora da realidade”. (DENCKER, 2002, p. 19). De acordo com Martinazzo (2010, p. 203): [...] a interdisciplinaridade caracterizase por uma comunicação e até mesmo por uma colaboração entre as diferentes disciplinas, mantendo-se, porém, cada uma com e em sua especificidade. Em relação à transdisciplinaridade, podemos dizer que existia a mesma busca da unidade do conhecimento para que os alunos tenham uma visão mais ampla e global dos fenômenos estudados, visando a formar profissionais cada vez mais completos. Ou seja, é a soma e unificação de todos os saberes. A compreensão transdisciplinar rompe com a forma epistemológica e metodológica tradicional de ensino. Os limites parcelares impostos pelas disciplinas tradicionalmente organizadas fragmentam o conhecimento e impedem a compreensão de um sistema complexo, no qual todos os elementos estão em relação e interdependência. (MARTINAZZO, 2010, p. 201) O autor complementa que, para a compreensão da realidade, é necessária uma abordagem transdisciplinar, visando à quebra da divisão e hierarquização de conhecimentos, bem como à transposição dos conhecimentos estanques e à promoção do diálogo entre as diferentes disciplinas. As disciplinas de um curso superior são organizadas de forma semestral ou anual. Na grade curricular, encontramos nos primeiros semestres as disciplinas consideradas como pré-requisitos e as demais disciplinas são distribuídas ao longo do curso. Acreditamos que geralmente as disposições dessas disciplinas são feitas a partir de uma reflexão sobre a importância de manter uma integração entre elas. 639 Porém, uma boa organização da grade curricular de um curso não é suficiente para promover a inter e a transdisciplinaridade, pois é preciso desenvolver práticas curriculares que possibilitem a compreensão das relações existentes entre as diferentes disciplinas. Os empecilhos à não-fragmentação do currículo em disciplinas são variados, abrangem o desconhecimento do significado de projetos, a falta de formação específica para trabalhar com os mesmos, a acomodação pessoal e coletiva, até o medo de perder o prestígio pessoal, pois a interdisciplinaridade leva ao anonimato – o trabalho individual anula-se em favor de um objetivo maior – o coletivo. (FAZENDA, 1993, p. 42) Além disso, a autora aponta que é mais fácil trabalhar de forma fragmentada do que discutir ideias. Todo esse comodismo acaba deixando os projetos interdisciplinares e transdisciplinares elaborados pelas universidades apenas no papel. O conhecimento não pode se restringir apenas a uma área específica, mas, sim, deve-se articular o conhecimento de uma disciplina com os saberes e práticas das demais. Isso estreitará as fronteiras existentes entre as disciplinas de um curso e construirá eixos de ligação entre elas, proporcionando a reunificação do conhecimento. Segundo Almeida (2012, p. 158): [...] é a partir deste momento que começa ganhar força o desenvolvimento de propostas de trabalho integradoras e a ser destacada a importância do trabalho coletivo que possibilita comunicação entre as disciplinas. Dentre essas propostas, podemos citar a aprendizagem baseada em casos. Acreditamos que a utilização de casos no ensino superior é importante para formar profissionais capazes de estabelecer conexões entre as disciplinas, 640 de lidar com o grande número de informações recebidas e com as situações reais a que são expostos no dia a dia da profissão. Ao buscar resoluções para o caso apresentado, os alunos organizam as suas ideias, buscam conhecimentos teóricos e práticos nas diferentes disciplinas, apresentam soluções, executam na prática a solução proposta, visando a verificar a sua aplicabilidade e pertinência etc. Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de trabalho, estruturada a partir da aprendizagem baseada em casos, implementada em um curso de licenciatura em educação física de uma instituição particular de ensino superior. A educação física no ensino superior: alguns apontamentos A educação física, segundo Figueiredo (2004, p.90), “pode ser compreendida como área que tematiza/aborda as atividades corporais em suas dimensões culturais, sociais e biológicas”. Assim, o campo de atuação e os conteúdos da educação física são muito amplos. No passado, os cursos de licenciatura em educação física estavam preocupados em: [...] formar executores e repetidores de habilidades motoras sem o devido conhecimento sobre motricidade humana e sem comprometimento com o processo educacional. Por isso, as disciplinas curriculares que compunham estes cursos valorizavam excessivamente a prática de habilidades como um fim em si mesmas. (GHILARDI, 1998, p. 9) Hoje, saber executar bem determinada habilidade não é garantia de ser um bom profissional, pois, para atuar na área de educação física, é necessário muito mais do que saber-fazer. Pelo contrário, é fundamental o domínio de um conjunto de conhecimentos práticos e teóricos, bem como ser capaz de justificar as suas atitudes a partir do conhecimento científico (GHILARDI, 1998). Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem... Por isso, os currículos dos cursos de formação, que historicamente priorizaram a transmissão de conteúdos, precisam ser questionados, pois os cursos que possuem uma visão conteudista geram disciplinas fragmentadas. Essa fragmentação existente colabora com a hierarquia de saberes disciplinares, ou seja, algumas disciplinas são mais valorizadas ou têm mais credibilidade dentro de um curso. Nos cursos de educação física, as disciplinas mais temidas ainda são a fisiologia, anatomia e cinesiologia. O medo e a dificuldade que muitos alunos encontram ao cursarem tais disciplinas criam um falso conceito de que essas são as mais importantes do curso. Na verdade, não há disciplinas melhores ou piores, mais ou menos importantes dentro de uma grade curricular. Todas as disciplinas fazem parte de um único curso superior e, portanto, devem caminhar juntas em um mesmo patamar. Por isso, de acordo com Neira (2010, p.73) “o currículo precisa ser fruto de uma ação coletiva”. O autor complementa dizendo que “os saberes e situações que constituem o currículo da formação para a docência refletem, em última análise, o sujeito-professor que se quer formar” (p.74). Ao contrário de um novelo de lã todo emaranhado, o currículo precisa ter o formato de um quebra-cabeça onde todas as “peças” (disciplinas) se encaixam e dialogam entre si. Neira (2010, p.89) acredita que os currículos dos cursos de formação inicial de professores de educação física necessitam de modificações, como “alternativa para o desenvolvimento de uma identidade profissional docente coerente com as necessidades educativas da contemporaneidade”. Para Martins, Moreira e Simões (2006), devemos ensinar aos alunos de educação física em sua formação acadêmica: [...] a associação entre o ver, o ser, o fazer, o conhecer, o compreender e o conviver, ou seja, uma formação que venha a permitir uma ação profissional que respeite o princípio da rigorosidade, que esteja em Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. sintonia com o contexto sócio-histórico-cultural de seus alunos e especialmente, que incorpore o entendimento da complexidade humana. (MARTINS; MOREIRA; SIMÕES, 2006, p. 187) O Conselho Nacional de Educação (Parecer 009/2001, p. 10) aponta que os cursos de licenciatura devem evidenciar: [...] os problemas e as especificidades das diferentes etapas e modalidades da educação básica, estabelecendo o equilíbrio entre o domínio dos conteúdos curriculares e a sua adequação à situação pedagógica. Para alcançar tais metas, Hunger e Ferreira (2006, p. 145) acreditam que é necessário: [...] conceber a aprendizagem como um processo que depende da interação entre o indivíduo e o meio a partir de uma perspectiva metodológica que enfoque situações-problemas e o desenvolvimento de projetos interdisciplinares. Os cursos voltados à formação de professores, assim como a estrutura curricular, não podem ser pensados de forma isolada e desconectada. Por isso, é necessário discutirmos e refletirmos a respeito de questões relacionadas às contribuições das metodologias problematizadoras no ensino superior, especialmente nos cursos de licenciatura em educação física, visando à melhoria da qualidade desses cursos de graduação, tanto na dimensão profissional quanto na acadêmica. Aprendizagem baseada em casos As chamadas metodologias problematizadoras têm sido bastante divulgadas mundialmente, dentre elas encontramos a case based learning ou aprendizagem baseada em casos, também conhecida por estudo de casos. 641 Em relação à aprendizagem baseada em casos (ABC), Montanher (2012, p. 6) aponta que é: da vida: sociais, culturais, econômicos, ambientais, profissionais etc. [...] uma estratégia de ensino e de aprendizagem ativa, contextualizada e centrada no aluno, em que o ensino se dá a partir de um Caso paradigmático que contextualiza uma situação problematizadora. Nesse modelo o professor desempenha o papel de mediador do processo de aprendizagem, questionando e orientando os alunos a refletir, pesquisar, analisar e formular hipóteses sobre o Caso e os problemas conexos a este, de forma colaborativa e dialógica. Os autores complementam dizendo que esses casos podem ser longos ou curtos dependendo do objetivo do estudo. Destarte, o caso pode ser elaborado a partir de diversos contextos, porém não se deve perder o foco principal, que é promover o desenvolvimento e aperfeiçoamento do conhecimento do aluno, no sentido de desenvolver no futuro profissional competências e habilidades necessárias para a sua formação. Outro ponto relevante na aprendizagem baseada em casos é que o papel do professor está relacionado ao mesmo tempo com a escolha ou elaboração dos casos e com todo processo de discussão. Christensen e Hansen (1987 apud Montanher, 2012, p. 35) argumentam que: O autor complementa dizendo que esse processo fundamentado no questionamento é essencial para motivar a aprendizagem de novos conteúdos e a construção de novos saberes. O Caso seria o instrumento que possibilitaria mobilizar o conhecimento-em-ação dos alunos, conhecimento este que os leva a agir de certa forma em certas situações, sem ter plena consciência dos conceitos envolvidos nos bons resultados obtidos. Ao observar os alunos trabalharem com o Caso, o professor teria possibilidade de reconhecer neste conhecimento-em-ação os seus saberes prévios, o que é de grande valia, uma vez que possibilitaria orientar o ensino com base nestes dados. (MONTANHER, 2012, p. 9) Os casos podem basear-se em problemas reais ou fictícios. O importante é fazer com que o aluno interaja com o problema, formule hipóteses, tome decisões e reflita sobre os resultados, favorecendo uma participação ativa no processo de ensino e aprendizagem. Caracteristicamente, um caso, segundo Reis e Linhares (2008, p. 231): [...] deve se constituir uma questão a ser resolvida no formato livre ou aberta; deve ser atual e de interesse dos aprendizes, propiciando ligações com contextos 642 [...] a liderança do processo de discussão do Caso é uma responsabilidade crítica do professor, o qual, mais que possuir um conhecimento profundo do campo ou problema colocado no Caso, deve procurar mediar o processo pelo qual os alunos individualmente, e em grupo, exploram a complexidade da situação específica apresentada pelo Caso. A aprendizagem baseada em casos permite integrar informações provenientes de diferentes disciplinas e de diferentes campos do conhecimento. Além disso, a aplicação dessa metodologia problematizadora permite ao professor pensar e planejar todas as etapas, considerar os alunos (perfil), os tempos e prazos, os materiais didáticos ou fontes, os objetivos de aprendizagem e a sua avaliação, a interação entre professor/alunos e alunos/alunos; enfim, ela permite ao professor traçar uma hipótese de trabalho, que poderá ser adaptada e alterada ao longo do curso ou disciplina. Para isso, o professor precisa desvencilhar-se da rotina e da zona de conforto Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem... propiciada pelas aulas expositivas e enraizadas pelas metodologias tradicionais. Hoje, diante de tantos avanços tecnológicos e do rápido acesso às informações, é notória a necessidade de o professor tornar a sua aula motivadora. A aprendizagem baseada em casos pode ser considerada uma alternativa plausível, devido à sua aproximação com a realidade e com o preparo para a vida profissional dos alunos. Acreditamos que, mesmo que tenhamos um sólido embasamento conceitual relacionado à aprendizagem baseada em casos, somente se o colocarmos em ação, em nossa prática, é que conseguiremos dar significado a esses conceitos e reelaborá-los. Por isso, a seguir, apresentaremos um caso aplicado em um curso de licenciatura em educação física. Metodologia Estudar os conteúdos de uma determinada disciplina e relacioná-los com os das demais presentes no curso para solucionar um caso é muito mais significativo e produtivo para o aluno do que apenas estudar esse conteúdo para a realização de uma prova. Por isso, acreditamos que a utilização da aprendizagem baseada em casos é importante para a formação no ensino superior. Para a elaboração do caso, o primeiro passo foi pensarmos no conhecimento prévio dos alunos do curso de licenciatura em educação física e nas disciplinas que estavam sendo ministradas naquele semestre, visando a unir informações que envolviam os conteúdos abordados nessas disciplinas. Além disso, procuramos um tema motivador, que despertasse o interesse dos alunos. O caso elaborado foi o seguinte: Maria, empregada doméstica há 10 anos, tem 40 anos, é casada e mãe de 3 filhos. Moradora de um bairro periférico de um município do interior de São Paulo, sai de casa às 06h30min e retorna por volta das 18hs. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. O filho mais velho, Guilherme, tem 15 anos e está cursando o primeiro ano do ensino médio. Já o Carlos tem 8 anos e está no ensino fundamental. E o caçula, Joãozinho, tem 4 anos e está na educação infantil. Todos estão matriculados em escolas públicas. No final de semana, Maria gosta de conversar com os filhos sobre o que fizeram na escola, o que aprenderam, do que mais gostaram, como estão se comportando na sala de aula etc. E então, nesse dia, conversa vai e conversa vem, surgiu o papo sobre as aulas de educação física. Guilherme disse que o professor de educação física dele é muito legal, pois deixa os meninos jogarem futebol e as meninas jogarem vôlei em todas as aulas. Isso é muito bom, pois, segundo Guilherme, as meninas só atrapalham quando inventam de querer praticar esse esporte, pois futebol é coisa de menino. Carlos relatou que não gosta de participar das aulas de educação física; ele prefere ficar sentado olhando os colegas. O professor não insiste para ele participar das aulas, pois ele prefere trabalhar apenas com aqueles alunos que “estão a fim de aprender”. Carlos só participa da aula de educação física quando chove, pois ele gosta de jogar damas e, sempre que está chovendo, o professor deixa os alunos dentro da sala de aula jogando damas e jogo da velha. Já o Joãozinho disse que na escola dele não tem professor de educação física e que é a tia da sala que leva as crianças para o parque ou dá umas bolas e bambolês para brincarem no pátio. Após essa conversa, Maria ficou preocupada, pois os três filhos estão acima do peso e gostaria que eles se interessassem por alguma atividade física, pois ela já assistiu várias reportagens na TV sobre os benefícios da atividade física para a saúde e qualidade de vida. Porém, nos finais 643 de semana e no tempo livre, as crianças preferem ficar assistindo à televisão ou jogando videogame. Maria até entende as crianças, pois no bairro onde mora não há nenhum local para brincar. As praças estão destruídas, não há campo ou quadra para praticar esportes e, além disso, o bairro é muito violento. Na segunda-feira de manhã, Maria ainda estava inquieta, pensando no que havia conversado com os filhos no final de semana. Então, ao chegar à casa dos patrões, decidiu perguntar para um dos filhos do casal sobre como eram as suas aulas de educação física. Maria procurou Gabriel para falar sobre o assunto. Gabriel tem 8 anos e estuda em uma escola particular localizada no centro da cidade. O menino disse que, na aula passada, o professor de educação física decidiu realizar uma atividade de resgate de brinquedos e brincadeiras tradicionais. A primeira parte dessa atividade foi fazer uma entrevista com os pais sobre as brincadeiras que fizeram parte da sua infância. Curiosamente, o brinquedo mais citado foi o “pé de lata”. A partir desse resultado, o professor propôs aos alunos que confeccionassem os seus brinquedos utilizando os materiais recicláveis encontrados em casa. A etapa posterior foi realizar, no gramado da escola, uma corrida utilizando os pés de lata. Foi muito divertido. O professor disse que, na próxima aula, iremos confeccionar bolas de meia para jogar queimada. Acho que vai ser legal também. No final da conversa, diante de tanta contradição, Maria questionou: Por que as aulas de educação física são tão diferentes? É culpa dos professores ou da escola? Será que os professores de educação física que atuam em escolas particulares são melhores do que os das escolas públicas? Quais são os principais conteúdos trabalhados nas aulas de educação física? A disciplina de educação física é realmente necessária no currículo da educação básica? Após a elaboração do caso, foram planejadas e organizadas ações para serem desenvolvidas nas disciplinas de metodologia da educação física na educação básica, seminário de conclusão de curso e estágio supervisionado, visando à integração entre os conteúdos abordados e as reflexões para a resolução do caso apresentado. Quadro 1 – Proposta de atividades/conteúdos relacionando as situações-problema que serão desenvolvidos na disciplina Disciplina Proposta de atividade/conteúdos Metodologia da educação física na educação básica • Impactos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional na Educação Física escolar (LDBEN nº. 9394/96). • Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (PCN’s). • Cultura Corporal de Movimento. • Discussão sobre a importância da criatividade nas aulas de educação física nos diferentes níveis de ensino. • Debate sobre as seguintes questões: de que forma o professor poderia motivar os alunos a participarem das aulas de educação física, principalmente, no ensino médio? Por que, geralmente, as aulas de educação física, ministradas em instituições particulares de ensino são tão diferentes daquelas das escolas públicas? Seminário de conclusão de curso • Levantamento de problemas de pesquisa a partir do contexto apresentado. • Trabalho escrito: propostas de pesquisas (tema, objetivo, justificativa, método). • Apresentação das propostas. • Discussão sobre as propostas apresentadas. Estágio supervisionado • Os alunos deverão, a partir dos estágios realizados, comparar a situação-problema com a realidade vivenciada no âmbito escolar. • Discussão sobre diferentes formas de minimizar e/ou solucionar os problemas apresentados com base nos conteúdos teóricos estudados nas diferentes disciplinas. Fonte: Dados da pesquisa 644 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem... Os conteúdos e atividades propostas em cada disciplina, apresentados no quadro 1, foram desenvolvidos em uma turma de 25 alunos do último ano do curso de licenciatura em educação física pertencentes a uma instituição particular de ensino superior, localizada no interior do estado de São Paulo. As discussões e debates ocorridos nas disciplinas foram gravados e serviram de referência para a coleta de dados, proporcionando um registro detalhado das falas dos participantes da pesquisa. atuação do professor de educação física, devido principalmente à falta de recursos e à necessidade de motivar a participação dos alunos por meio de atividades diferenciadas. Segundo Wechsler (1998, p. 40), por meio da criatividade, é possível: Resultados e discussão: metodologia da educação física na educação básica Por meio da criatividade, o professor é capaz de transpor as dificuldades que o contexto educacional apresenta diariamente nas escolas e criar novas oportunidades para que os alunos vivenciem espaços, materiais, atividades e situações diversas. Após o término da discussão acerca da criatividade nas aulas de educação física, iniciamos um debate sobre as seguintes questões: de que forma o professor poderia motivar os alunos a participarem das aulas de educação física, principalmente no ensino médio? Por que, geralmente, as aulas de educação física ministradas em instituições particulares de ensino são tão diferentes das escolas públicas? De acordo com os participantes da pesquisa, para motivar a participação dos alunos nas aulas de educação física, o professor precisa diversificar os conteúdos e inovar as suas estratégias de ensino. É importante ressaltar que os conteúdos da educação física escolar têm como centro a cultura corporal de movimento. De acordo com Soares et. al (1992, p. 38), cultura corporal pode ser definida como: Na disciplina de metodologia da educação física na educação básica, realizamos com os alunos uma discussão a respeito da importância da criatividade nas aulas de educação física nos diferentes níveis de ensino. Dentre os principais comentários, encontramos: • É importante ser criativo nas aulas de educação física para dinamizar as aulas, modificar as formas de aprendizado, conseguir atingir a maior parte dos alunos, conquistando a participação de todos pelo prazer. • A criatividade é importante para adaptar os materiais e a aula de acordo com o espaço disponível. • Como a falta de recursos é muito comum, principalmente nas escolas públicas, o professor de educação física precisa ser criativo para conseguir diversificar a sua aula. • A criatividade é importante para fazer com que os alunos sempre tenham interesse pela aula e para que o professor seja capaz de adequar o conteúdo de acordo com a sua faixa etária. Os participantes da pesquisa acreditam que ser criativo é fundamental para a Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. [...] identificar as dificuldades ou os elementos faltantes; formular hipóteses a respeito das deficiências encontradas; testar e retestar essas hipóteses e, por último, comunicar os resultados encontrados. [...] acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de 645 representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas. Diversos são os conteúdos possíveis de trabalhar nas aulas de educação física escolar. Porém, a não diversificação desses conteúdos nos diferentes níveis de ensino, segundo Silva e Sampaio (2012, p. 116), podem causar sérios prejuízos: [...] tanto no que tange a restrição ao acesso à cultura produzida pela sociedade no período de escolarização quanto à sua vivencia após a etapa de formação, fator que pode contribuir negativamente nas atitudes a serem tomadas frente à ocupação do tempo disponível com o lazer e na compreensão da importância para a saúde e qualidade de vida advindas da Cultura Corporal do Movimento. Por isso, a educação física enquanto componente curricular da educação básica não precisa restringir as experiências corporais nas aulas apenas a um tipo de conteúdo. Pelo contrário, necessita possibilitar o acesso aos diversos conteúdos da cultura corporal de movimento. Em relação à diferença entre as aulas ministradas em instituições públicas e privadas, os participantes acreditam que os fatores que contribuem para que os professores de educação física ministrem aulas de maior qualidade nas instituições particulares são: melhor infraestrutura; grande quantidade e diversidade de materiais; número reduzido de alunos por sala; os professores são constantemente avaliados pela direção da escola; existe uma cobrança maior dos pais dos alunos; e os professores são mais bem remunerados. Embora tenhamos atingido atualmente altos índices de universalização da oferta do ensino fundamental, a qualidade do ensino desenvolvido em nossas escolas encontra-se em situação crítica. Assim, a 646 construção de uma escola pública dos anos iniciais democrática, inclusiva, crítica, reflexiva e de qualidade para todos é ainda um enorme desafio. (LIMA, 2012, p. 152) As dificuldades que os professores de educação física encontram nas escolas públicas são visivelmente maiores do que as encontradas nas instituições particulares de ensino. Por exemplo, a falta de apoio do poder público, atrelado à má remuneração e condições de trabalho, levam o professor a ministrar uma aula de baixa qualidade nas escolas públicas. As políticas públicas destacam a necessidade da melhoria da qualidade do ensino. Porém, existe uma enorme fenda entre o discurso político e a realidade educacional. Os professores, mesmo reorganizando a sua prática e utilizando diferentes estratégias de ensino, não são capazes, sozinhos, de alcançar a qualidade almejada pela legislação. Por isso, os pontos que dificultam o trabalho do professor nas escolas públicas não podem ser deixados de lado. Segundo Fugikawa (2004), para que as ações implementadas pelos professores de educação física sejam significativas e voltadas para a construção da cidadania e emancipação do educando, o trabalho do professor precisa estar coerente com as especificidades dos diferentes níveis de ensino e com a prática que se pretende implantar na sala de aula. Mas, a autora complementa que [...] isso implica também salários, planos de carreira dignos e condições ideais de trabalho com relação ao material de apoio didático, por exemplo. (FUGIKAWA, 2004, p. 32) Seminário de conclusão de curso Os participantes, a partir do caso apresentado, levantaram algumas questões de pesquisa que poderiam ser abordadas no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Dentre elas: Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem... • Qual a importância do professor de educação física na educação infantil? • Quais as dificuldades encontradas pelos professores de educação física em inovar e/ ou modificar as suas aulas? • Por que a maioria dos alunos do ensino médio não gosta de participar das aulas de educação física? • Qual a importância do resgate de jogos e brincadeiras tradicionais nas aulas de educação física? As questões de pesquisa apontadas pelos alunos estão de acordo com os problemas apresentados no caso: a necessidade da inserção do professor de educação física na educação infantil; as dificuldades que os professores encontram em diversificar os conteúdos e motivar a participação dos alunos; a importância de trabalhar com os jogos e brincadeiras tradicionais nas aulas de educação física. Apesar de encontrarmos na literatura diversas pesquisas a respeito dessas questões, é importante intensificarmos os estudos que envolvem esses temas, principalmente, durante os cursos de licenciatura em educação física, visando a ampliar os conhecimentos teóricos e científicos dos graduandos. Segundo Paiva e Betti (2010), vários estudos surgiram no âmbito da educação física escolar após a década de 80, contudo: [...] ainda há carência de pesquisas que, dotadas de qualificação teórico-metodológica, busquem o confronto dessas novas proposições com situações reais no âmbito escolar, para que se possam avaliar criticamente suas potencialidades e limitações, de modo a servir, com maior nitidez, como orientação e referência aos professores. (PAIVA; BETTI, 2010, p. 305) Ao permitirmos e incentivarmos os alunos a desenvolverem pesquisas envolvendo o processo de ensino e aprendizagem, bem como os obstáculos encontrados pelo professor Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. no dia a dia escolar, estamos oferecendo aos futuros professores um referencial para a sua atuação profissional. Estágio supervisionado A partir dos estágios realizados, os alunos compararam o caso com a realidade vivenciada no âmbito escolar. Os alunos apontaram que a realidade escolar é muito parecida com aquela da situação fictícia, pois: no ensino médio, a maioria dos professores ministra conteúdos envolvendo os esportes e os alunos não têm interesse em participar das aulas de educação física; no ensino fundamental, não há diversidade de conteúdos; e, na educação infantil, em grande parte das escolas, as atividades de movimento são ministradas pelos professores polivalentes (professores formados em pedagogia). Acreditamos que a educação física precisa reconstruir a sua prática pedagógica tradicional e caminhar em busca de objetivos, conteúdos e metodologias adequadas aos diferentes níveis de ensino e pautadas na cultura corporal de movimento. De acordo com Fugikawa (2004, p.41), “a eficiência do processo de ensino depende da forma como a ação pedagógica é organizada e sistematizada pelo professor”. Para isso, o professor precisa “ter conhecimento (teórico-prático) para compreender a realidade em que o aluno está inserido, deve estar atento às peculiaridades que ocorrem e procurar instrumentalizar-se para intervir conscientemente no contexto das relações escolares.” (FUGIKAWA, 2004, p. 32) Em relação às formas de minimizar e/ ou solucionar os problemas atuais da educação física escolar, os alunos disseram que: Os professores que atuam muito tempo dentro das escolas precisam ser incentivados a participar de cursos para atualizarem os seus conhecimentos; para isso, esses cursos precisam ser de qualidade e gratuitos. (Informante da pesquisa) 647 Os alunos precisam sair da graduação preparados para lidarem com o dia-a-dia escolar; os professores de educação física precisam diversificar os conteúdos de suas aulas e motivar a participação dos alunos. (Informante da pesquisa) É necessário melhorar o salário dos professores e as condições de trabalho; só assim o professor ministrará uma boa aula. (Informante da pesquisa) As respostas giraram em torno de uma melhor formação acadêmica, diversificação e escolha adequada de conteúdos, formação continuada de qualidade para os professores, elaboração de planos de ensino procurando atender as necessidades dos alunos, melhores salários e condições de trabalho. Acreditamos que, apesar de as políticas públicas não oferecerem suportes adequados para a melhoria das condições de trabalho e a valorização dos professores em efetivo exercício, os professores de educação física, apesar de todas as dificuldades, precisam buscar o desenvolvimento de um trabalho com qualidade, elaborando aulas de acordo com as necessidades dos alunos, adequando os materiais e espaços disponíveis, bem como buscando novos conhecimentos a partir da educação continuada. Mesa-redonda Após a discussão a respeito do caso nas diferentes disciplinas, convidamos três professores para participarem de uma mesa-redonda visando a discutir os temas abordados. Dentre esses professores, convocamos um ex-aluno do curso de licenciatura em educação física, o professor de uma das disciplinas trabalhadas naquele semestre e um professor de outra instituição de ensino superior, que desenvolve pesquisas no âmbito da educação física escolar. A mesa-redonda teve duração de duas horas e foi importante para que os participantes 648 da pesquisa visualizassem o resultado final do trabalho desenvolvido durante o semestre, comparassem a situação fictícia apresentada no caso com a realidade e as pesquisas atuais na área e, além disso, pudessem estabelecer interconexões entre os conteúdos das diferentes disciplinas que compõem a grade curricular do curso. Considerações finais Na busca de superar a fragmentação do ensino nos cursos de licenciatura em educação física, apresentamos uma proposta de trabalho a partir da aprendizagem baseada em casos. É importante ressaltar que esse é apenas um dentre muitos recursos que podem ser utilizados no ensino superior objetivando a formação integral dos alunos. A docência, no ensino superior, quando é desenvolvida de forma comprometida e a partir de uma prática pedagógica crítica e reflexiva por meio de desafios instigantes, permite que tanto o professor quanto os alunos alcancem resultados positivos e desenvolvam habilidades necessárias para a sua atuação dentro e fora das universidades. A clássica distorção entre teoria e prática ainda é comum em muitos cursos do ensino superior. Por isso, é necessário oferecer ferramentas para que os alunos pensem de forma global, possam planejar suas ações e atuar de forma ativa no processo de ensino e aprendizagem. O papel do professor é fundamental nesse caso, pois, para que novas metodologias, diferentes recursos tecnológicos, bem como o trabalho inter e transdisciplinar tragam resultados positivos, os professores necessitam trabalhar em parceria, oportunizando a integração entre áreas diferentes de conhecimento. Esperamos que as sugestões apresentadas nesse artigo contribuam para o surgimento de novas ideias e ampliem as discussões pautadas nas questões referentes à aprendizagem baseada em casos nos cursos de licenciatura em educação física. Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem... Referências ALMEIDA, Julio G. Interdisciplinaridade: significando o trabalho escolar em contextos metropolitanos. Revista Contrapontos Eletrônica, v. 12, n. 2, p.154-161, mai./ago. 2012. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP 009, de 08 de maio de 2001. CUNHA, Maria Isabel. da. 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O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC) Celina HoffmannI Roselaine Ruviaro ZaniniI Ângela Cristina CorrêaII Julio Cezar Mairesse SilukI Vitor Francisco Schuch JúniorI Lucas Veiga ÁvilaI Resumo A educação superior exerce papel fundamental no desenvolvimento econômico de determinado país, no que condiz ao atendimento das demandas da sociedade. A qualidade no contexto da educação superior tem sido tema recorrente nos últimos anos, sobretudo a partir da criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), que instituiu um sistema de avaliação institucional global e integrador condizente a todas as Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras, sendo responsável por produzir índices para mensuração da qualidade como o Indicador de Diferença dentre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD), o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o IGC, Índice Geral de Cursos, que mede o desempenho global da instituição. Diante disso, este estudo tem como objetivo analisar o IGC das universidades públicas e privadas das cinco regiões brasileiras, no intuito de caracterizar o desempenho das IES por região e verificar possíveis discrepâncias intra e inter-regionais, identificando oportunidades de melhoria. Os resultados evidenciaram desempenho superior das universidades públicas em todas as regiões, tendo maior destaque as regiões norte e sudeste. Quanto à variabilidade, as regiões Centro-Oeste e Norte apresentaram os melhores desempenhos ambos condizentes ao setor privado. No entanto, para realizar uma avaliação consolidada do desempenho das IES por região, faz-se necessário analisar, de forma integrada, os resultados do IGC alinhados aos demais subsistemas de avaliação que integram a avaliação multidimensional do SINAES. Palavras-chave I- Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil. Contatos: [email protected], [email protected], [email protected], [email protected] II- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contato: [email protected] Qualidade na educação superior — Desempenho do IGC nas regiões brasileiras — Avaliação de instituições de educação superior. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041491 651 Performance of Brazilian universities in view of the General Course Index (IGC) Celina HoffmannI Roselaine Ruviaro ZaniniI Ângela Cristina CorrêaII Julio Cezar Mairesse SilukI Vitor Francisco Schuch JúniorI Lucas Veiga ÁvilaI Abstract Higher education plays a fundamental role in the economic development of a country in terms of meeting society’s demands. Quality in higher education has been a recurring theme in recent years, especially after the creation of the National Higher Education Assessment System (SINAES), which established a global and integrative institutional assessment system in line with all Brazilian Higher Education Institutions (HEIs). SINAES is responsible for producing quality measurement indicators such as the Indicator of Difference between Expected and Observed Performance (IDD), the Preliminary Course Program Score (CPC), and the General Course Index (IGC). The latter measures the overall performance of higher education institutions. Thus, this study aims to analyze the IGC of public and private universities of the five Brazilian regions in order to describe the performance of HEIs by region, identify possible intraregional and interregional discrepancies, and suggest opportunities for improvement. The results showed that public universities outperformed private ones in all regions, particularly the north and southeast regions. Regarding variability, private universities had the best performance in the center-west and north of Brazil. However, a thorough assessment of the performance of HEIs by region requires an integrative analysis of IGC results aligned with other assessment subsystems that integrate the multidimensional assessment of SINAES. Keywords I- Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil. Contacts: [email protected], [email protected], [email protected], [email protected] II- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contact: [email protected] 652 Quality in higher education — IGC performance in Brazilian regions — Assessment of higher education institutions. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041491 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. Introdução A avaliação é um instrumento de controle e melhoria de desempenho, no que condiz às Instituições de Educação Superior (IES). De acordo com Dias Sobrinho (2010, p. 195): [...] é uma ferramenta capaz de produzir mudanças nos currículos, nas metodologias de ensino, nos conceitos e práticas de formação, na gestão, nas estruturas de poder, nos modelos institucionais, nas configurações do sistema educativo. Por essa razão, deve ser vista como importante subsídio para a tomada de decisão no contexto de direcionamento das políticas públicas, bem como na transformação e melhoria da qualidade de cada IES dentro de sua realidade de trabalho. A qualidade no cenário da educação tem sido tema recorrente nos últimos anos, muitas vezes atrelada à questão do sistema avaliativo institucional. Burlamaqui (2008), em estudo realizado de caráter bibliométrico, enfatiza que o conceito de qualidade visto na perspectiva de uma instituição deve estar acompanhado das noções da multidimensionalidade e complexidade, que são características inerentes ao ambiente de uma IES. O autor também defende a utilização de dados quantitativos e qualitativos de forma conjunta para a mensuração do desempenho institucional, uma vez que isso possibilitará uma visão integrada da própria realidade multifacetada da IES. De acordo com o censo da educação superior de 2010, o número total de IES corresponde a 2.378, sendo a participação majoritária dada pela esfera privada com 88,3%, seguidos da esfera estadual com 4,5%, federal com 4,2% e municipal com 3%. No entanto, a categoria federal apresenta maior concentração média de matrículas em razão do número de instituições federais com 9.481,4, enquanto a categoria privada apresenta 2.256,6 matrículas por instituição (INEP, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 2012). Tais números refletem o contingente de IES que exercem papel fundamental no desenvolvimento socioeconômico do país, na condição de agente formador dos profissionais que atuarão no mercado de trabalho, sendo distribuídas em universidades, centros universitários, e faculdades. O Ministério da Educação (MEC), por meio da Lei nº 10.861, em 2004, instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES). Consiste em um sistema de avaliação institucional abrangente e complexo pautado pela autoavaliação, avaliação externa, condições de ensino e instrumentos de informação como censo da educação superior e cadastro preenchido pela IES. O SINAES é orientado por meio de indicadores, tais como: o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e Índice Geral de Cursos (IGC), que subsidiam os processos de avaliação in loco e resultam nos Conceitos de Curso (CC) e Instituição (CI). Institucionalmente, são considerados medidas da qualidade da Educação Superior (INEP, 2011). Esses indicadores exercerem importante papel de nortear as iniciativas de políticas públicas para a educação superior. Conforme Burlamaqui (2008), a utilização de indicadores traz vantagens, pois retrata informações passíveis de consulta pela sociedade, sobretudo aos usuários do sistema. Diante da importância da avaliação da educação superior e da compreensão de seus instrumentos, indicadores e resultados daí gerados, este estudo buscou analisar os valores do IGC das universidades públicas e privadas correspondentes às cinco regiões brasileiras. Nesse contexto, faz-se necessário considerar que os índices de mensuração da qualidade utilizados pelo INEP não são amplamente aceitos pela comunidade acadêmica que se dedica aos estudos acerca da educação superior. Pelo contrário, desde a sua concepção, os indicadores, incluindo o IGC, são alvos de efusiva polêmica. Schwartzman (2008, p. 20) argumenta, em crítica ao CPC, que é importante indicador para composição do IGC: 653 Não tem legitimidade, porque não foi elaborado com a participação e o envolvimento de setores relevantes da comunidade de ensino superior do país, que foi surpreendida com sua divulgação. Outro ponto de vista defendido por uma leva de autores considera a utilização de indicadores de qualidade uma visão reducionista do sistema de avaliação da educação superior. Como afirma Dias Sobrinho (2008, p. 821) “[...] como se os números, as notas, os índices fossem a própria avaliação e pudessem dar conta da complexidade do fenômeno educativo”, deixando de considerar aspectos como identidade, contexto, e fatores culturais inerentes a cada IES avaliada. Vale ressaltar que este estudo considera a visão sobre a polêmica gerada a cerca de tais números ao longo do referencial teórico. Referencial teórico Com a finalidade de elucidar o objetivo proposto pelo presente estudo, faz-se necessário enumerar os tópicos conceituais que irão contextualizar a problemática apresentada e oferecer os parâmetros necessários para a análise dos resultados. Desse modo, são relacionados os constructos a respeito: da avaliação da educação superior brasileira; da avaliação institucional e qualidade na educação superior; do sistema de avaliação da educação superior; e do IGC como indicador da qualidade nas IES. A avaliação da educação superior brasileira O histórico do processo de avaliação da educação superior nas instituições de ensino superior teve seu início em 1993 por meio do Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB), tendo sido elaborado pela Comissão Nacional de Avaliação (CNA), com assessoria da Secretaria de Ensino Superior (SESu), e encaminhada sua proposta 654 pela Associação Nacional de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) ao Ministério de Educação e Cultura (ZANDAVALLI, 2009). A concepção dessa proposta de avaliação contou com a pluralidade da participação da comunidade acadêmica em que vários representantes de diversas universidades fizeram-se atuantes no processo. Visto que a composição da CNA deu-se por diversas entidades relacionadas à gestão do ensino superior, tais como: Fórum de Pró-Reitores de Graduação; Fórum de PróReitores de Pesquisa e Pós-Graduação; Fórum dos Pró-Reitores de Planejamento e Administração; Fórum de Pró-Reitores de Extensão; Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES); Associação Nacional de Universidades Particulares (ANUP); Associação Brasileira de Universidades Estaduais e Municipais (ABRUEM) e a Associação Nacional de Escolas Superiores Católicas (ABESC) (BRASIL, 1993, apud ZANDAVALLI, 2009). O Programa de Avaliação Institucional (PAIUB) surgiu com a finalidade de suprir algumas demandas latentes à época. A ideia era a de que por meio do processo da avaliação institucional haveria a possibilidade de propiciar o constante aperfeiçoamento do desempenho acadêmico; servir como instrumento para o planejamento e gestão universitária, além de provocar um processo sistemático de prestação de contas à sociedade, partindo do pressuposto de que a educação é vista como um bem público, sustentada por recursos públicos, e, portanto, por toda a sociedade. O objetivo principal do PAIUB era a análise e o aperfeiçoamento do projeto acadêmico e sociopolítico da instituição, promovendo a permanente melhoria da qualidade e adequação das ações institucionais. As iniciativas propostas pelo PAIUB serviram de subsídios para a elaboração do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Dias Sobrinho (2002 apud ZANDAVALLI, 2009, p. 421) afirma a importância do programa pelo: [...] fato de ser uma obra coletiva, aberta, que contempla a pluralidade, que cria Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... bases teóricas e práticas coerentes para atingir objetivos socialmente construídos e tem, inequivocamente, caráter pedagógico e formativo. Acrescenta-se o fato de possuir uma estrutura formada por três processos articulados: avaliação interna (autoavaliação dos sujeitos e heteroavaliação das estruturas, processos e colegas); avaliação externa (realizada por grupo de sujeitos pares da comunidade acadêmica), e reavaliação (reflexão crítica dos processos de avaliação). Com a criação da Lei nº 9.131, de novembro de 1995, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), entre outras mudanças ocorreu a instituição do Exame Nacional de Educação, o chamado Provão, com a finalidade de aferir conhecimentos e competências adquiridos pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de graduação. Além disso, existia a pretensão da utilização dos resultados para o fomento de iniciativas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino. No que condiz à concepção do SINAES, essa está fortemente atrelada aos fundamentos do PAIUB, sobretudo no que condiz respeito à experiência adquirida no campo da avaliação institucional aplicada ao contexto da Educação Superior, conforme Ristoff e Giolo (2006, p. 197): De fato, o novo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior incorporou grande parte dos princípios e diretrizes do Paiub, entre eles, o compromisso formativo da avaliação, a globalidade, a integração orgânica da autoavaliação com a avaliação externa, a continuidade, a participação ativa da comunidade acadêmica, o respeito à identidade institucional e o reconhecimento da diversidade do sistema. Diferentemente do Paiub, no entanto, o Sinaes não adotou o princípio da adesão voluntária. Com a lei do Sinaes, e em consonância com o que estabelecem a Constituição, a LDB e o PNE, todas as IES do País, não apenas as do sistema federal devem participar dos processos avaliativos que compõem o sistema. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. Conforme esclarece Zandavalli (2009), a compreensão de tais antecedentes são fundamentais para identificar os avanços e recuos do SINAES, que teve o papel de reestruturação do modelo de avaliação da educação superior brasileira, tendo implícito o desafio de congregar instrumentos e espaços avaliativos, superando a fragmentação por meio da articulação das formas avaliativas. Avaliação institucional e qualidade na educação superior De acordo com Ribeiro (2012), a sociedade tem exigido, cada vez mais, a prestação de contas do governo no que condiz ao conjunto de serviços prestados pelo Estado. Dentro dessa exigência, está incluída a oferta e a manutenção da qualidade da educação superior, cujas tarefas de supervisão, correção de erros e divulgação dos principais resultados são fundamentais. O direito à educação, assegurado pelo Estado, por si só não garante seu desempenho estratégico no contexto do plano de desenvolvimento de um país, é preciso também assegurar alguns preceitos condizentes com a realidade atual, como a busca por padrões de referência que contemplem os princípios da qualidade (INEP, 2009). O termo qualidade não traz uma só conceituação capaz de considerar todas as dimensões que pode alcançar, mas pode estar relacionado com a conformidade entre a expectativa e o resultado atingido e, além disso, pode ser estar atrelado à percepção do sujeito que exerce a tarefa de julgar ou atribuir níveis de valor a determinada característica ou fenômeno. Nesse contexto, Júnior (2009, p. 259) afirma: [...] o que é considerado qualidade pelo setor acadêmico pode conflitar com a qualidade buscada pelos governos, com aquela percebida pela sociedade ou, então, a que corresponde às demandas do setor produtivo. 655 Dessa forma, as variáveis quantitativas ou qualitativas são sustentadas por indicadores mensuráveis, com a finalidade de não haver predominância do caráter subjetivo no processo de avaliação, uma vez que, de forma objetiva, deve ser subsidiado pela conformidade, padronização e imparcialidade. Segundo Silva (2008), a expressão qualidade na educação tem a função de conferir distinção a uma ou mais características consideradas superiores ou de excelência, atribuindo-lhes condição desejável. Contudo, o autor enfatiza que os sentidos da qualidade podem variar em duas direções: de objeto para objeto e conforme o contexto histórico, ou seja, as referências acerca da qualidade mudam com o passar do tempo. Assim, o que era visto como critério de excelência no passado, como a disciplina e o rigor, hoje já não é tão valorizado. De acordo com Dal Magro e Rausch (2012, p. 432), “o desenvolvimento e a qualidade no ensino também dependem da avaliação constante nos processos de ensino, administrativos, e estruturais”. Nesse sentido, as diretrizes do SINAES contemplam tais perspectivas, na medida em que há articulação com mecanismos regulatórios do Estado com o objetivo da melhoria da qualidade acadêmica e gestão institucional (INEP, 2009). Vistas sob o enfoque da lógica de mercado, as IES estão inseridas em um ambiente competitivo em que a procura por um maior número de alunos reflete a excelência de seus serviços prestados (DAL MAGRO; RAUSCH, 2012). Dessa forma, a disputa pela melhoria da qualidade da educação superior ocorre no cenário macroeconômico, com a concorrência entre países desenvolvidos produtores de inovações tecnológicas, com os países consumidores e reprodutores da tecnologia já criada. Assim como na perspectiva microeconômica, com a disputa direta entre as IES quanto ao seu desempenho diante do número de alunos, oferta de cursos e vagas, formação do corpo docente, condições da infraestrutura, produção científico-tecnológica, entre outros. 656 A reflexão sobre a qualidade na educação superior recai, inevitavelmente, sobre as noções de eficiência e desempenho, condizentes com a lógica empresarial que a relaciona ao conceito de produção, em que os alunos seriam os inputs, a interação entre professores e alunos em que se estabelece o aprendizado seria efetivamente o processo e o aluno concluinte do ensino superior seria o resultado final (output). Nesse sentido, Burlamaqui (2008, p. 138) concorda com tal perspectiva, com a ressalva do estigma que se cria em torno da educação como processo. O autor afirma: “nota-se que o ensino corresponde a um processo permeado por vários aspectos ou variáveis que, ao final, trará algum resultado (produto)”. Daí a utilização de índices de mensuração da qualidade que, aplicados em cada etapa do processo, passa a ser amplamente justificável, na medida em que se verificam pontos fortes e fracos desse contexto, e, a partir disso, ações de correção de erros e melhoria podem ser planejadas. Na perspectiva da administração da educação superior sob a ótica da lógica empresarial, Sander (2007) enumera quatro trajetórias e seus respectivos modelos de gestão da educação, sob o conceito de: eficiência, eficácia, efetividade e relevância cultural. Esses seriam uma forma de um processo evolutivo da administração da educação. Com relação ao conceito de eficiência na educação, que se aproxima da visão tecnocrática presente nas empresas, o autor admite a eficiência como critério de desempenho econômico que acentua as características extrínsecas e instrumentais do contexto organizacional e suas respectivas atividades, em que os sujeitos envolvidos norteiam-se pela lógica econômica, racionalidade instrumental e produtividade operacional. Tal concepção muito se assemelha à prática atual de utilização de índices de qualidade pelo sistema de avaliação da educação superior, e que é repudiada pelo autor na medida em que ele afirma que o conceito de eficiência na educação não se coaduna com o caráter subjetivo e com a ética inerente à prática educacional. Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... Sistema de Avaliação da Educação Superior O SINAES teve seu início a partir da promulgação da Lei nº 10.861, em 14 de abril de 2004, com o intuito de consolidar a avaliação da educação superior brasileira. Foi instituído na forma de política de Estado, o que corresponde à adoção das iniciativas e processos avaliativos inclusos no sistema, independente da troca de governantes, da esfera administrativa. Ele abrange instituições públicas e privadas, com o objetivo de melhoria da qualidade do ensino superior. De acordo com Dias Sobrinho (2010), em sua concepção inicial, o SINAES esteve baseado nos pressupostos de avaliação e de educação global e integradora, voltado a construir um sistema de avaliação da educação superior. Tal iniciativa articula-se sob o senso comum de que a tarefa da avaliação do ensino superior é complexa o bastante para não se restringir em uma só dimensão avaliativa. Dessa forma, o SINAES propôs a integração entre diversos instrumentos de avaliação com o objetivo de englobar a pluralidade de variantes de indicadores da qualidade com os quais as IES têm a missão de atender. O SINAES constitui-se de três pilares principais: a avaliação institucional, a avaliação de cursos e a avaliação de desempenho dos estudantes dos cursos de graduação, este último subsidiado pela aplicação do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE). Já os dois primeiros pilares são acompanhados por meio de processos de avaliação in loco (POLIDORI, 2009). Nesse sentido, é orientado por meio das seguintes dimensões avaliativas: missão e plano de desenvolvimento institucional; políticas relacionadas ao ensino, pesquisa, cursos de graduação, pósgraduação e extensão; responsabilidade social da instituição; comunicação com a sociedade; políticas de pessoal; administração e organização institucional; infraestrutura física; planejamento e avaliação; políticas de atendimento aos estudantes e sustentabilidade financeira (BRASIL, 2004). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. Nesse contexto, o SINAES busca assegurar, entre outros aspectos, a articulação das dimensões interna e externa, particular e global, além de buscar contemplar os pressupostos tanto da metodologia qualitativa quanto quantitativa. Esse princípio do SINAES vem atender a demanda de um sistema de avaliação da educação superior que contemple a complexidade da temática e do processo avaliativo, a participação de seus respectivos agentes das dimensões governamentais, institucionais, de aprendizagem, gestão administrativa e social (BRASIL, 2004). No entanto, a elaboração e instituição de índices de desempenho contribuíram para gerar grande polêmica em torno do tema, além de colocar à prova todo o significado do SINAES que passou a apresentar uma concepção distorcida, diante da comunidade acadêmica. Nesse contexto, Ribeiro (2012) relata que, nos primeiros meses do ano de 2008, a comunidade acadêmica veio saber, por meio da mídia, a respeito das mudanças ocorridas na filosofia do SINAES e do papel do Estado a partir daquele momento. A polêmica gerada ficou em torno da criação de dois índices: o Conceito Preliminar de Curso (CPC), regulamentado pela Portaria Normativa nº 4 de 5 de agosto de 2008, antecedida pela Portaria Normativa nº 40 de 2007 que avalia os cursos de graduação, e o Índice Geral de Cursos (IGC), regulamentado pela Portaria Normativa nº 12 de 5 de setembro de 2008, também antecedida pela Portaria Normativa nº 40 de 2007, que avalia o desempenho da instituição como um todo (INEP, 2011). Em ambos os indicadores, a base principal de cálculo é oriunda do ENADE, instrumento voltado à mensuração do desempenho dos estudantes de graduação. A adoção de tais índices para mensuração da qualidade do ensino superior brasileiro provocou efusiva polêmica em torno do assunto, proliferando diversas críticas entre os pesquisadores e estudiosos. De acordo com Polidori (2009), o fato dos indicadores serem baseados no desempenho dos estudantes, por meio dos 657 resultados do ENADE, retrata uma transgressão do próprio SINAES que prioriza um só pilar de toda sua concepção sistêmica. Nesse sentido, Barryero (2008, p. 867) argumenta sobre os malefícios provocados pela concepção dos índices CPC e IGC: [...] parecem levar-nos novamente ao tempo dos rankings, das avaliações mercadológicas e simplificações midiáticas, mais próximas de uma visibilidade publicitária do que da verdade da avaliação da qualidade. Nesse sentido, Dias Sobrinho (2010, p. 216) sugere que a criação de tais índices caracterizou a transformação da proposta original do SINAES, que originalmente foi criado como um processo sistêmico de avaliação do ensino superior. Nas palavras do autor: Em que pese a proposta original do SINAES insistir nas idéias de sistema, de focar centralmente a instituição e de repudiar as práticas de rankings, isso não ocorreu, plenamente, na prática. Tal argumento Ribeiro (2012, p. 307): é reafirmado por De fato, o SINAES está dando sinais de esgotamento, e o não cumprimento do estabelecido, contrariando a expectativa de que o SINAES teria papel central na regulação. Entre as principais deturpações do SINAES enumeradas pelos autores, incluemse: 1) a desconsideração da avaliação institucional em favor da divulgação do IGC; 2) a sobreposição dos resultados do ENADE que compõem o cálculo de tais índices e, por consequência disso, 3) a indução para a elaboração e divulgação de rankings, os quais não são capazes de retratar a realidade, pois não consideram a identidade e especificidades 658 institucional e dos agentes envolvidos, além de desconsiderarem o caráter pedagógico e social da formação do cidadão universitário. Limana (2008, p. 872) é ainda mais incisivo nas críticas aos índices: [...] só serve para dar um verniz de cientificidade a um imbroglio que, em absoluto nada significa em termos de avaliação da educação superior, a não ser o de confundir a sociedade brasileira com falsos rankings de excelência [...]. Tal polêmica parece residir não somente na formação e estrutura de cálculo desses indicadores, mas também na supervalorização da divulgação e ranqueamento de tais resultados, pois a partir deles ficam evidentes as discrepâncias entre as instituições, visto que é papel do próprio SINAES a divulgação dos resultados à sociedade. Entretanto, para finalidade do presente artigo, não há pretensão de participar dessa discussão acerca da concepção pedagógica ou filosófica de tais índices, muito menos vincular tal temática sob o enfoque histórico-político. Partindo-se da existência e disponibilidade de tais índices, o presente estudo tem como objetivo analisar os valores do IGC contínuo das universidades das regiões brasileiras, sob enfoque dos métodos quantitativos de análise. O Índice Geral de Cursos como indicador de qualidade das IES Apesar de tamanha polêmica em torno dos índices elaborados a partir dos instrumentos do SINAES, sabe-se da importância de se utilizar, de forma concomitante, dados qualitativos e quantitativos para avaliação de desempenho, pois ambos são capazes de oferecer subsídios de sustentação para as conclusões que possam ser geradas. O cálculo do conceito preliminar de curso é fundamental para a formação do IGC, portanto, faz-se pertinente entender o que é relevante para a formação do CPC. Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... Conforme o manual de indicadores de qualidade do INEP de 2011, a unidade de observação a considerar nesse índice corresponde ao curso de graduação, sendo a composição para o cálculo formada pelos indicadores da qualidade: as informações de infraestrutura, recursos didático-pedagógicos e corpo docente; o desempenho obtido pelos estudantes concluintes e ingressantes no ENADE, e os resultados do Indicador da Diferença entre os Desempenhos Esperado e Observado (IDD). O IGC, por sua vez, é divulgado anualmente e consiste na média ponderada dos conceitos de graduação e pós-graduação strictu sensu, sendo que para fins de cálculo são utilizados os valores dos CPCs para o conceito da graduação e para os cursos de pós-graduação é realizada a conversão dos conceitos atribuídos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A ponderação é feita com base no número de alunos nos cursos de graduação, mestrado e doutorado. O resultado apresentado é uma variável contínua no intervalo entre 0 e 5, sendo que para fins de classificação das IES os resultados são transformados em valores discretos de 1 a 5, conforme o tabela 1. De acordo com INEP (2011), esse indicador servirá como referencial norteador das comissões de avaliação institucional. Tabela 1 - Distribuição do IGC IGC (Faixa) IGC ies (Valor Contínuo) 1 0 ≤ IGCies< 0,945 2 0,945 ≤ IGCies< 1,945 3 1,945 ≤ IGCies< 2,945 4 2,945 ≤ IGCies< 3,945 5 3,945 ≤ IGCies≤ 5 Fonte: INEP, 2011 Para fins de cálculo do IGC, são utilizados os valores dos CPCs do triênio anterior ao ano de observação. Sendo a ponderação dada pelo Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. número de matrículas referentes aos anos correspondentes, a consideração do triênio devese aos resultados do Enade, que é aplicado a cada três anos para cada área do conhecimento, e serve de base para o cálculo dos CPCs. Além disso, para os cursos de pós-graduação são utilizadas as notas Capes da trienal referente ao ano de cálculo. De acordo com INEP (2011), a Portaria nº 40 de 2007, novamente publicada em 2010 institui que os resultados das avaliações presentes no ciclo avaliativo do SINAES sejam baseados em indicadores de qualidade referenciados em escala de 1 a 5 pontos. O status de nível satisfatório correspondem aos resultados iguais ou acima de 3 pontos. Sendo os valores abaixo de 3 pontos passíveis de notificação. De acordo com Burlamaqui (2008), em termos de avaliação institucional, para uma variável ou estatística ser relevante ela deve ser capaz de influenciar o resultado final, além disso, se duas variáveis apresentarem causalidade ou interdependência, perfaz condição de identificar falhas ou deficiências que sustentam as iniciativas do processo decisório e possíveis adequações visando ao incremento e à melhoria das condições da IES. Método De acordo com a Portaria Normativa nº 40 de 2007, instituída pelo Ministério da Educação, as universidades são definidas como instituições pluricurriculares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano. Devem possuir, pelo menos, um terço do corpo docente com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado e um terço do corpo docente em regime de tempo integral. Tais características perfazem condições para fins de regulamentação, no entanto, não deixam de configurarem em indicadores de qualidade, como mostra a composição do CPC referenciado anteriormente. De acordo com INEP (2012), o número de universidades aumentou de 156 em 2001 para 190 em 2010, apresentando 54,3% do total das matrículas, tendo em vista o contingente 659 de faculdades e centros universitários. Nesse contexto, o SINAES atua com o propósito de realizar uma avaliação diagnóstica, formativa e regulatória das instituições de ensino superior. Daí a importância de analisar a população de universidades brasileiras. A complexidade inerente ao contexto da educação superior demanda a utilização de diversas fontes de informações que compõem a formação de um indicador. No caso, do IGC pode-se dizer que sua composição está atrelada a outros indicadores como o CPC que, por sua vez, é dependente de um conjunto de fatores referentes à graduação. Além disso, para composição do IGC são requeridas as notas da Capes atribuídas aos cursos de pós-graduação. Nesse sentido, o IGC pode ser considerado um indicador abrangente de avaliação do desempenho institucional, pois engloba diversos itens avaliativos. O presente estudo possui caráter descritivo, uma vez que consiste na observação, análise e caracterização de determinada realidade, com intuito de agregar informações acerca de fatos ou fenômenos investigados e estabelecer possíveis relações entre as variáveis (GIL, 2008). Quanto ao método de levantamento e análise dos dados, foram utilizados os pressupostos da pesquisa quantitativa que é baseada no paradigma positivista. Nesse paradigma, a racionalidade predomina de forma absoluta e os métodos utilizados são eminentemente quantitativos, ou seja, baseados em números que tentam, tão somente, representar uma realidade temporal observada (GOMES; ARAÚJO, 2005). Quanto à coleta de dados, ocorreu por meio da planilha eletrônica em formato excel disponibilizada pelo site do INEP, com os dados referentes ao IGC contínuo/2011 da população composta por 221 universidades distribuídas em suas respectivas regiões e categorias administrativas (pública e privada). Por meio do software statistica 9.1 foi realizada a análise descritiva do IGC nas IES correspondentes às cinco regiões brasileiras: Sul, Sudeste, CentroOeste, Nordeste e Norte. Além disso, foi utilizado o teste t-student com a finalidade de verificar 660 a diferença entre as médias dos grupos das universidades públicas e privadas de cada região, considerando-se um nível de 5% de significância. Por meio dos resultados pretende-se não somente realizar comparações, muitas vezes vista como prática discriminatória, uma vez que as realidades regionais distinguem-se entre si, conforme foi argumentado por diversos autores citados no referencial teórico do presente estudo, mas mapear padrões de identidades regionais, tendo como ponto de observação o IGC como índice de representatividade do desempenho das IES. Nosso intuito é, com isso, contribuir na identificação das discrepâncias inter e intra-regionais, com a ponderação por meio das categorias pública e privada. Resultados Por meio dos resultados, é possível caracterizar a distribuição dos valores de IGC nas cinco regiões brasileiras, considerando a administração pública e privada, conforme mostra a tabela 2. No que condiz aos valores da média do IGC na região Sul, observou-se que as universidades sob a administração pública apresentam melhor desempenho em comparação com a privada, sendo que também é o grupo responsável tanto pelo maior quanto pelo menor IGC da região. Tal aspecto é reafirmado nos valores do desviopadrão e coeficiente de variação, que são maiores do que os apresentados na categoria privada. Foi observada diferença significativa entre os valores médios de IGC (p = 0,01) quando se comparou instituições públicas e privadas. Quanto à análise geral, a média encontrada correspondente à região Sul é menor do que a esfera pública e maior do que a privada, considerando-se que as universidades do primeiro grupo perfazem o dobro do segundo. Quanto à região Sudeste, a qual detém o maior número de universidades em ambas as categorias administrativas, os resultados evidenciam o melhor desempenho das universidades públicas que, da mesma forma, Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... Tabela 2 – Estatísticas descritivas do IGC das universidades ano/2011 por região no Brasil Sul Média= 2,77 DP=0,52 Sudeste Média=2,84 DP=0,65 Centro-Oeste Média= 2,72 DP= 0,59 Nordeste Média= 2,76 DP=0,58 Norte Média=2,91 DP=0,60 Pública Privada Pública Privada Pública Privada Pública Privada Pública Privada Média 2,90 2,51 3,01 2,49 2,90 2,50 3,12 2,56 3,33 2,50 Mín. 1,65 2,03 1,57 1,44 2,10 1,96 2,34 1,75 2,27 2,00 Máx. 3,92 3,75 4,28 3,15 4,21 2,86 4,04 3,77 4,07 2,90 DP 0,52 0,43 0,67 0,42 0,71 0,30 0,52 0,52 0,54 0,31 C.V.(%) 18,02 17,09 22,38 17,05 24,61 12,06 16,79 20,18 16,38 12,27 17 60* 8 15 27 11 p-valor Total 0,01 34 <0,001 0,16 28 10** <0,01 <0,001 11 Fonte: elaborado pelos autores com base nos valores do IGC contínuo disponibilizados pelo INEP. *Três universidades foram avaliadas sem conceito (SC) **Duas universidades foram avaliadas sem conceito (SC) apresentam valor médio superior de IGC em comparação com as privadas. A diferença entre as médias dos grupos foi significativa (p-valor < 0,001). Os valores correspondentes ao desviopadrão e coeficiente de variação também foram maiores em relação à categoria privada. Tal fato representa uma maior heterogeneidade entre os IGCs desse grupo. A região Centro-Oeste apresenta, assim como as outras regiões citadas acima, um melhor desempenho das universidades públicas em relação à média do IGC se comparada com as universidades privadas. Da mesma forma, o valor máximo de IGC dessa região pertence a uma universidade pública, sendo que o menor valor encontrado está localizado no grupo das universidades privadas. No entanto, não se observou diferença estatística significativa entre as médias de IGC entre os grupos das universidades públicas e privadas (p-valor = 0,16). Quanto à variabilidade, as universidades privadas apresentaram maior homogeneidade com relação ao IGC, evidenciando valores menores para o desvio-padrão e coeficiente de variação quando comparadas ao grupo das universidades públicas. Com relação à região Nordeste, observase a média geral muito próxima da região Sul. Assim como as demais regiões, as universidades públicas detêm o melhor desempenho para Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. média do IGC, em que o maior valor está presente, sendo o menor valor encontrado no grupo das universidades privadas. Verificou-se que existe diferença significativa entre os valores médios de IGC para as universidades públicas e privadas da região (p-valor < 0,01). No que se condiz à variabilidade, as universidades privadas apresentaram maior dispersão relativa, evidenciando valor mais elevado para o coeficiente de variação. Quanto à região Norte, verifica-se média geral do IGC maior do que as das regiões Sul, Centro-Oeste e Nordeste, no entanto, com maior desvio-padrão. No que condiz às categorias administrativas, as universidades públicas apresentaram melhor desempenho em comparação com as privadas para a média do IGC, estando o valor máximo do IGC presente entre as universidades públicas e o valor mínimo, na categoria privada. Observou-se também diferença significativa entre os valores médios de IGC (p < 0,001). No entanto, as universidades privadas apresentaram um menor coeficiente de variação, indicando maior homogeneidade neste grupo. A partir da análise dos resultados, percebe-se o desempenho superior das universidades públicas em relação às privadas em todas as regiões analisadas. O melhor desempenho do IGC foi observado na região 661 Norte, sendo que a região Sudeste apresentou o segundo melhor desempenho para a média do IGC. As outras regiões apresentaram resultados inferiores, porém com certo equilíbrio entre os valores das médias do IGC, apresentadas na ordem decrescente: Sul, Nordeste e Centro-Oeste. Quanto à variabilidade, a maior homogeneidade foi evidenciada nas regiões Centro-Oeste e Norte, ambas referentes ao grupo de universidades da categoria privada, enquanto que o restante das regiões apresentou maior heterogeneidade considerando tanto a categoria privada quanto à pública. Destacase a categoria das universidades públicas com maior variabilidade observada presente na região Centro-Oeste. A análise do IGC propicia a identificação de oportunidades de melhoria por parte das instituições, além de estimular políticas públicas nesse setor. Desta forma, a avaliação institucional deve ser incorporada pela gestão da IES, conforme colocado por Júnior (2009, p. 265): Para que a instituição esteja preparada para enfrentar os desafios contemporâneos, é fundamental que sua realidade, suas virtudes, capacidades e limitações sejam conhecidas pelos seus membros. O desenvolvimento da educação superior deve passar pela busca da equidade regional, no que condiz tanto ao desempenho de índices de qualidade quanto aos critérios subjetivos de avaliação institucional, respeitando-se as diferenças culturais, econômicas e demográficas. Considerando o referencial teórico sobre o IGC e demais indicadores abordados neste estudo, incluindo a polêmica gerada em torno das interpretações de seus valores e divulgação midiática, os resultados desta pesquisa apontam para a reflexão justamente a respeito do fundamento de tal discussão. Os argumentos contrários à utilização de tais indicadores enfatizam a relevância de que 662 sejam consideradas as diferenças de cultura e identidade entre as instituições para não haver a prática de discriminação e criação de estigmas acerca de IES e suas respectivas regiões. Os resultados desta investigação refletem uma realidade reveladora, tendo em vista que justamente a média mais elevada do IGC foi evidenciada na região Norte, ganhando maior destaque por apresentar melhor desempenho em relação às demais regiões. Configura-se em região historicamente estigmatizada, devido ao desempenho de seus indicadores socioeconômicos serem, geralmente, abaixo da média nacional. Além disso, essa região não apresenta tradição inerente às IES das regiões Sul e Sudeste. Dessa forma, fica latente o questionamento sobre tal resultado: o IGC realmente é capaz de refletir a qualidade de determinada IES? Ou seja, o valor calculado para o IGC é capaz de refletir a realidade? Por meio dos valores do gráfico 1, pode-se observar uma realidade até então desconhecida, por revelar um melhor desempenho das IES do Norte e Nordeste em detrimento das regiões Sul e Sudeste, sendo que o senso comum admite exatamente o contrário. A partir disso, surge a necessidade de formulações de hipóteses explicativas para tal resultado, ou seja, a necessidade de mapear as causas ou os componentes avaliativos que ocasionaram resultado tão revelador. Por outro lado, pode-se dizer que os resultados deste estudo servem para quebrar paradigmas e questionar o fundamento dos argumentos contrários ao IGC que, por sua composição, é imparcial, e os resultados retratados não provocaram discriminações entre IES ou regiões, pelo contrário, destacaram regiões historicamente estigmatizadas. Dessa forma, pode-se verificar, por meio do gráfico 1, certa uniformidade no desempenho das regiões brasileiras quanto ao IGC. No que se refere ao Brasil, por ser considerado um país de extensão continental, coexistem discrepâncias de toda ordem entre as Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... Gráfico 1 – Comparação entre Brasil x Regiões. Mean Mean+/- SD Norte Nordeste Centro oeste Sudeste Sul Box & Whisker Plot Brasil 4,4 4,2 4,0 3,8 3,6 3,4 3,2 3,0 2,8 2,6 2,4 2,2 2,0 1,8 1,6 1,4 Mean+/- 1,96* SD Fonte: elaborado pelos autores com base nos dados do INEP (2011). regiões brasileiras. Entretanto, o IGC estabelece critérios mínimos de desempenho para as IES e a busca por um desempenho uniforme e constante deve ser monitorada e acompanhada. A educação superior, vista sob o prisma de um sistema, pressupõe a interação e coexistência entre diversas instituições que, tendo como ponto em comum organização acadêmica (universidades), não devem se restringir à própria realidade. A busca pela equidade no desenvolvimento passa pelo feedback da avaliação institucional que também ocorre de forma conjunta e interação entre os pares. O gráfico 1 denota certa hegemonia entre as regiões brasileiras, embora as regiões Sul, Centro-Oeste e Nordeste estejam um pouco abaixo da média do IGC nacional. No entanto, as regiões Sudeste e Norte apresentam média do IGC acima da média nacional, sendo que a primeira evidenciou maior variabilidade. Considerações finais A partir da distinção feita entre as universidades públicas e privadas, sobretudo a superioridade da categoria pública, no que diz respeito aos desempenhos para a média Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. do IGC, devemos levar em consideração a composição desse índice de qualidade, o qual é formado pela média ponderada dos CPCs, e este, por sua vez, relaciona subitens de avaliação, tais como: professores doutores e mestres, professores com regime de dedicação integral ou parcial, infraestrutura, organização didático-pedagógica, notas dos concluintes e ingressantes do Enade, e o indicador de diferença entre o desempenho observado e esperado, o chamado IDD (INEP, 2011). Destaca-se que, na sua maioria, os itens que compõem o CPC favorecem as universidades públicas quanto à facilidade de atendimento aos requisitos da qualificação do corpo docente e regime de trabalho. Para explicar o desempenho superior referente ao IGC nas universidades públicas, temse a ponderação feita por Bittencourt et al. (2010), em estudo realizado sobre os itens que compõem o CPC coletados em 2008. Os autores evidenciaram vantagem para o setor público na maioria dos itens que formam o CPC, sendo somente os aspectos referentes à infraestrutura e organização didático-pedagógica os pontos fortes da categoria privada, em que ambos os itens perfazem apenas 10% do CPC. Tal consideração foi antevista por Cunha (2004, p. 795) que, em artigo sobre o tema, argumenta acerca da ideia de que o desenvolvimento da educação superior ocorre de forma desigual entre os setores público e privado: O efeito mais dramático desse processo é a improvisação dos professores do setor privado, que produz efeitos negativos para a qualidade do ensino, nos níveis de graduação e pós-graduação. Uma possível solução para minimizar tal disparidade seria o aumento da oferta de vagas nos cursos de pós-graduação (mestrado/ doutorado), com a finalidade de equilibrar o mercado de trabalho desses profissionais e, assim, propiciar condições das universidades particulares a satisfazer esses requisitos. 663 Em síntese, todas as regiões evidenciaram desempenho superior da esfera pública em comparação com a categoria privada, com os valores médios apresentando diferenças significativas entre as categorias públicas e privadas de algumas regiões. A região Norte apresentou o melhor desempenho para a média do IGC (2,91), o que denota aspecto revelador sob a ótica do desempenho da educação superior no contexto das regiões brasileiras. Percebe-se, portanto, certa imparcialidade nos valores do IGC na medida em que considera os cálculos de seus componentes formadores de uma maneira objetiva, seguida das regiões Sudeste (2,84), Nordeste (2,76), Sul (2,77) e Centro-Oeste (2,72). A região Sul apresenta menor variabilidade absoluta (0,52), seguida das regiões: Nordeste (0,58), Centro-Oeste (0,59), Norte (0,60) e Sudeste (0,65). Quanto ao desempenho individual, evidencia-se que a região Sudeste é detentora da universidade que apresenta maior IGC (4,28), seguida das regiões CentroOeste (4,21) e Norte (4,07), sendo que em todos os casos, trata-se de universidades públicas. A universidade com pior desempenho é da região Sudeste (1,44) da categoria privada, seguida das universidades das regiões Sudeste, novamente (1,65) e Sul (1,57), essas duas últimas advindas da categoria pública. A educação superior exerce papel fundamental no desenvolvimento econômico de determinado país, no que se relaciona com as demandas da sociedade, como a formação de profissionais qualificados para acompanhar as constantes transformações advindas da 664 economia, tecnologia e informação. Decorre daí a importância da avaliação institucional e acompanhamento de seus indicadores. Conforme colocado por Ribeiro (2012, p. 177): As IES precisam responder às obrigações da busca contínua da qualidade no desempenho acadêmico, do aperfeiçoamento constante do planejamento e da gestão universitária [...]. Nesse contexto, este artigo buscou, por meio do IGC, que congrega informações a respeito da IES, contribuir com campo de estudos voltado à educação Superior, evidenciando as implicações que os resultados do IGC adquirem quando analisados de forma inter e intra-regional, expondo características como desempenho e variabilidade, considerando IES públicas e privadas. A realização deste trabalho foi motivada pela possibilidade de tratar o desempenho da educação superior sob o enfoque da abordagem quantitativa capaz de subsidiar análises qualitativas. Dessa forma, este trabalho buscou colaborar com resultados preliminares a respeito da comparação da qualidade da educação superior entre as regiões brasileiras, a partir da análise do IGC. Porém, ressalta-se a necessidade de estudos complementares capazes de contemplar hipóteses explicativas para os resultados do presente estudo. Por isso, a realização de uma avaliação consolidada acerca do desempenho das IES por região deverá ocorrer de forma integrada, ao analisar os resultados do IGC alinhados aos demais subsistemas de avaliação que integram a avaliação multidimensional do SINAES. Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... Referências BARREYRO, Gladys Beatriz. De exames, rankings e mídia. Avaliação, Campinas; Sorocaba, v. 13, n. 3, p. 863-868, nov. 2008. BITTENCOURT, Hélio Radke et al. Mudanças nos pesos do CPC e seu impacto nos resultados de avaliação em universidades federais e privadas. Avaliação, Campinas; Sorocaba, v. 15, n. 3, p. 147-166, nov. 2010. BRASIL. 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Roselaine Ruviaro Zanini é doutora em epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora de estatística na Universidade Federal de Santa Maria; coordenadora da especialização em estatística e modelagem quantitativa; professora do Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção. Ângela Cristina Corrêa é doutora em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Maria, administradora pública federal; pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em administração da Universidade Federal de Santa Maria; coordenadora do projeto Mapa Estratégico da Educação Superior (MEES), financiado pelo edital Pró-Adm./ CAPES. Julio Cezar Mairesse Siluk é doutor em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção da Universidade Federal de Santa Maria. Vitor Francisco Schuch Júnior é doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas, professor no curso de graduação e pós-graduação em administração da Universidade Federal de Santa Maria nos mestrados acadêmico e profissional, especialização e programas interinstitucionais. Lucas Veiga Ávila é graduado em administração e especialista em gestão estratégica de negócios pela Universidade Regional Integrada, aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em administração de empresas da Universidade Federal de Santa Maria. 666 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho... Contribuições da perspectiva crítica de base histórico-cultural para a produção científica em psicologia educacional Laísy de Lima NunesI Simone Salviano AlvesI Jaqueline Vilar RamalhoI Fabíola de Sousa Braz AquinoI Resumo Com ênfase na importância do monitoramento da produção científica, podendo o mesmo indicar qualidade da e rumos tomados pela produção do saber, o presente estudo visa a mapear as produções no âmbito da psicologia escolar educacional e, mais especificamente, nos artigos científicos que apresentem uma perspectiva crítica nessa área. Para tanto, foi realizada uma busca bibliográfica das versões on-line, publicadas entre 2007 e 2011, disponíveis na página da revista Psicologia Escolar e Educacional, publicação semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Ao todo, foram analisados 134 artigos. Os resultados apontaram que 17 artigos (12,69%) foram classificados na perspectiva crítica. Cada estudo trata de importantes aspectos da psicologia escolar educacional, tendo como foco o papel do psicólogo na escola, a formação docente e a postura crítica dos agentes escolares. Todos os artigos selecionados fundamentam-se na teoria histórico-cultural, uma das abordagens críticas da psicologia resgatadas para a compreensão dos fenômenos educacionais, aqui considerados essencialmente psicossociais. Entende-se que esse levantamento representa um instrumento de fundamentação e de questionamento na formação acadêmica (graduação e pós-graduação) de alunos de psicologia, da área de educação e de áreas afins, e propicia um maior aprofundamento acerca de como vem se configurando a psicologia escolar educacional contemporânea e dos impactos nas práticas profissionais orientadas por uma perspectiva crítica. Palavras-chave I- Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil Contatos: [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected] Psicologia escolar educacional — Produção científica — Mapeamento — Perspectiva crítica. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091471 667 Contributions of cultural-historical studies with a critical perspective to scientific production in educational psychology Laísy de Lima NunesI Simone Salviano AlvesI Jaqueline Vilar RamalhoI Fabíola de Sousa Braz AquinoI Abstract The present study seeks to map the productions in the scope of educational and school psychology and, more specifically, in the scientific articles that show a critical perspective in this area. This is done by emphasizing the importance of monitoring scientific production and its possibility of indicating the quality and directions taken by the production of knowledge. In order to achieve this, we have conducted a bibliographical search of the online versions published between 2007 and 2011, available in the journal Psicologia Escolar e Educacional (Educational and School Psychology), which is a biannual publication of Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE – Brazilian Association of Educational and School Psychology). Overall, 134 articles were analyzed. The results indicate that 17 articles (12.69%) were classified in the critical perspective. Each study discusses important aspects of educational and school psychology, focusing on the role of school psychologists, teacher education, and the critical stance of school agents. All the articles selected were based on the cultural-historical theory, one of the critical approaches of psychology used to help understand educational phenomena, which are considered in this study as essentially psychosocial. This survey can be seen as a platform to evaluate the academic undergraduate and graduate background of psychology students in the field of education and similar areas, and it provides a deeper view on how contemporary educational and school psychology has been configured and its impact on professional practices guided by a critical perspective. Keywords I- Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil Contacts: [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected] 668 Educational and school psychology — Scientific production — Mapping — Critical poerspective. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091471 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. Introdução Esse trabalho é produto de debates e reflexões sobre as interfaces da psicologia social com o campo educacional, por se entender a importância da relação entre esses campos de conhecimento para a prática profissional do(a) psicólogo(a) e, fundamentalmente, pelo valor atribuído às interações sociais como unidade de análise possível entre as referidas áreas (AROCHO, 2009, 2010; OVEJERO, 1996). Defende-se que estudar as relações entre esses campos da psicologia e conhecer os principais referenciais teóricos que orientam uma área permite entender e atuar profissionalmente de forma consciente e crítica nos contextos nos quais ocorre a atividade do(a) psicólogo(a). Na compreensão de Ovejero (1996), nos últimos anos, assistiu-se a uma progressiva aproximação entre a psicologia social e a psicologia educacional, com destaque para o enfoque psicossocial como necessário e imprescindível na educação. Segundo afirma o autor, os fenômenos educacionais são essencialmente psicossociais, dado que compartilham duas classes: interpessoais (interação professor-aluno, aluno-aluno, pais e filhos) e grupais (tipo de grupo e de coesão do grupo-classe ou do grupo familiar). O autor enfatiza que, para abordar adequadamente toda a complexa problemática da educação atual, é imprescindível a adoção de uma perspectiva abertamente crítica e emancipatória. Em relação a essa questão, Ovejero (1993, 1996) propõe a necessidade de um enfoque psicossocial, que leve em conta os aspectos psicológicos e sociais de um fenômeno que considera claramente psicossocial, qual seja, o fracasso escolar. Nessa linha, o fracasso escolar seria um fenômeno social e educacional, que reflete as relações entre indivíduo e sociedade. Em seu texto “Psicología social de la educación”, Ovejero (1996), ao apresentar o enfoque psicossocial para explorar as relações entre psicologia social e educacional, além de enfatizar a interação social como ponto de Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. interseção entre essas duas áreas, recorre a Vygotsky como autor que embasa a referida proposta de análise. Mais recentemente, Arrocho (2010) recorre ao modelo histórico-cultural para discutir as relações entre a psicologia social e a educação, desenvolvendo articulações entre esses dois campos de conhecimento. A partir da leitura e dos debates em torno dos textos de Ovejero (1993, 1996) e Arrocho (2009, 2010), buscou-se investigar a presença, na produção científica brasileira, da perspectiva crítica na área escolar e educacional. Em consonância com pesquisadores brasileiros (MEIRA, 2003; SOUSA; SILVA, 2009; MALUF, 2010; MARTINEZ, 2010; NOVAES, 2010; FACCI; EIDT, 2011), observou-se, na literatura internacional, a recorrência à leitura e análise das questões educacionais a partir do modelo histórico-cultural inaugurado por Vygotsky (1932/1996; 1984/2007). Na literatura acima referida, o encontro da educação com a psicologia é atravessado por uma leitura histórico-cultural. Os pressupostos desse modelo põem em relevo a noção de sujeito constituído histórica e culturalmente, com destaque para os processos de formação do indivíduo a partir da rede social em que se insere. Partindo desse modelo, compreende-se que os processos de ensino e aprendizagem, que caracterizam as formas de socialização e viabilizam a apropriação de ferramentas culturais pelo homem, estão imbricados na formação da consciência e da subjetividade (AROCHO, 2009, 2010; OLIVEIRA; MARINHOARAÚJO, 2009). No âmbito da psicologia escolar e educacional, Maria Helena de Souza Patto, na década de 1980, deflagrou uma crítica contundente ao enfoque clínico de atuação dentro das escolas, crítica essa que denunciava o modelo hegemônico na psicologia e defendia uma compreensão do fracasso escolar como fenômeno de múltiplas dimensões. Sustentava ainda que o trabalho do psicólogo escolar deveria “contribuir para a elucidação de processos 669 que se dão na vida diária escolar, em suas relações com as dimensões econômica, política e cultural da sociedade brasileira” (PATTO, 1997, p. 467). Em suas elaborações, já pode ser encontrada uma crítica ao fazer psicológico na escola que, segundo ressalta, não percebia que “o que parece natural é social e o que parece a-histórico é histórico” (PATTO, 1997, p. 464). A crítica apresentada à comunidade científica por Patto (1997) influencia leituras e críticas mais contemporâneas, como as elaboradas por Meira (2003, 2012), Guzzo (2011), Facci e Eidt (2011), entre outros(as). Na esteira desse debate, Meira (2003) defende a necessidade de uma concepção crítica que oriente o trabalho dos psicólogos educacionais e que traduza a compreensão de que “a relação entre o homem e a sociedade é de mediação recíproca, o que significa que os fenômenos psicológicos só podem ser devidamente compreendidos em seu caráter fundamentalmente histórico e social” (MEIRA, 2003, p. 19). Essa autora, fundamentada em parte nas críticas realizadas por Patto e nas proposições marxistas, compreende o homem como um ser essencialmente social, constituído nas e pelas condições e interações sociais. Articulada ao âmbito educacional, Meira (2003, 2012) defende a escola como instituição socializadora das formas mais desenvolvidas do conhecimento humano e o psicólogo como mediador, comprometido ética e politicamente com as necessidades sociais. Cabe a ele refletir sobre seu papel dentro da escola, entendendo a educação como uma atividade que tem como meta a transformação social. Arocho (2010) afirma que há um consenso entre os pesquisadores que adotam essa perspectiva crítica em relação à ideia de que a realidade e o conhecimento dela são construídos socialmente e que a educação é uma condição necessária para o desenvolvimento tipicamente humano. Essa interface entre psicologia e educação vem sendo construída gradativamente, a partir de questionamentos sobre a naturalização do desenvolvimento e 670 sobre a descontextualização e fragmentação do indivíduo (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2009). Corroborando essa afirmação, MarinhoAraújo (2010) defende que a relação entre a psicologia e a educação (...) vem se estreitando, com teorias, pesquisas e formas de intervenção profissional que influenciam as duas áreas. Os diálogos e debates têm avançado por meio de novos paradigmas e prismas, que direcionam e redefinem formas mais dialéticas para a compreensão do desenvolvimento psicológico humano e da construção do conhecimento, quando ocorrem nos espaços educacionais. (p. 20). Contudo, Marinho-Araújo (2010) afirma que vários desafios ainda se colocam, atualmente, diante da consolidação do perfil profissional do psicólogo atuante nos meios educacionais. Como outros autores (MALUF, 2010; CRUCES, 2009; GUZZO; MEZZALIRA, 2011; GUZZO; MEZZALIRA; MOREIRA; TIZZEI; SILVA NETO, 2010; MARINHO-ARAÚJO, 2010; MARTINEZ, 2010; MEDEIROS; BRAZ AQUINO, 2011), questiona-se de que forma a psicologia escolar e educacional tem comparecido nessa discussão e se as atividades do psicólogo nos meios educacionais têm se pautado por uma orientação crítica, de base histórico-cultural. Diante do exposto, o presente estudo buscou mapear produções que tivessem como foco a psicologia escolar e educacional abordada de forma crítica, influenciada pelo modelo histórico-cultural de Vygotsky, entendido enquanto uma das abordagens críticas dessa área. Isso porque esse modelo tem fundamentado, com frequência, pesquisas da área educacional que exploram as articulações entre a educação escolar e as interações sociais mais amplas (MEIRA, 2003, 2012; FACCI; EIDT, 2011; OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2009). Nesses estudos, a relação entre essa teoria e o contexto educacional dá-se pelas possibilidades de leitura da realidade educacional, utilizando Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da... conceitos como interação social, cultura, escola, enquanto um campo de relações e de transmissão dos conhecimentos historicamente construídos, mediação, e o papel da atividade coletiva no desenvolvimento humano (MEIRA, 2012). Diante disso, monitorar a produção científica pode funcionar como um crivo que indique a qualidade e os rumos tomados pela produção do saber. Ter conhecimento dessas produções contribui para a identificação dos temas que estão sendo discutidos, dos avanços e das lacunas que ainda precisam ser investigadas, com vistas a fundamentar práticas nos contextos educacionais e a promover avanços na área (OLIVEIRA; CANTALICE; JOLY; SANTOS, 2006; SOUZA FILHO; BELO; GOUVEIA, 2006). Desse modo, faz-se necessária a elaboração de trabalhos que organizem o corpo de conhecimento científico produzido, tendo em vista que seus resultados serão úteis para pesquisas futuras e para a elaboração de propostas de intervenção em diversos campos de atuação (OLIVEIRA; SANTOS; NORONHA; BORUCHOVITCH; CUNHA; BARDAGI; DOMINGUES, 2007; COSMO; URT, 2009). Agências de fomento à pesquisa, em diversos países, têm investido na realização de avaliações da produção, com destaque para aquelas publicações em periódicos científicos reconhecidos e conceituados. No cenário nacional, entretanto, ainda há uma carência nesse campo que conceitua e caracteriza a publicação psicológica nacional (OLIVEIRA; CANTALICE; JOLY; SANTOS, 2006). Consoante a essa ideia, Witter (2008) indica que as investigações que visam a avaliar outras pesquisas não são comuns no Brasil, mas começam a ser desenvolvidas. A autora destaca a importância dessas produções ao fomentar subsídios para a produção do conhecimento, definição de políticas de pesquisa e pós-graduação. Com o objetivo de contribuir para que as investigações científicas assumam uma postura mais rigorosa e informativa e possam oferecer uma melhor base para os programas Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. educativos e as políticas decisórias, Bariani, Buin, Barros e Escher (2004) realizaram uma análise dos objetivos, métodos e enfoques utilizados em pesquisas. Revisaram aquelas realizadas nos cinco anos anteriores ao trabalho e que relatassem estudos sobre a psicologia escolar e educacional no ensino superior. A partir dessa revisão, as autoras concluíram que: a maioria dos objetivos que se propuseram os documentos refere-se ao conhecimento do perfil de estudantes universitários; predominaram estudos de caráter descritivo; quanto aos instrumentos de coleta de dados, prevaleceu a utilização de instrumento único, composto por material impresso; o procedimento de análise mais utilizado foi o quantitativo; os informantes foram principalmente estudantes universitários; e os trabalhos analisados foram desenvolvidos tendo uma sólida base teórica. Cosmo e Urt (2009), reconhecendo a importância da análise da produção científica, realizaram uma pesquisa que visou a identificar a presença do conhecimento psicológico nas produções científicas sobre a escola. Nessa mesma vertente, Oliveira e colaboradores (2007) pesquisaram acerca da produção científica sobre avaliação psicológica no contexto escolar. Considerando as colocações acima, evidencia-se a importância de pesquisas que analisem a produção bibliográfica que vem sendo construída nessa área do conhecimento. Pontua-se que ainda há muito para ser conquistado nessa esfera, com o intuito de aproximar teoria e prática. Em termos históricos, o crescimento da área escolar e educacional na psicologia não ocorreu de forma paralela à criação de elementos teóricos e metodológicos que fundamentem e consolidem práticas transformadoras e emancipatórias. Diversas críticas são tecidas buscando mostrar que a área educacional tem ações limitadas, por vezes fundamentadas na patologização dos problemas escolares, com uma visão adaptacionista e que culpabiliza o aluno; ao invés de contribuir para a construção de uma educação democrática, o que, de fato, é o seu papel. Compete à 671 psicologia escolar e educacional contribuir para que a escola realize satisfatoriamente seu papel de socialização do saber, de favorecimento de processos de humanização e de promoção do pensamento crítico (MEIRA; ANTUNES, 2003). Para colaborar com essa construção, este trabalho visa a mapear as produções no âmbito da psicologia escolar e educacional e, mais especificamente, nos estudos que apresentem uma perspectiva crítica nessa área, tendo em vista, como afirmam Meira e Antunes (2003), que esse pensamento crítico pode contribuir para “a adoção de um compromisso social com a cidadania” (p. 11). Além disso, apesar desse movimento crítico ter surgido na década de 1980, com os estudos Patto, muito ainda precisa ser feito para que seus pressupostos se concretizem e, nesse sentido, a produção científica sobre esse tema é um elemento essencial para a elaboração de novas práticas. Dessa forma, explicitam-se: quais têm sido os principais temas abordados nas pesquisas; os referenciais teóricos adotados pelos pesquisadores; os tipos de pesquisas realizadas; os participantes e os resultados encontrados nos artigos da revista Psicologia Escolar e Educacional. Entende-se como crítica, em concordância com Meira (2003), uma concepção ou teoria que “(...) apreende a totalidade do concreto em suas múltiplas determinações e compreende a sociedade como um movimento de vir-a-ser” (p. 17). Baseada nesse conceito, a autora recorre a concepções críticas de educação e psicologia como uma possibilidade de fundamentação mais consistente para a psicologia escolar e educacional. Sousa e Silva (2009) afirmam que um dos principais critérios para a definição de um trabalho crítico na área em foco é a explicitação de compromisso com a psicologia escolar e a educação, no que diz respeito especialmente aos pressupostos teóricos e a sua relação com a prática. Souza e Checchia (2003) também apontam alguns elementos imprescindíveis para a formação e a atuação baseada na perspectiva crítica, tais como a ruptura epistemológica 672 relativa à visão adaptativa que, por vezes, fundamenta algumas práticas psicológicas. Diante disso, a reflexão crítica se constitui como necessária a toda a sociedade e primordialmente àqueles que atuam no âmbito educacional. Pensar a psicologia educacional em uma perspectiva crítica significa analisar a atuação, as concepções e práticas dos psicólogos nessa área, valorizar o contexto social em que o sujeito está inserido e considerar a realidade vivida pelo sujeito para poder compreender sua realidade educacional (MEIRA, 2003; FACCI; EIDT, 2011). Para alcançar os objetivos propostos, a presente pesquisa analisou, particularmente, os artigos científicos publicados na revista Psicologia Escolar e Educacional, no período de 2007 a 2011. Considerou-se relevante iniciar o levantamento a partir desse período, tendo em vista que, no ano de 2004, foi elaborado o Parecer no CNE/CES 0062/2004, e este originou a Resolução CNE/CES nº 8 de 7 de maio 2004, que instituiu as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de psicologia no Brasil (BRASIL, 2004). Tais diretrizes estabelecem a construção de princípios e fundamentos norteadores da formação do psicólogo, forjadas a partir de um amplo debate entre os profissionais da área. O processo histórico de elaboração dessas diretrizes e os posicionamentos e desdobramentos em relação a esse documento têm sido alvo de debates e publicações de diversos autores na área educacional (GUZZO; MEZZALIRA, 2011; MALUF, 2010; CRUCES, 2009). Tal documento guarda a expectativa de possibilitar uma formação abrangente, que desenvolva habilidades e competências que respondam às demandas dos diversos contextos de atuação desse profissional. Nesse sentido, evidencia-se que (…) a Psicologia Escolar poderá beneficiar-se quanto à ampliação das concepções acerca da formação desejada para uma atuação competente e coadunada às demandas atuais, pois o momento histórico contemporâneo está propício às mudanças Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da... que já vêm ocorrendo na área. (MARINHOARAÚJO, 2010, p. 26) A revista semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) foi escolhida por ser o periódico científico de uma associação de abrangência nacional da área da psicologia educacional, que busca propagar o conhecimento de práticas e pesquisas originais e atuais nesse campo. Seu propósito é a publicação de manuscritos referentes à atuação, formação e história da psicologia no âmbito educacional, textos de reflexão crítica e relatos de pesquisas. Vale destacar que outras publicações também apresentam trabalhos na perspectiva escolar crítica. No entanto, esse periódico foi escolhido por ser específico da área da psicologia escolar e educacional e por sua representatividade nas produções desse campo. que realizaram os levantamentos de forma independente, preenchendo a ficha de análise, a qual foi desenvolvida a partir do modelo original de Bariani e colaboradoras (2004) e adaptada de acordo com os fins aqui propostos. Posteriormente, os resultados encontrados foram discutidos em reuniões com o grupo de pesquisadoras, garantindo-se consenso entre as juízas. Por fim, foi realizada uma análise, em termos quantitativos e qualitativos, dos artigos que contemplavam o critério preestabelecido. Ressalta-se que o critério utilizado foi que os artigos apresentassem discussões críticas sobre a atuação e/ou formação do psicólogo escolar, pautadas essencialmente na psicologia histórico-cultural, entendida como uma das abordagens críticas da psicologia que propõe uma ruptura com o modelo clínico de atuação. Os resultados foram organizados e serão apresentados e discutidos, atendendo os objetivos deste trabalho. Método Resultados e discussão Como se disse antes, inicialmente, foram escolhidas para a análise as publicações de Psicologia Escolar e Educacional, revista da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Em seguida, realizou-se uma busca bibliográfica das versões on-line disponíveis na página desse periódico, cobrindo o período 2007-2011. Analisaram-se apenas as edições regulares da revista, excluindo-se assim uma edição especial do ano de 2007 e o número dois do volume 12 (2008), que, na época da coleta de dados, não estava acessível na rede.1 Cada exemplar da revista apresentava quatro modalidades de publicações: artigos; resenhas; histórias; e, por fim, sugestões práticas. Tendo em vista as necessidades desta pesquisa, optou-se por analisar apenas os materiais que se encontravam na modalidade artigo. Cada artigo foi lido na íntegra por duas das pesquisadoras, 1 - Atualmente, a edição especial (2007) e o número dois do volume 12 (2008) podem ser localizadas nos respectivos endereços: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1413855720080002&lng=pt&nrm=iso e http://abrapee.psc.br/Especial.pdf Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. Ao todo, foram analisados nove números da revista Psicologia Escolar e Educacional, contabilizando o total de 134 artigos. Dentre todos os artigos, 17 (12,69%) foram classificados no critério estabelecido inicialmente de psicologia escolar e educacional numa perspectiva crítica, ou seja, apresentam uma discussão que rompe com a lógica patologizante dos problemas educacionais e propõe uma prática emancipatória, tendo o psicólogo como agente dessa mudança. Nesses artigos, foram feitas análises mais minuciosas, considerando os seguintes critérios: data de publicação; autoria e filiação institucional; objeto de estudo; enfoques teórico e metodológico; e conclusões dos estudos. Data da publicação A análise dos artigos indicou que, apesar da pesquisa abranger os anos de 2007 a 2011, a perspectiva crítica esteve mais presente 673 nos documentos de 2010 e 2011, tendo maior concentração (cinco artigos) no primeiro número publicado no ano de 2011. Esses dados sugerem o crescimento de discussões críticas nas produções desse periódico ao longo dos anos. Essa tendência pode ser constatada também nas formas de atuação dos psicólogos e na reestruturação das grades curriculares dos cursos de psicologia das universidades brasileiras. Mesmo sendo uma discussão que remete à década de 1980, as transformações ainda estão ocorrendo lentamente. Todavia, estão evoluindo e conquistando gradativamente mais espaço para debates e atuações (MEIRA, 2003, 2012; SOUZA; CHECCHIA, 2003), embora as mudanças em torno dessa questão ainda se mostrem, na prática, pouco perceptíveis. Outro aspecto que pode estar associado ao aumento da produção em uma perspectiva crítica a partir de 2010 é o conjunto de mudanças na política editorial da revista Psicologia Escolar e Educacional que foi implantado no segundo semestre de 2009 e aprimorado nos anos seguintes. Nesse período, o referido periódico teve seu pedido de inserção no SCIELO atendido e, em decorrência disso, artigos teóricos começaram a ser aceitos. Fez-se necessário, então, acurar cada vez mais todos os procedimentos editoriais e de avaliação dos manuscritos para atender aos critérios de excelência dessa base de dados. vinculados a universidades da região sudeste (São Paulo e Minas Gerais); em 17,65% dos artigos, os autores eram vinculados a universidades do Distrito Federal; 11,76% eram de Rondônia, único estado da região norte que apareceu nessas publicações; e apenas em um artigo (5,88%), os autores eram exclusivamente da região nordeste. Dois artigos tinham autores que eram vinculados a instituições de estados diferentes, sendo o primeiro escrito por uma autora do Maranhão (nordeste) e outra do Distrito Federal (DF), e o segundo por autoras de Rondônia e de São Paulo (norte e sudeste). Nota-se, através dos vínculos empregatícios declarados, um engajamento dos autores com a vida acadêmica e com a área de conhecimento em questão. Diante desses dados, observou-se que essas pesquisas estão mais concentradas nas regiões sul e sudeste do país, o que corrobora a ideia de um predomínio histórico dessas regiões como mais desenvolvidas no âmbito da ciência e da produção de conhecimento. Esses resultados são congruentes com outros encontrados em trabalhos que analisaram a produção na área da psicologia escolar e educacional, como o de Oliveira e colaboradores (2006), por exemplo. Isso também se justifica pela maior concentração dos cursos de psicologia do país, tanto de graduação como de pós-graduação, nessas localidades. Abordagem teórica Autoria e filiação institucional Entre os 17 artigos classificados, constatou-se que a maioria (94,12%) possui autoria coletiva. Desse total, apenas dois artigos (11,76%) apresentam co-autores do sexo masculino, o que reafirma a tradição da psicologia escolar como uma área de conhecimento de domínio predominantemente feminino (OLIVEIRA et al, 2006). Em 29,41% dos artigos, todos os autores, na época da publicação, tinham vínculos com universidades da região sul (Paraná e Santa Catarina); 23,53% tinham seus autores 674 No tocante à fundamentação teórica, utilizou-se como critério para a análise dos artigos que eles apresentassem uma discussão crítica pautada no uso da teoria históricocultural, entendendo ser essa uma das principais abordagens que subsidiam leituras críticas no campo da psicologia escolar. Desse modo, todos os artigos classificados destacam a importância dessa teoria, por considerar os aspectos sociais, culturais e relacionais existentes na instituição escolar. Nessa teoria, o ser humano é entendido como formado a partir das relações sociais, e tanto a escola quanto os Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da... processos educacionais de maneira geral têm destaque especial (ALMEIDA; ALVES; NEVES; SILVA; PEDROZA, 2007; TONDIN; DEDONATTI; BONAMIGO, 2010; WANDERER; PEDROZA, 2010; BRAY; LEONARDO, 2011; LESSA; FACCI, 2011;). Os autores do presente estudo, pautados nessa concepção, defendem que os agentes escolares têm a possibilidade de romper com o paradigma tradicional que culpabiliza o aluno pelo fracasso e queixas escolares, e repensar suas práticas. Os estudos aqui analisados consideram o sujeito como ser social e, portanto, inserido em um contexto que o influencia e é influenciado por ele. Esses dados corroboram os argumentos de Ovejero (1993, 1996), quando aponta a abordagem histórico-cultural de base vygotskiana como uma das mais coerentes para analisar a interface psicologia social e educação. Os proponentes deste estudo concordam com os autores que defendem que essa teoria ajuda a compreender a importância de vários processos na dinâmica escolar que afetam o desenvolvimento das crianças. A teoria histórico-cultural auxilia o processo de reflexão crítica sobre a realidade escolar e fundamenta o compromisso necessário à atuação nesse âmbito. (CARVALHO; MARINHO–ARAÚJO, 2009; SANT’ANA; EUZÉBIOS FILHO; LACERDA JUNIOR; GUZZO, 2009). Foi destaque nesses trabalhos o uso dos principais teóricos da corrente históricocultural: Vygotsky, Leontiev e Luria. Novas contribuições da literatura atual na área, autores como Patto, Marinho-Araújo, Guzzo, Almeida, Meira, entre outros, também foram citados por estabelecerem uma produtiva articulação crítica entre os conceitos da teoria histórico-cultural e o contexto vigente no sistema escolar brasileiro, considerando aspectos éticos, sociais, políticos e institucionais (LONGAREZI; ALVES, 2009; BRASILEIRO; SOUZA, 2010; SCHLINDWEIN, 2010; SOARES; MARINHO-ARAÚJO, 2010; FONTES; LIMA, 2011; PIOTTO; ALVES, 2011). Dessa forma, todos os artigos defendem que a escola e, consequentemente, todos Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. os agentes escolares, devem assumir um compromisso com a transformação, indo além da transmissão de conhecimentos científicos, devendo, para isso, priorizar uma formação voltada para a cidadania, através da educação e da reflexão crítica. (BRAY; LEONARDO, 2011). Tipos de pesquisa e participantes Entre os 17 artigos analisados, 13 expõem estudos de campo, os quais apresentam como sujeitos das pesquisas: psicólogos escolares (FACCI; TESSARO; LEAL; SILVA; ROMA, 2007; LONGAREZI; ALVES, 2009; WANDERER; PEDROZA, 2010; TADA; SÁPIA; LIMA, 2010; GASPAR; COSTA, 2011; LESSA; FACCI, 2011; SOUZA; RIBEIRO; SILVA, 2011); estudantes do ensino fundamental, médio e/ou superior (SANT’ANA; EUZÉBIOS FILHO; LACERDA JUNIOR; GUZZO, 2009; FONTES; LIMA, 2011; PIOTTO; ALVES, 2011); grupos de professores (ALMEIDA; ALVES; NEVES; SILVA; PEDROZA, 2007; BRAY; LEONARDO, 2011); e secretários municipais de educação (TONDIN; DEDONATTI; BONAMIGO, 2010). Os outros quatro artigos são revisões bibliográficas (BRASILEIRO; SOUZA, 2010; CARVALHO; MARINHO-ARAÚJO, 2009; SCHLINDWEIN, 2010; SOARES; MARINHOARAÚJO, 2010), e discutem a formação de docentes e de psicólogos no Brasil, bem como as concepções da psicologia escolar crítica. Conclusões dos estudos Todos os estudos tratam de importantes aspectos da psicologia escolar e educacional. A partir de fundamentações elaboradas com base nos pressupostos histórico-culturais, rigor metodológico e procedimentos de análises, chegam a conclusões que podem contribuir para a reflexão sobre as práticas nessa área e subsidiar novas atuações de caráter crítico e emancipatório. Almeida, Alves, Neves, Silva e Pedroza (2007) analisam a visão de professores do 675 ensino médio sobre a influência da psicologia em sua atuação. Elas defendem a relação entre pedagogia e psicologia, considerando ambas importantes. Veem a formação do professor a partir de uma perspectiva “inovadora”, na qual ele reflete sobre sua atuação e interação com os alunos. Longarezi e Alves (2009) abordaram a questão da formação continuada de professores, considerando a contribuição da psicologia escolar para a construção de um cenário social mais crítico e comprometido com políticas efetivas. Esse trabalho concentrou-se na elaboração, no desenvolvimento e na avaliação coletiva de um projeto pedagógico na escola. Nesse sentido, em ambos os trabalhos, percebe-se que a psicologia pode contribuir significativamente para a mudança nos cenários educacionais. Tendo em vista que a atuação do psicólogo na escola pode colaborar para a formação continuada do professor, ela pode ajudar o desenvolvimento profissional e pessoal desse profissional, além de chamar a atenção dele para uma postura mais crítica e prático-reflexiva sobre seu próprio trabalho. Essas considerações justificam a classificação desses artigos nos critérios estabelecidos, por se considerar, tal como as autoras, que alguns conteúdos de psicologia são importantes não apenas para os psicólogos, mas também para os demais agentes educacionais, em especial, o professor, já que todos devem estar envolvidos na construção da cidadania. Ainda sobre esse tema, Soares e Marinho-Araújo (2010) destacam a importância da mediação do psicólogo escolar para o desenvolvimento de competências dos educadores sociais. Elas abordam criticamente o modelo tradicional de atuação clínica dos psicólogos escolares, destacando a importância de intervenções com foco nas relações entre os agentes escolares, principalmente o apoio ao processo de ensino e aprendizagem. Dessa forma, os psicólogos escolares devem potencializar uma atuação que contribua para a otimização das relações sociais institucionais. Schlindwein (2010), por sua vez, discutiu a relação entre teoria e prática no campo da 676 psicologia da educação e suas implicações para a formação de educadores, através da revisão dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), especialmente no Grupo de Trabalho Psicologia da Educação (GT20), no período entre 1998 e 2009. Esse artigo também mostra que é preciso trazer as contribuições da psicologia para uma visão mais ampla, que permita compreender a escola e seus atores em todas as suas dimensões. Nessa mesma linha de discussão, Wanderer e Pedroza (2010) tratam do psicólogo enquanto agente transformador e crítico que pode questionar relações de hierarquização, bem como trabalhar com os agentes escolares sobre as concepções históricas acerca da identidade da escola e as mudanças possíveis a partir da ação coletiva da comunidade. Para que isso se concretize, faz-se necessário romper com uma prática adaptativa que usa rotulações e implementar um modelo de formação de indivíduos crítica e politicamente conscientes. Tondin, Dedonatti e Bonamigo (2010), buscando entender os elementos inovadores e pertinentes às discussões atuais na área de psicologia escolar e educacional, discutiram as concepções de psicologia escolar presentes em projetos de lei. Nesse artigo, conclui-se que a legislação abrange uma variedade de concepções teóricas e essas repercutem diretamente nas ações e nos resultados dos trabalhos dos psicólogos, divergindo de acordo com a atuação crítica de cada profissional e o contexto no qual ele está inserido. Partindo das concepções vigentes de psicologia escolar e educacional, alguns artigos apresentaram temas relativos à formação e ao cenário atual de alguns contextos específicos. Brasileiro e Souza (2010) analisaram a formação de psicólogos diante das novas diretrizes de 2004 (BRASIL, 2004), no que se refere aos processos educativos na Amazônia. Eles ressaltam alguns avanços em uma perspectiva emancipatória, com pensamentos e ações questionadoras, perspectiva essa capaz de formar profissionais Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da... críticos, preocupados e conectados com as transformações na área educacional. A pesquisa realizada por Carvalho e Marinho-Araújo (2009) trata da realidade da psicologia escolar no Maranhão. Por meio de um estudo bibliográfico sobre o tema, são levantadas reflexões sobre o histórico e as tendências atuais no âmbito da formação e atuação do psicólogo escolar nesse estado. As autoras mostram que, apesar das dificuldades de atuação nessa área, as possibilidades de mudanças e novas configurações estão crescendo e contribuindo para uma educação mais democrática. A rede pública de ensino de Rondônia foi estudada por Tada, Sápia e Lima (2010), que mostram que a inserção do psicólogo nesse âmbito é recente e que a maioria deles atua de forma clínica nas escolas, por exemplo, realizando atendimentos individuais por tempo prolongado. Os autores criticam esse tipo de formação e atuação e sugerem uma prática pautada na teoria histórico-cultural. Souza, Ribeiro e Silva (2011) investigaram a prática do psicólogo escolar na rede particular de ensino da cidade de Uberlândia (MG). Os resultados constataram que a inserção desse profissional no âmbito educacional privado reflete questões históricas da construção da psicologia escolar no Brasil. A atuação dos psicólogos, nesse contexto, também é pautada por visões tradicionais, resultantes de uma formação desarticulada dos avanços nessa área de conhecimento. Outros temas pertinentes são apresentados nas publicações analisadas e levam à reflexão crítica sobre as possíveis formas de atuação do psicólogo. As concepções e práticas do psicólogo escolar sobre a afetividade na relação professor-aluno foram estudadas por Gaspar e Costa (2011). Esse estudo enfoca os aspectos preventivo, criativo e interdisciplinar que a atuação do psicólogo no âmbito escolar exige. Cabe ao profissional da área trabalhar com processos afetivos que envolvem os agentes escolares, possibilitando o desenvolvimento desses sujeitos. Para alcançar esse objetivo, é Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. preciso romper com paradigmas tradicionais e ampliar a visão das possibilidades de atuação. Facci, Tessaro, Leal, Silva e Roma (2007), Piotto e Alves (2011), Lessa e Facci (2011) e Bray e Leonardo (2011) realizaram estudos sobre o fracasso e/ou as queixas escolares, tendo por base a teoria histórico-cultural e produções recentes da psicologia escolar e educacional. Apesar das diferenças existentes entre os contextos e os participantes dessas quatro pesquisas, os autores chegaram a algumas conclusões comuns. Eles defendem que a escola representa uma influente instituição na formação do sujeito e que os agentes escolares devem estar aptos para educar para a cidadania. Essa literatura trata o fracasso escolar de forma mais ampla e considera os diversos agentes escolares, o que possibilita uma prática pautada em questões mais abrangentes e críticas. Assim, faz-se necessário romper com uma visão tradicional, que afirma que o fracasso e/ou as queixas escolares estão diretamente relacionadas apenas aos alunos. A escola também tem um papel importante na produção do fracasso escolar e diversos aspectos da instituição precisam ser analisados e repensados. Alguns autores procuram entender o papel do psicólogo escolar e a realidade da escola a partir da concepção dos alunos. Sant’Ana, Euzébios Filho, Lacerda Junior e Guzzo (2009), ao realizarem um estudo com estudantes do ensino fundamental, concluíram que, de maneira geral, diversas limitações foram encontradas na compreensão do papel do psicólogo no ambiente escolar. Diante disso, as autoras fazem uma crítica à visão predominante, a do modelo clínico de intervenção. Elas destacam o surgimento de atuações de caráter preventivo e comunitário e afirmam que isso precisa se consolidar na prática escolar. Fontes e Lima (2011) realizaram uma pesquisa com alunos do ensino médio da rede pública estadual de Porto Velho (RO) sobre a escola e o processo de aprendizagem. Os resultados evidenciam uma escola que tem como foco apenas a transmissão do conteúdo, 677 realizada por meio de aulas expositivas e descontextualizadas das necessidades dos alunos. A psicologia escolar e educacional numa visão crítica, como apresentada pelas autoras, enfatiza a importância de se compreender o ponto de vista de todos os atores escolares sobre o cotidiano escolar, em suas várias facetas. Considera-se que, a partir da formação contínua e adequada, os psicólogos encontram fundamentos reais para sustentar seus planejamentos e novas formas de atuação, preocupados com a dinâmica da instituição e com as concepções de todos os agentes envolvidos no processo educacional. Considerações finais Esta pesquisa propôs mapear as publicações de Psicologia Escolar e Educacional, revista da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), no período de 2007 a 2011, com foco nos estudos que apresentassem discussões críticas sobre a psicologia escolar educacional, pautadas na psicologia histórico-cultural, compreendida aqui como uma das abordagens críticas da psicologia, que propõe uma ruptura com o modelo clínico de atuação. Inicialmente, pode-se observar que, quando se pretende realizar uma análise da produção científica em uma determinada área da psicologia, diversos aspectos devem ser considerados. Dentre eles, cabe destacar o acesso aos materiais a ser analisados. Por vezes, as bibliotecas institucionais não os disponibilizam, o que revela a importância das bases de dados on-line, tal como aquela utilizada nesta pesquisa, para o avanço da produção do conhecimento científico. No que se refere especificamente à análise dos artigos, constatou-se que muitos apresentam questionamentos sobre e críticas ao sistema educacional em diferentes esferas. Todavia, foram analisados exclusivamente os trabalhos que discutiam a atuação do psicólogo escolar e educacional na perspectiva crítica, e concluiu-se que a quantidade de 678 material classificado no critério estabelecido inicialmente de perspectiva crítica foi baixa em relação ao número total analisado. Porém, pode-se perceber, nos artigos que apresentaram tal perspectiva, um sólido embasamento na perspectiva histórico-cultural. Ratificando essa ideia, Arocho (2009) explicita que os pressupostos histórico-culturais, especialmente as contribuições de Vygotsky, Luria e Leontiev, configuram novos entendimentos sobre a realidade, o conhecimento e o sujeito, sendo ponto de partida para a articulação entre a psicologia social e a psicologia escolar e educacional numa perspectiva crítica e psicossocial. A teoria histórico-cultural destaca que a atividade psíquica superior tem origem social e suas formas de expressão resultam das condições históricas e culturais de sua produção. Dessa forma, os processos de ensino-aprendizagem que ocorrem em contextos sociais, tais como a escola, viabilizam a apropriação das ferramentas culturais e promovem a formação de consciência e a constituição de subjetividade (VYGOTSKY, 2007; AROCHO, 2009; OLIVEIRA; MARINHOARAÚJO, 2009; OVEJERO, 1996). Os autores desse estudo consideram que a teoria histórico-cultural, enquanto uma perspectiva da psicologia escolar e educacional crítica, fornece ferramentas teóricas e metodológicas que permitem ao psicólogo, em seu contexto de trabalho, atuar junto às demandas concretas, na perspectiva de adotar ações que expressem compromisso social com uma escola mais igualitária, mais justa e que, de fato, atende a sua função social. Defendem ainda que essa abordagem crítica fundamenta reflexões sobre práticas mais condizentes com a realidade social na qual cada profissional está inserido, na tentativa de promover mudanças que ajudem a traçar um caminho para uma atuação democrática e emancipatória. Nesse sentido, a revisão desses trabalhos configura-se como importante por ser mais um instrumento de fundamentação e de questionamento, tanto na formação acadêmica (graduação e pós-graduação) de Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da... alunos de psicologia e de áreas afins, quanto na formação continuada de profissionais já inseridos no campo de trabalho. Acrescenta-se que, na trajetória de construção e consolidação na área, foram apresentadas fortes críticas e reivindicações, entre os próprios pesquisadores desse campo, sobre a necessidade de uma reestruturação dos pressupostos teórico-metodológicos que orientavam a formação (inicial e continuada) e a prática do psicólogo nos meios educacionais (PATTO, 1997; MEIRA, 2003; GUZZO; MEZZALIRA; MOREIRA; TIZZEI; SILVA NETO, 2010; MALUF, 2010; NOVAES, 2010; GUZZO, 2011). Foi dessa inquietação que começou a ser observado o resgate da teoria históricocultural, pela alegação de que o indivíduo não pode ser explicado subtraindo-lhe a dimensão sociocultural e histórica e que a escola, enquanto célula social, expressa as contradições e movimentos do sistema político e educacional. Por fim, considera-se importante mencionar que o levantamento aqui apresentado não permite capturar o movimento de efervescência e inquietação dos pesquisadores da área educacional, dentre outros aspectos, por ser a escola uma arena complexa, contraditória, que sofre a interferência necessária e profícua do plano sócio-histórico e político que a demarca. Assim, espera-se que a presente pesquisa possa contribuir para reflexões acerca do significado que tem revelar o que já foi pensado, produzido e sentido sobre uma determinada área do conhecimento, podendo, dessa forma, não só apontar caminhos percorridos, mas também sinalizar novas possibilidades de atuação, que respondam às demandas atuais do campo educativo. E, ainda, integrar um conjunto de estudos acerca do fenômeno em foco, identificando temas que carecem de evidências, auxiliando, de modo geral, na orientação de pesquisas futuras que possam continuar contribuindo com a produção do conhecimento. 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Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SPI Marcos Cezar de FreitasII Resumo I- Este artigo se baseia no projeto de pesquisa denominado “A criança pobre na economia das trocas incompletas: as formas sociais do tempo escolar nos velhos e novos urbanismos”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) II- Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: [email protected] Este artigo analisa como o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE-SP) abordou os temas desempenho e adaptação da criança pobre à escola. O foco incide sobre os anos 1956-1963 e dedica especial atenção às manifestações de Dante Moreira Leite e de Luiz Pereira a respeito do assunto. O argumento central é o de que a transformação da cidade de São Paulo em grande metrópole tornou-se o tema articulador com o qual ambos os autores pesquisaram o desempenho e a adaptação de crianças em idade escolar, especialmente aquelas identificadas como suburbanas. Uma nova cultura urbana desafiava a estrutura da escola e, com base no legado de Antonio Candido e de Florestan Fernandes, tais questões foram investigadas com um novo padrão de pesquisa, que se tornou marca do CRPE-SP naquele momento. Esse novo padrão de pesquisa abriu espaço para que novos recursos analíticos fossem mobilizados para o estudo da inteligência da criança em situação escolar. Foram demonstradas as insuficiências dos parâmetros biológicos para a compreensão do fenômeno da reprovação, que tinha números expressivos. Para além de uma nova compreensão antropológica a respeito da interação entre a cultura escolar e os modos de viver das periferias urbanas, o padrão de pesquisa estabelecido enriqueceu o repertório de análises sociológicas sobre a expansão do número de vagas escolares na cidade de São Paulo. Para aquela sociologia da educação que então se renovava, o caráter fortemente excludente da reprovação escolar foi demonstrado de forma magistral. Palavras-chave Crianças pobres — Cultura urbana — Escolarização — Padrão de pesquisa — Intelectuais. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091590 683 Performance and adaptation of poor children to school: the research pattern of CRPE-SP I Marcos Cezar de FreitasII Abstract I- This article is based on a research project called “A criança pobre na economia das trocas incompletas: as formas sociais do tempo escolar nos velhos e novos urbanismos” (The poor child in the incomplete exchange economy: the social forms of school time in the old and new urbanisms), funded by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - National Council for Scientific and Technological Development). II- Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil. Contact: [email protected] III- Translator’s note: In Brazil, the meanings of the words suburbs and suburban are negative. 684 This article examines how Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE-SP – Sao Paulo Regional Center for Educational Research) addressed the issues of performance and adaptation of poor children to school. It focuses on the years 19561963 and devotes special attention to the expressions of Dante Moreira Leite and Luiz Pereira on the subject. The central argument is that the transformation of Sao Paulo city into a great metropolis became the articulating theme with which both authors investigated the performance and adaptation of school-age children, especially those identified as suburbanIII. A new urban culture challenged the school structure and, based on the legacy of Antonio Candido and Florestan Fernandes, such questions were investigated with a new pattern of research, which became the mark of CRPE-SP at that time. This new research pattern paved the way for new analytical resources to be mobilized to study the intelligence of children at school. The shortcomings of biological parameters for understanding the phenomenon of failure and its significant numbers were demonstrated. In addition to a new anthropological understanding about the interaction between the school culture and ways of living of the urban fringes, the research pattern established enriched the repertoire of sociological analyzes of the expansion in the number of school places in Sao Paulo city. For that sociology of education which then renewed, the strongly exclusionary nature of school failure was demonstrated in a masterly manner. Keywords Poor children — Urban culture — Schooling — Research pattern — Intellectuals. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091590 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. Introdução Muito recentemente, Beisieguel (2013) publicou importante depoimento acerca dos primeiros tempos da pesquisa em sociologia da educação na Universidade de São Paulo. Nesse memorial, o autor retoma sua experiência como ex-aluno e depois professor de sociologia da educação na mesma Instituição e acrescenta informações acerca de sua experiência no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, o CRPE-SP1. Num processo de formação de um vocabulário sociológico próprio, menciona a importância do livro Sociologia educacional, de Fernando de Azevedo, mas reconhece nas contribuições de Florestan Fernandes e Antonio Candido os mais densos pontos de partida para a definição do padrão de investigação da sociologia da educação brasileira. Dois ensaios produzidos por Antonio Candido, um publicado como separata do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – A estrutura da escola (1956) – e outro publicado na revista Pesquisa e Planejamento, do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo – “As diferenças entre o campo e a cidade e o seu significado para a educação” (1957) – são exemplos relevantes daquela nova forma de se compreender a escola e a vida escolar. Candido propôs a elaboração de um trato sociológico específico para a realidade escolar, alertando para a complexidade da vida social interna em cada unidade. Esse procedimento, no seu entender, induziria o observador a perceber e a relatar o que cada escola possuía de único em relação às demais (CANDIDO, 1956, p. 1-2). Na opinião de Beisieguel (2013), Luiz Pereira seria o herdeiro exemplar desse legado, tornando-se não somente responsável pela produção de textos seminais que se tornaram clássicos, mas também expressão singular 1- O CRPE-SP foi criado pelo mesmo Decreto n. 38.460 de 28/12/1955 que criou, no Rio de Janeiro, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, CBPE, por iniciativa de Anísio Teixeira. Foi vinculado à Universidade de São Paulo em 22/05/1956. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. da consolidação da excelência implícita ao padrão recebido. Neste artigo, quero concordar com a leitura histórica e com a argumentação central do autor. Busco também acrescentar um nome com a intenção de aproximar a riqueza desse memorial dos estudos a respeito da infância, os quais têm recorrido à história da pesquisa educacional para compreender um pouco de seus próprios rumos (FREITAS; ZANINETTI, 2012). No âmbito dos estudos a respeito da criança e infância no Brasil, tornouse fundamental compreender os contextos nos quais alguns padrões de pesquisa foram definidos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, CRPE-SP, é um capítulo muito relevante nessa história. A argumentação aqui apresentada se baseia em projeto de pesquisa que utilizou a documentação do CRPE-SP e que, por isso, adquiriu familiaridade com o território intelectual percorrido por Beisiegel. Se o autor rememorou a formação de padrões e indicou as fundações da sociologia educacional brasileira, aqui, pretendo indicar algumas repercussões desse padrão adquirido na forma de estudar a aproximação entre escola e crianças pobres. Em minha opinião, se aquelas influências intelectuais indicaram o caminho, o modo de caminhar dos que se deixaram influenciar, por sua vez, sofreu o impacto da especificidade de alguns temas que o CRPE-SP estimulou como centrais para a pesquisa educacional. Nesse sentido, é necessário também lembrar que o CRPE-SP era um desdobramento regional de um projeto de grande envergadura, que era o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), sediado no Rio de Janeiro. No âmbito do CRPE-SP, uma conexão virtuosa se estabelecia, ligando sólidos procedimentos de pesquisa com temas férteis e inovadores. Esse cenário favoreceu a produção de importantes estudos acerca da adaptação da criança à escola e vice-versa. Tal como Beisiegel indica, em Luiz Pereira, de fato, podemos reconhecer a excelência do 685 padrão que se estabelecia, mas, na perspectiva deste artigo, também é necessário acrescentar o nome de Dante Moreira Leite para que seja possível compreender o que de tão excelente aconteceu quando parâmetros inovadores se encontraram com temas ligados ao universo das tensões estabelecidas entre escola e crianças urbanas de periferias. No âmbito dessas tensões, ambos os autores apresentaram questões decisivas para a renovação nos estudos a respeito da inteligência da criança e das situações em que a permeabilidade da escola às crianças de periferia parecia ser bastante reduzida. A importância do tema urbanização naquele contexto No transcorrer do século XX, o Brasil experimentou intenso processo de urbanização. Na década de 1950, a população de camponeses ainda era maior do que a urbana. No campo, tínhamos aproximadamente 33 milhões de pessoas e nas cidades, aproximadamente 19 milhões (DÉAK; SCHIEFFER, 2004, p. 11). Mesmo assim, na metade do século XX, não havia dúvida de que a “estabilidade granítica” do grande país rural, para usar uma expressão de Oliveira Vianna que impressionou Gilberto Freyre, estava se decompondo (FREYRE, 1958). O país se urbanizava e, em alguns casos, como em São Paulo, acelerava-se um processo de agigantamento que resultaria, como sabemos, em um dos exemplos mais significativos de passagem da condição de pequeno burgo, vivida até o século XIX, para a de metrópole, exemplo mundial de concentração urbana com números muito expressivos, que se multiplicaram exponencialmente no transcorrer da segunda metade do século XX. A expansão de vagas escolares esteve no coração dos desafios suscitados na crescente urbanização que tivemos. Quer como tema, quer como problema, a escola demonstrava estar na essência da produção daquilo que 686 Williams denominou de “cultura urbana” (WILLIAMS, 1983; 1995). Mas, para pensarmos como Williams, temos de reconhecer que a escola que disseminamos no transcorrer do século XX não pode ser entendida somente como fato urbano. Trata-se de compreendê-la também, e principalmente, como fator daquilo que se configurou como o urbano entre nós. Somos desafiados a pensar a disseminação da escola no Brasil como um dado de autoria, ou seja, somos chamados a reconhecer que foi também com a escola que fizemos as cidades que fizemos. Escola e cidade revelaram-se componentes de configuração recíproca (FREITAS; BICCAS, 2009). No Brasil republicano, não se entende uma sem abordar a outra. Esse é um dado muito relevante para o que se pretende recuperar neste artigo. Na passagem da década de 1950 para a década de 1960, o agigantamento das cidades e a consequente produção da escola de massas ocuparam lugar de destaque no debate travado por intelectuais que concorriam para influenciar aquilo que, no âmbito do CBPE, do Rio de Janeiro, e do CRPE-SP, tornou-se um singular território de disputa: o perfil da pesquisa educacional. São muitos os registros presentes na documentação remanescente dessas instituições que nos permitem encontrar, nas manifestações de seus protagonistas, representações da escola como problema urbano e representações da cidade como problema escolar (FREITAS, 2001; 2005). Naquele contexto, pesquisar educação era fazer pesquisa social (MENDONÇA; BRANDÃO, 1997). Tanto é assim que o principal impresso de divulgação das atividades do CBPE, a Revista Educação e Ciências Sociais, indicou inúmeras vezes que o sentido da pesquisa educacional só podia ser o de realizar pesquisa social. Tanto no CBPE quanto no CRPE-SP, a pesquisa educacional derivava da pesquisa social e era no bojo dessa derivação que se travavam intensas discussões a respeito do Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa... padrão de investigação a ser consolidado. Essas discussões permeavam a definição da relevância de temas, objetos e incidiam principalmente sobre as perspectivas a adotar. Os debates acerca das perspectivas a adotar marcaram os projetos focados no tema da integração da escola na cidade. Com números crescentes, essa integração tinha na sua complexa diversidade um aspecto a desafiar a estabilidade de temas e métodos. Quando determinado tema se estabilizava na agenda de pesquisa, isso significava que etapas prévias de embate intelectual tinham sido vencidas. Para muitos daqueles intelectuais, o que acrescentava dificuldades interpretativas àquela diversidade era a percepção de que ocorria inevitavelmente a passagem do rural para o urbano. Nesse sentido, para usar um dos jargões do CBPE, a passagem do rural para o urbano fazia com que cada cidade pudesse ser entendida como laboratório de observação cultural. Estava em disputa a produção de sentido sobre o quê e como observar (XAVIER, 2000). Essa situação conferia ao adjetivo suburbano uma condição especial. Cultura suburbana era, naquele contexto, um lugar simbólico onde permaneciam instalados personagens de um tempo que ainda estava para ser dissolvido no encontro com a cidade. As periferias das grandes cidades eram, de certa forma, apreendidas com representações do encontro entre racionalidade urbana e rusticidade rural, estando a segunda condenada a dissolver-se na expansão da primeira. A questão da complexa diversidade do país tornou-se um tema indissociável das preocupações que acompanhavam aqueles intelectuais a respeito do que eles mesmos denominavam “velhos e novos urbanismos” (PEREIRA, 1959). A referência a velhos e novos urbanismos se recriava cada vez que se acentuava a importância de adotar padrões de pesquisa adequados para garantir que realidades urbanas emergentes fossem conhecidas de perto, quando convertidas em objeto de pesquisa. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. O CBPE e o CRPE-SP eram espaços institucionais que estimulavam a presença de pesquisas sociológicas e antropológicas junto aos pesquisadores educacionais. Isso possibilitava verificar a sobrevivência de socializações arcaicas (os chamados velhos urbanismos) e compreender o impacto dissolvente da escola no modo de viver das grandes cidades (os novos urbanismos). Ambos os centros de pesquisa, especializados em educação, procuravam assegurar um padrão de cientificidade baseado principalmente na autoridade descritiva dos estudos de caso. No universo institucional tanto do CBPE quanto do CRPE-SP, o estudo de caso despontava como padrão considerado necessário para que a singularidade da pesquisa educacional pudesse ser reconhecida e afirmada dentro de um cenário em que as disputas intelectuais se intensificavam e ganhavam repercussão nacional. O estudo de caso se firmou como padrão de pesquisa entre aqueles que passaram por ambos os centros e, no bojo dos mesmos acontecimentos, a relação entre cidade e escola foi abordada com diferentes apropriações da palavra adaptação. O objetivo principal deste artigo, portanto, é elucidar como o desempenho e a adaptação de crianças chamadas suburbanas à escola, escola essa que chegava às periferias, foram temas apropriados por Dante Moreira Leite e Luiz Pereira, que atuaram no CRPE-SP. No CRPE-SP, produzia-se uma abordagem que era, simultaneamente, a dimensão regional das pesquisas do Departamento de Pesquisa Educacional e de Pesquisa Social do CBPE do Rio de Janeiro e a dimensão de afirmação de um padrão próprio de pesquisa. A riqueza da documentação preservada2 possibilita registrar alguns aspectos singulares de uma cena que se tornou capítulo indispensável para uma sociologia histórica da adaptação da criança à escola no Brasil. 2- A documentação do CBPE está preservada no Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a do CRPE-SP no Centro de Memória da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. 687 Tensões na difusão da escola O alastramento de escolas pelas metrópoles, expressão típica dos Boletins do CBPE, ensejou a produção de surveys, ensaios e projetos voltados para a experiência de infância em contextos de expansão territorial urbana (HAVIGHURST, 1957, p. 21). Crianças pobres eram personagens novas nos também novos prédios escolares, os quais prenunciavam um tempo em que a educação na forma escolar tornava-se também conquista das bordas, das franjas de cidades que estavam prestes a experimentar intensa explosão demográfica urbana. As histórias do CBPE e do CRPE-SP oferecem um ângulo especial para o estudo da história da educação brasileira, especialmente no que diz respeito ao impacto da presença da criança pobre em meios escolares urbanos. Nas décadas de 1950 e 1960, foi possível identificar certo embate entre os que se valiam de repertórios de avaliação e mensuração da inteligência da criança, utilizando parâmetros considerados válidos desde a década de 1920, e aqueles que afirmavam que, se a escola passava a abranger novos perfis populacionais, seus instrumentos de avaliação deveriam também ser renovados para que não se convertessem em instrumentos de expulsão da criança pobre dos territórios escolares. Foi Antonio Candido quem chamou atenção para a presença de “inteligências rústicas” nas cidades, numa referência ao “choque de mentalidades” que estava em andamento (CANDIDO, 1957). Desde o início, o projeto CBPE mobilizou intelectuais brasileiros e estrangeiros com afinidades metodológicas e temáticas. Mas essas afinidades constantemente se desmanchavam nas situações que exigiam definição do objeto de pesquisa a ser delineado como de interesse comum. Eram afinidades frágeis e vulneráveis às demandas por alinhamento político. Foi nos domínios do CRPE-SP que os estudos urbanos suscitaram uma novidade 688 singular relacionada ao tema escolarização. A irradiação das práticas escolares, no bojo do processo que agigantava o tecido urbano, proporcionava àqueles debates novas apropriações do tema da adaptação da criança à escola. Esse tema já estava presente desde pelo menos o final do século XIX, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Mas a inflexão que o CBPE e o CRPE-SP trouxeram à questão diz respeito à percepção desenvolvida em ambos os lugares de que a “escola estava sendo deslocada” (PEREIRA, 1967) e que, por isso, o próprio tema da adaptação deveria ser pensado à luz dessa expressiva diferença. As salas de aula instaladas em locais periféricos ou interioranos tornaram-se representações de cenários nos quais aqueles intelectuais imaginavam assistir à “diluição do passado” em práticas de racionalização modernizadora (KLINEBERG, 1956; PEREIRA, 1967). Por isso, a discussão acerca da adaptação da criança à escola não era o mesmo em relação às discussões do início do século XX ou da década de 1920, pródiga em reformas educacionais. O tema foi reapropriado e isso proporcionou àqueles intelectuais apostar num objeto de pesquisa permeado pelo interesse em decifrar o modus operandi da escola, vislumbrando-a por dentro, como encarecia Antonio Candido desde 1956. Dessa forma, especialmente em São Paulo, o CRPE-SP converteu cada sala de aula catalogada em seus registros em laboratório de análise social, fazendo, à sua maneira, aquilo que o CBPE fazia com as chamadas cidades laboratório, em sentido mais amplo (XAVIER, 2000). Se, no CBPE, as cidades laboratório eram lugares considerados ainda arcaicos, ainda não tocados pelas dinâmicas representadas como modernas, no CRPE-SP, as salas de aula das escolas públicas eram representadas como locais que ainda conservavam as tensões entre o rural e o urbano (AZANHA, 1959). Essas tensões eram consideradas visíveis e avaliáveis, desde que fosse possível investigar o conjunto de respostas que cada criança Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa... pudesse oferecer aos estímulos escolares que passavam a fazer parte do cotidiano. Os estudos a respeito do corpo e do intelecto da criança, assim mesmo, com a separação entre a conformação corporal e a intelectual, eram tomados como parte do processo de decifração dos efeitos do modo de viver sobre as possibilidades de aprender. Quem manuseia a documentação conservada do CRPE-SP percebe que, em relação a esse tema, o padrão de investigação repercutia a presença de Florestan Fernandes na geografia política e intelectual que demarcava o fato de o centro regional de pesquisa ter sido alocado na Universidade de São Paulo. Florestan foi um dos intelectuais que insistiu para que os estudos a respeito da infância se sobrepusessem aos estudos acerca das crianças e suas dificuldades escolares. Ou seja, de suas intervenções, o CRPE-SP recebia constantes estímulos para que a análise do modo de viver predominasse sobre as análises de desempenho. Sua familiaridade com a questão não se originava em interesses pedagógicos (FERNANDES, 1963). Entre 1942 e 1959, Florestan Fernandes investigou e publicou estudos a respeito de folclore e mudanças sociais na cidade de São Paulo, os quais foram reunidos em livro que se tornou referência no assunto desde o início da década de 1960 (FERNANDES, 1961; 2004). É importante notar o esforço de Florestan Fernandes no sentido de resgatar a importância do folclore para a compreensão sociológica das mudanças sociais que estavam em curso na cidade de São Paulo. A análise que o autor empreendeu acerca da “a cultura de folk, em desagregação, e a cultura civilizada, em emergência e expansão” legou um rico e singular material a respeito da configuração cultural da vida urbana brasileira (FERNANDES, 2004, p.11), especialmente no que toca ao até então pouco estudado nexo entre cultura, infância e cidade. Essa tríade reapareceu fortemente no CRPE-SP pelas mãos de Dante Moreira Leite e de Luiz Pereira. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. O corpo e a inteligência das crianças foram focados com lentes antropológicas e sociológicas, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Naquele contexto, muitas vezes a sociologia, a antropologia e as técnicas etnográficas eram mobilizadas do conjunto de saberes identificado como necessário para o desvendamento dos efeitos da escolarização no corpo e no intelecto da criança. Por isso, reconhecia-se que ampliar a abrangência populacional da escola significava também trazer para o “território da homogeneidade e dos rituais de trabalho simultâneo” (FREITAS, 2011; 2013) crianças cujas particularidades pessoais e sociais desestabilizariam duas premissas básicas da educação na forma escolar: 1) turmas por faixa etária organizadas em 2) séries anuais. A consolidação da escola seriada e sua multiplicação pelo país na primeira metade do século XX foi um processo permeado pela presença de intelectuais que se valeram de aferições, testes e medidas com as quais se detectava a presença maior ou menor dos indícios de anormalidade entre as crianças que chegavam à escola (MONARCHA, 1992; 1997; 2001; 2005; 2008a; 2008b). No CBPE e no CRPE-SP, o período de generalização da escola pública republicana no Brasil foi identificado como uma fase (palavra típica da década de 1950) em que, ao mesmo tempo, se consolidavam modelos e se reagia à chegada da criança à escola em números mais significativos. Essa reação entrou novamente em questão a partir de 1957, com a aceleração na expansão de vagas públicas na cidade de São Paulo. Tratava-se de compreender a incorporação na escola de crianças de locais ermos, periféricos, suburbanos e que, por isso mesmo, punham em risco os fundamentos homogeneizantes da escola seriada. Para utilizar mais uma vez a expressão que Antonio Candido construiu no âmbito do CRPE-SP, pode-se perguntar: qual seria o grau de (in)compatibilidade entre “mentalidades 689 urbanas e rurais” no encontro que, por suposto, a escola inevitavelmente acabaria proporcionando? (CANDIDO, 1957). No Rio de Janeiro, na documentação catalogada junto ao CBPE, percebe-se que investigações acerca das expectativas foram inúmeras vezes organizadas3. Uma das representações mais encontradas acerca do que as cidades tinham a oferecer para além do trabalho assalariado era a descrição do mundo urbano como lugar que oferece “gratuitamente escola do governo” (FREITAS; BICCAS, 2009). Escola e cidade tornavam-se gradualmente referências recíprocas. Percebe-se que algumas décadas após 1930 a escola pública tornou-se uma complexa personagem urbana com quase nenhuma familiaridade com o lastro rural da cultura brasileira. O percurso para tornar o país predominantemente urbano demonstrava ser um caminho sem volta, ainda que, naquele momento, os pesquisadores de ambos os centros tivessem diante de si números diferentes do que temos hoje. O Brasil era ainda, como nos ensinou Lima (1999), um grande sertão. O deslocamento humano sempre provocou perplexidade. O impacto da escolarização sobre esse “povo da raiz” (HUTCHINSON, 1957, p. 37) foi uma questão permanente nos anos mais férteis do CBPE e do CRPE-SP. Mas nesse processo mantivemos em “estado de alerta” (LEITE, 1992) uma espécie de aversão generalizada àqueles que se deslocaram dos muitos sertões para os subúrbios das cidades grandes. Nesses subúrbios, a escola também foi conquistada como direito, mas seu valor sociopolítico foi depreciado. Depois do impacto da escola, os estudos de mobilidade social estão entre os mais expressivos nos Departamentos de Pesquisa Social do CBPE e do CRPE-SP, quantitativa e qualitativamente (FERNANDES, 1963; HAVIGHURSTa, 1957; PEARSE, 1957). 3 - Um exemplo de texto que repercutia a iniciativa sempre presente de estudar expectativas pode ser indicado no ensaio “A antropologia social e o sistema educacional”, que Fred Eggan publicou no número 10 da revista Educação e Ciências Sociais, em 1959, e que era um dos principais instrumentos de divulgação de pesquisas realizadas no CBPE. Outro exemplo pode ser recolhido em Séguin, 1959. 690 A expansão da escola pública movia-se em direção às periferias de forma paradoxal e ambígua. Menciono paradoxo e ambiguidade porque, ao mesmo tempo em que a ampliação do acesso indicava vitórias inerentes à democratização na ocupação dos lugares onde os bens da cultura escolar se dão à partilha, uma série de subordinações sociais restringia o alcance desse ganho político. Essa restrição na qualidade do ganho se deu na medida em que a expansão muitas vezes foi assimilada socialmente como conquista de um direito, mas também foi percebida como aquisição de um serviço precário oferecido às pessoas consideradas muitas vezes indistintamente como pobres que vivem em situações precárias e que, portanto, não têm intelecto, só estômago. O fato é que a expansão na oferta de vagas que estava em marcha desde a década de 1930 não estava conduzindo crianças e jovens para instalações palacianas arquitetadas pelos primeiros republicanos, como se sonhava no início do século XX, mas sim para instalações planejadas para o aluno número, o aluno antes de tudo contabilizado como item orçamentário. Esse processo, na forma como se dava, deixava no passado ainda muito próximo um modelo de professor, um modelo de prédio escolar e certa ordenação presente nos projetos de distribuição da escola nas cidades, sobretudo as de grande porte. Essa situação não passava despercebida a Dante Moreira Leite e a Luiz Pereira e neles repercutiam tanto as lições de Antonio Candido, como também as de Florestan Fernandes. A história da expansão da escola pública no Brasil se fez acompanhar da produção de receituários sobre o que fazer com crianças e adolescentes pobres. Na década de 1950, os conceitos básicos utilizados para enfrentar essa questão eram assimilação e adaptação (LOPES, 1959). Mas, no âmbito do CRPE-SP, o uso do conceito de adaptação predominava sobre o de assimilação. No CBPE, o analfabetismo era indicado como peça fundamental nos diagnósticos que Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa... explicitavam as causas do nosso atraso social. Já no CRPE-SP, ao redor da noção de atraso, giravam representações do anacronismo de nossas estruturas educacionais, que nem bem chegavam às periferias e já eram consideradas incompatíveis com “o tipo humano lá instalado” (LEITE, 1959; PEREIRA, 1959; GOUVEIA, 1957; MOREIRA, 1957). No CBPE, as metáforas alusivas às raízes favoreciam estudos acerca do entorno da escola, com base principalmente nos estudos de comunidade. Já no CRPE-SP, despontavam estudos a respeito da quebra de padrões culturais que filhos escolarizados introduziam no cotidiano das famílias suburbanas, o que favorecia a utilização da categoria racionalização de atitudes (BASTIDE, 1971; LAMBERT, 1973; FREITAS, 2005). No transcorrer do século XX, o tema da homogeneidade (ou da sua falta) firmou-se como questão estratégica nos momentos nos quais os debates a respeito da equalização de oportunidades influenciaram diretrizes para a organização da escola, suas avaliações, sua abertura à circulação de métodos e sua apropriação de estratégias pedagógicas. A planta institucional dos anos 1950 e 1960 não era a mesma que aquela de 1929, o que permitiu a Lourenço Filho elaborar seus Testes para verificação da maturidade para a escrita (1929). Se o objetivo de Lourenço Filho foi o de consolidar critérios para a organização de classes homogêneas, ou seja, para solidificar as fundações da escola seriada no Brasil, no âmbito do CBPE e dos CRPEs, a própria noção de homogeneidade passou a ser posta em questão. Especificamente no CRPE-SP, esse fundamento passou a ser muito relativizado. Quando inicialmente planejada para as regiões centrais das grandes cidades, no amanhecer da República, a escola era representada como força centrípeta necessária para atrair para os seus domínios as crianças que deveriam ser civilizadas nos moldes de uma civilização escolar. A chegada gradual da instituição às periferias das grandes cidades tornou-a Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. muitas vezes refém de plataformas políticas que propunham que a escola pública atuasse como força centrífuga, capaz de conter a rudeza das periferias em seu próprio território (MOREIRA, 1957). Os temas comunidade e subúrbios eram mobilizados para justificar a elaboração de muitos projetos voltados à verificação do impacto da chegada da educação escolar entre aqueles que, via de regra, passaram a ser vistos como pessoas que não estavam preparadas para a rigidez das rotinas escolares. No Rio de Janeiro, a expressão crianças de comunidades tornou-se quase um jargão, um complemento necessário à descrição de alunos de determinados locais das cidades. Os debates relacionados às possíveis adaptações da escola às realidades locais ensejavam aos pesquisadores colocar em dúvida se a escola que chegava às margens, às franjas das cidades era, ainda, a mesma instituição e se era capaz de “surtir os mesmos efeitos” (CBPE, 1955). Em São Paulo, a expressão que se generalizava era crianças de periferia (FERNANDES, 1963). Deve-se lembrar que a própria conceituação de comunidade, subúrbio, e de periferia recebeu a contribuição decisiva do CBPE, pelos estudos específicos de João Roberto Moreira (1957), e do CRPE-SP, pelos estudos também específicos de Luiz Pereira (1959; 1967). Para usar uma linguagem familiar aos pesquisadores do CRPE-SP, parecia-lhes ser possível observar a escola em meio aos chamados sertões internos das grandes cidades, nos seus locais de borda, nos quais o moderno da gramática urbana não se fixara ainda e o arcaico dos resíduos rurais não estava plenamente dissolvido (FREITAS, 2001). Tais situações estimularam expedientes de aplicação de escalas de verificação de maturidade e de escalas de verificação de vocabulário familiar, para além de outros expedientes de escalonamento das dificuldades individuais e coletivas. Mas foi justamente nessas condições que o padrão assumido por Dante Moreira Leite e Luiz Pereira em São Paulo fez diferença. 691 O padrão de análise e sua incidência sobre a avaliação As vagas escolares se expandiam e a chamada diversificação cultural dos estratos que experimentavam a aproximação em relação ao mundo escolar causava, no âmbito do debate intelectual, oscilações no sentido atribuído à arte de medir a inteligência. A hora era de dúvida: como compreender o encontro entre aquilo que era chamado de cultura elaborada, com práticas citadinas ainda impregnadas de rusticidade? O desafio gerado pelo aluno que não aprende mobilizava recursos analíticos os mais diversos, em nome do esclarecimento a respeito dos dramas do intelecto quando submetido a condições adversas. Inteligência tornava-se uma palavra esvaziada na forma de se referir ao desempenho escolar que os atores do CBPE e CRPE-SP propunham. O movimento centrífugo das vagas escolares não distribuía tudo o que podia e não recolhia daquelas crianças o que podia recolher. No CRPE-SP, Dante Moreira Leite, que sempre fez questão de colocar em dúvida o alcance de propostas de análise do desempenho excessivamente focadas na mensuração, garantiu espaço para novos estudos a respeito da inteligência e desempenho escolar. Abriu-se um tempo e um espaço institucional em que as representações da anormalidade encontravam mais rejeição que adeptos. O CBPE e o CRPE-SP reagiam a um processo específico de expansão dos números escolares. Foi a ideia de que esse processo revelou certa inadaptação da criança pobre à escola que estimulou pesquisadores de ambos os centros de pesquisa a questionar a universalidade das configurações internas da escola pública brasileira. A diferença na abordagem de Moreira Leite pode ser assim sintetizada. No final da década de 1950, a divisão de estudos e pesquisas educacionais do CRPE-SP propunha estabelecer programas de verificação de escalas de escolaridade, com o objetivo de “avaliar o 692 quantum de escolarização o aluno trazia consigo, sem prender-se em demasia na avaliação de zero a dez” (CRPESP, 1959, p. 131-132). Essas escalas de escolaridade tinham a intenção de proporcionar ao professor orientação pedagógica para que o nível cultural de cada família pudesse ser apreendido. Em São Paulo, as escalas de escolaridade foram, por assim dizer, festejadas, como se representassem o ponto final para os estudos de inteligência que ainda manejavam conceitos e metodologias herdeiros de certa antropologia pedagógica que tinha conexões genealógicas com a antropologia criminal do século XIX. Dante Moreira Leite, a partir de 1958, começou a insistir para que constasse, do programa do CBPE, a avaliação do sentido econômico que a reprovação escolar adquiria na sociedade brasileira (LEITE, 1959; p. 15), considerando a reprovação na forma como se dava, antes de tudo, instrumento de exclusão social. Mas não seria correto restringir essa nova percepção somente aos domínios do CRPE-SP. No Rio de Janeiro, essa troca de sinais pode ser percebida nos inúmeros estudos que reivindicavam uma etnografia própria e necessária para estudar a escolarização da criança favelada, sem os excessos de métrica das aferições de inteligência (CONSORTE, 1956; 1959). As pesquisas, tanto no CBPE quanto no CRPE-SP, passaram a ser movidas por uma dinâmica que tinha, inclusive, um lema: a escola só se conhece de perto. Assim como Dante Moreira Leite em São Paulo chamara a atenção para o problema da repetência, Consorte, no Rio de Janeiro, verificou que a reprovação tinha números nada generosos para com as crianças pobres em geral e as faveladas em particular. Numa das escolas pesquisadas pela antropóloga, 42% das crianças matriculadas na primeira série eram repetentes. Diante da suposta dicotomia entre adaptar a criança à escola ou adaptar a escola à criança, e entre adaptar a escola à comunidade ou adaptar a comunidade à escola, novos padrões de pesquisa apresentavam-se como necessários. Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa... A configuração desse campo, no sentido que Bourdieu (2000) dá à palavra, oferece o ensejo para que se perceba que, no que toca aos estudos acerca da inteligência da criança, uma nova autoridade argumentativa se fez presente e o mote que tornou possível a manifestação daqueles jovens pesquisadores foi a “anatomia cultural” (CRUZ, 1961) das periferias das grandes cidades, ou seja, a escolarização de crianças até então classificadas como suburbanas. Para esses novos intérpretes, os repertórios de aferição, medida e avaliação da inteligência tinham pouco ou nada a dizer àqueles que povoavam os novos sertões, os locais suburbanos em que escola pública e a expansão urbana trocavam suas incompletudes. Os boletins publicados constantemente reforçavam a utilização do slogan cada escola é uma escola, o que significava um entendimento conjunto sobre a unidade escolar como unidade sociológica e antropológica (EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS SOCIAIS, 1956, p. 20). Contudo, se os componentes internos de cada escola sugeriam diferentes processos de observação e diferenciação, as diferenças entre o campo e cidade eram aquelas que permaneciam ao fundo como referências mais complexas. Luiz Pereira assimilava uma orientação de Henri Lefebvre, que conheceu lendo Antonio Candido. Concordou que as desigualdades mais visíveis das realidades urbanas suscitadas na modernidade eram as desigualdades entre homem e mulher, entre ricos e pobres e entre citadinos e camponeses (CANDIDO, 1957, p. 53). Desenvolvia-se um padrão de pesquisa atento àquilo que, naquele contexto, era definido como dualidade básica da sociedade brasileira. Tínhamos em nossas entranhas sociais uma diferença arraigada entre mentalidades agrárias e mentalidades urbanas. O novo perfil demográfico que começava a configurar as grandes cidades promovia intensa aceleração no ritmo de vida. As pesquisas em andamento deparavam-se com crianças que tinham perdido uma referência de habitat e adquirido novo espaço existencial. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. O que impactava fortemente aquela geração de intelectuais era a percepção de que microcidades de mentalidade rural sobreviviam dentro e ao lado das zonas citadinas, que não chegavam a ser um todo de mentalidade urbana (CANDIDO, 1957, p. 59-60). Dante Moreira Leite interveio em muitos debates, tomando por ponto de partida a argumentação de Antonio Candido: Se o início da civilização industrial desorganiza a família tradicional e as formas tradicionais de proteção à infância (como o apadrinhamento), [é] preciso criar instituições que as substituam. Compreende-se, assim, que a escola deixe de ser uma instituição voltada, exclusivamente, para o preparo intelectual e passe a desempenhar a função muito mais ampla de ajustar a criança à vida social (LEITE, 1959, p. 16). A apropriação de padrões entre os autores se dava, nesse caso, ao redor do tema adaptação, fosse da escola à criança, fosse da criança à escola. Florestan Fernandes envolveu-se ativamente com o projeto dos centros em quase todas as etapas, desde o planejamento até sua concretização. Seu momento de maior engajamento no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais deu-se na fase inicial, quando foi escolhido como debatedor do documento inicial, escrito por Oto Klineberg. No Centro Regional de São Paulo, sua atuação foi mais intensa na primeira gestão, de Fernando de Azevedo, entre 1956 e 1961, continuando, logo após, como colaborador na gestão de Laerte Ramos de Carvalho. Mais do que um colaborador, Florestan foi um analista constante dos rumos tomados pelos estudos de comunidade. Na elaboração das diretrizes do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e do planejamento do trabalho das Divisões de Pesquisa, Florestan manifestou um ponto de concordância em relação ao documento base, assim sintetizada por José Mário Pires Azanha: 693 A idéia principal desse documento era a de que os Centros deveriam organizar-se com o objetivo de elaborar um mapa cultural do Brasil e um mapa educacional [...]. A idéia fundamental era de que nós não tínhamos conhecimento sistematicamente organizado sobre o Brasil; embora tivéssemos aí, centenas, milhares de estudos feitos ao longo de séculos de existência do país, nós não tínhamos tido a preocupação de uma obra de síntese - que fosse capaz de nos dar... um mapa cultural do Brasil e [um] mapa educacional do Brasil. A idéia do Prof. Klineberg é a de que a feitura desses mapas seria o ponto de partida para um esforço de descentralização das soluções educacionais brasileiras; [...] mas a idéia dele é de que um esforço de descentralização poderia ser superficial e até inútil, se não levasse em conta fortes características de diferenciação cultural, social e educacional, que nós tínhamos (AZANHA, 1959, p. 27). Luiz Pereira foi o responsável pela produção dos exemplos mais significativos de adoção do padrão inspirado nos parâmetros suscitados nas muitas intervenções de Candido e de Florestan. Ao seu lado, no CRPE-SP, a movimentação intelectual era intensa. Enquanto os pesquisadores vinculados ao CRPE-SP produziam levantamentos acerca da leitura e da escrita nas escolas da capital paulista, de questões administrativas nas unidades escolares, da fadiga entre estudantes na cidade de São Paulo, da relação entre o ensino médio e a estrutura socioeconômica, alguns grupos escolares eram escolhidos para laboratório de estudo. Nesse caso, as unidades escolhidas permitiam a observação das mencionadas escalas de escolaridade. Luiz Pereira dirigiu o projeto Rendimento e deficiências do ensino primário (CRPESP, 1959). Esse estudo proporcionou ao autor lidar a seu modo com a metáfora dos dois brasis, a imagem do país cujo arcabouço legal não corresponde às tramas do cotidiano real. Para Luiz 694 Pereira, a falta de homogeneidade dificultava o uso da planificação racional nos debates educacionais, evidenciando que Florestan Fernandes os havia convidado também à leitura de Karl Mannheim. Luiz Pereira admitia que: [...] as camadas inferiores das comunidades citadinas vivem segundo um estilo não inteiramente urbano. Os contingentes migratórios vêm a fazer parte delas, permanecendo como portadores de muitos complexos da cultura rústica, continuando a viver o rural na cidade (PEREIRA, 1959, p. 1, grifos do autor). Aquela geração tentava compreender o impacto da escolarização na vida social e buscava, ao mesmo tempo, evidenciar as formas por meio das quais mentalidades rústicas representavam um contraponto permanente à racionalização característica da mentalidade urbana. Segundo Luiz Pereira: A análise desse conteúdo cultural da atividade ensino-aprendizagem mostra ser ele parte do patrimônio cultural de camadas citadinas sócio-econômicas não inferiores e evidencia a ligação estreita desse conteúdo cultural com um estilo urbano de vida, possuído principalmente por tais camadas. A transmissão desse conteúdo implica, portanto, na comunicação de um estilo urbano de vida social, cultural e econômico. Assim sendo, o subgrupo de ensino primário atua nas comunidades rurais e semi-rurais, como agência de desintegração de um estilo não urbano de vida e, ao mesmo tempo, como agência de urbanização (PEREIRA, 1959, p. 1). Que efeitos esperar da associação entre a escola urbana e a mentalidade rural? [...] avulta a função urbanizadora desta associação, realizada sob formas específicas várias: integração dos brasileiros numa Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa... comunidade nacional com base numa cultura urbana; [...] desintegração do estamentalismo e outras frações de estrutura social das comunidades rústicas [...]. (PEREIRA, 1959, p. 1). O padrão de pesquisa adquirido por Dante Moreira Leite e por Luiz Pereira encontrava nos temas desempenho e adaptação da criança pobre à escola a oportunidade para evidenciar que os intelectuais do CRPE-SP adquiriram luz própria. A criança em questão, como objeto de pesquisa, foi abordada no bojo de interpretações que permanecem como exemplos de grande relevância para o estudo da complexa relação que subsiste em nossa sociedade entre cultura urbana e cultura escolar. Produzia-se renovada interpretação a respeito do lugar de direito a que cada criança fazia jus na comunidade nacional. Considerações finais Em novembro de 1961, o diretor do CRPE-SP, Laerte Ramos de Carvalho, promoveu a fusão entre os Departamentos de Pesquisa Social e de Pesquisa Educacional. Simultaneamente, foram articuladas as condições para que o curso de pedagogia da USP fosse transferido para a Cidade Universitária, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. especificamente para as instalações do CRPESP, o que se efetivou em 1962. Nesse mesmo ano, a UNESCO e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) emitiram documento conjunto em que expressavam ser o CRPE-SP o local mais adequado para a formação de pesquisadores na área educacional (ZUBINZKY, 1975). Certa internacionalização do CRPE-SP ocorreu a partir de 1963, com a presença de pesquisadores da Universidade de Chicago interessados em pesquisas a respeito da estrutura socioeconômica e ensino médio. As luminosas indicações de Antonio Candido e Florestan Fernandes se materializaram em escritos que, desde as primeiras versões, revelaram-se destinados a ocupar lugar de destaque na história da educação brasileira. Os escritos de Dante Moreira Leite e Luiz Pereira podem ser reconhecidos como expressão mais densa do padrão CRPE-SP, o qual repercutiu numa forma singular de investigação acerca do desempenho e da adaptação da criança pobre à escola. Esse padrão singular de investigação procurou mostrar que a inteligência da criança e as vicissitudes de sua chegada e permanência na escola são questões que não podem ser reduzidas às verificações e mensurações de desempenho. De forma exemplar, demonstravam que a questão estava profundamente relacionada à construção do país, como um todo, para todos. 695 Referências AZANHA, José Mario Pires. Pesquisa educacional no CRPE: CRPESP, CRPE, AS, Dossiê INEP, 8 1(32), p. 27-31, 1959. AZEVEDO, Fernando de. Para a análise e interpretação do Brasil: pequena introdução ao estudo da realidade brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, INEP, v. 24, n. 60, p. 3-29, out./dez. 1955. BASTIDE, Roger. Brasil: terra de contrastes. 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La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso latinoamericano Jaime Rogelio Calderón López-VelardeI Resumen Con la finalidad de conocer la situación que guarda la investigación de la educación de personas jóvenes y adultas (EPJA) en América Latina y el Caribe, se realizó un estudio comparativo mediante la revisión de 170 tesis de licenciatura y posgrado que participaron en un concurso durante los años 2005 al 2011. Se comparan las instituciones, el género, así como los estudios realizados por los concursantes y las temáticas de las tesis para establecer la correspondencia y los cambios con respecto a las áreas y temas de investigación propuestos en los documentos regionales previos a la V y VI Conferencias Internacionales de Educación de Adultos (Hamburgo, 1997 y Belén, 2009). La investigación educativa en la EPJA, es mínima, ausente en muchos países y desigual, concentrándose en Brasil, México y Argentina. Se realiza en instituciones universitarias públicas mediante programas de licenciatura y posgrados en educación, ciencias de la educación, pedagogía y psicología, pero coexisten con una variedad de programas que son cursados en su mayoría por mujeres. La diversidad temática se acentúa como un rasgo de la investigación en la EPJA, reemplazando a la alfabetización y la educación básica. Los programas de licenciatura y posgrado sobre EPJA son escasos y no constituyen una línea consolidada de investigación con excepción de Cuba y Brasil. Es impostergable reactivar un análisis que trascienda el término EPJA desde la perspectiva del aprendizaje a lo largo de toda la vida. Palabras Clave Educación de adultos – Investigación – Tesis – Educación comparada. I- Universidad Pedagógica Nacional, Guadalupe, Zacatecas, México. Contacto: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000014 699 Investigation on Youth and Adult Education: the theses of a Latin American Contest Jaime Calderón López VelardeI Abstract Aiming to know the status of research on Youth and Adult Education in Latin America and the Caribbean, I have conducted a comparative study that reviewed 170 undergraduate and graduate thesis involved in a contest between 2005 and 2011. Institutions, gender and also studies conducted by the contestants and the themes of their theses were compared in order to establish correspondence and changes in relation to the areas and topics of investigation proposed in the regional documents prior to the V and VI International Conferences on Adult Education (Hamburg - 1997 and Belem - 2009). Research on Youth and Adult Education is scarce, absent in many countries and unequal. It is concentrated in Brazil, Mexico and Argentina. It is done in public universities in undergraduate or graduate programs in education, education sciences, education and psychology, but they coexist with a variety of programs attended mostly by women. Research on Youth and adult education – which replaces literacy campaigns and basic education – is marked by thematic diversity. Undergraduate and graduate programs on Youth and Adult Education are scarce and are not a established line of research, except for Cuba and Brazil. It is unpostponable to revive an analysis that transcends the term Youth and Adult Education from the perspective of lifelong learning. Keywords Adult education — Research — Thesis — Comparative education. I- Universidad Pedagógica Nacional, Guadalupe, Zacatecas, México. Contact: [email protected] 700 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000014 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. Introducción En 2005 el Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos en América Latina y el Caribe (CREFAL) estableció el Programa Premio a las Mejores Tesis sobre Educación de Personas Jóvenes y Adultas en las categorías de licenciatura, maestría y doctorado para promover la investigación en este campo educativo a fin de: Reconocer y estimular en América Latina y el Caribe, a los autores de las mejores tesis sobre EPJA, en la que se proporcione información básica importante, se propongan nuevos enfoques, se realicen aportaciones teóricometodológicas o se muestren hallazgos relevantes en el campo. (CREFAL, 2011). Esta iniciativa se inscribe en las líneas de acción propuestas por el Marco de Acción para la Educación de Personas Jóvenes y Adultas en América Latina y el Caribe 2000-2010 para dar visibilidad a la EPJA mediante la difusión de experiencias de calidad e influir en las políticas educativas respectivas, entre éstas, “apoyar concursos de investigación y sistematización de experiencias (…) y realizar investigaciones comparadas” (UNESCO et al., 2000, p. 105). Entre 2005 y 2007 se emitieron convocatorias anuales y a partir de 2009 el periodo fue bianual, e integrándose como institución convocante, la Cátedra UNESCO Brasil, ofreciendo a los autores de las tesis ganadoras la publicación y premios en pesos mexicanos de $50.000 en licenciatura, $75.000 en maestría y $100.000 en doctorado. Consideramos importante analizar las tesis de los cinco concursos porque son productos académicos que a través de estudios e investigaciones argumentan afirmaciones que ponen a prueba los conocimientos adquiridos por los egresados de programas de licenciatura y posgrado y constituyen un requisito para acreditar los estudios cursados. Representan a su vez, una fuente de consulta imprescindible para Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. los estudiosos de la educación y los tomadores de decisiones porque allí se encuentran nuevos conocimientos, hallazgos, propuestas y líneas emergentes de investigación. Cabe mencionar que la investigación sobre la EPJA en la región desde hace dos décadas ha sido incipiente y concentrada en la alfabetización, la educación básica y la capacitación. ¿Esta situación se ha modificado? ¿Cuál fue la participación de los países de la región en estos concursos? ¿Quiénes, en dónde y de cuáles programas de licenciatura y posgrado se graduaron los concursantes? ¿Cuáles son las temáticas, problemas y tendencias que ocupan la atención de la investigación en EPJA? ¿Qué diferencias y semejanzas se observan con respecto a los Informes Regionales de EPJA elaborados en 2008? La metodología incluyó tres etapas. En la primera se mencionan los puntos generales de comparación como la participación, tipo de instituciones y programas educativos. En la segunda se comparan los países participantes divididos entre aquellos que aportaron el mayor y menor número de tesis, indicándose el nombre de los programas académicos, así como el género de los concursantes. En la tercera se realizó la comparación entre las cuatro líneas de intervención y las doce áreas de investigación del Marco de Acción EPJA 2000-2010 con las temáticas de las tesis, complementándose con la relación de las áreas nuevas o distintas. Posteriormente se compararon estos resultados con dos Informes Regionales (CARUSO et al., 2008; TORRES, 2009) citados en las referencias de este trabajo. Por último, se establecieron las diferencias y semejanzas entre los aspectos mencionados y se interpretaron los resultados. La estructura del trabajo comienza con el abordaje de aspectos conceptuales de la EPJA en la región y una breve caracterización de la situación de la investigación educativa en esta materia y a continuación se sigue el orden y desarrollo de las etapas metodológicas arriba mencionadas. Cabe aclarar que las tesis concursantes representan una fuente de consulta entre las 701 diversas modalidades de producción académica de la investigación y por ello las conclusiones del estudio no son generalizables ya que solamente permiten un acercamiento parcial pero significativo del estado que guarda la investigación educativa en esta materia. Asimismo otros elementos estructurales de las tesis como los tipos de investigación, así como los enfoques teóricos y metodológicos, incluyendo un examen sobre su calidad rebasan los objetivos de este estudio y serán motivo de un análisis posterior para contar con una visión integral de estos productos académicos. No obstante, planteamos a modo de hipótesis que en varios países las tesis de licenciatura son un requisito para obtener el grado de licenciatura pero también se admiten tesinas, proyectos de intervención y monografías que desarrollan diagnósticos educativos, pero no son investigaciones que aporten nuevos conocimientos. Educación de adultos e investigación educativa ¿Qué debe entenderse por educación de personas jóvenes y adultas (EPJA) en el contexto de los países latinoamericanos y del Caribe para determinar cuáles investigaciones se corresponden con este término como es el caso de las tesis y otros productos académicos? La (s) respuesta (s) a esta pregunta no es un asunto sencillo porque es evidente que entre los países de la región y en el ámbito académico existen diferencias con respecto a la edad, nivel educativo, perspectivas teóricas y la terminología empleada para referirse a esta expresión; de igual modo a la influencia del contexto político, social y cultural de estas naciones y otras regiones del mundo. Así, conceptos como: educación permanente, educación básica ampliada, educación formal y no formal, formación para el trabajo, educación popular y la expresión aprendizaje a lo largo de la vida dan cuenta de esta diversidad conceptual. No obstante a partir de la V Conferencia Internacional de Educación 702 de Adultos de Hamburgo en 1977, se han dado pasos importantes para elucidar la especificidad de este concepto, pero aún son insuficientes. En efecto, si tomamos en cuenta la agenda regional del Marco de Acción Regional arriba mencionado1 en el cual se sintetizan los principales aspectos problemáticos de la EPJA, se constatan avances significativos. En este documento destacamos cuatro pronunciamientos que son congruentes con la visión ampliada de la Declaración y el Plan de Acción de Hamburgo (UNESCO, 1997), orientada a trascender los límites y discriminación impuestos por la edad, el nivel y modalidad educativa e incluso para reemplazar el término educación por el de aprendizaje de adultos. El primero fue la adopción del término Educación de Personas Jóvenes y Adultas (EPJA) cuya coexistencia con los adultos fue producto no solo de los cambios demográficos en la región sino de la incapacidad de los sistemas escolares para lograr la permanencia de los jóvenes en la educación básica u obligatoria y a la necesidad de éstos de emplearse tempranamente en el trabajo informal, reemplazando paulatinamente e inclusive discriminando a los grupos de adultos de los programas de EPJA (TORRES, 2009). El segundo consiste en reiterar la especificidad del campo de la EPJA, fortaleciendo el compromiso insoslayable con los grupos más marginados, esto es, los indígenas, campesinos, jóvenes y las mujeres y la inclusión de siete áreas de intervención: 1. Alfabetización; 2. Educación y trabajo; 3. Educación, ciudadanía y derechos humanos; 4. Educación con campesinos e indígenas; 5. Educación y Jóvenes; 6. Educación y género; 7. Educación, desarrollo local y sostenible. Finalmente se plantearon tres líneas de acción: 1. Currículo y evaluación; 2. Formación de educadores; 3. Investigación. El tercero, reconocer que la EPJA es una actividad que trasciende lo estrictamente educativo, 1- Suscribimos este documento, entre otras razones, para retomar la memoria histórica de la EPJA, el reconocimiento al trabajo colectivo, sistemático y representativo de múltiples actores dedicados a este campo educativo y por la riqueza y vigencia de muchos de sus lineamientos y propuestas. Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... pues no se circunscribe a los aprendizajes en los espacios escolares sino a una diversidad de lugares en donde se convive para aprender y recrear la cultura en sus múltiples manifestaciones. El cuarto, esclarecer la finalidad de la EPJA y la invitación abierta al diálogo informado para enriquecer las nociones implicadas en este concepto y sus conexiones, poniendo énfasis en la perspectiva del aprendizaje a lo largo de la vida a fin de adecuarse a los contextos nacionales, regionales y locales de esta región (UNESCO et al., 2000). No obstante, los avances mencionados también significaron la emergencia de situaciones problemáticas que se traducen en nuevos desafíos: 1- Ampliación, diversificación y mayor complejidad del campo de intervención de la EPJA. La prioridad con los grupos sociales mencionados y la inclusión de las temáticas propuestas significa, entre otros aspectos, mayores niveles de articulación de políticas públicas intersectoriales, reforzar vínculos entre el Estado y las organizaciones de la sociedad civil, atención a grupos específicos (jóvenes en situación de calle, discapacitados, personas privadas de su libertad, migrantes, adultos mayores, etc.), acceso al mundo digital, e insistir en la formación inicial y continua de educadores sin la cual la calidad de la EPJA resulta difícil de alcanzar. 2- Ausencia de sinergias. Los vínculos educativos entre niños, jóvenes y adultos ya sea dentro del sistema escolarizado (propuestas de alfabetización simultánea entre niños y los jóvenes y/o adultos; programas comunitarios, entre otros) y fuera de este (programas de atención y educación de la primera infancia que operan a modo de escuelas para padres y madres de familia, aprendizaje intergeneracional, comunidades de aprendizaje y otros), muestran la necesidad de coexistencia y mutua interdependencia entre sistemas formales y no formales cuyas fronteras son cada vez más relativas y artificiales. 3- Aislamiento y homogeneidad de la EPJA. El énfasis en la ciudadanía, la interculturalidad, los derechos humanos, el desarrollo comunitario y el cuidado del medio ambiente, son ejes transversales incluidos en Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. los planes de estudio desde la educación básica formal hasta programas académicos de nivel superior. En este sentido, no es apropiado que la EPJA los aborde separadamente, asumiéndose como un espacio homogéneo y paralelo dentro de los sistemas educativos nacionales, situación que por una parte, reproduce la carga de nociones peyorativas hacia los sujetos que la integran (carentes, vulnerables, en riesgo, en rezago educativo, etc.), y, por otra, le resta visibilidad, importancia y recursos financieros. (TORRES, 2009). 4- La especificidad de la EPJA. Si bien la exclusión social y la pobreza es la categoría identitaria de la EPJA, no es suficiente para abarcar a todos los sujetos que la conforman, ya sea como población en rezago educativo, (jóvenes expulsados del sistema escolarizado para los cuales operan políticas compensatorias), población excluida y/o discriminada por diversas razones a quienes se destinan políticas sociales, y los sujetos que no se encuentran en alguna de estas situaciones pero les asiste el derecho a demandar aprendizajes continuos mediante programas de educación permanente (CARUSOet al., 2008). Aún más, los jóvenes que cursan la educación secundaria y niveles intermedios en donde priman condiciones de pauperización en el medio rural y urbano marginal, ¿no formarían parte de la EPJA?, ¿no sería paradójico que la EPJA excluyera a estos jóvenes en su atención y estudio o a los estudiantes indígenas que accedieron a estudios de tipo medio y superior? 5- Fragilidad conceptual. Los criterios tradicionales para definir a los sujetos de la EPJA como la edad, el rezago, condición social, modalidad educativa resultan hoy día insuficientes dada la multiplicidad de situaciones generadas por la pobreza e inequidad social y al papel diversificado que estos asumen: ciudadanos, padres, trabajadores, adultos mayores, etcétera. (CARUSO et al., 2008). Además, la discusión sobre una definición y caracterización que trascienda el término EPJA desde la perspectiva del aprendizaje a lo largo de toda la vida no ha 703 prosperado y explica en gran parte la situación descrita en los puntos precedentes. Es claro entonces que la EPJA debiera abarcar a todos y todas sin importar el carácter formal y no formal de la educación ni la condición socioeconómica, edad, raza, género, pertenencia étnica, sexual y religiosa. De hecho, así se concibe en el Marco de Acción citado (UNESCO et al., 2000, p. 90) cuando se señala: Desarrollar programas para las personas jóvenes y adultas en su condición de madres y padres, estudiantes de la educación secundaria, técnica y superior y educadores de cualquier nivel y modalidad, para incorporarlos tanto como sujetos de aprendizaje como educadores. Sin embargo, la realidad social impone que el conocimiento y los aprendizajes imprescindibles para vivir y convivir en una sociedad cada vez más cambiante y compleja, se pongan al alcance de quienes han sido excluidos por un sistema que no logra hacer valer los derechos humanos, entre estos el de la educación. Por esta razón y conscientes del riesgo reduccionista y simplificado que se corre, en este estudio, se considera a los sujetos de la EPJA a quienes no ingresaron o fueron excluidos por el sistema educativo regular sea como demanda potencial o real (participantes en los programas ofertados por instituciones educativas públicas, privadas y de las organizaciones de la sociedad civil para restituir su derecho a la educación). Asimismo las áreas de intervención y temas emergentes destinados a estos grupos sociales. Por lo que a la investigación educativa se refiere, en los principales foros internacionales de la EPJA, especialmente en el Plan de Acción para el Futuro, de Hamburgo (UNESCO, 1997, punto 22), así como el seguimiento latinoamericano de CONFINTEA V (1998-1999) y en el referido Marco de Acción, el interés por fomentar y consolidar la investigación educativa sobre la EPJA es una constante, pues desde los 704 años 70 hasta hoy día, la revisión de la literatura sociológica y de los estados del conocimiento reportan avances pero coinciden en su escaso desarrollo (UNESCO; OREALC, 2003; RUIZ, 2005; SCHMELKES, 2008), particularmente en la investigación básica, que ha dependido en su mayoría de los especialistas de los organismos y agencias educativas internacionales y por los investigadores nacionales adscritos a las universidades y centros de investigación públicos y privados. Por el contrario, los estudios empíricos relacionados con las prácticas de la EPJA (descripciones, diagnósticos, evaluaciones, materiales didácticos, etc.) son abrumadores y en gran parte promovidos por los gobiernos y ministerios de los países de la región, enfocados a las temáticas y problemas más acuciantes (alfabetización, educación básica y capacitación para el trabajo), así como aspectos relacionados con el aprendizaje de los adultos, la calidad, el género y los temas emergentes asociados a la educación popular (ciudadanía, democracia y participación social). Este débil desarrollo coincide con el examen realizado por Ruiz (2005), quien a partir de la revisión de 313 trabajos en los años 90 por la Red Latinoamericana de Información y Documentación (REDUC) sobre educación de adultos y la educación popular, concluye que solamente el 29% fueron considerados en la categoría de investigaciones y estudios. El 71% restante se distribuyó en las categorías de: sistematizaciones, polémicas y discusión actual en el campo y descripción de experiencias y práctica. Otro rasgo de la investigación en EPJA que se deriva de este estudio, es su gran diversidad temática ya que del conjunto de estudios examinados se desprenden treinta tópicos sin desagregar los temas emergentes (género, medio ambiente, etc.), de donde se infiere en muchos casos la coexistencia temática y una tendencia a la fragmentación de áreas de conocimiento que guardan estrecha relación. Cabe mencionar que dentro de este amplio espectro temático, la educación popular Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... ha tenido un papel protagónico dentro de la investigación educativa pues desde los años 70 y bajo la influencia de la educación liberadora de Paulo Freire y Orlando Fals Borda, se cultivaron enfoques críticos al paradigma cuantitativo mediante la investigación acción participativa y la sistematización que documenta con enfoques narrativos, la reflexión de experiencias de los actores sociales, destacando su dimensión organizativa y política. En resumen en el Marco de Acción de la EPJA, la importancia de la investigación educativa es clave para [...] aportar conocimiento y contribuir al diseño de estrategias para la atención de la diversidad y la distribución igualitaria de la educación. (UNESCO et al., 2000, p. 103). Propiamente en las siete áreas prioritarias de acción, se insiste en el desarrollo de investigaciones educativas, sumándose doce temas de investigación que se incluyen en las tablas del punto 3.3. Participación, instituciones y programas Conforme a los datos de la tabla 1, solamente catorce de 42 países de América Latina y el Caribe participaron en el periodo 2005 al 2011 con un total de 315 tesis. Sin embargo, del total de tesis registradas, solamente 170, equivalente al 54 % fueron consideradas de EPJA. Además, el número de países participantes se reduce a diez (24%) porque las tesis de cinco concursantes no correspondían a la EPJA. Solamente la mayoría de tesis de Argentina, Bolivia, Chile, Costa Rica, Colombia y especialmente de Brasil, fueron de EPJA, mientras que en tres países, incluyendo a México, se reducen a menos de la mitad. Esta situación se debió a que los concursantes incluyeron en la EPJA a la población infantil que cursa la educación obligatoria (preescolar, primaria) hasta los jóvenes estudiantes de la educación superior y en varios casos con temáticas completamente ajenas a la EPJA, lo que refleja un desconocimiento de las características y especificidad de este campo e insuficiente 1. Argentina 2. Bolivia 3. Brasil 4. Colombia 5. Costa Rica 6. Cuba 7. Chile 8. Ecuador 9. Honduras 10. México 11. Perú 12. Puerto Rico 13. Uruguay 14. Venezuela Total Tesis Registradas por Programa Académico L 19 4 9 1 0 1 2 0 0 64 2 0 0 0 102 E 0 1 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 3 M 11 3 26 0 1 4 4 2 1 91 1 1 2 1 148 D 7 0 13 1 0 4 2 0 0 34 2 0 0 1 64 37 8 49 2 1 9 7 2 1 189 5 1 2 2 315 Tesis de EPJA por Programa Académico L 13 2 6 1 0 0 2 0 0 31 0 0 0 0 55 E 0 1 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 3 M 5 2 26 0 1 3 4 1 0 35 1 0 0 0 78 D 7 0 13 1 0 1 1 0 0 11 0 0 0 0 34 Total Países Total Tabla 1- CREFAL. Concurso de tesis 2005-2011. Comparación entre países participantes y número de tesis registradas por programa académico y número de tesis con especificidad en la EPJA % 25 5 47 2 1 4 7 1 0 77 1 0 0 0 170 68 85 96 100 100 44 100 50 0 41 20 0 0 0 54 L= Licenciatura E= Especialidad M= Maestría D= Doctorado Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 705 claridad en las bases de la convocatoria. En la región caribeña, Cuba presentó cuatro y Bolivia y Chile participaron con cinco a siete tesis. Por su parte Colombia, Ecuador y Perú participaron con una a dos tesis y en la región centroamericana, solamente una tesis de Costa Rica (tabla 1). Los países con más concursantes fueron México, Brasil y Argentina con 77, 47 y 25 respectivamente y en su conjunto representan el 88% del total de las tesis. Este hecho obedece no solo a la mayor extensión territorial y demográfica de estos países sino a su papel geopolítico y económico a nivel regional y mundial y a la conformación de sus sistemas educativos cuya diversidad y magnitud de problemas demandan mayores conocimientos derivados de la investigación social y educativa. En este sentido, la expansión de los sistemas de educación superior en América Latina en las tres últimas décadas, propició en los países mencionados, un crecimiento inusitado de instituciones universitarias y de educación superior públicas y privadas, particularmente en los estudios de posgrado cuyos productos académicos se ve reflejado en esos porcentajes. Conjeturamos a su vez que en estos países hubo mayor difusión de la convocatoria y material propagandístico del concurso a diferencia de regiones como el Caribe anglófono y francófono con escasa presencia del CREFAL. Asimismo suponemos que más allá del interés de los concursantes por obtener el recurso económico del premio fue la necesidad de dar a conocer sus trabajos de tesis escasamente valorados y difundidos. Como se puede observar, en general la participación de los países de los concursantes es poca pues abarca un periodo de cuatro años e inexistente en los 32 restantes que integran la región, lo que refleja un panorama de desinterés investigativo de los centros universitarios en materia de EPJA. De los datos reportados en la tabla 2, el 81%, es decir, la mayoría de los concursantes, realizó sus estudios en universidades públicas federales, estatales y autónomas a través de distintas Facultades, Escuelas y Departamentos, especialmente en Educación. Solamente el 19% 706 fueron de financiamiento privado, sobresaliendo Chile y México en términos porcentuales (29% y 31% respectivamente). Asimismo los concursantes egresaron de otras instituciones de educación superior (IES), destacando México con 10 de estas por ser el país con mayor número de concursantes (tabla 2). En este país, las IES incluyen entre otros establecimientos, institutos, escuelas normales, colegios, centros de investigación que ofertan programas para la formación profesional de cuatro a seis años y estudios de posgrado sin importar su régimen de financiamiento o estatus legal pero en la legislación argentina se establecen distinciones entre universidades e IES a partir de formas de gestión, esto es, carreras en áreas de conocimiento afines (Facultades) o dedicadas a un área específica (Institutos). En total, participaron 63 universidades públicas y quince privadas, además de dieciséis IES, tres de estas privadas. Brasil ocupó el primer lugar con veinticuatro universidades públicas y cuatro privadas (tabla 2). Cabe subrayar que del total de las tesis de México, el 27% fueron de la Universidad Pedagógica Nacional que contaba hasta el 2010 con la licenciatura en educación de adultos y desde 2002 oferta en este nivel un programa de Intervención Educativa que incluye una línea de EPJA. En Argentina, la Universidad Nacional de Córdoba y la de Buenos Aires aportaron tres tesis cada una y, entre una y dos, diversas universidades públicas y tres privadas, mientras que en Brasil, de once Universidades Federales, destacan con el mayor número de tesis las de São Carlos con seis, y la de Minas Gerais con cinco. Otra Universidad que envió cinco tesis fue la de São Paulo y el resto envió de una a tres tesis, incluyendo a cuatro universidades privadas. En cuanto a la distribución de los diferentes programas de EPJA, el primer lugar lo ocupa el nivel de maestría con 78 (46 %), en segundo, las de licenciatura con 55 (32 %), en tercero, las de doctorado con 34 (20 %) y, en cuarto, las de especialización con solamente tres (2 %), (tabla 1). La mayor parte de tesis de licenciatura se concentró en Argentina y México con trece y 31 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... Tabla 2- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Países participantes y tipo de instituciones por régimen de financiamiento. Países Argentina Bolivia Brasil Colombia Costa Rica Cuba Chile México Perú Total Universidades Instituciones de Educación Superior Públicas % Privadas % Públicas % Privadas % 16 4 24 1 1 0 5 11 1 63 84 80 86 100 100 0 71 69 100 81 3 1 4 0 0 0 2 5 0 15 16 20 14 0 0 0 29 31 0 19 2 0 1 0 0 3 0 7 0 13 100 0 100 0 0 100 0 70 0 81 0 0 0 0 0 0 0 3 0 3 0 0 0 0 0 0 0 30 0 19 Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL. respectivamente, mientras que las de maestría en Brasil y México. Las tesis de doctorado se distribuyeron en tres países (Colombia, Chile y Cuba) con una tesis y el resto en Argentina, Brasil y México con siete, trece y once, respectivamente. Únicamente Brasil reportó dos tesis de especialidad en EPJA y una en Bolivia. Llama la atención que las tesis de doctorado que implican mayor profundización y aportes al conocimiento en el campo de la EPJA sean pocas, pues el promedio durante los cinco concursos es apenas de 6.8, destacando Brasil con el mayor número de tesis en este nivel debido al impulso inusitado de la investigación en esta materia en los últimos 10 años. Ahora bien, de los datos reportados en la tabla 1, destacamos dos grupos: El primero, integrado por los países que aportaron el mayor número de tesis: Argentina, Brasil y México. En el segundo, siete países con un número reducido de tesis (Bolivia, Colombia, Costa Rica, Cuba, Chile, Ecuador y Perú). Cabe mencionar que en ambos grupos hubo nueve graduados latinoamericanos que estudiaron en universidades extranjeras. Comparación entre Argentina, Brasil y México Estos países además de reunir el mayor número de tesis presentan, al igual que Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. otros, aspectos diferenciales de la EPJA que llevaron a su comparación. Brasil fue cuna del movimiento de educación popular desarrollado a lo largo de los años 60 que se extendió en los años 70 a varios países latinoamericanos. A su vez, las políticas y múltiples programas de alfabetización tienen un lugar preponderante en la EPJA desde la Campaña de Adolescentes y Adultos (1947) hasta Brasil alfabetizado (2003). Actualmente los foros de EPJA representan alternativas basadas en estructuras intersectoriales y descentralizadas de organismos gubernamentales y no gubernamentales que se movilizan para reivindicar el derecho a la educación básica y emprenden tareas de formación (DI PIERRO, 2005, p. 22). Estos rasgos difieren con México en donde el peso de los movimientos sociales es menor, además de la continuidad y alta institucionalidad en las políticas y modelos para la EPJA bajo la rectoría del Instituto Nacional de la Educación para Adultos, organismo fundado en 1981 que opera en todos los estados del país y del cual dependen los contenidos curriculares. Argentina por el contrario, cuenta con menos diversidad étnica que Brasil y México y ha experimentado cambios abruptos y recurrentes en las políticas de EPJA marcados por los regímenes militares y posteriormente por los gobiernos electos democráticamente que desarrollaron en 1973 y 1974 movimientos 707 renovadores bajo la influencia de la educación popular. Posteriormente las políticas neoliberales del gobierno de Menen durante los años 90 ahondaron la situación marginal de la EPJA y hasta diciembre de 2006 la EPJA dejó de considerarse un régimen especial en la legislación educativa. A continuación centramos la atención en los programas educativos en cuanto a su distribución por nivel, género y nombre. En Argentina hubo trece concursantes de licenciatura, seis varones y siete mujeres por lo que existe un equilibrio entre los graduados de este nivel educativo (tabla 3). En cambio, la autoría de las cinco tesis de maestría fue de mujeres, mientras que de las siete de doctorado, solamente un varón concursó en este nivel, lo que indica una participación casi absoluta del género femenino en las tesis de posgrado (tabla 3). Tabla 3- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Países participantes y programas académicos por género Programas Académicos Países Licenciatura Especialidad Maestría Doctorado M % F % M % F % M % F % M % F % Argentina 6 46 7 54 0 0 0 0 0 0 5 100 1 20 6 80 Bolivia 0 0 2 100 0 0 1 100 2 100 0 0 0 0 0 0 Brasil 2 33 4 67 0 0 2 100 5 19 21 81 2 15 11 85 Colombia 0 0 1 100 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 Costa Rica 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0 Cuba 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 3 100 0 0 1 100 Ecuador 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0 Chile 1 50 1 50 0 0 0 0 0 0 4 100 0 0 1 0 México 7 23 24 77 0 0 0 0 8 23 27 77 4 36 7 64 Perú 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0 Total 16 29 39 71 0 0 3 100 15 20 63 80 7 21 27 79 M= Masculino F= Femenino Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL. En Brasil, de las seis tesis de licenciatura, cuatro fueron de mujeres y dos de varones. Las dos tesis de especialización recayeron en mujeres, mientras que en las veintiséis tesis de maestría la participación del género femenino es sobresaliente, pues solamente dos de cada diez graduados son varones (19% y 81%) respectivamente (tabla 3). De igual modo ocurre con respecto al papel preponderante de las mujeres con once de las trece tesis de doctorado (85%). En México concursaron 31 tesis de licenciatura y 35 de maestría. Las mujeres también ocupan un lugar preponderante ya que en ambos programas rebasan el 75%, mientras que en el doctorado disminuye su participación 708 al 64%. Empero, la participación y autoría femenina de las tesis es mayoritaria en estos tres países pues el promedio alcanza el 78 %. En relación a los nombres y áreas de conocimiento de los programas académicos en los cuales se graduaron los concursantes de tesis2, en Argentina de los trece programas de licenciatura, ocho se concentran en ciencias de la educación, seguida por psicopedagogía, antropología, sociología y la comunicación social, en ésta última se incluye otra tesis asociada al periodismo. En cuanto a los cinco programas de maestría, uno es de ciencias sociales con orientación en 2 - Por su extensión, consideramos innecesario incluir la relación de los programas académicos. Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... educación y otro de educación con orientación en educación permanente, los tres restantes no se refieren directamente a la educación sino a: 1) evaluación; 2) políticas sociales; 3) salud mental comunitaria. Finalmente, de los siete programas de doctorado, dos son de ciencias de la educación y tres corresponden a: 1) las ciencias sociales; 2) ciencias de la comunicación; 3) filosofía y letras. Los otros dos fueron cursados en universidades extranjeras. En resumen, se observa la presencia de la carrera de ciencias de la educación en la licenciatura y en los programas de doctorado que, en su conjunto, equivalen al 43 % de las carreras y programas cursados y el otro 57% se distribuyen en una diversidad de carreras de licenciatura y en los programas de posgrado antes mencionados. En Brasil, de las seis tesis de licenciatura, cinco fueron de pedagogía y de las veintiséis de maestría, catorce, es decir, poco más de la mitad de este nivel (56%), fueron de programas de educación y el resto se distribuye en programas que también están asociados a este término mediante líneas, áreas y orientaciones diversas de investigación, entre éstas: educación brasileña, sociología de la educación, fundamentos de educación, educación y políticas públicas. Una situación muy similar a la anterior se observa en los trece programas de doctorado, pues nueve de ellos también son en educación y con solo una tesis: 1) sociología de la educación; 2) educación especial; 3) psicología: 4) lingüística aplicada. En síntesis, Brasil, no obstante el reducido número de tesis de licenciatura es el país con mayor homogeneidad en el tipo de programas ofertados en este nivel pero especialmente en los programas de posgrado desde los cuales se investiga la EPJA, y uno de los dos países en donde existen especializaciones. En México, de las 31 tesis de licenciatura, la mayoría se concentran en tres carreras con cinco tesis cada una: 1) pedagogía; 2) intervención educativa; 3) ciencias de la educación. Otras dos carreras con cuatro tesis cada una fueron: psicología y educación de adultos y con dos tesis, educación indígena. El resto lo integran Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. un conjunto de licenciaturas con una tesis, entre éstas, educación y diversidad cultural, sociología de la educación, innovaciones educativas y comunicación. El panorama con respecto a los concursantes de los 35 programas de maestría se caracteriza por su diversidad. Si bien se ofertan programas de educación y otros que giran alrededor de este término: calidad, diversidad cultural, desarrollo educativo, formación docente, resaltan aquellos que se derivan de las ciencias en general que incluyen especialidades (investigación educativa, ecología) o ciencias específicas (de la educación, administrativas, agrícolas, en sociología rural). Este crisol de programas se incrementa con estudios de investigación educativa y de metodología, aunado a programas que van desde la psicología y pedagogía hasta la comunicación e inclusive de ingeniería. Sin embargo, de ese conjunto de programas, llama la atención aquellos dedicados al quehacer investigativo con un total de ocho tesis, equivalente al 23% del total. Finalmente, en los once programas de doctorado, los de pedagogía y educación comparten dos tesis cada una, seguidas de un grupo de ciencias y ciencias sociales que incluyen tres especialidades. El resto se distribuye en cuatro programas: 1) filosofía de la educación; 2) innovación educativa; 3) estudios de población; 4) estudios organizacionales. A partir de estos resultados, encontramos que las tesis de licenciatura en Brasil son muy pocas con respecto a las de Argentina y México pero las de maestría y doctorado superan por mucho a las argentinas y en menor medida a las de doctorado de México. En cuanto a los programas de licenciatura, en Argentina predominan las ciencias de la educación mientras que en Brasil los de pedagogía y en México coexisten ambos programas a los cuales se suma una diversidad de carreras (tabla 4). En Argentina fueron escasos los concursantes de maestría cuyos programas se distinguen por su diversidad al igual que en México. En cambio, Brasil muestra homogeneidad y continuidad en este nivel y en los programas de doctorado, concentrados en educación 709 con múltiples áreas, líneas de investigación y orientaciones específicas, situación que no ocurre en México, en donde si bien coexisten en las licenciaturas y en las maestrías, los programas de: pedagogía, ciencias de la educación y psicología, predomina la diversidad de estos, incluyendo los de doctorado. Además, una diferencia de México con Argentina es la ausencia de doctorados en ciencias de la educación y en Brasil de programas de pedagogía (tabla 4). Tabla 4- CREFAL. Concurso de tesis 2005-2011.Comparación de tendencias de los programas académicos Programas Académicos Tendencias Argentina Brasil México Licenciatura Homogeneidad en ciencias de la educación Homogeneidad en pedagogía Coexistencia entre pedagogía, ciencias de la educación, Intervención educativa y diversidad de carreras Maestría Diversidad Homogeneidad de programas de educación Heterogeneidad/ diversidad Doctorado Homogeneidad y continuidad de programas Ciencias de la educación de educación. Ausencia de pedagogía y y diversidad de programas ciencias de la educación Heterogeneidad/ Diversidad Ausencia de ciencias de la educación Fuente: Elaboración propia. Comparación entre países con poca participación En el segundo grupo de países, Chile presentó siete tesis, todas con programas diferentes. Dos de licenciatura y cuatro de maestría, entre éstas, Educación, mención currículo y comunidad educativa, Evaluación Educacional y Antropología y Desarrollo. La única tesis de doctorado fue presentada en una universidad extranjera. Por su parte Bolivia tuvo dos concursantes de licenciatura y dos de maestría también con programas diferentes. Costa Rica solamente envió una tesis de maestría en Informática y tecnología educativa, en tanto que Cuba reportó tres tesis de maestría: Una en educación y otra en Longevidad satisfactoria. Promoción y educación para la salud. La tercera fue realizada en una universidad extranjera. La única tesis de doctorado no fue posible localizarla. De Colombia solamente se consideró una tesis de licenciatura en la carrera de Recreación y otra de doctorado en una universidad extranjera. Ecuador envió una tesis de maestría cursada en una universidad extranjera. Finalmente, de Perú 710 se recibió una tesis de maestría en Estudios de la Cultura. En resumen, en este grupo de países predominan concursantes de programas de maestría muy diversos con hegemonía casi total del género femenino, pues en Bolivia solamente dos varones presentaron dos tesis de este nivel educativo. Con respecto a los concursantes latinoamericanos que se graduaron en universidades extranjeras, se reportaron nueve tesis; cinco de maestría y cuatro de doctorado. En ambos niveles, los programas de educación y ciencias de la educación apenas llegan a tres y el resto se distribuye en un grupo diversificado de programas cursados en su totalidad por mujeres. Síntesis comparativa En el estudio e investigación de la EPJA realizada por los concursantes de diez países latinoamericanos, convergen programas de formación psicopedagógica y una variedad de disciplinas sociales que estudian el fenómeno educativo. Esta diversidad tiende a ser más notoria en los programas de posgrado incluidos Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... los estudios realizados en el extranjero y son congruentes con la naturaleza de la EPJA, considerada una actividad que trasciende lo estrictamente educativo, pues no se circunscribe a los aprendizajes en los espacios escolares sino a una diversidad de lugares, dimensiones e identidades de los jóvenes y adultos. También coincide con la visión ampliada de la EPJA y marcan un distanciamiento con enfoques novedosos como la andragogía, promovida en los años 70 por influyentes representantes como Roque Ludojoski en Argentina, Félix Adam en Venezuela y por la Unesco en los años 80. Asimismo de los enfoques de Animación sociocultural y la Pedagogía social que se ofertan en programas universitarios en los países europeos. Puede afirmarse que a pesar de los avances en la investigación en EPJA, en los programas de maestría y doctorado de la región aún distan mucho de consolidarse, salvo Cuba y Brasil en donde ha tenido una influencia importante en este último país el Grupo de Trabajo en Educación de Adultos dentro de la ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação). Como ya se mencionó, Brasil y Bolivia son los únicos países en los cuales se cursaron tres programas de especialidad en EPJA. Esta situación concuerda con la afirmación de Maria Clara de Pierro (2008, p. 124) cuando señala que “las licenciaturas y los cursos de especialización para profesores de EPJA son poco numerosas, lo que confirma la reducida participación de las universidades con el asunto”. Por lo que al género se refiere, en todos los países concursantes, la hegemonía de las mujeres es evidente y su inclinación por los estudios de EPJA obedece, de acuerdo a las estadísticas sobre la distribución de la matrícula por áreas de conocimiento y género en la última década de gran parte de los países latinoamericanos, a su creciente participación en los estudios de educación superior, particularmente en el área educativa, de las ciencias sociales, humanidades y de la salud (DE SIERRA; RODRÍGUEZ, 2005). Conjeturamos que otras razones de esta Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. feminización se relacionan con la posición marginal de los estudios e investigación de la EPJA dentro del campo educativo, así como su escaso prestigio entre los investigadores y comunidades académicas que dan prioridad a otras temáticas. Por otra parte, cabe mencionar que son mínimos los programas que se estudian con alusión directa a la EPJA. Otro aspecto importante es que, al comparar los contenidos temáticos de las tesis que se mencionan en el siguiente punto (particularmente los procesos de aprendizaje y saberes de la EPJA, currículo y evaluación), el lector observará que su estudio es mínimo en los programas de licenciatura y posgrado de orientación psicopedagógica (tabla 5). Comparación entre áreas temáticas Una vez identificados los temas de las 170 tesis de EPJA, se estableció su coincidencia e inserción con las áreas de intervención e investigación del Marco de Acción de la EPJA 2000-2010, conformándose tres grupos. El primero incluye cuatro áreas temáticas con el mayor número de tesis (catorce a veintiuno): 1. Programas de formación; 2. Diversidad cultural; 3. Alfabetización; 4. Género y educación. El segundo grupo aborda cuatro temas con cinco a siete tesis: educación y trabajo, educación y ciudadanía, procesos de aprendizaje y desarrollo local. El tercer grupo está integrado por las nueve áreas restantes con un mínimo de dos a cuatro tesis incluyendo a dos áreas sin ninguna tesis (futuros escenarios de la EPJA y las reformas educativas) (tabla 5). El anterior panorama no deja de ser desalentador porque del total de las áreas propuestas en el Marco de Acción, la cantidad de tesis del primer grupo, representan apenas una cuarta parte del total, mientras que el 75% de las temáticas es muy bajo. Un ejemplo de una línea de acción propuesta en dicho Marco fue la de currículo y evaluación con apenas dos y tres tesis respectivamente. En síntesis, a excepción 711 Tabla 5- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Relación de áreas temáticas de intervención e investigación del Marco de Acción Regional para la EPJA en América Latina y el Caribe 2000-2010 y número de tesis por programa académico Tesis de EPJA por Programa Académico Áreas temáticas de intervención* e investigación** del Marco de Acción Regional para la EPJA en América Latina y el Caribe 2000-2010 Núm. L E M D 1. Alfabetización 6 0 7 1 14 2. Educación y trabajo 2 0 3 2 7 3. Educación, ciudadanía y derechos humanos 0 0 2 3 5 4. Educación y género 4 2 5 3 14 5. Educación, desarrollo local y sostenible 0 0 5 0 5 6. Futuros escenarios de la EPJA 0 0 0 0 0 7. La demanda de la EPJA 1 0 2 1 4 8. La EPJA y las Reformas educativas. 0 0 0 0 0 9. Procesos de aprendizaje y saberes de las personas jóvenes y adultas 3 0 2 1 6 10. Enfoques y prácticas curriculares 2 0 0 0 2 11. Modalidades de evaluación y acreditación 1 0 2 0 3 12. Programas de formación y la formación de los educadores 8 0 9 4 21 13. Estrategias y programas para mejorar la calidad educativa 1 0 1 0 2 14. Indicadores de impacto de la EPJA 1 0 2 1 4 15. Diversidad cultural y lingüística y educación intercultural bilingüe. 9 0 6 5 20 16. Programas innovadores y/o alternativas de educación no formal 1 0 2 0 3 Total 39 2 48 21 110 * 1-5. ** 6-16. El mundo del trabajo y su relación con las personas jóvenes y adultas quedó incluido en el punto 5. L= Licenciatura. E= Especialidad. M= Maestría. D= Doctorado Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL. Tabla 6- Nuevas áreas temáticas de las tesis del Concurso CREFAL (2005-2011) y su distribución por grado académico Nuevas Áreas temáticas 1. Educación básica 2. Educación y Tecnologías de la Información y Comunicación. 3.Sistematización de prácticas educativas 4. Educación y conocimientos disciplinares 5. Políticas públicas 6. Educación con adultos mayores 7. Educación en contextos de encierro 8. Educación popular 9. EPJA con capacidades diferentes 10. Educación y movimientos sociales 11.Gestión 12. Ensayos sobre Paulo Freire 13. Educación y salud pública Total L E M D Núm. 4 1 0 0 0 2 4 5 0 0 0 0 0 16 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 7 6 1 1 5 5 2 0 0 0 1 1 1 30 2 2 0 0 2 0 1 1 1 2 0 1 0 12 13 9 1 1 7 7 7 6 1 2 1 2 1 58 L= Licenciatura. E= Especialidad. M= Maestría. D= Doctorado Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL. 712 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... de los temas de formación de educadores y diversidad cultural, son ínfimas las tesis que abordaron las propuestas de investigación del Marco de Acción, considerando que son prioritarios y requieren conocimientos imprescindibles para una mayor comprensión y resolución de problemas del campo de la EPJA. Con respecto a las nuevas áreas temáticas que se incluyen en la tabla 5A, a excepción de la educación básica con el mayor número de tesis, tienden a cobrar fuerza las TIC y en menor medida otras problemáticas y poblaciones específicas a las que no se había prestado la atención necesaria con seis a siete trabajos cada uno (las políticas públicas, los adultos mayores, las personas consideradas discapacitadas, los migrantes y quienes se encuentran en contextos de reclusión). El resto se distribuye en temáticas diversas con una a dos tesis. Comparación con los Informes Regionales Al comparar estos resultados con los Informes Regionales para CONFINTEA VI (TORRES, 2009) y el Informe Regional de CREFAL y CEAAL (CARUSO et al., 2008), se observan al menos cuatro coincidencias: 1. El reconocimiento de avances en la investigación educativa pero insuficientes y con una marcada distribución desigual (TORRES, 2009), concentrándose en los países grandes: Brasil, Argentina y México y Cuba en la región caribeña. 2. La alfabetización, línea de investigación fuertemente asociada con la EPJA, deja de tener primacía, tomando su lugar problemáticas como la formación, el género, la interculturalidad y la nuevas áreas temáticas que, en su conjunto, desplazan a la alfabetización y la educación básica e inclusive superan a nueve temas propuestos por el Marco de Acción (tabla 5), no obstante su menor visibilidad, impacto y legitimidad política (TORRES; 2009). Este desplazamiento significa a su vez, un giro gradual pero desequilibrado hacia los grupos y ámbitos de intervención Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. propuestos en el Marco de Acción y coincide a su vez con las diez tesis premiadas en el periodo analizado, pues cuatro de ellas se refieren a la alfabetización y el resto a temáticas diversas (CREFAL, 2011). 3. Diversas líneas temáticas de incuestionable relevancia cuentan con muy pocas tesis o con ninguna (evaluación, reformas educativas, calidad, desarrollo local, salud, programas innovadores, etc.). A este respecto, el Informe para CONFINTEA VI coincide en que la calidad y el aprendizaje siguen siendo distantes (TORRES, 2009) mientras que en el Informe Regional de Caruso, Di Pierro, Ruiz y Camilo (2008), se plantea la hipótesis de que varias de estas ausencias son producto de la falta de liderazgo simbólico de la EPJA en la actual coyuntura, lo que le impide articular en su marco de acción las políticas y prácticas en temas como: la educación ambiental, para la salud o para la incorporación de las TIC. De igual modo, y pese a los avances en evaluación de algunos países (Brasil, El Salvador, México y Chile), se subraya que la falta de cultura e investigación en esta materia dificulta conocer los impactos de los programas y proyectos de la EPJA (TORRES, 2009; CARUSO et al., 2008). 4. El impulso dado a las buenas prácticas educativas y la importancia de su difusión, tampoco aparece en las tesis concursantes al igual que los programas innovadores, las alternativas de educación no formal y los movimientos sociales. En este sentido, coincidimos en que su escasa diseminación y la aplicación de los resultados de investigación y evaluación siguen sin influir en los diseños de las políticas, la capacitación o en la enseñanza (TORRES, 2009, p. 48). Llama la atención que en Venezuela, por ejemplo, no se hayan reportado tesis sobre el papel de la Misiones Robinson. En resumen, este balance temático invita a reflexionar acerca del interés por problematizar y, en su caso, cubrir estos vacíos para aportar no solo bases teóricas que orienten las prácticas educativas sino para reclamar y hacer valer la importancia de la EPJA como 713 campo educativo abierto, dinámico, incluyente e indispensable para mejorar las condiciones de vida económica, social, cultural y política de toda la población desprovista de oportunidades de aprendizaje. Conclusiones El examen comparativo de las tesis del concurso permitió valorar positivamente su importancia porque a través de él se fomenta y conoce el estado que guarda la investigación de la EPJA en la región latinoamericana. En este sentido si bien hay avances, el panorama no es optimista ya que la participación en este certamen indica que la investigación de la EPJA es débil, desigual y con una fuerte tendencia a su diversidad temática. En efecto, el interés investigativo por la alfabetización y la educación básica fue reemplazado en los últimos años por múltiples temáticas pero las tesis relacionadas con las propuestas de investigación del Marco de Acción fueron mínimas, lo que mantiene un núcleo de problemas prioritarios que siguen sin 714 abordarse e invitan a los futuros egresados y estudiosos del campo de la EPJA a retomarlos en sus proyectos de intervención e investigación. Se constata a su vez que la EPJA es abordada predominantemente en universidades públicas, por mujeres y en programas de licenciatura y posgrado en educación en términos genéricos o desde las ciencias de la educación y la psicopedagogía. No obstante, coexisten con una variedad de programas que la analizan con una visión que no se reduce a lo educativo. Asimismo son escasos los programas ofertados por las universidades con referencia directa a la EPJA y a la formación especializada de educadores de adultos. Por esta razón es imprescindible una mayor vinculación de las universidades con el campo de la EPJA para fortalecer la formación antes mencionada y el desarrollo de proyectos de investigación educativa para contribuir, entre otros aspectos, a la sistematización de experiencias que se quedan en el olvido y a la ineludible redefinición conceptual de la EPJA en el marco del aprendizaje a lo largo de toda la vida. Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:... Referencias CARUSO, Arlés, et al. Situación de la educación de personas jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe: informe regional. México: CREFAL/CEAAL, 2008. CREFAL/Cátedras UNESCO. Convocatoria al concurso premio CREFAL a las mejores tesis sobre educación de personas jóvenes y adultas. México, 2011. Disponible en: <[email protected]>. Acceso en: 6 de junio de 2013. DE SIERRA, Rosaura; RODRÍGUEZ, Gisela. 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Disponible en: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001389/138996s.pdf>. Acceso en: 7 jun. 2013. Recebido en: 08.06.2013 Aprobado en:11.09.2013 Jaime Rogelio Calderón López-Velarde cursó la Maestría en Pedagogía en la Universidad Pedagógica Nacional (UPN) y el Doctorado en Ciencias de la Educación en la Universidad de Sevilla. Actualmente se desempeña como coordinador del Programa de Investigación y Posgrado en la Unidad Zacatecas de la UPN. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 715 O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar?I Marília Pinto de CarvalhoII Adriano Souza SenkevicsII Tatiana Avila LogesII Resumo Este artigo apresenta resultados de um estudo qualitativo que procurou conhecer os processos de socialização de gênero no interior de oito famílias de setores populares na cidade de São Paulo. Aqui enfocamos alguns dos aspectos que nos pareceram relevantes na compreensão da trajetória escolar melhor sucedida das meninas. Ao longo de 2011, foram feitas entrevistas semiestruradas com oito mães, dois pais e dez crianças, além de conversas e observações nas escolas, envolvendo ao todo 26 crianças e jovens. Obtivemos indicações de que: a socialização de gênero no âmbito das famílias de setores populares urbanos favorece nas meninas, e não nos meninos, o desenvolvimento de comportamentos frequentemente desejados pelas escolas, tais como a disciplina, a organização e a obediência (ou formas de desobediência menos visíveis); ao mesmo tempo, essa socialização faz com que a frequência à escola tenha significados diferentes para garotas e garotos, uma vez que elas são responsabilizadas pelo trabalho doméstico e têm muito menos oportunidades de sociabilidade. Essas mesmas restrições parecem fazê-las valorizar atividades extracurriculares com formatos próximos ao escolar e desenvolver aspirações ligadas a uma escolarização prolongada e a profissões qualificadas. A existência mesma desses planos ambiciosos, realistas ou não, pode ser impulsionadora de maior empenho nos estudos, realimentando a roda do sucesso escolar das meninas, que parece surgir de dentro da própria subordinação de gênero. Palavras-chave Desempenho escolar — Gênero — Socialização familiar — Setores populares urbanos — Meninas. I- Pesquisa financiada pelo CNPq II- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contatos: [email protected]; [email protected]; [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091637 717 School success of girls from poor communities: what is the role of family socialization? I Marília Pinto de CarvalhoII Adriano Souza SenkevicsII Tatiana Avila LogesII Abstract This article presents results of a qualitative study that sought to understand the processes of gender socialization within eight families from poor communities in the city of Sao Paulo. We focus on some aspects that seem relevant to understand the academic success of girls. Throughout 2011, semi-structured interviews were conducted with eight mothers, two fathers and ten children, as well as conversations and observations in schools, involving 26 children and young people. We obtained evidence that gender socialization within families of urban poor communities encourage the girls, not the boys, to develop the behaviors mostly desired by schools, such as discipline, organization and obedience (or less visible forms of disruption). At the same time, this type of socialization makes school attendance have different meanings for girls and boys, since the girls are held responsible for housework and have far fewer opportunities for sociability. These restrictions seem to make them appreciate extracurricular activities under schooled forms and develop aspirations associated with schooling and skilled occupations. The very existence of such ambitious projects, whether realistic or not, may be driving girls’ greater commitment to education, and may be feeding back their academic success, which seems to arise from the very gender subordination. Keywords School achievement — Gender — Family socialization — Poor urban communities — Girls. I- Research funded by CNPq II- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contacts: [email protected]; [email protected]; [email protected] 718 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091637 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. Já não é novidade constatar o sucesso escolar das meninas no Brasil. Apontado por Rosemberg desde a década de 1970, o melhor desempenho das mulheres em sua trajetória de escolarização vem sendo objeto de estudos quantitativos e qualitativos (ROSEMBERG; MADSEN, 2011; FERRARO, 2010; CARVALHO, 2009). Entretanto, a explicação desse fenômeno comum à maioria dos países ocidentais apresenta desafios teóricos, seja por significar uma inversão na assimetria entre homens e mulheres presente no conjunto da sociedade, seja por induzir muito facilmente a generalizações de caráter essencialista (ROSEMBERG, 2001). São comuns explicações universais como, por exemplo, a hipótese de que a socialização familiar das meninas seria mais compatível com as exigências das escolas – ligadas à disciplina, organização, capricho, submissão e silêncio –, enquanto os meninos seriam socializados para evitar a introspecção e a sensibilidade e para cultivar a rebeldia e a agitação. Pesquisas brasileiras sobre o ensino fundamental público, desenvolvidas em diferentes regiões do país, reiteram esse tipo de explicação (SOUZA, 2007; PALOMINO, 2004; CARVALHO, 2005; CAVALCANTI, 2002) e insistem na ideia de que os comportamentos valorizados pela escola seriam aqueles cultivados pelas famílias nas meninas e não nos meninos. Em outra vertente, estudos a respeito das relações que as famílias mantêm com a escolarização dos filhos assinalam a interdependência entre as condições sociais de origem e as formas dessas relações (NOGUEIRA; ROMANELLI; ZAGO, 2000 e 2013; ALMEIDA, 2009; BRANDÃO, 2010). Com apoio frequente nos estudos de Bourdieu e seus leitores, essas pesquisas, embora atentas a diversos aspectos das ações das famílias e dos sujeitos frente a seus processos de escolarização, raramente se perguntaram a respeito das diferenças entre os sexos1. Este artigo é resultado de pesquisa que procurou avançar nessa lacuna, conhecendo, 1 - Uma exceção é o doutorado de Glória (2009). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. por meio de estudo qualitativo, os processos de socialização de gênero no interior de oito famílias de setores populares na cidade de São Paulo. Aqui enfocamos alguns dos aspectos que nos pareceram relevantes na compreensão da trajetória escolar das meninas. A fim de evitar conclusões universais, o estudo focou famílias de setores populares urbanos, levando em conta que, em camadas sociais diferentes ou no meio rural, é possível que o melhor desempenho escolar feminino seja resultado de outros processos. Ao lado desse esforço para evitar essencialismos, buscamos também escapar de certa polarização que tem permeado os estudos nesse campo. De um lado, a explicação mencionada acima está baseada no que pode ser chamado de “síndrome da situação subordinada da mulher” (SILVA, 1993, p. 82), análises que colocam o sucesso escolar das meninas como simples reforço de sua subordinação. Na tentativa de romper com essa vitimização, algumas estudiosas trazem para primeiro plano a atuação deliberada de meninas e moças em busca de seu sucesso escolar, que seria construído por elas. Silva (1993), por exemplo, inverte a afirmação, mostrando que a maioria das alunas do ensino médio no Colégio Pedro II, por ela estudadas, eram autônomas, ativas e envolvidas com atividades extracurriculares, de forma contrastante com seus colegas do sexo masculino, o que resultava para elas em melhor desempenho escolar. Outras pesquisadoras destacam aspectos contraditórios da inserção feminina no trabalho doméstico, que não apenas facilitaria a continuidade dos estudos, em termos de horários e flexibilidade, como também levaria as moças, por contraste, a uma percepção positiva e agradável da escola. Tanto Madeira (1997) quanto Rosemberg, Piza e Montenegro (1990) enfatizaram a ideia de que a escola aparece para muitas meninas e moças como expressão de alguma liberdade de circulação e como lugar de ampliação do convívio social frente à quase reclusão em que vivem – reforçada pelo controle familiar sobre sua 719 circulação e lazer. As meninas veriam na escola um “respiradouro”, nas palavras de Madeira (1997), lugar em que disporiam de um tempo para si mesmas, fora do controle estrito da família e longe das tarefas do lar. DuqueArrazola (1997) encontrou até mesmo meninas recifenses que consideravam a jornada escolar como momento de descanso. Procuramos romper com abordagens dicotômicas e apreender as dimensões contraditórias das relações de poder ligadas ao gênero, que constituem ao mesmo tempo formas de subordinação e de autonomia. E, para não reiterar pressupostos afirmados de antemão, buscamos apreender na análise tanto dimensões de ruptura quanto de manutenção das posições subordinadas das mulheres. Caracterização dos sujeitos Os sujeitos centrais da pesquisa são pais e mães localizados a partir de três escolas públicas da zona oeste do município de São Paulo, nas quais seus filhos ou filhas estudavam. Em cada escola, um questionário de caracterização do grupo familiar dos/as alunos/as foi respondido pelos “responsáveis” e, a partir dele, foram selecionadas famílias que tinham pelo menos um filho de cada sexo em idade escolar e que se dispuseram a participar da pesquisa. A primeira questão a esclarecer, que já se revela nas aspas sobre o termo responsáveis é quem consideramos como família da criança. Dada a dificuldade em definir o conceito de família – já apontada, por exemplo, por Romanelli (2013) –, mantivemos nosso foco na dimensão empírica dos grupos familiares, acompanhando estudos críticos, como os de Fonseca (2005) e de Meyer e colaboradoras (2012). Assim, buscamos evitar os pressupostos de uma família nuclear completa, composta por pai, mãe e filhos, residentes num único domicílio e compartilhando a mesma renda; ao mesmo tempo, atentamos para as diferentes dinâmicas dos grupos familiares, conforme ampliávamos nossos contatos com eles. 720 Nos questionários das oito famílias pesquisadas, aparecem tanto o nome da mãe quanto o do pai e não foi utilizado o espaço destinado a “outros responsáveis”, o que pode indicar uma busca de conformidade ao modelo de família nuclear completa, por se tratar de um documento escrito enviado pela escola. Contudo, ao realizar as visitas e entrevistas, identificamos a presença de duas avós como cuidadoras regulares das crianças e duas famílias monoparentais. Numa delas, residia no domicílio uma bebê, filha de uma das irmãs, então com quinze anos de idade. Mas a coabitação de três gerações familiares por vezes não era evidente, pois se tratava de casas conjugadas ou superpostas no mesmo quintal. Dessa forma, consideramos como família ou grupo familiar o conjunto de pessoas que cuidava ou partilhava dos mesmos cuidados das crianças a partir de quem demos início à pesquisa, independentemente dessas pessoas residirem no mesmo domicílio e de seu grau de parentesco. Ainda assim, quase sempre nossas entrevistas envolveram somente mães, que compareciam à reunião na escola ou se dispunham a ser entrevistadas. Em duas famílias, foram entrevistados também os pais2 e, em uma, participou a avó. Do ponto de vista socioeconômico, podemos dizer que havia grande homogeneidade entre as oito famílias estudadas: declararam renda mensal entre R$ 950,00 e R$ 2.500,00; a escolaridade dos casais era no máximo o ensino médio incompleto, predominando o fundamental completo ou não; as profissões eram de baixa qualificação, com a maioria das mulheres ocupadas como empregadas domésticas e dos homens como trabalhadores da construção civil; e a maior parte das pessoas que trabalhavam fora estava inserida no mercado informal. Em seis famílias, a prole se compunha de três ou mais filhos/as e sete moradias eram muito parecidas: casas pequenas, de alvenaria, construídas pelos 2- O termo pais designará sempre os genitores de sexo masculino. Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... próprios moradores em favelas. Contavam com luz elétrica, água encanada e banheiro, mas os serviços de esgoto e de coleta de lixo eram precários ou inexistentes e eram frequentes os relatos de violência policial. Contudo, essas residências tinham móveis novos, televisão HD de tela grande, computadores e video games, eletrodomésticos novos e telefones celulares. Quatro dos grupos familiares tinham carro e quase todos vivenciaram, nos anos recentes, um aumento de sua capacidade de consumo, com acesso a crédito e bens duráveis. Ao longo de 2011, foram gravadas entrevistas semiestruradas com oito mães, dois pais e dez crianças, em seis3 residências. Em cinco das visitas, filhos e filhas participaram em diferentes momentos da conversa, tanto ao lado quanto separadamente dos adultos. Buscamos nas escolas informações sobre o desempenho das crianças, seja em documentos seja em conversas com educadoras, e ali também realizamos observações e conversas informais com tais crianças. Assim, foram envolvidos na pesquisa 14 meninos e 12 meninas, entre 6 e 18 anos de idade4. Desse total de 26 crianças e jovens, estavam fora da escola apenas: Jeferson5, de 18 anos, que abandonara o 1o. ano do ensino médio no ano anterior à pesquisa, contra a vontade de sua mãe; e Silvana, de 15 anos, que, já grávida, concluíra o ensino fundamental “empurrada”, de acordo com a coordenadora da escola, e, no momento da entrevista, dedicava-se ao cuidado da filha. Todos estudavam em escolas públicas de ensino fundamental ou médio. A respeito de 19 deles, obtivemos informações de seu desempenho acadêmico junto à escola; nos demais casos, recorremos às famílias. Dentre as 12 meninas, oito eram boas alunas, oscilando entre “excelentes” e “medianas”, e quatro “apresentavam dificuldades” de aprendizagem, nunca de disciplina. Já entre os 3- Duas famílias foram entrevistadas nas escolas. 4- Também faziam parte das famílias dois bebês com menos de 2 anos e duas crianças com 4 anos. 5- Todos os nomes são fictícios. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 14 alunos de sexo masculino, apenas cinco foram caracterizados como “medianos” ou “sem problemas”, nenhum como excelente e nove outros “apresentavam dificuldades” de aprendizagem e/ou disciplina, histórico de reprovações e repetidas convocações dos responsáveis à escola. Embora construído aleatoriamente, trata-se, portanto, de um grupo que corresponde às características de desempenho escolar que temos encontrado em nossos estudos (CARVALHO, 2009), assim como em diversas outras pesquisas no Brasil e em outros países. Sobre regras, controles e medos O tratamento igualitário entre os sexos no interior do casal e na educação de filhos e filhas é um dos ideais associados aos modelos contemporâneos de família, ao lado da valorização da infância, da afetividade e intimidade, assim como a presença de relações não hierárquicas entre os grupos de idade e o primado do indivíduo sobre o coletivo (DE SINGLY, 1996). Em estudo realizado junto a crianças moradoras em favelas do Rio de Janeiro, no início da década de 1990, Heilborn (1997) destaca que, se esse modelo é “capital na sociedade contemporânea, está longe, contudo, de ser um fato universalizado”, uma vez que o processo de difusão do individualismo “tomou como alvo, primeiramente, as camadas médias e altas da sociedade moderna” (p. 297). Assim, a autora encontrou lógicas distintas de organização das relações e das práticas sociais nas famílias que estudou, apontando, em consonância com outros estudos sobre a cultura dos trabalhadores urbanos no Brasil dos anos 1980-90, a prevalência do grupo sobre o indivíduo, a presença de relações hierárquicas entre os sexos e as categorias de idade, além da força de valores ligados à família e ao trabalho. Se, por um lado, não devemos nos iludir que houvesse, tanto quanto nos anos 1990 como hoje, relações igualitárias e não violentas no interior das famílias de camadas médias e altas, as duas décadas que separam a pesquisa 721 empírica de Heilborn da nossa parecem ter contribuído para uma maior difusão nas camadas populares dos ideais igualitários, do modelo de família como suporte à realização individual e do respeito às particularidades de cada criança. A comparação, feita por uma de nossas entrevistadas, entre a criação de seus próprios filhos em São Paulo e a educação recebida por ela (e ainda hoje por seus sobrinhos) numa pequena cidade baiana, não deixa dúvidas sobre mudanças na hierarquia entre categorias de idade e sobre sua dimensão não apenas temporal, mas também espacial (rural/urbana): Quando minha mãe esteve aqui, ficou horrorizada. Nossa criação lá no norte era outra; dos meus sobrinhos ainda é. Lá as crianças rezam pra dormir, rezam pra comer, pede benção pro pai e pra mãe. Aqui as crianças já respondem pro pai, pra mãe. Lá as crianças vão na missa. Aqui não, as crianças tão gritando, fazendo bagunça. Lá, se tem adultos conversando assim, elas nem passam perto que é pra não atrapalhar. (Marinete, 32 anos, quatro filhas e três filhos) Esse novo ideário parece também deslegitimar a afirmação explícita de diferenças de tratamento conforme o sexo e valorizar uma educação personalizada, ajustada às necessidades de cada criança. Assim, ouvimos em todas as entrevistas uma fala inicial que afirmava a igualdade de regras e exigências para toda a fratria: “O que serve pra um tem que servir pra todos” (Edinalva, uma filha e três filhos); “em casa, as regras são iguais pros dois” (Aldilene, um filho e uma filha); “na minha casa, é assim: eu só sei que o Daniel veste cueca e as meninas vestem calcinha, mas, no resto, a regra aqui em casa é para todo mundo” (Keila, um filho e três filhas). Essa ideia proclamada de igualdade, contudo, era desmentida seja na sequência das entrevistas, seja nas falas das crianças. 722 Por exemplo, Lívia, ouvindo a mãe (Aldilene) afirmar que as regras em casa eram iguais, disse baixinho, para a pesquisadora auxiliar, que não a deixavam ficar no computador até tarde, mas a mesma restrição não era feita ao irmão, que, segundo ela, ficava no computador até de madrugada. Já Keila, mãe citada acima, logo após afirmar que só via diferença entre filho e filhas nas roupas íntimas, disse: “acho que as meninas dão mais trabalho”. Assim como Keila, quase todos os pais e mães disseram se preocupar mais com as meninas, consideradas mais frágeis, vulneráveis: “Eu acho assim que menino homem é mais... nada pega, né, em menino homem. Já em menina mulher é mais... tem que ter um pouco de cuidado” (Marinete, quatro filhas e três filhos). Era evidente a preocupação dessas mães com a gravidez na adolescência, vivida por seis delas, quando tinham entre 14 e 17 anos de idade. Mas também apareceram preocupações com os meninos, tanto diante da possibilidade de “arrumar criança” quanto em razão do perigo de envolvimento com drogas e violência: “eu tenho medo e eu me preocupo mais, do jeito que estão as coisas hoje em dia. Eu dou mais em cima dele porque ele é menino e eu me preocupo mais com ele” (Alice, um filho e duas filhas). De toda forma, as meninas eram muito mais vigiadas e tinham horários e espaços de circulação mais restritos que seus irmãos. De maneira muito semelhante, Barroso, entrevistando jovens portugueses que tinham pelo menos um irmão do sexo oposto, constatou que “está-se perante uma igualdade proclamada, mas desmentida pelos factos” (2008, p. 8). Os relatos obtidos pela autora permitiram-lhe afirmar que o sexo e a ordem de nascimento continuam a ser “os principais critérios de construção e desconstrução da igualdade de direitos e deveres entre irmãos/irmãs” e que, “nos casos em que essa desigualdade de tratamento não é assumida, apresenta-se de forma implícita” (2008, p. 8). Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... Não podemos desprezar o contexto da entrevista, como relação assimétrica, e o fato de que sujeitos que não necessariamente acreditavam numa educação igualitária entre os sexos facilmente deduziriam ser essa a posição dos(as) entrevistadores(as), em razão do próprio tema da pesquisa, que lhes foi explicitado. Assim, Evonete, por exemplo, mãe de dois meninos e uma menina, empregada doméstica, que concluíra o ensino médio na modalidade EJA há cerca de dois anos, evitou ao máximo fazer generalizações sobre homens e mulheres e tentou contornar a ideia de que as regras para filha e filhos eram diferentes. Mas, em entrevista feita separadamente, seu filho Luciano (9 anos) afirmou que a irmã de 7 anos não podia brincar de carrinhos porque sua mãe não deixava – “É, carrinho é pra menino” –, da mesma forma que ele não podia brincar de boneca. Talvez com menor preocupação em demonstrar um discurso adequado para os(as) pesquisadores(as), Marta (avó de três meninas e um menino), declarou: Homem pode tudo [...]. Eu acho que todas as meninas são mais cobradas, pelo que a gente vê, no geral [...]. Então, a minha opinião é essa aí: que a mulher é mais cobrada em tudo, e tem que fazer, tem que estudar, tem que trabalhar dentro de casa – e o menino não. O Daniel é o dia inteiro no computador. A maioria dos pais e mães buscava explicar as diferenças no tratamento que davam a meninos e meninas a partir de características individuais de cada criança, recorrendo aos ideais de uma educação personalizada: “Porque são quatro e nenhum dos quatro tem a mesma cabeça, nenhum dos quatro pensa igual. Como todo ser humano” (Edimara, uma filha e três filhos). Chamou nossa atenção a frequência dessas falas, assim como de descrições das características ou história de cada filho(a) – doenças, período vivido longe da mãe, influência da avó etc. –, que indicam a difusão desse modelo de educação individualizada. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. Cabe destacar, contudo, que essas características personalizadas eram invocadas para justificar desigualdades de gênero nas regras e tarefas atribuídas, com maior peso sobre as meninas. Ora elas precisavam ser mais controladas por serem mais jovens, ora por serem mais velhas; por serem delicadas ou desobedientes e atrevidas; ora lhes cabia maior fatia do trabalho doméstico por serem primogênitas, ora por serem prestativas, ou porque seus irmãos eram desajeitados; uma era descrita como frágil, outra como “songamonga”6, uma terceira como pretensiosa, e todas essas características justificavam maior controle ou preocupação. Em síntese, os modelos educativos que encontramos dialogavam em diferentes graus com as prescrições de infância, igualitarismo e individualidade, presentes nos ideais de família contemporâneos, mas não rompiam com a desigualdade de gênero: por meio de uma vigilância mais estrita dos pais e mães, as filhas pareciam aprender desde muito cedo certas características que as professoras reconhecem como femininas e frequentemente valorizam, tais como a organização, a obediência, o silêncio e a calma. Provavelmente faziam parte desse aprendizado até mesmo as formas de romper com as regras de maneiras discretas e que significavam menor enfrentamento direto, já descritas, por exemplo, por Bernardes (1989). Essas características apareciam para pais e mães como espontâneas, naturais e derivadas do simples fato das filhas serem meninas. A divisão de trabalho entre pai e mãe Em nossa sociedade, pais e mães envolvem-se no cuidado com a prole e nas tarefas domésticas de forma muito desequilibrada em termos do tempo empregado e do tipo de tarefa desenvolvida, questão já explorada na literatura (PINHEIRO et al., 2008; BRUSCHINI, 2006). 6 - Boba, sonsa. 723 Mesmo quando trabalhavam fora, as mães continuavam como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos. Quando declaravam dividir esse trabalho, as tarefas feitas pelos pais eram consideradas como ajuda: “O serviço é meu e ele me ajuda” (Evonete, família 6). Quando presentes nas entrevistas, os pais por vezes comentavam orgulhosos sobre tarefas que tinham cumprido recentemente, o que só ressaltava seu caráter excepcional: “A gente divide. [...] Eu lavo louça... arrumo a casa. Ontem mesmo, eu limpei tudo, lavei o banheiro” (Wilson). Bruschini e Ricoldi (2012) encontraram, em pesquisa qualitativa com grupos de homens dos setores populares, uma maior participação deles no cuidado com os filhos e na limpeza da casa, seja em relação a estudos anteriores seja frente à percepção inicial deles próprios de que esses seriam assuntos pertinentes apenas às mulheres. Assim, embora as companheiras gastassem mais horas do que eles nessas tarefas, ao detalharem sua rotina, os homens revelaram ter alguma participação. O mesmo ocorreu nas famílias ouvidas por nós, com a maioria dos pais que coabitavam com as crianças sendo descritos por si mesmos ou pela parceira como participativos e presentes em pelo menos algumas das tarefas de cuidado. Em geral, os pais eram responsáveis pelo transporte das crianças para a escola quando a família tinha carro, e alguns frequentavam as reuniões escolares, principalmente quando tinham escolaridade maior que a mãe ou horários de trabalho mais flexíveis. Mas as mães eram as principais responsáveis pelo acompanhamento das lições de casa e pela educação das crianças, o que teve consequências na pouca disponibilidade dos pais para participar das entrevistas da pesquisa. Estes eram também territórios de negociação no âmbito do casal, como destacou Romanelli (2013) ao apontar a quase onipresença das mães como interlocutoras nos estudos sobre as relações entre família e escola: “essa questão remete à assimetria e desigualdade nas relações de gênero e não pode ser aceita como 724 natural na vida doméstica” (p. 53). O autor põe em relevo as relações de poder entre homens e mulheres, ao lado das tentativas das mães de controlar o espaço doméstico e a educação dos filhos e filhas. Isso se tornou evidente para nós, por exemplo, quando tentamos ter acesso à residência de Regina e André para lá entrevistar seus filhos. Ao ouvir esse pedido, ele nos respondeu: “Aí tem que marcar com a mulher. Porque aí quem manda é a mulher”. Assim, embora tentássemos incluir os pais, apenas dois foram entrevistados, o que nos levou a prestar atenção a possíveis vieses nas falas das mães, que poderiam estar marcadas por seu esforço em manter o poder sobre essa esfera da vida. Brugeilles e Sebille (2009), analisando os resultados de questionários sobre a participação de pais no cuidado e educação de filhos/as na França, encontraram diferenças significativas conforme a resposta fosse dada por pais ou por mães. “Cada um valorizava seu próprio papel” (p. 21), dizem os autores, que interpretam essas diferenças como fruto das relações de poder, mas também como resultado de formas diferentes de definir cada tarefa e como consequência da legitimidade dos discursos de divisão igualitária do trabalho entre os sexos. Algumas de nossas entrevistadas, ao contrário, provavelmente em razão desses mesmos valores igualitários, tenderam a supervalorizar a atuação de seus parceiros: “Na realidade, quem não faz muita coisa aqui sou eu” (Keila). Ou, quando entrevistadas por duas mulheres, buscavam nossa cumplicidade: “O André colabora. [risos] Vocês sabem como é, homem ajuda, né?” (Regina). De toda forma, parece-nos fundamental destacar que se trata de relações de poder com supremacia masculina (e aqui não nos deteremos, por exemplo, nos casos de pais alcoolistas e de violência doméstica), relações que são fonte cotidiana de aprendizado para filhos e filhas a respeito de seu lugar de gênero. Sem dúvida, o exemplo das atividades parentais é uma fonte decisiva na socialização de gênero das crianças, mais ainda que a Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... educação explícita (BRUGEILLES; SEBILLE, 2009; OCTOBRE, 2010). Isto é, se meninas e meninos aprendem cotidianamente a respeito de hierarquias e também sobre passividade, obediência e autocontrole ou, ao contrário, poder, ação e rebeldia, têm grande peso nesse aprendizado as relações de poder entre seus pais e mães, assim como a divisão de trabalho entre eles. Também fazem parte desse aprendizado implícito rupturas, questionamentos, formas de contornar essas hierarquias e de obter poder nos interstícios da dominação. Meninas e meninos frente ao trabalho doméstico Todas as meninas participavam mais intensamente que seus irmãos das tarefas domésticas, mesmo quando a colaboração das crianças era secundária: Lívia (10 anos) contou que o irmão de 17 anos bagunçava o quarto que dividiam. Aldilene, sua mãe, pedia para ele arrumar, “mas, se ele não faz, eu mesmo arrumo”. Já na família de André (pai, um filho e uma filha), ele estabelecia uma clara diferença de atribuições, indo contra as ideias de sua parceira Regina: A mãe tenta forçar eles, “tem que fazer isso, tem que fazer aquilo”. Eu já sou contra. Ela fala que eu sou meio machista, eu falo: “ó, trabalho de casa, quem faz é a mulher, a mulher!” Não digo algumas coisas que o homem faz, mas querer obrigar, já querer ensinar a fazer arroz, fazer comida, não. Ensina ela, ensina a menina, porque, quando ela crescer, ela vai cozinhar [...]. Mas o menino, não. Eu não obrigo ele a fazer. Não precisa ele fazer isso. (André) Em outras cinco famílias, as meninas tinham papel fundamental e até mesmo exclusivo na execução dos trabalhos da casa e no cuidado com os irmãos e irmãs menores. Emily, de 10 anos, sendo a filha primogênita de Wilson e Edimara, numa fratria com mais três Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. meninos, assumira desde cedo o cuidado com eles enquanto a mãe trabalhava fora. A desenvoltura da garota durante a entrevista, feita em sua casa, seja no cuidado com o irmão caçula, de 1 ano e 7 meses, seja no preparo de café para nos servir, só comprovou isso. Ela nos declarou que mesmo o irmão de 8 anos praticamente não a ajudava em nada: “Ele é preguiçoso”. Nas casas das mães Alice, Keila e Marinete, as meninas eram as principais responsáveis pelo serviço doméstico, que não era partilhado pelos irmãos: Eu falo: “Filhas, passem as roupas, porque a mamãe tem bastante roupa, passa um pouco que, quando eu chegar, eu passo o outro”. E elas passam, elas arrumam a casa, a Francimary [11 anos] você tem que ver, ela arruma a casa igual gente grande, limpa. [...] (Alice, um filho e duas filhas). Fazem tudo. Eu chego e a casa está toda arrumada, a comida feita, e a menor [Leila, 4 anos] tomada banho e trocada. [Quem cozinha?] A Luciane [11 anos], e a Valentine [14 anos] cuida da casa. Lava roupa, passar não passa, mas ela lava roupa e cuida da casa toda. [...] O Daniel [16 anos] não faz nada, ele não lava um copo, mas também eu não deixo ele fazer nada, porque, se ele for fazer ele vai quebrar todas as coisas. (Keila, um filho e três filhas). É, como eu tô trabalhando, quando eu chego na minha casa, tem janta pronta, o almoço tá pronto, a roupa toda lavada, a roupa tá passada. [Quem é que faz?] A Silvana [15 anos] e a Alaíde [18]. A Sirlene [14] não ajuda nada.7 [...] Os meninos também não. Eles falam assim que quem faz serviço de casa é mulher. (Marinete, três filhas e quatro filhos). 7 - Sirlene foi qualificada pela mãe e irmãs como “songa-monga”. Ela tinha sérios problemas de atraso na aprendizagem escolar (frequentava o 4º ano do fundamental e não estava alfabetizada), além de dificuldades na fala. 725 Silvana e Alaíde contaram que, às vezes, os meninos (todos com menos de 13 anos) falavam para elas “a gente manda e vocês obedecem”, ao que elas responderiam: “nós não somos empregadas para fazer o que vocês mandam”. Esse diálogo nos pareceu particularmente revelador das relações de poder envolvidas na divisão do trabalho doméstico e das contestações das meninas ao lugar de subordinação que lhes é reservado. Já na família de Edinalva (três filhos e uma filha), um dos meninos, Vicente, de 13 anos, dividia com equidade as tarefas com sua irmã Giovana, de 12 anos, com certa participação do irmão mais novo. Apenas o primogênito não participava, conforme as palavras da mãe, confirmadas por Giovana e Vicente em conversas posteriores: O mais velho diz: “Eu trabalho fora, não posso!” Aí eu digo: “Eu trabalho fora, cozinho pra vocês e lavo roupa!” Mas, ele não gosta muito não. Mas o Vicente não reclama sobre isso, se eu chamar ele me ajuda. (Edinalva). Apesar dessa exceção representada por Vicente, mais uma vez as palavras diretas de Marta, avó de um menino e três meninas, sintetizam bem o quadro geral: O que eu vejo é que nós, mães, colocamos mais coisas para as meninas fazerem do que para os meninos, tipo coisas assim de dentro de casa. Eu não sei em outros lugares, mas aqui as meninas são verdadeiras donas de casa, elas são, mas o Daniel já fica mais... [gesto de liberdade] porque é homem. Dados quantitativos confirmam a ampla desigualdade na divisão do trabalho doméstico: de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2006, 56% dos meninos e 78% das meninas entre 10 e 14 anos realizavam tarefas domésticas, sendo que, 726 nesse grupo, 32% das moças e somente 8% dos rapazes gastavam mais de 11 horas semanais nesta atividade (ARTES, 2009, p, 104). Contudo, é interessante destacar em muitas das falas de nossas entrevistas a presença de críticas a essa divisão desigual das tarefas, que não aparece naturalizada e inquestionável como encontrou Heilborn (1997) nas famílias que estudou nos anos 1990. Diante das críticas de Marta, das respostas de Alaíde e Silvana aos irmãos, das acusações de machismo feitas por Regina a seu cônjuge, da participação ativa de Vicente nas tarefas, entre outras falas e situações, já não seria possível sintetizar o que ouvimos nos termos feitos por aquela autora, cujas entrevistadas não questionavam “o porquê de as mulheres realizarem a totalidade do serviço doméstico” (HEILBORN, 1997, p. 324). Que consequências a responsabilização pelo trabalho doméstico tem sobre o desempenho escolar das meninas de setores populares urbanos? O estudo já citado de Artes (2009) concluiu que as tarefas domésticas parecem ter algum efeito negativo sobre a escolarização das meninas somente quando ocupam mais de 11 horas por semana, certamente por tomar-lhes tempo e esforços. Mas nos parece que também os significados atribuídos aos afazeres domésticos, assim como o fato deles serem desenvolvidos de forma isolada no interior dos domicílios são muito relevantes na compreensão da postura das meninas frente à escola. Já foi enfatizado por outras autoras (ROSEMBERG et al., 1990; HEILBORN, 1997; MADEIRA, 1997; DUQUEARRAZOLA, 1997) que as meninas de setores populares ficam praticamente confinadas em casa, seja pelo trabalho doméstico, seja por uma educação em que a família restringe sua circulação. Esse contexto levaria as meninas a perceberem mais positivamente a escola, como um espaço de sociabilidade, liberdade, realização pessoal e até mesmo de lazer. A fala de Keila (mãe, um filho e três filhas) sobre as responsabilidades e castigos que atribuía às filhas é muito esclarecedora desses significados: Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... De vez em quando, elas faltam [à escola] por coisa de casa mesmo, porque elas não fazem as coisas em casa. Aí eu chego e faço elas fazerem, e elas não vão para a escola nesse dia [...]. Porque elas ficam o dia inteiro com a cara para o ar, e eu lá trabalhando. E, quando dá a hora de ir para a escola, elas largam a casa sem fazer nada, e vai para a escola com as amigas. Aí não dá. (Keila, grifo nosso). Cabe destacar que o filho mais velho de Keila, Daniel, de 16 anos, não participava de qualquer tarefa doméstica nem trabalhava fora, mas faltava frequentemente à escola, quase sendo reprovado por faltas no ano anterior à pesquisa. A mãe declarara que o “obrigava a ir para a escola”. Se para as meninas era um castigo faltar à aula, aonde iriam “com as amigas”, para o menino o castigo era inverso, situação que possivelmente condicionava e ao mesmo tempo refletia posturas diferentes do menino e das meninas no cotidiano das salas de aula. Quantas outras crianças estarão aprendendo os mesmos significados e prioridades, a escola como prêmio ou castigo? O lazer ou a falta dele Nos fins de semana, o tempo livre era em geral ocupado por atividades em família, envolvendo tanto meninos quanto meninas, sem diferenciação. Apenas os(as) mais velhos(as)principalmente os rapazes – por vezes saíam sozinhos ou não aceitavam ir a alguma atividade. Na verdade, as famílias saíam pouco e em geral iam à casa de parentes, a parques públicos ou igrejas: “de final de semana, a gente fica em casa mesmo” (Alice); “Nós vamos para a igreja porque é a nossa ‘night’. É verdade, lá nós fazemos tudo o que nós queremos fazer – canto, churrasco, passeios – mas nos conformes” (Keila). Algumas vezes, percebíamos que pais e mães sentiam-se na obrigação de relatar atividades de lazer e rememoravam uma saída que na verdade era excepcional, como no caso de Wilson, que havia Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. adquirido recentemente um carro e comentou: “muitas vezes a gente sai. Faz o quê... faz duas semanas, a gente foi pra praia”. De fato, o tempo das mães e das meninas só se tornava livre, até mesmo nos fins de semana, depois de concluídas as tarefas domésticas e essa parece ser a principal diferença no que se refere a gênero: Eu trabalho um sábado sim, um sábado não. O domingo é “vapt-vupt”, a gente [mãe e filhas] faz o almoço, termina de fazer o almoço uma hora, vai almoçar, aí chega uma amiga na casa da gente, aí o dia foi embora, e eu vou descansar também pra semana. (Alice, duas filhas e um filho). As residências eram muito pequenas, e nelas observamos a rara presença de brinquedos e mais raramente ainda de livros, enquanto as ruas – estreitas, sujas, sem arborização – eram consideradas espaços perigosos, em geral devendo ser evitadas. A única família em cuja casa observamos muitos brinquedos e alguns livros infantis foi a dos filhos de um zelador de edifício e de uma empregada doméstica, e as crianças nos disseram que a maior parte havia sido doada, já usada pela patroa de sua mãe e uma vizinha do edifício. Nas demais entrevistas, as meninas declararam gostar de: brincar de corda e de elástico; brincar com bonecas, de escolinha, usando pequenas lousas, e de médica. As bolas de futebol e pipas eram unanimidade entre os meninos. Em seis famílias, constatamos a presença de cachorros, com os quais as crianças brincavam, sendo descritos como sua “companhia”. Na maioria dos núcleos familiares, contudo, as principais distrações dentro de casa eram o computador, o video game e a televisão. Games e computadores eram disputados entre irmãos e irmãs, mas as entrevistas e observações indicaram que eles eram majoritariamente usados pelos meninos: “O Daniel é o dia inteiro no computador. [...] Todo mundo fica um pouquinho, mas ele fica mais porque ele fica no Face[book]” (Keila, mãe). 727 Parte das famílias tinha acesso à internet em casa. Embora não tenhamos feito essa pergunta diretamente, as menções ao uso de redes sociais e e-mails nos mostraram que essa não era uma situação rara. Pesquisa divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI. br)8, com dados coletados em 2012, constatou que 71% dos alunos do ensino fundamental e médio na região sudeste tinham em casa computador com acesso à internet e as famílias que estudamos parecem incluir-se nesse quadro. O video game era tomado como equivalente ao computador e este era descrito como brinquedo e fonte de distração, não como fonte de conhecimento, relacionado à escola ou ao trabalho: “A Cintia gosta de um video game de veterinário que tem de cuidar dos bichinhos, está sempre brincando disso no lap top” (Regina, mãe); “Em casa, a Lívia joga video game, fica no computador ou brinca com suas bonecas” (Aldilene, mãe). E, ao contrário do encontrado por Octobre (2010) na França, quase sempre quando o computador tinha um dono específico, pertencendo a um dos meninos: da posse e da utilização de computadores no desempenho escolar ou na ampliação de horizontes culturais. Às meninas, com a rua quase interditada, restava assistir televisão e às vezes desenhar e jogar dominó, sempre no confinamento dos pequenos espaços de seus lares: “As meninas ficam assistindo televisão, elas ficam fazendo desenho, é assim” (Alice); “É, o que elas gostam mais é ver televisão, elas gostam de novela. É mais televisão mesmo” (Marinete, mãe). Brincar na rua Entre famílias francesas, Octobre (2010) aponta uma tendência a comprar computadores para as meninas, por se tratar de equipamentos caros e delicados, dos quais supostamente elas cuidariam melhor, além de saberem extrair mais benefícios escolares de seu uso. No grupo investigado por nós, a associação dos computadores aos jogos parecia garantir sua masculinização, embora ele fosse utilizado também pelas meninas, principalmente para jogos não violentos e participação em redes sociais. Assim, eram pífias as repercussões Durante a semana, o lazer fora de casa significava ficar conversando na porta dos vizinhos, empinar pipas na rua e jogar em campinhos de futebol improvisados em terrenos baldios, já que as residências não tinham quintal e ficavam em bairros onde inexistem praças ou centros esportivos públicos. Essas atividades fora de casa, em quase todas as falas de pais e mães, eram permitidas apenas aos meninos.9 Por exemplo, na família de Ernani (12 anos) e Cláudia (9 anos), de acordo com o pai (André), o menino podia brincar na rua, junto com amigos da vizinhança, onde jogavam bola, andavam de bicicleta e empinavam pipa. Além disso, Ernani ia a pé sozinho à escola e ao projeto educativo que frequentava no contraturno: “É menino, tem que deixar um pouco solto” (André, pai). Já Cláudia era levada de carro por ele à escola e ao projeto. A mãe, Regina, afirmou explicitamente que preferia “manter a filha mais em casa, porque é menina”, sendo-lhe permitido trazer amigas e eventualmente frequentar a casa de uma colega de escola. São regras semelhantes às descritas por Alice, que sustentava e educava sozinha seus três filhos (Fernando, de 15 anos, Fernanda, 13, e Francimary, 11): “Aqui na rua, ninguém vê meus filhos andando, só quando vão para a escola mesmo. Quando eu chego, eu boto para dentro, eles vão assistir televisão e vão dormir.” 8- http://www.cetic.br/educacao/2012/alunos/B8.html, acessado em 29/05/2013. 9- Uma exceção era a família do zelador de um edifício de bairro de elite, com inserção diferente na rua e na vizinhança. Tem aquelas briguinhas entre os dois (irmão e irmã) de disputa de computador. O computador é dele, eu dei pra ele. Logo que ele me pediu eu falei “eu vou te dar um computador”. (André, pai) 728 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... Embora essa fala inicial se dirija a todos, aos poucos, percebe-se que há alguma flexibilidade, e que ela é maior para o filho: As meninas, não vem ninguém chamar elas aqui, só quando é mesmo para ir para algum lugar, o shopping ali mesmo, que a Fernanda vai com a prima dela, às vezes, comprar alguma coisa. E não saem para lugar nenhum. [...] Elas vêm juntas da escola, e eu falo para elas que é da escola para casa. [...] O Fernando, quando chega algum amigo chamando para jogar bola, depende do horário. Às vezes, chega à noite chamando e eu não gosto, eu tenho medo. (Alice, mãe) Evonete pareceu ser ainda mais rigorosa e muito raramente permitia à filha, Ana Lúcia, de 7 anos, dormir fora, mesmo na casa da tia: Ela não vai muito, porque ela é menina, e eu não gosto muito de deixar. Eu acho que menina tem que estar ali mais ou menos ao alcance dos olhos da mãe. Eu não gosto, mas como é minha irmã, eu abro uma exceção, uma vez ou nunca, é muito raro. (Evonete, mãe) Isso não significa que as crianças não transgredissem as regras e não saíssem das casas apertadas em busca de sociabilidade e lazer. Com ou sem conhecimento dos pais e mães, tanto meninos quanto meninas nos contaram que saíam, seja para jogar futebol seja para encontrar amigos e amigas. Um caso típico foi o da família de Marinete, numerosa e vivendo nas piores condições dentre todas que entrevistamos. Perguntada sobre as regras a respeito de locais e horários de lazer dos três filhos e quatro filhas, que tinham entre 7 e 18 anos, sendo que uma das moças, com 15, já era mãe, Marinete nos esclareceu que os meninos, quando não estavam na escola, estavam “no campo jogando bola. Tem o campinho aqui perto”, como acontecia durante a entrevista. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. Já as filhas: “As meninas ficam mais dentro de casa. [Você deixa sair?] A gente nunca deixou. Mas você viu o que aconteceu, né?! De tanto não deixar sair, olha aí no que deu!” [aponta a bebê no colo da filha, risos]. Se a preocupação com o controle da sexualidade das meninas é bastante evidente nessas falas, os espaços externos eram percebidos como fonte de perigo tanto para meninas quanto para meninos. Em relação aos filhos, o envolvimento com drogas e seu tráfico parecia ser o principal motivo de atenção, como descreveu, por exemplo, Keila, mãe de um rapaz e três meninas: O povo não sabe, mas estamos em uma guerra já, um matando o outro, o medo de uma mãe é esse: perder os filhos para duas coisas, para as drogas e para o mundo. Porque o mundo vem e mata, agora é assim. Se envolveu com droga atualmente, você é cobrado porque você é um drogado. (Keila, mãe) Assim, filhos de ambos os sexos eram objeto de preocupação e controles. Os riscos ligados à masculinidade se relacionavam principalmente ao envolvimento com atividades ilícitas, forma possível para obtenção de renda e exercício do poder (ZALUAR, 2010). Mas a diferença de gênero era nítida no que se referia à sexualidade. Como já indicamos, a maioria dos pais e mães começava falando em igualdade nas regras que empregavam na educação das crianças, mas quase sempre desembocavam em diferenças. Edimara, após declarar ter deixado o emprego para ficar mais próxima da filha mais velha, Emily, de 10 anos, em razão dos perigos externos, comentou sobre as possibilidades de sua filha ou seus filhos tornarem-se mãe ou pais: É o que eu falo pro Alex (8 anos), a mesma coisa: a partir do momento que você engravidar uma menina, seja ela preta, branca, pobre, rica, você vai ter que assumir. [...] Aí, quando você tiver na 729 idade de dançar, de beber, de pegar uma aqui, uma ali, levar uma pro matinho hoje, levar outra pro matinho amanhã, você ia conhecer a branca, a preta, a amarela, rosa, mas você vai estar ali, com uma só. Todo dia vai ter que olhar pra cara dela, de manhã, de tarde, de noite! (Edimara, mãe) Certamente Edimara não teria deixado o emprego para olhar de perto a filha de 10 anos se sua visão sobre o exercício da sexualidade da menina fosse a mesma, isto é, se tivesse expectativas de que ela “conhecesse o branco, o preto, o amarelo”, nos “matinhos”, antes de se casar ou estabelecer um relacionamento fixo. Este é um bom exemplo do que observamos nas oito famílias: apesar de regras semelhantes, as restrições à circulação no espaço público eram muito maiores às meninas, que se viam praticamente confinadas à casa. Como sintetizou com clareza Edinalva: “Homem tem a passagem livre, como dizem. Mulher não.” Combinada à sobrecarga de trabalho doméstico, essa restrição levava as meninas a uma vida bastante restrita, passando muitas horas fechadas dentro de suas casas. Como apontamos ao discutir a responsabilidade das meninas pelos afazeres domésticos, há fortes indicadores de que a escola representa para as garotas um espaço de liberdade, sociabilidade e realização pessoal. Já para os meninos, a escola representaria uma pausa nas atividades coletivas e de lazer nos campinhos de futebol, nas vielas. Assim, parece que os anos que separam nosso trabalho das pesquisas reunidas na coletânea organizada por Madeira (1997) não trouxeram mudanças relevantes para as crianças e jovens de camadas populares urbanas, no que se refere ao papel que a escola pode representar no contexto das diferenças de gênero em sua socialização. Se o acesso à escolarização ampliou-se de forma significativa nesse período, a relação tumultuada, interrompida e malsucedida de parte expressiva desses meninos com a escola parece reiterar que, para eles, esse é um espaço de restrição, ao contrário da vivência de suas irmãs. 730 Atividades extraescolares e planos de futuro Uma de nossas hipóteses iniciais, inspirada na pesquisa de Silva (1993), era de que as famílias oferecessem atividades extraescolares diferenciadas para meninos e meninas, com as segundas mais envolvidas em práticas que contribuiriam para seu desempenho escolar, já que eles se dedicariam principalmente a esportes. Essa hipótese confirmou-se parcialmente, pois, ainda que as garotas fossem mais numerosas em atividades não esportivas, parece importante considerar sua escolha ativa e sua iniciativa em busca dessas práticas, mais do que a simples oferta por parte dos(as) adultos(as). No conjunto das famílias, encontramos: quatro casos em que nenhum dos filhos ou filhas praticava atividades extracurriculares; uma família em que todos(as) participavam de práticas esportivas, embora diferenciadas por sexo (natação para todos, meninos no futebol e menina na ginástica artística); uma família em que ambos – irmão e irmã – frequentavam entidades filantrópicas no contraturno, nas quais praticavam esportes, tinham acompanhamento das lições de casa e projetos ligados ao meio ambiente e cidadania; e duas famílias nas quais somente as meninas participavam de atividades extras oferecidas pela escola em que estudavam (jornal e teatro). Além disso, numa dessas últimas famílias, as meninas eram também muito envolvidas com práticas sistemáticas das igrejas que frequentavam10. Portanto, parece que as famílias que ofereciam atividades extracurriculares o faziam sem distinção de sexo, a qual aparece somente se consideramos o tipo de atividade. Enquanto os meninos quase sempre iam para práticas esportivas, cinco meninas e apenas dois meninos tinham outros tipos de atividade. Consideramos, com Silva (1993), que as práticas 10- A família como um todo variava com frequência o vínculo a diferentes igrejas evangélicas e, no momento da entrevista, as filhas não participavam das mesmas igrejas que os demais familiares. Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... esportivas da forma como são hoje oferecidas pouco contribuem para um melhor desempenho escolar. No que se refere ao desenvolvimento da leitura e escrita ou à maior familiaridade com o mundo letrado e outros elementos da cultura escolar, as práticas desenvolvidas pelas meninas fora da escola pareciam ser mais eficazes, desde a participação em grupos de teatro e jornal até a oferta de aulas e atividades para crianças menores no âmbito de igrejas. Mesmo quando envolvidas em contextos semelhantes aos de seus irmãos, as meninas pareciam potencializar essas atividades como aprendizagem útil à escola, como era o caso de Ernani (12 anos) e Cláudia (9), ambos frequentando entidades filantrópicas11. Cláudia sempre fazia as lições de casa sob supervisão na entidade que frequentava, enquanto seu irmão alegava que os monitores não o autorizavam a fazer isso, informação que foi posteriormente contestada pelo pai: “Minha mulher foi lá esses dias e a monitora falou ‘não, pode trazer, o que tiver de lição traz aqui que a gente ajuda’”. Uma das reclamações da escola de Ernani, relatada pela mãe, era exatamente o não cumprimento das lições de casa. Na família de Francimary (11 anos), Fernanda (13) e Fernando (15), apenas as meninas participavam do jornal e do grupo de teatro organizados pela escola fora do horário das aulas, embora todos estudassem lá. A mesma situação foi observada no caso de Daniel (16 anos), Valentine (14) e Luciane (11), que participavam de atividades ligadas à escola e a igrejas evangélicas. As meninas se envolveram nas oficinas extras oferecidas pela escola por iniciativa própria: durante a entrevista, a mãe não soube responder de quais atividades elas participavam. Seu irmão estudara na mesma escola até o ano anterior e não havia participado de quaisquer atividades. Além disso, Valentine e Luciane também escolhiam as igrejas com as quais desejavam “congregar” e ali desenvolviam 11- Cada um frequentava uma entidade diferente. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. diferentes práticas, muitas delas próximas do formato escolar, enquanto seu irmão mais velho, Daniel, estava envolvido principalmente com a música, atividade que partilhava com o pai e que desejava assumir como profissão. Cláudia, Francimary, Fernanda e Luciane foram classificadas por suas professoras como “excelente” ou “brilhante”, enquanto Valentine foi considerada “mediana”; já seus irmãos, Fernando, Daniel e Ernani, apresentavam constantes problemas de disciplina e aprendizagem em suas escolas. O que vemos, portanto, são escolhas ativas e parcialmente autônomas por parte das meninas, dentro do estreito leque de práticas extraescolares que lhes eram possíveis. Eram opções que as levavam a aproveitar essas oportunidades para melhorar sua aprendizagem ou as remetiam a atividades mais próximas ao modelo escolar. Não nos parece possível afirmar que essa seja a causa de um melhor desempenho das meninas: encontramos, em outras famílias, boas alunas que não praticavam atividades extracurriculares sistematicamente ou que praticavam atividades estritamente esportivas. Além disso, cabe perguntar se o fato de irem muito bem na escola impulsionava a participação de meninas como Luciane e Francimary em atividades de teatro e jornal ou, ao contrário, essa participação extra alimentava seu desempenho escolar. Tudo indica que se tratava de um círculo virtuoso de estímulo e aproveitamento ativo por parte dessas garotas, que, em meio à escassez, potencializavam suas oportunidades de acesso à cultura de prestígio. Paralelamente, seus irmãos pareciam consolidar um progressivo afastamento de atividades próximas ao modelo escolar, dedicando-se ao futebol e a atividades de trabalho e lazer distantes da cultura escolar. Também foi surpreendente constatar que as meninas, independentemente de suas idades, apresentavam, com mais frequência que seus irmãos, sonhos profissionais melhor delimitados e que exigiriam uma escolarização prolongada. Um menino declarou pretender 731 ser médico e outro músico, enquanto sete meninas queriam ser policial, médica, veterinária, bióloga, atriz, oficial da marinha, professora. A mesma situação foi descrita por Terrail (1992) junto às meninas francesas, que, de acordo com enquete nacional de 1988, mostraram-se mais ambiciosas que os meninos no que se refere ao nível de ensino que almejavam, assim como à profissão pretendida, independentemente das condições sociais da família.12 Este parece ser mais um círculo virtuoso: bem-sucedidas e sentindo-se à vontade na escola, várias meninas já aos nove anos de idade sonhavam com profissões qualificadas e estabeleciam planos ambiciosos que poderiam evitar as restrições do trabalho doméstico. A existência dessas aspirações, por sua vez, podia estar impulsionando-as a investir mais na escola, valorizar a aprendizagem e obter bons resultados. 12- Esse tema merece uma discussão muito mais detalhada, que não será desenvolvida aqui por razões de espaço. Conclusões Portanto, no que tange aos setores populares urbanos, temos indicações de que a socialização de gênero no âmbito familiar favorece nas meninas e não nos meninos o desenvolvimento de comportamentos frequentemente desejados pelas escolas, tais como a disciplina, a organização e a obediência (ou formas de desobediência menos visíveis); ao mesmo tempo, essa socialização faz com que a frequência à escola tenha significados diferentes para a maioria das garotas e garotos destes setores, uma vez que elas têm muito menos oportunidades de circulação, sociabilidade e estímulo. Essas mesmas restrições parecem fazê-las valorizar atividades extracurriculares com formatos próximos ao escolar e desenvolver aspirações ligadas a uma escolarização prolongada e a profissões qualificadas. A existência mesma desses planos ambiciosos, realistas ou não, pode ser impulsionadora de maior empenho nos estudos, realimentando a roda do sucesso escolar dessas meninas, que parece surgir de dentro da própria subordinação de gênero. Referências ALMEIDA, Ana Maria. As escolas dos dirigentes paulistas: ensino médio, vestibular, desigualdade social. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. ARTES, Amélia Cristina Abreu. O trabalho como fator determinante da defasagem escolar dos meninos no Brasil: mito ou realidade?, 2009. Tese (Doutorado) - Educação, Universidade de São Paulo, 2009. BARROSO, Margarida. Fratrias e gênero: contributos para uma análise sociológica das relações fraternais. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA, 5. Lisboa, 2008. BERNARDES, Nara. Crianças oprimidas: autonomia e submissão, 1999. Tese (Doutorado) - Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. BRANDÃO, Zaia. Operando com conceitos: com e para além de Bourdieu. 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É integrante do EdGES desde 2011 e bolsista de apoio técnico à pesquisa pelo CNPq, sob a orientação da professora Marília Pinto de Carvalho. Adriano Souza Senkevics é pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e mestrando na linha de pesquisa sociologia da educação na Faculdade de Educação da USP, sob a orientação da professora Marília Pinto de Carvalho. Em 2013, realizou um estágio de pesquisa na Universidade de Sidney, com a supervisão da professora Raewyn Connell. 734 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas... As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas Carlos Manoel Pimenta PiresI Resumo Na tentativa de compreender a gênese da educação dedicada especificamente às mulheres, analisaremos um livro didático usado em internatos e conventos de meninas, da segunda metade do século XIX e início do XX, chamado Manual de piedade da donzela cristã. Nossa proposta é descrever, em parte, uma das formas de constituição do modo de ser feminino na contemporaneidade, refletindo historicamente a respeito da elaboração de um saberpoder sobre as mulheres, fundamentando-nos em uma análise foucaultiana. Propomos recuperar o que tradicionalmente fora o organizador das instituições católicas femininas, ou seja, seus modos peculiares de normatização e manutenção das populações de meninas e mulheres ao modo disciplinador cristão, como um dos paradigmas do sujeito feminino. Assim, juntando-se a demandas normativas do período pós-revolucionário dos 1800 na produção de um feminino produtivo – transplantado nas figuras da boa mãe, da carinhosa esposa e da trabalhadora obediente, ou o que pudesse determinar a mulher socialmente controlada e promotora da família nuclear moderna –, formaram-se episteme e moral específicas da mulher, com participação paritária da teologia católica com outros campos de saber. Nossa tese é justamente a de que a formação do sujeito feminino contemporâneo tem ampla participação das instruções eclesiais. Para defendê-la, analisaremos o referido manual, que será considerado uma janela que nos abre para uma mirada investigativa do cotidiano de meninas em escolas confessionais e monastérios. Palavras-chave História da educação — Manuais escolares — Gênero e educação — Metodologia arqueológica foucaultiana. I- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022013005000028 735 The mortification of the flesh and the desire exposed: control over girls in Catholic institutions Carlos Manoel Pimenta PiresI Abstract In an attempt to understand the genesis of the education dedicated specifically to women, I analyze a textbook called Manual de piedade da donzela cristã (Manual of piety of the Christian maiden), which was used in boarding schools and convents for girls, in the second half of the nineteenth and early twentieth centuries. My purpose is to describe, in part, based on a Foucauldian analysis, one of the forms of constitution of the ways of being feminine in contemporary times, reflecting historically about the development of a knowledgepower over women. I propose to recover what had traditionally been the organizer of Catholic institutions for girls, i.e., their peculiar modes of standardization and maintenance of the populations of girls and women according to the Christian disciplinarian mode, as one of the paradigms of the female subject. Thus, the episteme and moral specific of women was formed, with equal participation of Catholic theology and other fields of knowledge, joining the normative demands of the post-revolutionary period of the 1800s in the production of a productive feminine – transplanted to the figures of the good mother, loving wife and obedient worker, or what could determine the woman socially controlled and promoter of the modern nuclear family. My thesis is precisely that the formation of the contemporary female subject has broad participation of ecclesial instructions. To defend it, I shall analyze that manual, which will be considered a window that opens to an investigative perspective of the everyday life of girls in denominational schools and monasteries. Keywords History of education — Textbooks — Gender and education — Foucauldian archaeological methodology. I- Universidade de Lisboa, Lisbon, Portugal. Contact: [email protected] 736 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022013005000028 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. Introdução: breve descrição da educação feminina até o século XIX Podemos afirmar que, com o advir da chamada modernidade, a família transformou-se em uma das prioridades do governo das populações no Ocidente. Como consequência, o tratamento dedicado às especificidades femininas passou a ser um dos temas fulcrais entre pensadores desde o Renascimento. O feminino idealizado já fora incorporado ao projeto de humanistas (leigos e religiosos), em que se assumia a necessidade de se impor controles sobre o comportamento das individualidades das mulheres, atrelando-as a processos normativos de regulação da subjetividade. Obviamente, os objetivos de moralistas e demais pensadores do comportamento não se circunscreviam apenas às mulheres, mas se alargavam ao social como um todo, já que elas representavam um vetor importante dentro das famílias (VARELA, 1997, p. 193). Por sua vez, até o século XIX, nos campos jurídico e teológico – assim como no próprio senso comum –, mormente as mulheres foram encaradas com desconfiança com relação às suas capacidades e às suas atitudes, mantendose uma tutela jurídica e moral, cujo controle da vida social passava da responsabilidade paterna para a do marido ou do convento, em uma vivência que primava pela heteronímia (HOUILLON, 1974, p. 9). Com relação à educação, os conventos exerceram papel institucional relevante àquelas que eram enviadas para tais recintos. Houve um grande esforço católico, após as guerras religiosas na Europa do século XVI, na fundação de ordens femininas dedicadas à manutenção de um ambiente instrucional às crianças e adolescentes que se preparavam para serem religiosas. Concomitantemente, não podemos deixar de citar que cresceram, em número, os centros escolares confessionais dedicados às meninas que, não necessariamente, seguiriam como monjas. Em tais instituições, tanto para os externatos como para os de clausura, o ensino Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. era fundamentalmente religioso, reduzindose à instrução à leitura, à reza, a um pouco de escritura e ao ensino de algumas ações ditas femininas, como, por exemplo, o coser (HOUILLON, 1974, p. 16). Mesmo após as chamadas Revoluções Liberais, observa-se a manutenção da tutela masculina na maioria das sociedades europeias e do Novo Mundo e, também, a continuidade das estruturas educacionais monásticas, ambas mantenedoras de uma feminilidade encerrada aos lares e a instituições controladas pela Igreja (BOTHONEL; LAURENT, 1974, p. 99-137)1. Nenhuma sociedade ocidental outorgou à mulher, por exemplo, a possibilidade da cidadania plena no século XIX (FRAISSE; PERROT, 1993, p. 12). Por outro lado, o que podemos acrescentar como diferencial nos 1800 seria a elevação, em importância, do feminino a um protagonismo nos destinos das sociedades ocidentais. No caso específico da igreja, a mulher passava a um papel primordial na edificação moral dos corpos sociais, colocando-se dentro da família como a mãe educadora e exemplar. Tratava-se de uma espécie de contrapoder masculino e estava num processo de correção moralizador infinito. A alma feminina, distinta e complementar da masculina, converte-se, para a Igreja da Restauração, numa reserva de recursos civilizadores e de possibilidades de conversão. (GIORGIO, 1993, p. 183-184) O que pretendemos no decorrer do artigo é entender a organização de um tipo de exercício de poder sobre as mulheres dentro das instituições de trancamento confessionais, tentando perceber a formação de um sujeito feminino nos interstícios do catolicismo. Não se almeja afirmar que seja essa a única forma de feminino constituído, mas há intenções de conceber um tipo peculiar que de alguma forma permanece nas formas de subjetivação das mulheres da atualidade. 1- Na França, por exemplo, foi apenas na década de 1870 que o estado francês implementou uma rede escolar primária aberta às meninas, tratadas por igual em comparação aos meninos. 737 Assim, afirmamos que a institucionalização da família cristã passou por um modo de disciplinar e governar o comportamento das meninas, concatenado à elaboração de um dispositivo de feminização, em que se renovariam preceitos de interação entre os sexos e de constituição de uma nova sociedade, muito parecida à que vivemos (VARELA, 1997, p. 175-176). Manual de piedade da donzela cristã Adotaremos, como objeto de estudo, trechos de um livro didático feito especificamente à educação de meninas enclausuradas em colégios internatos e conventos católicos. O intitulado Manual de piedade da donzela cristã (1919) foi elaborado para uso das professoras. Era dedicado à instrução da prática religiosa e indicado à leitura das próprias meninas das instituições confessionais. A primeira edição em língua portuguesa data de 1873. Em nossa análise, consultamos a décima quinta reimpressão, número que demonstra a boa tiragem do manual e leva-nos a supor seu largo uso em centros escolares católicos espalhados pelo mundo luso-brasileiro. Importante recordar que a prática de se confeccionar e usar manuais de piedade, nas instruções católicas, vem de longe – existindo vários outros escritos sobre o modo de se portar das donzelas, em circulação no mundo católico –, estabelecendo uma das práticas de fé incorporadas ao cotidiano institucional escolar cristão. De acordo com a introdução do livro, indicava-se a leitura diária às jovens, funcionando como um vade-mécum de conduta e civilidade. Ademais, as próprias mestras poderiam usá-lo como um apoio didático aos estudos religiosos, sendo lhes permitido escolher aleatoriamente um trecho qualquer para a leitura coletiva, com pretensões claras de discutir algum aspecto negativo ou positivo do comportamento das meninas naquele dia. Dividida em cinco partes, essa obra articulava normas relacionadas ao 738 comportamento litúrgico com condutas em geral (polidez, modos de civilidade e sexualidade). Na primeira parte, cujo título é Uma flor a colher a cada manhã, encontram-se sugestões a quem ou a que se deveria rezar e meditar, as quais são divididas em um diário, sendo uma espécie de calendário espiritual. O segundo item dedica-se a determinar os hábitos cotidianos das meninas, esmiuçando as normas de uma condução ascética. Na sequência, já se apresentam os exercícios espirituais e os métodos de ouvir a missa, em um adestramento da religiosidade. Já na quarta parte, explicamse os deveres da religião, em uma apresentação dos sacramentos e obrigações de um bom cristão. Por fim, há uma descrição das práticas de devoção, tentando ligar o tirocínio católico do presente com seu passado. Incluímos o livro didático como relevante na análise da educação feminina partindo do pressuposto de que as leituras eram objetos de controle por parte da igreja, atenta ao que era lido, ao mesmo tempo em que produzia bibliografia própria para ocupar espaços da literatura leiga. “Ler pouco e ler bem: essa é a máxima. [...] Nenhuma divagação: ler é um exame de consciência através de mediação de um texto.” (GIORGIO, 1993, p. 198). Logo, considerar-se-á o que era lido como uma possibilidade de agenciamento do feminino. Como proposta de exercício de uma análise arqueológica foucaultiana, dividimos em cinco plataformas explicativas os trechos selecionados para análise, de modo a ter um ponto de mirada privilegiado sobre o saber feminino que emerge de um tipo específico de organização do discurso do passado e, por sua vez, disciplinador da mulher, resultando em uma nova subjetividade. Essas plataformas foram agrupadas da seguinte forma: o controle dos desejos (item 3), a racionalização das ações (item 4), a ascese do comportamento (item 5), a calibração do amor (item 6) e os usos meticulosos da carne (item 7). Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em... O cerceamento da individualidade e o controle de conduta das neófitas cristãs – Oremos para que Deus nos conceda a graça de repelirmos as tentações que tivermos hoje. – Jesus e os aflitos. – Que impressão deviam fazer nos corações estas palavras de Jesus: ‘todos que sofreis, vinde a mim: eu vos confortarei’. Ninguém tinha falado assim; especialmente ninguém tinha acolhido os atribulados como Jesus... Por isso vede quem são pobres, os doentes, os desvalidos que o acompanham. Quem os agasalhará antes? Quem os não repelia da sua companhia? Ó Jesus, ensinai-me a ter bom coração, a amar, a procurar quem todos repelem... dai-me graça para consolar muitos infelizes na minha vida. – Buscarei hoje ser útil a alguma das companheiras. (IGREJA, 1919, p. 90) “Repelirmos as tentações que tivermos hoje” e “buscarei hoje ser útil a alguma das companheiras” são trechos de Uma flor a colher a cada manhã, que aspirava interrogar os desejos dos indivíduos, substituindo-os por uma instrução que se desviasse de possíveis ímpetos sinistros. Nesse caso específico, especula-se que às tentações deveriam se contrapor as iniciativas de sentido altruísta, apagando-se o que fosse de mais individual nos sujeitos – os seus quereres – e colocando-se como foco algo que significaria uma subordinação às vontades do grupo. Dispõe-se sobre a intimidade, de maneira a condicioná-la a um papel público a ser exercido, o “de amar, ter bom coração, o de consolar os infelizes”. No florescimento de uma arguição sobre a ética cristã, com esse extrato, percebemos o quão relevante os desejos são e compõem a espreitada de controle sobre os indivíduos do corpo católico, trazendo como hipótese de que passam a ser a prioridade nos exames intestinos dos ambientes educacionais mantidos pela Igreja. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. A intimidade trazida à baila não foi um fenômeno exclusivo do catolicismo. O controle sobre as vontades tem sido utilizado, nos últimos séculos, como um dispositivo influente nas táticas de manutenção do poder sobre indivíduos. Mais especificamente no decorrer do século XIX, houve um hiperdesenvolvimento do discurso sobre o desejo, adquirindo-se novas maneiras de compreendê-lo – que Foucault (2003) designou como scientia sexualis –, com o qual se buscava uma forma verdadeira de ocorrência, tanto no comportamento como na estética. Em tentativas de controlar as relações que os indivíduos têm consigo mesmos – como observado no trecho do Manual –, os desejos, e, por consequência, os próprios prazeres físicos, foram encarados como ações relevantes a quem exercesse o poder sobre as meninas. Essa seria uma das consequências mais significativas dos dispositivos de repressões e impedimentos sexuais contidos na educação religiosa. Podemos afirmar, entretanto, que esses dispositivos foram reproduzidos igualmente, na mesma época, pela vigília corporal da ciência médica e pelos cerceamentos do inconsciente aplicados pela prática psiquiátrica/psicanalítica. (FOUCAULT, 2006). Foi desfechado, portanto, ao redor do período das edições do livro (1873-1919), o controle das condutas sexuais da mulher com a formação de todo um arcabouço religioso, médico e psicológico de pensamentos e comportamentos que pudessem visualizar a perversão da alma, a insalubridade do corpo e a anormalidade da mente. À teologia centenária juntou-se, em uma empreitada normatizadora e constituidora do dispositivo da feminilidade, certa psicologia racional em sentido contrário a uma espiritualidade irracional tradicionalmente posicionada. No contraponto à racionalidade como mantenedora da fé, tínhamos, por exemplo, o misticismo penitencial, que fora uma maneira de exercício de santidade das mulheres desde os primeiros tempos da Igreja que, em meio às orações e meditações, tinham visões e conversas com Deus, Jesus e toda a cosmogonia cristã possível. Santa Teresa D’Ávila (doutora da Igreja 739 e fundadora da congregação das carmelitas descalças) talvez fora um dos principais modelos de como a Igreja dava crédito e autoridade para tal maneira de se exercer a crença (ANDERSON; ZINSSER, 2007, p. 230-233). A maneira ascética propalada nos trechos do Manual, e que veremos mais detalhadamente adiante, abre mão do misticismo extático em nome de uma racionalidade da fé, propondo adestramentos controladores da crença, dando pouca margem de autonomia aos exercícios espirituais. Não obstante, [...] a Igreja mudou sua atitude diante das mulheres que testemunhavam uma experiência mística. [...] Rechaçou a autoridade potencial das visionárias, honrando-as com uma condescendente inocência infantil e não por seus laços especiais com a divindade. (ANDERSON; ZINSSER, 2007, p. 238) Prescrições racionalizadoras dos espíritos femininos Oremos em desagravo das blasfêmias. – O décimo primeiro fruto do colégio é fortaleza de vontade. A regra é às vezes incômoda; mas quanto disciplina o caráter, ensina a refrear a imaginação, a repelir fantasias para cumprir deveres! Submeteivos sinceramente e tereis energia para sofrer as mágoas que mais tarde vos assaltarem. – Procurarei hoje observar silêncio. (IGREJA, 1919, p. 37) O Manual propõe converter o desejo blasfemo, contido na alma, em objeto de reflexão racional, não com uma punição dolorosa ao corpo, mas simplesmente com a imposição do silenciamento do espírito. Ao se fazer calar a alma gozosa, apostar-se-ia no irrompimento, entre as discípulas a se conduzir, da sensação de desconhecimento sobre a própria subjetividade e, mais especificamente, do poder de seus desejos. 740 Provoca-se o encontro da ignorância individual sobre si e toda a constituição de uma tecnologia de interrogação das intimidades, via conhecimento acumulado pela observação institucional das mestras condutoras, para tentar compreender externamente o desejo dos indivíduos e suas modalidades. No caso citado, a religião intentou trazer o medo à perscrutação da imaginação, indicando às meninas seu despreparo e o risco em percorrer lugar tão indômito. Não se trataria de paralisar os motores internos do querer, e sim entender as suas interferências na constituição dos sujeitos. Em um desvio de suas atribuições, usar suas energias no germinar dos desejos verdadeiros (os autorizados pela Igreja), aqueles nos quais se incitaria a conter mais o que é tido como correto, em contraponto a um aumento de intensidade do prazer, que colocaria o indivíduo em uma rota própria, fora das vistas eclesiais. Trata-se, através dos discursos calados, de um arrebatamento do cotidiano íntimo das pessoas. O poder eclesial agiria, nessa nova disposição institucional formatadora de uma verdade de agir feminina, com regras e ações que clarificassem as interdições, incorporando e fabricando uma linguagem que se impusesse no ato de conceder e de bloquear o não tolerado. Elaboraram-se, com isso, enunciados sobre o comportamento em geral, incluindo aí, especificamente, aquele relacionado ao desejo e ao prazer, deixando claro o que é permitido no uso de um referencial do que é ilícito. Criava-se um ambiente que naturalizava um estado de direito totalizador no ato de discursar sobre a conduta alheia. No plano das estratégias, havia tentativas de censura plena da conduta, com intenções de abafar o desejo individual. Propomos explanar três exemplos. Primeiro: o que vem a ser proibido. Examinai os pecados feitos [...] contra o próximo. Juízos temerários; desprezo; ódio; inveja; desejo de vingança (especificai se é contra as mestras ou companheiras); dar maus conselhos; maus exemplos; Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em... fazer más ações; maledicências; calúnias; notícias falsas; disputas, palavras ásperas e injuriosas; falta de zelo e de bondade; falta de respeito e de docilidade; astúcia. (IGREJA, 1919, p. 403) Segundo: o anúncio da culpa ao se pecar. – Oremos pelas almas que há muito tempo resistem a Deus. – Deveis expiar vossos pecados; para este fim Deus permitiu que o regulamento da casa vos constrangesse e contrariasse às vezes; suportai com boa vontade este constrangimento. – Não farei a mínima infração ao regulamento, com a intenção de expiar minhas culpas. (IGREJA, 1919, p. 179-180) Terceiro: a existência de um estado superior, o da pureza. Oremos por quem trabalha pela salvação das almas. – O décimo segundo fruto do colégio é a inocência, que se conserva aqui na sua integridade; a inocência que sempre deixa entrever através do semblante a eterna juventude da alma. Oh! Que ainda por longo tempo ignoreis o mal! Amai a oração, fugi das ocasiões perigosas, procurai vossas mestras. – Repetirei bastante vezes a invocação: pela santa e Imaculada Conceição, virgem puríssima, rainha dos anjos, alcançai-me pureza de alma e corpo. (IGREJA, 1919, p. 37-38) Por outro lado, complementariamente ocorre uma normatização das condutas que mantivessem ou criassem uma libido apropriada. Desenvolveu-se toda uma tecnologia e conhecimento em relação ao apetite e à tentação, heterogêneos em seus controles, incitadores e condutores. Das induções, enumeramos três tipos. Primeiro: a fé associada ao ato de crer de maneira incondicional. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. Eu creio firmemente meu Deus, todas as manhãs que tendes revelado, e que nos ensinais pela vossa Igreja católica, apostólica e romana, sendo que vós não vos podeis enganar nem enganar-nos, e nesta crença quero viver e morrer. Amém. (IGREJA, 1919, p. 217) Segundo: uso do Salvador como um estimulador juvenil da santidade. – Jesus e as crianças. – Jesus está sentado rodeado dos discípulos... adiante, por entre a multidão, seu paterno olhar divisou meninos pequenos que estavam tímidos ao pé de suas mães, estendeu-lhes os braços. As crianças compreenderam este apelo do coração, e aproximam-se de Jesus que os abraça, os abençoa, os conserva perto de si, fala-lhes do céu. [...] Ó Jesus, eu também sou criança; corro para vós; acarinhaime, falai-me do céu. Se eu me conservar sempre simples, inocente, mansa, vós me amareis sempre, não é assim? – Ó! Afastai-vos, pois de mim, pensamentos, desejos, afetos, que despojaríeis meu coração do que agrada Jesus. – Hei de dispor-me com fervor para a próxima comunhão. (IGREJA, 1919, p. 86-87) Terceiro: a salvação acessada pela esperança. Eu espero, meu Deus, com firme confiança, que pelos merecimentos de meu senhor Jesus Cristo, me dareis a vossa graça n’este mundo, e se observar vossos mandamentos, a vossa glória no outro, porque me tendes prometido, e sois fiel em vossas promessas. Amém. (IGREJA, 1919, p. 217) Desse modo, aqui expomos não uma descrição de uma história da repressão à sexualidade organizada pela Igreja, tampouco a sua liberação. Em realidade, propõe-se entender o porquê de tanto interesse e, por consequência, 741 a produção de conhecimento acerca dos desejos e, de maneira subliminar, da sexualidade feminina; e que, por estarem atrelados à intimidade, ganharam grande importância nas discussões católicas desse momento histórico. A Igreja tentou inventar modalidades de relações com seus fiéis. Algumas importadas dela mesma, como a ascese dos monges celibatários, o pastorado de seus missionários, o controle dos comportamentos via confissão e os usos arquetípicos das entidades cristãs. Ainda assim, incluiu novos dispositivos de mando, incorporados no cotidiano e adaptados de acordo com as demandas surgidas nas relações internas de suas instituições, como a própria disciplina escolar. Contudo, todos esses estratagemas tinham em comum a condução das condutas como centro, em uma racionalização dos comportamentos. Não havia um caráter repressor puro mas, ao contrário, incorria-se, ao mesmo tempo, na incitação e no controle dos quereres individuais, manipulando de uma forma a enquadrá-los no seu campo normativo e de suas categorias. Partimos do pressuposto de que o discurso sobre o sexo, desde o século XVIII, desenvolveu-se suficientemente a estimular a própria sexualidade no chamado Ocidente e que, ao contrário do que se poderia pressupor, não teve uma forma definida e um órgão emissor único. Houve um poliformismo de produção de saberes, que gerou um campo de conhecimento complexo acerca da sexualidade. Adiante, perscrutaremos um pouco mais como se daria esse conhecimento específico eclesial nos 1800 sobre a sexualidade feminina. A autovigília e o desejo combinados como atos de ascese Oremos por aquelas que são propensas à melancolia. – Deus não gosta de menina de caráter exaltado e romanesco, que enche o coração e a cabeça de ideias vagas, efeminadas, 742 sensuais, sempre coloridas com um reflexo de inocência e candura, que engana uma alma inexperiente como a sua, mas oculta no fundo grande perigo e às vezes mal sem remédio. Esta menina não vive nunca no presente: aí vegeta como planta, seu coração está sempre além de três ou quatro anos. – [...] Filha, ocupai-vos mais, sobrecarregai-vos de trabalho, executai sempre o que vos ordenam, sem isto estais exposta a ser muito infeliz e culpada. (IGREJA, 1919, p. 164) Um dos significados da condução de comportamentos, retratados acima, trata dos assuntos íntimos, apoiada na capacidade de se apurar as condutas infinitesimais, acedendo diretamente o subjetivo, em uma constituição de micropoderes sobre o corpo que pudesse amainar instintos e desejos. De forma complementar, programam-se comportamentos saudáveis, determinando moralidades que se justificavam como diminuidoras de um sofrimento em vida e que evitassem desvios futuros. Esse tipo de acepção pode se adaptar à ordem discursiva católica, já que ajuda a infundir a prática da identificação a um potencial pecador, independentemente de seu passado puro. Ativase a prática reflexiva da precaução saudável da alma, em que se incute na subjetividade o exercício de autovigília que nunca esmorece. É por isso que no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas, perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade [...]. De um pólo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações. (FOUCAULT, 2003, p. 137) Nesse contexto, surge um olhar sobre as sexualidades infantil e juvenil, encaradas Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em... agora como armazenadoras de uma energia que poderia ser transformada em positiva, caso fosse utilizada de maneira autorregulada, em um procedimento a ser relacionado ao amadurecimento psicológico. Em outros períodos históricos, a fala e o comportamento dos mais jovens não circulavam e não eram notados entre os adultos. Passou-se a ouvi-los e a percebê-los a partir de meados do século XVIII, não com intenções de fazer fluir a emancipação desses seres, porém para regulá-los, interditando suas comunicações com enunciados normatizadores. As escolas confessionais foram uma das primeiras a se incumbir de criar um ambiente que pudesse aplacar essa potência pueril, desviando-a e adequando-a a uma estrutura de controle que, primeiramente, percebesse o que se falava para posteriormente impor outro discurso, o autorizado aí sim pelos agentes das instituições eclesiais. A repercussão foi a fixação da identidade geral dos mais jovens a uma específica, adequada às ambições católicas. “Refrear as paixões” e “domá-las pela oração”, nada mais foi do que um vínculo da subjetividade, daqui para frente, aos desejos. Como sequela disso, posicionaram-se os corpos e os comportamentos a esse componente da alma, relegando outros a um segundo plano. Em nome de uma normatização do comportamento libidinoso da chamada mocidade cristã – e, portanto, da constituição de uma maneira preponderante de se relacionar com o querer próprio –, iniciou-se uma verdadeira caça aos gostos e prazeres menores e/ou periféricos, denominados, pela Igreja, de pecados. Se se tem vanglória da beleza, das vestes, da riqueza, dos talentos, do nascimento; se no modo de vestir, de falar, de andar, tem-se como fim excitar a admiração. Se nos achamos melhor que o próximo. Se se tem vexame de seus pais. [...] Se se tem dureza com os pobres [...]. Se nos entristece o bem e o merecimento alheio. [...] Se nos impacientamos; murmuramos, e nos entregamos aos arrebatamentos do mau Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. gênio. Se somos teimosas. Se ficamos na cama por preguiça. Se gastamos o tempo com ninharias, se permanecemos ociosas, se fizemos perder tempo aos outros. (IGREJA, 1919, p. 401-402) Buscando explicar de maneira adaptada os pecados capitais às jovens, enumeraram-se, em realidade, as identidades possíveis delas pelo erro e não pela honra. É na anormalidade que se optou fixar a católica e não a um tipo de cristã perfeita, algo externo e ineficaz como demarcação da virtuosidade. Agia-se influenciando diretamente as meninas, incentivando-as a identificar suas faltas e corrigi-las sozinhas. Foi-se além do simples perdão salvacionista; formataram-se as índoles particulares. Convocou-se a constituição de estruturas de vigília altamente complexas para atentar-se sobre as desordens insignificantes, enfatizando o cotidiano e suas falhas triviais. Para tanto, constituiu-se um discurso acerca das faltosas, as que no cotidiano rompiam as normas já sabidas, que se colocavam do lado do desvio, ao menos no olhar de quem detinha o predomínio da ordem do discurso. Oremos pedindo para ter hoje ocasião de fazer bem. – Deus gosta de uma menina silenciosa. Ó! Quanto as graças se concedem àquelas que, para agradar a Deus, se calam durante o estudo, na aula, no dormitório!... Começar muito jovem a refrear a língua, faz esperar grandes virtudes para o futuro. – Se eu falhar distraidamente hoje farei uma mortificaçãozinha no refeitório. (IGREJA, 1919, p. 170-171) Toda uma cadeia de poderes vem se misturar ao habitual, explodindo potências entre as que conseguiam, de alguma forma, deter o domínio de quem emite a alocução ou das suas formas diversificadas. O resultado é o brotar de uma infinidade de discursos competentes sobre o que deveria ser uma menina e uma moça, 743 usurpando o cotidiano da própria individualidade e encarregando-se dos fatos sem importância. Tratava-se de silenciar a vaidade, a ira, a vergonha, a avareza, a teimosia, a preguiça, a ociosidade e muitas outras expressividades das donzelas, cuja qualidade fosse a da anormalidade. As percepções das anomalias femininas ocorriam, conjuntamente, ao intenso movimento para se colocar em discurso todas essas inquietações e variações individuais de conduta por parte de quem fosse incumbido de exercer o poder sobre a mulher em formação. Esse movimento acarretou em um emudecimento de quem deveria obedecer. A cantilena política da banalidade deveria, por sua vez, tentar resgatar o controle do todo, já que é nele que está inscrito o habitual. Daí a necessidade da elaboração de uma tecnologia complexa de controle sobre o ordinário feminino, que criasse um disparate entre o pequeno erro e a grande sanção. Complementando o domínio sobre o mundo micro, armou-se toda uma maquinaria de inteligibilidade dos pecados, com o intuito não de extirpá-los, mas de controlá-los e incluílos. É um processo de autoinquirição cotidiana ilimitada, em exercícios que possibilitassem a recriminação de si própria, que pudessem abrir a alma para que se acessasse aos desejos perversos. A utilidade dessa sistematização foi a efetivação de um sistema que questionasse as faltosas prontamente, com o intuito de que a pecadora se sentisse convencida de sua própria culpabilidade e, portanto, se autocontrolasse em seguida ao acometimento das tentações. Ao mesmo tempo, as fronteiras do vício seriam vislumbradas e incorporadas de uma maneira em que qualquer uma que se aproximasse dela se sentiria já culpada. O poder mais brutal, aquele que agisse na interdição mais fulgurante, seria a exceção nessa nova disposição do poder sobre a alma feminina, já que se apresentaria ineficiente. Compreender-se-ia, pois, que o pecado e o erro nunca acabariam, já estariam na natureza da mulher. A meditação encaixou-se aqui como algo de importância capital nessa cartografia 744 dos vícios e virtudes das meninas cristãs. Não se tratava de uma exercitação que convocasse o relaxamento, tampouco o alcance da transcendência. Nela, deveria-se encher a imaginação de racionalizações que vigiassem o que se pensasse. Para tanto, propunha-se uma conversa com Deus, em uma mentalização de imagens de seres perfeitos que julgam nossos atos, internalizando-se inquirições e julgamentos próprios. – O que eu digo a Deus! Tudo que sinto. Quando tenho dissabores, eu lhes digo, para que o Senhor os saiba melhor, e isto me alivia; peço-lhe ânimo para os suportar, que me ajude a dizer e a fazer o que devo; depois falo-lhe a favor dos doentes que conheço, de meus pais, daqueles que amo, designo-os um por um, comunico-lhe o que me tem acontecido, os males que receio... Digo isso a nosso senhor como diria a minha mãe. – Mas isto não é orar. – Oh! Eu não sei; mas visto que Deus é meu pai, não hei de dirigir-me a ele como faço a meu pai, quando à noite estamos ambos no serão? – É uma conversação, e esta não pode ser longa quando ninguém responde. – Oh! Há resposta! Às vezes, é triste, não se ouve nada, não se sente nada, é porque Deus está zangado. (IGREJA, 1919, p. 223-224) Para uma conversação, exigia-se interação. Para a interação com Deus efetivar-se era preciso ter, por parte da menina penitente, atributos como: a iniciativa de começar; a disposição em manter um diálogo longo; uma reflexão profunda advinda dos cuidados com o que se vai dizer; um arrolamento e ordenamento dos acontecimentos, dividindo-os, no mínimo, entre positivos e negativos; e um final que trouxesse um veredito. Às mestras pastoras era dever que ensinassem o cortejo a Deus pelas alunas penitentes, passando a ideia de que se adentrava em uma relação interminável. “Não vos separeis do bom senhor Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em... que vos esperou” (IGREJA, 1919, p. 238); ou seja, a meditação como uma espécie de compromisso matrimonial com Deus. Mas qual a conduta cobrada por Deus nessa relação tão íntima? Nas conversas de alcova com Nosso Senhor, o que ele poderia cobrar e louvar? Em grande parte do livro é indicado o protótipo da santa. Primeiramente, diz-se que Deus exige a criação de um cotidiano em que apenas ocorressem a oração, o estudo, o trabalho e o repouso. Cada uma dessas atividades deveria ser aperfeiçoada a cada dia, de uma maneira que agradasse e não provocasse o desgosto divino. Seguindo, dever-se-ia entregar todo o amor que vem do coração a ele, pois seria o único que faz isso de maneira verdadeira. Ao mesmo tempo, é premente a resistência aos convites deleitosos do demônio e do mundo, evitando trair a confiança de quem tanto se dedicava às meninas. Opor-se aos momentos de tédio seria outra regra de conduta para com Deus. O império do aborrecimento significaria mais uma tendência que os indivíduos teriam em repartir o seu amor e suas atenções com o mundo e uma dificuldade em dedicá-lo exclusivamente a Ele. A companhia do todo poderoso traria o reconforto, a segurança. Mas, mesmo que fosse traído, no manual constava que Deus não abandonaria a pessoa. Contudo, perder-se-ia a possibilidade de ocorrer uma relação totalmente sincera e isenta de outros arroubos. Assim como Deus perdoa seus servos, há que repeti-lo e relacionar-se com os outros da mesma forma, suportando os defeitos, além de ajudar nas necessidades e dando bons exemplos (IGREJA, 1919, p. 239-244). Nas regras de condutas para conosco, parte na qual se ajudariam as meninas a se atingir o status de santa, a obra dedicada às donzelas cristãs indicava que a sensação de prazer é algo proibitivo, sendo que nunca se deveria apaixonar e somente amar. Ter sufocado no coração o impulso de uma paixão, ter arrancado uma imperfeição da Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. alma, é ter lucrado mais do que se conquistasse mil mundos. (IGREJA, 1919, p. 245) Na construção da nova cristã era desejosa a sensação de segurança. Partindo daí, diminuiriam as possibilidades das incertezas, ocorridas muitas vezes dos sentimentos incontroláveis de paixão, que poderiam escoar em arroubos de individualidade rebelde. Em contrapartida, o autocontrole deveria surgir nas meninas, em troca da possibilidade da construção de um destino mais previsível. Surgiriam, então, ações integradas de inculcação de sentimentos e relações afetivas que ameaçassem a existência de indivíduos que emanavam impulsos e emoções espontâneas, além de possibilitarem inúmeras vantagens aos que fossem capazes de moderar suas paixões. (ELIAS, 1994, p. 198) “Sufocar o impulso da paixão” de certa maneira impõe uma prática ascética à criança. Obviamente, a devassidão já era renegada pela Igreja há tempos. Contudo, no manual admitia-se um tipo de relação libidinosa das meninas com o Senhor. Por sua vez, havia regras introjetadas por uma disciplina específica à infância. O que podemos concluir, por enquanto, é que na ascese tradicional, o desejo era encarado como proibido e, portanto, evitado; a partir de então, passou a ser admitido, e, por sua vez, regulado. Não se evitava tal sensação; ao contrário, admitia-se que os sujeitos pudessem ser libidinosos, desde que direcionassem a energia estimulada aos objetos católicos. Os amores do pai e da mãe como reguladores dos controles sobre o corpo Oremos para que neste mês não se façam pecados mortais nesta casa. – Filha, eu próprio me dou a todas as meninas que me apresentam um coração puro e amante; queres-me? – Sim, menino Jesus, eu vos quero, vinde a minha alma na santa comunhão, e permanecei com tão boa vontade como 745 estivestes no presépio; minha alma é pobre como este... mas feliz do que vosso asilo, sabe amar, quer amar, e expandir seus sentimentos. (IGREJA, 1919, p. 19) A afetividade elevada era articuladora do enamoramento, não a incontrolável paixão romântica, mas o ascético, dirigido, pragmático, que se vincula por privilégios ou querendo algo em troca. Não é uma entrega ao objeto amado, mas é a criação de um vínculo que resulte em uma interdependência. Estabelece-se um contrato amoroso entre as entidades e seus adoradores católicos, em que ambos se doam e se tornam fiéis. Cabia agora aos indivíduos cumprirem o contrato estabelecido, feito e confirmado através das promessas, pedidos, venerações e outras manifestações mais que demonstrassem o amor. Nunca se poderiam frustrar as expectativas dos santos ou da Virgem ou de Cristo com seu comportamento. Na liturgia católica tradicional, já se colocava o corpo como objeto central da salvação, posto no exemplo máximo da consubstanciação de Deus na carne – no caso do próprio Jesus. Equivalia-se a demonstrar a possibilidade da salvação da alma nas maneiras de se disponibilizar comportamentos que se afastassem dos pecados, fazendo o centro da atuação pastoral da Igreja a adequação dos corpos dos fiéis a uma purificação próxima à ocorrida com Cristo. Dispuseram-se, nesse sentido, alguns artifícios de ajuda ao desejoso da salvação pelo corpo: um deles seria a eucaristia, representando a recepção do corpo e do sangue de Cristo, assim como os ritos de batismo, a crisma, as bodas e a extrema unção. Todos pretendiam nada mais que confirmar o domínio que Deus tem sobre o corpo e indicar a fidelidade dos sujeitos católicos aos preceitos de purificação. Por sua vez, houve, a partir do século XIX, uma atenção exacerbada sobre o corpo de Jesus durante o seu período de prisão e tortura, fazendo com que se reforçassem ritos ligados à 746 paixão de Cristo. Os rosários, as cerimônias públicas de via sacras e o culto ao Sagrado Coração só vieram a reforçar a inculcação do sofrimento corporal impingido ao Salvador para que ele atingisse a purificação plena (DELUMEAU, 1991). Percebe-se um aprofundamento da carne como local seleto da inocência e o conforto de Jesus como o guião paternal. Assim como o filho, o corpo de Maria serviu também como modelo de ascetismo e entidade a ser amada. Enfatizou-se uma Nossa Senhora que não cometera o pecado original, abluindo a concepção do Salvador e dando a sensação às fiéis da possibilidade de uma vida longe do desejo e do prazer carnal. – Oremos em união das criancinhas que hoje morrerem e subirem ao céu. – Filha, dou-te como festas o véu de minha santa mãe. – Aceito com felicidade, menino Jesus, há de recordar-me a modéstia da santa virgem: que só a vós queria ver, nem desejava ser vista por ninguém; com ela, conservarei hoje os olhos baixos, andarei um pouco mais devagar sem afetação, evitarei tudo que atrai a atenção dos outros. (IGREJA, 1919, p. 23) Acompanhada à imagem da Imaculada vem a da Assunção, devoção crescente também entre os fiéis católicos do século XIX, que poderiam conceber uma Maria que não entrou em estado de decrepitude – já que não poderia ressuscitar, papel esse de exclusividade de seu filho. Nessa caracterização, Nossa Senhora simplesmente subira aos céus sem marcas de envelhecimento, glorificada em uma eterna juventude, isenta da decadência corporal do restante dos mortais. Nossa Senhora se apresentaria, portanto, casta, maternal e jovial. – Maria Santíssima é o modelo que estudo. – Ó minha mãe que delicioso pensamento tive esta manhã! De joelhos perante vossa amada imagem eu pensava: Maria Santíssima foi menina como eu... Ó! Se eu a Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em... tivesse tido por companheira no Templo de Jerusalém onde, como eu estou aqui ela era discípula! Então ante meus olhos, como se o bom Deus quisesse realizar meus desejos, vós me aparecestes menina, ó Maria Santíssima! E me dissestes: Sê minha companheira e amiga, queres sê-lo? (IGREJA, 1919, p. 71) Em um numeroso panteão de santos, e mesmo tendo à disposição o próprio Cristo, içouse a figura de Maria, posta em um protagonismo tão relevante quanto o de Jesus, seu filho. Dela se poderiam retirar múltiplas qualidades atreladas ao feminino. Há de se examinar, aqui, Maria como figura de empoderamento. Com sua aclamada beleza, a Igreja promoveu uma fusão entre os corpos das fiéis e o da santa, indicando algo que manteria as católicas isoladas de seu desejo incitado. A pureza demonstraria uma conduta representativa de autocontrole e introjetora de comportamentos a serem seguidos. Concomitantemente, abriu-se a possibilidade do feminino como modelo de conduta. O culto da Virgem Maria permitiria múltiplas associações, no qual situassem maneiras de positivação do exercício de poder pela Igreja sobre os fiéis. Primeiramente, houve o estabelecimento de uma ética feminina universal – vigiada pelo pai postiço Nazareno redentor – que moralizava desejos, canalizados para uma continência sexual permanente e ao estímulo de um amor materno de preservação. Em segundo lugar, lançava-se uma estética da juventude associada à pureza mariana, que elevou as meninas a uma posição prioritária na salvação da humanidade. Conclusão: as mortificações da carne e o desígnio de controle sobre as famílias A mulher da segunda metade dos 1800 tornou-se um hospedeiro de colonizações institucionais, sendo a Igreja um deles, percebendo na possibilidade de manipulação do corpo feminino um poderoso espaço de controle social do mundo católico. Elas saíram de uma posição de figurantes para o protagonismo da Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. religiosidade, a partir do momento de sua institucionalização via escolarização. Uma das resultantes foram as pequenas mortificações, postas como uma das estratégias de disciplinarização do corpo feminino, substituindo o sangue e a dor, tão frequentes no Antigo Regime como maneiras de expressividade da penitência. Desse modo, interiorizar-se-ia o desapego de si mesma no trivial, incluindo-se uma racionalidade contábil dos pequenos sacrifícios de acordo com a consubstanciação dos desejos e dos prazeres. – Oremos pelas companheiras que em outro tempo nos encaminharam para o mal. – Deveis mortificar vosso corpo. Não lhe concedais tudo o que reclama, às vezes privai-o de alguns dos gostinhos que só servem para enfraquecer vossa alma. – Eu me privarei de algumas gulodices nas refeições. (IGREJA, 1919, p. 178-179) Nota-se uma diferença em relação à maneira de se pensar a salvação da alma feminina no catolicismo. Não se indicariam mais as penitências com tanta ênfase, aquelas que pudessem provocar um autoflagelo às que tivessem já pecado. Em um refinamento do domínio, atuava-se no pensamento com o intuito de se evitar a priori o cometimento de pecar. Por implicação, um arrebatamento natural, as relações de afetividade aumentariam dentro dos núcleos familiares. Michel Foucault (2003) chega a lançar a tese de que isso, a partir do século XIX, tenha trazido uma maneira incestuosa dos parentes se relacionarem. As famílias passaram a ser o cerne de perpetuação de um dispositivo de controle dos desejos, tanto na perseguição de um comportamento perfeito idealizado, como na constituição das próprias anormalidades. Deus chamando-vos para este colégio tinha em vista, sem dúvida, a salvação de vossa alma, e também a de inúmeras almas, que vossas orações mais regulares e fervorosas 747 aqui, unidas as de vossas mestras e companheiras, ajudarão a converter. O senhor tinha em vista a salvação de vossos pais, por quem haveis de orar aqui de modo mais eficaz, porque vossas preces mais fervorosas estarão impregnadas da confiança que enternece o coração de Deus [...]. (IGREJA, 1919, p. 213) A família era posta como local de chegada dos valores cristãos. Até o século XVII, o viver era essencialmente social. A família existia como experiência, mas não como sentimento de pertencimento ou valor moral. A sociabilidade dos grupos familiares era quase toda publicitada, sobrando pouco à intimidade. As famílias no século XVIII e, mais marcadamente no século XIX, transformaram-se em pequenas sociedades protegidas, que foram se afastando das relações sociais, das obrigações civis e das tradições (ARIÈS, 2003). Em realidade, uma tensão entre a vida privada familiar, organizada pelas intimidades e um viver público foi mais um dos resultados dos desmanches das sociedades soberanas e a experiência das sociedades industriais. Ou seja, de um lado os costumes específicos comunitários das famílias se chocaram com as exigências de civilidade (SENNET, 1988). De maneira parcial, a Igreja foi uma das instituições que se aventurou na resolução dessa tensão, com as tentativas de introjeção de uma civilidade própria pela via escolar. Os novos apóstolos se dedicaram a reorganizar as novas relações sociais, com especial atenção para as famílias. Partia-se do pressuposto de que o mundo público seria viciado e, seguindo esse raciocínio, seria importante partir do rearranjo das virtudes das individualidades, para depois passar para as acomodações parentais e, por fim, lograr alcançar o corpo social. Controlando-se os desejos de maneira rígida, manteriam-se as famílias como os refúgios morais da sociedade, protegidas de uma vida social encarada como corrompida. O Manual, em sua segunda parte, dedica-se a determinar as ações corretas de um 748 dia de uma menina, desde o acordar, passando pelo vestuário, trabalho manual, as recreações, os estudos, as refeições e como se deve deitar. Afirmava que as jovens deveriam acumular tesouros durante a vida para alcançar a graça de adentrar no paraíso (IGREJA, 1919, p. 118-119). Chegou a noite... se o dia foi ocupado no desempenho dos deveres, vosso será plácido! Não sentis, todas as noites, pensando no silêncio lúgubre que vai cercar-vos, profundo sobressalto? Este leito com feitio de túmulo, o sono que vai separar-vos do mundo inteiro, a escuridão que vos cerca e através da qual parece que avistais os olhos de Deus que vos examina, a pequena lâmpada que arde sem ruído, tudo isso não vos impressiona? Quando se não tem a consciência tranquila, oh! Como se deve ter medo! À luz do dia parece que talvez se possa lutar com Deus: alguém estaria presente para nos defender... mas de noite... Oh! Silêncio! Recolhimento! Modéstia! Oração! (IGREJA, 1919, p. 208-209) O livro reforçava uma investigação retrospectiva do eu, que passou a ser um dos objetos primordiais de atuação dos sujeitos na modernidade. Estimularam-se arrependimentos, avivaram-se ascetismos, mortificaram-se quereres carnais; mas, ao mesmo tempo, provocaram-se desejos celestiais, vontades de individualidades, cobiças por um mundo mais seguro. A Igreja e seus agenciamentos, seus enunciados e seus dispositivos convidou os fiéis à construção de si de maneira autônoma. Porém, no limbo, aos cochichos da escuridão, escondendo os prazeres na intimidade da alcova de Cristo e no colo mariano. Altruísmo, silêncio, autocontrole das afetações e outras mais foram prescrições eclesiais a um tipo de comportamento idealizado feminino, que foram sendo apresentados por este texto, nos trechos selecionados do Manual de piedade da donzela cristã. De uma maneira sutil, foi-se sugestionando uma subjetividade a ser alcançada e que se conecta, justamente, Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em... a uma produção disciplinar da mulher, que fora alçada como componente estrutural das famílias, indo além da própria sociedade pósrevolucionária que se constituía. Dentro disso, o indivíduo e os desejos surgidos, as suas ações ocorridas, os seus comportamentos incididos, os amores e as paixões brotadas e os usos da carne, foram se sujeitando a um controle estendido, a uma racionalização proposta, a uma ascese imposta, a uma calibração sugestionada e ao cálculo dos usos do corpo. Quais os efeitos de poder induzidos e ambicionados, a quem empunhava as verdades geradas pelos discursos acerca do desejo? Essa foi nossa pergunta basilar. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. Decorreria daí tomar-se conhecimento sob que maneiras, quais vias e como seriam organizados os discursos competentes acerca dos comportamentos e pensamentos libidinais que chegavam aos indivíduos e lhes conformavam condutas. Para nós, a Igreja ingressou profundamente nessa racionalização do discurso sobre a volição, constituindo, inclusive, uma própria sobre os comportamentos envolvidos com esse tema através do estabelecimento de verdades, assumindo a posição de um centro gerador – principalmente em suas instituições escolares – de uma parte do saber sobre a sexualidade na modernidade, e, mais designadamente, a respeito da mulher. 749 Referências ANDERSON, Bonnie; ZINSSER, Judith. Historia de las mujeres: una historia propia. Barcelona: Crítica, 2007. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2003. BOTHONEL, Nicole; LAURENT, Marie-Françoise. La mujer en Francia durante el siglo XIX. In: GRIMAL, Pierre (Org.). 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Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos Victor Andrade de MeloI Resumo Muitos autores consideram os anos 1850 como um marco na história brasileira, pois foi um período em que se conformou, em diferentes âmbitos, uma estabilidade que permitiu avançar, de forma mais efetiva, o processo de construção da nação independente. Na capital, que se tornou foco irradiador de novas modas e costumes, gestou-se uma dinâmica social mais mundana, uma maior estruturação do comércio de luxos e entretenimentos. Ao estudar esse período da história brasileira, este artigo tem por objetivo discutir os aspectos educacionais que cercavam uma das atividades comumente promovidas no Rio de Janeiro de meados do século XIX, os bailes, a partir do olhar de um importante personagem do Império: José Maria da Silva Paranhos. Trata-se de uma pesquisa histórica que utilizou como fontes 47 crônicas da série Cartas ao amigo ausente, publicadas no Jornal do Commercio entre os anos de 1850 e 1851. Ao final, conclui-se que a visão de Paranhos a respeito dos bailes tem relação direta com sua percepção e seus projetos para o país. Os eventos dançantes não eram concebidos somente como um divertimento, mas, a seu ver, eram também ocasiões que contribuíam para forjar e fortalecer uma sociedade civil, composta por distintos setores da elite nacional, que poderia conduzir o Brasil a um futuro alvissareiro, marcado pelas ideias de civilização e progresso. Os posicionamentos de Paranhos ajudam a entender os bailes como uma estratégia de educação do corpo a partir de três princípios: eficácia, propriedade e identidade. Palavras-chave Bailes — Dança — Educação do corpo. I- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000004 751 Body education – social dance in 19th century Rio de Janeiro city: Paranhos’ point of view Victor Andrade de MeloI Abstract Many authors consider the 1850s a milestone in Brazilian history, because it was a period in which stability arose in different areas, which enabled more effective progress in the process of building an independent nation. The capital (Rio de Janeiro city), which disseminated new trends and customs, nurtured a more mundane social dynamics, and a greater structuring of the trade in luxuries and entertainment. By studying this period of Brazilian history, this article aims to discuss the educational aspects of one of the activities commonly promoted in Rio de Janeiro in the mid-nineteenth century, the dance balls, from the point of view of an important personage of the Brazilian Empire: José Maria da Silva Paranhos. The sources of this historical investigation have been 47 chronicles from the series Cartas ao amigo ausente (Letters to an absent friend), written by Paranhos and published in Jornal do Commercio between 1850 and 1851. The study concludes that Paranhos’ view of the balls is directly related to his perception and his projects for the country. He perceived the dance events not only as entertainment, but also as occasions that helped to shape and strengthen a civil society composed of different sectors of the national elite, which could lead Brazil to an auspicious future, marked by the ideas of civilization and progress. Paranhos’ positions help understand the dances as a strategy for body education based on three principles: effectiveness, ownership and identity. Keywords Balls – Social dance – Body education. I- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contact: [email protected] 752 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000004 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Introdução E se não fossem os bailes, o que seria do bom povo fluminense? José Maria da Silva Paranhos Carvalho (2012) e Chalhoub (2012), entre outros autores, consideram os anos 1850 como um marco na história brasileira. Tendo surtido efeito a estratégia da antecipação da maioridade de Pedro II (1840), conformou-se, em diferentes âmbitos, uma estabilidade que permitiu avançar, de forma mais efetiva, o processo de construção da nação independente. Ainda que persistissem resistências e ocorrências contraditórias, como a manutenção da escravidão, foi o período em que mais bem delineou-se o processo de modernização que, de alguma forma, já vinha sendo entabulado desde a chegada da família real portuguesa (1808). Constroem-se discursos de que o Brasil deveria ser reconhecido pelo seu caráter civilizado e pela adesão à ideia de progresso (SCHWARCZ, 1998). Impactos desse processo são claramente observáveis no município neutro da corte, que se tornou o espaço das principais experiências de modernização do país, foco irradiador de novas modas e costumes. Gestou-se no Rio de Janeiro uma dinâmica social mais mundana, uma maior estruturação do comércio de luxos e entretenimentos, relacionados, inclusive, à conformação de uma sociedade civil que desejava (e precisava) expor publicamente seus símbolos de status e distinção. Tornaram-se mais valorizadas as atividades públicas de convivência, quase uma obrigação para os que desejavam ser reconhecidos em certos círculos sociais: [...] é na capital, durante os anos de 1840 e 1860, que se cria uma febre de bailes, concertos, reuniões e festas. A corte se opõe à província, arrogando-se o papel de informar os melhores hábitos de civilidade, tudo isso aliado à importação dos bens culturais reificados nos produtos ingleses e franceses (SCHWARCZ, 1998, p. 111). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Nesse contexto, de um lado, adotaram-se costumes mais distendidos, frutos, inclusive, dos mais frequentes contatos no cenário urbano. De outro lado, aumentaram as preocupações com os comportamentos a serem adotados. Todos passavam por um processo de reeducação frente ao novo dinamismo social. Isso é, quando o espaço privado, sem deixar de ser importante, perde força frente ao avanço das vivências na esfera pública, novas exigências pendem sobre os indivíduos. Que comportamentos adotar? Como expressar um gosto apurado tendo em conta os novos parâmetros? Como isso se manifesta nas vestimentas, nos cumprimentos, nos gestos, nas técnicas corporais? Trata-se claramente de um processo de educação do corpo. Estou aqui dialogando com as ideias de Soares (2001, p. 110): Os corpos são educados por toda realidade que os circunda, por todas as coisas com as quais convivem, pelas relações que se estabelecem em espaços definidos e delimitados pelos atos de conhecimento. Uma educação que se mostra como face polissêmica e se processa de modo singular: dá-se não só por palavras, mas por olhares, gestos, coisas, pelo lugar onde vivem. Concordamos com a autora ao dizer que, por sua materialidade, esses corpos educados, ou que se pretende que assim o sejam, são uma representação da sociedade, permitindonos prospectar a “dinâmica de elaboração dos códigos a que devem responder”. Ao seu redor é possível compreender “as técnicas, pedagogias e instrumentos desenvolvidos para submetê-los a normas” (SOARES, 2001, p. 111). Trata-se não só de um processo que pende sobre os indivíduos, mas sim sobre a sociedade como um todo, sendo inegável seu caráter político: gestar grupos e governar comunidades passa, inequivocamente, pela necessidade de estabelecer parâmetros de educação corporal. Nessa perspectiva, a educação do corpo se cruza com a educação das sensibilidades e dos 753 sentidos. Devemos ter em conta o desafio apontado por Oliveira (2012, p. 08) para melhor entender a especificidade dessa intervenção educacional: Para tentar uma aproximação dessa dimensão da nossa humanidade, pretendemos inscrevê-la no âmbito de um conjunto de influências mutuamente complementares. A natureza, a estética, a ciência, a cultura, entendida como síntese da economia, da política, da sociedade, por mais que sua separação remeta a dificuldades que não são de fácil resolução, são os âmbitos nos quais os sentidos, a sensibilidade e sua educação podem ser percorridos pelo historiador. Partindo dessas considerações, este estudo tem por objetivo discutir os aspectos educacionais que cercavam uma das atividades comumente promovidas no Rio de Janeiro de meados do século XIX, os bailes, a partir do olhar de um importante personagem daquele cenário: José Maria da Silva Paranhos. Trata-se de uma pesquisa histórica que utilizou como fontes 47 crônicas que o autor publicou, entre os anos de 1850 e 1851, no Jornal do Commercio. Dialogando com as posições de René Remond (2003), metodologicamente este estudo transita entre a história política e a história cultural. O político é considerado como um ponto de condensação que, a partir de instituições e funções caracterizadas como estatais, se irradia para todas as outras esferas da vida social, influenciando e sendo influenciado por elas. Assim, argumentamos que se as agências que promoviam os bailes não eram efetivamente órgãos estatais, eram, contudo, compostas por lideranças nacionais e tinham seu funcionamento de alguma forma relacionado a algumas demandas e necessidades do país. Neste momento, cabem algumas linhas para apresentar o personagem com o qual dialogaremos. Paranhos, o futuro visconde do Rio Branco, nasceu na Bahia (em 1819). Deslocou-se para o Rio de Janeiro na década de 1830. Estudou na Academia da Marinha e na Escola Militar, de 754 onde se tornou professor. Inclusive em função do estrato social de sua família (que não era das mais ricas), não estabeleceu, como era comum em muitas lideranças do país, uma relação direta com a advocacia. Desde os anos 1840, atuava na imprensa, primeiro fórum público do que viria a ser uma brilhante carreira política e diplomática: foi um dos principais estadistas do Segundo Reinado, tendo ocupado postos-chave e se envolvido com importantes acontecimentos do Império. Foi responsável por implementar uma série de reformas no país, notadamente quando esteve à frente do Conselho de Ministros, entre 1871 e 18751. No Jornal do Commercio, Paranhos ingressou em dezembro de 1850, na condição de autor anônimo da série Cartas ao amigo ausente, publicada até outubro de 1851, quando viajou para o Uruguai, por motivo de serviço diplomático. Criado em 1827, tendo como foco as questões da economia, esse periódico paulatinamente foi mudando de perfil, passando também a se debruçar sobre a política e assuntos mundanos. Foi um dos mais importantes jornais do Império, sendo um dos responsáveis por implementar inovações na imprensa e por torná-la um fórum público de grande relevância (JUNQUEIRA, 2010)2. Há divergências a respeito de quem seria o pioneiro da crônica brasileira. De toda forma, a atuação de Paranhos no Jornal do Commercio pode ser considerada como exemplo de um cronista em ação (EWALD, 2000). O autor abordava, com cumplicidade com o leitor, o que acompanhava em todos os âmbitos na vida da corte: Paranhos participava de todas as festas, frequentava o Prado, adorava os bailes e recomendava sempre aos que o escutavam que gozassem o mundo, porque fugaces labuntur anni (RODRIGUES, 2008, p. xviii). 1- Paranhos foi, ainda, Ministro das Relações Exteriores (1855-1857; 1858-1859), Ministro da Marinha (1853-1855; 1856-1857), Ministro da Guerra (1871) e Ministro da Fazendo (1871-1875). 2 - Atuaram no Jornal do Commercio grandes personalidades do país. É publicado até os dias de hoje, pelo grupo Diários Associados. Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... Deve-se ressaltar que seus posicionamentos são uma representação, um olhar de um personagem que já era reconhecido, mas que se encontrava ainda no início de uma trajetória que lhe alçaria ao posto de um dos mais importantes do Império. Seus pontos de vista são marcados não exatamente pelo frescor da juventude, mas sim por uma ainda instável certeza de meia idade acerca dos projetos para a nação, que ele mesmo vai contribuir para operacionalizar nas décadas seguintes. Nesse sentido, essas crônicas podem ser consideradas como “uma fonte primordial para o conhecimento do Império, num de seus períodos mais característicos” (RODRIGUES, 2008, p. X), uma “fonte autêntica, viva, diária, cotidiana, para captar o sentido, o valor, a significação, o ethos da reviravolta que se opera na década de 1850” (p. XXII). Fonseca (2007) concorda com esse ponto de vista, destacando que, nesses escritos, Paranhos discutiu seus projetos para o país a partir de um olhar de quem era egresso das fileiras das escolas militares, e não da faculdade de direito. Consideramos, assim, produtivo prospectar seus posicionamentos acerca dos bailes e sociedades dançantes, novas organizações da sociedade civil que funcionavam mesmo como instâncias educacionais, informando os possíveis usos do corpo, dramatizando as tensões relacionadas aos projetos de grupos engajados no forjar da nação. Devem-se considerar algumas peculiaridades dos bailes abordados por Paranhos. Inegavelmente, esses eventos frequentados pelas elites do Império dialogavam com referências que chegavam da Europa. Seria um equívoco, todavia, encará-los como uma cópia do que ocorria no velho continente. Havia, sim, movimentos de reelaboração, a incorporação de peculiaridades do jovem país que ainda iniciava seu processo de construção identitária: É dentro dessa complexa dialética do nacional e do universal que se deve interpretar a rica produção cultural do Segundo Reinado. (CARVALHO, 2012, p. 35) Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Além disso, havia ainda uma grande ruptura: “Povo e elite mantiveram-se em mundos à parte no campo cultural, assim como no mundo social e político” (CARVALHO, 2012, p. 35). A dança era uma das práticas nas quais essa separação claramente se manifestava: “o reisado, o lundu, o batuque, o maxixe contrastavam com a valsa e a polca dos salões”. (CARVALHO, 2012, p. 35). Vejamos como se estruturava a prática da dança naquelas décadas de 1840/1850. A sociedade fluminense dança O baile! O baile é sempre o baile! Estas interjeições exprimem as mais sérias preocupações, os mais vivos e afetuosos sentimentos da atual sociedade fluminense. José Maria da Silva Paranhos Na transição dos anos 1840/1850, no Rio de Janeiro, já não era uma novidade a dança de salão, aquela que é praticada não de forma espontânea nas ruas, mas sim em espaços fechados, seguindo regras e princípios coreográficos variáveis de acordo com diferentes estilos. Sabe-se que, já instalado no Brasil, D. João mandou vir de Portugal, em 1810, o mestre de dança Pedro Colonna (CAVALCANTI, 2004). No ano seguinte, desembarcou na colônia o francês Luis Lacombe, que passou a oferecer seus serviços de docente e a coreografar espetáculos apresentados nos teatros da Corte (SILVA, 2007). De fato, com a chegada da família real portuguesa, em 1808, houve grandes mudanças no cotidiano colonial, notadamente no Rio de Janeiro. A vida pública se tornou mais agitada. Os bailes, seguindo padrões europeus, tornaram-se mais comuns, dinamizados por mestres que chegavam do velho continente. Eram promovidos em teatros, nas residências das elites, nas festividades da Coroa: As danças se aperfeiçoavam com mestres entendidos. Luiz Lacombe não tinha mãos a medir e multiplicavam-se salões e saraus onde suas discípulas exibiam passes e passos de bem aprendidas graças coreográficas. Os 755 cabeleireiros e os mestres de danças [...] gozavam de grande prestígio e maiores proveitos (PINHO, 1942, p. 15). Em 1815, é fundada a Assembleia Portuguesa, com o objetivo de reunir pessoas influentes em torno de certos divertimentos, entre os quais bailes, previstos nos estatutos, seguindo rígidas normas de etiqueta (SILVA, 1978), uma iniciativa que não teve longa duração. Uma nova agremiação dedicada à dança surgiu somente em 1834, presidida por um importante personagem do Império, o conselheiro Diogo Soares da Silva de Bivar. Ficou conhecida como Bailes do Catete, atraindo não somente membros da aristocracia, como também comerciantes, estrangeiros ligados a órgãos diplomáticos, pessoas envolvidas com os novos negócios que se estruturavam na cidade (CARDOSO, 2006). Essa sociedade teria sido uma das primeiras a abolir a grande separação que existia entre homens e mulheres nas atividades públicas (ZAMITH, 2011). Por volta da mesma época foi criada a Assembleia Estrangeira, presidida por Marcelino José Coelho, importante liderança dos comerciantes fluminenses. Sua sede, uma casa alugada do marquês de Barbacena, também se localizava no bairro do Catete. Gozando de certo prestígio na cidade, chegou, em 1841, a oferecer o mais badalado baile em homenagem à coroação de Pedro II. O Almirante Graham3 muitas vezes esteve nessa agremiação. Em setembro de 1835, observou a presença de cerca de 400 pessoas de “todas as classes” (HAMOND, 1984, p. 90). Em outra ocasião, em um baile à fantasia realizado em junho de 1836, chegou a comentar: “Não sei se jamais me diverti tanto, pois não me lembro de ter parado de rir um só momento” (HAMOND, 1984, p. 128). Era, de certa maneira, uma novidade essa mistura de distintos grupos sociais (aristocracia, 3- Graham Eden Hamond esteve, no Rio de Janeiro, em 1825, comandando o navio que trouxe Charles Stuart, embaixador responsável por negociar o reconhecimento português da independência brasileira, e, entre 1834 e 1838, como almirante-em-chefe da esquadra do Atlântico Sul. 756 comerciantes, negociantes em geral). Esse quadro gerou a necessidade de estabelecimento e aprendizado de novos comportamentos, que deveriam ser informados pelas agências educativas (notadamente a família e a escola), mediados pela imprensa, que repercutia o momento pelo qual passava a cidade. Graham também compareceu a eventos promovidos pela Sociedade Praia-Grandense, localizada em Niterói. Ao comentar a inauguração do novo salão de baile da agremiação, foi eufórico: “o melhor que já vi até hoje” (HAMOND, 1984, p. 112). O inglês percebeu que, embora suas atividades contassem com importantes personagens do Império, o regulamento do clube sugeria que os frequentadores deveriam se vestir de maneira mais simples. Nos convites, aliás, deixava-se claro: “He proibido o luxo no trajar, e o uso de brilhantes, e pérolas” (HAMOND, 1984, p. 112). Avaliação positiva teve também outro estrangeiro que lá esteve em dia de festa, o norte-americano Charles Wilkes4: “Raras vezes vi tão bom gosto nos arranjos e uma sociedade tão distinta” (HAMOND, 1984, p. 197). Como observado, tratava-se de novos comportamentos públicos que deveriam ser observados pelos que desejassem se integrar à dinâmica social em construção. Essas iniciativas dos anos 1830/1840 não alcançaram a projeção que conseguiram as agremiações criadas na década de 1840/1850. Entre tantas, algumas merecem destaque. O Cassino Fluminense foi fundado em 1845, com o fim de: “proporcionar a seus membros honestos divertimentos, por partidas de Baile e Música” (ALMANAK LAEMMERT, 1849, p. 227). A diretoria, eleita a cada dois anos, era composta por insignes personagens do Império. O primeiro presidente foi Luiz Fortunato de Brito Abreu Souza e Menezes, desembargador e um dos grandes nomes da advocacia de seu tempo. Essa agremiação foi, de fato, uma das mais importantes do Rio de Janeiro do século XIX (NEEDELL, 1993). Como a ela se referiu 4- Wilkes esteve na cidade liderando uma expedição científica, a United States Exploring Expedition. Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... Paranhos na crônica do dia 27 de abril de 1851: “o aristocrático Cassino, que conta em seu seio com todas as glórias parlamentares presentes e passadas, todas as sumidades políticas e cortesãos [...]”. Sua sede da rua do Passeio foi um importante centro de encontro das elites nacionais. Também merecem destaque, pela repercussão de suas atividades e pelos personagens que as integraram, a Sociedade Recreação Campestre, a Assembleia Fluminense e a Sociedade Amizade, mas de fato muitas eram as agremiações que promoviam bailes para diferentes estratos das elites e setores médios5. Houve também espaços populares de dança que se organizaram no decorrer do século XIX. Esse é o caso do Salão do Caçador, criado em 1859, no Largo de São Domingos. Segundo Francisco Macedo, seus “frequentadores se compunham da mais ínfima espécie de rameiras e devassos” (PECHMANN, 2002, p. 315). Esse médico, tão preocupado com a moralidade pública, lembrava outros locais, a seu ver marcados pela devassidão, onde bailes eram oferecidos: Bailes do Rachado, Bailes do Ângelo, Chico Caroço, Salão do Oriente, Fábrica de Cerveja de Mata-Cavalos. Na verdade, a prática da dança por populares sempre sofreu restrições, notadamente quando se dava em espaço público. Pelos jornais, é comum encontrarmos indícios dessas tensões, comunicados de repressão ou solicitações de que alguma medida fosse tomada. Havia um claro processo de estabelecimento de um modelo correto de diversão, relacionado a iniciativas de controle da ordem pública, relacionadas a um perfil civilizacional que determinava o que deveria ser aceito ou não. O perfil dos dirigentes das agremiações mais renomadas é um indicador das suas intencionalidades. As elites, que no processo de construção da nação precisavam mesmo se reconhecer como tal, utilizavam os bailes como forma de identificação e diferenciação, 5- Alguns exemplos: Recreio dos Militares, Harmonia dos Empregados Públicos, Sylphide, Minerva, Floresta, Cassino Americano, Dois de Dezembro, Assembleia Familiar Fluminense, Lísia, Vestal, Recreação Brasileira, Terpsícore, Ulisséa, Nova Eleusina, Amante do Recreio. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. ocasiões nas quais se minimizavam as tensões internas, celebravam-se alianças e acordos, estabeleciam-se distinções com quem estava fora (e entre quem estava dentro). Saber dançar, assim, passou a ser uma necessidade. Não valia qualquer dança, mas estilos considerados civilizados. Nada que se confundisse com as práticas populares, razão pela qual era necessário aprender a forma correta de bailar. É interessante citar que, em 1854, foi lançado, sendo editado pela Laemmert, provavelmente o mais antigo manual de dança publicado no Brasil. Leiamos a descrição: Arte da dansa de sociedade ensinada em lições claramente explicadas por meio de trinta e duas figuras gravadas e contendo além de contradanças gerais, das figuras da valsa, da polka, da schottisch e da redowa as marcas das contradanças provinciais e de várias outras inteiramente novas. (ZAMITH, 2011) Nesse cenário, não surpreende que a dança tenha sido introduzida nas escolas, antes mesmo da ginástica e dos esportes. Vejamos, por exemplo, o caso do Colégio Pedro II. Já no primeiro regulamento previa-se no artigo 54: “As lições de Dança serão dadas nos dias de feriados aos Alumnos, cujos Pais houverem determinado que a aprendão” (BRASIL, 1838). Tratava-se de um curso à parte, ainda assim sendo digno de registro que tenha sido previsto. O primeiro professor de ginástica dessa instituição, Guilherme Luiz de Taube, somente foi contratado em 1841. Frente à dificuldade de conseguir outro docente, quando ele deixou a instituição em 1843, o reitor, Joaquim Caetano da Silva, chegou a propor ao Ministério do Império: Não sendo facil achar hum bom Mestre de gymnastica, e correndo os alumnos continuo risco, se elle sahir maó; com o mais profundo respeito tenho a honra de lembrar a V. Exc. a conveniencia de substituir-lhe hum Mestre de Dança (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 170). 757 Como podemos notar, no espírito do tempo, dança e ginástica eram equiparados como estratégias de educação corporal no âmbito da prestigiosa instituição. Com a Reforma Couto Ferraz (BRASIL, 1854), que estabeleceu novas normas para o ensino primário e secundário na corte, a dança se tornou obrigatória no Colégio Pedro II. Nas décadas de 1850 e 1860, a prática se manteve. Em 1865, por exemplo, havia 141 matriculados em suas turmas (80 do internato e 61 do externato), número superior à maioria das matérias, sendo que a aula era ministrada para todas as séries, por isso o número tão grande6. Cumpre ressaltar que somente nos anos 1870, seria suprimida da instituição (BRASIL, 1870). A dança também era oferecida no ensino privado. Nas décadas de 1840/1850, entre as escolas masculinas, podemos citar: Colégio D’Instrução Elementar (futuro Colégio de Santa Cruz); Colégio de São Pedro de Alcântara; Liceu Comercial; Instituto Comercial (futuro Colégio Freese) e Liceu Rossmalen. Já entre as femininas, citamos: Colégio de Instrução e Educação de Meninas (futuro Colégio de Botafogo); Colégio de Meninas (Madame Lacombe); Colégio de Meninas da Baroneza de Geslin; Colégio Augusto; Colégio de Santa Cecilia; Colégio Estrella; Colégio Madame Luiza Halbout; Colégio Emulação da Juventude; Colégio Madame Carolina; Colégio da Lapa e Colégio Miss Steinmetz. Atuavam como professores, nessas instituições ou oferecendo aulas em salas particulares: Antonio Maria Rioja Castelini, Carolina Caton, Francisca Farina, Francisco York, João José da Rocha, Julio Toussaint, Madame Lacombe, Miguel Vaccani Junior, entre outros. Desde a década de 1820, frequentemente se apresentava a dança como um conteúdo das iniciativas educacionais. Por exemplo, em 1828, D. Tereza Fortunata da Silva informava que no 6- Confira Mappa das matrículas do Imperial Collegio de Pedro II, único estabelecimento publico de instrucção secundaria, por matérias. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1740/000085.html>. Acesso em: 11 abr. 2013. 758 seu colégio de meninas havia “os seguintes ensinos ler, escrever, contar, gramática portuguesa, desenho, dança, coser, bordar, e marcar, etc.” (JORNAL DO COMMERCIO, 08/01/1828, p. 2). A prática também era oferecida como parte da educação masculina, como podemos ver nesse anúncio do mesmo jornal, em 17/01/1831 (p. 4): [...] a cuja casa se poderá dirigir qualquer pessoa que quiser aprender, ou mandar ensinar a meninos quaisquer das preditas letras, ou qualquer das duas línguas. Os hábeis mestres poderão ensinar também as línguas latina, e alemã, a dançar e a desenhar. Em muitos países aconteceu processo semelhante. Lousada (1998) informa que o mesmo ocorrera em Portugal, desde a transição dos séculos XVIII e XIX, tendo a dança se incorporado às exigências de educação, de homens e das mulheres, não mais só da aristocracia, como também de setores médios. Este é um tema fascinante, que pretendemos aprofundar em outras ocasiões. Da mesma forma, vale investigar melhor as muitas sociedades que ofereciam os bailes. Esse artigo, contudo, é dedicado a discutir o olhar de José Maria da Silva Paranhos, analisando como esse notável personagem do Império teria se posicionado frente à febre de atividades dançantes e refletido a respeito das necessidades de comportamentos que deveriam ser adotados. Uma febre dançante: os bailes no olhar de José Maria da Silva Paranhos Não exagero dizendo que uma febre dançante se apossou do espírito, ou antes das pernas dos habitantes desta boa cidade do Rio de Janeiro. Por toda a parte e todos os dias ouve-se falar de bailes, uns com antecedência anunciados, outros de repente improvisados. Vai-se visitar a um conhecido velho, na intenção, após a tarefa do dia, de gozar alguns minutos de repouso, e eis senão quando acha-se um homem numa sala de dança. Se alguém vai à casa de um amigo para passar algumas horas em agradável prática, e esse amigo tem irmãs, filhas ou primas, acham-se lá dois homens que lhes possam Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... servir de vis-à-vis, improvisa-se imediatamente uma contradança. E como fugir a esta nova espécie de leva forçada? Pede-se com tanta graça, com palavras tão doces, que, a menos de faltar a todas as regras da civilidade fluminense, não há alternativa, é forçoso aceitar o convite e dançar muito risonho. José Maria da Silva Paranhos José Maria da Silva Paranhos não deixou passar despercebido esse movimento de valorização da dança no Rio de Janeiro de meados do século XIX. Para ele, tratava-se de um desdobramento da busca de sintonização com o continente europeu e da influência dos estrangeiros que chegavam ao país. Era um sinal de que a cidade passava por profundas mudanças e “perdia a inocência”: “O Rio de Janeiro tem mudado tanto, que custa a conhecêlo” (PARANHOS, 13/01/1851). Seu olhar não era somente uma constatação, mas também uma celebração. Para ele, a sociedade da corte deveria aprender a se comportar como os povos “mais desenvolvidos”, adotando parâmetros de vida “mais civilizados”. Paranhos percebeu que se diversificavam os divertimentos, tornando-se mais ativa a vida pública. Um dos indícios desse novo cenário seria a multiplicação das “sociedades de baile, de dança, musicais e dramáticas” (PARANHOS, 24/02/1851). Mesmo os problemas da cidade, o rigoroso clima e a epidemia de febre amarela não conseguiam aplainar o ímpeto dos que compareciam aos eventos promovidos por essas agremiações. O autor escreve em 24/02/1851: “não há calor nem febre que tenham o poder de intimidar os seus cavalheiros e as suas belas”. O cronista não usava meias palavras para definir o que ocorria, a seu ver, na sociedade fluminense. Na crônica de 11/05/1851, escreveu: Continua o furor bailante com tal intensidade, que se pode temer que daí venha a nascer alguma febre simples ou mista, conforme for só devida a alguma das três espécies – valsa, polca e contradança –, ou às suas possíveis combinações. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Era categórico, como podemos notar nesse trecho, escrito em 24/08/1851: Nem mais, nem menos! Aqui executa-se a polca, acolá a contradança, mais adiante a valsa, e por toda a parte a graciosa e delicada schottisch, que muitos alteram a seu belprazer, sem se lembrarem que outrora a dança era uma arte, senão quase uma ciência. Para Paranhos, não havia exceções, tratava-se de uma vaga que a todos envolvia, inclusive “aqueles sobre quem repousam os futuros destinos do país”, que “entregamse a exercícios coreográficos, para não dizer ginásticos” (PARANHOS, 24/08/1851). De forma ocasional, Paranhos, ao mobilizar a ideia de ginástica, uma prática que ainda era embrionária na sociedade fluminense, deixa transparecer que encarava a dança como um exercício corporal. Devemos perceber que esse elogio à dança era simultaneamente motivo de júbilo e preocupação. Essa nova performance pública era fundamental para a sociedade, mas deveria ser experenciada de forma adequada, de maneira a efetivamente significar algo produtivo para a consolidação da nação, entendida, como já dissemos, a partir de parâmetros civilizados, isso é, inspirados em países que tinham aderido mais explícitamente ao discurso e ideário modernos. Para nosso cronista, os eventos dançantes se constituíam mesmo no principal assunto da cidade. A chegada de um novo estilo de dança era comemorada como uma grande novidade. A schottisch, por exemplo, é enfaticamente saudada por ser mais adequada ao caráter dos brasileiros. Em mais de uma ocasião, aliás, Paranhos chegou a considerar um baile como o mais importante acontecimento da semana. A cada atividade promovida, centenas de pessoas compareciam. O que tanto entusiasmava os amantes dos bailes? A dança em si, certamente, que gerava uma proximidade física ainda inusitada naquele momento. A possibilidade de ouvir boa música também. Todavia, eram bem mais amplos 759 os estímulos que envolviam essas ocasiões que movimentavam a sociedade fluminense. Algumas motivações pareciam bem frugais, como sugere Paranhos ao observar, na crônica de 24/02/1851, o “grande número de gastrônomos que lá vão somente pelo cheiro dos sorvetes e dos sequilhos”, preparados pelas mais importantes confeitarias da cidade, como a Francioni, que assim anunciava: “Incumbe-se de qualquer função, e aluga todo o necessário para o serviço tanto da mêsa quanto para os bailes” (ALMANAK LAEMMERT, 1851, p. 388). A Castellões não deixava por menos, publicando um anúncio ainda maior, no qual informava que possuía “o mais completo e variado sortimento de doces finos, tanto para chá, quanto para bailes, funções, etc.” (ALMANAK LAEMMERT, 1851, p. 388), um serviço que já há algum tempo era oferecido, como podemos ver no Laemmert de 1847 (p. 409): “O apreço que tem tido os doces de sua casa, lhe tem grangeado a fama publica, e a freguesia das sociedades Philarmonica e Assemblea Fluminense”. Nosso cronista observou, no texto de 01/06/1851, de forma bem humorada, que esses atrativos gastronômicos por vezes interferiam no bom andamento dos bailes. Jovens, com “apetite e sede insaciáveis”, esqueceriam as danças, fazendo “uma guerra desapiedada aos sorvetes, aos canudos, aos pastéis, às empadas e aos sanduíches”. As soluções para “refrear esse terrível bando de cossacos” seriam: chamar a atenção dos pais; atrair-lhes o interesse pelo “belo sexo”; em último caso, desenvolver estratégias para despistar e enganar os “agressores”. Claramente conclamava nosso cronista que se aprendesse a lidar com essa novidade, que de forma ambígua apresentava novas possibilidades de vivência social pari passu com novos rigores comportamentais. Esses acontecimentos aparentemente ingênuos se relacionavam a uma exigência que se impunha aos frequentadores dos bailes: a necessidade de saber se portar em público. Isso passava pela forma de se vestir, pelo domínio das técnicas de dança, mas também 760 pela maneira de se portar frente ao outro, notadamente porque havia uma nova personagem em cena: as mulheres, que não foram só partidárias, como também agentes importantes das mudanças em curso. Como colocado por Silva (2011, p. 52), a elas: [...] deve-se uma parte importante do processo de modernização, europeização e afrancesamento do Rio de Janeiro, que iria contaminar paulatinamente as outras urbes brasileiras. O aumento de sua presença social tumultuava a ordem dos desejos e dos procederes. Até mesmo por isso, muitas eram as críticas que pendiam sobre os bailes, por Paranhos, com a ironia de sempre, contestadas. Leiamos um trecho, da crônica de 11/05/1851: Não imito o esdrúxulo filósofo dos nossos tempos que, em um baile, o que mais sentia era a dor que lhe causava a ideia da imensa quantidade de carneiros sacrificados à casquilharia das luvas de pelica. Não posso tolerar a hipocrisia com que certa presumida matrona, que já está entre duas idades, prega contra a licença das folias dançantes, e revestindo-se de toda a gravidade, diz que nem em sua livraria permite o contato dos autores machos com os autores fêmeas. Não aconselho que os nossos vigários imitem o cura de Bellebat, que, para evitar que nos festins houvesse alguma indecência, tocava ele próprio o violão e fazia dançar os seus paroquianos. Mas também não posso deixar de perguntar a certos rigoristas se quando eles pregam do púlpito contra a dança e os prazeres humanos, não os espera lá no refeitório um suculento jantar ou gorda ceia. Havia também, é verdade, o oposto, uma expectativa de algumas famílias de que a frequência aos bailes pudesse gerar bons casamentos, postura igualmente ironizada por Paranhos: Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... Só as moças que aspiram ao ministério doméstico e desejam contribuir para o aumento legal da humanidade, é que vão perdendo de todo a fé nos tais bailes. (PARANHOS, 27/04/1851) De toda forma, em vários momentos, o cronista defendeu uma maior liberdade feminina, para ele um sinal de que avançavam os costumes. Mais ainda, sugere que as atividades dançantes desempenhariam um importante papel: Há mesmo quem pretenda que a educação das mulheres não se pode operar sem os bailes; que as mulheres criam-se no salão, como o general no campo da batalha, como o homem de ciência no gabinete, como o homem de Estado nos escritórios de jornal e nas discussões da tribuna .(PARANHOS, 27/09/1851) Ao sugerir que os bailes eram fundamentais na educação da mulher sintonizada com os novos tempos, Paranhos enfrentava os que se apegavam ao passado. Todavia, não pensemos que tinha uma visão idílica dos eventos dançantes. Para ele, essas ocasiões não deveriam se tornar um vício. Chega a sugerir que as mulheres que se submetem “ao violento exercício coreográfico de dois, três e seis bailes por semana” (PARANHOS, 31/08/1851) acabam adquirindo uma má fisionomia. Mais ainda, preocupa-se com os elevados custos: A sociedade fluminense está a tal ponto atacada da febre dançante e fascinada com os prazeres da comédia dos bailes, que começo a recear pela saúde e felicidade das belas, pelos fundos dos pais e pelo crédito comercial de muitos elegantes. (PARANHOS, 31/08/1851) No seu modo de entender, os excessos poderiam até mesmo ser prejudiciais à saúde e “um veneno corrosivo da moral pública, da felicidade doméstica e da fortuna privada”: Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Então o luxo e os prazeres, já não correspondendo às posses daquele que os quer ostentar e gozar, longe de serem lícitos e salutares, corrompem os bons costumes de uma família ou de uma nação morigerada, excitam a cobiça, acostumam às intrigas e às baixezas e solapam pouco a pouco os alicerces da probidade. (PARANHOS, 11/05/1851) Trata-se de uma posição interessante. Ao propor uma distensão dos costumes, de forma alguma sugeria abandonar a moralidade pública. Muito pelo contrário, para não por em risco uma instância tão importante para o país que estava nascendo, dever-se-ia ter em conta os novos rigores que a nova dinâmica exigia. Por isso sua grande preocupação com a educação dos que iam aos bailes: se limites não fossem estabelecidos, perder-se-ia sua potencialidade. De toda forma, o cronista exaltava os bailes, lembrando, inclusive, que tinham potencial econômico. Em 11/05/1951 escreveu: [...] favorecendo o consumo dos objetos do tom ou de luxo, animam a indústria e o comércio, e tornam-se por este modo tão protetores do progresso material do país como provado fica que o são da sua civilização política e moral. Lembra que, na alta temporada, a cidade entrava em polvorosa, como colocado na crônica de 27/04/1851: Felizes cabeleireiros, alfaiates, lojistas, modistas, e o restante da legião de industriosos suíços a serviço dos fashionables e das elegantes de todas as idades. Para Paranhos, havia um ganho ainda maior – fortalecer elos entre distintos grupos. Em 11/05/1851, afirmou: [...] reunindo debaixo do mesmo teto, e obrigando o saquarema e o luzia, o cabeludo e o liso, o cabano e o bentevi, 761 a dançarem na mesma sala e ao som da mesma orquestra, acostumam estas diferentes espécies de animais do Brasil a viverem sem se devorarem uns aos outros. Deveria ser, assim, celebrada a costumeira presença de: “Todas as classes, todas as profissões nobres, todas as ciências, todas as opiniões ou personalidades” (PARANHOS, 18/08/1851). Essa linha de argumentação, que tem relação com sua compreensão de que é necessário gestar uma sociedade forte e organizada, uma dimensão fundamental para garantir o futuro da nação, está presente das mais diferentes formas nas crônicas de Paranhos. Pode ser vista quando celebra as novas possibilidades de encontros entre homens e mulheres. Também quando comenta, com o entusiasmo de sempre, um baile promovido pelo Recreio dos Militares, no salão do Floresta. O cronista julga que essas ocasiões ajudariam a fortalecer os laços entre militares e civis, atitude fundamental para garantir a defesa nacional. Além disso, considerava que era uma forma de suavizar a dureza da vida na caserna. Discordava, aliás, que a dança prejudicaria a preparação do combatente. Para ele, a marcialidade de algumas músicas até mesmo despertaria “os instintos guerreiros” e os tornaria “apaixonados da sua vida ativa e aventurosa” (PARANHOS, 10/08/1851). Uma vez mais vemos nas posições de Paranhos a sugestão de que se tratava de uma contribuição para a educação do corpo, nos moldes que apresentamos na introdução. Essa valorização da confraternização entre os diferentes é, de alguma forma, similar à sua posição a respeito do quadro político nacional, da necessidade de conciliação para o bem da nação, algo que se manifesta frequentemente em suas crônicas no Jornal do Commercio: Nas Cartas ao amigo ausente, nota-se que a discussão de Paranhos, quase sempre, gira em torno da necessidade de um 762 acordo entre os partidos, em benefício dos melhoramentos técnicos e materiais do país. (FONSECA, 2007, p. 11) Esse posicionamento ajuda-nos a compreender o seu entusiasmo com os eventos do Recreação Campestre. Para ele, era uma agremiação mais democrática, onde importantes personagens da sociedade nacional se permitiam contatos mais descontraídos, em um ambiente marcado por menos constrangimentos. Como escreveu em 01/06/1851: “O baile campestre é uma dessas concepções que imortalizam os seus autores”. Enfim, Paranhos encarava os bailes como uma forma de polir os costumes, a fim de gestar o que ele chama de civilização popular. Há que se ter claro, todavia, quem desejava que integrasse essa confraternização. Não se tratava de propor uma comunhão entre elites e populares, mas sim entre os diferentes estratos das elites, como enumera em 24/08/1851: Havia artistas, especieiros, comerciantes de pequeno e grosso trato, militares, médicos, advogados, deputados, senadores e ministros: os pequenos acotovelando-se com os grandes, e todos confundidos nesse utilíssimo e bem entendido sistema de igualdade. Vejamos como, em outra ocasião, definiu os presentes em um baile: Todas as classes aí estão representadas – as artes, as letras, a indústria, a lavoura e o comércio; o funcionário civil e o militar, grandes e pequenos, a inteligência e o dinheiro, o talento e a felicidade, o nacional e o estrangeiro. (PARANHOS, 21/09/1951) Na verdade, Paranhos não desconsiderava os benefícios das danças para a população em geral, encarando-as, contudo, a partir de uma funcionalidade específica. A questão era educar os populares para que, de forma ordeira, suportassem seu destino. Leiamos o que escreve em 29/06/1851: Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... Bem hajam os Prados, os teatros, os bailes, que contribuem com as festas da nossa bela e sublime religião para distrair o povo fluminense das aflições do presente, e fazêlo caminhar ledo e cego para o futuro [...]. Paranhos chega a ironizar a intensa agenda dos parlamentares: não se podia priválos de tamanho “fervor filarmônico-dançanteteatral”. Dessa forma, devia-se ter com eles certa tolerância, já que seria absurdo: Os eventos dançantes abordados por Paranhos eram mesmo espaços privilegiados de encontros das elites, inclusive daqueles que, no âmbito da política, dirigiam os rumos do país. Ele, aliás, sugeria que “a quadra parlamentar coincide com a estação própria dos bailes nesta boa cidade”. (PARANHOS, 27/04/1851) É verdade que os clubes funcionavam o ano inteiro, mas o auge de suas atividades dava-se na ocasião em que a câmara e o senado estavam em plena atuação, quando personagens importantes de todo o país estavam reunidos na sede do Império. Segundo seu perspicaz olhar, os bailes complementavam (e mesmo integravam) as tarefas parlamentares, aproximando os representantes (entre si e com seus eleitores), amenizando as tensões da nação, contribuindo “poderosamente para as combinações da pequena e da grande política”. (PARANHOS, 18/05/1851) Como colocado na crônica de 27/04/1851, o baile era a ocasião em que se poderia: Exigir que, depois de uma vigília passada nas regiões agitadas e deslumbrantes da schottisch [...], um digno representante se levante ao alvorecer, e pálido, lasso e ainda desacordado pelas emoções da véspera, se mergulhe numa atmosfera glacial e úmida. (PARANHOS, 28/07/1851) conversar ao som de uma galopada, estudar o espírito humano engolindo um canudo e sorvendo uma pirâmide de neve, e preparar a solução das grandes questões de Estado com o auxílio do encanto das belas, a fascinação das luzes, e as inspirações de uma orquestra. Eram momentos em que se alinhavam os debates políticos. Se a diplomacia considera os jantares como habilíssimos agentes internacionais, os ministérios e os pretendentes dizem que as soirées e os bailes são de uma grande força persuasiva para certos parlamentares (PARANHOS, 27/04/1851). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Vejamos que, mesmo com os bailes públicos ocupando progressivo espaço, ainda seguiam existindo as atividades privadas, que reuniam a fina flor da sociedade fluminense. Paranhos narra uma dessas reuniões, realizada na casa do oficial-maior da secretaria dos negócios estrangeiros, em que estiveram presentes: [...] o ministro desta repartição, o da Guerra, todo corpo diplomático, inclusive os adidos, vários conselheiros de Estado e deputados, oficiais das Secretarias de Estado e muitos outros [...] 43 pessoas do sexo feio e 37 do belo sexo. (PARANHOS, 06/07/1851) A despeito do perfil dos convidados, “Contradançou-se, schottischou-se à larga”. Da mesma forma, ainda que com frequência reduzida, o Imperador Pedro II progressivamente foi tornando-se mais recluso, volta e meia acontecia algum baile promovido pela família imperial, ocasião sempre celebrada e aguardada com ansiedade. Dançava-se por todos os lados, razão pela qual todos deveriam aprender não só a dançar, mas fundamentalmente como se comportar nessas ocasiões. Tratava-se de uma exigência tendo em conta as necessidades da nação, segundo o olhar de Paranhos. 763 Conclusão O fim da temporada parlamentar e o aumento da temperatura funcionavam como senhas para que houvesse um intervalo na intensidade dos eventos sociais. Na crônica de 12 de outubro de 1851, ele escreveu: “Era tempo de remitir a febre dançante, de dar algum descanso à alma e ao corpo, e cuidar de distrações menos agitadas”. Reduzia-se o frenesi: “Eclipsa-se o sol dos bailes, desaparecem as grandes ilusões do mundo político”. Para Paranhos, a cada uma dessas sessões, a sociedade fluminense modificava-se: A nossa sociedade já vai compreendendo que se pode amar o teatro, a música, a poesia, e até ser elegante e agradável ao belo sexo sem que o homem se torne incapaz de trabalhos sérios, de exercer as mais elevadas como as mais difíceis funções civis. Os homens de porte homérico e semblante socrático, para quem a dança é uma puerilidade, a música uma distração nociva e a poesia um desarranjo mental, já estão menos suscetíveis, menos inexoráveis, e até não é raro ver uma dessas figuras equestres de vis-à-vis com algum dandy dançando uma contradança, ou toda embasbacada a aplaudir os triunfos de uma bela e maviosa cantora. Já era tempo de perdermos esses preconceitos. (PARANHOS, 12/10/1851) É interessante notar o quanto o olhar de Paranhos a respeito dos bailes tem relação com sua percepção e mesmo entusiasmo com o momento pelo qual passava a sociedade brasileira; mais ainda, com seus projetos para a nação. As atividades dançantes eram tanto celebradas como expressão dos novos tempos quanto compreendidas como agências educacionais, polindo os costumes, ensinando a conviver, em um mesmo espaço, homens e mulheres, militares e civis, aristocratas e envolvidos com os novos negócios, parlamentares de distintos partidos. 764 Devemos prospectar essas posições na trajetória do cronista. O que sugere Fontana (2012, p. 5) ajuda-nos a pensar: Jose Maria da Silva Paranhos vive e constrói sua identidade política num período de grandes mudanças e de passagem à modernidade. O contexto de entrada do liberalismo nos círculos intelectuais e maçônicos o faz conjugar tradições “arcaicas” e aspirações modernas, numa tentativa de moderação que o acompanhará por toda sua vida. Num momento onde o tempo histórico parece acelerar-se, [...], assim como muitos de sua geração, (apropriou-se) de elementos conservadores e liberais, dentro de um processo de circulação de ideias próprio do período. Vivenciou os conflitos e contradições típicas da modernidade, sentindo as rupturas e permanências do período, sendo liberal e conservador, progressista e tradicional. Os bailes eram indicadores de uma sociedade mais livre, mas cuja liberdade deveria ser vivida com limites. Tratava-se, de fato, de um processo de educação do corpo que pode ser entendido a partir das três faces da experiência corporal propostas por Vigarello (2003): • a educação do físico (princípio da eficácia) – a necessidade de conhecer certas técnicas civilizadas, que passaram a ser, inclusive, ensinadas na escola, não devendo se confundir com as danças voluptuosas típicas dos populares; • a educação do espírito (princípio da propriedade) – havia um conjunto de comportamentos considerados socialmente adequados que deveriam ser aprendidos, marcando a diferença com a falta de moralidade que supostamente reinava nos espaços populares; • a educação para a inserção em coletivos maiores (princípio da identidade) – tudo isso deveria ter em conta gestar uma sociedade civil, especificamente uma elite, tão necessária para a consolidação da nação. Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... A dança não era, portanto, somente um divertimento. Era um sinal dos novos tempos, produto e, esperava-se, produtora de uma nova dinâmica social. Uma exigência social, devendo, portanto, ser motivo de educação. Uma educação do corpo, dos sentidos, das sensibilidades. Referências ALMANAQUE LAEMMERT. Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://objdigital. bn.br/acervo_digital/div_periodicos/almanak/almanak_djvu.htm>. Acesso em: 26 nov. 2013. Editado por Eduardo Laemmert e Heinrich Laemmert. Rio de Janeiro. BRASIL. Regulamento n. 8 de 31 de janeiro de 1838. Contém os Estatutos para o Colégio de Pedro II. Coleção de leis do Brasil de 31/12/1838. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=71028&norma=87243>. Acesso em: 11 abr. 2013. ______. Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854. Aprova o regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do município da Corte. 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Recebido em: 24.04.2013 Aprovado em: 11.09.2013 Victor Andrade de Melo é professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 766 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos... Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia solidária internacional Antonio Takao KanamaruI Resumo A moderna educação pública, a partir de fins do século XX, passou a sofrer novas influências de políticas hegemônicas de vieses tecnocrático, mercadológico e financeiro. Diante desse quadro, um de seus principais fundamentos, a autonomia pedagógica, encontrase sob pressão e condicionamento no mundo. Assim, defendemos que o estudo da autonomia na educação moderna pode auxiliar a esclarecer criticamente as condições e seu desenvolvimento na história. Nessa perspectiva, uma das reconhecidas obras pedagógicas reside na chamada Pedagogia do trabalho ou escola moderna, de Célestin Freinet (1896-1966), a qual procuramos analisar a partir de revisão da literatura. Neste trabalho, portanto, enfocamos seus meios e fundamentos teórico-metodológicos como a livre expressão, o livre trabalho, a livre cooperação, as técnicas de trabalho, a livre pesquisa, a comunicação interescolar. Na análise, observamos a presença teórica de um quadro marxiano heterodoxo implícito na metodologia freinetiana, particularmente relacionada à teoria das relações materiais de produção, à teoria da alienação e à doutrina internacionalista. Tais fundamentos, somados à originalidade de Freinet, permitiram a criação de meios técnicos e a cooperação internacional, que subjazem à autonomia radical de sua pedagogia. Como resultados, observamos e descrevemos fundamentos pouco analisados em Freinet, devido ao caráter embrionário em seu tempo e espaço: o cooperativismo internacional e a autogestão da escola moderna, os quais revelam a relevância e atualidade do autor para o resgate e o desenvolvimento da autonomia pedagógica, bem como a ampliação da dimensão da obra freinetiana como uma pedagogia solidária internacional, frente ao difícil contexto histórico presente. Palavras-chave Autonomia pedagógica — Cooperativismo — Autogestão escolar — Pedagogia solidária. I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000007 767 Autonomy, cooperativeness and self-management in Freinet: foundations of an international solidarity pedagogy Antonio Takao KanamaruI Abstract Since the late twentieth century, modern public education has come under new influences of hegemonic policies with technocratic, marketing and financial biases. Given this scenario, one of its main foundations, pedagogical autonomy, is under pressure and conditioning in the world. Thus, I argue that the study of autonomy in modern education may help critically clarify the conditions and its development in history. From this perspective, one of the recognized pedagogical works is the so-called pedagogy of work or modern school, by Célestin Freinet (1896-1966), which I sought to analyze through literature review. Therefore, in this study I focus on its means and theoretical and methodological foundations such as free speech, free work, free cooperation, work techniques, free inquiry, interschool communication. In the analysis, I have observed the presence of a heterodox Marxist theoretical framework implicit in Freinet’s methodology, particularly related to the theory of the material relations of production, the theory of alienation and the internationalist doctrine. Such foundations, coupled with the originality of Freinet, enabled the creation of technical means and international cooperation, which underlie the radical autonomy of his pedagogy. As for findings, I observe and describe foundations which have been little analyzed in Freinet, given their embryonic nature in his time and space: the international cooperativeness and self-management of the modern school. Such foundations reveal not only the relevance and timeliness of the author to the rescue and development of pedagogical autonomy but also the expansion of the size of Freinet’s work as an international solidarity pedagogy in the difficult current historical context. Keywords Pedagogical autonomy — Cooperativeness — School self-management — Solidarity pedagogy. I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil. Contact: [email protected] 768 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000007 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. Introdução Na extensa obra do francês Célestin Freinet1, observamos, a partir da revisão da literatura, um aspecto pouco abordado em sua teoria e práxis pedagógicas baseadas em métodos ativos: a solidariedade radical em seus meios e fins. Solidária devido ao compromisso ético e socialmente transformador assumido em sua pedagogia popular. Radical em sentido análogo ao levantado por Paulo Freire, no clássico Pedagogia do oprimido (2005, p. 26), quanto à etimologia do próprio termo, relacionado à ideia de raiz, segundo o qual: […] a radicalização (grifo nosso) é crítica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento (grifo nosso) que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva. Trata-se, portanto, da solidariedade radical, da responsabilidade enraizada em sua missão, objetivos e métodos. Essa dimensão pouco estudada na obra de Freinet pode ser observada em aspectos já analisados e amplamente reconhecidos na literatura, como aqueles relacionados às centralidades dos conceitos de livre trabalho, bem como de livre expressão, que, junto com a livre cooperação, a livre pesquisa e as respectivas técnicas (técnicas de vida), que a notabilizaram, como a impressão gráfica, o correio interescolar, o diário coletivo (livro de vida), o jornal escolar, fichas e fichário escolares, os audiovisuais (documentário cinematográfico, rádio-gravador) e a revisão do layout do interior arquitetônico e mobiliário escolares, constituem, em seu conjunto, os meios e fins da pedagogia freinetiana. Fundamentalmente, seus pressupostos conceituais e condições 1-Dedicado ao freinetiano Profofessor Titular José de Arruda Penteado (Departamentp de Educação – IA/UNESP), in memoriam. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. técnicas têm por objetivo conduzir educandos didaticamente ao trabalho coletivo e criador. Mas, a nosso ver, a obra freinetiana não se limitou à celula mater didática da relação educador-educando. Compreendemos que Freinet interveio também nas próprias relações entre educadores, ao estender coerentemente a cooperação2 e a autogestão escolar a essa relação de trabalho, conforme o sétimo princípio da Carta da Escola Moderna, que descreve que: Educadores do ICEM são os únicos responsáveis pela direção e esforços de cooperação. […] Estamos interessados profundamente na vida da nossa cooperativa, porque é a nossa casa, nosso quintal que devemos alimentar nossos fundos, o nosso esforço, nossos pensamentos e estamos prontos para se defender contra qualquer pessoa que iria prejudicar os nossos interesses. (ICEM, 1968). Junto com o décimo princípio, Freinet e colaboradores consideraram que o objetivo do movimento cooperativo da Escola Moderna corresponde ao ato de “[…] desenvolver o trabalho em fraternidades e para o destino de auxiliar profundamente e de forma eficaz todas as obras de paz”. (ICEM, 1968). Tal aspecto é comumente descrito na literatura, mas a análise e a discussão crítica a respeito do caráter dessa relação a qual definimos como solidária é incipiente. Isso porque suas reflexões nesse campo tornaram-se mais efetivas com as crises estruturais da segunda metade do século XX (SINGER, 2002), nas quais o debate entre concorrência e solidariedade começaram a se aprofundar e a se estender para áreas além da economia, alcançando também a pedagogia (SINGER, 2009; GADOTTI, 2009). Com o desenvolvimento da livre cooperação entre educandos e, portanto, 2- Para Marx (1988, p. 246), “a forma de trabalho em que muitos trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos, chama-se cooperação”. 769 também entre educadores sob autogestão escolar, entendemos a coerência da solidariedade existente na pedagogia freinetiana tanto em suas relações didáticas quanto em seu projeto político-pedagógico em sociedade. Nesse ponto, aventamos como hipótese o cooperativismo e a autogestão como a contribuição original na obra de Freinet, caracterizando-a em um aspecto renovado: a de uma pedagogia solidária de caráter internacional. Esse caráter é frisado no décimo princípio presente na Carta da Escola Moderna, na qual se estabelece que a pedagogia Freinet é “inerentemente internacional”. Procuramos evidenciar também outro aspecto pouco abordado na obra de Freinet, mas que a fundamenta implicitamente em termos teórico-metodológicos e praxiológicos: a presença de uma interpretação marxista original, de características heterodoxas, particularmente sobre a teoria da alienação do sujeito produtor, a teoria das relações materiais de produção, que fundamenta a noção capital das condições objetivas das relações sociais históricas, e, finalmente, a doutrina internacionalista de Marx. O marxismo na obra de Freinet foi analisado por Élise Freinet (1979), que manteve vivo o movimento da Escola Moderna após o falecimento de Freinet. Na obra O Itinerário de Célestin Freinet, Élise afirma: […] Fora de seu domínio pedagógico, Freinet já tem uma ampla cultura humana e uma filosofia de orientação decorrente do materialismo dialético. […] O pensamento marxista esclareceu para ele a revolta de 1917, vivida nas trincheiras e ligada à Revolução da URSS. […] Era na prática um engajamento que justificava sua adesão ao Partido Comunista e sua militância na Internacional do Ensino3. E era, para seu pensamento, entrar sem cessar no centro 3- Freinet excursionou para a Rússia e teve contatos com a política da URSS. Sobre essa política e seu caráter modernizador, observamos a documentação presente em Lenine (1981). 770 das contradições de qualquer sistema […]. (FREINET, 1979, p. 120) Embora fiel ao pensamento marxista, antecedentes históricos de Freinet revelam também o seu desligamento do antigo PCF – Partido Comunista Francês, que atribuímos à discordância ao dogmatismo partidário, posteriormente verificável em um dos princípios na Carta da Escola Moderna. Junto com a defesa do cooperativismo e autogestão, a carta revela a heterodoxia no pensamento e ação do pedagogo. Esse caráter heterodoxo acerca do cooperativismo e da autogestão na análise freinetiana, não obstante o seu caráter popular, em tese, repousa na consciência de Freinet quanto à discussão crítica entre Marx e Proudhon, considerado “pai do cooperativismo”4. Nessa discussão, o autor preservou e desenvolveu as noções de cooperativismo e autogestão. Ao mesmo tempo, reuniu contribuições da autonomia e livre expressão provenientes de ideais revolucionários iluministas, particularmente a partir de Rousseau5. Nesse processo articulado de análise e reflexão a respeito dos fundamentos da pedagogia freinetiana, observamos o caráter crítico e heterodoxo em sua teoria e metodologia. Nesse panorama geral acerca da obra freinetiana, procuramos demonstrar a sua relevância e atualidade no presente contexto histórico, a partir do qual nos propomos a estudar e analisar esses referidos aspectos. No presente contexto da educação pública, desde fins do século XX, procuramos justificar o tema também a partir da influência condicionante de políticas e critérios tecnocráticos, mercadológicos e financeiros6 sobre o grau de autonomia da pedagogia moderna. Observamos, em contrapartida, a relevância crítica e a atualidade da obra 4- Para o acratismo e o cooperativismo mutualista de Proudhon, referenciamo-nos em seu Sistemas das contradições econômicas ou filosofia da miséria. São Paulo: Escala, 2007. 5- Vide Carlota Boto (1996) e Freire (1996). 6 - Análise crítica presente em Warmling; Astier (1997) sobre pseudoreformas de ensino na França, sem mudanças estruturais. Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia... pedagógica de Freinet, devido à contribuição original relacionada à plena autonomia, ao livre cooperativismo e à autogestão escolar, desenvolvidos estruturalmente em seu projeto político-pedagógico da chamada escola moderna. Nessa perspectiva geral, observamos, por decorrência, a sua dimensão maior como uma pedagogia solidária internacional, dirigida ao desenvolvimento do educando pelo trabalho, principalmente a partir de condições técnicas objetivas, mas também de condições organizativas de administração e gestão democráticas diretas ou reais, para uma escola verdadeiramente risonha e franca, expressão comumente atribuída ao autor. Freinet: a autonomia frente às adversidades Conforme a literatura existente, a construção da pedagogia do trabalho ou da escola moderna, do francês Célestin Freinet (Gars,1896, Vence,1966), não foi elaborada a priori e academicamente. Pelo contrário, teve influência de sua experiência de vida desde os primórdios, quando foi pastor de ovelhas, nos Alpes Marítimos, já nos seus primeiros anos de vida (FREINET, 1979). Essa profissão lhe exigia tomar decisões importantes relacionadas à segurança do rebanho, principal fonte de sustento de sua família humilde. Pensamos que essa experiência profissional influenciou a concepção e o desenvolvimento de sua obra pedagógica, levando-o a valorizar a autonomia e a livre descoberta, que ulteriormente se tornariam base para a consideração da importância da livre expressão e da livre pesquisa. Esses seriam valores importantes também para educandos superarem o difícil isolamento rural e provinciano a que estavam submetidos. A experiência histórica adversa na biografia de Freinet também deve ser considerada, visto que aos dezoito anos iniciou sua experiência traumática como soldado nas batalhas da I Guerra Mundial (1914), mesmo ano em que iria iniciar o magistério em Nice. Após um ano de combates, Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. seus pulmões foram seriamente lesionados por gases tóxicos em Verdun, com sequelas irreversíveis à respiração. Freinet buscou terapia médica ao longo de quatro anos (SAMPAIO, 1989; ELIAS, 1997; LEGRAND, 2011), mas a ineficácia dos tratamentos o fez assumir essa realidade e conformar-se com a deficiência. Embora fatigado e extenuado fisicamente, era lhe exigido ser objetivo e comunicar verbalmente o essencial (PENTEADO, 1979), algo, a seu ver, necessário à pedagogia moderna baseada na experiência e em contraposição direta à escolástica, então baseada no verbalismo intelectual e abstrato, em geral estranho às necessidades dos educandos e às famílias de aldeões. Em 1920, iniciou sua atuação como educador em Bar-sur-Loup e nessa nova etapa começou a pesquisa e a discussão de uma nova pedagogia assumidamente popular, baseada no trabalho, influenciada pelas experiências-limite que viveu. Nessa fase, conheceu primeiro a obra de Rousseau a respeito do reconhecimento da natureza peculiar infantil. Podemos dizer que vem daí sua ponderação acerca da defesa da autonomia e da livre expressão presentes como ideais na Revolução Francesa e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, embora considerasse uma referência em geral distorcida das elites7. Por outro lado, observamos seu viés multifacetado que, ao lado do fundamento baseado na razão, tem a influência de Teilhard de Chardin quanto à aproximação científica entre razão e espiritualidade humanista, em termos antropológicos, segundo o qual “nada é tão delicado e fugidio, por natureza, quanto um começo” (apud FREINET, 1979). Nesse sentido, eis a valorização por Freinet do papel da livre pesquisa e da livre expressão como meios essenciais para a “ascensão da vida”. Essa pesquisa adquiriu articulações mais importantes devido ao novo e moderno órgão 7 - “[…] E é tradição referir-se a Rabelais, Montaigne e J.-J.Rousseau […] (mas) tais idéias que os intelectuais julgam ter descoberto não correm desde sempre entre o povo […] não foi o erro escolástico que […] deformou a essência, para monopolizá-la […]?” (FREINET, 1979, p.3) 771 Nouvelle Éducation, bem como o Congresso Internacional de Educação Nova, em 1932, na cidade de Nice. Freinet teve contato com os conceitos e materiais fundamentais de Maria Montessori, com a Casa dei Bambini, os centros de interesse de Decroly, as reservas infantis e o interesse em Claparède, o texto livre de Bovet, a escola ativa de A. Ferrière (1946). Posteriormente, Freinet também tomou conhecimento do escotismo de Baden-Powell, baseado no ensino ao ar livre, bem como da escola-canteiro ou escola-laboratório de John Dewey, revisando-as crítica e dialeticamente, no campo pedagógico-moderno. Paralelamente, Freinet, nessa fase, demonstrou cidadania ativa em sua aldeia, na qual liderou um movimento e fundou uma primeira cooperativa, em Bar-su-Loup, em defesa da instalação da energia elétrica (LEGRAND, 2011). Iniciou também sua militância sindical e partidária comunista (LEGRAND, 2011), inclusive excursionando à antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Foi nesse período que tomou contato com os debates liderados por Lênin no campo da educação operária8. Freinet retornou mais bem preparado e já em 1928, em Saint-Paul de Vence, fundou a Cooperativa de Ensino Laico, com os principais meios de produção de sua pedagogia, como o uso da imprensa de tipos móveis e a correspondência interescolar de alcance internacional. Mas, a oposição conservadora local mais interessada na rentabilidade turística forjou uma falsa acusação com intenções políticas (LEGRAND, 2011), que, mesmo sem provas, conduziu a câmara arbitrariamente a exonerá-lo do sistema municipal. Como resistência a esse jogo político dominante, Freinet fundou o Movimento de Educação Cooperativa nos anos 1930, que obteve sucesso de publicações de material didático, permitindo reunir recursos e conquistar autonomia financeira. Assim, em 1934, migrou para Vence (LEGRAND, 2011), cidade na qual fundou a própria escola cooperativa experimental e autogerenciada, para atendimento de filhos de famílias operárias e do serviço assistencial de Paris, consolidando, assim, sua obra. Mas, em 1939, eclodiram os conflitos da II Guerra Mundial. O estado de saúde do pedagogo se deteriorou (SAMPAIO, 1989), sendo preso e encaminhado ao campo de concentração de Var. Detento, mas, resistente à condição, alfabetizou outros presos. Foi retirado por Elise Freinet e encaminhado ao hospital do campo de concentração, sendo libertado apenas em 1941 (SAMPAIO, 1989). Como libertário engajado, tomou a decisão de atuar como guerrilheiro maquisard, nas Forces Françaises de l’Intérieur (FFI), na Resistência Francesa9. Como tal, tornou-se líder na comuna e zona do Briançonnais. Três anos após o fim guerra, já em 1948, a Cooperativa de Educação Laica foi rebatizada como ICEM – Institut Coopératif de l’École Moderne (LEGRAND, 2011) - agora em Cannes, baseada no cooperativismo para a fabricação de material didático e pedagógico acessível (PENTEADO, 1979). O número de participantes entre pais e docentes chegou a vinte mil (PENTEADO, 1979; SAMPAIO, 1989). Mas, em 1950, Freinet foi expulso do PCF, por discordâncias burocráticas e ideológicas (LEGRAND, 2011). Em 1956, participou da campanha nacional da crítica à superlotação de classes e à reivindicação da defesa de turmas discentes de no máximo vinte e cinco alunos para uma melhor interação didática e qualidade do ensino público. Em 1966, Freinet faleceu em Vence. A pedagoga e artista Elise, sua atuante colaboradora e companheira, manteve a continuidade de sua obra, da qual destacou a livre expressão como essência da pedagogia da Escola Moderna. 8 - Para consulta mais consequente aos planos educacionais da antiga URSS, vide Lenine (1981). 9- Sobre Freinet maquisard consideramos a introdução de Elise Freinet (1969). 772 Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia... Retrospectivamente na análise, notamos o engajamento e o enfrentamento das adversidades por Freinet, traço importante para a compreensão de sua personalidade e história. Essa experiência viva revela a construção e a valorização de sua autonomia e independência, resultante da necessidade de decidir e enfrentar permanentemente realidades adversas por meio do trabalho. A nosso ver, esse aspecto influenciará a sua obra, pensamento e ação. Portanto, a autonomia em sua vida não constitui uma ideia surgida a priori, mas um valor resultante de uma série de experiências de vida e de dificuldades superadas por meio do trabalho, pesquisa e engajamento popular. Tais aspectos tornam-se centrais na construção da pedagogia Freinet, cujo desenvolvimento lógico e coerente conduziu sua obra ao estabelecimento do cooperativismo e autogestão escolar, como condição para a plena autonomia da escola moderna. A autonomia radical, o livre trabalho e a livre organização para a liberdade pedagógica moderna Na análise desse histórico de Freinet, bem como de suas influências pedagógicas, observamos alguns aspectos que se constituirão as colunas centrais de seu pensamento e ação: a autonomia como razão última e o trabalho como atitude vital diante de adversidades; a defesa da livre expressão, como consequência necessária da autonomia, e a livre pesquisa, como consequência do trabalho como meio gerador de conhecimento novo e, finalmente, a cooperação e autogestão como resultado coerente e lógico dessa experiência teórico-metodológica. Consideramos na análise freinetiana a autonomia e a livre expressão como elementos indissociáveis, razão pela qual enunciamolas resumidamente como a autonomia, assim como o livre trabalho e livre pesquisa apenas como o trabalho e, finalmente, a cooperação e autogestão como organização. Desse modo, resumimos a autonomia radical, o livre trabalho Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. e a livre organização, categorias centrais no pensamento e análise freinetianos. Antes de alcançar esse desenvolvimento teórico-metodológico, em seus primeiros anos Freinet analisou criticamente os fundamentos e a prática da pedagogia escolástica, revendo sua própria experiência na escola dominante à época, a qual considerava traumática e domesticadora em função da separação, de caráter intelectualista e dogmática, entre conteúdo e forma didáticas de um lado e, de outro, das necessidades reais de educandos. Assim, tornou-se crítico acerbo e pesquisador pedagógico para a construção de uma pedagogia efetivamente científica. Observava que a pedagogia escolástica no aspecto geral apenas sujeitava educandos à passividade, à repetição e à subordinação, em frontal contradição quanto à autonomia do educando, fundamental para o rigor da vida no campo e para a vida. Em Para uma escola do povo, Freinet (1998, p. 19) considerou que: Esta escola já não prepara para a vida; não está voltada nem para o futuro, nem mesmo para o presente; obstina-se num passado que não volta […]. […] A Escola que não prepara para a vida, já não serve a vida; e é essa a sua definitiva e radical condenação […]. Para a fundamentação desse novo trabalho pedagógico, Freinet defendeu o conceito psicológico de trabalho-jogo cujo fundamento está no objetivo concreto do labor, da construção do conhecimento sensível, do trabalho como meio lúdico em si mesmo, baseado na necessidade natural na psicologia do educando. Tal conceito opunha-se ao dominante jogo-trabalho, o ersatz, que simula a atividade laboral sem necessariamente realizála ou atingir um objetivo concreto. Em Ensaio de psicologia sensível II, o autor assim se refere ao conceito de ersatz - a lógica substitutiva ou simulada de vida, contrária ao trabalho real - relacionada à escola tradicional dominante: 773 O que é mais grave ainda é que essas soluções ersatz não estão na ordem natural das coisas; elas não passam de uma atitude excepcional e irregular em face de uma impotência também acidental e irregular. (FREINET, 1976, p.11) Mas Freinet dialeticamente não descartava a função do ersatz (substitutivo) como um todo. Compreendia que o trabalho enquanto jogo em si, necessário ao educando, poderia, em determinadas circunstâncias impeditivas do real do trabalho-jogo, ser benéfico se em seguida permitisse a realização do trabalho-jogo e respectiva sublimação. Diante desse quadro geral, Freinet estabeleceu uma de suas leis psicopedagógicas (vigésima-quarta), segundo a qual o trabalho constitui corretor de regras ou lógicas de vida ersatz. Sob a teoria do tateamento experimental, como assim denominou, Freinet desenvolveu técnicas didáticas para trabalho livre e cooperado, com fins libertadores principalmente quanto à expressão, sem, contudo, confinar educandos em salas de aula. Esse problema em particular Freinet (1969) descreveu em a Pedagogia do bom senso ou Les dits de Mathieu, classificando-o criticamente como parte de uma “pedagogia de casaca”. Para ele, tratava-se de uma das primeiras contradições da escolástica. Assemelhou esse confinamento a um campo de concentração e de condicionamento quase animal, motivo pelo qual procurou retirar os educandos desses locais, levando-os para fora dos muros escolares, em livre direção aos limites da aldeia e do campo. Analogamente à antiga peripatética, mas livre do caráter tecnicista dos antigos liceus, o educador elaborou o procedimento didático da aula-passeio, para anular o isolamento de educandos em salas de aula e, principalmente, estimular a observação sensível e a descoberta da realidade e da natureza, bem como das atividades produtivas (SAMPAIO, 1989) existentes na aldeia em torno da escola e 774 dos Alpes Marítimos. Procurava, nessa técnica, também a aproximação mútua entre escola e comunidade por meio de rudimentos da pesquisa de campo, o estudo do meio, coerente à noção do educando como sujeito ativo nesse processo didático. Freinet (1969) considerou essa nova e moderna noção de espaço escolar aberto à comunidade como uma reserva infantil em oposição à edificação fechada e sem comunicação com o mundo exterior. A experiência da aula-passeio, semelhante à de uma pequena expedição, era uma das principais atividades discentes, cujas indagações, opiniões e impressões do educando eram expressas e discutidas em livres textos e registradas em um diário escolar (livro de vida), que constituía uma das principais ferramentas de livre expressão e reflexão autônoma da criança. A produção de livre escrita e de pesquisa discente e docente acabavam por constituir complementarmente o próprio material didático. Por essa razão e para a coerência ao princípio pedagógico moderno, Freinet defendeu a abolição de manuais escolares (FREINET, 1979), ferramenta central da separação escolástica entre vida e realidade. Com a construção pedagógica da autonomia por meio do livre trabalho, da livre expressão, da livre pesquisa, o espaço escolar decorrente do modelo escolástico necessitava ser abolido e reorganizado a partir da lógica e dinâmica do trabalho livre, coletivo, criador, sob livre cooperação. Para defender o caráter científico dessa pedagogia crítica, Freinet a explanou como uma teoria objetivamente formulada e baseada em um empirismo experimental a partir do trabalho de descoberta ou tateio experimental do educando, cujos fundamentos conceituais se assentam diretamente na construção da autonomia por meio do trabalho (FREINET, 1979). Esse processo constitui, para Freinet (1977), um método natural consoante às necessidades, intuições, interesses, impulsos e motivações do educando. Elise Freinet (1979), na obra O Itinerário de Célestin Freinet, considerou principalmente Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia... a livre expressão como elemento distintivo e crítico em seu método natural, em contraposição a outros métodos e teorias psicopedagógicas orgânicas ao escolasticismo. Nesta etapa de análise, podemos considerar alguns aspectos fundamentais presentes na formulação teórico-crítica e praxiológica de Freinet. Reiteramos a influência da experiência concreta do trabalho presente na biografia de Freinet, cujo resultado foi a valorização da autonomia, mas também o compromisso com a razão sensível e humana, presente em Rousseau, sobretudo crítica quanto às origens da desigualdade. Nesse aspecto, Freinet estava consciente de sua origem trabalhadora, camponesa. Sua sensibilidade se voltava à consciência da desigualdade e às condições de vida e produção dessa população. Nesse contexto, observamos uma influência marxista que se manifesta implicitamente em três aspectos: 1) na presença da teoria da alienação do sujeito, na forma de crítica e prevenção pedagógica; 2) na teoria das relações materiais de produção, quanto às condições objetivas geradas pelas técnicas de vida; e 3) na doutrina internacionalista marxista, presente nos correios interescolares. No primeiro aspecto, observamos a crítica marxista à alienação10 nos métodos e nas consequências negativas dos dogmas pedagógicos do escolasticismo, no qual o objetivo pedagógico da autonomia da criança não era visado, mas sim a sua passividade. Essencialmente, para Freinet, o escolasticismo era baseado na separação da escola da realidade de vida da criança e da sua família e em repetições e memorizações. A segunda evidência marxista em Freinet reside na consciência quanto às condições objetivas da relação infraestruturasuperestrutura ou às relações materiais de produção11. O pedagogo originalmente 10 - Referimo-nos particularmente à análise de Marx sobre a mercadoria e a divisão de trabalho e manufatura. Confira Marx (1988, p. 45-78 e p. 254-276) 11- Marx (1988). Acrescentamos nesta passagem, o texto A ideologia alemã. Feuerbach. Oposição das concepções materialista e idealista (MARX, 1982). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. introduz técnicas de trabalho (técnicas de vida), organizadas quase tacitamente como um sistema para apropriação e uso coletivo entre educandos e educadores e pais, a partir da prensa gráfica de tipos móveis para a impressão de livres textos e livres desenhos12, trabalho que permitiu também a elaboração de suportes comunicativos (jornal, cartazes, folhetos etc.), a partir da técnica complementar do silk screen. Freinet (1969), em Por uma escola do povo, também promoveu e registrou mudanças estruturais da classe escolar: aboliu estrados e plantas mecanicistas do interior arquitetônico da tradição escolástica, cujo espaço servia funcionalmente à centralização da autoridade docente e não à noção da criança como sujeito ativo do processo de ensino-aprendizagem. Além disso, criou o conceito de cantos pedagógicos, que tornou a sala de aula semelhante a um ateliê de trabalho e criação multidisciplinar. Para auxílio à metodologia da livre pesquisa, Freinet (1969) orientou didaticamente as crianças a uma espécie de pré-iniciação científica, a partir de seus interesses e necessidades, com técnicas de documentação sistemática por fichas e consulta em fichários. Coerentemente, estabeleceu um processo de livre autoavaliação coletiva baseada em indicadores de produção para livre uso, inspirada em etapas gerais de desenvolvimento. O terceiro aspecto marxista em Freinet refere-se ao caráter assumidamente internacionalista de seu sistema. Reunindo a condição objetiva da técnica e a sua respectiva apropriação coletiva, o autor, em referência à crítica ao isolamento rural e provinciano, promoveu o uso e desenvolvimento de correios interescolares. Com isso, Freinet se aproximava da noção iluminista de cidadão do mundo, mas sobretudo da doutrina internacional de Marx. Ao mesmo tempo, como cientista da educação, buscava também submeter processos e resultados sistematicamente à avaliação e conferência científicas de colaboradores e pesquisadores 12- Análise teórica e metodológica do papel do desenho e o estudo psicopedagógico desenvolvido por Fa a partir de Freinet (1977). 775 internacionais, perfazendo uma comunidade de caráter aberto, solidário e internacionalista, com vistas a uma nova sociedade. Nesse aspecto, Freinet no décimo princípio da Carta da Escola Moderna, considerava que a pedagogia é inerentemente internacional: “[…] para nós, mais do que uma profissão de fé, mas uma necessidade para o trabalho”. (BEAUNIS, 2009) Observamos, porém, que Freinet desenvolve uma análise e interpretação heterodoxa de Marx, razão pela qual o consideramos marxiano e menos marxista no sentido dogmático do termo. Retrospectivamente, observamos como sintomática a sua expulsão partidária, sofrida por divergências, e a busca pela coerência radical para a libertação do homem pela própria perspectiva marxista. Essa heterodoxia possivelmente se relaciona à organização geral baseada no cooperativismo13 e na autogestão para a produção social da escola moderna ou pedagogia do trabalho. Dialeticamente, Freinet se aproxima nesse aspecto da querela entre Marx e Proudhon14 e reafirma a importância da autonomia em sua análise. Freinet, nessa perspectiva geral, também contribuiu para uma original análise e interpretação do marxismo e se aproximou de autores como Gramsci, Benjamin e outros. Nessa análise geral acerca dos fundamentos da escola moderna, a partir da autonomia radical, mas principalmente do livre trabalho e suas técnicas, da livre organização como condições reais para a liberdade pedagógica moderna, observamos um caráter original e peculiar na obra de Freinet: a sua ampla dimensão solidária15, cujo autor observava como fenômeno inerente as “solidariedades fundamentais de todas as formas de Vida” 13 - Marx (1988) em uma primeira análise considerou que “A cooperação permanece a forma básica do modo de produção capitalista, embora sua figura simples mesma apareça como forma particular ao lado de suas formas mais desenvolvidas”. 14 - Referimo-nos à crítica da Miséria da Filosofia de Marx, resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon. Marx, em carta, realizou esclarecimentos críticos em Sobre Proudhon. (MARX; ENGELS, 1983, p. 20-28, vide nota 4). 15- Referenciamo-nos nos fundamentos gerais da solidariedade, em Singer (2002). Em pedagogia, referenciamo-nos em Gadotti (2009). 776 (FREINET, 1979) em contraposição às relações competitivas e meritocráticas. Freinet não restringiu a solidariedade às relações didáticas entre educador-educandos, mas avançou também às relações docentes, consolidando a sua obra estrutural e efetivamente como um projeto politico-pedagógico maior. Livres relações autônomas: uma pedagogia solidária internacional Baseados na análise dos fundamentos da autonomia radical na pedagogia Freinet, entre os quais o da livre expressão e o do livre trabalho, bem como os fundamentais e decisivos meios concretos, como as técnicas de vida, consideramos por extensão três contribuições científicas decorrentes, originais e decisivas do pedagogo. A primeira reside no esforço de coerência lógica quanto às relações didáticas críticas entre educador e educandos. Se essas são dirigidas à construção da real autonomia, consequentemente essa relação se estendeu mutuamente entre educadores. Nesse ponto, observamos a principal consequência humana, teórica, política e social da moderna pedagogia do trabalho freinetiano. A única relação social possível para essa pedagogia da autonomia radical, portanto, corresponde ao cooperativismo, para a produção social da livre relação de trabalho entre pares. Nesse mesmo raciocínio, a horizontalidade necessária para administração política-pedagógica da escola moderna, consequentemente, implicou a defesa e a construção da autogestão escolar16. Mas Moacir Gadotti (2009, p. 32-33), em Educar para a cooperação, reflete o significado essencial desse sistema: […] na autogestão, a formação para a gestão não é um processo educativo restrito ao setor administrativo. A formação para a gestão em empreendimentos autogestioná16 - Para Brasil (2005, p. 10), “[…] subentende a existência de autonomia e […] capacitação para administração coletiva […] direito à informação e democracia nas decisões. […] como partilha de poder e controle da vida do empreendimento coletivo. Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia... rios dirige-se ao conjunto das pessoas ligadas ao empreendimento, embora tenha que existir formação específica e professional para certos quadros institucionais de acordo com suas responsabilidades. Trata-se de uma formação para a gestão colaborativa e o trabalho de equipe. […] Ela não se restringe a aspectos informativos e formativos, mas envolve também aspectos organizativos e produtivos. Com a autogestão, todos participam das decisões independentemente da função que executam. Para Elias (1997, p. 65): Freinet jamais aceitou a competição (grifo nosso) individual que existia nas escolas; em seu lugar propôs a vida cooperativa, idéia reforçada no encontro com Cousinet e Profit, em Montreaux (1924). O primeiro preconiza o trabalho em pequenos grupos e Profit propõe a solidariedade pela cooperativa escolar. Freinet vai mais longe: sua pedagogia circula entre o individual e o coletivo, procurando desenvolver ao máximo o senso cooperativo. Nesse aspecto, Freinet manteve a coerência ética estrutural nessas relações discentes e docentes na Cooperativa de Ensino Laico e no Instituto Cooperativo de Escola Moderna, documentados no órgão L’Educateur (FREINET, 1985). Enfatiza-se, portanto, que essa perspectiva ética radical não se restringiu à cooperação e à autogestão administrativas apenas entre educadores, mas, principalmente, para os educandos. Freinet (1969, p. 149), em Para uma escola do povo, alertou que para a constituição de uma real cooperativa escolar: […] não se trata de fundar, como por vezes acontece, um agrupamento formal no papel, com o objectivo de comprar um material qualquer mediante o pagamento de uma cotização mensal, mas de uma verdadeira sociedade de crianças (grifo Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. nosso) capaz de administrar a quase totalidade da vida escolar. Nesse aspecto, Paul Singer (2009, p. 12), no Prólogo de a Economia solidária como praxis pedagógica, de Moacir Gadotti (2009), afirma: Convém recordar que um dos princípios basilares do cooperativismo […] é que, a qualquer momento, novos trabalhadores tenham o direito de se associar a empreendimentos solidários e que associados a tais empreendimentos tenham o direito de deixá-los […]. A autogestão só é válida enquanto os trabalhadores participarem dela por sua própria vontade. Se a participação em empreendimentos solidários se tornasse obrigatória pela eliminação de todos os outros modos de produção de determinado país, os trabalhadores não seriam mais os donos do seu destino, que ficaria sujeito à vontade dos que teriam poder para autorizar e impedir o funcionamento dos diversos modos de produção. Ao mesmo tempo, como visto anteriormente, Freinet não operava didática e pedagogicamente a partir de ideias puras, mas, consciente das relações materiais concretas de produção, sistematizou o uso e a apropriação coletiva das técnicas em torno da imprensa escolar e de outras novas mídias daquele contexto. Essa medida, além de oferecer as condições objetivas concretas para a produção dessas relações didáticas, gerava principalmente as condições reais de autonomia, livre trabalho e livre expressão de educandos e também de educadores. A pedagogia de Freinet, nesse aspecto, proporcionou a organização da escola popular como um centro de comunicação por excelência, mas baseado no trabalho cooperado real. Nesse aspecto, opunha-se à escola nova cujas considerações gerais já eram existentes mais amplamente na teoria liberal da escolacanteiro ou escola-laboratório, de John Dewey (1971). Mas, conforme interpretação de Élise 777 Freinet (1979, p. 88), em O Itinerário de Célestin Freinet, a seu ver John Dewey embora representasse o mais prolífico pensador do movimento da Escola Nova, por outro lado desenvolveu pedagogicamente: […] uma teoria aparentemente perfeita no plano das idéias, (mas) na realidade é isolada da prática, deixada ao acaso do improviso, quando é na prática que se pode encontrar solução para os problemas da vida cotidiana. […] Lamentamos que Dewey não tenha feito delas nenhuma prática escolar a ser promovida: a organização técnica da escola a que propõe depende de doutrinas filosóficas, que ele justificará em sua concepção de uma escola-laboratório ideal, que nunca se realizará. Será simplesmente pela crítica autorizada que ele entrará na prática pedagógica, pela análise de escolas novas americanas, criadas à sua revelia. A concepção de Dewey, baseada no princípio da continuidade (da criança na escola, da escola na sociedade, do homem na natureza), é mitológica, estranha à experiência vivida, e subestima o meio social constructor ou destruidor da personalidade da criança, segundo a classe social a que pertença. Em contraposição à escola nova, a escola moderna de Freinet se baseou distintamente no efetivo trabalho livre e cooperado, a partir de técnicas concretas e da relação de ensino e aprendizagem aberta no vilarejo em torno da escola. Mais do que o raio geográfico montanhoso e provinciano da escola, Freinet agiu radicalmente para tornála uma internacional, por meio da técnica de correios interescolares. Assim, tal cooperação internacional entre educandos, educadores e pedagogos freinetianos, proporcionou a realização de conferências, boletins, avaliações, discussões e intercâmbios, demonstrando concreta e plena coerência teórica, metodológica e praxiológica 778 de Freinet, no sentido de uma construção permanente e dinâmica de cultura de pesquisa fundamental baseada na livre expressão e na geração do conhecimento novo a partir da cooperação internacional. Freinet ainda observou e denunciou o caráter de classe presente no ensino público, razão pela qual seu compromisso ético, social e político voltou-se aos educandos de famílias carentes e aquelas abandonadas em serviços assistenciais, mais coerente à sua própria origem camponesa. Freinet (1998, p. 79) denunciou, em A educação pelo trabalho: As práticas pedagógicas de educação nova tornam ainda mais evidente as alienações da escola do povo no regime capitalista. Deterioração, obsolescência dos locais, falta de instrumental educativo e de créditos, hostilidade dos poderes públicos a toda iniciativa dos professores. Estado de privação e de subalimentação da infância proletária. Falta de formação dos professores primários, relegados ao empirismo pedagógico, diante dos professores universitários altamente especializados, possuidores de todos os meios que favoreçam suas obras pedagógicas. Oposição permanente entre uns, de cultura intelectualista, e outros de cultura popular de sensibilidade e bom gosto. Existe uma escola de Classe. Não se trata, portanto, de uma opção pelo sistema privado. Pelo contrário, o autor buscava radicalizar a defesa do ensino público, mas em termos populares. Nesse aspecto, para Dallari (1998), não se distingue o objetivo entre os sistemas estatal e privado, mas essencialmente o desenvolvimento pleno e integral do educando em sociedade. Freinet, nessa esfera pública, buscou radicalizar a independência da escola popular em nova articulação, de um regime cooperado e autogestionário com a comunidade, liberto de injunções extrapedagógicas: Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia... Servir à verdade, ao direito, à justiça, não se usa mais uma sociedade que pisoteia essas noções. Temos de servir a um regime: pobres entre pobres e educando filhos de pobres, deveríamos colocar a nossa ascendência moral, nosso devotamento, nosso saber a serviço dos ricos exploradores: mutilados, odiando a guerra que fizemos, teríamos que mentir sem parar a nossos alunos, inculcar-lhes uma moral essencialmente contestável, que não tem relação alguma com a verdadeira moral que praticamos e ensinamos. O que se gostaria, nós o sabemos e vemos muito bem, seria que continuássemos a utilizar o sistema imoral e antipedagógico que prepara, não homens mas servidores dóceis de um regime; gostariam de obrigar-nos, a nós, educadores proletários, a servir sem reservas à escola da classe burguesa. A isso dizemos não. Somos educadores. Nosso primeiro dever é respeitar as crianças que nos são confiadas, educá-las, prepará-las. Para isso, opomo-nos a todo dogmatismo que se justifica por considerações extrapedagógicas. Não estamos a serviço de governos que passam, nem de regimes que mudam; estamos a serviço das crianças, a serviço da sociedade para a qual queremos prepará-las, segundo as técnicas da verdade e da liberdade, felizes e orgulhosos de apoiar-nos, para isso, em todas as forças que buscam o mesmo objetivo de libertação e renovação. (FREINET, 1998, p.82) Trata-se então, a nosso ver, da pedagogia do trabalho ou escola moderna, de uma perspectiva de autonomia radical e estruturalmente enraizada desde a sua concepção, a sua estrutrutura e o seu funcionamento para fins de “libertação e renovação”. Isso, na visão de Freinet, corresponde a um regime cooperativo, autogerido e em comunicação internacional que, devido ao seu caráter embrionário na história, somente no presente contexto ganha dimensão maior, mas Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. ainda pouco considerada na pedagogia de Freinet: a de uma pedagogia solidária internacional. A relevância e atualidade da pedagogia Freinet no presente contexto histórico adquire consistência diante da hegemonia de políticas educacionais baseadas em critérios tecnocráticosconcorrenciais, mercadológicos e financeiros, que interferem no grau de liberdade pedagógica moderna e mais amplamente na noção da educação como direito humano essencial. Considerações finais Baseados em uma revisão geral, procuramos sustentar a hipótese do caráter solidário da pedagogia freinetiana a partir da verificação de seus fundamentos como a autonomia, a livre expressão, o livre trabalho cooperado, a livre pesquisa, a avaliação autônoma e o correio interescolar. O aprofundamento desse caráter ético da solidariedade não se restringe às relações didáticas entre educandor e educando, mas se encontra também na relação docente entre educador e educador. Nesse aspecto, como condição objetiva para a execução do projeto político-pedagógico solidário da escola moderna, bem como uma perspectiva política de autonomia radical pedagógica, Freinet baseou o seu trabalho no cooperativismo internacional e na autogestão escolar. A partir dessa perspectiva, torna-se possível refletir a respeito da superação da polaridade estatal-privado, para efetivamente construir uma esfera pública-democrática, popular. Nesse sentido, a pedagogia freinetiana se inscreve centralmente no campo das discussões acerca da economia e cultura baseadas no trabalho solidário. Com a presente consideração, procuramos demonstrar a relevância e a atualidade científicas dessa pedagogia moderna e crítica que, em si, pressupõe novos estudos e pesquisas para a superação do presente status quo, com a construção da escola do trabalho cooperado e popular, qualificada por Freinet como moderna e do futuro, mas, também, risonha e franca. 779 Referências BEAUNIS, Claude. La charte de l’école moderne. In: ICEM. Disponível em: <http://www.icem-pedagogie-freinet.org/la-charte-del-ecole-moderne>. Acesso em: 18 jun. 2011. BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. BRASIL. MTE. SPPE. ANTEAG. Autogestão e economia solidária: uma nova metodologia, v. 2. Brasilia, DF: MTE, 2005. DALLARI, Dalmo de A. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. 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Recebido em: 09.10.2012 Aprovado em: 09.10.2013 Antonio Takao Kanamaru é professor doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 781 A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey Maria Luísa Frazão Rodrigues BrancoI Resumo A educação progressiva é uma das tradições educativas mais fascinantes dos Estados Unidos da América, destacando-se pela sua visão humanista da educação e pelo compromisso com o aprofundamento da democracia através da escolarização. Neste artigo, analisamos os principais desenvolvimentos da educação progressiva por meio da revisão de literatura recente a respeito do assunto e de escritos de seguidores mais proeminentes, estabelecendo a relação entre as propostas atuais e o pensamento fundador de John Dewey. O nosso objetivo consiste em elucidar qual o núcleo fundamental das ideias defendidas por esse movimento educativo, baseando-nos numa discussão dos conceitos centrais do pensamento pedagógico de John Dewey e na forma como esses foram apropriados e alargados pelos seus sucessores e atuais defensores. A partir da análise, concluímos que, apesar da influência dessa tradição educativa ter diminuído, fruto da generalização de uma perspectiva neoliberal na educação norteamericana, as suas propostas são fundamentais para a promoção de uma sociedade mais democrática e justa. Entre essas propostas, que permanecem fiéis aos aspectos fulcrais do pensamento de John Dewey, adaptando-o aos novos tempos, destacam-se o compromisso com a integração social e o pluralismo, além da concepção da aprendizagem como ampliação de uma experiência partilhada, favorecedora da promoção do capital social e do estabelecimento das bases de uma aprendizagem permanente. Palavras-chave Educação progressiva — John Dewey — Educação democrática — Pluralismo — Comunidade. I- Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000013 783 Progressive education today: the legacy of John Dewey Maria Luísa Frazão Rodrigues BrancoI Abstract Progressive education is one of the most fascinating educational traditions of the United States of America and is noted for its humanistic vision of education and commitment to the deepening of democracy through schooling. This article analyzes the main developments in progressive education by reviewing recent literature on the subject and the writings of its most prominent followers, establishing the relationship between current proposals and the foundational thought of John Dewey. My goal is to elucidate the fundamental core of the ideas espoused by this educational movement by discussing the central concepts of the pedagogical ideas of John Dewey and how such concepts were appropriated and extended by his successors and current defenders. Based on the analysis, I have concluded that, despite the decline in the influence of this educational tradition, due to the spread of a neoliberal perspective on American education, its proposals are critical to promoting a more democratic and just society. Among such proposals, which remain faithful to the key aspects of the thought of John Dewey, adapting it to the changing times, I highlight pluralism and the commitment to social integration, in addition to the conception of learning as an extension of a shared experience, which encourages the promotion of social capital and the laying of the foundations for lifelong learning. Keywords Progressive education — John Dewey — Democratic education — Pluralism — Community. I- Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal. Contact: [email protected] 784 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000013 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 783-798, jul./set. 2014. Introdução A educação progressiva teve início nos primórdios do século XX, nos Estados Unidos da América, ao mesmo tempo em que, na Europa, verificava-se um amplo movimento de renovação pedagógica, que ficou conhecido por Escola Nova, e com o qual manteve estreitas relações (FLORES, 2001; MATA, 2001). Embora de forma intermitente, a influência dessa tradição pedagógica, na qual avulta a centralidade do pensamento de John Dewey, perdurou até aos anos 70 do século passado (SEMEL, 2008). O relatório A nation at risk, publicado em 1983, apontou para a existência de fragilidades na educação norte-americana, capazes de comprometer, a breve trecho, a competitividade econômica do país quando comparada com a de outros países. Estava, assim, aberto o caminho para a restauração de uma agenda mais tradicional em termos de educação. A educação progressiva, associada por muitos a uma abordagem educativa menos rigorosa e promotora de uma desautorização dos adultos, tornou-se alvo dos ataques da opinião pública e a sua importância decresceu. Nos anos 90 do século passado, contudo, verificou-se um ressurgimento da tradição progressiva, a partir da criação de pequenas escolas públicas, baseadas nessa concepção e, particularmente, empenhadas em equilibrar individualismo e sentido de comunidade. No entanto, a generalização da perspectiva neoliberal e de uma lógica de prestação de contas, definitivamente estabelecida com a aprovação da legislação intitulada No child left behind, em 2002, secundarizou a visão da missão humanística das escolas e enfraqueceu a força dos professores. Além disso, fragilizou o controle exercido sobre a sua própria profissão, de modo a comprometer o objetivo de integrar e promover a democracia através da escolarização e da educação, que pode ser perspectivado como o fim principal da educação progressiva. Apesar das atuais iniciativas educacionais favorecerem, com a dominância dos testes estandardizados, o retorno dos métodos Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. tradicionais e o empobrecimento do currículo centrado num número reduzido de matérias básicas, um conjunto significativo de escolas nos Estados Unidos da América continua comprometido com a implementação de uma educação progressiva, prolongando, desse modo, uma rica e duradoura tradição educativa. No âmbito do presente artigo, propomo-nos debater os desenvolvimentos atuais da educação progressiva e a forma como se apropriaram do legado fundador constituído pelo pensamento de John Dewey, bem como refletir acerca de sua importância na promoção de uma sociedade mais justa e democrática. Tentaremos, por conseguinte, responder às questões: como é que a tradição da educação progressiva se desenvolveu e enriqueceu, na relação com o pensamento de John Dewey, e por qual motivo continua a ser uma proposta educativa adequada e séria no contexto das atuais sociedades democráticas? Caráter fundacional do pensamento de John Dewey A centralidade do pensamento de John Dewey e o seu papel fundacional (amplamente reconhecidos) na constituição da educação progressiva têm de ser equacionados à luz do movimento progressivo mais vasto. A chamada era progressiva teve início no final do século XIX, correspondendo a um tempo marcado pela esperança que sucedeu a um período de “desencantamento com o status quo”1 e “a uma análise de todos os aspectos da sociedade e a um apelo à renovação e a um novo vigor democráticos”2 (VANPATTEN, 2010, p. 126). Em termos rigorosos, esse movimento reformista não pode ser dissociado da depressão econômica ocorrida na passagem do século XIX para o século XX, a partir da qual surgiu uma urgência de repensar tanto a sociedade quanto a democracia. Em consequência disso, emergiu 1- Todas as citações incluídas no presente texto são tradução nossa. Optamos, por conseguinte, por apresentar cada uma no original em Inglês. “[...] disenchantment with the status quo”. 2 - “an examination of all aspects of society and a call for democratic renewal and reinvigoration”. 785 um clamor coletivo por mais justiça social e econômica, tendo sido envidados esforços nesse sentido em várias áreas de atuação (expansão dos cuidados de saúde, combate à pobreza e ao desemprego, cuidado dos idosos etc). Os inícios do movimento progressivo foram, por conseguinte, marcados por uma atitude de abertura à mudança, sendo essa, portanto, a sua característica mais saliente e consensual. Com efeito, se para alguns autores, como Hayes (2006, p. 5), “os progressivos não eram revolucionários, mas antes pessoas interessadas na resolução de problemas específicos assim como na melhoria do estado de coisas”3, para outros, como Miller (2009), o movimento progressivo, longe de ser moderado, implicou uma rejeição da forma tradicional de vida americana. Segundo o autor, isso foi feito por meio da promoção de reformas socias em grande escala e da atribuição ao estado de um papel cada vez mais predominante. Esse papel foi entendido como instrumento para salvaguardar a liberdade, não se limitando a proteger os direitos individuais, mas a providenciar uma distribuição mais equitativa dos mesmos. As preocupações da era progressiva, em termos de maior justiça social e econômica, aparecem refletidas na obra de Dewey. Para ele, só uma mudança em termos educacionais poderá suscitar uma reforma social. Incidindo, inicialmente, nas questões da educação e da escolarização, os seus escritos tornam-se, progressivamente, mais focados na elaboração de uma filosofia da experiência, possuindo, contudo, uma relevância direta para a educação. A centralidade da educação relacionada com a expansão da experiência, fortemente enfatizada pelo autor, insere-se na defesa pelo movimento progressivo da expansão de programas e oportunidades educativas. Segundo Dewey, o futuro da sociedade americana está dependente da construção de um sentido de comunidade, que tenha por base a associação entre indivíduos pertencentes a 3 - “[…] the progressives were not revolutionaries, but rather people who were interested in fixing specific problems and improving the status quo.” 786 grupos distintos e capazes de, nessa dialética (capacidade de considerar e de superar pontos de vista diferentes e até opostos), encontrar interesses comuns e constituir novas associações que, simultaneamente, potenciem a sua individualidade. Desse modo, foi um firme apoiante das escolas públicas, acreditando que a educação era um fator crucial para atingir um consenso no seio da diversidade. A frequência dessas escolas permitiria a constituição de comunidades fortes, ajudando os indivíduos a ultrapassar os preconceitos trazidos do seu ambiente social. Uma das traves mestras do pensamento de Dewey consiste na afirmação de uma estreita relação entre democracia e educação. Faz a distinção entre democracia em sentido estrito, correspondendo a um sistema de governo (democracia política) e democracia em sentido lato, enquanto ideia social. Nessa última acepção, a democracia corresponde à “ideia de comunidade em si”4 (DEWEY, 1991, p. 148), constituindo um ideal regulador cuja realização está dependente da sua apropriação por todas as formas de associação humanas. Podemos dizer que uma associação humana é uma comunidade quando a atividade conjunta desenvolvida se traduz num bem para todos, não constituindo, simultaneamente, uma restrição ao pleno desenvolvimento das potencialidades dos membros do grupo. O que distingue a vida comunitária é, por conseguinte, a sua natureza moral, implicando um esforço consciente de ordem intelectual e moral por parte dos seus membros. Segundo Dewey (1991, p. 154), “nascemos seres orgânicos associados a outros, mas não nascemos membros de uma comunidade”5, sendo isso algo que temos de aprender a ser, a fim de realizar a nossa humanidade. É necessário esclarecer aqui que, para Dewey, não existe uma ideia ou essência da humanidade propriamente dita, um estado de perfeição a alcançar. A realização da humanidade a que se refere tem a ver 4 - “idea of community itself”. 5 - “We are born organic beings associated with others, but we are not born members of a community”. Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey com um processo aberto de crescimento e de aperfeiçoamento, no sentido de uma experiência mais partilhada e alargada, que resulta da interação e capacidade de comunicação entre os vários indivíduos. A clarificação do papel da educação e da sua estreita relação com a consecução da democracia, em sentido lato, pressupõe a compreensão da relação entre individualidade e comunidade no pensamento de Dewey. Por individualidade (que distingue de indivíduo), entende aquilo que é próprio de cada um e constitui o seu valor próprio, considerando que é algo que tem de ser desenvolvido e conquistado, não estando dado à partida e não constituindo, por conseguinte, uma identidade fixa, mas o resultado das ações de um indivíduo que é essencialmente social. A imaturidade dos mais novos, com a dependência e plasticidade que a carateriza, é, por conseguinte, vista como uma vantagem, na medida em que representa a capacidade para se desenvolver, impulsionada pelo contacto social. Efetivamente, a incapacidade física da criança humana é compensada pela sua capacidade social traduzida numa extraordinária aptidão para responder a estímulos sociais. Desse modo, a dependência deve ser entendida como interdependência, compreendendo simultaneamente a plasticidade dos imaturos, mas também a sua capacidade para aprender com a experiência socialmente configurada. Há, portanto, uma inseparabilidade e uma codependência entre o desenvolvimento/ construção da individualidade e a experiência social, de que a comunidade é a realização plena e completa (DEWEY, 1997a). Outros dos aspectos estruturantes do pensamento de Dewey constitui a equivalência estabelecida entre viver, aprender e crescer. Para o autor, viver é crescer sem um fim predeterminado que não seja mais crescimento, sendo igualmente esse o objetivo da educação. A educação deve, desse modo, possibilitar uma reorganização e reconstrução contínuas da experiência dos indivíduos e das comunidades, possibilitando o seu crescimento. Como Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. salientado por Hansen (2009), a obra de Dewey traduz uma paixão pelo espaço “que está entre” e que pode ser entendido como o espaço entre o self que se foi e o self em formação, a comunidade de ontem e a comunidade de hoje; o ponto de vista adotado e o novo ponto de vista, exercendo uma atração magnética e impulsionando as pessoas para a frente “no sentido da criatividade, da expressividade, do habitar o mundo de forma mais plena, isto é, de forma reflexiva e apreciativa”6 (HANSEN, 2009, p. 106). O crescimento é, em si mesmo, e simultaneamente, o objetivo e o veículo da própria vida, expresso num processo contínuo de reconstrução da experiência do self, que enfrenta e acomoda o previsível e o imprevisível. Contudo, e como já foi salientado, no pensamento de Dewey, o self não pode ser entendido como independente e autossuficiente. O crescimento do indivíduo processa-se sempre num meio social, tornando-se as suas respostas inteligentes em função da sua associação e comunicação com outros. Como referido por Dewey7 (1991, p. 24): [...] o homem não está apenas associado de facto, mas torna-se um animal social na composição das suas ideias, sentimentos e comportamento deliberado. Aquilo em que acredita, o que espera e tem por objetivo é o resultado da sua associação e da sua relação. Numa sociedade progressiva, a associação deve promover e não impedir as variações individuais, as quais deverão ser incentivadas, pois constituem os meios que possibilitam o crescimento da sociedade. Ao contrário de uma sociedade conservadora e não democrática, a democrática valoriza a liberdade, o que significa, em sentido forte e progressivo, assegurar, acima de tudo, 6 - “toward creativity, toward expressivity, toward inhabiting the world that much more fully, which is to say reflectively and appreciatively”. 7- “man is not merely de facto associated, but he becomes a social animal in the make-up of his ideas, sentiments and deliberate behavior. What he believes, hopes for and aims at is the outcome of association and intercourse.” 787 as condições para que cada um possa pensar por si mesmo e não se limitar a adotar uma postura conformista. O conceito de liberdade que está aqui em jogo transcende uma concepção negativa correspondendo a uma concepção positiva da mesma, entendida como algo que tem de ser realizado e não apenas assegurado. Em termos das implicações sociais e educacionais, tem sobretudo a ver com a criação de condições que possibilitam o desenvolvimento de um pensamento efetivo, nomeadamente a possibilidade de “iniciativa intelectual, independência na observação, invenção judiciosa, antecipação das consequências”8 (DEWEY, 1997a, p. 302). Essa concepção está sustentada numa teoria pragmatista do conhecimento, que tem na continuidade uma das suas principais características. A continuidade deve ser entendida como um meio que permite a livre comunicação, ultrapassando divisões, antíteses e dualismos (no que pode também ser lido como um resíduo hegeliano significativo no pensamento de Dewey). Considerando que conhecer implica a reconstrução da experiência, o conhecimento pressupõe uma perceção mais profunda das conexões do objeto, determinando a sua aplicabilidade e envolvendo a totalidade do sujeito. Assim sendo, o conhecimento não pode ser entendido como uma “contemplação ociosa de um espectador não comprometido”9 (DEWEY, 1997a, p. 338), implicando mente e corpo bem como teoria e prática. Significa uma forma de participação, cuja efetividade está relacionada com o controle que confere aos sujeitos, ajudandoos a lidar com novas situações e a conferir propósito ao futuro. Não é algo rígido nem fixo, dado de uma vez por todas, mas o resultado de processo de tentativa e erro. O fato de existir um corpo de conhecimentos socialmente transmitido não invalida o esforço individual para encontrar um sentido. Como veremos, isso é especialmente importante pelas suas implicações para a aprendizagem. Efetivamente, Dewey sustenta uma visão construtivista da aprendizagem numa versão não ingênua. Segundo Dewey, não é expectável que o estudante faça descoberta originais, o que não invalida, contudo, que as condições de aprendizagem constituam um desafio para aquele que aprende no sentido de permitir uma “descoberta genuína”10 (DEWEY, 1997a, p. 303). O conhecimento tem uma função adaptativa, diferindo da mera conformidade a uma realidade dada e independente do sujeito (a asserção central do construtivismo, de acordo com Glaserfeld, 1999), traduzindo-se num alargamento da experiência pessoal e social. 8 - “[…] intellectual initiative, independence in observation, judicious invention, foresight of consequences”. 9 - “[…] idle view of an unconcerned spectator”. 10 - “genuine discovery”. ��- “is found in the idea that there is as intimate and necessary relation between the processes of actual experience and education”. 788 Conceito de educação progressiva segundo John Dewey Não há consenso em torno da definição da educação progressiva. De um ponto de vista superficial pode ser entendida como uma série de práticas traduzida numa organização do ensino-aprendizagem oposta à do ensino tradicional, nomeadamente à ênfase colocada na transmissão de conteúdos e no desempenho do professor. Num sentido mais profundo, a educação progressiva assenta numa lógica específica, numa filosofia da educação diferente. É essa a perspectiva subscrita por Dewey na obra Experience and education (1997b), publicada originalmente em 1938, e que constitui um dos seus escritos mais incisivos a respeito do tema. Tendo em conta o trabalho realizado com várias escolas progressivas, o autor reformula algumas das ideias expressas anteriormente, esclarecendo a visão que está por detrás da educação progressiva. Para ele, a unidade fundamental da nova filosofia que sustenta a educação progressiva “encontra-se na ideia de que há uma relação íntima e necessária entre os processos da experiência atual e a educação”11 (DEWEY, 1997b, p. 20). Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey A partir de uma análise mais cuidadosa do pensamento de Dewey, apercebemo-nos que relacionar a experiência atual com a educação é uma redundância. Tendo em conta que os princípios de qualquer experiência são a continuidade e a interação, aprender envolve sempre, segundo ele, uma reorganização da experiência do self. Por continuidade, entende “que cada experiência transporta simultaneamente algo daquelas que aconteceram antes, modificando de alguma forma a qualidade das que vêm depois”12 (DEWEY, 1997b, p. 35). Sendo sempre subjetiva e pessoal, um processo ativo, cada experiência afeta ainda, e é afetada, pelas condições objetivas em que ocorre, tendo igualmente implicações sobre as condições objetivas de experiências posteriores. A isso Dewey chama de princípio da interação, segundo o qual as condições atuais são determinantes da qualidade das experiências presentes, mas, também, das futuras. Tendo em conta que o valor da experiência “só pode ser julgado na base daquilo que impulsiona”13 (DEWEY, 1997b, p. 38), a marca distintiva de uma experiência educativa consiste na tradução dos princípios da continuidade e interação em crescimento, permitindo ao sujeito (re)construir uma experiência mais integrada e unificada. A efetivação de uma experiência educativa exige, desse modo, que o ambiente esteja organizado de forma a “envolver a pessoa em atividades específicas que tenham um objetivo ou propósito de momento ou se revistam de interesse para ela”14 (DEWEY, 1997a, p. 132). Com efeito, o que está em jogo numa experiência educativa é a possibilidade do sujeito se identificar com a atividade, encontrando sentido para a mesma, de forma a compreender as sucessivas tarefas como fazendo parte do contínuo de uma mesma situação em desenvolvimento, favorecendo-se, desse modo, o 12 -� “that every experience both takes up something from those which have gone before and modifies in some way the quality of those which come after.” 13 -� “can be judged only on the ground of what it moves toward and into”. 14 - “Engage a person in specific activities having an aim or purpose of moment or interest to him”. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. alargamento da compreensão de si mesmo e do mundo e a constituição de uma personalidade plenamente integrada como resultado da integração das experiências. A autodisciplina é a consequência natural da atenção contínua requerida por esse tipo de atividade. Alargar a experiência, aprender, não é mais do que uma forma de se associar ao processo ininterrupto que é o viver e que tem de enfrentar o previsível e o imprevisível, terminado, ao limite, com o fim da consciência (SHAKER; HEILMAN, 2008). Os professores desempenham aqui um papel fundamental. Antes de mais, têm de conhecer os seus estudantes de forma profunda a fim de identificar as atitudes que estão a ser criadas, distinguindo entre as que lhes permitirão crescer e as que os impedirão de avançar. Em segundo lugar, e tendo em conta esse dado, deverão criar um ambiente adequado à ocorrência de experiências educativas. Em suma, segundo Dewey, a criança deve ser o centro da educação, razão pela qual os educadores têm de estar cientes de que a formação precisa ser concebida para o desenvolvimento dela: a criança deve constituir o critério de seleção dos conteúdos e das experiências bem como da sua calendarização. Considerando que as formas de organização democráticas proporcionam uma melhor experiência humana, potenciando as qualidades de interação e continuidade, Dewey sustenta que as escolas devem ser comunidades embriônicas, a fim de permitir a familiarização dos estudantes com a vida democrática. A característica da interação, em particular, permite-nos apreender o desenvolvimento da experiência como um processo social. Consequentemente, as crianças devem acostumar-se à ideia do trabalho como um empreendimento social, o que requer do professor um planejamento cuidadoso no sentido de organizar experiências que satisfaçam as necessidades dos indivíduos que têm perante si, permitindo-lhes desenvolver as suas capacidades, capacitando-os, simultaneamente, a atuar como grupo, assumindo-se o professor como o líder das atividades do grupo. 789 A educação progressiva no presente Procuraremos, em seguida, compreender como é que a educação progressiva se desenvolveu e enriqueceu nas últimas décadas, apesar da dominância de uma agenda conservadora em matéria de educação, abordando as suas principais propostas. Antes, porém, convém esclarecer que, no início do século XXI, o progressivismo mantém-se como um movimento multifacetado, constituindo a sua caraterística mais central e unanimemente reconhecido o papel nuclear desempenhado pela obra de John Dewey (NORRIS, 2004). Tal como no início do movimento, os adeptos da educação progressiva não pertencem à esquerda radical, mas a uma esquerda reformista, significando que o sentido da moderação prevaleceu. Segundo Goodman (2006, p. 1), o movimento progressista representa “um espetro ideológico propositadamante alargado de ideias sociopolíticas e educacionais, enraizadas no pragmatismo americano”15 que, ao contrário da esquerda radical, valoriza o legado americano honrando a importância da democracia representativa. Nesse contexto, a sua luta concentra-se no aprofundar e expandir dos sentidos da democracia, nomeadamente através do aperfeiçoamento das instituições e ideologias herdadas dos seus antepassados, da consideração dos problemas das mulheres e das minorias e da promoção de relações de reciprocidade e maior equidade com outras sociedades. Procurando ser uma alavanca de responsabilidade social e de solidariedade, no contexto da expansão e realização dos direitos humanos, concebe a escola como um meio crucial para atingir uma maior equidade e dignidade humana, resistindo a tudo o que possa ser interpretado como uma forma de coisificação do outro. Através da revisão de literatura atual acerca da educação progressiva e do trabalho ��- “a purposefully broad ideological range of both sociopolitical and educational ideas that are rooted in American pragmatism”. 790 de alguns dos seus mais proeminentes autores, chegamos à prevalência de alguns tópicos que configuram as suas principais propostas na atualidade: a compreensão da educação progressiva como uma abordagem educativa centrada na criança; uma abordagem educativa que privilegia o sentido de comunidade; a importância de educar a criança como um todo; a defesa de um conceito lato de sucesso e de avaliação; a defesa da profissionalidade docente; o desenvolvimento de cidadãos ativos como o principal resultado a atingir com a escolarização. Uma abordagem centrada na criança A caraterística mais consensual da educação progressiva é a de que consiste numa abordagem centrada na criança. Egan (1999, apud NORRIS 2004, p. 10) explica o significado dessa expressão: A crença central - o dogma mais fundamental do progressivismo - é que para uma educação efetiva das crianças é vital ter em conta a sua natureza, e em particular o seu modo de aprendizagem e estádios de desenvolvimento, acomodando as práticas educativas ao que podermos apurar sobre isto.16 A importância de ter em conta as necessidades da criança, que encontramos bem vincada na obra pedagógica de Dewey, enquanto necessidade de entrar em relação com a experiência da criança tendo em conta as suas necessidades, forças e fraquezas específicas no sentido de a ajudar a progredir, foi enriquecida no diálogo entre o progressivismo e o construtivismo de Jean Piaget e seus seguidores. Recentemente, a teoria das inteligências 16 -� “The central belief-the most fundamental tenet of progressivism- is that to educate children effectively it is vital to attend the nature of the child, and particularly to their mode of learning and stages of development, and to accommodate educational practices to what we can discover about these”. Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey múltiplas de Howard Gardner reforçou essa intuição central da educação progressiva, convidando-nos a considerar diferentes estilos de aprendizagem. Com base na abordagem centrada na criança e no desenvolvimento da ideia de que existem diferentes estilos de aprendizagem e de envolvimento na mesma, um grupo de educadores progressivos, sob a liderança de Patricia Carini, desenvolveu uma metodologia intitulada revisão descritiva. Segundo Carini (2000, p. 16), os fundamentos e objetivos desta metodologia são os seguintes: Partindo da ideia de que as capacidades e possibilidades humanas estão amplamente distribuídas, orientámo-nos no sentido de observar e de particularizar as capacidades e as potencialidades de cada criança. Com base em ambientes de sala de aula ricos em mídia e em materiais, estamos bem colocados para procurar e tornar visíveis os interesses fortes de cada criança bem como os modos particulares como se envolve e aprende.17 Distinguindo-se de uma abordagem clínica ou fisiológica, a revisão descritiva consiste numa abordagem narrativa e não judicativa, enraizada numa perspectiva fenomenológica, que tem como objetivo apreender (e não categorizar) a singularidade de cada indivíduo na sua complexidade, potenciando a sua capacidade para aprender. Em suma, o que esses recentes desenvolvimentos revelam é que a principal reivindicação da educação progressiva, segundo a qual a criança deve ocupar o centro do processo de aprendizagem, corresponde à importância de construir um ambiente de aprendizagem baseado num estudo cuidadoso da singularidade daquela, a fim de favorecer uma participação ativa e um crescimento efetivo. Não significa, de modo ��- “Starting from the idea of human capacity and possibility, widely distributed, we were oriented to look for and to particularize the capacities and strengths of each child. Starting from classroom settings rich in media and materials, we are in position to seek and make visible each child’s strong interests and characteristics modes of engaging and learning”. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. algum, ser indulgente com a criança, assumindose, contudo, que a coação e a punição não constituem boas medidas educativas. Uma abordagem centrada na criança significa, ainda, que uma boa escola “reflete os valores e ideias dos estudantes”18 (SHAKER; HEILMAN, 2008, p. 179), aspecto especialmente desenvolvido por Deborah Meier (2002a, 2002b). Finalmente, uma abordagem centrada na criança constitui um convite à adoção de uma multiplicidade de modelos e caminhos educativos, em vez da imposição de uma visão única acerca do que significa ser uma pessoa educada e, concomitantemente, da defesa de um único caminho educativo (NODDINGS, 2002). Educar a criança como um todo Outro tópico que emerge da literatura atual é o imperativo de educar a criança na sua totalidade (NODDINGS, 2002; 2005; 2006). Esse imperativo pode ser interpretado em dois sentidos, qualquer deles fazendo apelo aos princípios da experiência, tal como conceitualizada por Dewey. Em primeiro lugar, tendo em conta que qualquer estudante é um indivíduo complexo e que, como tal, não pode ser desmembrado numa coleção de atributos, os autores progressivos defendem uma educação focada no desenvolvimento total da criança. Consequentemente, privilegiam uma abordagem holística do currículo, que permita aos estudantes perceber (e estabelecer) conexões entre as suas próprias experiências. A concretização disso exige que as relações entre as várias disciplinas, especialmente nos níveis superiores de ensino, seja impulsionada a partir de dentro, no sentido de permitir a exploração de tópicos pertencentes a outros domínios do conhecimento. Desse modo: estudantes que se estão a especializar em matemática ou ciência podem, neste processo, aprender alguma coisa 18 - “reflects values and ideas of the students” 791 sobre história, biografia, filosofia, literatura, estética, religião e como viver19 (NODDINGS, 2006, p. 90). Em segundo lugar, os autores progressivos criticam a não-inclusão no currículo de conteúdos valorizados pelos estudantes e relacionados com a sua vida quotidiana, assim como um conjunto de capacidades que ajudam as pessoas a viver de uma forma mais inteligente, moral e feliz. Noddings (2002, p. 95), em particular, realça aqui as capacidades “tradicionalmente associadas às mulheres”20 e relacionadas com o cuidado humano. Para Meier (2002b), é importante abolir a falsa dicotomia entre conhecimento prático e conhecimento acadêmico, dignificando os dois, como forma de conseguir chegar aos estudantes menos privilegiados e estabelecer uma ponte com as suas culturas. Shaker e Heilman (2008) recordam a importância da inclusão de uma educação espiritual (enquanto distinta de uma educação moral e religiosa), enfatizando a sua importância para uma vida democrática, tendo em conta que “o conceito de espiritualidade se relaciona com propósitos humanos amplos, antitéticos da autoabsorção”21 (SHAKER; HEILMAN, 2008, p. 188), isto é, com a abertura a um transcendente que favoreça a superação do individualismo. Um conceito lato de sucesso e de avaliação Há unanimidade entre os educadores progressivos na crítica feita à ênfase colocada nos testes estandardizados, que são um dos traços dominantes da educação nos EUA na atualidade. Não significa isso, contudo, que sejam contra a lógica da avaliação ou da prestação de contas. Pelo contrário, fazem a distinção entre formas 19 - “students specializing in mathematics or science can, in the process, learn something of history, biography, philosophy, literature, aesthetics, religion, and how to live”. 20 - “traditionally associated with women”. ��- “the concept of spirituality is connected to broad human purposes antithetical to self-absorption”. 792 boas e más de avaliação, traçando uma linha entre um conceito estreito de avaliação, que deve ser combatido, e um conceito lato a incentivar, concordando com a necessidade de avaliar o trabalho desenvolvido pelas escolas. A unanimidade em torno desse assunto não acontece por acaso. A implementação dos testes estandardizados é um bom exemplo daquilo a que Dewey (2002, p.59) chamou sugestivamente “o desperdício na educação” e que resulta, entre outros fatores, do isolamento dos vários domínios de estudo, logo da artificialidade das matérias e da vida escolar em relação à vida quotidiana. Os testes estandardizados são considerados uma má forma de avaliação, porque consistem numa medida reducionista conducente a falsas certezas. Focados nos tipos de inteligência linguística e matemática, não favorecem a prossecução do objetivo essencial do desenvolvimento da criança e do jovem no sentido da solidariedade e das competências sociais (DEWEY, 2002). De acordo com Meier (2002a), tais exames são incapazes de prever qualidades essenciais ao desenvolvimento de uma cidadania democrática, tais como a capacidade de cooperação, a criatividade, a perseverança, a capacidade de correr riscos, a fiabilidade, entre outras, estreitando, assim, o conceito de sucesso. Para além disso, os autores progressivos denunciam os riscos inerentes a uma única forma de avaliação, defendendo a importância de múltiplas formas de avaliação. Mas acima de tudo, o que é colocado em questão é a capacidade dos testes estandardizados avaliarem o que os estudantes realmente aprenderam na escola e, desse modo, consistirem uma medida adequada para melhorar a educação. O sistema de testes, tal como está organizado, tem como objetivo hierarquizar os alunos, sendo incapaz de avaliar se os professores ensinaram bem e se os estudantes efetivamente aprenderam. Reflete-se, ainda, numa simplificação do processo de aprendizagem e do papel do professor na organização desse processo. Como salientado por Meier (2002b), tem igualmente o efeito Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey de desacreditar as capacidades dos adultos significativos, professores e pais, para avaliar as evidências de aprendizagem em nome de evidências indiretas consideradas mais credíveis. A alternativa baseada numa perspectiva progressiva implica uma avaliação mais lata, baseada num “conjunto de dados e num contributo substancial dos profissionais”22 (SHAKER; HEILMAN, 2008, p. 180). É considerada crucial a implementação de formas de avaliação que restituam a autoridade àqueles que conhecem realmente as crianças, possibilitando ainda a apresentação e partilha das evidências da aprendizagem com as crianças, família e comunidade. Essa visibilidade da aprendizagem, tornada possível através de um amplo processo de documentação, que reúna diferentes formas de evidência da mesma, sustenta o conceito alargado de prestação de contas proposto pelos educadores progressivos. Para Krechevsky et al. (2010, p. 65), a documentação constitui um instrumento fundamental para implementar uma forma de prestação de contas mais consistente e válida. Para eles, essa documentação é definida como: a prática de observação, gravação, interpretação e partilha, através de uma variedade de meios, dos processos e produtos da aprendizagem a fim de possibilitar o aprofundamento da mesma”23. (KRECHEVSKY et. al 2010, p. 65) Para Meier (2002), é fundamental implementar formas de avaliação que, voltando a colocar a autoridade nas mãos daqueles que melhor conhecem as crianças, forneçam simultaneamente meios para que a comunidade, a família e a escola possam apreciar os juízos produzidos sobre as aprendizagens das suas crianças, colocando questões ou mesmo apresentando provas complementares daquela. 22 - “a range of data and a substantial element of professional peer input”. 23 - “the practice of observing, recording, interpreting, and sharing through a variety of media the processes and products of learning in order to deepen learning”. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. Só assim pode ser alcançada uma forma mais segura de prestação de contas. Kreschevsky et. al (2010) referem três formas diversas e complementares de prestação de contas. A primeira, prestação de contas a si mesmo, permite aos professores e alunos observar o que realmente conseguiram fazer, estabelecendo a comparação com os seus objetivos e com os objetivos da escola. Neste processo, os professores e os alunos podem revisitar o seu trabalho e refletir acerca da melhor forma de o melhorar, estreitando os seus laços e tornando-se aprendizes da sua própria aprendizagem. A segunda, prestação de contas entre si, favorece a aprendizagem individual e grupal assim como a constituição de uma identidade coletiva, já que os estudantes comentam os trabalhos uns dos outros, os professores pedem a colegas que observem os seus alunos, os pais podem contribuir com a recolha de provas de aprendizagem, emergindo dessa dinâmica o sentido de uma comunidade de aprendizagem. Finalmente, a terceira forma, uma prestação de contas à comunidade envolvente mediante mostras de aprendizagem, a partir da qual se promovem apresentações de portfólios, por exemplo. Essas mostras, que recuperam uma tradição fortemente enraizada nos Estados Unidos, permitem aos estudantes apresentarem perante a comunidade mais vasta os resultados da sua aprendizagem. Em síntese, contra a visão que subjaz à legislação do no child left behind, considerada como instigadora de uma política punitiva que exclui em vez de permitir a melhoria da educação, avaliando os estudantes através de lentes estreitas e hierarquizando-os, os educadores progressivos defendem uma noção alternativa de padrões de sucesso, baseada em múltiplas perspectivas e evidências, possibilitando uma exposição e uma crítica públicas. A defesa da profissionalidade docente Apesar de a educação progressiva defender uma abordagem centrada no aluno, considerando que uma boa escola é aquela onde as 793 ideias e os valores das crianças contam e são levados a sério, isso não significa, de modo algum, antes pelo contrário, que o papel dos professores não se revista da maior importância. Por um lado, os professores são aqueles que melhor conhecem as crianças devido ao contacto permanente e direto que têm com elas, ocupando, por conseguinte, uma posição privilegiada para ultrapassar o hiato geracional. Por outro lado, têm a responsabilidade de tornar a cultura acessível aos alunos e de discutir com eles as mensagens superficiais lançadas pelos meios de comunicação e por adultos desencantados. Nesse contexto, devem desempenhar o papel de inspiradores das novas gerações mediante a criação de situações de aprendizagem que alimentem a curiosidade das crianças e o seu amor pelo conhecimento. Segundo esta ótica, a tarefa de ensinar é vista como uma atividade criativa, exigindo o domínio de uma grande variedade de técnicas e uma atenção muito particular à singularidade dos estudantes. Como salientado por Shaker e Heilman (2008, p. 180), “os professores têm de diariamente aproveitar todas as oportunidades para alargar a efetividade da sua ação e chegar a cada estudante de forma educativa”24. Na senda da defesa feita por Dewey da necessidade de preservação da liberdade intelectual dos professores, os educadores e autores progressivos rejeitam a ideia de um ensino cujo objetivo seja a mera obtenção de sucesso em testes estandardizados. Consideram que essa concepção é extraordinariamente redutora do profissionalismo docente, empobrecendo-o na medida em que reduz os professores a meros técnicos, colocando de lado a sua sabedoria profissional (NORRIS, 2004; HAYES, 2006). Ensinar é visto como um empreendimento moral, que exige uma relação de confiança entre professores e alunos. Os professores têm, acima de tudo, de acreditar na capacidade e na vontade de aprender dos seus alunos, mas têm também de se apoiar uns nos outros e trabalhar ��� - “teachers need every opportunity to broaden their effectiveness and successfully reach each student in an educative manner every day”. 794 em conjunto no sentido de criar formas de confiança colegial. A educação das crianças deve ser entendida como uma tarefa comum, devendo as escolas organizarem-se de modo a tornar essa ideia numa realidade. O desenvolvimento de cidadãos ativos como principal resultado da escolarização Os educadores progressivos subscrevem a relação íntima entre democracia e educação defendida por Dewey, privilegiando, à semelhança deste, a democracia em sentido forte, como uma forma de viver com os outros e como uma forma de relacionamento e de interação diária. Para além desse sentido de democracia participativa, defendem igualmente outro aspecto central na noção de democracia proposta por Dewey: a ideia de pluralismo (NEUBERT, 2009). Acreditam que a diversidade de grupos e culturas deve ser valorizada e constitui um ganho para a democracia, desde que os pré-requisitos institucionais estejam assegurados no sentido de assegurar uma comunicação livre e frutífera. Efetivamente, o consenso e a unidade, dentro da diversidade, são fundamentais para a construção de um sentido de comunidade. Acreditando que hoje, tal como ontem, “a crise da democracia é também a crise da comunidade”25 (SHAPIRO, 2009, p. 5), entendem a educação para uma cidadania democrática como intimamente relacionada com uma abordagem educativa centrada na comunidade. Na base desses pressupostos, e desafiando a agenda neoliberal para a educação, os educadores e autores progressivos reclamam uma outra visão e lógica educacionais, sustentando que a educação não pode ser neutra, não devendo ter como único objetivo o preparar trabalhadores competentes (NODDINGS, 2005; SHAKER; HEILMAN, 2008). Efetivamente, uma sociedade democrática exige o desenvolvimento de competências essenciais à prossecução do bem comum 25 -� “the crisis of democracy is also the crisis of community”. Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey e à consecução de uma cidadania responsável. Entre essas avultam o pensamento crítico, a resolução de problemas, o autoconhecimento, a comunicação efetiva, a flexibilidade, a criatividade genuína, a consciência social e a vontade para estabelecer e honrar compromissos. Para corresponder a essa visão, as escolas públicas têm de se tornar comunidades de inquérito, preocupando-se com a construção de conhecimento, “mas também de sentido, identidade e comunidade”26 (SHAKER; HEILMAN, 2008, p. 187). A importância das escolas públicas se concentrarem na realização de objetivos comuns e de um futuro comum é, assim, enfatizada (MEIER, 2002a). A criação de condições adequadas por meio da escolarização para a formação de cidadãos críticos e informados é, por conseguinte, indispensável para a sobrevivência da democracia. Esse objetivo exige, simultaneamente, a construção de um currículo que privilegie quer as questões conceituais quer as questões práticas, favorecendo o exercício da curiosidade por crianças e adultos. Efetivamente, transformar a escola numa comunidade democrática exige participação e envolvimento por parte das crianças, mas também a adoção de uma atitude democrática pelos adultos (docentes, pessoal não docente e pais), que deverão estar dispostos a partilhar responsabilidades e a aprender em conjunto. A necessária familiarização dos estudantes com uma cultura de debate requer, ainda, que os adultos à sua volta mostrem que é possível manter discordâncias com outros sem se perder o respeito. A multiplicação de oportunidades de partilha de conhecimentos, colocando os estudantes mais velhos a ajudar os mais novos, encorajando o voluntariado adulto e as atividades que reúnem pessoas com diferentes idades e níveis diversos de escolaridade, está entre as medidas utilizadas para desenvolver escolas e comunidade. Uma escola animada por um sentido de comunidade deve ainda ser 26 -� “meaning, identity and community as well”. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. de dimensão reduzida, no sentido de favorecer relações de confiança, desenvolvidas em torno de objetivos comuns e de processos de decisão transparentes. Como referido por Deborah Meier (2004, p. 73): [...] a confiança nas escolas não pode crescer a não ser que os diretores, pais professores e crianças se conheçam bem e que o seu trabalho seja acessível à comunidade mais lata.27 Conclusões As propostas atuais da educação progressiva têm como núcleo a relação estreita entre educação e expansão da experiência atual, aspecto central do pensamento de John Dewey. Esta ideia corresponde, ainda, à afirmação central do progressivismo, segundo a qual só por meio do alargamento de oportunidades educativas a todos se poderá alcançar uma sociedade mais justa e equitativa. Ser educado consiste, por conseguinte, no apoderar-se da sua própria situação em sentido pleno, isto é, de forma crítica e reflexiva, alargando simultaneamente a compreensão de si e do mundo. Esta concepção parte do reconhecimento de uma diferença essencial entre a educação humana e a educação animal. Os seres humanos sentem necessidade de dar sentido ao mundo a fim de o poder habitar. A educação tem de ter em conta a especificidade do estudante, entrando em linha de conta com as suas necessidades forças e fraquezas. A criança/estudante deve ser, por conseguinte, a base das opções e das decisões. O papel das escolas não é criar uniformidade, mas permitir o desenvolvimento da individualidade. A diversidade é valorizada enquanto forma de expandir e enriquecer a experiência comum. Nos escritos contemporâneos dos autores progressivos, essa última ideia aparece expressa de forma muito vincada. A tradição da educação 27 -� “trust in schools can’t grow unless principals, parents, teachers and kids know each other well, and their work is accessible to the larger community”. 795 progressiva evoluiu e consolidou-se, em tempos de globalização dominados por um agenda neoliberal, como uma abordagem centrada nos alunos, que descarta a uniformidade e a esdandardização, defendendo que a diversidade deve ser reconhecida e promovida. A revisão descritiva da criança é o exemplo de um instrumento metodológico poderoso que amplifica essa ideia, tornando-a palpável em termos pedagógicos. Para além de permitir o reconhecimento de diferentes tipos de inteligência e de diferentes estilos de aprendizagem, realça a importância de olhar para os estudantes como pessoas e não como casos, cujas especificidades devem ser valorizadas. De fato, um dos seus objetivos consiste em combater o conformismo e a estandardização que, de acordo com os educadores e autores progressivos, estão a comprometer a educação não só nos EUA, mas um pouco por todo o mundo. A revisão descritiva pressupõe, ainda, a consideração da continuidade entre educação formal e não formal, um dos pressupostos iniciais da educação progressiva, igualmente desenvolvido por Dewey. As escolas não podem ignorar as aprendizagens feitas pelos estudantes e que são trazidas para o seu interior. Em suma, como refere Carini (1986, p. 17): “a diversidade de perspectivas e de pensamento”28 devem ser encaradas “como o nosso maior recurso, dado que nós, seres humanos, estamos vocacionados para uma forma de vida em comum, cuja vitalidade depende das forças e contributos dos indivíduos”. 29 Defendendo uma concepção de democracia em sentido forte, a educação progressiva, de hoje, realça a importância das escolas se constituirem como comunidades de investigação, aprendizagem e sentido. As escolas, e em especial as escolas públicas, devem encorajar a dedicação pessoal ao bem comum, favorecendo o capital social, entendido como a capacidade para cooperar em benefício mútuo. ��� - “diversity of outlook and thought”. 29 - “as our richest resource since we humans are inclined toward a communal mode of life which depends for its vitality on the strengths and contributions of individuals”. 796 Muito mais do que transmitir informação, a educação escolar deve preparar os estudantes para aprender ao longo da vida de forma ativa e pragmática, oferecendo-lhes uma educação integral. Sem subestimar a importância da literacia e da numeracia, os educadores progressivos atuais acreditam que esses objetivos podem ser alcançados por meio da resolução de problemas práticos e de atividades e projetos que mobilizem os interesses dos estudantes, quebrando as fronteiras artificiais entre as várias disciplinas e restaurando a unidade da experiência. Finalmente, a educação democrática não é considerada como um empreendimento neutro, mas é considerada um empreendimento moral e espiritual, o que significa, num sentido progressivo, que se baseia numa concepção dos seres humanos como iguais, racionais e capazes de cooperação. Desse modo, a realização de uma educação democrática exige um investimento na capacidade ética do ser humano para encetar um diálogo democrático e para tomar decisões em conformidade. Hoje, mais do que nunca, uma verdadeira educação democrática, uma educação crítica, exige um esforço de compreensão das diferenças culturais e de outro tipo de diferenças, implicando uma escuta atenta e séria. Nessa perspectiva, a integração étnica, racial e social deve ser encorajada nas escolas de um mundo que é cada vez mais diverso. Esse aspecto, realçado nas propostas atuais da educação progressiva, revela um compromisso muito claro com a justiça social e o pluralismo através da educação. A comunicação deve ser incentivada, no espírito de Dewey, não significando com isso que os conflitos devem ser evitados ou que se devem procurar falsos consensos, mas, sim, ensinar os estudantes a lidar com os conflitos e a solucioná-los, tendo em conta a perspectiva dos outros e sem minimizar ou anular as diferenças. Consequentemente, de acordo com as perspectivas progressivas atuais, o papel da educação não consiste apenas em preparar os estudantes para o mercado de trabalho, devendo, Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey essencialmente, focar-se na preparação de cidadãos críticos e comprometidos no sentido de preservar, melhorar e aprofundar a democracia, através de um exigente e envolvente processo de ensino-aprendizagem. Por esse motivo, subscrevemos a afirmação de Norris (2004, p.17), para quem “não foi a educação progressiva que não esteve à altura das pessoas, mas estas que não souberam estar à altura 30- “[…] progressive education has not failed the people but that, in fact, people have failed progressive education”. da educação progressiva”30, ignorando o seu potencial e requisitos e preferindo assimilá-la a uma perspectiva romântica e economicamente inviável (SHAKER; HEILMAN, 2008). A educação progressiva é uma abordagem educativa exigente, que requer professores muito competentes e empenhados, comportando custos pessoais e econômicos, mas que pode ser bem sucedida. Na prática, está a dar os seus frutos em numerosas escolas nos EUA, apesar de uma conjuntura adversa, contribuindo para uma revitalização da vida democrática. Referências CARINI, Patricia F. Building from children’s strenghts. Journal of Education, v. 168, n. 3, p. 13-24, 1986. ______. Introduction: a page from the prospect album. 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Investigadora do Instituto de Filosofia/Gabinete de Filosofia da Educação da Universidade do Porto. As suas pesquisas têm-se centrado nas áreas da Teoria da Educação, Pensamento Pedagógico Contemporâneo e Educação para uma Cidadania Democrática. 798 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em Honneth e RousseauI Claudio Almir DalboscoII Resumo I- Este ensaio é parte de meu pós-doutorado, realizado no CEBRAP/SP, durante o segundo semestre de 2013, mediante supervisão dos professores Dr. Marcos Nobre (Unicamp) e Dr. Ricardo Terra (USP), aos quais agradeço pela recepção e liberdade para realização do trabalho, bem como pelo debate proporcionado. Também sou grato ao CNPq pela Bolsa Produtividade em Pesquisa e à Universidade de Passo Fundo (UPF/RS) por ter me concedido total liberação de minhas atividades institucionais, sem a qual não poderia ter realizado o trabalho. II- Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil. Contato: [email protected] Parte significativa do debate filosófico e pedagógico contemporâneo considera a teoria do reconhecimento como postura intelectual promissora para tratar de problemas filosóficos e educacionais. Nesse sentido, não se pode pensar uma ordem social justa sem o processo educacional formativo do ser humano amparado por estruturas sociais e institucionais de reconhecimento. O filósofo social frankfurtiano Axel Honneth tem se destacado, na atualidade, por apresentar uma teoria do reconhecimento com forte inspiração hegeliana. Contudo, em trabalho recente, intitulado Untiefen der Anerkennung (Profundezas do reconhecimento), publicado na Alemanha em 2012, inspirando-se em Frederick Neuhouser, considera Rousseau, e não mais Hegel, o pioneiro fundador da teoria do reconhecimento. O presente ensaio, contrapondo-se criticamente à interpretação de Honneth, possui duplo propósito: por um lado, mostrar que, se Honneth considera acertadamente Rousseau como teórico do reconhecimento, também deveria tomá-lo como pioneiro da noção de liberdade social; por outro, justificar que a profunda imbricação existente no pensamento do filósofo genebrino entre teoria do reconhecimento e educação do amor próprio só se deixa esclarecer com base em uma teoria da formação virtuosa da vontade. De outra parte, ao argumentar a favor da formação virtuosa da vontade como forma de evitar a extensão do amor próprio pervertido, Rousseau, além de tocar em um problema de fundo da condição social humana, também lança as bases para uma avaliação crítica do cenário pedagógico contemporâneo, o qual reduz perigosamente questões educacionais amplas e complexas simplesmente a problemas de aprendizagem. Palavras-chave Amor próprio — Reconhecimento — Formação — Vontade — Virtude. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091625 799 The human condition and the virtuous education of the will: the depths of recognition in Honneth and Rousseau I Claudio Almir DalboscoII Abstract I- This essay is part of my postdoctoral studies, performed at CEBRAP / SP during the second half of 2013, under the supervision of Professors Marcos Nobre (Unicamp) and Ricardo Terra (USP), whom I thank for welcoming me, for the freedom to perform this work as well as for the debate provided. I would also like to acknowledge Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - National Council for Scientific and Technological Development) for the research productivity fellowship and Universidade de Passo Fundo (UPF/RS) for my leave from work at the university, without which I could not have performed this study. II- Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil. Contact: [email protected] 800 A significant part of the contemporary philosophical and educational discussion considers the theory of recognition as a promising intellectual approach to philosophical and educational problems. In this sense, one cannot think about a just social order without the educational process of the human being supported by social and institutional structures of recognition. At present, the Frankfurter social philosopher Axel Honneth has stood out for presenting a theory of recognition with a strong Hegelian inspiration. However, in a recent work entitled Untiefen der Anerkennung (Depths of recognition), published in Germany in 2012, drawing inspiration from Frederik Neuhouser, Honneth considers Rousseau, not Hegel anymore, the pioneer of the theory of recognition. Critically opposing Honneth’s interpretation, this essay has a double purpose: on the one hand, to show that, as Honneth rightly considers Rousseau a theorist of recognition, he should also regard him as a pioneer of the concept of social freedom; and, on the other hand, to justify that the profound intertwining present in the thought of the Genevan philosopher between the theory of recognition and the education of self-love can only be clarified on the basis of a theory of the virtuous education of the will. Moreover, when arguing for the virtuous education of the will in order to avoid the extension of perverted self-love, Rousseau not only addresses a fundamental problem of the human social condition, but also lays the foundations for a critical evaluation of the contemporary educational scenario. Such scenario dangerously reduces large and complex educational issues to mere learning problems. Keywords Self-love — Recognition — Education — Will — Virtue. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091625 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. Introdução Investigações recentes procuram mostrar que é Rousseau e não Hegel o fundador da teoria do reconhecimento. Entre elas, destacam-se Pathologien der Selbstliebe (Patologias do amor próprio), de Frederick Neuhouser (2012), e Untiefen der Anerkennung (Profundezas1 do reconhecimento), de Axel Honneth (2012a). Nesse seu pequeno ensaio, Axel Honneth não esconde o quanto se deixa influenciar profundamente pelo amplo e detalhado livro de Neuhouser. As pesquisas do filósofo americano permitem, em primeiro lugar, segundo Honneth, localizar a unidade do pensamento de Rousseau não mais na autodeterminação livre da vontade, como acreditou outrora Ernst Cassirer (1975), mas sim na teoria do amor próprio. Em segundo lugar, aprofundando a interpretação de Nicholas Dent, Neuhouser conclui que a tese de que o sujeito humano deve sua capacidade de ação social ao reconhecimento de outros sujeitos pertence originariamente não ao pensamento de Hegel, mas sim ao de Rousseau. A “dependência constitutiva ao outro” formaria, nesse contexto, o elo entre os resultados negativos da crítica à cultura e a versão positiva presente na ideia de um contrato social entre cidadãos e cidadãs. Sendo assim, conclui Honneth, é a teoria do reconhecimento sustentada pela teoria do amor próprio – e não mais a autodeterminação da vontade – que constitui a unidade sistemática das principais obras de Rousseau (HONNETH, 2012a, p. 48).2 Desse modo, a alta consideração que Honneth tem sobre a interpretação de Neuhouser ocorre nitidamente em detrimento da interpretação de Cassirer, pressupondo, em última instância, a incompatibilidade entre a tese da autodeterminação livre da vontade e a teoria do amor próprio. Contrariamente a 1- A tradução mais usual da expressão “Untiefen” seria abismos. Contudo, opto por profundezas porque dá mais a ideia de profundidade no sentido de inesgotável, e não enquanto algo sem fundo, como a expressão abismo poderia dar a entender. 2- Ver também a resenha crítica de Honneth sobre o livro de Neuhouser (HONNETH, 2012b). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. Axel Honneth, penso que é possível reconhecer a fecundidade da contribuição de Frederick Neuhouser sem secundarizar a interpretação de Ernst Cassirer. Como procuro mostrar na parte final deste ensaio, esses dois autores não se excluem, mas sim se complementam mutuamente, pois a teoria da educabilidade do amor próprio, como forma consequente de enfrentar os perigos que lhe são inerentes, pressupõe a formação da vontade, cujos traços gerais Rousseau esboça no Émile como teoria da virtude. O núcleo do problema da vontade em Rousseau, considerado acertadamente por Honneth como obscuro, deixa-se esclarecer melhor – e esta é minha hipótese – quando compreendido como um problema de formação (Bildungsproblem). Ou seja, Rousseau estava certo de que a vontade humana não se explica por si mesma e nem deveria ser tomada como um conceito abstrato. No entanto, como não é absolutamente boa3 e como é a força movente do amor próprio, ela precisa ser formada virtuosamente para que possa impulsionar as forças construtivas do amor próprio e, com isso, dominar o ímpeto destrutivo das paixões humanas. Ora, se o problema se põe realmente dessa maneira, então o Émile ocupa um lugar de maior destaque na arquitetônica do pensamento rousseauniano do que aquele concebido tanto por Honneth quanto pelo próprio Cassirer. De qualquer modo, o fato de Axel Honneth assumir essa nova interpretação de Neuhouser traz certamente implicações decisivas para sua própria teoria da justiça, cuja última versão encontra-se formulada em seu extenso livro Das Recht der Freiheit. Grundriss einer demokratischen Sittlichkeit (Direito à liberdade. Esboço de uma eticidade democrática), publicado na Alemanha em 2011. Segundo Honneth, as teorias modernas da justiça fazem repousar sua justificação na ideia da liberdade individual, assumindo tal ideia três versões diferentes, as 3- Rousseau foi um dos autores entre os modernos que melhor reconheceu a fraqueza e a vulnerabilidade da condição humana, sabendo derivar dela também o problema da “vontade fraca”. 801 quais influenciam, cada uma a seu modo, as próprias teorias contemporâneas e atuais de justiça: a liberdade negativa, formulada por Hobbes; a liberdade reflexiva, esboçada por Rousseau e sistematizada diferentemente por Kant e Herder; e, por último, a liberdade social, pensada por Hegel. Não é minha pretensão, neste breve ensaio, seguir pormenorizadamente a exposição que Honneth faz, na primeira parte de seu referido livro, de cada uma dessas três grandes concepções modernas de liberdade. Pretendo deter-me, isto sim, especificamente na implicação que tem para sua própria posição o fato de ter assumido integralmente a nova interpretação de Neuhouser. Se Honneth está de acordo com Neuhouser sobre o fato de que é Rousseau e não mais Hegel o fundador da teoria do reconhecimento, então ele deve ser levado, por coerência de sua adesão àquela interpretação, a ver em Rousseau não mais só o fundador da liberdade reflexiva – a qual Kant tomará como ponto de partida para justificar sua ideia de liberdade como autodeterminação (Selbstbestimmung) e autolegislação (Selbstgesetzgebung) –, mas, sobretudo, o fundador da própria liberdade social. Na sequência, desenvolvo minha argumentação em três momentos. No primeiro, reconstruo em linhas gerais a releitura que Honneth faz, inspirando-se em Neuhouser, do pensamento de Rousseau no referido ensaio, “Untiefen der Anerkennung”. No segundo momento, faço um ingresso pontual na primeira parte de sua grande obra, Das Recht der Freiheit, visando a resumir a breve interpretação que ele oferece do pensamento de Rousseau. Por fim, no terceiro momento, argumento a favor da noção de liberdade social no pensamento de Rousseau, buscando mostrar, ao mesmo tempo, em que sentido a educabilidade do amor próprio só se deixa compreender adequadamente como teoria da formação virtuosa da vontade. Essa contraposição crítica à interpretação de Honneth serve-me a uma dupla finalidade: esclarecer o sentido genuinamente formativo da ideia de educação em Rousseau e, 802 simultaneamente, pensar o quanto tal ideia pode revelar-se ainda atual como referência crítica à redução da educação a uma “questão de aprendizagem”, que predomina no cenário pedagógico contemporâneo. Profundezas do reconhecimento No ensaio Untiefen der Anerkennung, Honneth, seguindo de perto as pegadas de Neuhouser4, afirma que, com a teoria do amor próprio, Rousseau transformou-se no fundador da ampla tradição da teoria do reconhecimento. Nesse sentido, o conceito de amor próprio serve não só para sua crítica à sociedade e à cultura, mas também para a fundamentação de sua teoria do reconhecimento intersubjetivo, a qual assume dupla variante, uma negativa e outra positiva. A variante negativa consiste na busca pela estima pública e pelo reconhecimento social, mas sempre tomando os outros como seres inferiores. Ou seja, essa forma de reconhecimento é negativa porque alimenta o incessante desejo humano de sempre buscar uma posição superior em relação aos seus semelhantes. Dela brota o espírito de concorrência desenfreado, movido pela vaidade5, soberba (petulância) e ódio. Essa variante predomina nos escritos de crítica à cultura e à sociedade, especialmente no Segundo Discurso. A segunda variante, por sua vez, gira em torno da noção de reconhecimento recíproco. Ela é positiva, nesse sentido, porque, além de se opor ao desejo de superioridade, fomenta o respeito recíproco entre iguais. Ela é predominante no Émile, voltando-se aí contra a variante negativa com o intuito de preparar o aluno fictício para o domínio de seu amor próprio inflamado. 4- No ensaio “Aspiração humana por reconhecimento e educação do amor próprio em Jean-Jacques Rousseau” (DALBOSCO, 2011a, p. 481496), ocupo-me em detalhes da interpretação que Neuhouser faz do amor próprio em Rousseau. 5- N. J. H. Dent, por exemplo, considera a vaidade como um dos sentimentos mais destrutivos do amor próprio, porque ela resume o desejo humano incessante de se comparar com o outro visando a ser superior a ele e sentir-se agraciado por tal superioridade (DENT, 1996, p. 208-209). Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento... Para mostrar a centralidade da teoria do amor próprio no pensamento de Rousseau, Honneth divide seu breve e denso ensaio em três partes. Na primeira, segue o desenvolvimento teórico de Rousseau até o ponto em que o genebrino põe a exigência da forma social igualitária de reconhecimento recíproco como alternativa aos aspectos danosos do amor próprio. Na segunda parte, pretende mostrar brevemente a enorme influência que a dupla variante do reconhecimento social exerceu no discurso filosófico da modernidade. Nesse contexto, escolhe as noções de história da filosofia de Kant como manifestação prototípica da primeira variante, uma vez que, segundo ele, Kant teria mostrado claramente em tais noções como a profunda necessidade humana de estima social transforma-se perigosamente na força motriz do progresso social e cultural.6 A variante positiva será desenvolvida por Fichte e Hegel na direção de uma teoria do reconhecimento do direito e da eticidade. Por fim, na última parte do ensaio, Honneth reconstrói o ceticismo crescente manifestado, segundo ele, pelo próprio Rousseau em relação à dependência ao outro que está inerente ao amor próprio. O filósofo genebrino teria retomado, segundo ele, sobretudo em seus escritos tardios, o argumento, com o qual também já havia se deparado no Segundo Discurso, de que talvez fosse mais aconselhável à paz da alma humana tornar-se completamente independente da consideração e do reconhecimento do outro (HONNETH, 2012a, p. 49). Não seria menos importante seguir de perto aqui o detalhamento do argumento de Honneth nas três partes do referido ensaio, considerando a riqueza de suas ideias. Contudo, para meus propósitos, basta reconstruir agora o núcleo da primeira parte, uma vez que é nela que aparecem delineados os traços gerais da teoria rousseauniana do reconhecimento que chega a 6 - Embora Honneth não aprofunde esse aspecto, é com a noção de “sociabilidade insociável” (ungesellige Geselligkeit) que Kant traz contribuição importante à filosofia social e, especificamente, ao pensamento educacional. Ocupei-me desse tema no quarto capítulo de meu pequeno livro Kant & a educação (2011b). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. suas mãos por influência de Neuhouser. Nesse contexto, Honneth retoma esquematicamente a distinção entre amor de si e amor próprio, vendo no primeiro, em comum acordo com Neuhouser e o próprio Rousseau, o sentimento que o ser humano desenvolve visando a sua autopreservação. Nesse sentido, o amor de si é um sentimento pré-social, que coloca o homem natural em estado de isolamento e de quase total independência. Enquanto isso, o amor próprio refere-se ao sentimento social, pois nasce com a sociedade e impele o ser humano a comparar-se permanentemente com os outros, fazendo-o depender do julgamento daqueles. Enquanto o amor de si possui valor absoluto, o amor próprio possui valor relativo. Como sentimento eminentemente social, o amor próprio pode assumir uma variante altamente perigosa e destrutiva, sobretudo quando a busca humana incessante pela estima pública for acompanhada pelo desejo de querer ser a qualquer custo superior aos seus semelhantes. Ora, é justamente nesse contexto que o amor próprio transforma-se nas paixões odientas e raivosas, conduzindo o ser humano ao orgulho, à vaidade e à petulância (prepotência). De outra parte, a força motriz do amor próprio pode assumir variante construtiva, culminando na ideia do reconhecimento recíproco, que é a base da cidadania republicana constituída democraticamente por seres livres e iguais. Esse é, em síntese, o núcleo da dupla variante que constitui o amor próprio e que Honneth toma de empréstimo da hermenêutica competente que Frederick Neuhouser faz do texto de Rousseau. Com base nisso, Honneth volta-se primeiramente à variante negativa e analisa o modo como ela alimenta a crítica rousseauniana à cultura. A crítica ao teatro serve-lhe como modelo paradigmático, uma vez que, ao se voltar contra o projeto de implantação do teatro em Genebra, Rousseau teria arrolado uma gama diversificada de argumentos para mostrar em que sentido o palco simboliza o refinamento do amor próprio pervertido. Com o teatro, os cidadãos e cidadãs aprendem a 803 troca de papéis, incorporando de tal forma suas características que terminam por ficar convencidos da verdade de seus novos papéis. Além disso, os atores teriam a capacidade de infectar o público com o vírus do simples parecer, transformando-o enganosamente na esfera do ser. Como atividade cultural central de sua época, o teatro aguçaria, então, segundo Rousseau, o aspecto destrutivo do amor próprio, fomentando a lógica do parecer em detrimento do ser. Sendo assim, a cultura teatral colocarse-ia na contramão da comunidade republicana, alicerçada no cumprimento do dever e nos valores de sinceridade e orgulho da cidadania (HONNETH, 2012a, p. 49-50). Contudo, segundo Honneth, Rousseau já havia elaborado, dois anos antes, no Segundo Discurso, essa tendência cultural de afetação do aspecto destrutivo do amor próprio. Em tal escrito, já se encontra empregado o conceito de amor próprio para designar, como “segunda natureza”, esse modo de relacionamento humano surgido com a sociabilidade e que põe a busca por estima pública como base de constituição do próprio laço social. Recorrendo à Observação XV do Segundo Discurso, na qual Rousseau estabelece a famosa distinção entre amor de si e amor próprio, Honneth acentua a forma negativa que o amor próprio assume aí, como “fonte contínua do impulso, para o [ser humano] poder provar-se como superior em relação ao seu semelhante” (HONNETH, 2012a, p. 51). Ora, é justamente nessa procura incessante por superioridade em relação aos seus semelhantes que Rousseau localiza, no Segundo Discurso, a raiz de todas as patologias sociais de seu tempo. Honneth resume lapidarmente o ponto em questão: O que ontem ainda podia valer em relação à riqueza, ao poder e à beleza como sinal de uma superioridade individual, deve hoje ser novamente sobrepujado em razão da ampliação social, de tal modo que domina em todos os campos de concorrência uma tendência de elevação 804 incontrolável da conduta de distinção (HONNETH, 2012a, , p. 52). Em resumo, como atestam então o Segundo Discurso e a Carta a D’Alambert, Rousseau deixou-se orientar, em sua ampla crítica à cultura, pela variante negativa do amor próprio: a busca incontrolável por superioridade e a obsessão pela distinção em relação aos seus semelhantes são duas tendências que formam a dinâmica destrutiva do desenvolvimento cultural humano. Contudo, no Émile, a variante positiva assume sua dianteira, mostrando com isso a insatisfação do filósofo em relação ao aspecto prejudicial e destrutivo do amor próprio. Honneth reconhece que não é tão fácil assim para Rousseau provocar a passagem do aspecto negativo para o positivo do amor próprio. Segundo ele, para que tal passagem pudesse ser efetuada com força e mais clareza, Rousseau deveria ter acentuado as condições mediante as quais a necessidade patológica do ser humano de mostrar sua superioridade em relação aos seus semelhantes ficasse suprimida pelo autojulgamento mediado intersubjetivamente (HONNETH, 2012a, p. 5253). Em outros termos, a variante positiva do amor próprio toma efetivamente a dianteira em passagens do Émile onde fica estabelecido o respeito recíproco como vetor da sociabilidade humana. É nessas passagens que Rousseau traça o ideal formativo do Emílio, mostrando o quanto a simplicidade e a moderação são decisivos para sua formação virtuosa, voltando-se contra a vaidade e a soberba. Testemunhos da variante positiva do amor próprio são, então, exatamente aquelas passagens do Émile nas quais Rousseau procura enfrentar o inevitável problema da educação do amor próprio de seu aluno fictício. Para Honneth, o núcleo dessa tarefa educativa repousa na proposta feita por Rousseau de “ampliação” do amor próprio até a virtude. Assim argumenta ele: “Falar sobre a ampliação do amor próprio significa então precisamente Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento... familiarizar os sujeitos com a concepção de que eles precisam do reconhecimento social recíproco e, por isso, devem renunciar ao espírito forte de concorrência que visa à superioridade” (HONNETH, 2012a, p. 53). Portanto, mostrando ao seu aluno fictício a importância da dependência recíproca, Rousseau queria evitar que seu amor próprio fosse infectado pelo vírus da soberba e do desejo de superioridade (vontade de dominação). Com isso, encontrou a forma temperada do reconhecimento social na expressão “respeito entre iguais”, pondo-a como alternativa à tendência destrutiva do amor próprio. Desse modo, pela interpretação de Honneth, podemos ver que “dependência recíproca” e “respeito entre iguais” constituem o núcleo da educabilidade do amor próprio, pois são esses dois aspectos que, segundo Rousseau, impedem que a variante negativa do amor próprio assuma a dianteira na formação do aluno fictício. Ora, segundo Honneth, se compreendermos desse modo o tratamento pedagógico oferecido por Rousseau ao amor próprio no Émile, não será tão difícil entender os motivos que fazem o filósofo genebrino aparecer em geral, na atualidade, como teórico do reconhecimento. Além da vontade de dominação (busca obsessiva pela posição superior em relação aos demais), o amor próprio é constituído pela necessidade de “se fazer valer como alguém aos olhos de seus parceiros sociais e poder desfrutar com isso uma forma de valor social” (HONNETH, 2012a p. 53). Não há dúvida que Honneth toca aqui no aspecto crucial do pensamento de Rousseau e que está no centro de sua concepção de justiça e dignidade humana. Dent, grande especialista em Rousseau no âmbito da pesquisa anglo-saxônica, sintetiza isso de maneira clara por meio do conceito de “personalidade moral”. Assim afirma ele: “A ‘personalidade moral’, no entender de Rousseau, é a necessidade humana fundamental para cada pessoa de ser reconhecida e respeitada por outros como alguém que importa e que tem valor e dignidade sem depender de ninguém” (DENT, 1996, p. 149). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. O importante, para meu ponto, é que Honneth destaca o papel indispensável que a variante positiva desempenha no pensamento de Rousseau, formando o alicerce de sua teoria educacional. Sob esse aspecto, vale a pena traduzir na integra uma passagem de seu referido ensaio, que resume bem seu argumento: Rousseau está sendo muito consequente quando expõe, em sua obra educacional, os critérios pedagógicos que disponibilizam aos adultos, desde sua mais tenra idade, a consciência sobre a igualdade social. Pois, somente quando o indivíduo aprende a se considerar como igual entre iguais, é que ele pode se compreender simultaneamente como colaborador daquele “outro generalizado”, de cuja formação do juízo ele próprio depende para a satisfação de seu amor próprio (HONNETH, 2012a, p. 54). Ou seja, por ser considerada como valor insubstituível, a igualdade social precisa fazer parte do mundo do ser humano já em sua primeira infância. Mais uma vez, torna-se claro o quanto é importante, para a formação do aluno fictício, a consciência sobre a dependência social e o respeito recíproco entre iguais, pois são esses dois aspectos que propiciam uma satisfação positiva do amor próprio e, com isso, da realização pessoal do próprio sujeito. Em conclusão, a reconstrução acima nos dá uma ideia geral do quanto a teoria da ambiguidade do amor próprio, mediada pela interpretação de Neuhouser, foi capaz de alterar significativamente a posição de Honneth, a tal ponto que o levou a considerar, sem maiores dificuldades, Rousseau como fundador da teoria do reconhecimento. Muito longe estamos aqui, então, daquele Rousseau simplesmente enquadrado na formulação da liberdade reflexiva e como puro pioneiro intelectual da distinção entre heteronomia e autonomia. Reconstruir brevemente como Honneth formula essa sua apreciação convencional do pensamento do genebrino em seu livro O direito à liberdade é o objetivo do tópico seguinte. 805 Rousseau como fundador da liberdade reflexiva No prefácio de O direito à liberdade, Axel Honneth revela que, embora o trabalho nessa obra tenha lhe custado cinco longos anos, ao terminá-la, teve o impulso, percebendo sua incompletude, de querer iniciá-la novamente. De qualquer forma, trata-se de um trabalho extenso, de muita coesão e profundidade argumentativa, representando sem dúvida um estágio avançado na maturidade intelectual do autor. Sem correr o risco de cair no pedantismo, esbanja erudição, passando em revista várias tradições filosóficas, políticas e jurídicas, tanto modernas como contemporâneas. A consideração a Rousseau ocupa um lugar infinitamente pequeno na exposição de Honneth, considerando, por um lado, a enorme extensão da obra e, por outro, o papel destacado que o pensamento do genebrino desempenha no cenário filosófico da modernidade. Não seria nada descabido imaginar, caso Honneth desejasse realmente reescrever essa sua grande obra, não só o lugar de maior destaque que daria a Rousseau, como também o modo diferente como abordaria o pensamento do genebrino. De qualquer sorte, Rousseau é tratado aí como pioneiro intelectual da liberdade reflexiva, sendo considerado, mais precisamente, como teórico originário da autonomia da vontade e como fundador da distinção entre ação heterônoma e ação autônoma. Ou seja, como verdadeiro precursor de Kant, passa longe da noção de liberdade social. Antes de reconstruir em detalhes esse núcleo da interpretação de Honneth, preciso inseri-la, resumidamente, nos propósitos mais amplos de sua grande obra, O direito à liberdade. A primeira parte do livro O direito à liberdade é dedicado à “apresentação histórica” da liberdade individual. O autor compreende por liberdade individual a autonomia do indivíduo, concebendo-a como valor ético dominante da sociedade moderna, que impregna também decisivamente sua ordem institucional. O pensamento da autonomia tornou-se tão 806 poderoso na modernidade porque foi o único valor ético capaz de vincular sistematicamente o si mesmo (Selbst/Self) e a ordem social. Sendo assim, do mesmo modo como a liberdade individual oferece representações da ideia do bem ao indivíduo, ela também oferece indicações para uma ordem social legítima (HONNETH, 2012a, p. 36). Fica posta então, desse modo, a exigência do nexo estreito entre liberdade individual e justiça social e, mais precisamente, a exigência de que qualquer representação de justiça precisa ser remetida à autodeterminação individual. Se a ideia de justiça depende do esclarecimento da noção de liberdade individual, então é precisamente sua diferenciação tripartite na modernidade que deve ser investigada. Ora, é na pesquisa dos três modelos que constituem a liberdade individual que Honneth se volta ao pensamento de Rousseau. Antes disso, ele oferece uma exposição resumida de Hobbes, tomando-o como exemplo do modelo negativo de liberdade. Hobbes teria oferecido, aos seus olhos, um modelo negativo de liberdade porque a concebeu como independência das coações externas, justificando com base nisso o sistema social do egoísmo. No que diz respeito à liberdade reflexiva, Rousseau é tomado como seu pioneiro intelectual, estando na origem das duas versões elaboradas posteriormente: liberdade reflexiva como autolegislação (Kant) e como autorrealização (Herder). Para justificar essa inserção de Rousseau na concepção reflexiva de liberdade, Honneth toma “a profissão de fé do vigário saboiano” como referência textual. É nesse longo interlúdio inserido no livro quarto do Émile que Rousseau discute dois temas que serão decisivos para o desenvolvimento posterior da liberdade reflexiva, principalmente para a sua versão kantiana: o tema da vontade e, diretamente vinculado com ele, o da distinção entre ação heterônoma e ação autônoma. Esses dois temas estão sustentados pela tese, formulada textualmente em Do Contrato Social, de que o sujeito é livre somente quando pode Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento... determinar a si mesmo. Ou seja, de acordo com essa obra jurídica e política de Rousseau, vontade livre é aquela que pode dar-se a si mesma a lei. “A profissão de fé do vigário saboiano” torna-se importante aos propósitos de Honneth porque é aí que Rousseau abordaria, segundo ele, as transformações necessárias ao conceito de natureza humana para poder justificar a autonomia da vontade. Nesse sentido, seu ponto de partida consiste em abordar a natureza humana como constituída pela tensão entre vontade e desejo, e a questão pedagógica moral decisiva, formulada no livro quarto do Émile, consiste em saber como o aluno fictício pode ser educado para a autodeterminação. Desse modo, Honneth não ignora em sua abordagem que o núcleo do projeto educacional dessa obra pedagógica rousseauniana repousa na formação humana para a maioridade. Segundo ele, é nesse contexto que se põe o problema da liberdade e da autonomia da vontade, remetendo tal problema diretamente à distinção entre heteronomia e autonomia. Considerando a definição de natureza humana e o problema da determinação (autonomia) da vontade, Honneth define ação heterônoma como aquela que se deixa orientar pelas inclinações sensíveis. Ela não é livre porque depende das “leis do corpo”, isto é, da causalidade natural. Sem ter as forças suficientes para dominar suas paixões, o ser humano não age de acordo com sua própria vontade, cedendo a todo o momento ao poder de suas inclinações. Estando vulnerável aos seus desejos, ele distancia-se da ação virtuosa. O autor define ação autônoma, por sua vez, como aquela que segue o que é determinado pela vontade e não pelos desejos. No entanto, entre ação e vontade se interpõe a lei, sendo a vontade livre aquela que se deixa determinar pela lei que ela dá a si mesma. Nesse sentido, a autonomia da vontade permite ao sujeito que realize em sua ação aquilo que originariamente era sua intenção, ou seja, o Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. que ele próprio escolheu de maneira racional e livre (HONNETH, 2012a, p. 61). Em síntese, Rousseau antecipa o núcleo da versão reflexiva de liberdade, na medida em que a faz repousar na capacidade da vontade dar a si mesma a lei (ideia de autolegislação). Ele formulou tal definição com base na distinção entre vontade e desejo, fazendo resultar dela também a distinção entre ação heterônoma e ação autônoma. Uma vez resumido o núcleo da interpretação que Honneth faz de Rousseau em O Direito à liberdade, pretendo mostrar, na sequência, que se Rousseau, como o próprio Honneth comprovou, é o teórico do reconhecimento, não pode ser tomado tão só como precursor da liberdade reflexiva. Também pretendo dar um passo além, mostrando que a educabilidade do amor próprio depende, como modo de enfrentamento da destrutividade do amor próprio, da formação virtuosa da vontade. Formação da vontade como educação do amor próprio Na parte final do ensaio, pretendo assinalar minha crítica ao tratamento oferecido por Honneth a Rousseau em sua obra Das Recht der Freiheit, baseando-me em duas ideias: a primeira ampara-se na identificação entre aquilo que Honneth concebe como variante positiva do amor próprio e a concepção de liberdade social que ele reconstrói do pensamento de Hegel; a segunda ideia refere-se ao vínculo entre educabilidade do amor próprio e formação virtuosa da vontade. No que diz respeito à primeira ideia, o próprio Honneth já deixa entender, em seu ensaio Untiefen der Anerkennung, embora sem seguir firmemente nessa direção, que o Rousseau teórico do reconhecimento estaria muito próximo da concepção de liberdade social. No entanto, para que possamos torná-la uma direção segura, basta acentuar a semelhança existente entre, por um lado, a definição oferecida por ele do reconhecimento recíproco no referido ensaio e, por outro, a noção hegeliana de liberdade 807 social que apresenta no livro Das Recht der Freiheit. A meu ver, ambas convergem na noção de “respeito mútuo entre iguais”, pois o que Rousseau concebe como variante positiva do amor próprio no Émile antecipa a própria exigência do “ser para si mesmo em outro”, que Hegel põe como condição da liberdade social. Desse modo, ambos, Rousseau e Hegel, compartilham a mesma tese de que a ação virtuosa só pode ocorrer de forma cooperativa, na vida em sociedade. No caso especificamente de Rousseau, são as misérias comuns e a fraqueza do ser humano que o impelem à vida social e à humanidade. Ele deixa isso claro na seguinte passagem do livro quarto do Émile: É a fraqueza do homem que o torna sociável; são nossas misérias comuns que incitam nossos corações à humanidade: nada lhe deveríamos se não fôssemos homens. Todo o apego é sinal de insuficiência: se nenhum de nós tivesse necessidade de outrem, não pensaria em unir-se a ninguém (ROUSSEAU, 1992, p. 246).7 Portanto, o vetor da sociabilidade virtuosa consiste aqui, de acordo com essa passagem, não na vontade do ser humano de querer buscar incessantemente uma posição superior em relação aos outros, deixando-se mover pela vaidade e ambição desmesurada (variante negativa do amor próprio). Repousa sim na condição humana frágil e vulnerável, pois é daí que brota o próprio sentimento de humanidade que une todos os seres humanos entre si.8 Orientar a educação do jovem Emílio na direção de uma vontade virtuosa, que repousa 7- No original: “C’est la faiblesse de l’homme qui le rend sociable: ce sont nos misères communes qui portent nos coeurs à l’humanité, nous ne lui devrions rien si nous n’étions pas hommens. Tout attachement est um signe d’insuffisance: si chacun de nous n’avoit nul besoin des autres il ne songeroit guères à s’unir à eux” (OC IV, 503). 8- Martha Nussbaum interpreta o problema na mesma direção: “Na teoria da educação de Rousseau, o aprendizado sobre a debilidade básica do ser humano é um elemento central, pois só o reconhecimento desta debilidade nos permite transformar-nos em seres sociais e, portanto, formar a humanidade” (NUSSBAUM, 2010, p. 60). 808 nesse sentimento de humanidade, é uma das principais tarefas do livro quarto do Émile. Em síntese, segundo a concepção rousseauniana, não pode existir sujeito virtuoso fora da sociedade, uma vez que a ação virtuosa depende sempre de estruturas sociais de reconhecimento. Tudo isso constitui, posteriormente, a base da filosofia social de Hegel, antecipada, no entanto, originariamente, em seus traços gerais, pela teoria rousseauniana do amor próprio. Portanto, se Honneth, ao escrever sua grande obra Das Recht der Freiheit, já tivesse interpretado Rousseau como teórico do reconhecimento e prestado cuidadosa atenção ao aspecto construtivo do amor próprio, certamente o teria concebido também como pioneiro da concepção social de liberdade. De outra parte, embora existam muitas semelhanças entre Rousseau e Hegel, não posso deixar de assinalar uma diferença importante. A “Profissão de fé do vigário saboiano” não desenvolve um programa detalhado de como a liberdade se encarna nas instituições éticas e como seria por elas realizada. Trata-se aí, é verdade, de preparar o ingresso virtuoso do jovem Emílio na sociedade, mas não na forma de uma exposição das instituições sociais e da suposta eticidade a elas inerente. Rousseau é extremamente crítico em relação ao espírito cultural e científico, não vendo com bons olhos o estado em que se encontravam as instituições sociais e culturais de sua época. Também é preciso considerar, nesse contexto, que, embora Rousseau não tenha desenvolvido obviamente uma filosofia do direito nos termos hegelianos, antecipou, contudo, a meu ver, aspectos decisivos dela como propedêutica formativa da vontade do aluno fictício, colocando em sua base o exercício da virtude. Uma passagem do livro quarto do Émile ilustra bem essa ideia: “o exercício das virtudes sociais leva ao fundo dos corações o amor à humanidade: é fazendo o bem que nos tornamos bons; não conheço nenhuma prática mais segura” (ROUSSEAU, 1992, p. 284).9 Ou seja, em 9- No original: “l’éxercice des vertus sociales porte au fond des coeurs l’amour de l’humanité; c’est en faisant le bien qu’on devient bon, je ne connais point de pratique plus sure” (OC IV, 543). Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento... outros termos, é por meio da prática da virtude que podemos cristalizar em nossos corações o amor à humanidade e, com isso, tornarmo-nos sujeitos justos, uma vez que Rousseau considera a justiça como a virtude principal. Por fim, volto-me agora para a imbricação entre educação do amor próprio e formação moral da vontade. Como já afirmei antes, Honneth, ao conceber desde o início a interpretação de Neuhouser como contrária à posição de Cassirer, assume a teoria do amor próprio sem dar a devida atenção ao problema da formação virtuosa da vontade e, com isso, tangencia o aspecto nuclear do projeto educacional do Émile. Sendo assim, não consegue extrair todas as consequências que a teoria da educabilidade do amor próprio possui para pensar uma ordem social justa. Ele incorre nesse limite porque padece do mesmo pathos de outras grandes interpretações do pensamento de Rousseau que tendem a considerá-lo somente a partir Do Contrato Social, não sendo capazes, desse modo, de vincular os problemas jurídicos e políticos aí contidos com o indispensável problema da formação virtuosa da vontade. Elas ignoram, portanto, o quanto o direito e a política são profundamente devedoras, no pensamento de Rousseau, de uma teoria da virtude. É bem verdade que, como vimos, Axel Honneth não desconsidera, de modo algum, a importância do Émile, sobretudo, porque, segundo ele, inspirando-se na interpretação de Frederick Neuhouser, é nessa obra que Rousseau vê na educação do amor próprio a maneira mais eficaz de enfrentar a corrupção social e a barbarização da moral diagnosticadas nos escritos de crítica à cultura. Honneth põe-se também na direção certa quando concebe a ampliação do amor próprio até a virtude, concebendo-a como solução encontrada por Rousseau para tratar da periculosidade do amor próprio. Contudo, permanece a meio caminho quando atribui somente ao reconhecimento social recíproco a força capaz de ampliar o amor próprio até a virtude. Ignora, com isso, que, na arquitetônica pedagógica de Rousseau, o aluno fictício só adquire consciência sobre a Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. importância do respeito recíproco entre iguais por meio do longo, tenso e inesgotável processo educativo de seu amor próprio, o qual depende da capacidade de determinação da vontade. Talvez por se deixar intimidar pela obscuridade do conceito rousseauniano de vontade ou por ter visto nele somente a sombra kantiana projetada por Cassirer, ignorou que foi justamente na educação virtuosa da vontade que Rousseau pensou ter encontrado o principal antídoto à variante negativa do amor próprio. Podemos nos perguntar agora: por que a educabilidade do amor próprio depende da formação da vontade? Um ingresso pontual no Émile é indispensável para esclarecer essa questão. Nesse texto, como em outras obras de Rousseau, o amor próprio é concebido com um dos principais sentimentos humanos, que pode inclinar-se tanto aos vícios quanto à virtude. Essa dupla direção (inclinação) constitui o núcleo da própria teoria da ambiguidade do amor próprio. Contudo, por ser um sentimento, o amor próprio não pode agir por si mesmo, precisando ser, nessa condição, impulsionado por outra coisa. Ora, a vontade significa exatamente esse impulso, tornando-se, desse modo, a força movente do amor próprio. Quando dirigida construtivamente, essa força tornase virtude. Desse modo, a virtude nada mais é do que o impulso ético da vontade, fazendo o amor próprio canalizar suas forças (paixões) na direção construtiva. Ou seja, quando é movido pelo amor à justiça, o amor próprio torna-se cooperativo e solidário, deixando de ser vaidoso e petulante, enfim, egoísta. Rousseau torna isso claro em uma passagem importante do Émile, localizada quase ao final dessa obra. Assim afirma ele: “A palavra virtude vem de força; a força é a base da virtude; a virtude só pertence a um ser fraco por natureza e forte por sua vontade; é só nisso que consiste o mérito do homem justo [...]” ( ROUSSEAU, 1992, p. 535).10 Com isso, fica claro, então, que a ��� - No original: “Le mot vertu vient de force; la force est la base de toute vertu. La vertu n’appartient qu’à un être faible par sa nature et fort par sa volonté; c’est en cela que consiste le mérite de l’homme juste [...]” (OC IV, 817). 809 virtude (justiça) brota da ação dirigida pela força da vontade e não pelo impulso dos desejos e inclinações. A própria justiça, como uma virtude cardinal da teoria moral rousseauniana, repousa na força da vontade. Podemos ver, com isso, o quanto a orientação normativa dessa força movente torna-se decisiva, pois, se for dirigida pela virtude (justiça), também proporcionará uma ampliação construtiva do amor próprio. Portanto, o vínculo da teoria do amor próprio com a formação virtuosa da vontade é o núcleo do pensamento filosófico e pedagógico de Rousseau, porque serve tanto para “corrigir” a tendência pessimista de seus escritos de crítica à cultura quanto para oferecer a base formativoeducacional necessária aos ideais normativos que sustentam a concepção antropológica, política e jurídica do genebrino. Justamente nesse contexto é que se deixa compreender a afirmação da “ampliação do amor próprio”, que Honneth considera acertadamente como aspecto central da contraposição à variante negativa do amor próprio. Assim se expressa Rousseau: “Estendamos o amor próprio sobre os outros seres, nós o transformaremos em virtude, e não há coração humano em que essa virtude não tenha sua raiz” (ROUSSEAU, 1992, p. 288).11 Ou seja, a ideia da ampliação do amor próprio implica a ruptura com sua própria perspectiva individualista egocêntrica, exigindo que o ser humano inclua em sua própria ação o ponto de vista dos outros. Mas Honneth se ateve somente à ampliação do amor próprio, desconhecendo que essa teoria positiva da virtude é precedida, na arquitetônica pedagógica do Émile, por uma teoria negativa da virtude, a qual tem como meta principal a “contenção” do amor próprio na fase educativa inicial do aluno fictício. Uma breve referência a essa dupla teoria da virtude é indispensável para ver o quanto a formação da vontade torna-se a força movente da educabilidade do amor próprio e quanto a ��- No original: “Etendons l’amour-propre sur les autres êtres, nous le transformerons em vertu, et il n’y a point de coeur d’homme dans lequel cette vertu n’ait sa racine” (ROUSSEAU, 1959-1995, p. 547). 810 interpretação de Honneth é, nesse aspecto, parcial e restritiva. Cabe resumir agora, então, esquematicamente, em forma de conclusão, como essa dupla teoria da virtude ganha forma na arquitetônica pedagógica do Émile. Enquanto a exposição da teoria negativa da virtude ocorre nos três primeiros livros, a teoria positiva ocorre nos livros quarto e quinto do Émile. Cada um desses dois momentos contém muitos problemas filosóficos e pedagógicos, mostrando o quanto Rousseau se aprofundou na compreensão da condição humana e na análise da sociedade de sua época e, por fim, o quanto apostou na formação da vontade como núcleo diretivo da educabilidade do amor próprio. Primeiro, sobre a teoria negativa da virtude. Não sendo ela a formação moral propriamente dita, serve sim como sua propedêutica, uma vez que tem como tarefa principal ensinar o educando fictício a evitar os vícios. A teoria negativa da virtude, constituindo o núcleo da educação natural12 como educação negativa, assenta-se no princípio pedagógico da educação pelas coisas, dependendo, nesse sentido, da arte de encenação pedagógica do educador.13 Desse modo, o processo de reconhecimento recíproco que ocorre nesse âmbito da arquitetônica pedagógica restringe-se consideravelmente à relação entre educador e educando. Rousseau faz propositalmente essa restrição porque acredita que a fase da infância – abrangendo primeira, segunda e terceira infância –, deve ser de quase inatividade do amor próprio. Desse modo, é tarefa da educação natural postergar pelo menos até a puberdade o florescimento do amor próprio, coibindo com isso que sua dimensão inflamada e venenosa assuma a dianteira na formação do si mesmo do educando. 12- Tratei sistematicamente desse tema no meu livro Educação natural em Rousseau (DALBOSCO, 2011c). 13 - Ou seja, Rousseau concebe como tarefa principal do educador criar os cenários pedagógicos adequados, levando em consideração, sobretudo nessa fase em que o educando se encontra, o ambiente natural, envolvendo passeios na floresta, caminhadas no campo e brincadeiras no escuro. Sobre esse tema, ver a exposição oportuna de Alfred Schäfer (2002, p. 94). Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento... Em síntese, a teoria da virtude ocupa-se nessa fase da justificação do aspecto natural e negativo da educação. Tal aspecto é natural porque o que está em jogo na educação do aluno fictício é a formação de noções básicas sobre o que são suas necessidades naturais e quais são os modos mais adequados de satisfazê-las. O núcleo das relações educativas é orientado aí pela tensão entre as necessidades da criança e os cuidados do adulto. De outra parte, o aspecto dessa educação é negativo porque não se trata ainda de ampliar o amor próprio até a virtude, mas de contê-lo em relação aos vícios. Contudo, o que em princípio aparece só como negativo nessa “contenção” do amor próprio, converte-se, nos três primeiros livros do Émile, numa dimensão positiva, pois ela está a serviço do desenvolvimento de outras capacidades (potencialidades) do educando, transformando-se na propedêutica da posterior formação virtuosa da vontade do aluno fictício. É nesse sentido que a teoria negativa da virtude assume a forma de uma “física experimental”, cuja tarefa principal consiste em fortalecer o corpo e refinar os sentidos do educando. Ora, o fortalecimento do corpo e o refinamento dos sentidos, além de constituírem a propedêutica da formação virtuosa da vontade, funcionam também como mecanismo poderoso de preparação do terreno para a germinação futura da consciência cidadã, indispensável ao exercício republicano democrático de iguais entre iguais. Por fim, no que diz respeito à formação virtuosa da vontade, seu coração localiza-se no livro quarto do Émile, sendo também complementado, em sua dimensão política, pelo livro quinto. Há aqui uma mudança substancial em relação à teoria negativa da virtude, pois a formação do jovem Emílio ocorre num contexto educacional ampliado, não mais restrito à relação tripartite entre educando, educador e natureza. Trata-se, na verdade, de pensar sua formação num contexto marcado pela dupla e significativa ampliação: do amor próprio e da sociedade. Na condição de pleno florescimento Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. de seu amor próprio, Emílio percebe o quanto se ampliam diante de si tanto a ação social quanto a teia institucional que constitui a sociedade como um todo. O intenso desenvolvimento de seu amor próprio, representado pela explosão de suas paixões, é acompanhado pela possibilidade real de ampliação da esfera pública destinada à sua ação. É justamente aí que a formação virtuosa da vontade assume o papel de timoneiro no sentido de orientar as paixões e, com isso, contribuir para que predomine a variante construtiva do amor próprio. Rousseau esboça o “programa” de formação virtuosa da vontade de maneira meio tortuosa, recorrendo a um conteúdo assistemático, formado por teses e princípios polêmicos. Para o que interessa agora ao meu ponto, cabe destacar que seu núcleo repousa no “amor à humanidade”, materializado pelo amor à justiça. Como ele próprio afirma: “o amor ao gênero humano não é outra coisa em nós senão o amor à justiça” (1992, p. 288). O amor à justiça torna-se uma virtude poderosa capaz de canalizar construtivamente a força do amor próprio na direção do respeito recíproco entre iguais. Desse modo, vontade virtuosa é aquela capaz de assegurar a igualdade nas relações humanas e sociais, pois Rousseau está convicto de que é pelo princípio da igualdade que se pode assegurar a justiça na vida republicana.14 Com o arrazoado acima, penso ter deixado claro, por um lado, o quanto a educabilidade do amor próprio depende da formação virtuosa da vontade e, por outro, o quanto o reconhecimento recíproco entrelaça-se com a concepção de liberdade social. Sendo assim, fica reafirmada uma dupla conclusão, já antecipada na introdução do ensaio: a primeira é de que Rousseau só pôde fundar a teoria do reconhecimento porque formulou embrionariamente uma concepção de liberdade social. A segunda conclusão confirma a ideia de que as interpretações de Cassirer e Neuhouser, 14- Na atualidade, John Rawls (2012), também se deixando influenciar fortemente pela teoria do amor próprio de Neuhouser, considera o princípio da igualdade como núcleo da teoria da justiça de Rousseau. 811 ao contrário do que afirmou Honneth, complementam-se mutuamente, pois, como acabei de mostrar, a educação do amor próprio depende de um amplo “programa” de formação da vontade, duplamente esboçado, como teoria negativa e positiva da virtude. Referências CASSIRER, Ernst. Das Problem Jean Jacques Rousseau. Darmstadt: WBG, 1975. DALBOSCO, Claudio Almir. Aspiração humana por reconhecimento e educação do amor próprio em Jean-Jacques Rousseau. 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Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão, nas primeiras décadas do século XX, produziu um estudo decisivo no qual a linguagem não pode ser considerada como mero instrumento de elaboração dos dados da realidade nem como simples abstração, mas é pensada como campo no qual emerge uma intrincada rede de relações entre conhecimento e experiência. Para o filósofo, a linguagem é o médium espiritual e histórico da experiência. O conceito de Erfahrung (experiência) atravessa toda a sua obra: desde um texto de juventude, escrito em 1913, intitulado Erfahrung (1933), em que o autor contesta o desinteresse dos entusiasmos juvenis em nome da experiência dos adultos, às teses de 1940. Esse conceito está intrinsecamente relacionado, em seus escritos, ao pensamento de que todas as manifestações e expressões humanas podem ser concebidas como linguagem e, essa, por sua vez, é então pensada na sua dimensão simbólica, ao contrário do que pretendiam os filósofos do esclarecimento quando apontavam, como condição para o verdadeiro conhecimento, uma racionalidade que separava o imaginário do pensamento. Na contramão do pensamento iluminista científico, o paradigma estético é fundamental nos escritos benjaminianos. A partir do acolhimento do conceito na imagem, evidenciam-se novas formas de conhecer. Nessa perspectiva, tentaremos discutir o pensamento de Benjamin, mostrando as articulações e rupturas engendradas com as problematizações constituídas a partir das conexões existentes entre linguagem e experiência e sua relação com o campo educativo. Palavras-chave Experiência — Linguagem — Conhecimento — Walter Benjamin. I- Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041524 813 Experience and language in Walter Benjamin Eloiza Gurgel PiresI Abstract This article presents a reflection on Benjamin’s theory of language. Walter Benjamin, German philosopher and literary critic in the early twentieth century, produced a landmark study in which language cannot be considered a mere instrument of development of data from reality nor a simple abstraction, but it is thought as a field in which an intricate network of relationships between knowledge and experience emerges. For the philosopher, language is the spiritual and historical medium of experience. The concept of Erfahrung (experience) permeates all his work: from a text written in 1933, when he was young, entitled Erfahrung (1933), in which the author questions the lack of interest in the enthusiasm of the youth in the name of the experience of adults, to the theses of 1940. In his writings, this concept is closely related to the thought that all human manifestations and expressions can be regarded as language, and language, in turn, can then be thought in its symbolic dimension, contrary to what the philosophers of the Enlightenment intended when they indicated, as a condition for true knowledge, a rationality that separated the imaginary from the thought. Contrary to the scientific Enlightenment thought, the aesthetic paradigm is essential in Walter Benjamin’s writings. From the concept image, new ways of knowing are evidenced. In this perspective, we seek to discuss Benjamin’s thought showing connections and ruptures engendered with problematizations formed from connections between language and experience and their relation to the education field. Keywords Experience — Language — Knowledge — Walter Benjamin. I- Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Contact: [email protected] 814 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041524 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. O colecionador de insignificâncias Ler o que nunca foi escrito. Walter Benjamin Na obra de Walter Benjamin, encontra-se um conjunto complexo de reflexões em torno de variadas relações estabelecidas entre história e linguagem, imagem e pensamento, mas, longe de constituírem-se como um pensamento sistemático a respeito da imagem, essas reflexões atestam uma perspectiva original e incontornável acerca do olhar e da natureza da imagem que atravessa o pensamento. Nessa concepção, a imagem é um princípio dinâmico, uma potência do pensamento. Ao pensar a obra de arte e o contexto urbano como medium-de-reflexão, Benjamin pôs em xeque uma concepção linear de conhecimento baseada no continuum da própria história, desenvolvendo a crítica de um determinado modelo de razão e de racionalidade (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 8-9). Nessa crítica, a ciência e a filosofia são pensadas como arte. O filósofo propõe não uma reterritorialização dos saberes, mas, ao contrário, a sua desterritorialização, seguida de uma interrupção, um gesto de descontinuidade na estável cronologia da história. Algo semelhante ao que ocorre no contexto daquilo que Deleuze e Guattari chamaram de labirinto rizomático. Para os autores, a realidade constitui-se como multiplicidade e, como tal, não está contida em nenhuma totalidade, tampouco remete a um sujeito; configura-se como rizoma – vegetal que não tem uma raiz fixada em um ponto, mas possui várias ramificações –, “[...] não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, 2006, p. 32). Nesse sentido, o labirinto rizomático, como metáfora do conhecimento, é algo em permanente construção, uma obra inacabada – aberta – que possui direções movediças, é conectável, modificável. Da mesma forma, o conhecimento é pensado por Benjamin de modo não linear; como uma paisagem urbana, a partir de lugares diferentes, fragmentariamente, nas Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. reconfigurações da memória; não a partir de um lugar fixo, mas movendo-se em uma constelação de ideias. Benjamin propõe saltos, recortes inusitados que desfazem a distinção entre a chamada alta cultura e a cultura popular e quebram o tempo continuum da história oficial. Ao colocar-se a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, o filósofo propõe-se desconstruir a historiografia e os métodos tradicionais de pesquisa a partir de um olhar atento sobre as transformações históricas da percepção humana; sobre as ruínas da modernidade e os estilhaços urbanos das metrópoles; sobre os atos de barbárie que se cometem em nome do progresso – os quais ele presenciou na iminência dos catastróficos acontecimentos europeus da Segunda Guerra. Vale lembrar que esse autor judeu alemão, apaixonado por Paris, foi fortemente marcado pelas contingências históricas que atravessaram toda a primeira metade do século XX, o que refletiu não apenas no teor acentuadamente político de ensaios como Teorias do fascismo alemão (1996), escrito em 1930, e Experiência e pobreza (1996), escrito em 1933, mas também no caráter provisório e descontínuo de trabalhos controvertidos como as Passagens (2006), obra não concluída, escrita entre 19271940. Em setembro de 1940, Benjamin morreu tragicamente. O filósofo cometeu suicídio – após uma árdua jornada pelos Pirineus, quando tentava a travessia da França para a Espanha com o propósito de fugir do nazismo. Com os cacos da história, Benjamin construiu uma obra múltipla, optando por uma escrita não didática, polifônica e não linear; fragmentária e inconclusa, como foi a sua história. Seria um equívoco tentar compreender a obra benjaminiana pelo pensamento das disciplinas; como afirma Arendt (1999). Benjamin divergia do cânone oficial na universidade alemã, aproximando-se da filosofia por via indireta: filosofava de passagem. Estudou a cultura urbana sem ser antropólogo, aventurou-se na história da literatura sem ser historiador 815 e, ao recusar a filologia, método de pesquisa tradicional da academia alemã, rechaçou também o espírito de síntese ou de sistema. Autodenominava-se um pesquisador itinerante, nem filósofo nem teólogo, nem linguista nem tradutor, historiador ou poeta. Era um colecionador de insignificâncias: cartões postais, selos, brinquedos, citações, livros antigos, borboletas. Também trazia consigo algumas cadernetas de notas com endereços, citações e suas observações sobre o cotidiano, além de escrever diários de viagem que mesclavam a sua vida pessoal com reflexões poéticas sobre as fisionomias das cidades. Um exemplo dessa escrita é Diário de Moscou (1989), escrito entre dezembro de 1926 e fevereiro de 1927, por ocasião de uma viagem a Moscou e de seu romance com a atriz russa Asja Lacis, a quem ele dedicou, em 1928, Rua de mão única: “Esta rua chama-se Rua Asja Lacis, em homenagem àquela que, na qualidade de engenheiro, a rasgou dentro do autor” (BENJAMIN, 2000). Benjamin era formado em literatura e filosofia alemã; mesmo que em sua época houvesse uma grande diferenciação dos saberes, não havia a especialização em excesso tal como conhecemos hoje, principalmente no meio acadêmico. Como herdeiro da grande tradição do romantismo alemão (os Irmãos Schlegel, Novali, Hölderlin) e da filosofia alemã em geral, são as relações entre língua/ linguagem e história que lhe interessam. Seu pensamento, de acordo com Gagnebin (2010), nasce e se constitui a partir dessa questão, e não de domínios do saber específico delimitado em disciplinas. Em seus escritos, não se trata apenas de buscar uma reflexão interdisciplinar ou uma troca entre proprietários de territórios científicos, mas há a perspectiva de uma fusão dos saberes, sem hierarquias ou justaposições. Percebe-se nos ensaios de Benjamin algo semelhante ao movimento das linhas de fuga do pensamento, devires que, segundo Deleuze, podem produzir relações dinâmicas e muito complexas mesmo a partir de uma forma 816 simples ou simplificada: “Uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos eixos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 33). Ao sair dos eixos disciplinares, o caminho é o da direção contrária à esperada. Interessa a Benjamin aquilo que foi esquecido pela história, ou simplesmente ignorado pelo racionalismo da modernidade: a literatura e a arte dos surrealistas, dos simbolistas e dos decadentistas; a cultura urbana e seu cotidiano; as experiências com o haxixe. Ele não parte de um lugar fixo, pois entende que a realidade é algo descontínuo. Assim sendo, ao invés de passar lógica e dedutivamente de um elemento a outro, explicitando as conexões, mistura o que se passa nas ruas com o que se passa nas fábricas, nas salas de cinema e na literatura, sobretudo na literatura marginal, bem como na narrativa dos folhetins (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 84-85). Assim é que surgem relações inusitadas estabelecidas entre os escritos de um poeta como Baudelaire e as expressões da multidão urbana e dessa com as técnicas de montagem cinematográfica. Ao redefinir o conceito de verdade e recuperar a linguagem como campo para a resignificação do sujeito e da história, a obra de Benjamin apresenta-nos caminhos que levam a um diálogo entre o conhecimento e a verdade; a sensibilidade e o entendimento: Benjamin reivindica para as ciências humanas outra forma de expor a verdade, forma que se distingue profundamente do que chamamos conhecimento empírico do real e, portanto, questiona os limites rígidos da racionalidade técnica, preconizando um tipo de conhecimento que inclui as paixões e as utopias indispensáveis à vida, sem as quais não há humanidade possível (SOUZA, 2009, p. 187). Recorrendo a metáforas, imagens, alegorias, aforismos e citações, o filósofo constrói uma visão de mundo que não é, certamente, aquela do pensamento sistemático, Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin limitado a operações conclusivas. Ao contrário, trata-se de uma perspectiva que amplia as possibilidades da razão, movendo-se e refazendo-se nas dobras da linguagem. A magia da linguagem Em seus estudos a respeito do drama barroco, Benjamin descobre que, em meio aos resíduos e farrapos de um mundo em ruínas (a Europa do século XVII), o trabalho do alegorista revela algo para além das evidências encontradas nas coisas, nas paisagens. Sob seu olhar, o sentido não nasce tanto da plenitude da eternidade, mas surge da ausência dos objetos, ausência dita e, assim, tornada presente na linguagem. A alegoria revela-se para o filósofo como uma escrita imagética com um enorme poder de significação. Essa descoberta permitiu-lhe, simultaneamente, aprofundar a sua teoria da linguagem. Nas palavras de Benjamin “Todo conhecimento filosófico tem sua única expressão na linguagem e não em fórmulas e números” (BENJAMIN, 1971, p. 111). Entendendo a linguagem como um todo aberto, o conceito de experiência (Erfahrung) estará articulado ao de conhecimento, pois para Benjamin a estrutura da experiência se encontra na base do conhecimento (MATOS, 1993). O conceito de Erfahrung atravessa toda a obra benjaminiana: desde um texto de juventude intitulado Erfahrung (1933), em que o autor contesta o desinteresse dos entusiasmos juvenis em nome da experiência dos adultos, às teses de 1940. O texto denominado Erfahrung é escrito a partir da associação do filósofo ao Jugendbewegung, um movimento reformista educacional, da segunda década do século XX na Alemanha, que pretendia transformar radicalmente a sociedade e a cultura pela ação de uma juventude esclarecida. Esse ensaio expressa o sentimento de insatisfação e decepção do jovem pensador a respeito de um modo de vida adulta, que substitui os valores éticos e espirituais em detrimento dos Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. ideais de progresso técnico e material. Nesse texto, a experiência não é tomada ainda como categoria, como ocorrerá, por exemplo, em seus ensaios sobre Leskov e Baudelaire. A preocupação de Benjamin era a de ressignificar a palavra Erfahrung, apropriada pelos adultos conservadores, e desmistificar o sentido de jugendstil (estilo de juventude), mostrando que esses termos eram utilizados como estratégia pela cultura burguesa com o objetivo de adequá-los ao que era conveniente ao sistema. As intuições juvenis de Benjamin – inscritas sob o marco do movimento da juventude e sob o impacto da Primeira Guerra Mundial emergem, mais tarde, em suas escolhas epistemológicas e nos seus estudos a respeito da modernidade, em uma visão histórica não dissociada da compreensão da linguagem enquanto médium; isto é, o pensar do pensar, experiência relacionada aos processos culturais e sociais. Em um olhar retrospectivo ao texto de 1913, Benjamin escreve: Num de meus primeiros ensaios mobilizei todas as forças rebeldes da juventude contra a palavra ‘experiência’. E eis que agora essa palavra tornou-se um elemento de sustentação em muitas de minhas coisas. Apesar disso, permaneci fiel a mim mesmo. Pois o meu ataque cindiu a palavra sem a aniquilar. O ataque penetrou até o âmago da coisa (BENJAMIN, 2009a, p. 21). Atento à crescente modernização das cidades, à industrialização, às vanguardas artísticas e ao advento da Primeira grande Guerra, Benjamin escreve seu ensaio em um gesto de repúdio à ordem estabelecida. Ele incorpora à juventude um espírito capaz de transformar a sociedade, um espírito pulsante e crítico, não conformado pelo desenvolvimento contínuo da história – leia-se, do progresso. Faltaria ao “adulto que já vivenciou tudo: juventude, ideais, esperanças, mulheres” (BENJAMIN, 2009a, p. 21) sensibilidade para a poesia e as artes. 817 Influenciado pela carga romântica que caracterizou o movimento da juventude, Benjamin confere à experiência dos jovens um estatuto diferenciado. O filósofo faz uma crítica à sociedade hierarquizada na qual a ideia propagada pelos mais vividos, pais, pedagogos, políticos, de que a idade adulta seria a idade da experiência, daqueles que já viveram tudo e possuem a sabedoria, desvaloriza a juventude enquanto potencial de conhecimento e sensibilidade. Para Benjamin, a quantidade das vivências não determina a qualidade das experiências, por isso o filósofo fará uma distinção entre vivência e experiência, sem excluir a possibilidade do erro: Cada uma de nossas experiências possui efetivamente conteúdo. Nós mesmos conferimos-lhe conteúdo a partir do nosso espírito. – A pessoa irrefletida acomoda-se no erro. ‘Nunca encontrarás a verdade’, brada ela àquele que busca e pesquisa, ‘eu já vivenciei isso tudo’. Para o pesquisador, contudo, o erro é apenas um novo alento para a busca da verdade (Espinosa). A experiência é carente de sentido e espírito apenas para aquele já desprovido de espírito (BENJAMIN, 2009b, p. 23). Os adultos, para Benjamin, gabam-se de sua experiência, a qual é esvaziada de sentido quando, segundo o filósofo, restringe-se à mera vivência individual (Erlebnis), em uma sucessão interminável do mesmo, em um cotidiano petrificado. O vazio dessa vivência individual é engendrado por uma ação que se limita a si própria; a qual não faz outra coisa senão repetir a história e reificar a ordem. Ela tende, na verdade, ao apagamento da experiência que a precedeu. De acordo com Giorgio Agamben (2008), essa expropriação da experiência já estava implícita no projeto fundamental da ciência moderna, o qual configurou o “tempo homogêneo e vazio”. Na tranquila cronologia da história, a linguagem perde então a sua dimensão expressiva e reforça a mitologização do cotidiano. 818 A lei do mito é a da repetição, algo que nos remete à brincadeira da criança que busca a satisfação no fazer sempre de novo. Dessa repetição nasce o hábito. Mas, ao contrário do mundo das crianças, no dos adultos a repetição não está sob controle dos agentes, daí a petrificação do cotidiano e sua mitologização. O posicionamento crítico da juventude é, na verdade, um alerta contra o empobrecimento da experiência e do vazio que se forma no cotidiano daqueles que se consideram mais vividos. É também uma forma de ação recordatória, retroativa, que busca retomar por intermédio da memória as potencialidades do passado. O texto Erfahrung constitui esse primeiro momento no qual o filósofo se contrapõe ao conformismo e à indiferença que caracterizaria a idade adulta em relação aos descaminhos da história, a toda sorte de catástrofes que esse tipo de conduta permitiu realizar. O filósofo encontrará em Kant os pressupostos para a formulação de um conceito de experiência total, o qual alude diretamente à ideia de verdade que, sob o prisma da filosofia benjaminiana, é entendida como a não intencionalidade do ser; algo indefinido, indeterminado que preexistiria – como foi exposto no prefácio do Drama barroco alemão – a toda atividade constitutiva do intelecto. A lacônica frase com que Benjamin finaliza seu ensaio Sobre o programa de uma filosofia futura (1917, p. 111), “a experiência é a multiplicidade unitária e contínua do conhecimento”, exprime em poucas palavras a sua proposta para um programa de investigação da experiência e do conhecimento, a partir do tratamento dado por Kant aos mesmos conceitos em seu sistema filosófico. A meta de Benjamin é preservar e concluir o espírito do próprio sistema kantiano no estabelecimento de outra filosofia (não reduzida a mera teoria do conhecimento), baseada fundamentalmente na possibilidade de realização de uma experiência pura, total e contínua. Entre as várias diretrizes mencionadas em seu artigo, destacam-se duas de fundamental importância: a) recuperar o legado Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin kantiano, seu sistema, extraindo e atualizando (por descarte, assimilação e modificação) as noções que poderiam fundamentar um conceito mais amplo, profundo e significativo de conhecimento – em vista de revalidar uma experiência metafísica latente na filosofia de Kant; e b) assegurar a autonomia própria do conhecimento, no estabelecimento de um campo de total neutralidade, fazendo com que o mesmo não se restringisse apenas a uma relação entre sujeito e objeto e nem sequer a uma outra espécie de relação que se desse somente entre entes metafísicos (BENJAMIN, 1971). Por metafísico Benjamin não entende a ciência da natureza, tal como a terminologia crítica a cunhou, e sim em seu sentido etimológico, como toda sorte de experiências que extrapolam o natural, o racional, ou seja, experiências suprarracionais, supranaturais – que se relacionam, por seu turno, à dimensão teológica (MURICY, 1999, p. 73). O esforço empreendido por Benjamin, ao abordar Kant, não foi o de demonstrar a falência de um projeto filosófico, mas sim o de expor os seus limites diante de um conceito de experiência que, de acordo com Benjamin, se daria por intermédio da religião, conhecimento que se apresentaria à filosofia como teoria. Matos (1993) observa a esse respeito que, para Benjamin, o fato de Kant ignorar a experiência religiosa, linguística e até mesmo a estética não é propriamente o sinal da falência de um projeto/sistema filosófico, o kantiano, mas “de quanto esse projeto [...] se ancorava na pobreza da experiência que a época favorecia” (MATOS, 1993, p. 132). Isso porque, com a modernidade, a imaginação foi capturada no conhecimento, a experiência transformou-se em experimento, os sujeitos – na sua incerteza, heterogeneidade e imprevisibilidade – foram desapropriados e, no seu lugar, surgiu um único e novo sujeito – o eu penso cartesiano. Matos (2006, p. 240) afirma ainda que: Há olhares que veem sem ver. O atento olhar cartesiano – o olhar em linha reta – imobiliza Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. o objeto na tentativa de apreendê-lo. Mas a consciência chega tarde demais. A busca de uma racionalidade que faça conhecer sentindo e sentir conhecendo é uma das preocupações da crítica benjaminiana à Razão das luzes, à Aufklärung. Não se trata, para Benjamin, de recuperar algo que nos lembremos, tampouco da consciência que tomamos tarde demais. Procura-se, entre ambos, produzir a situação que permita a coincidência do desejo e do conhecimento do desejo, do presente do conhecimento e do presente da consciência. A hipótese de Benjamin de que o pensamento religioso, via teologia, permitiria restaurar o elo existente entre arte, filosofia e política, denota a insatisfação do filósofo com relação ao conceito de conhecimento de Kant e, portanto, o de experiência que estaria reduzido a fundamento do próprio conhecimento. Isso se deve, sobretudo, ao fato de os princípios do conceito de conhecimento em Kant terem sido extraídos das ciências, especialmente, as físicomatemáticas (BENJAMIN, 1971). A experiência kantiana é, de acordo com Benjamin (1971, p. 101), uma “experiência singular temporalmente limitada demasiadamente objetiva”. Ou seja, Kant estaria, de acordo com Benjamin, preso à visão de mundo do Iluminismo, na qual a experiência se reduz a um ponto zero, a um mínimo grau de significação. Ou seja, a experiência resultaria tão somente da relação da consciência pura com a empírica. Em outras palavras, uma experiência restrita, um conhecimento limitado. Para Benjamin (1971), as limitações desse conhecimento se devem ao modo como Kant considerou a experiência enquanto experimento; como algo meramente mecânico, previsível, mensurável. Para Benjamin, somente na linguagem o conhecimento e a experiência podem convergir. É exatamente na busca da essência linguística do conceito de experiência que Benjamin tentará articular filosofia e religião, valorizando as experiências suprassensíveis e suprarracionais, 819 ignoradas pela epistemologia moderna. Kant, de acordo com Benjamin (1971), não empreendeu uma reflexão acerca da natureza linguística, ignorando, portanto, na sua sistematização, outros campos de conhecimento, qualitativamente distintos. Ao empreender uma revisão crítica da filosofia de Kant, o filósofo permitirá integrar, ao sistema kantiano, elementos que haviam sido excluídos pela insuficiência básica da visão de mundo do esclarecimento. Benjamin recorre ao mito bíblico da criação, a partir do Gênesis, para expor as suas concepções sobre a linguagem. O recurso ao mito, segundo Muricy (1999), é muito significativo de um procedimento utilizado no enfrentamento dos pressupostos teóricos daquilo que se convencionou chamar de a virada linguística do início do século XX, movimento que pôs no centro da reflexão filosófica a última palavra da linguística e das teorias semióticas, deixando de lado, por seu caráter metafísico, a reflexão sobre a natureza da linguagem. Contrariamente às concepções da virada linguística, a teoria da linguagem de Benjamin se opõe a uma perspectiva instrumentalista da linguagem, não a considerando como mero meio de comunicação. O autor vai contra a corrente hegemônica das reflexões filosóficas de matriz científica, recorrendo ao que estava diametralmente oposto a essas matrizes: a Cabala, os místicos, os românticos do círculo de Iena, Friederich Schlegel e Novalis. Em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana (1992), texto escrito em 1916, ao se interrogar sobre a essência da linguagem, Benjamin irá recorrer à teologia e à mística judaica, tornando o seu pensamento, aparentemente anacrônico, algo surpreendentemente atual (SOUZA, 2009, p. 190). Ele foge aos esquemas da linguística de Saussure e da filosofia analítica. Na interpretação do pecado original como fenômeno linguístico, há o reconhecimento de que a linguagem humana é inseparável da dicotomia conhecimento/vida. O texto sugere o fim dessa dicotomia, retomando a essência espiritual humana; recuperando a 820 sua linguagem. É ela, e não a comunicação de conteúdos, que inscreve a natureza no mundo do sentido. Ao contrário da perspectiva cientificista, a linguagem nomeadora não visa à dominação da natureza (D’ANGELO, 2006, p. 12). Benjamin relaciona experiência, língua e essência espiritual em geral – das coisas e dos homens. Em seu texto, a essência espiritual refere-se à linguística e a linguagem das coisas é imperfeita, pois a ela foi negado o princípio formal linguístico: o som. Em sua linguagem muda, a natureza comunica-se de acordo com as possibilidades de uma magia atribuída à matéria. Há, portanto, uma distinção entre a magia imaterial, puramente espiritual da linguagem humana e a magia da linguagem das coisas. Para explicar essa dimensão metafísica da linguagem, o filósofo recorre à origem bíblica segundo a qual, no início, a palavra não era destinada à comunicação entre os homens, mas se constituía como revelação de um saber que dispensava mediações. No nome, a linguagem comunicava a si própria e de maneira absoluta. Depois do pecado original, o homem é condenado a usar a palavra como instrumento de comunicação. Houve, então, a extinção da linguagem adamítica, o que possibilitou o surgimento do verbo propriamente humano. O verbo divino é substituído pela proposição com a qual os homens falam sobre as coisas por meio de atos e julgamentos. Com a queda do homem do paraíso, instaura-se um divórcio entre as palavras e as coisas. Do saber mediatizado pelas abstrações proposicionais emerge um conhecimento do mundo por meio da conversa vazia ou, como o filósofo denominou, da tagarelice (BENJAMIN, 1992). A língua nominal perde sua magia. A perda da linguagem pura, ou o abandono do nome, faz surgir a necessidade de comunicar algo exterior ao próprio nome. A palavra não é mais o lugar da essência espiritual, mas meio de comunicar conteúdos, transmitir informações; comunicar algo exterior à própria linguagem. De acordo com Benjamin, há na linguagem Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin algo comunicável, mas esse algo é a própria linguagem, o que nela se manifesta. Assim, de acordo com o filósofo, tudo o que existe, seja da natureza animada ou inanimada, acontecimento ou coisa, comunica, expressa a sua essência espiritual. A atividade intelectual geradora de ideias ou conceitos não é algo que se comunica através da linguagem, mas na linguagem, ou melhor, a atividade intelectual, ela própria é linguagem. Desse ponto de vista, a linguagem é tomada como a expressão do pensamento, médium-de-reflexão. Nessa visão metafísica da linguagem há a tentativa de compreensão do mundo como revelação, na linguagem, de uma verdade que não se expressa exclusivamente pela abstração conceitual, mas também por meio da experiência sensível. Além disso, com a tese de que “todo conhecimento filosófico tem a sua única expressão na linguagem”, Benjamin elabora um conceito de experiência que permite a construção de um conhecimento capaz de alcançar não o conhecimento de Deus, mas a experiência de Deus. Assim, abre-se o acesso a regiões que nem a filosofia de Kant, nem a cultura iluminista conseguiram alcançar. Conforme Souza (2009, p. 191), “Esta dimensão semântica do mundo dos objetos pode estar encarnada nas palavras da poesia”, que podemos experimentar como um tipo de conhecimento diferente daquele que encontramos no pensamento científico, empírico técnico. Sob a perspectiva benjaminiana, na linguagem poética a verdade é devir (ou desvio); sua forma alegórica e fragmentária de expressão não constitui uma manifestação de irracionalismo, mas uma forma de falar do mundo. Daí o interesse por Baudelaire e As flores do mal, tomados como referência na crítica da modernidade, pois a experiência do poeta diante de um mundo capitalista, reificado, assume uma dimensão ética oposta à do esteticismo a-histórico. Logo, o ato heroico de ir contra a corrente em Baudelaire, Proust, Kafka, Brecht, manifesta-se como resistência aos valores Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. dominantes da cultura burguesa. Contudo, Benjamin não parte de uma análise social da história, e sim de sua materialidade linguística, pois é aí que a história se revela. Quando Baudelaire fala do “difuso temor das noites medonhas que o peito oprimem como um papel que amassa” (BAUDELAIRE,1995, p. 137) ele está revelando uma dimensão do real a qual a análise da sociologia não chega” (D’ANGELO, 2006, p. 19). Para Benjamin, linguagem é tradução, sendo que sua relação com as coisas não é arbitrária; uma palavra não é o signo de uma coisa, não é mera convenção. Não constitui a essência da coisa que nomeia. Mas é na linguagem, enquanto médium, que se traduz o mundo, ou que se torna dizível, poetizável e compreensível a linguagem muda das coisas. Essa tradução na linguagem do homem da linguagem muda das coisas é o próprio movimento que constitui o conhecimento, essencial para se pensar todo e qualquer processo educativo. Em Benjamin, o verdadeiro fundamento do conhecimento não é o sujeito, empírico ou transcendental, mas a linguagem. A concepção mimética da linguagem Os ensaios de Benjamin a respeito da linguagem podem ser divididos em dois grupos: os escritos de juventude, fortemente influenciados pela mística judaica (Da linguagem em geral e da linguagem do homem (1992) e A tarefa do tradutor (1979)), e dois textos curtos escritos depois de 1933, que pertencem à sua fase materialista. Nesses dois últimos textos (Doutrina do semelhante (1996) e Sobre a capacidade mimética (1970)), o conceito de mímesis é um conceito-chave na reflexão benjaminiana. De forma instigante, confere outra dimensão ao pensamento crítico. Benjamin retoma a teoria da mímesis de Aristóteles: a mímesis como um processo de aprendizagem específico do ser humano (especialmente das crianças). 821 Em Aristóteles, o impulso mimético está na raiz do lúdico e do artístico; a aquisição de conhecimentos se dá em um processo prazeroso no qual se desenvolve a faculdade de reconhecer semelhanças e de produzi-las na linguagem (GAGNEBIN, 1999). Nesse caminho esboçado por Aristóteles, a teoria da mímesis induz a uma teoria da metáfora; conhecimento e semelhança, conhecimento e metáfora entretêm ligações estreitas, muitas vezes esquecidas, e até negadas. Nos escritos de Benjamin, a produção mimética estará relacionada, como em Aristóteles, ao jogo e ao aprendizado, ao conhecimento e ao prazer de conhecer. Dentro dessa perspectiva, remetendo-se ao universo infantil, Benjamin contesta a crença de que um suposto preestabelecido conteúdo imaginário do brinquedo vem a determinar a brincadeira da criança. Ao definir esse pensamento como “grande equívoco” (BENJAMIN, 1996, p. 250), ele afirma que a relação da criança com o brinquedo dá-se na direção contrária, é na brincadeira que a criança busca incluir o seu brinquedo ou objeto de brincar”: “a criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se ladrão ou guarda” (BENJAMIN, 2009a, p. 93). A criança não brinca só de comerciante ou de bombeiro (atividades humanas), mas também de trem, de cavalo, de carro ou de máquina de lavar. De fato, a experiência social da criança atualizada na brincadeira e no jogo encontra-se permeada por condutas miméticas, que lhe permitem ir além da sua capacidade de produzir semelhanças para lançar-se à transmutação entre os diversos e possíveis papéis sociais, pelos quais ela transita livremente: entre o ser comerciante ou ser professor, ou entre o personificar-se de moinho de vento ou de trem (BENJAMIN, 2009a). Nos ensaios Rua de mão única (2000), escrito em 1928, e Infância em Berlim por volta de 1900 (2000), escrito em 1938, Benjamin dirige sua crítica para determinadas funções pedagógicas atribuídas a alguns objetos criados para as crianças. A pedagogização do 822 brinquedo é, para o filósofo, o que impede o reconhecimento dos potenciais infantis de se relacionar com o mundo e mesmo de transformar muitos dos sentidos e funções para os quais os brinquedos foram criados: Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos - material educativo, brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis [...]. Em produtos residuais, reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso, as crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas (BENJAMIN, 2000, p. 18-19). Sob a ótica benjaminiana, a educação enquanto formação não é propriedade privada da pedagogia, mas pode ser compreendida como um fenômeno que se realiza no sujeito, como ontogênese, ou seja, como caminhada do ser em um processo infindável. As crianças são reconhecidas, então, como agentes transformadores dos espaços com os quais interagem, atribuindo significados aos objetos que manipulam e aos inúmeros papéis que representam. A brincadeira torna-se um ritual mimético. Esses rituais da infância são retomados por Benjamin como importantes fontes de subsídios para o entendimento dos processos históricos de construção dos saberes, bem como da constituição do sujeito moderno. Opondo-se à pedagogização dos brinquedos, o filósofo chama atenção para os processos históricos nos quais o ser humano produz semelhanças reagindo às semelhanças já existentes no mundo. Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin As semelhanças se modificam no decorrer dos séculos, não são imutáveis, não existem em si, mas são redescobertas e ressignificadas pelo conhecimento humano em diferentes épocas (GAGNEBIN, 1999). Um exemplo disso pode ser dado com os saberes da astrologia, da adivinhação e das práticas rituais. Esses saberes são colocados hoje em oposição ao saber racional, o progresso científico os marginalizou, excluindo-os do que se possa chamar de verdadeiro conhecimento. No entanto, eles passaram a existir nos arquivos da linguagem: Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existiram elos mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se supor que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou gradativamente, no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita, nelas produzindo um arquivo completo de semelhanças extra-sensíveis. Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um médium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no médium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças no correr da história (BENJAMIN, 1996, p. 112). A capacidade mimética humana não foi substituída pelo pensamento abstrato, racional, mas se concentrou na linguagem e na escrita. Para Benjamin (1996), a leitura é um processo eminentemente telepático; por meio de uma iluminação profana do pensamento é possível encontrar parentesco entre a leitura das Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. constelações e dos planetas feita pelo astrólogo, a leitura do adivinho e a leitura de um texto; do mesmo modo, o gestual da dança assemelha-se aos movimentos da pintura e da escrita. Essa teoria vai na direção contrária a das concepções da linguagem baseadas no signo. Isso pode explicar o interesse de Benjamin pelas teorias onomatopaicas em torno da origem da linguagem, ainda que ele as julgasse muito limitadas em relação àquilo que constitui a semelhança. Na teoria mimética da linguagem está implícita uma lógica não da identidade, mas da semelhança; não há uma concepção identitária do sujeito e da consciência, mas “a eclosão de um verdadeiro outro” (GAGNEBIN, 1999, p. 103). A atividade mimética não se reduz a uma cópia, ela é uma mediação simbólica: Em vão procurar-se-ia uma similitude entre a palavra e a coisa baseada na imitação. Saber ler o futuro nas entranhas do animal sacrificado ou saber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página significa reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisa e as palavras ou as vísceras, mas uma relação comum de configuração. A imitação pode ter estado ou não presente na origem, ela pode se perder sem que a similitude se apague (GAGNEBIN, 1999, p. 98-99). Daí o conceito de semelhança extrassensível, utilizado por Benjamin para definir a linguagem como o grau último da capacidade mimética humana e o arquivo o mais completo dessa semelhança extrassensível. Essa transformação filogenética da capacidade mimética é explicada pelo exemplo ontogenético do aprendizado da linguagem falada e da escrita pela criança. Com o movimento gestual do seu corpo inteiro, a criança brinca/representa o nome e dessa forma aprende a falar. Para a criança, nesse jogo, as palavras não são signos fixados pela convenção, mas sons a serem explorados. O escritor Eduardo Galeano (2002) costuma dizer 823 que nesta fase somos mais profanos e poetas; pois é de muita importância para a criança o aspecto material da linguagem, algo que os adultos se esquecem em detrimento do seu aspecto conceitual e que a linguagem poética recupera. No aprendizado da escrita ocorre o mesmo processo: a criança desenha a letra, ela imita o modelo proposto pelo adulto e, ao escrever a palavra, desenha uma imagem (não uma cópia) da coisa, estabelecendo, assim, uma relação figurativa com o objeto (GAGNEBIN, 1999, p. 100). Benjamin refere-se à escrita chinesa para explicar a relação entre pintura e escrita, uma relação que não é necessariamente uma relação de imitação. A partir da concepção mimética da linguagem, ele supõe movimentos históricos de transição da pintura à escrita, por meio não só da grafia oriental, mas também por intermédio dos hieróglifos e da escrita rúnica. O autor mostra que a escrita não deriva de uma abstração ou de uma convenção como a que o nosso alfabeto representaria, mas de um impulso mimético que se inscreve no espaço pela dança, numa parede pela pintura, ou numa página pela escrita. Nos ensaios sobre a capacidade mimética e sobre a semelhança, há uma distinção entre a dimensão semiótica e a dimensão mimética da linguagem. A dimensão mimética surge do semiótico como uma imagem fugaz que aparece e desaparece na paisagem. Na dialética do visível invisível, a literalidade do texto é o fundo único, imprescindível para que essa imagem possa, como em um relâmpago, apresentar-se em forma de enigma, como interrogação. Para Benjamin, essa imagem rápida remete ao sentido essencial e ao mesmo tempo mutável do texto. A transmissão do significado é apenas o pretexto, imprescindível, que permitiria a elaboração de um outro texto, um verdadeiro outro. A mímesis indicaria uma dimensão essencial do pensar, em uma aproximação lúdica, que o prazer suscitado pelas metáforas nos devolve. Ela aponta para uma aproximação do outro que consiga dizê-lo sem desfigurá-lo. Nessa perspectiva, a linguagem não se restringe à tese linguística do arbitrário 824 do signo, mas a uma transformação do sentido. O movimento do pensamento remete ao movimento da metáfora, em um fazerdesfazer lúdico e figurativo; dá-se visibilidade ao invisível, comunica-se o não comunicável, atualiza-se o já dito. Benjamin dizia que a criança entra nas palavras como quem entra em cavernas, criando caminhos estranhos em um universo a ser explorado. Algo parecido com o percurso dos poetas, dos artistas ou dos cineastas quando penetram na linguagem, criando seus caminhos, suas errâncias, suas obras, suas montagens, estabelecendo uma relação com o tempo que não é, necessariamente, aquela do tempo linear, cronológico, homogêneo e vazio. Inspirado pelo pensamento benjaminiano, Giorgio Agamben (2008) aproxima os conceitos de experiência e linguagem remetendo-se a uma in-fância; um lugar que é anterior à palavra; que rompe com a continuidade da história, e que produz a descontinuidade entre língua e discurso, entre natureza e cultura. Não se trata de uma ideia de infância como etapa de ordem cronológica, como uma potência que permite a renúncia do previsível e ilumina aquilo que não se revela de imediato. A infância instaura o sujeito criativo, coloca o indivíduo no lugar de produtor da cultura para que, com outros interlocutores, ele possa dar sentido e acrescentar significação ao mundo. A infância se constitui num experimentum linguae. De acordo com Giorgio Agamben, ela é entendida como a possibilidade de recuperação da pura expressão; é o momento em que as palavras ainda não estão presas a modelos lógicos abstratos, ou a uma subjetividade essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida. A partir desse experimentum linguae, descobrem-se os reflexos míticos e poéticos, bem como o sentido do sagrado frequentemente dissimulado nas atividades mais banais e cotidianas. Nesse contexto, a história materializa-se teatralmente; faz parte da mesma matéria imaginária e ficcional da existência. Nesse sentido, o discurso histórico é também o discurso imaginário, no qual o Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin tempo cronológico homogêneo é interrompido; fazendo emergir, em um salto originário (Ursprung), o diferente, o inusitado, o não revelado, o silenciado. As imagens do cotidiano são postas em suspenso; dá-se visibilidade ao ínfimo, ao insignificante; transformam-se os destroços em matéria de poesia, matéria de história: “As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora. [...] As coisas sem importância são bens de poesia” (BARROS, 2001, p. 14-15). Como em Baudelaire, os belos poemas de Manuel de Barros são exemplos do redescobrimento de um mundo pouco visível. Nesses versos há a recusa dos grandes temas; as coisas desimportantes transformam-se em relíquias de linguagem – como ocorre no poema de Drummond, quando um acontecimento absolutamente banal – uma pedra no meio do caminho – pode ganhar, na interpretação dos leitores, outras dimensões; sentidos outros que quebram a própria continuidade temporal do acontecimento na repetição dos versos. Importante ressaltar que o componente poético constitui-se então como espaço da criatividade, operação própria à imaginação, lugar da in-fância que produz uma íntima ligação entre o pensar e o ser. Como sentenciou Anaximandro, na Grécia: Pensar, no entanto, é poetar e a verdade não apenas um tipo de poetar no sentido da poesia e da canção. O pensamento do ser é a maneira fundamental de poetar. No pensamento assim considerado, a linguagem passa a ser linguagem primordial, isto é, em sua essência. [...] Todo poetar, em seu sentido mais amplo, e também no mais estrito, é em seu fundo pensamento (ANAXIMANDRO apud HÜHNE, 2004, p. 78). Ao despojar-se da concepção instrumentalista do conhecimento, Benjamin procura, nesse poetar, recuperar a dimensão mágica da linguagem. Os escritos benjaminianos acerca da modernidade a partir da fisionomia das cidades; dos poetas e artistas surrealistas; sobre autores Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. como Baudelaire, atestam o interesse do filósofo em pensar a linguagem como campo (médium) para a construção do pensamento enquanto poiesis (atividade criativa que organiza a reflexão). Nesse sentido, Benjamin tinha, segundo Hannah Arendt (1999, p. 10), uma rara habilidade para pensar poeticamente. Como bem coloca Muricy (2008, p. 79), em Benjamin: [...] construir ideias é recuperar – na linguagem domesticada pelo uso pragmático das exigências de informação e comunicação – uma dimensão inaudita onde possa brotar algo como uma origem sempre renovável. A escrita poética, ao reinventar o mundo, é construção do olhar crítico, se pensarmos que o crítico, assim como o alquimista, exerce a obscura arte de transmutar os elementos desimportantes do real em resplandecentes verdades, interpretando os processos históricos inerentes a essa mágica transfiguração (BENJAMIN, 2009b). Ao interrogar os objetos, o olhar crítico descobre nas coisas, nas cidades, as marcas do mundo, procura então, no invisível que se esconde e se presentifica na linguagem das coisas, aquilo que faz um rosto, uma paisagem ou um objeto nos falar. Considerações finais A obra benjaminiana não apresenta uma proposta educacional; ao contrário, reage justamente à ideia de tal proposta. Sua crítica dirige-se ao que chama de programa de remodelação da humanidade, nascido com o Iluminismo que, no século XVIII, reuniu nomes como o de John Locke na Inglaterra, Kant na Alemanha, e na França os escritores enciclopedistas Diderot, Voltaire, D’Alembert, Montesquieu, Rousseau e outros pensadores que se mobilizavam em torno do que ficou conhecido como Filosofia da ilustração, uma Suma filosofia, que pretendia abarcar com os seus verbetes todos os saberes da ciência, da política, da filosofia e das artes. O projeto do pensamento iluminista 825 era o de construir um conhecimento universal, a partir de uma racionalidade capaz de esclarecer, iluminar, ilustrar. Com os êxitos da física, torna-se possível conceber um universo determinista totalmente inteligível ao cálculo. Surge uma visão do mundo constituída pela identidade do real, do racional e do calculável. Assim, são eliminadas a desordem e a subjetividade. A razão converte-se em um mito unificador do saber, como também da ética e da política. Emergem os princípios utilitaristas da economia liberal-burguesa segundo os quais prevalece a ordem e a harmonia. A construção da racionalidade iluminista colocou a sensualidade, a sensibilidade, o desejo e a paixão como inimigos do pensamento (MATOS, 1990, p. 284). A questão do dualismo corpo e alma será discutida por Benjamin em O drama barroco alemão como algo que impede a compreensão da paixão enquanto um componente do desenvolvimento da racionalidade, inviabilizando a relação entre o homem e o seu desejo, entre a razão e o corpo, a história e a memória. A filosofia da razão ilustrada pretendia fazer da criança um ser supremamente piedoso, bom e sociável. Essa concepção de educação limitou as possibilidades dos processos formativos e de aprendizagem. Ao buscar uma experiência total e concreta do conhecimento, Benjamin critica a institucionalização do saber. O filósofo alemão encontra nos artistas e nas crianças um outro entendimento do mundo. Ele se opõe aos padrões psicológicos, referindo-se à figura da criança como uma pessoa inserida na história e em uma cultura, da qual é também criadora. A atualidade do pensamento de Benjamin e suas reflexões a respeito da modernidade, da infância e da linguagem nos dão pistas para refletir a educação enquanto processo formativo, no qual o conhecimento realizase como uma experiência de linguagem. Isso 826 instiga-nos a pensar tanto a realidade enquanto texto que se abre à significação de cada um, quanto o próprio movimento do sujeito em um processo de criação-nomeação do mundo. Nesse movimento itinerante, a linguagem é o espaço em que o sujeito diz o seu eu como condição de sua historicidade. Nas palavras de Kramer, [...] só o ser humano pode ser in-fans (etimologicamente em latim, aquele que não fala). Então, ao contrário dos animais, o homem – como tem uma infância, ou seja, não foi sempre falante – aparece como aquele que precisa, para falar, se constituir como sujeito da linguagem e deve dizer “eu”. Nessa descontinuidade é que se funda a historicidade do ser humano. Se há uma história, se o homem é um ser histórico é só porque existe uma infância do homem, é porque ele deve se apropriar da linguagem. Se assim não fosse, o homem seria natureza e não história. E aqui reside a possibilidade de saber, quer dizer, de vivendo a história e de recontando essa história construir um saber coletivo que extrapola a mera justaposição de informações (KRAMER, s.d., p. 249). Nessa perspectiva, recupera-se aquilo que foi deixado à margem pelos sistemas escolares fechados em suas disciplinas e hierarquias de valores. Valoriza-se o ínfimo e um pensar-sentir que passe pela mediação do insignificante. Assim, a própria vida cotidiana fragmentária e aparentemente sem sentido configura-se em um experimentum linguae, permeado de poéticas visuais, sonoras e textuais, apresentase como um saber coletivo; uma estradatexto aberta a possíveis leituras/escrituras que são compartilhadas como experiências de linguagem, formas de conhecimento. Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin Referências AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMGF, 2008. ARENDT, Hannah. Introduction – Walter Benjamin: 1892-1940. In: BENJAMIN, Walter. Iluminations. London: Pimlico, 1999. BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. Rio de Janeiro: Record, 2001. BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. BENJAMIN, Walter. A capacidade mimética. In: BENJAMIN, Walter. Comunicação – 2: humanismo e comunicação de massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. 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Recebido em: 21.07.2013 Aprovado em: 02.10.2013 Eloiza Gurgel Pires é artista visual; pesquisadora e doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). No trânsito indisciplinado por diferentes campos, suas pesquisas e publicações discutem as relações existentes entre os processos culturais da contemporaneidade e a educação a partir: das poéticas urbanas; do binômio história/memória; da arte e das linguagens midiáticas, especialmente das linguagens audiovisuais. 828 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer Danilo R. StreckI Resumo A entrevista tem por tema as pesquisas sobre racionalidade ecológica e suas implicações para a educação, especialmente para a formação da cidadania, pesquisas essas desenvolvidas no Max-Planck Institute for Human Development, em Berlim. O estudo da racionalidade ecológica ocupa-se com o processo de tomada de decisões num mundo em que o agir humano se dá num contexto de incertezas, em que uma avaliação completa dos fatores é praticamente inviável. Parte-se do pressuposto de que processos cognitivos não podem ser dissociados da realidade social e cultural, e que a identificação das heurísticas que regem a tomada de decisões pode ser um importante instrumento para a formação de um pensamento autônomo. Destaca-se, do ponto de vista pedagógico, a importância de favorecer o desenvolvimento da capacidade de compreender os limites e as possibilidades da lógica científica na qual se fundam os processos educativos e de estimular o desenvolvimento de formas de conhecer que são tão ou mais determinantes da ação quanto a lógica científica. Gigerenzer enfatiza o papel do trabalho coletivo e interdisciplinar para favorecer a criatividade na pesquisa e no ensino, bem como para tomar melhores decisões no cotidiano. Palavras-chave Racionalidade ecológica — Cidadania — Heurísticas — Incerteza. I- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. Contato: [email protected] Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014400300201 829 Ecological rationality and citizenship education: an interview with Gerd Gigerenzer Danilo R. StreckI Abstract The subject of this interview is the research on ecological rationality and its implications for education, especially for citizenship education, carried out at the Max-Planck Instuitute for Human Development, in Berlin. The studies on ecological rationality focus on the processes of decision making in a world in which human activity happens in a context of uncertainties, where a complete evaluation of factors is practically impossible. The assumption of the research is that cognitive processes cannot be dissociated from social and cultural realities, and that therefore the identification of the heuristics used in making decisions can be an important instrument for the formation of autonomous thinking. Of special interest from the pedagogical perspective is promoting the development of the capacity to understand and deal with the limits and possibilities of the scientific logic on which educational processes are largely based, and the development of forms of knowing that are as much or more determinant than that one. Gigerenzer emphasizes the role of collective and interdisciplinary work to promote creativity in research and teaching, as well as to make decisions in daily life Keywords Ecological rationality — Citizenship — Heuristics — Uncertainty. I- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. Contact: [email protected] 830 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014400300201 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. Gerd Gigerenzer é pesquisador no MaxPlanck Institute for Human Development, em Berlim, onde atualmente dirige o Harding Center for Risk Literacy. Ele é formado em psicologia pela Universidade de Munique (Alemanha), onde também obteve o título de Ph.D. em psicologia. Foi diretor do Max Plank Institute for Psychological Research, em Munique, de 1995 a 1997, e do Max Planck Institute for Human Development, em Berlim, em vários períodos entre 1997 e 2013. Foi professor em importantes universidades europeias e norte-americanas, entre elas Chicago, Munique e Salzburg.1 O conceito de racionalidade ecológica (TODD et alii, 2012), central no trabalho de Gigerenzer, sugere certa familiaridade com a ideia de ecologia de racionalidades na obra de Boaventura de Sousa Santos (2004), que tem estimulado a crítica à racionalidade científica hegemônica e, o que é mais importante, o “descobrimento” de saberes silenciados por essa lógica que Santos identifica como metonímica. A reflexão sobre os limites e o potencial da racionalidade diz respeito a todas as áreas do conhecimento, embora seja de especial relevância para a educação. Pode-se presumir que a crise da escola tem a ver, entre outros motivos, com a dificuldade de dar conta da diversidade de formas de pensar, conhecer e tomar decisões que hoje buscam expressar-se como parte de uma sociedade plural. Um dos livros de Gigerenzer mais premiados internacionalmente encontra-se traduzido no Brasil com o título de O poder da intuição: o inconsciente dita as melhores decisões (2009).2 O título propõe de forma um tanto provocativa o argumento que perpassa a obra de Gigerenzer: que a intuição pode ser um importante instrumento para tomar boas decisões. A pergunta, segundo ele, não é se, mas quando podemos confiar em nossas intuições. Segue-se que, para responder a essa pergunta, precisamos entender como ela funciona. Buscando resgatar a intuição da aura negativa com que geralmente é associada, Gigerenzer volta sua crítica também à escola: “Alinhado com essa visão negativa, nosso sistema educacional valoriza tudo, menos a intuição”. Sua definição de intuição compreende três características: 1) surge muito depressa em nossa mente consciente; 2) as razões fundamentais não estão plenamente acessíveis a essa mente consciente; e 3) é suficientemente forte para motivar uma ação. Segundo essas características, pode-se constatar que grande parte de nossas decisões se enquadra nessa definição. Em primeiro lugar, pela limitada capacidade do cérebro humano, que seria incapaz de “computar” conscientemente todas as alternativas possíveis para todas as ações. Em sua obra vemos, por isso, seguidas alusões à vontade de onisciência que se vê legitimada pelo suposto domínio do conhecimento de alguns especialistas. Em segundo, pelo fato de não podermos contar com uma visão determinista 1- A presente entrevista foi realizada no escritório de Gerd Gigerenzer no Max-Planck Institut für Bildungsforschung (Max-Planck Institute for Human Development), em Berlin, em novembro de 2012. 2- Obra publicada pela editora Best Seller. Outro livro em língua portuguesa, Calcular o risco: aprender a lidar com a incerteza (do original Reckoning with Risk) foi publicado em Portugal pela Editora Gradiva. Introdução Fonte: arquivos do entrevistado. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 831 do mundo, onde então os resultados das decisões seriam totalmente previsíveis. Um dos pressupostos nos quais o conceito de racionalidade ecológica está baseado é que o cérebro funciona como as duas lâminas de uma tesoura: uma delas é a capacidade neurológica e a outra é o ambiente em que operamos, e o qual condiciona o funcionamento. Para a tomada de decisões, teríamos uma “caixa de ferramentas adaptáveis”, as heurísticas, que são estratégias práticas de tomada de decisão. Essas não são inatas nem fixas, mas têm uma estrutura adaptável ao meio em que atuamos. O livro O poder da intuição traz muitos exemplos de como no cotidiano utilizamos esse tipo de “atalhos”, tanto na vida profissional quanto na social. Decisões importantes como a troca de emprego ou opções determinantes para o nosso futuro são menos o resultado de cálculos complexos do que de intuições que podem parecer pouco racionais. Não é de estranhar que a epígrafe do capítulo inicial desse livro seja a célebre frase de Blaise Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Do ponto de vista pedagógico, a pesquisa da equipe de Gigerenzer chama à humildade quanto ao alcance e possibilidades da lógica racional e científica. Os estudos não sugerem que se abandone essa lógica, dentro da qual os próprios estudos são conduzidos, mas desafia a olhar para outras formas de conhecimento que, conforme ele explicita na entrevista, eram consideradas as mais confiáveis em outros tempos históricos. Para isso, é necessário reconhecer que o funcionamento da mente é condicionado pelo meio (bounded rationality), encontrando maneiras de se adaptar de forma mais ou menos criativa e inovadora (GIGERENZER, 2006). Coerente com esses princípios, em sua prática de pesquisa, ele enfatiza o trabalho em equipe interdisciplinar. O desafio para a educação consiste em buscar conhecer “caixas de ferramentas adaptáveis” e saber dispor melhor dos instrumentos que ali encontramos e que resultaram do longo processo evolutivo do 832 cérebro humano. Saber como e por que se estuda isso e não aquilo, por que se escolhe determinada marca de roupa, por que se escolhem certas companhias são decisões que “não são unicamente uma questão de prós e contras imaginados. Algo mais pesa no processo decisório, algo que tem, literalmente, um peso razoável: nosso cérebro, fruto do processo evolutivo. Ele nos dá aptidões que se desenvolveram durante milênios, mas que são em sua maior parte ignoradas pelos textos-padrão sobre tomadas de decisão” (GIGERENZER, 2006, p. 73). Outra contribuição relevante para a educação atual diz respeito ao lugar e papel das informações na tomada das decisões. Segundo Gigerenzer, há situações em que menos é mais, dependendo da capacidade de escolher as opções mais adequadas. Isso vale tanto para médicos no diagnóstico de seus pacientes quanto para professores na avaliação de seus alunos ou pesquisadores na sua opção metodológica. Luria (1968) já se debateu com esse problema ao buscar compreender a mente de Shereshevsky, que tinha uma incrível capacidade de guardar uma enorme quantidade de informações, mas que não era capaz de realizar abstrações a partir dos dados armazenados (OLIVEIRA; REGO, 2010). Para aprender a lidar com a crescente disponibilidade de informação, a educação precisa ensinar a confrontar-se com as incertezas e probabilidades. O resultado de não fazê-lo são médicos que não sabem interpretar corretamente dados para seus pacientes em relação aos riscos, economistas que agem como se fossem deuses, e cidadãos que não aprenderam a “pensar junto”. Gigerenzer alerta que o ensino da matemática está baseado no ensino de certezas, deixando de trabalhar com a probabilidade. Assim, caberia uma “alfabetização em risco”, que teria como um requisito a introdução ao pensamento estatístico já na escola fundamental, conforme experiências realizadas na Alemanha e nos Estados Unidos (BOND, 2009). Dentro de uma perspectiva mais ampla, a “alfabetização em risco” Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer é vista como precondição para uma cidadania bem informada dentro de uma democracia participativa. Como expresso pelo entrevistado: Tanto educadores quanto políticos deveriam ter consciência que alfabetização em risco é um tópico vital para o século vinte e um. Em vez de ser manipulados a fazer o que os expertos acreditam seja correto, as pessoas deveriam ser encorajadas e equipadas para, por si mesmas, tomar decisões informadas. Alfabetização em risco deveria ser ensinada desde a escola fundamental. Ousemos conhecer – risco e responsabilidades são oportunidades a serem apreendidas, não evitadas. 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Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p. 777-819. TODD, Peter M.; GIGERENZER, Gerd, ABC Research Group. Ecological rationality: intelligence in the World. Oxford: Oxford University Press, 2012. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 833 A ENTREVISTA Agradeço por arranjar lugar em sua pesada agenda para esta entrevista, que eu espero compartilhar com um público mais amplo na América Latina. Pelo menos um de seus muitos livros está traduzido no Brasil, O poder da intuição: o inconsciente dita as melhores decisões [Gut Feelings] e eu posso antecipar que as preocupações endereçadas em seus estudos se tornarão parte das discussões em muitas áreas, inclusive na educação. Você poderia dizer-nos algo sobre como desenvolveu o interesse em estudar este tópico? O que o moveu e continua movendo a estudar o papel e o lugar da intuição na tomada de decisões? Médicos, juízes, administradores – todos eles se apoiam em suas intuições e têm receio de admiti-lo. No entanto, no pensamento ocidental, a intuição já foi vista como a forma mais certa de conhecimento, aquela de anjos e seres espirituais que intuíam com claridade impecável. Desde a Ilustração, no entanto, a razão foi colocada sobre a intuição e, muito antes, os homens sobre as mulheres. Agora as pessoas acreditam que a intuição é feminina e frágil, enquanto que o pensamento intencionado é masculino e racional. Essa carreira estranha da intuição, que iniciou como uma forma divina de conhecimento e acabou sendo desprezada como um guia não confiável da vida, ligado com ao nosso coração, isso chamou minha atenção. Quais são alguns dos principais projetos com os quais seu grupo de pesquisa no Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano em Berlim atualmente trabalha, especialmente aqueles mais diretamente relacionados com a educação? Um projeto trata de ensinar alfabetização em saúde na escola fundamental. Deixe-me ilustrar isso com um de nossos maiores pesos na área da saúde: o câncer. Durante décadas, nós Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. tentamos combater o câncer com drogas. Foram gastos bilhões em tecnologia e medicação. No entanto, o efeito dos exames sobre o total da mortalidade de câncer é zero para muitos deles, e muito reduzido para alguns. O efeito de drogas sobre a taxa de mortalidade, para os tipos de câncer mais severos, está no prolongamento da vida na ordem de algumas semanas ou meses, com substancial perda de qualidade de vida. A melhor forma de reduzir o peso do câncer é a prevenção, ou seja, uma melhor alfabetização em saúde e melhor estilo de vida. Estima-se que 50% de todos os cânceres são devidos ao comportamento: fumar cigarros (20 a 30% de todos os cânceres), obesidade devida à ingestão de bebidas com açúcar, fast food, e falta de atividade física (10 a 20%), e abuso de bebidas alcoólicas (10% nos homens, 3% para mulheres). Todos os números são dados dos Estados Unidos). No entanto, dizer a um jovem de 15 anos para parar de fumar é tarde demais. Os hábitos de comer, beber e de atividade física são formados na fase inicial da infância. Por isso, um programa para a alfabetização em saúde deve começar cedo, iniciando-se no jardim de infância ou primeira série e continuando até a puberdade. Para cada euro colocado nesse tipo de programa, poderiam ser salvas mais vidas do câncer e de outros problemas de saúde do que pela mesma quantia gasta no desenvolvimento de drogas. O programa de alfabetização em saúde, baseado na pesquisa disponível, deveria ter como referência dois princípios básicos: 1. Iniciar cedo. Idade de 5 a 10 anos para as crianças, quando o programa é iniciado antes da puberdade. 2. Ser um programa integrado. A alfabetização em saúde deveria ser ensinada pelos professores regulares, não por um professor especial, e ser integrada no esporte, na biologia e outras disciplinas. Esse aspecto é importante porque os professores representam um modelo, devendo por isso ser parte do programa. O conteúdo do currículo deveria incluir três tipos de competências: 835 1. Habilidades como cozinhar e esportes. 2. Conhecimento médico, por exemplo: que os cigarros contêm arsênico e outros venenos; como se parece o pulmão de um fumante; e como nosso corpo engorda. 3. Conhecimento psicológico, por exemplo: como a propaganda está programada para impressionar pessoas jovens e como companhias orientadas para o lucro manipulam as crianças em direção a estilos de vida prejudiciais. Seu trabalho é basicamente sobre o processo de tomar decisões melhores em situações de incerteza. O que você considera uma boa decisão? Há algumas condições especiais para tomar uma boa decisão? Uma boa decisão melhora não apenas a saúde, a situação financeira e o bem-estar do indivíduo, mas também, de sua comunidade como um todo. Para poder tomar boas decisões, o que se necessita é conhecer as evidências básicas, bem como o pensamento estatístico. E, num mundo de incertezas, você também precisa de boas heurísticas e intuições. E coragem: Sapere Aude! O conceito básico em sua teoria é racionalidade ecológica, e o pressuposto é que a mente e o ambiente funcionam como duas lâminas de uma tesoura. Pareceu-me interessante, em seu construto teórico, a ideia de racionalidade ecológica, que busquei associar com o conceito de ecologia de racionalidades, de Boaventura de Sousa Santos, que significa que não há apenas uma maneira de pensar e conhecer. Quando você fala de racionalidade ecológica, há algum tipo de valor implícito, como quando falamos de movimento ecológico? Deixe-me começar dizendo que moralidade não é algo que se encontra simplesmente dentro do indivíduo, como a maioria das teorias pressupõe, mas ela também é externa. Você pode falar de um ambiente moral ou imoral da mesma forma como você pode 836 falar de uma personalidade moral ou imoral. Há sempre uma combinação entre ambas. Isso de certa forma lembra Piaget, que lida com a inteligência do indivíduo em termos de adaptação entre organismo e ambiente. Mas em sua teoria não há lugar para a ideia de estruturas. Piaget tem os estágios. Basicamente, ele sugere que as crianças são de alguma forma iluminadas na idade de doze ou quatorze. Eu não acredito que seja dessa forma. Com certeza, há avanços em termos de estratégias cognitivas que as pessoas usam, mas adolescentes, pelo menos nas sociedades ocidentais, são dependentes de outros como nunca antes. E, se eles se comportam de acordo com a heurística “faça o que o seu grupo faz”, o resultado pode ser avaliado como altamente moral ou imoral, dependendo da situação na qual eles usam a heurística. Permita-me avançar para a contribuição de sua teoria de racionalidade ecológica e heurísticas para a cidadania. Ao ler seus artigos e analisar alguns de seus livros, eu constato que uma das contribuições seria o abandono da ideia de onisciência, e a outra seria a importância de saber identificar e compreender as heurísticas que usamos, por exemplo, quando escolhemos um candidato. Minha leitura está correta? Sua percepção, aqui, está certa em vários pontos. Primeiro, não existe algo como certeza; superar a ilusão de certeza é o primeiro passo em direção a uma cidadania madura. Isso também significa que você precisa parar de acreditar que todas as espécies de expertos conhecem tudo. Esse é o primeiro ponto. O segundo aspecto é que a democracia funcionará apenas se o conhecimento for distribuído entre o povo; e não funcionará se alguns expertos alegarem saber tudo, enquanto todos os demais virem novelas. Isso é uma forma de democracia decadente, uma Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer democracia que vai definhar. É necessário criar, através da educação, um ambiente em que as pessoas sejam inspiradas a pensar. A pensar e não apenas a buscar o máximo de prazer. A pensar e ter prazer em pensar. Sobre sua pergunta a respeito da caixa de ferramentas de heurísticas: essa caixa de ferramentas é o que você necessita num mundo de riscos desconhecidos. Se tudo fosse conhecido, como num cassino, você poderia calcular e usar pensamento estatístico. Você não necessitaria de intuição ou de heurísticas. Mas, para a maioria dos problemas, nem tudo é conhecido. Por exemplo, com quem casar-se ou o que fazer com o resto de sua vida. Aqui heurísticas são úteis como instrumentos. Outras ferramentas são analogias ou histórias. Mas, num mundo de incertezas, nós necessitamos de heurísticas e, por isso, não há apenas uma delas, mas uma caixa de ferramentas com muitas. No entanto, nenhuma heurística é útil todo o tempo, o que leva à sua questão da racionalidade ecológica. Tome, por exemplo, a heurística “imita o teu grupo”. Isso pode ser uma boa ideia se você tem o grupo certo, e uma ideia muito ruim se você tem o grupo errado. Mais concretamente, na prática educacional, como poderíamos lidar com heurísticas? Seria útil dizer “Vamos pensar sobre a forma como escolhemos nossos candidatos”? Sim, isso seria um autoexperimento. Um norte-americano, por exemplo, poderia dizer “Eu sou contra Obama porque meus pais ou meu grupo de amigos são contra ele”. Esse insight pode ser útil. Então, você pergunta a si mesmo: “Eu de fato quero ser essa pessoa, que apenas reflete, espelha o ambiente, sem sequer se esforçar para pensar, ou eu quero fazer algo diferente?” Na pesquisa-ação e pesquisa-participante, que são metodologias que procuro usar nas minhas pesquisas, a autorreflexividade coletiva é um dos critérios básicos de validade e qualidade da pesquisa. Isso estaria de acordo com esse critério? Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. Sim, é autorreflexividade, mas o mesmo princípio pode ser usado com o seu grupo, seus colegas. A questão aqui é pensar sobre as heurísticas que as pessoas usam. Isso se aplica às coisas do cotidiano, por exemplo, quando se faz o pedido de um prato no restaurante. Eu costumo dar muitas palestras em muitos lugares ao redor do mundo e quase sempre acabo num restaurante no qual nunca estive antes e provavelmente jamais estarei novamente, e eu aprendi a nem me preocupar em abrir o cardápio. Eu uso uma heurística simples que funciona melhor do que buscar maximizar, isto é, tentar avaliar todas as alternativas. Se é um bom restaurante, eu pergunto ao garçom o que ele comeria aqui nessa noite. Eu não pergunto o que ele recomendaria, pois isso o leva a pensar: “Oh, esse é um alemão e eu vou sugerir algo de que alemães talvez gostem”. Eles sabem o que há na cozinha quando eu pergunto. Isso é muito simples e aproveita o conhecimento de outros que sabem mais sobre o assunto. Muitos alemães, em comparação com outras nacionalidades, têm mais problemas com imitação. As heurísticas não podem ser reduzidas a simples truques? Eu sei que sua teoria de forma alguma é simplista, mas eu gostaria de compreender melhor o que você entende por simples. Nós poderíamos inclusive falar de uma “estética do simples”. Como isso se relaciona com complexidade, que é uma ideia que, a partir de Edgar Morin, encontra importante eco no pensamento atual. Simplicidade permite transparência, e transparência permite confiança, porque você terá menos probabilidade de ser enganado. Sistemas complexos são diferentes. Por exemplo, na Alemanha e nos Estados Unidos, como em muitos outros países, nós temos sistemas de taxação que ninguém entende, nem mesmo meu contador. Essa não é a forma como a democracia deveria funcionar. Não há necessidade de um sistema tão complexo, exceto pelos furos no sistema dos 837 quais grupos de interesse tiram vantagem. Um sistema simples é transparente. Você sabe exatamente onde estão os seus pontos fortes e as suas fragilidades, e cada um pode entender o que se passa. Assim, eu não acredito que isso deveria ser considerado um truque. Na realidade, torna-se evidente que a complexidade muitas vezes é algo de que não nos beneficiamos. Tanto assim que ninguém pode de fato conhecer o resultado. Eu trabalho com o Banco da Inglaterra e os sistemas de regulação como “Basel 2“ e “Basel 3”3 são tão complexos que todos no banco a quem eu tenho perguntado respondem: “Ninguém entende as consequências de sua implementação ou não”. Isso é o que nos é dito: “É muito difícil para você entender”. Há uma compreensão em nossa sociedade de que, se nós enfrentamos um problema complexo, temos que buscar soluções complexas. E, se elas não funcionam, nós tornamos o assunto ainda mais complexo, em vez de fazer uma pergunta diferente: há uma solução simples para esse problema complexo que talvez não seja perfeita, mas que funciona melhor? Jamais será absolutamente perfeita. Permita-me retornar à questão do simples em termos de saúde, que é uma de suas áreas de estudo. Não há um risco maior de erro se o médico tem apenas alguns processos simples para avaliar o paciente? Ele olha para dois ou três fatores e toma a sua decisão, que, para o paciente, pode ser uma questão de vida ou morte. [Nesse momento da entrevista, juntaram-se a nós dois pesquisadores da equipe de Gigerenzer.] A resposta é: o médico pode estar certo ou errado se ele usa heurísticas. É disso que trata o estudo da racionalidade ecológica. Nesse caso, os cálculos de uma sofisticada regressão 3- Basel 1, 2 e 3 são conjuntos de regulamentações internacionais editadas pelo Basel Committee on Bank Supervision. 838 estatística ajudariam o médico a tomar uma decisão melhor sobre o estado de sua saúde do que olhar para apenas uma ou duas coisas? Heurísticas também são interessantes para questões financeiras. Por exemplo, para a avaliação de crédito. Se você fosse um banqueiro e eu viesse a você e solicitasse um milhão de dólares para abrir um novo negócio, então você teria o mesmo problema. Há diferentes maneiras de lidar com o assunto. Alguns têm um grande volume de dados e procuram acumular todas as informações; outros são como um bancário em Berlim, que disse: “Eu apenas olho para duas coisas e é isso”. Mas, para chegar a esse ponto, há muito conhecimento prévio. Um professor pode olhar para um trabalho e, após ler as primeiras linhas, ele poderá dizer se é bom ou ruim, mas ,para poder fazer isso, ele teve que passar por um processo complexo. Eu diria que esse professor tem experiência. Mas o que na realidade são esses processos nós não sabemos. Nós os denominamos de complexos porque nós não sabemos. E nós temos evidência de outros estudos de que problemas complexos podem ser resolvidos por heurísticas, apesar de que cada um que não conhece as heurísticas diria que as soluções devem ser complexas. No sentido exposto, é evidente então que o simples não é o fácil. Permita-me abordar outro tema. O que o senhor diria sobre pensamento dissonante? Um pensamento que não representa apenas uma acomodação, mas que é inovador, divergente? Como acontecem inovações? Essa é uma boa pergunta. Certamente analogias são um bom exemplo. O que nós tentamos fazer é criar um ambiente que facilita a inovação. Nós temos pessoas de muitas disciplinas diferentes. Por exemplo, Konstantinos é engenheiro e Timo, um Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer pesquisador visitante, é matemático [referese aos dois colegas que haviam se juntado a nós]. Isso é muito importante. Muito da inovação, eu penso, tem a ver com criar um ambiente em vez de colocar algo na cabeça das pessoas. E com ter um grau suficiente de heterogeneidade, pessoas com diferentes métodos que devem ser postos junto para analisar os mesmos problemas. Nós também temos um pequeno ritual aqui. Todos os dias, às 16 horas, temos um café com o grupo todo (você está cordialmente convidado), para que as pessoas se encontrem e conversem entre si. E qual seria a relação entre heurísticas e intuição? A intuição é definida como “conhecimento sentido” (felt knowledge), que é facilmente acessível à consciência, mas que não podemos explicar. Nós não sabemos se todas as intuições são baseadas em heurísticas, mas sabemos que algumas delas podem ser analisadas e são baseadas em heurísticas bastante simples. A mesma heurística pode ser usada intuitiva ou deliberadamente. A relação com inovação, nesse sentido, é interessante. Eu faço muitas palestras para pessoas do comércio e muitas delas têm problemas com inovação e gut feelings, uma expressão que eu uso como sinônimo de intuição. Elas desconfiam de qualquer gut feeling e isso é um obstáculo para a inovação. Além do mais, há aquelas que pedem justificativas para qualquer nova ideia; isso é o oposto de uma estratégia intuitiva. No entanto, o processo intuitivo de tomar decisões não é diferente no mundo dos negócios, no dos esportes ou das artes. do olhar – como pegar uma bola em movimento – pode ser usada deliberadamente, mas também de forma inconsciente. Isso é porque a distinção entre esses dois sistemas mentais, que liga as heurísticas ao inconsciente, não faz sentido. Se você é um ser onisciente, você não necessita de intuição. Se você é deus, você não necessita de nada; você nem precisa pensar. Enquanto estava no MPIB (Max Planck Institut für Bildungsforschung), eu me interessei pelo trabalho de dois grupos de pesquisa nos quais eu percebo uma contribuição importante para a educação da cidadania. Um deles é o de racionalidade ecológica e o outro é o da história das emoções, em que as emoções são vistas como fenômenos históricos e culturais. Percebo certa relação entre ambos. Eu aprecio que você esteja refletindo sobre a aproximação entre esses dois grupos. Há hoje uma vasta literatura que fala que vivemos num mundo de incertezas. Qual seria a relação dessa literatura com a sua pesquisa? As heurísticas seriam, então, um campo intermediário entre intuição e o desejo de uma racionalidade onisciente? Sim, há muita literatura, a maior parte da sociologia. Eu distingo risco de incerteza, em que as alternativas são amplamente desconhecidas. A teoria das decisões em boa medida ignorou as incertezas. Ela vai até a ambiguidade, que é quando você não conhece as probabilidades, mas conhece as alternativas, todas as consequências. Isso é típico para a economia, onde tudo é construído sobre a ideia de risco, e, se os riscos não são conhecidos, eles os reduzem para se encaixar no velho cálculo de risco. Eu acredito que somos dos poucos centros no mundo que procuram lidar matematicamente com a incerteza. É levemente diferente. Eu diria que decisões intuitivas são, ao menos parcialmente, o mecanismo de heurísticas. Mas a mesma heurística pode ser usada tanto consciente quanto intuitivamente. Por exemplo, a heurística Eu vejo muitas pesquisas no campo da saúde – sobre decisões de pacientes e médicos – e da economia que têm a ver basicamente com o mercado. Como os profissionais da educação recebem a sua teoria e lidam com ela? Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 839 Você pode tomar, por exemplo, nosso trabalho sobre como ensinar pensamento estatístico ao usar certas representações, o que também é uma perspectiva da racionalidade ecológica. Essa ideia entrou num razoável número de manuais de estatística usados no ensino médio na Alemanha. Isso é um sinal de sucesso aqui. Mas, além disso, eu penso que o pensamento estatístico é muito mais importante que a geometria ou a álgebra para toda a vida depois da escola. A isso você se refere como matemática da certeza? Sim. Isso é que é ensinado. Tudo que é certo é ensinado. No momento em que a incerteza entra, mesmo que seja sobre riscos desconhecidos... [Timo: Mas muitas coisas no mundo são certas. Eu penso nas ruas de Berlim. Elas sempre estão ali. Eu não entendo por que você é contra a geometria.] Eu não sou contra. Eu estou falando de priorização. Evidentemente você pode fazer ambos. Levemos a sua reflexão para entender como lidamos com teorias. Por exemplo, no campo da educação, muitas vezes temos visões muito fechadas das teorias que contrapomos umas às outras. 840 Muitas teorias são tão verdadeiras que elas não podem estar erradas. E, assim, elas funcionam como canais nos quais você se encontra, e mesmo assim você não sabe o que fazer. O que nós buscamos fazer é desenvolver instrumentos que realmente mudam as coisas. Por exemplo, nós sabemos que muitas pessoas têm o que nós chamamos de ansiedade de matemática ou estatística. Elas não sabem nada de estatística, o que muitas vezes se deve a um certo tipo de representação, a exemplos inúteis e cansativos que elas não entendem. E se você representa, por exemplo, uma inferência chamada Bayesin (Thomas Bayes) como probabilidade incondicional, você pode ter certeza de que 90% dos ouvintes estarão interessados porque no fim dirão: “Ah, eu consigo fazer isso”. E as probabilidades condicionais virão mais tarde. Assim, você sempre tem uma rede de segurança onde, se você não entende, você pode voltar ao tema. Isso também tem a ver com ajudar as pessoas a ter uma relação emocional melhor – ajudar crianças a aprender a lidar com riscos e incertezas, e a distinguir entre ambas. Uma última nota sobre isso: eu penso que heurísticas e estatística deveriam ser ensinadas desde a primeira série. Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer Publicações do autor (seleção): Livros GIGERENZER, Gerd; MUIR GRAY, J. A. (Eds.). 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As datas de recebimento e aprovação de cada colaboração serão informadas no texto publicado. Cabe à Comissão Editorial definir, a cada número da revista, os critérios para reunir os artigos já aprovados. Diretrizes para a submissão de artigos No ato da submissão de um artigo, a identificação do(s) autor(es) e a filiação institucional serão preenchidas em espaços próprios do Sistema SciELO e não devem constar do corpo do texto, o qual será enviado para avaliação cega dos pares. Tampouco se aceitam quaisquer outras referências que permitam ao avaliador inferir indiretamente a autoria do trabalho. As informações autorais serão registradas à parte, como metadados, e acessadas apenas pelos editores. Na redação do artigo, devem ser observadas as seguintes orientações: • O texto pode ser apresentado em português, espanhol ou inglês, devendo ser enviado em arquivos com extensão .doc, .docx ou .rtf, fonte Times New Roman, tamanho 12 e espaçamento 1,5. Todas as páginas do original devem estar numeradas sequencialmente. O texto deve contar, ainda, com o mínimo de 35.000 e o máximo de 50.000 caracteres, considerados os espaços e excluído o resumo. • O título do artigo deve ter no máximo 15 palavras. • O resumo deve conter entre 200 e 250 palavras e explicitar, em caráter informativo e sem enumeração de tópicos, os seguintes itens: tema geral e problema da pesquisa; objetivos e/ou hipóteses; metodologia utilizada; principais resultados e conclusões. Recomenda-se o uso de parágrafo único, voz ativa e na terceira pessoa do singular, frases concisas e afirmativas. Devem-se evitar: neologismos, citações bibliográficas, símbolos e contrações que não sejam de uso corrente, bem como fórmulas, equações, diagramas etc. que não sejam absolutamente necessários. • As palavras-chave devem ser de 3 a 5. • Os agradecimentos (opcionais) devem ser citados junto ao título, mas em nota de rodapé e sem quaisquer referências, diretas ou indiretas, à autoria. • Tabelas, quadros, gráficos e figuras (fotos, desenhos e mapas) devem estar numerados em algarismos arábicos conforme a sequência em que aparecem, sempre referidos no corpo do texto e encabeçados por seu respectivo título. Imediatamente abaixo das figuras devem constar suas respectivas legendas textuais. Os mapas devem conter escalas e legendas gráficas. 845 • As imagens devem figurar em preto e branco, estar digitalizadas eletronicamente em formato JPG com resolução a partir de 300 dpi e ser apresentadas em dimensões que permitam sua ampliação ou redução sem que a legibilidade seja prejudicada. Todas as imagens devem ser enviadas separadamente, em seus arquivos originais. O nome da cada arquivo deve corresponder ao nome da imagem (por exemplo: Gráfico 1). • Notas de rodapé de caráter explicativo devem ser evitadas, sendo utilizadas apenas quando estritamente necessárias para a compreensão do texto e tendo a extensão máxima de três linhas. As notas devem estar numeradas em algarismos arábicos conforme a sequência em que aparecem no texto. • Citações no corpo do texto devem obedecer aos seguintes critérios: a) citações textuais de até três linhas devem ser incorporadas ao parágrafo, transcritas entre aspas e acompanhadas pelas seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor da citação, ano da publicação e número de páginas; b) citações textuais de mais de três linhas devem estar em parágrafo isolado, com recuo de 4 cm na margem esquerda, tamanho 11 e sem aspas; c) caso não haja citação textual, mas apenas referência ao autor, o sobrenome deste deve ser indicado entre parênteses, em caixa alta, junto com o ano da publicação referida. • As referências devem obedecer à norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Apenas as obras citadas ao longo do texto devem figurar na bibliografia, a qual deve constar, sob o título de Referências, ao final do artigo e em página separada. Exemplos: FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São Paulo: FFCL/USP, 1954. FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana. São Paulo: FFCL/USP, 1960. FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975. FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso em: 25 fev. 2011. PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973. PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana: perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383. 846 VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008. VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000. Métodos de estatísticas Quando utilizados, os métodos estatísticos precisam ser descritos com o pormenor necessário para permitir o acesso aos dados originais e a verificação dos resultados apresentados por um leitor versado no assunto; ao mesmo tempo, deve-se evitar linguagem excessivamente técnica e apresentá-los com suficiente clareza de modo a favorecer a compreensão de um leitor não especializado. Tal solicitação aos autores requer providências como: procurar, sempre que possível, quantificar os resultados e apresentá-los com os correspondentes indicadores de erro de medição ou de incerteza (por exemplo, intervalos de confiança); evitar basear-se apenas em testes de inferência estatística, que não veiculam informação quantitativa relevante; discutir a elegibilidade das unidades de experimentação; fornecer informação pormenorizada sobre a aleatorização e sobre as observações; discutir a razoabilidade dos resultados e relatar possíveis limitações do método utilizado; especificar os programas informáticos utilizados; restringir quadros e figuras à quantidade necessária para explicitar a fundamentação do artigo e sua solidez; evitar quadros com muitos tópicos e duplicação de dados; definir termos estatísticos, abreviaturas e símbolos utilizados no artigo. Avaliação inicial O manuscrito passa por uma apreciação preliminar feita pela comissão editorial, após a qual, ou será devolvido para o/a autor/a com observações, ou enviado diretamente para pareceristas externos/as. O objetivo dessa etapa inicial é avaliar se o manuscrito se enquadra nas diretrizes e escopo de Educação e Pesquisa, e se tem potencial de diálogo com o campo educacional, contribuindo para a construção de conhecimentos dentro deste campo. A partir dessa apreciação, a comissão editorial decide se uma avaliação externa integral é justificada. Processo de avaliação pelos pares Os artigos recebidos para eventual publicação em Educação e Pesquisa serão previamente avaliados pela Comissão Editorial. Aqueles que estiverem fora dos critérios editoriais da revista serão devolvidos e os demais encaminhados para a análise de pareceristas, sendo no máximo um deles membro da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, à qual esta publicação está subordinada. Os avaliadores consultados terão, no mínimo, o título de doutor e pertencerão a instituições científicas diversas. Os nomes dos autores, dos pareceristas e das instituições a que pertencem permanecerão em sigilo durante todo o processo. A revista publica anualmente os nomes de seu corpo de pareceristas ad hoc. Os aspectos que orientam a avaliação dos originais encaminhados aos pares para análise são: conteúdo teórico e empírico, domínio da literatura científica, atualidade do tema, contribuição para a área de conhecimento específica, originalidade da abordagem, estrutura do texto e qualidade da redação. Os avaliadores poderão recomendar a aceitação integral do texto, indicar recusa ou, ainda, sugerir modificações para nova avaliação. A Comissão Editorial poderá submeter as 847 sugestões de reformulações ao autor e o artigo, já reformulado, retornará aos mesmos avaliadores para um parecer final. Autoria Entende-se como autor todo aquele que tenha efetivamente participado da concepção do estudo, do desenvolvimento da parte experimental, da análise e interpretação dos dados e da redação final. Recomenda-se não ultrapassar o número total de quatro autores. Caso a quantidade de autores seja maior do que essa, deve-se informar ao editor responsável o grau de participação de cada um. Em caso de dúvida sobre a compatibilidade entre o número de autores e os resultados apresentados, a Comissão Editorial reserva-se o direito de questionar as participações e de recusar a submissão se assim julgar pertinente. Ao submeter um artigo para publicação em Educação e Pesquisa, o autor concorda com os seguintes termos: 1. O autor mantém os direitos sobre o artigo, mas sua publicação na revista implica, automaticamente, a cessão integral e exclusiva dos direitos autorais para a primeira edição, sem pagamento. 2. As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões da revista. 3. Após a primeira publicação, o autor tem autorização para assumir contratos adicionais, independentes da revista, para a divulgação do trabalho por outros meios (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), desde que feita a citação completa da mesma autoria e da publicação original. 4. O autor de um artigo já publicado tem permissão e é estimulado a distribuir seu trabalho on-line, sempre com as devidas citações da primeira edição. Conflitos de interesse e ética de pesquisa Caso a pesquisa desenvolvida ou a publicação do artigo possam gerar dúvidas quanto a potenciais conflitos de interesse, o autor deve declarar em nota final que não foram omitidas quaisquer ligações a órgãos de financiamento, bem como a instituições comerciais ou políticas. Do mesmo modo, deve-se mencionar a instituição à qual o autor eventualmente esteja vinculado, ou que tenha colaborado na execução do estudo, evidenciando não haver quaisquer conflitos de interesse com o resultado ora apresentado. É também necessário informar que as entrevistas e experimentações envolvendo seres humanos obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica. Os nomes e endereços informados à revista serão utilizados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros. Correspondência: Faculdade de Educação - USP Educação e Pesquisa Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca 05508-040 - São Paulo/SP Tel./Fax: (11) 3091-3520 E-mail: [email protected] 848 Instructions to authors Educação e Pesquisa publishes only previously unpublished articles in the field of education and does not consider manuscripts concurrently submitted for publication in books or other periodicals in Brazil or abroad. Manuscripts must be submitted via the journal’s page in SciELO publishing system (http://www.scielo.org/php/index.php). The time frame necessary for submissions to complete the review process – and be selected or rejected – varies according to the complexity of the reviews and possible changes suggested and implemented. The dates of receipt and approval of each article are stated in the published text. For each of the journal’s issues, the Editorial Board establishes the criteria of organization of the articles approved. Guidelines for manuscript submission Upon submission of an article, authorship and the author’s institutional affiliations must be filled out in proper spaces in SciELO System and should not be mentioned in the text, which will be submitted to blind peer review. Any references that enable reviewers to infer indirectly the authorship of the work are not accepted either. Authorship information is recorded separately, as metadata, and it is accessed only by the editors. When preparing the manuscript, the following guidelines should be followed: • The manuscript can be submitted in Portuguese, Spanish or English. It should be typed in Word for Windows, Times New Roman font, 12-point font size, 1.5 line spacing. All the manuscript pages should be numbered sequentially. The body of the manuscript should have a minimum length of 35,000 and a maximum length of 50,000 characters, including spaces and not including the abstract. • The title of the manuscript should have 15 words or fewer. • The abstract should contain between 200 and 250 words and describe, in an informative manner and without listing topics, the following items: general theme and research problem; objectives and/or hypotheses; methodology; main results and conclusions. It is recommended that the abstract should be written as a single paragraph, in the active voice, in the third person of the singular, in concise and affirmative sentences. The following items should be avoided: neologisms, bibliographical citations, symbols and abbreviations except those in common use, as well as formulae, equations, diagrams etc., unless absolutely necessary. • The article should have 3 to 5 keywords. • Possible acknowledgements should be cited with the title, but in a footnote, and without any direct or indirect reference to the authorship. • Tables, charts, graphs, and figures (photos, drawings and maps) should be numbered with Arabic numerals in the order in which they appear in the text and should include appropriate headers. Legends should appear right below each figure. Maps should contain graph scales and legends. • Images must be grayscale, be scanned electronically in JPG format with 300 dpi or higher resolution and have dimensions that allow reducing or enlarging them without 849 impairing their readability. All images must be submitted as separate files and named according to their references in the text (e.g., Graph 1). • Explanatory footnotes should be avoided and used only when strictly necessary for understanding the text. Their maximum length should be three lines. Notes should be numbered in Arabic numerals according to the order in which they appear in the text. • Citations in the text should meet the following criteria: a) quotations of up to three lines should be run in – integrated into the text in the same font size as the text - enclosed in quotation marks and be followed by the following information in parentheses: last name of the author of the quote, the year of publication and page numbers; b) quotations longer than three lines should be set off as block quotations – that is, in a new paragraph with a hanging indent of 4 cm on the left, 11 point font, without quotation marks; c) if there is no quotation, but just a reference to some work, the author’s last name should be cited in parentheses in capital letters along with the year of publication. • References must conform strictly with the technical standard NBR6023 of August 30, 2002 of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only works cited in the text should be included in the reference list, under the heading References, at the end of the article and on a separate page. Examples: FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São Paulo: FFCL/USP, 1954. FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana. São Paulo: FFCL/USP, 1960. FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975. FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso em: 25 fev. 2011. PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973. PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana: perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383. VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008. 850 VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000. Statistical methods When employed, statistical methods must be described in sufficient detail to allow a competent reader access to the original data and verification of the results presented, whilst avoiding excessively technical language and presenting results with enough clarity so as to facilitate their understanding by a non-specialized reader. This guidance to authors requires steps such as: seeking, as much as possible, to quantify the results and present them with corresponding indicators of measurement error or uncertainty (for example, confidence intervals); avoiding relying solely on statistical inference tests that convey no relevant quantitative information; discussing the eligibility of the experimentation units; supplying detailed information about randomization and about the observations; discussing the reasonableness of the results, as well as the possible limitations of the method used; specifying the software employed; restricting tables and graphics to the amount necessary to explain the foundations of the article and their robustness; avoiding tables with too many topics and duplication of data; defining statistical terms, abbreviations and symbols used in the article. Initial assessment Manuscripts undergo a preliminary assessment by the editorial board. Then they are returned to their authors with observations, or sent directly to external referees. The purpose of this initial phase is to assess whether the manuscript fits the scope and guidelines of Education and Research and whether it has potential for dialogue with the educational field, contributing to the knowledge within this field. Using this assessment, the editorial board decides whether a full external review is justified. Peer review process The articles received for their eventual publication in Educação e Pesquisa will be previously read by the Editorial Board. The articles that do not meet the editorial requirements shall be returned, and the rest of them will be forwarded to three evaluators for their analysis. At the most, one of the evaluators will be a member of the School of Educaton of the Universidade de São Paulo, to which the journal is subordinated. All evaluators have at least a doctor’s degree and belong to various scientific institutions. The names of the authors, the evaluators and the institutions they belong to will remain undisclosed throughout the entire process. The journal publishes annually the names of its body of evaluators ad hoc. The aspects that guide the evaluation of the articles are: theoretical and empirical content, author’s knowledge of scientific literature, current relevance of the topic, contribution to the specific area of knowedge, originality of the approach, text structure and writing style. The evaluators may recommend the integral acceptance of the text or its rejection, or they may suggest modifications for a new evaluation. The Editorial Board may submit such suggestions to the author of the article, and after the changes have been included, the Board will send the article again to the evaluators for a final evaluation 851 Authorship Author is understood here as anyone who has effectively taken part in the conception of the study, in the development of the experimental sections, in the analysis and interpretation of data and in the final writing. It is recommended that the total number of authors should not be greater than four. If the number of authors is larger than that, the editor in charge must be informed of the degree of participation of each author. In the case of doubt about the compatibility between the number of authors and the results presented, the Editorial Board has the right to question the participation of authors and to refuse submission at its discretion. By submitting an article for publication in Educação e Pesquisa the author agrees to the following terms: 1. The author holds the article copyrights, but its publication in the journal automatically implies the author’s agreement to release its complete copyright to the journal’s first issue, without financial compensation. 2. The ideas and opinions expressed in the article are the author’s exclusive responsibility and they do not necessarily reflect the opinions of the journal. 3. After the article’s first publication, the author is authorized to assume additional contracts, independent from the journal, to publish or present the work through other means (e.g. in an institutional repository or as a book chapter), as long as a complete quote of the authorship and of the original publication are provided. 4. The author of an article published in the journal has the right to, and is encouraged to, distribute the work on-line, always quoting its first publication in the journal. Conflicts of interest and research ethics When the research developed or the publication of the article may raise doubts about potential conflicts of interest, the author should declare in an endnote that no links to funding agencies or to commercial or political institutions have been omitted. Similarly, the institution to which the author is associated, or that has collaborated in the conducting of the study, should also be mentioned to guarantee that there are no conflicts of interest with the results being presented. It is also necessary to inform that the interviews and experiments involving human beings have followed the ethical procedures established for scientific research. The names and email addresses entered in this journal site will be used exclusively for the stated purposes of this journal and will not be made available for any other purpose or to any other party. Contact: Faculdade de Educação - USP Educação e Pesquisa Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca 05508-040 - São Paulo/SP Tel./Fax: (11) 3091-3520 E-mail: [email protected] 852 Instrucciones a los autores Educação e Pesquisa publica solamente artículos inéditos en el área de Educación y no acepta trabajos que hayan sido enviados simultáneamente a libros u otros periódicos nacionales o extranjeros. Los trabajos se deben enviar a través de la página de la revista en el Sistema SciELO de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php). El plazo para respuesta (aceptación o rechazo) varía según la complejidad de las evaluaciones y posibles alteraciones sugeridas y realizadas. Las fechas de recibimiento y aprobación de cada colaboración se informarán en el texto publicado. Le corresponde al Comité Editorial definir, en cada número de la revista, los criterios para reunir los artículos ya aprobados. Directrices para la presentación de trabajos Al proponer un artículo, la identificación del (de los) autor(es) y la pertenencia institucional se deben rellenar en los espacios propios del Sistema SciELO y no deben figurar en el cuerpo del texto, que se enviará para evaluación. No se aceptará ninguna referencia que le permita al lector crítico inferir indirectamente la autoría del trabajo. Las informaciones autorales se registran a parte y solamente los editores tienen acceso a ellas. De esa forma, el Comité Editorial garantiza el anonimato de autores y evaluadores. Al redactar el artículo, se deben considerar las siguientes orientaciones: • El texto se puede presentar en portugués, español o inglés, se debe digitar en procesador de texto Word for Windows, en Times New Roman 12 pto, espacio 1,5. Todas las páginas del original se deben numerar secuencialmente. El texto debe tener como mínimo 35.000 caracteres y como máximo 50.000, considerando espacios y excluyendo el resumen. • El título del artículo debe tener como máximo 15 palabras. • El resumen debe contener entre 200 y 250 palabras y explicitar, con carácter informativo y sin enumeración de tópicos, los siguientes ítems: tema general y problema de la investigación; objetivos y/o hipótesis; metodología empleada; principales resultados y conclusiones. Se recomienda el uso de un único párrafo, voz activa y tercera persona del singular, frases concisas y afirmativas. Se deben evitar: neologismos, citaciones bibliográficas, símbolos y contracciones que no sean de uso corriente, así como fórmulas, ecuaciones, diagramas, etc. que no sean absolutamente necesarios. • Se deben incluir de 3 a 5 palabras clave. • Los agradecimientos (opcionales) se deben mencionar junto al título, pero en nota de pie de página y sin ninguna referencia, directa o indirecta, a la autoría. • Tablas, cuadros, gráficos y figuras (fotos, dibujos y mapas) deben estar numerados con números arábigos según la secuencia en que aparezcan, siempre referidos en el cuerpo del texto y encabezados por su respectivo título. Inmediatamente debajo de las figuras deben constar sus respectivos subtítulos. Los mapas deben presentar escalas y subtítulos gráficos. • Las imágenes deben figurar en blanco y negro y deben estar digitalizadas electrónicamente en formato JPG con resolución a partir de 300 ppp. Deben presentarse en dimensiones 853 que permitan ampliarlas o reducirlas sin perjudicar su legibilidad. Todas las imágenes deben enviarse separadamente, en sus archivos originales. El nombre de cada archivo debe corresponder al nombre de la imagen (por ejemplo: Gráfico 1). • Notas de pie de página de carácter explicativo se deben evitar. Pueden utilizarse únicamente cuando sean imprescindibles para la comprensión del texto y deben tener la extensión máxima de tres líneas. Las notas deben estar numeradas con números arábigos según la secuencia en que aparezcan en el texto. • Las citas en el cuerpo del texto deben obedecer a los siguientes criterios: a) Citas textuales que tengan hasta tres líneas se deben incorporar al párrafo, transcritas entre comillas y acompañadas de las siguientes informaciones entre paréntesis: apellido del autor de la cita, año de publicación y número de página; b) Citas textuales que tengan más de tres líneas deben estar en párrafo aislado, con margen izquierdo de 4 cm, letra tamaño 11 y sin comillas; c) Si no hay cita textual sino cita bibliográfica, el apellido del autor tiene que estar indicado entre paréntesis, con letras mayúsculas, junto al año de la publicación mencionada. • Las referencias deben obedecer a la norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, de la Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Solamente las obras mencionadas a lo largo del texto deben figurar en la bibliografía, que debe constar con el título de Referencias, al final del texto y en página separada. Ejemplos: FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São Paulo: FFCL/USP, 1954. FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana. São Paulo: FFCL/USP, 1960. FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975. FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso em: 25 fev. 2011. PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973. PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana: perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383. VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008. 854 VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000. Métodos y estadísticas Cuando utilizados, los métodos estadísticos se tienen que describir con el detalle necesario para permitir el acceso a los datos originales y la comprobación de los resltados presentados por un lector versado en el asunto; por otro lado, se debe evitar un lenguaje excesivamente técnico y presentarlo con suficiente claridad de modo a favorecer la comprensión de un lector no especializado. Tal solicitud a los autores requiere providencias tales como: buscar, siempre que posible, cuantificar los resultados y presentarlos con los correspondientes indicadores de error de medición o de incertidumbre (por ejemplo, intervalos de confianza); evitar basarse solamente en tests de inferencia estadística, que no vehiculan información cuantitativa relevante; discutir la elegibilidad de las unidades de experimentación; proveer información pormenorizada sobre lo aleatorio y sobre las observaciones; discutir la razonabilidad de los resultados y dar a conocer posibles limitaciones del método utilizado; especificar los programas informáticos empleados; restringir cuadros y figuras a la cantidad necesaria para explicitar la fundamentación del artículo y su solidez; evitar cuadros con demasiados tópicos y duplicación de datos; definir términos estadísticos, abreviaturas y símbolos utilizados en el artículo. Evaluación Inicial El artículo pasa por una valoración preliminar realizada por la comisión editorial, después de la cual, puede ser devuelto al autor /a con observaciones, o, enviado directamente para evaluadores externos/as. El objetivo de esa etapa inicial es evaluar si el artículo se ajusta a las directrices y alcance de Educação e Pesquisa, así como su potencial de diálogo con el campo educacional, contribuyendo en la construcción de conocimientos dentro de este campo. A partir de esa apreciación, la comisión editorial decide si se justifica una evaluación externa integral. Proceso de revisión por pares Los artículos enviados para eventual publicación en la Educação e Pesquisa serán previamente evaluados por el Comité Editorial. Los que no estén de acuerdo con los criterios editoriales de la revista se devolverá a sus autores y los demás enviados para análisis de tres evaluadores, como máximo uno de ellos será miembro de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo, a la que la revista está subordinada. Los evaluadores consultados pertenecen a instituciones científicas diversas y tendrán, como mínimo, el título de doctor. Los nombres de los autores, de los evaluadores y de las instituciones a que pertenecen permanecen anónimos durante todo el proceso. La revista publica a cada año los nombres de sus evaluadores ad hoc. Los aspectos que orientan la evaluación de los originales enviados a los pares para el análisis son: contenido teórico y empírico, dominio de la literatura científica, actualidad del tema, contribución para el área de conocimiento específica, originalidad del abordaje, estructura del texto y calidad de redacción. Los evaluadores podrán recomendar la aceptación del texto en su íntegra, o su rechazo, o aun sugerir modificaciones para nueva evaluación. El Comité Editorial podrá someter las sugerencias de reformulación al autor y el artículo, ya reformulado, retornará a los mismos evaluadores para una evaluación final. 855 Autoría Se entiende por autor todo el que haya participado efectivamente de la concepción del estudio, del desarrollo de la parte experimental, del análisis e interpretación de datos y de la redacción final. Se recomienda no exceder el número total de cuatro autores. En el caso de que la cantidad de autores exceda ese número, se debe informar al editor responsable el grado de participación de cada uno. Si hay alguna duda sobre la compatibilidad entre el número de autores y los resultados presentados, el Comité Editorial se reserva el derecho de cuestionar las participaciones y de rechazar la sumisión del artículo si lo juzga pertinente. Al someter un artículo para publicación en Educação e Pesquisa el autor está de acuerdo con los siguientes términos: 1. El autor mantiene los derechos sobre el artículo, pero su publicación en la revista implica, automáticamente, la cesión total y exclusiva de los derechos de autor para la primera edición, sin pago. 2. Las ideas y opiniones expresadas en el artículo son de exclusiva responsabilidad del autor y no reflejan necesariamente las opiniones de la revista. 3. Después de la primera publicación, el autor tiene autorización para asumir contratos adicionales, independientes de la Revista, para la divulgación del trabajo por otros medios (ex.: publicar en repositorio institucional o como capítulo de libro), desde que hecha la cita completa de la misma autoría y de la publicación original. 4. El autor de un artículo ya publicado tiene permiso y es estimulado a distribuir su trabajo online, siempre con las debidas citas de la primera edición. Conflictos de interés y ética de investigación En el caso de que la investigación desarrollada o la publicación del artículo puedan generar dudas en cuanto a potenciales conflictos de interés, el autor debe declarar en nota final que no se han omitido cualesquiera relaciones con órganos de financiamiento ni tampoco con instituciones comerciales o políticas. De la misma manera, se debe mencionar la institución a la que el autor esté vinculado, o que haya colaborado en la ejecución del estudio, evidenciando que no hay cualquier tipo de conflictos de interés con el resultado que se presenta. También es necesario informar que las entrevistas y experimentos que impliquen a seres humanos obedezcan a los procedimientos éticos establecidos para la investigación científica. Los nombres y las direcciones informados en esta revista serán utilizados exclusivamente para los servicios dados por la publicación, no estarán disponibles a otros propósitos o a terceros. Correspondencia: Faculdade de Educação - USP Educação e Pesquisa Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca 05508-040 - São Paulo/SP Tel/Fax: (11) 3091-3520 E-mail: [email protected] 856 Leia também / See also Educação e Pesquisa revista da faculdade de educação da usp Sumários Educação e Pesquisa v. 40, n. 2, abr./jun. 2014 Educação e Pesquisa v. 40, n. 1, jan./mar. 2014 Artigos Artigos PACKER, Abel Laerte. A eclosão dos periódicos do Brasil e cenários para o seu porvir, p. 301-323. REGO, Teresa Cristina. Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: entre o veneno e o remédio, p. 325-346. BENCHIMOL, Jaime L.; CERQUEIRA, Roberta C.; PAPI, Camilo. Desafios aos editores da área de humanidades no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e experiências, p. 347-364. ALVES, Mariana Gaio; AZEVEDO, Nair Rios; GONÇALVES, Teresa N. R. Satisfação e situação profissional: um estudo com professores nos primeiros anos de carreira, p. 365-382. RAMOS, Madalena; PARENTE, Cristina; SANTOS, Mónica. Os licenciados em Portugal: uma tipificação de perfis de inserção profissional, p. 383-400. ABREU, Daniela Gonçalves de; MOURA, Manoel Oriosvaldo de. Construção de instrumentos teórico-metodológicos para captar a formação de professores, p. 401-414. FERNANDES, Priscila Correia; MUNFORD, Danusa; FERREIRA, Marcia Serra. Sentidos de prática pedagógica na produção brasileira sobre formação inicial de professores de ciências (2000-2010), p. 415-434. PAULA, Benjamin Xavier de; GUIMARÃES, Selva. 10 anos da lei federal nº 10.639/2003 e a formação de professores: uma leitura de pesquisas científicas, p. 435-448. MONTEIRO, Sara Mourão; SOARES, Magda. Processos cognitivos na leitura inicial: relação entre estratégias de reconhecimento de palavras e alfabetização, p. 449-466. MARCHIORI, Patricia Zeni; GREEF, Ana Carolina. Atividade de escrita colaborativa: percepção de alunos, princípio cooperativo de Grice e social loafing, p. 467-482. 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