Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de

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Untitled - EDUCAÇÃO E PESQUISA – Revista da Faculdade de
Educação e Pesquisa
Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Education and Research
Journal of the School of Education, University of São Paulo
Universidade de São Paulo / University of São Paulo
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Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Revista financiada com recursos de
Educação e Pesquisa
revista
da
Educação e Pesquisa faculdade
São Paulo v. 40
de
educação
n. 3
280 p.
da
usp
jul./set. 2014
ISSN 1517-9702
Educação e Pesquisa, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014.
EDUCAÇÃO E PESQUISA publica artigos inéditos na área de educação, em especial resultados de
pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional.
Educação e Pesquisa. São Paulo, FE/USP, 1975.
Trimestral
Publicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Continuação da Revista da Faculdade de Educação da USP
ISSN 1517-9702
1. Educação.
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Sumário
589
Editorial
Artigos
599
La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios colombianos
Miguel Ángel Gómez Mendoza; María Victoria Alzate Piedranhita
617
Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e processos
637
Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada
em casos
Maria Gabriela Parenti Bicalho; Maria Celeste Reis Fernandes Souza
Andreia Cristina Metzner
651
O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC)
Celina Hoffmann; Roselaine Ruviaro Zanini; Ângela Cristina Corrêa; Julio Cezar Mairesse Siluk;
Vitor Francisco Schuch Júnior; Lucas Veiga Ávila
667
Contribuições da perspectiva crítica de base histórico-cultural para a produção científica
em psicologia educacional
Laísy de Lima; Simone Salviano Alves; Jaqueline Vilar Ramalho; Fabíola de Sousa Braz Aquino
683
Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP
Marcos Cezar de Freitas
699
La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso
latinoamericano
Jaime Rogelio Calderón López-Velarde
717
O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização
familiar?
Marília Pinto de Carvalho; Adriano Souza Senkevics; Tatiana Avila Loges
735
As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas
751
Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos
767
Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia
solidária internacional
Carlos Manoel Pimenta Pires
Victor Andrade de Melo
Antonio Takao Kanamaru
783
A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
799
Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em
Honneth e Rousseau
Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco
Claudio Almir Dalbosco
813
Experiência e linguagem em Walter Benjamin
Eloiza Gurgel Pires
Entrevista
829
Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
Entrevistador: Danilo R. Streck
845
Instruções aos colaboradores
859
Leia também
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014.
Contents
589
Editorial
Articles
599
Teaching and its relation to knowledge among Colombian university students
617
The relationship of higher education students to knowledge: learnings and processes
Miguel Ángel Gómez Mendoza; María Victoria Alzate Piedranhita
Maria Gabriela Parenti Bicalho; Maria Celeste Reis Fernandes Souza
637
A teaching proposal implemented in an undergraduate Physical Education program:
case-Based Learning
Andreia Cristina Metzner
651
Performance of Brazilian universities in view of the General Course Index (IGC)
Celina Hoffmann; Roselaine Ruviaro Zanini; Ângela Cristina Corrêa; Julio Cezar Mairesse Siluk;
Vitor Francisco Schuch Júnior; Lucas Veiga Ávila
667
Contributions of the cultural-historical-based critical perspective to scientific production
in educational psychology
Laísy de Lima; Simone Salviano Alves; Jaqueline Vilar Ramalho; Fabíola de Sousa Braz Aquino
683
Performance and adaptation of poor children to school: the research pattern of CRPE-SP
Marcos Cezar de Freitas
699
Investigation on youth and adult education: the theses of a Latin American contest
717
School success of girls from poor communities: what is the role of family socialization?
735
The mortification of the flesh and the desire exposed: control over girls in Catholic institutions
Jaime Rogelio Calderón López-Velarde
Marília Pinto de Carvalho; Adriano Souza Senkevics; Tatiana Avila Loges
Carlos Manoel Pimenta Pires
751
Body education – social dance in 19th century Rio de Janeiro: the Paranhos point of view
Victor Andrade de Melo
767
Autonomy, cooperativeness and self-management in Freinet: foundations of an
international solidarity pedagogy
Antonio Takao Kanamaru
783
Progressive education today: the legacy of John Dewey
Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco
799
The human condition and the virtuous education of the will: the depths of recognition in
Honneth and Rousseau
Claudio Almir Dalbosco
813
Experience and language in Walter Benjamin
Eloiza Gurgel Pires
Interview
829
Ecological rationality and citizenship education: interview with Gerd Gigerenzer
Interviewer: Danilo R. Streck
845
Instructions to authors
859
See also
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014.
Editorial
O acesso a artigos científicos em meio digital evidenciou que a relação do leitor com o texto possa
se fazer de modo um tanto mais direto, isto é, sem que necessariamente o leitor,
no seu percurso em busca da referência bibliográfica, se depare com informações
sobre o processo de edição que antecedeu e possibilitou a publicação do trabalho.
Um dos efeitos que essa relação um leitor – um texto pode produzir é também
a não necessária localização do artigo a ser lido no interior de um conjunto em
que componha uma organização. A ideia de unificação que sustenta o processo
de organização de um número de periódico científico pode se enfrentar, assim,
com a prevalência da unidade e da autonomia de cada um dos textos sobre a
ideia de organicidade que sustenta a edição de uma revista científica. O mundo
digital nos fez perceber de modo mais decisivo que a parte pode sobressair ou
se sobrepor ao todo.
Mas é justamente nas condições em que a parte, o fragmento, o heterogêneo, encontram-se em
lugar de relevo que a organização de um conjunto pode se mostrar tanto mais
produtiva. Em razão de projetar um leitor não apenas em busca de seus interesses
mais imediatos, projeta-se também um leitor que possa encontrar, no volume
a ser lido, uma coletânea em que questionamentos se fortaleçam com base no
próprio diálogo que se possa vislumbrar entre os textos aproximados para compor
o conjunto. E isso é tanto mais interessante quando se considera a multiplicidade
de perspectivas teóricas e metodológicas que compõem um campo como o da
educação e a qualidade dos debates que se apresenta nas produções que se
destinam à publicação em uma revista como Educação e Pesquisa.
É com satisfação que se apresenta, portanto, o terceiro número que compõe o volume 40 de
nosso periódico. Encontram-se nele artigos que propõem de modo instigante a
observação de questões educacionais segundo pontos de vista que se pretendem
distintos, inovadores, porque questionadores dos modos como estabelecidos, ou,
por vezes, estabilizados, dos processos de elaboração teórica e/ou metodológica
que sustentam as investigações em suas respectivas áreas. Os princípios que
orientam a organização do presente número de Educação e Pesquisa são, assim,
o questionamento das referências estabelecidas e a proposição de perspectivas
diferenciadas para a produção de conhecimentos no campo educacional.
Nesse sentido, abre a coletânea um conjunto de quatro artigos que se reúnem em torno do
questionamento sobre relações estabelecidas com o saber produzido. No primeiro
deles, “La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios
colombianos”, Miguel Ángel Gómez Mendoza e María Victoria Alzate
Piedranhita apresentam resultados de pesquisa que se orientou por conhecer
quais mecanismos estariam dificultando o sucesso de estudantes universitários
colombianos em seu percurso acadêmico, num contexto de massificação do
acesso à universidade. Ao questionar os modos como estudantes universitários
estabelecem suas relações com o saber em geral, e com o acadêmico em
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-970220144003001
589
particular, os autores partem do pressuposto de que não se trata de atribuir as
dificuldades acadêmicas dos alunos a carências que trazem de seus contextos
sociais de origem, mas a especificidades do ensino universitário e aos modos
como se conduzem as práticas pedagógicas na academia. São esse pressuposto
e o apoio em proposta teórico-metodológica referenciada na noção de relação
com, elaborada por Bernard Charlot, que sustentam a observação acurada e a
análise produtiva e reveladora sobre as relações do estudante universitário com
o contexto de aprendizagem que encontra na universidade.
O próximo texto desse primeiro conjunto também apresenta questionamentos sobre a relação
do estudante universitário com o saber, mas, neste caso, em contexto brasileiro.
Em “Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e
processos”, Maria Gabriela Parenti Bicalho e Maria Celeste Reis Fernandes
Souza também se referenciam na proposta teórico-metodológica de Bernard
Charlot para observar os modos como alunos de uma instituição de ensino
superior comunitária, privada, localizada em Minas Gerais, se relacionam
com os saberes que se lhes apresentam em seu percurso universitário para
a formação profissional. As autoras examinam os diferentes modos como os
sujeitos da pesquisa representam a formação universitária e como valoram a
função dessa experiência em relação a sua formação prévia, aos seus valores
sociais e culturais trazidos da escola básica e da família, e a seus projetos
presentes e futuros. Com a análise dos dados, evidenciam-se características
do contexto observado que proporcionam questionamentos decisivos, quanto
aos objetivos propostos e aos alcançados, para a formação profissional em
Instituições de Ensino Superior, se consideradas as percepções dos estudantes
sobre os modos de sua inserção nesse processo formativo.
Em “Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada em
casos”, Andreia Cristina Metzner problematiza a ordenação curricular centrada
na noção de disciplina e na ausência de estabelecimento de relações entre as
unidades curriculares que compõem os cursos do ensino superior. A formação
de professores se depararia, assim, com a impossibilidade de elaboração de um
currículo mais orgânico, o que, nesse sentido, estaria relacionado com a dificuldade
de se realizar um processo formativo fundado na interdisciplinaridade e na
transdisciplinaridade. Uma perspectiva de solução para essa ordem existente seria
a organização do ensino em torno da aprendizagem baseada em casos. Os dados
da pesquisa se produziram com o emprego dessa metodologia, em experiência
desenvolvida em um curso de Educação Física de uma Instituição de Ensino
Superior, localizada no interior do estado de São Paulo. Em torno da atividade
formativa com os alunos, outras ações acadêmicas compuseram a experiência
desenvolvida, de modo a se realizar um trabalho que respondesse aos princípios
de inter e transdisciplinaridade que orientaram a pesquisa.
Encerra este primeiro conjunto o artigo “O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva
do Índice Geral de Cursos (IGC)”, de autoria de Celina Hoffmann, Roselaine
Ruviaro Zanini, Ângela Cristina Corrêa, Julio Cezar Mairesse Siluk, Vitor
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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
Francisco Schuch Júnior e Lucas Veiga Ávila. Trata-se também de trabalho em
que se observam as relações dos sujeitos com os saberes acadêmicos, porém, neste
caso, a partir da perspectiva institucional. Colocando-se em face das discussões
críticas sobre os processos de avaliação das Instituições de Ensino Superior
no Brasil, os autores apresentam os problemas historicamente apontados para
esses processos, e os questionamentos sobre suas bases epistemológicas, suas
diretrizes valorativas e suas consequências sociais. Após esses apontamentos,
estabelecem posicionamento dissonante ao que fora revisado na literatura sobre
o assunto, e propõem-se a considerar as contribuições que pode oferecer, para
a avaliação da qualidade do ensino superior, a análise dos resultados do Índice
Geral de Cursos, produzidos no interior do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior (SINAES).
No segundo conjunto de artigos a compor este número da revista Educação e Pesquisa, reúnem-se
trabalhos produzidos com o objetivo de revisar o que se produziu historicamente
nas áreas em que se inserem. Em “Contribuições da perspectiva crítica de base
histórico-cultural para a produção científica em psicologia educacional”, Laísy
de Lima, Simone Salviano Alves, Jaqueline Vilar Ramalho e Fabíola de Sousa
Braz Aquino se propõem a mapear, dentre as produções em psicologia escolar e
educacional, aquelas que se filiam à abordagem histórico-cultural de ascendência
vigotskiana. O objetivo é o de reconhecer a produtividade em pesquisas que se
alinham a essa vertente teórica, para contribuir com os processos de investigação
que se realizem segundo essa perspectiva. Mais do que isso, encontra-se, no artigo,
abordagem das produções analisadas que as posiciona em face da elaboração
histórica que as tornou possível, com o que se oferece ao leitor, portanto, dimensão
crítica de relevo para se observar a constituição de uma concepção teórica que,
segundo as autoras, se associa ao compromisso da investigação científica com o
que é do social e da cidadania.
No artigo “Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP”,
Marcos Cezar de Freitas observa de que modo se produziu um novo padrão de
pesquisa no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE-SP),
entre 1956 e 1963. O autor analisa as filiações teórico-metodológicas de dois de
seus principais pesquisadores no período, Dante Moreira Leite e Luiz Pereira, e as
proposições que desenvolvem para o tratamento das relações entre a constituição
da cidade de São Paulo em metrópole, com o processo de urbanização por que
passava o país naquele momento histórico, e, associadamente a esse processo, a
chegada, à escola, de crianças pobres. O novo padrão de pesquisa desenvolvido
conduziu à possibilidade de observar o desempenho insatisfatório da criança de
periferia na escola não como decorrente de aspectos biológicos, mas de questões
sociais, com o que se evidenciava o funcionamento de um princípio de exclusão
a regular as avaliações sobre o aproveitamento escolar. Trata-se, portanto, de
um momento de produtividade determinante para a pesquisa em sociologia da
educação, tanto no que se refere às novas possibilidades teórico-metodológicas
que se elaboravam, quanto aos resultados obtidos com as investigações realizadas.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
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Em “La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso
latino-americano”, Jaime Rogelio Calderón López-Velarde mapeia a distribuição,
no contexto da América Latina e do Caribe, das investigações na área. Para tanto,
discute a própria compreensão que tem sido historicamente construída do que seja
a Educação de Jovens e Adultos e as consequências que têm produzido uma ou
outra proposta de definição para o que a constitui. Considera, assim, os avanços
obtidos nesse processo de (re)definições, e aponta para os desafios que a partir delas
se apresentam. Ao tratar teórico-metodologicamente os dados de análise, observa,
contrastivamente, as características das investigações em Educação de Jovens e
Adultos desenvolvidas nos diferentes países representados pelos documentos que
compõem o corpus da pesquisa. Mostra-se, assim, não apenas um painel histórico
e geográfico sobre a produção de conhecimento na área, mas também dos modos
diversos de inserção institucional que a Educação de Jovens e Adultos encontra nos
contextos analisados.
O terceiro conjunto de artigos se reúne em torno da temática do controle dos sujeitos e dos efeitos que
as formas de controle produzem para os processos educativos. O artigo “O sucesso
escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar?”,
de autoria de Marília Pinto de Carvalho, Adriano Souza Senkevics e Tatiana Avila
Loges, apresenta resultados de pesquisa de caráter qualitativo, desenvolvida ao
longo de 2011, com oito famílias de setores populares da cidade de São Paulo.
O objetivo foi o de investigar como as diferenças na educação de meninos e na
educação de meninas, tais como representadas e realizadas pelos sujeitos das
famílias participantes da pesquisa, poderiam se associar ao desempenho mais e
menos satisfatório de meninas e meninos na escola. Os autores se propuseram
a romper com as abordagens dicotômicas encontradas em pesquisas que se
voltaram anteriormente sobre a mesma temática, de maneira a não relacionar de
modo estreito o sucesso escolar de meninas ao aprendizado da subordinação a que
estariam social e historicamente submetidas. Antes disso, procuraram observar as
respostas que os dados ofereceram às perguntas orientadoras da investigação e
tratar dessas respostas seguindo o princípio de que as relações de poder ligadas ao
gênero se constituem segundo dimensões contraditórias. Assim, dizem os autores:
“para não reiterar pressupostos afirmados de antemão, buscamos apreender
na análise tanto dimensões de ruptura quanto de manutenção das posições
subordinadas das mulheres”.
Artigo igualmente instigante é “As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre
meninas em instituições católicas”, de Carlos Manoel Pimenta Pires. Em bases
foucaultianas, o autor analisa o chamado Manual de piedade da donzela cristã,
material didático utilizado para a educação de meninas em internatos e conventos,
na segunda metade do século XIX e início do século XX, em Portugal. A hipótese
com que trabalha é a de que, no século XIX, processou-se a formação de episteme e
moral específicas da mulher, de modo a centrar o feminino como agente produtivo
da moralidade para a sociedade que se organizaria então no mundo ocidental e
de que muitos elementos nos encontrariam ainda hoje, na contemporaneidade. A
tese é a de que as instruções eclesiais participaram decisivamente do processo de
592
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
formação desse sujeito feminino, com o que a Igreja teria pretendido, inclusive,
oferecer uma solução para a tensão gerada entre a vida privada familiar e a
convivência pública, no momento em que as sociedades soberanas começam a
ceder espaço para as sociedades industriais.
Também sobre o processo civilizatório, encerra esse terceiro conjunto o artigo “Educação do corpo
– bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos”. Com a análise de
crônicas publicadas no Jornal do Commercio por José Maria da Silva Paranhos,
personagem decisivo para a conformação do Império brasileiro, Victor Andrade
de Melo observa a importância dos bailes e das sociedades dançantes, não apenas
para a vida social, política e cultural do Rio de Janeiro da época, mas, nesse
caso, para a própria educação dos sujeitos que se constituíam nessa sociedade
que buscava um processo de promoção da civilidade. Em seus escritos, Paranhos
apresentou projetos para o Brasil, e o tratamento de temas relacionados aos bailes
e às danças compunha um de seus meios para a representação do que se desejaria
para uma nação não atrasada e para a evidência de uma elite em contraste com
o povo não educado. As danças da elite e as danças do povo marcavam o lugar
da separação entre uma e outra dessas classes sociais. Para a elite, os bailes
e a dança significavam a chance de polir os costumes, segundo Paranhos, de
modo a possibilitar conviver não elite e povo, mas os diferentes sociais que se
encontravam para compor essa classe privilegiada.
No último grupo de artigos que compõem este número de Educação e Pesquisa, encontram-se
trabalhos que se aproximam no objetivo comum de dialogar com a obra de
pensadores, direta ou não diretamente relacionados ao campo educacional, de
modo a produzirem-se discussões e subsídios para processos educativos. Nesse
sentido, em “Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos
de uma pedagogia solidária internacional”, Antonio Takao Kanamaru propõe-se
a observar o que seria um aspecto pouco considerado da obra do educador: “a
solidariedade radical em seus meios e seus fins”. A hipótese defendida é a de que o
cooperativismo e a autogestão seriam os pontos fundamentais das proposições de
Freinet, porque se associariam a uma pedagogia solidária de caráter internacional.
A defesa dessa hipótese se sustenta na observação de outra característica
também pouco explorada da obra desse autor: a presença de uma interpretação
heterodoxa do marxismo, sobre a alienação do sujeito produtor, as relações
materiais de produção, e a doutrina internacionalista de Marx. Nessas bases, a
pedagogia de Freinet se reinvestiria de ainda mais relevância na atualidade, pois
contraposta aos cerceamentos que políticas educacionais de caráter tecnocrático
e concorrencial, associadas a objetivos mercadológicos e financeiros, impõem à
liberdade pedagógica.
“A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey”, de autoria de Maria Luísa Frazão
Rodrigues Branco, contrasta também as propostas pedagógicas da educação
progressiva aos impedimentos à liberdade que representam na atualidade as políticas
educacionais de base neoliberal. Para responder ao objetivo de seu trabalho, a
autora revisita a obra de John Dewey em busca de assinalar os conceitos centrais
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
593
de seu pensamento pedagógico, para, em seguida, analisar como esses saberes
foram apropriados e desenvolvidos pelos pesquisadores que se propuseram a dar
continuidade ao trabalho do autor. Como no artigo anteriormente apresentado,
também neste se observa a caracterização do posicionamento político subjacente
à proposta pedagógica em análise, bem como aos modos como projetados os
sujeitos sociais que se constituiriam num processo formativo assentado nas
bases defendidas nessa concepção de ensino, de aprendizagem e de convivência
democrática no espaço escolar.
“Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em Honneth
e Rousseau”, de Claudio Almir Dalbosco, apresenta ao leitor a proposta do autor
de observar que a Rousseau deveria ser atribuído não mais apenas o papel de
fundador da liberdade reflexiva, mas também da liberdade social. Para tanto,
discute em que sentido é possível reconhecer, nas considerações de Rousseau que
sustentam a teoria do reconhecimento, como a educação do amor próprio “apenas
se deixa compreender adequadamente como teoria da formação virtuosa da
vontade”. Segundo o autor, no reconhecimento recíproco, sustenta-se o respeito
pelo outro, o que se opõe ao desejo de reconhecimento social fundado no amor
próprio e na concorrência com os demais, em busca incessante por um lugar de
superioridade. Assim, a formação do aluno para a igualdade social deveria se fazer
desde a tenra infância, de modo a garantir que o processo educativo conduzisse
ao respeito recíproco entre iguais, e, portanto, à liberdade social. Observa-se,
assim, o quanto se mostram redutoras as propostas educacionais contemporâneas
que se restringem ao tratamento dos processos de aprendizagem, limitando
perigosamente, segundo o autor, “questões educacionais amplas e complexas”.
Completa este último conjunto de artigos o trabalho “Experiência e linguagem em Walter
Benjamin”, de Eloiza Gurgel Pires. A autora trata da função que possui a
linguagem no pensamento benjaminiano, função de traduzir, de transmudar o
mundo, o que é “o próprio movimento que constitui o conhecimento”. É nesse
movimento que se sustentaria a educação, realizada ontogeneticamente no sujeito
e fundamentada no caráter mimético da linguagem, concepção a que se opôs,
historicamente, o pensamento abstrato, racional. “A partir desse experimentum
linguae, descobrem-se os reflexos míticos e poéticos, bem como o sentido do
sagrado frequentemente dissimulado nas atividades mais banais e cotidianas”.
Desse modo, a obra benjaminiana se oporia a qualquer projeto educativo, a
qualquer institucionalização do saber, pois esses seriam obstáculos à experiência
total e concreta do conhecimento.
Encerra o volume a entrevista de título “Racionalidade ecológica e formação de cidadania”, realizada
por Danilo R. Streck com Gerd Gigerenzer, pesquisador do Max-Planck Institute for
Human Development, em Berlim. Na entrevista, o pesquisador alemão apresenta
suas críticas a respeito da validação dos modos de produção de conhecimento se
apenas assentada em bases lógicas. Considera, assim, a necessidade de reconhecer
a legitimidade dos conhecimentos produzidos com base em processos intuitivos.
Seu ponto de vista se justifica na própria impossibilidade de totalização do
594
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
conhecimento sobre as realidades tomadas para investigação. Num mundo de
incertezas, como o atual, a racionalidade ecológica sustentaria a produção de
conhecimentos em contexto, isto é, em função das especificidades sociais e
culturais que se apresentam ao pesquisador, que demandam tomadas de decisões
autônomas e criativas, face ao insólito, ao inusitado, ao não-costumeiro, àquilo
que escapa às generalizações fundadas na racionalidade da lógica científica.
Temos, portanto, neste número de Educação e Pesquisa, artigos em que se apresentam perspectivas
críticas, pontos de vista questionadores, o que enseja a reflexão e o movimento
de posições nos debates contemporâneos no campo educacional. Reúnemse textos de áreas diversas da pesquisa em educação e, também, de filiações
institucionais e proveniências regionais as mais diversas, o que responde de
modo representativo à complexidade do campo. Apresenta-se, também, parte
dos artigos vertida ao inglês, com o objetivo de contribuir para a ampliação dos
modos de acesso ao periódico e para a constituição de uma comunidade leitora
cada vez mais abrangente.
Esperamos que esta edição de Educação e Pesquisa contribua para o desenvolvimento das
investigações científicas sobre os processos educacionais, para a contínua revisão
crítica dos modos de produção de conhecimentos na área, e para o necessário
questionamento dos saberes já produzidos.
Émerson de Pietri
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.
595
Artigos / Articles
La enseñanza y su relación con el saber en los
estudiantes universitarios colombianosI
Miguel Ángel Gómez MendozaII
María Victoria Alzate PiedranhitaII
Resumen
Se exponen los resultados de una investigación sobre las respuestas
de los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes
enseñados en la universidad desde la perspectiva de su relación con
el saber. Estudio exploratorio, cualitativo, descriptivo y descriptivo
en una muestra cualitativa con representatividad teórica de dieciséis
estudiantes de seis cursos universitarios, que se desarrollaron en el
segundo semestre de 2012 en la Universidad Tecnológica de Pereira,
Colombia. Se adoptaron cinco dimensiones de la relación con el
saber: (1) sentido; (2) dimensión de lo que es importante en el saber;
(3) contrato didáctico; (4) relación de identidad y afectiva con el
saber; y (5) actitudes de estudio. Tres rasgos generales surgen de
la investigación: (1) si bien los estudiantes, aceptan en su relación
con el saber la exigencia de la significación, esperan también
los momentos de la designación; (2) obstáculo importante en la
relación constituye la distancia entre lo que el curso propone y la
representación que el estudiante puede tener de la práctica fuente y
la práctica objetivo; (3) rasgo común para los cursos es la distancia
entre la percepción de las exigencias del profesor antes y después
de la evaluación. Se confirma la hipótesis comprensiva: la respuesta
que dan los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes
enseñados en la universidad dependen de su relación con el saber
y de sus actitudes y tratativas o enfoques que esta relación implica.
Palabras clave
I- Artículo resultado del Convenio 708 de
2012 Ministerio de Educación Nacional de
Colombia, Universidad Tecnológica de Pereira.
Convocatoria Realización de estudios sobre
Educación Superior 2012. (Código Vicerrectoría
de Investigaciones, Extensión e Innovación de
la Universidad Tecnológica de Pereira. VIIEUTP: 4-12-5. Código división financiera UTP:
5-11-3-234-25).
II- Universidad Tecnológica de Pereira, Pereira,
Risaralda, Colombia.
Contactos: [email protected],
[email protected]
Saber — Relación con el saber — Educación superior — Enseñanza —
Estudiantes — Universidad.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000008
599
Teaching and its relation to knowledge among
Colombian university studentsI
Miguel Ángel Gómez MendozaII
María Victoria Alzate PiedranhitaII
Abstract
This article presents the results of an investigation into student
responses to the demands of the forms of knowledge taught at the
university from the perspective of their relation to knowledge. It is
an exploratory, qualitative, and descriptive study with a qualitative
sample with theoretical representativeness of sixteen students
from six university courses offered in the second half of 2012 at
Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia. Five dimensions of
the relation to knowledge were adopted: (1) meaning, (2) dimension
of what is important in knowledge, (3) didactic contract, (4) identity
and affective relation to knowledge, and (5) study attitudes. Three
general features have emerged from the research: (1) although
students accepted the requirement of meaning in their relation to
knowledge, they also expect moments of designation; (2) the distance
between the course aims and the representation that the student may
have of the source practice and target practice is a major obstacle
in the relation; (3) the distance between the perception of the
demands of the professor before and after evaluation is a common
characteristic of the courses. The comprehensive hypothesis has
been confirmed: the response given by students to the demands of the
forms of knowledge taught at university depends on their relation
to knowledge and the attitudes and negotiations or approaches that
this relations implies.
Keywords
I- This article is a result of Agreement 708
of 2012 Ministry of National Education
of Colombia, Universidad Tecnológica
de Pereira. Call Realización de estudios
sobre Educación Superior 2012. (Code
Vicerrectoría de Investigaciones, Extensión
e Innovación de la Universidad Tecnológica
Knowledge — Relation to knowledge — Higher education — Education
— Students — University.
de Pereira. VIIE-UTP: 4-12-5. Financial
division code UTP: 5-11-3-234-25).
II- Universidad Tecnológica de Pereira,
Pereira, Risaralda, Colombia.
Contact: [email protected],
[email protected]
600
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000008
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 599-615, jul./set. 2014.
Algunos estudios han puesto en evidencia
de manera global los procesos de diferenciación
de las prácticas de estudio de los estudiantes
universitarios, tanto en el plano de las estrategias
de aprendizaje (ROMAINVILLE, 1993) como en
el de las competencias lingüísticas y textuales
(POLLET, 2001). El campo de de investigación
que se exploró en esta ocasión es el de la
relación que los estudiantes mantienen con las
diferentes formas de saber que se les pide o
demanda adquirir en la universidad. La noción
de relación con el saber (rapport au savoir), ha
tomado, desde hace veinte años, cada vez más
importancia en el campo de las ciencias humanas
y de la educación. Se trata de una noción que
continúa en proceso de elaboración y que ha
podido demostrar hasta ahora su real poder
heurístico tanto por sus cuestionamientos, como
por la relación con el campo de investigación e
intervención que este concepto abre.
Desde los años 90 del siglo pasado, en la
tradición de investigación sociológica, psicológica
y de las ciencias de la educación francesas, un
buen número de investigadores apelan a esta
noción de relación con el saber. Ella permite una
nueva aproximación al logro, al fracaso y a la
deserción escolar y universitaria. Dos equipos de
investigación de manera sistemática han hecho
uso de esta noción en sus trabajos: el grupo de
investigación del CREF (Centre de Recherche
Education et Formation de la Universidad Paris
X – Nanterre) y el grupo ESCOL (Education,
Socialisation, et Collectivités Locales de la
Universidad Paris VIII - Saint Denis).
Para Bernard Charlot (1997), promotor
del segundo grupo
(…) la relación con el saber es el conjunto
(organizado) de las relaciones que un
sujeto humano (esto es singular y social)
mantiene con todo lo que surge o se deriva
del ‘aprender’ y del saber: objeto, ‘contenido
de pensamiento’, actividad, relación
interpersonal, lugar, persona, situación,
ocasión, obligación, etc., asociados de
alguna manera al aprender y al saber. (p. 22)
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
Según Jacky Beillerot (1998) integrante
del grupo CREF, indagar la relación con el
saber, es
(…) estudiar las situaciones donde se
implementan los elementos de esta relación
con el saber. Si se postula que la relación
con el saber no es tanto un atributo como
un proceso, él es entonces más accesible en
situación, o a él el no es posible acceder sino
en situación (provocada o natural). (p.7)
Para investigadores de este grupo como
Beillerot; Blanchart-Laville; Mosconi (1996),
la referencia a la teoría psicoanalítica está
netamente marcada. La noción de relación con
el saber es analizada a través de la problemática
del deseo de saber. Es la dimensión clínica
que fundamenta la coherencia epistemológica
de sus investigaciones. Ahora bien, en una
perspectiva teórica, la relación con el saber es
percibida en un primer momento, en el nivel
de su génesis y en términos de relación de
objeto. Al respecto, como lo han desarrollado
Beillerot; Bouillet; Blanchard-Laville; Mosconi
(1989), Beillerot (1998) y Blanchard-Laville
(1996), en sus trabajos de elaboración teórica
y la relación con el saber, las concepciones de
Wilfred Bion y Donald Wood Winnicott, que
tratan de la construcción psíquica precoz de la
capacidad de aprendizaje, del pensamiento y de
las primera experiencias de saber se plantean
en primer lugar, junto a la teoría de Jacques
Lacan relacionada con el concepto de deseo, de
deseo de saber y de su insatisfacción es, como
tal, central en esta perspectiva.
Para Bernard Charlot, Élisabeth Bautier
Jean-Yves Rochex (1992), investigadores del
grupo ESCOL (Education, Socialisation, et
Collectivités Locales de la Universidad Paris
VIII - Saint Denis), la orientación de las
indagaciones sobre la relación con el saber
es más sociológica, incluso antropológica.
Plantean la idea de una sociología del sujeto.
Sus trabajos intentan dar una nueva dimensión
a la cuestión del fracaso escolar en los niños
601
y jóvenes provenientes de medios sociales
desfavorecidos. Sus estudios se focalizan sobre
la relación con el saber y sobre la relación con
la escuela de los jóvenes que frecuentan las
escuelas secundarias de los barrios periféricos
de las ciudades francesas. Lo que se destaca
en primer lugar, son las lógicas complejas y
múltiples que subyacen en el trabajo escolar a
través del análisis de aspectos como la relación
con el lenguaje y relación con el saber y con el
mundo de los estudiantes de secundaria (liceo)
herederos de familias favorecidas y de nuevos
estudiantes de liceo de familias populares.
Para este grupo, la reflexión teórica se articula
alrededor de la noción de sentido dado a la
experiencia escolar y los procesos de identidad
en la formación de personalidad. La perspectiva
empírica se focaliza sobre los retratos
biográficos de los jóvenes estudiantes de liceo
de secundaria a partir de un balance de saber.
Estos últimos se componen de producciones
escritas sobre las expectativas de los alumnos
de liceo frente a su escolaridad y sus saberes
adquiridos, escolares o no escolares.
Es entonces en esta línea de estudios de
este último grupo de investigadores (ESCOL,
dirigido por Bernard Charlot), que se concibió
esta investigación. Si bien, los estudios sobre
la noción de relación con el saber implican,
hasta ahora, solamente a la población de los
alumnos de la escuela primaria y la educación
secundaria francesa, en esta ocasión, se extiende
el concepto de relación con el saber al ámbito
de la educación superior o universitaria, para
estudiar una población de estudiantes inscritos
en la Universidad Tecnológica de Pereira-Colombia, con las precisiones y cuidados
conceptuales y metodológicos pertinentes y
propios del nivel superior o universitario del
sistema educativo colombiano.
Justificación del estudio
En Colombia, según los datos del
Ministerio de Educación Nacional de
Colombia (2012):
602
En 2010, en todo el país hay 1.674.420
estudiantes en el sistema de la educación
superior, de los cuales 1.587.928 se
encuentran matriculados en programas
de
pregrado
(técnico
profesional,
tecnológico o universitario) y 86.492 en
programas de posgrado (especialización,
maestría o doctorado).
Y “La tasa de deserción por cohorte es
de 45%, es decir que de cada 100 estudiantes
que ingresan a la educación superior, 55
eventualmente se gradúan, mientras 45 nunca
lo hacen”.
En consecuencia, según el Ministerio de
Educación de Colombia (2009):
Uno de los principales problemas que
enfrenta el sistema de educación superior
colombiano concierne a los altos niveles de
deserción académica en el pregrado. Pese a
que los últimos años se han caracterizado
por aumentos de cobertura e ingreso de
estudiantes nuevos, el número de alumnos
que logra culminar sus estudios superiores
no es alto, dejando entrever que una gran
parte de éstos abandona sus estudios,
principalmente en los primeros semestres.
Según estadísticas del Ministerio de
Educación Nacional, de cada cien
estudiantes que ingresan a una institución
de educación superior cerca de la mitad
no logra culminar su ciclo académico y
obtener la graduación.
El complejo fenómeno social y educativo
de la deserción y el fracaso y el logro académico
en la educación superior colombiana en los dos
primeros semestres o primer año universitario
— que toca en Colombia prácticamente a uno
de cada dos estudiantes — nos conduce a
cuestionarnos: si bien en los últimos doce años,
la educación superior colombiana conoce una
masificación importante, ¿se puede hablar
igualmente de una democratización de la
enseñanza? El desafío es doble. Se trata, en
Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
primer lugar, de asegurar la cualificación,
mediante aprendizajes de calidad, entre otros
factores, esperada y sancionada por los diplomas
universitarios, que se fundamente sobre la
investigación o sobre la profesionalización.
Pero el otro desafío, es también, asumir
esta masificación preguntándonos sobre
los mecanismos de fracaso que frenan la
democratización asociadas a las maneras como
los estudiantes se relacionan con los saberes
que les ofrece la universidad.
En este contexto, surgen varias
preguntas: ¿cómo el principal implicado, el
estudiante aprendiz, vive esta situación y en
particular sus aprendizajes? ¿Qué tipos de
dificultades encuentra en esta relación con el
saber universitario y cuáles son sus razones?
Una abundante literatura (ROMAINVILLE, 1999,
2000; ALZATE; GÓMEZ, 2009, 2010a; ALZATE;
DESLAULIERS; GÓMEZ, 2010), plantea diversas
hipótesis que ponen en relieve los factores
imputables al estudiante mismo. Estudios,
como los de Alain Coulon (1997), exponen una
correlación entre el origen sociocultural y las
dificultades de los estudiantes para adaptarse
a los códigos de la enseñanza universitaria:
códigos lingüísticos, códigos asociados a los
procesos de afiliación institucional y social,
exigencias implícitas de la universidad, etc.
Estas dificultades son entonces consideradas
como el resultado de una falta o de un
déficit: falta de motivación, falta de trabajo,
falta de métodos, dominio insuficiente de la
lengua materna, déficits cognitivos anteriores
atribuidos a la enseñanza secundaria e incluso
asociados a la categoría social.
Ahora bien, si estos estudios han podido
explicar, en parte, el origen de un cierto número
de dificultades encontradas por los estudiantes,
parece que otras dimensiones respecto al fracaso
y la deserción universitaria, examinadas en
otras poblaciones estudiantiles universitarias,
no han sido todavía suficientemente exploradas
en la educación superior.
En consecuencia, para ayudar a los
estudiantes universitarios en su proceso de logro
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
académico y así contribuir a la superación de la
deserción y abandono estudiantil, es necesario
también estudiar la relación que ellos mantienen
con el saber en general, de una parte; y con la
naturaleza específica de los saberes enseñados
en la educación superior o universitaria, de otra
parte. De esta manera, en lugar de partir del
postulado que las dificultades experimentadas
o vividas por muchos estudiantes provienen
de las diversas carencias, hemos sometido a
prueba en este estudio el supuesto comprensivo
según la cual estas dificultades son efectos de
diferentes maneras de ser y especialmente de
concebir el saber y acceder a él, esto es, de la
relación con el saber.
La importancia de estudiar el
problema de la relación con
el saber en los estudiantes
universitarios
El campo de investigación sobre la
enseñanza de los saberes universitarios ha sido
preocupación nuestra en los últimos cinco años
(2009, 2010, 2010a, 2010b, 2010c) y parte, ante
todo, de la hipótesis, según la cual para ayudar
a los estudiantes universitarios es necesario
también estudiar la relación que ellos mantienen
con el saber en general, de una parte; y con la
naturaleza específica de los saberes enseñados
en la educación superior o universitaria, de otra
parte. De esta manera, en lugar de partir del
postulado generalmente aceptado, que afirma
que las dificultades experimentadas o vividas
por muchos estudiantes provienen de sus
diversas carencias, se considera que el estudio de
la relación con el saber ofrece una perspectiva
diferente para su análisis (POZO; ECHERRÍA,
2009; HOUGARDY; PAMBU KITA, 1999).
En una investigación reciente, Enseñar en
la Universidad. Saberes, prácticas y textualidad
(ALZATE; GÓMEZ; ARBELÁEZ, 2011), nos
limitamos de manera voluntaria a implementar
las herramientas de análisis de las formas y
sus contextos epistemológicos, textuales y
didácticos de los saberes universitarios en
603
algunas disciplinas académicas universitarias
en las asignaturas o cursos de: didáctica
del lenguaje, sociología de la educación,
física, introducción a la filosofía, psicología
del desarrollo. No obstante, desde entonces
aparecía en el horizonte una pregunta que se
abordó en esta investigación: ¿cómo la forma
del saber influye sobre el logro del estudiante
universitario? Interrogante que se responde
desde la la teoría de la relación con el saber.
Una observación importante aparecía
entonces en la investigación antes mencionada:
en la operación compleja que es la práctica de
enseñanza en la educación superior, el profesor
intenta hacer acceder a los estudiantes ya sea a
una práctica de investigación o a una práctica
profesional. Se constató que esta transmisión
universitaria plantea un cierto número de
problemas. No existe una transmisión de
una práctica en el sentido de una receta que
haría a los estudiantes competentes, sino más
bien enfoques o tratativas de enseñanza que
exigen de estos últimos tomar en cuenta una
serie de obligaciones con mucha frecuencia
implícitamente declaradas: comprender los
conceptos que no están claramente explícitos en
el curso, enfrentamiento de saberes no estables
y problemas específicos de una profesión, etc.
La siguiente pregunta que surgió
entonces en este marco, y que ahora orienta
este artículo de investigación, se plantea así:
¿responder a las exigencias de las diferentes
obligaciones de la enseñanza universitarias
implica una cierta forma de relación con el
saber, él mismo asociado a una relación con el
mundo (una manera de vivir, ciertas actitudes
ante el saber y el estudio universitario)?
Este interrogante nos condujo entonces
a una serie de preguntas complementarias que
se respondieron en la investigación: (1) ¿Qué
relaciones mantienen, de manera general, los
estudiantes, con el saber universitario? Esta
pregunta se plantea a partir del postulado, según
el cual, esta relación con el saber está determinada
por una cierta manera de vivir, por ciertas
actitudes y por un cierto tipo de relación con el
604
mundo. (2) ¿Cómo los estudiantes perciben ciertas
características de los saberes enseñados: formas
de situación didáctica, elementos asociados al
grado de problematización y de sentido de los
enunciados, tipos e importancia de razonamientos
específicos a ciertos cursos universitarios, relación
afectiva con el saber, dificultades asociadas a
las actitudes frente al estudio universitario y de
contrato didáctico? (3) ¿Cómo interactúan los
estudiantes con las características antes indicadas
del saber universitario? (4) ¿Cómo perciben los
estudiantes las actividades que se les pide cumplir
y que ponen en juego o implementan para
llevarlas a cabo?
En este contexto, el enfoque descriptivo
y comprensivo de la investigación realizada en
ese entonces sobre la naturaleza de los saberes
universitarios y sus procesos de transmisión,
se examina, en esta ocasión, a través de la
descripción de la forma que asume la relación
con el saber de los estudiantes en la Universidad
Tecnológica de Pereira, Colombia.
Las cinco dimensiones de
la relación con el saber: una
aproximación inicial
Se reitera, que relación con el saber
se analizó a través de cinco dimensiones
susceptibles de generar problemas o dificultades
de aprendizaje1 universitario en los estudiantes
universitarios para estudiar, a saber: (1) la
dimensión del sentido; (2) la dimensión de lo
que es importante en el saber; (3) el contrato
didáctico; (4) la dimensión de la relación de
identidad y afectiva con el saber; y (5) las
actitudes de estudio. Se trató entonces de explorar
en una muestra cualitativa con representación
teórica de estudiantes universitarios, la manera
cómo estos se relacionan con el saber que se
ofrece en un cierto número número de cursos
universitarios a través de las cinco dimensiones
1- Aquí la expresión dificultades de aprendizaje no debe entenderse en
el sentido clínico y psicológico de grupo heterogéneo de alteraciones que
se manifiestan en dificultades en la adquisición y uso de habilidades de
escucha, habla, lectura, escritura, razonamiento o habilidades matemáticas.
Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
enunciadas, y que buscan dar cuenta de la
relación con el saber de los estudiantes, así
como de algunas dificultades y situaciones
de fracaso que podrán resultar o surgir en el
desarrollo de los cursos universitarios.
Veamos a continuación una breve
definición de estas dimensiones:
(1) El sentido de los conceptos y de los
enunciados. Se aborda esta cuestión, retomando
de Gilles Deleuze (1990), la distinción que
estableció entre la significación y la designación
en la producción de sentido de un discurso
universitario. En la educación universitaria,
el discurso de la enseñanza se presenta con
frecuencia como un texto. Con frecuencia, es
un texto constituido de diferentes elementos: el
discurso oral del profesor durante los cursos o
sesiones, los soportes o apoyos proyectados en
pantalla; el programa del curso, los documentos
o las lecturas a las cuales los estudiantes son
remitidos. Se trata, entonces, como afirma
Bernard Rey (2002, 2005), de un texto, porque
el conjunto de lo que es formulado tiene una
coherencia (incluso si el texto es constituido de
elementos dispersos). Igualmente, las palabras
que constituyen estos enunciados no designan
en general, las cosas exteriores que se podrían
ver o tocar, ellas tienen sus sentidos y sus
relaciones mutuas en el marco del texto.
Entonces, el sentido de los discursos
no se deriva ya de la relación que mantienen
los enunciados con una realidad inmediata
y concreta compartida entre los locutores
universitarios — profesor y estudiantes — sino que
emerge de la relación entre estos enunciados. En
oposición, en la vida corriente, los enunciados
sacan su sentido del hecho que ellos refieren a
los objetos o a las acciones que constituyen el
ambiente actual y familiar de los locutores. La
palabra está entonces anclada en la situación
del momento. Para expresar esto, se dice que el
sentido del discurso del profesor, tal como él se
presenta en la educación superior, nace no de la
designación, sino de la significación.
(2) Lo que es importante en el saber.
Se adopta la hipótesis de Èlisabeth Bautier &
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
Jean-Yves Rochex (1998), quienes consideran
que un gran número de dificultades en los
estudios residen en la relación de “evidencia
y de adherencia al lenguaje y a la experiencia
que se tiene con él” (p. 6). Esta relación
implicaría resistencias de reconocimiento del
carácter construido del saber, e incluso, de
reconocimiento de las formas de lenguaje
simbólicas y discursivas que lo constituyen, en
este caso, en la enseñanza universitaria.
(3) El contrato didáctico. Guy Brousseau
(1980) y Franc Morandi & René La Borderie
(2006), consideran la noción de contrato
y anotan que el carácter explícito de la
implementación de un situación compromete
a diferentes personas. Un contrato es firmado
deliberadamente por las diferentes partes. En el
contrato didáctico, se teje así una relación que
determina lo que cada asociado, en este caso, el
profesor y el estudiante universitarios, tendrá la
responsabilidad de administrar y de la que será
de una u otra manera, responsable frente al otro.
(4) La relación de identidad y afectiva con
el saber. El lenguaje en la enseñanza universitaria
puede presentarse bajo una pluralidad de registros
de enunciación. Las formas textuales empleadas
pueden mostrar un estado de diferentes posturas
que tiene el sujeto con el saber: el yo-mí de la
experiencia vivida, el del relato, el que analiza y
argumenta, etc. Aquí, se plantea como hipótesis
que los estudiantes universitarios pueden tener
problemas para pasar fácilmente de un registro
al otro, o peor aún, pueden tener la tendencia
a privilegiar el registro lingüístico yo-mí de la
experiencia familiar y subjetiva.
(5) Las dificultades asociadas a las
actitudes de estudio. Con el vocablo estudio,
se reúnen diversas actividades: la asistencia
y las actividades del estudiante en los cursos
universitarios, incluyendo aquellas que lleva a
cabo fuera del local del curso y, en particular,
la búsqueda de informaciones complementarias
y sus actividades concretas para aprender.
Cuando se pregunta a los estudiantes sobre sus
prácticas de estudio y las maneras como ellos se
movilizan, sus respuestas remiten a la hipótesis,
605
según la cual, ellas están asociadas a una cierta
concepción del saber. Este concepción puede
entonces tener un impacto sobre el éxito y
logro universitario del estudiante.
de antemano y planificadas en un orden
preciso; — ella será llamada semi-dirigida
cuando el entrevistador prevé algunas
preguntas a plantear como puntos de
orientación. (p. 13-14)
Metodología2
En consecuencia, según los autores
La metodología empleada se identifica
con un enfoque descriptivo y comprensivo
de los cursos universitarios, en esta ocasión
complementado, con una descripción de la forma
de la relación con el saber de los estudiantes.
Al respecto Mattew B. Miles y Michele
Huberman (2003), consideran que
Los investigadores cualitativos trabajan con
pequeñas muestras de personas, que viven
en una situación familiar (en su ‘nicho’) en
su contexto y se estudian en profundidad
— a diferencia de los investigadores
cuantitativos que buscan múltiples casos
descontextualizados y apuntan a una
representatividad estadística. (…) El tipo
de muestra llamado ‘representatividad
teórica’ busca encontrar los ejemplos de
un constructo teórico y de esta manera
elaborarlo y examinarlo. (p. 59-60)
Ahora bien, según De Ketel & Roegiers
(2009), se puede afirmar que
(…) una entrevista puede ser libre, semidirigida o dirigida: — ella será llamada
libre cuando el entrevistador se abstiene
de plantear preguntas que apuntan a
reorientar la entrevista; — ella será llamada
dirigida cuando el discurso de la persona
entrevistada constituye exclusivamente
la respuesta a las preguntas preparadas
2- El tipo de entrevistas en esta investigación tiene esencialmente un
enfoque exploratorio y cualitativo y se constituyó en punto de partida
para otra investigación en marcha para construir, con más agudeza, un
cuestionario dirigido al conjunto de la población de estudiantes implicados
en los cursos que serán objeto del proyecto que se propone inicialmente.
Se podrá entonces, en un segundo momento de la investigación (enfoque
confirmativo y cuantitativo), validar la construcción de algunas dimensiones
de la relación con el saber de los estudiantes y el repertorio de dificultades
encontradas en una población más amplia.
606
(…) una entrevista semi-dirigida se
identifica por la presencia de dos
características: — produce de parte del
entrevistado un discurso que no es lineal,
lo que significa que el entrevistador orienta
la entrevista en ciertos momentos; — las
intervenciones del entrevistador no están
siempre previstas de antemano. A lo más,
este prevé algunas preguntas importantes,
o algunos puntos de orientación (p.146)
En consecuencia, y manteniendo una
continuidad en el tema y campo de investigación
antes indicado, limitamos este nuevo examen
de la enseñanza universitaria en términos de
relación con el saber, a una muestra cualitativa
con representatividad teórica de estudiantes que
asistieron durante el segundo semestre de 2012
a los siguientes cursos universitarios, como lo
indica el cuadro.
Cuadro 1 - Muestra cualitativa con representatividad teórica
de estudiantes entrevistados según cursos universitarios.
Introducción a la filosofía
Competencias comunicativas I y II
Didáctica de la lengua materna
Procesos de desarrollo del lenguaje
Construcción y didáctica del lenguaje escrito I, II y III
Epistemología de la pedagogía
Sociología de la educación
Historia de la pedagogía
Constitución política y democracia
Modelos pedagógico contemporáneos
Total: 13 cursos y 26 estudiantes entrevistados
Fuente: Oficina de Registro y Control de la Universidad Tecnológica de
Pereira, Colombia, 2012
Teniendo en cuenta el objetivo del
estudio, explorar la relación con el saber de los
Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
estudiantes de los cursos indicados en el Cuadro
1, se concibieron y aplicaron los siguientes
procedimientos: (1) Realización de entrevistas
semi-directivas o semi-dirigidas con cada uno
de los estudiantes universitarios de la muestra.
La entrevista semi-dirigida tuvo los siguientes
objetivos: (a) discernir, en una perspectiva
global, la relación con el saber del estudiante,
esto es, en una perspectiva biográfica; (b) abordar
las dificultades que tienen los estudiantes
asociadas a las cursos que siguen y a su manera
de estudiar; (c) desde una perspectiva más
sistemática, indagar por las maneras como los
estudiantes conciben y practican el estudio
con miras a la presentación de exámenes
parciales y finales, y sus reacciones a este tipo
de evaluaciones. (2) Obtención de información
complementaria y matizada mediante un
escrito que se les solicitó a los estudiantes: un
balance de saber, como lo sugiere Élisabeth
Bauthier y Jean-Yves Rochex (1998) con los
estudiantes de la educación secundaria francesa,
obviamente, con sus ajustes correspondientes
a la especificidad de la enseñanza superior o
educación universitaria. De esta manera, se
propuso a los estudiantes redactar un corto
texto con el objetivo de responder a dos
preguntas o cuestiones: (a) ¿Aprender, es….?;
(b) ¿Desde que usted nació, que ha aprendido,
que es lo importante para usted? En principio
ninguna otra recomendación y precisión se
plantea para este balance de saber, con el fin
de no influir ni sobre la manera de abordar o
enfocar las respuestas a los asuntos asociados,
ni sobre la manera de redactar de los estudiantes
universitarios a los cuales se les solicitará su
colaboración para obtener esta información
sobre su relación con el saber.
Resultados
Visto en perspectiva, para el estudiante
surge una especie de determinación
preexistente al entrar y empezar en los estudios
universitarios.
La explicación sociológica
enfatiza el factor de pertenencia o proveniencia
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
socio-cultural, los estudiantes que vienen de
medios desfavorecidos consideran que tienen
más riesgo y están expuestos al fracaso. Otra
corriente de estudios, explica las dificultades en
el logro de un estado de déficit en los métodos
de trabajo, lagunas en el dominio de la lengua
materna y los lenguajes especializados que se
usan en la universidad.
En la investigación realizada, se exploró
una vía de explicación poco estudiada en
la enseñanza universitaria: algunas de las
dificultades que debe superar el estudiante
universitario para tener éxito tienen que ver
con lo que acontece y hace en los cursos a los
que asiste. Las dificultades, probablemente tan
diversas, visibles o ocultas, obstaculizarían
la transmisión del saber del profesor al
estudiante, y serían provocadas especialmente
por la naturaleza específica de los saberes
universitarios enseñados. La singularidad de la
relación con el saber del estudiante se convirtió
entonces en objeto de indagación.
Con un intencionado objetivo de
generalización, se agrupan u organizan las
constataciones y resultados. Según algunos de
los elementos que constituyen o identifican las
cinco dimensiones de la relación con el saber
adoptadas en el estudio.
La relación con el saber específico
¿Qué es importante en el saber? Las
respuestas de los estudiantes son testimonio
de un interés por la validación del saber
universitario enseñado, aceptando su carácter
construido e inestable. También declaran
privilegiar los razonamientos a los resultados,
aceptar la revisión de nociones y conceptos vistas
en los cursos cuando aparecen nuevas teorías
(presencia de la práctica fuente). La importancia
de tomar en cuenta de la práctica objetivo de
manera concreta en los cursos universitarios se
siente o reclama en las respuestas obtenidas. De
este modo, algunas respuestas a las preguntas
abiertas son evidencia de la búsqueda de la
posible utilidad de los cursos en un plano o
607
marco profesional. Los estudiantes coinciden en
la importancia de tomar en cuenta su futuro
profesional en los cursos.
Si bien los cursos que siguieron los
estudiantes se distinguen por su objeto de
estudio, ciertos aspectos considerados como
posibles fuentes de dificulta no cambian tanto.
Un sector de estudiantes juzga esencial las
demostraciones conceptuales en la comprensión
general de los cursos. Sin embargo, estas
exposiciones y demostraciones conceptuales
aparecen a menudo como complicadas de
seguir. Enfrentar esta dificultad implica recurrir
a los ejemplos, las ilustraciones con el riesgo
de alejar a los estudiantes del acceso a la teoría
científica del saber sabio.
Las prácticas fuente y objetivo
En la educación superior, los profesores
intentan iniciar a sus estudiantes en la práctica
que se encuentra en el origen del saber que
ofrecen, es decir la práctica de investigación.
Es a esta que se denomina-la práctica fuente.
Los profesores de universidad lo hacen porque
es justamente su especificidad de ser a la vez
investigadores y profesores, productores y
difusores de saberes. Tienen la convicción que
un curso no consiste solamente en presentar
los resultados de la ciencia, sino también en
hacer conocer las operaciones que han llevado
a esos resultados. Un saber significativo, no
se limita al conocimiento de una continuidad
de enunciados considerados como verdaderos,
exige que se lleven a cabo los procedimientos
que permiten afirmar que ellos son verdaderos.
Idealmente, el profesor debería compartir con
los estudiantes una práctica de investigación.
Pero para familiarizar a los estudiantes en
esta práctica, el profesor solo dispone de su
discurso, es decir de un texto, lo que no siempre
es suficiente. Se derivaría de aquí entonces una
situación propia de la enseñanza universitaria:
(a) el profesor quiere que los estudiantes no
se contenten con escuchar (o leer) el texto del
saber, sino que también se apropien de los
608
problemas científicos que allí están presentes,
que se planteen y reconstituyan por sí mismos
las actividades intelectuales que han conducido
al saber. (b) Los mismos estudiantes, tienen la
tendencia a apoyarse en el contrato didáctico,
el cual puede enunciarse así: “Lo que el profesor
exigirá en el examen debe habérsenos enseñado
durante su curso”. Forzando el asunto, se podría
decir que la exigencia de los estudiantes al
profesor es la siguiente: “Díganos directamente
lo que usted quiere que digamos o que hagamos
en el examen”. (c) Cuando el profesor rechaza
acceder a esta exigencia. Quisiera que los
estudiantes realizaran el trabajo intelectual que
conduce al saber y que hasta cierto punto lo
reconstruyeran. La tarea de establecer el saber
es devuelta por el profesor a los estudiantes. Es
lo que se llama la devolución.
La devolución, entonces es una actividad
que en el proceso pedagógico y didáctico, en
este caso universitario, va en una dirección
casi inversa para que el saber sea pensado
personalmente por el estudiante; la devolución
debe integrarse a la actividad de pensamiento
personal o individual.
Ahora
bien,
en
la
enseñanza
universitaria, el texto del saber lleva la marca
de otra práctica diferente a la práctica fuente.
Se trata de la práctica profesional en la que
desemboca muchos de los curso seguidos por
el estudiante. Es lo que se llama la prácticaobjetivo. Ella aparece, en el caso de la
enseñanza superior, con una clara orientación
de profesionalización. También está presente
en las clases universitarias, para las cuales una
salida profesional es siempre el horizonte preciso
(derecho, medicina, administración, psicología,
ciencias aplicadas, etc.). Ahora bien, como se
ha visto, es difícil familiarizar al estudiante en
una práctica (la profesión) a través de un texto
(el saber). Porque un saber cubre un campo de
fenómenos estrechamente circunscrito mientras
que una práctica profesional se ejerce en un
medio en el cual los fenómenos de naturaleza
múltiple se producen. De este modo, un curso
de física ofrecido a un futuro ingeniero, trata de
Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
los fenómenos que han sido delimitados por la
construcción textual que se llama ciencia física.
Pero el ingeniero deberá atender, en el ejercicio
de su profesión, las determinaciones que serán
físicas, pero también industriales, económicas,
organizacionales, humanas, sociológicas, etc., y
esto de manera simultánea.
Los estudiantes están interesados tanto
en la práctica fuente como en la práctica
objetivo en la construcción y desarrollo de los
cursos. Esta constatación se confirma además
en las respuestas obtenidas. En efecto, si un
número importante de estudiantes evocan
positivamente las discusiones y debates, que
tienen lugar durante el curso, otros insisten
sobre el interés de los conocimientos adquiridos
durante los cursos para su futura profesión. No
obstante, los estudiantes consideran que la
referencia explícita a la práctica fuente en un
curso podría derivar en otro tipo de estudio,
muy extenso para ser desarrollado en este
escenario. Cuando la práctica objetivo está
presente según los estudiantes entonces podría
impedir comprender el interés de las materias
universitarias por sí mismas, y acabar por
considerarlas únicamente como herramientas
de utilidad inmediata.
La relación de identidad y afectiva con el saber
Se observa que en la medida en que se
desarrollan los semestres universitarios, una
mayoría de estudiantes reconoce haber cambiado
su mirada sobre el saber en general, así como la
disciplina involucrada de manera más específica.
Parece entonces que los estudiantes se dan
cuenta de las transformaciones que se producen
en su identidad intelectual y en el plano de las
relaciones con sus pares e integrantes de sus
familias, es decir, admiten la transformación de
su yo intelectual y las relaciones que establecen
en su vida universitaria. Igualmente, los
estudiantes se distancian de sus convicciones
que tienen un tinte egocéntrico y comienzan
a ver nuevas perspectivas y puntos de vista.
Se agrega en este contexto, que un sector
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
de estudiantes consideran al profesor y su
enseñanza como factores determinantes en sus
prácticas universitarias de saber.
Las actitudes de estudio
Algunos estudiantes afirman trabajar
sus cursos cerca del fin de los semestres, otros
insisten sobre la importancia de estudiar desde
el comienzo, familiarizarse tempranamente con
el curso y seguirlo de manera sistemática. Los
análisis realizados permiten destacar o desvelar
una situación un tanto paradójica. En efecto,
si la mayoría de los estudiantes considera
importante intentar encontrar las relaciones
entre las ideas, conceptos y nociones que
pertenecen a dominios o campos diferentes,
otros prefieren estudiar cada parte del curso
paso a paso. Las entrevistas indican que
los estudiantes se dedican a comprender las
nociones a medida que avanza el curso. Sin
embargo, esta etapa podría llegar a veces más
tarde que los exámenes parciales o finales,
y entonces es necesario que los estudiantes
entren en una segunda fase de estudio: la
búsqueda de las relaciones y vínculos entre
ideas, conceptos y nociones ofrecidos en
la enseñanza universitaria.
Un sector de
estudiantes manifiesta comenzar el estudio para
el examen acudiendo a los resúmenes y apuntes
de curso sintéticos, manera parcial de estudiar
que podría interpelar a los cursos universitarios
que se exponen por un encadenamiento
rigurosamente lógico porque los estudiantes
perderían los eslabones de la cadena de
razonamiento general del curso.
El sentido de los conceptos y enunciados
Si bien los estudiantes no señalan
necesariamente la necesidad y posibilidad de
dominar todos los enunciados del profesor de
manera inmediata, sin embargo, muchos de
ellos declaran la exigencia de la designación.
Dicho de otra manera, para comprender una
noción, concepto, teoría, tienen necesidad
609
de concretizarla en ejemplos. Esta demanda
se presenta cuando no hay una comprensión
inmediata del sentido de una noción y los
estudiantes desean ver el saber contextualizado
por un enfoque más concreto y explicado en un
lenguaje familiar.
El creciente interés por los cursos
universitarios es un factor que contribuye
a la aclaración de los nociones que en los
inicios aparecen difíciles o incomprensibles.
Sin embargo, cuando los cursos tienen
una orientación didáctica más explícita los
estudiantes no sugieren o exigen este proceso de
traducción a un lenguaje más familiar a ellos. Se
reitera que en ocasiones para diversas disciplinas
universitarias los estudiantes privilegian la
designación y se aferran a lo concreto para
comprender, pero lo concreto puede implicar
diferentes niveles. Este puede destacar los
fenómenos de la vida corriente o las experiencias
de las ciencias, como también las nociones de los
cursos convertidas en objetos de referencia.
Algunos estudiantes privilegian la
significación y las relaciones entre las diferentes
proposiciones de las disciplinas objeto de
estudio de los cursos. Estos son los mismos
que manifiestan la importancia y necesidad de
que los profesores acudan simultáneamente a
la designación y a la significación para darle
un sentido más profundo a sus aprendizajes. No
obstante, parece que establecer las relaciones
entre las diversas proposiciones de un curso
puede tener dos orígenes: de una parte, los
estudiantes comprenden estas relaciones porque
se les fueron explicadas acercándolas a la
designación, y de otra parte, son ellos mismos
quienes las determinan analizando desde su
propia iniciativa antes de leer los documentos
recomendados en el curso. Serían estos los
estudiantes autónomos que darían un sentido
verdadero a sus cursos.
Se puede hablar de una figura
de suspensión del sentido en los cursos
universitarios. Los estudiantes esperan que los
desarrollos posteriores que se dan en el curso
contribuirán a una mejor comprensión, situación
610
que puede generar una actividad intelectual
favorable a la construcción de sentido. Sin
embargo, esta construcción o elaboración se
apoya sobre el establecimiento de relaciones
entre diferentes enunciados. Cuando algunas
justificaciones se omiten para simplificar el
curso, relaciones lógicas más profundas y
complejas se pueden perder. Esta suspensión del
sentido no podría conducir a una construcción
posterior. En consecuencia, la presentación de
ejemplos tiene sus riesgos. De un lado, permite
comprender a través de un enfoque más concreto,
más inmediato; y de otro lado, podría impedir
la elaboración de las relaciones de sentido que
existen en las teorías científicas. Intentar reducir
un obstáculo que se encuentra en los estudiantes
podría a veces generar otro.
El contrato didáctico
La idea de contrato, sugiere el carácter
explícito de la creación de una situación que
involucra varias personas. Un contrato está
firmado deliberadamente por diferentes partes.
En el contrato didáctico, se construye de esta
forma una relación que determina lo que cada
una de las partes, el profesor y el estudiante,
tendrá la responsabilidad de gestionar o
administrar y como cada uno será responsable
frente al otro. Se construirá entonces entre
enseñante y enseñado una serie de expectativas
más o menos recíprocas que entrañaran y
legitimaran ciertos comportamientos.
Los estudiantes perciben la manera
como el curso es orientado cuando el
profesor manifiesta qué espera de ellos en
los exámenes; es decir, cuando no hay un
malentendido respecto a la evaluación. De
este modo, si el curso universitario se presenta
claramente estructurado, y si la forma de
evaluación de formula de manera explícita,
los estudiantes tampoco están exentos de las
dificultades propias del estudio de las materias
universitarias. De hecho, la comprensión de
ciertos conceptos y la memorización de una
terminología percibida como abundante y
Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
extensa solo aparecerá cuando se entra en el
estudio de las relaciones entre nociones. De
manera inversa, la evaluación puede sorprender
a los estudiantes que privilegian una estrategia
de estudio en función de una problematización
fuerte del curso, mientras que los exámenes
parciales y finales se elaboran por el profesor
con un modelo de restitución de conocimientos.
Los estudiantes afirman distinguir con
relativa facilidad, en el discurso del profesor,
lo que es esencial y lo que es anecdótico, un
número significativo de ellos saben muy bien
lo que se espera de ellos en los exámenes.
El cuestionamiento de los estudiantes sobre
los exámenes o la evaluación podría tener
dos fuentes: una, la distancia entre lo que
fue anunciado por el profesor (con frases
incompletas) y los exámenes con preguntas
abiertas para orientar su estudio que se
mencionarían en el programa o en ciertos
momentos del curso y que a la hora de la
evaluación inducirían al error a los estudiantes;
otra, sería el contraste entre el contexto agradable
del curso y la exigencia asociada necesariamente
a la prueba de evaluación o examen. Si los
estudiantes piensan que en algunos cursos cada
uno puede tener su opinión y percibe el examen
como una formalidad como consecuencia de la
vivencia distendida de las sesiones del curso, el
riesgo del fracaso parece evidente.
También, la evaluación de los cursos
universitarios puede interesar a los estudiantes
cuando los exámenes se elaboran teniendo
como horizonte su futura profesión, en este
caso, las preguntas serían ante todo de
orden técnico-instrumental. Sin embargo,
es necesario en este tipo de evaluación
que el profesor comunique oportunamente
estas exigencias para que se establezca de
antemano el contrato didáctico necesario.
Problematización
Si la devolución no se logrará
verdaderamente sino en las situaciones
exteriores a las sesiones de cursos universitarios
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
propiamente dichas, no se excluye, obviamente,
que pueda haber, en el marco de un curso de
forma tradicional (curso magistral), episodios
de devolución. Uno de los medios para que
esto suceda es que el profesor exponga el saber
bajo una forma problematizada. Esto sucede
de manera práctica cuando en el marco de su
discurso, los problemas se planteen para que los
estudiantes puedan apropiarlos, es decir, para
que puedan intentar responderlos. Dicho de
otra manera, se trata que el saber no se presente
solamente bajo la forma de enumeración de
resultados, sino que los resultados aparezcan
como respuestas a los problemas previamente
planteados. Se podría decir, que en oposición
a la problematización, se encontraría, por
ejemplo, la enumeración (sin que esta última sea
la única forma opuesta a la problematización).
Entre más un curso se aproxime a la forma
de enumeración, como sucesión de elementos
presentados en una serie, como única razón
de su articulación común, entonces menos la
dimensión problemática estará presente. No
habría en la enumeración, el hilo conductor
que le da sentido, y que permite de esta
manera a los estudiantes, volver a apropiarse
del saber a través de un pensamiento propio.
La presentación del saber como respuesta a
los problemas, que constituye otra manera de
devolución, presenta también la ventaja de
ser análoga o semejante a lo que sucede en la
práctica científica. El investigador es alguien
que pasa su tiempo intentando resolver los
problemas. De esta forma, una presentación
problematizada del saber parece a primera
vista, garantizar que habría devolución, y que
los estudiantes darían sentido al saber. En
realidad, las cosas son más complejas y puede
haber formas de problematización del saber que
no generen la devolución, porque los problemas
son formulados de tal forma que el estudiante
no pueda apropiárselos o que le aparezcan
como arbitrarios. En consecuencia, no se puede
entonces evitar la pregunta por las condiciones
para que los problemas del saber tengan sentido
para los estudiantes.
611
Cuando en los cursos los estudiantes
se comprometen con la significación dan más
importancia o prioridad a los razonamientos y a
los debates contradictorios. De esta manera, se
constata que entre los estudiantes que declaran
encontrar con el paso del tiempo un creciente
interés por sus cursos se hallan también aquellos
que dan importancia a la problematización de
las materias universitarias.
Ahora bien, en la universidad los
estudiantes siguen con interés los cursos donde
se realizan diversos ejercicios o trabajos prácticos.
Estos ofrecen una preparación para los exámenes
y una aproximación las materias o disciplinas
universitarias más concretas que la de los cursos
teóricos. Sin embargo, esta aproximación debe
ser matizada, porque existe una diferencia
esencial, que los estudiantes podrían no percibir,
entre la resolución de un problema que hace
competentes a los estudiantes en una materia
aprendida y la situación-problema que consiste
en volver el saber problemático; también aquí
los estudiantes no podrían percibir que la teoría
abordada en el curso es necesaria para continuar
el desarrollo del curso y el de los ejercicios.
Conclusiones y consideraciones
generales
Más allá de las dificultades que parecen
desprenderse de la naturaleza propia de las
disciplinas universitarias, tres rasgos comunes
y generales surgen de la investigación.
El primero, no se identifica con una
de las hipótesis iniciales que consideraba que
el estudiante inscribe totalmente su actividad
ya sea en una lógica de significación o en
una lógica de designación. Cualquiera que
sea el campo de estudio universitario, parece
que si bien los estudiantes, parecen aceptar la
exigencia de la significación de los estudios
superiores, esperan sin embargo los momentos
de la designación. Las explicaciones, las
ilustraciones, los ejemplos le son necesarios.
El segundo rasgo relevante es el obstáculo
importante que constituye la distancia entre lo
612
que el curso propone y la representación que
el estudiante puede tener de la práctica fuente
y la práctica objetivo. Para los estudiantes los
cursos con orientación teórica se distancian de
la práctica objetivo y los cursos con orientación
profesional de la práctica fuente.
El tercer rasgo común para los cursos
con sus diversas prácticas de enseñanza
universitaria es la distancia entre la percepción
de las exigencias del profesor antes y después
de la evaluación. Las entrevistas y los balances
del saber así lo indican.
Las dificultades halladas varían los
estudiantes y su manera de reaccionar a
las formas del saber enseñado. Luego, se
confirma la hipótesis comprensiva y general
de la investigación: la respuesta que dan los
estudiantes a las exigencias de las formas de los
saberes enseñados en la universidad dependen
en gran parte de su relación con el saber, y de
sus actitudes y tratativas o enfoques que esta
relación implica. Se reitera la idea hipotética del
carácter singular e individual de la relación con
el saber en los estudiantes universitarios.
El estudio también arrojó otros resultados.
Un conjunto de herramientas3 y elementos de
naturaleza conceptual y práctica para llevar a cabo
procesos de reflexión con el objetivo de examinar
las prácticas de enseñanza y relación con el
saber en los estudiantes de la educación superior.
¿A quiénes se dirigirían estas publicaciones? A
los profesores universitarios que se preguntan o
preocupan por sus prácticas, a los encargados o
directivos de los cursos de formación de aptitudes
pedagógicas universitarias, y a los consejeros
psicopedagógicos de los estudiantes que existen
en diversas universidades colombianas.
Se ha mostrado que el concepto de
relación con el saber en la perspectiva adoptada
en este estudio efectivamente está construido
con cierto grado de coherencia tal que puede
3- Las herramientas son: (1) Los cursos en la enseñanza universitaria:
conceptos para determinar su especificidad en la relación con el saber;
(2) Los campos de limitaciones del saber enseñado en la educación
universitaria y su relación con el saber; (3) Las dimensiones de las
dificultades de aprendizaje de los estudiantes y su relación con el saber.
Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
tener un estatuto de concepto en el campo y
ámbito en que se ha aplicado. Sin embargo,
la expresión relación con (rapport à) de uso
corriente a veces no se distingue suficientemente
de otras nociones cercanas.
Así, Isabell Delcambre & Yves Reuter
(2002) consideran que el concepto relación con
es, a menudo, tratado sin una construcción
teórica suficientemente elaborada, y la
evidencia de esta situación es la multiplicidad
de vocablos o términos empleados (posición,
lugar, postura, punto de vista, identidad
enunciativa, relación con, incluso estatuto o rol)
de manera vacilante. Situación que llevaría al
concepto de relación con a ser un objeto donde
cabe todo: la puesta en escena del sujeto, sus
relaciones (con el saber, con el lenguaje, con
la escritura, con las tareas) la implementación
de estas relaciones, las diversas dimensiones
que las estructuran (cognitiva, efectiva), etc.
En ausencia de límites o de una construcción
precisa de los componentes y su articulación, se
corre el riesgo de una dilución conceptual.
A esta dilución conceptual se agrega el riesgo
en el campo de las didácticas, que sería el de un
uso sin precauciones de la noción para determinar
las aptitudes de los alumnos en la educación media
o de los estudiantes en la educación universitaria y
encerrarlos de esta manera en una categorización,
que para ser posible, necesita de investigaciones
prudentes y complejas.
En efecto, al menos dos riesgos son
posibles por una colusión entre el concepto
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
de relación con elaborado teóricamente y un
uso corriente de esta expresión: (a) por una
reificación o cosificación de la noción, se puede
rápidamente suponer que existe una relación
con detectable a priori, sin tener en cuenta
las situaciones concretas de la enseñanza y
aprendizaje, en nuestro caso universitarias,
lo que haría de la noción equivalente del
hándicap socio-cultural, noción contra la
cual fue precisamente construido el concepto
de relación con: el interés del concepto reside
precisamente en el hecho de no relacionar
con el estudiante solo sus propias dificultades,
sino tomar en consideración el contexto
(escolar, universitario, entre otros) en el cual él
evoluciona; (b) al querer determinar una relación
con únicamente a partir de las producciones
escolares de los alumnos y universitarias de los
estudiantes, se corre el riesgo de confundirlas
con una simple adecuación con las normas de la
institución escolar o universitaria, planteadas a
priori como indiscutibles, con el añadido de un
juicio evaluativo que no es compatible con el
enfoque descriptivo y comprensivo, en nuestro
caso, de la relación con el saber.
Finalmente, esta relación no implica
solamente al estudiante universitario y sus
aptitudes y comportamientos propios, sino
también al profesor y a los otros actores
del sistema universitario. Sin olvidar la
posibilidad un principio que la relación con
puede convertirse también en un contenido de
enseñanza en la universidad.
613
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Recebido en: 04.04.2013
Aprobado en: 27.06.2013
Miguel Ángel Gómez Mendoza es profesor en la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia.
María Victoria Alzate Piedrahita es profesora en la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014.
615
Relação com o saber de estudantes universitários:
aprendizagens e processos
Maria Gabriela Parenti BicalhoI
Maria Celeste Reis Fernandes SouzaII
Resumo
Este artigo apresenta resultados de uma investigação que buscou
compreender a relação com o saber de estudantes universitários,
utilizando como referencial a teoria da relação com o saber de
Bernard Charlot. O campo de pesquisa foi uma universidade
comunitária localizada em um município de porte médio do
estado de Minas Gerais, sendo que os sujeitos da pesquisa foram
400 estudantes de 24 cursos de graduação. A coleta de dados foi
realizada por meio dos balanços de saber, instrumento proposto
por Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um
texto a respeito das aprendizagens do sujeito. Após a apresentação
dos aspectos quantitativos da classificação das aprendizagens
evocadas pelos estudantes, o artigo discute a preponderância das
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal e utiliza as
categorias mobilização e sentido para aprofundar a compreensão
dos relatos produzidos pelos estudantes nos balanços de saber.
Conclui que a relação com o saber dos sujeitos da pesquisa
está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu
desenvolvimento pessoal, inclusive ao tratarem do que aprenderam
na universidade, e que uma parcela deles consegue reconhecer as
especificidades dessa instituição como espaço de aprendizagem. A
pesquisa identificou três polos nos quais se organizam os sentidos
atribuídos pelos estudantes à formação universitária: a conquista
de uma vida melhor, a transformação da maneira de ver o mundo e
a mobilização em relação ao saber em si.
Palavras-chave
Ensino superior — Relação com o saber — Estudantes.
I- Universidade Federal de Juiz de Fora,
Governador Valadares, MG, Brasil.
Contato: [email protected].
II- Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, SE, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000012
617
The relationship of higher education students to
knowledge: learnings and processes
Maria Gabriela Parenti BicalhoI
Maria Celeste Reis Fernandes SouzaII
Abstract
This article presents the results of an investigation that sought to
understand higher education students’ relationship to knowledge,
using Bernard Charlot’s relationship to knowledge theory as a
theoretical reference. The field studied was a community university
in a mid-sized city in the state of Minas Gerais, Brazil, and the
subjects were 400 students at 24 undergraduate courses. The
collection of data was performed using balances of knowledge, a
tool proposed by Bernard Charlot, which consists of asking subjects
to produce a written composition about their learnings. After
presenting the quantitative aspects of the classification of learnings
mentioned by students, the article discusses the predominance of
learnings related to personal development, and uses the categories
of mobilization and meaning to achieve deeper understanding of
the accounts produced by students in their balances of knowledge.
We concluded that the subjects’ relationship to knowledge is based
on the valuing of their personal development-related learnings also
with regard to what they have learned in the university, and that
some of them are able to recognize the specificities of that particular
institution as a learning space. The study identified three core topics
around which are organized the meanings attributed by students to
undergraduate education: achievement of a better life, changes in
their worldviews, and mobilization relating to knowledge itself.
Keywords
Higher education — Relationship to knowledge — Students.
I- Universidade Federal de Juiz de Fora,
Governador Valadares, MG, Brasil.
Contact: [email protected].
II- Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, SE, Brasil.
Contact: [email protected]
618
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000012
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
Introdução
Este artigo apresenta resultados de uma
investigação que se propôs a compreender as
relações com o saber de estudantes universi�
tários, utilizando como referencial a teoria da
relação com o saber de Bernard Charlot (1997,
1999, ���������������������������������������
2000, 2001, 2005, 2009). A escolha des�
sa abordagem teórica foi motivada pela consi�
deração do caráter complexo da docência, da
especificidade da atividade docente no ensino
superior e das diferentes questões colocadas à
área da educação pela expansão da oferta des�
se nível de ensino. Encontramos nas discussões
de Bernard Charlot a respeito da relação com
o saber um referencial teórico que nos parece
apropriado para a compreensão de diferentes
aspectos envolvidos nas vivências educacionais
dos estudantes universitários.
O campo de pesquisa foi uma universida�
de privada comunitária localizada em um muni�
cípio de médio porte do estado de Minas Gerais.
A pesquisa abrangeu os 24
������������������������
(vinte e quatro) cur�
sos de graduação oferecidos pela instituição, que
estavam agrupados nas áreas de ciências
������������
hu�
manas e sociais (administração, design gráfico,
direito, história, jornalismo, letras, pedagogia,
psicologia e serviço social); ciências agrárias e
da saúde (agronomia, educação física, farmácia,
fisioterapia, nutrição, odontologia, ciências bio�
lógicas) e ciências exatas (arquitetura, ciências
contábeis, ciências da computação, engenharia
civil, engenharia civil e ambiental, engenharia
elétrica, sistema de informação). Os sujeitos da
pesquisa foram os alunos do penúltimo período
de cada curso. Os 400 estudantes que compu�
seram a população investigada apresentavam
origem social, faixa etária e trajetórias escola�
res diversas. Tomados em conjunto, entretanto,
compartilhavam a condição de graduandos de
uma instituição privada comunitária cujos cur�
sos não ofereciam, à maior parte dos discentes,
experiências acadêmicas que ultrapassassem o
enfoque da formação profissional.
Para coletar os dados, foi utilizado o
balanço de saber, instrumento elaborado por
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
Bernard Charlot, que consiste na demanda da
produção de um texto pelos sujeitos, a partir
das seguintes questões:
Desde que nasci, aprendi muitas coisas,
em casa, na rua, na escola e em outros
lugares... O quê? Com quem? O que é
importante para mim nisso tudo? E agora,
o que eu espero? (CHARLOT,1999, p. 7)1
Acompanhando essa proposição e bus�
cando adequá-la ao nosso campo de investiga�
ção, acrescentamos a esse texto a expressão “na
universidade” antes da expressão “e em outros
lugares”. Os textos produzidos pelos estudantes
a partir dessa demanda constituíram o material
por meio do qual discutimos diferentes proces�
sos de suas relações com o saber.
Na primeira seção deste artigo, apresen�
tamos os pressupostos teóricos e metodológicos
que embasam a investigação realizada. Na se�
gunda seção, mostramos, através de gráficos e
extratos dos balanços de saber, em que porcen�
tagem e de que maneiras as diferentes apren�
dizagens são evocadas e discutimos os dados
encontrados a fim de compreender os processos
de relação com o saber dos estudantes pesquisa�
dos. Em outro movimento analítico propiciado
pela leitura dos balanços de saber, utilizamos os
conceitos de sentido e mobilização, a partir do
mesmo referencial teórico, para compreender
os relatos produzidos pelos estudantes, o que
apresentamos na terceira seção do trabalho. Em
nossas considerações finais, buscamos refletir,
a partir dos dados, a respeito dos processos de
ensinar e aprender no ensino superior.
Uma pesquisa acerca da relação
com o saber na universidade
A relação com o saber é, na concepção de
Charlot (2000, 2001, 2005, 2009), um conjunto de
1 - “Depuis que je suis né j’ai appris plein de choses, chez moi, dans la
cité, à l’école et ailleurs... Quoi? Avec qui? Qu’est-ce qui est important
pour moi dans tout ça? Et maintenant, qu’est-ce que j’attends?”
(CHARLOT,1999, p. 7) Tradução nossa.
619
relações que o sujeito estabelece com o aprender
– relações plurais, circunstanciais e, por vezes,
contraditórias. O autor propõe a compreensão do
sujeito como, ao mesmo tempo, e inteiramente,
um ser humano, um ser social e um ser singular.
Um ser de desejo em um mundo compartilhado
com outros sujeitos; que ocupa uma posição
social cuja primeira instância é a família e atribui
sentidos e significados singulares a si próprio e ao
mundo, na construção de uma história singular.
Para esse sujeito, aprender é uma
necessidade que marca sua presença em um
mundo produtor de saberes. Essa atividade
é central no processo de construção do ser
humano, que envolve se tornar um membro da
espécie humana (hominizar-se), tornar-se um
ser humano único (singularizar-se) e tornarse membro de uma comunidade, ocupando
nela um lugar (socializar-se). Por meio da
educação produz-se a si mesmo e é produzido
pelo mundo. Portanto, o sujeito e sua história
são sempre totalmente sociais e singulares,
sendo que o pertencimento a uma classe social
é interpretado de maneira ativa pelo indivíduo
na construção de uma história da qual é sujeito.
Em diálogo com a sociologia da educação de
Pierre Bourdieu, Bernard Charlot afirma que é
preciso analisar as atividades que os indivíduos
exercem, no contexto das posições sociais, para
[...] conquistar, para manter, para ‘trans�
mitir’ essas posições e é preciso conside�
rar também outras perspectivas do que
simplesmente a de sua posição social.
(CHARLOT, 2005, p. 40)
Frente à obrigação de aprender para ser,
a qual, de acordo com o autor, é subjacente à
condição humana, os sujeitos vivenciam diversos
processos de aprender, nos quais estabelecem
relações com distintos saberes, diferentes
relações com o aprender em contextos diversos.
A relação com o saber é o conjunto das re�
lações que um sujeito estabelece com um
objeto, um ‘conteúdo de pensamento’, uma
620
atividade, uma relação interpessoal, um lu�
gar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião,
uma obrigação, etc., relacionados de alguma
forma ao aprender e ao saber – consequen�
temente, é também relação com a lingua�
gem, relação com o tempo, com a atividade
no mundo e sobre o mundo, relação com os
outros e relação consigo mesmo, como mais
ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal
situação. (CHARLOT, 2005, p. 45)
A relação com o saber é, portanto, constituída
por um conjunto de relações empreendidas com
diversas formas de aprender, que variam de acordo
com a situação colocada pelo tipo de saber e pelas
circunstâncias nas quais ocorre a aprendizagem.
Assim, seria equivocado buscar encontrar a relação
com o saber do sujeito, ignorando os diferentes
espaços, situações e interações envolvidos no
processo educativo do qual ele participa. Apesar
de ser possível identificar uma forma dominante
– ao menos em relação à questão analisada – (o
autor admite a existência da uma unidade do
sujeito, construída na diversidade das relações com
o mundo), o mais importante é compreender as
relações entre os diversos tipos de relação com o
saber estabelecidos pelo sujeito.
A pesquisa a respeito da relação com
o saber deve analisar, portanto, os diferentes
elementos que integram os processos
construídos pelo sujeito nas diversas interações
(CHARLOT, 2001, p. 23).
É esse trabalho de identificação, de
exploração, de construção de elementos
e de processos que constitui a pesquisa
sobre a relação com o saber – que, em
última instância, permite compreender
as formas (eventualmente contraditórias)
de mobilização no campo do saber e do
aprender. [...]. Isto quer dizer que a resposta
a uma questão colocada em termos de
relação com o saber deve ser uma resposta
em termos de processo e não uma resposta
em termos de categorias de relação com o
saber – [...].
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Buscamos compreender o conjunto
dessas relações com o saber vivenciadas pelos
estudantes no ensino superior, considerando
as especificidades dos processos de aprender
nesse contexto, uma vez que a entrada na
universidade demanda dos estudantes a
adaptação a processos e relações diferentes
daqueles com os quais se defrontaram nas
etapas anteriores da escolarização (COULON,
2008). Nesse sentido:
[...] aprender é exercer uma atividade em
situação: em um local, em um momento
da sua história e em condições de tempo
diversas, com a ajuda de pessoas que
ajudam a aprender”. (CHARLOT, 2000, p. 68,
grifos do autor)
Ao produzirem os balanços de saber,
os sujeitos da pesquisa escreveram sobre seus
processos de aprender ao longo da vida e, de
maneira específica, na universidade. Apesar
de tratar da palavra de sujeitos singulares, ao
analisar balanços de saber temos acesso aos
processos pelos quais os sujeitos “colocam
o mundo em ordem”, e não à construção de
histórias escolares singulares. Por isso, “os
balanços de saber são tratados como um texto
só, onde se procuram encontrar regularidades
que permitam identificar processos”. (CHARLOT,
2009, p. 20). Tratamos, portanto, do grupo de
estudantes da universidade pesquisada. E o que
encontramos nos textos produzidos por eles?
Os balanços de saber não nos indicam o
que o estudante aprendeu (objectivamente)
mas o que ele diz ter aprendido no
momento em que lhe colocamos a
pergunta, nas condições em que a questão
é colocada. Por um lado, isto significa
que nós apreendemos não aquilo que o
aluno aprendeu (o que seria impossível),
mas o que, para ele, apresenta de forma
suficiente a importância, o sentido, o
valor para que ele o evoque no seu relato.
(CHARLOT, 2009, p. 19)
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
Assim, buscamos identificar, ao analisar
o que escreveram os 400 estudantes pesquisados,
aquilo que fazia sentido para eles em relação
a tudo que aprenderam em suas vidas. Essa
análise foi levada a cabo por meio dos seguintes
procedimentos: inicialmente, todos os balanços de
saber foram lidos por uma professora pesquisadora
e uma bolsista de iniciação à pesquisa. Em uma
segunda leitura, foram relidos e as aprendizagens
foram identificadas e classificadas, pelas mesmas
duas pessoas. A seguir, foram contadas as
aprendizagens de cada tipo em todos os textos.
Foi utilizada a classificação proposta por Bernard
Charlot (2009), dividindo as aprendizagens entre:
• Relacionais/afetivas: relações interpessoais
e comportamentos afetivo-emocionais, por
exemplo, “aprendi a amar”, “aprendi a me
relacionar com as pessoas”, “aprendi a conviver
com as diferenças”.
• Ligadas ao desenvolvimento pessoal: conquistas
pessoais, maneiras de ser, valores, por exemplo,
“aprendi a ser honesto”, “aprendi a não desistir
diante das dificuldades”, “aprendi os valores”.
• Cotidianas: tarefas e atividades do dia a dia,
por exemplo, “aprendi a andar”, “aprendi a me
vestir sozinho”.
• Intelectuais/escolares: aprendizagens que en�
volvem operações mentais, ou tarefas escolares,
por exemplo, “aprendi a ler e escrever”, “aprendi
a estudar”, “aprendi a fazer as lições”.
• Profissionais: ligadas ao exercício da profissão,
por exemplo, aprendizagens de práticas e
conteúdos diretamente ligados às profissões.
• Genéricas/tautológicas: por exemplo, “aprendi
muitas coisas”, “aprendi muito”.
Tal trabalho de análise permitiu visualizar
em que proporção as diferentes aprendizagens
foram evocadas pelos sujeitos da pesquisa, o
que apresentamos a seguir.
As diferentes aprendizagens e os
processos da relação
com o saber
Considerando o conjunto dos estudantes
pesquisados (gráfico 01) podemos verificar
621
que em um total de 1920 aprendizagens
evocadas, 50,9% foram classificadas como
ligadas ao desenvolvimento pessoal; 16,6%
como relacionais/afetivas; 14,3% intelectuais/
escolares; 8,9% cotidianas; 5,8% genéricas/
tautológicas e 3,5% profissionais.
Observa-se, portanto, em relação ao con�
junto dos estudantes, o predomínio das apren�
dizagens ligadas ao desenvolvimento pesso�
al, que perfazem mais da metade do total de
aprendizagens apresentadas nos balanços de
saber. As aprendizagens intelectuais/escolares
foram citadas em proporção três vezes menor,
em quantidade pouco inferior à das aprendiza�
gens relacionais e afetivas.
Interessava-nos saber se essa distribuição
variava de acordo com as áreas de conhecimento.
Então, contabilizamos os dados por curso e,
posteriormente, os agrupamos por área. A seguir,
apresentamos os dados das três áreas, mostrando
que não existe variação importante.
Os 150 balanços produzidos pelos estu�
dantes de administração, design gráfico, direito,
história, jornalismo, letras, pedagogia, psicolo�
gia e serviço social foram agrupados na área de
ciências humanas. No �����������������������
gráfico 02, podemos ve�
rificar que, de um total de 826 apreendizagens
evocadas por esses estudantes, sobressaem-se as
de desenvolvimento pessoal (49,1%) e as apren�
dizagens relacionais/afetivas (16,7%). A seguir,
apresentam-se as aprendizagens intelectuais/
escolares (14,5%); cotidianas (11,5%); genéricas
(5,9%) e profissionais (2,3%).
Observa-se no grupo de estudantes da
área de ciências humanas, em relação à popu�
lação pesquisada, praticamente a mesma pro�
porção entre as aprendizagens genéricas, inte�
lectuais/escolares, ligadas ao desenvolvimento
pessoal (que continua, portanto, predominante)
e relacionais/afetivas. Em relação ao total de
estudantes, os de ciências humanas e sociais
evocaram menos aprendizagens profissionais e
mais aprendizagens cotidianas.
A preponderância das aprendizagens li�
gadas ao desenvolvimento pessoal também se
observa no conjunto das 464 aprendizagens
Gráfico 1 – Total de todas as áreas
Total (%)
Genéricas
Profissionais
5,8
3,5
14,3
Intelectuais e escolares
Cotidianas
8,9
50,9
Desenvolvimento pessoal
Relacionais e afetivas
16,6
Fonte: Dados da pesquisa de campo.
Casos válidos: 1920 aprendizagens.
622
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Gráfico 2 – Área de ciências humanas e sociais
Área de ciências humanas e sociais
(%)
Genéricas
Profissionais
5,9
2,3
14,5
Intelectuais e escolares
11,5
Cotidianas
49,1
Desenvolvimento pessoal
16,7
Relacionais e afetivas
Fonte: Dados da pesquisa de campo.
Casos válidos: 826 aprendizagens.
Gráfico 3 – Área de ciências agrárias e da saúde
Área de ciências agrárias e da saúde
(%)
Genéricas
Profissionais
7,1
5
Intelectuais e escolares
Cotidianas
12,7
8
Desenvolvimento pessoal
Relacionais e afetivas
50
17,2
Fonte: Dados da pesquisa de campo.
Casos válidos: 464 aprendizagens.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
623
evocadas pelos 162 estudantes dos cursos de
agronomia, ciências biológicas, educação físi�
ca, farmácia, fisioterapia, nutrição, odontolo�
gia, reunidos na área de ciências agrárias e da
saúde. Como se pode verificar no gráfico 3, as
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pes�
soal representam 50% do total, as relacionais/
afetivas somam 17.2%; as intelectuais/escolares
12.7%; as aprendizagens cotidianas 8%; as ge�
néricas/tautológicas 7.1% e as profissionais 5%.
Repete-se, portanto, o predomínio das
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento
pessoal. Em comparação com o total de
pesquisados, os alunos dos cursos da área de
ciências agrárias e da saúde evocaram em seus
balanços de saber um número mais expressivo
de aprendizagens profissionais, enquanto as
aprendizagens intelectuais e escolares aparecem
em maior número.
Entre os estudantes dos cursos
da área de ciências exatas (arquitetura,
ciências contábeis, ciências da computação,
engenharia civil, engenharia civil e ambiental,
engenharia elétrica, sistema de informação)
foram produzidos 88 balanços de saber, nos
quais foram evocadas 431 aprendizagens.
Como se pode ver abaixo (gráfico 04),
55% dessas aprendizagens estavam ligadas
ao desenvolvimento pessoal, 17% eram
relacionais/afetivas;
14,6%
intelectuais/
escolares; 6,5% cotidianas; 3,1% genéricas e
3% profissionais.
Gráfico 4 – Área de ciências exatas
Área de ciências exatas
(%)
Genéricas
Profissionais
3,9
3
Intelectuais e escolares
Cotidianas
14,6
6,5
55
Desenvolvimento pessoal
Relacionais e afetivas
17
Fonte: Dados da pesquisa de campo.
Casos válidos: 88 estudandes e 431 aprendizagens.
Em comparação com o grupo de estudantes
pesquisados, portanto, os estudantes da área de
ciências exatas evocaram um número maior
de aprendizagens ligadas ao desenvolvimento
624
pessoal e um número menor de aprendizagens
cotidianas e genéricas e tautológicas. A tabela
01, a seguir, permite visualizar essa comparação
entre o total dos estudantes e cada uma das áreas.
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Tabela 01 – Total dos estudantes e das áreas pesquisadas
Tarefas das
áreas
Ciências humanas
e sociais
Ciências agrárias
e da saúde
Ciências exatas
Genéricas / Tautológicas
5,8%
5,9%
7,1%
3,9%
Profissionais
3,5%
2,3%
5%
3%
Cotidianas
14,3%
14,5%
12,7%
14,6%
Intelectuais / Escolares
8,9%
11,5%
8%
6,5%
Desenvolvimento Pessoal
50,9%
49,1%
50%
55%
Relacionais / Afetivas
16,6%
16,7%
17,2%
17%
Fonte: dados da pesquisa de campo
Casos válidos: 1920 aprendizagens
Vemos, portanto, que, tanto de maneira
geral quanto em cada uma das áreas, os proces�
sos construídos pelos estudantes na relação que
estabelecem com o saber são marcados por uma
ênfase sobre as aprendizagens ligadas ao desen�
volvimento pessoal. Ao mesmo tempo, aprendi�
zagens que seriam esperadas em relação ao en�
sino superior, como as intelectuais /escolares e
as profissionais, aparecem com frequência me�
nor. É interessante destacar que o predomínio
das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento
pessoal aparece em todas as áreas do conheci�
mento, não sendo uma característica exclusiva
dos cursos da área de ciências humanas, nos
quais os conteúdos se referem de alguma forma
ao desenvolvimento humano.
Podemos pensar então que “aprender a
viver” é importante para todos os estudantes,
sendo que a universidade é um espaço dessa
aprendizagem, não apenas por seus conteúdos,
mas também pelas vivências interpessoais e por
uma “preparação para o mercado de trabalho”
que envolve aspectos individuais, maneiras de
ser, conquistas pessoais, valores.
Que reflexões podemos empreender
a partir desses números? Como analisar o
fato de que os estudantes universitários
pesquisados citem, ao escrever acerca de suas
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
aprendizagens, uma quantidade muito maior
de elementos de seu desenvolvimento pessoal,
em relação às aprendizagens escolares e
intelectuais/profissionais?
Na busca pela construção dessas res�
postas – e de outras perguntas – considera�
mos importante abordar diretamente os textos
produzidos pelos estudantes, complementando
o movimento inicial de contabilizar as apren�
dizagens. Enquanto os dados anteriores refe�
rem-se a todas as aprendizagens evocadas nos
balanços, os extratos a seguir, retirados dos
balanços, abordam exclusivamente as apren�
dizagens atribuídas a espaços e agentes liga�
dos ao ensino superior. Ou seja, selecionamos
aquilo que os estudantes dizem ter aprendido
na universidade, no curso superior, com os
professores da universidade e com os colegas
da graduação.
Ainda que apresentemos extratos de
textos produzidos individualmente e, nesse
segundo momento, não nos atenhamos mais à
quantificação das aprendizagens, continuamos
em uma análise que se refere ao conjunto
dos estudantes, visto que a compreensão das
lógicas e dos sentidos individuais exigiria
outros procedimentos metodológicos. Ao trazer
as falas dos estudantes, buscamos aproximar
625
nossa análise das diferentes maneiras pelas
quais eles e elas organizaram a narrativa de
suas aprendizagens.
Nessa análise, de maneira geral, podemos
considerar os sujeitos da pesquisa em dois
grupos. O primeiro é formado pelos estudantes
que, em seus balanços de saber, associam a
universidade exclusivamente à aprendizagem
de valores, maneiras de ser e regras de
convivência. Em seus balanços de saber não
são lembradas aprendizagens intelectuais/
escolares nem profissionais. À universidade
são atribuídas apenas aprendizagens como as
exemplificadas a seguir:
Aprendi que vivemos em comunidade e que
existem limites e direitos a serem respeita�
dos, para que haja uma boa convivência.
Esse aprendizado foi me passado pela minha
família e por minha vivência na universida�
de e no ambiente onde vivo. (Estudante de
Agronomia, sexo masculino, 22 anos)
Como estudante, aprendo a cada dia o
quanto é importante a convivência com
as pessoas, a simplicidade apesar de tantos
desafios. (Estudante de Ciências Contábeis,
sexo feminino, 21 anos)
Desde que nasci aprendi valores importan�
tes para cada pessoa: aprendi a conviver
com pessoas diferentes, tanto no convívio
quanto na forma de agir e pensar, princi�
palmente dentro da faculdade. (Estudante
de Fisioterapia, sexo feminino, 20 anos)
Meus pais foram meus primeiros educado�
res, mesmo sem saber ler direito. Com meus
professores aprendi muita coisa, uma delas
é ser companheira, e até hoje aprendo a
cada dia, com meus filhos, com meu espo�
so e com as pessoas que me cercam, princi�
palmente aqui na universidade, que é uma
verdadeira escola, compartilhar este viver é
um aprendizado a cada dia. (Estudante de
Nutrição, sexo feminino, 43 anos)
626
Nas escolas em que estudei e na univer�
sidade em que estudo aprendi com pro�
fessores e colegas a ser mais compreen�
siva, mais dinâmica e mais comunicativa.
(Estudante de Sistemas de Informação,
sexo feminino, 20 anos)
Aprendi na faculdade que podemos ser tudo
que nossa imaginação conseguir criar e
que nosso corpo permitir. Um grande lugar
para se engajar no mercado de trabalho,
para curtir as melhores festas, para ter
a certeza de que realmente aprendeu
sobre a vida. (Estudante de Sistemas de
Informação, sexo masculino, 20 anos)
Aqui na universidade estou aprendendo
aquilo que é talvez a maior das lições;
respeitar as diferenças e conviver bem
com tudo aquilo que antes eu não achava
tão comum, pois como aqui encontramos
sempre pessoas de todos os tipos, ter
respeito e compreensão é totalmente
indispensável. (Estudante de Ciências
Biológicas, sexo feminino, 21 anos)
Nos balanços de saber dos quais esses
extratos foram destacados, as aprendizagens
na universidade aparecem como uma sequência
não diferenciada daquelas realizadas na família
e na rua. Esses estudantes não destacaram
outras aprendizagens na universidade além das
ligadas ao desenvolvimento pessoal e às relações
afetivas, as quais são aprendidas na vivência das
relações interpessoais. A realização do ensino
superior é lembrada como aquisição de maneiras
de viver e de relacionar-se, aprendizagens às
quais eles atribuem a capacitação para a vida em
sociedade e na profissão.
Um segundo grupo de estudantes, ao
contrário, citou as aprendizagens intelectuais/
escolares e as aprendizagens profissionais
como elementos importantes de seu processo
de aprendizagem. Em alguns balanços de
saber, essas aprendizagens aparecem junto
com as anteriores, em outros são exclusivas. O
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
conhecimento técnico-científico e a formação
profissional são, em alguns textos, valorizados
em relação a outras aprendizagens. Escola,
universidade e professores são reconhecidos
como espaços e sujeitos específicos, exclusivos
para determinadas aprendizagens.
Na escola aprendemos a ler e a escrever
e na universidade a sermos profissionais.
(Estudante de Agronomia, sexo feminino,
21 anos)
Em casa, na rua, na escola, assim como
na universidade, aprendi a exercitar tudo
o que havia aprendido, tal como respeito
ao próximo, lealdade, amizade, hones�
tidade e também fui complementando o
aprendizado técnico, que só lugares como
a escola e a universidade poderiam me dar.
(Estudante de Ciências Contábeis, sexo fe�
minino, 22 anos)
Nas escolas e universidades adquirimos
conhecimentos científicos, além de colocar
em prática toda nossa formação em casa
através da família. (Estudante de Educação
Física, sexo feminino, 21 anos)
Na universidade, após a escolha da futura
profissão, obtém-se o conhecimento teóri�
co-científico, o conhecimento prático e a
introdução na rotina da profissão ideali�
zada, através dos estágios, trabalho e re�
lacionamentos com colegas, professores e
profissionais. (Estudante de Farmácia, sexo
masculino, 20 anos)
Na faculdade tenho aprendido coisas que
certamente se eu não estivesse aqui não te�
ria aprendido, através dos professores (es�
tudante de Letras, sexo feminino, 22 anos)
Aprendi que quando se coloca uma meta
na vida e você luta por ela, normalmente
é alcançada, aprendi a respeitar a todos e
que ninguém é superior a ninguém, que
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
sacarose é muito prejudicial aos dentes e
que você não precisa escovar os dentes
3 vezes ao dia (mas não diga isso ao
paciente, pois ele não escovará nenhuma
vez ao dia). Aprendi tantas coisas que é
difícil descrever, pois nesses últimos 4
anos, teoricamente meu conhecimento
triplicou. (Estudante de Odontologia, sexo
masculino, 22 anos)
Na universidade tive outras experiências, o
aprendizado se processa de outras formas,
através de atividades práticas, não apenas
aulas expositivas, mas também o trabalho
clínico e laboratorial. Foi possível não só
aprender sobre as matérias relacionadas ao
curso, mas também a grande importância
da nossa futura profissão. (Estudante de
Odontologia, sexo feminino, 21 anos)
Na escola aprendi a construir verdadeiras
amizades e a base para um futuro melhor.
Na universidade aprendi mecanismos para
uma boa intervenção profissional, sempre
respeitando meu código de ética. No estágio
consegui colocar em prática tudo o que me
foi ensinado na academia. (Estudante de
Serviço Social, sexo feminino, 21 anos)
Com meus professores aprendi a escrever,
a ler, fazer contas e sobre a história da hu�
manidade, e atualmente estou aprendendo
minha profissão. (Estudante de Serviço
Social, sexo feminino, 20 anos)
Aprendi a lidar com o paciente e suas
particularidades com os professores de
estágio e de comunicação terapêutica.
Aprendi a ter uma visão holística do
paciente a executar práticas sempre
corretas com os professores de Semiologia
e Fundamentos de Enfermagem. Aprendi
com os professores de Ética, Saúde do
Adulto, entre outras disciplinas que,
como enfermeira, preciso ter postura de
tal, ser ético e estar sempre à procura de
627
conhecimentos. (Estudante de Enfermagem,
sexo feminino, 21 anos)
No curso de pedagogia aprendi sobre di�
versos campos de estudos como a Filosofia,
Antropologia, Sociologia, Didática, Pesquisa
em Educação, fundamentos que irão mos�
trar o meu modo de pensar e me fazer nos
lugares nos quais eu promova a constru�
ção e formação de pessoas, conhecimentos
e saberes. (Estudante de Pedagogia, sexo
Feminino, 21 anos)
Como vimos, portanto, esse segundo gru�
po de estudantes vivencia a universidade como
espaço de aprendizagens intelectuais/escolares e
profissionais, ainda que alguns deles evoquem
aprendizagens relacionais/afetivas ou ligadas ao
desenvolvimento pessoal ao referir-se àquilo que
aprendem em seus cursos de graduação.
Como podemos analisar essa diferença
entre os textos dos balanços de saber? Os estu�
dantes que evocam aprendizagens intelectuais/
escolares e profissionais e as reconhecem como
próprias da universidade estabelecem processos
de relação com o saber diferentes daqueles que
não o fazem? Em que consiste essa diferença?
Essas perguntas somam-se àquelas relativas à
preponderância das aprendizagens ligadas ao
desenvolvimento pessoal em relação às apren�
dizagens intelectuais/escolares e às aprendiza�
gens profissionais, levantadas anteriormente.
Uma questão nos parece central: o que significa
o fato de que os estudantes pesquisados evo�
quem com maior frequência aprendizagens que
não nos parecem as mais afeitas ao ensino na
universidade, mesmo em uma pesquisa realiza�
da em sala de aula?
As análises realizadas por Bernard
Charlot, a respeito dos dados que encontrou ao
pesquisar a relação com o saber de jovens de
liceus profissionalizantes de periferias de Paris,
auxiliam-nos na tentativa de responder as
questões colocadas. Os dados foram coletados
entre 1993 e 1995, a partir de 533 balanços
de saber produzidos pelos estudantes daquelas
628
instituições. Os resultados desse estudo
mostram que as aprendizagens relacionais/
afetivas representam 38% das aprendizagens
citadas e as ligadas ao desenvolvimento pessoal
representaram 10% do total de aprendizagens
citadas. As aprendizagens intelectuais/escolares
representam 24% do total de aprendizagens
evocadas, a maior parte delas consideradas
pelo autor pouco ligadas à especificidade dos
conteúdos e das atividades da escola:
A relação com o saber propriamente dita
surge de forma particularmente vaga. As
actividades escolares básicas (ler, escrever,
contar) têm muito significado para eles.
Mas elas remetem para os inícios da esco�
laridade e o que se segue parece não tê-los
marcado. Eles vão à escola para fazer aquilo
que se deve fazer quando se vai à escola e
esperam que esta conformidade lhes permi�
tirá ter “uma boa profissão”, ou pelo menos
um emprego. (CHARLOT, 2009, p. 34)
O mesmo pode ser dito, segundo o autor,
em relação à esfera profissional, para a qual
os jovens mostram-se pouco mobilizados. Ele
conclui que para os jovens franceses estudantes
dos liceus profissionalizantes:
[...] aprender é, em primeiro lugar e
sobretudo, desenvolver relações com
os outros, ser capaz de desvencilharse no mundo, compreender a vida e as
pessoas, e, se for o caso, saber defenderse. (CHARLOT, 2009, p. 34)
Observa ainda que os jovens sujeitos da
pesquisa consideram a escola muito importante,
mas não se encontram mobilizados na escola,
em relação às atividades da escola. Ou seja,
não possuem um engajamento verdadeiro na
atividade escolar e na apropriação dos saberes.
Para isso, é necessário que “[...] o próprio saber
(a formação, a cultura) surja como chave do
futuro desejável antecipado” (CHARLOT, 2009,
p. 77), mediação que o autor não encontrou
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
com frequência. O que aparece como mediação
entre o presente e o futuro desejado não é o
saber, são os estudos e o diploma. Nesses casos,
a questão do saber não é central na relação do
estudante com a instituição escolar.
Charlot (2009) fala de uma oposição entre
o saber e a vida, para compreender a relação dos
jovens franceses com o saber. Para eles, o im�
portante é a vida, não o saber, e, na escola, viver
não é aprender, mas conviver com os colegas.
Em relação a um aspecto, entretanto, a escola faz
sentido para esses jovens: ela é um espaço rela�
cional importante. Essa ênfase no aspecto rela�
cional pode ser compreendida como um desvio:
[...] o aluno está enganado em relação à
função da escola, ele não se apercebe da
sua especificidade, ele familiariza e trans�
forma a instituição em lugar de conví�
vio, que assim se afasta de seu objectivo.
(CHARLOT, 2009, p. 83-84)
Essa interpretação, apesar de correta, não
é, segundo o autor, suficiente. É necessário consi�
derar que “... a aprendizagem da relação com o ou�
tro é também uma forma de cultura” (CHARLOT,
2009, p.84). Por isso, esses estudantes demandam
uma cultura que permita compreender a vida, o
mundo, os outros, as relações com os outros e
consigo mesmos. As considerações do autor sobre
as diferentes dimensões da ênfase sobre as apren�
dizagens relacionais e afetivas nos parecem im�
portantes, possibilitando uma compreensão mais
ampla e complexa dos processos de relações com
o saber dos sujeitos de nossa pesquisa.
Em pesquisa realizada em 2009, adotamos
o balanço de saberes para analisar a relação
com o saber de 266 estudantes de Pedagogia de
duas universidades privadas e uma universidade
pública em Minas Gerais (BICALHO, 2011).
Encontramos entre as alunas das instituições
privadas que, do total de aprendizagens evocadas,
30% eram relacionais e afetivas, 40% ligadas ao
desenvolvimento pessoal, 9% cotidianas, 15%
escolares ou intelectuais, 1% profissionais e 5%
genéricas ou tautológicas.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
Os dados coletados na universidade pú�
blica foram um pouco diferentes, sendo maior
o percentual das aprendizagens intelectuais ou
escolares, que representaram 26,9% do total de
aprendizagens evocadas, e menor o percentual
das aprendizagens relacionais e afetivas: 19,7%.
Ainda assim, as aprendizagens ligadas ao desen�
volvimento pessoal ocuparam a principal parcela
nos balanços de saber das estudantes de peda�
gogia da universidade pública: 36%. As apren�
dizagens cotidianas responderam por 10,8% do
total, as profissionais, por 2,3%, as genéricas
ou tautológicas, por 4,2%. A análise dos textos
produzidos pelas estudantes em seus balanços de
saber mostrou que os saberes da escola foram
construídos em relação com os saberes da vida:
ou eram a continuidade desses ou seu sentido
advinha da relação com a transformação da
vida. O saber, para as estudantes de pedagogia
pesquisadas, tinha sentido quando lhes possibi�
litava ver o mundo de outra maneira, situar-se
nele e relacionar-se com os outros.
Assim, os resultados encontrados em
nossa investigação com 400 estudantes de
uma universidade comunitária não parecem ser
uma idiossincrasia da instituição pesquisada.
As análises realizadas por Charlot, a partir
dos balanços de saber dos estudantes dos
liceus profissionais, orientam-nos no sentido
da “leitura positiva” de nossos dados, ou seja,
uma postura epistemológica e metodológica
que “[...] liga-se à experiência dos alunos, à
sua interpretação do mundo, à sua atividade.”
Nesse sentido:
[...] praticar uma leitura não é apenas,
nem fundamentalmente, perceber co�
nhecimentos adquiridos ao lado das ca�
rências, é ler de outra maneira o que é
lido como falta pela leitura negativa”.
(CHARLOT, 2000, p. 30, grifos do autor)
Ao debruçarmo-nos sobre os dados de
nossa pesquisa, buscamos, portanto, evitar uma
leitura centrada naquilo que falta aos estudan�
tes universitários investigados. Nessa leitura
629
negativa, destacaríamos a inadequação de suas
expectativas e de sua ligação com a educação
escolar (tanto básica quanto superior), privi�
legiando uma formação pessoal, baseada em
formas de viver e conviver, em detrimento da
formação científica e profissional. Ao contrário,
ao buscar uma leitura positiva, percebemos que
os processos escolares de aprender abrangem,
para os estudantes, tanto conteúdos e processos
intelectuais quanto valores e maneiras de ser.
Assim, aprender os conteúdos científi�
cos e profissionais é um processo que implica
mudanças na maneira de ver a si mesmos, aos
outros e ao mundo. Graduar-se é, também, am�
pliar os horizontes, adquirir outras formas de
se relacionar com os outros: a formação pro�
fissional é valorizada como formação pessoal.
Retomando os extratos dos balanços de saber
analisados anteriormente, encontramos, entre
os estudantes que relacionam o ensino univer�
sitário às aprendizagens intelectuais/escolares e
profissionais, diferentes formas de combinar a
formação pessoal com a formação científica e
profissional. Podemos pensar ainda que a au�
sência da referência a essas aprendizagens pode
indicar a necessidade do desenvolvimento de
processos de aprender que construam uma rela�
ção mais forte com o saber acadêmico.
No trabalho de análise dos balanços de
saber, identificamos alguns elementos recorrentes
nos relatos que nos pareceram elucidativos dos
diferentes processos de relação com o saber vi�
venciados pelos estudantes universitários sujeitos
da pesquisa. Eles fazem parte do quadro formado
pela ênfase dada às aprendizagens ligadas ao de�
senvolvimento pessoal, e podem ser compreendi�
dos com os conceitos de mobilização e sentido.
Sentidos da formação
universitária e mobilização em
relação ao “saber em si”
Charlot (2000) propõe os conceitos
de mobilização, sentido e atividade para
compreender os processos de relação com o
saber. O conceito de mobilização remete à
630
dinâmica interna necessária para aprender.
“Mobilizar é por recursos em movimento.
Mobilizar-se é reunir suas forças, para fazer uso
de si próprio como recurso” (CHARLOT, 2000,
p. 55). A definição da mobilização envolve o
conceito de atividade; o sujeito:
[...] mobiliza-se, em uma atividade, quando
investe nela, quando faz uso de si mesmo
como de um recurso, quando é posto em
movimento por móbeis que remetem a um
desejo, um sentido, um valor. A atividade
possui, então, uma dinâmica interna. Não
se deve esquecer, entretanto, que essa
dinâmica supõe uma troca com o mundo,
onde encontra metas desejáveis, meios de
ação e outros recursos que não ela mesma.
(CHARLOT, 2000, p. 55)
Segundo o autor, a adoção do termo
atividade tem a intenção de ressaltar a presença
de um sujeito que a realiza. Sujeito que se
mobiliza, coloca-se em movimento em função
de determinadas atividades. Para a compreensão
dessa dinâmica, Charlot utiliza ainda o conceito
de sentido, que se refere: à possibilidade do
estabelecimento de relações em um sistema ou
conjunto, à possibilidade de estabelecimento de
relações com outros aspectos ou fatos da vida
do sujeito e à produção de inteligibilidade sobre
algo. Assim, tem sentido:
[...] o que é comunicável e pode ser
entendido em uma troca com os outros.
Em suma, o sentido é produzido por
estabelecimento de relação, dentro de um
sistema, ou nas relações com o mundo ou
com os outros. (CHARLOT, 2000, p. 57)
Tomando como referência esses três
conceitos – sentido, mobilização e atividade
– buscamos novamente nos balanços de saber
elementos que nos auxiliassem a compreender
os processos de relação com o saber dos
sujeitos da pesquisa. Nos textos produzidos,
os estudantes expressaram a atribuição de
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
diferentes sentidos ao ensino superior, ao
relatarem o que buscam na universidade, o
que esperam a partir da conclusão do curso de
graduação, como se veem enquanto estudantes
e como projetam sua imagem como formados.
Identificamos três polos de organização
desses sentidos. O primeiro é o da formação
universitária como o caminho para uma
vida melhor, a superação de dificuldades, o
reconhecimento no mercado profissional. É o
que aparece nos relatos seguintes:
Espero me formar e ter uma vida adequada,
para suprir as dificuldades que já foram
passadas, e ver isso como um aprendizado
para o futuro. (Estudante de Arquitetura,
sexo masculino, 22 anos)
Espero que no futuro bem próximo todos
esses conhecimentos sejam o suficiente
para enfrentar esse mundo. (Estudante de
Ciências Contábeis, sexo feminino, 21 anos)
O que espero pra mim no futuro é ser
feliz, formar, ter uma excelente família e
arrumar um bom emprego, isso é tudo que
eu quero. (Estudante de Farmácia, sexo
masculino, 20 anos)
Hoje me encontro aqui, dentro de uma
universidade lutando para conseguir algo
de melhor para mim e para meus filhos.
Consequentemente poderei dar a eles tudo
que não tive a oportunidade de ter, inclusive
apoio quanto ao estudo. (Estudante de
Letras, sexo feminino, 31 anos).
Hoje estou prestes a me formar, sei que
essa é uma oportunidade única e que abrirá
as portas para que eu possa ter um futuro
profissional brilhante, me tornando cada
dia mais feliz. (Estudante de Psicologia,
sexo feminino, 24 anos)
A universidade significa, portanto, para
vários estudantes, a garantia de uma vida
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
melhor e de um futuro estável. De que maneira
esse sentido atribuído à universidade compõe
as relações estabelecidas por eles com o saber?
Propomos duas leituras: por um lado,
atribuir à formação universitária o sentido de
possibilidade de um futuro melhor – para si e
também para outras pessoas – é uma forma
de valorização desse processo, e pode ser um
fator de mobilização dos estudantes em relação
a seus estudos. Por outro lado, é importante
perguntar, como faz Charlot (2009) na análise
dos dados de suas pesquisas, qual é o lugar
ocupado pelo aprender nessa valorização do
ensino superior, sendo possível que, em alguns
casos, a formação universitária seja valorizada
sem a consideração das aprendizagens ali
realizadas. Nesse segundo caso, pode acontecer
uma trajetória universitária utilitarista,
voltada apenas para a superação de etapas,
sem o estabelecimento de relações com o saber
da universidade.
Identificamos um segundo polo de
organização dos sentidos atribuídos pelos
estudantes à formação universitária: para vários
deles, o processo da graduação ocasiona uma
importante mudança pessoal, de perspectivas,
maneiras de ver o mundo, maneiras de estar no
mundo e relacionar-se com as pessoas. A seguir,
alguns extratos de balanços que expressam
esses sentidos:
Ao entrarmos no ambiente escolar, o
sentido da vida se define mais ainda.
(Estudante de Educação Física, sexo mas�
culino, 20 anos)
Na faculdade, a nossa mente se torna mais
“aberta”, muitos conceitos são repensados.
(Estudante de Fisioterapia, sexo feminino,
20 anos)
Ingressei na universidade apenas com o
objetivo financeiro, mas com os novos
conhecimentos adquiridos vi o mundo a
minha volta com outra perspectiva, a de
fazer algo, tentar mudar aquilo que ainda
631
se pode mudar. (Estudante de História,
sexo masculino, 44 anos)
Na universidade descobri que o universo
não sou eu ou minha cidade. Fui
informado que há infinitas galáxias e que
sou insignificante perto delas, mas que
no meu mundo sou tudo. Na graduação
aprendi que muitas pessoas pensam igual
ou diferente de mim, mas nem por isso
sou mestre... ou doutor. Descobri que o
conhecimento não tem fim e que a cada
dia novas coisas são descobertas. Eu posso
ser um inventor... de teorias. (Estudante de
Jornalismo, sexo masculino, 21 anos)
Na universidade vivo um novo momento,
posso dizer que foi um divisor de águas
em minha vida. O antes e o depois. Sua
importância foi a minha descoberta como
pessoa, autonomia e liberdade de ser eu
mesma. (Estudante de Psicologia, sexo
feminino, 33 anos)
Cheguei na universidade e vi que eu não
aprendi nada ainda da vida, que minha
vida está começando aqui para o mundo
lá fora. (Estudante de Serviço Social, sexo
feminino, 26 anos)
Com a oportunidade de agregar novos
conhecimentos à minha vida conheci
diversas formas de pensamento e práticas,
que acabaram transformando minha forma
de agir e pensar, o que penso ser. (Estudante
de Pedagogia, sexo feminino, 23 anos)
A experiência universitária vista como
transformadora das maneiras de ver o mundo,
dos horizontes e dos próprios sujeitos é um
processo de relação com o saber que ajuda a
compreender a importância das aprendizagens
ligadas ao desenvolvimento pessoal nos
balanços de saber. A atribuição desse sentido
à universidade revela que as aprendizagens
científicas e profissionais significam para os
632
sujeitos, também, aprendizagens relativas a
suas maneiras de ver o mundo, de viver, a seus
valores. Ou seja, durante o desenvolvimento de
seus cursos de graduação, muitos estudantes
vivenciam processos de mudança pessoal,
que foram expressos nos balanços de saber e
analisados por nós como aprendizagens ligadas
ao desenvolvimento pessoal. Assim como
refletimos anteriormente ao analisar os dados
de maneira quantitativa, também a partir dos
extratos dos balanços de saber apresentados
nesta seção é possível identificar a ligação entre
o processo de formação científica e profissional
e os processos de desenvolvimento pessoal.
Os sentidos atribuídos à formação uni�
versitária estão ligados também à mobilização
em relação ao saber tomado como conteúdo
intelectual, ou a relação com o saber-objeto.
Alguns balanços de saber expressam essa mo�
bilização. Neles, os estudantes fazem referên�
cia ao prazer, ao desejo de aprender, e o saber
aparece como aquilo que o sujeito ama, pro�
cura, que dá sentido a sua vida e faz parte de
sua identidade.
Aprendi como é bom aprender, estudar,
ler... e o prazer que existe simplesmente em
conhecer coisas interessantes. A questão
da busca pelo aprendizado é válida em
todas as áreas da vida: pessoal, acadêmica
e profissional. Assim como as lembranças
de momentos e de pessoas que amamos,
o conhecimento que adquirimos são bens
que ninguém pode nos tirar. (Estudante de
Design, sexo feminino, 19 anos)
Na escola e no mundo foi onde me achei,
foi através deste desejo do saber que me
impulsionou. (Estudante de Design, sexo
masculino, 34 anos)
Espero nunca parar de estudar porque sinto
que não tem o menor cabimento estar e viver
em sociedade sem entender o que ela produz,
produziu e ainda vai produzir. (Estudante de
Jornalismo, sexo masculino, 23 anos)
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
As melhores coisas aprendi na escola, lá
descobri minha paixão: a literatura e o
cinema. Na escola aprendi a gostar de
estudar, odiar português, mas amar redação.
Aprendi que mesmo não suportando
números você pode ser bom com eles.
Descobri que definitivamente sou um
cientista por natureza, e um pesquisador em
potencial. Não quero parar de ler e assistir
filmes jamais. Isso me faz viver. (Estudante
de Jornalismo, sexo masculino, 21 anos)
Meus professores foram muito importantes
para mim, serviram como reais transmissores
de conhecimento, e foi com eles que aprendi
a “gostar de aprender”. Defino assim a
minha busca pelo saber. É esse desejo de
conhecer coisas novas e conhecer o mundo
que me impulsiona a sempre buscar o
conhecimento e foi exatamente a percepção
desse desejo que me trouxe ao curso de
licenciatura. (Estudante de Letras, sexo
feminino, 19 anos)
Na universidade aprendo e aprendi a
cada momento o prazer de aprender. Para
minha vida essa experiência tem um valor
inestimável. (Estudante de Psicologia, sexo
feminino, 26 anos)
Sendo assim, o conhecimento é o que
me trouxe aqui, neste momento, e o que
me mantém aqui. Além de ser a minha
motivação e a minha razão para buscar
algo maior para mim, e deixar minha
contribuição para os que hão de vir.
(Estudante de Engenharia Elétrica, sexo
masculino, 22 anos)
Nesses relatos, o conhecimento ocupa
lugar central, é buscado, desejado e parece
imprimir sentido à realização do curso de
graduação. Charlot afirma:
Eis que o problema do sentido e, por
decorrência, o problema do prazer aparecem
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
como os problemas fundamentais da escola,
do ensino e da aprendizagem. Longe de se
esgotarem na disputa entre tradicionais e
construtivistas, esses problemas apontam
para o essencial que é saber se o aluno
tem a possibilidade de ter uma atividade
intelectual ou não. (CHARLOT, 2005, p. 23)
A mobilização em relação ao saber em
si – que identificamos como o terceiro polo dos
sentidos atribuídos à formação universitária –
serve como ferramenta teórica para a discussão
dos outros dois polos (a valorização da
universidade como caminho para a conquista
de uma vida melhor e o reconhecimento do
curso superior como transformador da maneira
de ver o mundo). Isso porque, tanto em um caso
quanto em outro, são necessárias, para que o
estudante realmente se insira nos processos de
aprender da universidade, a compreensão e a
mobilização em relação aos saberes específicos
do curso realizado.
Novamente retomando a preponderância
das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento
pessoal, nos balanços de saber, entendemos que
a construção de relações com o saber baseadas
no engajamento intelectual e na mobilização
intelectual (CHARLOT, 2005, p. 54) pode
ser um caminho para que as aprendizagens
intelectuais/escolares e profissionais, específicas
da universidade, passem a fazer mais sentido
para os estudantes.
Considerações finais
Retomando os dados e as discussões
apresentadas neste artigo, podemos dizer
que a relação com o saber dos estudantes
universitários sujeitos da presente pesquisa
está baseada na valorização das aprendizagens
ligadas a seu desenvolvimento pessoal.
Considerando especificamente os processos
de relação com o saber desenvolvidos na
universidade, encontramos duas situações: um
grupo de estudantes percebe essa instituição
como mais uma etapa de seu processo de
633
formação pessoal, enquanto outro grupo atribui
ao ensino superior, além da formação pessoal,
outras funções, ligadas a aprendizagens
intelectuais/escolares e profissionais, próprias
do ensino superior. Entendemos então que
a formação universitária é um processo de
aprendizado de maneiras de ser e de relacionarse com os outros e com o mundo. É também,
para uma parcela dos estudantes, espaço de
aprendizado científico e de formação para o
exercício de uma profissão.
A compreensão dos processos de relação
com o saber dos estudantes pesquisados foi
construída também, neste trabalho, por meio
dos conceitos de sentido e mobilização. Vimos
que os sentidos atribuídos pelos estudantes
à formação universitária organizam-se em
torno de três polos: a busca por um futuro
melhor; a transformação das maneiras de ver
o mundo e a mobilização em relação ao saber
em si. Analisando esses três polos de sentidos,
chegamos à consideração de que as questões do
desejo de aprender e da mobilização intelectual
são centrais – e precisam ser construídas pelos
estudantes – nos processos de ensinar e aprender
na universidade. Reconhecer a universidade
unicamente como espaço de formação pessoal,
ligada a valores e modos de ser pode significar,
nesse sentido, a não compreensão das
especificidades do saber universitário.
Essa é, em resumo, a compreensão
acerca dos processos de relação com o saber
dos estudantes universitários que construímos a
partir da análise dos balanços de saber produzidos
por eles. Essa é a resposta que oferecemos às
perguntas que fizemos sobre os processos de
relação com o saber dos estudantes de uma
634
universidade privada comunitária localizada
em um município de porte médio do estado
de Minas Gerais. Ao encontrá-la, voltamo-nos
para as inquietações que justificaram a questão
de pesquisa, e novas perguntas se apresentam:
de que maneiras esses processos de relação
com o saber refletem a respeito dos processos
de ensinar e aprender no ensino superior? Que
demandas e desafios colocam para as práticas
pedagógicas na universidade?
Trazemos novamente, para fundamentar
esta reflexão, as considerações de Bernard Charlot
(1997). Para ele, a entrada na universidade está
diretamente ligada à compreensão e aquisição da
lógica do saber universitário, o que exige operar
com os saberes de forma descontextualizada
e a ressignificação das experiências de vida
e trabalho em outros sistemas de saberes.
Portanto, o estar na universidade deveria
desencadear outras relações com o saber. É essa
constatação que tem nos levado a indagar sobre
o sentido do conhecimento escolar e do papel
da universidade na relação estabelecida com o
saber por esses/essas estudantes, os significados
da universidade em suas vidas, em que medida
o estar na universidade propicia aprendizagens
intelectuais e as coloca na condição de
aprendizagens significativas.
Cientes do papel da universidade na
produção de determinados tipos de aprendiza�
gem e da heterogeneidade do público universi�
tário, especialmente no ensino superior priva�
do, procuramos, com a discussão desenvolvida
neste artigo, chamar a atenção para a impor�
tância de que os cursos de graduação sejam
realmente espaços de circulação, aquisição e
produção de saber.
Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Referências
BICALHO, Maria Gabriela Parenti. Relação com o saber e processos de construção do eu epistêmico por estudantes de pedagogia
de universidades privadas. In: CHARLOT, Bernard (Org.). Juventude popular e universidade: acesso e permanência. São
Cristóvão: Editora UFS, 2011.
CHARLOT, Bernard. Nouveaux publics, nouveaux rapports au savoir: nouvelles fonctions de l’université? Actes du colloque de
l’Association des conseillers d’orientation psychologues de France. Le défi de la réussite, Sorbonne, p. 41-50. jan. 1997.
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Anthropos, 1999.
______. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. Tradução de Bruno Magne.
______. (Org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.
______. (Org.). Relação com o saber, formação dos Professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto
Alegre: Artmed, 2005.
______. A relação com o saber nos meios populares: uma investigação nos liceus profissionais de subúrbio. Porto: Livpsic,
2009. Tradução de Cataria Matos.
COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: EDUFBA, 2008. Tradução de Georgina G. dos
Santos, Sônia Maria R. Sampaio.
Recebido em: 07.05.2013
Aprovado em: 27.06.2013
Maria Gabriela Parenti Bicalho é pós-doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, doutora em Educação
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).
Maria Celeste Reis Fernandes Souza é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-doutoranda
em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CPNq),
secretária adjunta de Educação da Secretaria Municipal de Educação de Governador Valadares/MG e pesquisadora do Grupo
de Estudos sobre Numeramento – GEN/UFMG. Coordena projeto de educação social com pessoas jovens e adultas.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
635
Proposta didática para o curso de licenciatura em
educação física: aprendizagem baseada em casos
Andreia Cristina MetznerI
Resumo
O presente artigo tem como tema central a aprendizagem
baseada em casos, também conhecida por estudo de casos. O
objetivo deste estudo é apresentar uma proposta de trabalho
implementada em um curso de licenciatura em educação
física e estruturada a partir de um caso específico para a área
escolar. A metodologia utilizada é de natureza qualitativa
e do tipo pesquisa de campo. Participaram do estudo 25
alunos do último ano do curso de licenciatura em educação
física pertencentes a uma instituição particular de ensino
superior, localizada no interior do estado de São Paulo. As
disciplinas selecionadas para o desenvolvimento das ações
foram: metodologia da educação física na educação básica,
seminário de conclusão de curso e estágio supervisionado.
Os resultados da pesquisa apontam que a utilização de casos
no curso de educação física promove tanto para o professor
quanto para os alunos resultados positivos e necessários
para a sua atuação profissional. Acredita-se que, quando a
docência é desenvolvida de forma comprometida e a partir
de uma prática pedagógica crítica e reflexiva, por meio de
desafios instigantes, tanto o professor quanto os alunos
alcançam resultados positivos. Para isso, o professor precisa
desvencilhar-se da rotina e da zona de conforto propiciada
pelas aulas expositivas e enraizadas pelas metodologias
tradicionais.
Palavras-chave
Educação física — Aprendizagem baseada em casos —
Ensino superior.
I- Centro Universitário UNIFAFIBE,
Bebedouro, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091464
637
A teaching proposal implemented in an undergraduate
Physical Education program: case-based learning
Andreia Cristina MetznerI
Abstract
This article focuses on Case-based learning, also known
as case study. the aim of this study is to present a work
proposal implemented in an undergraduate Physical
Education program and structured from a specific case for
the education area. The study’s methodology is qualitative
and field research type. Its participants were 25 students
of the final year of program the aforementioned from a
private institution of higher education located in the interior
of São Paulo state. The disciplines selected for developing
actions were: Methodology of Physical Education in Basic
EducationII, Course Completion Seminar and Supervised
Internship. The research results indicate that the use of
cases in the Physical Education course provides both the
professor and the students with results that are positive
and necessary for their professional performance. Also,
when teaching is developed in a committed way and from
a critical and reflective pedagogical practice by means of
exciting challenges, both the professor and the students
achieve positive results. For this, professors need to
extricate themselves from the routine and the “comfort zone”
afforded by class lectures and classes rooted in traditional
methodologies.
Keywords
Physical education — Case-based learning — Higher education.
I- Centro Universitário UNIFAFIBE, Bebedouro,
SP, Brasil.
Contact: [email protected]
II- Translator’s note: In Brazil, basic education
comprises early childhood, primary and
secondary education.
638
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091464
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
Introdução
A docência, durante muito tempo, foi
concebida como um dom ou vocação. Ou seja, as
pessoas que gostavam e tinham facilidade para
ensinar tornavam-se professores. Hoje, sabemos
que a docência vai muito além do gostar de ensinar
e do domínio dos conteúdos de suas matérias de
ensino. Os desafios atuais da docência requerem
conhecimento científico e prático. Trata-se
da necessidade do docente estar em constante
formação, ser capaz de cumprir as exigências das
instituições de ensino, atender as necessidades
e expectativas dos alunos, ter criatividade para
trabalhar com turmas heterogêneas e saber lidar
com as diferenças, conseguir articular diferentes
conteúdos, acompanhar os avanços tecnológicos,
cumprir o programa de ensino, aliar ensino e
pesquisa etc.
O exercício da docência nunca é
estático ou permanente. Segundo Cunha (2004,
p. 526), “a docência é um processo que se
constrói permanentemente, aliando o espaço
da prática com o da reflexão teorizada”. As
novas informações, as pesquisas, os alunos, as
diferentes instituições de ensino modificam a
forma de o professor ministrar as suas aulas.
Dessa forma, visando a garantir a
qualidade do ensino e a aprendizagem efetiva
dos alunos, o professor do ensino superior
precisa articular os conteúdos de sua disciplina
com os das demais disciplinas do curso.
A prática pedagógica no ensino superior
necessita superar a visão de ensino fragmentado,
transformando as partes em um todo significativo.
O primeiro passo é estabelecer interconexões
entre as disciplinas do curso; em seguida,
permitir a interconexão dos conteúdos, buscando
a unificação do conhecimento. Esses dois
fatores são denominados interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, respectivamente.
O termo interdisciplinaridade pode ser
entendido como um conjunto de disciplinas
interligadas, ou seja, o conteúdo e as atividades
desenvolvidas nas disciplinas que compõem
a grade curricular de um curso não podem
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
ser vistas de forma isolada ou fragmentada. A
interdisciplinaridade “surgiu nos anos 70 como
resposta às necessidades de uma abordagem
mais integradora da realidade”. (DENCKER, 2002,
p. 19). De acordo com Martinazzo (2010, p. 203):
[...] a interdisciplinaridade caracterizase por uma comunicação e até mesmo
por uma colaboração entre as diferentes
disciplinas, mantendo-se, porém, cada
uma com e em sua especificidade.
Em relação à transdisciplinaridade,
podemos dizer que existia a mesma busca da
unidade do conhecimento para que os alunos
tenham uma visão mais ampla e global dos
fenômenos estudados, visando a formar
profissionais cada vez mais completos. Ou seja,
é a soma e unificação de todos os saberes.
A compreensão transdisciplinar rompe com
a forma epistemológica e metodológica
tradicional de ensino. Os limites parcelares
impostos pelas disciplinas tradicionalmente
organizadas fragmentam o conhecimento
e impedem a compreensão de um sistema
complexo, no qual todos os elementos
estão em relação e interdependência.
(MARTINAZZO, 2010, p. 201)
O autor complementa que, para a
compreensão da realidade, é necessária uma
abordagem transdisciplinar, visando à quebra
da divisão e hierarquização de conhecimentos,
bem como à transposição dos conhecimentos
estanques e à promoção do diálogo entre as
diferentes disciplinas.
As disciplinas de um curso superior são
organizadas de forma semestral ou anual. Na
grade curricular, encontramos nos primeiros
semestres as disciplinas consideradas como
pré-requisitos e as demais disciplinas são distribuídas ao longo do curso. Acreditamos que
geralmente as disposições dessas disciplinas são
feitas a partir de uma reflexão sobre a importância de manter uma integração entre elas.
639
Porém, uma boa organização da grade
curricular de um curso não é suficiente para
promover a inter e a transdisciplinaridade,
pois é preciso desenvolver práticas curriculares
que possibilitem a compreensão das relações
existentes entre as diferentes disciplinas.
Os empecilhos à não-fragmentação do
currículo em disciplinas são variados,
abrangem o desconhecimento do significado
de projetos, a falta de formação específica
para trabalhar com os mesmos, a acomodação
pessoal e coletiva, até o medo de perder o
prestígio pessoal, pois a interdisciplinaridade
leva ao anonimato – o trabalho individual
anula-se em favor de um objetivo maior – o
coletivo. (FAZENDA, 1993, p. 42)
Além disso, a autora aponta que é
mais fácil trabalhar de forma fragmentada
do que discutir ideias. Todo esse comodismo
acaba deixando os projetos interdisciplinares
e
transdisciplinares
elaborados
pelas
universidades apenas no papel.
O conhecimento não pode se restringir
apenas a uma área específica, mas, sim, deve-se articular o conhecimento de uma disciplina
com os saberes e práticas das demais. Isso estreitará as fronteiras existentes entre as disciplinas de um curso e construirá eixos de ligação
entre elas, proporcionando a reunificação do
conhecimento.
Segundo Almeida (2012, p. 158):
[...] é a partir deste momento que começa
ganhar força o desenvolvimento de
propostas de trabalho integradoras e a
ser destacada a importância do trabalho
coletivo que possibilita comunicação entre
as disciplinas.
Dentre essas propostas, podemos citar a
aprendizagem baseada em casos. Acreditamos
que a utilização de casos no ensino superior é
importante para formar profissionais capazes
de estabelecer conexões entre as disciplinas,
640
de lidar com o grande número de informações
recebidas e com as situações reais a que são
expostos no dia a dia da profissão.
Ao buscar resoluções para o caso
apresentado, os alunos organizam as suas ideias,
buscam conhecimentos teóricos e práticos nas
diferentes disciplinas, apresentam soluções,
executam na prática a solução proposta, visando
a verificar a sua aplicabilidade e pertinência etc.
Nesse contexto, o presente artigo tem
como objetivo apresentar uma proposta de
trabalho, estruturada a partir da aprendizagem
baseada em casos, implementada em um curso
de licenciatura em educação física de uma
instituição particular de ensino superior.
A educação física no ensino
superior: alguns apontamentos
A educação física, segundo Figueiredo
(2004, p.90), “pode ser compreendida como área
que tematiza/aborda as atividades corporais em
suas dimensões culturais, sociais e biológicas”. Assim, o campo de atuação e os conteúdos da
educação física são muito amplos.
No passado, os cursos de licenciatura em
educação física estavam preocupados em:
[...] formar executores e repetidores de habilidades motoras sem o devido conhecimento
sobre motricidade humana e sem comprometimento com o processo educacional. Por
isso, as disciplinas curriculares que compunham estes cursos valorizavam excessivamente a prática de habilidades como um
fim em si mesmas. (GHILARDI, 1998, p. 9)
Hoje, saber executar bem determinada
habilidade não é garantia de ser um bom
profissional, pois, para atuar na área de
educação física, é necessário muito mais do
que saber-fazer. Pelo contrário, é fundamental
o domínio de um conjunto de conhecimentos
práticos e teóricos, bem como ser capaz
de justificar as suas atitudes a partir do
conhecimento científico (GHILARDI, 1998).
Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
Por isso, os currículos dos cursos de
formação, que historicamente priorizaram a
transmissão de conteúdos, precisam ser questionados, pois os cursos que possuem uma visão
conteudista geram disciplinas fragmentadas.
Essa fragmentação existente colabora com a
hierarquia de saberes disciplinares, ou seja, algumas disciplinas são mais valorizadas ou têm
mais credibilidade dentro de um curso.
Nos cursos de educação física, as
disciplinas mais temidas ainda são a fisiologia,
anatomia e cinesiologia. O medo e a dificuldade
que muitos alunos encontram ao cursarem tais
disciplinas criam um falso conceito de que essas
são as mais importantes do curso.
Na verdade, não há disciplinas melhores
ou piores, mais ou menos importantes dentro de
uma grade curricular. Todas as disciplinas fazem
parte de um único curso superior e, portanto,
devem caminhar juntas em um mesmo patamar.
Por isso, de acordo com Neira (2010,
p.73) “o currículo precisa ser fruto de uma ação
coletiva”. O autor complementa dizendo que “os
saberes e situações que constituem o currículo
da formação para a docência refletem, em última
análise, o sujeito-professor que se quer formar”
(p.74). Ao contrário de um novelo de lã todo
emaranhado, o currículo precisa ter o formato
de um quebra-cabeça onde todas as “peças”
(disciplinas) se encaixam e dialogam entre si.
Neira (2010, p.89) acredita que os
currículos dos cursos de formação inicial de
professores de educação física necessitam
de modificações, como “alternativa para o
desenvolvimento de uma identidade profissional
docente coerente com as necessidades
educativas da contemporaneidade”.
Para Martins, Moreira e Simões (2006),
devemos ensinar aos alunos de educação física
em sua formação acadêmica:
[...] a associação entre o ver, o ser, o fazer,
o conhecer, o compreender e o conviver,
ou seja, uma formação que venha a permitir uma ação profissional que respeite
o princípio da rigorosidade, que esteja em
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
sintonia com o contexto sócio-histórico-cultural de seus alunos e especialmente,
que incorpore o entendimento da complexidade humana. (MARTINS; MOREIRA;
SIMÕES, 2006, p. 187)
O Conselho Nacional de Educação
(Parecer 009/2001, p. 10) aponta que os cursos
de licenciatura devem evidenciar:
[...] os problemas e as especificidades
das diferentes etapas e modalidades da
educação básica, estabelecendo o equilíbrio
entre o domínio dos conteúdos curriculares
e a sua adequação à situação pedagógica.
Para alcançar tais metas, Hunger
e Ferreira (2006, p. 145) acreditam que é
necessário:
[...] conceber a aprendizagem como um
processo que depende da interação entre
o indivíduo e o meio a partir de uma
perspectiva metodológica que enfoque
situações-problemas e o desenvolvimento
de projetos interdisciplinares.
Os cursos voltados à formação de professores, assim como a estrutura curricular, não
podem ser pensados de forma isolada e desconectada. Por isso, é necessário discutirmos e
refletirmos a respeito de questões relacionadas
às contribuições das metodologias problematizadoras no ensino superior, especialmente nos
cursos de licenciatura em educação física, visando à melhoria da qualidade desses cursos
de graduação, tanto na dimensão profissional
quanto na acadêmica.
Aprendizagem baseada em casos
As chamadas metodologias problematizadoras têm sido bastante divulgadas mundialmente, dentre elas encontramos a case based
learning ou aprendizagem baseada em casos,
também conhecida por estudo de casos.
641
Em relação à aprendizagem baseada em
casos (ABC), Montanher (2012, p. 6) aponta que é:
da vida: sociais, culturais, econômicos,
ambientais, profissionais etc.
[...] uma estratégia de ensino e de aprendizagem ativa, contextualizada e centrada
no aluno, em que o ensino se dá a partir
de um Caso paradigmático que contextualiza uma situação problematizadora. Nesse
modelo o professor desempenha o papel de
mediador do processo de aprendizagem,
questionando e orientando os alunos a refletir, pesquisar, analisar e formular hipóteses sobre o Caso e os problemas conexos
a este, de forma colaborativa e dialógica.
Os autores complementam dizendo
que esses casos podem ser longos ou curtos
dependendo do objetivo do estudo.
Destarte, o caso pode ser elaborado a
partir de diversos contextos, porém não se
deve perder o foco principal, que é promover
o desenvolvimento e aperfeiçoamento do
conhecimento do aluno, no sentido de
desenvolver no futuro profissional competências
e habilidades necessárias para a sua formação.
Outro ponto relevante na aprendizagem
baseada em casos é que o papel do professor
está relacionado ao mesmo tempo com a escolha ou elaboração dos casos e com todo processo de discussão.
Christensen e Hansen (1987 apud
Montanher, 2012, p. 35) argumentam que:
O autor complementa dizendo que esse
processo fundamentado no questionamento é
essencial para motivar a aprendizagem de novos
conteúdos e a construção de novos saberes.
O Caso seria o instrumento que possibilitaria mobilizar o conhecimento-em-ação dos
alunos, conhecimento este que os leva a agir
de certa forma em certas situações, sem ter
plena consciência dos conceitos envolvidos
nos bons resultados obtidos. Ao observar os
alunos trabalharem com o Caso, o professor teria possibilidade de reconhecer neste
conhecimento-em-ação os seus saberes prévios, o que é de grande valia, uma vez que
possibilitaria orientar o ensino com base nestes dados. (MONTANHER, 2012, p. 9)
Os casos podem basear-se em problemas
reais ou fictícios. O importante é fazer com
que o aluno interaja com o problema, formule
hipóteses, tome decisões e reflita sobre os
resultados, favorecendo uma participação ativa
no processo de ensino e aprendizagem.
Caracteristicamente, um caso, segundo
Reis e Linhares (2008, p. 231):
[...] deve se constituir uma questão a ser
resolvida no formato livre ou aberta; deve
ser atual e de interesse dos aprendizes,
propiciando ligações com contextos
642
[...] a liderança do processo de discussão
do Caso é uma responsabilidade crítica
do professor, o qual, mais que possuir
um conhecimento profundo do campo ou
problema colocado no Caso, deve procurar
mediar o processo pelo qual os alunos
individualmente, e em grupo, exploram
a complexidade da situação específica
apresentada pelo Caso.
A aprendizagem baseada em casos
permite integrar informações provenientes de
diferentes disciplinas e de diferentes campos
do conhecimento. Além disso, a aplicação
dessa metodologia problematizadora permite
ao professor pensar e planejar todas as etapas,
considerar os alunos (perfil), os tempos e prazos,
os materiais didáticos ou fontes, os objetivos
de aprendizagem e a sua avaliação, a interação
entre professor/alunos e alunos/alunos; enfim,
ela permite ao professor traçar uma hipótese de
trabalho, que poderá ser adaptada e alterada ao
longo do curso ou disciplina.
Para
isso,
o
professor
precisa
desvencilhar-se da rotina e da zona de conforto
Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
propiciada pelas aulas expositivas e enraizadas
pelas metodologias tradicionais.
Hoje, diante de tantos avanços tecnológicos e do rápido acesso às informações, é
notória a necessidade de o professor tornar a
sua aula motivadora. A aprendizagem baseada
em casos pode ser considerada uma alternativa
plausível, devido à sua aproximação com a realidade e com o preparo para a vida profissional
dos alunos.
Acreditamos que, mesmo que tenhamos
um sólido embasamento conceitual relacionado
à aprendizagem baseada em casos, somente
se o colocarmos em ação, em nossa prática,
é que conseguiremos dar significado a esses
conceitos e reelaborá-los. Por isso, a seguir,
apresentaremos um caso aplicado em um curso
de licenciatura em educação física.
Metodologia
Estudar os conteúdos de uma determinada
disciplina e relacioná-los com os das demais presentes no curso para solucionar um caso é muito
mais significativo e produtivo para o aluno do
que apenas estudar esse conteúdo para a realização de uma prova. Por isso, acreditamos que a
utilização da aprendizagem baseada em casos é
importante para a formação no ensino superior.
Para a elaboração do caso, o primeiro
passo foi pensarmos no conhecimento prévio
dos alunos do curso de licenciatura em educação física e nas disciplinas que estavam sendo
ministradas naquele semestre, visando a unir
informações que envolviam os conteúdos abordados nessas disciplinas. Além disso, procuramos um tema motivador, que despertasse o
interesse dos alunos.
O caso elaborado foi o seguinte:
Maria, empregada doméstica há 10 anos,
tem 40 anos, é casada e mãe de 3 filhos.
Moradora de um bairro periférico de um
município do interior de São Paulo, sai
de casa às 06h30min e retorna por volta
das 18hs.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
O filho mais velho, Guilherme, tem 15
anos e está cursando o primeiro ano do
ensino médio. Já o Carlos tem 8 anos e
está no ensino fundamental. E o caçula,
Joãozinho, tem 4 anos e está na educação
infantil. Todos estão matriculados em
escolas públicas.
No final de semana, Maria gosta de
conversar com os filhos sobre o que fizeram
na escola, o que aprenderam, do que mais
gostaram, como estão se comportando
na sala de aula etc. E então, nesse dia,
conversa vai e conversa vem, surgiu o
papo sobre as aulas de educação física.
Guilherme disse que o professor de
educação física dele é muito legal, pois
deixa os meninos jogarem futebol e
as meninas jogarem vôlei em todas as
aulas. Isso é muito bom, pois, segundo
Guilherme, as meninas só atrapalham
quando inventam de querer praticar esse
esporte, pois futebol é coisa de menino.
Carlos relatou que não gosta de participar
das aulas de educação física; ele prefere
ficar sentado olhando os colegas. O
professor não insiste para ele participar
das aulas, pois ele prefere trabalhar apenas
com aqueles alunos que “estão a fim de
aprender”. Carlos só participa da aula de
educação física quando chove, pois ele
gosta de jogar damas e, sempre que está
chovendo, o professor deixa os alunos
dentro da sala de aula jogando damas e
jogo da velha.
Já o Joãozinho disse que na escola dele
não tem professor de educação física e que
é a tia da sala que leva as crianças para o
parque ou dá umas bolas e bambolês para
brincarem no pátio.
Após essa conversa, Maria ficou
preocupada, pois os três filhos estão acima
do peso e gostaria que eles se interessassem
por alguma atividade física, pois ela já
assistiu várias reportagens na TV sobre os
benefícios da atividade física para a saúde
e qualidade de vida. Porém, nos finais
643
de semana e no tempo livre, as crianças
preferem ficar assistindo à televisão ou
jogando videogame.
Maria até entende as crianças, pois no
bairro onde mora não há nenhum local
para brincar. As praças estão destruídas,
não há campo ou quadra para praticar
esportes e, além disso, o bairro é muito
violento.
Na segunda-feira de manhã, Maria ainda
estava inquieta, pensando no que havia
conversado com os filhos no final de
semana. Então, ao chegar à casa dos
patrões, decidiu perguntar para um dos
filhos do casal sobre como eram as suas
aulas de educação física.
Maria procurou Gabriel para falar sobre o
assunto. Gabriel tem 8 anos e estuda em
uma escola particular localizada no centro
da cidade. O menino disse que, na aula
passada, o professor de educação física
decidiu realizar uma atividade de resgate
de brinquedos e brincadeiras tradicionais.
A primeira parte dessa atividade foi
fazer uma entrevista com os pais sobre
as brincadeiras que fizeram parte da sua
infância. Curiosamente, o brinquedo mais
citado foi o “pé de lata”. A partir desse
resultado, o professor propôs aos alunos
que confeccionassem os seus brinquedos
utilizando
os
materiais
recicláveis
encontrados em casa. A etapa posterior
foi realizar, no gramado da escola, uma
corrida utilizando os pés de lata. Foi
muito divertido. O professor disse que, na
próxima aula, iremos confeccionar bolas
de meia para jogar queimada. Acho que vai
ser legal também.
No final da conversa, diante de tanta
contradição, Maria questionou: Por que as
aulas de educação física são tão diferentes?
É culpa dos professores ou da escola? Será
que os professores de educação física que
atuam em escolas particulares são melhores
do que os das escolas públicas? Quais são
os principais conteúdos trabalhados nas
aulas de educação física? A disciplina de
educação física é realmente necessária no
currículo da educação básica?
Após a elaboração do caso, foram
planejadas e organizadas ações para serem
desenvolvidas nas disciplinas de metodologia da
educação física na educação básica, seminário
de conclusão de curso e estágio supervisionado,
visando à integração entre os conteúdos
abordados e as reflexões para a resolução do
caso apresentado.
Quadro 1 – Proposta de atividades/conteúdos relacionando as situações-problema que serão desenvolvidos na disciplina
Disciplina
Proposta de atividade/conteúdos
Metodologia da
educação física na
educação básica
• Impactos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional na Educação Física escolar (LDBEN nº. 9394/96).
• Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (PCN’s).
• Cultura Corporal de Movimento.
• Discussão sobre a importância da criatividade nas aulas de educação física nos diferentes níveis de ensino.
• Debate sobre as seguintes questões: de que forma o professor poderia motivar os alunos a participarem das aulas
de educação física, principalmente, no ensino médio? Por que, geralmente, as aulas de educação física, ministradas
em instituições particulares de ensino são tão diferentes daquelas das escolas públicas?
Seminário de
conclusão de curso
• Levantamento de problemas de pesquisa a partir do contexto apresentado.
• Trabalho escrito: propostas de pesquisas (tema, objetivo, justificativa, método).
• Apresentação das propostas.
• Discussão sobre as propostas apresentadas.
Estágio
supervisionado
• Os alunos deverão, a partir dos estágios realizados, comparar a situação-problema com a realidade vivenciada no
âmbito escolar.
• Discussão sobre diferentes formas de minimizar e/ou solucionar os problemas apresentados com base nos
conteúdos teóricos estudados nas diferentes disciplinas.
Fonte: Dados da pesquisa
644
Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
Os conteúdos e atividades propostas
em cada disciplina, apresentados no quadro
1, foram desenvolvidos em uma turma de 25
alunos do último ano do curso de licenciatura em
educação física pertencentes a uma instituição
particular de ensino superior, localizada no
interior do estado de São Paulo.
As discussões e debates ocorridos
nas disciplinas foram gravados e serviram
de referência para a coleta de dados,
proporcionando um registro detalhado das falas
dos participantes da pesquisa.
atuação do professor de educação física,
devido principalmente à falta de recursos e
à necessidade de motivar a participação dos
alunos por meio de atividades diferenciadas.
Segundo Wechsler (1998, p. 40), por
meio da criatividade, é possível:
Resultados e discussão:
metodologia da educação física na
educação básica
Por meio da criatividade, o professor
é capaz de transpor as dificuldades que o
contexto educacional apresenta diariamente
nas escolas e criar novas oportunidades para
que os alunos vivenciem espaços, materiais,
atividades e situações diversas.
Após o término da discussão acerca
da criatividade nas aulas de educação física,
iniciamos um debate sobre as seguintes questões:
de que forma o professor poderia motivar os
alunos a participarem das aulas de educação
física, principalmente no ensino médio? Por
que, geralmente, as aulas de educação física
ministradas em instituições particulares de
ensino são tão diferentes das escolas públicas?
De acordo com os participantes da
pesquisa, para motivar a participação dos
alunos nas aulas de educação física, o professor
precisa diversificar os conteúdos e inovar as
suas estratégias de ensino.
É importante ressaltar que os conteúdos
da educação física escolar têm como centro a
cultura corporal de movimento. De acordo com
Soares et. al (1992, p. 38), cultura corporal pode
ser definida como:
Na disciplina de metodologia da educação
física na educação básica, realizamos com os
alunos uma discussão a respeito da importância
da criatividade nas aulas de educação física nos
diferentes níveis de ensino. Dentre os principais
comentários, encontramos:
• É importante ser criativo nas aulas de
educação física para dinamizar as aulas,
modificar as formas de aprendizado,
conseguir atingir a maior parte dos alunos,
conquistando a participação de todos pelo
prazer.
• A criatividade é importante para adaptar
os materiais e a aula de acordo com o
espaço disponível.
• Como a falta de recursos é muito comum,
principalmente nas escolas públicas, o
professor de educação física precisa ser
criativo para conseguir diversificar a sua
aula.
• A criatividade é importante para fazer
com que os alunos sempre tenham interesse
pela aula e para que o professor seja capaz
de adequar o conteúdo de acordo com a
sua faixa etária.
Os participantes da pesquisa acreditam
que ser criativo é fundamental para a
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
[...] identificar as dificuldades ou os
elementos faltantes; formular hipóteses a
respeito das deficiências encontradas; testar
e retestar essas hipóteses e, por último,
comunicar os resultados encontrados.
[...] acervo de formas de representação do
mundo que o homem tem produzido no
decorrer da história, exteriorizadas pela
expressão corporal: jogos, danças, lutas,
exercícios ginásticos, esporte, malabarismo,
contorcionismo, mímica e outros, que
podem ser identificados como formas de
645
representação simbólica de realidades
vividas pelo homem, historicamente
criadas e culturalmente desenvolvidas.
Diversos são os conteúdos possíveis de
trabalhar nas aulas de educação física escolar.
Porém, a não diversificação desses conteúdos
nos diferentes níveis de ensino, segundo Silva
e Sampaio (2012, p. 116), podem causar sérios
prejuízos:
[...] tanto no que tange a restrição ao
acesso à cultura produzida pela sociedade
no período de escolarização quanto à
sua vivencia após a etapa de formação,
fator que pode contribuir negativamente
nas atitudes a serem tomadas frente à
ocupação do tempo disponível com o lazer
e na compreensão da importância para
a saúde e qualidade de vida advindas da
Cultura Corporal do Movimento.
Por isso, a educação física enquanto
componente curricular da educação básica não
precisa restringir as experiências corporais nas
aulas apenas a um tipo de conteúdo. Pelo contrário, necessita possibilitar o acesso aos diversos
conteúdos da cultura corporal de movimento.
Em relação à diferença entre as aulas
ministradas em instituições públicas e privadas,
os participantes acreditam que os fatores que
contribuem para que os professores de educação
física ministrem aulas de maior qualidade
nas instituições particulares são: melhor
infraestrutura; grande quantidade e diversidade
de materiais; número reduzido de alunos
por sala; os professores são constantemente
avaliados pela direção da escola; existe uma
cobrança maior dos pais dos alunos; e os
professores são mais bem remunerados.
Embora tenhamos atingido atualmente
altos índices de universalização da oferta
do ensino fundamental, a qualidade do
ensino desenvolvido em nossas escolas
encontra-se em situação crítica. Assim, a
646
construção de uma escola pública dos anos
iniciais democrática, inclusiva, crítica,
reflexiva e de qualidade para todos é ainda
um enorme desafio. (LIMA, 2012, p. 152)
As dificuldades que os professores de
educação física encontram nas escolas públicas
são visivelmente maiores do que as encontradas
nas instituições particulares de ensino. Por
exemplo, a falta de apoio do poder público,
atrelado à má remuneração e condições de
trabalho, levam o professor a ministrar uma
aula de baixa qualidade nas escolas públicas.
As políticas públicas destacam a
necessidade da melhoria da qualidade do
ensino. Porém, existe uma enorme fenda entre
o discurso político e a realidade educacional.
Os professores, mesmo reorganizando a sua
prática e utilizando diferentes estratégias de
ensino, não são capazes, sozinhos, de alcançar
a qualidade almejada pela legislação. Por
isso, os pontos que dificultam o trabalho do
professor nas escolas públicas não podem ser
deixados de lado.
Segundo Fugikawa (2004), para que
as ações implementadas pelos professores de
educação física sejam significativas e voltadas
para a construção da cidadania e emancipação
do educando, o trabalho do professor precisa
estar coerente com as especificidades dos
diferentes níveis de ensino e com a prática que
se pretende implantar na sala de aula. Mas, a
autora complementa que
[...] isso implica também salários, planos de
carreira dignos e condições ideais de trabalho
com relação ao material de apoio didático,
por exemplo. (FUGIKAWA, 2004, p. 32)
Seminário de conclusão de curso
Os participantes, a partir do caso
apresentado, levantaram algumas questões
de pesquisa que poderiam ser abordadas
no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
Dentre elas:
Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
• Qual a importância do professor de
educação física na educação infantil?
• Quais as dificuldades encontradas pelos
professores de educação física em inovar e/
ou modificar as suas aulas?
• Por que a maioria dos alunos do ensino
médio não gosta de participar das aulas de
educação física?
• Qual a importância do resgate de jogos
e brincadeiras tradicionais nas aulas de
educação física?
As questões de pesquisa apontadas
pelos alunos estão de acordo com os problemas
apresentados no caso: a necessidade da inserção
do professor de educação física na educação
infantil; as dificuldades que os professores
encontram em diversificar os conteúdos e
motivar a participação dos alunos; a importância
de trabalhar com os jogos e brincadeiras
tradicionais nas aulas de educação física.
Apesar de encontrarmos na literatura
diversas pesquisas a respeito dessas questões,
é importante intensificarmos os estudos que
envolvem esses temas, principalmente, durante
os cursos de licenciatura em educação física,
visando a ampliar os conhecimentos teóricos e
científicos dos graduandos.
Segundo Paiva e Betti (2010), vários
estudos surgiram no âmbito da educação física
escolar após a década de 80, contudo:
[...] ainda há carência de pesquisas que,
dotadas de qualificação teórico-metodológica, busquem o confronto dessas novas proposições com situações reais no
âmbito escolar, para que se possam avaliar criticamente suas potencialidades e
limitações, de modo a servir, com maior
nitidez, como orientação e referência aos
professores. (PAIVA; BETTI, 2010, p. 305)
Ao permitirmos e incentivarmos os
alunos a desenvolverem pesquisas envolvendo
o processo de ensino e aprendizagem, bem
como os obstáculos encontrados pelo professor
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
no dia a dia escolar, estamos oferecendo aos
futuros professores um referencial para a sua
atuação profissional.
Estágio supervisionado
A partir dos estágios realizados, os
alunos compararam o caso com a realidade
vivenciada no âmbito escolar.
Os alunos apontaram que a realidade
escolar é muito parecida com aquela da situação
fictícia, pois: no ensino médio, a maioria dos
professores ministra conteúdos envolvendo
os esportes e os alunos não têm interesse em
participar das aulas de educação física; no
ensino fundamental, não há diversidade de
conteúdos; e, na educação infantil, em grande
parte das escolas, as atividades de movimento
são ministradas pelos professores polivalentes
(professores formados em pedagogia).
Acreditamos que a educação física precisa
reconstruir a sua prática pedagógica tradicional
e caminhar em busca de objetivos, conteúdos
e metodologias adequadas aos diferentes níveis
de ensino e pautadas na cultura corporal de
movimento. De acordo com Fugikawa (2004,
p.41), “a eficiência do processo de ensino
depende da forma como a ação pedagógica é
organizada e sistematizada pelo professor”.
Para isso, o professor precisa “ter conhecimento (teórico-prático) para compreender
a realidade em que o aluno está inserido, deve
estar atento às peculiaridades que ocorrem e
procurar instrumentalizar-se para intervir conscientemente no contexto das relações escolares.”
(FUGIKAWA, 2004, p. 32)
Em relação às formas de minimizar e/
ou solucionar os problemas atuais da educação
física escolar, os alunos disseram que:
Os professores que atuam muito
tempo dentro das escolas precisam ser
incentivados a participar de cursos para
atualizarem os seus conhecimentos; para
isso, esses cursos precisam ser de qualidade
e gratuitos. (Informante da pesquisa)
647
Os alunos precisam sair da graduação
preparados para lidarem com o dia-a-dia
escolar; os professores de educação física
precisam diversificar os conteúdos de suas
aulas e motivar a participação dos alunos.
(Informante da pesquisa)
É necessário melhorar o salário dos
professores e as condições de trabalho; só
assim o professor ministrará uma boa aula.
(Informante da pesquisa)
As respostas giraram em torno de uma
melhor formação acadêmica, diversificação
e escolha adequada de conteúdos, formação
continuada de qualidade para os professores,
elaboração de planos de ensino procurando
atender as necessidades dos alunos, melhores
salários e condições de trabalho.
Acreditamos que, apesar de as políticas
públicas não oferecerem suportes adequados
para a melhoria das condições de trabalho
e a valorização dos professores em efetivo
exercício, os professores de educação física,
apesar de todas as dificuldades, precisam
buscar o desenvolvimento de um trabalho
com qualidade, elaborando aulas de acordo
com as necessidades dos alunos, adequando
os materiais e espaços disponíveis, bem como
buscando novos conhecimentos a partir da
educação continuada.
Mesa-redonda
Após a discussão a respeito do caso nas
diferentes disciplinas, convidamos três professores
para participarem de uma mesa-redonda visando
a discutir os temas abordados. Dentre esses
professores, convocamos um ex-aluno do curso
de licenciatura em educação física, o professor de
uma das disciplinas trabalhadas naquele semestre
e um professor de outra instituição de ensino
superior, que desenvolve pesquisas no âmbito da
educação física escolar.
A mesa-redonda teve duração de duas
horas e foi importante para que os participantes
648
da pesquisa visualizassem o resultado final do
trabalho desenvolvido durante o semestre,
comparassem a situação fictícia apresentada
no caso com a realidade e as pesquisas atuais
na área e, além disso, pudessem estabelecer
interconexões entre os conteúdos das
diferentes disciplinas que compõem a grade
curricular do curso.
Considerações finais
Na busca de superar a fragmentação do
ensino nos cursos de licenciatura em educação
física, apresentamos uma proposta de trabalho
a partir da aprendizagem baseada em casos.
É importante ressaltar que esse é apenas um
dentre muitos recursos que podem ser utilizados
no ensino superior objetivando a formação
integral dos alunos.
A docência, no ensino superior, quando é
desenvolvida de forma comprometida e a partir
de uma prática pedagógica crítica e reflexiva por
meio de desafios instigantes, permite que tanto
o professor quanto os alunos alcancem resultados positivos e desenvolvam habilidades necessárias para a sua atuação dentro e fora das
universidades.
A clássica distorção entre teoria e prática
ainda é comum em muitos cursos do ensino superior. Por isso, é necessário oferecer ferramentas para que os alunos pensem de forma global,
possam planejar suas ações e atuar de forma
ativa no processo de ensino e aprendizagem.
O papel do professor é fundamental
nesse caso, pois, para que novas metodologias,
diferentes recursos tecnológicos, bem como
o trabalho inter e transdisciplinar tragam resultados positivos, os professores necessitam
trabalhar em parceria, oportunizando a integração entre áreas diferentes de conhecimento.
Esperamos que as sugestões apresentadas nesse artigo contribuam para o surgimento
de novas ideias e ampliem as discussões pautadas nas questões referentes à aprendizagem
baseada em casos nos cursos de licenciatura em
educação física.
Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
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Recebido em: 16.06.2013
Aprovado em: 16.10.2013
Andreia Cristina Metzner é mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, professora dos cursos de
Educação Física e Pedagogia do Centro Universitário UNIFAFIBE e professora de Educação Infantil da rede municipal de São
Carlos.
650
Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
O desempenho das universidades brasileiras na
perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC)
Celina HoffmannI
Roselaine Ruviaro ZaniniI
Ângela Cristina CorrêaII
Julio Cezar Mairesse SilukI
Vitor Francisco Schuch JúniorI
Lucas Veiga ÁvilaI
Resumo
A educação superior exerce papel fundamental no desenvolvimento
econômico de determinado país, no que condiz ao atendimento
das demandas da sociedade. A qualidade no contexto da educação
superior tem sido tema recorrente nos últimos anos, sobretudo a
partir da criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior (SINAES), que instituiu um sistema de avaliação
institucional global e integrador condizente a todas as Instituições
de Ensino Superior (IES) brasileiras, sendo responsável por produzir
índices para mensuração da qualidade como o Indicador de
Diferença dentre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD), o
Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o IGC, Índice Geral de Cursos,
que mede o desempenho global da instituição. Diante disso, este
estudo tem como objetivo analisar o IGC das universidades públicas
e privadas das cinco regiões brasileiras, no intuito de caracterizar o
desempenho das IES por região e verificar possíveis discrepâncias
intra e inter-regionais, identificando oportunidades de melhoria. Os
resultados evidenciaram desempenho superior das universidades
públicas em todas as regiões, tendo maior destaque as regiões norte
e sudeste. Quanto à variabilidade, as regiões Centro-Oeste e Norte
apresentaram os melhores desempenhos ambos condizentes ao setor
privado. No entanto, para realizar uma avaliação consolidada do
desempenho das IES por região, faz-se necessário analisar, de forma
integrada, os resultados do IGC alinhados aos demais subsistemas de
avaliação que integram a avaliação multidimensional do SINAES.
Palavras-chave
I- Universidade Federal de Santa
Maria, Santa Maria, RS, Brasil.
Contatos: [email protected],
[email protected],
[email protected],
[email protected]
II- Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
Contato: [email protected]
Qualidade na educação superior — Desempenho do IGC nas regiões
brasileiras — Avaliação de instituições de educação superior.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041491
651
Performance of Brazilian universities in view of the
General Course Index (IGC)
Celina HoffmannI
Roselaine Ruviaro ZaniniI
Ângela Cristina CorrêaII
Julio Cezar Mairesse SilukI
Vitor Francisco Schuch JúniorI
Lucas Veiga ÁvilaI
Abstract
Higher education plays a fundamental role in the economic
development of a country in terms of meeting society’s demands.
Quality in higher education has been a recurring theme in recent
years, especially after the creation of the National Higher Education
Assessment System (SINAES), which established a global and
integrative institutional assessment system in line with all Brazilian
Higher Education Institutions (HEIs). SINAES is responsible for
producing quality measurement indicators such as the Indicator of
Difference between Expected and Observed Performance (IDD), the
Preliminary Course Program Score (CPC), and the General Course
Index (IGC). The latter measures the overall performance of higher
education institutions. Thus, this study aims to analyze the IGC
of public and private universities of the five Brazilian regions
in order to describe the performance of HEIs by region, identify
possible intraregional and interregional discrepancies, and suggest
opportunities for improvement. The results showed that public
universities outperformed private ones in all regions, particularly
the north and southeast regions. Regarding variability, private
universities had the best performance in the center-west and north
of Brazil. However, a thorough assessment of the performance
of HEIs by region requires an integrative analysis of IGC results
aligned with other assessment subsystems that integrate the
multidimensional assessment of SINAES.
Keywords
I- Universidade Federal de Santa
Maria, Santa Maria, RS, Brasil.
Contacts: [email protected],
[email protected],
[email protected],
[email protected]
II- Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
Contact: [email protected]
652
Quality in higher education — IGC performance in Brazilian regions —
Assessment of higher education institutions.
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041491
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
Introdução
A avaliação é um instrumento de controle
e melhoria de desempenho, no que condiz às
Instituições de Educação Superior (IES). De
acordo com Dias Sobrinho (2010, p. 195):
[...] é uma ferramenta capaz de produzir
mudanças nos currículos, nas metodologias
de ensino, nos conceitos e práticas de
formação, na gestão, nas estruturas de
poder, nos modelos institucionais, nas
configurações do sistema educativo.
Por essa razão, deve ser vista como
importante subsídio para a tomada de decisão
no contexto de direcionamento das políticas
públicas, bem como na transformação e
melhoria da qualidade de cada IES dentro de
sua realidade de trabalho.
A qualidade no cenário da educação tem
sido tema recorrente nos últimos anos, muitas
vezes atrelada à questão do sistema avaliativo
institucional. Burlamaqui (2008), em estudo
realizado de caráter bibliométrico, enfatiza que
o conceito de qualidade visto na perspectiva
de uma instituição deve estar acompanhado
das noções da multidimensionalidade e
complexidade, que são características inerentes
ao ambiente de uma IES. O autor também
defende a utilização de dados quantitativos
e qualitativos de forma conjunta para a
mensuração do desempenho institucional, uma
vez que isso possibilitará uma visão integrada
da própria realidade multifacetada da IES.
De acordo com o censo da educação
superior de 2010, o número total de IES
corresponde a 2.378, sendo a participação
majoritária dada pela esfera privada com
88,3%, seguidos da esfera estadual com 4,5%,
federal com 4,2% e municipal com 3%. No
entanto, a categoria federal apresenta maior
concentração média de matrículas em razão do
número de instituições federais com 9.481,4,
enquanto a categoria privada apresenta
2.256,6 matrículas por instituição (INEP,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
2012). Tais números refletem o contingente
de IES que exercem papel fundamental no
desenvolvimento socioeconômico do país, na
condição de agente formador dos profissionais
que atuarão no mercado de trabalho, sendo
distribuídas em universidades, centros
universitários, e faculdades.
O Ministério da Educação (MEC), por
meio da Lei nº 10.861, em 2004, instituiu o
Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior (SINAES). Consiste em um sistema de
avaliação institucional abrangente e complexo
pautado pela autoavaliação, avaliação externa,
condições de ensino e instrumentos de
informação como censo da educação superior
e cadastro preenchido pela IES. O SINAES
é orientado por meio de indicadores, tais
como: o Conceito Preliminar de Curso (CPC)
e Índice Geral de Cursos (IGC), que subsidiam
os processos de avaliação in loco e resultam
nos Conceitos de Curso (CC) e Instituição (CI).
Institucionalmente, são considerados medidas
da qualidade da Educação Superior (INEP, 2011).
Esses indicadores exercerem importante
papel de nortear as iniciativas de políticas
públicas para a educação superior. Conforme
Burlamaqui (2008), a utilização de indicadores
traz vantagens, pois retrata informações
passíveis de consulta pela sociedade, sobretudo
aos usuários do sistema. Diante da importância
da avaliação da educação superior e da
compreensão de seus instrumentos, indicadores
e resultados daí gerados, este estudo buscou
analisar os valores do IGC das universidades
públicas e privadas correspondentes às cinco
regiões brasileiras.
Nesse contexto, faz-se necessário
considerar que os índices de mensuração
da qualidade utilizados pelo INEP não são
amplamente aceitos pela comunidade acadêmica
que se dedica aos estudos acerca da educação
superior. Pelo contrário, desde a sua concepção,
os indicadores, incluindo o IGC, são alvos de
efusiva polêmica. Schwartzman (2008, p. 20)
argumenta, em crítica ao CPC, que é importante
indicador para composição do IGC:
653
Não tem legitimidade, porque não foi elaborado com a participação e o envolvimento
de setores relevantes da comunidade de ensino superior do país, que foi surpreendida
com sua divulgação.
Outro ponto de vista defendido por uma
leva de autores considera a utilização de indicadores de qualidade uma visão reducionista
do sistema de avaliação da educação superior.
Como afirma Dias Sobrinho (2008, p. 821) “[...]
como se os números, as notas, os índices fossem a própria avaliação e pudessem dar conta
da complexidade do fenômeno educativo”, deixando de considerar aspectos como identidade,
contexto, e fatores culturais inerentes a cada IES
avaliada.
Vale ressaltar que este estudo considera
a visão sobre a polêmica gerada a cerca de tais
números ao longo do referencial teórico.
Referencial teórico
Com a finalidade de elucidar o objetivo
proposto pelo presente estudo, faz-se necessário
enumerar os tópicos conceituais que irão
contextualizar a problemática apresentada
e oferecer os parâmetros necessários para
a análise dos resultados. Desse modo, são
relacionados os constructos a respeito: da
avaliação da educação superior brasileira; da
avaliação institucional e qualidade na educação
superior; do sistema de avaliação da educação
superior; e do IGC como indicador da qualidade
nas IES.
A avaliação da educação superior brasileira
O histórico do processo de avaliação da
educação superior nas instituições de ensino
superior teve seu início em 1993 por meio
do Programa de Avaliação Institucional das
Universidades Brasileiras (PAIUB), tendo sido
elaborado pela Comissão Nacional de Avaliação
(CNA), com assessoria da Secretaria de Ensino
Superior (SESu), e encaminhada sua proposta
654
pela Associação Nacional de Instituições Federais
de Ensino Superior (ANDIFES) ao Ministério de
Educação e Cultura (ZANDAVALLI, 2009).
A concepção dessa proposta de avaliação contou com a pluralidade da participação
da comunidade acadêmica em que vários representantes de diversas universidades fizeram-se
atuantes no processo. Visto que a composição da
CNA deu-se por diversas entidades relacionadas
à gestão do ensino superior, tais como: Fórum
de Pró-Reitores de Graduação; Fórum de PróReitores de Pesquisa e Pós-Graduação; Fórum dos
Pró-Reitores de Planejamento e Administração;
Fórum de Pró-Reitores de Extensão; Associação
Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais
de Ensino Superior (ANDIFES); Associação
Nacional de Universidades Particulares (ANUP);
Associação Brasileira de Universidades Estaduais
e Municipais (ABRUEM) e a Associação Nacional
de Escolas Superiores Católicas (ABESC) (BRASIL,
1993, apud ZANDAVALLI, 2009).
O Programa de Avaliação Institucional
(PAIUB) surgiu com a finalidade de suprir algumas demandas latentes à época. A ideia era
a de que por meio do processo da avaliação
institucional haveria a possibilidade de propiciar o constante aperfeiçoamento do desempenho acadêmico; servir como instrumento para
o planejamento e gestão universitária, além de
provocar um processo sistemático de prestação
de contas à sociedade, partindo do pressuposto
de que a educação é vista como um bem público, sustentada por recursos públicos, e, portanto, por toda a sociedade. O objetivo principal
do PAIUB era a análise e o aperfeiçoamento
do projeto acadêmico e sociopolítico da instituição, promovendo a permanente melhoria da
qualidade e adequação das ações institucionais.
As iniciativas propostas pelo PAIUB serviram de subsídios para a elaboração do Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior.
Dias Sobrinho (2002 apud ZANDAVALLI, 2009,
p. 421) afirma a importância do programa pelo:
[...] fato de ser uma obra coletiva, aberta, que contempla a pluralidade, que cria
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
bases teóricas e práticas coerentes para
atingir objetivos socialmente construídos e
tem, inequivocamente, caráter pedagógico
e formativo.
Acrescenta-se o fato de possuir uma estrutura formada por três processos articulados: avaliação interna (autoavaliação dos sujeitos e heteroavaliação das estruturas, processos e colegas);
avaliação externa (realizada por grupo de sujeitos
pares da comunidade acadêmica), e reavaliação
(reflexão crítica dos processos de avaliação).
Com a criação da Lei nº 9.131, de novembro de 1995, a chamada Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB), entre outras mudanças ocorreu a instituição do Exame Nacional de
Educação, o chamado Provão, com a finalidade de
aferir conhecimentos e competências adquiridos
pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de
graduação. Além disso, existia a pretensão da utilização dos resultados para o fomento de iniciativas
voltadas para a melhoria da qualidade do ensino.
No que condiz à concepção do SINAES,
essa está fortemente atrelada aos fundamentos
do PAIUB, sobretudo no que condiz respeito à
experiência adquirida no campo da avaliação
institucional aplicada ao contexto da Educação
Superior, conforme Ristoff e Giolo (2006, p. 197):
De fato, o novo Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior incorporou grande parte dos princípios e diretrizes
do Paiub, entre eles, o compromisso formativo da avaliação, a globalidade, a integração
orgânica da autoavaliação com a avaliação
externa, a continuidade, a participação ativa da comunidade acadêmica, o respeito à
identidade institucional e o reconhecimento
da diversidade do sistema. Diferentemente
do Paiub, no entanto, o Sinaes não adotou o
princípio da adesão voluntária. Com a lei do
Sinaes, e em consonância com o que estabelecem a Constituição, a LDB e o PNE, todas as
IES do País, não apenas as do sistema federal
devem participar dos processos avaliativos
que compõem o sistema.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
Conforme esclarece Zandavalli (2009), a
compreensão de tais antecedentes são fundamentais para identificar os avanços e recuos do
SINAES, que teve o papel de reestruturação do
modelo de avaliação da educação superior brasileira, tendo implícito o desafio de congregar
instrumentos e espaços avaliativos, superando
a fragmentação por meio da articulação das
formas avaliativas.
Avaliação institucional e qualidade na
educação superior
De acordo com Ribeiro (2012), a sociedade tem exigido, cada vez mais, a prestação
de contas do governo no que condiz ao conjunto de serviços prestados pelo Estado. Dentro
dessa exigência, está incluída a oferta e a manutenção da qualidade da educação superior,
cujas tarefas de supervisão, correção de erros e
divulgação dos principais resultados são fundamentais. O direito à educação, assegurado
pelo Estado, por si só não garante seu desempenho estratégico no contexto do plano de desenvolvimento de um país, é preciso também
assegurar alguns preceitos condizentes com a
realidade atual, como a busca por padrões de
referência que contemplem os princípios da
qualidade (INEP, 2009).
O termo qualidade não traz uma só conceituação capaz de considerar todas as dimensões que pode alcançar, mas pode estar relacionado com a conformidade entre a expectativa e
o resultado atingido e, além disso, pode ser estar
atrelado à percepção do sujeito que exerce a tarefa de julgar ou atribuir níveis de valor a determinada característica ou fenômeno.
Nesse contexto, Júnior (2009, p. 259)
afirma:
[...] o que é considerado qualidade pelo
setor acadêmico pode conflitar com a
qualidade buscada pelos governos, com
aquela percebida pela sociedade ou,
então, a que corresponde às demandas do
setor produtivo.
655
Dessa forma, as variáveis quantitativas
ou qualitativas são sustentadas por indicadores
mensuráveis, com a finalidade de não haver
predominância do caráter subjetivo no processo
de avaliação, uma vez que, de forma objetiva,
deve ser subsidiado pela conformidade,
padronização e imparcialidade.
Segundo Silva (2008), a expressão qualidade na educação tem a função de conferir distinção a uma ou mais características consideradas superiores ou de excelência, atribuindo-lhes
condição desejável. Contudo, o autor enfatiza
que os sentidos da qualidade podem variar em
duas direções: de objeto para objeto e conforme o contexto histórico, ou seja, as referências
acerca da qualidade mudam com o passar do
tempo. Assim, o que era visto como critério de
excelência no passado, como a disciplina e o
rigor, hoje já não é tão valorizado.
De acordo com Dal Magro e Rausch
(2012, p. 432), “o desenvolvimento e a qualidade no ensino também dependem da avaliação
constante nos processos de ensino, administrativos, e estruturais”. Nesse sentido, as diretrizes do SINAES contemplam tais perspectivas,
na medida em que há articulação com mecanismos regulatórios do Estado com o objetivo
da melhoria da qualidade acadêmica e gestão
institucional (INEP, 2009). Vistas sob o enfoque
da lógica de mercado, as IES estão inseridas em
um ambiente competitivo em que a procura por
um maior número de alunos reflete a excelência de seus serviços prestados (DAL MAGRO;
RAUSCH, 2012).
Dessa forma, a disputa pela melhoria da
qualidade da educação superior ocorre no cenário
macroeconômico, com a concorrência entre
países desenvolvidos produtores de inovações
tecnológicas, com os países consumidores e
reprodutores da tecnologia já criada. Assim
como na perspectiva microeconômica, com
a disputa direta entre as IES quanto ao seu
desempenho diante do número de alunos,
oferta de cursos e vagas, formação do corpo
docente, condições da infraestrutura, produção
científico-tecnológica, entre outros.
656
A reflexão sobre a qualidade na educação
superior recai, inevitavelmente, sobre as noções
de eficiência e desempenho, condizentes com a
lógica empresarial que a relaciona ao conceito
de produção, em que os alunos seriam os inputs,
a interação entre professores e alunos em que
se estabelece o aprendizado seria efetivamente
o processo e o aluno concluinte do ensino
superior seria o resultado final (output).
Nesse sentido, Burlamaqui (2008, p. 138)
concorda com tal perspectiva, com a ressalva do
estigma que se cria em torno da educação como
processo. O autor afirma: “nota-se que o ensino
corresponde a um processo permeado por vários
aspectos ou variáveis que, ao final, trará algum
resultado (produto)”. Daí a utilização de índices
de mensuração da qualidade que, aplicados em
cada etapa do processo, passa a ser amplamente
justificável, na medida em que se verificam
pontos fortes e fracos desse contexto, e, a partir
disso, ações de correção de erros e melhoria
podem ser planejadas.
Na perspectiva da administração da
educação superior sob a ótica da lógica empresarial, Sander (2007) enumera quatro trajetórias e seus respectivos modelos de gestão
da educação, sob o conceito de: eficiência, eficácia, efetividade e relevância cultural. Esses
seriam uma forma de um processo evolutivo
da administração da educação. Com relação
ao conceito de eficiência na educação, que se
aproxima da visão tecnocrática presente nas
empresas, o autor admite a eficiência como critério de desempenho econômico que acentua
as características extrínsecas e instrumentais
do contexto organizacional e suas respectivas
atividades, em que os sujeitos envolvidos norteiam-se pela lógica econômica, racionalidade
instrumental e produtividade operacional. Tal
concepção muito se assemelha à prática atual
de utilização de índices de qualidade pelo sistema de avaliação da educação superior, e que
é repudiada pelo autor na medida em que ele
afirma que o conceito de eficiência na educação não se coaduna com o caráter subjetivo e
com a ética inerente à prática educacional.
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Sistema de Avaliação da Educação Superior
O SINAES teve seu início a partir da
promulgação da Lei nº 10.861, em 14 de abril de
2004, com o intuito de consolidar a avaliação da
educação superior brasileira. Foi instituído na
forma de política de Estado, o que corresponde
à adoção das iniciativas e processos avaliativos
inclusos no sistema, independente da troca de
governantes, da esfera administrativa. Ele abrange
instituições públicas e privadas, com o objetivo de
melhoria da qualidade do ensino superior.
De acordo com Dias Sobrinho (2010), em
sua concepção inicial, o SINAES esteve baseado
nos pressupostos de avaliação e de educação
global e integradora, voltado a construir um
sistema de avaliação da educação superior. Tal
iniciativa articula-se sob o senso comum de
que a tarefa da avaliação do ensino superior
é complexa o bastante para não se restringir
em uma só dimensão avaliativa. Dessa forma,
o SINAES propôs a integração entre diversos
instrumentos de avaliação com o objetivo
de englobar a pluralidade de variantes de
indicadores da qualidade com os quais as IES
têm a missão de atender.
O SINAES constitui-se de três pilares
principais: a avaliação institucional, a avaliação
de cursos e a avaliação de desempenho dos
estudantes dos cursos de graduação, este último
subsidiado pela aplicação do Exame Nacional
de Desempenho dos Estudantes (ENADE). Já
os dois primeiros pilares são acompanhados
por meio de processos de avaliação in
loco (POLIDORI, 2009). Nesse sentido, é
orientado por meio das seguintes dimensões
avaliativas: missão e plano de desenvolvimento
institucional;
políticas
relacionadas
ao
ensino, pesquisa, cursos de graduação, pósgraduação e extensão; responsabilidade
social da instituição; comunicação com a
sociedade; políticas de pessoal; administração
e organização institucional; infraestrutura
física; planejamento e avaliação; políticas de
atendimento aos estudantes e sustentabilidade
financeira (BRASIL, 2004).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
Nesse contexto, o SINAES busca assegurar, entre outros aspectos, a articulação das
dimensões interna e externa, particular e global, além de buscar contemplar os pressupostos tanto da metodologia qualitativa quanto
quantitativa. Esse princípio do SINAES vem
atender a demanda de um sistema de avaliação
da educação superior que contemple a complexidade da temática e do processo avaliativo, a
participação de seus respectivos agentes das
dimensões governamentais, institucionais, de
aprendizagem, gestão administrativa e social
(BRASIL, 2004).
No entanto, a elaboração e instituição de
índices de desempenho contribuíram para gerar
grande polêmica em torno do tema, além de colocar à prova todo o significado do SINAES que
passou a apresentar uma concepção distorcida,
diante da comunidade acadêmica. Nesse contexto, Ribeiro (2012) relata que, nos primeiros
meses do ano de 2008, a comunidade acadêmica veio saber, por meio da mídia, a respeito das
mudanças ocorridas na filosofia do SINAES e
do papel do Estado a partir daquele momento.
A polêmica gerada ficou em torno da
criação de dois índices: o Conceito Preliminar
de Curso (CPC), regulamentado pela Portaria
Normativa nº 4 de 5 de agosto de 2008, antecedida pela Portaria Normativa nº 40 de
2007 que avalia os cursos de graduação, e o
Índice Geral de Cursos (IGC), regulamentado
pela Portaria Normativa nº 12 de 5 de setembro de 2008, também antecedida pela Portaria
Normativa nº 40 de 2007, que avalia o desempenho da instituição como um todo (INEP,
2011). Em ambos os indicadores, a base principal de cálculo é oriunda do ENADE, instrumento voltado à mensuração do desempenho
dos estudantes de graduação.
A adoção de tais índices para mensuração da qualidade do ensino superior brasileiro
provocou efusiva polêmica em torno do assunto, proliferando diversas críticas entre os pesquisadores e estudiosos. De acordo com Polidori
(2009), o fato dos indicadores serem baseados
no desempenho dos estudantes, por meio dos
657
resultados do ENADE, retrata uma transgressão
do próprio SINAES que prioriza um só pilar de
toda sua concepção sistêmica. Nesse sentido,
Barryero (2008, p. 867) argumenta sobre os malefícios provocados pela concepção dos índices
CPC e IGC:
[...] parecem levar-nos novamente ao
tempo dos rankings, das avaliações
mercadológicas e simplificações midiáticas,
mais próximas de uma visibilidade
publicitária do que da verdade da avaliação
da qualidade.
Nesse sentido, Dias Sobrinho (2010,
p. 216) sugere que a criação de tais índices
caracterizou a transformação da proposta
original do SINAES, que originalmente foi
criado como um processo sistêmico de avaliação
do ensino superior. Nas palavras do autor:
Em que pese a proposta original do SINAES
insistir nas idéias de sistema, de focar
centralmente a instituição e de repudiar
as práticas de rankings, isso não ocorreu,
plenamente, na prática.
Tal argumento
Ribeiro (2012, p. 307):
é
reafirmado
por
De fato, o SINAES está dando sinais de
esgotamento, e o não cumprimento do
estabelecido, contrariando a expectativa
de que o SINAES teria papel central na
regulação.
Entre as principais deturpações do
SINAES enumeradas pelos autores, incluemse: 1) a desconsideração da avaliação
institucional em favor da divulgação do IGC;
2) a sobreposição dos resultados do ENADE
que compõem o cálculo de tais índices e,
por consequência disso, 3) a indução para a
elaboração e divulgação de rankings, os quais
não são capazes de retratar a realidade, pois
não consideram a identidade e especificidades
658
institucional e dos agentes envolvidos, além de
desconsiderarem o caráter pedagógico e social
da formação do cidadão universitário.
Limana (2008, p. 872) é ainda mais
incisivo nas críticas aos índices:
[...] só serve para dar um verniz de
cientificidade a um imbroglio que, em
absoluto nada significa em termos de
avaliação da educação superior, a não ser
o de confundir a sociedade brasileira com
falsos rankings de excelência [...].
Tal polêmica parece residir não somente
na formação e estrutura de cálculo desses
indicadores, mas também na supervalorização
da divulgação e ranqueamento de tais
resultados, pois a partir deles ficam evidentes
as discrepâncias entre as instituições, visto
que é papel do próprio SINAES a divulgação
dos resultados à sociedade. Entretanto,
para finalidade do presente artigo, não há
pretensão de participar dessa discussão acerca
da concepção pedagógica ou filosófica de tais
índices, muito menos vincular tal temática sob
o enfoque histórico-político. Partindo-se da
existência e disponibilidade de tais índices, o
presente estudo tem como objetivo analisar os
valores do IGC contínuo das universidades das
regiões brasileiras, sob enfoque dos métodos
quantitativos de análise.
O Índice Geral de Cursos como indicador de
qualidade das IES
Apesar de tamanha polêmica em torno
dos índices elaborados a partir dos instrumentos
do SINAES, sabe-se da importância de se utilizar,
de forma concomitante, dados qualitativos e
quantitativos para avaliação de desempenho,
pois ambos são capazes de oferecer subsídios
de sustentação para as conclusões que possam
ser geradas. O cálculo do conceito preliminar de
curso é fundamental para a formação do IGC,
portanto, faz-se pertinente entender o que é
relevante para a formação do CPC.
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Conforme o manual de indicadores
de qualidade do INEP de 2011, a unidade de
observação a considerar nesse índice corresponde
ao curso de graduação, sendo a composição
para o cálculo formada pelos indicadores da
qualidade: as informações de infraestrutura,
recursos didático-pedagógicos e corpo docente; o
desempenho obtido pelos estudantes concluintes
e ingressantes no ENADE, e os resultados do
Indicador da Diferença entre os Desempenhos
Esperado e Observado (IDD).
O IGC, por sua vez, é divulgado
anualmente e consiste na média ponderada
dos conceitos de graduação e pós-graduação
strictu sensu, sendo que para fins de cálculo
são utilizados os valores dos CPCs para o
conceito da graduação e para os cursos de
pós-graduação é realizada a conversão dos
conceitos atribuídos pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes). A ponderação é feita com base no
número de alunos nos cursos de graduação,
mestrado e doutorado. O resultado apresentado
é uma variável contínua no intervalo entre 0
e 5, sendo que para fins de classificação das
IES os resultados são transformados em valores
discretos de 1 a 5, conforme o tabela 1. De
acordo com INEP (2011), esse indicador servirá
como referencial norteador das comissões de
avaliação institucional.
Tabela 1 - Distribuição do IGC
IGC (Faixa)
IGC ies (Valor Contínuo)
1
0 ≤ IGCies< 0,945
2
0,945 ≤ IGCies< 1,945
3
1,945 ≤ IGCies< 2,945
4
2,945 ≤ IGCies< 3,945
5
3,945 ≤ IGCies≤ 5
Fonte: INEP, 2011
Para fins de cálculo do IGC, são utilizados
os valores dos CPCs do triênio anterior ao ano
de observação. Sendo a ponderação dada pelo
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
número de matrículas referentes aos anos
correspondentes, a consideração do triênio devese aos resultados do Enade, que é aplicado a cada
três anos para cada área do conhecimento, e serve
de base para o cálculo dos CPCs. Além disso,
para os cursos de pós-graduação são utilizadas as
notas Capes da trienal referente ao ano de cálculo.
De acordo com INEP (2011), a Portaria
nº 40 de 2007, novamente publicada em 2010
institui que os resultados das avaliações presentes
no ciclo avaliativo do SINAES sejam baseados
em indicadores de qualidade referenciados
em escala de 1 a 5 pontos. O status de nível
satisfatório correspondem aos resultados iguais
ou acima de 3 pontos. Sendo os valores abaixo
de 3 pontos passíveis de notificação. De acordo
com Burlamaqui (2008), em termos de avaliação
institucional, para uma variável ou estatística
ser relevante ela deve ser capaz de influenciar
o resultado final, além disso, se duas variáveis
apresentarem causalidade ou interdependência,
perfaz condição de identificar falhas ou
deficiências que sustentam as iniciativas do
processo decisório e possíveis adequações visando
ao incremento e à melhoria das condições da IES.
Método
De acordo com a Portaria Normativa nº 40
de 2007, instituída pelo Ministério da Educação,
as universidades são definidas como instituições
pluricurriculares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano.
Devem possuir, pelo menos, um terço do corpo
docente com titulação acadêmica de mestrado
ou doutorado e um terço do corpo docente em
regime de tempo integral. Tais características
perfazem condições para fins de regulamentação, no entanto, não deixam de configurarem
em indicadores de qualidade, como mostra a
composição do CPC referenciado anteriormente.
De acordo com INEP (2012), o número
de universidades aumentou de 156 em 2001
para 190 em 2010, apresentando 54,3% do total
das matrículas, tendo em vista o contingente
659
de faculdades e centros universitários. Nesse
contexto, o SINAES atua com o propósito de
realizar uma avaliação diagnóstica, formativa e
regulatória das instituições de ensino superior.
Daí a importância de analisar a população de
universidades brasileiras.
A complexidade inerente ao contexto
da educação superior demanda a utilização de
diversas fontes de informações que compõem
a formação de um indicador. No caso, do IGC
pode-se dizer que sua composição está atrelada a
outros indicadores como o CPC que, por sua vez,
é dependente de um conjunto de fatores referentes à graduação. Além disso, para composição do
IGC são requeridas as notas da Capes atribuídas
aos cursos de pós-graduação. Nesse sentido, o
IGC pode ser considerado um indicador abrangente de avaliação do desempenho institucional,
pois engloba diversos itens avaliativos.
O presente estudo possui caráter descritivo, uma vez que consiste na observação, análise e caracterização de determinada realidade,
com intuito de agregar informações acerca de
fatos ou fenômenos investigados e estabelecer
possíveis relações entre as variáveis (GIL, 2008).
Quanto ao método de levantamento e análise
dos dados, foram utilizados os pressupostos da
pesquisa quantitativa que é baseada no paradigma positivista. Nesse paradigma, a racionalidade predomina de forma absoluta e os métodos
utilizados são eminentemente quantitativos, ou
seja, baseados em números que tentam, tão somente, representar uma realidade temporal observada (GOMES; ARAÚJO, 2005).
Quanto à coleta de dados, ocorreu por
meio da planilha eletrônica em formato excel
disponibilizada pelo site do INEP, com os dados
referentes ao IGC contínuo/2011 da população
composta por 221 universidades distribuídas
em suas respectivas regiões e categorias
administrativas (pública e privada). Por meio
do software statistica 9.1 foi realizada a análise
descritiva do IGC nas IES correspondentes às
cinco regiões brasileiras: Sul, Sudeste, CentroOeste, Nordeste e Norte. Além disso, foi utilizado
o teste t-student com a finalidade de verificar
660
a diferença entre as médias dos grupos das
universidades públicas e privadas de cada região,
considerando-se um nível de 5% de significância.
Por meio dos resultados pretende-se não
somente realizar comparações, muitas vezes
vista como prática discriminatória, uma vez que
as realidades regionais distinguem-se entre si,
conforme foi argumentado por diversos autores
citados no referencial teórico do presente
estudo, mas mapear padrões de identidades
regionais, tendo como ponto de observação
o IGC como índice de representatividade do
desempenho das IES. Nosso intuito é, com isso,
contribuir na identificação das discrepâncias
inter e intra-regionais, com a ponderação por
meio das categorias pública e privada.
Resultados
Por meio dos resultados, é possível
caracterizar a distribuição dos valores de IGC
nas cinco regiões brasileiras, considerando a
administração pública e privada, conforme
mostra a tabela 2.
No que condiz aos valores da média do IGC
na região Sul, observou-se que as universidades
sob a administração pública apresentam melhor
desempenho em comparação com a privada,
sendo que também é o grupo responsável tanto
pelo maior quanto pelo menor IGC da região.
Tal aspecto é reafirmado nos valores do desviopadrão e coeficiente de variação, que são
maiores do que os apresentados na categoria
privada. Foi observada diferença significativa
entre os valores médios de IGC (p = 0,01) quando
se comparou instituições públicas e privadas.
Quanto à análise geral, a média encontrada
correspondente à região Sul é menor do que
a esfera pública e maior do que a privada,
considerando-se que as universidades do
primeiro grupo perfazem o dobro do segundo.
Quanto à região Sudeste, a qual detém
o maior número de universidades em ambas
as categorias administrativas, os resultados
evidenciam o melhor desempenho das
universidades públicas que, da mesma forma,
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Tabela 2 – Estatísticas descritivas do IGC das universidades ano/2011 por região no Brasil
Sul
Média= 2,77
DP=0,52
Sudeste
Média=2,84
DP=0,65
Centro-Oeste
Média= 2,72
DP= 0,59
Nordeste
Média= 2,76
DP=0,58
Norte
Média=2,91
DP=0,60
Pública
Privada
Pública
Privada
Pública
Privada
Pública
Privada
Pública
Privada
Média
2,90
2,51
3,01
2,49
2,90
2,50
3,12
2,56
3,33
2,50
Mín.
1,65
2,03
1,57
1,44
2,10
1,96
2,34
1,75
2,27
2,00
Máx.
3,92
3,75
4,28
3,15
4,21
2,86
4,04
3,77
4,07
2,90
DP
0,52
0,43
0,67
0,42
0,71
0,30
0,52
0,52
0,54
0,31
C.V.(%)
18,02
17,09
22,38
17,05
24,61
12,06
16,79
20,18
16,38
12,27
17
60*
8
15
27
11
p-valor
Total
0,01
34
<0,001
0,16
28
10**
<0,01
<0,001
11
Fonte: elaborado pelos autores com base nos valores do IGC contínuo disponibilizados pelo INEP.
*Três universidades foram avaliadas sem conceito (SC)
**Duas universidades foram avaliadas sem conceito (SC)
apresentam valor médio superior de IGC em
comparação com as privadas. A diferença entre
as médias dos grupos foi significativa (p-valor
< 0,001). Os valores correspondentes ao desviopadrão e coeficiente de variação também foram
maiores em relação à categoria privada. Tal fato
representa uma maior heterogeneidade entre os
IGCs desse grupo.
A região Centro-Oeste apresenta, assim
como as outras regiões citadas acima, um
melhor desempenho das universidades públicas
em relação à média do IGC se comparada com
as universidades privadas. Da mesma forma, o
valor máximo de IGC dessa região pertence a
uma universidade pública, sendo que o menor
valor encontrado está localizado no grupo
das universidades privadas. No entanto, não
se observou diferença estatística significativa
entre as médias de IGC entre os grupos das
universidades públicas e privadas (p-valor =
0,16). Quanto à variabilidade, as universidades
privadas apresentaram maior homogeneidade
com relação ao IGC, evidenciando valores
menores para o desvio-padrão e coeficiente
de variação quando comparadas ao grupo das
universidades públicas.
Com relação à região Nordeste, observase a média geral muito próxima da região Sul.
Assim como as demais regiões, as universidades
públicas detêm o melhor desempenho para
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
média do IGC, em que o maior valor está
presente, sendo o menor valor encontrado no
grupo das universidades privadas. Verificou-se que existe diferença significativa entre os
valores médios de IGC para as universidades
públicas e privadas da região (p-valor < 0,01). No
que se condiz à variabilidade, as universidades
privadas apresentaram maior dispersão relativa,
evidenciando valor mais elevado para o
coeficiente de variação.
Quanto à região Norte, verifica-se média geral do IGC maior do que as das regiões
Sul, Centro-Oeste e Nordeste, no entanto, com
maior desvio-padrão. No que condiz às categorias administrativas, as universidades públicas
apresentaram melhor desempenho em comparação com as privadas para a média do IGC,
estando o valor máximo do IGC presente entre
as universidades públicas e o valor mínimo, na
categoria privada. Observou-se também diferença significativa entre os valores médios de
IGC (p < 0,001). No entanto, as universidades
privadas apresentaram um menor coeficiente
de variação, indicando maior homogeneidade
neste grupo.
A partir da análise dos resultados,
percebe-se o desempenho superior das
universidades públicas em relação às privadas
em todas as regiões analisadas. O melhor
desempenho do IGC foi observado na região
661
Norte, sendo que a região Sudeste apresentou
o segundo melhor desempenho para a média do
IGC. As outras regiões apresentaram resultados
inferiores, porém com certo equilíbrio entre os
valores das médias do IGC, apresentadas na
ordem decrescente: Sul, Nordeste e Centro-Oeste.
Quanto à variabilidade, a maior
homogeneidade foi evidenciada nas regiões
Centro-Oeste e Norte, ambas referentes ao
grupo de universidades da categoria privada,
enquanto que o restante das regiões apresentou
maior heterogeneidade considerando tanto a
categoria privada quanto à pública. Destacase a categoria das universidades públicas com
maior variabilidade observada presente na
região Centro-Oeste.
A análise do IGC propicia a identificação
de oportunidades de melhoria por parte das
instituições, além de estimular políticas públicas
nesse setor. Desta forma, a avaliação institucional
deve ser incorporada pela gestão da IES, conforme
colocado por Júnior (2009, p. 265):
Para que a instituição esteja preparada para
enfrentar os desafios contemporâneos,
é fundamental que sua realidade, suas
virtudes, capacidades e limitações sejam
conhecidas pelos seus membros.
O desenvolvimento da educação superior
deve passar pela busca da equidade regional,
no que condiz tanto ao desempenho de índices
de qualidade quanto aos critérios subjetivos
de avaliação institucional, respeitando-se as
diferenças culturais, econômicas e demográficas.
Considerando o referencial teórico sobre o
IGC e demais indicadores abordados neste
estudo, incluindo a polêmica gerada em
torno das interpretações de seus valores e
divulgação midiática, os resultados desta
pesquisa apontam para a reflexão justamente
a respeito do fundamento de tal discussão.
Os argumentos contrários à utilização de tais
indicadores enfatizam a relevância de que
662
sejam consideradas as diferenças de cultura e
identidade entre as instituições para não haver
a prática de discriminação e criação de estigmas
acerca de IES e suas respectivas regiões.
Os resultados desta investigação refletem uma realidade reveladora, tendo em
vista que justamente a média mais elevada
do IGC foi evidenciada na região Norte, ganhando maior destaque por apresentar melhor
desempenho em relação às demais regiões.
Configura-se em região historicamente estigmatizada, devido ao desempenho de seus indicadores socioeconômicos serem, geralmente,
abaixo da média nacional. Além disso, essa
região não apresenta tradição inerente às IES
das regiões Sul e Sudeste.
Dessa forma, fica latente o questionamento
sobre tal resultado: o IGC realmente é capaz de
refletir a qualidade de determinada IES? Ou
seja, o valor calculado para o IGC é capaz de
refletir a realidade? Por meio dos valores do
gráfico 1, pode-se observar uma realidade até
então desconhecida, por revelar um melhor
desempenho das IES do Norte e Nordeste em
detrimento das regiões Sul e Sudeste, sendo que o
senso comum admite exatamente o contrário. A
partir disso, surge a necessidade de formulações
de hipóteses explicativas para tal resultado,
ou seja, a necessidade de mapear as causas ou
os componentes avaliativos que ocasionaram
resultado tão revelador. Por outro lado, pode-se
dizer que os resultados deste estudo servem para
quebrar paradigmas e questionar o fundamento
dos argumentos contrários ao IGC que, por
sua composição, é imparcial, e os resultados
retratados não provocaram discriminações
entre IES ou regiões, pelo contrário, destacaram
regiões historicamente estigmatizadas.
Dessa forma, pode-se verificar, por meio
do gráfico 1, certa uniformidade no desempenho
das regiões brasileiras quanto ao IGC.
No que se refere ao Brasil, por ser
considerado um país de extensão continental,
coexistem discrepâncias de toda ordem entre as
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Gráfico 1 – Comparação entre Brasil x Regiões.
Mean
Mean+/- SD
Norte
Nordeste
Centro
oeste
Sudeste
Sul
Box & Whisker Plot
Brasil
4,4
4,2
4,0
3,8
3,6
3,4
3,2
3,0
2,8
2,6
2,4
2,2
2,0
1,8
1,6
1,4
Mean+/- 1,96* SD
Fonte: elaborado pelos autores com base nos dados do INEP (2011).
regiões brasileiras. Entretanto, o IGC estabelece
critérios mínimos de desempenho para as IES
e a busca por um desempenho uniforme e
constante deve ser monitorada e acompanhada.
A educação superior, vista sob o prisma de um
sistema, pressupõe a interação e coexistência
entre diversas instituições que, tendo como
ponto em comum organização acadêmica
(universidades), não devem se restringir à
própria realidade.
A busca pela equidade no desenvolvimento passa pelo feedback da avaliação institucional que também ocorre de forma conjunta e interação entre os pares. O gráfico 1
denota certa hegemonia entre as regiões brasileiras, embora as regiões Sul, Centro-Oeste
e Nordeste estejam um pouco abaixo da média do IGC nacional. No entanto, as regiões
Sudeste e Norte apresentam média do IGC acima da média nacional, sendo que a primeira
evidenciou maior variabilidade.
Considerações finais
A partir da distinção feita entre as
universidades públicas e privadas, sobretudo
a superioridade da categoria pública, no que
diz respeito aos desempenhos para a média
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
do IGC, devemos levar em consideração a
composição desse índice de qualidade, o qual
é formado pela média ponderada dos CPCs,
e este, por sua vez, relaciona subitens de
avaliação, tais como: professores doutores e
mestres, professores com regime de dedicação
integral ou parcial, infraestrutura, organização
didático-pedagógica, notas dos concluintes
e ingressantes do Enade, e o indicador de
diferença entre o desempenho observado e
esperado, o chamado IDD (INEP, 2011).
Destaca-se que, na sua maioria, os
itens que compõem o CPC favorecem as
universidades públicas quanto à facilidade de
atendimento aos requisitos da qualificação
do corpo docente e regime de trabalho. Para
explicar o desempenho superior referente
ao IGC nas universidades públicas, temse a ponderação feita por Bittencourt et al.
(2010), em estudo realizado sobre os itens que
compõem o CPC coletados em 2008. Os autores
evidenciaram vantagem para o setor público
na maioria dos itens que formam o CPC, sendo
somente os aspectos referentes à infraestrutura
e organização didático-pedagógica os pontos
fortes da categoria privada, em que ambos os
itens perfazem apenas 10% do CPC.
Tal consideração foi antevista por
Cunha (2004, p. 795) que, em artigo sobre
o tema, argumenta acerca da ideia de que o
desenvolvimento da educação superior ocorre de
forma desigual entre os setores público e privado:
O efeito mais dramático desse processo é
a improvisação dos professores do setor
privado, que produz efeitos negativos
para a qualidade do ensino, nos níveis de
graduação e pós-graduação.
Uma possível solução para minimizar
tal disparidade seria o aumento da oferta de
vagas nos cursos de pós-graduação (mestrado/
doutorado), com a finalidade de equilibrar o
mercado de trabalho desses profissionais e,
assim, propiciar condições das universidades
particulares a satisfazer esses requisitos.
663
Em síntese, todas as regiões evidenciaram
desempenho superior da esfera pública em
comparação com a categoria privada, com
os valores médios apresentando diferenças
significativas entre as categorias públicas e
privadas de algumas regiões.
A região Norte apresentou o melhor
desempenho para a média do IGC (2,91), o
que denota aspecto revelador sob a ótica do
desempenho da educação superior no contexto
das regiões brasileiras. Percebe-se, portanto,
certa imparcialidade nos valores do IGC na
medida em que considera os cálculos de seus
componentes formadores de uma maneira
objetiva, seguida das regiões Sudeste (2,84),
Nordeste (2,76), Sul (2,77) e Centro-Oeste (2,72).
A região Sul apresenta menor variabilidade
absoluta (0,52), seguida das regiões: Nordeste
(0,58), Centro-Oeste (0,59), Norte (0,60)
e Sudeste (0,65). Quanto ao desempenho
individual, evidencia-se que a região Sudeste
é detentora da universidade que apresenta
maior IGC (4,28), seguida das regiões CentroOeste (4,21) e Norte (4,07), sendo que em todos
os casos, trata-se de universidades públicas. A
universidade com pior desempenho é da região
Sudeste (1,44) da categoria privada, seguida das
universidades das regiões Sudeste, novamente
(1,65) e Sul (1,57), essas duas últimas advindas
da categoria pública.
A educação superior exerce papel
fundamental no desenvolvimento econômico
de determinado país, no que se relaciona com
as demandas da sociedade, como a formação
de profissionais qualificados para acompanhar
as constantes transformações advindas da
664
economia, tecnologia e informação. Decorre
daí a importância da avaliação institucional
e acompanhamento de seus indicadores.
Conforme colocado por Ribeiro (2012, p. 177):
As IES precisam responder às obrigações da
busca contínua da qualidade no desempenho
acadêmico, do aperfeiçoamento constante do
planejamento e da gestão universitária [...].
Nesse contexto, este artigo buscou, por
meio do IGC, que congrega informações a
respeito da IES, contribuir com campo de estudos
voltado à educação Superior, evidenciando
as implicações que os resultados do IGC
adquirem quando analisados de forma inter e
intra-regional, expondo características como
desempenho e variabilidade, considerando IES
públicas e privadas.
A realização deste trabalho foi motivada
pela possibilidade de tratar o desempenho da
educação superior sob o enfoque da abordagem
quantitativa capaz de subsidiar análises qualitativas. Dessa forma, este trabalho buscou colaborar com resultados preliminares a respeito da
comparação da qualidade da educação superior
entre as regiões brasileiras, a partir da análise do
IGC. Porém, ressalta-se a necessidade de estudos
complementares capazes de contemplar hipóteses explicativas para os resultados do presente
estudo. Por isso, a realização de uma avaliação
consolidada acerca do desempenho das IES por
região deverá ocorrer de forma integrada, ao
analisar os resultados do IGC alinhados aos demais subsistemas de avaliação que integram a
avaliação multidimensional do SINAES.
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
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Sorocaba, v. 14, n. 2, p. 267-290, jul. 2009.
Recebido em: 28.06.2013
Aprovado em: 30.09.2013
Celina Hoffmann é graduada em processos gerenciais e aluna de mestrado do Programa de Pós-Graduação em engenharia
de produção da Universidade Federal de Santa Maria.
Roselaine Ruviaro Zanini é doutora em epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora de
estatística na Universidade Federal de Santa Maria; coordenadora da especialização em estatística e modelagem quantitativa;
professora do Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção.
Ângela Cristina Corrêa é doutora em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Maria, administradora
pública federal; pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em administração da Universidade Federal de
Santa Maria; coordenadora do projeto Mapa Estratégico da Educação Superior (MEES), financiado pelo edital Pró-Adm./
CAPES.
Julio Cezar Mairesse Siluk é doutor em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor e
coordenador do Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção da Universidade Federal de Santa Maria.
Vitor Francisco Schuch Júnior é doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas, professor no curso
de graduação e pós-graduação em administração da Universidade Federal de Santa Maria nos mestrados acadêmico e
profissional, especialização e programas interinstitucionais.
Lucas Veiga Ávila é graduado em administração e especialista em gestão estratégica de negócios pela Universidade
Regional Integrada, aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em administração de empresas da Universidade
Federal de Santa Maria.
666
Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Contribuições da perspectiva crítica de base
histórico-cultural para a produção científica em
psicologia educacional
Laísy de Lima NunesI
Simone Salviano AlvesI
Jaqueline Vilar RamalhoI
Fabíola de Sousa Braz AquinoI
Resumo
Com ênfase na importância do monitoramento da produção
científica, podendo o mesmo indicar qualidade da e rumos
tomados pela produção do saber, o presente estudo visa a mapear
as produções no âmbito da psicologia escolar educacional e,
mais especificamente, nos artigos científicos que apresentem
uma perspectiva crítica nessa área. Para tanto, foi realizada uma
busca bibliográfica das versões on-line, publicadas entre 2007
e 2011, disponíveis na página da revista Psicologia Escolar e
Educacional, publicação semestral da Associação Brasileira de
Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Ao todo, foram
analisados 134 artigos. Os resultados apontaram que 17 artigos
(12,69%) foram classificados na perspectiva crítica. Cada estudo
trata de importantes aspectos da psicologia escolar educacional,
tendo como foco o papel do psicólogo na escola, a formação
docente e a postura crítica dos agentes escolares. Todos os artigos
selecionados fundamentam-se na teoria histórico-cultural, uma das
abordagens críticas da psicologia resgatadas para a compreensão
dos fenômenos educacionais, aqui considerados essencialmente
psicossociais. Entende-se que esse levantamento representa
um instrumento de fundamentação e de questionamento na
formação acadêmica (graduação e pós-graduação) de alunos de
psicologia, da área de educação e de áreas afins, e propicia um
maior aprofundamento acerca de como vem se configurando a
psicologia escolar educacional contemporânea e dos impactos nas
práticas profissionais orientadas por uma perspectiva crítica.
Palavras-chave
I- Universidade Federal da Paraíba,
João Pessoa, PB, Brasil
Contatos: [email protected];
[email protected];
[email protected];
[email protected]
Psicologia escolar educacional — Produção científica — Mapeamento —
Perspectiva crítica.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091471
667
Contributions of cultural-historical studies with
a critical perspective to scientific production in
educational psychology
Laísy de Lima NunesI
Simone Salviano AlvesI
Jaqueline Vilar RamalhoI
Fabíola de Sousa Braz AquinoI
Abstract
The present study seeks to map the productions in the scope of
educational and school psychology and, more specifically, in the
scientific articles that show a critical perspective in this area. This
is done by emphasizing the importance of monitoring scientific
production and its possibility of indicating the quality and directions
taken by the production of knowledge. In order to achieve this, we have
conducted a bibliographical search of the online versions published
between 2007 and 2011, available in the journal Psicologia Escolar
e Educacional (Educational and School Psychology), which is a
biannual publication of Associação Brasileira de Psicologia Escolar
e Educacional (ABRAPEE – Brazilian Association of Educational
and School Psychology). Overall, 134 articles were analyzed. The
results indicate that 17 articles (12.69%) were classified in the
critical perspective. Each study discusses important aspects of
educational and school psychology, focusing on the role of school
psychologists, teacher education, and the critical stance of school
agents. All the articles selected were based on the cultural-historical
theory, one of the critical approaches of psychology used to help
understand educational phenomena, which are considered in this
study as essentially psychosocial. This survey can be seen as a
platform to evaluate the academic undergraduate and graduate
background of psychology students in the field of education and
similar areas, and it provides a deeper view on how contemporary
educational and school psychology has been configured and its
impact on professional practices guided by a critical perspective.
Keywords
I- Universidade Federal da Paraíba,
João Pessoa, PB, Brasil
Contacts: [email protected];
[email protected];
[email protected];
[email protected]
668
Educational and school psychology — Scientific production —
Mapping — Critical poerspective.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091471
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
Introdução
Esse trabalho é produto de debates e
reflexões sobre as interfaces da psicologia social
com o campo educacional, por se entender a
importância da relação entre esses campos
de conhecimento para a prática profissional
do(a) psicólogo(a) e, fundamentalmente, pelo
valor atribuído às interações sociais como
unidade de análise possível entre as referidas
áreas (AROCHO, 2009, 2010; OVEJERO, 1996).
Defende-se que estudar as relações entre esses
campos da psicologia e conhecer os principais
referenciais teóricos que orientam uma área
permite entender e atuar profissionalmente de
forma consciente e crítica nos contextos nos
quais ocorre a atividade do(a) psicólogo(a).
Na compreensão de Ovejero (1996), nos
últimos anos, assistiu-se a uma progressiva
aproximação entre a psicologia social e a
psicologia educacional, com destaque para
o enfoque psicossocial como necessário
e imprescindível na educação. Segundo
afirma o autor, os fenômenos educacionais
são essencialmente psicossociais, dado que
compartilham duas classes: interpessoais
(interação professor-aluno, aluno-aluno, pais
e filhos) e grupais (tipo de grupo e de coesão
do grupo-classe ou do grupo familiar). O autor
enfatiza que, para abordar adequadamente toda
a complexa problemática da educação atual,
é imprescindível a adoção de uma perspectiva
abertamente crítica e emancipatória.
Em relação a essa questão, Ovejero
(1993, 1996) propõe a necessidade de um
enfoque psicossocial, que leve em conta os
aspectos psicológicos e sociais de um fenômeno
que considera claramente psicossocial, qual
seja, o fracasso escolar. Nessa linha, o fracasso
escolar seria um fenômeno social e educacional,
que reflete as relações entre indivíduo e
sociedade. Em seu texto “Psicología social de
la educación”, Ovejero (1996), ao apresentar o
enfoque psicossocial para explorar as relações
entre psicologia social e educacional, além de
enfatizar a interação social como ponto de
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
interseção entre essas duas áreas, recorre a
Vygotsky como autor que embasa a referida
proposta de análise.
Mais recentemente, Arrocho (2010)
recorre ao modelo histórico-cultural para
discutir as relações entre a psicologia social e
a educação, desenvolvendo articulações entre
esses dois campos de conhecimento. A partir da
leitura e dos debates em torno dos textos de
Ovejero (1993, 1996) e Arrocho (2009, 2010),
buscou-se investigar a presença, na produção
científica brasileira, da perspectiva crítica na
área escolar e educacional.
Em consonância com pesquisadores
brasileiros (MEIRA, 2003; SOUSA; SILVA,
2009; MALUF, 2010; MARTINEZ, 2010;
NOVAES, 2010; FACCI; EIDT, 2011), observou-se, na literatura internacional, a recorrência
à leitura e análise das questões educacionais a
partir do modelo histórico-cultural inaugurado
por Vygotsky (1932/1996; 1984/2007). Na
literatura acima referida, o encontro da
educação com a psicologia é atravessado por
uma leitura histórico-cultural. Os pressupostos
desse modelo põem em relevo a noção de
sujeito constituído histórica e culturalmente,
com destaque para os processos de formação
do indivíduo a partir da rede social em que se
insere. Partindo desse modelo, compreende-se
que os processos de ensino e aprendizagem,
que caracterizam as formas de socialização
e viabilizam a apropriação de ferramentas
culturais pelo homem, estão imbricados na
formação da consciência e da subjetividade
(AROCHO, 2009, 2010; OLIVEIRA; MARINHOARAÚJO, 2009).
No âmbito da psicologia escolar e
educacional, Maria Helena de Souza Patto,
na década de 1980, deflagrou uma crítica
contundente ao enfoque clínico de atuação
dentro das escolas, crítica essa que denunciava
o modelo hegemônico na psicologia e defendia
uma compreensão do fracasso escolar como
fenômeno de múltiplas dimensões. Sustentava
ainda que o trabalho do psicólogo escolar deveria
“contribuir para a elucidação de processos
669
que se dão na vida diária escolar, em suas
relações com as dimensões econômica, política
e cultural da sociedade brasileira” (PATTO,
1997, p. 467). Em suas elaborações, já pode ser
encontrada uma crítica ao fazer psicológico na
escola que, segundo ressalta, não percebia que
“o que parece natural é social e o que parece
a-histórico é histórico” (PATTO, 1997, p. 464). A
crítica apresentada à comunidade científica por
Patto (1997) influencia leituras e críticas mais
contemporâneas, como as elaboradas por Meira
(2003, 2012), Guzzo (2011), Facci e Eidt (2011),
entre outros(as).
Na esteira desse debate, Meira (2003)
defende a necessidade de uma concepção
crítica que oriente o trabalho dos psicólogos
educacionais e que traduza a compreensão de
que “a relação entre o homem e a sociedade
é de mediação recíproca, o que significa que
os fenômenos psicológicos só podem ser
devidamente compreendidos em seu caráter
fundamentalmente histórico e social” (MEIRA,
2003, p. 19). Essa autora, fundamentada em
parte nas críticas realizadas por Patto e nas
proposições marxistas, compreende o homem
como um ser essencialmente social, constituído
nas e pelas condições e interações sociais.
Articulada ao âmbito educacional, Meira
(2003, 2012) defende a escola como instituição
socializadora das formas mais desenvolvidas
do conhecimento humano e o psicólogo como
mediador, comprometido ética e politicamente
com as necessidades sociais. Cabe a ele refletir
sobre seu papel dentro da escola, entendendo a
educação como uma atividade que tem como
meta a transformação social.
Arocho (2010) afirma que há um
consenso entre os pesquisadores que adotam
essa perspectiva crítica em relação à ideia de
que a realidade e o conhecimento dela são
construídos socialmente e que a educação é uma
condição necessária para o desenvolvimento
tipicamente humano. Essa interface entre
psicologia e educação vem sendo construída
gradativamente, a partir de questionamentos
sobre a naturalização do desenvolvimento e
670
sobre a descontextualização e fragmentação
do indivíduo (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO,
2009). Corroborando essa afirmação, MarinhoAraújo (2010) defende que a relação entre a
psicologia e a educação
(...) vem se estreitando, com teorias,
pesquisas e formas de intervenção
profissional que influenciam as duas áreas.
Os diálogos e debates têm avançado por
meio de novos paradigmas e prismas,
que direcionam e redefinem formas
mais dialéticas para a compreensão do
desenvolvimento psicológico humano e
da construção do conhecimento, quando
ocorrem nos espaços educacionais. (p. 20).
Contudo,
Marinho-Araújo
(2010)
afirma que vários desafios ainda se colocam,
atualmente, diante da consolidação do perfil
profissional do psicólogo atuante nos meios
educacionais. Como outros autores (MALUF,
2010; CRUCES, 2009; GUZZO; MEZZALIRA,
2011; GUZZO; MEZZALIRA; MOREIRA; TIZZEI;
SILVA NETO, 2010; MARINHO-ARAÚJO, 2010;
MARTINEZ, 2010; MEDEIROS; BRAZ AQUINO,
2011), questiona-se de que forma a psicologia
escolar e educacional tem comparecido nessa
discussão e se as atividades do psicólogo nos
meios educacionais têm se pautado por uma
orientação crítica, de base histórico-cultural.
Diante do exposto, o presente estudo
buscou mapear produções que tivessem
como foco a psicologia escolar e educacional
abordada de forma crítica, influenciada
pelo modelo histórico-cultural de Vygotsky,
entendido enquanto uma das abordagens
críticas dessa área. Isso porque esse modelo tem
fundamentado, com frequência, pesquisas da
área educacional que exploram as articulações
entre a educação escolar e as interações sociais
mais amplas (MEIRA, 2003, 2012; FACCI; EIDT,
2011; OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2009).
Nesses estudos, a relação entre essa teoria e o
contexto educacional dá-se pelas possibilidades
de leitura da realidade educacional, utilizando
Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
conceitos como interação social, cultura, escola,
enquanto um campo de relações e de transmissão
dos conhecimentos historicamente construídos,
mediação, e o papel da atividade coletiva no
desenvolvimento humano (MEIRA, 2012).
Diante disso, monitorar a produção
científica pode funcionar como um crivo que
indique a qualidade e os rumos tomados pela
produção do saber. Ter conhecimento dessas
produções contribui para a identificação
dos temas que estão sendo discutidos, dos
avanços e das lacunas que ainda precisam ser
investigadas, com vistas a fundamentar práticas
nos contextos educacionais e a promover
avanços na área (OLIVEIRA; CANTALICE;
JOLY; SANTOS, 2006; SOUZA FILHO; BELO;
GOUVEIA, 2006).
Desse modo, faz-se necessária a
elaboração de trabalhos que organizem o
corpo de conhecimento científico produzido,
tendo em vista que seus resultados serão úteis
para pesquisas futuras e para a elaboração de
propostas de intervenção em diversos campos
de atuação (OLIVEIRA; SANTOS; NORONHA;
BORUCHOVITCH;
CUNHA;
BARDAGI;
DOMINGUES, 2007; COSMO; URT, 2009).
Agências de fomento à pesquisa, em
diversos países, têm investido na realização
de avaliações da produção, com destaque para
aquelas publicações em periódicos científicos
reconhecidos e conceituados.
No cenário
nacional, entretanto, ainda há uma carência nesse
campo que conceitua e caracteriza a publicação
psicológica nacional (OLIVEIRA; CANTALICE;
JOLY; SANTOS, 2006). Consoante a essa ideia,
Witter (2008) indica que as investigações que
visam a avaliar outras pesquisas não são comuns
no Brasil, mas começam a ser desenvolvidas. A
autora destaca a importância dessas produções
ao fomentar subsídios para a produção do
conhecimento, definição de políticas de pesquisa
e pós-graduação.
Com o objetivo de contribuir para
que as investigações científicas assumam uma
postura mais rigorosa e informativa e possam
oferecer uma melhor base para os programas
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
educativos e as políticas decisórias, Bariani,
Buin, Barros e Escher (2004) realizaram uma
análise dos objetivos, métodos e enfoques
utilizados em pesquisas. Revisaram aquelas
realizadas nos cinco anos anteriores ao trabalho
e que relatassem estudos sobre a psicologia
escolar e educacional no ensino superior.
A partir dessa revisão, as autoras concluíram que: a maioria dos objetivos que se propuseram os documentos refere-se ao conhecimento
do perfil de estudantes universitários; predominaram estudos de caráter descritivo; quanto aos
instrumentos de coleta de dados, prevaleceu a
utilização de instrumento único, composto por
material impresso; o procedimento de análise
mais utilizado foi o quantitativo; os informantes
foram principalmente estudantes universitários;
e os trabalhos analisados foram desenvolvidos
tendo uma sólida base teórica.
Cosmo e Urt (2009), reconhecendo a
importância da análise da produção científica,
realizaram uma pesquisa que visou a identificar
a presença do conhecimento psicológico nas
produções científicas sobre a escola. Nessa
mesma vertente, Oliveira e colaboradores (2007)
pesquisaram acerca da produção científica
sobre avaliação psicológica no contexto
escolar. Considerando as colocações acima,
evidencia-se a importância de pesquisas que
analisem a produção bibliográfica que vem
sendo construída nessa área do conhecimento.
Pontua-se que ainda há muito para ser
conquistado nessa esfera, com o intuito de
aproximar teoria e prática. Em termos históricos,
o crescimento da área escolar e educacional
na psicologia não ocorreu de forma paralela à
criação de elementos teóricos e metodológicos
que fundamentem e consolidem práticas
transformadoras e emancipatórias. Diversas
críticas são tecidas buscando mostrar que a
área educacional tem ações limitadas, por vezes
fundamentadas na patologização dos problemas
escolares, com uma visão adaptacionista e que
culpabiliza o aluno; ao invés de contribuir para
a construção de uma educação democrática,
o que, de fato, é o seu papel. Compete à
671
psicologia escolar e educacional contribuir para
que a escola realize satisfatoriamente seu papel
de socialização do saber, de favorecimento de
processos de humanização e de promoção do
pensamento crítico (MEIRA; ANTUNES, 2003).
Para colaborar com essa construção, este
trabalho visa a mapear as produções no âmbito
da psicologia escolar e educacional e, mais
especificamente, nos estudos que apresentem
uma perspectiva crítica nessa área, tendo em
vista, como afirmam Meira e Antunes (2003),
que esse pensamento crítico pode contribuir
para “a adoção de um compromisso social com
a cidadania” (p. 11). Além disso, apesar desse
movimento crítico ter surgido na década de 1980,
com os estudos Patto, muito ainda precisa ser
feito para que seus pressupostos se concretizem
e, nesse sentido, a produção científica sobre esse
tema é um elemento essencial para a elaboração
de novas práticas. Dessa forma, explicitam-se:
quais têm sido os principais temas abordados
nas pesquisas; os referenciais teóricos adotados
pelos pesquisadores; os tipos de pesquisas
realizadas; os participantes e os resultados
encontrados nos artigos da revista Psicologia
Escolar e Educacional.
Entende-se como crítica, em concordância
com Meira (2003), uma concepção ou teoria
que “(...) apreende a totalidade do concreto em
suas múltiplas determinações e compreende a
sociedade como um movimento de vir-a-ser”
(p. 17). Baseada nesse conceito, a autora recorre
a concepções críticas de educação e psicologia
como uma possibilidade de fundamentação
mais consistente para a psicologia escolar e
educacional. Sousa e Silva (2009) afirmam que
um dos principais critérios para a definição
de um trabalho crítico na área em foco é a
explicitação de compromisso com a psicologia
escolar e a educação, no que diz respeito
especialmente aos pressupostos teóricos e a sua
relação com a prática.
Souza e Checchia (2003) também
apontam alguns elementos imprescindíveis para
a formação e a atuação baseada na perspectiva
crítica, tais como a ruptura epistemológica
672
relativa à visão adaptativa que, por vezes,
fundamenta algumas práticas psicológicas.
Diante disso, a reflexão crítica se constitui como
necessária a toda a sociedade e primordialmente
àqueles que atuam no âmbito educacional.
Pensar a psicologia educacional em uma
perspectiva crítica significa analisar a atuação,
as concepções e práticas dos psicólogos nessa
área, valorizar o contexto social em que o sujeito
está inserido e considerar a realidade vivida pelo
sujeito para poder compreender sua realidade
educacional (MEIRA, 2003; FACCI; EIDT, 2011).
Para alcançar os objetivos propostos, a
presente pesquisa analisou, particularmente,
os artigos científicos publicados na revista
Psicologia Escolar e Educacional, no período
de 2007 a 2011. Considerou-se relevante iniciar
o levantamento a partir desse período, tendo
em vista que, no ano de 2004, foi elaborado o
Parecer no CNE/CES 0062/2004, e este originou
a Resolução CNE/CES nº 8 de 7 de maio 2004,
que instituiu as novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para os cursos de psicologia no Brasil
(BRASIL, 2004). Tais diretrizes estabelecem
a construção de princípios e fundamentos
norteadores da formação do psicólogo, forjadas
a partir de um amplo debate entre os profissionais
da área. O processo histórico de elaboração
dessas diretrizes e os posicionamentos e
desdobramentos em relação a esse documento
têm sido alvo de debates e publicações de
diversos autores na área educacional (GUZZO;
MEZZALIRA, 2011; MALUF, 2010; CRUCES,
2009). Tal documento guarda a expectativa
de possibilitar uma formação abrangente, que
desenvolva habilidades e competências que
respondam às demandas dos diversos contextos
de atuação desse profissional. Nesse sentido,
evidencia-se que
(…) a Psicologia Escolar poderá beneficiar-se quanto à ampliação das concepções
acerca da formação desejada para uma
atuação competente e coadunada às
demandas atuais, pois o momento histórico
contemporâneo está propício às mudanças
Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
que já vêm ocorrendo na área. (MARINHOARAÚJO, 2010, p. 26)
A revista semestral da Associação
Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional
(ABRAPEE) foi escolhida por ser o periódico
científico de uma associação de abrangência
nacional da área da psicologia educacional,
que busca propagar o conhecimento de práticas
e pesquisas originais e atuais nesse campo.
Seu propósito é a publicação de manuscritos
referentes à atuação, formação e história da
psicologia no âmbito educacional, textos de
reflexão crítica e relatos de pesquisas. Vale
destacar que outras publicações também
apresentam trabalhos na perspectiva escolar
crítica. No entanto, esse periódico foi escolhido
por ser específico da área da psicologia escolar
e educacional e por sua representatividade nas
produções desse campo.
que realizaram os levantamentos de forma
independente, preenchendo a ficha de análise, a
qual foi desenvolvida a partir do modelo original
de Bariani e colaboradoras (2004) e adaptada de
acordo com os fins aqui propostos. Posteriormente,
os resultados encontrados foram discutidos
em reuniões com o grupo de pesquisadoras,
garantindo-se consenso entre as juízas.
Por fim, foi realizada uma análise, em
termos quantitativos e qualitativos, dos artigos
que contemplavam o critério preestabelecido.
Ressalta-se que o critério utilizado foi que
os artigos apresentassem discussões críticas
sobre a atuação e/ou formação do psicólogo
escolar, pautadas essencialmente na psicologia
histórico-cultural, entendida como uma
das abordagens críticas da psicologia que
propõe uma ruptura com o modelo clínico de
atuação. Os resultados foram organizados e
serão apresentados e discutidos, atendendo os
objetivos deste trabalho.
Método
Resultados e discussão
Como se disse antes, inicialmente, foram
escolhidas para a análise as publicações de
Psicologia Escolar e Educacional, revista da
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e
Educacional (ABRAPEE). Em seguida, realizou-se uma busca bibliográfica das versões on-line
disponíveis na página desse periódico, cobrindo
o período 2007-2011. Analisaram-se apenas as
edições regulares da revista, excluindo-se assim
uma edição especial do ano de 2007 e o número
dois do volume 12 (2008), que, na época da
coleta de dados, não estava acessível na rede.1
Cada exemplar da revista apresentava
quatro modalidades de publicações: artigos;
resenhas; histórias; e, por fim, sugestões práticas.
Tendo em vista as necessidades desta pesquisa,
optou-se por analisar apenas os materiais que se
encontravam na modalidade artigo. Cada artigo
foi lido na íntegra por duas das pesquisadoras,
1 - Atualmente, a edição especial (2007) e o número dois do
volume 12 (2008) podem ser localizadas nos respectivos endereços:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1413855720080002&lng=pt&nrm=iso e http://abrapee.psc.br/Especial.pdf
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
Ao todo, foram analisados nove números
da revista Psicologia Escolar e Educacional,
contabilizando o total de 134 artigos. Dentre
todos os artigos, 17 (12,69%) foram classificados
no critério estabelecido inicialmente de
psicologia escolar e educacional numa
perspectiva crítica, ou seja, apresentam uma
discussão que rompe com a lógica patologizante
dos problemas educacionais e propõe uma
prática emancipatória, tendo o psicólogo como
agente dessa mudança. Nesses artigos, foram
feitas análises mais minuciosas, considerando
os seguintes critérios: data de publicação;
autoria e filiação institucional; objeto de estudo;
enfoques teórico e metodológico; e conclusões
dos estudos.
Data da publicação
A análise dos artigos indicou que, apesar
da pesquisa abranger os anos de 2007 a 2011,
a perspectiva crítica esteve mais presente
673
nos documentos de 2010 e 2011, tendo maior
concentração (cinco artigos) no primeiro
número publicado no ano de 2011. Esses dados
sugerem o crescimento de discussões críticas
nas produções desse periódico ao longo dos
anos. Essa tendência pode ser constatada
também nas formas de atuação dos psicólogos
e na reestruturação das grades curriculares
dos cursos de psicologia das universidades
brasileiras. Mesmo sendo uma discussão que
remete à década de 1980, as transformações
ainda estão ocorrendo lentamente. Todavia,
estão evoluindo e conquistando gradativamente
mais espaço para debates e atuações (MEIRA,
2003, 2012; SOUZA; CHECCHIA, 2003), embora
as mudanças em torno dessa questão ainda se
mostrem, na prática, pouco perceptíveis.
Outro aspecto que pode estar associado
ao aumento da produção em uma perspectiva
crítica a partir de 2010 é o conjunto de
mudanças na política editorial da revista
Psicologia Escolar e Educacional que foi
implantado no segundo semestre de 2009 e
aprimorado nos anos seguintes. Nesse período,
o referido periódico teve seu pedido de inserção
no SCIELO atendido e, em decorrência disso,
artigos teóricos começaram a ser aceitos. Fez-se
necessário, então, acurar cada vez mais todos
os procedimentos editoriais e de avaliação
dos manuscritos para atender aos critérios de
excelência dessa base de dados.
vinculados a universidades da região sudeste (São
Paulo e Minas Gerais); em 17,65% dos artigos,
os autores eram vinculados a universidades do
Distrito Federal; 11,76% eram de Rondônia,
único estado da região norte que apareceu nessas
publicações; e apenas em um artigo (5,88%), os
autores eram exclusivamente da região nordeste.
Dois artigos tinham autores que eram vinculados
a instituições de estados diferentes, sendo o
primeiro escrito por uma autora do Maranhão
(nordeste) e outra do Distrito Federal (DF), e o
segundo por autoras de Rondônia e de São Paulo
(norte e sudeste). Nota-se, através dos vínculos
empregatícios declarados, um engajamento dos
autores com a vida acadêmica e com a área de
conhecimento em questão.
Diante desses dados, observou-se que
essas pesquisas estão mais concentradas nas
regiões sul e sudeste do país, o que corrobora a
ideia de um predomínio histórico dessas regiões
como mais desenvolvidas no âmbito da ciência e
da produção de conhecimento. Esses resultados
são congruentes com outros encontrados em
trabalhos que analisaram a produção na área
da psicologia escolar e educacional, como
o de Oliveira e colaboradores (2006), por
exemplo. Isso também se justifica pela maior
concentração dos cursos de psicologia do país,
tanto de graduação como de pós-graduação,
nessas localidades.
Abordagem teórica
Autoria e filiação institucional
Entre os 17 artigos classificados,
constatou-se que a maioria (94,12%) possui
autoria coletiva. Desse total, apenas dois
artigos (11,76%) apresentam co-autores do
sexo masculino, o que reafirma a tradição
da psicologia escolar como uma área de
conhecimento de domínio predominantemente
feminino (OLIVEIRA et al, 2006).
Em 29,41% dos artigos, todos os autores,
na época da publicação, tinham vínculos
com universidades da região sul (Paraná e
Santa Catarina); 23,53% tinham seus autores
674
No tocante à fundamentação teórica,
utilizou-se como critério para a análise dos
artigos que eles apresentassem uma discussão
crítica pautada no uso da teoria históricocultural, entendendo ser essa uma das
principais abordagens que subsidiam leituras
críticas no campo da psicologia escolar. Desse
modo, todos os artigos classificados destacam
a importância dessa teoria, por considerar
os aspectos sociais, culturais e relacionais
existentes na instituição escolar. Nessa teoria, o
ser humano é entendido como formado a partir
das relações sociais, e tanto a escola quanto os
Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
processos educacionais de maneira geral têm
destaque especial (ALMEIDA; ALVES; NEVES;
SILVA; PEDROZA, 2007; TONDIN; DEDONATTI;
BONAMIGO, 2010; WANDERER; PEDROZA,
2010; BRAY; LEONARDO, 2011; LESSA; FACCI,
2011;). Os autores do presente estudo, pautados
nessa concepção, defendem que os agentes
escolares têm a possibilidade de romper com o
paradigma tradicional que culpabiliza o aluno
pelo fracasso e queixas escolares, e repensar
suas práticas. Os estudos aqui analisados
consideram o sujeito como ser social e,
portanto, inserido em um contexto que o
influencia e é influenciado por ele. Esses
dados corroboram os argumentos de Ovejero
(1993, 1996), quando aponta a abordagem
histórico-cultural de base vygotskiana como
uma das mais coerentes para analisar a
interface psicologia social e educação.
Os proponentes deste estudo concordam
com os autores que defendem que essa teoria
ajuda a compreender a importância de vários
processos na dinâmica escolar que afetam
o desenvolvimento das crianças. A teoria
histórico-cultural auxilia o processo de reflexão
crítica sobre a realidade escolar e fundamenta
o compromisso necessário à atuação nesse
âmbito. (CARVALHO; MARINHO–ARAÚJO,
2009; SANT’ANA; EUZÉBIOS FILHO; LACERDA
JUNIOR; GUZZO, 2009).
Foi destaque nesses trabalhos o uso
dos principais teóricos da corrente históricocultural: Vygotsky, Leontiev e Luria. Novas
contribuições da literatura atual na área, autores
como Patto, Marinho-Araújo, Guzzo, Almeida,
Meira, entre outros, também foram citados por
estabelecerem uma produtiva articulação crítica
entre os conceitos da teoria histórico-cultural e
o contexto vigente no sistema escolar brasileiro,
considerando aspectos éticos, sociais, políticos
e institucionais (LONGAREZI; ALVES, 2009;
BRASILEIRO; SOUZA, 2010; SCHLINDWEIN,
2010; SOARES; MARINHO-ARAÚJO, 2010;
FONTES; LIMA, 2011; PIOTTO; ALVES, 2011).
Dessa forma, todos os artigos defendem
que a escola e, consequentemente, todos
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
os agentes escolares, devem assumir um
compromisso com a transformação, indo além
da transmissão de conhecimentos científicos,
devendo, para isso, priorizar uma formação
voltada para a cidadania, através da educação
e da reflexão crítica. (BRAY; LEONARDO, 2011).
Tipos de pesquisa e participantes
Entre os 17 artigos analisados, 13 expõem
estudos de campo, os quais apresentam como
sujeitos das pesquisas: psicólogos escolares
(FACCI; TESSARO; LEAL; SILVA; ROMA, 2007;
LONGAREZI; ALVES, 2009; WANDERER;
PEDROZA, 2010; TADA; SÁPIA; LIMA, 2010;
GASPAR; COSTA, 2011; LESSA; FACCI, 2011;
SOUZA; RIBEIRO; SILVA, 2011); estudantes
do ensino fundamental, médio e/ou superior
(SANT’ANA; EUZÉBIOS FILHO; LACERDA
JUNIOR; GUZZO, 2009; FONTES; LIMA, 2011;
PIOTTO; ALVES, 2011); grupos de professores
(ALMEIDA; ALVES; NEVES; SILVA; PEDROZA,
2007; BRAY; LEONARDO, 2011); e secretários
municipais de educação (TONDIN; DEDONATTI;
BONAMIGO, 2010).
Os outros quatro artigos são revisões
bibliográficas (BRASILEIRO; SOUZA, 2010;
CARVALHO;
MARINHO-ARAÚJO,
2009;
SCHLINDWEIN, 2010; SOARES; MARINHOARAÚJO, 2010), e discutem a formação de
docentes e de psicólogos no Brasil, bem como
as concepções da psicologia escolar crítica.
Conclusões dos estudos
Todos os estudos tratam de importantes
aspectos da psicologia escolar e educacional.
A partir de fundamentações elaboradas com
base nos pressupostos histórico-culturais,
rigor metodológico e procedimentos de
análises, chegam a conclusões que podem
contribuir para a reflexão sobre as práticas
nessa área e subsidiar novas atuações de
caráter crítico e emancipatório.
Almeida, Alves, Neves, Silva e Pedroza
(2007) analisam a visão de professores do
675
ensino médio sobre a influência da psicologia
em sua atuação. Elas defendem a relação entre
pedagogia e psicologia, considerando ambas
importantes. Veem a formação do professor a
partir de uma perspectiva “inovadora”, na qual
ele reflete sobre sua atuação e interação com os
alunos. Longarezi e Alves (2009) abordaram a
questão da formação continuada de professores,
considerando a contribuição da psicologia escolar
para a construção de um cenário social mais
crítico e comprometido com políticas efetivas.
Esse trabalho concentrou-se na elaboração, no
desenvolvimento e na avaliação coletiva de um
projeto pedagógico na escola.
Nesse sentido, em ambos os trabalhos,
percebe-se que a psicologia pode contribuir
significativamente para a mudança nos cenários
educacionais. Tendo em vista que a atuação
do psicólogo na escola pode colaborar para a
formação continuada do professor, ela pode
ajudar o desenvolvimento profissional e pessoal
desse profissional, além de chamar a atenção dele
para uma postura mais crítica e prático-reflexiva
sobre seu próprio trabalho. Essas considerações
justificam a classificação desses artigos nos
critérios estabelecidos, por se considerar, tal como
as autoras, que alguns conteúdos de psicologia são
importantes não apenas para os psicólogos, mas
também para os demais agentes educacionais, em
especial, o professor, já que todos devem estar
envolvidos na construção da cidadania.
Ainda sobre esse tema, Soares e
Marinho-Araújo (2010) destacam a importância
da mediação do psicólogo escolar para
o desenvolvimento de competências dos
educadores sociais. Elas abordam criticamente
o modelo tradicional de atuação clínica dos
psicólogos escolares, destacando a importância
de intervenções com foco nas relações entre
os agentes escolares, principalmente o apoio
ao processo de ensino e aprendizagem.
Dessa forma, os psicólogos escolares devem
potencializar uma atuação que contribua para
a otimização das relações sociais institucionais.
Schlindwein (2010), por sua vez, discutiu
a relação entre teoria e prática no campo da
676
psicologia da educação e suas implicações para
a formação de educadores, através da revisão
dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais
da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd), especialmente
no Grupo de Trabalho Psicologia da Educação
(GT20), no período entre 1998 e 2009. Esse
artigo também mostra que é preciso trazer as
contribuições da psicologia para uma visão
mais ampla, que permita compreender a escola
e seus atores em todas as suas dimensões.
Nessa mesma linha de discussão,
Wanderer e Pedroza (2010) tratam do psicólogo
enquanto agente transformador e crítico que
pode questionar relações de hierarquização,
bem como trabalhar com os agentes escolares
sobre as concepções históricas acerca da
identidade da escola e as mudanças possíveis
a partir da ação coletiva da comunidade. Para
que isso se concretize, faz-se necessário romper
com uma prática adaptativa que usa rotulações
e implementar um modelo de formação de
indivíduos crítica e politicamente conscientes.
Tondin, Dedonatti e Bonamigo (2010),
buscando entender os elementos inovadores
e pertinentes às discussões atuais na área de
psicologia escolar e educacional, discutiram as
concepções de psicologia escolar presentes em
projetos de lei. Nesse artigo, conclui-se que a
legislação abrange uma variedade de concepções
teóricas e essas repercutem diretamente nas ações
e nos resultados dos trabalhos dos psicólogos,
divergindo de acordo com a atuação crítica
de cada profissional e o contexto no qual ele
está inserido.
Partindo das concepções vigentes de
psicologia escolar e educacional, alguns artigos
apresentaram temas relativos à formação e ao
cenário atual de alguns contextos específicos.
Brasileiro e Souza (2010) analisaram a formação
de psicólogos diante das novas diretrizes de 2004
(BRASIL, 2004), no que se refere aos processos
educativos na Amazônia. Eles ressaltam alguns
avanços em uma perspectiva emancipatória,
com pensamentos e ações questionadoras,
perspectiva essa capaz de formar profissionais
Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
críticos, preocupados e conectados com as
transformações na área educacional.
A pesquisa realizada por Carvalho e
Marinho-Araújo (2009) trata da realidade da
psicologia escolar no Maranhão. Por meio de um
estudo bibliográfico sobre o tema, são levantadas
reflexões sobre o histórico e as tendências atuais
no âmbito da formação e atuação do psicólogo
escolar nesse estado. As autoras mostram
que, apesar das dificuldades de atuação nessa
área, as possibilidades de mudanças e novas
configurações estão crescendo e contribuindo
para uma educação mais democrática.
A rede pública de ensino de Rondônia
foi estudada por Tada, Sápia e Lima (2010),
que mostram que a inserção do psicólogo
nesse âmbito é recente e que a maioria deles
atua de forma clínica nas escolas, por exemplo,
realizando atendimentos individuais por tempo
prolongado. Os autores criticam esse tipo de
formação e atuação e sugerem uma prática
pautada na teoria histórico-cultural.
Souza, Ribeiro e Silva (2011) investigaram
a prática do psicólogo escolar na rede particular
de ensino da cidade de Uberlândia (MG). Os
resultados constataram que a inserção desse
profissional no âmbito educacional privado
reflete questões históricas da construção da
psicologia escolar no Brasil. A atuação dos
psicólogos, nesse contexto, também é pautada
por visões tradicionais, resultantes de uma
formação desarticulada dos avanços nessa área
de conhecimento.
Outros temas pertinentes são apresentados
nas publicações analisadas e levam à reflexão
crítica sobre as possíveis formas de atuação
do psicólogo. As concepções e práticas do
psicólogo escolar sobre a afetividade na relação
professor-aluno foram estudadas por Gaspar
e Costa (2011). Esse estudo enfoca os aspectos
preventivo, criativo e interdisciplinar que a
atuação do psicólogo no âmbito escolar exige.
Cabe ao profissional da área trabalhar com
processos afetivos que envolvem os agentes
escolares, possibilitando o desenvolvimento
desses sujeitos. Para alcançar esse objetivo, é
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
preciso romper com paradigmas tradicionais e
ampliar a visão das possibilidades de atuação.
Facci, Tessaro, Leal, Silva e Roma (2007),
Piotto e Alves (2011), Lessa e Facci (2011) e Bray
e Leonardo (2011) realizaram estudos sobre o
fracasso e/ou as queixas escolares, tendo por
base a teoria histórico-cultural e produções
recentes da psicologia escolar e educacional.
Apesar das diferenças existentes entre os
contextos e os participantes dessas quatro
pesquisas, os autores chegaram a algumas
conclusões comuns. Eles defendem que a
escola representa uma influente instituição na
formação do sujeito e que os agentes escolares
devem estar aptos para educar para a cidadania.
Essa literatura trata o fracasso escolar de forma
mais ampla e considera os diversos agentes
escolares, o que possibilita uma prática pautada
em questões mais abrangentes e críticas.
Assim, faz-se necessário romper com
uma visão tradicional, que afirma que o fracasso
e/ou as queixas escolares estão diretamente
relacionadas apenas aos alunos. A escola
também tem um papel importante na produção
do fracasso escolar e diversos aspectos da
instituição precisam ser analisados e repensados.
Alguns autores procuram entender
o papel do psicólogo escolar e a realidade
da escola a partir da concepção dos alunos.
Sant’Ana, Euzébios Filho, Lacerda Junior e
Guzzo (2009), ao realizarem um estudo com
estudantes do ensino fundamental, concluíram
que, de maneira geral, diversas limitações
foram encontradas na compreensão do papel do
psicólogo no ambiente escolar. Diante disso, as
autoras fazem uma crítica à visão predominante,
a do modelo clínico de intervenção. Elas
destacam o surgimento de atuações de caráter
preventivo e comunitário e afirmam que isso
precisa se consolidar na prática escolar.
Fontes e Lima (2011) realizaram uma
pesquisa com alunos do ensino médio da rede
pública estadual de Porto Velho (RO) sobre
a escola e o processo de aprendizagem. Os
resultados evidenciam uma escola que tem
como foco apenas a transmissão do conteúdo,
677
realizada por meio de aulas expositivas e
descontextualizadas das necessidades dos
alunos. A psicologia escolar e educacional
numa visão crítica, como apresentada
pelas autoras, enfatiza a importância de se
compreender o ponto de vista de todos os atores
escolares sobre o cotidiano escolar, em suas
várias facetas. Considera-se que, a partir da
formação contínua e adequada, os psicólogos
encontram fundamentos reais para sustentar
seus planejamentos e novas formas de atuação,
preocupados com a dinâmica da instituição
e com as concepções de todos os agentes
envolvidos no processo educacional.
Considerações finais
Esta pesquisa propôs mapear as publicações de Psicologia Escolar e Educacional,
revista da Associação Brasileira de Psicologia
Escolar e Educacional (ABRAPEE), no período
de 2007 a 2011, com foco nos estudos que apresentassem discussões críticas sobre a psicologia escolar educacional, pautadas na psicologia
histórico-cultural, compreendida aqui como
uma das abordagens críticas da psicologia, que
propõe uma ruptura com o modelo clínico de
atuação. Inicialmente, pode-se observar que,
quando se pretende realizar uma análise da
produção científica em uma determinada área
da psicologia, diversos aspectos devem ser considerados. Dentre eles, cabe destacar o acesso
aos materiais a ser analisados. Por vezes, as bibliotecas institucionais não os disponibilizam,
o que revela a importância das bases de dados
on-line, tal como aquela utilizada nesta pesquisa, para o avanço da produção do conhecimento científico.
No que se refere especificamente à
análise dos artigos, constatou-se que muitos
apresentam questionamentos sobre e críticas
ao sistema educacional em diferentes esferas.
Todavia, foram analisados exclusivamente
os trabalhos que discutiam a atuação do
psicólogo escolar e educacional na perspectiva
crítica, e concluiu-se que a quantidade de
678
material classificado no critério estabelecido
inicialmente de perspectiva crítica foi baixa
em relação ao número total analisado. Porém,
pode-se perceber, nos artigos que apresentaram
tal perspectiva, um sólido embasamento na
perspectiva histórico-cultural.
Ratificando essa ideia, Arocho (2009) explicita que os pressupostos histórico-culturais,
especialmente as contribuições de Vygotsky,
Luria e Leontiev, configuram novos entendimentos sobre a realidade, o conhecimento e o sujeito, sendo ponto de partida para a articulação
entre a psicologia social e a psicologia escolar e
educacional numa perspectiva crítica e psicossocial. A teoria histórico-cultural destaca que a
atividade psíquica superior tem origem social e
suas formas de expressão resultam das condições
históricas e culturais de sua produção. Dessa forma, os processos de ensino-aprendizagem que
ocorrem em contextos sociais, tais como a escola, viabilizam a apropriação das ferramentas
culturais e promovem a formação de consciência
e a constituição de subjetividade (VYGOTSKY,
2007; AROCHO, 2009; OLIVEIRA; MARINHOARAÚJO, 2009; OVEJERO, 1996).
Os autores desse estudo consideram
que a teoria histórico-cultural, enquanto
uma perspectiva da psicologia escolar e
educacional crítica, fornece ferramentas
teóricas e metodológicas que permitem ao
psicólogo, em seu contexto de trabalho, atuar
junto às demandas concretas, na perspectiva
de adotar ações que expressem compromisso
social com uma escola mais igualitária, mais
justa e que, de fato, atende a sua função social.
Defendem ainda que essa abordagem crítica
fundamenta reflexões sobre práticas mais
condizentes com a realidade social na qual
cada profissional está inserido, na tentativa
de promover mudanças que ajudem a traçar
um caminho para uma atuação democrática e
emancipatória. Nesse sentido, a revisão desses
trabalhos configura-se como importante por
ser mais um instrumento de fundamentação
e de questionamento, tanto na formação
acadêmica (graduação e pós-graduação) de
Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
alunos de psicologia e de áreas afins, quanto
na formação continuada de profissionais já
inseridos no campo de trabalho.
Acrescenta-se que, na trajetória de
construção e consolidação na área, foram
apresentadas fortes críticas e reivindicações,
entre os próprios pesquisadores desse campo,
sobre a necessidade de uma reestruturação
dos pressupostos teórico-metodológicos que
orientavam a formação (inicial e continuada) e
a prática do psicólogo nos meios educacionais
(PATTO, 1997; MEIRA, 2003; GUZZO;
MEZZALIRA; MOREIRA; TIZZEI; SILVA NETO,
2010; MALUF, 2010; NOVAES, 2010; GUZZO,
2011). Foi dessa inquietação que começou a
ser observado o resgate da teoria históricocultural, pela alegação de que o indivíduo
não pode ser explicado subtraindo-lhe a
dimensão sociocultural e histórica e que a
escola, enquanto célula social, expressa as
contradições e movimentos do sistema político
e educacional.
Por fim, considera-se importante mencionar que o levantamento aqui apresentado
não permite capturar o movimento de efervescência e inquietação dos pesquisadores da área
educacional, dentre outros aspectos, por ser a
escola uma arena complexa, contraditória, que
sofre a interferência necessária e profícua do
plano sócio-histórico e político que a demarca.
Assim, espera-se que a presente pesquisa possa
contribuir para reflexões acerca do significado
que tem revelar o que já foi pensado, produzido e sentido sobre uma determinada área do
conhecimento, podendo, dessa forma, não só
apontar caminhos percorridos, mas também
sinalizar novas possibilidades de atuação, que
respondam às demandas atuais do campo educativo. E, ainda, integrar um conjunto de estudos acerca do fenômeno em foco, identificando
temas que carecem de evidências, auxiliando,
de modo geral, na orientação de pesquisas futuras que possam continuar contribuindo com
a produção do conhecimento.
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Recebido em:18.06.2013
Aprovado em: 11.12.2013
Laísy de Lima Nunes é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba.
Simone Salviano Alves é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da
Paraíba.
Jaqueline Vilar Ramalho é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFPB.
Fabíola de Sousa Braz Aquino é professora adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Social da UFPB.
682
Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o
padrão de pesquisa do CRPE-SPI
Marcos Cezar de FreitasII
Resumo
I- Este artigo se baseia no projeto de
pesquisa denominado “A criança pobre
na economia das trocas incompletas: as
formas sociais do tempo escolar nos velhos
e novos urbanismos”, financiado pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq)
II- Universidade Federal de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Este artigo analisa como o Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de São Paulo (CRPE-SP) abordou os temas desempenho e adaptação da criança pobre à escola. O foco incide sobre os anos 1956-1963 e dedica especial atenção às manifestações
de Dante Moreira Leite e de Luiz Pereira a respeito do assunto. O
argumento central é o de que a transformação da cidade de São
Paulo em grande metrópole tornou-se o tema articulador com o
qual ambos os autores pesquisaram o desempenho e a adaptação
de crianças em idade escolar, especialmente aquelas identificadas
como suburbanas. Uma nova cultura urbana desafiava a estrutura
da escola e, com base no legado de Antonio Candido e de Florestan
Fernandes, tais questões foram investigadas com um novo padrão
de pesquisa, que se tornou marca do CRPE-SP naquele momento.
Esse novo padrão de pesquisa abriu espaço para que novos recursos analíticos fossem mobilizados para o estudo da inteligência da
criança em situação escolar. Foram demonstradas as insuficiências
dos parâmetros biológicos para a compreensão do fenômeno da
reprovação, que tinha números expressivos. Para além de uma nova
compreensão antropológica a respeito da interação entre a cultura
escolar e os modos de viver das periferias urbanas, o padrão de pesquisa estabelecido enriqueceu o repertório de análises sociológicas
sobre a expansão do número de vagas escolares na cidade de São
Paulo. Para aquela sociologia da educação que então se renovava,
o caráter fortemente excludente da reprovação escolar foi demonstrado de forma magistral.
Palavras-chave
Crianças pobres — Cultura urbana — Escolarização — Padrão de
pesquisa — Intelectuais.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091590
683
Performance and adaptation of poor children to school:
the research pattern of CRPE-SP I
Marcos Cezar de FreitasII
Abstract
I- This article is based on a research
project called “A criança pobre na
economia das trocas incompletas:
as formas sociais do tempo escolar
nos velhos e novos urbanismos”
(The poor child in the incomplete
exchange economy: the social forms
of school time in the old and new
urbanisms), funded by Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq - National Council
for Scientific and Technological
Development).
II- Universidade Federal de São Paulo,
São Paulo, SP, Brazil.
Contact: [email protected]
III- Translator’s note: In Brazil, the
meanings of the words suburbs and
suburban are negative.
684
This article examines how Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de São Paulo (CRPE-SP – Sao Paulo Regional Center
for Educational Research) addressed the issues of performance and
adaptation of poor children to school. It focuses on the years 19561963 and devotes special attention to the expressions of Dante
Moreira Leite and Luiz Pereira on the subject. The central argument
is that the transformation of Sao Paulo city into a great metropolis
became the articulating theme with which both authors investigated
the performance and adaptation of school-age children, especially
those identified as suburbanIII. A new urban culture challenged the
school structure and, based on the legacy of Antonio Candido and
Florestan Fernandes, such questions were investigated with a new
pattern of research, which became the mark of CRPE-SP at that
time. This new research pattern paved the way for new analytical
resources to be mobilized to study the intelligence of children at
school. The shortcomings of biological parameters for understanding
the phenomenon of failure and its significant numbers were
demonstrated. In addition to a new anthropological understanding
about the interaction between the school culture and ways of living
of the urban fringes, the research pattern established enriched the
repertoire of sociological analyzes of the expansion in the number
of school places in Sao Paulo city. For that sociology of education
which then renewed, the strongly exclusionary nature of school
failure was demonstrated in a masterly manner.
Keywords
Poor children — Urban culture — Schooling — Research pattern —
Intellectuals.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091590
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
Introdução
Muito recentemente, Beisieguel (2013)
publicou importante depoimento acerca dos
primeiros tempos da pesquisa em sociologia da
educação na Universidade de São Paulo. Nesse
memorial, o autor retoma sua experiência como
ex-aluno e depois professor de sociologia da
educação na mesma Instituição e acrescenta
informações acerca de sua experiência no
Centro Regional de Pesquisas Educacionais de
São Paulo, o CRPE-SP1.
Num processo de formação de um
vocabulário sociológico próprio, menciona a
importância do livro Sociologia educacional,
de Fernando de Azevedo, mas reconhece nas
contribuições de Florestan Fernandes e Antonio
Candido os mais densos pontos de partida
para a definição do padrão de investigação da
sociologia da educação brasileira.
Dois ensaios produzidos por Antonio
Candido, um publicado como separata do
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – A
estrutura da escola (1956) – e outro publicado
na revista Pesquisa e Planejamento, do Centro
Regional de Pesquisas Educacionais de São
Paulo – “As diferenças entre o campo e a cidade
e o seu significado para a educação” (1957) –
são exemplos relevantes daquela nova forma de
se compreender a escola e a vida escolar.
Candido propôs a elaboração de um trato
sociológico específico para a realidade escolar,
alertando para a complexidade da vida social
interna em cada unidade. Esse procedimento, no
seu entender, induziria o observador a perceber
e a relatar o que cada escola possuía de único
em relação às demais (CANDIDO, 1956, p. 1-2).
Na opinião de Beisieguel (2013), Luiz
Pereira seria o herdeiro exemplar desse legado,
tornando-se não somente responsável pela
produção de textos seminais que se tornaram
clássicos, mas também expressão singular
1- O CRPE-SP foi criado pelo mesmo Decreto n. 38.460 de 28/12/1955
que criou, no Rio de Janeiro, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais,
CBPE, por iniciativa de Anísio Teixeira. Foi vinculado à Universidade de São
Paulo em 22/05/1956.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
da consolidação da excelência implícita ao
padrão recebido.
Neste artigo, quero concordar com a
leitura histórica e com a argumentação central
do autor. Busco também acrescentar um nome
com a intenção de aproximar a riqueza desse
memorial dos estudos a respeito da infância,
os quais têm recorrido à história da pesquisa
educacional para compreender um pouco de seus
próprios rumos (FREITAS; ZANINETTI, 2012).
No âmbito dos estudos a respeito
da criança e infância no Brasil, tornouse fundamental compreender os contextos
nos quais alguns padrões de pesquisa foram
definidos. O Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de São Paulo, CRPE-SP, é um
capítulo muito relevante nessa história.
A argumentação aqui apresentada se
baseia em projeto de pesquisa que utilizou
a documentação do CRPE-SP e que, por
isso, adquiriu familiaridade com o território
intelectual percorrido por Beisiegel. Se o autor
rememorou a formação de padrões e indicou as
fundações da sociologia educacional brasileira,
aqui, pretendo indicar algumas repercussões
desse padrão adquirido na forma de estudar a
aproximação entre escola e crianças pobres.
Em minha opinião, se aquelas influências
intelectuais indicaram o caminho, o modo de
caminhar dos que se deixaram influenciar, por
sua vez, sofreu o impacto da especificidade de
alguns temas que o CRPE-SP estimulou como
centrais para a pesquisa educacional. Nesse
sentido, é necessário também lembrar que o
CRPE-SP era um desdobramento regional de
um projeto de grande envergadura, que era o
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
(CBPE), sediado no Rio de Janeiro.
No âmbito do CRPE-SP, uma conexão
virtuosa se estabelecia, ligando sólidos
procedimentos de pesquisa com temas férteis e
inovadores. Esse cenário favoreceu a produção
de importantes estudos acerca da adaptação da
criança à escola e vice-versa.
Tal como Beisiegel indica, em Luiz Pereira,
de fato, podemos reconhecer a excelência do
685
padrão que se estabelecia, mas, na perspectiva
deste artigo, também é necessário acrescentar
o nome de Dante Moreira Leite para que seja
possível compreender o que de tão excelente
aconteceu quando parâmetros inovadores se
encontraram com temas ligados ao universo
das tensões estabelecidas entre escola e crianças
urbanas de periferias.
No âmbito dessas tensões, ambos os
autores apresentaram questões decisivas
para a renovação nos estudos a respeito da
inteligência da criança e das situações em
que a permeabilidade da escola às crianças de
periferia parecia ser bastante reduzida.
A importância do tema
urbanização naquele contexto
No transcorrer do século XX, o Brasil
experimentou intenso processo de urbanização.
Na década de 1950, a população de camponeses
ainda era maior do que a urbana. No campo,
tínhamos aproximadamente 33 milhões de
pessoas e nas cidades, aproximadamente 19
milhões (DÉAK; SCHIEFFER, 2004, p. 11).
Mesmo assim, na metade do século
XX, não havia dúvida de que a “estabilidade
granítica” do grande país rural, para usar uma
expressão de Oliveira Vianna que impressionou
Gilberto Freyre, estava se decompondo
(FREYRE, 1958).
O país se urbanizava e, em alguns casos,
como em São Paulo, acelerava-se um processo
de agigantamento que resultaria, como sabemos,
em um dos exemplos mais significativos de
passagem da condição de pequeno burgo, vivida
até o século XIX, para a de metrópole, exemplo
mundial de concentração urbana com números
muito expressivos, que se multiplicaram
exponencialmente no transcorrer da segunda
metade do século XX.
A expansão de vagas escolares esteve no
coração dos desafios suscitados na crescente
urbanização que tivemos. Quer como tema,
quer como problema, a escola demonstrava
estar na essência da produção daquilo que
686
Williams denominou de “cultura urbana”
(WILLIAMS, 1983; 1995).
Mas, para pensarmos como Williams,
temos de reconhecer que a escola que
disseminamos no transcorrer do século XX
não pode ser entendida somente como fato
urbano. Trata-se de compreendê-la também,
e principalmente, como fator daquilo que se
configurou como o urbano entre nós. Somos
desafiados a pensar a disseminação da escola no
Brasil como um dado de autoria, ou seja, somos
chamados a reconhecer que foi também com a
escola que fizemos as cidades que fizemos.
Escola
e
cidade
revelaram-se
componentes de configuração recíproca
(FREITAS; BICCAS, 2009). No Brasil
republicano, não se entende uma sem abordar
a outra. Esse é um dado muito relevante para o
que se pretende recuperar neste artigo.
Na passagem da década de 1950 para
a década de 1960, o agigantamento das
cidades e a consequente produção da escola de
massas ocuparam lugar de destaque no debate
travado por intelectuais que concorriam para
influenciar aquilo que, no âmbito do CBPE,
do Rio de Janeiro, e do CRPE-SP, tornou-se
um singular território de disputa: o perfil da
pesquisa educacional.
São muitos os registros presentes
na documentação remanescente dessas
instituições que nos permitem encontrar,
nas manifestações de seus protagonistas,
representações da escola como problema
urbano e representações da cidade como
problema escolar (FREITAS, 2001; 2005).
Naquele contexto, pesquisar educação era
fazer pesquisa social (MENDONÇA; BRANDÃO,
1997). Tanto é assim que o principal impresso
de divulgação das atividades do CBPE, a Revista
Educação e Ciências Sociais, indicou inúmeras
vezes que o sentido da pesquisa educacional só
podia ser o de realizar pesquisa social.
Tanto no CBPE quanto no CRPE-SP,
a pesquisa educacional derivava da pesquisa
social e era no bojo dessa derivação que se
travavam intensas discussões a respeito do
Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
padrão de investigação a ser consolidado. Essas
discussões permeavam a definição da relevância
de temas, objetos e incidiam principalmente
sobre as perspectivas a adotar.
Os debates acerca das perspectivas
a adotar marcaram os projetos focados no
tema da integração da escola na cidade. Com
números crescentes, essa integração tinha na
sua complexa diversidade um aspecto a desafiar
a estabilidade de temas e métodos.
Quando determinado tema se estabilizava
na agenda de pesquisa, isso significava que
etapas prévias de embate intelectual tinham sido
vencidas. Para muitos daqueles intelectuais, o
que acrescentava dificuldades interpretativas
àquela diversidade era a percepção de que
ocorria inevitavelmente a passagem do rural
para o urbano.
Nesse sentido, para usar um dos jargões
do CBPE, a passagem do rural para o urbano
fazia com que cada cidade pudesse ser entendida
como laboratório de observação cultural. Estava
em disputa a produção de sentido sobre o quê e
como observar (XAVIER, 2000).
Essa situação conferia ao adjetivo
suburbano uma condição especial. Cultura
suburbana era, naquele contexto, um lugar
simbólico onde permaneciam instalados
personagens de um tempo que ainda estava
para ser dissolvido no encontro com a cidade.
As periferias das grandes cidades eram, de
certa forma, apreendidas com representações
do encontro entre racionalidade urbana e
rusticidade rural, estando a segunda condenada
a dissolver-se na expansão da primeira.
A questão da complexa diversidade
do país tornou-se um tema indissociável das
preocupações que acompanhavam aqueles
intelectuais a respeito do que eles mesmos
denominavam “velhos e novos urbanismos”
(PEREIRA, 1959). A referência a velhos e
novos urbanismos se recriava cada vez que se
acentuava a importância de adotar padrões de
pesquisa adequados para garantir que realidades
urbanas emergentes fossem conhecidas de perto,
quando convertidas em objeto de pesquisa.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
O CBPE e o CRPE-SP eram espaços
institucionais que estimulavam a presença de
pesquisas sociológicas e antropológicas junto aos
pesquisadores educacionais. Isso possibilitava
verificar a sobrevivência de socializações arcaicas
(os chamados velhos urbanismos) e compreender
o impacto dissolvente da escola no modo de
viver das grandes cidades (os novos urbanismos).
Ambos os centros de pesquisa, especializados
em educação, procuravam assegurar um padrão
de cientificidade baseado principalmente na
autoridade descritiva dos estudos de caso.
No universo institucional tanto do CBPE
quanto do CRPE-SP, o estudo de caso despontava
como padrão considerado necessário para
que a singularidade da pesquisa educacional
pudesse ser reconhecida e afirmada dentro de
um cenário em que as disputas intelectuais
se intensificavam e ganhavam repercussão
nacional. O estudo de caso se firmou como
padrão de pesquisa entre aqueles que passaram
por ambos os centros e, no bojo dos mesmos
acontecimentos, a relação entre cidade e escola
foi abordada com diferentes apropriações da
palavra adaptação.
O objetivo principal deste artigo,
portanto, é elucidar como o desempenho e a
adaptação de crianças chamadas suburbanas
à escola, escola essa que chegava às periferias,
foram temas apropriados por Dante Moreira
Leite e Luiz Pereira, que atuaram no CRPE-SP.
No CRPE-SP, produzia-se uma abordagem
que era, simultaneamente, a dimensão regional
das pesquisas do Departamento de Pesquisa
Educacional e de Pesquisa Social do CBPE do
Rio de Janeiro e a dimensão de afirmação de
um padrão próprio de pesquisa. A riqueza da
documentação preservada2 possibilita registrar
alguns aspectos singulares de uma cena que
se tornou capítulo indispensável para uma
sociologia histórica da adaptação da criança à
escola no Brasil.
2- A documentação do CBPE está preservada no Programa de Estudos
e Documentação Educação e Sociedade, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a do CRPE-SP no Centro de Memória
da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
687
Tensões na difusão da escola
O alastramento de escolas pelas
metrópoles, expressão típica dos Boletins do
CBPE, ensejou a produção de surveys, ensaios e
projetos voltados para a experiência de infância
em contextos de expansão territorial urbana
(HAVIGHURST, 1957, p. 21).
Crianças pobres eram personagens novas
nos também novos prédios escolares, os quais
prenunciavam um tempo em que a educação
na forma escolar tornava-se também conquista
das bordas, das franjas de cidades que estavam
prestes a experimentar intensa explosão
demográfica urbana.
As histórias do CBPE e do CRPE-SP
oferecem um ângulo especial para o estudo da
história da educação brasileira, especialmente
no que diz respeito ao impacto da presença da
criança pobre em meios escolares urbanos.
Nas décadas de 1950 e 1960, foi possível
identificar certo embate entre os que se valiam
de repertórios de avaliação e mensuração da
inteligência da criança, utilizando parâmetros
considerados válidos desde a década de 1920, e
aqueles que afirmavam que, se a escola passava
a abranger novos perfis populacionais, seus
instrumentos de avaliação deveriam também
ser renovados para que não se convertessem em
instrumentos de expulsão da criança pobre dos
territórios escolares.
Foi Antonio Candido quem chamou
atenção para a presença de “inteligências
rústicas” nas cidades, numa referência ao
“choque de mentalidades” que estava em
andamento (CANDIDO, 1957).
Desde o início, o projeto CBPE mobilizou
intelectuais brasileiros e estrangeiros com
afinidades metodológicas e temáticas. Mas essas
afinidades constantemente se desmanchavam
nas situações que exigiam definição do objeto
de pesquisa a ser delineado como de interesse
comum. Eram afinidades frágeis e vulneráveis
às demandas por alinhamento político.
Foi nos domínios do CRPE-SP que os
estudos urbanos suscitaram uma novidade
688
singular relacionada ao tema escolarização. A
irradiação das práticas escolares, no bojo do
processo que agigantava o tecido urbano, proporcionava àqueles debates novas apropriações
do tema da adaptação da criança à escola.
Esse tema já estava presente desde pelo
menos o final do século XIX, nas cidades do
Rio de Janeiro e São Paulo. Mas a inflexão que
o CBPE e o CRPE-SP trouxeram à questão diz
respeito à percepção desenvolvida em ambos os
lugares de que a “escola estava sendo deslocada”
(PEREIRA, 1967) e que, por isso, o próprio tema
da adaptação deveria ser pensado à luz dessa
expressiva diferença.
As salas de aula instaladas em locais periféricos ou interioranos tornaram-se representações de cenários nos quais aqueles intelectuais imaginavam assistir à “diluição do passado”
em práticas de racionalização modernizadora
(KLINEBERG, 1956; PEREIRA, 1967).
Por isso, a discussão acerca da adaptação
da criança à escola não era o mesmo em
relação às discussões do início do século XX
ou da década de 1920, pródiga em reformas
educacionais. O tema foi reapropriado e isso
proporcionou àqueles intelectuais apostar num
objeto de pesquisa permeado pelo interesse
em decifrar o modus operandi da escola,
vislumbrando-a por dentro, como encarecia
Antonio Candido desde 1956.
Dessa forma, especialmente em São Paulo,
o CRPE-SP converteu cada sala de aula catalogada
em seus registros em laboratório de análise social,
fazendo, à sua maneira, aquilo que o CBPE fazia
com as chamadas cidades laboratório, em sentido
mais amplo (XAVIER, 2000).
Se, no CBPE, as cidades laboratório eram
lugares considerados ainda arcaicos, ainda
não tocados pelas dinâmicas representadas
como modernas, no CRPE-SP, as salas de aula
das escolas públicas eram representadas como
locais que ainda conservavam as tensões entre
o rural e o urbano (AZANHA, 1959).
Essas tensões eram consideradas visíveis
e avaliáveis, desde que fosse possível investigar
o conjunto de respostas que cada criança
Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
pudesse oferecer aos estímulos escolares que
passavam a fazer parte do cotidiano.
Os estudos a respeito do corpo e do
intelecto da criança, assim mesmo, com a
separação entre a conformação corporal e
a intelectual, eram tomados como parte do
processo de decifração dos efeitos do modo de
viver sobre as possibilidades de aprender.
Quem manuseia a documentação
conservada do CRPE-SP percebe que, em
relação a esse tema, o padrão de investigação
repercutia a presença de Florestan Fernandes na
geografia política e intelectual que demarcava
o fato de o centro regional de pesquisa ter sido
alocado na Universidade de São Paulo.
Florestan foi um dos intelectuais que
insistiu para que os estudos a respeito da
infância se sobrepusessem aos estudos acerca
das crianças e suas dificuldades escolares. Ou
seja, de suas intervenções, o CRPE-SP recebia
constantes estímulos para que a análise do
modo de viver predominasse sobre as análises de
desempenho. Sua familiaridade com a questão
não se originava em interesses pedagógicos
(FERNANDES, 1963).
Entre 1942 e 1959, Florestan Fernandes
investigou e publicou estudos a respeito de
folclore e mudanças sociais na cidade de São
Paulo, os quais foram reunidos em livro que se
tornou referência no assunto desde o início da
década de 1960 (FERNANDES, 1961; 2004).
É importante notar o esforço de Florestan
Fernandes no sentido de resgatar a importância
do folclore para a compreensão sociológica
das mudanças sociais que estavam em curso
na cidade de São Paulo. A análise que o autor
empreendeu acerca da “a cultura de folk,
em desagregação, e a cultura civilizada, em
emergência e expansão” legou um rico e singular
material a respeito da configuração cultural
da vida urbana brasileira (FERNANDES, 2004,
p.11), especialmente no que toca ao até então
pouco estudado nexo entre cultura, infância e
cidade. Essa tríade reapareceu fortemente no
CRPE-SP pelas mãos de Dante Moreira Leite e
de Luiz Pereira.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
O corpo e a inteligência das crianças
foram focados com lentes antropológicas e
sociológicas, tanto no Rio de Janeiro como
em São Paulo. Naquele contexto, muitas vezes
a sociologia, a antropologia e as técnicas
etnográficas eram mobilizadas do conjunto de
saberes identificado como necessário para o
desvendamento dos efeitos da escolarização no
corpo e no intelecto da criança.
Por isso, reconhecia-se que ampliar
a abrangência populacional da escola
significava também trazer para o “território
da homogeneidade e dos rituais de trabalho
simultâneo” (FREITAS, 2011; 2013) crianças
cujas particularidades pessoais e sociais
desestabilizariam duas premissas básicas da
educação na forma escolar: 1) turmas por faixa
etária organizadas em 2) séries anuais.
A consolidação da escola seriada e sua
multiplicação pelo país na primeira metade
do século XX foi um processo permeado pela
presença de intelectuais que se valeram de
aferições, testes e medidas com as quais se
detectava a presença maior ou menor dos
indícios de anormalidade entre as crianças que
chegavam à escola (MONARCHA, 1992; 1997;
2001; 2005; 2008a; 2008b).
No CBPE e no CRPE-SP, o período de
generalização da escola pública republicana no
Brasil foi identificado como uma fase (palavra
típica da década de 1950) em que, ao mesmo
tempo, se consolidavam modelos e se reagia à
chegada da criança à escola em números mais
significativos.
Essa reação entrou novamente em
questão a partir de 1957, com a aceleração
na expansão de vagas públicas na cidade
de São Paulo. Tratava-se de compreender a
incorporação na escola de crianças de locais
ermos, periféricos, suburbanos e que, por isso
mesmo, punham em risco os fundamentos
homogeneizantes da escola seriada.
Para utilizar mais uma vez a expressão
que Antonio Candido construiu no âmbito do
CRPE-SP, pode-se perguntar: qual seria o grau
de (in)compatibilidade entre “mentalidades
689
urbanas e rurais” no encontro que, por
suposto, a escola inevitavelmente acabaria
proporcionando? (CANDIDO, 1957).
No Rio de Janeiro, na documentação
catalogada junto ao CBPE, percebe-se que
investigações acerca das expectativas foram
inúmeras vezes organizadas3. Uma das
representações mais encontradas acerca do
que as cidades tinham a oferecer para além do
trabalho assalariado era a descrição do mundo
urbano como lugar que oferece “gratuitamente
escola do governo” (FREITAS; BICCAS, 2009).
Escola e cidade tornavam-se gradualmente
referências recíprocas. Percebe-se que algumas
décadas após 1930 a escola pública tornou-se
uma complexa personagem urbana com quase
nenhuma familiaridade com o lastro rural da
cultura brasileira. O percurso para tornar o
país predominantemente urbano demonstrava
ser um caminho sem volta, ainda que, naquele
momento, os pesquisadores de ambos os centros
tivessem diante de si números diferentes do que
temos hoje. O Brasil era ainda, como nos ensinou
Lima (1999), um grande sertão.
O deslocamento humano sempre provocou
perplexidade. O impacto da escolarização sobre
esse “povo da raiz” (HUTCHINSON, 1957, p.
37) foi uma questão permanente nos anos mais
férteis do CBPE e do CRPE-SP. Mas nesse processo
mantivemos em “estado de alerta” (LEITE, 1992)
uma espécie de aversão generalizada àqueles
que se deslocaram dos muitos sertões para os
subúrbios das cidades grandes.
Nesses subúrbios, a escola também
foi conquistada como direito, mas seu valor
sociopolítico foi depreciado. Depois do impacto
da escola, os estudos de mobilidade social estão
entre os mais expressivos nos Departamentos
de Pesquisa Social do CBPE e do CRPE-SP,
quantitativa e qualitativamente (FERNANDES,
1963; HAVIGHURSTa, 1957; PEARSE, 1957).
3 - Um exemplo de texto que repercutia a iniciativa sempre presente de
estudar expectativas pode ser indicado no ensaio “A antropologia social
e o sistema educacional”, que Fred Eggan publicou no número 10 da
revista Educação e Ciências Sociais, em 1959, e que era um dos principais
instrumentos de divulgação de pesquisas realizadas no CBPE. Outro
exemplo pode ser recolhido em Séguin, 1959.
690
A expansão da escola pública movia-se
em direção às periferias de forma paradoxal e
ambígua. Menciono paradoxo e ambiguidade
porque, ao mesmo tempo em que a ampliação
do acesso indicava vitórias inerentes à
democratização na ocupação dos lugares onde
os bens da cultura escolar se dão à partilha,
uma série de subordinações sociais restringia o
alcance desse ganho político.
Essa restrição na qualidade do ganho se
deu na medida em que a expansão muitas vezes
foi assimilada socialmente como conquista de um
direito, mas também foi percebida como aquisição
de um serviço precário oferecido às pessoas
consideradas muitas vezes indistintamente como
pobres que vivem em situações precárias e que,
portanto, não têm intelecto, só estômago.
O fato é que a expansão na oferta de
vagas que estava em marcha desde a década de
1930 não estava conduzindo crianças e jovens
para instalações palacianas arquitetadas pelos
primeiros republicanos, como se sonhava no
início do século XX, mas sim para instalações
planejadas para o aluno número, o aluno antes
de tudo contabilizado como item orçamentário.
Esse processo, na forma como se dava,
deixava no passado ainda muito próximo
um modelo de professor, um modelo de
prédio escolar e certa ordenação presente nos
projetos de distribuição da escola nas cidades,
sobretudo as de grande porte. Essa situação
não passava despercebida a Dante Moreira
Leite e a Luiz Pereira e neles repercutiam tanto
as lições de Antonio Candido, como também
as de Florestan Fernandes.
A história da expansão da escola pública
no Brasil se fez acompanhar da produção de
receituários sobre o que fazer com crianças e
adolescentes pobres. Na década de 1950, os
conceitos básicos utilizados para enfrentar
essa questão eram assimilação e adaptação
(LOPES, 1959). Mas, no âmbito do CRPE-SP,
o uso do conceito de adaptação predominava
sobre o de assimilação.
No CBPE, o analfabetismo era indicado
como peça fundamental nos diagnósticos que
Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
explicitavam as causas do nosso atraso social.
Já no CRPE-SP, ao redor da noção de atraso,
giravam representações do anacronismo de
nossas estruturas educacionais, que nem bem
chegavam às periferias e já eram consideradas
incompatíveis com “o tipo humano lá instalado”
(LEITE, 1959; PEREIRA, 1959; GOUVEIA, 1957;
MOREIRA, 1957).
No CBPE, as metáforas alusivas às
raízes favoreciam estudos acerca do entorno da
escola, com base principalmente nos estudos
de comunidade. Já no CRPE-SP, despontavam
estudos a respeito da quebra de padrões
culturais que filhos escolarizados introduziam
no cotidiano das famílias suburbanas, o
que favorecia a utilização da categoria
racionalização de atitudes (BASTIDE, 1971;
LAMBERT, 1973; FREITAS, 2005).
No transcorrer do século XX, o tema
da homogeneidade (ou da sua falta) firmou-se
como questão estratégica nos momentos nos
quais os debates a respeito da equalização de
oportunidades influenciaram diretrizes para
a organização da escola, suas avaliações,
sua abertura à circulação de métodos e sua
apropriação de estratégias pedagógicas.
A planta institucional dos anos 1950 e
1960 não era a mesma que aquela de 1929, o
que permitiu a Lourenço Filho elaborar seus
Testes para verificação da maturidade para a
escrita (1929). Se o objetivo de Lourenço Filho
foi o de consolidar critérios para a organização
de classes homogêneas, ou seja, para solidificar
as fundações da escola seriada no Brasil, no
âmbito do CBPE e dos CRPEs, a própria noção de
homogeneidade passou a ser posta em questão.
Especificamente no CRPE-SP, esse fundamento
passou a ser muito relativizado.
Quando inicialmente planejada para
as regiões centrais das grandes cidades, no
amanhecer da República, a escola era representada
como força centrípeta necessária para atrair para
os seus domínios as crianças que deveriam ser
civilizadas nos moldes de uma civilização escolar.
A chegada gradual da instituição
às periferias das grandes cidades tornou-a
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
muitas vezes refém de plataformas políticas
que propunham que a escola pública atuasse
como força centrífuga, capaz de conter a
rudeza das periferias em seu próprio território
(MOREIRA, 1957).
Os temas comunidade e subúrbios
eram mobilizados para justificar a elaboração
de muitos projetos voltados à verificação do
impacto da chegada da educação escolar entre
aqueles que, via de regra, passaram a ser vistos
como pessoas que não estavam preparadas para
a rigidez das rotinas escolares.
No Rio de Janeiro, a expressão crianças
de comunidades tornou-se quase um jargão,
um complemento necessário à descrição de
alunos de determinados locais das cidades. Os
debates relacionados às possíveis adaptações
da escola às realidades locais ensejavam aos
pesquisadores colocar em dúvida se a escola
que chegava às margens, às franjas das cidades
era, ainda, a mesma instituição e se era capaz
de “surtir os mesmos efeitos” (CBPE, 1955). Em
São Paulo, a expressão que se generalizava era
crianças de periferia (FERNANDES, 1963).
Deve-se lembrar que a própria conceituação de comunidade, subúrbio, e de periferia recebeu a contribuição decisiva do CBPE, pelos estudos específicos de João Roberto Moreira (1957),
e do CRPE-SP, pelos estudos também específicos
de Luiz Pereira (1959; 1967).
Para usar uma linguagem familiar
aos pesquisadores do CRPE-SP, parecia-lhes
ser possível observar a escola em meio aos
chamados sertões internos das grandes cidades,
nos seus locais de borda, nos quais o moderno
da gramática urbana não se fixara ainda
e o arcaico dos resíduos rurais não estava
plenamente dissolvido (FREITAS, 2001).
Tais situações estimularam expedientes
de aplicação de escalas de verificação de maturidade e de escalas de verificação de vocabulário familiar, para além de outros expedientes de
escalonamento das dificuldades individuais e
coletivas. Mas foi justamente nessas condições
que o padrão assumido por Dante Moreira Leite
e Luiz Pereira em São Paulo fez diferença.
691
O padrão de análise e sua
incidência sobre a avaliação
As vagas escolares se expandiam e a
chamada diversificação cultural dos estratos que
experimentavam a aproximação em relação ao
mundo escolar causava, no âmbito do debate
intelectual, oscilações no sentido atribuído à arte
de medir a inteligência. A hora era de dúvida:
como compreender o encontro entre aquilo que
era chamado de cultura elaborada, com práticas
citadinas ainda impregnadas de rusticidade?
O desafio gerado pelo aluno que não
aprende mobilizava recursos analíticos os mais
diversos, em nome do esclarecimento a respeito
dos dramas do intelecto quando submetido a
condições adversas. Inteligência tornava-se
uma palavra esvaziada na forma de se referir
ao desempenho escolar que os atores do CBPE e
CRPE-SP propunham. O movimento centrífugo
das vagas escolares não distribuía tudo o que
podia e não recolhia daquelas crianças o que
podia recolher.
No CRPE-SP, Dante Moreira Leite, que
sempre fez questão de colocar em dúvida o
alcance de propostas de análise do desempenho
excessivamente focadas na mensuração,
garantiu espaço para novos estudos a respeito
da inteligência e desempenho escolar. Abriu-se
um tempo e um espaço institucional em que as
representações da anormalidade encontravam
mais rejeição que adeptos.
O CBPE e o CRPE-SP reagiam a um
processo específico de expansão dos números
escolares. Foi a ideia de que esse processo
revelou certa inadaptação da criança pobre
à escola que estimulou pesquisadores de
ambos os centros de pesquisa a questionar a
universalidade das configurações internas da
escola pública brasileira.
A diferença na abordagem de Moreira
Leite pode ser assim sintetizada. No final
da década de 1950, a divisão de estudos e
pesquisas educacionais do CRPE-SP propunha
estabelecer programas de verificação de escalas
de escolaridade, com o objetivo de “avaliar o
692
quantum de escolarização o aluno trazia consigo,
sem prender-se em demasia na avaliação de zero
a dez” (CRPESP, 1959, p. 131-132).
Essas escalas de escolaridade tinham
a intenção de proporcionar ao professor
orientação pedagógica para que o nível cultural
de cada família pudesse ser apreendido. Em São
Paulo, as escalas de escolaridade foram, por
assim dizer, festejadas, como se representassem
o ponto final para os estudos de inteligência
que ainda manejavam conceitos e metodologias
herdeiros de certa antropologia pedagógica que
tinha conexões genealógicas com a antropologia
criminal do século XIX.
Dante Moreira Leite, a partir de 1958, começou a insistir para que constasse, do programa do CBPE, a avaliação do sentido econômico
que a reprovação escolar adquiria na sociedade
brasileira (LEITE, 1959; p. 15), considerando a
reprovação na forma como se dava, antes de
tudo, instrumento de exclusão social.
Mas não seria correto restringir essa nova
percepção somente aos domínios do CRPE-SP.
No Rio de Janeiro, essa troca de sinais pode ser
percebida nos inúmeros estudos que reivindicavam
uma etnografia própria e necessária para estudar
a escolarização da criança favelada, sem os
excessos de métrica das aferições de inteligência
(CONSORTE, 1956; 1959).
As pesquisas, tanto no CBPE quanto
no CRPE-SP, passaram a ser movidas por uma
dinâmica que tinha, inclusive, um lema: a
escola só se conhece de perto. Assim como Dante
Moreira Leite em São Paulo chamara a atenção
para o problema da repetência, Consorte, no
Rio de Janeiro, verificou que a reprovação
tinha números nada generosos para com as
crianças pobres em geral e as faveladas em
particular. Numa das escolas pesquisadas pela
antropóloga, 42% das crianças matriculadas na
primeira série eram repetentes.
Diante da suposta dicotomia entre adaptar
a criança à escola ou adaptar a escola à criança,
e entre adaptar a escola à comunidade ou
adaptar a comunidade à escola, novos padrões
de pesquisa apresentavam-se como necessários.
Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
A configuração desse campo, no sentido
que Bourdieu (2000) dá à palavra, oferece o
ensejo para que se perceba que, no que toca aos
estudos acerca da inteligência da criança, uma
nova autoridade argumentativa se fez presente
e o mote que tornou possível a manifestação
daqueles jovens pesquisadores foi a “anatomia
cultural” (CRUZ, 1961) das periferias das grandes
cidades, ou seja, a escolarização de crianças até
então classificadas como suburbanas.
Para esses novos intérpretes, os
repertórios de aferição, medida e avaliação
da inteligência tinham pouco ou nada a dizer
àqueles que povoavam os novos sertões, os
locais suburbanos em que escola pública e a
expansão urbana trocavam suas incompletudes.
Os boletins publicados constantemente
reforçavam a utilização do slogan cada escola é
uma escola, o que significava um entendimento
conjunto sobre a unidade escolar como unidade
sociológica e antropológica (EDUCAÇÃO E
CIÊNCIAS SOCIAIS, 1956, p. 20). Contudo,
se os componentes internos de cada escola
sugeriam diferentes processos de observação
e diferenciação, as diferenças entre o campo e
cidade eram aquelas que permaneciam ao fundo
como referências mais complexas.
Luiz Pereira assimilava uma orientação
de Henri Lefebvre, que conheceu lendo Antonio
Candido. Concordou que as desigualdades
mais visíveis das realidades urbanas suscitadas
na modernidade eram as desigualdades entre
homem e mulher, entre ricos e pobres e entre
citadinos e camponeses (CANDIDO, 1957, p. 53).
Desenvolvia-se um padrão de pesquisa
atento àquilo que, naquele contexto, era definido
como dualidade básica da sociedade brasileira.
Tínhamos em nossas entranhas sociais uma
diferença arraigada entre mentalidades agrárias
e mentalidades urbanas.
O novo perfil demográfico que começava
a configurar as grandes cidades promovia
intensa aceleração no ritmo de vida. As
pesquisas em andamento deparavam-se com
crianças que tinham perdido uma referência de
habitat e adquirido novo espaço existencial.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
O que impactava fortemente aquela
geração de intelectuais era a percepção de que
microcidades de mentalidade rural sobreviviam
dentro e ao lado das zonas citadinas, que não
chegavam a ser um todo de mentalidade urbana
(CANDIDO, 1957, p. 59-60).
Dante Moreira Leite interveio em muitos
debates, tomando por ponto de partida a
argumentação de Antonio Candido:
Se o início da civilização industrial
desorganiza a família tradicional e as
formas tradicionais de proteção à infância
(como o apadrinhamento), [é] preciso
criar instituições que as substituam.
Compreende-se, assim, que a escola
deixe de ser uma instituição voltada,
exclusivamente, para o preparo intelectual
e passe a desempenhar a função muito
mais ampla de ajustar a criança à vida
social (LEITE, 1959, p. 16).
A apropriação de padrões entre os
autores se dava, nesse caso, ao redor do tema
adaptação, fosse da escola à criança, fosse da
criança à escola.
Florestan Fernandes envolveu-se ativamente com o projeto dos centros em quase todas
as etapas, desde o planejamento até sua concretização. Seu momento de maior engajamento
no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
deu-se na fase inicial, quando foi escolhido
como debatedor do documento inicial, escrito
por Oto Klineberg. No Centro Regional de São
Paulo, sua atuação foi mais intensa na primeira
gestão, de Fernando de Azevedo, entre 1956 e
1961, continuando, logo após, como colaborador na gestão de Laerte Ramos de Carvalho.
Mais do que um colaborador, Florestan foi
um analista constante dos rumos tomados pelos
estudos de comunidade. Na elaboração das diretrizes do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
e do planejamento do trabalho das Divisões de
Pesquisa, Florestan manifestou um ponto de concordância em relação ao documento base, assim
sintetizada por José Mário Pires Azanha:
693
A idéia principal desse documento era a de
que os Centros deveriam organizar-se com
o objetivo de elaborar um mapa cultural
do Brasil e um mapa educacional [...]. A
idéia fundamental era de que nós não
tínhamos conhecimento sistematicamente
organizado sobre o Brasil; embora
tivéssemos aí, centenas, milhares de estudos
feitos ao longo de séculos de existência do
país, nós não tínhamos tido a preocupação
de uma obra de síntese - que fosse capaz
de nos dar... um mapa cultural do Brasil e
[um] mapa educacional do Brasil. A idéia
do Prof. Klineberg é a de que a feitura
desses mapas seria o ponto de partida
para um esforço de descentralização das
soluções educacionais brasileiras; [...]
mas a idéia dele é de que um esforço de
descentralização poderia ser superficial e
até inútil, se não levasse em conta fortes
características de diferenciação cultural,
social e educacional, que nós tínhamos
(AZANHA, 1959, p. 27).
Luiz Pereira foi o responsável pela produção dos exemplos mais significativos de adoção do padrão inspirado nos parâmetros suscitados nas muitas intervenções de Candido e de
Florestan. Ao seu lado, no CRPE-SP, a movimentação intelectual era intensa. Enquanto os
pesquisadores vinculados ao CRPE-SP produziam levantamentos acerca da leitura e da escrita nas escolas da capital paulista, de questões
administrativas nas unidades escolares, da fadiga entre estudantes na cidade de São Paulo, da
relação entre o ensino médio e a estrutura socioeconômica, alguns grupos escolares eram escolhidos para laboratório de estudo. Nesse caso,
as unidades escolhidas permitiam a observação
das mencionadas escalas de escolaridade.
Luiz Pereira dirigiu o projeto Rendimento
e deficiências do ensino primário (CRPESP,
1959). Esse estudo proporcionou ao autor lidar
a seu modo com a metáfora dos dois brasis, a
imagem do país cujo arcabouço legal não corresponde às tramas do cotidiano real. Para Luiz
694
Pereira, a falta de homogeneidade dificultava o
uso da planificação racional nos debates educacionais, evidenciando que Florestan Fernandes
os havia convidado também à leitura de Karl
Mannheim. Luiz Pereira admitia que:
[...] as camadas inferiores das comunidades citadinas vivem segundo um estilo
não inteiramente urbano. Os contingentes
migratórios vêm a fazer parte delas, permanecendo como portadores de muitos
complexos da cultura rústica, continuando
a viver o rural na cidade (PEREIRA, 1959,
p. 1, grifos do autor).
Aquela geração tentava compreender o
impacto da escolarização na vida social e buscava, ao mesmo tempo, evidenciar as formas
por meio das quais mentalidades rústicas representavam um contraponto permanente à racionalização característica da mentalidade urbana.
Segundo Luiz Pereira:
A análise desse conteúdo cultural da atividade ensino-aprendizagem mostra ser
ele parte do patrimônio cultural de camadas citadinas sócio-econômicas não inferiores e evidencia a ligação estreita desse
conteúdo cultural com um estilo urbano
de vida, possuído principalmente por tais
camadas. A transmissão desse conteúdo
implica, portanto, na comunicação de um
estilo urbano de vida social, cultural e
econômico. Assim sendo, o subgrupo de
ensino primário atua nas comunidades
rurais e semi-rurais, como agência de desintegração de um estilo não urbano de
vida e, ao mesmo tempo, como agência de
urbanização (PEREIRA, 1959, p. 1).
Que efeitos esperar da associação entre a
escola urbana e a mentalidade rural?
[...] avulta a função urbanizadora desta
associação, realizada sob formas específicas
várias: integração dos brasileiros numa
Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
comunidade nacional com base numa
cultura urbana; [...] desintegração do
estamentalismo e outras frações de
estrutura social das comunidades rústicas
[...]. (PEREIRA, 1959, p. 1).
O padrão de pesquisa adquirido
por Dante Moreira Leite e por Luiz Pereira
encontrava nos temas desempenho e adaptação
da criança pobre à escola a oportunidade para
evidenciar que os intelectuais do CRPE-SP
adquiriram luz própria.
A criança em questão, como objeto de
pesquisa, foi abordada no bojo de interpretações
que permanecem como exemplos de grande
relevância para o estudo da complexa relação
que subsiste em nossa sociedade entre cultura
urbana e cultura escolar. Produzia-se renovada
interpretação a respeito do lugar de direito a que
cada criança fazia jus na comunidade nacional.
Considerações finais
Em novembro de 1961, o diretor
do CRPE-SP, Laerte Ramos de Carvalho,
promoveu a fusão entre os Departamentos de
Pesquisa Social e de Pesquisa Educacional.
Simultaneamente, foram articuladas as
condições para que o curso de pedagogia da USP
fosse transferido para a Cidade Universitária,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
especificamente para as instalações do CRPESP, o que se efetivou em 1962.
Nesse mesmo ano, a UNESCO e o Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) emitiram
documento conjunto em que expressavam
ser o CRPE-SP o local mais adequado para a
formação de pesquisadores na área educacional
(ZUBINZKY, 1975). Certa internacionalização
do CRPE-SP ocorreu a partir de 1963, com a
presença de pesquisadores da Universidade de
Chicago interessados em pesquisas a respeito da
estrutura socioeconômica e ensino médio.
As luminosas indicações de Antonio
Candido e Florestan Fernandes se materializaram em escritos que, desde as primeiras versões,
revelaram-se destinados a ocupar lugar de destaque na história da educação brasileira.
Os escritos de Dante Moreira Leite e Luiz
Pereira podem ser reconhecidos como expressão
mais densa do padrão CRPE-SP, o qual repercutiu numa forma singular de investigação acerca
do desempenho e da adaptação da criança pobre
à escola. Esse padrão singular de investigação
procurou mostrar que a inteligência da criança e
as vicissitudes de sua chegada e permanência na
escola são questões que não podem ser reduzidas
às verificações e mensurações de desempenho.
De forma exemplar, demonstravam que a questão estava profundamente relacionada à construção do país, como um todo, para todos.
695
Referências
AZANHA, José Mario Pires. Pesquisa educacional no CRPE: CRPESP, CRPE, AS, Dossiê INEP, 8 1(32), p. 27-31, 1959.
AZEVEDO, Fernando de. Para a análise e interpretação do Brasil: pequena introdução ao estudo da realidade brasileira. Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, INEP, v. 24, n. 60, p. 3-29, out./dez. 1955.
BASTIDE, Roger. Brasil: terra de contrastes. São Paulo: DIFEL, 1971.
BEISIGEL, Celso de Rui. Os primeiros tempos da pesquisa em sociologia da educação na USP. Educação e Pesquisa, São Paulo,
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BOLETIM CRPE-SP, São Paulo, n. 15, p. 131-132, 1959.
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Recebido em: 27.08.2013
Aprovado em: 17.12.2013
Marcos Cezar de Freitas é professor Livre-Docente do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade Federal de São Paulo.
698
Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
La investigación sobre educación de personas jóvenes
y adultas: las tesis de un concurso latinoamericano
Jaime Rogelio Calderón López-VelardeI
Resumen
Con la finalidad de conocer la situación que guarda la investigación
de la educación de personas jóvenes y adultas (EPJA) en América
Latina y el Caribe, se realizó un estudio comparativo mediante la
revisión de 170 tesis de licenciatura y posgrado que participaron
en un concurso durante los años 2005 al 2011. Se comparan las
instituciones, el género, así como los estudios realizados por
los concursantes y las temáticas de las tesis para establecer la
correspondencia y los cambios con respecto a las áreas y temas
de investigación
propuestos en los documentos regionales
previos a la V y VI Conferencias Internacionales de Educación
de Adultos (Hamburgo, 1997 y Belén, 2009). La investigación
educativa en la EPJA, es mínima, ausente en muchos países y
desigual, concentrándose en Brasil, México y Argentina. Se realiza
en instituciones universitarias públicas mediante programas de
licenciatura y posgrados en educación, ciencias de la educación,
pedagogía y psicología, pero coexisten con una variedad de
programas que son cursados en su mayoría por mujeres. La
diversidad temática se acentúa como un rasgo de la investigación
en la EPJA, reemplazando a la alfabetización y la educación básica.
Los programas de licenciatura y posgrado sobre EPJA son escasos
y no constituyen una línea consolidada de investigación con
excepción de Cuba y Brasil. Es impostergable reactivar un análisis
que trascienda el término EPJA desde la perspectiva del aprendizaje
a lo largo de toda la vida.
Palabras Clave
Educación de adultos – Investigación – Tesis – Educación comparada.
I- Universidad Pedagógica Nacional,
Guadalupe, Zacatecas, México.
Contacto: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000014
699
Investigation on Youth and Adult Education: the theses of
a Latin American Contest
Jaime Calderón López VelardeI
Abstract
Aiming to know the status of research on Youth and Adult
Education in Latin America and the Caribbean, I have conducted
a comparative study that reviewed 170 undergraduate and
graduate thesis involved in a contest between 2005 and 2011.
Institutions, gender and also studies conducted by the contestants
and the themes of their theses were compared in order to
establish correspondence and changes in relation to the areas and
topics of investigation proposed in the regional documents prior
to the V and VI International Conferences on Adult Education
(Hamburg - 1997 and Belem - 2009). Research on Youth and
Adult Education is scarce, absent in many countries and unequal.
It is concentrated in Brazil, Mexico and Argentina. It is done
in public universities in undergraduate or graduate programs
in education, education sciences, education and psychology,
but they coexist with a variety of programs attended mostly by
women. Research on Youth and adult education – which replaces
literacy campaigns and basic education – is marked by thematic
diversity. Undergraduate and graduate programs on Youth and
Adult Education are scarce and are not a established line of
research, except for Cuba and Brazil. It is unpostponable to revive
an analysis that transcends the term Youth and Adult Education
from the perspective of lifelong learning.
Keywords
Adult education — Research — Thesis — Comparative education.
I- Universidad Pedagógica Nacional,
Guadalupe, Zacatecas, México.
Contact: [email protected]
700
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000014
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
Introducción
En 2005 el Centro de Cooperación
Regional para la Educación de Adultos en
América Latina y el Caribe (CREFAL) estableció
el Programa Premio a las Mejores Tesis sobre
Educación de Personas Jóvenes y Adultas en las
categorías de licenciatura, maestría y doctorado
para promover la investigación en este campo
educativo a fin de:
Reconocer y estimular en América Latina y el
Caribe, a los autores de las mejores tesis sobre
EPJA, en la que se proporcione información
básica importante, se propongan nuevos
enfoques, se realicen aportaciones teóricometodológicas o se muestren hallazgos
relevantes en el campo. (CREFAL, 2011).
Esta iniciativa se inscribe en las líneas de
acción propuestas por el Marco de Acción para
la Educación de Personas Jóvenes y Adultas en
América Latina y el Caribe 2000-2010 para dar
visibilidad a la EPJA mediante la difusión de
experiencias de calidad e influir en las políticas
educativas respectivas, entre éstas, “apoyar
concursos de investigación y sistematización
de experiencias (…) y realizar investigaciones
comparadas” (UNESCO et al., 2000, p. 105).
Entre 2005 y 2007 se emitieron
convocatorias anuales y a partir de 2009
el periodo fue bianual, e integrándose como
institución convocante, la Cátedra UNESCO
Brasil, ofreciendo a los autores de las tesis
ganadoras la publicación y premios en
pesos mexicanos de $50.000 en licenciatura,
$75.000 en maestría y $100.000 en doctorado.
Consideramos importante analizar las tesis
de los cinco concursos porque son productos
académicos que a través de estudios e
investigaciones argumentan afirmaciones que
ponen a prueba los conocimientos adquiridos
por los egresados de programas de licenciatura
y posgrado y constituyen un requisito para
acreditar los estudios cursados. Representan a su
vez, una fuente de consulta imprescindible para
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
los estudiosos de la educación y los tomadores
de decisiones porque allí se encuentran nuevos
conocimientos, hallazgos, propuestas y líneas
emergentes de investigación. Cabe mencionar
que la investigación sobre la EPJA en la región
desde hace dos décadas ha sido incipiente y
concentrada en la alfabetización, la educación
básica y la capacitación. ¿Esta situación se ha
modificado? ¿Cuál fue la participación de los
países de la región en estos concursos? ¿Quiénes,
en dónde y de cuáles programas de licenciatura y
posgrado se graduaron los concursantes? ¿Cuáles
son las temáticas, problemas y tendencias que
ocupan la atención de la investigación en EPJA?
¿Qué diferencias y semejanzas se observan con
respecto a los Informes Regionales de EPJA
elaborados en 2008?
La metodología incluyó tres etapas. En
la primera se mencionan los puntos generales
de comparación como la participación, tipo de
instituciones y programas educativos. En la
segunda se comparan los países participantes
divididos entre aquellos que aportaron el
mayor y menor número de tesis, indicándose el
nombre de los programas académicos, así como
el género de los concursantes. En la tercera se
realizó la comparación entre las cuatro líneas de
intervención y las doce áreas de investigación
del Marco de Acción EPJA 2000-2010 con
las temáticas de las tesis, complementándose
con la relación de las áreas nuevas o distintas.
Posteriormente se compararon estos resultados
con dos Informes Regionales (CARUSO et al.,
2008; TORRES, 2009) citados en las referencias
de este trabajo. Por último, se establecieron
las diferencias y semejanzas entre los aspectos
mencionados y se interpretaron los resultados.
La estructura del trabajo comienza con
el abordaje de aspectos conceptuales de la
EPJA en la región y una breve caracterización
de la situación de la investigación educativa
en esta materia y a continuación se sigue el
orden y desarrollo de las etapas metodológicas
arriba mencionadas.
Cabe aclarar que las tesis concursantes
representan una fuente de consulta entre las
701
diversas modalidades de producción académica
de la investigación y por ello las conclusiones
del estudio no son generalizables ya que
solamente permiten un acercamiento parcial
pero significativo del estado que guarda
la investigación educativa en esta materia.
Asimismo otros elementos estructurales de
las tesis como los tipos de investigación, así
como los enfoques teóricos y metodológicos,
incluyendo un examen sobre su calidad rebasan
los objetivos de este estudio y serán motivo
de un análisis posterior para contar con una
visión integral de estos productos académicos.
No obstante, planteamos a modo de hipótesis
que en varios países las tesis de licenciatura
son un requisito para obtener el grado de
licenciatura pero también se admiten tesinas,
proyectos de intervención y monografías que
desarrollan diagnósticos educativos, pero
no son investigaciones que aporten nuevos
conocimientos.
Educación de adultos e
investigación educativa
¿Qué debe entenderse por educación
de personas jóvenes y adultas (EPJA) en el
contexto de los países latinoamericanos y del
Caribe para determinar cuáles investigaciones
se corresponden con este término como es el
caso de las tesis y otros productos académicos?
La (s) respuesta (s) a esta pregunta no es
un asunto sencillo porque es evidente que entre
los países de la región y en el ámbito académico
existen diferencias con respecto a la edad, nivel
educativo, perspectivas teóricas y la terminología
empleada para referirse a esta expresión; de igual
modo a la influencia del contexto político, social
y cultural de estas naciones y otras regiones
del mundo. Así, conceptos como: educación
permanente, educación básica ampliada,
educación formal y no formal, formación para
el trabajo, educación popular y la expresión
aprendizaje a lo largo de la vida dan cuenta de
esta diversidad conceptual. No obstante a partir
de la V Conferencia Internacional de Educación
702
de Adultos de Hamburgo en 1977, se han dado
pasos importantes para elucidar la especificidad
de este concepto, pero aún son insuficientes.
En efecto, si tomamos en cuenta la
agenda regional del Marco de Acción Regional
arriba mencionado1 en el cual se sintetizan los
principales aspectos problemáticos de la EPJA,
se constatan avances significativos. En este
documento destacamos cuatro pronunciamientos
que son congruentes con la visión ampliada de
la Declaración y el Plan de Acción de Hamburgo
(UNESCO, 1997), orientada a trascender los
límites y discriminación impuestos por la edad,
el nivel y modalidad educativa e incluso para
reemplazar el término educación por el de
aprendizaje de adultos.
El primero fue la adopción del término
Educación de Personas Jóvenes y Adultas (EPJA)
cuya coexistencia con los adultos fue producto
no solo de los cambios demográficos en la región
sino de la incapacidad de los sistemas escolares
para lograr la permanencia de los jóvenes en la
educación básica u obligatoria y a la necesidad
de éstos de emplearse tempranamente en el
trabajo informal, reemplazando paulatinamente
e inclusive discriminando a los grupos de adultos
de los programas de EPJA (TORRES, 2009).
El segundo consiste en reiterar la
especificidad del campo de la EPJA, fortaleciendo
el compromiso insoslayable con los grupos más
marginados, esto es, los indígenas, campesinos,
jóvenes y las mujeres y la inclusión de siete
áreas de intervención: 1. Alfabetización; 2.
Educación y trabajo; 3. Educación, ciudadanía
y derechos humanos; 4. Educación con
campesinos e indígenas; 5. Educación y Jóvenes;
6. Educación y género; 7. Educación, desarrollo
local y sostenible. Finalmente se plantearon tres
líneas de acción: 1. Currículo y evaluación; 2.
Formación de educadores; 3. Investigación.
El tercero, reconocer que la EPJA es una
actividad que trasciende lo estrictamente educativo,
1- Suscribimos este documento, entre otras razones, para retomar la memoria
histórica de la EPJA, el reconocimiento al trabajo colectivo, sistemático y
representativo de múltiples actores dedicados a este campo educativo y por
la riqueza y vigencia de muchos de sus lineamientos y propuestas.
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
pues no se circunscribe a los aprendizajes en los
espacios escolares sino a una diversidad de lugares
en donde se convive para aprender y recrear la
cultura en sus múltiples manifestaciones.
El cuarto, esclarecer la finalidad de la
EPJA y la invitación abierta al diálogo informado
para enriquecer las nociones implicadas en este
concepto y sus conexiones, poniendo énfasis en
la perspectiva del aprendizaje a lo largo de la vida
a fin de adecuarse a los contextos nacionales,
regionales y locales de esta región (UNESCO et
al., 2000). No obstante, los avances mencionados
también significaron la emergencia de situaciones
problemáticas que se traducen en nuevos desafíos:
1- Ampliación, diversificación y mayor
complejidad del campo de intervención de
la EPJA. La prioridad con los grupos sociales
mencionados y la inclusión de las temáticas
propuestas significa, entre otros aspectos, mayores
niveles de articulación de políticas públicas
intersectoriales, reforzar vínculos entre el Estado
y las organizaciones de la sociedad civil, atención
a grupos específicos (jóvenes en situación de
calle, discapacitados, personas privadas de su
libertad, migrantes, adultos mayores, etc.), acceso
al mundo digital, e insistir en la formación inicial
y continua de educadores sin la cual la calidad de
la EPJA resulta difícil de alcanzar.
2- Ausencia de sinergias. Los vínculos
educativos entre niños, jóvenes y adultos ya
sea dentro del sistema escolarizado (propuestas
de alfabetización simultánea entre niños y los
jóvenes y/o adultos; programas comunitarios,
entre otros) y fuera de este (programas de atención
y educación de la primera infancia que operan a
modo de escuelas para padres y madres de familia,
aprendizaje intergeneracional, comunidades de
aprendizaje y otros), muestran la necesidad de
coexistencia y mutua interdependencia entre
sistemas formales y no formales cuyas fronteras
son cada vez más relativas y artificiales.
3- Aislamiento y homogeneidad de
la EPJA. El énfasis en la ciudadanía, la
interculturalidad, los derechos humanos, el
desarrollo comunitario y el cuidado del medio
ambiente, son ejes transversales incluidos en
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
los planes de estudio desde la educación básica
formal hasta programas académicos de nivel
superior. En este sentido, no es apropiado que
la EPJA los aborde separadamente, asumiéndose
como un espacio homogéneo y paralelo
dentro de los sistemas educativos nacionales,
situación que por una parte, reproduce la carga
de nociones peyorativas hacia los sujetos que
la integran (carentes, vulnerables, en riesgo,
en rezago educativo, etc.), y, por otra, le resta
visibilidad, importancia y recursos financieros.
(TORRES, 2009).
4- La especificidad de la EPJA. Si bien
la exclusión social y la pobreza es la categoría
identitaria de la EPJA, no es suficiente para
abarcar a todos los sujetos que la conforman,
ya sea como población en rezago educativo,
(jóvenes expulsados del sistema escolarizado
para los cuales operan políticas compensatorias),
población excluida y/o discriminada por
diversas razones a quienes se destinan políticas
sociales, y los sujetos que no se encuentran
en alguna de estas situaciones pero les asiste
el derecho a demandar aprendizajes continuos
mediante programas de educación permanente
(CARUSOet al., 2008). Aún más, los jóvenes
que cursan la educación secundaria y niveles
intermedios en donde priman condiciones
de pauperización en el medio rural y urbano
marginal, ¿no formarían parte de la EPJA?,
¿no sería paradójico que la EPJA excluyera a
estos jóvenes en su atención y estudio o a los
estudiantes indígenas que accedieron a estudios
de tipo medio y superior?
5- Fragilidad conceptual. Los criterios
tradicionales para definir a los sujetos de
la EPJA como la edad, el rezago, condición
social, modalidad educativa resultan hoy día
insuficientes dada la multiplicidad de situaciones
generadas por la pobreza e inequidad social y al
papel diversificado que estos asumen: ciudadanos,
padres, trabajadores, adultos mayores, etcétera.
(CARUSO et al., 2008). Además, la discusión
sobre una definición y caracterización que
trascienda el término EPJA desde la perspectiva
del aprendizaje a lo largo de toda la vida no ha
703
prosperado y explica en gran parte la situación
descrita en los puntos precedentes.
Es claro entonces que la EPJA debiera
abarcar a todos y todas sin importar el carácter
formal y no formal de la educación ni la
condición socioeconómica, edad, raza, género,
pertenencia étnica, sexual y religiosa. De hecho,
así se concibe en el Marco de Acción citado
(UNESCO et al., 2000, p. 90) cuando se señala:
Desarrollar programas para las personas
jóvenes y adultas en su condición de
madres y padres, estudiantes de la
educación secundaria, técnica y superior y
educadores de cualquier nivel y modalidad,
para incorporarlos tanto como sujetos de
aprendizaje como educadores.
Sin embargo, la realidad social impone
que el conocimiento y los aprendizajes
imprescindibles para vivir y convivir en una
sociedad cada vez más cambiante y compleja,
se pongan al alcance de quienes han sido
excluidos por un sistema que no logra hacer
valer los derechos humanos, entre estos el de
la educación. Por esta razón y conscientes
del riesgo reduccionista y simplificado que
se corre, en este estudio, se considera a los
sujetos de la EPJA a quienes no ingresaron
o fueron excluidos por el sistema educativo
regular sea como demanda potencial o real
(participantes en los programas ofertados por
instituciones educativas públicas, privadas y
de las organizaciones de la sociedad civil para
restituir su derecho a la educación). Asimismo
las áreas de intervención y temas emergentes
destinados a estos grupos sociales.
Por lo que a la investigación educativa se
refiere, en los principales foros internacionales
de la EPJA, especialmente en el Plan de
Acción para el Futuro, de Hamburgo (UNESCO,
1997, punto 22), así como el seguimiento
latinoamericano de CONFINTEA V (1998-1999)
y en el referido Marco de Acción, el interés por
fomentar y consolidar la investigación educativa
sobre la EPJA es una constante, pues desde los
704
años 70 hasta hoy día, la revisión de la literatura
sociológica y de los estados del conocimiento
reportan avances pero coinciden en su escaso
desarrollo (UNESCO; OREALC, 2003; RUIZ,
2005; SCHMELKES, 2008), particularmente en
la investigación básica, que ha dependido en su
mayoría de los especialistas de los organismos
y agencias educativas internacionales y por
los investigadores nacionales adscritos a las
universidades y centros de investigación
públicos y privados.
Por el contrario, los estudios empíricos
relacionados con las prácticas de la EPJA
(descripciones, diagnósticos,
evaluaciones,
materiales didácticos, etc.) son abrumadores y
en gran parte promovidos por los gobiernos y
ministerios de los países de la región, enfocados
a las temáticas y problemas más acuciantes
(alfabetización, educación básica y capacitación
para el trabajo), así como aspectos relacionados
con el aprendizaje de los adultos, la calidad,
el género y los temas emergentes asociados a
la educación popular (ciudadanía, democracia
y participación social). Este débil desarrollo
coincide con el examen realizado por Ruiz (2005),
quien a partir de la revisión de 313 trabajos
en los años 90 por la Red Latinoamericana
de Información y Documentación (REDUC)
sobre educación de adultos y la educación
popular, concluye que solamente el 29% fueron
considerados en la categoría de investigaciones
y estudios. El 71% restante se distribuyó en las
categorías de: sistematizaciones, polémicas y
discusión actual en el campo y descripción de
experiencias y práctica.
Otro rasgo de la investigación en EPJA
que se deriva de este estudio, es su gran
diversidad temática ya que del conjunto de
estudios examinados se desprenden treinta
tópicos sin desagregar los temas emergentes
(género, medio ambiente, etc.), de donde
se infiere en muchos casos la coexistencia
temática y una tendencia a la fragmentación
de áreas de conocimiento que guardan estrecha
relación. Cabe mencionar que dentro de este
amplio espectro temático, la educación popular
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
ha tenido un papel protagónico dentro de la
investigación educativa pues desde los años 70 y
bajo la influencia de la educación liberadora de
Paulo Freire y Orlando Fals Borda, se cultivaron
enfoques críticos al paradigma cuantitativo
mediante la investigación acción participativa y
la sistematización que documenta con enfoques
narrativos, la reflexión de experiencias de
los actores sociales, destacando su dimensión
organizativa y política.
En resumen en el Marco de Acción de
la EPJA, la importancia de la investigación
educativa es clave para
[...] aportar conocimiento y contribuir al
diseño de estrategias para la atención de la
diversidad y la distribución igualitaria de
la educación. (UNESCO et al., 2000, p. 103).
Propiamente en las siete áreas
prioritarias de acción, se insiste en el desarrollo
de investigaciones educativas, sumándose doce
temas de investigación que se incluyen en las
tablas del punto 3.3.
Participación, instituciones y
programas
Conforme a los datos de la tabla 1,
solamente catorce de 42 países de América Latina
y el Caribe participaron en el periodo 2005 al 2011
con un total de 315 tesis. Sin embargo, del total
de tesis registradas, solamente 170, equivalente al
54 % fueron consideradas de EPJA. Además, el
número de países participantes se reduce a diez
(24%) porque las tesis de cinco concursantes no
correspondían a la EPJA. Solamente la mayoría
de tesis de Argentina, Bolivia, Chile, Costa Rica,
Colombia y especialmente de Brasil, fueron de
EPJA, mientras que en tres países, incluyendo
a México, se reducen a menos de la mitad.
Esta situación se debió a que los concursantes
incluyeron en la EPJA a la población infantil
que cursa la educación obligatoria (preescolar,
primaria) hasta los jóvenes estudiantes de
la educación superior y en varios casos con
temáticas completamente ajenas a la EPJA, lo que
refleja un desconocimiento de las características
y especificidad de este campo e insuficiente
1. Argentina
2. Bolivia
3. Brasil
4. Colombia
5. Costa Rica
6. Cuba
7. Chile
8. Ecuador
9. Honduras
10. México
11. Perú
12. Puerto Rico
13. Uruguay
14. Venezuela
Total
Tesis Registradas por Programa
Académico
L
19
4
9
1
0
1
2
0
0
64
2
0
0
0
102
E
0
1
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
3
M
11
3
26
0
1
4
4
2
1
91
1
1
2
1
148
D
7
0
13
1
0
4
2
0
0
34
2
0
0
1
64
37
8
49
2
1
9
7
2
1
189
5
1
2
2
315
Tesis de EPJA por Programa
Académico
L
13
2
6
1
0
0
2
0
0
31
0
0
0
0
55
E
0
1
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
3
M
5
2
26
0
1
3
4
1
0
35
1
0
0
0
78
D
7
0
13
1
0
1
1
0
0
11
0
0
0
0
34
Total
Países
Total
Tabla 1- CREFAL. Concurso de tesis 2005-2011. Comparación entre países participantes y número de tesis registradas por
programa académico y número de tesis con especificidad en la EPJA
%
25
5
47
2
1
4
7
1
0
77
1
0
0
0
170
68
85
96
100
100
44
100
50
0
41
20
0
0
0
54
L= Licenciatura E= Especialidad M= Maestría D= Doctorado
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
705
claridad en las bases de la convocatoria. En la
región caribeña, Cuba presentó cuatro y Bolivia
y Chile participaron con cinco a siete tesis. Por su
parte Colombia, Ecuador y Perú participaron con
una a dos tesis y en la región centroamericana,
solamente una tesis de Costa Rica (tabla 1). Los
países con más concursantes fueron México, Brasil
y Argentina con 77, 47 y 25 respectivamente y
en su conjunto representan el 88% del total de
las tesis. Este hecho obedece no solo a la mayor
extensión territorial y demográfica de estos
países sino a su papel geopolítico y económico
a nivel regional y mundial y a la conformación
de sus sistemas educativos cuya diversidad y
magnitud de problemas demandan mayores
conocimientos derivados de la investigación
social y educativa. En este sentido, la expansión
de los sistemas de educación superior en América
Latina en las tres últimas décadas, propició en los
países mencionados, un crecimiento inusitado
de instituciones universitarias y de educación
superior públicas y privadas, particularmente en los
estudios de posgrado cuyos productos académicos
se ve reflejado en esos porcentajes. Conjeturamos
a su vez que en estos países hubo mayor difusión
de la convocatoria y material propagandístico del
concurso a diferencia de regiones como el Caribe
anglófono y francófono con escasa presencia
del CREFAL. Asimismo suponemos que más allá
del interés de los concursantes por obtener el
recurso económico del premio fue la necesidad de
dar a conocer sus trabajos de tesis escasamente
valorados y difundidos.
Como se puede observar, en general la
participación de los países de los concursantes
es poca pues abarca un periodo de cuatro años
e inexistente en los 32 restantes que integran la
región, lo que refleja un panorama de desinterés
investigativo de los centros universitarios en
materia de EPJA.
De los datos reportados en la tabla 2, el
81%, es decir, la mayoría de los concursantes,
realizó sus estudios en universidades públicas
federales, estatales y autónomas a través de
distintas Facultades, Escuelas y Departamentos,
especialmente en Educación. Solamente el 19%
706
fueron de financiamiento privado, sobresaliendo
Chile y México en términos porcentuales
(29% y 31% respectivamente). Asimismo los
concursantes egresaron de otras instituciones de
educación superior (IES), destacando México con
10 de estas por ser el país con mayor número de
concursantes (tabla 2). En este país, las IES incluyen
entre otros establecimientos, institutos, escuelas
normales, colegios, centros de investigación que
ofertan programas para la formación profesional
de cuatro a seis años y estudios de posgrado
sin importar su régimen de financiamiento o
estatus legal pero en la legislación argentina se
establecen distinciones entre universidades e IES
a partir de formas de gestión, esto es, carreras
en áreas de conocimiento afines (Facultades) o
dedicadas a un área específica (Institutos). En
total, participaron 63 universidades públicas y
quince privadas, además de dieciséis IES, tres
de estas privadas. Brasil ocupó el primer lugar
con veinticuatro universidades públicas y cuatro
privadas (tabla 2).
Cabe subrayar que del total de las tesis
de México, el 27% fueron de la Universidad
Pedagógica Nacional que contaba hasta el 2010
con la licenciatura en educación de adultos y
desde 2002 oferta en este nivel un programa de
Intervención Educativa que incluye una línea
de EPJA. En Argentina, la Universidad Nacional
de Córdoba y la de Buenos Aires aportaron
tres tesis cada una y, entre una y dos, diversas
universidades públicas y tres privadas, mientras
que en Brasil, de once Universidades Federales,
destacan con el mayor número de tesis las de São
Carlos con seis, y la de Minas Gerais con cinco.
Otra Universidad que envió cinco tesis fue la de
São Paulo y el resto envió de una a tres tesis,
incluyendo a cuatro universidades privadas.
En cuanto a la distribución de los diferentes
programas de EPJA, el primer lugar lo ocupa el
nivel de maestría con 78 (46 %), en segundo,
las de licenciatura con 55 (32 %), en tercero, las
de doctorado con 34 (20 %) y, en cuarto, las de
especialización con solamente tres (2 %), (tabla
1). La mayor parte de tesis de licenciatura se
concentró en Argentina y México con trece y 31
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
Tabla 2- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Países participantes y tipo de instituciones por régimen de financiamiento.
Países
Argentina
Bolivia
Brasil
Colombia
Costa Rica
Cuba
Chile
México
Perú
Total
Universidades
Instituciones de Educación Superior
Públicas
%
Privadas
%
Públicas
%
Privadas
%
16
4
24
1
1
0
5
11
1
63
84
80
86
100
100
0
71
69
100
81
3
1
4
0
0
0
2
5
0
15
16
20
14
0
0
0
29
31
0
19
2
0
1
0
0
3
0
7
0
13
100
0
100
0
0
100
0
70
0
81
0
0
0
0
0
0
0
3
0
3
0
0
0
0
0
0
0
30
0
19
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.
respectivamente, mientras que las de maestría
en Brasil y México. Las tesis de doctorado se
distribuyeron en tres países (Colombia, Chile y
Cuba) con una tesis y el resto en Argentina, Brasil
y México con siete, trece y once, respectivamente.
Únicamente Brasil reportó dos tesis de especialidad
en EPJA y una en Bolivia.
Llama la atención que las tesis de
doctorado que implican mayor profundización
y aportes al conocimiento en el campo de la
EPJA sean pocas, pues el promedio durante los
cinco concursos es apenas de 6.8, destacando
Brasil con el mayor número de tesis en
este nivel debido al impulso inusitado de la
investigación en esta materia en los últimos
10 años. Ahora bien, de los datos reportados
en la tabla 1, destacamos dos grupos: El
primero, integrado por los países que aportaron
el mayor número de tesis: Argentina, Brasil
y México. En el segundo, siete países con un
número reducido de tesis (Bolivia, Colombia,
Costa Rica, Cuba, Chile, Ecuador y Perú). Cabe
mencionar que en ambos grupos hubo nueve
graduados latinoamericanos que estudiaron en
universidades extranjeras.
Comparación entre Argentina,
Brasil y México
Estos países además de reunir el mayor
número de tesis presentan, al igual que
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
otros, aspectos diferenciales de la EPJA que
llevaron a su comparación. Brasil fue cuna del
movimiento de educación popular desarrollado
a lo largo de los años 60 que se extendió en
los años 70 a varios países latinoamericanos. A
su vez, las políticas y múltiples programas de
alfabetización tienen un lugar preponderante
en la EPJA desde la Campaña de Adolescentes
y Adultos (1947) hasta Brasil alfabetizado
(2003). Actualmente los foros de EPJA
representan alternativas basadas en estructuras
intersectoriales y descentralizadas de organismos
gubernamentales y no gubernamentales que
se movilizan para reivindicar el derecho a
la educación básica y emprenden tareas de
formación (DI PIERRO, 2005, p. 22). Estos
rasgos difieren con México en donde el peso
de los movimientos sociales es menor, además
de la continuidad y alta institucionalidad en
las políticas y modelos para la EPJA bajo la
rectoría del Instituto Nacional de la Educación
para Adultos, organismo fundado en 1981
que opera en todos los estados del país y del
cual dependen los contenidos curriculares.
Argentina por el contrario, cuenta con menos
diversidad étnica que Brasil y México y ha
experimentado cambios abruptos y recurrentes
en las políticas de EPJA marcados por los
regímenes militares y posteriormente por
los gobiernos electos democráticamente que
desarrollaron en 1973 y 1974 movimientos
707
renovadores bajo la influencia de la educación
popular.
Posteriormente
las
políticas
neoliberales del gobierno de Menen durante
los años 90 ahondaron la situación marginal
de la EPJA y hasta diciembre de 2006 la EPJA
dejó de considerarse un régimen especial
en la legislación educativa. A continuación
centramos la atención en los programas
educativos en cuanto a su distribución por
nivel, género y nombre.
En Argentina hubo trece concursantes
de licenciatura, seis varones y siete mujeres por
lo que existe un equilibrio entre los graduados
de este nivel educativo (tabla 3). En cambio,
la autoría de las cinco tesis de maestría fue
de mujeres, mientras que de las siete de
doctorado, solamente un varón concursó en
este nivel, lo que indica una participación casi
absoluta del género femenino en las tesis de
posgrado (tabla 3).
Tabla 3- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Países participantes y programas académicos por género
Programas Académicos
Países
Licenciatura
Especialidad
Maestría
Doctorado
M
%
F
%
M
%
F
%
M
%
F
%
M
%
F
%
Argentina
6
46
7
54
0
0
0
0
0
0
5
100
1
20
6
80
Bolivia
0
0
2
100
0
0
1
100
2
100
0
0
0
0
0
0
Brasil
2
33
4
67
0
0
2
100
5
19
21
81
2
15
11
85
Colombia
0
0
1
100
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
Costa Rica
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
100
0
0
0
0
Cuba
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
3
100
0
0
1
100
Ecuador
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
100
0
0
0
0
Chile
1
50
1
50
0
0
0
0
0
0
4
100
0
0
1
0
México
7
23
24
77
0
0
0
0
8
23
27
77
4
36
7
64
Perú
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
100
0
0
0
0
Total
16
29
39
71
0
0
3
100
15
20
63
80
7
21
27
79
M= Masculino F= Femenino
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.
En Brasil, de las seis tesis de licenciatura,
cuatro fueron de mujeres y dos de varones. Las
dos tesis de especialización recayeron en mujeres,
mientras que en las veintiséis tesis de maestría la
participación del género femenino es sobresaliente,
pues solamente dos de cada diez graduados son
varones (19% y 81%) respectivamente (tabla
3). De igual modo ocurre con respecto al papel
preponderante de las mujeres con once de las
trece tesis de doctorado (85%).
En México concursaron 31 tesis de
licenciatura y 35 de maestría. Las mujeres
también ocupan un lugar preponderante ya que
en ambos programas rebasan el 75%, mientras
que en el doctorado disminuye su participación
708
al 64%. Empero, la participación y autoría
femenina de las tesis es mayoritaria en estos
tres países pues el promedio alcanza el 78 %.
En relación a los nombres y áreas de
conocimiento de los programas académicos en los
cuales se graduaron los concursantes de tesis2, en
Argentina de los trece programas de licenciatura,
ocho se concentran en ciencias de la educación,
seguida por
psicopedagogía, antropología,
sociología y la comunicación social, en ésta
última se incluye otra tesis asociada al periodismo.
En cuanto a los cinco programas de maestría,
uno es de ciencias sociales con orientación en
2 - Por su extensión, consideramos innecesario incluir la relación de los
programas académicos.
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
educación y otro de educación con orientación
en educación permanente, los tres restantes no
se refieren directamente a la educación sino a: 1)
evaluación; 2) políticas sociales; 3) salud mental
comunitaria. Finalmente, de los siete programas
de doctorado, dos son de ciencias de la educación
y tres corresponden a: 1) las ciencias sociales; 2)
ciencias de la comunicación; 3) filosofía y letras.
Los otros dos fueron cursados en universidades
extranjeras. En resumen, se observa la presencia
de la carrera de ciencias de la educación en la
licenciatura y en los programas de doctorado que,
en su conjunto, equivalen al 43 % de las carreras
y programas cursados y el otro 57% se distribuyen
en una diversidad de carreras de licenciatura y en
los programas de posgrado antes mencionados.
En Brasil, de las seis tesis de licenciatura,
cinco fueron de pedagogía y de las veintiséis
de maestría, catorce, es decir, poco más
de la mitad de este nivel (56%), fueron
de programas de educación y el resto se
distribuye en programas que también están
asociados a este término mediante líneas, áreas
y orientaciones diversas de investigación,
entre éstas: educación brasileña, sociología
de la educación, fundamentos de educación,
educación y políticas públicas. Una situación
muy similar a la anterior se observa en los trece
programas de doctorado, pues nueve de ellos
también son en educación y con solo una tesis:
1) sociología de la educación; 2) educación
especial; 3) psicología: 4) lingüística aplicada.
En síntesis, Brasil, no obstante el reducido
número de tesis de licenciatura es el país con
mayor homogeneidad en el tipo de programas
ofertados en este nivel pero especialmente en
los programas de posgrado desde los cuales se
investiga la EPJA, y uno de los dos países en
donde existen especializaciones.
En México, de las 31 tesis de licenciatura, la
mayoría se concentran en tres carreras con cinco
tesis cada una: 1) pedagogía; 2) intervención
educativa; 3) ciencias de la educación. Otras
dos carreras con cuatro tesis cada una fueron:
psicología y educación de adultos y con dos
tesis, educación indígena. El resto lo integran
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
un conjunto de licenciaturas con una tesis, entre
éstas, educación y diversidad cultural, sociología
de la educación, innovaciones educativas y
comunicación. El panorama con respecto a los
concursantes de los 35 programas de maestría se
caracteriza por su diversidad. Si bien se ofertan
programas de educación y otros que giran
alrededor de este término: calidad, diversidad
cultural, desarrollo educativo, formación
docente, resaltan aquellos que se derivan de las
ciencias en general que incluyen especialidades
(investigación educativa, ecología) o ciencias
específicas (de la educación, administrativas,
agrícolas, en sociología rural). Este crisol de
programas se incrementa con estudios de
investigación educativa y de metodología,
aunado a programas que van desde la psicología
y pedagogía hasta la comunicación e inclusive
de ingeniería. Sin embargo, de ese conjunto de
programas, llama la atención aquellos dedicados
al quehacer investigativo con un total de ocho
tesis, equivalente al 23% del total. Finalmente,
en los once programas de doctorado, los de
pedagogía y educación comparten dos tesis cada
una, seguidas de un grupo de ciencias y ciencias
sociales que incluyen tres especialidades. El resto
se distribuye en cuatro programas: 1) filosofía de
la educación; 2) innovación educativa; 3) estudios
de población; 4) estudios organizacionales.
A partir de estos resultados, encontramos
que las tesis de licenciatura en Brasil son muy
pocas con respecto a las de Argentina y México
pero las de maestría y doctorado superan por
mucho a las argentinas y en menor medida
a las de doctorado de México. En cuanto a
los programas de licenciatura, en Argentina
predominan las ciencias de la educación
mientras que en Brasil los de pedagogía y en
México coexisten ambos programas a los cuales
se suma una diversidad de carreras (tabla 4).
En Argentina fueron escasos los
concursantes de maestría cuyos programas se
distinguen por su diversidad al igual que en
México. En cambio, Brasil muestra homogeneidad
y continuidad en este nivel y en los programas
de doctorado, concentrados en educación
709
con múltiples áreas, líneas de investigación y
orientaciones específicas, situación que no ocurre
en México, en donde si bien coexisten en las
licenciaturas y en las maestrías, los programas de:
pedagogía, ciencias de la educación y psicología,
predomina la diversidad de estos, incluyendo los
de doctorado. Además, una diferencia de México
con Argentina es la ausencia de doctorados en
ciencias de la educación y en Brasil de programas
de pedagogía (tabla 4).
Tabla 4- CREFAL. Concurso de tesis 2005-2011.Comparación de tendencias de los programas académicos
Programas
Académicos
Tendencias
Argentina
Brasil
México
Licenciatura
Homogeneidad en ciencias
de la educación
Homogeneidad en pedagogía
Coexistencia entre pedagogía, ciencias
de la educación, Intervención educativa y
diversidad de carreras
Maestría
Diversidad
Homogeneidad de programas de educación
Heterogeneidad/ diversidad
Doctorado
Homogeneidad y continuidad de programas
Ciencias de la educación
de educación. Ausencia de pedagogía y
y diversidad de programas
ciencias de la educación
Heterogeneidad/ Diversidad
Ausencia de ciencias de la educación
Fuente: Elaboración propia.
Comparación entre países con
poca participación
En el segundo grupo de países, Chile
presentó siete tesis, todas con programas
diferentes. Dos de licenciatura y cuatro de
maestría, entre éstas, Educación, mención
currículo y comunidad educativa, Evaluación
Educacional y Antropología y Desarrollo. La
única tesis de doctorado fue presentada en una
universidad extranjera. Por su parte Bolivia
tuvo dos concursantes de licenciatura y dos de
maestría también con programas diferentes.
Costa Rica solamente envió una tesis de maestría
en Informática y tecnología educativa, en tanto
que Cuba reportó tres tesis de maestría: Una en
educación y otra en Longevidad satisfactoria.
Promoción y educación para la salud. La tercera
fue realizada en una universidad extranjera. La
única tesis de doctorado no fue posible localizarla.
De Colombia solamente se consideró una tesis de
licenciatura en la carrera de Recreación y otra
de doctorado en una universidad extranjera.
Ecuador envió una tesis de maestría cursada en
una universidad extranjera. Finalmente, de Perú
710
se recibió una tesis de maestría en Estudios de
la Cultura. En resumen, en este grupo de países
predominan concursantes de programas de
maestría muy diversos con hegemonía casi
total del género femenino, pues en Bolivia
solamente dos varones presentaron dos tesis de
este nivel educativo.
Con respecto a los concursantes latinoamericanos que se graduaron en universidades
extranjeras, se reportaron nueve tesis; cinco de
maestría y cuatro de doctorado. En ambos niveles, los programas de educación y ciencias de la
educación apenas llegan a tres y el resto se distribuye en un grupo diversificado de programas
cursados en su totalidad por mujeres.
Síntesis comparativa
En el estudio e investigación de la EPJA
realizada por los concursantes de diez países
latinoamericanos, convergen programas de
formación psicopedagógica y una variedad de
disciplinas sociales que estudian el fenómeno
educativo. Esta diversidad tiende a ser más
notoria en los programas de posgrado incluidos
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
los estudios realizados en el extranjero y son
congruentes con la naturaleza de la EPJA,
considerada una actividad que trasciende lo
estrictamente educativo, pues no se circunscribe
a los aprendizajes en los espacios escolares sino
a una diversidad de lugares, dimensiones e
identidades de los jóvenes y adultos. También
coincide con la visión ampliada de la EPJA
y marcan un distanciamiento con enfoques
novedosos como la andragogía, promovida
en los años 70 por influyentes representantes
como Roque Ludojoski en Argentina, Félix
Adam en Venezuela y por la Unesco en los años
80. Asimismo de los enfoques de Animación
sociocultural y la Pedagogía social que se
ofertan en programas universitarios en los
países europeos. Puede afirmarse que a pesar
de los avances en la investigación en EPJA,
en los programas de maestría y doctorado de
la región aún distan mucho de consolidarse,
salvo Cuba y Brasil en donde ha tenido una
influencia importante en este último país el
Grupo de Trabajo en Educación de Adultos
dentro de la ANPED (Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação).
Como ya se mencionó, Brasil y Bolivia
son los únicos países en los cuales se cursaron
tres programas de especialidad en EPJA. Esta
situación concuerda con la afirmación de Maria
Clara de Pierro (2008, p. 124) cuando señala que
“las licenciaturas y los cursos de especialización
para profesores de EPJA son poco numerosas,
lo que confirma la reducida participación de las
universidades con el asunto”.
Por lo que al género se refiere, en todos los
países concursantes, la hegemonía de las mujeres
es evidente y su inclinación por los estudios de
EPJA obedece, de acuerdo a las estadísticas
sobre la distribución de la matrícula por áreas
de conocimiento y género en la última década
de gran parte de los países latinoamericanos,
a su creciente participación en los estudios de
educación superior, particularmente en el área
educativa, de las ciencias sociales, humanidades
y de la salud (DE SIERRA; RODRÍGUEZ, 2005).
Conjeturamos que otras razones de esta
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
feminización se relacionan con la posición
marginal de los estudios e investigación de la
EPJA dentro del campo educativo, así como
su escaso prestigio entre los investigadores y
comunidades académicas que dan prioridad a
otras temáticas. Por otra parte, cabe mencionar
que son mínimos los programas que se estudian
con alusión directa a la EPJA.
Otro aspecto importante es que, al
comparar los contenidos temáticos de las
tesis que se mencionan en el siguiente punto
(particularmente los procesos de aprendizaje y
saberes de la EPJA, currículo y evaluación), el
lector observará que su estudio es mínimo en
los programas de licenciatura y posgrado de
orientación psicopedagógica (tabla 5).
Comparación entre áreas
temáticas
Una vez identificados los temas de las
170 tesis de EPJA, se estableció su coincidencia
e inserción con las áreas de intervención e
investigación del Marco de Acción de la EPJA
2000-2010, conformándose tres grupos. El
primero incluye cuatro áreas temáticas con el
mayor número de tesis (catorce a veintiuno): 1.
Programas de formación; 2. Diversidad cultural;
3. Alfabetización; 4. Género y educación. El
segundo grupo aborda cuatro temas con cinco
a siete tesis: educación y trabajo, educación
y ciudadanía, procesos de aprendizaje y
desarrollo local. El tercer grupo está integrado
por las nueve áreas restantes con un mínimo
de dos a cuatro tesis incluyendo a dos áreas sin
ninguna tesis (futuros escenarios de la EPJA y
las reformas educativas) (tabla 5).
El anterior panorama no deja de ser
desalentador porque del total de las áreas
propuestas en el Marco de Acción, la cantidad
de tesis del primer grupo, representan apenas
una cuarta parte del total, mientras que el 75%
de las temáticas es muy bajo. Un ejemplo de una
línea de acción propuesta en dicho Marco fue la
de currículo y evaluación con apenas dos y tres
tesis respectivamente. En síntesis, a excepción
711
Tabla 5- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Relación de áreas temáticas de intervención e investigación del Marco de
Acción Regional para la EPJA en América Latina y el Caribe 2000-2010 y número de tesis por programa académico
Tesis de EPJA por Programa
Académico
Áreas temáticas de intervención* e investigación** del Marco de Acción Regional
para la EPJA en América Latina y el Caribe 2000-2010
Núm.
L
E
M
D
1. Alfabetización
6
0
7
1
14
2. Educación y trabajo
2
0
3
2
7
3. Educación, ciudadanía y derechos humanos
0
0
2
3
5
4. Educación y género
4
2
5
3
14
5. Educación, desarrollo local y sostenible
0
0
5
0
5
6. Futuros escenarios de la EPJA
0
0
0
0
0
7. La demanda de la EPJA
1
0
2
1
4
8. La EPJA y las Reformas educativas.
0
0
0
0
0
9. Procesos de aprendizaje y saberes de las personas jóvenes y adultas
3
0
2
1
6
10. Enfoques y prácticas curriculares
2
0
0
0
2
11. Modalidades de evaluación y acreditación
1
0
2
0
3
12. Programas de formación y la formación de los educadores
8
0
9
4
21
13. Estrategias y programas para mejorar la calidad educativa
1
0
1
0
2
14. Indicadores de impacto de la EPJA
1
0
2
1
4
15. Diversidad cultural y lingüística y educación intercultural bilingüe.
9
0
6
5
20
16. Programas innovadores y/o alternativas de educación no formal
1
0
2
0
3
Total
39
2
48
21
110
* 1-5.
** 6-16. El mundo del trabajo y su relación con las personas jóvenes y adultas quedó incluido en el punto 5.
L= Licenciatura. E= Especialidad. M= Maestría. D= Doctorado Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.
Tabla 6- Nuevas áreas temáticas de las tesis del Concurso CREFAL (2005-2011) y su distribución por grado académico
Nuevas Áreas temáticas
1. Educación básica
2. Educación y Tecnologías de la Información y Comunicación.
3.Sistematización de prácticas educativas
4. Educación y conocimientos disciplinares
5. Políticas públicas
6. Educación con adultos mayores
7. Educación en contextos de encierro
8. Educación popular
9. EPJA con capacidades diferentes
10. Educación y movimientos sociales
11.Gestión
12. Ensayos sobre Paulo Freire
13. Educación y salud pública
Total
L
E
M
D
Núm.
4
1
0
0
0
2
4
5
0
0
0
0
0
16
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
7
6
1
1
5
5
2
0
0
0
1
1
1
30
2
2
0
0
2
0
1
1
1
2
0
1
0
12
13
9
1
1
7
7
7
6
1
2
1
2
1
58
L= Licenciatura. E= Especialidad. M= Maestría. D= Doctorado
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.
712
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
de los temas de formación de educadores y
diversidad cultural, son ínfimas las tesis que
abordaron las propuestas de investigación
del Marco de Acción, considerando que
son prioritarios y requieren conocimientos
imprescindibles para una mayor comprensión y
resolución de problemas del campo de la EPJA.
Con respecto a las nuevas áreas temáticas
que se incluyen en la tabla 5A, a excepción de
la educación básica con el mayor número de
tesis, tienden a cobrar fuerza las TIC y en menor
medida otras problemáticas y poblaciones
específicas a las que no se había prestado la
atención necesaria con seis a siete trabajos cada
uno (las políticas públicas, los adultos mayores,
las personas consideradas discapacitadas, los
migrantes y quienes se encuentran en contextos
de reclusión). El resto se distribuye en temáticas
diversas con una a dos tesis.
Comparación con los Informes
Regionales
Al comparar estos resultados con los
Informes Regionales para CONFINTEA VI
(TORRES, 2009) y el Informe Regional de CREFAL
y CEAAL (CARUSO et al., 2008), se observan al
menos cuatro coincidencias:
1. El reconocimiento de avances en la
investigación educativa pero insuficientes y con
una marcada distribución desigual (TORRES, 2009),
concentrándose en los países grandes: Brasil,
Argentina y México y Cuba en la región caribeña.
2.
La
alfabetización,
línea
de
investigación fuertemente asociada con la
EPJA, deja de tener primacía, tomando su
lugar problemáticas como la formación, el
género, la interculturalidad y la nuevas áreas
temáticas que, en su conjunto, desplazan a la
alfabetización y la educación básica e inclusive
superan a nueve temas propuestos por el Marco
de Acción (tabla 5), no obstante su menor
visibilidad, impacto y legitimidad política
(TORRES; 2009). Este desplazamiento significa
a su vez, un giro gradual pero desequilibrado
hacia los grupos y ámbitos de intervención
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
propuestos en el Marco de Acción y coincide a
su vez con las diez tesis premiadas en el periodo
analizado, pues cuatro de ellas se refieren a la
alfabetización y el resto a temáticas diversas
(CREFAL, 2011).
3. Diversas líneas temáticas de
incuestionable relevancia cuentan con muy
pocas tesis o con ninguna (evaluación, reformas
educativas, calidad, desarrollo local, salud,
programas innovadores, etc.). A este respecto,
el Informe para CONFINTEA VI coincide en
que la calidad y el aprendizaje siguen siendo
distantes (TORRES, 2009) mientras que en el
Informe Regional de Caruso, Di Pierro, Ruiz y
Camilo (2008), se plantea la hipótesis de que
varias de estas ausencias son producto de la
falta de liderazgo simbólico de la EPJA en la
actual coyuntura, lo que le impide articular
en su marco de acción las políticas y prácticas
en temas como: la educación ambiental, para
la salud o para la incorporación de las TIC. De
igual modo, y pese a los avances en evaluación
de algunos países (Brasil, El Salvador, México
y Chile), se subraya que la falta de cultura e
investigación en esta materia dificulta conocer
los impactos de los programas y proyectos de
la EPJA (TORRES, 2009; CARUSO et al., 2008).
4. El impulso dado a las buenas prácticas
educativas y la importancia de su difusión,
tampoco aparece en las tesis concursantes
al igual que los programas innovadores,
las alternativas de educación no formal y
los movimientos sociales. En este sentido,
coincidimos en que su escasa diseminación y la
aplicación de los resultados de investigación y
evaluación siguen sin influir en los diseños de
las políticas, la capacitación o en la enseñanza
(TORRES, 2009, p. 48). Llama la atención que en
Venezuela, por ejemplo, no se hayan reportado
tesis sobre el papel de la Misiones Robinson.
En resumen, este balance temático
invita a reflexionar acerca del interés por
problematizar y, en su caso, cubrir estos vacíos
para aportar no solo bases teóricas que orienten
las prácticas educativas sino para reclamar y
hacer valer la importancia de la EPJA como
713
campo educativo abierto, dinámico, incluyente
e indispensable para mejorar las condiciones de
vida económica, social, cultural y política de
toda la población desprovista de oportunidades
de aprendizaje.
Conclusiones
El examen comparativo de las tesis del
concurso permitió valorar positivamente su
importancia porque a través de él se fomenta
y conoce el estado que guarda la investigación
de la EPJA en la región latinoamericana. En
este sentido si bien hay avances, el panorama
no es optimista ya que la participación en este
certamen indica que la investigación de la EPJA
es débil, desigual y con una fuerte tendencia
a su diversidad temática. En efecto, el interés
investigativo por la alfabetización y la educación
básica fue reemplazado en los últimos años por
múltiples temáticas pero las tesis relacionadas
con las propuestas de investigación del Marco
de Acción fueron mínimas, lo que mantiene un
núcleo de problemas prioritarios que siguen sin
714
abordarse e invitan a los futuros egresados y
estudiosos del campo de la EPJA a retomarlos en
sus proyectos de intervención e investigación.
Se constata a su vez que la EPJA es abordada
predominantemente en universidades públicas,
por mujeres y en programas de licenciatura y
posgrado en educación en términos genéricos
o desde las ciencias de la educación y la
psicopedagogía. No obstante, coexisten con una
variedad de programas que la analizan con una
visión que no se reduce a lo educativo. Asimismo
son escasos los programas ofertados por las
universidades con referencia directa a la EPJA
y a la formación especializada de educadores de
adultos. Por esta razón es imprescindible una
mayor vinculación de las universidades con el
campo de la EPJA para fortalecer la formación
antes mencionada y el desarrollo de proyectos
de investigación educativa para contribuir,
entre otros aspectos, a la sistematización de
experiencias que se quedan en el olvido y a la
ineludible redefinición conceptual de la EPJA
en el marco del aprendizaje a lo largo de toda
la vida.
Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
Referencias
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DE SIERRA, Rosaura; RODRÍGUEZ, Gisela. Feminización de la matrícula de educación superior en América Latina y el Caribe.
México: IESALC/UNESCO/UDUAL, 2005.
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______. Notas sobre la trayectoria reciente de la educación de personas jóvenes y adultas en Latinoamérica y el Caribe. In:
CARUSO, Arlés, et al. Situación de la educación de personas jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe: informe
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TORRES, Rosa María. De la alfabetización al aprendizaje a lo largo de toda la vida: tendencias, temas y desafíos de la
educación de personas jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe. Hamburgo: UNESCO, Institute for Lifelong Learning,
2009. Disponible en: <unesdoc.unesco.org/images/0018/001829/182951s.pdf>. Acceso en: 21 mar. 2013. Síntesis del Reporte
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Educación, Septiembre 2003. Disponible en: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001389/138996s.pdf>. Acceso en: 7
jun. 2013.
Recebido en: 08.06.2013
Aprobado en:11.09.2013
Jaime Rogelio Calderón López-Velarde cursó la Maestría en Pedagogía en la Universidad Pedagógica Nacional (UPN) y el
Doctorado en Ciencias de la Educación en la Universidad de Sevilla. Actualmente se desempeña como coordinador del Programa
de Investigación y Posgrado en la Unidad Zacatecas de la UPN.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
715
O sucesso escolar de meninas de camadas populares:
qual o papel da socialização familiar?I
Marília Pinto de CarvalhoII
Adriano Souza SenkevicsII
Tatiana Avila LogesII
Resumo
Este artigo apresenta resultados de um estudo qualitativo que
procurou conhecer os processos de socialização de gênero no
interior de oito famílias de setores populares na cidade de São Paulo.
Aqui enfocamos alguns dos aspectos que nos pareceram relevantes
na compreensão da trajetória escolar melhor sucedida das meninas.
Ao longo de 2011, foram feitas entrevistas semiestruradas com oito
mães, dois pais e dez crianças, além de conversas e observações
nas escolas, envolvendo ao todo 26 crianças e jovens. Obtivemos
indicações de que: a socialização de gênero no âmbito das famílias
de setores populares urbanos favorece nas meninas, e não nos
meninos, o desenvolvimento de comportamentos frequentemente
desejados pelas escolas, tais como a disciplina, a organização
e a obediência (ou formas de desobediência menos visíveis); ao
mesmo tempo, essa socialização faz com que a frequência à escola
tenha significados diferentes para garotas e garotos, uma vez que
elas são responsabilizadas pelo trabalho doméstico e têm muito
menos oportunidades de sociabilidade. Essas mesmas restrições
parecem fazê-las valorizar atividades extracurriculares com
formatos próximos ao escolar e desenvolver aspirações ligadas
a uma escolarização prolongada e a profissões qualificadas. A
existência mesma desses planos ambiciosos, realistas ou não, pode
ser impulsionadora de maior empenho nos estudos, realimentando
a roda do sucesso escolar das meninas, que parece surgir de dentro
da própria subordinação de gênero.
Palavras-chave
Desempenho escolar — Gênero — Socialização familiar — Setores
populares urbanos — Meninas.
I- Pesquisa financiada pelo CNPq
II- Universidade de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil.
Contatos: [email protected];
[email protected];
[email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091637
717
School success of girls from poor communities: what is
the role of family socialization? I
Marília Pinto de CarvalhoII
Adriano Souza SenkevicsII
Tatiana Avila LogesII
Abstract
This article presents results of a qualitative study that sought
to understand the processes of gender socialization within eight
families from poor communities in the city of Sao Paulo. We focus
on some aspects that seem relevant to understand the academic
success of girls. Throughout 2011, semi-structured interviews
were conducted with eight mothers, two fathers and ten children,
as well as conversations and observations in schools, involving
26 children and young people. We obtained evidence that
gender socialization within families of urban poor communities
encourage the girls, not the boys, to develop the behaviors mostly
desired by schools, such as discipline, organization and obedience
(or less visible forms of disruption). At the same time, this type of
socialization makes school attendance have different meanings for
girls and boys, since the girls are held responsible for housework
and have far fewer opportunities for sociability. These restrictions
seem to make them appreciate extracurricular activities under
schooled forms and develop aspirations associated with schooling
and skilled occupations. The very existence of such ambitious
projects, whether realistic or not, may be driving girls’ greater
commitment to education, and may be feeding back their academic
success, which seems to arise from the very gender subordination.
Keywords
School achievement — Gender — Family socialization — Poor
urban communities — Girls.
I- Research funded by CNPq
II- Universidade de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil.
Contacts: [email protected];
[email protected];
[email protected]
718
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091637
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
Já não é novidade constatar o sucesso
escolar das meninas no Brasil. Apontado por
Rosemberg desde a década de 1970, o melhor desempenho das mulheres em sua trajetória de escolarização vem sendo objeto de estudos quantitativos e qualitativos (ROSEMBERG; MADSEN,
2011; FERRARO, 2010; CARVALHO, 2009).
Entretanto, a explicação desse fenômeno
comum à maioria dos países ocidentais
apresenta desafios teóricos, seja por significar
uma inversão na assimetria entre homens e
mulheres presente no conjunto da sociedade, seja
por induzir muito facilmente a generalizações
de caráter essencialista (ROSEMBERG, 2001).
São comuns explicações universais como,
por exemplo, a hipótese de que a socialização
familiar das meninas seria mais compatível com
as exigências das escolas – ligadas à disciplina,
organização, capricho, submissão e silêncio –,
enquanto os meninos seriam socializados para
evitar a introspecção e a sensibilidade e para
cultivar a rebeldia e a agitação.
Pesquisas brasileiras sobre o ensino
fundamental público, desenvolvidas em
diferentes regiões do país, reiteram esse tipo
de explicação (SOUZA, 2007; PALOMINO,
2004; CARVALHO, 2005; CAVALCANTI, 2002)
e insistem na ideia de que os comportamentos
valorizados pela escola seriam aqueles cultivados
pelas famílias nas meninas e não nos meninos.
Em outra vertente, estudos a respeito das relações
que as famílias mantêm com a escolarização dos
filhos assinalam a interdependência entre as
condições sociais de origem e as formas dessas
relações (NOGUEIRA; ROMANELLI; ZAGO, 2000
e 2013; ALMEIDA, 2009; BRANDÃO, 2010).
Com apoio frequente nos estudos de Bourdieu
e seus leitores, essas pesquisas, embora atentas
a diversos aspectos das ações das famílias e dos
sujeitos frente a seus processos de escolarização,
raramente se perguntaram a respeito das
diferenças entre os sexos1.
Este artigo é resultado de pesquisa que
procurou avançar nessa lacuna, conhecendo,
1 - Uma exceção é o doutorado de Glória (2009).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
por meio de estudo qualitativo, os processos
de socialização de gênero no interior de oito
famílias de setores populares na cidade de São
Paulo. Aqui enfocamos alguns dos aspectos que
nos pareceram relevantes na compreensão da
trajetória escolar das meninas. A fim de evitar
conclusões universais, o estudo focou famílias
de setores populares urbanos, levando em conta
que, em camadas sociais diferentes ou no meio
rural, é possível que o melhor desempenho escolar
feminino seja resultado de outros processos.
Ao lado desse esforço para evitar
essencialismos, buscamos também escapar
de certa polarização que tem permeado os
estudos nesse campo. De um lado, a explicação
mencionada acima está baseada no que pode ser
chamado de “síndrome da situação subordinada
da mulher” (SILVA, 1993, p. 82), análises que
colocam o sucesso escolar das meninas como
simples reforço de sua subordinação. Na
tentativa de romper com essa vitimização,
algumas estudiosas trazem para primeiro plano
a atuação deliberada de meninas e moças
em busca de seu sucesso escolar, que seria
construído por elas. Silva (1993), por exemplo,
inverte a afirmação, mostrando que a maioria
das alunas do ensino médio no Colégio Pedro
II, por ela estudadas, eram autônomas, ativas e
envolvidas com atividades extracurriculares, de
forma contrastante com seus colegas do sexo
masculino, o que resultava para elas em melhor
desempenho escolar.
Outras pesquisadoras destacam aspectos
contraditórios da inserção feminina no
trabalho doméstico, que não apenas facilitaria
a continuidade dos estudos, em termos de
horários e flexibilidade, como também levaria
as moças, por contraste, a uma percepção
positiva e agradável da escola. Tanto Madeira
(1997) quanto Rosemberg, Piza e Montenegro
(1990) enfatizaram a ideia de que a escola
aparece para muitas meninas e moças como
expressão de alguma liberdade de circulação
e como lugar de ampliação do convívio
social frente à quase reclusão em que vivem
– reforçada pelo controle familiar sobre sua
719
circulação e lazer. As meninas veriam na
escola um “respiradouro”, nas palavras de
Madeira (1997), lugar em que disporiam de um
tempo para si mesmas, fora do controle estrito
da família e longe das tarefas do lar. DuqueArrazola (1997) encontrou até mesmo meninas
recifenses que consideravam a jornada escolar
como momento de descanso.
Procuramos romper com abordagens
dicotômicas e apreender as dimensões
contraditórias das relações de poder ligadas ao
gênero, que constituem ao mesmo tempo formas
de subordinação e de autonomia. E, para não
reiterar pressupostos afirmados de antemão,
buscamos apreender na análise tanto dimensões
de ruptura quanto de manutenção das posições
subordinadas das mulheres.
Caracterização dos sujeitos
Os sujeitos centrais da pesquisa são pais e
mães localizados a partir de três escolas públicas
da zona oeste do município de São Paulo, nas
quais seus filhos ou filhas estudavam. Em cada
escola, um questionário de caracterização do
grupo familiar dos/as alunos/as foi respondido
pelos “responsáveis” e, a partir dele, foram
selecionadas famílias que tinham pelo menos
um filho de cada sexo em idade escolar e que se
dispuseram a participar da pesquisa.
A primeira questão a esclarecer, que já
se revela nas aspas sobre o termo responsáveis
é quem consideramos como família da criança.
Dada a dificuldade em definir o conceito
de família – já apontada, por exemplo, por
Romanelli (2013) –, mantivemos nosso foco
na dimensão empírica dos grupos familiares,
acompanhando estudos críticos, como os de
Fonseca (2005) e de Meyer e colaboradoras
(2012). Assim, buscamos evitar os pressupostos
de uma família nuclear completa, composta
por pai, mãe e filhos, residentes num único
domicílio e compartilhando a mesma renda;
ao mesmo tempo, atentamos para as diferentes
dinâmicas dos grupos familiares, conforme
ampliávamos nossos contatos com eles.
720
Nos questionários das oito famílias
pesquisadas, aparecem tanto o nome da mãe
quanto o do pai e não foi utilizado o espaço
destinado a “outros responsáveis”, o que pode
indicar uma busca de conformidade ao modelo
de família nuclear completa, por se tratar de
um documento escrito enviado pela escola.
Contudo, ao realizar as visitas e entrevistas,
identificamos a presença de duas avós como
cuidadoras regulares das crianças e duas
famílias monoparentais. Numa delas, residia
no domicílio uma bebê, filha de uma das
irmãs, então com quinze anos de idade. Mas
a coabitação de três gerações familiares por
vezes não era evidente, pois se tratava de casas
conjugadas ou superpostas no mesmo quintal.
Dessa forma, consideramos como família
ou grupo familiar o conjunto de pessoas que
cuidava ou partilhava dos mesmos cuidados
das crianças a partir de quem demos início à
pesquisa, independentemente dessas pessoas
residirem no mesmo domicílio e de seu grau
de parentesco. Ainda assim, quase sempre
nossas entrevistas envolveram somente mães,
que compareciam à reunião na escola ou
se dispunham a ser entrevistadas. Em duas
famílias, foram entrevistados também os pais2
e, em uma, participou a avó.
Do ponto de vista socioeconômico,
podemos dizer que havia grande homogeneidade
entre as oito famílias estudadas: declararam
renda mensal entre R$ 950,00 e R$ 2.500,00;
a escolaridade dos casais era no máximo o
ensino médio incompleto, predominando o
fundamental completo ou não; as profissões
eram de baixa qualificação, com a maioria
das mulheres ocupadas como empregadas
domésticas e dos homens como trabalhadores
da construção civil; e a maior parte das
pessoas que trabalhavam fora estava inserida
no mercado informal. Em seis famílias, a
prole se compunha de três ou mais filhos/as
e sete moradias eram muito parecidas: casas
pequenas, de alvenaria, construídas pelos
2- O termo pais designará sempre os genitores de sexo masculino.
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
próprios moradores em favelas. Contavam com
luz elétrica, água encanada e banheiro, mas
os serviços de esgoto e de coleta de lixo eram
precários ou inexistentes e eram frequentes os
relatos de violência policial. Contudo, essas
residências tinham móveis novos, televisão HD
de tela grande, computadores e video games,
eletrodomésticos novos e telefones celulares.
Quatro dos grupos familiares tinham carro e
quase todos vivenciaram, nos anos recentes, um
aumento de sua capacidade de consumo, com
acesso a crédito e bens duráveis.
Ao longo de 2011, foram gravadas
entrevistas semiestruradas com oito mães, dois
pais e dez crianças, em seis3 residências. Em
cinco das visitas, filhos e filhas participaram em
diferentes momentos da conversa, tanto ao lado
quanto separadamente dos adultos. Buscamos
nas escolas informações sobre o desempenho
das crianças, seja em documentos seja em
conversas com educadoras, e ali também
realizamos observações e conversas informais
com tais crianças.
Assim, foram envolvidos na pesquisa
14 meninos e 12 meninas, entre 6 e 18 anos
de idade4. Desse total de 26 crianças e jovens,
estavam fora da escola apenas: Jeferson5, de 18
anos, que abandonara o 1o. ano do ensino médio
no ano anterior à pesquisa, contra a vontade de
sua mãe; e Silvana, de 15 anos, que, já grávida,
concluíra o ensino fundamental “empurrada”,
de acordo com a coordenadora da escola, e,
no momento da entrevista, dedicava-se ao
cuidado da filha. Todos estudavam em escolas
públicas de ensino fundamental ou médio. A
respeito de 19 deles, obtivemos informações de
seu desempenho acadêmico junto à escola; nos
demais casos, recorremos às famílias.
Dentre as 12 meninas, oito eram boas
alunas, oscilando entre “excelentes” e “medianas”, e quatro “apresentavam dificuldades” de
aprendizagem, nunca de disciplina. Já entre os
3- Duas famílias foram entrevistadas nas escolas.
4- Também faziam parte das famílias dois bebês com menos de 2 anos
e duas crianças com 4 anos.
5- Todos os nomes são fictícios.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
14 alunos de sexo masculino, apenas cinco foram caracterizados como “medianos” ou “sem
problemas”, nenhum como excelente e nove
outros “apresentavam dificuldades” de aprendizagem e/ou disciplina, histórico de reprovações e repetidas convocações dos responsáveis
à escola. Embora construído aleatoriamente,
trata-se, portanto, de um grupo que corresponde às características de desempenho escolar que temos encontrado em nossos estudos
(CARVALHO, 2009), assim como em diversas
outras pesquisas no Brasil e em outros países.
Sobre regras, controles e medos
O tratamento igualitário entre os
sexos no interior do casal e na educação de
filhos e filhas é um dos ideais associados aos
modelos contemporâneos de família, ao lado
da valorização da infância, da afetividade e
intimidade, assim como a presença de relações
não hierárquicas entre os grupos de idade e
o primado do indivíduo sobre o coletivo (DE
SINGLY, 1996). Em estudo realizado junto
a crianças moradoras em favelas do Rio de
Janeiro, no início da década de 1990, Heilborn
(1997) destaca que, se esse modelo é “capital na
sociedade contemporânea, está longe, contudo,
de ser um fato universalizado”, uma vez que
o processo de difusão do individualismo
“tomou como alvo, primeiramente, as camadas
médias e altas da sociedade moderna” (p. 297).
Assim, a autora encontrou lógicas distintas
de organização das relações e das práticas
sociais nas famílias que estudou, apontando,
em consonância com outros estudos sobre a
cultura dos trabalhadores urbanos no Brasil dos
anos 1980-90, a prevalência do grupo sobre o
indivíduo, a presença de relações hierárquicas
entre os sexos e as categorias de idade, além da
força de valores ligados à família e ao trabalho.
Se, por um lado, não devemos nos iludir
que houvesse, tanto quanto nos anos 1990
como hoje, relações igualitárias e não violentas
no interior das famílias de camadas médias e
altas, as duas décadas que separam a pesquisa
721
empírica de Heilborn da nossa parecem ter
contribuído para uma maior difusão nas
camadas populares dos ideais igualitários, do
modelo de família como suporte à realização
individual e do respeito às particularidades de
cada criança. A comparação, feita por uma de
nossas entrevistadas, entre a criação de seus
próprios filhos em São Paulo e a educação
recebida por ela (e ainda hoje por seus
sobrinhos) numa pequena cidade baiana, não
deixa dúvidas sobre mudanças na hierarquia
entre categorias de idade e sobre sua dimensão
não apenas temporal, mas também espacial
(rural/urbana):
Quando minha mãe esteve aqui, ficou
horrorizada. Nossa criação lá no norte
era outra; dos meus sobrinhos ainda é. Lá
as crianças rezam pra dormir, rezam pra
comer, pede benção pro pai e pra mãe.
Aqui as crianças já respondem pro pai, pra
mãe. Lá as crianças vão na missa. Aqui
não, as crianças tão gritando, fazendo
bagunça. Lá, se tem adultos conversando
assim, elas nem passam perto que é pra
não atrapalhar. (Marinete, 32 anos, quatro
filhas e três filhos)
Esse novo ideário parece também
deslegitimar a afirmação explícita de diferenças
de tratamento conforme o sexo e valorizar
uma educação personalizada, ajustada às
necessidades de cada criança. Assim, ouvimos
em todas as entrevistas uma fala inicial que
afirmava a igualdade de regras e exigências
para toda a fratria: “O que serve pra um tem
que servir pra todos” (Edinalva, uma filha e
três filhos); “em casa, as regras são iguais pros
dois” (Aldilene, um filho e uma filha); “na
minha casa, é assim: eu só sei que o Daniel
veste cueca e as meninas vestem calcinha,
mas, no resto, a regra aqui em casa é para todo
mundo” (Keila, um filho e três filhas). Essa
ideia proclamada de igualdade, contudo, era
desmentida seja na sequência das entrevistas,
seja nas falas das crianças.
722
Por exemplo, Lívia, ouvindo a mãe
(Aldilene) afirmar que as regras em casa eram
iguais, disse baixinho, para a pesquisadora
auxiliar, que não a deixavam ficar no
computador até tarde, mas a mesma restrição
não era feita ao irmão, que, segundo ela, ficava
no computador até de madrugada. Já Keila,
mãe citada acima, logo após afirmar que só via
diferença entre filho e filhas nas roupas íntimas,
disse: “acho que as meninas dão mais trabalho”.
Assim como Keila, quase todos os
pais e mães disseram se preocupar mais
com as meninas, consideradas mais frágeis,
vulneráveis: “Eu acho assim que menino
homem é mais... nada pega, né, em menino
homem. Já em menina mulher é mais... tem que
ter um pouco de cuidado” (Marinete, quatro
filhas e três filhos).
Era evidente a preocupação dessas mães
com a gravidez na adolescência, vivida por seis
delas, quando tinham entre 14 e 17 anos de
idade. Mas também apareceram preocupações
com os meninos, tanto diante da possibilidade
de “arrumar criança” quanto em razão do perigo
de envolvimento com drogas e violência: “eu
tenho medo e eu me preocupo mais, do jeito
que estão as coisas hoje em dia. Eu dou mais
em cima dele porque ele é menino e eu me
preocupo mais com ele” (Alice, um filho e duas
filhas). De toda forma, as meninas eram muito
mais vigiadas e tinham horários e espaços de
circulação mais restritos que seus irmãos.
De maneira muito semelhante, Barroso,
entrevistando jovens portugueses que tinham
pelo menos um irmão do sexo oposto, constatou
que “está-se perante uma igualdade proclamada,
mas desmentida pelos factos” (2008, p. 8). Os
relatos obtidos pela autora permitiram-lhe
afirmar que o sexo e a ordem de nascimento
continuam a ser “os principais critérios de
construção e desconstrução da igualdade
de direitos e deveres entre irmãos/irmãs” e
que, “nos casos em que essa desigualdade de
tratamento não é assumida, apresenta-se de
forma implícita” (2008, p. 8).
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
Não podemos desprezar o contexto
da entrevista, como relação assimétrica, e o
fato de que sujeitos que não necessariamente
acreditavam numa educação igualitária entre os
sexos facilmente deduziriam ser essa a posição
dos(as) entrevistadores(as), em razão do próprio
tema da pesquisa, que lhes foi explicitado.
Assim, Evonete, por exemplo, mãe de dois
meninos e uma menina, empregada doméstica,
que concluíra o ensino médio na modalidade
EJA há cerca de dois anos, evitou ao máximo
fazer generalizações sobre homens e mulheres e
tentou contornar a ideia de que as regras para
filha e filhos eram diferentes. Mas, em entrevista
feita separadamente, seu filho Luciano (9 anos)
afirmou que a irmã de 7 anos não podia brincar
de carrinhos porque sua mãe não deixava – “É,
carrinho é pra menino” –, da mesma forma que
ele não podia brincar de boneca.
Talvez com menor preocupação em
demonstrar um discurso adequado para os(as)
pesquisadores(as), Marta (avó de três meninas e
um menino), declarou:
Homem pode tudo [...]. Eu acho que todas
as meninas são mais cobradas, pelo que
a gente vê, no geral [...]. Então, a minha
opinião é essa aí: que a mulher é mais
cobrada em tudo, e tem que fazer, tem que
estudar, tem que trabalhar dentro de casa –
e o menino não. O Daniel é o dia inteiro no
computador.
A maioria dos pais e mães buscava explicar
as diferenças no tratamento que davam a meninos
e meninas a partir de características individuais
de cada criança, recorrendo aos ideais de uma
educação personalizada: “Porque são quatro e
nenhum dos quatro tem a mesma cabeça, nenhum
dos quatro pensa igual. Como todo ser humano”
(Edimara, uma filha e três filhos). Chamou nossa
atenção a frequência dessas falas, assim como de
descrições das características ou história de cada
filho(a) – doenças, período vivido longe da mãe,
influência da avó etc. –, que indicam a difusão
desse modelo de educação individualizada.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
Cabe destacar, contudo, que essas
características personalizadas eram invocadas
para justificar desigualdades de gênero nas
regras e tarefas atribuídas, com maior peso
sobre as meninas. Ora elas precisavam ser
mais controladas por serem mais jovens, ora
por serem mais velhas; por serem delicadas
ou desobedientes e atrevidas; ora lhes cabia
maior fatia do trabalho doméstico por serem
primogênitas, ora por serem prestativas, ou
porque seus irmãos eram desajeitados; uma
era descrita como frágil, outra como “songamonga”6, uma terceira como pretensiosa, e
todas essas características justificavam maior
controle ou preocupação.
Em síntese, os modelos educativos que
encontramos dialogavam em diferentes graus
com as prescrições de infância, igualitarismo e
individualidade, presentes nos ideais de família
contemporâneos, mas não rompiam com a
desigualdade de gênero: por meio de uma
vigilância mais estrita dos pais e mães, as filhas
pareciam aprender desde muito cedo certas
características que as professoras reconhecem
como femininas e frequentemente valorizam,
tais como a organização, a obediência, o
silêncio e a calma. Provavelmente faziam parte
desse aprendizado até mesmo as formas de
romper com as regras de maneiras discretas e
que significavam menor enfrentamento direto,
já descritas, por exemplo, por Bernardes (1989).
Essas características apareciam para pais e
mães como espontâneas, naturais e derivadas
do simples fato das filhas serem meninas.
A divisão de trabalho entre
pai e mãe
Em nossa sociedade, pais e mães
envolvem-se no cuidado com a prole e nas tarefas
domésticas de forma muito desequilibrada em
termos do tempo empregado e do tipo de tarefa
desenvolvida, questão já explorada na literatura
(PINHEIRO et al., 2008; BRUSCHINI, 2006).
6 - Boba, sonsa.
723
Mesmo quando trabalhavam fora, as mães
continuavam como as principais responsáveis
pelos afazeres domésticos. Quando declaravam
dividir esse trabalho, as tarefas feitas pelos pais
eram consideradas como ajuda: “O serviço é meu
e ele me ajuda” (Evonete, família 6). Quando
presentes nas entrevistas, os pais por vezes
comentavam orgulhosos sobre tarefas que tinham
cumprido recentemente, o que só ressaltava seu
caráter excepcional: “A gente divide. [...] Eu lavo
louça... arrumo a casa. Ontem mesmo, eu limpei
tudo, lavei o banheiro” (Wilson).
Bruschini e Ricoldi (2012) encontraram,
em pesquisa qualitativa com grupos de homens
dos setores populares, uma maior participação
deles no cuidado com os filhos e na limpeza
da casa, seja em relação a estudos anteriores
seja frente à percepção inicial deles próprios de
que esses seriam assuntos pertinentes apenas
às mulheres. Assim, embora as companheiras
gastassem mais horas do que eles nessas tarefas,
ao detalharem sua rotina, os homens revelaram
ter alguma participação. O mesmo ocorreu nas
famílias ouvidas por nós, com a maioria dos
pais que coabitavam com as crianças sendo
descritos por si mesmos ou pela parceira como
participativos e presentes em pelo menos
algumas das tarefas de cuidado.
Em geral, os pais eram responsáveis pelo
transporte das crianças para a escola quando
a família tinha carro, e alguns frequentavam
as reuniões escolares, principalmente quando
tinham escolaridade maior que a mãe ou horários
de trabalho mais flexíveis. Mas as mães eram as
principais responsáveis pelo acompanhamento
das lições de casa e pela educação das
crianças, o que teve consequências na pouca
disponibilidade dos pais para participar das
entrevistas da pesquisa.
Estes eram também territórios de
negociação no âmbito do casal, como destacou
Romanelli (2013) ao apontar a quase onipresença
das mães como interlocutoras nos estudos
sobre as relações entre família e escola: “essa
questão remete à assimetria e desigualdade nas
relações de gênero e não pode ser aceita como
724
natural na vida doméstica” (p. 53). O autor põe
em relevo as relações de poder entre homens
e mulheres, ao lado das tentativas das mães
de controlar o espaço doméstico e a educação
dos filhos e filhas. Isso se tornou evidente para
nós, por exemplo, quando tentamos ter acesso à
residência de Regina e André para lá entrevistar
seus filhos. Ao ouvir esse pedido, ele nos
respondeu: “Aí tem que marcar com a mulher.
Porque aí quem manda é a mulher”.
Assim, embora tentássemos incluir os
pais, apenas dois foram entrevistados, o que nos
levou a prestar atenção a possíveis vieses nas
falas das mães, que poderiam estar marcadas
por seu esforço em manter o poder sobre essa
esfera da vida. Brugeilles e Sebille (2009),
analisando os resultados de questionários sobre
a participação de pais no cuidado e educação
de filhos/as na França, encontraram diferenças
significativas conforme a resposta fosse dada
por pais ou por mães. “Cada um valorizava
seu próprio papel” (p. 21), dizem os autores,
que interpretam essas diferenças como fruto
das relações de poder, mas também como
resultado de formas diferentes de definir cada
tarefa e como consequência da legitimidade
dos discursos de divisão igualitária do trabalho
entre os sexos. Algumas de nossas entrevistadas,
ao contrário, provavelmente em razão desses
mesmos valores igualitários, tenderam a
supervalorizar a atuação de seus parceiros: “Na
realidade, quem não faz muita coisa aqui sou
eu” (Keila). Ou, quando entrevistadas por duas
mulheres, buscavam nossa cumplicidade: “O
André colabora. [risos] Vocês sabem como é,
homem ajuda, né?” (Regina).
De toda forma, parece-nos fundamental
destacar que se trata de relações de poder
com supremacia masculina (e aqui não nos
deteremos, por exemplo, nos casos de pais
alcoolistas e de violência doméstica), relações
que são fonte cotidiana de aprendizado para
filhos e filhas a respeito de seu lugar de
gênero. Sem dúvida, o exemplo das atividades
parentais é uma fonte decisiva na socialização
de gênero das crianças, mais ainda que a
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
educação explícita (BRUGEILLES; SEBILLE,
2009; OCTOBRE, 2010). Isto é, se meninas e
meninos aprendem cotidianamente a respeito
de hierarquias e também sobre passividade,
obediência e autocontrole ou, ao contrário,
poder, ação e rebeldia, têm grande peso nesse
aprendizado as relações de poder entre seus pais
e mães, assim como a divisão de trabalho entre
eles. Também fazem parte desse aprendizado
implícito rupturas, questionamentos, formas
de contornar essas hierarquias e de obter poder
nos interstícios da dominação.
Meninas e meninos frente ao
trabalho doméstico
Todas as meninas participavam mais
intensamente que seus irmãos das tarefas
domésticas, mesmo quando a colaboração das
crianças era secundária: Lívia (10 anos) contou
que o irmão de 17 anos bagunçava o quarto
que dividiam. Aldilene, sua mãe, pedia para
ele arrumar, “mas, se ele não faz, eu mesmo
arrumo”. Já na família de André (pai, um filho e
uma filha), ele estabelecia uma clara diferença
de atribuições, indo contra as ideias de sua
parceira Regina:
A mãe tenta forçar eles, “tem que fazer isso,
tem que fazer aquilo”. Eu já sou contra. Ela
fala que eu sou meio machista, eu falo: “ó,
trabalho de casa, quem faz é a mulher, a
mulher!” Não digo algumas coisas que o
homem faz, mas querer obrigar, já querer
ensinar a fazer arroz, fazer comida, não.
Ensina ela, ensina a menina, porque,
quando ela crescer, ela vai cozinhar [...].
Mas o menino, não. Eu não obrigo ele a
fazer. Não precisa ele fazer isso. (André)
Em outras cinco famílias, as meninas
tinham papel fundamental e até mesmo
exclusivo na execução dos trabalhos da casa
e no cuidado com os irmãos e irmãs menores.
Emily, de 10 anos, sendo a filha primogênita de
Wilson e Edimara, numa fratria com mais três
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
meninos, assumira desde cedo o cuidado com eles
enquanto a mãe trabalhava fora. A desenvoltura
da garota durante a entrevista, feita em sua casa,
seja no cuidado com o irmão caçula, de 1 ano e
7 meses, seja no preparo de café para nos servir,
só comprovou isso. Ela nos declarou que mesmo
o irmão de 8 anos praticamente não a ajudava
em nada: “Ele é preguiçoso”.
Nas casas das mães Alice, Keila e
Marinete, as meninas eram as principais
responsáveis pelo serviço doméstico, que não
era partilhado pelos irmãos:
Eu falo: “Filhas, passem as roupas, porque
a mamãe tem bastante roupa, passa um
pouco que, quando eu chegar, eu passo
o outro”. E elas passam, elas arrumam a
casa, a Francimary [11 anos] você tem que
ver, ela arruma a casa igual gente grande,
limpa. [...] (Alice, um filho e duas filhas).
Fazem tudo. Eu chego e a casa está toda
arrumada, a comida feita, e a menor [Leila,
4 anos] tomada banho e trocada. [Quem
cozinha?] A Luciane [11 anos], e a Valentine
[14 anos] cuida da casa. Lava roupa, passar
não passa, mas ela lava roupa e cuida da
casa toda. [...] O Daniel [16 anos] não faz
nada, ele não lava um copo, mas também eu
não deixo ele fazer nada, porque, se ele for
fazer ele vai quebrar todas as coisas. (Keila,
um filho e três filhas).
É, como eu tô trabalhando, quando eu
chego na minha casa, tem janta pronta,
o almoço tá pronto, a roupa toda lavada,
a roupa tá passada. [Quem é que faz?] A
Silvana [15 anos] e a Alaíde [18]. A Sirlene
[14] não ajuda nada.7 [...] Os meninos
também não. Eles falam assim que quem
faz serviço de casa é mulher. (Marinete,
três filhas e quatro filhos).
7 - Sirlene foi qualificada pela mãe e irmãs como “songa-monga”. Ela tinha
sérios problemas de atraso na aprendizagem escolar (frequentava o 4º ano do
fundamental e não estava alfabetizada), além de dificuldades na fala.
725
Silvana e Alaíde contaram que, às
vezes, os meninos (todos com menos de 13
anos) falavam para elas “a gente manda e
vocês obedecem”, ao que elas responderiam:
“nós não somos empregadas para fazer o que
vocês mandam”. Esse diálogo nos pareceu
particularmente revelador das relações de poder
envolvidas na divisão do trabalho doméstico
e das contestações das meninas ao lugar de
subordinação que lhes é reservado.
Já na família de Edinalva (três filhos e
uma filha), um dos meninos, Vicente, de 13
anos, dividia com equidade as tarefas com
sua irmã Giovana, de 12 anos, com certa
participação do irmão mais novo. Apenas o
primogênito não participava, conforme as
palavras da mãe, confirmadas por Giovana e
Vicente em conversas posteriores:
O mais velho diz: “Eu trabalho fora, não
posso!” Aí eu digo: “Eu trabalho fora,
cozinho pra vocês e lavo roupa!” Mas, ele
não gosta muito não. Mas o Vicente não
reclama sobre isso, se eu chamar ele me
ajuda. (Edinalva).
Apesar dessa exceção representada por
Vicente, mais uma vez as palavras diretas
de Marta, avó de um menino e três meninas,
sintetizam bem o quadro geral:
O que eu vejo é que nós, mães, colocamos
mais coisas para as meninas fazerem
do que para os meninos, tipo coisas
assim de dentro de casa. Eu não sei em
outros lugares, mas aqui as meninas são
verdadeiras donas de casa, elas são, mas
o Daniel já fica mais... [gesto de liberdade]
porque é homem.
Dados quantitativos confirmam a
ampla desigualdade na divisão do trabalho
doméstico: de acordo com a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios – PNAD 2006, 56%
dos meninos e 78% das meninas entre 10 e 14
anos realizavam tarefas domésticas, sendo que,
726
nesse grupo, 32% das moças e somente 8% dos
rapazes gastavam mais de 11 horas semanais
nesta atividade (ARTES, 2009, p, 104). Contudo,
é interessante destacar em muitas das falas de
nossas entrevistas a presença de críticas a essa
divisão desigual das tarefas, que não aparece
naturalizada e inquestionável como encontrou
Heilborn (1997) nas famílias que estudou nos
anos 1990. Diante das críticas de Marta, das
respostas de Alaíde e Silvana aos irmãos, das
acusações de machismo feitas por Regina a
seu cônjuge, da participação ativa de Vicente
nas tarefas, entre outras falas e situações, já
não seria possível sintetizar o que ouvimos
nos termos feitos por aquela autora, cujas
entrevistadas não questionavam “o porquê de
as mulheres realizarem a totalidade do serviço
doméstico” (HEILBORN, 1997, p. 324).
Que consequências a responsabilização
pelo trabalho doméstico tem sobre o desempenho
escolar das meninas de setores populares
urbanos? O estudo já citado de Artes (2009)
concluiu que as tarefas domésticas parecem ter
algum efeito negativo sobre a escolarização das
meninas somente quando ocupam mais de 11
horas por semana, certamente por tomar-lhes
tempo e esforços. Mas nos parece que também os
significados atribuídos aos afazeres domésticos,
assim como o fato deles serem desenvolvidos
de forma isolada no interior dos domicílios são
muito relevantes na compreensão da postura
das meninas frente à escola. Já foi enfatizado
por outras autoras (ROSEMBERG et al., 1990;
HEILBORN, 1997; MADEIRA, 1997; DUQUEARRAZOLA, 1997) que as meninas de setores
populares ficam praticamente confinadas em
casa, seja pelo trabalho doméstico, seja por
uma educação em que a família restringe sua
circulação. Esse contexto levaria as meninas
a perceberem mais positivamente a escola,
como um espaço de sociabilidade, liberdade,
realização pessoal e até mesmo de lazer.
A fala de Keila (mãe, um filho e três
filhas) sobre as responsabilidades e castigos
que atribuía às filhas é muito esclarecedora
desses significados:
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
De vez em quando, elas faltam [à escola]
por coisa de casa mesmo, porque elas não
fazem as coisas em casa. Aí eu chego e
faço elas fazerem, e elas não vão para a
escola nesse dia [...]. Porque elas ficam o
dia inteiro com a cara para o ar, e eu lá
trabalhando. E, quando dá a hora de ir
para a escola, elas largam a casa sem fazer
nada, e vai para a escola com as amigas.
Aí não dá. (Keila, grifo nosso).
Cabe destacar que o filho mais velho de
Keila, Daniel, de 16 anos, não participava de
qualquer tarefa doméstica nem trabalhava fora,
mas faltava frequentemente à escola, quase
sendo reprovado por faltas no ano anterior à
pesquisa. A mãe declarara que o “obrigava a ir
para a escola”. Se para as meninas era um castigo
faltar à aula, aonde iriam “com as amigas”,
para o menino o castigo era inverso, situação
que possivelmente condicionava e ao mesmo
tempo refletia posturas diferentes do menino
e das meninas no cotidiano das salas de aula.
Quantas outras crianças estarão aprendendo
os mesmos significados e prioridades, a escola
como prêmio ou castigo?
O lazer ou a falta dele
Nos fins de semana, o tempo livre era em
geral ocupado por atividades em família, envolvendo tanto meninos quanto meninas, sem
diferenciação. Apenas os(as) mais velhos(as)principalmente os rapazes – por vezes saíam sozinhos ou não aceitavam ir a alguma atividade.
Na verdade, as famílias saíam pouco e em geral
iam à casa de parentes, a parques públicos ou
igrejas: “de final de semana, a gente fica em casa
mesmo” (Alice); “Nós vamos para a igreja porque
é a nossa ‘night’. É verdade, lá nós fazemos tudo
o que nós queremos fazer – canto, churrasco,
passeios – mas nos conformes” (Keila). Algumas
vezes, percebíamos que pais e mães sentiam-se na obrigação de relatar atividades de lazer
e rememoravam uma saída que na verdade era
excepcional, como no caso de Wilson, que havia
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
adquirido recentemente um carro e comentou:
“muitas vezes a gente sai. Faz o quê... faz duas
semanas, a gente foi pra praia”.
De fato, o tempo das mães e das
meninas só se tornava livre, até mesmo nos
fins de semana, depois de concluídas as
tarefas domésticas e essa parece ser a principal
diferença no que se refere a gênero:
Eu trabalho um sábado sim, um sábado
não. O domingo é “vapt-vupt”, a gente
[mãe e filhas] faz o almoço, termina de
fazer o almoço uma hora, vai almoçar, aí
chega uma amiga na casa da gente, aí o
dia foi embora, e eu vou descansar também
pra semana. (Alice, duas filhas e um filho).
As residências eram muito pequenas, e
nelas observamos a rara presença de brinquedos
e mais raramente ainda de livros, enquanto
as ruas – estreitas, sujas, sem arborização –
eram consideradas espaços perigosos, em geral
devendo ser evitadas. A única família em cuja
casa observamos muitos brinquedos e alguns
livros infantis foi a dos filhos de um zelador de
edifício e de uma empregada doméstica, e as
crianças nos disseram que a maior parte havia
sido doada, já usada pela patroa de sua mãe e
uma vizinha do edifício. Nas demais entrevistas,
as meninas declararam gostar de: brincar de corda
e de elástico; brincar com bonecas, de escolinha,
usando pequenas lousas, e de médica. As bolas
de futebol e pipas eram unanimidade entre os
meninos. Em seis famílias, constatamos a presença
de cachorros, com os quais as crianças brincavam,
sendo descritos como sua “companhia”.
Na maioria dos núcleos familiares,
contudo, as principais distrações dentro de casa
eram o computador, o video game e a televisão.
Games e computadores eram disputados entre
irmãos e irmãs, mas as entrevistas e observações
indicaram que eles eram majoritariamente
usados pelos meninos: “O Daniel é o dia inteiro
no computador. [...] Todo mundo fica um
pouquinho, mas ele fica mais porque ele fica no
Face[book]” (Keila, mãe).
727
Parte das famílias tinha acesso à internet
em casa. Embora não tenhamos feito essa
pergunta diretamente, as menções ao uso de
redes sociais e e-mails nos mostraram que essa
não era uma situação rara. Pesquisa divulgada
pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.
br)8, com dados coletados em 2012, constatou
que 71% dos alunos do ensino fundamental
e médio na região sudeste tinham em casa
computador com acesso à internet e as famílias
que estudamos parecem incluir-se nesse quadro.
O video game era tomado como
equivalente ao computador e este era descrito
como brinquedo e fonte de distração, não como
fonte de conhecimento, relacionado à escola
ou ao trabalho: “A Cintia gosta de um video
game de veterinário que tem de cuidar dos
bichinhos, está sempre brincando disso no lap
top” (Regina, mãe); “Em casa, a Lívia joga video
game, fica no computador ou brinca com suas
bonecas” (Aldilene, mãe).
E, ao contrário do encontrado por
Octobre (2010) na França, quase sempre quando
o computador tinha um dono específico,
pertencendo a um dos meninos:
da posse e da utilização de computadores
no desempenho escolar ou na ampliação de
horizontes culturais.
Às meninas, com a rua quase interditada,
restava assistir televisão e às vezes desenhar e
jogar dominó, sempre no confinamento dos
pequenos espaços de seus lares: “As meninas
ficam assistindo televisão, elas ficam fazendo
desenho, é assim” (Alice); “É, o que elas gostam
mais é ver televisão, elas gostam de novela. É
mais televisão mesmo” (Marinete, mãe).
Brincar na rua
Entre famílias francesas, Octobre (2010)
aponta uma tendência a comprar computadores
para as meninas, por se tratar de equipamentos
caros e delicados, dos quais supostamente elas
cuidariam melhor, além de saberem extrair
mais benefícios escolares de seu uso. No
grupo investigado por nós, a associação dos
computadores aos jogos parecia garantir sua
masculinização, embora ele fosse utilizado
também pelas meninas, principalmente para
jogos não violentos e participação em redes
sociais. Assim, eram pífias as repercussões
Durante a semana, o lazer fora de casa
significava ficar conversando na porta dos
vizinhos, empinar pipas na rua e jogar em
campinhos de futebol improvisados em terrenos
baldios, já que as residências não tinham quintal
e ficavam em bairros onde inexistem praças ou
centros esportivos públicos. Essas atividades
fora de casa, em quase todas as falas de pais
e mães, eram permitidas apenas aos meninos.9
Por exemplo, na família de Ernani (12
anos) e Cláudia (9 anos), de acordo com o pai
(André), o menino podia brincar na rua, junto
com amigos da vizinhança, onde jogavam bola,
andavam de bicicleta e empinavam pipa. Além
disso, Ernani ia a pé sozinho à escola e ao projeto
educativo que frequentava no contraturno:
“É menino, tem que deixar um pouco solto”
(André, pai). Já Cláudia era levada de carro
por ele à escola e ao projeto. A mãe, Regina,
afirmou explicitamente que preferia “manter a
filha mais em casa, porque é menina”, sendo-lhe permitido trazer amigas e eventualmente
frequentar a casa de uma colega de escola.
São regras semelhantes às descritas por
Alice, que sustentava e educava sozinha seus
três filhos (Fernando, de 15 anos, Fernanda,
13, e Francimary, 11): “Aqui na rua, ninguém
vê meus filhos andando, só quando vão para a
escola mesmo. Quando eu chego, eu boto para
dentro, eles vão assistir televisão e vão dormir.”
8- http://www.cetic.br/educacao/2012/alunos/B8.html, acessado em
29/05/2013.
9- Uma exceção era a família do zelador de um edifício de bairro de elite,
com inserção diferente na rua e na vizinhança.
Tem aquelas briguinhas entre os dois
(irmão e irmã) de disputa de computador.
O computador é dele, eu dei pra ele. Logo
que ele me pediu eu falei “eu vou te dar um
computador”. (André, pai)
728
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
Embora essa fala inicial se dirija a todos, aos
poucos, percebe-se que há alguma flexibilidade,
e que ela é maior para o filho:
As meninas, não vem ninguém chamar
elas aqui, só quando é mesmo para ir para
algum lugar, o shopping ali mesmo, que a
Fernanda vai com a prima dela, às vezes,
comprar alguma coisa. E não saem para
lugar nenhum. [...] Elas vêm juntas da
escola, e eu falo para elas que é da escola
para casa. [...] O Fernando, quando chega
algum amigo chamando para jogar bola,
depende do horário. Às vezes, chega à
noite chamando e eu não gosto, eu tenho
medo. (Alice, mãe)
Evonete pareceu ser ainda mais rigorosa
e muito raramente permitia à filha, Ana Lúcia,
de 7 anos, dormir fora, mesmo na casa da tia:
Ela não vai muito, porque ela é menina, e
eu não gosto muito de deixar. Eu acho que
menina tem que estar ali mais ou menos ao
alcance dos olhos da mãe. Eu não gosto,
mas como é minha irmã, eu abro uma
exceção, uma vez ou nunca, é muito raro.
(Evonete, mãe)
Isso não significa que as crianças não
transgredissem as regras e não saíssem das
casas apertadas em busca de sociabilidade
e lazer. Com ou sem conhecimento dos pais
e mães, tanto meninos quanto meninas nos
contaram que saíam, seja para jogar futebol
seja para encontrar amigos e amigas. Um caso
típico foi o da família de Marinete, numerosa
e vivendo nas piores condições dentre todas
que entrevistamos. Perguntada sobre as regras
a respeito de locais e horários de lazer dos três
filhos e quatro filhas, que tinham entre 7 e 18
anos, sendo que uma das moças, com 15, já era
mãe, Marinete nos esclareceu que os meninos,
quando não estavam na escola, estavam “no
campo jogando bola. Tem o campinho aqui
perto”, como acontecia durante a entrevista.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
Já as filhas: “As meninas ficam mais dentro de
casa. [Você deixa sair?] A gente nunca deixou.
Mas você viu o que aconteceu, né?! De tanto
não deixar sair, olha aí no que deu!” [aponta a
bebê no colo da filha, risos].
Se a preocupação com o controle da
sexualidade das meninas é bastante evidente
nessas falas, os espaços externos eram
percebidos como fonte de perigo tanto para
meninas quanto para meninos. Em relação aos
filhos, o envolvimento com drogas e seu tráfico
parecia ser o principal motivo de atenção, como
descreveu, por exemplo, Keila, mãe de um rapaz
e três meninas:
O povo não sabe, mas estamos em uma
guerra já, um matando o outro, o medo de
uma mãe é esse: perder os filhos para duas
coisas, para as drogas e para o mundo.
Porque o mundo vem e mata, agora é
assim. Se envolveu com droga atualmente,
você é cobrado porque você é um drogado.
(Keila, mãe)
Assim, filhos de ambos os sexos eram
objeto de preocupação e controles. Os riscos
ligados à masculinidade se relacionavam
principalmente ao envolvimento com atividades
ilícitas, forma possível para obtenção de renda
e exercício do poder (ZALUAR, 2010). Mas a
diferença de gênero era nítida no que se referia
à sexualidade. Como já indicamos, a maioria
dos pais e mães começava falando em igualdade
nas regras que empregavam na educação das
crianças, mas quase sempre desembocavam em
diferenças. Edimara, após declarar ter deixado o
emprego para ficar mais próxima da filha mais
velha, Emily, de 10 anos, em razão dos perigos
externos, comentou sobre as possibilidades de
sua filha ou seus filhos tornarem-se mãe ou pais:
É o que eu falo pro Alex (8 anos), a
mesma coisa: a partir do momento que
você engravidar uma menina, seja ela
preta, branca, pobre, rica, você vai ter
que assumir. [...] Aí, quando você tiver na
729
idade de dançar, de beber, de pegar uma
aqui, uma ali, levar uma pro matinho hoje,
levar outra pro matinho amanhã, você
ia conhecer a branca, a preta, a amarela,
rosa, mas você vai estar ali, com uma só.
Todo dia vai ter que olhar pra cara dela, de
manhã, de tarde, de noite! (Edimara, mãe)
Certamente Edimara não teria deixado o
emprego para olhar de perto a filha de 10 anos se sua
visão sobre o exercício da sexualidade da menina
fosse a mesma, isto é, se tivesse expectativas de
que ela “conhecesse o branco, o preto, o amarelo”,
nos “matinhos”, antes de se casar ou estabelecer
um relacionamento fixo. Este é um bom exemplo
do que observamos nas oito famílias: apesar de
regras semelhantes, as restrições à circulação no
espaço público eram muito maiores às meninas,
que se viam praticamente confinadas à casa.
Como sintetizou com clareza Edinalva: “Homem
tem a passagem livre, como dizem. Mulher não.”
Combinada à sobrecarga de trabalho doméstico,
essa restrição levava as meninas a uma vida
bastante restrita, passando muitas horas fechadas
dentro de suas casas.
Como apontamos ao discutir a
responsabilidade das meninas pelos afazeres
domésticos, há fortes indicadores de que a
escola representa para as garotas um espaço
de liberdade, sociabilidade e realização pessoal.
Já para os meninos, a escola representaria uma
pausa nas atividades coletivas e de lazer nos
campinhos de futebol, nas vielas. Assim, parece
que os anos que separam nosso trabalho das
pesquisas reunidas na coletânea organizada
por Madeira (1997) não trouxeram mudanças
relevantes para as crianças e jovens de camadas
populares urbanas, no que se refere ao papel
que a escola pode representar no contexto das
diferenças de gênero em sua socialização. Se
o acesso à escolarização ampliou-se de forma
significativa nesse período, a relação tumultuada,
interrompida e malsucedida de parte expressiva
desses meninos com a escola parece reiterar
que, para eles, esse é um espaço de restrição, ao
contrário da vivência de suas irmãs.
730
Atividades extraescolares e
planos de futuro
Uma de nossas hipóteses iniciais,
inspirada na pesquisa de Silva (1993), era
de que as famílias oferecessem atividades
extraescolares diferenciadas para meninos e
meninas, com as segundas mais envolvidas
em práticas que contribuiriam para seu
desempenho escolar, já que eles se dedicariam
principalmente a esportes. Essa hipótese
confirmou-se parcialmente, pois, ainda que as
garotas fossem mais numerosas em atividades
não esportivas, parece importante considerar
sua escolha ativa e sua iniciativa em busca
dessas práticas, mais do que a simples oferta
por parte dos(as) adultos(as).
No conjunto das famílias, encontramos:
quatro casos em que nenhum dos filhos ou
filhas praticava atividades extracurriculares;
uma família em que todos(as) participavam de
práticas esportivas, embora diferenciadas por
sexo (natação para todos, meninos no futebol
e menina na ginástica artística); uma família
em que ambos – irmão e irmã – frequentavam
entidades filantrópicas no contraturno, nas quais
praticavam esportes, tinham acompanhamento
das lições de casa e projetos ligados ao meio
ambiente e cidadania; e duas famílias nas quais
somente as meninas participavam de atividades
extras oferecidas pela escola em que estudavam
(jornal e teatro). Além disso, numa dessas
últimas famílias, as meninas eram também
muito envolvidas com práticas sistemáticas das
igrejas que frequentavam10.
Portanto, parece que as famílias que
ofereciam atividades extracurriculares o
faziam sem distinção de sexo, a qual aparece
somente se consideramos o tipo de atividade.
Enquanto os meninos quase sempre iam para
práticas esportivas, cinco meninas e apenas
dois meninos tinham outros tipos de atividade.
Consideramos, com Silva (1993), que as práticas
10- A família como um todo variava com frequência o vínculo a diferentes
igrejas evangélicas e, no momento da entrevista, as filhas não participavam
das mesmas igrejas que os demais familiares.
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
esportivas da forma como são hoje oferecidas
pouco contribuem para um melhor desempenho
escolar. No que se refere ao desenvolvimento da
leitura e escrita ou à maior familiaridade com
o mundo letrado e outros elementos da cultura
escolar, as práticas desenvolvidas pelas meninas
fora da escola pareciam ser mais eficazes, desde
a participação em grupos de teatro e jornal até
a oferta de aulas e atividades para crianças
menores no âmbito de igrejas.
Mesmo quando envolvidas em contextos semelhantes aos de seus irmãos, as meninas pareciam potencializar essas atividades
como aprendizagem útil à escola, como era o
caso de Ernani (12 anos) e Cláudia (9), ambos frequentando entidades filantrópicas11.
Cláudia sempre fazia as lições de casa sob
supervisão na entidade que frequentava, enquanto seu irmão alegava que os monitores
não o autorizavam a fazer isso, informação
que foi posteriormente contestada pelo pai:
“Minha mulher foi lá esses dias e a monitora
falou ‘não, pode trazer, o que tiver de lição
traz aqui que a gente ajuda’”. Uma das reclamações da escola de Ernani, relatada pela
mãe, era exatamente o não cumprimento das
lições de casa. Na família de Francimary (11
anos), Fernanda (13) e Fernando (15), apenas
as meninas participavam do jornal e do grupo de teatro organizados pela escola fora do
horário das aulas, embora todos estudassem
lá. A mesma situação foi observada no caso
de Daniel (16 anos), Valentine (14) e Luciane
(11), que participavam de atividades ligadas
à escola e a igrejas evangélicas. As meninas
se envolveram nas oficinas extras oferecidas
pela escola por iniciativa própria: durante a entrevista, a mãe não soube responder
de quais atividades elas participavam. Seu
irmão estudara na mesma escola até o ano
anterior e não havia participado de quaisquer
atividades. Além disso, Valentine e Luciane
também escolhiam as igrejas com as quais
desejavam “congregar” e ali desenvolviam
11- Cada um frequentava uma entidade diferente.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
diferentes práticas, muitas delas próximas do
formato escolar, enquanto seu irmão mais velho, Daniel, estava envolvido principalmente
com a música, atividade que partilhava com
o pai e que desejava assumir como profissão. Cláudia, Francimary, Fernanda e Luciane
foram classificadas por suas professoras
como “excelente” ou “brilhante”, enquanto
Valentine foi considerada “mediana”; já seus
irmãos, Fernando, Daniel e Ernani, apresentavam constantes problemas de disciplina e
aprendizagem em suas escolas.
O que vemos, portanto, são escolhas
ativas e parcialmente autônomas por parte
das meninas, dentro do estreito leque de práticas extraescolares que lhes eram possíveis.
Eram opções que as levavam a aproveitar essas oportunidades para melhorar sua aprendizagem ou as remetiam a atividades mais
próximas ao modelo escolar. Não nos parece
possível afirmar que essa seja a causa de um
melhor desempenho das meninas: encontramos, em outras famílias, boas alunas que não
praticavam atividades extracurriculares sistematicamente ou que praticavam atividades
estritamente esportivas. Além disso, cabe perguntar se o fato de irem muito bem na escola
impulsionava a participação de meninas como
Luciane e Francimary em atividades de teatro
e jornal ou, ao contrário, essa participação extra alimentava seu desempenho escolar. Tudo
indica que se tratava de um círculo virtuoso de
estímulo e aproveitamento ativo por parte dessas garotas, que, em meio à escassez, potencializavam suas oportunidades de acesso à cultura de prestígio. Paralelamente, seus irmãos
pareciam consolidar um progressivo afastamento de atividades próximas ao modelo escolar, dedicando-se ao futebol e a atividades
de trabalho e lazer distantes da cultura escolar.
Também foi surpreendente constatar
que as meninas, independentemente de suas
idades, apresentavam, com mais frequência
que seus irmãos, sonhos profissionais melhor
delimitados e que exigiriam uma escolarização
prolongada. Um menino declarou pretender
731
ser médico e outro músico, enquanto sete
meninas queriam ser policial, médica,
veterinária, bióloga, atriz, oficial da marinha,
professora. A mesma situação foi descrita por
Terrail (1992) junto às meninas francesas,
que, de acordo com enquete nacional de
1988, mostraram-se mais ambiciosas que os
meninos no que se refere ao nível de ensino
que almejavam, assim como à profissão
pretendida, independentemente das condições
sociais da família.12
Este parece ser mais um círculo virtuoso:
bem-sucedidas e sentindo-se à vontade na
escola, várias meninas já aos nove anos de
idade sonhavam com profissões qualificadas e
estabeleciam planos ambiciosos que poderiam
evitar as restrições do trabalho doméstico.
A existência dessas aspirações, por sua vez,
podia estar impulsionando-as a investir mais
na escola, valorizar a aprendizagem e obter
bons resultados.
12- Esse tema merece uma discussão muito mais detalhada, que não
será desenvolvida aqui por razões de espaço.
Conclusões
Portanto, no que tange aos setores
populares urbanos, temos indicações de que
a socialização de gênero no âmbito familiar
favorece nas meninas e não nos meninos
o desenvolvimento de comportamentos
frequentemente desejados pelas escolas, tais
como a disciplina, a organização e a obediência
(ou formas de desobediência menos visíveis);
ao mesmo tempo, essa socialização faz com
que a frequência à escola tenha significados
diferentes para a maioria das garotas e garotos
destes setores, uma vez que elas têm muito
menos oportunidades de circulação, sociabilidade
e estímulo. Essas mesmas restrições parecem
fazê-las valorizar atividades extracurriculares
com formatos próximos ao escolar e desenvolver
aspirações ligadas a uma escolarização prolongada
e a profissões qualificadas. A existência mesma
desses planos ambiciosos, realistas ou não, pode
ser impulsionadora de maior empenho nos
estudos, realimentando a roda do sucesso escolar
dessas meninas, que parece surgir de dentro da
própria subordinação de gênero.
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Recebido em: 01.10.2013
Aprovado em: 06.03.2014
Marília Pinto de Carvalho é professora livre-docente (Associada III) na Faculdade de Educação da USP, pesquisadora nível
1 do CNPq. É colíder do EdGES (Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual) e publicou entre outros: Avaliação
escolar, gênero e raça (Papirus, 2009).
Tatiana Avila Loges é doutoranda na linha de pesquisa sociologia da educação na Faculdade de Educação da USP, com
mestrado em educação. É integrante do EdGES desde 2011 e bolsista de apoio técnico à pesquisa pelo CNPq, sob a orientação
da professora Marília Pinto de Carvalho.
Adriano Souza Senkevics é pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e
mestrando na linha de pesquisa sociologia da educação na Faculdade de Educação da USP, sob a orientação da professora
Marília Pinto de Carvalho. Em 2013, realizou um estágio de pesquisa na Universidade de Sidney, com a supervisão da
professora Raewyn Connell.
734
Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
As mortificações da carne e o desejo exposto: controle
sobre meninas em instituições católicas
Carlos Manoel Pimenta PiresI
Resumo
Na tentativa de compreender a gênese da educação dedicada
especificamente às mulheres, analisaremos um livro didático usado
em internatos e conventos de meninas, da segunda metade do
século XIX e início do XX, chamado Manual de piedade da donzela
cristã. Nossa proposta é descrever, em parte, uma das formas de
constituição do modo de ser feminino na contemporaneidade,
refletindo historicamente a respeito da elaboração de um saberpoder sobre as mulheres, fundamentando-nos em uma análise
foucaultiana. Propomos recuperar o que tradicionalmente fora
o organizador das instituições católicas femininas, ou seja, seus
modos peculiares de normatização e manutenção das populações
de meninas e mulheres ao modo disciplinador cristão, como
um dos paradigmas do sujeito feminino. Assim, juntando-se a
demandas normativas do período pós-revolucionário dos 1800 na
produção de um feminino produtivo – transplantado nas figuras
da boa mãe, da carinhosa esposa e da trabalhadora obediente,
ou o que pudesse determinar a mulher socialmente controlada e
promotora da família nuclear moderna –, formaram-se episteme e
moral específicas da mulher, com participação paritária da teologia
católica com outros campos de saber. Nossa tese é justamente a
de que a formação do sujeito feminino contemporâneo tem ampla
participação das instruções eclesiais. Para defendê-la, analisaremos
o referido manual, que será considerado uma janela que nos abre
para uma mirada investigativa do cotidiano de meninas em escolas
confessionais e monastérios.
Palavras-chave
História da educação — Manuais escolares — Gênero e educação —
Metodologia arqueológica foucaultiana.
I- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022013005000028
735
The mortification of the flesh and the desire exposed:
control over girls in Catholic institutions
Carlos Manoel Pimenta PiresI
Abstract
In an attempt to understand the genesis of the education dedicated
specifically to women, I analyze a textbook called Manual de piedade
da donzela cristã (Manual of piety of the Christian maiden), which
was used in boarding schools and convents for girls, in the second
half of the nineteenth and early twentieth centuries. My purpose
is to describe, in part, based on a Foucauldian analysis, one of the
forms of constitution of the ways of being feminine in contemporary
times, reflecting historically about the development of a knowledgepower over women. I propose to recover what had traditionally been
the organizer of Catholic institutions for girls, i.e., their peculiar
modes of standardization and maintenance of the populations of
girls and women according to the Christian disciplinarian mode,
as one of the paradigms of the female subject. Thus, the episteme
and moral specific of women was formed, with equal participation
of Catholic theology and other fields of knowledge, joining the
normative demands of the post-revolutionary period of the 1800s
in the production of a productive feminine – transplanted to the
figures of the good mother, loving wife and obedient worker, or what
could determine the woman socially controlled and promoter of the
modern nuclear family. My thesis is precisely that the formation of
the contemporary female subject has broad participation of ecclesial
instructions. To defend it, I shall analyze that manual, which will
be considered a window that opens to an investigative perspective of
the everyday life of girls in denominational schools and monasteries.
Keywords
History of education — Textbooks — Gender and education —
Foucauldian archaeological methodology.
I- Universidade de Lisboa, Lisbon, Portugal.
Contact: [email protected]
736
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022013005000028
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
Introdução: breve descrição da
educação feminina até o século XIX
Podemos afirmar que, com o advir da
chamada modernidade, a família transformou-se em uma das prioridades do governo das
populações no Ocidente. Como consequência, o
tratamento dedicado às especificidades femininas passou a ser um dos temas fulcrais entre
pensadores desde o Renascimento.
O feminino idealizado já fora incorporado ao projeto de humanistas (leigos e religiosos), em que se assumia a necessidade de
se impor controles sobre o comportamento das
individualidades das mulheres, atrelando-as a
processos normativos de regulação da subjetividade. Obviamente, os objetivos de moralistas
e demais pensadores do comportamento não
se circunscreviam apenas às mulheres, mas se
alargavam ao social como um todo, já que elas
representavam um vetor importante dentro das
famílias (VARELA, 1997, p. 193).
Por sua vez, até o século XIX, nos campos
jurídico e teológico – assim como no próprio
senso comum –, mormente as mulheres foram
encaradas com desconfiança com relação às
suas capacidades e às suas atitudes, mantendose uma tutela jurídica e moral, cujo controle
da vida social passava da responsabilidade
paterna para a do marido ou do convento, em
uma vivência que primava pela heteronímia
(HOUILLON, 1974, p. 9).
Com relação à educação, os conventos
exerceram papel institucional relevante àquelas
que eram enviadas para tais recintos. Houve
um grande esforço católico, após as guerras
religiosas na Europa do século XVI, na fundação
de ordens femininas dedicadas à manutenção
de um ambiente instrucional às crianças e
adolescentes que se preparavam para serem
religiosas. Concomitantemente, não podemos
deixar de citar que cresceram, em número, os
centros escolares confessionais dedicados às
meninas que, não necessariamente, seguiriam
como monjas. Em tais instituições, tanto para os
externatos como para os de clausura, o ensino
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
era fundamentalmente religioso, reduzindose à instrução à leitura, à reza, a um pouco
de escritura e ao ensino de algumas ações
ditas femininas, como, por exemplo, o coser
(HOUILLON, 1974, p. 16).
Mesmo após as chamadas Revoluções
Liberais, observa-se a manutenção da tutela
masculina na maioria das sociedades europeias
e do Novo Mundo e, também, a continuidade
das estruturas educacionais monásticas, ambas
mantenedoras de uma feminilidade encerrada
aos lares e a instituições controladas pela Igreja
(BOTHONEL; LAURENT, 1974, p. 99-137)1.
Nenhuma sociedade ocidental outorgou à mulher,
por exemplo, a possibilidade da cidadania plena
no século XIX (FRAISSE; PERROT, 1993, p. 12).
Por outro lado, o que podemos acrescentar como diferencial nos 1800 seria a elevação,
em importância, do feminino a um protagonismo nos destinos das sociedades ocidentais. No
caso específico da igreja, a mulher passava a um
papel primordial na edificação moral dos corpos
sociais, colocando-se dentro da família como a
mãe educadora e exemplar. Tratava-se de uma
espécie de contrapoder masculino e estava num
processo de correção moralizador infinito.
A alma feminina, distinta e complementar
da masculina, converte-se, para a Igreja
da Restauração, numa reserva de recursos
civilizadores e de possibilidades de
conversão. (GIORGIO, 1993, p. 183-184)
O que pretendemos no decorrer do artigo
é entender a organização de um tipo de exercício
de poder sobre as mulheres dentro das instituições
de trancamento confessionais, tentando perceber
a formação de um sujeito feminino nos interstícios do catolicismo. Não se almeja afirmar que
seja essa a única forma de feminino constituído,
mas há intenções de conceber um tipo peculiar
que de alguma forma permanece nas formas de
subjetivação das mulheres da atualidade.
1- Na França, por exemplo, foi apenas na década de 1870 que o estado
francês implementou uma rede escolar primária aberta às meninas,
tratadas por igual em comparação aos meninos.
737
Assim, afirmamos que a institucionalização da família cristã passou por um modo
de disciplinar e governar o comportamento das
meninas, concatenado à elaboração de um dispositivo de feminização, em que se renovariam
preceitos de interação entre os sexos e de constituição de uma nova sociedade, muito parecida
à que vivemos (VARELA, 1997, p. 175-176).
Manual de piedade da donzela
cristã
Adotaremos, como objeto de estudo,
trechos de um livro didático feito especificamente
à educação de meninas enclausuradas em
colégios internatos e conventos católicos. O
intitulado Manual de piedade da donzela cristã
(1919) foi elaborado para uso das professoras.
Era dedicado à instrução da prática religiosa
e indicado à leitura das próprias meninas das
instituições confessionais.
A primeira edição em língua portuguesa
data de 1873. Em nossa análise, consultamos
a décima quinta reimpressão, número que
demonstra a boa tiragem do manual e leva-nos a
supor seu largo uso em centros escolares católicos
espalhados pelo mundo luso-brasileiro. Importante
recordar que a prática de se confeccionar e usar
manuais de piedade, nas instruções católicas, vem
de longe – existindo vários outros escritos sobre o
modo de se portar das donzelas, em circulação no
mundo católico –, estabelecendo uma das práticas
de fé incorporadas ao cotidiano institucional
escolar cristão.
De acordo com a introdução do livro, indicava-se a leitura diária às jovens, funcionando como um vade-mécum de conduta e civilidade. Ademais, as próprias mestras poderiam
usá-lo como um apoio didático aos estudos
religiosos, sendo lhes permitido escolher aleatoriamente um trecho qualquer para a leitura
coletiva, com pretensões claras de discutir algum aspecto negativo ou positivo do comportamento das meninas naquele dia.
Dividida em cinco partes, essa
obra articulava normas relacionadas ao
738
comportamento litúrgico com condutas
em geral (polidez, modos de civilidade e
sexualidade). Na primeira parte, cujo título é
Uma flor a colher a cada manhã, encontram-se
sugestões a quem ou a que se deveria rezar e
meditar, as quais são divididas em um diário,
sendo uma espécie de calendário espiritual. O
segundo item dedica-se a determinar os hábitos
cotidianos das meninas, esmiuçando as normas
de uma condução ascética. Na sequência, já
se apresentam os exercícios espirituais e os
métodos de ouvir a missa, em um adestramento
da religiosidade. Já na quarta parte, explicamse os deveres da religião, em uma apresentação
dos sacramentos e obrigações de um bom
cristão. Por fim, há uma descrição das práticas
de devoção, tentando ligar o tirocínio católico
do presente com seu passado.
Incluímos o livro didático como
relevante na análise da educação feminina
partindo do pressuposto de que as leituras
eram objetos de controle por parte da igreja,
atenta ao que era lido, ao mesmo tempo
em que produzia bibliografia própria para
ocupar espaços da literatura leiga. “Ler pouco
e ler bem: essa é a máxima. [...] Nenhuma
divagação: ler é um exame de consciência
através de mediação de um texto.” (GIORGIO,
1993, p. 198). Logo, considerar-se-á o que era
lido como uma possibilidade de agenciamento
do feminino.
Como proposta de exercício de uma
análise arqueológica foucaultiana, dividimos
em cinco plataformas explicativas os trechos
selecionados para análise, de modo a ter um
ponto de mirada privilegiado sobre o saber
feminino que emerge de um tipo específico de
organização do discurso do passado e, por sua
vez, disciplinador da mulher, resultando em
uma nova subjetividade.
Essas plataformas foram agrupadas da
seguinte forma: o controle dos desejos (item
3), a racionalização das ações (item 4), a ascese
do comportamento (item 5), a calibração do
amor (item 6) e os usos meticulosos da carne
(item 7).
Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
O cerceamento da
individualidade e o controle de
conduta das neófitas cristãs
– Oremos para que Deus nos conceda
a graça de repelirmos as tentações que
tivermos hoje.
– Jesus e os aflitos.
– Que impressão deviam fazer nos corações
estas palavras de Jesus: ‘todos que sofreis,
vinde a mim: eu vos confortarei’. Ninguém
tinha falado assim; especialmente ninguém
tinha acolhido os atribulados como Jesus...
Por isso vede quem são pobres, os doentes,
os desvalidos que o acompanham. Quem
os agasalhará antes? Quem os não repelia
da sua companhia? Ó Jesus, ensinai-me
a ter bom coração, a amar, a procurar
quem todos repelem... dai-me graça para
consolar muitos infelizes na minha vida.
– Buscarei hoje ser útil a alguma das
companheiras. (IGREJA, 1919, p. 90)
“Repelirmos as tentações que tivermos
hoje” e “buscarei hoje ser útil a alguma das
companheiras” são trechos de Uma flor a colher
a cada manhã, que aspirava interrogar os
desejos dos indivíduos, substituindo-os por uma
instrução que se desviasse de possíveis ímpetos
sinistros. Nesse caso específico, especula-se que
às tentações deveriam se contrapor as iniciativas
de sentido altruísta, apagando-se o que fosse de
mais individual nos sujeitos – os seus quereres –
e colocando-se como foco algo que significaria
uma subordinação às vontades do grupo.
Dispõe-se sobre a intimidade, de maneira
a condicioná-la a um papel público a ser
exercido, o “de amar, ter bom coração, o de
consolar os infelizes”. No florescimento de uma
arguição sobre a ética cristã, com esse extrato,
percebemos o quão relevante os desejos são
e compõem a espreitada de controle sobre os
indivíduos do corpo católico, trazendo como
hipótese de que passam a ser a prioridade nos
exames intestinos dos ambientes educacionais
mantidos pela Igreja.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
A intimidade trazida à baila não foi um
fenômeno exclusivo do catolicismo. O controle
sobre as vontades tem sido utilizado, nos últimos
séculos, como um dispositivo influente nas
táticas de manutenção do poder sobre indivíduos.
Mais especificamente no decorrer do século XIX,
houve um hiperdesenvolvimento do discurso
sobre o desejo, adquirindo-se novas maneiras de
compreendê-lo – que Foucault (2003) designou
como scientia sexualis –, com o qual se buscava
uma forma verdadeira de ocorrência, tanto no
comportamento como na estética.
Em tentativas de controlar as relações que
os indivíduos têm consigo mesmos – como observado no trecho do Manual –, os desejos, e,
por consequência, os próprios prazeres físicos,
foram encarados como ações relevantes a quem
exercesse o poder sobre as meninas. Essa seria
uma das consequências mais significativas dos
dispositivos de repressões e impedimentos sexuais contidos na educação religiosa. Podemos
afirmar, entretanto, que esses dispositivos foram
reproduzidos igualmente, na mesma época, pela
vigília corporal da ciência médica e pelos cerceamentos do inconsciente aplicados pela prática
psiquiátrica/psicanalítica. (FOUCAULT, 2006).
Foi desfechado, portanto, ao redor do período das edições do livro (1873-1919), o controle das condutas sexuais da mulher com a
formação de todo um arcabouço religioso, médico e psicológico de pensamentos e comportamentos que pudessem visualizar a perversão da
alma, a insalubridade do corpo e a anormalidade
da mente. À teologia centenária juntou-se, em
uma empreitada normatizadora e constituidora
do dispositivo da feminilidade, certa psicologia
racional em sentido contrário a uma espiritualidade irracional tradicionalmente posicionada.
No contraponto à racionalidade como
mantenedora da fé, tínhamos, por exemplo, o
misticismo penitencial, que fora uma maneira
de exercício de santidade das mulheres desde
os primeiros tempos da Igreja que, em meio às
orações e meditações, tinham visões e conversas
com Deus, Jesus e toda a cosmogonia cristã
possível. Santa Teresa D’Ávila (doutora da Igreja
739
e fundadora da congregação das carmelitas
descalças) talvez fora um dos principais modelos
de como a Igreja dava crédito e autoridade para
tal maneira de se exercer a crença (ANDERSON;
ZINSSER, 2007, p. 230-233).
A maneira ascética propalada nos trechos do Manual, e que veremos mais detalhadamente adiante, abre mão do misticismo
extático em nome de uma racionalidade da
fé, propondo adestramentos controladores da
crença, dando pouca margem de autonomia
aos exercícios espirituais.
Não obstante, [...] a Igreja mudou sua
atitude diante das mulheres que testemunhavam uma experiência mística. [...]
Rechaçou a autoridade potencial das visionárias, honrando-as com uma condescendente inocência infantil e não por
seus laços especiais com a divindade.
(ANDERSON; ZINSSER, 2007, p. 238)
Prescrições racionalizadoras dos
espíritos femininos
Oremos em desagravo das blasfêmias.
– O décimo primeiro fruto do colégio é
fortaleza de vontade. A regra é às vezes
incômoda; mas quanto disciplina o caráter,
ensina a refrear a imaginação, a repelir
fantasias para cumprir deveres! Submeteivos sinceramente e tereis energia para
sofrer as mágoas que mais tarde vos
assaltarem.
– Procurarei hoje observar silêncio.
(IGREJA, 1919, p. 37)
O Manual propõe converter o desejo
blasfemo, contido na alma, em objeto de reflexão
racional, não com uma punição dolorosa ao
corpo, mas simplesmente com a imposição do
silenciamento do espírito. Ao se fazer calar a
alma gozosa, apostar-se-ia no irrompimento,
entre as discípulas a se conduzir, da sensação de
desconhecimento sobre a própria subjetividade e,
mais especificamente, do poder de seus desejos.
740
Provoca-se o encontro da ignorância
individual sobre si e toda a constituição de uma
tecnologia de interrogação das intimidades,
via conhecimento acumulado pela observação
institucional das mestras condutoras, para
tentar compreender externamente o desejo dos
indivíduos e suas modalidades. No caso citado, a
religião intentou trazer o medo à perscrutação da
imaginação, indicando às meninas seu despreparo
e o risco em percorrer lugar tão indômito.
Não se trataria de paralisar os motores
internos do querer, e sim entender as suas
interferências na constituição dos sujeitos.
Em um desvio de suas atribuições, usar suas
energias no germinar dos desejos verdadeiros
(os autorizados pela Igreja), aqueles nos quais
se incitaria a conter mais o que é tido como
correto, em contraponto a um aumento de
intensidade do prazer, que colocaria o indivíduo
em uma rota própria, fora das vistas eclesiais.
Trata-se, através dos discursos calados, de um
arrebatamento do cotidiano íntimo das pessoas.
O poder eclesial agiria, nessa nova
disposição institucional formatadora de uma
verdade de agir feminina, com regras e ações
que clarificassem as interdições, incorporando
e fabricando uma linguagem que se impusesse
no ato de conceder e de bloquear o não
tolerado. Elaboraram-se, com isso, enunciados
sobre o comportamento em geral, incluindo aí,
especificamente, aquele relacionado ao desejo e
ao prazer, deixando claro o que é permitido no
uso de um referencial do que é ilícito.
Criava-se um ambiente que naturalizava
um estado de direito totalizador no ato de
discursar sobre a conduta alheia. No plano das
estratégias, havia tentativas de censura plena
da conduta, com intenções de abafar o desejo
individual. Propomos explanar três exemplos.
Primeiro: o que vem a ser proibido.
Examinai os pecados feitos [...] contra o
próximo. Juízos temerários; desprezo; ódio;
inveja; desejo de vingança (especificai se
é contra as mestras ou companheiras);
dar maus conselhos; maus exemplos;
Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
fazer más ações; maledicências; calúnias;
notícias falsas; disputas, palavras ásperas
e injuriosas; falta de zelo e de bondade;
falta de respeito e de docilidade; astúcia.
(IGREJA, 1919, p. 403)
Segundo: o anúncio da culpa ao se pecar.
– Oremos pelas almas que há muito tempo
resistem a Deus.
– Deveis expiar vossos pecados; para este
fim Deus permitiu que o regulamento da
casa vos constrangesse e contrariasse
às vezes; suportai com boa vontade este
constrangimento.
– Não farei a mínima infração ao
regulamento, com a intenção de expiar
minhas culpas. (IGREJA, 1919, p. 179-180)
Terceiro: a existência de um estado
superior, o da pureza.
Oremos por quem trabalha pela salvação
das almas.
– O décimo segundo fruto do colégio
é a inocência, que se conserva aqui na
sua integridade; a inocência que sempre
deixa entrever através do semblante a
eterna juventude da alma. Oh! Que ainda
por longo tempo ignoreis o mal! Amai
a oração, fugi das ocasiões perigosas,
procurai vossas mestras.
– Repetirei bastante vezes a invocação: pela
santa e Imaculada Conceição, virgem puríssima, rainha dos anjos, alcançai-me pureza
de alma e corpo. (IGREJA, 1919, p. 37-38)
Por outro lado, complementariamente
ocorre uma normatização das condutas que
mantivessem ou criassem uma libido apropriada.
Desenvolveu-se toda uma tecnologia e
conhecimento em relação ao apetite e à tentação,
heterogêneos em seus controles, incitadores
e condutores. Das induções, enumeramos três
tipos. Primeiro: a fé associada ao ato de crer de
maneira incondicional.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
Eu creio firmemente meu Deus, todas
as manhãs que tendes revelado, e que
nos ensinais pela vossa Igreja católica,
apostólica e romana, sendo que vós não
vos podeis enganar nem enganar-nos, e
nesta crença quero viver e morrer. Amém.
(IGREJA, 1919, p. 217)
Segundo: uso do Salvador como um
estimulador juvenil da santidade.
– Jesus e as crianças.
– Jesus está sentado rodeado dos
discípulos... adiante, por entre a multidão,
seu paterno olhar divisou meninos
pequenos que estavam tímidos ao pé de
suas mães, estendeu-lhes os braços. As
crianças compreenderam este apelo do
coração, e aproximam-se de Jesus que os
abraça, os abençoa, os conserva perto de
si, fala-lhes do céu. [...] Ó Jesus, eu também
sou criança; corro para vós; acarinhaime, falai-me do céu. Se eu me conservar
sempre simples, inocente, mansa, vós me
amareis sempre, não é assim?
– Ó! Afastai-vos, pois de mim, pensamentos,
desejos, afetos, que despojaríeis meu
coração do que agrada Jesus.
– Hei de dispor-me com fervor para a próxima
comunhão. (IGREJA, 1919, p. 86-87)
Terceiro: a salvação acessada pela esperança.
Eu espero, meu Deus, com firme confiança,
que pelos merecimentos de meu senhor
Jesus Cristo, me dareis a vossa graça n’este
mundo, e se observar vossos mandamentos,
a vossa glória no outro, porque me tendes
prometido, e sois fiel em vossas promessas.
Amém. (IGREJA, 1919, p. 217)
Desse modo, aqui expomos não uma
descrição de uma história da repressão à
sexualidade organizada pela Igreja, tampouco a
sua liberação. Em realidade, propõe-se entender
o porquê de tanto interesse e, por consequência,
741
a produção de conhecimento acerca dos desejos
e, de maneira subliminar, da sexualidade
feminina; e que, por estarem atrelados à
intimidade, ganharam grande importância nas
discussões católicas desse momento histórico.
A Igreja tentou inventar modalidades de
relações com seus fiéis. Algumas importadas
dela mesma, como a ascese dos monges
celibatários, o pastorado de seus missionários,
o controle dos comportamentos via confissão
e os usos arquetípicos das entidades cristãs.
Ainda assim, incluiu novos dispositivos de
mando, incorporados no cotidiano e adaptados
de acordo com as demandas surgidas nas
relações internas de suas instituições, como a
própria disciplina escolar. Contudo, todos esses
estratagemas tinham em comum a condução das
condutas como centro, em uma racionalização
dos comportamentos. Não havia um caráter
repressor puro mas, ao contrário, incorria-se,
ao mesmo tempo, na incitação e no controle
dos quereres individuais, manipulando de uma
forma a enquadrá-los no seu campo normativo
e de suas categorias.
Partimos do pressuposto de que o
discurso sobre o sexo, desde o século XVIII,
desenvolveu-se suficientemente a estimular a
própria sexualidade no chamado Ocidente e
que, ao contrário do que se poderia pressupor,
não teve uma forma definida e um órgão
emissor único. Houve um poliformismo de
produção de saberes, que gerou um campo de
conhecimento complexo acerca da sexualidade.
Adiante, perscrutaremos um pouco mais como
se daria esse conhecimento específico eclesial
nos 1800 sobre a sexualidade feminina.
A autovigília e o desejo
combinados como atos de
ascese
Oremos por aquelas que são propensas à
melancolia.
– Deus não gosta de menina de caráter
exaltado e romanesco, que enche o coração
e a cabeça de ideias vagas, efeminadas,
742
sensuais, sempre coloridas com um reflexo
de inocência e candura, que engana uma
alma inexperiente como a sua, mas oculta
no fundo grande perigo e às vezes mal sem
remédio. Esta menina não vive nunca no
presente: aí vegeta como planta, seu coração
está sempre além de três ou quatro anos.
– [...] Filha, ocupai-vos mais, sobrecarregai-vos de trabalho, executai sempre o que vos
ordenam, sem isto estais exposta a ser muito infeliz e culpada. (IGREJA, 1919, p. 164)
Um dos significados da condução de
comportamentos, retratados acima, trata dos
assuntos íntimos, apoiada na capacidade de se
apurar as condutas infinitesimais, acedendo diretamente o subjetivo, em uma constituição de
micropoderes sobre o corpo que pudesse amainar instintos e desejos. De forma complementar, programam-se comportamentos saudáveis,
determinando moralidades que se justificavam
como diminuidoras de um sofrimento em vida e
que evitassem desvios futuros.
Esse tipo de acepção pode se adaptar à ordem discursiva católica, já que ajuda a infundir a
prática da identificação a um potencial pecador,
independentemente de seu passado puro. Ativase a prática reflexiva da precaução saudável da
alma, em que se incute na subjetividade o exercício de autovigília que nunca esmorece.
É por isso que no século XIX, a sexualidade
foi esmiuçada em cada existência, nos seus
mínimos detalhes; foi desencavada nas
condutas, perseguida nos sonhos, suspeitada
por trás das mínimas loucuras, seguida até os
primeiros anos da infância; tornou-se a chave
da individualidade [...]. De um pólo a outro
dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda
uma série de táticas diversas que combinam,
em proporções variadas, o objetivo da
disciplina do corpo e o da regulação das
populações. (FOUCAULT, 2003, p. 137)
Nesse contexto, surge um olhar sobre
as sexualidades infantil e juvenil, encaradas
Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
agora como armazenadoras de uma energia
que poderia ser transformada em positiva,
caso fosse utilizada de maneira autorregulada,
em um procedimento a ser relacionado ao
amadurecimento psicológico.
Em outros períodos históricos, a fala e o
comportamento dos mais jovens não circulavam
e não eram notados entre os adultos. Passou-se
a ouvi-los e a percebê-los a partir de meados do
século XVIII, não com intenções de fazer fluir
a emancipação desses seres, porém para regulá-los, interditando suas comunicações com enunciados normatizadores. As escolas confessionais
foram uma das primeiras a se incumbir de criar
um ambiente que pudesse aplacar essa potência
pueril, desviando-a e adequando-a a uma estrutura de controle que, primeiramente, percebesse
o que se falava para posteriormente impor outro
discurso, o autorizado aí sim pelos agentes das
instituições eclesiais.
A repercussão foi a fixação da identidade
geral dos mais jovens a uma específica, adequada
às ambições católicas. “Refrear as paixões” e
“domá-las pela oração”, nada mais foi do que um
vínculo da subjetividade, daqui para frente, aos
desejos. Como sequela disso, posicionaram-se os
corpos e os comportamentos a esse componente
da alma, relegando outros a um segundo
plano. Em nome de uma normatização do
comportamento libidinoso da chamada mocidade
cristã – e, portanto, da constituição de uma
maneira preponderante de se relacionar com o
querer próprio –, iniciou-se uma verdadeira caça
aos gostos e prazeres menores e/ou periféricos,
denominados, pela Igreja, de pecados.
Se se tem vanglória da beleza, das vestes,
da riqueza, dos talentos, do nascimento;
se no modo de vestir, de falar, de andar,
tem-se como fim excitar a admiração. Se
nos achamos melhor que o próximo. Se se
tem vexame de seus pais. [...] Se se tem
dureza com os pobres [...]. Se nos entristece
o bem e o merecimento alheio. [...] Se
nos impacientamos; murmuramos, e nos
entregamos aos arrebatamentos do mau
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
gênio. Se somos teimosas. Se ficamos na
cama por preguiça. Se gastamos o tempo
com ninharias, se permanecemos ociosas,
se fizemos perder tempo aos outros.
(IGREJA, 1919, p. 401-402)
Buscando explicar de maneira adaptada os
pecados capitais às jovens, enumeraram-se, em
realidade, as identidades possíveis delas pelo erro
e não pela honra. É na anormalidade que se optou
fixar a católica e não a um tipo de cristã perfeita,
algo externo e ineficaz como demarcação da
virtuosidade. Agia-se influenciando diretamente
as meninas, incentivando-as a identificar suas
faltas e corrigi-las sozinhas. Foi-se além do
simples perdão salvacionista; formataram-se as
índoles particulares.
Convocou-se a constituição de estruturas
de vigília altamente complexas para atentar-se
sobre as desordens insignificantes, enfatizando
o cotidiano e suas falhas triviais. Para tanto,
constituiu-se um discurso acerca das faltosas,
as que no cotidiano rompiam as normas já
sabidas, que se colocavam do lado do desvio, ao
menos no olhar de quem detinha o predomínio
da ordem do discurso.
Oremos pedindo para ter hoje ocasião de
fazer bem.
– Deus gosta de uma menina silenciosa. Ó!
Quanto as graças se concedem àquelas que,
para agradar a Deus, se calam durante o
estudo, na aula, no dormitório!... Começar
muito jovem a refrear a língua, faz esperar
grandes virtudes para o futuro.
– Se eu falhar distraidamente hoje farei
uma mortificaçãozinha no refeitório.
(IGREJA, 1919, p. 170-171)
Toda uma cadeia de poderes vem se misturar ao habitual, explodindo potências entre
as que conseguiam, de alguma forma, deter o
domínio de quem emite a alocução ou das suas
formas diversificadas. O resultado é o brotar de
uma infinidade de discursos competentes sobre o que deveria ser uma menina e uma moça,
743
usurpando o cotidiano da própria individualidade e encarregando-se dos fatos sem importância.
Tratava-se de silenciar a vaidade, a ira,
a vergonha, a avareza, a teimosia, a preguiça, a
ociosidade e muitas outras expressividades das
donzelas, cuja qualidade fosse a da anormalidade. As percepções das anomalias femininas
ocorriam, conjuntamente, ao intenso movimento para se colocar em discurso todas essas inquietações e variações individuais de conduta
por parte de quem fosse incumbido de exercer
o poder sobre a mulher em formação. Esse movimento acarretou em um emudecimento de
quem deveria obedecer.
A cantilena política da banalidade deveria,
por sua vez, tentar resgatar o controle do todo,
já que é nele que está inscrito o habitual. Daí
a necessidade da elaboração de uma tecnologia
complexa de controle sobre o ordinário feminino,
que criasse um disparate entre o pequeno erro e a
grande sanção. Complementando o domínio sobre
o mundo micro, armou-se toda uma maquinaria
de inteligibilidade dos pecados, com o intuito
não de extirpá-los, mas de controlá-los e incluílos. É um processo de autoinquirição cotidiana
ilimitada, em exercícios que possibilitassem a
recriminação de si própria, que pudessem abrir a
alma para que se acessasse aos desejos perversos.
A utilidade dessa sistematização foi a
efetivação de um sistema que questionasse as
faltosas prontamente, com o intuito de que a
pecadora se sentisse convencida de sua própria
culpabilidade e, portanto, se autocontrolasse
em seguida ao acometimento das tentações.
Ao mesmo tempo, as fronteiras do vício seriam
vislumbradas e incorporadas de uma maneira
em que qualquer uma que se aproximasse dela
se sentiria já culpada. O poder mais brutal,
aquele que agisse na interdição mais fulgurante,
seria a exceção nessa nova disposição do poder
sobre a alma feminina, já que se apresentaria
ineficiente. Compreender-se-ia, pois, que o
pecado e o erro nunca acabariam, já estariam
na natureza da mulher.
A meditação encaixou-se aqui como
algo de importância capital nessa cartografia
744
dos vícios e virtudes das meninas cristãs. Não
se tratava de uma exercitação que convocasse
o relaxamento, tampouco o alcance da
transcendência. Nela, deveria-se encher a
imaginação de racionalizações que vigiassem
o que se pensasse. Para tanto, propunha-se
uma conversa com Deus, em uma mentalização
de imagens de seres perfeitos que julgam
nossos atos, internalizando-se inquirições e
julgamentos próprios.
– O que eu digo a Deus! Tudo que sinto.
Quando tenho dissabores, eu lhes digo,
para que o Senhor os saiba melhor, e isto
me alivia; peço-lhe ânimo para os suportar,
que me ajude a dizer e a fazer o que devo;
depois falo-lhe a favor dos doentes que
conheço, de meus pais, daqueles que amo,
designo-os um por um, comunico-lhe
o que me tem acontecido, os males que
receio... Digo isso a nosso senhor como
diria a minha mãe.
– Mas isto não é orar.
– Oh! Eu não sei; mas visto que Deus é meu
pai, não hei de dirigir-me a ele como faço
a meu pai, quando à noite estamos ambos
no serão?
– É uma conversação, e esta não pode ser
longa quando ninguém responde.
– Oh! Há resposta! Às vezes, é triste, não se
ouve nada, não se sente nada, é porque Deus
está zangado. (IGREJA, 1919, p. 223-224)
Para uma conversação, exigia-se interação.
Para a interação com Deus efetivar-se era preciso
ter, por parte da menina penitente, atributos
como: a iniciativa de começar; a disposição em
manter um diálogo longo; uma reflexão profunda
advinda dos cuidados com o que se vai dizer; um
arrolamento e ordenamento dos acontecimentos,
dividindo-os, no mínimo, entre positivos e
negativos; e um final que trouxesse um veredito.
Às mestras pastoras era dever que ensinassem o
cortejo a Deus pelas alunas penitentes, passando
a ideia de que se adentrava em uma relação
interminável. “Não vos separeis do bom senhor
Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
que vos esperou” (IGREJA, 1919, p. 238); ou seja,
a meditação como uma espécie de compromisso
matrimonial com Deus.
Mas qual a conduta cobrada por Deus
nessa relação tão íntima? Nas conversas de
alcova com Nosso Senhor, o que ele poderia
cobrar e louvar? Em grande parte do livro é
indicado o protótipo da santa.
Primeiramente, diz-se que Deus exige a
criação de um cotidiano em que apenas ocorressem a oração, o estudo, o trabalho e o repouso. Cada uma dessas atividades deveria ser
aperfeiçoada a cada dia, de uma maneira que
agradasse e não provocasse o desgosto divino.
Seguindo, dever-se-ia entregar todo o amor que
vem do coração a ele, pois seria o único que faz
isso de maneira verdadeira. Ao mesmo tempo,
é premente a resistência aos convites deleitosos
do demônio e do mundo, evitando trair a confiança de quem tanto se dedicava às meninas.
Opor-se aos momentos de tédio seria
outra regra de conduta para com Deus. O
império do aborrecimento significaria mais uma
tendência que os indivíduos teriam em repartir
o seu amor e suas atenções com o mundo e uma
dificuldade em dedicá-lo exclusivamente a Ele.
A companhia do todo poderoso traria
o reconforto, a segurança. Mas, mesmo que
fosse traído, no manual constava que Deus
não abandonaria a pessoa. Contudo, perder-se-ia a possibilidade de ocorrer uma relação
totalmente sincera e isenta de outros arroubos. Assim como Deus perdoa seus servos, há
que repeti-lo e relacionar-se com os outros da
mesma forma, suportando os defeitos, além de
ajudar nas necessidades e dando bons exemplos (IGREJA, 1919, p. 239-244).
Nas regras de condutas para conosco,
parte na qual se ajudariam as meninas a se
atingir o status de santa, a obra dedicada às
donzelas cristãs indicava que a sensação de
prazer é algo proibitivo, sendo que nunca se
deveria apaixonar e somente amar.
Ter sufocado no coração o impulso de uma
paixão, ter arrancado uma imperfeição da
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
alma, é ter lucrado mais do que se conquistasse mil mundos. (IGREJA, 1919, p. 245)
Na construção da nova cristã era desejosa
a sensação de segurança. Partindo daí, diminuiriam as possibilidades das incertezas, ocorridas
muitas vezes dos sentimentos incontroláveis
de paixão, que poderiam escoar em arroubos
de individualidade rebelde. Em contrapartida,
o autocontrole deveria surgir nas meninas, em
troca da possibilidade da construção de um
destino mais previsível. Surgiriam, então, ações
integradas de inculcação de sentimentos e relações afetivas que ameaçassem a existência de
indivíduos que emanavam impulsos e emoções
espontâneas, além de possibilitarem inúmeras
vantagens aos que fossem capazes de moderar
suas paixões. (ELIAS, 1994, p. 198)
“Sufocar o impulso da paixão” de certa
maneira impõe uma prática ascética à criança.
Obviamente, a devassidão já era renegada pela
Igreja há tempos. Contudo, no manual admitia-se um tipo de relação libidinosa das meninas
com o Senhor. Por sua vez, havia regras introjetadas por uma disciplina específica à infância. O que podemos concluir, por enquanto, é
que na ascese tradicional, o desejo era encarado
como proibido e, portanto, evitado; a partir de
então, passou a ser admitido, e, por sua vez,
regulado. Não se evitava tal sensação; ao contrário, admitia-se que os sujeitos pudessem ser
libidinosos, desde que direcionassem a energia
estimulada aos objetos católicos.
Os amores do pai e da mãe como
reguladores dos controles sobre
o corpo
Oremos para que neste mês não se façam
pecados mortais nesta casa.
– Filha, eu próprio me dou a todas as
meninas que me apresentam um coração
puro e amante; queres-me?
– Sim, menino Jesus, eu vos quero, vinde
a minha alma na santa comunhão, e
permanecei com tão boa vontade como
745
estivestes no presépio; minha alma é pobre
como este... mas feliz do que vosso asilo,
sabe amar, quer amar, e expandir seus
sentimentos. (IGREJA, 1919, p. 19)
A afetividade elevada era articuladora
do enamoramento, não a incontrolável paixão
romântica, mas o ascético, dirigido, pragmático,
que se vincula por privilégios ou querendo algo
em troca. Não é uma entrega ao objeto amado,
mas é a criação de um vínculo que resulte em
uma interdependência.
Estabelece-se um contrato amoroso
entre as entidades e seus adoradores católicos,
em que ambos se doam e se tornam fiéis.
Cabia agora aos indivíduos cumprirem o
contrato estabelecido, feito e confirmado
através das promessas, pedidos, venerações e
outras manifestações mais que demonstrassem
o amor. Nunca se poderiam frustrar as
expectativas dos santos ou da Virgem ou de
Cristo com seu comportamento.
Na liturgia católica tradicional, já
se colocava o corpo como objeto central
da salvação, posto no exemplo máximo da
consubstanciação de Deus na carne – no caso
do próprio Jesus. Equivalia-se a demonstrar a
possibilidade da salvação da alma nas maneiras
de se disponibilizar comportamentos que se
afastassem dos pecados, fazendo o centro da
atuação pastoral da Igreja a adequação dos
corpos dos fiéis a uma purificação próxima à
ocorrida com Cristo.
Dispuseram-se, nesse sentido, alguns
artifícios de ajuda ao desejoso da salvação pelo
corpo: um deles seria a eucaristia, representando
a recepção do corpo e do sangue de Cristo,
assim como os ritos de batismo, a crisma, as
bodas e a extrema unção. Todos pretendiam
nada mais que confirmar o domínio que Deus
tem sobre o corpo e indicar a fidelidade dos
sujeitos católicos aos preceitos de purificação.
Por sua vez, houve, a partir do século
XIX, uma atenção exacerbada sobre o corpo de
Jesus durante o seu período de prisão e tortura,
fazendo com que se reforçassem ritos ligados à
746
paixão de Cristo. Os rosários, as cerimônias públicas de via sacras e o culto ao Sagrado Coração
só vieram a reforçar a inculcação do sofrimento corporal impingido ao Salvador para que
ele atingisse a purificação plena (DELUMEAU,
1991). Percebe-se um aprofundamento da carne
como local seleto da inocência e o conforto de
Jesus como o guião paternal.
Assim como o filho, o corpo de Maria
serviu também como modelo de ascetismo e
entidade a ser amada. Enfatizou-se uma Nossa
Senhora que não cometera o pecado original,
abluindo a concepção do Salvador e dando a
sensação às fiéis da possibilidade de uma vida
longe do desejo e do prazer carnal.
– Oremos em união das criancinhas que
hoje morrerem e subirem ao céu.
– Filha, dou-te como festas o véu de minha
santa mãe.
– Aceito com felicidade, menino Jesus, há de
recordar-me a modéstia da santa virgem: que
só a vós queria ver, nem desejava ser vista
por ninguém; com ela, conservarei hoje os
olhos baixos, andarei um pouco mais devagar sem afetação, evitarei tudo que atrai a
atenção dos outros. (IGREJA, 1919, p. 23)
Acompanhada à imagem da Imaculada
vem a da Assunção, devoção crescente também
entre os fiéis católicos do século XIX, que
poderiam conceber uma Maria que não entrou
em estado de decrepitude – já que não poderia
ressuscitar, papel esse de exclusividade de seu
filho. Nessa caracterização, Nossa Senhora
simplesmente subira aos céus sem marcas de
envelhecimento, glorificada em uma eterna
juventude, isenta da decadência corporal
do restante dos mortais. Nossa Senhora se
apresentaria, portanto, casta, maternal e jovial.
– Maria Santíssima é o modelo que estudo.
– Ó minha mãe que delicioso pensamento
tive esta manhã! De joelhos perante
vossa amada imagem eu pensava: Maria
Santíssima foi menina como eu... Ó! Se eu a
Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
tivesse tido por companheira no Templo de
Jerusalém onde, como eu estou aqui ela era
discípula! Então ante meus olhos, como se o
bom Deus quisesse realizar meus desejos, vós
me aparecestes menina, ó Maria Santíssima!
E me dissestes: Sê minha companheira e
amiga, queres sê-lo? (IGREJA, 1919, p. 71)
Em um numeroso panteão de santos, e
mesmo tendo à disposição o próprio Cristo, içouse a figura de Maria, posta em um protagonismo
tão relevante quanto o de Jesus, seu filho.
Dela se poderiam retirar múltiplas qualidades
atreladas ao feminino. Há de se examinar, aqui,
Maria como figura de empoderamento.
Com sua aclamada beleza, a Igreja promoveu uma fusão entre os corpos das fiéis e o da
santa, indicando algo que manteria as católicas
isoladas de seu desejo incitado. A pureza demonstraria uma conduta representativa de autocontrole
e introjetora de comportamentos a serem seguidos. Concomitantemente, abriu-se a possibilidade
do feminino como modelo de conduta.
O culto da Virgem Maria permitiria múltiplas associações, no qual situassem maneiras de
positivação do exercício de poder pela Igreja sobre
os fiéis. Primeiramente, houve o estabelecimento
de uma ética feminina universal – vigiada pelo
pai postiço Nazareno redentor – que moralizava
desejos, canalizados para uma continência sexual
permanente e ao estímulo de um amor materno de
preservação. Em segundo lugar, lançava-se uma
estética da juventude associada à pureza mariana,
que elevou as meninas a uma posição prioritária
na salvação da humanidade.
Conclusão: as mortificações da carne
e o desígnio de controle sobre as famílias
A mulher da segunda metade dos 1800
tornou-se um hospedeiro de colonizações institucionais, sendo a Igreja um deles, percebendo na possibilidade de manipulação do corpo
feminino um poderoso espaço de controle social do mundo católico. Elas saíram de uma
posição de figurantes para o protagonismo da
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
religiosidade, a partir do momento de sua institucionalização via escolarização.
Uma das resultantes foram as pequenas
mortificações, postas como uma das estratégias
de disciplinarização do corpo feminino, substituindo o sangue e a dor, tão frequentes no
Antigo Regime como maneiras de expressividade da penitência. Desse modo, interiorizar-se-ia
o desapego de si mesma no trivial, incluindo-se
uma racionalidade contábil dos pequenos sacrifícios de acordo com a consubstanciação dos
desejos e dos prazeres.
– Oremos pelas companheiras que em outro
tempo nos encaminharam para o mal.
– Deveis mortificar vosso corpo. Não lhe
concedais tudo o que reclama, às vezes
privai-o de alguns dos gostinhos que só
servem para enfraquecer vossa alma.
– Eu me privarei de algumas gulodices nas
refeições. (IGREJA, 1919, p. 178-179)
Nota-se uma diferença em relação à maneira de se pensar a salvação da alma feminina
no catolicismo. Não se indicariam mais as penitências com tanta ênfase, aquelas que pudessem
provocar um autoflagelo às que tivessem já pecado. Em um refinamento do domínio, atuava-se no
pensamento com o intuito de se evitar a priori o
cometimento de pecar.
Por implicação, um arrebatamento natural, as relações de afetividade aumentariam
dentro dos núcleos familiares. Michel Foucault
(2003) chega a lançar a tese de que isso, a partir do século XIX, tenha trazido uma maneira
incestuosa dos parentes se relacionarem. As
famílias passaram a ser o cerne de perpetuação de um dispositivo de controle dos desejos,
tanto na perseguição de um comportamento
perfeito idealizado, como na constituição das
próprias anormalidades.
Deus chamando-vos para este colégio tinha
em vista, sem dúvida, a salvação de vossa
alma, e também a de inúmeras almas, que
vossas orações mais regulares e fervorosas
747
aqui, unidas as de vossas mestras e
companheiras, ajudarão a converter.
O senhor tinha em vista a salvação de
vossos pais, por quem haveis de orar aqui
de modo mais eficaz, porque vossas preces
mais fervorosas estarão impregnadas da
confiança que enternece o coração de Deus
[...]. (IGREJA, 1919, p. 213)
A família era posta como local de chegada dos valores cristãos. Até o século XVII, o viver era essencialmente social. A família existia
como experiência, mas não como sentimento de
pertencimento ou valor moral. A sociabilidade
dos grupos familiares era quase toda publicitada, sobrando pouco à intimidade. As famílias
no século XVIII e, mais marcadamente no século XIX, transformaram-se em pequenas sociedades protegidas, que foram se afastando das
relações sociais, das obrigações civis e das tradições (ARIÈS, 2003). Em realidade, uma tensão
entre a vida privada familiar, organizada pelas
intimidades e um viver público foi mais um dos
resultados dos desmanches das sociedades soberanas e a experiência das sociedades industriais. Ou seja, de um lado os costumes específicos comunitários das famílias se chocaram com
as exigências de civilidade (SENNET, 1988).
De maneira parcial, a Igreja foi uma
das instituições que se aventurou na resolução
dessa tensão, com as tentativas de introjeção
de uma civilidade própria pela via escolar. Os
novos apóstolos se dedicaram a reorganizar as
novas relações sociais, com especial atenção
para as famílias.
Partia-se do pressuposto de que o mundo
público seria viciado e, seguindo esse raciocínio,
seria importante partir do rearranjo das virtudes
das individualidades, para depois passar para as
acomodações parentais e, por fim, lograr alcançar
o corpo social. Controlando-se os desejos de
maneira rígida, manteriam-se as famílias como
os refúgios morais da sociedade, protegidas de
uma vida social encarada como corrompida.
O Manual, em sua segunda parte,
dedica-se a determinar as ações corretas de um
748
dia de uma menina, desde o acordar, passando
pelo vestuário, trabalho manual, as recreações,
os estudos, as refeições e como se deve deitar.
Afirmava que as jovens deveriam acumular
tesouros durante a vida para alcançar a graça de
adentrar no paraíso (IGREJA, 1919, p. 118-119).
Chegou a noite... se o dia foi ocupado no
desempenho dos deveres, vosso será plácido! Não sentis, todas as noites, pensando no silêncio lúgubre que vai cercar-vos,
profundo sobressalto? Este leito com feitio
de túmulo, o sono que vai separar-vos do
mundo inteiro, a escuridão que vos cerca
e através da qual parece que avistais os
olhos de Deus que vos examina, a pequena lâmpada que arde sem ruído, tudo isso
não vos impressiona? Quando se não tem
a consciência tranquila, oh! Como se deve
ter medo! À luz do dia parece que talvez
se possa lutar com Deus: alguém estaria
presente para nos defender... mas de noite... Oh! Silêncio! Recolhimento! Modéstia!
Oração! (IGREJA, 1919, p. 208-209)
O livro reforçava uma investigação retrospectiva do eu, que passou a ser um dos objetos
primordiais de atuação dos sujeitos na modernidade. Estimularam-se arrependimentos, avivaram-se ascetismos, mortificaram-se quereres
carnais; mas, ao mesmo tempo, provocaram-se
desejos celestiais, vontades de individualidades,
cobiças por um mundo mais seguro. A Igreja e
seus agenciamentos, seus enunciados e seus dispositivos convidou os fiéis à construção de si de
maneira autônoma. Porém, no limbo, aos cochichos da escuridão, escondendo os prazeres na intimidade da alcova de Cristo e no colo mariano.
Altruísmo, silêncio, autocontrole das
afetações e outras mais foram prescrições
eclesiais a um tipo de comportamento idealizado
feminino, que foram sendo apresentados por
este texto, nos trechos selecionados do Manual
de piedade da donzela cristã. De uma maneira
sutil, foi-se sugestionando uma subjetividade
a ser alcançada e que se conecta, justamente,
Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
a uma produção disciplinar da mulher, que
fora alçada como componente estrutural das
famílias, indo além da própria sociedade pósrevolucionária que se constituía. Dentro disso,
o indivíduo e os desejos surgidos, as suas ações
ocorridas, os seus comportamentos incididos, os
amores e as paixões brotadas e os usos da carne,
foram se sujeitando a um controle estendido,
a uma racionalização proposta, a uma ascese
imposta, a uma calibração sugestionada e ao
cálculo dos usos do corpo.
Quais os efeitos de poder induzidos e
ambicionados, a quem empunhava as verdades
geradas pelos discursos acerca do desejo? Essa
foi nossa pergunta basilar.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
Decorreria daí tomar-se conhecimento
sob que maneiras, quais vias e como seriam
organizados os discursos competentes acerca
dos comportamentos e pensamentos libidinais
que chegavam aos indivíduos e lhes conformavam condutas. Para nós, a Igreja ingressou
profundamente nessa racionalização do discurso sobre a volição, constituindo, inclusive,
uma própria sobre os comportamentos envolvidos com esse tema através do estabelecimento de verdades, assumindo a posição de
um centro gerador – principalmente em suas
instituições escolares – de uma parte do saber
sobre a sexualidade na modernidade, e, mais
designadamente, a respeito da mulher.
749
Referências
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ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2003.
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VARELA, Julia. Nacimiento de la mujer burguesa: el cambiante desequilíbrio de poder entre los sexos. Madri: La Piqueta, 1997.
Recebido em: 30.11.2012
Aprovado em: 24.04.2013
Carlos Manoel Pimenta Pires é doutorando em História da Educação pela Universidade de Lisboa. Pesquisador da Fundação
para a Ciência e Tecnologia (Portugal). Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Graduado em História pela
Universidade de São Paulo.
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Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século
XIX: o olhar de Paranhos
Victor Andrade de MeloI
Resumo
Muitos autores consideram os anos 1850 como um marco na
história brasileira, pois foi um período em que se conformou, em
diferentes âmbitos, uma estabilidade que permitiu avançar, de forma
mais efetiva, o processo de construção da nação independente. Na
capital, que se tornou foco irradiador de novas modas e costumes,
gestou-se uma dinâmica social mais mundana, uma maior
estruturação do comércio de luxos e entretenimentos. Ao estudar
esse período da história brasileira, este artigo tem por objetivo
discutir os aspectos educacionais que cercavam uma das atividades
comumente promovidas no Rio de Janeiro de meados do século
XIX, os bailes, a partir do olhar de um importante personagem do
Império: José Maria da Silva Paranhos. Trata-se de uma pesquisa
histórica que utilizou como fontes 47 crônicas da série Cartas ao
amigo ausente, publicadas no Jornal do Commercio entre os anos
de 1850 e 1851. Ao final, conclui-se que a visão de Paranhos a
respeito dos bailes tem relação direta com sua percepção e seus
projetos para o país. Os eventos dançantes não eram concebidos
somente como um divertimento, mas, a seu ver, eram também
ocasiões que contribuíam para forjar e fortalecer uma sociedade
civil, composta por distintos setores da elite nacional, que poderia
conduzir o Brasil a um futuro alvissareiro, marcado pelas ideias de
civilização e progresso. Os posicionamentos de Paranhos ajudam
a entender os bailes como uma estratégia de educação do corpo a
partir de três princípios: eficácia, propriedade e identidade.
Palavras-chave
Bailes — Dança — Educação do corpo.
I- Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000004
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Body education – social dance in 19th century Rio de
Janeiro city: Paranhos’ point of view
Victor Andrade de MeloI
Abstract
Many authors consider the 1850s a milestone in Brazilian history,
because it was a period in which stability arose in different areas,
which enabled more effective progress in the process of building
an independent nation. The capital (Rio de Janeiro city), which
disseminated new trends and customs, nurtured a more mundane
social dynamics, and a greater structuring of the trade in luxuries
and entertainment. By studying this period of Brazilian history, this
article aims to discuss the educational aspects of one of the activities
commonly promoted in Rio de Janeiro in the mid-nineteenth century,
the dance balls, from the point of view of an important personage
of the Brazilian Empire: José Maria da Silva Paranhos. The sources
of this historical investigation have been 47 chronicles from the
series Cartas ao amigo ausente (Letters to an absent friend), written
by Paranhos and published in Jornal do Commercio between 1850
and 1851. The study concludes that Paranhos’ view of the balls is
directly related to his perception and his projects for the country.
He perceived the dance events not only as entertainment, but also
as occasions that helped to shape and strengthen a civil society
composed of different sectors of the national elite, which could lead
Brazil to an auspicious future, marked by the ideas of civilization
and progress. Paranhos’ positions help understand the dances as a
strategy for body education based on three principles: effectiveness,
ownership and identity.
Keywords
Balls – Social dance – Body education.
I- Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Contact: [email protected]
752
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000004
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Introdução
E se não fossem os bailes, o que seria do bom povo
fluminense?
José Maria da Silva Paranhos
Carvalho (2012) e Chalhoub (2012), entre
outros autores, consideram os anos 1850 como
um marco na história brasileira. Tendo surtido
efeito a estratégia da antecipação da maioridade
de Pedro II (1840), conformou-se, em diferentes
âmbitos, uma estabilidade que permitiu avançar,
de forma mais efetiva, o processo de construção
da nação independente.
Ainda que persistissem resistências e
ocorrências contraditórias, como a manutenção
da escravidão, foi o período em que mais bem
delineou-se o processo de modernização que, de
alguma forma, já vinha sendo entabulado desde
a chegada da família real portuguesa (1808).
Constroem-se discursos de que o Brasil deveria
ser reconhecido pelo seu caráter civilizado e pela
adesão à ideia de progresso (SCHWARCZ, 1998).
Impactos desse processo são claramente
observáveis no município neutro da corte, que
se tornou o espaço das principais experiências
de modernização do país, foco irradiador de
novas modas e costumes. Gestou-se no Rio de
Janeiro uma dinâmica social mais mundana,
uma maior estruturação do comércio de luxos
e entretenimentos, relacionados, inclusive, à
conformação de uma sociedade civil que desejava
(e precisava) expor publicamente seus símbolos de
status e distinção. Tornaram-se mais valorizadas
as atividades públicas de convivência, quase uma
obrigação para os que desejavam ser reconhecidos
em certos círculos sociais:
[...] é na capital, durante os anos de 1840
e 1860, que se cria uma febre de bailes,
concertos, reuniões e festas. A corte se
opõe à província, arrogando-se o papel de
informar os melhores hábitos de civilidade,
tudo isso aliado à importação dos bens
culturais reificados nos produtos ingleses e
franceses (SCHWARCZ, 1998, p. 111).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Nesse contexto, de um lado, adotaram-se
costumes mais distendidos, frutos, inclusive, dos
mais frequentes contatos no cenário urbano. De
outro lado, aumentaram as preocupações com
os comportamentos a serem adotados. Todos
passavam por um processo de reeducação frente
ao novo dinamismo social.
Isso é, quando o espaço privado, sem deixar
de ser importante, perde força frente ao avanço
das vivências na esfera pública, novas exigências
pendem sobre os indivíduos. Que comportamentos
adotar? Como expressar um gosto apurado tendo
em conta os novos parâmetros? Como isso se
manifesta nas vestimentas, nos cumprimentos,
nos gestos, nas técnicas corporais? Trata-se
claramente de um processo de educação do
corpo. Estou aqui dialogando com as ideias de
Soares (2001, p. 110):
Os corpos são educados por toda realidade
que os circunda, por todas as coisas com
as quais convivem, pelas relações que
se estabelecem em espaços definidos e
delimitados pelos atos de conhecimento.
Uma educação que se mostra como face
polissêmica e se processa de modo singular:
dá-se não só por palavras, mas por olhares,
gestos, coisas, pelo lugar onde vivem.
Concordamos com a autora ao dizer que,
por sua materialidade, esses corpos educados,
ou que se pretende que assim o sejam, são
uma representação da sociedade, permitindonos prospectar a “dinâmica de elaboração dos
códigos a que devem responder”. Ao seu redor é
possível compreender “as técnicas, pedagogias e
instrumentos desenvolvidos para submetê-los a
normas” (SOARES, 2001, p. 111). Trata-se não só
de um processo que pende sobre os indivíduos,
mas sim sobre a sociedade como um todo, sendo
inegável seu caráter político: gestar grupos e
governar comunidades passa, inequivocamente,
pela necessidade de estabelecer parâmetros de
educação corporal.
Nessa perspectiva, a educação do corpo
se cruza com a educação das sensibilidades e dos
753
sentidos. Devemos ter em conta o desafio apontado
por Oliveira (2012, p. 08) para melhor entender a
especificidade dessa intervenção educacional:
Para tentar uma aproximação dessa dimensão
da nossa humanidade, pretendemos
inscrevê-la no âmbito de um conjunto de
influências mutuamente complementares.
A natureza, a estética, a ciência, a cultura,
entendida como síntese da economia, da
política, da sociedade, por mais que sua
separação remeta a dificuldades que não são
de fácil resolução, são os âmbitos nos quais
os sentidos, a sensibilidade e sua educação
podem ser percorridos pelo historiador.
Partindo dessas considerações, este
estudo tem por objetivo discutir os aspectos
educacionais que cercavam uma das atividades
comumente promovidas no Rio de Janeiro de
meados do século XIX, os bailes, a partir do olhar
de um importante personagem daquele cenário:
José Maria da Silva Paranhos. Trata-se de uma
pesquisa histórica que utilizou como fontes 47
crônicas que o autor publicou, entre os anos de
1850 e 1851, no Jornal do Commercio.
Dialogando com as posições de René
Remond (2003), metodologicamente este estudo
transita entre a história política e a história
cultural. O político é considerado como um ponto
de condensação que, a partir de instituições e
funções caracterizadas como estatais, se irradia
para todas as outras esferas da vida social,
influenciando e sendo influenciado por elas.
Assim, argumentamos que se as agências
que promoviam os bailes não eram efetivamente
órgãos estatais, eram, contudo, compostas por
lideranças nacionais e tinham seu funcionamento
de alguma forma relacionado a algumas demandas
e necessidades do país.
Neste momento, cabem algumas linhas
para apresentar o personagem com o qual
dialogaremos. Paranhos, o futuro visconde do Rio
Branco, nasceu na Bahia (em 1819). Deslocou-se
para o Rio de Janeiro na década de 1830. Estudou
na Academia da Marinha e na Escola Militar, de
754
onde se tornou professor. Inclusive em função
do estrato social de sua família (que não era das
mais ricas), não estabeleceu, como era comum
em muitas lideranças do país, uma relação direta
com a advocacia.
Desde os anos 1840, atuava na imprensa,
primeiro fórum público do que viria a ser uma
brilhante carreira política e diplomática: foi um
dos principais estadistas do Segundo Reinado,
tendo ocupado postos-chave e se envolvido com
importantes acontecimentos do Império. Foi
responsável por implementar uma série de reformas
no país, notadamente quando esteve à frente do
Conselho de Ministros, entre 1871 e 18751.
No Jornal do Commercio, Paranhos
ingressou em dezembro de 1850, na condição
de autor anônimo da série Cartas ao amigo
ausente, publicada até outubro de 1851,
quando viajou para o Uruguai, por motivo de
serviço diplomático. Criado em 1827, tendo
como foco as questões da economia, esse
periódico paulatinamente foi mudando de
perfil, passando também a se debruçar sobre a
política e assuntos mundanos. Foi um dos mais
importantes jornais do Império, sendo um dos
responsáveis por implementar inovações na
imprensa e por torná-la um fórum público de
grande relevância (JUNQUEIRA, 2010)2.
Há divergências a respeito de quem seria
o pioneiro da crônica brasileira. De toda forma, a
atuação de Paranhos no Jornal do Commercio pode
ser considerada como exemplo de um cronista
em ação (EWALD, 2000). O autor abordava, com
cumplicidade com o leitor, o que acompanhava
em todos os âmbitos na vida da corte:
Paranhos participava de todas as festas,
frequentava o Prado, adorava os bailes e
recomendava sempre aos que o escutavam
que gozassem o mundo, porque fugaces
labuntur anni (RODRIGUES, 2008, p. xviii).
1- Paranhos foi, ainda, Ministro das Relações Exteriores (1855-1857;
1858-1859), Ministro da Marinha (1853-1855; 1856-1857), Ministro da
Guerra (1871) e Ministro da Fazendo (1871-1875).
2 - Atuaram no Jornal do Commercio grandes personalidades do país. É
publicado até os dias de hoje, pelo grupo Diários Associados.
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Deve-se ressaltar que seus posicionamentos
são uma representação, um olhar de um
personagem que já era reconhecido, mas que
se encontrava ainda no início de uma trajetória
que lhe alçaria ao posto de um dos mais
importantes do Império. Seus pontos de vista
são marcados não exatamente pelo frescor da
juventude, mas sim por uma ainda instável
certeza de meia idade acerca dos projetos para
a nação, que ele mesmo vai contribuir para
operacionalizar nas décadas seguintes.
Nesse sentido, essas crônicas podem
ser consideradas como “uma fonte primordial
para o conhecimento do Império, num de seus
períodos mais característicos” (RODRIGUES,
2008, p. X), uma “fonte autêntica, viva, diária,
cotidiana, para captar o sentido, o valor, a
significação, o ethos da reviravolta que se opera
na década de 1850” (p. XXII). Fonseca (2007)
concorda com esse ponto de vista, destacando
que, nesses escritos, Paranhos discutiu seus
projetos para o país a partir de um olhar de
quem era egresso das fileiras das escolas
militares, e não da faculdade de direito.
Consideramos, assim, produtivo prospectar
seus posicionamentos acerca dos bailes e sociedades dançantes, novas organizações da sociedade
civil que funcionavam mesmo como instâncias
educacionais, informando os possíveis usos do
corpo, dramatizando as tensões relacionadas aos
projetos de grupos engajados no forjar da nação.
Devem-se considerar algumas peculiaridades dos bailes abordados por Paranhos.
Inegavelmente, esses eventos frequentados pelas elites do Império dialogavam com referências que chegavam da Europa. Seria um equívoco, todavia, encará-los como uma cópia do
que ocorria no velho continente. Havia, sim,
movimentos de reelaboração, a incorporação
de peculiaridades do jovem país que ainda iniciava seu processo de construção identitária:
É dentro dessa complexa dialética do
nacional e do universal que se deve
interpretar a rica produção cultural do
Segundo Reinado. (CARVALHO, 2012, p. 35)
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Além disso, havia ainda uma grande
ruptura: “Povo e elite mantiveram-se em
mundos à parte no campo cultural, assim como
no mundo social e político” (CARVALHO, 2012,
p. 35). A dança era uma das práticas nas quais
essa separação claramente se manifestava:
“o reisado, o lundu, o batuque, o maxixe
contrastavam com a valsa e a polca dos salões”.
(CARVALHO, 2012, p. 35).
Vejamos como se estruturava a prática
da dança naquelas décadas de 1840/1850.
A sociedade fluminense dança
O baile! O baile é sempre o baile! Estas interjeições
exprimem as mais sérias preocupações, os mais vivos e
afetuosos sentimentos da atual sociedade fluminense.
José Maria da Silva Paranhos
Na transição dos anos 1840/1850, no Rio de
Janeiro, já não era uma novidade a dança de salão,
aquela que é praticada não de forma espontânea
nas ruas, mas sim em espaços fechados, seguindo
regras e princípios coreográficos variáveis de
acordo com diferentes estilos.
Sabe-se que, já instalado no Brasil, D.
João mandou vir de Portugal, em 1810, o mestre
de dança Pedro Colonna (CAVALCANTI, 2004).
No ano seguinte, desembarcou na colônia o
francês Luis Lacombe, que passou a oferecer seus
serviços de docente e a coreografar espetáculos
apresentados nos teatros da Corte (SILVA, 2007).
De fato, com a chegada da família real
portuguesa, em 1808, houve grandes mudanças
no cotidiano colonial, notadamente no Rio
de Janeiro. A vida pública se tornou mais
agitada. Os bailes, seguindo padrões europeus,
tornaram-se mais comuns, dinamizados por
mestres que chegavam do velho continente.
Eram promovidos em teatros, nas residências
das elites, nas festividades da Coroa:
As danças se aperfeiçoavam com mestres
entendidos. Luiz Lacombe não tinha mãos
a medir e multiplicavam-se salões e saraus
onde suas discípulas exibiam passes e passos
de bem aprendidas graças coreográficas. Os
755
cabeleireiros e os mestres de danças [...]
gozavam de grande prestígio e maiores
proveitos (PINHO, 1942, p. 15).
Em 1815, é fundada a Assembleia
Portuguesa, com o objetivo de reunir pessoas
influentes em torno de certos divertimentos, entre
os quais bailes, previstos nos estatutos, seguindo
rígidas normas de etiqueta (SILVA, 1978), uma
iniciativa que não teve longa duração.
Uma nova agremiação dedicada à
dança surgiu somente em 1834, presidida
por um importante personagem do Império,
o conselheiro Diogo Soares da Silva de Bivar.
Ficou conhecida como Bailes do Catete, atraindo
não somente membros da aristocracia, como
também comerciantes, estrangeiros ligados
a órgãos diplomáticos, pessoas envolvidas
com os novos negócios que se estruturavam
na cidade (CARDOSO, 2006). Essa sociedade
teria sido uma das primeiras a abolir a grande
separação que existia entre homens e mulheres
nas atividades públicas (ZAMITH, 2011).
Por volta da mesma época foi criada
a Assembleia Estrangeira, presidida por
Marcelino José Coelho, importante liderança
dos comerciantes fluminenses. Sua sede, uma
casa alugada do marquês de Barbacena, também
se localizava no bairro do Catete. Gozando de
certo prestígio na cidade, chegou, em 1841, a
oferecer o mais badalado baile em homenagem
à coroação de Pedro II.
O Almirante Graham3 muitas vezes esteve
nessa agremiação. Em setembro de 1835, observou
a presença de cerca de 400 pessoas de “todas as
classes” (HAMOND, 1984, p. 90). Em outra ocasião,
em um baile à fantasia realizado em junho de 1836,
chegou a comentar: “Não sei se jamais me diverti
tanto, pois não me lembro de ter parado de rir um
só momento” (HAMOND, 1984, p. 128).
Era, de certa maneira, uma novidade essa
mistura de distintos grupos sociais (aristocracia,
3- Graham Eden Hamond esteve, no Rio de Janeiro, em 1825, comandando
o navio que trouxe Charles Stuart, embaixador responsável por negociar
o reconhecimento português da independência brasileira, e, entre 1834 e
1838, como almirante-em-chefe da esquadra do Atlântico Sul. 756
comerciantes, negociantes em geral). Esse
quadro gerou a necessidade de estabelecimento
e aprendizado de novos comportamentos,
que deveriam ser informados pelas agências
educativas (notadamente a família e a escola),
mediados pela imprensa, que repercutia o
momento pelo qual passava a cidade.
Graham também compareceu a eventos
promovidos pela Sociedade Praia-Grandense,
localizada em Niterói. Ao comentar a inauguração
do novo salão de baile da agremiação, foi
eufórico: “o melhor que já vi até hoje” (HAMOND,
1984, p. 112). O inglês percebeu que, embora
suas atividades contassem com importantes
personagens do Império, o regulamento do clube
sugeria que os frequentadores deveriam se vestir
de maneira mais simples. Nos convites, aliás,
deixava-se claro: “He proibido o luxo no trajar,
e o uso de brilhantes, e pérolas” (HAMOND,
1984, p. 112). Avaliação positiva teve também
outro estrangeiro que lá esteve em dia de festa,
o norte-americano Charles Wilkes4: “Raras vezes
vi tão bom gosto nos arranjos e uma sociedade
tão distinta” (HAMOND, 1984, p. 197). Como
observado, tratava-se de novos comportamentos
públicos que deveriam ser observados pelos que
desejassem se integrar à dinâmica social em
construção.
Essas iniciativas dos anos 1830/1840
não alcançaram a projeção que conseguiram as
agremiações criadas na década de 1840/1850.
Entre tantas, algumas merecem destaque. O
Cassino Fluminense foi fundado em 1845, com o
fim de: “proporcionar a seus membros honestos
divertimentos, por partidas de Baile e Música”
(ALMANAK LAEMMERT, 1849, p. 227). A
diretoria, eleita a cada dois anos, era composta
por insignes personagens do Império. O primeiro
presidente foi Luiz Fortunato de Brito Abreu
Souza e Menezes, desembargador e um dos
grandes nomes da advocacia de seu tempo.
Essa agremiação foi, de fato, uma das
mais importantes do Rio de Janeiro do século
XIX (NEEDELL, 1993). Como a ela se referiu
4- Wilkes esteve na cidade liderando uma expedição científica, a United
States Exploring Expedition.
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Paranhos na crônica do dia 27 de abril de 1851:
“o aristocrático Cassino, que conta em seu seio
com todas as glórias parlamentares presentes e
passadas, todas as sumidades políticas e cortesãos
[...]”. Sua sede da rua do Passeio foi um importante
centro de encontro das elites nacionais.
Também merecem destaque, pela repercussão de suas atividades e pelos personagens
que as integraram, a Sociedade Recreação
Campestre, a Assembleia Fluminense e a
Sociedade Amizade, mas de fato muitas eram
as agremiações que promoviam bailes para
diferentes estratos das elites e setores médios5.
Houve também espaços populares de dança
que se organizaram no decorrer do século XIX.
Esse é o caso do Salão do Caçador, criado em 1859,
no Largo de São Domingos. Segundo Francisco
Macedo, seus “frequentadores se compunham
da mais ínfima espécie de rameiras e devassos”
(PECHMANN, 2002, p. 315). Esse médico, tão
preocupado com a moralidade pública, lembrava
outros locais, a seu ver marcados pela devassidão,
onde bailes eram oferecidos: Bailes do Rachado,
Bailes do Ângelo, Chico Caroço, Salão do Oriente,
Fábrica de Cerveja de Mata-Cavalos.
Na verdade, a prática da dança por
populares sempre sofreu restrições, notadamente
quando se dava em espaço público. Pelos jornais,
é comum encontrarmos indícios dessas tensões,
comunicados de repressão ou solicitações de que
alguma medida fosse tomada. Havia um claro
processo de estabelecimento de um modelo
correto de diversão, relacionado a iniciativas
de controle da ordem pública, relacionadas a
um perfil civilizacional que determinava o que
deveria ser aceito ou não.
O perfil dos dirigentes das agremiações
mais renomadas é um indicador das suas
intencionalidades. As elites, que no processo
de construção da nação precisavam mesmo
se reconhecer como tal, utilizavam os bailes
como forma de identificação e diferenciação,
5- Alguns exemplos: Recreio dos Militares, Harmonia dos Empregados
Públicos, Sylphide, Minerva, Floresta, Cassino Americano, Dois de
Dezembro, Assembleia Familiar Fluminense, Lísia, Vestal, Recreação
Brasileira, Terpsícore, Ulisséa, Nova Eleusina, Amante do Recreio.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
ocasiões nas quais se minimizavam as tensões
internas, celebravam-se alianças e acordos,
estabeleciam-se distinções com quem estava
fora (e entre quem estava dentro). Saber dançar,
assim, passou a ser uma necessidade. Não
valia qualquer dança, mas estilos considerados
civilizados. Nada que se confundisse com
as práticas populares, razão pela qual era
necessário aprender a forma correta de bailar.
É interessante citar que, em 1854,
foi lançado, sendo editado pela Laemmert,
provavelmente o mais antigo manual de dança
publicado no Brasil. Leiamos a descrição:
Arte da dansa de sociedade ensinada em lições
claramente explicadas por meio de trinta e
duas figuras gravadas e contendo além de
contradanças gerais, das figuras da valsa, da
polka, da schottisch e da redowa as marcas
das contradanças provinciais e de várias
outras inteiramente novas. (ZAMITH, 2011)
Nesse cenário, não surpreende que a
dança tenha sido introduzida nas escolas, antes
mesmo da ginástica e dos esportes. Vejamos,
por exemplo, o caso do Colégio Pedro II. Já
no primeiro regulamento previa-se no artigo
54: “As lições de Dança serão dadas nos dias
de feriados aos Alumnos, cujos Pais houverem
determinado que a aprendão” (BRASIL, 1838).
Tratava-se de um curso à parte, ainda assim
sendo digno de registro que tenha sido previsto.
O primeiro professor de ginástica
dessa instituição, Guilherme Luiz de Taube,
somente foi contratado em 1841. Frente
à dificuldade de conseguir outro docente,
quando ele deixou a instituição em 1843, o
reitor, Joaquim Caetano da Silva, chegou a
propor ao Ministério do Império:
Não sendo facil achar hum bom Mestre de
gymnastica, e correndo os alumnos continuo
risco, se elle sahir maó; com o mais profundo
respeito tenho a honra de lembrar a V. Exc.
a conveniencia de substituir-lhe hum Mestre
de Dança (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 170).
757
Como podemos notar, no espírito do
tempo, dança e ginástica eram equiparados
como estratégias de educação corporal no
âmbito da prestigiosa instituição.
Com a Reforma Couto Ferraz (BRASIL,
1854), que estabeleceu novas normas para
o ensino primário e secundário na corte, a
dança se tornou obrigatória no Colégio Pedro
II. Nas décadas de 1850 e 1860, a prática se
manteve. Em 1865, por exemplo, havia 141
matriculados em suas turmas (80 do internato e
61 do externato), número superior à maioria das
matérias, sendo que a aula era ministrada para
todas as séries, por isso o número tão grande6.
Cumpre ressaltar que somente nos anos 1870,
seria suprimida da instituição (BRASIL, 1870).
A dança também era oferecida no ensino
privado. Nas décadas de 1840/1850, entre as
escolas masculinas, podemos citar: Colégio
D’Instrução Elementar (futuro Colégio de Santa
Cruz); Colégio de São Pedro de Alcântara;
Liceu Comercial; Instituto Comercial (futuro
Colégio Freese) e Liceu Rossmalen. Já entre
as femininas, citamos: Colégio de Instrução
e Educação de Meninas (futuro Colégio de
Botafogo); Colégio de Meninas (Madame
Lacombe); Colégio de Meninas da Baroneza
de Geslin; Colégio Augusto; Colégio de Santa
Cecilia; Colégio Estrella; Colégio Madame Luiza
Halbout; Colégio Emulação da Juventude;
Colégio Madame Carolina; Colégio da Lapa
e Colégio Miss Steinmetz. Atuavam como
professores, nessas instituições ou oferecendo
aulas em salas particulares: Antonio Maria
Rioja Castelini, Carolina Caton, Francisca
Farina, Francisco York, João José da Rocha,
Julio Toussaint, Madame Lacombe, Miguel
Vaccani Junior, entre outros.
Desde a década de 1820, frequentemente
se apresentava a dança como um conteúdo das
iniciativas educacionais. Por exemplo, em 1828,
D. Tereza Fortunata da Silva informava que no
6- Confira Mappa das matrículas do Imperial Collegio de Pedro II,
único estabelecimento publico de instrucção secundaria, por matérias.
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1740/000085.html>.
Acesso em: 11 abr. 2013. 758
seu colégio de meninas havia “os seguintes ensinos ler, escrever, contar, gramática portuguesa, desenho, dança, coser, bordar, e marcar, etc.”
(JORNAL DO COMMERCIO, 08/01/1828, p. 2). A
prática também era oferecida como parte da educação masculina, como podemos ver nesse anúncio do mesmo jornal, em 17/01/1831 (p. 4):
[...] a cuja casa se poderá dirigir qualquer
pessoa que quiser aprender, ou mandar
ensinar a meninos quaisquer das preditas
letras, ou qualquer das duas línguas. Os
hábeis mestres poderão ensinar também as
línguas latina, e alemã, a dançar e a desenhar.
Em muitos países aconteceu processo
semelhante. Lousada (1998) informa que o
mesmo ocorrera em Portugal, desde a transição
dos séculos XVIII e XIX, tendo a dança se
incorporado às exigências de educação, de
homens e das mulheres, não mais só da
aristocracia, como também de setores médios.
Este é um tema fascinante, que
pretendemos aprofundar em outras ocasiões.
Da mesma forma, vale investigar melhor as
muitas sociedades que ofereciam os bailes. Esse
artigo, contudo, é dedicado a discutir o olhar
de José Maria da Silva Paranhos, analisando
como esse notável personagem do Império
teria se posicionado frente à febre de atividades
dançantes e refletido a respeito das necessidades
de comportamentos que deveriam ser adotados.
Uma febre dançante: os bailes no
olhar de José Maria da Silva Paranhos
Não exagero dizendo que uma febre dançante
se apossou do espírito, ou antes das pernas dos
habitantes desta boa cidade do Rio de Janeiro. Por
toda a parte e todos os dias ouve-se falar de bailes,
uns com antecedência anunciados, outros de repente
improvisados. Vai-se visitar a um conhecido velho,
na intenção, após a tarefa do dia, de gozar alguns
minutos de repouso, e eis senão quando acha-se um
homem numa sala de dança. Se alguém vai à casa de
um amigo para passar algumas horas em agradável
prática, e esse amigo tem irmãs, filhas ou primas,
acham-se lá dois homens que lhes possam
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
servir de vis-à-vis, improvisa-se imediatamente uma
contradança. E como fugir a esta nova espécie de
leva forçada? Pede-se com tanta graça, com palavras
tão doces, que, a menos de faltar a todas as regras
da civilidade fluminense, não há alternativa, é forçoso
aceitar o convite e dançar muito risonho.
José Maria da Silva Paranhos
José Maria da Silva Paranhos não
deixou passar despercebido esse movimento
de valorização da dança no Rio de Janeiro de
meados do século XIX. Para ele, tratava-se de
um desdobramento da busca de sintonização
com o continente europeu e da influência dos
estrangeiros que chegavam ao país. Era um
sinal de que a cidade passava por profundas
mudanças e “perdia a inocência”: “O Rio de
Janeiro tem mudado tanto, que custa a conhecêlo” (PARANHOS, 13/01/1851). Seu olhar não
era somente uma constatação, mas também
uma celebração. Para ele, a sociedade da corte
deveria aprender a se comportar como os povos
“mais desenvolvidos”, adotando parâmetros de
vida “mais civilizados”.
Paranhos percebeu que se diversificavam os divertimentos, tornando-se mais ativa a vida pública. Um dos indícios desse novo
cenário seria a multiplicação das “sociedades
de baile, de dança, musicais e dramáticas”
(PARANHOS, 24/02/1851). Mesmo os problemas da cidade, o rigoroso clima e a epidemia
de febre amarela não conseguiam aplainar o
ímpeto dos que compareciam aos eventos promovidos por essas agremiações. O autor escreve em 24/02/1851: “não há calor nem febre
que tenham o poder de intimidar os seus cavalheiros e as suas belas”.
O cronista não usava meias palavras para
definir o que ocorria, a seu ver, na sociedade
fluminense. Na crônica de 11/05/1851, escreveu:
Continua o furor bailante com tal
intensidade, que se pode temer que daí
venha a nascer alguma febre simples ou
mista, conforme for só devida a alguma das
três espécies – valsa, polca e contradança –,
ou às suas possíveis combinações.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Era categórico, como podemos notar
nesse trecho, escrito em 24/08/1851:
Nem mais, nem menos! Aqui executa-se a
polca, acolá a contradança, mais adiante a
valsa, e por toda a parte a graciosa e delicada
schottisch, que muitos alteram a seu belprazer, sem se lembrarem que outrora a
dança era uma arte, senão quase uma ciência.
Para Paranhos, não havia exceções,
tratava-se de uma vaga que a todos envolvia,
inclusive “aqueles sobre quem repousam os
futuros destinos do país”, que “entregamse a exercícios coreográficos, para não dizer
ginásticos” (PARANHOS, 24/08/1851).
De forma ocasional, Paranhos, ao
mobilizar a ideia de ginástica, uma prática que
ainda era embrionária na sociedade fluminense,
deixa transparecer que encarava a dança como
um exercício corporal.
Devemos perceber que esse elogio à
dança era simultaneamente motivo de júbilo e
preocupação. Essa nova performance pública era
fundamental para a sociedade, mas deveria ser
experenciada de forma adequada, de maneira
a efetivamente significar algo produtivo para
a consolidação da nação, entendida, como já
dissemos, a partir de parâmetros civilizados, isso
é, inspirados em países que tinham aderido mais
explícitamente ao discurso e ideário modernos.
Para nosso cronista, os eventos dançantes
se constituíam mesmo no principal assunto da
cidade. A chegada de um novo estilo de dança
era comemorada como uma grande novidade.
A schottisch, por exemplo, é enfaticamente
saudada por ser mais adequada ao caráter dos
brasileiros. Em mais de uma ocasião, aliás,
Paranhos chegou a considerar um baile como
o mais importante acontecimento da semana.
A cada atividade promovida, centenas de
pessoas compareciam. O que tanto entusiasmava
os amantes dos bailes? A dança em si, certamente,
que gerava uma proximidade física ainda inusitada
naquele momento. A possibilidade de ouvir boa
música também. Todavia, eram bem mais amplos
759
os estímulos que envolviam essas ocasiões que
movimentavam a sociedade fluminense.
Algumas motivações pareciam bem
frugais, como sugere Paranhos ao observar, na
crônica de 24/02/1851, o “grande número de
gastrônomos que lá vão somente pelo cheiro
dos sorvetes e dos sequilhos”, preparados pelas
mais importantes confeitarias da cidade, como
a Francioni, que assim anunciava: “Incumbe-se
de qualquer função, e aluga todo o necessário
para o serviço tanto da mêsa quanto para os
bailes” (ALMANAK LAEMMERT, 1851, p. 388).
A Castellões não deixava por menos,
publicando um anúncio ainda maior, no qual
informava que possuía “o mais completo e
variado sortimento de doces finos, tanto para chá,
quanto para bailes, funções, etc.” (ALMANAK
LAEMMERT, 1851, p. 388), um serviço que já há
algum tempo era oferecido, como podemos ver
no Laemmert de 1847 (p. 409): “O apreço que
tem tido os doces de sua casa, lhe tem grangeado
a fama publica, e a freguesia das sociedades
Philarmonica e Assemblea Fluminense”.
Nosso cronista observou, no texto de
01/06/1851, de forma bem humorada, que esses
atrativos gastronômicos por vezes interferiam
no bom andamento dos bailes. Jovens, com
“apetite e sede insaciáveis”, esqueceriam as
danças, fazendo “uma guerra desapiedada aos
sorvetes, aos canudos, aos pastéis, às empadas
e aos sanduíches”. As soluções para “refrear esse
terrível bando de cossacos” seriam: chamar a
atenção dos pais; atrair-lhes o interesse pelo “belo
sexo”; em último caso, desenvolver estratégias
para despistar e enganar os “agressores”.
Claramente conclamava nosso cronista
que se aprendesse a lidar com essa novidade,
que de forma ambígua apresentava novas
possibilidades de vivência social pari passu
com novos rigores comportamentais. Esses
acontecimentos aparentemente ingênuos
se relacionavam a uma exigência que se
impunha aos frequentadores dos bailes: a
necessidade de saber se portar em público.
Isso passava pela forma de se vestir, pelo
domínio das técnicas de dança, mas também
760
pela maneira de se portar frente ao outro,
notadamente porque havia uma nova
personagem em cena: as mulheres, que não
foram só partidárias, como também agentes
importantes das mudanças em curso. Como
colocado por Silva (2011, p. 52), a elas:
[...] deve-se uma parte importante do
processo de modernização, europeização
e afrancesamento do Rio de Janeiro, que
iria contaminar paulatinamente as outras
urbes brasileiras.
O aumento de sua presença social
tumultuava a ordem dos desejos e dos
procederes. Até mesmo por isso, muitas eram
as críticas que pendiam sobre os bailes, por
Paranhos, com a ironia de sempre, contestadas.
Leiamos um trecho, da crônica de 11/05/1851:
Não imito o esdrúxulo filósofo dos nossos
tempos que, em um baile, o que mais sentia
era a dor que lhe causava a ideia da imensa
quantidade de carneiros sacrificados à
casquilharia das luvas de pelica. Não
posso tolerar a hipocrisia com que certa
presumida matrona, que já está entre
duas idades, prega contra a licença das
folias dançantes, e revestindo-se de toda
a gravidade, diz que nem em sua livraria
permite o contato dos autores machos com
os autores fêmeas. Não aconselho que os
nossos vigários imitem o cura de Bellebat,
que, para evitar que nos festins houvesse
alguma indecência, tocava ele próprio o
violão e fazia dançar os seus paroquianos.
Mas também não posso deixar de perguntar
a certos rigoristas se quando eles pregam
do púlpito contra a dança e os prazeres
humanos, não os espera lá no refeitório um
suculento jantar ou gorda ceia.
Havia também, é verdade, o oposto, uma
expectativa de algumas famílias de que a frequência aos bailes pudesse gerar bons casamentos,
postura igualmente ironizada por Paranhos:
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Só as moças que aspiram ao ministério
doméstico e desejam contribuir para o
aumento legal da humanidade, é que vão
perdendo de todo a fé nos tais bailes.
(PARANHOS, 27/04/1851)
De toda forma, em vários momentos, o
cronista defendeu uma maior liberdade feminina,
para ele um sinal de que avançavam os costumes.
Mais ainda, sugere que as atividades dançantes
desempenhariam um importante papel:
Há mesmo quem pretenda que a educação
das mulheres não se pode operar sem os
bailes; que as mulheres criam-se no salão,
como o general no campo da batalha,
como o homem de ciência no gabinete,
como o homem de Estado nos escritórios
de jornal e nas discussões da tribuna
.(PARANHOS, 27/09/1851)
Ao sugerir que os bailes eram fundamentais na educação da mulher sintonizada com os
novos tempos, Paranhos enfrentava os que se
apegavam ao passado. Todavia, não pensemos
que tinha uma visão idílica dos eventos dançantes. Para ele, essas ocasiões não deveriam se
tornar um vício. Chega a sugerir que as mulheres que se submetem “ao violento exercício coreográfico de dois, três e seis bailes por semana”
(PARANHOS, 31/08/1851) acabam adquirindo
uma má fisionomia. Mais ainda, preocupa-se
com os elevados custos:
A sociedade fluminense está a tal ponto
atacada da febre dançante e fascinada com
os prazeres da comédia dos bailes, que
começo a recear pela saúde e felicidade
das belas, pelos fundos dos pais e pelo
crédito comercial de muitos elegantes.
(PARANHOS, 31/08/1851)
No seu modo de entender, os excessos
poderiam até mesmo ser prejudiciais à saúde
e “um veneno corrosivo da moral pública, da
felicidade doméstica e da fortuna privada”:
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Então o luxo e os prazeres, já não correspondendo às posses daquele que os quer ostentar
e gozar, longe de serem lícitos e salutares,
corrompem os bons costumes de uma família ou de uma nação morigerada, excitam a
cobiça, acostumam às intrigas e às baixezas
e solapam pouco a pouco os alicerces da probidade. (PARANHOS, 11/05/1851)
Trata-se de uma posição interessante. Ao
propor uma distensão dos costumes, de forma
alguma sugeria abandonar a moralidade pública. Muito pelo contrário, para não por em risco
uma instância tão importante para o país que
estava nascendo, dever-se-ia ter em conta os
novos rigores que a nova dinâmica exigia. Por
isso sua grande preocupação com a educação
dos que iam aos bailes: se limites não fossem
estabelecidos, perder-se-ia sua potencialidade.
De toda forma, o cronista exaltava
os bailes, lembrando, inclusive, que tinham
potencial econômico. Em 11/05/1951 escreveu:
[...] favorecendo o consumo dos objetos
do tom ou de luxo, animam a indústria
e o comércio, e tornam-se por este modo
tão protetores do progresso material do
país como provado fica que o são da sua
civilização política e moral.
Lembra que, na alta temporada, a cidade
entrava em polvorosa, como colocado na
crônica de 27/04/1851:
Felizes cabeleireiros, alfaiates, lojistas, modistas, e o restante da legião de industriosos suíços a serviço dos fashionables e das
elegantes de todas as idades.
Para Paranhos, havia um ganho ainda
maior – fortalecer elos entre distintos grupos.
Em 11/05/1851, afirmou:
[...] reunindo debaixo do mesmo teto,
e obrigando o saquarema e o luzia, o
cabeludo e o liso, o cabano e o bentevi,
761
a dançarem na mesma sala e ao som
da mesma orquestra, acostumam estas
diferentes espécies de animais do Brasil a
viverem sem se devorarem uns aos outros.
Deveria ser, assim, celebrada a costumeira
presença de: “Todas as classes, todas as profissões
nobres, todas as ciências, todas as opiniões ou
personalidades” (PARANHOS, 18/08/1851).
Essa linha de argumentação, que tem
relação com sua compreensão de que é necessário
gestar uma sociedade forte e organizada, uma
dimensão fundamental para garantir o futuro da
nação, está presente das mais diferentes formas
nas crônicas de Paranhos. Pode ser vista quando
celebra as novas possibilidades de encontros
entre homens e mulheres. Também quando
comenta, com o entusiasmo de sempre, um baile
promovido pelo Recreio dos Militares, no salão
do Floresta.
O cronista julga que essas ocasiões
ajudariam a fortalecer os laços entre militares
e civis, atitude fundamental para garantir a
defesa nacional. Além disso, considerava que
era uma forma de suavizar a dureza da vida
na caserna. Discordava, aliás, que a dança
prejudicaria a preparação do combatente. Para
ele, a marcialidade de algumas músicas até
mesmo despertaria “os instintos guerreiros” e
os tornaria “apaixonados da sua vida ativa e
aventurosa” (PARANHOS, 10/08/1851). Uma
vez mais vemos nas posições de Paranhos a
sugestão de que se tratava de uma contribuição
para a educação do corpo, nos moldes que
apresentamos na introdução.
Essa valorização da confraternização
entre os diferentes é, de alguma forma, similar
à sua posição a respeito do quadro político
nacional, da necessidade de conciliação
para o bem da nação, algo que se manifesta
frequentemente em suas crônicas no Jornal
do Commercio:
Nas Cartas ao amigo ausente, nota-se que
a discussão de Paranhos, quase sempre,
gira em torno da necessidade de um
762
acordo entre os partidos, em benefício dos
melhoramentos técnicos e materiais do
país. (FONSECA, 2007, p. 11)
Esse posicionamento ajuda-nos a compreender o seu entusiasmo com os eventos do
Recreação Campestre. Para ele, era uma agremiação mais democrática, onde importantes
personagens da sociedade nacional se permitiam contatos mais descontraídos, em um ambiente marcado por menos constrangimentos.
Como escreveu em 01/06/1851: “O baile campestre é uma dessas concepções que imortalizam os seus autores”.
Enfim, Paranhos encarava os bailes
como uma forma de polir os costumes, a fim de
gestar o que ele chama de civilização popular.
Há que se ter claro, todavia, quem desejava
que integrasse essa confraternização. Não se
tratava de propor uma comunhão entre elites e
populares, mas sim entre os diferentes estratos
das elites, como enumera em 24/08/1851:
Havia artistas, especieiros, comerciantes de
pequeno e grosso trato, militares, médicos,
advogados, deputados, senadores e ministros: os pequenos acotovelando-se com os
grandes, e todos confundidos nesse utilíssimo e bem entendido sistema de igualdade.
Vejamos como, em outra ocasião, definiu
os presentes em um baile:
Todas as classes aí estão representadas – as
artes, as letras, a indústria, a lavoura e o
comércio; o funcionário civil e o militar,
grandes e pequenos, a inteligência e o
dinheiro, o talento e a felicidade, o nacional
e o estrangeiro. (PARANHOS, 21/09/1951)
Na verdade, Paranhos não desconsiderava
os benefícios das danças para a população em geral, encarando-as, contudo, a partir de uma funcionalidade específica. A questão era educar os
populares para que, de forma ordeira, suportassem
seu destino. Leiamos o que escreve em 29/06/1851:
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Bem hajam os Prados, os teatros, os bailes,
que contribuem com as festas da nossa
bela e sublime religião para distrair o povo
fluminense das aflições do presente, e fazêlo caminhar ledo e cego para o futuro [...].
Paranhos chega a ironizar a intensa
agenda dos parlamentares: não se podia priválos de tamanho “fervor filarmônico-dançanteteatral”. Dessa forma, devia-se ter com eles
certa tolerância, já que seria absurdo:
Os eventos dançantes abordados por
Paranhos eram mesmo espaços privilegiados de
encontros das elites, inclusive daqueles que, no
âmbito da política, dirigiam os rumos do país.
Ele, aliás, sugeria que “a quadra parlamentar
coincide com a estação própria dos bailes nesta
boa cidade”. (PARANHOS, 27/04/1851) É verdade
que os clubes funcionavam o ano inteiro, mas o
auge de suas atividades dava-se na ocasião em
que a câmara e o senado estavam em plena atuação, quando personagens importantes de todo
o país estavam reunidos na sede do Império.
Segundo seu perspicaz olhar, os bailes complementavam (e mesmo integravam) as tarefas
parlamentares, aproximando os representantes
(entre si e com seus eleitores), amenizando as
tensões da nação, contribuindo “poderosamente para as combinações da pequena e da grande
política”. (PARANHOS, 18/05/1851)
Como colocado na crônica de 27/04/1851,
o baile era a ocasião em que se poderia:
Exigir que, depois de uma vigília passada
nas regiões agitadas e deslumbrantes da
schottisch [...], um digno representante se
levante ao alvorecer, e pálido, lasso e ainda
desacordado pelas emoções da véspera, se
mergulhe numa atmosfera glacial e úmida.
(PARANHOS, 28/07/1851)
conversar ao som de uma galopada, estudar
o espírito humano engolindo um canudo e
sorvendo uma pirâmide de neve, e preparar a
solução das grandes questões de Estado com
o auxílio do encanto das belas, a fascinação
das luzes, e as inspirações de uma orquestra.
Eram momentos em que se alinhavam os
debates políticos.
Se a diplomacia considera os jantares
como habilíssimos agentes internacionais,
os ministérios e os pretendentes dizem que
as soirées e os bailes são de uma grande
força persuasiva para certos parlamentares
(PARANHOS, 27/04/1851).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Vejamos que, mesmo com os bailes
públicos ocupando progressivo espaço, ainda
seguiam existindo as atividades privadas, que
reuniam a fina flor da sociedade fluminense.
Paranhos narra uma dessas reuniões, realizada na
casa do oficial-maior da secretaria dos negócios
estrangeiros, em que estiveram presentes:
[...] o ministro desta repartição, o da
Guerra, todo corpo diplomático, inclusive
os adidos, vários conselheiros de Estado
e deputados, oficiais das Secretarias de
Estado e muitos outros [...] 43 pessoas do
sexo feio e 37 do belo sexo. (PARANHOS,
06/07/1851)
A despeito do perfil dos convidados,
“Contradançou-se, schottischou-se à larga”.
Da mesma forma, ainda que com frequência
reduzida, o Imperador Pedro II progressivamente
foi tornando-se mais recluso, volta e meia
acontecia algum baile promovido pela família
imperial, ocasião sempre celebrada e aguardada
com ansiedade.
Dançava-se por todos os lados, razão pela
qual todos deveriam aprender não só a dançar,
mas fundamentalmente como se comportar
nessas ocasiões. Tratava-se de uma exigência
tendo em conta as necessidades da nação,
segundo o olhar de Paranhos.
763
Conclusão
O fim da temporada parlamentar e o
aumento da temperatura funcionavam como
senhas para que houvesse um intervalo na
intensidade dos eventos sociais. Na crônica de 12
de outubro de 1851, ele escreveu: “Era tempo de
remitir a febre dançante, de dar algum descanso
à alma e ao corpo, e cuidar de distrações menos
agitadas”. Reduzia-se o frenesi: “Eclipsa-se o sol
dos bailes, desaparecem as grandes ilusões do
mundo político”. Para Paranhos, a cada uma dessas
sessões, a sociedade fluminense modificava-se:
A nossa sociedade já vai compreendendo
que se pode amar o teatro, a música, a
poesia, e até ser elegante e agradável ao belo
sexo sem que o homem se torne incapaz de
trabalhos sérios, de exercer as mais elevadas
como as mais difíceis funções civis. Os
homens de porte homérico e semblante
socrático, para quem a dança é uma
puerilidade, a música uma distração nociva
e a poesia um desarranjo mental, já estão
menos suscetíveis, menos inexoráveis, e até
não é raro ver uma dessas figuras equestres
de vis-à-vis com algum dandy dançando
uma contradança, ou toda embasbacada a
aplaudir os triunfos de uma bela e maviosa
cantora. Já era tempo de perdermos esses
preconceitos. (PARANHOS, 12/10/1851)
É interessante notar o quanto o olhar
de Paranhos a respeito dos bailes tem relação
com sua percepção e mesmo entusiasmo com
o momento pelo qual passava a sociedade
brasileira; mais ainda, com seus projetos
para a nação. As atividades dançantes eram
tanto celebradas como expressão dos novos
tempos quanto compreendidas como agências
educacionais, polindo os costumes, ensinando
a conviver, em um mesmo espaço, homens
e mulheres, militares e civis, aristocratas
e envolvidos com os novos negócios,
parlamentares de distintos partidos.
764
Devemos prospectar essas posições na
trajetória do cronista. O que sugere Fontana
(2012, p. 5) ajuda-nos a pensar:
Jose Maria da Silva Paranhos vive e constrói sua identidade política num período
de grandes mudanças e de passagem à
modernidade. O contexto de entrada do
liberalismo nos círculos intelectuais e
maçônicos o faz conjugar tradições “arcaicas” e aspirações modernas, numa
tentativa de moderação que o acompanhará por toda sua vida. Num momento
onde o tempo histórico parece acelerar-se,
[...], assim como muitos de sua geração,
(apropriou-se) de elementos conservadores e liberais, dentro de um processo de
circulação de ideias próprio do período.
Vivenciou os conflitos e contradições típicas da modernidade, sentindo as rupturas
e permanências do período, sendo liberal
e conservador, progressista e tradicional.
Os bailes eram indicadores de uma
sociedade mais livre, mas cuja liberdade deveria
ser vivida com limites. Tratava-se, de fato, de
um processo de educação do corpo que pode ser
entendido a partir das três faces da experiência
corporal propostas por Vigarello (2003):
• a educação do físico (princípio da eficácia) – a
necessidade de conhecer certas técnicas civilizadas, que passaram a ser, inclusive, ensinadas na
escola, não devendo se confundir com as danças
voluptuosas típicas dos populares;
• a educação do espírito (princípio da propriedade) – havia um conjunto de comportamentos
considerados socialmente adequados que deveriam ser aprendidos, marcando a diferença com
a falta de moralidade que supostamente reinava
nos espaços populares;
• a educação para a inserção em coletivos
maiores (princípio da identidade) – tudo isso
deveria ter em conta gestar uma sociedade civil,
especificamente uma elite, tão necessária para a
consolidação da nação.
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
A dança não era, portanto, somente um
divertimento. Era um sinal dos novos tempos,
produto e, esperava-se, produtora de uma nova
dinâmica social. Uma exigência social, devendo, portanto, ser motivo de educação. Uma educação do corpo, dos sentidos, das sensibilidades.
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Recebido em: 24.04.2013
Aprovado em: 11.09.2013
Victor Andrade de Melo é professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em História Comparada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
766
Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet:
fundamentos de uma pedagogia solidária internacional
Antonio Takao KanamaruI
Resumo
A moderna educação pública, a partir de fins do século XX, passou
a sofrer novas influências de políticas hegemônicas de vieses
tecnocrático, mercadológico e financeiro. Diante desse quadro, um
de seus principais fundamentos, a autonomia pedagógica, encontrase sob pressão e condicionamento no mundo. Assim, defendemos
que o estudo da autonomia na educação moderna pode auxiliar
a esclarecer criticamente as condições e seu desenvolvimento na
história. Nessa perspectiva, uma das reconhecidas obras pedagógicas
reside na chamada Pedagogia do trabalho ou escola moderna, de
Célestin Freinet (1896-1966), a qual procuramos analisar a partir
de revisão da literatura. Neste trabalho, portanto, enfocamos seus
meios e fundamentos teórico-metodológicos como a livre expressão,
o livre trabalho, a livre cooperação, as técnicas de trabalho, a livre
pesquisa, a comunicação interescolar. Na análise, observamos a
presença teórica de um quadro marxiano heterodoxo implícito na
metodologia freinetiana, particularmente relacionada à teoria das
relações materiais de produção, à teoria da alienação e à doutrina
internacionalista. Tais fundamentos, somados à originalidade de
Freinet, permitiram a criação de meios técnicos e a cooperação
internacional, que subjazem à autonomia radical de sua pedagogia.
Como resultados, observamos e descrevemos fundamentos pouco
analisados em Freinet, devido ao caráter embrionário em seu tempo
e espaço: o cooperativismo internacional e a autogestão da escola
moderna, os quais revelam a relevância e atualidade do autor para o
resgate e o desenvolvimento da autonomia pedagógica, bem como
a ampliação da dimensão da obra freinetiana como uma pedagogia
solidária internacional, frente ao difícil contexto histórico presente.
Palavras-chave
Autonomia pedagógica — Cooperativismo — Autogestão escolar —
Pedagogia solidária.
I- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000007
767
Autonomy, cooperativeness and self-management in
Freinet: foundations of an international solidarity pedagogy
Antonio Takao KanamaruI
Abstract
Since the late twentieth century, modern public education has come
under new influences of hegemonic policies with technocratic,
marketing and financial biases. Given this scenario, one of its
main foundations, pedagogical autonomy, is under pressure and
conditioning in the world. Thus, I argue that the study of autonomy
in modern education may help critically clarify the conditions
and its development in history. From this perspective, one of the
recognized pedagogical works is the so-called pedagogy of work or
modern school, by Célestin Freinet (1896-1966), which I sought to
analyze through literature review. Therefore, in this study I focus
on its means and theoretical and methodological foundations such
as free speech, free work, free cooperation, work techniques, free
inquiry, interschool communication. In the analysis, I have observed
the presence of a heterodox Marxist theoretical framework implicit
in Freinet’s methodology, particularly related to the theory of the
material relations of production, the theory of alienation and
the internationalist doctrine. Such foundations, coupled with the
originality of Freinet, enabled the creation of technical means and
international cooperation, which underlie the radical autonomy of
his pedagogy. As for findings, I observe and describe foundations
which have been little analyzed in Freinet, given their embryonic
nature in his time and space: the international cooperativeness and
self-management of the modern school. Such foundations reveal not
only the relevance and timeliness of the author to the rescue and
development of pedagogical autonomy but also the expansion of the
size of Freinet’s work as an international solidarity pedagogy in the
difficult current historical context.
Keywords
Pedagogical autonomy — Cooperativeness — School self-management
— Solidarity pedagogy.
I- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brazil.
Contact: [email protected]
768
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000007
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
Introdução
Na extensa obra do francês Célestin
Freinet1, observamos, a partir da revisão da
literatura, um aspecto pouco abordado em
sua teoria e práxis pedagógicas baseadas em
métodos ativos: a solidariedade radical em seus
meios e fins. Solidária devido ao compromisso
ético e socialmente transformador assumido
em sua pedagogia popular. Radical em sentido
análogo ao levantado por Paulo Freire, no
clássico Pedagogia do oprimido (2005, p.
26), quanto à etimologia do próprio termo,
relacionado à ideia de raiz, segundo o qual:
[…] a radicalização (grifo nosso) é crítica,
por isto libertadora. Libertadora porque,
implicando o enraizamento (grifo nosso)
que os homens fazem na opção que
fizeram, os engaja cada vez mais no
esforço de transformação da realidade
concreta, objetiva.
Trata-se, portanto, da solidariedade
radical, da responsabilidade enraizada em sua
missão, objetivos e métodos.
Essa dimensão pouco estudada na obra
de Freinet pode ser observada em aspectos
já analisados e amplamente reconhecidos
na literatura, como aqueles relacionados às
centralidades dos conceitos de livre trabalho,
bem como de livre expressão, que, junto
com a livre cooperação, a livre pesquisa e as
respectivas técnicas (técnicas de vida), que a
notabilizaram, como a impressão gráfica, o
correio interescolar, o diário coletivo (livro de
vida), o jornal escolar, fichas e fichário escolares,
os audiovisuais (documentário cinematográfico,
rádio-gravador) e a revisão do layout do
interior arquitetônico e mobiliário escolares,
constituem, em seu conjunto, os meios e fins
da pedagogia freinetiana. Fundamentalmente,
seus pressupostos conceituais e condições
1-Dedicado ao freinetiano Profofessor Titular José de Arruda Penteado
(Departamentp de Educação – IA/UNESP), in memoriam.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
técnicas têm por objetivo conduzir educandos
didaticamente ao trabalho coletivo e criador.
Mas, a nosso ver, a obra freinetiana
não se limitou à celula mater didática da relação educador-educando. Compreendemos que
Freinet interveio também nas próprias relações
entre educadores, ao estender coerentemente a
cooperação2 e a autogestão escolar a essa relação de trabalho, conforme o sétimo princípio
da Carta da Escola Moderna, que descreve que:
Educadores do ICEM são os únicos responsáveis pela direção e esforços de cooperação. […] Estamos interessados profundamente na vida da nossa cooperativa,
porque é a nossa casa, nosso quintal que
devemos alimentar nossos fundos, o nosso esforço, nossos pensamentos e estamos
prontos para se defender contra qualquer
pessoa que iria prejudicar os nossos interesses. (ICEM, 1968).
Junto com o décimo princípio, Freinet
e colaboradores consideraram que o objetivo
do movimento cooperativo da Escola Moderna
corresponde ao ato de “[…] desenvolver o
trabalho em fraternidades e para o destino de
auxiliar profundamente e de forma eficaz todas
as obras de paz”. (ICEM, 1968).
Tal aspecto é comumente descrito na
literatura, mas a análise e a discussão crítica a
respeito do caráter dessa relação a qual definimos
como solidária é incipiente. Isso porque suas
reflexões nesse campo tornaram-se mais efetivas
com as crises estruturais da segunda metade do
século XX (SINGER, 2002), nas quais o debate
entre concorrência e solidariedade começaram a
se aprofundar e a se estender para áreas além
da economia, alcançando também a pedagogia
(SINGER, 2009; GADOTTI, 2009).
Com o desenvolvimento da livre
cooperação entre educandos e, portanto,
2- Para Marx (1988, p. 246), “a forma de trabalho em que muitos
trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo
processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas
conexos, chama-se cooperação”.
769
também entre educadores sob autogestão
escolar, entendemos a coerência da solidariedade
existente na pedagogia freinetiana tanto em
suas relações didáticas quanto em seu projeto
político-pedagógico em sociedade.
Nesse ponto, aventamos como hipótese
o cooperativismo e a autogestão como a
contribuição original na obra de Freinet,
caracterizando-a em um aspecto renovado:
a de uma pedagogia solidária de caráter
internacional. Esse caráter é frisado no décimo
princípio presente na Carta da Escola Moderna,
na qual se estabelece que a pedagogia Freinet é
“inerentemente internacional”.
Procuramos evidenciar também outro
aspecto pouco abordado na obra de Freinet,
mas que a fundamenta implicitamente em
termos teórico-metodológicos e praxiológicos:
a presença de uma interpretação marxista
original, de características heterodoxas,
particularmente sobre a teoria da alienação do
sujeito produtor, a teoria das relações materiais
de produção, que fundamenta a noção
capital das condições objetivas das relações
sociais históricas, e, finalmente, a doutrina
internacionalista de Marx.
O marxismo na obra de Freinet foi
analisado por Élise Freinet (1979), que manteve
vivo o movimento da Escola Moderna após o
falecimento de Freinet. Na obra O Itinerário de
Célestin Freinet, Élise afirma:
[…] Fora de seu domínio pedagógico,
Freinet já tem uma ampla cultura humana
e uma filosofia de orientação decorrente do
materialismo dialético. […] O pensamento
marxista esclareceu para ele a revolta de
1917, vivida nas trincheiras e ligada à
Revolução da URSS. […] Era na prática um
engajamento que justificava sua adesão
ao Partido Comunista e sua militância na
Internacional do Ensino3. E era, para seu
pensamento, entrar sem cessar no centro
3- Freinet excursionou para a Rússia e teve contatos com a política
da URSS. Sobre essa política e seu caráter modernizador, observamos a
documentação presente em Lenine (1981).
770
das contradições de qualquer sistema
[…]. (FREINET, 1979, p. 120)
Embora fiel ao pensamento marxista,
antecedentes históricos de Freinet revelam
também o seu desligamento do antigo PCF –
Partido Comunista Francês, que atribuímos
à discordância ao dogmatismo partidário,
posteriormente verificável em um dos princípios
na Carta da Escola Moderna. Junto com a defesa
do cooperativismo e autogestão, a carta revela a
heterodoxia no pensamento e ação do pedagogo.
Esse caráter heterodoxo acerca do
cooperativismo e da autogestão na análise
freinetiana, não obstante o seu caráter popular,
em tese, repousa na consciência de Freinet quanto
à discussão crítica entre Marx e Proudhon,
considerado “pai do cooperativismo”4. Nessa
discussão, o autor preservou e desenvolveu
as noções de cooperativismo e autogestão.
Ao mesmo tempo, reuniu contribuições da
autonomia e livre expressão provenientes
de
ideais
revolucionários
iluministas,
particularmente a partir de Rousseau5. Nesse
processo articulado de análise e reflexão
a respeito dos fundamentos da pedagogia
freinetiana, observamos o caráter crítico e
heterodoxo em sua teoria e metodologia.
Nesse panorama geral acerca da obra
freinetiana, procuramos demonstrar a sua
relevância e atualidade no presente contexto
histórico, a partir do qual nos propomos a
estudar e analisar esses referidos aspectos.
No presente contexto da educação
pública, desde fins do século XX, procuramos
justificar o tema também a partir da influência
condicionante de políticas e critérios
tecnocráticos, mercadológicos e financeiros6
sobre o grau de autonomia da pedagogia
moderna. Observamos, em contrapartida,
a relevância crítica e a atualidade da obra
4- Para o acratismo e o cooperativismo mutualista de Proudhon,
referenciamo-nos em seu Sistemas das contradições econômicas ou
filosofia da miséria. São Paulo: Escala, 2007.
5- Vide Carlota Boto (1996) e Freire (1996).
6 - Análise crítica presente em Warmling; Astier (1997) sobre pseudoreformas de ensino na França, sem mudanças estruturais.
Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
pedagógica de Freinet, devido à contribuição
original relacionada à plena autonomia, ao
livre cooperativismo e à autogestão escolar,
desenvolvidos estruturalmente em seu projeto
político-pedagógico da chamada escola moderna.
Nessa perspectiva geral, observamos,
por decorrência, a sua dimensão maior como
uma pedagogia solidária internacional,
dirigida ao desenvolvimento do educando pelo
trabalho, principalmente a partir de condições
técnicas objetivas, mas também de condições
organizativas de administração e gestão
democráticas diretas ou reais, para uma escola
verdadeiramente risonha e franca, expressão
comumente atribuída ao autor.
Freinet: a autonomia frente às
adversidades
Conforme a literatura existente, a
construção da pedagogia do trabalho ou da
escola moderna, do francês Célestin Freinet
(Gars,1896, Vence,1966), não foi elaborada a
priori e academicamente. Pelo contrário, teve
influência de sua experiência de vida desde os
primórdios, quando foi pastor de ovelhas, nos
Alpes Marítimos, já nos seus primeiros anos
de vida (FREINET, 1979). Essa profissão lhe
exigia tomar decisões importantes relacionadas
à segurança do rebanho, principal fonte de
sustento de sua família humilde.
Pensamos que essa experiência profissional
influenciou a concepção e o desenvolvimento de
sua obra pedagógica, levando-o a valorizar a
autonomia e a livre descoberta, que ulteriormente
se tornariam base para a consideração da
importância da livre expressão e da livre pesquisa.
Esses seriam valores importantes também para
educandos superarem o difícil isolamento rural e
provinciano a que estavam submetidos.
A experiência histórica adversa na
biografia de Freinet também deve ser considerada,
visto que aos dezoito anos iniciou sua experiência
traumática como soldado nas batalhas da I Guerra
Mundial (1914), mesmo ano em que iria iniciar o
magistério em Nice. Após um ano de combates,
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
seus pulmões foram seriamente lesionados
por gases tóxicos em Verdun, com sequelas
irreversíveis à respiração. Freinet buscou terapia
médica ao longo de quatro anos (SAMPAIO, 1989;
ELIAS, 1997; LEGRAND, 2011), mas a ineficácia
dos tratamentos o fez assumir essa realidade e
conformar-se com a deficiência.
Embora fatigado e extenuado fisicamente, era lhe exigido ser objetivo e comunicar verbalmente o essencial (PENTEADO, 1979), algo,
a seu ver, necessário à pedagogia moderna baseada na experiência e em contraposição direta
à escolástica, então baseada no verbalismo intelectual e abstrato, em geral estranho às necessidades dos educandos e às famílias de aldeões.
Em 1920, iniciou sua atuação como
educador em Bar-sur-Loup e nessa nova etapa
começou a pesquisa e a discussão de uma nova
pedagogia assumidamente popular, baseada no
trabalho, influenciada pelas experiências-limite
que viveu. Nessa fase, conheceu primeiro a obra
de Rousseau a respeito do reconhecimento da
natureza peculiar infantil. Podemos dizer que
vem daí sua ponderação acerca da defesa da
autonomia e da livre expressão presentes como
ideais na Revolução Francesa e na Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão,
embora considerasse uma referência em geral
distorcida das elites7.
Por outro lado, observamos seu viés
multifacetado que, ao lado do fundamento
baseado na razão, tem a influência de Teilhard
de Chardin quanto à aproximação científica
entre razão e espiritualidade humanista, em
termos antropológicos, segundo o qual “nada é
tão delicado e fugidio, por natureza, quanto um
começo” (apud FREINET, 1979). Nesse sentido,
eis a valorização por Freinet do papel da livre
pesquisa e da livre expressão como meios
essenciais para a “ascensão da vida”.
Essa pesquisa adquiriu articulações mais
importantes devido ao novo e moderno órgão
7 - “[…] E é tradição referir-se a Rabelais, Montaigne e J.-J.Rousseau
[…] (mas) tais idéias que os intelectuais julgam ter descoberto não
correm desde sempre entre o povo […] não foi o erro escolástico que
[…] deformou a essência, para monopolizá-la […]?” (FREINET, 1979, p.3)
771
Nouvelle Éducation, bem como o Congresso
Internacional de Educação Nova, em 1932,
na cidade de Nice. Freinet teve contato com
os conceitos e materiais fundamentais de
Maria Montessori, com a Casa dei Bambini,
os centros de interesse de Decroly, as reservas
infantis e o interesse em Claparède, o texto
livre de Bovet, a escola ativa de A. Ferrière
(1946). Posteriormente, Freinet também tomou
conhecimento do escotismo de Baden-Powell,
baseado no ensino ao ar livre, bem como da
escola-canteiro ou escola-laboratório de John
Dewey, revisando-as crítica e dialeticamente,
no campo pedagógico-moderno.
Paralelamente, Freinet, nessa fase,
demonstrou cidadania ativa em sua aldeia,
na qual liderou um movimento e fundou
uma primeira cooperativa, em Bar-su-Loup,
em defesa da instalação da energia elétrica
(LEGRAND, 2011). Iniciou também sua
militância sindical e partidária comunista
(LEGRAND, 2011), inclusive excursionando à
antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas). Foi nesse período que tomou
contato com os debates liderados por Lênin no
campo da educação operária8.
Freinet retornou mais bem preparado e
já em 1928, em Saint-Paul de Vence, fundou
a Cooperativa de Ensino Laico, com os
principais meios de produção de sua pedagogia,
como o uso da imprensa de tipos móveis e
a correspondência interescolar de alcance
internacional. Mas, a oposição conservadora
local mais interessada na rentabilidade turística
forjou uma falsa acusação com intenções
políticas (LEGRAND, 2011), que, mesmo sem
provas, conduziu a câmara arbitrariamente a
exonerá-lo do sistema municipal.
Como resistência a esse jogo político
dominante, Freinet fundou o Movimento de
Educação Cooperativa nos anos 1930, que
obteve sucesso de publicações de material
didático, permitindo reunir recursos e conquistar
autonomia financeira.
Assim, em 1934, migrou para Vence
(LEGRAND, 2011), cidade na qual fundou a
própria escola cooperativa experimental e
autogerenciada, para atendimento de filhos
de famílias operárias e do serviço assistencial
de Paris, consolidando, assim, sua obra. Mas,
em 1939, eclodiram os conflitos da II Guerra
Mundial. O estado de saúde do pedagogo se
deteriorou (SAMPAIO, 1989), sendo preso
e encaminhado ao campo de concentração
de Var. Detento, mas, resistente à condição,
alfabetizou outros presos. Foi retirado por Elise
Freinet e encaminhado ao hospital do campo de
concentração, sendo libertado apenas em 1941
(SAMPAIO, 1989).
Como libertário engajado, tomou a
decisão de atuar como guerrilheiro maquisard,
nas Forces Françaises de l’Intérieur (FFI), na
Resistência Francesa9. Como tal, tornou-se líder
na comuna e zona do Briançonnais.
Três anos após o fim guerra, já em 1948,
a Cooperativa de Educação Laica foi rebatizada
como ICEM – Institut Coopératif de l’École
Moderne (LEGRAND, 2011) - agora em Cannes,
baseada no cooperativismo para a fabricação
de material didático e pedagógico acessível
(PENTEADO, 1979). O número de participantes
entre pais e docentes chegou a vinte mil
(PENTEADO, 1979; SAMPAIO, 1989).
Mas, em 1950, Freinet foi expulso do PCF,
por discordâncias burocráticas e ideológicas
(LEGRAND, 2011). Em 1956, participou da
campanha nacional da crítica à superlotação de
classes e à reivindicação da defesa de turmas
discentes de no máximo vinte e cinco alunos
para uma melhor interação didática e qualidade
do ensino público.
Em 1966, Freinet faleceu em Vence.
A pedagoga e artista Elise, sua atuante
colaboradora e companheira, manteve a
continuidade de sua obra, da qual destacou a
livre expressão como essência da pedagogia da
Escola Moderna.
8 - Para consulta mais consequente aos planos educacionais da antiga
URSS, vide Lenine (1981).
9- Sobre Freinet maquisard consideramos a introdução de Elise
Freinet (1969).
772
Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
Retrospectivamente na análise, notamos
o engajamento e o enfrentamento das adversidades por Freinet, traço importante para a compreensão de sua personalidade e história. Essa experiência viva revela a construção e a valorização
de sua autonomia e independência, resultante da
necessidade de decidir e enfrentar permanentemente realidades adversas por meio do trabalho. A nosso ver, esse aspecto influenciará a sua
obra, pensamento e ação. Portanto, a autonomia
em sua vida não constitui uma ideia surgida a
priori, mas um valor resultante de uma série de
experiências de vida e de dificuldades superadas
por meio do trabalho, pesquisa e engajamento
popular. Tais aspectos tornam-se centrais na
construção da pedagogia Freinet, cujo desenvolvimento lógico e coerente conduziu sua obra ao
estabelecimento do cooperativismo e autogestão
escolar, como condição para a plena autonomia
da escola moderna.
A autonomia radical, o livre
trabalho e a livre organização
para a liberdade pedagógica
moderna
Na análise desse histórico de Freinet,
bem como de suas influências pedagógicas,
observamos alguns aspectos que se constituirão
as colunas centrais de seu pensamento e ação: a
autonomia como razão última e o trabalho como
atitude vital diante de adversidades; a defesa da
livre expressão, como consequência necessária
da autonomia, e a livre pesquisa, como
consequência do trabalho como meio gerador de
conhecimento novo e, finalmente, a cooperação
e autogestão como resultado coerente e lógico
dessa experiência teórico-metodológica.
Consideramos na análise freinetiana a
autonomia e a livre expressão como elementos
indissociáveis, razão pela qual enunciamolas resumidamente como a autonomia, assim
como o livre trabalho e livre pesquisa apenas
como o trabalho e, finalmente, a cooperação
e autogestão como organização. Desse modo,
resumimos a autonomia radical, o livre trabalho
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
e a livre organização, categorias centrais no
pensamento e análise freinetianos.
Antes de alcançar esse desenvolvimento
teórico-metodológico, em seus primeiros anos
Freinet analisou criticamente os fundamentos e
a prática da pedagogia escolástica, revendo sua
própria experiência na escola dominante à época,
a qual considerava traumática e domesticadora
em função da separação, de caráter intelectualista
e dogmática, entre conteúdo e forma didáticas
de um lado e, de outro, das necessidades reais
de educandos. Assim, tornou-se crítico acerbo
e pesquisador pedagógico para a construção
de uma pedagogia efetivamente científica.
Observava que a pedagogia escolástica no
aspecto geral apenas sujeitava educandos à
passividade, à repetição e à subordinação, em
frontal contradição quanto à autonomia do
educando, fundamental para o rigor da vida no
campo e para a vida. Em Para uma escola do
povo, Freinet (1998, p. 19) considerou que:
Esta escola já não prepara para a vida;
não está voltada nem para o futuro, nem
mesmo para o presente; obstina-se num
passado que não volta […]. […] A Escola
que não prepara para a vida, já não serve
a vida; e é essa a sua definitiva e radical
condenação […].
Para a fundamentação desse novo
trabalho pedagógico, Freinet defendeu o
conceito psicológico de trabalho-jogo cujo
fundamento está no objetivo concreto do
labor, da construção do conhecimento sensível,
do trabalho como meio lúdico em si mesmo,
baseado na necessidade natural na psicologia
do educando. Tal conceito opunha-se ao
dominante jogo-trabalho, o ersatz, que simula a
atividade laboral sem necessariamente realizála ou atingir um objetivo concreto.
Em Ensaio de psicologia sensível II,
o autor assim se refere ao conceito de ersatz
- a lógica substitutiva ou simulada de vida,
contrária ao trabalho real - relacionada à escola
tradicional dominante:
773
O que é mais grave ainda é que essas
soluções ersatz não estão na ordem natural
das coisas; elas não passam de uma atitude
excepcional e irregular em face de uma
impotência também acidental e irregular.
(FREINET, 1976, p.11)
Mas Freinet dialeticamente não descartava a função do ersatz (substitutivo) como um
todo. Compreendia que o trabalho enquanto
jogo em si, necessário ao educando, poderia,
em determinadas circunstâncias impeditivas do
real do trabalho-jogo, ser benéfico se em seguida permitisse a realização do trabalho-jogo e
respectiva sublimação.
Diante desse quadro geral, Freinet
estabeleceu uma de suas leis psicopedagógicas
(vigésima-quarta), segundo a qual o trabalho
constitui corretor de regras ou lógicas de vida
ersatz. Sob a teoria do tateamento experimental,
como assim denominou, Freinet desenvolveu
técnicas didáticas para trabalho livre e
cooperado, com fins libertadores principalmente
quanto à expressão, sem, contudo, confinar
educandos em salas de aula.
Esse problema em particular Freinet
(1969) descreveu em a Pedagogia do bom
senso ou Les dits de Mathieu, classificando-o
criticamente como parte de uma “pedagogia
de casaca”. Para ele, tratava-se de uma
das primeiras contradições da escolástica.
Assemelhou esse confinamento a um campo
de concentração e de condicionamento quase
animal, motivo pelo qual procurou retirar
os educandos desses locais, levando-os para
fora dos muros escolares, em livre direção aos
limites da aldeia e do campo.
Analogamente à antiga peripatética,
mas livre do caráter tecnicista dos antigos
liceus, o educador elaborou o procedimento
didático da aula-passeio, para anular o
isolamento de educandos em salas de aula e,
principalmente, estimular a observação sensível
e a descoberta da realidade e da natureza, bem
como das atividades produtivas (SAMPAIO,
1989) existentes na aldeia em torno da escola e
774
dos Alpes Marítimos. Procurava, nessa técnica,
também a aproximação mútua entre escola
e comunidade por meio de rudimentos da
pesquisa de campo, o estudo do meio, coerente
à noção do educando como sujeito ativo nesse
processo didático. Freinet (1969) considerou
essa nova e moderna noção de espaço escolar
aberto à comunidade como uma reserva
infantil em oposição à edificação fechada e sem
comunicação com o mundo exterior.
A
experiência
da
aula-passeio,
semelhante à de uma pequena expedição, era
uma das principais atividades discentes, cujas
indagações, opiniões e impressões do educando
eram expressas e discutidas em livres textos e
registradas em um diário escolar (livro de vida),
que constituía uma das principais ferramentas
de livre expressão e reflexão autônoma da
criança. A produção de livre escrita e de pesquisa
discente e docente acabavam por constituir
complementarmente o próprio material didático.
Por essa razão e para a coerência ao princípio
pedagógico moderno, Freinet defendeu a
abolição de manuais escolares (FREINET, 1979),
ferramenta central da separação escolástica entre
vida e realidade.
Com a construção pedagógica da
autonomia por meio do livre trabalho, da livre
expressão, da livre pesquisa, o espaço escolar
decorrente do modelo escolástico necessitava
ser abolido e reorganizado a partir da lógica
e dinâmica do trabalho livre, coletivo, criador,
sob livre cooperação.
Para defender o caráter científico dessa
pedagogia crítica, Freinet a explanou como uma
teoria objetivamente formulada e baseada em um
empirismo experimental a partir do trabalho de
descoberta ou tateio experimental do educando,
cujos fundamentos conceituais se assentam
diretamente na construção da autonomia por
meio do trabalho (FREINET, 1979). Esse processo
constitui, para Freinet (1977), um método natural
consoante às necessidades, intuições, interesses,
impulsos e motivações do educando.
Elise Freinet (1979), na obra O Itinerário
de Célestin Freinet, considerou principalmente
Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
a livre expressão como elemento distintivo e
crítico em seu método natural, em contraposição
a outros métodos e teorias psicopedagógicas
orgânicas ao escolasticismo.
Nesta etapa de análise, podemos
considerar alguns aspectos fundamentais
presentes na formulação teórico-crítica e
praxiológica de Freinet. Reiteramos a influência
da experiência concreta do trabalho presente
na biografia de Freinet, cujo resultado foi a
valorização da autonomia, mas também o
compromisso com a razão sensível e humana,
presente em Rousseau, sobretudo crítica quanto
às origens da desigualdade. Nesse aspecto,
Freinet estava consciente de sua origem
trabalhadora, camponesa. Sua sensibilidade
se voltava à consciência da desigualdade e às
condições de vida e produção dessa população.
Nesse contexto, observamos uma
influência marxista que se manifesta
implicitamente em três aspectos: 1) na presença
da teoria da alienação do sujeito, na forma de
crítica e prevenção pedagógica; 2) na teoria
das relações materiais de produção, quanto
às condições objetivas geradas pelas técnicas
de vida; e 3) na doutrina internacionalista
marxista, presente nos correios interescolares.
No primeiro aspecto, observamos a
crítica marxista à alienação10 nos métodos
e nas consequências negativas dos dogmas
pedagógicos do escolasticismo, no qual o
objetivo pedagógico da autonomia da criança
não era visado, mas sim a sua passividade.
Essencialmente, para Freinet, o escolasticismo
era baseado na separação da escola da realidade
de vida da criança e da sua família e em
repetições e memorizações.
A segunda evidência marxista em
Freinet reside na consciência quanto às
condições objetivas da relação infraestruturasuperestrutura ou às relações materiais
de produção11. O pedagogo originalmente
10 - Referimo-nos particularmente à análise de Marx sobre a
mercadoria e a divisão de trabalho e manufatura. Confira Marx (1988,
p. 45-78 e p. 254-276)
11- Marx (1988). Acrescentamos nesta passagem, o texto A ideologia alemã.
Feuerbach. Oposição das concepções materialista e idealista (MARX, 1982).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
introduz técnicas de trabalho (técnicas de
vida), organizadas quase tacitamente como um
sistema para apropriação e uso coletivo entre
educandos e educadores e pais, a partir da
prensa gráfica de tipos móveis para a impressão
de livres textos e livres desenhos12, trabalho
que permitiu também a elaboração de suportes
comunicativos (jornal, cartazes, folhetos etc.), a
partir da técnica complementar do silk screen.
Freinet (1969), em Por uma escola do
povo, também promoveu e registrou mudanças
estruturais da classe escolar: aboliu estrados e
plantas mecanicistas do interior arquitetônico
da tradição escolástica, cujo espaço servia
funcionalmente à centralização da autoridade
docente e não à noção da criança como sujeito
ativo do processo de ensino-aprendizagem. Além
disso, criou o conceito de cantos pedagógicos,
que tornou a sala de aula semelhante a um
ateliê de trabalho e criação multidisciplinar.
Para auxílio à metodologia da livre
pesquisa, Freinet (1969) orientou didaticamente
as crianças a uma espécie de pré-iniciação
científica, a partir de seus interesses e
necessidades, com técnicas de documentação
sistemática por fichas e consulta em fichários.
Coerentemente, estabeleceu um processo de livre
autoavaliação coletiva baseada em indicadores
de produção para livre uso, inspirada em etapas
gerais de desenvolvimento.
O terceiro aspecto marxista em
Freinet refere-se ao caráter assumidamente
internacionalista de seu sistema. Reunindo a
condição objetiva da técnica e a sua respectiva
apropriação coletiva, o autor, em referência
à crítica ao isolamento rural e provinciano,
promoveu o uso e desenvolvimento de correios
interescolares. Com isso, Freinet se aproximava
da noção iluminista de cidadão do mundo, mas
sobretudo da doutrina internacional de Marx.
Ao mesmo tempo, como cientista da educação,
buscava também submeter processos e resultados
sistematicamente à avaliação e conferência
científicas de colaboradores e pesquisadores
12- Análise teórica e metodológica do papel do desenho e o estudo
psicopedagógico desenvolvido por Fa a partir de Freinet (1977).
775
internacionais, perfazendo uma comunidade de
caráter aberto, solidário e internacionalista, com
vistas a uma nova sociedade.
Nesse aspecto, Freinet no décimo
princípio da Carta da Escola Moderna,
considerava que a pedagogia é inerentemente
internacional: “[…] para nós, mais do que uma
profissão de fé, mas uma necessidade para o
trabalho”. (BEAUNIS, 2009)
Observamos, porém, que Freinet desenvolve
uma análise e interpretação heterodoxa de Marx,
razão pela qual o consideramos marxiano e
menos marxista no sentido dogmático do termo.
Retrospectivamente, observamos como sintomática
a sua expulsão partidária, sofrida por divergências,
e a busca pela coerência radical para a libertação
do homem pela própria perspectiva marxista.
Essa heterodoxia possivelmente se
relaciona à organização geral baseada no
cooperativismo13 e na autogestão para a
produção social da escola moderna ou pedagogia
do trabalho.
Dialeticamente, Freinet se aproxima nesse
aspecto da querela entre Marx e Proudhon14
e reafirma a importância da autonomia em
sua análise. Freinet, nessa perspectiva geral,
também contribuiu para uma original análise e
interpretação do marxismo e se aproximou de
autores como Gramsci, Benjamin e outros.
Nessa análise geral acerca dos
fundamentos da escola moderna, a partir da
autonomia radical, mas principalmente do livre
trabalho e suas técnicas, da livre organização
como condições reais para a liberdade
pedagógica moderna, observamos um caráter
original e peculiar na obra de Freinet: a sua
ampla dimensão solidária15, cujo autor observava
como fenômeno inerente as “solidariedades
fundamentais de todas as formas de Vida”
13 - Marx (1988) em uma primeira análise considerou que “A cooperação
permanece a forma básica do modo de produção capitalista, embora sua
figura simples mesma apareça como forma particular ao lado de suas
formas mais desenvolvidas”.
14 - Referimo-nos à crítica da Miséria da Filosofia de Marx, resposta à
Filosofia da Miséria de Proudhon. Marx, em carta, realizou esclarecimentos
críticos em Sobre Proudhon. (MARX; ENGELS, 1983, p. 20-28, vide nota 4).
15- Referenciamo-nos nos fundamentos gerais da solidariedade, em
Singer (2002). Em pedagogia, referenciamo-nos em Gadotti (2009).
776
(FREINET, 1979) em contraposição às relações
competitivas e meritocráticas. Freinet não
restringiu a solidariedade às relações didáticas
entre educador-educandos, mas avançou
também às relações docentes, consolidando a
sua obra estrutural e efetivamente como um
projeto politico-pedagógico maior.
Livres relações autônomas: uma
pedagogia solidária internacional
Baseados na análise dos fundamentos da
autonomia radical na pedagogia Freinet, entre os
quais o da livre expressão e o do livre trabalho,
bem como os fundamentais e decisivos meios
concretos, como as técnicas de vida, consideramos
por extensão três contribuições científicas
decorrentes, originais e decisivas do pedagogo.
A primeira reside no esforço de coerência
lógica quanto às relações didáticas críticas entre
educador e educandos. Se essas são dirigidas à
construção da real autonomia, consequentemente
essa relação se estendeu mutuamente entre
educadores. Nesse ponto, observamos a principal
consequência humana, teórica, política e social
da moderna pedagogia do trabalho freinetiano. A
única relação social possível para essa pedagogia
da autonomia radical, portanto, corresponde ao
cooperativismo, para a produção social da livre
relação de trabalho entre pares. Nesse mesmo
raciocínio, a horizontalidade necessária para
administração política-pedagógica da escola
moderna, consequentemente, implicou a defesa
e a construção da autogestão escolar16.
Mas Moacir Gadotti (2009, p. 32-33), em
Educar para a cooperação, reflete o significado
essencial desse sistema:
[…] na autogestão, a formação para a gestão não é um processo educativo restrito
ao setor administrativo. A formação para a
gestão em empreendimentos autogestioná16 - Para Brasil (2005, p. 10), “[…] subentende a existência de autonomia
e […] capacitação para administração coletiva […] direito à informação e
democracia nas decisões. […] como partilha de poder e controle da vida
do empreendimento coletivo.
Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
rios dirige-se ao conjunto das pessoas ligadas ao empreendimento, embora tenha que
existir formação específica e professional
para certos quadros institucionais de acordo com suas responsabilidades. Trata-se de
uma formação para a gestão colaborativa
e o trabalho de equipe. […] Ela não se restringe a aspectos informativos e formativos, mas envolve também aspectos organizativos e produtivos. Com a autogestão,
todos participam das decisões independentemente da função que executam.
Para Elias (1997, p. 65):
Freinet jamais aceitou a competição (grifo
nosso) individual que existia nas escolas;
em seu lugar propôs a vida cooperativa,
idéia reforçada no encontro com Cousinet
e Profit, em Montreaux (1924). O primeiro
preconiza o trabalho em pequenos grupos
e Profit propõe a solidariedade pela
cooperativa escolar. Freinet vai mais longe:
sua pedagogia circula entre o individual
e o coletivo, procurando desenvolver ao
máximo o senso cooperativo.
Nesse aspecto, Freinet manteve a
coerência ética estrutural nessas relações
discentes e docentes na Cooperativa de Ensino
Laico e no Instituto Cooperativo de Escola
Moderna, documentados no órgão L’Educateur
(FREINET, 1985). Enfatiza-se, portanto, que
essa perspectiva ética radical não se restringiu
à cooperação e à autogestão administrativas
apenas entre educadores, mas, principalmente,
para os educandos. Freinet (1969, p. 149), em
Para uma escola do povo, alertou que para a
constituição de uma real cooperativa escolar:
[…] não se trata de fundar, como por
vezes acontece, um agrupamento formal
no papel, com o objectivo de comprar um
material qualquer mediante o pagamento
de uma cotização mensal, mas de uma
verdadeira sociedade de crianças (grifo
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
nosso) capaz de administrar a quase
totalidade da vida escolar.
Nesse aspecto, Paul Singer (2009, p. 12),
no Prólogo de a Economia solidária como praxis
pedagógica, de Moacir Gadotti (2009), afirma:
Convém recordar que um dos princípios
basilares do cooperativismo […] é que, a
qualquer momento, novos trabalhadores
tenham o direito de se associar a
empreendimentos solidários e que associados
a tais empreendimentos tenham o direito
de deixá-los […]. A autogestão só é válida
enquanto os trabalhadores participarem dela
por sua própria vontade. Se a participação
em empreendimentos solidários se tornasse
obrigatória pela eliminação de todos os
outros modos de produção de determinado
país, os trabalhadores não seriam mais os
donos do seu destino, que ficaria sujeito à
vontade dos que teriam poder para autorizar
e impedir o funcionamento dos diversos
modos de produção.
Ao
mesmo
tempo,
como
visto
anteriormente, Freinet não operava didática e
pedagogicamente a partir de ideias puras, mas,
consciente das relações materiais concretas de
produção, sistematizou o uso e a apropriação
coletiva das técnicas em torno da imprensa escolar
e de outras novas mídias daquele contexto. Essa
medida, além de oferecer as condições objetivas
concretas para a produção dessas relações
didáticas, gerava principalmente as condições
reais de autonomia, livre trabalho e livre expressão
de educandos e também de educadores.
A pedagogia de Freinet, nesse aspecto,
proporcionou a organização da escola
popular como um centro de comunicação por
excelência, mas baseado no trabalho cooperado
real. Nesse aspecto, opunha-se à escola nova
cujas considerações gerais já eram existentes
mais amplamente na teoria liberal da escolacanteiro ou escola-laboratório, de John Dewey
(1971). Mas, conforme interpretação de Élise
777
Freinet (1979, p. 88), em O Itinerário de
Célestin Freinet, a seu ver John Dewey embora
representasse o mais prolífico pensador do
movimento da Escola Nova, por outro lado
desenvolveu pedagogicamente:
[…] uma teoria aparentemente perfeita
no plano das idéias, (mas) na realidade é
isolada da prática, deixada ao acaso do
improviso, quando é na prática que se pode
encontrar solução para os problemas da
vida cotidiana. […] Lamentamos que Dewey
não tenha feito delas nenhuma prática
escolar a ser promovida: a organização
técnica da escola a que propõe depende de
doutrinas filosóficas, que ele justificará em
sua concepção de uma escola-laboratório
ideal, que nunca se realizará. Será
simplesmente pela crítica autorizada que ele
entrará na prática pedagógica, pela análise
de escolas novas americanas, criadas
à sua revelia. A concepção de Dewey,
baseada no princípio da continuidade (da
criança na escola, da escola na sociedade,
do homem na natureza), é mitológica,
estranha à experiência vivida, e subestima
o meio social constructor ou destruidor da
personalidade da criança, segundo a classe
social a que pertença.
Em contraposição à escola nova,
a escola moderna de Freinet se baseou
distintamente no efetivo trabalho livre e
cooperado, a partir de técnicas concretas e
da relação de ensino e aprendizagem aberta
no vilarejo em torno da escola. Mais do que o
raio geográfico montanhoso e provinciano da
escola, Freinet agiu radicalmente para tornála uma internacional, por meio da técnica de
correios interescolares.
Assim, tal cooperação internacional
entre educandos, educadores e pedagogos
freinetianos, proporcionou a realização de
conferências, boletins, avaliações, discussões e
intercâmbios, demonstrando concreta e plena
coerência teórica, metodológica e praxiológica
778
de Freinet, no sentido de uma construção
permanente e dinâmica de cultura de pesquisa
fundamental baseada na livre expressão e na
geração do conhecimento novo a partir da
cooperação internacional.
Freinet ainda observou e denunciou o
caráter de classe presente no ensino público,
razão pela qual seu compromisso ético, social
e político voltou-se aos educandos de famílias
carentes e aquelas abandonadas em serviços
assistenciais, mais coerente à sua própria origem
camponesa. Freinet (1998, p. 79) denunciou, em
A educação pelo trabalho:
As práticas pedagógicas de educação
nova tornam ainda mais evidente as
alienações da escola do povo no regime
capitalista. Deterioração, obsolescência
dos locais, falta de instrumental educativo
e de créditos, hostilidade dos poderes
públicos a toda iniciativa dos professores.
Estado de privação e de subalimentação
da infância proletária. Falta de formação
dos professores primários, relegados
ao empirismo pedagógico, diante dos
professores universitários altamente
especializados, possuidores de todos
os meios que favoreçam suas obras
pedagógicas. Oposição permanente entre
uns, de cultura intelectualista, e outros
de cultura popular de sensibilidade e
bom gosto. Existe uma escola de Classe.
Não se trata, portanto, de uma opção
pelo sistema privado. Pelo contrário, o autor
buscava radicalizar a defesa do ensino
público, mas em termos populares. Nesse
aspecto, para Dallari (1998), não se distingue
o objetivo entre os sistemas estatal e privado,
mas essencialmente o desenvolvimento pleno
e integral do educando em sociedade. Freinet,
nessa esfera pública, buscou radicalizar a
independência da escola popular em nova
articulação, de um regime cooperado e
autogestionário com a comunidade, liberto de
injunções extrapedagógicas:
Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
Servir à verdade, ao direito, à justiça,
não se usa mais uma sociedade que
pisoteia essas noções. Temos de servir
a um regime: pobres entre pobres e
educando filhos de pobres, deveríamos
colocar a nossa ascendência moral, nosso
devotamento, nosso saber a serviço dos
ricos exploradores: mutilados, odiando a
guerra que fizemos, teríamos que mentir
sem parar a nossos alunos, inculcar-lhes
uma moral essencialmente contestável, que
não tem relação alguma com a verdadeira
moral que praticamos e ensinamos. O que
se gostaria, nós o sabemos e vemos muito
bem, seria que continuássemos a utilizar
o sistema imoral e antipedagógico que
prepara, não homens mas servidores dóceis
de um regime; gostariam de obrigar-nos,
a nós, educadores proletários, a servir sem
reservas à escola da classe burguesa. A isso
dizemos não. Somos educadores. Nosso
primeiro dever é respeitar as crianças que
nos são confiadas, educá-las, prepará-las.
Para isso, opomo-nos a todo dogmatismo
que se justifica por considerações
extrapedagógicas. Não estamos a serviço de
governos que passam, nem de regimes que
mudam; estamos a serviço das crianças, a
serviço da sociedade para a qual queremos
prepará-las, segundo as técnicas da
verdade e da liberdade, felizes e orgulhosos
de apoiar-nos, para isso, em todas as forças
que buscam o mesmo objetivo de libertação
e renovação. (FREINET, 1998, p.82)
Trata-se então, a nosso ver, da pedagogia
do trabalho ou escola moderna, de uma perspectiva
de autonomia radical e estruturalmente enraizada
desde a sua concepção, a sua estrutrutura e o
seu funcionamento para fins de “libertação e
renovação”. Isso, na visão de Freinet, corresponde
a um regime cooperativo, autogerido e em
comunicação internacional que, devido ao seu
caráter embrionário na história, somente no
presente contexto ganha dimensão maior, mas
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
ainda pouco considerada na pedagogia de Freinet:
a de uma pedagogia solidária internacional.
A relevância e atualidade da pedagogia
Freinet no presente contexto histórico adquire
consistência diante da hegemonia de políticas
educacionais baseadas em critérios tecnocráticosconcorrenciais, mercadológicos e financeiros,
que interferem no grau de liberdade pedagógica
moderna e mais amplamente na noção da
educação como direito humano essencial.
Considerações finais
Baseados em uma revisão geral, procuramos sustentar a hipótese do caráter solidário da
pedagogia freinetiana a partir da verificação de
seus fundamentos como a autonomia, a livre expressão, o livre trabalho cooperado, a livre pesquisa, a avaliação autônoma e o correio interescolar.
O aprofundamento desse caráter ético
da solidariedade não se restringe às relações
didáticas entre educandor e educando, mas
se encontra também na relação docente entre
educador e educador.
Nesse aspecto, como condição objetiva para
a execução do projeto político-pedagógico solidário
da escola moderna, bem como uma perspectiva
política de autonomia radical pedagógica,
Freinet baseou o seu trabalho no cooperativismo
internacional e na autogestão escolar.
A partir dessa perspectiva, torna-se possível refletir a respeito da superação da polaridade
estatal-privado, para efetivamente construir uma
esfera pública-democrática, popular. Nesse sentido, a pedagogia freinetiana se inscreve centralmente no campo das discussões acerca da economia e cultura baseadas no trabalho solidário.
Com a presente consideração, procuramos
demonstrar a relevância e a atualidade científicas
dessa pedagogia moderna e crítica que, em
si, pressupõe novos estudos e pesquisas para
a superação do presente status quo, com a
construção da escola do trabalho cooperado e
popular, qualificada por Freinet como moderna e
do futuro, mas, também, risonha e franca.
779
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Recebido em: 09.10.2012
Aprovado em: 09.10.2013
Antonio Takao Kanamaru é professor doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
Paulo (USP). Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
781
A educação progressiva na atualidade: o legado de
John Dewey
Maria Luísa Frazão Rodrigues BrancoI
Resumo
A educação progressiva é uma das tradições educativas mais
fascinantes dos Estados Unidos da América, destacando-se pela
sua visão humanista da educação e pelo compromisso com o
aprofundamento da democracia através da escolarização. Neste
artigo, analisamos os principais desenvolvimentos da educação
progressiva por meio da revisão de literatura recente a respeito
do assunto e de escritos de seguidores mais proeminentes,
estabelecendo a relação entre as propostas atuais e o pensamento
fundador de John Dewey. O nosso objetivo consiste em elucidar
qual o núcleo fundamental das ideias defendidas por esse
movimento educativo, baseando-nos numa discussão dos conceitos
centrais do pensamento pedagógico de John Dewey e na forma
como esses foram apropriados e alargados pelos seus sucessores
e atuais defensores. A partir da análise, concluímos que, apesar
da influência dessa tradição educativa ter diminuído, fruto da
generalização de uma perspectiva neoliberal na educação norteamericana, as suas propostas são fundamentais para a promoção
de uma sociedade mais democrática e justa. Entre essas propostas,
que permanecem fiéis aos aspectos fulcrais do pensamento de John
Dewey, adaptando-o aos novos tempos, destacam-se o compromisso
com a integração social e o pluralismo, além da concepção da
aprendizagem como ampliação de uma experiência partilhada,
favorecedora da promoção do capital social e do estabelecimento
das bases de uma aprendizagem permanente.
Palavras-chave
Educação progressiva — John Dewey — Educação democrática —
Pluralismo — Comunidade.
I- Universidade da Beira Interior,
Covilhã, Portugal.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000013
783
Progressive education today: the legacy of John Dewey
Maria Luísa Frazão Rodrigues BrancoI
Abstract
Progressive education is one of the most fascinating educational
traditions of the United States of America and is noted for its
humanistic vision of education and commitment to the deepening
of democracy through schooling. This article analyzes the main
developments in progressive education by reviewing recent literature
on the subject and the writings of its most prominent followers,
establishing the relationship between current proposals and the
foundational thought of John Dewey. My goal is to elucidate the
fundamental core of the ideas espoused by this educational movement
by discussing the central concepts of the pedagogical ideas of John
Dewey and how such concepts were appropriated and extended
by his successors and current defenders. Based on the analysis, I
have concluded that, despite the decline in the influence of this
educational tradition, due to the spread of a neoliberal perspective
on American education, its proposals are critical to promoting a
more democratic and just society. Among such proposals, which
remain faithful to the key aspects of the thought of John Dewey,
adapting it to the changing times, I highlight pluralism and the
commitment to social integration, in addition to the conception of
learning as an extension of a shared experience, which encourages
the promotion of social capital and the laying of the foundations for
lifelong learning.
Keywords
Progressive education — John Dewey — Democratic education —
Pluralism — Community.
I- Universidade da Beira Interior,
Covilhã, Portugal.
Contact: [email protected]
784
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000013
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 783-798, jul./set. 2014.
Introdução
A educação progressiva teve início nos
primórdios do século XX, nos Estados Unidos
da América, ao mesmo tempo em que, na
Europa, verificava-se um amplo movimento de
renovação pedagógica, que ficou conhecido por
Escola Nova, e com o qual manteve estreitas
relações (FLORES, 2001; MATA, 2001). Embora
de forma intermitente, a influência dessa tradição
pedagógica, na qual avulta a centralidade do
pensamento de John Dewey, perdurou até aos anos
70 do século passado (SEMEL, 2008). O relatório
A nation at risk, publicado em 1983, apontou
para a existência de fragilidades na educação
norte-americana, capazes de comprometer, a
breve trecho, a competitividade econômica do
país quando comparada com a de outros países.
Estava, assim, aberto o caminho para a restauração
de uma agenda mais tradicional em termos de
educação. A educação progressiva, associada
por muitos a uma abordagem educativa menos
rigorosa e promotora de uma desautorização dos
adultos, tornou-se alvo dos ataques da opinião
pública e a sua importância decresceu.
Nos anos 90 do século passado, contudo,
verificou-se um ressurgimento da tradição
progressiva, a partir da criação de pequenas
escolas públicas, baseadas nessa concepção
e, particularmente, empenhadas em equilibrar
individualismo e sentido de comunidade.
No entanto, a generalização da perspectiva
neoliberal e de uma lógica de prestação de
contas, definitivamente estabelecida com a
aprovação da legislação intitulada No child
left behind, em 2002, secundarizou a visão da
missão humanística das escolas e enfraqueceu a
força dos professores. Além disso, fragilizou o
controle exercido sobre a sua própria profissão,
de modo a comprometer o objetivo de integrar e
promover a democracia através da escolarização
e da educação, que pode ser perspectivado como
o fim principal da educação progressiva.
Apesar das atuais iniciativas educacionais favorecerem, com a dominância dos
testes estandardizados, o retorno dos métodos
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
tradicionais e o empobrecimento do currículo
centrado num número reduzido de matérias
básicas, um conjunto significativo de escolas
nos Estados Unidos da América continua comprometido com a implementação de uma educação progressiva, prolongando, desse modo,
uma rica e duradoura tradição educativa.
No âmbito do presente artigo, propomo-nos
debater os desenvolvimentos atuais da educação
progressiva e a forma como se apropriaram do
legado fundador constituído pelo pensamento
de John Dewey, bem como refletir acerca de sua
importância na promoção de uma sociedade mais
justa e democrática. Tentaremos, por conseguinte,
responder às questões: como é que a tradição da
educação progressiva se desenvolveu e enriqueceu,
na relação com o pensamento de John Dewey,
e por qual motivo continua a ser uma proposta
educativa adequada e séria no contexto das atuais
sociedades democráticas?
Caráter fundacional do
pensamento de John Dewey
A centralidade do pensamento de John
Dewey e o seu papel fundacional (amplamente
reconhecidos) na constituição da educação
progressiva têm de ser equacionados à luz do
movimento progressivo mais vasto. A chamada
era progressiva teve início no final do século
XIX, correspondendo a um tempo marcado
pela esperança que sucedeu a um período de
“desencantamento com o status quo”1 e “a
uma análise de todos os aspectos da sociedade
e a um apelo à renovação e a um novo vigor
democráticos”2 (VANPATTEN, 2010, p. 126).
Em termos rigorosos, esse movimento
reformista não pode ser dissociado da depressão
econômica ocorrida na passagem do século XIX
para o século XX, a partir da qual surgiu uma
urgência de repensar tanto a sociedade quanto
a democracia. Em consequência disso, emergiu
1- Todas as citações incluídas no presente texto são tradução nossa.
Optamos, por conseguinte, por apresentar cada uma no original em Inglês.
“[...] disenchantment with the status quo”.
2 - “an examination of all aspects of society and a call for democratic
renewal and reinvigoration”.
785
um clamor coletivo por mais justiça social e
econômica, tendo sido envidados esforços nesse
sentido em várias áreas de atuação (expansão
dos cuidados de saúde, combate à pobreza
e ao desemprego, cuidado dos idosos etc). Os
inícios do movimento progressivo foram, por
conseguinte, marcados por uma atitude de
abertura à mudança, sendo essa, portanto, a
sua característica mais saliente e consensual.
Com efeito, se para alguns autores, como
Hayes (2006, p. 5), “os progressivos não eram
revolucionários, mas antes pessoas interessadas
na resolução de problemas específicos assim
como na melhoria do estado de coisas”3, para
outros, como Miller (2009), o movimento
progressivo, longe de ser moderado, implicou
uma rejeição da forma tradicional de vida
americana. Segundo o autor, isso foi feito por
meio da promoção de reformas socias em grande
escala e da atribuição ao estado de um papel
cada vez mais predominante. Esse papel foi
entendido como instrumento para salvaguardar
a liberdade, não se limitando a proteger os
direitos individuais, mas a providenciar uma
distribuição mais equitativa dos mesmos.
As preocupações da era progressiva, em
termos de maior justiça social e econômica,
aparecem refletidas na obra de Dewey. Para
ele, só uma mudança em termos educacionais
poderá suscitar uma reforma social. Incidindo,
inicialmente, nas questões da educação e da
escolarização, os seus escritos tornam-se,
progressivamente, mais focados na elaboração
de uma filosofia da experiência, possuindo,
contudo, uma relevância direta para a educação.
A centralidade da educação relacionada com a
expansão da experiência, fortemente enfatizada
pelo autor, insere-se na defesa pelo movimento
progressivo da expansão de programas e
oportunidades educativas.
Segundo Dewey, o futuro da sociedade
americana está dependente da construção de
um sentido de comunidade, que tenha por base
a associação entre indivíduos pertencentes a
3 - “[…] the progressives were not revolutionaries, but rather people who
were interested in fixing specific problems and improving the status quo.”
786
grupos distintos e capazes de, nessa dialética
(capacidade de considerar e de superar pontos de
vista diferentes e até opostos), encontrar interesses
comuns e constituir novas associações que,
simultaneamente, potenciem a sua individualidade.
Desse modo, foi um firme apoiante das escolas
públicas, acreditando que a educação era um
fator crucial para atingir um consenso no seio da
diversidade. A frequência dessas escolas permitiria
a constituição de comunidades fortes, ajudando os
indivíduos a ultrapassar os preconceitos trazidos
do seu ambiente social.
Uma das traves mestras do pensamento
de Dewey consiste na afirmação de uma estreita
relação entre democracia e educação. Faz a
distinção entre democracia em sentido estrito,
correspondendo a um sistema de governo
(democracia política) e democracia em sentido
lato, enquanto ideia social. Nessa última
acepção, a democracia corresponde à “ideia
de comunidade em si”4 (DEWEY, 1991, p. 148),
constituindo um ideal regulador cuja realização
está dependente da sua apropriação por todas
as formas de associação humanas.
Podemos dizer que uma associação
humana é uma comunidade quando a atividade
conjunta desenvolvida se traduz num bem para
todos, não constituindo, simultaneamente,
uma restrição ao pleno desenvolvimento das
potencialidades dos membros do grupo. O que
distingue a vida comunitária é, por conseguinte,
a sua natureza moral, implicando um esforço
consciente de ordem intelectual e moral por
parte dos seus membros. Segundo Dewey (1991,
p. 154), “nascemos seres orgânicos associados
a outros, mas não nascemos membros de uma
comunidade”5, sendo isso algo que temos
de aprender a ser, a fim de realizar a nossa
humanidade. É necessário esclarecer aqui
que, para Dewey, não existe uma ideia ou
essência da humanidade propriamente dita, um
estado de perfeição a alcançar. A realização
da humanidade a que se refere tem a ver
4 - “idea of community itself”.
5 - “We are born organic beings associated with others, but we are not
born members of a community”.
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
com um processo aberto de crescimento e de
aperfeiçoamento, no sentido de uma experiência
mais partilhada e alargada, que resulta da
interação e capacidade de comunicação entre
os vários indivíduos.
A clarificação do papel da educação
e da sua estreita relação com a consecução
da democracia, em sentido lato, pressupõe a
compreensão da relação entre individualidade
e comunidade no pensamento de Dewey. Por
individualidade (que distingue de indivíduo),
entende aquilo que é próprio de cada um e
constitui o seu valor próprio, considerando
que é algo que tem de ser desenvolvido e
conquistado, não estando dado à partida e não
constituindo, por conseguinte, uma identidade
fixa, mas o resultado das ações de um indivíduo
que é essencialmente social. A imaturidade dos
mais novos, com a dependência e plasticidade
que a carateriza, é, por conseguinte, vista
como uma vantagem, na medida em que
representa a capacidade para se desenvolver,
impulsionada pelo contacto social. Efetivamente,
a incapacidade física da criança humana é
compensada pela sua capacidade social traduzida
numa extraordinária aptidão para responder a
estímulos sociais. Desse modo, a dependência
deve ser entendida como interdependência,
compreendendo simultaneamente a plasticidade
dos imaturos, mas também a sua capacidade
para aprender com a experiência socialmente
configurada. Há, portanto, uma inseparabilidade
e uma codependência entre o desenvolvimento/
construção da individualidade e a experiência
social, de que a comunidade é a realização plena
e completa (DEWEY, 1997a).
Outros dos aspectos estruturantes do
pensamento de Dewey constitui a equivalência
estabelecida entre viver, aprender e crescer.
Para o autor, viver é crescer sem um fim
predeterminado que não seja mais crescimento,
sendo igualmente esse o objetivo da educação.
A educação deve, desse modo, possibilitar uma
reorganização e reconstrução contínuas da
experiência dos indivíduos e das comunidades,
possibilitando o seu crescimento. Como
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
salientado por Hansen (2009), a obra de Dewey
traduz uma paixão pelo espaço “que está entre”
e que pode ser entendido como o espaço entre o
self que se foi e o self em formação, a comunidade
de ontem e a comunidade de hoje; o ponto de
vista adotado e o novo ponto de vista, exercendo
uma atração magnética e impulsionando as
pessoas para a frente “no sentido da criatividade,
da expressividade, do habitar o mundo de
forma mais plena, isto é, de forma reflexiva e
apreciativa”6 (HANSEN, 2009, p. 106).
O crescimento é, em si mesmo, e
simultaneamente, o objetivo e o veículo
da própria vida, expresso num processo
contínuo de reconstrução da experiência do
self, que enfrenta e acomoda o previsível e o
imprevisível. Contudo, e como já foi salientado,
no pensamento de Dewey, o self não pode ser
entendido como independente e autossuficiente.
O crescimento do indivíduo processa-se sempre
num meio social, tornando-se as suas respostas
inteligentes em função da sua associação e
comunicação com outros. Como referido por
Dewey7 (1991, p. 24):
[...] o homem não está apenas associado de
facto, mas torna-se um animal social na
composição das suas ideias, sentimentos e
comportamento deliberado. Aquilo em que
acredita, o que espera e tem por objetivo é o
resultado da sua associação e da sua relação.
Numa
sociedade
progressiva,
a
associação deve promover e não impedir as
variações individuais, as quais deverão ser
incentivadas, pois constituem os meios que
possibilitam o crescimento da sociedade.
Ao contrário de uma sociedade
conservadora e não democrática, a democrática
valoriza a liberdade, o que significa, em sentido
forte e progressivo, assegurar, acima de tudo,
6 - “toward creativity, toward expressivity, toward inhabiting the world that
much more fully, which is to say reflectively and appreciatively”.
7- “man is not merely de facto associated, but he becomes a social
animal in the make-up of his ideas, sentiments and deliberate behavior.
What he believes, hopes for and aims at is the outcome of association and
intercourse.”
787
as condições para que cada um possa pensar
por si mesmo e não se limitar a adotar uma
postura conformista. O conceito de liberdade
que está aqui em jogo transcende uma
concepção negativa correspondendo a uma
concepção positiva da mesma, entendida como
algo que tem de ser realizado e não apenas
assegurado. Em termos das implicações sociais e
educacionais, tem sobretudo a ver com a criação
de condições que possibilitam o desenvolvimento
de um pensamento efetivo, nomeadamente
a possibilidade de “iniciativa intelectual,
independência na observação, invenção
judiciosa, antecipação das consequências”8
(DEWEY, 1997a, p. 302).
Essa concepção está sustentada numa
teoria pragmatista do conhecimento, que
tem na continuidade uma das suas principais
características. A continuidade deve ser entendida
como um meio que permite a livre comunicação,
ultrapassando divisões, antíteses e dualismos
(no que pode também ser lido como um resíduo
hegeliano significativo no pensamento de Dewey).
Considerando que conhecer implica a reconstrução
da experiência, o conhecimento pressupõe uma
perceção mais profunda das conexões do objeto,
determinando a sua aplicabilidade e envolvendo a
totalidade do sujeito.
Assim sendo, o conhecimento não pode
ser entendido como uma “contemplação ociosa
de um espectador não comprometido”9 (DEWEY,
1997a, p. 338), implicando mente e corpo bem
como teoria e prática. Significa uma forma de
participação, cuja efetividade está relacionada
com o controle que confere aos sujeitos, ajudandoos a lidar com novas situações e a conferir
propósito ao futuro. Não é algo rígido nem fixo,
dado de uma vez por todas, mas o resultado de
processo de tentativa e erro. O fato de existir um
corpo de conhecimentos socialmente transmitido
não invalida o esforço individual para encontrar
um sentido. Como veremos, isso é especialmente
importante pelas suas implicações para a
aprendizagem. Efetivamente, Dewey sustenta
uma visão construtivista da aprendizagem numa
versão não ingênua.
Segundo Dewey, não é expectável que
o estudante faça descoberta originais, o que
não invalida, contudo, que as condições de
aprendizagem constituam um desafio para
aquele que aprende no sentido de permitir uma
“descoberta genuína”10 (DEWEY, 1997a, p. 303).
O conhecimento tem uma função adaptativa,
diferindo da mera conformidade a uma
realidade dada e independente do sujeito (a
asserção central do construtivismo, de acordo
com Glaserfeld, 1999), traduzindo-se num
alargamento da experiência pessoal e social.
8 - “[…] intellectual initiative, independence in observation, judicious
invention, foresight of consequences”.
9 - “[…] idle view of an unconcerned spectator”.
10 - “genuine discovery”.
��- “is found in the idea that there is as intimate and necessary relation
between the processes of actual experience and education”.
788
Conceito de educação
progressiva segundo John Dewey
Não há consenso em torno da definição
da educação progressiva. De um ponto de
vista superficial pode ser entendida como uma
série de práticas traduzida numa organização
do ensino-aprendizagem oposta à do ensino
tradicional, nomeadamente à ênfase colocada
na transmissão de conteúdos e no desempenho
do professor. Num sentido mais profundo, a
educação progressiva assenta numa lógica
específica, numa filosofia da educação diferente.
É essa a perspectiva subscrita por Dewey
na obra Experience and education (1997b), publicada originalmente em 1938, e que constitui
um dos seus escritos mais incisivos a respeito
do tema. Tendo em conta o trabalho realizado
com várias escolas progressivas, o autor reformula algumas das ideias expressas anteriormente, esclarecendo a visão que está por detrás
da educação progressiva. Para ele, a unidade
fundamental da nova filosofia que sustenta a
educação progressiva “encontra-se na ideia de
que há uma relação íntima e necessária entre os
processos da experiência atual e a educação”11
(DEWEY, 1997b, p. 20).
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
A partir de uma análise mais cuidadosa
do pensamento de Dewey, apercebemo-nos
que relacionar a experiência atual com a
educação é uma redundância. Tendo em conta
que os princípios de qualquer experiência são
a continuidade e a interação, aprender envolve
sempre, segundo ele, uma reorganização
da experiência do self. Por continuidade,
entende “que cada experiência transporta
simultaneamente algo daquelas que aconteceram
antes, modificando de alguma forma a qualidade
das que vêm depois”12 (DEWEY, 1997b, p. 35).
Sendo sempre subjetiva e pessoal, um processo
ativo, cada experiência afeta ainda, e é afetada,
pelas condições objetivas em que ocorre, tendo
igualmente implicações sobre as condições
objetivas de experiências posteriores. A isso
Dewey chama de princípio da interação, segundo
o qual as condições atuais são determinantes
da qualidade das experiências presentes, mas,
também, das futuras.
Tendo em conta que o valor da experiência
“só pode ser julgado na base daquilo que
impulsiona”13 (DEWEY, 1997b, p. 38), a marca
distintiva de uma experiência educativa consiste
na tradução dos princípios da continuidade e
interação em crescimento, permitindo ao sujeito
(re)construir uma experiência mais integrada
e unificada. A efetivação de uma experiência
educativa exige, desse modo, que o ambiente
esteja organizado de forma a “envolver a pessoa
em atividades específicas que tenham um
objetivo ou propósito de momento ou se revistam
de interesse para ela”14 (DEWEY, 1997a, p. 132).
Com efeito, o que está em jogo numa
experiência educativa é a possibilidade
do sujeito se identificar com a atividade,
encontrando sentido para a mesma, de forma a
compreender as sucessivas tarefas como fazendo
parte do contínuo de uma mesma situação em
desenvolvimento, favorecendo-se, desse modo, o
12 -� “that every experience both takes up something from those which
have gone before and modifies in some way the quality of those which
come after.”
13 -� “can be judged only on the ground of what it moves toward and into”.
14 - “Engage a person in specific activities having an aim or purpose of
moment or interest to him”.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
alargamento da compreensão de si mesmo e do
mundo e a constituição de uma personalidade
plenamente integrada como resultado da
integração das experiências. A autodisciplina
é a consequência natural da atenção contínua
requerida por esse tipo de atividade.
Alargar a experiência, aprender, não é
mais do que uma forma de se associar ao processo
ininterrupto que é o viver e que tem de enfrentar
o previsível e o imprevisível, terminado, ao
limite, com o fim da consciência (SHAKER;
HEILMAN, 2008). Os professores desempenham
aqui um papel fundamental. Antes de mais,
têm de conhecer os seus estudantes de forma
profunda a fim de identificar as atitudes que
estão a ser criadas, distinguindo entre as que
lhes permitirão crescer e as que os impedirão de
avançar. Em segundo lugar, e tendo em conta
esse dado, deverão criar um ambiente adequado
à ocorrência de experiências educativas. Em
suma, segundo Dewey, a criança deve ser o centro
da educação, razão pela qual os educadores
têm de estar cientes de que a formação precisa
ser concebida para o desenvolvimento dela: a
criança deve constituir o critério de seleção dos
conteúdos e das experiências bem como da sua
calendarização.
Considerando que as formas de
organização democráticas proporcionam uma
melhor experiência humana, potenciando as
qualidades de interação e continuidade, Dewey
sustenta que as escolas devem ser comunidades
embriônicas, a fim de permitir a familiarização
dos estudantes com a vida democrática. A
característica da interação, em particular, permite-nos apreender o desenvolvimento da experiência
como um processo social. Consequentemente, as
crianças devem acostumar-se à ideia do trabalho
como um empreendimento social, o que requer
do professor um planejamento cuidadoso no
sentido de organizar experiências que satisfaçam
as necessidades dos indivíduos que têm
perante si, permitindo-lhes desenvolver as suas
capacidades, capacitando-os, simultaneamente,
a atuar como grupo, assumindo-se o professor
como o líder das atividades do grupo.
789
A educação progressiva no
presente
Procuraremos, em seguida, compreender
como é que a educação progressiva se
desenvolveu e enriqueceu nas últimas
décadas, apesar da dominância de uma
agenda conservadora em matéria de educação,
abordando as suas principais propostas. Antes,
porém, convém esclarecer que, no início do
século XXI, o progressivismo mantém-se como
um movimento multifacetado, constituindo a
sua caraterística mais central e unanimemente
reconhecido o papel nuclear desempenhado
pela obra de John Dewey (NORRIS, 2004). Tal
como no início do movimento, os adeptos da
educação progressiva não pertencem à esquerda
radical, mas a uma esquerda reformista,
significando que o sentido da moderação
prevaleceu. Segundo Goodman (2006, p. 1),
o movimento progressista representa “um
espetro ideológico propositadamante alargado
de ideias sociopolíticas e educacionais,
enraizadas no pragmatismo americano”15 que,
ao contrário da esquerda radical, valoriza o
legado americano honrando a importância da
democracia representativa. Nesse contexto, a
sua luta concentra-se no aprofundar e expandir
dos sentidos da democracia, nomeadamente
através do aperfeiçoamento das instituições
e ideologias herdadas dos seus antepassados,
da consideração dos problemas das mulheres
e das minorias e da promoção de relações de
reciprocidade e maior equidade com outras
sociedades. Procurando ser uma alavanca de
responsabilidade social e de solidariedade,
no contexto da expansão e realização dos
direitos humanos, concebe a escola como um
meio crucial para atingir uma maior equidade
e dignidade humana, resistindo a tudo o que
possa ser interpretado como uma forma de
coisificação do outro.
Através da revisão de literatura atual
acerca da educação progressiva e do trabalho
��- “a purposefully broad ideological range of both sociopolitical and
educational ideas that are rooted in American pragmatism”.
790
de alguns dos seus mais proeminentes autores,
chegamos à prevalência de alguns tópicos
que configuram as suas principais propostas
na atualidade: a compreensão da educação
progressiva como uma abordagem educativa
centrada na criança; uma abordagem educativa
que privilegia o sentido de comunidade; a
importância de educar a criança como um
todo; a defesa de um conceito lato de sucesso
e de avaliação; a defesa da profissionalidade
docente; o desenvolvimento de cidadãos ativos
como o principal resultado a atingir com a
escolarização.
Uma abordagem centrada na
criança
A caraterística mais consensual da
educação progressiva é a de que consiste numa
abordagem centrada na criança. Egan (1999,
apud NORRIS 2004, p. 10) explica o significado
dessa expressão:
A crença central - o dogma mais fundamental do progressivismo - é que para
uma educação efetiva das crianças é vital
ter em conta a sua natureza, e em particular o seu modo de aprendizagem e estádios de desenvolvimento, acomodando
as práticas educativas ao que podermos
apurar sobre isto.16
A importância de ter em conta as
necessidades da criança, que encontramos
bem vincada na obra pedagógica de Dewey,
enquanto necessidade de entrar em relação com
a experiência da criança tendo em conta as suas
necessidades, forças e fraquezas específicas no
sentido de a ajudar a progredir, foi enriquecida
no diálogo entre o progressivismo e o
construtivismo de Jean Piaget e seus seguidores.
Recentemente, a teoria das inteligências
16 -� “The central belief-the most fundamental tenet of progressivism- is
that to educate children effectively it is vital to attend the nature of the child,
and particularly to their mode of learning and stages of development, and to
accommodate educational practices to what we can discover about these”.
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
múltiplas de Howard Gardner reforçou essa
intuição central da educação progressiva,
convidando-nos a considerar diferentes estilos
de aprendizagem.
Com base na abordagem centrada na
criança e no desenvolvimento da ideia de que
existem diferentes estilos de aprendizagem
e de envolvimento na mesma, um grupo de
educadores progressivos, sob a liderança de
Patricia Carini, desenvolveu uma metodologia
intitulada revisão descritiva. Segundo Carini
(2000, p. 16), os fundamentos e objetivos desta
metodologia são os seguintes:
Partindo da ideia de que as capacidades e
possibilidades humanas estão amplamente
distribuídas, orientámo-nos no sentido de
observar e de particularizar as capacidades e
as potencialidades de cada criança. Com base
em ambientes de sala de aula ricos em mídia
e em materiais, estamos bem colocados para
procurar e tornar visíveis os interesses fortes
de cada criança bem como os modos particulares como se envolve e aprende.17
Distinguindo-se de uma abordagem
clínica ou fisiológica, a revisão descritiva consiste
numa abordagem narrativa e não judicativa,
enraizada numa perspectiva fenomenológica,
que tem como objetivo apreender (e não
categorizar) a singularidade de cada indivíduo na
sua complexidade, potenciando a sua capacidade
para aprender.
Em suma, o que esses recentes
desenvolvimentos revelam é que a principal
reivindicação da educação progressiva, segundo
a qual a criança deve ocupar o centro do processo
de aprendizagem, corresponde à importância de
construir um ambiente de aprendizagem baseado
num estudo cuidadoso da singularidade daquela,
a fim de favorecer uma participação ativa e um
crescimento efetivo. Não significa, de modo
��- “Starting from the idea of human capacity and possibility, widely
distributed, we were oriented to look for and to particularize the capacities
and strengths of each child. Starting from classroom settings rich in media
and materials, we are in position to seek and make visible each child’s
strong interests and characteristics modes of engaging and learning”.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
algum, ser indulgente com a criança, assumindose, contudo, que a coação e a punição não
constituem boas medidas educativas.
Uma abordagem centrada na criança
significa, ainda, que uma boa escola “reflete
os valores e ideias dos estudantes”18 (SHAKER;
HEILMAN, 2008, p. 179), aspecto especialmente
desenvolvido por Deborah Meier (2002a,
2002b). Finalmente, uma abordagem centrada
na criança constitui um convite à adoção de
uma multiplicidade de modelos e caminhos
educativos, em vez da imposição de uma visão
única acerca do que significa ser uma pessoa
educada e, concomitantemente, da defesa de um
único caminho educativo (NODDINGS, 2002).
Educar a criança como um todo
Outro tópico que emerge da literatura
atual é o imperativo de educar a criança
na sua totalidade (NODDINGS, 2002; 2005;
2006). Esse imperativo pode ser interpretado
em dois sentidos, qualquer deles fazendo
apelo aos princípios da experiência, tal como
conceitualizada por Dewey. Em primeiro
lugar, tendo em conta que qualquer estudante
é um indivíduo complexo e que, como tal,
não pode ser desmembrado numa coleção de
atributos, os autores progressivos defendem
uma educação focada no desenvolvimento total
da criança. Consequentemente, privilegiam
uma abordagem holística do currículo, que
permita aos estudantes perceber (e estabelecer)
conexões entre as suas próprias experiências. A
concretização disso exige que as relações entre
as várias disciplinas, especialmente nos níveis
superiores de ensino, seja impulsionada a partir
de dentro, no sentido de permitir a exploração
de tópicos pertencentes a outros domínios do
conhecimento. Desse modo:
estudantes que se estão a especializar
em matemática ou ciência podem,
neste processo, aprender alguma coisa
18 - “reflects values and ideas of the students”
791
sobre
história,
biografia,
filosofia,
literatura, estética, religião e como viver19
(NODDINGS, 2006, p. 90).
Em segundo lugar, os autores progressivos
criticam a não-inclusão no currículo de
conteúdos valorizados pelos estudantes e
relacionados com a sua vida quotidiana,
assim como um conjunto de capacidades que
ajudam as pessoas a viver de uma forma mais
inteligente, moral e feliz. Noddings (2002, p.
95), em particular, realça aqui as capacidades
“tradicionalmente associadas às mulheres”20
e relacionadas com o cuidado humano. Para
Meier (2002b), é importante abolir a falsa
dicotomia entre conhecimento prático e
conhecimento acadêmico, dignificando os dois,
como forma de conseguir chegar aos estudantes
menos privilegiados e estabelecer uma ponte
com as suas culturas. Shaker e Heilman (2008)
recordam a importância da inclusão de uma
educação espiritual (enquanto distinta de uma
educação moral e religiosa), enfatizando a sua
importância para uma vida democrática, tendo
em conta que “o conceito de espiritualidade
se relaciona com propósitos humanos amplos,
antitéticos da autoabsorção”21 (SHAKER;
HEILMAN, 2008, p. 188), isto é, com a abertura
a um transcendente que favoreça a superação
do individualismo.
Um conceito lato de sucesso e
de avaliação
Há unanimidade entre os educadores
progressivos na crítica feita à ênfase colocada
nos testes estandardizados, que são um dos traços
dominantes da educação nos EUA na atualidade.
Não significa isso, contudo, que sejam contra a
lógica da avaliação ou da prestação de contas.
Pelo contrário, fazem a distinção entre formas
19 - “students specializing in mathematics or science can, in the process,
learn something of history, biography, philosophy, literature, aesthetics,
religion, and how to live”.
20 - “traditionally associated with women”.
��- “the concept of spirituality is connected to broad human purposes
antithetical to self-absorption”.
792
boas e más de avaliação, traçando uma linha
entre um conceito estreito de avaliação, que deve
ser combatido, e um conceito lato a incentivar,
concordando com a necessidade de avaliar o
trabalho desenvolvido pelas escolas.
A unanimidade em torno desse assunto
não acontece por acaso. A implementação
dos testes estandardizados é um bom exemplo
daquilo a que Dewey (2002, p.59) chamou
sugestivamente “o desperdício na educação” e
que resulta, entre outros fatores, do isolamento
dos vários domínios de estudo, logo da
artificialidade das matérias e da vida escolar em
relação à vida quotidiana.
Os
testes
estandardizados
são
considerados uma má forma de avaliação,
porque consistem numa medida reducionista
conducente a falsas certezas. Focados nos tipos
de inteligência linguística e matemática, não
favorecem a prossecução do objetivo essencial
do desenvolvimento da criança e do jovem no
sentido da solidariedade e das competências
sociais (DEWEY, 2002). De acordo com Meier
(2002a), tais exames são incapazes de prever
qualidades essenciais ao desenvolvimento de uma
cidadania democrática, tais como a capacidade
de cooperação, a criatividade, a perseverança, a
capacidade de correr riscos, a fiabilidade, entre
outras, estreitando, assim, o conceito de sucesso.
Para além disso, os autores progressivos
denunciam os riscos inerentes a uma única
forma de avaliação, defendendo a importância
de múltiplas formas de avaliação. Mas acima
de tudo, o que é colocado em questão é a
capacidade dos testes estandardizados avaliarem
o que os estudantes realmente aprenderam na
escola e, desse modo, consistirem uma medida
adequada para melhorar a educação. O sistema
de testes, tal como está organizado, tem como
objetivo hierarquizar os alunos, sendo incapaz
de avaliar se os professores ensinaram bem e se
os estudantes efetivamente aprenderam. Reflete-se, ainda, numa simplificação do processo
de aprendizagem e do papel do professor na
organização desse processo. Como salientado
por Meier (2002b), tem igualmente o efeito
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
de desacreditar as capacidades dos adultos
significativos, professores e pais, para avaliar
as evidências de aprendizagem em nome de
evidências indiretas consideradas mais credíveis.
A alternativa baseada numa perspectiva
progressiva implica uma avaliação mais lata,
baseada num “conjunto de dados e num contributo substancial dos profissionais”22 (SHAKER;
HEILMAN, 2008, p. 180). É considerada crucial
a implementação de formas de avaliação que
restituam a autoridade àqueles que conhecem
realmente as crianças, possibilitando ainda
a apresentação e partilha das evidências da
aprendizagem com as crianças, família e comunidade. Essa visibilidade da aprendizagem,
tornada possível através de um amplo processo
de documentação, que reúna diferentes formas
de evidência da mesma, sustenta o conceito
alargado de prestação de contas proposto pelos
educadores progressivos.
Para Krechevsky et al. (2010, p. 65),
a documentação constitui um instrumento
fundamental para implementar uma forma de
prestação de contas mais consistente e válida.
Para eles, essa documentação é definida como:
a prática de observação, gravação, interpretação e partilha, através de uma variedade de meios, dos processos e produtos da
aprendizagem a fim de possibilitar o aprofundamento da mesma”23. (KRECHEVSKY
et. al 2010, p. 65)
Para Meier (2002), é fundamental
implementar formas de avaliação que, voltando
a colocar a autoridade nas mãos daqueles
que melhor conhecem as crianças, forneçam
simultaneamente meios para que a comunidade,
a família e a escola possam apreciar os juízos
produzidos sobre as aprendizagens das suas
crianças, colocando questões ou mesmo
apresentando provas complementares daquela.
22 - “a range of data and a substantial element of professional peer input”.
23 - “the practice of observing, recording, interpreting, and sharing
through a variety of media the processes and products of learning in order
to deepen learning”.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
Só assim pode ser alcançada uma forma mais
segura de prestação de contas.
Kreschevsky et. al (2010) referem três
formas diversas e complementares de prestação
de contas. A primeira, prestação de contas a si
mesmo, permite aos professores e alunos observar
o que realmente conseguiram fazer, estabelecendo
a comparação com os seus objetivos e com
os objetivos da escola. Neste processo, os
professores e os alunos podem revisitar o seu
trabalho e refletir acerca da melhor forma de o
melhorar, estreitando os seus laços e tornando-se aprendizes da sua própria aprendizagem. A
segunda, prestação de contas entre si, favorece a
aprendizagem individual e grupal assim como a
constituição de uma identidade coletiva, já que os
estudantes comentam os trabalhos uns dos outros,
os professores pedem a colegas que observem
os seus alunos, os pais podem contribuir com a
recolha de provas de aprendizagem, emergindo
dessa dinâmica o sentido de uma comunidade de
aprendizagem. Finalmente, a terceira forma, uma
prestação de contas à comunidade envolvente
mediante mostras de aprendizagem, a partir da
qual se promovem apresentações de portfólios,
por exemplo. Essas mostras, que recuperam
uma tradição fortemente enraizada nos Estados
Unidos, permitem aos estudantes apresentarem
perante a comunidade mais vasta os resultados
da sua aprendizagem. Em síntese, contra a visão
que subjaz à legislação do no child left behind,
considerada como instigadora de uma política
punitiva que exclui em vez de permitir a melhoria
da educação, avaliando os estudantes através de
lentes estreitas e hierarquizando-os, os educadores
progressivos defendem uma noção alternativa
de padrões de sucesso, baseada em múltiplas
perspectivas e evidências, possibilitando uma
exposição e uma crítica públicas.
A defesa da profissionalidade
docente
Apesar de a educação progressiva defender uma abordagem centrada no aluno, considerando que uma boa escola é aquela onde as
793
ideias e os valores das crianças contam e são
levados a sério, isso não significa, de modo
algum, antes pelo contrário, que o papel dos
professores não se revista da maior importância. Por um lado, os professores são aqueles que
melhor conhecem as crianças devido ao contacto permanente e direto que têm com elas,
ocupando, por conseguinte, uma posição privilegiada para ultrapassar o hiato geracional. Por
outro lado, têm a responsabilidade de tornar a
cultura acessível aos alunos e de discutir com
eles as mensagens superficiais lançadas pelos
meios de comunicação e por adultos desencantados. Nesse contexto, devem desempenhar o
papel de inspiradores das novas gerações mediante a criação de situações de aprendizagem
que alimentem a curiosidade das crianças e o
seu amor pelo conhecimento.
Segundo esta ótica, a tarefa de ensinar é
vista como uma atividade criativa, exigindo o
domínio de uma grande variedade de técnicas
e uma atenção muito particular à singularidade
dos estudantes. Como salientado por Shaker e
Heilman (2008, p. 180), “os professores têm de
diariamente aproveitar todas as oportunidades
para alargar a efetividade da sua ação e chegar
a cada estudante de forma educativa”24. Na
senda da defesa feita por Dewey da necessidade
de preservação da liberdade intelectual
dos professores, os educadores e autores
progressivos rejeitam a ideia de um ensino cujo
objetivo seja a mera obtenção de sucesso em
testes estandardizados. Consideram que essa
concepção é extraordinariamente redutora do
profissionalismo docente, empobrecendo-o na
medida em que reduz os professores a meros
técnicos, colocando de lado a sua sabedoria
profissional (NORRIS, 2004; HAYES, 2006).
Ensinar é visto como um empreendimento
moral, que exige uma relação de confiança
entre professores e alunos. Os professores têm,
acima de tudo, de acreditar na capacidade e na
vontade de aprender dos seus alunos, mas têm
também de se apoiar uns nos outros e trabalhar
���
- “teachers need every opportunity to broaden their effectiveness and
successfully reach each student in an educative manner every day”.
794
em conjunto no sentido de criar formas de
confiança colegial. A educação das crianças
deve ser entendida como uma tarefa comum,
devendo as escolas organizarem-se de modo a
tornar essa ideia numa realidade.
O desenvolvimento de cidadãos
ativos como principal resultado
da escolarização
Os educadores progressivos subscrevem a
relação íntima entre democracia e educação defendida por Dewey, privilegiando, à semelhança deste, a democracia em sentido forte, como
uma forma de viver com os outros e como uma
forma de relacionamento e de interação diária.
Para além desse sentido de democracia participativa, defendem igualmente outro aspecto central
na noção de democracia proposta por Dewey: a
ideia de pluralismo (NEUBERT, 2009). Acreditam
que a diversidade de grupos e culturas deve ser
valorizada e constitui um ganho para a democracia, desde que os pré-requisitos institucionais
estejam assegurados no sentido de assegurar
uma comunicação livre e frutífera. Efetivamente,
o consenso e a unidade, dentro da diversidade,
são fundamentais para a construção de um sentido de comunidade. Acreditando que hoje, tal
como ontem, “a crise da democracia é também
a crise da comunidade”25 (SHAPIRO, 2009, p. 5),
entendem a educação para uma cidadania democrática como intimamente relacionada com uma
abordagem educativa centrada na comunidade.
Na base desses pressupostos, e desafiando
a agenda neoliberal para a educação, os
educadores e autores progressivos reclamam
uma outra visão e lógica educacionais,
sustentando que a educação não pode ser neutra,
não devendo ter como único objetivo o preparar
trabalhadores competentes (NODDINGS, 2005;
SHAKER; HEILMAN, 2008).
Efetivamente, uma sociedade democrática exige o desenvolvimento de competências essenciais à prossecução do bem comum
25 -� “the crisis of democracy is also the crisis of community”.
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
e à consecução de uma cidadania responsável.
Entre essas avultam o pensamento crítico, a resolução de problemas, o autoconhecimento, a
comunicação efetiva, a flexibilidade, a criatividade genuína, a consciência social e a vontade
para estabelecer e honrar compromissos. Para
corresponder a essa visão, as escolas públicas
têm de se tornar comunidades de inquérito,
preocupando-se com a construção de conhecimento, “mas também de sentido, identidade
e comunidade”26 (SHAKER; HEILMAN, 2008,
p. 187). A importância das escolas públicas se
concentrarem na realização de objetivos comuns e de um futuro comum é, assim, enfatizada (MEIER, 2002a).
A criação de condições adequadas por
meio da escolarização para a formação de
cidadãos críticos e informados é, por conseguinte,
indispensável para a sobrevivência da democracia.
Esse objetivo exige, simultaneamente, a
construção de um currículo que privilegie quer
as questões conceituais quer as questões práticas,
favorecendo o exercício da curiosidade por
crianças e adultos. Efetivamente, transformar
a escola numa comunidade democrática exige
participação e envolvimento por parte das
crianças, mas também a adoção de uma atitude
democrática pelos adultos (docentes, pessoal
não docente e pais), que deverão estar dispostos
a partilhar responsabilidades e a aprender
em conjunto. A necessária familiarização dos
estudantes com uma cultura de debate requer,
ainda, que os adultos à sua volta mostrem que é
possível manter discordâncias com outros sem se
perder o respeito.
A multiplicação de oportunidades
de partilha de conhecimentos, colocando
os estudantes mais velhos a ajudar os mais
novos, encorajando o voluntariado adulto e as
atividades que reúnem pessoas com diferentes
idades e níveis diversos de escolaridade, está
entre as medidas utilizadas para desenvolver
escolas e comunidade. Uma escola animada
por um sentido de comunidade deve ainda ser
26 -� “meaning, identity and community as well”.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014.
de dimensão reduzida, no sentido de favorecer
relações de confiança, desenvolvidas em torno
de objetivos comuns e de processos de decisão
transparentes. Como referido por Deborah
Meier (2004, p. 73):
[...] a confiança nas escolas não pode
crescer a não ser que os diretores, pais
professores e crianças se conheçam bem
e que o seu trabalho seja acessível à
comunidade mais lata.27
Conclusões
As propostas atuais da educação
progressiva têm como núcleo a relação estreita
entre educação e expansão da experiência
atual, aspecto central do pensamento de
John Dewey. Esta ideia corresponde, ainda,
à afirmação central do progressivismo,
segundo a qual só por meio do alargamento
de oportunidades educativas a todos se poderá
alcançar uma sociedade mais justa e equitativa.
Ser educado consiste, por conseguinte, no
apoderar-se da sua própria situação em sentido
pleno, isto é, de forma crítica e reflexiva,
alargando simultaneamente a compreensão
de si e do mundo. Esta concepção parte do
reconhecimento de uma diferença essencial
entre a educação humana e a educação animal.
Os seres humanos sentem necessidade de dar
sentido ao mundo a fim de o poder habitar.
A educação tem de ter em conta a
especificidade do estudante, entrando em linha
de conta com as suas necessidades forças e
fraquezas. A criança/estudante deve ser, por
conseguinte, a base das opções e das decisões. O
papel das escolas não é criar uniformidade, mas
permitir o desenvolvimento da individualidade.
A diversidade é valorizada enquanto forma de
expandir e enriquecer a experiência comum.
Nos escritos contemporâneos dos autores
progressivos, essa última ideia aparece expressa
de forma muito vincada. A tradição da educação
27 -� “trust in schools can’t grow unless principals, parents, teachers and kids
know each other well, and their work is accessible to the larger community”.
795
progressiva evoluiu e consolidou-se, em tempos
de globalização dominados por um agenda
neoliberal, como uma abordagem centrada
nos alunos, que descarta a uniformidade e a
esdandardização, defendendo que a diversidade
deve ser reconhecida e promovida. A revisão
descritiva da criança é o exemplo de um
instrumento metodológico poderoso que
amplifica essa ideia, tornando-a palpável em
termos pedagógicos. Para além de permitir o
reconhecimento de diferentes tipos de inteligência
e de diferentes estilos de aprendizagem, realça a
importância de olhar para os estudantes como
pessoas e não como casos, cujas especificidades
devem ser valorizadas.
De fato, um dos seus objetivos consiste
em combater o conformismo e a estandardização
que, de acordo com os educadores e autores
progressivos, estão a comprometer a educação não
só nos EUA, mas um pouco por todo o mundo. A
revisão descritiva pressupõe, ainda, a consideração
da continuidade entre educação formal e não
formal, um dos pressupostos iniciais da educação
progressiva, igualmente desenvolvido por Dewey.
As escolas não podem ignorar as aprendizagens
feitas pelos estudantes e que são trazidas para o seu
interior. Em suma, como refere Carini (1986, p. 17):
“a diversidade de perspectivas e de pensamento”28
devem ser encaradas “como o nosso maior
recurso, dado que nós, seres humanos, estamos
vocacionados para uma forma de vida em comum,
cuja vitalidade depende das forças e contributos
dos indivíduos”. 29
Defendendo
uma
concepção
de
democracia em sentido forte, a educação
progressiva, de hoje, realça a importância das
escolas se constituirem como comunidades
de investigação, aprendizagem e sentido. As
escolas, e em especial as escolas públicas, devem
encorajar a dedicação pessoal ao bem comum,
favorecendo o capital social, entendido como a
capacidade para cooperar em benefício mútuo.
���
- “diversity of outlook and thought”.
29 - “as our richest resource since we humans are inclined toward a
communal mode of life which depends for its vitality on the strengths and
contributions of individuals”.
796
Muito mais do que transmitir informação, a
educação escolar deve preparar os estudantes
para aprender ao longo da vida de forma ativa
e pragmática, oferecendo-lhes uma educação
integral. Sem subestimar a importância da
literacia e da numeracia, os educadores
progressivos atuais acreditam que esses
objetivos podem ser alcançados por meio da
resolução de problemas práticos e de atividades
e projetos que mobilizem os interesses dos
estudantes, quebrando as fronteiras artificiais
entre as várias disciplinas e restaurando a
unidade da experiência.
Finalmente, a educação democrática
não é considerada como um empreendimento
neutro, mas é considerada um empreendimento
moral e espiritual, o que significa, num sentido
progressivo, que se baseia numa concepção dos
seres humanos como iguais, racionais e capazes
de cooperação. Desse modo, a realização de uma
educação democrática exige um investimento
na capacidade ética do ser humano para encetar
um diálogo democrático e para tomar decisões
em conformidade.
Hoje, mais do que nunca, uma verdadeira
educação democrática, uma educação crítica,
exige um esforço de compreensão das diferenças
culturais e de outro tipo de diferenças,
implicando uma escuta atenta e séria. Nessa
perspectiva, a integração étnica, racial e social
deve ser encorajada nas escolas de um mundo
que é cada vez mais diverso. Esse aspecto,
realçado nas propostas atuais da educação
progressiva, revela um compromisso muito claro
com a justiça social e o pluralismo através da
educação. A comunicação deve ser incentivada,
no espírito de Dewey, não significando com
isso que os conflitos devem ser evitados ou que
se devem procurar falsos consensos, mas, sim,
ensinar os estudantes a lidar com os conflitos e a
solucioná-los, tendo em conta a perspectiva dos
outros e sem minimizar ou anular as diferenças.
Consequentemente, de acordo com as
perspectivas progressivas atuais, o papel da
educação não consiste apenas em preparar os
estudantes para o mercado de trabalho, devendo,
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
essencialmente, focar-se na preparação de
cidadãos críticos e comprometidos no sentido de
preservar, melhorar e aprofundar a democracia,
através de um exigente e envolvente processo
de ensino-aprendizagem. Por esse motivo,
subscrevemos a afirmação de Norris (2004,
p.17), para quem “não foi a educação
progressiva que não esteve à altura das pessoas,
mas estas que não souberam estar à altura
30- “[…] progressive education has not failed the people but that, in fact,
people have failed progressive education”.
da educação progressiva”30, ignorando o seu
potencial e requisitos e preferindo assimilá-la a
uma perspectiva romântica e economicamente
inviável (SHAKER; HEILMAN, 2008).
A educação progressiva é uma abordagem
educativa exigente, que requer professores muito
competentes e empenhados, comportando custos
pessoais e econômicos, mas que pode ser bem
sucedida. Na prática, está a dar os seus frutos
em numerosas escolas nos EUA, apesar de uma
conjuntura adversa, contribuindo para uma
revitalização da vida democrática.
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Recebido em: 08.06.2013
Aprovado em:11.09.2013
Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco é doutora em Educação pela Universidade da Beira Interior, Portugal, e professora
auxiliar do Departamento de Psicologia e Educação da mesma universidade. Investigadora do Instituto de Filosofia/Gabinete
de Filosofia da Educação da Universidade do Porto. As suas pesquisas têm-se centrado nas áreas da Teoria da Educação,
Pensamento Pedagógico Contemporâneo e Educação para uma Cidadania Democrática.
798
Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
Condição humana e formação virtuosa da vontade:
profundezas do reconhecimento em Honneth e RousseauI
Claudio Almir DalboscoII
Resumo
I- Este ensaio é parte de meu pós-doutorado,
realizado no CEBRAP/SP, durante o segundo
semestre de 2013, mediante supervisão dos
professores Dr. Marcos Nobre (Unicamp) e Dr.
Ricardo Terra (USP), aos quais agradeço pela
recepção e liberdade para realização do trabalho,
bem como pelo debate proporcionado. Também
sou grato ao CNPq pela Bolsa Produtividade
em Pesquisa e à Universidade de Passo Fundo
(UPF/RS) por ter me concedido total liberação de
minhas atividades institucionais, sem a qual não
poderia ter realizado o trabalho.
II- Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo,
RS, Brasil.
Contato: [email protected]
Parte significativa do debate filosófico e pedagógico
contemporâneo considera a teoria do reconhecimento como
postura intelectual promissora para tratar de problemas
filosóficos e educacionais. Nesse sentido, não se pode pensar
uma ordem social justa sem o processo educacional formativo
do ser humano amparado por estruturas sociais e institucionais
de reconhecimento. O filósofo social frankfurtiano Axel Honneth
tem se destacado, na atualidade, por apresentar uma teoria
do reconhecimento com forte inspiração hegeliana. Contudo,
em trabalho recente, intitulado Untiefen der Anerkennung
(Profundezas do reconhecimento), publicado na Alemanha
em 2012, inspirando-se em Frederick Neuhouser, considera
Rousseau, e não mais Hegel, o pioneiro fundador da teoria do
reconhecimento. O presente ensaio, contrapondo-se criticamente
à interpretação de Honneth, possui duplo propósito: por um lado,
mostrar que, se Honneth considera acertadamente Rousseau
como teórico do reconhecimento, também deveria tomá-lo
como pioneiro da noção de liberdade social; por outro, justificar
que a profunda imbricação existente no pensamento do filósofo
genebrino entre teoria do reconhecimento e educação do amor
próprio só se deixa esclarecer com base em uma teoria da
formação virtuosa da vontade. De outra parte, ao argumentar
a favor da formação virtuosa da vontade como forma de evitar
a extensão do amor próprio pervertido, Rousseau, além de
tocar em um problema de fundo da condição social humana,
também lança as bases para uma avaliação crítica do cenário
pedagógico contemporâneo, o qual reduz perigosamente
questões educacionais amplas e complexas simplesmente a
problemas de aprendizagem.
Palavras-chave
Amor próprio — Reconhecimento — Formação — Vontade —
Virtude.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091625
799
The human condition and the virtuous education of the
will: the depths of recognition in Honneth and Rousseau I
Claudio Almir DalboscoII
Abstract
I- This essay is part of my postdoctoral
studies, performed at CEBRAP / SP during the
second half of 2013, under the supervision
of Professors Marcos Nobre (Unicamp)
and Ricardo Terra (USP), whom I thank for
welcoming me, for the freedom to perform this
work as well as for the debate provided. I would
also like to acknowledge Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq - National Council for Scientific and
Technological Development) for the research
productivity fellowship and Universidade de
Passo Fundo (UPF/RS) for my leave from work
at the university, without which I could not have
performed this study.
II- Universidade de Passo Fundo, Passo
Fundo, RS, Brasil.
Contact: [email protected]
800
A significant part of the contemporary philosophical and
educational discussion considers the theory of recognition as a
promising intellectual approach to philosophical and educational
problems. In this sense, one cannot think about a just social order
without the educational process of the human being supported
by social and institutional structures of recognition. At present,
the Frankfurter social philosopher Axel Honneth has stood out
for presenting a theory of recognition with a strong Hegelian
inspiration. However, in a recent work entitled Untiefen der
Anerkennung (Depths of recognition), published in Germany in
2012, drawing inspiration from Frederik Neuhouser, Honneth
considers Rousseau, not Hegel anymore, the pioneer of the theory
of recognition. Critically opposing Honneth’s interpretation, this
essay has a double purpose: on the one hand, to show that, as
Honneth rightly considers Rousseau a theorist of recognition,
he should also regard him as a pioneer of the concept of social
freedom; and, on the other hand, to justify that the profound
intertwining present in the thought of the Genevan philosopher
between the theory of recognition and the education of self-love
can only be clarified on the basis of a theory of the virtuous
education of the will. Moreover, when arguing for the virtuous
education of the will in order to avoid the extension of perverted
self-love, Rousseau not only addresses a fundamental problem
of the human social condition, but also lays the foundations for
a critical evaluation of the contemporary educational scenario.
Such scenario dangerously reduces large and complex educational
issues to mere learning problems.
Keywords
Self-love — Recognition — Education — Will — Virtue.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091625
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
Introdução
Investigações recentes procuram mostrar
que é Rousseau e não Hegel o fundador da teoria do reconhecimento. Entre elas, destacam-se Pathologien der Selbstliebe (Patologias do
amor próprio), de Frederick Neuhouser (2012), e
Untiefen der Anerkennung (Profundezas1 do reconhecimento), de Axel Honneth (2012a). Nesse
seu pequeno ensaio, Axel Honneth não esconde
o quanto se deixa influenciar profundamente
pelo amplo e detalhado livro de Neuhouser. As
pesquisas do filósofo americano permitem, em
primeiro lugar, segundo Honneth, localizar a
unidade do pensamento de Rousseau não mais
na autodeterminação livre da vontade, como
acreditou outrora Ernst Cassirer (1975), mas
sim na teoria do amor próprio. Em segundo lugar, aprofundando a interpretação de Nicholas
Dent, Neuhouser conclui que a tese de que o
sujeito humano deve sua capacidade de ação
social ao reconhecimento de outros sujeitos
pertence originariamente não ao pensamento
de Hegel, mas sim ao de Rousseau. A “dependência constitutiva ao outro” formaria, nesse
contexto, o elo entre os resultados negativos
da crítica à cultura e a versão positiva presente
na ideia de um contrato social entre cidadãos
e cidadãs. Sendo assim, conclui Honneth, é a
teoria do reconhecimento sustentada pela teoria do amor próprio – e não mais a autodeterminação da vontade – que constitui a unidade
sistemática das principais obras de Rousseau
(HONNETH, 2012a, p. 48).2
Desse modo, a alta consideração
que Honneth tem sobre a interpretação de
Neuhouser ocorre nitidamente em detrimento
da interpretação de Cassirer, pressupondo, em
última instância, a incompatibilidade entre
a tese da autodeterminação livre da vontade
e a teoria do amor próprio. Contrariamente a
1- A tradução mais usual da expressão “Untiefen” seria abismos. Contudo,
opto por profundezas porque dá mais a ideia de profundidade no sentido
de inesgotável, e não enquanto algo sem fundo, como a expressão abismo
poderia dar a entender.
2- Ver também a resenha crítica de Honneth sobre o livro de Neuhouser
(HONNETH, 2012b).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
Axel Honneth, penso que é possível reconhecer
a fecundidade da contribuição de Frederick
Neuhouser sem secundarizar a interpretação
de Ernst Cassirer. Como procuro mostrar na
parte final deste ensaio, esses dois autores
não se excluem, mas sim se complementam
mutuamente, pois a teoria da educabilidade
do amor próprio, como forma consequente
de enfrentar os perigos que lhe são inerentes,
pressupõe a formação da vontade, cujos traços
gerais Rousseau esboça no Émile como teoria
da virtude.
O núcleo do problema da vontade em
Rousseau, considerado acertadamente por
Honneth como obscuro, deixa-se esclarecer
melhor – e esta é minha hipótese – quando
compreendido como um problema de formação
(Bildungsproblem). Ou seja, Rousseau estava
certo de que a vontade humana não se explica
por si mesma e nem deveria ser tomada como
um conceito abstrato. No entanto, como não é
absolutamente boa3 e como é a força movente
do amor próprio, ela precisa ser formada
virtuosamente para que possa impulsionar as
forças construtivas do amor próprio e, com
isso, dominar o ímpeto destrutivo das paixões
humanas. Ora, se o problema se põe realmente
dessa maneira, então o Émile ocupa um lugar de
maior destaque na arquitetônica do pensamento
rousseauniano do que aquele concebido tanto
por Honneth quanto pelo próprio Cassirer.
De qualquer modo, o fato de Axel
Honneth assumir essa nova interpretação de
Neuhouser traz certamente implicações decisivas
para sua própria teoria da justiça, cuja última
versão encontra-se formulada em seu extenso
livro Das Recht der Freiheit. Grundriss einer
demokratischen Sittlichkeit (Direito à liberdade.
Esboço de uma eticidade democrática), publicado
na Alemanha em 2011. Segundo Honneth, as
teorias modernas da justiça fazem repousar sua
justificação na ideia da liberdade individual,
assumindo tal ideia três versões diferentes, as
3- Rousseau foi um dos autores entre os modernos que melhor
reconheceu a fraqueza e a vulnerabilidade da condição humana, sabendo
derivar dela também o problema da “vontade fraca”.
801
quais influenciam, cada uma a seu modo, as
próprias teorias contemporâneas e atuais de
justiça: a liberdade negativa, formulada por
Hobbes; a liberdade reflexiva, esboçada por
Rousseau e sistematizada diferentemente por
Kant e Herder; e, por último, a liberdade social,
pensada por Hegel.
Não é minha pretensão, neste breve ensaio,
seguir pormenorizadamente a exposição que
Honneth faz, na primeira parte de seu referido
livro, de cada uma dessas três grandes concepções
modernas de liberdade. Pretendo deter-me, isto
sim, especificamente na implicação que tem
para sua própria posição o fato de ter assumido
integralmente a nova interpretação de Neuhouser.
Se Honneth está de acordo com Neuhouser
sobre o fato de que é Rousseau e não mais
Hegel o fundador da teoria do reconhecimento,
então ele deve ser levado, por coerência de
sua adesão àquela interpretação, a ver em
Rousseau não mais só o fundador da liberdade
reflexiva – a qual Kant tomará como ponto de
partida para justificar sua ideia de liberdade
como autodeterminação (Selbstbestimmung)
e autolegislação (Selbstgesetzgebung) –, mas,
sobretudo, o fundador da própria liberdade social.
Na sequência, desenvolvo minha
argumentação em três momentos. No primeiro,
reconstruo em linhas gerais a releitura que
Honneth faz, inspirando-se em Neuhouser, do
pensamento de Rousseau no referido ensaio,
“Untiefen der Anerkennung”. No segundo
momento, faço um ingresso pontual na primeira
parte de sua grande obra, Das Recht der Freiheit,
visando a resumir a breve interpretação que ele
oferece do pensamento de Rousseau. Por fim,
no terceiro momento, argumento a favor da
noção de liberdade social no pensamento de
Rousseau, buscando mostrar, ao mesmo tempo,
em que sentido a educabilidade do amor próprio
só se deixa compreender adequadamente
como teoria da formação virtuosa da vontade.
Essa contraposição crítica à interpretação de
Honneth serve-me a uma dupla finalidade:
esclarecer o sentido genuinamente formativo
da ideia de educação em Rousseau e,
802
simultaneamente, pensar o quanto tal ideia
pode revelar-se ainda atual como referência
crítica à redução da educação a uma “questão
de aprendizagem”, que predomina no cenário
pedagógico contemporâneo.
Profundezas do reconhecimento
No ensaio Untiefen der Anerkennung,
Honneth, seguindo de perto as pegadas de
Neuhouser4, afirma que, com a teoria do amor
próprio, Rousseau transformou-se no fundador
da ampla tradição da teoria do reconhecimento.
Nesse sentido, o conceito de amor próprio serve
não só para sua crítica à sociedade e à cultura,
mas também para a fundamentação de sua
teoria do reconhecimento intersubjetivo, a qual
assume dupla variante, uma negativa e outra
positiva. A variante negativa consiste na busca
pela estima pública e pelo reconhecimento
social, mas sempre tomando os outros como seres
inferiores. Ou seja, essa forma de reconhecimento
é negativa porque alimenta o incessante
desejo humano de sempre buscar uma posição
superior em relação aos seus semelhantes. Dela
brota o espírito de concorrência desenfreado,
movido pela vaidade5, soberba (petulância) e
ódio. Essa variante predomina nos escritos de
crítica à cultura e à sociedade, especialmente no
Segundo Discurso. A segunda variante, por sua
vez, gira em torno da noção de reconhecimento
recíproco. Ela é positiva, nesse sentido, porque,
além de se opor ao desejo de superioridade,
fomenta o respeito recíproco entre iguais. Ela é
predominante no Émile, voltando-se aí contra
a variante negativa com o intuito de preparar
o aluno fictício para o domínio de seu amor
próprio inflamado.
4- No ensaio “Aspiração humana por reconhecimento e educação do
amor próprio em Jean-Jacques Rousseau” (DALBOSCO, 2011a, p. 481496), ocupo-me em detalhes da interpretação que Neuhouser faz do amor
próprio em Rousseau.
5- N. J. H. Dent, por exemplo, considera a vaidade como um dos
sentimentos mais destrutivos do amor próprio, porque ela resume o desejo
humano incessante de se comparar com o outro visando a ser superior a
ele e sentir-se agraciado por tal superioridade (DENT, 1996, p. 208-209).
Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
Para mostrar a centralidade da teoria
do amor próprio no pensamento de Rousseau,
Honneth divide seu breve e denso ensaio em três
partes. Na primeira, segue o desenvolvimento
teórico de Rousseau até o ponto em que o
genebrino põe a exigência da forma social
igualitária de reconhecimento recíproco como
alternativa aos aspectos danosos do amor
próprio. Na segunda parte, pretende mostrar
brevemente a enorme influência que a dupla
variante do reconhecimento social exerceu
no discurso filosófico da modernidade. Nesse
contexto, escolhe as noções de história da
filosofia de Kant como manifestação prototípica
da primeira variante, uma vez que, segundo
ele, Kant teria mostrado claramente em tais
noções como a profunda necessidade humana
de estima social transforma-se perigosamente
na força motriz do progresso social e cultural.6
A variante positiva será desenvolvida por
Fichte e Hegel na direção de uma teoria do
reconhecimento do direito e da eticidade.
Por fim, na última parte do ensaio, Honneth
reconstrói o ceticismo crescente manifestado,
segundo ele, pelo próprio Rousseau em relação à
dependência ao outro que está inerente ao amor
próprio. O filósofo genebrino teria retomado,
segundo ele, sobretudo em seus escritos tardios,
o argumento, com o qual também já havia se
deparado no Segundo Discurso, de que talvez
fosse mais aconselhável à paz da alma humana
tornar-se completamente independente da
consideração e do reconhecimento do outro
(HONNETH, 2012a, p. 49).
Não seria menos importante seguir de
perto aqui o detalhamento do argumento de
Honneth nas três partes do referido ensaio,
considerando a riqueza de suas ideias. Contudo,
para meus propósitos, basta reconstruir agora o
núcleo da primeira parte, uma vez que é nela que
aparecem delineados os traços gerais da teoria
rousseauniana do reconhecimento que chega a
6 - Embora Honneth não aprofunde esse aspecto, é com a noção
de “sociabilidade insociável” (ungesellige Geselligkeit) que Kant traz
contribuição importante à filosofia social e, especificamente, ao pensamento
educacional. Ocupei-me desse tema no quarto capítulo de meu pequeno
livro Kant & a educação (2011b).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
suas mãos por influência de Neuhouser. Nesse
contexto, Honneth retoma esquematicamente
a distinção entre amor de si e amor próprio,
vendo no primeiro, em comum acordo com
Neuhouser e o próprio Rousseau, o sentimento
que o ser humano desenvolve visando a sua
autopreservação. Nesse sentido, o amor de si é
um sentimento pré-social, que coloca o homem
natural em estado de isolamento e de quase
total independência. Enquanto isso, o amor
próprio refere-se ao sentimento social, pois
nasce com a sociedade e impele o ser humano a
comparar-se permanentemente com os outros,
fazendo-o depender do julgamento daqueles.
Enquanto o amor de si possui valor absoluto, o
amor próprio possui valor relativo.
Como sentimento eminentemente social,
o amor próprio pode assumir uma variante
altamente perigosa e destrutiva, sobretudo
quando a busca humana incessante pela
estima pública for acompanhada pelo desejo de
querer ser a qualquer custo superior aos seus
semelhantes. Ora, é justamente nesse contexto
que o amor próprio transforma-se nas paixões
odientas e raivosas, conduzindo o ser humano ao
orgulho, à vaidade e à petulância (prepotência).
De outra parte, a força motriz do amor próprio
pode assumir variante construtiva, culminando
na ideia do reconhecimento recíproco, que é
a base da cidadania republicana constituída
democraticamente por seres livres e iguais. Esse
é, em síntese, o núcleo da dupla variante que
constitui o amor próprio e que Honneth toma de
empréstimo da hermenêutica competente que
Frederick Neuhouser faz do texto de Rousseau.
Com base nisso, Honneth volta-se
primeiramente à variante negativa e analisa o
modo como ela alimenta a crítica rousseauniana
à cultura. A crítica ao teatro serve-lhe como
modelo paradigmático, uma vez que, ao se
voltar contra o projeto de implantação do
teatro em Genebra, Rousseau teria arrolado
uma gama diversificada de argumentos para
mostrar em que sentido o palco simboliza o
refinamento do amor próprio pervertido. Com
o teatro, os cidadãos e cidadãs aprendem a
803
troca de papéis, incorporando de tal forma
suas características que terminam por ficar
convencidos da verdade de seus novos papéis.
Além disso, os atores teriam a capacidade
de infectar o público com o vírus do simples
parecer, transformando-o enganosamente na
esfera do ser. Como atividade cultural central
de sua época, o teatro aguçaria, então, segundo
Rousseau, o aspecto destrutivo do amor próprio,
fomentando a lógica do parecer em detrimento
do ser. Sendo assim, a cultura teatral colocarse-ia na contramão da comunidade republicana,
alicerçada no cumprimento do dever e nos
valores de sinceridade e orgulho da cidadania
(HONNETH, 2012a, p. 49-50).
Contudo, segundo Honneth, Rousseau já
havia elaborado, dois anos antes, no Segundo
Discurso, essa tendência cultural de afetação
do aspecto destrutivo do amor próprio. Em tal
escrito, já se encontra empregado o conceito
de amor próprio para designar, como “segunda
natureza”, esse modo de relacionamento
humano surgido com a sociabilidade e que
põe a busca por estima pública como base de
constituição do próprio laço social. Recorrendo
à Observação XV do Segundo Discurso, na qual
Rousseau estabelece a famosa distinção entre
amor de si e amor próprio, Honneth acentua
a forma negativa que o amor próprio assume
aí, como “fonte contínua do impulso, para o
[ser humano] poder provar-se como superior
em relação ao seu semelhante” (HONNETH,
2012a, p. 51). Ora, é justamente nessa procura
incessante por superioridade em relação aos seus
semelhantes que Rousseau localiza, no Segundo
Discurso, a raiz de todas as patologias sociais
de seu tempo. Honneth resume lapidarmente o
ponto em questão:
O que ontem ainda podia valer em relação à riqueza, ao poder e à beleza como
sinal de uma superioridade individual,
deve hoje ser novamente sobrepujado em
razão da ampliação social, de tal modo
que domina em todos os campos de concorrência uma tendência de elevação
804
incontrolável da conduta de distinção
(HONNETH, 2012a, , p. 52).
Em resumo, como atestam então o
Segundo Discurso e a Carta a D’Alambert,
Rousseau deixou-se orientar, em sua ampla
crítica à cultura, pela variante negativa do amor
próprio: a busca incontrolável por superioridade
e a obsessão pela distinção em relação aos seus
semelhantes são duas tendências que formam
a dinâmica destrutiva do desenvolvimento
cultural humano.
Contudo, no Émile, a variante positiva
assume sua dianteira, mostrando com isso a
insatisfação do filósofo em relação ao aspecto
prejudicial e destrutivo do amor próprio.
Honneth reconhece que não é tão fácil assim
para Rousseau provocar a passagem do
aspecto negativo para o positivo do amor
próprio. Segundo ele, para que tal passagem
pudesse ser efetuada com força e mais clareza,
Rousseau deveria ter acentuado as condições
mediante as quais a necessidade patológica
do ser humano de mostrar sua superioridade
em relação aos seus semelhantes ficasse
suprimida pelo autojulgamento mediado
intersubjetivamente (HONNETH, 2012a, p. 5253). Em outros termos, a variante positiva do
amor próprio toma efetivamente a dianteira em
passagens do Émile onde fica estabelecido o
respeito recíproco como vetor da sociabilidade
humana. É nessas passagens que Rousseau
traça o ideal formativo do Emílio, mostrando
o quanto a simplicidade e a moderação
são decisivos para sua formação virtuosa,
voltando-se contra a vaidade e a soberba.
Testemunhos da variante positiva do
amor próprio são, então, exatamente aquelas
passagens do Émile nas quais Rousseau procura
enfrentar o inevitável problema da educação
do amor próprio de seu aluno fictício. Para
Honneth, o núcleo dessa tarefa educativa
repousa na proposta feita por Rousseau de
“ampliação” do amor próprio até a virtude.
Assim argumenta ele: “Falar sobre a ampliação
do amor próprio significa então precisamente
Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
familiarizar os sujeitos com a concepção de
que eles precisam do reconhecimento social
recíproco e, por isso, devem renunciar ao espírito
forte de concorrência que visa à superioridade”
(HONNETH, 2012a, p. 53).
Portanto, mostrando ao seu aluno
fictício a importância da dependência recíproca,
Rousseau queria evitar que seu amor próprio
fosse infectado pelo vírus da soberba e do desejo
de superioridade (vontade de dominação).
Com isso, encontrou a forma temperada do
reconhecimento social na expressão “respeito
entre iguais”, pondo-a como alternativa
à tendência destrutiva do amor próprio.
Desse modo, pela interpretação de Honneth,
podemos ver que “dependência recíproca” e
“respeito entre iguais” constituem o núcleo da
educabilidade do amor próprio, pois são esses
dois aspectos que, segundo Rousseau, impedem
que a variante negativa do amor próprio assuma
a dianteira na formação do aluno fictício.
Ora, segundo Honneth, se compreendermos
desse modo o tratamento pedagógico oferecido
por Rousseau ao amor próprio no Émile, não
será tão difícil entender os motivos que fazem
o filósofo genebrino aparecer em geral, na
atualidade, como teórico do reconhecimento.
Além da vontade de dominação (busca obsessiva
pela posição superior em relação aos demais), o
amor próprio é constituído pela necessidade de
“se fazer valer como alguém aos olhos de seus
parceiros sociais e poder desfrutar com isso uma
forma de valor social” (HONNETH, 2012a p. 53).
Não há dúvida que Honneth toca aqui no aspecto
crucial do pensamento de Rousseau e que está no
centro de sua concepção de justiça e dignidade
humana. Dent, grande especialista em Rousseau
no âmbito da pesquisa anglo-saxônica, sintetiza
isso de maneira clara por meio do conceito de
“personalidade moral”. Assim afirma ele: “A
‘personalidade moral’, no entender de Rousseau,
é a necessidade humana fundamental para cada
pessoa de ser reconhecida e respeitada por outros
como alguém que importa e que tem valor e
dignidade sem depender de ninguém” (DENT,
1996, p. 149).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
O importante, para meu ponto, é que
Honneth destaca o papel indispensável que a
variante positiva desempenha no pensamento
de Rousseau, formando o alicerce de sua
teoria educacional. Sob esse aspecto, vale a
pena traduzir na integra uma passagem de seu
referido ensaio, que resume bem seu argumento:
Rousseau está sendo muito consequente
quando expõe, em sua obra educacional,
os critérios pedagógicos que disponibilizam
aos adultos, desde sua mais tenra idade, a
consciência sobre a igualdade social. Pois,
somente quando o indivíduo aprende a se
considerar como igual entre iguais, é que
ele pode se compreender simultaneamente
como colaborador daquele “outro generalizado”, de cuja formação do juízo ele próprio
depende para a satisfação de seu amor próprio (HONNETH, 2012a, p. 54).
Ou seja, por ser considerada como valor
insubstituível, a igualdade social precisa fazer
parte do mundo do ser humano já em sua
primeira infância. Mais uma vez, torna-se claro
o quanto é importante, para a formação do
aluno fictício, a consciência sobre a dependência
social e o respeito recíproco entre iguais, pois
são esses dois aspectos que propiciam uma
satisfação positiva do amor próprio e, com isso,
da realização pessoal do próprio sujeito.
Em conclusão, a reconstrução acima nos
dá uma ideia geral do quanto a teoria da ambiguidade do amor próprio, mediada pela interpretação de Neuhouser, foi capaz de alterar significativamente a posição de Honneth, a tal ponto que
o levou a considerar, sem maiores dificuldades,
Rousseau como fundador da teoria do reconhecimento. Muito longe estamos aqui, então, daquele
Rousseau simplesmente enquadrado na formulação da liberdade reflexiva e como puro pioneiro
intelectual da distinção entre heteronomia e autonomia. Reconstruir brevemente como Honneth
formula essa sua apreciação convencional do
pensamento do genebrino em seu livro O direito à
liberdade é o objetivo do tópico seguinte.
805
Rousseau como fundador da
liberdade reflexiva
No prefácio de O direito à liberdade, Axel
Honneth revela que, embora o trabalho nessa
obra tenha lhe custado cinco longos anos, ao
terminá-la, teve o impulso, percebendo sua
incompletude, de querer iniciá-la novamente.
De qualquer forma, trata-se de um trabalho
extenso, de muita coesão e profundidade
argumentativa, representando sem dúvida um
estágio avançado na maturidade intelectual do
autor. Sem correr o risco de cair no pedantismo,
esbanja erudição, passando em revista várias
tradições filosóficas, políticas e jurídicas, tanto
modernas como contemporâneas.
A consideração a Rousseau ocupa um
lugar infinitamente pequeno na exposição de
Honneth, considerando, por um lado, a enorme
extensão da obra e, por outro, o papel destacado
que o pensamento do genebrino desempenha
no cenário filosófico da modernidade. Não
seria nada descabido imaginar, caso Honneth
desejasse realmente reescrever essa sua grande
obra, não só o lugar de maior destaque que daria
a Rousseau, como também o modo diferente
como abordaria o pensamento do genebrino.
De qualquer sorte, Rousseau é tratado aí como
pioneiro intelectual da liberdade reflexiva, sendo
considerado, mais precisamente, como teórico
originário da autonomia da vontade e como
fundador da distinção entre ação heterônoma
e ação autônoma. Ou seja, como verdadeiro
precursor de Kant, passa longe da noção de
liberdade social. Antes de reconstruir em detalhes
esse núcleo da interpretação de Honneth, preciso
inseri-la, resumidamente, nos propósitos mais
amplos de sua grande obra, O direito à liberdade.
A primeira parte do livro O direito à
liberdade é dedicado à “apresentação histórica”
da liberdade individual. O autor compreende por
liberdade individual a autonomia do indivíduo,
concebendo-a como valor ético dominante da
sociedade moderna, que impregna também
decisivamente sua ordem institucional. O
pensamento da autonomia tornou-se tão
806
poderoso na modernidade porque foi o único
valor ético capaz de vincular sistematicamente
o si mesmo (Selbst/Self) e a ordem social. Sendo
assim, do mesmo modo como a liberdade
individual oferece representações da ideia
do bem ao indivíduo, ela também oferece
indicações para uma ordem social legítima
(HONNETH, 2012a, p. 36). Fica posta então,
desse modo, a exigência do nexo estreito entre
liberdade individual e justiça social e, mais
precisamente, a exigência de que qualquer
representação de justiça precisa ser remetida à
autodeterminação individual.
Se a ideia de justiça depende do
esclarecimento da noção de liberdade individual,
então é precisamente sua diferenciação tripartite
na modernidade que deve ser investigada. Ora,
é na pesquisa dos três modelos que constituem
a liberdade individual que Honneth se volta
ao pensamento de Rousseau. Antes disso, ele
oferece uma exposição resumida de Hobbes,
tomando-o como exemplo do modelo negativo
de liberdade. Hobbes teria oferecido, aos seus
olhos, um modelo negativo de liberdade porque
a concebeu como independência das coações
externas, justificando com base nisso o sistema
social do egoísmo.
No que diz respeito à liberdade reflexiva,
Rousseau é tomado como seu pioneiro
intelectual, estando na origem das duas
versões elaboradas posteriormente: liberdade
reflexiva como autolegislação (Kant) e como
autorrealização (Herder). Para justificar essa
inserção de Rousseau na concepção reflexiva
de liberdade, Honneth toma “a profissão de fé
do vigário saboiano” como referência textual. É
nesse longo interlúdio inserido no livro quarto
do Émile que Rousseau discute dois temas
que serão decisivos para o desenvolvimento
posterior da liberdade reflexiva, principalmente
para a sua versão kantiana: o tema da vontade
e, diretamente vinculado com ele, o da distinção
entre ação heterônoma e ação autônoma.
Esses dois temas estão sustentados pela tese,
formulada textualmente em Do Contrato Social,
de que o sujeito é livre somente quando pode
Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
determinar a si mesmo. Ou seja, de acordo
com essa obra jurídica e política de Rousseau,
vontade livre é aquela que pode dar-se a si
mesma a lei.
“A profissão de fé do vigário saboiano”
torna-se importante aos propósitos de Honneth
porque é aí que Rousseau abordaria, segundo
ele, as transformações necessárias ao conceito
de natureza humana para poder justificar a
autonomia da vontade. Nesse sentido, seu
ponto de partida consiste em abordar a natureza
humana como constituída pela tensão entre
vontade e desejo, e a questão pedagógica moral
decisiva, formulada no livro quarto do Émile,
consiste em saber como o aluno fictício pode
ser educado para a autodeterminação. Desse
modo, Honneth não ignora em sua abordagem
que o núcleo do projeto educacional dessa
obra pedagógica rousseauniana repousa na
formação humana para a maioridade. Segundo
ele, é nesse contexto que se põe o problema
da liberdade e da autonomia da vontade,
remetendo tal problema diretamente à distinção
entre heteronomia e autonomia.
Considerando a definição de natureza
humana e o problema da determinação
(autonomia) da vontade, Honneth define
ação heterônoma como aquela que se deixa
orientar pelas inclinações sensíveis. Ela não é
livre porque depende das “leis do corpo”, isto
é, da causalidade natural. Sem ter as forças
suficientes para dominar suas paixões, o ser
humano não age de acordo com sua própria
vontade, cedendo a todo o momento ao poder
de suas inclinações. Estando vulnerável aos
seus desejos, ele distancia-se da ação virtuosa.
O autor define ação autônoma, por sua vez,
como aquela que segue o que é determinado
pela vontade e não pelos desejos. No entanto,
entre ação e vontade se interpõe a lei, sendo a
vontade livre aquela que se deixa determinar
pela lei que ela dá a si mesma. Nesse
sentido, a autonomia da vontade permite ao
sujeito que realize em sua ação aquilo que
originariamente era sua intenção, ou seja, o
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
que ele próprio escolheu de maneira racional e
livre (HONNETH, 2012a, p. 61).
Em síntese, Rousseau antecipa o núcleo
da versão reflexiva de liberdade, na medida em
que a faz repousar na capacidade da vontade
dar a si mesma a lei (ideia de autolegislação). Ele
formulou tal definição com base na distinção
entre vontade e desejo, fazendo resultar dela
também a distinção entre ação heterônoma e
ação autônoma. Uma vez resumido o núcleo
da interpretação que Honneth faz de Rousseau
em O Direito à liberdade, pretendo mostrar,
na sequência, que se Rousseau, como o
próprio Honneth comprovou, é o teórico do
reconhecimento, não pode ser tomado tão só
como precursor da liberdade reflexiva. Também
pretendo dar um passo além, mostrando que a
educabilidade do amor próprio depende, como
modo de enfrentamento da destrutividade do
amor próprio, da formação virtuosa da vontade.
Formação da vontade como
educação do amor próprio
Na parte final do ensaio, pretendo
assinalar minha crítica ao tratamento oferecido
por Honneth a Rousseau em sua obra Das Recht
der Freiheit, baseando-me em duas ideias:
a primeira ampara-se na identificação entre
aquilo que Honneth concebe como variante
positiva do amor próprio e a concepção
de liberdade social que ele reconstrói do
pensamento de Hegel; a segunda ideia refere-se
ao vínculo entre educabilidade do amor próprio
e formação virtuosa da vontade.
No que diz respeito à primeira ideia,
o próprio Honneth já deixa entender, em seu
ensaio Untiefen der Anerkennung, embora sem
seguir firmemente nessa direção, que o Rousseau
teórico do reconhecimento estaria muito
próximo da concepção de liberdade social. No
entanto, para que possamos torná-la uma direção
segura, basta acentuar a semelhança existente
entre, por um lado, a definição oferecida por ele
do reconhecimento recíproco no referido ensaio
e, por outro, a noção hegeliana de liberdade
807
social que apresenta no livro Das Recht der
Freiheit. A meu ver, ambas convergem na
noção de “respeito mútuo entre iguais”, pois o
que Rousseau concebe como variante positiva
do amor próprio no Émile antecipa a própria
exigência do “ser para si mesmo em outro”,
que Hegel põe como condição da liberdade
social. Desse modo, ambos, Rousseau e Hegel,
compartilham a mesma tese de que a ação
virtuosa só pode ocorrer de forma cooperativa,
na vida em sociedade. No caso especificamente
de Rousseau, são as misérias comuns e a
fraqueza do ser humano que o impelem à vida
social e à humanidade. Ele deixa isso claro na
seguinte passagem do livro quarto do Émile:
É a fraqueza do homem que o torna sociável;
são nossas misérias comuns que incitam
nossos corações à humanidade: nada lhe
deveríamos se não fôssemos homens. Todo
o apego é sinal de insuficiência: se nenhum
de nós tivesse necessidade de outrem, não
pensaria em unir-se a ninguém (ROUSSEAU,
1992, p. 246).7
Portanto, o vetor da sociabilidade
virtuosa consiste aqui, de acordo com essa
passagem, não na vontade do ser humano de
querer buscar incessantemente uma posição
superior em relação aos outros, deixando-se
mover pela vaidade e ambição desmesurada
(variante negativa do amor próprio). Repousa
sim na condição humana frágil e vulnerável,
pois é daí que brota o próprio sentimento de
humanidade que une todos os seres humanos
entre si.8 Orientar a educação do jovem Emílio
na direção de uma vontade virtuosa, que repousa
7- No original: “C’est la faiblesse de l’homme qui le rend sociable: ce
sont nos misères communes qui portent nos coeurs à l’humanité, nous ne
lui devrions rien si nous n’étions pas hommens. Tout attachement est um
signe d’insuffisance: si chacun de nous n’avoit nul besoin des autres il ne
songeroit guères à s’unir à eux” (OC IV, 503).
8- Martha Nussbaum interpreta o problema na mesma direção: “Na teoria
da educação de Rousseau, o aprendizado sobre a debilidade básica do ser
humano é um elemento central, pois só o reconhecimento desta debilidade
nos permite transformar-nos em seres sociais e, portanto, formar a
humanidade” (NUSSBAUM, 2010, p. 60).
808
nesse sentimento de humanidade, é uma das
principais tarefas do livro quarto do Émile.
Em síntese, segundo a concepção
rousseauniana, não pode existir sujeito virtuoso fora
da sociedade, uma vez que a ação virtuosa depende
sempre de estruturas sociais de reconhecimento.
Tudo isso constitui, posteriormente, a base da
filosofia social de Hegel, antecipada, no entanto,
originariamente, em seus traços gerais, pela teoria
rousseauniana do amor próprio. Portanto, se
Honneth, ao escrever sua grande obra Das Recht
der Freiheit, já tivesse interpretado Rousseau como
teórico do reconhecimento e prestado cuidadosa
atenção ao aspecto construtivo do amor próprio,
certamente o teria concebido também como
pioneiro da concepção social de liberdade.
De outra parte, embora existam muitas
semelhanças entre Rousseau e Hegel, não posso
deixar de assinalar uma diferença importante.
A “Profissão de fé do vigário saboiano” não
desenvolve um programa detalhado de como a
liberdade se encarna nas instituições éticas e como
seria por elas realizada. Trata-se aí, é verdade, de
preparar o ingresso virtuoso do jovem Emílio na
sociedade, mas não na forma de uma exposição
das instituições sociais e da suposta eticidade a
elas inerente. Rousseau é extremamente crítico
em relação ao espírito cultural e científico,
não vendo com bons olhos o estado em que se
encontravam as instituições sociais e culturais
de sua época. Também é preciso considerar,
nesse contexto, que, embora Rousseau não tenha
desenvolvido obviamente uma filosofia do direito
nos termos hegelianos, antecipou, contudo, a meu
ver, aspectos decisivos dela como propedêutica
formativa da vontade do aluno fictício, colocando
em sua base o exercício da virtude.
Uma passagem do livro quarto do Émile
ilustra bem essa ideia: “o exercício das virtudes
sociais leva ao fundo dos corações o amor à
humanidade: é fazendo o bem que nos tornamos
bons; não conheço nenhuma prática mais
segura” (ROUSSEAU, 1992, p. 284).9 Ou seja, em
9- No original: “l’éxercice des vertus sociales porte au fond des coeurs
l’amour de l’humanité; c’est en faisant le bien qu’on devient bon, je ne
connais point de pratique plus sure” (OC IV, 543).
Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
outros termos, é por meio da prática da virtude
que podemos cristalizar em nossos corações o
amor à humanidade e, com isso, tornarmo-nos
sujeitos justos, uma vez que Rousseau considera
a justiça como a virtude principal.
Por fim, volto-me agora para a imbricação
entre educação do amor próprio e formação moral
da vontade. Como já afirmei antes, Honneth,
ao conceber desde o início a interpretação de
Neuhouser como contrária à posição de Cassirer,
assume a teoria do amor próprio sem dar a devida
atenção ao problema da formação virtuosa da
vontade e, com isso, tangencia o aspecto nuclear
do projeto educacional do Émile. Sendo assim,
não consegue extrair todas as consequências que
a teoria da educabilidade do amor próprio possui
para pensar uma ordem social justa. Ele incorre
nesse limite porque padece do mesmo pathos de
outras grandes interpretações do pensamento de
Rousseau que tendem a considerá-lo somente a
partir Do Contrato Social, não sendo capazes,
desse modo, de vincular os problemas jurídicos
e políticos aí contidos com o indispensável
problema da formação virtuosa da vontade. Elas
ignoram, portanto, o quanto o direito e a política
são profundamente devedoras, no pensamento
de Rousseau, de uma teoria da virtude.
É bem verdade que, como vimos, Axel
Honneth não desconsidera, de modo algum,
a importância do Émile, sobretudo, porque,
segundo ele, inspirando-se na interpretação de
Frederick Neuhouser, é nessa obra que Rousseau
vê na educação do amor próprio a maneira
mais eficaz de enfrentar a corrupção social e a
barbarização da moral diagnosticadas nos escritos
de crítica à cultura. Honneth põe-se também na
direção certa quando concebe a ampliação do
amor próprio até a virtude, concebendo-a como
solução encontrada por Rousseau para tratar da
periculosidade do amor próprio.
Contudo, permanece a meio caminho
quando atribui somente ao reconhecimento
social recíproco a força capaz de ampliar o
amor próprio até a virtude. Ignora, com isso,
que, na arquitetônica pedagógica de Rousseau,
o aluno fictício só adquire consciência sobre a
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
importância do respeito recíproco entre iguais
por meio do longo, tenso e inesgotável processo
educativo de seu amor próprio, o qual depende
da capacidade de determinação da vontade.
Talvez por se deixar intimidar pela obscuridade
do conceito rousseauniano de vontade ou por ter
visto nele somente a sombra kantiana projetada
por Cassirer, ignorou que foi justamente na
educação virtuosa da vontade que Rousseau
pensou ter encontrado o principal antídoto à
variante negativa do amor próprio.
Podemos nos perguntar agora: por que
a educabilidade do amor próprio depende da
formação da vontade? Um ingresso pontual
no Émile é indispensável para esclarecer essa
questão. Nesse texto, como em outras obras de
Rousseau, o amor próprio é concebido com um
dos principais sentimentos humanos, que pode
inclinar-se tanto aos vícios quanto à virtude.
Essa dupla direção (inclinação) constitui o
núcleo da própria teoria da ambiguidade do
amor próprio. Contudo, por ser um sentimento,
o amor próprio não pode agir por si mesmo,
precisando ser, nessa condição, impulsionado
por outra coisa. Ora, a vontade significa
exatamente esse impulso, tornando-se, desse
modo, a força movente do amor próprio. Quando
dirigida construtivamente, essa força tornase virtude. Desse modo, a virtude nada mais é
do que o impulso ético da vontade, fazendo o
amor próprio canalizar suas forças (paixões) na
direção construtiva. Ou seja, quando é movido
pelo amor à justiça, o amor próprio torna-se
cooperativo e solidário, deixando de ser vaidoso
e petulante, enfim, egoísta.
Rousseau torna isso claro em uma
passagem importante do Émile, localizada quase
ao final dessa obra. Assim afirma ele: “A palavra
virtude vem de força; a força é a base da virtude;
a virtude só pertence a um ser fraco por natureza
e forte por sua vontade; é só nisso que consiste
o mérito do homem justo [...]” ( ROUSSEAU,
1992, p. 535).10 Com isso, fica claro, então, que a
���
- No original: “Le mot vertu vient de force; la force est la base de toute
vertu. La vertu n’appartient qu’à un être faible par sa nature et fort par sa
volonté; c’est en cela que consiste le mérite de l’homme juste [...]” (OC IV, 817).
809
virtude (justiça) brota da ação dirigida pela força
da vontade e não pelo impulso dos desejos e
inclinações. A própria justiça, como uma virtude
cardinal da teoria moral rousseauniana, repousa
na força da vontade. Podemos ver, com isso,
o quanto a orientação normativa dessa força
movente torna-se decisiva, pois, se for dirigida
pela virtude (justiça), também proporcionará
uma ampliação construtiva do amor próprio.
Portanto, o vínculo da teoria do amor próprio
com a formação virtuosa da vontade é o núcleo
do pensamento filosófico e pedagógico de
Rousseau, porque serve tanto para “corrigir” a
tendência pessimista de seus escritos de crítica à
cultura quanto para oferecer a base formativoeducacional necessária aos ideais normativos
que sustentam a concepção antropológica,
política e jurídica do genebrino.
Justamente nesse contexto é que se
deixa compreender a afirmação da “ampliação
do amor próprio”, que Honneth considera
acertadamente como aspecto central da
contraposição à variante negativa do amor
próprio. Assim se expressa Rousseau:
“Estendamos o amor próprio sobre os outros
seres, nós o transformaremos em virtude, e não
há coração humano em que essa virtude não
tenha sua raiz” (ROUSSEAU, 1992, p. 288).11
Ou seja, a ideia da ampliação do amor próprio
implica a ruptura com sua própria perspectiva
individualista egocêntrica, exigindo que o ser
humano inclua em sua própria ação o ponto de
vista dos outros. Mas Honneth se ateve somente
à ampliação do amor próprio, desconhecendo
que essa teoria positiva da virtude é precedida,
na arquitetônica pedagógica do Émile, por uma
teoria negativa da virtude, a qual tem como
meta principal a “contenção” do amor próprio
na fase educativa inicial do aluno fictício.
Uma breve referência a essa dupla teoria da
virtude é indispensável para ver o quanto a
formação da vontade torna-se a força movente
da educabilidade do amor próprio e quanto a
��- No original: “Etendons l’amour-propre sur les autres êtres, nous le
transformerons em vertu, et il n’y a point de coeur d’homme dans lequel
cette vertu n’ait sa racine” (ROUSSEAU, 1959-1995, p. 547).
810
interpretação de Honneth é, nesse aspecto,
parcial e restritiva.
Cabe resumir agora, então, esquematicamente, em forma de conclusão, como essa dupla
teoria da virtude ganha forma na arquitetônica
pedagógica do Émile. Enquanto a exposição da
teoria negativa da virtude ocorre nos três primeiros livros, a teoria positiva ocorre nos livros
quarto e quinto do Émile. Cada um desses dois
momentos contém muitos problemas filosóficos
e pedagógicos, mostrando o quanto Rousseau
se aprofundou na compreensão da condição
humana e na análise da sociedade de sua época
e, por fim, o quanto apostou na formação da
vontade como núcleo diretivo da educabilidade
do amor próprio.
Primeiro, sobre a teoria negativa da virtude.
Não sendo ela a formação moral propriamente
dita, serve sim como sua propedêutica, uma
vez que tem como tarefa principal ensinar o
educando fictício a evitar os vícios. A teoria
negativa da virtude, constituindo o núcleo da
educação natural12 como educação negativa,
assenta-se no princípio pedagógico da educação
pelas coisas, dependendo, nesse sentido, da arte
de encenação pedagógica do educador.13 Desse
modo, o processo de reconhecimento recíproco
que ocorre nesse âmbito da arquitetônica
pedagógica restringe-se consideravelmente à
relação entre educador e educando. Rousseau faz
propositalmente essa restrição porque acredita
que a fase da infância – abrangendo primeira,
segunda e terceira infância –, deve ser de quase
inatividade do amor próprio. Desse modo, é
tarefa da educação natural postergar pelo menos
até a puberdade o florescimento do amor próprio,
coibindo com isso que sua dimensão inflamada e
venenosa assuma a dianteira na formação do si
mesmo do educando.
12- Tratei sistematicamente desse tema no meu livro Educação natural
em Rousseau (DALBOSCO, 2011c).
13 - Ou seja, Rousseau concebe como tarefa principal do educador criar
os cenários pedagógicos adequados, levando em consideração, sobretudo
nessa fase em que o educando se encontra, o ambiente natural, envolvendo
passeios na floresta, caminhadas no campo e brincadeiras no escuro.
Sobre esse tema, ver a exposição oportuna de Alfred Schäfer (2002, p. 94).
Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
Em síntese, a teoria da virtude ocupa-se
nessa fase da justificação do aspecto natural
e negativo da educação. Tal aspecto é natural
porque o que está em jogo na educação do
aluno fictício é a formação de noções básicas
sobre o que são suas necessidades naturais
e quais são os modos mais adequados de
satisfazê-las. O núcleo das relações educativas
é orientado aí pela tensão entre as necessidades
da criança e os cuidados do adulto. De outra
parte, o aspecto dessa educação é negativo
porque não se trata ainda de ampliar o amor
próprio até a virtude, mas de contê-lo em
relação aos vícios. Contudo, o que em princípio
aparece só como negativo nessa “contenção” do
amor próprio, converte-se, nos três primeiros
livros do Émile, numa dimensão positiva, pois
ela está a serviço do desenvolvimento de outras
capacidades (potencialidades) do educando,
transformando-se na propedêutica da posterior
formação virtuosa da vontade do aluno fictício.
É nesse sentido que a teoria negativa da virtude
assume a forma de uma “física experimental”,
cuja tarefa principal consiste em fortalecer o
corpo e refinar os sentidos do educando. Ora,
o fortalecimento do corpo e o refinamento dos
sentidos, além de constituírem a propedêutica
da formação virtuosa da vontade, funcionam
também como mecanismo poderoso de
preparação do terreno para a germinação
futura da consciência cidadã, indispensável ao
exercício republicano democrático de iguais
entre iguais.
Por fim, no que diz respeito à formação
virtuosa da vontade, seu coração localiza-se
no livro quarto do Émile, sendo também
complementado, em sua dimensão política, pelo
livro quinto. Há aqui uma mudança substancial
em relação à teoria negativa da virtude, pois a
formação do jovem Emílio ocorre num contexto
educacional ampliado, não mais restrito à
relação tripartite entre educando, educador e
natureza. Trata-se, na verdade, de pensar sua
formação num contexto marcado pela dupla e
significativa ampliação: do amor próprio e da
sociedade. Na condição de pleno florescimento
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
de seu amor próprio, Emílio percebe o quanto se
ampliam diante de si tanto a ação social quanto
a teia institucional que constitui a sociedade
como um todo. O intenso desenvolvimento de
seu amor próprio, representado pela explosão de
suas paixões, é acompanhado pela possibilidade
real de ampliação da esfera pública destinada
à sua ação. É justamente aí que a formação
virtuosa da vontade assume o papel de
timoneiro no sentido de orientar as paixões
e, com isso, contribuir para que predomine a
variante construtiva do amor próprio.
Rousseau esboça o “programa” de
formação virtuosa da vontade de maneira
meio tortuosa, recorrendo a um conteúdo
assistemático, formado por teses e princípios
polêmicos. Para o que interessa agora ao meu
ponto, cabe destacar que seu núcleo repousa no
“amor à humanidade”, materializado pelo amor
à justiça. Como ele próprio afirma: “o amor
ao gênero humano não é outra coisa em nós
senão o amor à justiça” (1992, p. 288). O amor
à justiça torna-se uma virtude poderosa capaz
de canalizar construtivamente a força do amor
próprio na direção do respeito recíproco entre
iguais. Desse modo, vontade virtuosa é aquela
capaz de assegurar a igualdade nas relações
humanas e sociais, pois Rousseau está convicto
de que é pelo princípio da igualdade que se
pode assegurar a justiça na vida republicana.14
Com o arrazoado acima, penso ter
deixado claro, por um lado, o quanto a
educabilidade do amor próprio depende da
formação virtuosa da vontade e, por outro, o
quanto o reconhecimento recíproco entrelaça-se
com a concepção de liberdade social. Sendo
assim, fica reafirmada uma dupla conclusão,
já antecipada na introdução do ensaio: a
primeira é de que Rousseau só pôde fundar a
teoria do reconhecimento porque formulou
embrionariamente uma concepção de liberdade
social. A segunda conclusão confirma a ideia de
que as interpretações de Cassirer e Neuhouser,
14- Na atualidade, John Rawls (2012), também se deixando influenciar
fortemente pela teoria do amor próprio de Neuhouser, considera o princípio
da igualdade como núcleo da teoria da justiça de Rousseau.
811
ao contrário do que afirmou Honneth,
complementam-se mutuamente, pois, como
acabei de mostrar, a educação do amor próprio
depende de um amplo “programa” de formação
da vontade, duplamente esboçado, como teoria
negativa e positiva da virtude.
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SCHÄFER, Alfred. Jean-Jacques Rousseau: ein pädagogisches Porträt. Weinheim/Basel: Beltz Verlag, 2002.
Recebido em: 27.09.2013
Aprovado em: 07.03.2014
Claudio Almir Dalbosco é professor titular do curso de filosofia e do Programa de Pós-graduação da Universidade de Passo
Fundo (UPF/RS).
812
Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
Experiência e linguagem em Walter Benjamin
Eloiza Gurgel PiresI
Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão a respeito da teoria da linguagem
benjaminiana. Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão,
nas primeiras décadas do século XX, produziu um estudo decisivo
no qual a linguagem não pode ser considerada como mero
instrumento de elaboração dos dados da realidade nem como
simples abstração, mas é pensada como campo no qual emerge
uma intrincada rede de relações entre conhecimento e experiência.
Para o filósofo, a linguagem é o médium espiritual e histórico
da experiência. O conceito de Erfahrung (experiência) atravessa
toda a sua obra: desde um texto de juventude, escrito em 1913,
intitulado Erfahrung (1933), em que o autor contesta o desinteresse
dos entusiasmos juvenis em nome da experiência dos adultos, às
teses de 1940. Esse conceito está intrinsecamente relacionado,
em seus escritos, ao pensamento de que todas as manifestações
e expressões humanas podem ser concebidas como linguagem e,
essa, por sua vez, é então pensada na sua dimensão simbólica, ao
contrário do que pretendiam os filósofos do esclarecimento quando
apontavam, como condição para o verdadeiro conhecimento,
uma racionalidade que separava o imaginário do pensamento.
Na contramão do pensamento iluminista científico, o paradigma
estético é fundamental nos escritos benjaminianos. A partir do
acolhimento do conceito na imagem, evidenciam-se novas formas
de conhecer. Nessa perspectiva, tentaremos discutir o pensamento
de Benjamin, mostrando as articulações e rupturas engendradas com
as problematizações constituídas a partir das conexões existentes
entre linguagem e experiência e sua relação com o campo educativo.
Palavras-chave
Experiência — Linguagem — Conhecimento — Walter Benjamin.
I- Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041524
813
Experience and language in Walter Benjamin
Eloiza Gurgel PiresI
Abstract
This article presents a reflection on Benjamin’s theory of language.
Walter Benjamin, German philosopher and literary critic in the early
twentieth century, produced a landmark study in which language
cannot be considered a mere instrument of development of data
from reality nor a simple abstraction, but it is thought as a field in
which an intricate network of relationships between knowledge and
experience emerges. For the philosopher, language is the spiritual
and historical medium of experience. The concept of Erfahrung
(experience) permeates all his work: from a text written in 1933,
when he was young, entitled Erfahrung (1933), in which the author
questions the lack of interest in the enthusiasm of the youth in
the name of the experience of adults, to the theses of 1940. In his
writings, this concept is closely related to the thought that all human
manifestations and expressions can be regarded as language, and
language, in turn, can then be thought in its symbolic dimension,
contrary to what the philosophers of the Enlightenment intended
when they indicated, as a condition for true knowledge, a rationality
that separated the imaginary from the thought. Contrary to the
scientific Enlightenment thought, the aesthetic paradigm is essential
in Walter Benjamin’s writings. From the concept image, new ways
of knowing are evidenced. In this perspective, we seek to discuss
Benjamin’s thought showing connections and ruptures engendered
with problematizations formed from connections between language
and experience and their relation to the education field.
Keywords
Experience — Language — Knowledge — Walter Benjamin.
I- Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil.
Contact: [email protected]
814
http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041524
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
O colecionador de insignificâncias
Ler o que nunca foi escrito.
Walter Benjamin
Na obra de Walter Benjamin, encontra-se
um conjunto complexo de reflexões em torno de
variadas relações estabelecidas entre história e
linguagem, imagem e pensamento, mas, longe
de constituírem-se como um pensamento
sistemático a respeito da imagem, essas
reflexões atestam uma perspectiva original e
incontornável acerca do olhar e da natureza
da imagem que atravessa o pensamento. Nessa
concepção, a imagem é um princípio dinâmico,
uma potência do pensamento.
Ao pensar a obra de arte e o contexto
urbano como medium-de-reflexão, Benjamin
pôs em xeque uma concepção linear de
conhecimento baseada no continuum da
própria história, desenvolvendo a crítica de um
determinado modelo de razão e de racionalidade
(SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 8-9).
Nessa crítica, a ciência e a filosofia são
pensadas como arte. O filósofo propõe não uma
reterritorialização dos saberes, mas, ao contrário,
a sua desterritorialização, seguida de uma
interrupção, um gesto de descontinuidade na
estável cronologia da história. Algo semelhante
ao que ocorre no contexto daquilo que Deleuze
e Guattari chamaram de labirinto rizomático.
Para os autores, a realidade constitui-se como
multiplicidade e, como tal, não está contida em
nenhuma totalidade, tampouco remete a um
sujeito; configura-se como rizoma – vegetal
que não tem uma raiz fixada em um ponto,
mas possui várias ramificações –, “[...] não tem
começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual
ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI,
2006, p. 32). Nesse sentido, o labirinto rizomático,
como metáfora do conhecimento, é algo em
permanente construção, uma obra inacabada
– aberta – que possui direções movediças, é
conectável, modificável. Da mesma forma, o
conhecimento é pensado por Benjamin de modo
não linear; como uma paisagem urbana, a partir
de lugares diferentes, fragmentariamente, nas
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
reconfigurações da memória; não a partir de um
lugar fixo, mas movendo-se em uma constelação
de ideias.
Benjamin propõe saltos, recortes inusitados
que desfazem a distinção entre a chamada alta
cultura e a cultura popular e quebram o tempo
continuum da história oficial. Ao colocar-se
a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, o
filósofo propõe-se desconstruir a historiografia
e os métodos tradicionais de pesquisa a partir
de um olhar atento sobre as transformações
históricas da percepção humana; sobre as
ruínas da modernidade e os estilhaços urbanos
das metrópoles; sobre os atos de barbárie que
se cometem em nome do progresso – os quais
ele presenciou na iminência dos catastróficos
acontecimentos europeus da Segunda Guerra.
Vale lembrar que esse autor judeu alemão,
apaixonado por Paris, foi fortemente marcado
pelas contingências históricas que atravessaram
toda a primeira metade do século XX, o que
refletiu não apenas no teor acentuadamente
político de ensaios como Teorias do fascismo
alemão (1996), escrito em 1930, e Experiência
e pobreza (1996), escrito em 1933, mas
também no caráter provisório e descontínuo
de trabalhos controvertidos como as Passagens
(2006), obra não concluída, escrita entre 19271940. Em setembro de 1940, Benjamin morreu
tragicamente. O filósofo cometeu suicídio –
após uma árdua jornada pelos Pirineus, quando
tentava a travessia da França para a Espanha
com o propósito de fugir do nazismo.
Com os cacos da história, Benjamin
construiu uma obra múltipla, optando por
uma escrita não didática, polifônica e não
linear; fragmentária e inconclusa, como foi a
sua história.
Seria um equívoco tentar compreender
a obra benjaminiana pelo pensamento das
disciplinas; como afirma Arendt (1999). Benjamin
divergia do cânone oficial na universidade
alemã, aproximando-se da filosofia por via
indireta: filosofava de passagem. Estudou a
cultura urbana sem ser antropólogo, aventurou-se na história da literatura sem ser historiador
815
e, ao recusar a filologia, método de pesquisa
tradicional da academia alemã, rechaçou
também o espírito de síntese ou de sistema.
Autodenominava-se um pesquisador itinerante,
nem filósofo nem teólogo, nem linguista nem
tradutor, historiador ou poeta.
Era um colecionador de insignificâncias:
cartões postais, selos, brinquedos, citações,
livros antigos, borboletas. Também trazia
consigo algumas cadernetas de notas com
endereços, citações e suas observações sobre
o cotidiano, além de escrever diários de
viagem que mesclavam a sua vida pessoal com
reflexões poéticas sobre as fisionomias das
cidades. Um exemplo dessa escrita é Diário de
Moscou (1989), escrito entre dezembro de 1926
e fevereiro de 1927, por ocasião de uma viagem
a Moscou e de seu romance com a atriz russa
Asja Lacis, a quem ele dedicou, em 1928, Rua
de mão única: “Esta rua chama-se Rua Asja
Lacis, em homenagem àquela que, na qualidade
de engenheiro, a rasgou dentro do autor”
(BENJAMIN, 2000).
Benjamin era formado em literatura
e filosofia alemã; mesmo que em sua época
houvesse uma grande diferenciação dos
saberes, não havia a especialização em excesso
tal como conhecemos hoje, principalmente no
meio acadêmico. Como herdeiro da grande
tradição do romantismo alemão (os Irmãos
Schlegel, Novali, Hölderlin) e da filosofia
alemã em geral, são as relações entre língua/
linguagem e história que lhe interessam. Seu
pensamento, de acordo com Gagnebin (2010),
nasce e se constitui a partir dessa questão, e
não de domínios do saber específico delimitado
em disciplinas. Em seus escritos, não se trata
apenas de buscar uma reflexão interdisciplinar
ou uma troca entre proprietários de territórios
científicos, mas há a perspectiva de uma fusão
dos saberes, sem hierarquias ou justaposições.
Percebe-se nos ensaios de Benjamin
algo semelhante ao movimento das linhas de
fuga do pensamento, devires que, segundo
Deleuze, podem produzir relações dinâmicas e
muito complexas mesmo a partir de uma forma
816
simples ou simplificada: “Uma fuga é uma
espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos
eixos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 33).
Ao sair dos eixos disciplinares, o
caminho é o da direção contrária à esperada.
Interessa a Benjamin aquilo que foi esquecido
pela história, ou simplesmente ignorado pelo
racionalismo da modernidade: a literatura e
a arte dos surrealistas, dos simbolistas e dos
decadentistas; a cultura urbana e seu cotidiano;
as experiências com o haxixe. Ele não parte
de um lugar fixo, pois entende que a realidade
é algo descontínuo. Assim sendo, ao invés de
passar lógica e dedutivamente de um elemento
a outro, explicitando as conexões, mistura o
que se passa nas ruas com o que se passa nas
fábricas, nas salas de cinema e na literatura,
sobretudo na literatura marginal, bem como
na narrativa dos folhetins (MARTIN-BARBERO,
2003, p. 84-85). Assim é que surgem relações
inusitadas estabelecidas entre os escritos de
um poeta como Baudelaire e as expressões da
multidão urbana e dessa com as técnicas de
montagem cinematográfica.
Ao redefinir o conceito de verdade e
recuperar a linguagem como campo para a
resignificação do sujeito e da história, a obra de
Benjamin apresenta-nos caminhos que levam a
um diálogo entre o conhecimento e a verdade;
a sensibilidade e o entendimento:
Benjamin reivindica para as ciências
humanas outra forma de expor a verdade,
forma que se distingue profundamente do
que chamamos conhecimento empírico do
real e, portanto, questiona os limites rígidos
da racionalidade técnica, preconizando
um tipo de conhecimento que inclui as
paixões e as utopias indispensáveis à vida,
sem as quais não há humanidade possível
(SOUZA, 2009, p. 187).
Recorrendo a metáforas, imagens,
alegorias, aforismos e citações, o filósofo
constrói uma visão de mundo que não é,
certamente, aquela do pensamento sistemático,
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
limitado a operações conclusivas. Ao contrário,
trata-se de uma perspectiva que amplia
as possibilidades da razão, movendo-se e
refazendo-se nas dobras da linguagem.
A magia da linguagem
Em seus estudos a respeito do drama
barroco, Benjamin descobre que, em meio aos
resíduos e farrapos de um mundo em ruínas
(a Europa do século XVII), o trabalho do
alegorista revela algo para além das evidências
encontradas nas coisas, nas paisagens. Sob seu
olhar, o sentido não nasce tanto da plenitude da
eternidade, mas surge da ausência dos objetos,
ausência dita e, assim, tornada presente na
linguagem. A alegoria revela-se para o filósofo
como uma escrita imagética com um enorme
poder de significação. Essa descoberta permitiu-lhe, simultaneamente, aprofundar a sua teoria
da linguagem.
Nas palavras de Benjamin “Todo
conhecimento filosófico tem sua única
expressão na linguagem e não em fórmulas e
números” (BENJAMIN, 1971, p. 111). Entendendo
a linguagem como um todo aberto, o conceito
de experiência (Erfahrung) estará articulado
ao de conhecimento, pois para Benjamin a
estrutura da experiência se encontra na base
do conhecimento (MATOS, 1993). O conceito de
Erfahrung atravessa toda a obra benjaminiana:
desde um texto de juventude intitulado
Erfahrung (1933), em que o autor contesta o
desinteresse dos entusiasmos juvenis em nome
da experiência dos adultos, às teses de 1940.
O texto denominado Erfahrung é
escrito a partir da associação do filósofo ao
Jugendbewegung, um movimento reformista
educacional, da segunda década do século
XX na Alemanha, que pretendia transformar
radicalmente a sociedade e a cultura pela
ação de uma juventude esclarecida. Esse
ensaio expressa o sentimento de insatisfação
e decepção do jovem pensador a respeito
de um modo de vida adulta, que substitui os
valores éticos e espirituais em detrimento dos
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
ideais de progresso técnico e material. Nesse
texto, a experiência não é tomada ainda
como categoria, como ocorrerá, por exemplo,
em seus ensaios sobre Leskov e Baudelaire. A
preocupação de Benjamin era a de ressignificar
a palavra Erfahrung, apropriada pelos adultos
conservadores, e desmistificar o sentido de
jugendstil (estilo de juventude), mostrando que
esses termos eram utilizados como estratégia
pela cultura burguesa com o objetivo de
adequá-los ao que era conveniente ao sistema.
As intuições juvenis de Benjamin – inscritas
sob o marco do movimento da juventude e
sob o impacto da Primeira Guerra Mundial
emergem, mais tarde, em suas escolhas
epistemológicas e nos seus estudos a respeito
da modernidade, em uma visão histórica não
dissociada da compreensão da linguagem
enquanto médium; isto é, o pensar do pensar,
experiência relacionada aos processos culturais
e sociais. Em um olhar retrospectivo ao texto de
1913, Benjamin escreve:
Num de meus primeiros ensaios mobilizei
todas as forças rebeldes da juventude
contra a palavra ‘experiência’. E eis que
agora essa palavra tornou-se um elemento
de sustentação em muitas de minhas
coisas. Apesar disso, permaneci fiel a mim
mesmo. Pois o meu ataque cindiu a palavra
sem a aniquilar. O ataque penetrou até o
âmago da coisa (BENJAMIN, 2009a, p. 21).
Atento à crescente modernização das
cidades, à industrialização, às vanguardas
artísticas e ao advento da Primeira grande
Guerra, Benjamin escreve seu ensaio em um
gesto de repúdio à ordem estabelecida. Ele
incorpora à juventude um espírito capaz de
transformar a sociedade, um espírito pulsante e
crítico, não conformado pelo desenvolvimento
contínuo da história – leia-se, do progresso.
Faltaria ao “adulto que já vivenciou tudo:
juventude, ideais, esperanças, mulheres”
(BENJAMIN, 2009a, p. 21) sensibilidade para a
poesia e as artes.
817
Influenciado pela carga romântica
que caracterizou o movimento da juventude,
Benjamin confere à experiência dos jovens
um estatuto diferenciado. O filósofo faz uma
crítica à sociedade hierarquizada na qual a ideia
propagada pelos mais vividos, pais, pedagogos,
políticos, de que a idade adulta seria a idade
da experiência, daqueles que já viveram tudo e
possuem a sabedoria, desvaloriza a juventude
enquanto potencial de conhecimento e
sensibilidade. Para Benjamin, a quantidade
das vivências não determina a qualidade das
experiências, por isso o filósofo fará uma
distinção entre vivência e experiência, sem
excluir a possibilidade do erro:
Cada uma de nossas experiências possui efetivamente conteúdo. Nós mesmos
conferimos-lhe conteúdo a partir do nosso
espírito. – A pessoa irrefletida acomoda-se no erro. ‘Nunca encontrarás a verdade’,
brada ela àquele que busca e pesquisa, ‘eu
já vivenciei isso tudo’. Para o pesquisador,
contudo, o erro é apenas um novo alento para a busca da verdade (Espinosa). A
experiência é carente de sentido e espírito
apenas para aquele já desprovido de espírito (BENJAMIN, 2009b, p. 23).
Os adultos, para Benjamin, gabam-se de
sua experiência, a qual é esvaziada de sentido
quando, segundo o filósofo, restringe-se à mera
vivência individual (Erlebnis), em uma sucessão
interminável do mesmo, em um cotidiano
petrificado. O vazio dessa vivência individual
é engendrado por uma ação que se limita a si
própria; a qual não faz outra coisa senão repetir a
história e reificar a ordem. Ela tende, na verdade,
ao apagamento da experiência que a precedeu.
De acordo com Giorgio Agamben (2008), essa
expropriação da experiência já estava implícita
no projeto fundamental da ciência moderna, o
qual configurou o “tempo homogêneo e vazio”.
Na tranquila cronologia da história, a linguagem
perde então a sua dimensão expressiva e reforça
a mitologização do cotidiano.
818
A lei do mito é a da repetição, algo que
nos remete à brincadeira da criança que busca
a satisfação no fazer sempre de novo. Dessa
repetição nasce o hábito. Mas, ao contrário do
mundo das crianças, no dos adultos a repetição
não está sob controle dos agentes, daí a
petrificação do cotidiano e sua mitologização.
O posicionamento crítico da juventude é,
na verdade, um alerta contra o empobrecimento
da experiência e do vazio que se forma no cotidiano daqueles que se consideram mais vividos.
É também uma forma de ação recordatória, retroativa, que busca retomar por intermédio da
memória as potencialidades do passado. O texto
Erfahrung constitui esse primeiro momento no
qual o filósofo se contrapõe ao conformismo e
à indiferença que caracterizaria a idade adulta
em relação aos descaminhos da história, a toda
sorte de catástrofes que esse tipo de conduta
permitiu realizar.
O filósofo encontrará em Kant os pressupostos para a formulação de um conceito de experiência total, o qual alude diretamente à ideia
de verdade que, sob o prisma da filosofia benjaminiana, é entendida como a não intencionalidade do ser; algo indefinido, indeterminado que
preexistiria – como foi exposto no prefácio do
Drama barroco alemão – a toda atividade constitutiva do intelecto. A lacônica frase com que
Benjamin finaliza seu ensaio Sobre o programa
de uma filosofia futura (1917, p. 111), “a experiência é a multiplicidade unitária e contínua do
conhecimento”, exprime em poucas palavras a
sua proposta para um programa de investigação
da experiência e do conhecimento, a partir do
tratamento dado por Kant aos mesmos conceitos em seu sistema filosófico.
A meta de Benjamin é preservar e
concluir o espírito do próprio sistema kantiano
no estabelecimento de outra filosofia (não
reduzida a mera teoria do conhecimento),
baseada fundamentalmente na possibilidade
de realização de uma experiência pura,
total e contínua. Entre as várias diretrizes
mencionadas em seu artigo, destacam-se duas de
fundamental importância: a) recuperar o legado
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
kantiano, seu sistema, extraindo e atualizando
(por descarte, assimilação e modificação)
as noções que poderiam fundamentar um
conceito mais amplo, profundo e significativo
de conhecimento – em vista de revalidar uma
experiência metafísica latente na filosofia
de Kant; e b) assegurar a autonomia própria
do conhecimento, no estabelecimento de um
campo de total neutralidade, fazendo com que o
mesmo não se restringisse apenas a uma relação
entre sujeito e objeto e nem sequer a uma outra
espécie de relação que se desse somente entre
entes metafísicos (BENJAMIN, 1971).
Por metafísico Benjamin não entende
a ciência da natureza, tal como a terminologia
crítica a cunhou, e sim em seu sentido
etimológico, como toda sorte de experiências
que extrapolam o natural, o racional, ou seja,
experiências suprarracionais, supranaturais –
que se relacionam, por seu turno, à dimensão
teológica (MURICY, 1999, p. 73). O esforço
empreendido por Benjamin, ao abordar Kant,
não foi o de demonstrar a falência de um projeto
filosófico, mas sim o de expor os seus limites
diante de um conceito de experiência que, de
acordo com Benjamin, se daria por intermédio
da religião, conhecimento que se apresentaria à
filosofia como teoria.
Matos (1993) observa a esse respeito
que, para Benjamin, o fato de Kant ignorar a
experiência religiosa, linguística e até mesmo a
estética não é propriamente o sinal da falência
de um projeto/sistema filosófico, o kantiano,
mas “de quanto esse projeto [...] se ancorava na
pobreza da experiência que a época favorecia”
(MATOS, 1993, p. 132). Isso porque, com a
modernidade, a imaginação foi capturada no
conhecimento, a experiência transformou-se
em experimento, os sujeitos – na sua incerteza,
heterogeneidade e imprevisibilidade – foram
desapropriados e, no seu lugar, surgiu um único
e novo sujeito – o eu penso cartesiano. Matos
(2006, p. 240) afirma ainda que:
Há olhares que veem sem ver. O atento olhar
cartesiano – o olhar em linha reta – imobiliza
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
o objeto na tentativa de apreendê-lo. Mas
a consciência chega tarde demais. A busca
de uma racionalidade que faça conhecer
sentindo e sentir conhecendo é uma das
preocupações da crítica benjaminiana à
Razão das luzes, à Aufklärung. Não se trata,
para Benjamin, de recuperar algo que nos
lembremos, tampouco da consciência que
tomamos tarde demais. Procura-se, entre
ambos, produzir a situação que permita a
coincidência do desejo e do conhecimento
do desejo, do presente do conhecimento e
do presente da consciência.
A hipótese de Benjamin de que o
pensamento religioso, via teologia, permitiria
restaurar o elo existente entre arte, filosofia e
política, denota a insatisfação do filósofo com
relação ao conceito de conhecimento de Kant e,
portanto, o de experiência que estaria reduzido
a fundamento do próprio conhecimento. Isso
se deve, sobretudo, ao fato de os princípios do
conceito de conhecimento em Kant terem sido
extraídos das ciências, especialmente, as físicomatemáticas (BENJAMIN, 1971).
A experiência kantiana é, de acordo
com Benjamin (1971, p. 101), uma “experiência
singular temporalmente limitada demasiadamente objetiva”. Ou seja, Kant estaria, de acordo com Benjamin, preso à visão de mundo do
Iluminismo, na qual a experiência se reduz a um
ponto zero, a um mínimo grau de significação.
Ou seja, a experiência resultaria tão somente da
relação da consciência pura com a empírica. Em
outras palavras, uma experiência restrita, um
conhecimento limitado. Para Benjamin (1971),
as limitações desse conhecimento se devem
ao modo como Kant considerou a experiência
enquanto experimento; como algo meramente
mecânico, previsível, mensurável.
Para Benjamin, somente na linguagem o
conhecimento e a experiência podem convergir.
É exatamente na busca da essência linguística
do conceito de experiência que Benjamin tentará
articular filosofia e religião, valorizando as
experiências suprassensíveis e suprarracionais,
819
ignoradas pela epistemologia moderna. Kant, de
acordo com Benjamin (1971), não empreendeu
uma reflexão acerca da natureza linguística,
ignorando, portanto, na sua sistematização, outros
campos de conhecimento, qualitativamente
distintos. Ao empreender uma revisão crítica da
filosofia de Kant, o filósofo permitirá integrar,
ao sistema kantiano, elementos que haviam sido
excluídos pela insuficiência básica da visão de
mundo do esclarecimento.
Benjamin recorre ao mito bíblico da
criação, a partir do Gênesis, para expor as
suas concepções sobre a linguagem. O recurso
ao mito, segundo Muricy (1999), é muito
significativo de um procedimento utilizado
no enfrentamento dos pressupostos teóricos
daquilo que se convencionou chamar de a virada
linguística do início do século XX, movimento
que pôs no centro da reflexão filosófica a última
palavra da linguística e das teorias semióticas,
deixando de lado, por seu caráter metafísico,
a reflexão sobre a natureza da linguagem.
Contrariamente às concepções da virada
linguística, a teoria da linguagem de Benjamin
se opõe a uma perspectiva instrumentalista da
linguagem, não a considerando como mero
meio de comunicação. O autor vai contra a
corrente hegemônica das reflexões filosóficas
de matriz científica, recorrendo ao que estava
diametralmente oposto a essas matrizes: a
Cabala, os místicos, os românticos do círculo de
Iena, Friederich Schlegel e Novalis.
Em Sobre a linguagem em geral e
sobre a linguagem humana (1992), texto
escrito em 1916, ao se interrogar sobre a
essência da linguagem, Benjamin irá recorrer
à teologia e à mística judaica, tornando o seu
pensamento, aparentemente anacrônico, algo
surpreendentemente atual (SOUZA, 2009, p. 190).
Ele foge aos esquemas da linguística de Saussure
e da filosofia analítica. Na interpretação do
pecado original como fenômeno linguístico, há
o reconhecimento de que a linguagem humana é
inseparável da dicotomia conhecimento/vida. O
texto sugere o fim dessa dicotomia, retomando
a essência espiritual humana; recuperando a
820
sua linguagem. É ela, e não a comunicação de
conteúdos, que inscreve a natureza no mundo do
sentido. Ao contrário da perspectiva cientificista,
a linguagem nomeadora não visa à dominação
da natureza (D’ANGELO, 2006, p. 12).
Benjamin relaciona experiência, língua
e essência espiritual em geral – das coisas e
dos homens. Em seu texto, a essência espiritual
refere-se à linguística e a linguagem das coisas
é imperfeita, pois a ela foi negado o princípio
formal linguístico: o som. Em sua linguagem
muda, a natureza comunica-se de acordo com
as possibilidades de uma magia atribuída à
matéria. Há, portanto, uma distinção entre
a magia imaterial, puramente espiritual da
linguagem humana e a magia da linguagem
das coisas.
Para explicar essa dimensão metafísica
da linguagem, o filósofo recorre à origem
bíblica segundo a qual, no início, a palavra não
era destinada à comunicação entre os homens,
mas se constituía como revelação de um
saber que dispensava mediações. No nome, a
linguagem comunicava a si própria e de maneira
absoluta. Depois do pecado original, o homem é
condenado a usar a palavra como instrumento
de comunicação. Houve, então, a extinção
da linguagem adamítica, o que possibilitou o
surgimento do verbo propriamente humano. O
verbo divino é substituído pela proposição com
a qual os homens falam sobre as coisas por meio
de atos e julgamentos. Com a queda do homem
do paraíso, instaura-se um divórcio entre as
palavras e as coisas. Do saber mediatizado
pelas abstrações proposicionais emerge um
conhecimento do mundo por meio da conversa
vazia ou, como o filósofo denominou, da
tagarelice (BENJAMIN, 1992).
A língua nominal perde sua magia. A
perda da linguagem pura, ou o abandono do
nome, faz surgir a necessidade de comunicar
algo exterior ao próprio nome. A palavra não é
mais o lugar da essência espiritual, mas meio de
comunicar conteúdos, transmitir informações;
comunicar algo exterior à própria linguagem.
De acordo com Benjamin, há na linguagem
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
algo comunicável, mas esse algo é a própria
linguagem, o que nela se manifesta. Assim, de
acordo com o filósofo, tudo o que existe, seja da
natureza animada ou inanimada, acontecimento
ou coisa, comunica, expressa a sua essência
espiritual. A atividade intelectual geradora de
ideias ou conceitos não é algo que se comunica
através da linguagem, mas na linguagem, ou
melhor, a atividade intelectual, ela própria é
linguagem. Desse ponto de vista, a linguagem
é tomada como a expressão do pensamento,
médium-de-reflexão.
Nessa visão metafísica da linguagem há
a tentativa de compreensão do mundo como
revelação, na linguagem, de uma verdade
que não se expressa exclusivamente pela
abstração conceitual, mas também por meio
da experiência sensível. Além disso, com a tese
de que “todo conhecimento filosófico tem a
sua única expressão na linguagem”, Benjamin
elabora um conceito de experiência que permite
a construção de um conhecimento capaz de
alcançar não o conhecimento de Deus, mas a
experiência de Deus. Assim, abre-se o acesso
a regiões que nem a filosofia de Kant, nem a
cultura iluminista conseguiram alcançar.
Conforme Souza (2009, p. 191), “Esta
dimensão semântica do mundo dos objetos
pode estar encarnada nas palavras da poesia”,
que podemos experimentar como um tipo
de conhecimento diferente daquele que
encontramos no pensamento científico, empírico
técnico. Sob a perspectiva benjaminiana,
na linguagem poética a verdade é devir (ou
desvio); sua forma alegórica e fragmentária
de expressão não constitui uma manifestação
de irracionalismo, mas uma forma de falar
do mundo. Daí o interesse por Baudelaire e
As flores do mal, tomados como referência
na crítica da modernidade, pois a experiência
do poeta diante de um mundo capitalista,
reificado, assume uma dimensão ética oposta à
do esteticismo a-histórico.
Logo, o ato heroico de ir contra a
corrente em Baudelaire, Proust, Kafka, Brecht,
manifesta-se como resistência aos valores
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
dominantes da cultura burguesa. Contudo,
Benjamin não parte de uma análise social da
história, e sim de sua materialidade linguística,
pois é aí que a história se revela. Quando
Baudelaire fala do “difuso temor das noites
medonhas que o peito oprimem como um papel
que amassa” (BAUDELAIRE,1995, p. 137) ele
está revelando uma dimensão do real a qual a
análise da sociologia não chega” (D’ANGELO,
2006, p. 19).
Para Benjamin, linguagem é tradução,
sendo que sua relação com as coisas não é
arbitrária; uma palavra não é o signo de uma
coisa, não é mera convenção. Não constitui
a essência da coisa que nomeia. Mas é na
linguagem, enquanto médium, que se traduz
o mundo, ou que se torna dizível, poetizável
e compreensível a linguagem muda das
coisas. Essa tradução na linguagem do homem
da linguagem muda das coisas é o próprio
movimento que constitui o conhecimento,
essencial para se pensar todo e qualquer
processo educativo. Em Benjamin, o verdadeiro
fundamento do conhecimento não é o sujeito,
empírico ou transcendental, mas a linguagem.
A concepção mimética da
linguagem
Os ensaios de Benjamin a respeito
da linguagem podem ser divididos em dois
grupos: os escritos de juventude, fortemente
influenciados pela mística judaica (Da linguagem
em geral e da linguagem do homem (1992) e A
tarefa do tradutor (1979)), e dois textos curtos
escritos depois de 1933, que pertencem à sua
fase materialista.
Nesses dois últimos textos (Doutrina
do semelhante (1996) e Sobre a capacidade
mimética (1970)), o conceito de mímesis é um
conceito-chave na reflexão benjaminiana. De
forma instigante, confere outra dimensão ao
pensamento crítico. Benjamin retoma a teoria
da mímesis de Aristóteles: a mímesis como
um processo de aprendizagem específico do
ser humano (especialmente das crianças).
821
Em Aristóteles, o impulso mimético está na
raiz do lúdico e do artístico; a aquisição de
conhecimentos se dá em um processo prazeroso
no qual se desenvolve a faculdade de reconhecer
semelhanças e de produzi-las na linguagem
(GAGNEBIN, 1999). Nesse caminho esboçado
por Aristóteles, a teoria da mímesis induz a uma
teoria da metáfora; conhecimento e semelhança,
conhecimento e metáfora entretêm ligações
estreitas, muitas vezes esquecidas, e até negadas.
Nos escritos de Benjamin, a produção
mimética estará relacionada, como em
Aristóteles, ao jogo e ao aprendizado, ao
conhecimento e ao prazer de conhecer. Dentro
dessa perspectiva, remetendo-se ao universo
infantil, Benjamin contesta a crença de que um
suposto preestabelecido conteúdo imaginário
do brinquedo vem a determinar a brincadeira
da criança. Ao definir esse pensamento como
“grande equívoco” (BENJAMIN, 1996, p. 250), ele
afirma que a relação da criança com o brinquedo
dá-se na direção contrária, é na brincadeira
que a criança busca incluir o seu brinquedo ou
objeto de brincar”: “a criança quer puxar alguma
coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia
e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se
ladrão ou guarda” (BENJAMIN, 2009a, p. 93).
A criança não brinca só de comerciante ou de
bombeiro (atividades humanas), mas também de
trem, de cavalo, de carro ou de máquina de lavar.
De fato, a experiência social da criança
atualizada na brincadeira e no jogo encontra-se permeada por condutas miméticas, que lhe
permitem ir além da sua capacidade de produzir
semelhanças para lançar-se à transmutação
entre os diversos e possíveis papéis sociais,
pelos quais ela transita livremente: entre o
ser comerciante ou ser professor, ou entre o
personificar-se de moinho de vento ou de trem
(BENJAMIN, 2009a).
Nos ensaios Rua de mão única (2000),
escrito em 1928, e Infância em Berlim por volta
de 1900 (2000), escrito em 1938, Benjamin
dirige sua crítica para determinadas funções
pedagógicas atribuídas a alguns objetos
criados para as crianças. A pedagogização do
822
brinquedo é, para o filósofo, o que impede
o reconhecimento dos potenciais infantis
de se relacionar com o mundo e mesmo de
transformar muitos dos sentidos e funções para
os quais os brinquedos foram criados:
Elucubrar pedantemente sobre a fabricação
de objetos - material educativo, brinquedos
ou livros – que fossem apropriados para
crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa
é uma das mais bolorentas especulações
dos pedagogos. Seu enrabichamento pela
psicologia impede-os de reconhecer que a
Terra está repleta dos mais incomparáveis
objetos de atenção e exercício infantis [...].
Em produtos residuais, reconhecem o rosto
que o mundo das coisas volta exatamente
para elas, e para elas unicamente. Neles, elas
menos imitam as obras dos adultos do que
põem materiais de espécie muito diferente,
através daquilo que com eles aprontam no
brinquedo, em uma nova, brusca relação
entre si. Com isso, as crianças formam para si
seu mundo de coisas, um pequeno no grande,
elas mesmas (BENJAMIN, 2000, p. 18-19).
Sob a ótica benjaminiana, a educação
enquanto formação não é propriedade privada
da pedagogia, mas pode ser compreendida
como um fenômeno que se realiza no sujeito,
como ontogênese, ou seja, como caminhada
do ser em um processo infindável. As crianças
são reconhecidas, então, como agentes
transformadores dos espaços com os quais
interagem, atribuindo significados aos objetos
que manipulam e aos inúmeros papéis que
representam. A brincadeira torna-se um ritual
mimético. Esses rituais da infância são retomados
por Benjamin como importantes fontes de
subsídios para o entendimento dos processos
históricos de construção dos saberes, bem como
da constituição do sujeito moderno. Opondo-se à
pedagogização dos brinquedos, o filósofo chama
atenção para os processos históricos nos quais
o ser humano produz semelhanças reagindo às
semelhanças já existentes no mundo.
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
As semelhanças se modificam no
decorrer dos séculos, não são imutáveis,
não existem em si, mas são redescobertas e
ressignificadas pelo conhecimento humano
em diferentes épocas (GAGNEBIN, 1999). Um
exemplo disso pode ser dado com os saberes da
astrologia, da adivinhação e das práticas rituais.
Esses saberes são colocados hoje em oposição
ao saber racional, o progresso científico os
marginalizou, excluindo-os do que se possa
chamar de verdadeiro conhecimento. No
entanto, eles passaram a existir nos arquivos
da linguagem:
Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras
e dos acasos era para o primitivo sinônimo
de leitura em geral, e se além disso existiram
elos mediadores para uma nova leitura,
como foi o caso das runas, pode-se supor
que o dom mimético, outrora o fundamento
da clarividência, migrou gradativamente, no
decorrer dos milênios, para a linguagem e
para a escrita, nelas produzindo um arquivo
completo de semelhanças extra-sensíveis.
Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais
alta aplicação da faculdade mimética: um
médium em que as faculdades primitivas de
percepção do semelhante penetraram tão
completamente, que ela se converteu no
médium em que as coisas se encontram e se
relacionam, não diretamente, como antes,
no espírito do vidente ou do sacerdote, mas
em suas essências, nas substâncias mais
fugazes e delicadas, nos próprios aromas.
Em outras palavras: a clarividência confiou
à escrita e à linguagem as suas antigas
forças no correr da história (BENJAMIN,
1996, p. 112).
A capacidade mimética humana não
foi substituída pelo pensamento abstrato,
racional, mas se concentrou na linguagem e na
escrita. Para Benjamin (1996), a leitura é um
processo eminentemente telepático; por meio
de uma iluminação profana do pensamento é
possível encontrar parentesco entre a leitura das
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
constelações e dos planetas feita pelo astrólogo,
a leitura do adivinho e a leitura de um texto; do
mesmo modo, o gestual da dança assemelha-se
aos movimentos da pintura e da escrita. Essa
teoria vai na direção contrária a das concepções da
linguagem baseadas no signo. Isso pode explicar o
interesse de Benjamin pelas teorias onomatopaicas
em torno da origem da linguagem, ainda que ele
as julgasse muito limitadas em relação àquilo que
constitui a semelhança.
Na teoria mimética da linguagem está
implícita uma lógica não da identidade, mas da
semelhança; não há uma concepção identitária
do sujeito e da consciência, mas “a eclosão de
um verdadeiro outro” (GAGNEBIN, 1999, p. 103).
A atividade mimética não se reduz a uma cópia,
ela é uma mediação simbólica:
Em vão procurar-se-ia uma similitude entre
a palavra e a coisa baseada na imitação.
Saber ler o futuro nas entranhas do animal
sacrificado ou saber ler uma história nos
caracteres escritos sobre uma página
significa reconhecer não uma relação de
causa e efeito entre a coisa e as palavras
ou as vísceras, mas uma relação comum de
configuração. A imitação pode ter estado
ou não presente na origem, ela pode se
perder sem que a similitude se apague
(GAGNEBIN, 1999, p. 98-99).
Daí o conceito de
semelhança
extrassensível, utilizado por Benjamin para
definir a linguagem como o grau último da
capacidade mimética humana e o arquivo o
mais completo dessa semelhança extrassensível.
Essa transformação filogenética da capacidade
mimética é explicada pelo exemplo ontogenético
do aprendizado da linguagem falada e da escrita
pela criança.
Com o movimento gestual do seu corpo
inteiro, a criança brinca/representa o nome e
dessa forma aprende a falar. Para a criança,
nesse jogo, as palavras não são signos fixados
pela convenção, mas sons a serem explorados. O
escritor Eduardo Galeano (2002) costuma dizer
823
que nesta fase somos mais profanos e poetas; pois
é de muita importância para a criança o aspecto
material da linguagem, algo que os adultos
se esquecem em detrimento do seu aspecto
conceitual e que a linguagem poética recupera. No
aprendizado da escrita ocorre o mesmo processo:
a criança desenha a letra, ela imita o modelo
proposto pelo adulto e, ao escrever a palavra,
desenha uma imagem (não uma cópia) da coisa,
estabelecendo, assim, uma relação figurativa com
o objeto (GAGNEBIN, 1999, p. 100).
Benjamin refere-se à escrita chinesa para
explicar a relação entre pintura e escrita, uma
relação que não é necessariamente uma relação
de imitação. A partir da concepção mimética da
linguagem, ele supõe movimentos históricos de
transição da pintura à escrita, por meio não só da
grafia oriental, mas também por intermédio dos
hieróglifos e da escrita rúnica. O autor mostra
que a escrita não deriva de uma abstração ou
de uma convenção como a que o nosso alfabeto
representaria, mas de um impulso mimético que
se inscreve no espaço pela dança, numa parede
pela pintura, ou numa página pela escrita.
Nos ensaios sobre a capacidade mimética
e sobre a semelhança, há uma distinção entre
a dimensão semiótica e a dimensão mimética
da linguagem. A dimensão mimética surge do
semiótico como uma imagem fugaz que aparece
e desaparece na paisagem. Na dialética do
visível invisível, a literalidade do texto é o fundo
único, imprescindível para que essa imagem
possa, como em um relâmpago, apresentar-se
em forma de enigma, como interrogação. Para
Benjamin, essa imagem rápida remete ao sentido
essencial e ao mesmo tempo mutável do texto. A
transmissão do significado é apenas o pretexto,
imprescindível, que permitiria a elaboração de
um outro texto, um verdadeiro outro.
A mímesis indicaria uma dimensão
essencial do pensar, em uma aproximação
lúdica, que o prazer suscitado pelas metáforas
nos devolve. Ela aponta para uma aproximação
do outro que consiga dizê-lo sem desfigurá-lo.
Nessa perspectiva, a linguagem não
se restringe à tese linguística do arbitrário
824
do signo, mas a uma transformação do
sentido. O movimento do pensamento remete
ao movimento da metáfora, em um fazerdesfazer lúdico e figurativo; dá-se visibilidade
ao invisível, comunica-se o não comunicável,
atualiza-se o já dito. Benjamin dizia que a
criança entra nas palavras como quem entra em
cavernas, criando caminhos estranhos em um
universo a ser explorado. Algo parecido com o
percurso dos poetas, dos artistas ou dos cineastas
quando penetram na linguagem, criando seus
caminhos, suas errâncias, suas obras, suas
montagens, estabelecendo uma relação com o
tempo que não é, necessariamente, aquela do
tempo linear, cronológico, homogêneo e vazio.
Inspirado pelo pensamento benjaminiano,
Giorgio Agamben (2008) aproxima os conceitos
de experiência e linguagem remetendo-se a uma
in-fância; um lugar que é anterior à palavra;
que rompe com a continuidade da história,
e que produz a descontinuidade entre língua
e discurso, entre natureza e cultura. Não se
trata de uma ideia de infância como etapa de
ordem cronológica, como uma potência que
permite a renúncia do previsível e ilumina
aquilo que não se revela de imediato. A infância
instaura o sujeito criativo, coloca o indivíduo
no lugar de produtor da cultura para que, com
outros interlocutores, ele possa dar sentido e
acrescentar significação ao mundo. A infância se
constitui num experimentum linguae. De acordo
com Giorgio Agamben, ela é entendida como a
possibilidade de recuperação da pura expressão;
é o momento em que as palavras ainda não
estão presas a modelos lógicos abstratos, ou a
uma subjetividade essencialmente fabricada,
modelada, recebida, consumida.
A
partir
desse
experimentum
linguae, descobrem-se os reflexos míticos
e poéticos, bem como o sentido do sagrado
frequentemente dissimulado nas atividades
mais banais e cotidianas. Nesse contexto, a
história materializa-se teatralmente; faz parte
da mesma matéria imaginária e ficcional da
existência. Nesse sentido, o discurso histórico
é também o discurso imaginário, no qual o
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
tempo cronológico homogêneo é interrompido;
fazendo emergir, em um salto originário
(Ursprung), o diferente, o inusitado, o não
revelado, o silenciado. As imagens do cotidiano
são postas em suspenso; dá-se visibilidade ao
ínfimo, ao insignificante; transformam-se os
destroços em matéria de poesia, matéria de
história: “As coisas jogadas fora têm grande
importância – como um homem jogado fora.
[...] As coisas sem importância são bens de
poesia” (BARROS, 2001, p. 14-15).
Como em Baudelaire, os belos poemas
de Manuel de Barros são exemplos do redescobrimento de um mundo pouco visível.
Nesses versos há a recusa dos grandes temas;
as coisas desimportantes transformam-se em
relíquias de linguagem – como ocorre no poema
de Drummond, quando um acontecimento
absolutamente banal – uma pedra no meio
do caminho – pode ganhar, na interpretação
dos leitores, outras dimensões; sentidos outros
que quebram a própria continuidade temporal
do acontecimento na repetição dos versos.
Importante ressaltar que o componente poético
constitui-se então como espaço da criatividade,
operação própria à imaginação, lugar da in-fância
que produz uma íntima ligação entre o pensar e
o ser. Como sentenciou Anaximandro, na Grécia:
Pensar, no entanto, é poetar e a verdade
não apenas um tipo de poetar no sentido
da poesia e da canção. O pensamento do
ser é a maneira fundamental de poetar. No
pensamento assim considerado, a linguagem
passa a ser linguagem primordial, isto é, em
sua essência. [...] Todo poetar, em seu sentido
mais amplo, e também no mais estrito, é em
seu fundo pensamento (ANAXIMANDRO
apud HÜHNE, 2004, p. 78).
Ao despojar-se da concepção instrumentalista do conhecimento, Benjamin procura,
nesse poetar, recuperar a dimensão mágica da
linguagem. Os escritos benjaminianos acerca da
modernidade a partir da fisionomia das cidades;
dos poetas e artistas surrealistas; sobre autores
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
como Baudelaire, atestam o interesse do filósofo
em pensar a linguagem como campo (médium)
para a construção do pensamento enquanto
poiesis (atividade criativa que organiza a reflexão). Nesse sentido, Benjamin tinha, segundo
Hannah Arendt (1999, p. 10), uma rara habilidade para pensar poeticamente. Como bem coloca
Muricy (2008, p. 79), em Benjamin:
[...] construir ideias é recuperar – na
linguagem
domesticada
pelo
uso
pragmático das exigências de informação
e comunicação – uma dimensão inaudita
onde possa brotar algo como uma origem
sempre renovável.
A escrita poética, ao reinventar o mundo,
é construção do olhar crítico, se pensarmos que o
crítico, assim como o alquimista, exerce a obscura
arte de transmutar os elementos desimportantes do
real em resplandecentes verdades, interpretando
os processos históricos inerentes a essa mágica
transfiguração (BENJAMIN, 2009b). Ao interrogar
os objetos, o olhar crítico descobre nas coisas, nas
cidades, as marcas do mundo, procura então,
no invisível que se esconde e se presentifica na
linguagem das coisas, aquilo que faz um rosto,
uma paisagem ou um objeto nos falar.
Considerações finais
A obra benjaminiana não apresenta
uma proposta educacional; ao contrário,
reage justamente à ideia de tal proposta. Sua
crítica dirige-se ao que chama de programa
de remodelação da humanidade, nascido com
o Iluminismo que, no século XVIII, reuniu
nomes como o de John Locke na Inglaterra,
Kant na Alemanha, e na França os escritores
enciclopedistas Diderot, Voltaire, D’Alembert,
Montesquieu, Rousseau e outros pensadores que
se mobilizavam em torno do que ficou conhecido
como Filosofia da ilustração, uma Suma filosofia,
que pretendia abarcar com os seus verbetes todos
os saberes da ciência, da política, da filosofia e
das artes. O projeto do pensamento iluminista
825
era o de construir um conhecimento universal, a
partir de uma racionalidade capaz de esclarecer,
iluminar, ilustrar. Com os êxitos da física, torna-se possível conceber um universo determinista
totalmente inteligível ao cálculo. Surge uma
visão do mundo constituída pela identidade do
real, do racional e do calculável. Assim, são
eliminadas a desordem e a subjetividade. A razão
converte-se em um mito unificador do saber,
como também da ética e da política.
Emergem os princípios utilitaristas da
economia liberal-burguesa segundo os quais
prevalece a ordem e a harmonia. A construção da
racionalidade iluminista colocou a sensualidade,
a sensibilidade, o desejo e a paixão como inimigos
do pensamento (MATOS, 1990, p. 284). A
questão do dualismo corpo e alma será discutida
por Benjamin em O drama barroco alemão como
algo que impede a compreensão da paixão
enquanto um componente do desenvolvimento
da racionalidade, inviabilizando a relação entre
o homem e o seu desejo, entre a razão e o corpo,
a história e a memória.
A filosofia da razão ilustrada pretendia
fazer da criança um ser supremamente piedoso,
bom e sociável. Essa concepção de educação
limitou as possibilidades dos processos formativos
e de aprendizagem. Ao buscar uma experiência
total e concreta do conhecimento, Benjamin
critica a institucionalização do saber. O filósofo
alemão encontra nos artistas e nas crianças um
outro entendimento do mundo. Ele se opõe aos
padrões psicológicos, referindo-se à figura da
criança como uma pessoa inserida na história e
em uma cultura, da qual é também criadora.
A atualidade do pensamento de Benjamin
e suas reflexões a respeito da modernidade,
da infância e da linguagem nos dão pistas
para refletir a educação enquanto processo
formativo, no qual o conhecimento realizase como uma experiência de linguagem. Isso
826
instiga-nos a pensar tanto a realidade enquanto
texto que se abre à significação de cada um,
quanto o próprio movimento do sujeito em um
processo de criação-nomeação do mundo. Nesse
movimento itinerante, a linguagem é o espaço
em que o sujeito diz o seu eu como condição de
sua historicidade. Nas palavras de Kramer,
[...] só o ser humano pode ser in-fans
(etimologicamente em latim, aquele que
não fala). Então, ao contrário dos animais,
o homem – como tem uma infância, ou
seja, não foi sempre falante – aparece como
aquele que precisa, para falar, se constituir
como sujeito da linguagem e deve dizer
“eu”. Nessa descontinuidade é que se funda
a historicidade do ser humano. Se há uma
história, se o homem é um ser histórico é
só porque existe uma infância do homem, é
porque ele deve se apropriar da linguagem.
Se assim não fosse, o homem seria natureza
e não história. E aqui reside a possibilidade
de saber, quer dizer, de vivendo a história
e de recontando essa história construir
um saber coletivo que extrapola a mera
justaposição de informações (KRAMER,
s.d., p. 249).
Nessa perspectiva, recupera-se aquilo que
foi deixado à margem pelos sistemas escolares
fechados em suas disciplinas e hierarquias de
valores. Valoriza-se o ínfimo e um pensar-sentir
que passe pela mediação do insignificante.
Assim, a própria vida cotidiana fragmentária
e aparentemente sem sentido configura-se
em um experimentum linguae, permeado de
poéticas visuais, sonoras e textuais, apresentase como um saber coletivo; uma estradatexto aberta a possíveis leituras/escrituras
que são compartilhadas como experiências de
linguagem, formas de conhecimento.
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
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Recebido em: 21.07.2013
Aprovado em: 02.10.2013
Eloiza Gurgel Pires é artista visual; pesquisadora e doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é
professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). No trânsito indisciplinado por diferentes
campos, suas pesquisas e publicações discutem as relações existentes entre os processos culturais da contemporaneidade e
a educação a partir: das poéticas urbanas; do binômio história/memória; da arte e das linguagens midiáticas, especialmente
das linguagens audiovisuais.
828
Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin
Racionalidade ecológica e formação de cidadania:
entrevista com Gerd Gigerenzer
Danilo R. StreckI
Resumo
A entrevista tem por tema as pesquisas sobre racionalidade
ecológica e suas implicações para a educação, especialmente
para a formação da cidadania, pesquisas essas desenvolvidas
no Max-Planck Institute for Human Development, em Berlim. O
estudo da racionalidade ecológica ocupa-se com o processo de
tomada de decisões num mundo em que o agir humano se dá
num contexto de incertezas, em que uma avaliação completa
dos fatores é praticamente inviável. Parte-se do pressuposto de
que processos cognitivos não podem ser dissociados da realidade
social e cultural, e que a identificação das heurísticas que regem
a tomada de decisões pode ser um importante instrumento para a
formação de um pensamento autônomo. Destaca-se, do ponto de
vista pedagógico, a importância de favorecer o desenvolvimento
da capacidade de compreender os limites e as possibilidades da
lógica científica na qual se fundam os processos educativos e de
estimular o desenvolvimento de formas de conhecer que são tão ou
mais determinantes da ação quanto a lógica científica. Gigerenzer
enfatiza o papel do trabalho coletivo e interdisciplinar para
favorecer a criatividade na pesquisa e no ensino, bem como para
tomar melhores decisões no cotidiano.
Palavras-chave
Racionalidade ecológica — Cidadania — Heurísticas — Incerteza.
I- Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, São Leopoldo,
RS, Brasil.
Contato: [email protected]
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014400300201
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Ecological rationality and citizenship education: an
interview with Gerd Gigerenzer
Danilo R. StreckI
Abstract
The subject of this interview is the research on ecological
rationality and its implications for education, especially
for citizenship education, carried out at the Max-Planck
Instuitute for Human Development, in Berlin. The studies
on ecological rationality focus on the processes of decision
making in a world in which human activity happens in a
context of uncertainties, where a complete evaluation of
factors is practically impossible. The assumption of the
research is that cognitive processes cannot be dissociated
from social and cultural realities, and that therefore the
identification of the heuristics used in making decisions can
be an important instrument for the formation of autonomous
thinking. Of special interest from the pedagogical perspective
is promoting the development of the capacity to understand
and deal with the limits and possibilities of the scientific
logic on which educational processes are largely based, and
the development of forms of knowing that are as much or
more determinant than that one. Gigerenzer emphasizes
the role of collective and interdisciplinary work to promote
creativity in research and teaching, as well as to make
decisions in daily life
Keywords
Ecological rationality — Citizenship — Heuristics —
Uncertainty.
I- Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil.
Contact: [email protected]
830
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014400300201
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
Gerd Gigerenzer é pesquisador no MaxPlanck Institute for Human Development, em
Berlim, onde atualmente dirige o Harding Center
for Risk Literacy. Ele é formado em psicologia
pela Universidade de Munique (Alemanha),
onde também obteve o título de Ph.D. em
psicologia. Foi diretor do Max Plank Institute for
Psychological Research, em Munique, de 1995
a 1997, e do Max Planck Institute for Human
Development, em Berlim, em vários períodos
entre 1997 e 2013. Foi professor em importantes
universidades europeias e norte-americanas,
entre elas Chicago, Munique e Salzburg.1
O conceito de racionalidade ecológica
(TODD et alii, 2012), central no trabalho de
Gigerenzer, sugere certa familiaridade com a
ideia de ecologia de racionalidades na obra de
Boaventura de Sousa Santos (2004), que tem
estimulado a crítica à racionalidade científica
hegemônica e, o que é mais importante, o
“descobrimento” de saberes silenciados por essa
lógica que Santos identifica como metonímica.
A reflexão sobre os limites e o potencial da
racionalidade diz respeito a todas as áreas
do conhecimento, embora seja de especial
relevância para a educação. Pode-se presumir
que a crise da escola tem a ver, entre outros
motivos, com a dificuldade de dar conta da
diversidade de formas de pensar, conhecer e
tomar decisões que hoje buscam expressar-se
como parte de uma sociedade plural.
Um dos livros de Gigerenzer mais
premiados internacionalmente encontra-se
traduzido no Brasil com o título de O poder
da intuição: o inconsciente dita as melhores
decisões (2009).2 O título propõe de forma um
tanto provocativa o argumento que perpassa a
obra de Gigerenzer: que a intuição pode ser um
importante instrumento para tomar boas decisões.
A pergunta, segundo ele, não é se, mas quando
podemos confiar em nossas intuições. Segue-se
que, para responder a essa pergunta, precisamos
entender como ela funciona. Buscando resgatar
a intuição da aura negativa com que geralmente
é associada, Gigerenzer volta sua crítica também
à escola: “Alinhado com essa visão negativa,
nosso sistema educacional valoriza tudo, menos
a intuição”.
Sua definição de intuição compreende
três características: 1) surge muito depressa
em nossa mente consciente; 2) as razões
fundamentais não estão plenamente acessíveis
a essa mente consciente; e 3) é suficientemente
forte para motivar uma ação. Segundo essas
características, pode-se constatar que grande
parte de nossas decisões se enquadra nessa
definição. Em primeiro lugar, pela limitada
capacidade do cérebro humano, que seria
incapaz de “computar” conscientemente todas
as alternativas possíveis para todas as ações.
Em sua obra vemos, por isso, seguidas alusões à
vontade de onisciência que se vê legitimada pelo
suposto domínio do conhecimento de alguns
especialistas. Em segundo, pelo fato de não
podermos contar com uma visão determinista
1- A presente entrevista foi realizada no escritório de Gerd Gigerenzer no
Max-Planck Institut für Bildungsforschung (Max-Planck Institute for Human
Development), em Berlin, em novembro de 2012.
2- Obra publicada pela editora Best Seller. Outro livro em língua
portuguesa, Calcular o risco: aprender a lidar com a incerteza (do original
Reckoning with Risk) foi publicado em Portugal pela Editora Gradiva.
Introdução
Fonte: arquivos do entrevistado.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
831
do mundo, onde então os resultados das
decisões seriam totalmente previsíveis.
Um dos pressupostos nos quais o conceito
de racionalidade ecológica está baseado é que o
cérebro funciona como as duas lâminas de uma
tesoura: uma delas é a capacidade neurológica
e a outra é o ambiente em que operamos, e
o qual condiciona o funcionamento. Para a
tomada de decisões, teríamos uma “caixa de
ferramentas adaptáveis”, as heurísticas, que
são estratégias práticas de tomada de decisão.
Essas não são inatas nem fixas, mas têm uma
estrutura adaptável ao meio em que atuamos. O
livro O poder da intuição traz muitos exemplos
de como no cotidiano utilizamos esse tipo de
“atalhos”, tanto na vida profissional quanto
na social. Decisões importantes como a troca
de emprego ou opções determinantes para o
nosso futuro são menos o resultado de cálculos
complexos do que de intuições que podem
parecer pouco racionais. Não é de estranhar que
a epígrafe do capítulo inicial desse livro seja a
célebre frase de Blaise Pascal: “O coração tem
razões que a própria razão desconhece”.
Do ponto de vista pedagógico, a pesquisa
da equipe de Gigerenzer chama à humildade
quanto ao alcance e possibilidades da lógica
racional e científica. Os estudos não sugerem
que se abandone essa lógica, dentro da qual os
próprios estudos são conduzidos, mas desafia
a olhar para outras formas de conhecimento
que, conforme ele explicita na entrevista, eram
consideradas as mais confiáveis em outros
tempos históricos. Para isso, é necessário
reconhecer que o funcionamento da mente é
condicionado pelo meio (bounded rationality),
encontrando maneiras de se adaptar de
forma mais ou menos criativa e inovadora
(GIGERENZER, 2006). Coerente com esses
princípios, em sua prática de pesquisa, ele
enfatiza o trabalho em equipe interdisciplinar.
O desafio para a educação consiste
em buscar conhecer “caixas de ferramentas
adaptáveis” e saber dispor melhor dos
instrumentos que ali encontramos e que
resultaram do longo processo evolutivo do
832
cérebro humano. Saber como e por que se
estuda isso e não aquilo, por que se escolhe
determinada marca de roupa, por que se
escolhem certas companhias são decisões que
“não são unicamente uma questão de prós
e contras imaginados. Algo mais pesa no
processo decisório, algo que tem, literalmente,
um peso razoável: nosso cérebro, fruto do
processo evolutivo. Ele nos dá aptidões que
se desenvolveram durante milênios, mas
que são em sua maior parte ignoradas pelos
textos-padrão sobre tomadas de decisão”
(GIGERENZER, 2006, p. 73).
Outra contribuição relevante para a
educação atual diz respeito ao lugar e papel das
informações na tomada das decisões. Segundo
Gigerenzer, há situações em que menos é mais,
dependendo da capacidade de escolher as opções
mais adequadas. Isso vale tanto para médicos
no diagnóstico de seus pacientes quanto para
professores na avaliação de seus alunos ou
pesquisadores na sua opção metodológica.
Luria (1968) já se debateu com esse problema ao
buscar compreender a mente de Shereshevsky,
que tinha uma incrível capacidade de guardar
uma enorme quantidade de informações, mas
que não era capaz de realizar abstrações a partir
dos dados armazenados (OLIVEIRA; REGO,
2010). Para aprender a lidar com a crescente
disponibilidade de informação, a educação
precisa ensinar a confrontar-se com as
incertezas e probabilidades. O resultado de não
fazê-lo são médicos que não sabem interpretar
corretamente dados para seus pacientes em
relação aos riscos, economistas que agem
como se fossem deuses, e cidadãos que não
aprenderam a “pensar junto”.
Gigerenzer alerta que o ensino da
matemática está baseado no ensino de certezas,
deixando de trabalhar com a probabilidade.
Assim, caberia uma “alfabetização em risco”,
que teria como um requisito a introdução ao
pensamento estatístico já na escola fundamental,
conforme experiências realizadas na Alemanha e
nos Estados Unidos (BOND, 2009). Dentro de uma
perspectiva mais ampla, a “alfabetização em risco”
Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
é vista como precondição para uma cidadania
bem informada dentro de uma democracia
participativa. Como expresso pelo entrevistado:
Tanto educadores quanto políticos deveriam
ter consciência que alfabetização em risco
é um tópico vital para o século vinte e um.
Em vez de ser manipulados a fazer o que os
expertos acreditam seja correto, as pessoas
deveriam ser encorajadas e equipadas para,
por si mesmas, tomar decisões informadas.
Alfabetização em risco deveria ser ensinada
desde a escola fundamental. Ousemos
conhecer – risco e responsabilidades são
oportunidades a serem apreendidas, não
evitadas. (GIGERENZER, 2012, p. 260).
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GIGERENZER, Gerd. Calcular o risco: aprender a lidar com a incerteza. Lisboa: Gradiva, 2005.
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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
833
A ENTREVISTA
Agradeço por arranjar lugar em sua pesada
agenda para esta entrevista, que eu espero
compartilhar com um público mais amplo
na América Latina. Pelo menos um de seus
muitos livros está traduzido no Brasil, O
poder da intuição: o inconsciente dita as
melhores decisões [Gut Feelings] e eu posso
antecipar que as preocupações endereçadas
em seus estudos se tornarão parte das
discussões em muitas áreas, inclusive na
educação. Você poderia dizer-nos algo sobre
como desenvolveu o interesse em estudar este
tópico? O que o moveu e continua movendo
a estudar o papel e o lugar da intuição na
tomada de decisões?
Médicos, juízes, administradores – todos
eles se apoiam em suas intuições e têm receio
de admiti-lo. No entanto, no pensamento
ocidental, a intuição já foi vista como a forma
mais certa de conhecimento, aquela de anjos
e seres espirituais que intuíam com claridade
impecável. Desde a Ilustração, no entanto, a
razão foi colocada sobre a intuição e, muito
antes, os homens sobre as mulheres. Agora as
pessoas acreditam que a intuição é feminina e
frágil, enquanto que o pensamento intencionado
é masculino e racional. Essa carreira estranha da
intuição, que iniciou como uma forma divina de
conhecimento e acabou sendo desprezada como
um guia não confiável da vida, ligado com ao
nosso coração, isso chamou minha atenção.
Quais são alguns dos principais projetos com
os quais seu grupo de pesquisa no Instituto
Max Planck para o Desenvolvimento Humano
em Berlim atualmente trabalha, especialmente
aqueles mais diretamente relacionados com a
educação?
Um projeto trata de ensinar alfabetização
em saúde na escola fundamental. Deixe-me
ilustrar isso com um de nossos maiores pesos na
área da saúde: o câncer. Durante décadas, nós
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
tentamos combater o câncer com drogas. Foram
gastos bilhões em tecnologia e medicação. No
entanto, o efeito dos exames sobre o total da
mortalidade de câncer é zero para muitos deles,
e muito reduzido para alguns. O efeito de drogas
sobre a taxa de mortalidade, para os tipos de
câncer mais severos, está no prolongamento da
vida na ordem de algumas semanas ou meses,
com substancial perda de qualidade de vida.
A melhor forma de reduzir o peso do
câncer é a prevenção, ou seja, uma melhor
alfabetização em saúde e melhor estilo de vida.
Estima-se que 50% de todos os cânceres são
devidos ao comportamento: fumar cigarros (20
a 30% de todos os cânceres), obesidade devida
à ingestão de bebidas com açúcar, fast food, e
falta de atividade física (10 a 20%), e abuso de
bebidas alcoólicas (10% nos homens, 3% para
mulheres). Todos os números são dados dos
Estados Unidos).
No entanto, dizer a um jovem de 15 anos
para parar de fumar é tarde demais. Os hábitos de
comer, beber e de atividade física são formados
na fase inicial da infância. Por isso, um programa
para a alfabetização em saúde deve começar cedo,
iniciando-se no jardim de infância ou primeira
série e continuando até a puberdade. Para cada
euro colocado nesse tipo de programa, poderiam
ser salvas mais vidas do câncer e de outros
problemas de saúde do que pela mesma quantia
gasta no desenvolvimento de drogas.
O programa de alfabetização em saúde,
baseado na pesquisa disponível, deveria ter
como referência dois princípios básicos:
1. Iniciar cedo. Idade de 5 a 10 anos para as
crianças, quando o programa é iniciado antes
da puberdade.
2. Ser um programa integrado. A alfabetização
em saúde deveria ser ensinada pelos professores
regulares, não por um professor especial, e
ser integrada no esporte, na biologia e outras
disciplinas. Esse aspecto é importante porque os
professores representam um modelo, devendo
por isso ser parte do programa.
O conteúdo do currículo deveria incluir
três tipos de competências:
835
1. Habilidades como cozinhar e esportes.
2. Conhecimento médico, por exemplo: que
os cigarros contêm arsênico e outros venenos;
como se parece o pulmão de um fumante; e
como nosso corpo engorda.
3. Conhecimento psicológico, por exemplo:
como a propaganda está programada para impressionar pessoas jovens e como companhias
orientadas para o lucro manipulam as crianças
em direção a estilos de vida prejudiciais.
Seu trabalho é basicamente sobre o processo
de tomar decisões melhores em situações
de incerteza. O que você considera uma boa
decisão? Há algumas condições especiais para
tomar uma boa decisão?
Uma boa decisão melhora não apenas a
saúde, a situação financeira e o bem-estar do
indivíduo, mas também, de sua comunidade
como um todo. Para poder tomar boas decisões,
o que se necessita é conhecer as evidências
básicas, bem como o pensamento estatístico. E,
num mundo de incertezas, você também precisa
de boas heurísticas e intuições. E coragem:
Sapere Aude!
O conceito básico em sua teoria é racionalidade
ecológica, e o pressuposto é que a mente e o
ambiente funcionam como duas lâminas de
uma tesoura. Pareceu-me interessante, em
seu construto teórico, a ideia de racionalidade
ecológica, que busquei associar com o conceito
de ecologia de racionalidades, de Boaventura
de Sousa Santos, que significa que não há
apenas uma maneira de pensar e conhecer.
Quando você fala de racionalidade ecológica,
há algum tipo de valor implícito, como quando
falamos de movimento ecológico?
Deixe-me
começar
dizendo
que
moralidade não é algo que se encontra
simplesmente dentro do indivíduo, como a
maioria das teorias pressupõe, mas ela também é
externa. Você pode falar de um ambiente moral
ou imoral da mesma forma como você pode
836
falar de uma personalidade moral ou imoral. Há
sempre uma combinação entre ambas.
Isso de certa forma lembra Piaget, que lida
com a inteligência do indivíduo em termos
de adaptação entre organismo e ambiente.
Mas em sua teoria não há lugar para a ideia
de estruturas.
Piaget tem os estágios. Basicamente,
ele sugere que as crianças são de alguma
forma iluminadas na idade de doze ou
quatorze. Eu não acredito que seja dessa
forma. Com certeza, há avanços em termos de
estratégias cognitivas que as pessoas usam,
mas adolescentes, pelo menos nas sociedades
ocidentais, são dependentes de outros como
nunca antes. E, se eles se comportam de acordo
com a heurística “faça o que o seu grupo faz”,
o resultado pode ser avaliado como altamente
moral ou imoral, dependendo da situação na
qual eles usam a heurística.
Permita-me avançar para a contribuição de sua
teoria de racionalidade ecológica e heurísticas
para a cidadania. Ao ler seus artigos e analisar
alguns de seus livros, eu constato que uma das
contribuições seria o abandono da ideia de
onisciência, e a outra seria a importância de
saber identificar e compreender as heurísticas
que usamos, por exemplo, quando escolhemos
um candidato. Minha leitura está correta?
Sua percepção, aqui, está certa em
vários pontos. Primeiro, não existe algo
como certeza; superar a ilusão de certeza é o
primeiro passo em direção a uma cidadania
madura. Isso também significa que você
precisa parar de acreditar que todas as espécies
de expertos conhecem tudo. Esse é o primeiro
ponto. O segundo aspecto é que a democracia
funcionará apenas se o conhecimento for
distribuído entre o povo; e não funcionará
se alguns expertos alegarem saber tudo,
enquanto todos os demais virem novelas. Isso
é uma forma de democracia decadente, uma
Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
democracia que vai definhar. É necessário
criar, através da educação, um ambiente em
que as pessoas sejam inspiradas a pensar. A
pensar e não apenas a buscar o máximo de
prazer. A pensar e ter prazer em pensar.
Sobre sua pergunta a respeito da caixa
de ferramentas de heurísticas: essa caixa
de ferramentas é o que você necessita num
mundo de riscos desconhecidos. Se tudo fosse
conhecido, como num cassino, você poderia
calcular e usar pensamento estatístico. Você
não necessitaria de intuição ou de heurísticas.
Mas, para a maioria dos problemas, nem tudo
é conhecido. Por exemplo, com quem casar-se
ou o que fazer com o resto de sua vida. Aqui
heurísticas são úteis como instrumentos. Outras
ferramentas são analogias ou histórias. Mas,
num mundo de incertezas, nós necessitamos
de heurísticas e, por isso, não há apenas uma
delas, mas uma caixa de ferramentas com
muitas. No entanto, nenhuma heurística é útil
todo o tempo, o que leva à sua questão da
racionalidade ecológica. Tome, por exemplo,
a heurística “imita o teu grupo”. Isso pode ser
uma boa ideia se você tem o grupo certo, e uma
ideia muito ruim se você tem o grupo errado.
Mais concretamente, na prática educacional,
como poderíamos lidar com heurísticas? Seria
útil dizer “Vamos pensar sobre a forma como
escolhemos nossos candidatos”?
Sim, isso seria um autoexperimento. Um
norte-americano, por exemplo, poderia dizer “Eu
sou contra Obama porque meus pais ou meu
grupo de amigos são contra ele”. Esse insight pode
ser útil. Então, você pergunta a si mesmo: “Eu
de fato quero ser essa pessoa, que apenas reflete,
espelha o ambiente, sem sequer se esforçar para
pensar, ou eu quero fazer algo diferente?”
Na pesquisa-ação e pesquisa-participante, que
são metodologias que procuro usar nas minhas
pesquisas, a autorreflexividade coletiva é um dos
critérios básicos de validade e qualidade da pesquisa. Isso estaria de acordo com esse critério?
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
Sim, é autorreflexividade, mas o mesmo
princípio pode ser usado com o seu grupo,
seus colegas. A questão aqui é pensar sobre as
heurísticas que as pessoas usam. Isso se aplica
às coisas do cotidiano, por exemplo, quando
se faz o pedido de um prato no restaurante. Eu
costumo dar muitas palestras em muitos lugares
ao redor do mundo e quase sempre acabo
num restaurante no qual nunca estive antes
e provavelmente jamais estarei novamente,
e eu aprendi a nem me preocupar em abrir o
cardápio. Eu uso uma heurística simples que
funciona melhor do que buscar maximizar, isto
é, tentar avaliar todas as alternativas. Se é um
bom restaurante, eu pergunto ao garçom o que
ele comeria aqui nessa noite. Eu não pergunto o
que ele recomendaria, pois isso o leva a pensar:
“Oh, esse é um alemão e eu vou sugerir algo de
que alemães talvez gostem”. Eles sabem o que
há na cozinha quando eu pergunto. Isso é muito
simples e aproveita o conhecimento de outros
que sabem mais sobre o assunto. Muitos alemães,
em comparação com outras nacionalidades, têm
mais problemas com imitação.
As heurísticas não podem ser reduzidas a
simples truques? Eu sei que sua teoria de
forma alguma é simplista, mas eu gostaria
de compreender melhor o que você entende
por simples. Nós poderíamos inclusive falar
de uma “estética do simples”. Como isso se
relaciona com complexidade, que é uma
ideia que, a partir de Edgar Morin, encontra
importante eco no pensamento atual.
Simplicidade permite transparência, e
transparência permite confiança, porque você
terá menos probabilidade de ser enganado.
Sistemas complexos são diferentes. Por
exemplo, na Alemanha e nos Estados Unidos,
como em muitos outros países, nós temos
sistemas de taxação que ninguém entende,
nem mesmo meu contador. Essa não é a
forma como a democracia deveria funcionar.
Não há necessidade de um sistema tão
complexo, exceto pelos furos no sistema dos
837
quais grupos de interesse tiram vantagem.
Um sistema simples é transparente. Você
sabe exatamente onde estão os seus pontos
fortes e as suas fragilidades, e cada um
pode entender o que se passa. Assim, eu não
acredito que isso deveria ser considerado um
truque. Na realidade, torna-se evidente que a
complexidade muitas vezes é algo de que não
nos beneficiamos. Tanto assim que ninguém
pode de fato conhecer o resultado. Eu trabalho
com o Banco da Inglaterra e os sistemas de
regulação como “Basel 2“ e “Basel 3”3 são tão
complexos que todos no banco a quem eu tenho
perguntado respondem: “Ninguém entende as
consequências de sua implementação ou não”.
Isso é o que nos é dito: “É muito difícil para
você entender”.
Há uma compreensão em nossa
sociedade de que, se nós enfrentamos um
problema complexo, temos que buscar soluções
complexas. E, se elas não funcionam, nós
tornamos o assunto ainda mais complexo, em
vez de fazer uma pergunta diferente: há uma
solução simples para esse problema complexo
que talvez não seja perfeita, mas que funciona
melhor? Jamais será absolutamente perfeita.
Permita-me retornar à questão do simples em
termos de saúde, que é uma de suas áreas de
estudo. Não há um risco maior de erro se o
médico tem apenas alguns processos simples
para avaliar o paciente? Ele olha para dois
ou três fatores e toma a sua decisão, que,
para o paciente, pode ser uma questão de
vida ou morte. [Nesse momento da entrevista,
juntaram-se a nós dois pesquisadores da
equipe de Gigerenzer.]
A resposta é: o médico pode estar certo
ou errado se ele usa heurísticas. É disso que
trata o estudo da racionalidade ecológica. Nesse
caso, os cálculos de uma sofisticada regressão
3- Basel 1, 2 e 3 são conjuntos de regulamentações internacionais
editadas pelo Basel Committee on Bank Supervision.
838
estatística ajudariam o médico a tomar uma
decisão melhor sobre o estado de sua saúde
do que olhar para apenas uma ou duas coisas?
Heurísticas também são interessantes para
questões financeiras. Por exemplo, para a
avaliação de crédito. Se você fosse um banqueiro
e eu viesse a você e solicitasse um milhão de
dólares para abrir um novo negócio, então você
teria o mesmo problema. Há diferentes maneiras
de lidar com o assunto. Alguns têm um grande
volume de dados e procuram acumular todas as
informações; outros são como um bancário em
Berlim, que disse: “Eu apenas olho para duas
coisas e é isso”.
Mas, para chegar a esse ponto, há muito
conhecimento prévio. Um professor pode
olhar para um trabalho e, após ler as primeiras
linhas, ele poderá dizer se é bom ou ruim, mas
,para poder fazer isso, ele teve que passar por
um processo complexo.
Eu diria que esse professor tem
experiência. Mas o que na realidade são
esses processos nós não sabemos. Nós os
denominamos de complexos porque nós não
sabemos. E nós temos evidência de outros
estudos de que problemas complexos podem ser
resolvidos por heurísticas, apesar de que cada
um que não conhece as heurísticas diria que as
soluções devem ser complexas.
No sentido exposto, é evidente então que o
simples não é o fácil. Permita-me abordar
outro tema. O que o senhor diria sobre
pensamento dissonante? Um pensamento
que não representa apenas uma acomodação,
mas que é inovador, divergente? Como
acontecem inovações?
Essa é uma boa pergunta. Certamente
analogias são um bom exemplo. O que nós
tentamos fazer é criar um ambiente que
facilita a inovação. Nós temos pessoas de
muitas disciplinas diferentes. Por exemplo,
Konstantinos é engenheiro e Timo, um
Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
pesquisador visitante, é matemático [referese aos dois colegas que haviam se juntado
a nós]. Isso é muito importante. Muito da
inovação, eu penso, tem a ver com criar um
ambiente em vez de colocar algo na cabeça
das pessoas. E com ter um grau suficiente
de heterogeneidade, pessoas com diferentes
métodos que devem ser postos junto para
analisar os mesmos problemas. Nós também
temos um pequeno ritual aqui. Todos os dias,
às 16 horas, temos um café com o grupo todo
(você está cordialmente convidado), para que
as pessoas se encontrem e conversem entre si.
E qual seria a relação entre heurísticas e intuição?
A intuição é definida como “conhecimento
sentido” (felt knowledge), que é facilmente
acessível à consciência, mas que não podemos
explicar. Nós não sabemos se todas as intuições
são baseadas em heurísticas, mas sabemos
que algumas delas podem ser analisadas e são
baseadas em heurísticas bastante simples. A
mesma heurística pode ser usada intuitiva ou
deliberadamente. A relação com inovação, nesse
sentido, é interessante. Eu faço muitas palestras
para pessoas do comércio e muitas delas têm
problemas com inovação e gut feelings, uma
expressão que eu uso como sinônimo de intuição.
Elas desconfiam de qualquer gut feeling e isso é
um obstáculo para a inovação. Além do mais, há
aquelas que pedem justificativas para qualquer
nova ideia; isso é o oposto de uma estratégia
intuitiva. No entanto, o processo intuitivo de
tomar decisões não é diferente no mundo dos
negócios, no dos esportes ou das artes.
do olhar – como pegar uma bola em movimento
– pode ser usada deliberadamente, mas também
de forma inconsciente. Isso é porque a distinção
entre esses dois sistemas mentais, que liga as
heurísticas ao inconsciente, não faz sentido. Se
você é um ser onisciente, você não necessita de
intuição. Se você é deus, você não necessita de
nada; você nem precisa pensar.
Enquanto estava no MPIB (Max Planck Institut
für Bildungsforschung), eu me interessei pelo
trabalho de dois grupos de pesquisa nos quais
eu percebo uma contribuição importante
para a educação da cidadania. Um deles é o
de racionalidade ecológica e o outro é o da
história das emoções, em que as emoções são
vistas como fenômenos históricos e culturais.
Percebo certa relação entre ambos.
Eu aprecio que você esteja refletindo
sobre a aproximação entre esses dois grupos.
Há hoje uma vasta literatura que fala que
vivemos num mundo de incertezas. Qual seria
a relação dessa literatura com a sua pesquisa?
As heurísticas seriam, então, um campo
intermediário entre intuição e o desejo de
uma racionalidade onisciente?
Sim, há muita literatura, a maior parte
da sociologia. Eu distingo risco de incerteza,
em que as alternativas são amplamente
desconhecidas. A teoria das decisões em boa
medida ignorou as incertezas. Ela vai até a
ambiguidade, que é quando você não conhece
as probabilidades, mas conhece as alternativas,
todas as consequências. Isso é típico para a
economia, onde tudo é construído sobre a ideia
de risco, e, se os riscos não são conhecidos,
eles os reduzem para se encaixar no velho
cálculo de risco. Eu acredito que somos dos
poucos centros no mundo que procuram lidar
matematicamente com a incerteza.
É levemente diferente. Eu diria que
decisões intuitivas são, ao menos parcialmente,
o mecanismo de heurísticas. Mas a mesma
heurística pode ser usada tanto consciente
quanto intuitivamente. Por exemplo, a heurística
Eu vejo muitas pesquisas no campo da saúde
– sobre decisões de pacientes e médicos – e da
economia que têm a ver basicamente com o
mercado. Como os profissionais da educação
recebem a sua teoria e lidam com ela?
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
839
Você pode tomar, por exemplo, nosso
trabalho sobre como ensinar pensamento
estatístico ao usar certas representações, o que
também é uma perspectiva da racionalidade
ecológica. Essa ideia entrou num razoável número
de manuais de estatística usados no ensino médio
na Alemanha. Isso é um sinal de sucesso aqui. Mas,
além disso, eu penso que o pensamento estatístico
é muito mais importante que a geometria ou a
álgebra para toda a vida depois da escola.
A isso você se refere como matemática da
certeza?
Sim. Isso é que é ensinado. Tudo que é certo
é ensinado. No momento em que a incerteza entra, mesmo que seja sobre riscos desconhecidos...
[Timo: Mas muitas coisas no mundo são certas. Eu
penso nas ruas de Berlim. Elas sempre estão ali. Eu
não entendo por que você é contra a geometria.]
Eu não sou contra. Eu estou falando de priorização.
Evidentemente você pode fazer ambos.
Levemos a sua reflexão para entender como
lidamos com teorias. Por exemplo, no campo
da educação, muitas vezes temos visões muito
fechadas das teorias que contrapomos umas
às outras.
840
Muitas teorias são tão verdadeiras que
elas não podem estar erradas. E, assim, elas
funcionam como canais nos quais você se
encontra, e mesmo assim você não sabe o que
fazer. O que nós buscamos fazer é desenvolver
instrumentos que realmente mudam as coisas.
Por exemplo, nós sabemos que muitas pessoas
têm o que nós chamamos de ansiedade de
matemática ou estatística. Elas não sabem
nada de estatística, o que muitas vezes se
deve a um certo tipo de representação, a
exemplos inúteis e cansativos que elas não
entendem. E se você representa, por exemplo,
uma inferência chamada Bayesin (Thomas
Bayes) como probabilidade incondicional,
você pode ter certeza de que 90% dos ouvintes
estarão interessados porque no fim dirão: “Ah,
eu consigo fazer isso”. E as probabilidades
condicionais virão mais tarde. Assim, você
sempre tem uma rede de segurança onde, se
você não entende, você pode voltar ao tema.
Isso também tem a ver com ajudar as pessoas
a ter uma relação emocional melhor – ajudar
crianças a aprender a lidar com riscos e
incertezas, e a distinguir entre ambas. Uma
última nota sobre isso: eu penso que heurísticas
e estatística deveriam ser ensinadas desde a
primeira série.
Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
Publicações do autor (seleção):
Livros
GIGERENZER, Gerd; MUIR GRAY, J. A. (Eds.). Better doctors, better patients, better decisions: envisioning health care 2020.
Cambridge, MA: MIT Press, 2011.
GIGERENZER, Gerd; HERTWIG, Ralph; PACHUR, Thorsten (Eds.). Heuristics: the foundations of adaptive behavior. New York: Oxford
University Press, 2011.
GIGERENZER, Gerd. Rationality for mortals: how people cope with uncertainty. New York: Oxford University Press, 2008.
GIGERENZER, Gerd. Korean translation: Books 21 Publishing Group: Publishing House VEDA.
GIGERENZER, Gerd. Gut feelings: the intelligence of the unconscious. New York: Viking Press, 2007.
GIGERENZER, Gerd. Audio book: Tantor Media, 2007. GIGERENZER, Gerd. Ebook: Kindle edition, 2008. UK edition: Penguin/Allen Lane, 2007.
Tradução para o alemão: Bauchentscheidungen: die Intelligenz des Unbewussten und die Macht der Intuition. Bertelsmann, 2007.
Tradução para o holandês: De kracht van je intuitie. Kosmos, 2007.
Tradução para o espanhol: Decisiones instintivas: la inteligencia del inconsciente. Ariel, 2008.
Tradução para o croata: Snaga intuicije: inteligencija nesvjesnog. Algoritam, 2008.
Tradução para o italiano: Decisioni intuitive. Raffaello Cortina, 2009.
Tradução para o polonês: Intuicja: intelligencja nieswiadomosci. Prószinsky i S-ka, 2009).
Tradução para o francês: La genie de l’intuition. Editions Belfond, 2009.
Tradução para o chinês: China Renmin University Press, 2009.
Edição brasileira: O poder da intuição: o inconsciente dita as melhores decisões. Best Seller, 2009.
GIGERENZER, Gerd; ENGEL, Christoph (Eds.). Heuristics and the law. DAHLEM WORKSHOP ON HEURISTICS AND THE LAW, 94.,
Berlin, June 6-11, 2004. Report of the… Cambridge, MA: MIT Press, 2006.
GIGERENZER, Gerd. Calculated risks: how to know when numbers deceive you. New York: Simon & Schuster, 2002.
Edição no Reino Unido: Reckoning with risk: learning to live with uncertainty. Penguin Books, 2002, Kindle edition 2003.
Tradução para o alemão: Das Einmaleins der Skepsis: über den richtigen Umgang mit Zahlen und Risiken. Berlin Verlag, 2002.
Tradução para o italiano: Quando i numeri ingannano: imparare a vivere con l‘incertezza. Raffaello Cortina, 2003.
Tradução para o japonês: Hayakawa Publishers, 2003.
Tradução para o português: Calcular o risco: aprender a lidar com a incerteza. Gradiva, 2005.
Tradução para o francês: Penser le risque: apprendre a vivre dans l’incertitude. Editions Markus Haller, 2009.
Tradução para o coreano: Sallim Publishing Co.
GIGERENZER, Gerd; SELTEN, Reinhard (Eds.). Bounded rationality: the adaptive toolbox. Cambridge, MA: MIT Press, 2001.
GIGERENZER, Gerd. Adaptive thinking: rationality in the real world. New York: Oxford University Press, 2000.
Tradução para o chinês: Shanghai Educational Publishing House, 2006.
GIGERENZER, Gerd; TODD, Peter M.; ABC Research Group. Simple heuristics that make us smart. New York: Oxford University
Press, 1999.
KURZ-MILCKE, Elke; GIGERENZER, Gerd (Eds.). Experts in science and society. New York: Kluwer: Plenum, 2004.
HELL, Wolfgang; FIEDLER, Klaus; Gigerenzer, Gerd (Eds.). Kognitive täuschungen = Cognitive illusions. Heidelberg, Germany:
Spektrum, 1993.
TODD, Peter M.; GIGERENZER, Gerd; ABC Research Group. Ecological rationality: intelligence in the world. New York: Oxford
University Press, 2012.
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
841
Artigos e capítulos de livro:
ANDERSON, Britta L.; GIGERENZER, Gerd; PARKER, Scott; SCHULKIN, Jay. Statistical literacy in obstetricians and gynecologists.
Journal of Healthcare Quality. doi:10.1111/j.1945-1474.2011.00194, 2012.
BRIGHTON, Henry; GIGERENZER, Gerd. Are rational actor models “rational” outside small worlds? In: OKASHA, Samir; BENMORE,
Ken. (Eds). Evolution and rationality: decisions, co-operation and strategic behavior. Cambridge: Cambridge University Press.
p. 84-109.
GAISSMAIER, Wolfgang; GIGERENZER, Gerd. When misinformed patients try to make informed health decisions. In: GIGERENZER,
Gerd; GRAY, J. A. Muir (Eds.). Better doctors, better patients, better decisions: envisioning health care 2020. Cambridge, MA:
MIT Press, 2011. p. 29-43.
GAISSMAIER, Wolfgang; GIGERENZER, Gerd. 9/11, act II: a fine-grained analysis of regional variations in traffic fatalities in the
aftermath of the terrorist attacks. Psychological Science, v. 23, n. 12, p. 1449-1454, nov. 2012.
GAISSMAIER, Wolfgang; GIGERENZER, Gerd. Statistical illiteracy undermines informed shared decision making. Zeitschrift für
Evidenz, Fortbildung und Qualität im Gesundheitswesen, v.102, n. 7, p. 411-413, jan. 2008.
GARCÍA-RETAMERO, Rocío; TAKEZAWA, Masonari; GIGERENZER, Gerd. Incidencia del aprendizaje grupal en los procesos de
adquisición de información. Psicothema, v. 21, n. 3, p. 369-375, 2009.
GIGERENZER, Gerd. Outsourcing the mind. In: BROCKMAN, J. (Ed.). Is the Internet changing the way you think? New York:
Harper, 2012, p. 147-149.
GIGERENZER, Gerd; STURM, Thomas. How (far) can rationality be naturalized? Synthese, v. 187, n.1, p. 243-268, Jul. 2012.
GIGERENZER, Gerd. Risk literacy. In: John Brockman (Ed.). This will make you smarter. New York: Harper Perennial, 2012.
p. 259-261.
GIGERENZER, Gerd. Rationalität, heuristik und evolution. In: GERHARDT, Volker; LUCAS, Klaus; STOCK, Günther (Eds.). Evolution:
theorie, formen und konsequenzen eines paradignas in natur, technik und kultur. Berlin: Akademie-Verlag, 2011. p. 195-208.
GIGERENZER, Gerd. Moral satisficing: rethinking moral behavior as bounded rationality. Topics in Cognitive Science, v. 2,
n. 3, p. 528-554, Jul. 2010.
GOLDSTEIN, Daniel G.; GIGERENZER, Gerd. The beauty of simple models: themes in recognition heuristic research. Judgment and
Decision Making, v. 6, n. 5, p. 392-395, Jul. 2011.
HERTWIG, Ralph; GIGERENZER, Gerd. Behavioral inconsistencies do not imply inconsistent strategies. Frontiers in Cognition,
v. 2, n. 292, p. 1-3, nov. 2011.
HICKS, John S.; BURGMAN, Mark A.; MAREWSKI, J. N.; FIDLER, Fiona M.; GIGERENZER, Gerd. Decision making in a human
population living sustainably. Conservation Biology, v. 26, n. 5, p. 760-768, Oct. 2012.
MAREWSKI, Julian; GIGERENZER, Gerd. Entscheiden. In: SAGES, W. (Ed.). Management-diagnostik. 4. ed. Göttingen: Hogrefe,
2012.
MAREWSKI, Julian N.; GIGERENZER, Gerd. Heuristic decision making in medicine. Dialogues in Clinical Neuroscience, v. 14,
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VOLZ, Kirsten G.; GIGERENZER, Gerd. Cognitive processes in decision under risk are not the same as in decisions under uncertainty.
Frontiers in Decision Neuroscience, v. 6, n. 105, 2012.
842
Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
TODD, Peter M.; GIGERENZER, Gerd. What is ecological rationality? In: TODD, Peter M.; Gigerenzer, Gerd; ABC Research Group.
Ecological rationality: intelligence in the world. New York: Oxford University Press, 2012. p. 3-30.
Danilo R. Streck é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS).
Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
843
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845
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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Apenas as obras citadas ao longo do texto devem
figurar na bibliografia, a qual deve constar, sob o título de Referências, ao final do artigo
e em página separada.
Exemplos:
FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São
Paulo: FFCL/USP, 1954.
FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana.
São Paulo: FFCL/USP, 1960.
FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975.
FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
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MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand
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PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.
PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro:
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PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana:
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VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação.
Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008.
VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000.
Métodos de estatísticas
Quando utilizados, os métodos estatísticos precisam ser descritos com o pormenor necessário
para permitir o acesso aos dados originais e a verificação dos resultados apresentados por um leitor
versado no assunto; ao mesmo tempo, deve-se evitar linguagem excessivamente técnica e apresentá-los com suficiente clareza de modo a favorecer a compreensão de um leitor não especializado.
Tal solicitação aos autores requer providências como: procurar, sempre que possível, quantificar os
resultados e apresentá-los com os correspondentes indicadores de erro de medição ou de incerteza
(por exemplo, intervalos de confiança); evitar basear-se apenas em testes de inferência estatística,
que não veiculam informação quantitativa relevante; discutir a elegibilidade das unidades de
experimentação; fornecer informação pormenorizada sobre a aleatorização e sobre as observações;
discutir a razoabilidade dos resultados e relatar possíveis limitações do método utilizado; especificar
os programas informáticos utilizados; restringir quadros e figuras à quantidade necessária para
explicitar a fundamentação do artigo e sua solidez; evitar quadros com muitos tópicos e duplicação
de dados; definir termos estatísticos, abreviaturas e símbolos utilizados no artigo.
Avaliação inicial
O manuscrito passa por uma apreciação preliminar feita pela comissão editorial, após a qual,
ou será devolvido para o/a autor/a com observações, ou enviado diretamente para pareceristas
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contribuindo para a construção de conhecimentos dentro deste campo. A partir dessa apreciação,
a comissão editorial decide se uma avaliação externa integral é justificada.
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são: conteúdo teórico e empírico, domínio da literatura científica, atualidade do tema, contribuição
para a área de conhecimento específica, originalidade da abordagem, estrutura do texto e qualidade
da redação. Os avaliadores poderão recomendar a aceitação integral do texto, indicar recusa
ou, ainda, sugerir modificações para nova avaliação. A Comissão Editorial poderá submeter as
847
sugestões de reformulações ao autor e o artigo, já reformulado, retornará aos mesmos avaliadores
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848
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2002 of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only works cited in the
text should be included in the reference list, under the heading References, at the end of
the article and on a separate page.
Examples:
FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São
Paulo: FFCL/USP, 1954.
FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana.
São Paulo: FFCL/USP, 1960.
FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975.
FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001.
MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand
Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso
em: 25 fev. 2011.
PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.
PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980.
PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana:
perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383.
VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação.
Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008.
850
VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000.
Statistical methods
When employed, statistical methods must be described in sufficient detail to allow a competent
reader access to the original data and verification of the results presented, whilst avoiding excessively
technical language and presenting results with enough clarity so as to facilitate their understanding
by a non-specialized reader. This guidance to authors requires steps such as: seeking, as much as
possible, to quantify the results and present them with corresponding indicators of measurement error
or uncertainty (for example, confidence intervals); avoiding relying solely on statistical inference tests
that convey no relevant quantitative information; discussing the eligibility of the experimentation
units; supplying detailed information about randomization and about the observations; discussing
the reasonableness of the results, as well as the possible limitations of the method used; specifying
the software employed; restricting tables and graphics to the amount necessary to explain the foundations of the article and their robustness; avoiding tables with too many topics and duplication of
data; defining statistical terms, abbreviations and symbols used in the article.
Initial assessment
Manuscripts undergo a preliminary assessment by the editorial board. Then they are
returned to their authors with observations, or sent directly to external referees. The purpose of
this initial phase is to assess whether the manuscript fits the scope and guidelines of Education
and Research and whether it has potential for dialogue with the educational field, contributing to
the knowledge within this field. Using this assessment, the editorial board decides whether a full
external review is justified.
Peer review process
The articles received for their eventual publication in Educação e Pesquisa will be
previously read by the Editorial Board. The articles that do not meet the editorial requirements
shall be returned, and the rest of them will be forwarded to three evaluators for their analysis. At
the most, one of the evaluators will be a member of the School of Educaton of the Universidade
de São Paulo, to which the journal is subordinated. All evaluators have at least a doctor’s degree
and belong to various scientific institutions. The names of the authors, the evaluators and the
institutions they belong to will remain undisclosed throughout the entire process. The journal
publishes annually the names of its body of evaluators ad hoc.
The aspects that guide the evaluation of the articles are: theoretical and empirical content,
author’s knowledge of scientific literature, current relevance of the topic, contribution to the specific
area of knowedge, originality of the approach, text structure and writing style. The evaluators may
recommend the integral acceptance of the text or its rejection, or they may suggest modifications
for a new evaluation. The Editorial Board may submit such suggestions to the author of the article,
and after the changes have been included, the Board will send the article again to the evaluators
for a final evaluation
851
Authorship
Author is understood here as anyone who has effectively taken part in the conception of the
study, in the development of the experimental sections, in the analysis and interpretation of data
and in the final writing. It is recommended that the total number of authors should not be greater
than four. If the number of authors is larger than that, the editor in charge must be informed of
the degree of participation of each author. In the case of doubt about the compatibility between
the number of authors and the results presented, the Editorial Board has the right to question the
participation of authors and to refuse submission at its discretion.
By submitting an article for publication in Educação e Pesquisa the author agrees to the
following terms:
1. The author holds the article copyrights, but its publication in the journal automatically
implies the author’s agreement to release its complete copyright to the journal’s first issue,
without financial compensation.
2. The ideas and opinions expressed in the article are the author’s exclusive responsibility
and they do not necessarily reflect the opinions of the journal.
3. After the article’s first publication, the author is authorized to assume additional contracts,
independent from the journal, to publish or present the work through other means (e.g.
in an institutional repository or as a book chapter), as long as a complete quote of the
authorship and of the original publication are provided.
4. The author of an article published in the journal has the right to, and is encouraged to,
distribute the work on-line, always quoting its first publication in the journal.
Conflicts of interest and research ethics
When the research developed or the publication of the article may raise doubts about
potential conflicts of interest, the author should declare in an endnote that no links to funding
agencies or to commercial or political institutions have been omitted. Similarly, the institution to
which the author is associated, or that has collaborated in the conducting of the study, should also
be mentioned to guarantee that there are no conflicts of interest with the results being presented.
It is also necessary to inform that the interviews and experiments involving human beings have
followed the ethical procedures established for scientific research.
The names and email addresses entered in this journal site will be used exclusively for the
stated purposes of this journal and will not be made available for any other purpose or to any
other party.
Contact:
Faculdade de Educação - USP
Educação e Pesquisa
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05508-040 - São Paulo/SP
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852
Instrucciones a los autores
Educação e Pesquisa publica solamente artículos inéditos en el área de Educación y no
acepta trabajos que hayan sido enviados simultáneamente a libros u otros periódicos nacionales o
extranjeros. Los trabajos se deben enviar a través de la página de la revista en el Sistema SciELO
de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php).
El plazo para respuesta (aceptación o rechazo) varía según la complejidad de las evaluaciones
y posibles alteraciones sugeridas y realizadas. Las fechas de recibimiento y aprobación de cada
colaboración se informarán en el texto publicado. Le corresponde al Comité Editorial definir, en
cada número de la revista, los criterios para reunir los artículos ya aprobados.
Directrices para la presentación de trabajos
Al proponer un artículo, la identificación del (de los) autor(es) y la pertenencia institucional
se deben rellenar en los espacios propios del Sistema SciELO y no deben figurar en el cuerpo del
texto, que se enviará para evaluación. No se aceptará ninguna referencia que le permita al lector
crítico inferir indirectamente la autoría del trabajo. Las informaciones autorales se registran a
parte y solamente los editores tienen acceso a ellas. De esa forma, el Comité Editorial garantiza
el anonimato de autores y evaluadores.
Al redactar el artículo, se deben considerar las siguientes orientaciones:
• El texto se puede presentar en portugués, español o inglés, se debe digitar en procesador
de texto Word for Windows, en Times New Roman 12 pto, espacio 1,5. Todas las páginas
del original se deben numerar secuencialmente. El texto debe tener como mínimo 35.000
caracteres y como máximo 50.000, considerando espacios y excluyendo el resumen.
• El título del artículo debe tener como máximo 15 palabras.
• El resumen debe contener entre 200 y 250 palabras y explicitar, con carácter informativo y
sin enumeración de tópicos, los siguientes ítems: tema general y problema de la investigación;
objetivos y/o hipótesis; metodología empleada; principales resultados y conclusiones. Se
recomienda el uso de un único párrafo, voz activa y tercera persona del singular, frases
concisas y afirmativas. Se deben evitar: neologismos, citaciones bibliográficas, símbolos
y contracciones que no sean de uso corriente, así como fórmulas, ecuaciones, diagramas,
etc. que no sean absolutamente necesarios.
• Se deben incluir de 3 a 5 palabras clave.
• Los agradecimientos (opcionales) se deben mencionar junto al título, pero en nota de pie
de página y sin ninguna referencia, directa o indirecta, a la autoría.
• Tablas, cuadros, gráficos y figuras (fotos, dibujos y mapas) deben estar numerados con
números arábigos según la secuencia en que aparezcan, siempre referidos en el cuerpo del
texto y encabezados por su respectivo título. Inmediatamente debajo de las figuras deben
constar sus respectivos subtítulos. Los mapas deben presentar escalas y subtítulos gráficos.
• Las imágenes deben figurar en blanco y negro y deben estar digitalizadas electrónicamente
en formato JPG con resolución a partir de 300 ppp. Deben presentarse en dimensiones
853
que permitan ampliarlas o reducirlas sin perjudicar su legibilidad. Todas las imágenes
deben enviarse separadamente, en sus archivos originales. El nombre de cada archivo debe
corresponder al nombre de la imagen (por ejemplo: Gráfico 1).
• Notas de pie de página de carácter explicativo se deben evitar. Pueden utilizarse
únicamente cuando sean imprescindibles para la comprensión del texto y deben tener la
extensión máxima de tres líneas. Las notas deben estar numeradas con números arábigos
según la secuencia en que aparezcan en el texto.
• Las citas en el cuerpo del texto deben obedecer a los siguientes criterios:
a) Citas textuales que tengan hasta tres líneas se deben incorporar al párrafo, transcritas
entre comillas y acompañadas de las siguientes informaciones entre paréntesis: apellido
del autor de la cita, año de publicación y número de página;
b) Citas textuales que tengan más de tres líneas deben estar en párrafo aislado, con margen
izquierdo de 4 cm, letra tamaño 11 y sin comillas;
c) Si no hay cita textual sino cita bibliográfica, el apellido del autor tiene que estar indicado
entre paréntesis, con letras mayúsculas, junto al año de la publicación mencionada.
• Las referencias deben obedecer a la norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, de la
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Solamente las obras mencionadas a lo
largo del texto deben figurar en la bibliografía, que debe constar con el título de Referencias,
al final del texto y en página separada.
Ejemplos:
FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São
Paulo: FFCL/USP, 1954.
FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana.
São Paulo: FFCL/USP, 1960.
FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975.
FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001.
MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand
Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso
em: 25 fev. 2011.
PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.
PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980.
PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana:
perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383.
VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação.
Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008.
854
VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000.
Métodos y estadísticas
Cuando utilizados, los métodos estadísticos se tienen que describir con el detalle necesario
para permitir el acceso a los datos originales y la comprobación de los resltados presentados
por un lector versado en el asunto; por otro lado, se debe evitar un lenguaje excesivamente
técnico y presentarlo con suficiente claridad de modo a favorecer la comprensión de un lector no
especializado. Tal solicitud a los autores requiere providencias tales como: buscar, siempre que
posible, cuantificar los resultados y presentarlos con los correspondientes indicadores de error
de medición o de incertidumbre (por ejemplo, intervalos de confianza); evitar basarse solamente
en tests de inferencia estadística, que no vehiculan información cuantitativa relevante; discutir
la elegibilidad de las unidades de experimentación; proveer información pormenorizada sobre lo
aleatorio y sobre las observaciones; discutir la razonabilidad de los resultados y dar a conocer
posibles limitaciones del método utilizado; especificar los programas informáticos empleados;
restringir cuadros y figuras a la cantidad necesaria para explicitar la fundamentación del artículo
y su solidez; evitar cuadros con demasiados tópicos y duplicación de datos; definir términos
estadísticos, abreviaturas y símbolos utilizados en el artículo.
Evaluación Inicial
El artículo pasa por una valoración preliminar realizada por la comisión editorial, después
de la cual, puede ser devuelto al autor /a con observaciones, o, enviado directamente para
evaluadores externos/as. El objetivo de esa etapa inicial es evaluar si el artículo se ajusta a las
directrices y alcance de Educação e Pesquisa, así como su potencial de diálogo con el campo
educacional, contribuyendo en la construcción de conocimientos dentro de este campo. A partir
de esa apreciación, la comisión editorial decide si se justifica una evaluación externa integral.
Proceso de revisión por pares
Los artículos enviados para eventual publicación en la Educação e Pesquisa serán previamente
evaluados por el Comité Editorial. Los que no estén de acuerdo con los criterios editoriales de la
revista se devolverá a sus autores y los demás enviados para análisis de tres evaluadores, como
máximo uno de ellos será miembro de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo,
a la que la revista está subordinada. Los evaluadores consultados pertenecen a instituciones
científicas diversas y tendrán, como mínimo, el título de doctor. Los nombres de los autores, de
los evaluadores y de las instituciones a que pertenecen permanecen anónimos durante todo el
proceso. La revista publica a cada año los nombres de sus evaluadores ad hoc.
Los aspectos que orientan la evaluación de los originales enviados a los pares para el
análisis son: contenido teórico y empírico, dominio de la literatura científica, actualidad del tema,
contribución para el área de conocimiento específica, originalidad del abordaje, estructura del
texto y calidad de redacción. Los evaluadores podrán recomendar la aceptación del texto en su
íntegra, o su rechazo, o aun sugerir modificaciones para nueva evaluación. El Comité Editorial
podrá someter las sugerencias de reformulación al autor y el artículo, ya reformulado, retornará
a los mismos evaluadores para una evaluación final.
855
Autoría
Se entiende por autor todo el que haya participado efectivamente de la concepción del
estudio, del desarrollo de la parte experimental, del análisis e interpretación de datos y de la
redacción final. Se recomienda no exceder el número total de cuatro autores. En el caso de
que la cantidad de autores exceda ese número, se debe informar al editor responsable el grado
de participación de cada uno. Si hay alguna duda sobre la compatibilidad entre el número de
autores y los resultados presentados, el Comité Editorial se reserva el derecho de cuestionar las
participaciones y de rechazar la sumisión del artículo si lo juzga pertinente.
Al someter un artículo para publicación en Educação e Pesquisa el autor está de acuerdo
con los siguientes términos:
1. El autor mantiene los derechos sobre el artículo, pero su publicación en la revista implica,
automáticamente, la cesión total y exclusiva de los derechos de autor para la primera
edición, sin pago.
2. Las ideas y opiniones expresadas en el artículo son de exclusiva responsabilidad del
autor y no reflejan necesariamente las opiniones de la revista.
3. Después de la primera publicación, el autor tiene autorización para asumir contratos
adicionales, independientes de la Revista, para la divulgación del trabajo por otros medios
(ex.: publicar en repositorio institucional o como capítulo de libro), desde que hecha la cita
completa de la misma autoría y de la publicación original.
4. El autor de un artículo ya publicado tiene permiso y es estimulado a distribuir su trabajo
online, siempre con las debidas citas de la primera edición.
Conflictos de interés y ética de investigación
En el caso de que la investigación desarrollada o la publicación del artículo puedan
generar dudas en cuanto a potenciales conflictos de interés, el autor debe declarar en nota final
que no se han omitido cualesquiera relaciones con órganos de financiamiento ni tampoco con
instituciones comerciales o políticas. De la misma manera, se debe mencionar la institución a la
que el autor esté vinculado, o que haya colaborado en la ejecución del estudio, evidenciando
que no hay cualquier tipo de conflictos de interés con el resultado que se presenta. También es
necesario informar que las entrevistas y experimentos que impliquen a seres humanos obedezcan
a los procedimientos éticos establecidos para la investigación científica.
Los nombres y las direcciones informados en esta revista serán utilizados exclusivamente
para los servicios dados por la publicación, no estarán disponibles a otros propósitos o a terceros.
Correspondencia:
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Educação e Pesquisa
Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca
05508-040 - São Paulo/SP
Tel/Fax: (11) 3091-3520
E-mail: [email protected]
856
Leia também / See also
Educação e Pesquisa
revista
da
faculdade
de
educação
da
usp
Sumários
Educação e Pesquisa
v. 40, n. 2, abr./jun. 2014
Educação e Pesquisa
v. 40, n. 1, jan./mar. 2014
Artigos
Artigos
PACKER, Abel Laerte. A eclosão dos periódicos do Brasil e
cenários para o seu porvir, p. 301-323.
REGO, Teresa Cristina. Produtivismo, pesquisa e comunicação
científica: entre o veneno e o remédio, p. 325-346.
BENCHIMOL, Jaime L.; CERQUEIRA, Roberta C.; PAPI,
Camilo. Desafios aos editores da área de humanidades
no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e
experiências, p. 347-364.
ALVES, Mariana Gaio; AZEVEDO, Nair Rios; GONÇALVES,
Teresa N. R. Satisfação e situação profissional: um estudo
com professores nos primeiros anos de carreira, p. 365-382.
RAMOS, Madalena; PARENTE, Cristina; SANTOS, Mónica.
Os licenciados em Portugal: uma tipificação de perfis de
inserção profissional, p. 383-400.
ABREU, Daniela Gonçalves de; MOURA, Manoel Oriosvaldo
de. Construção de instrumentos teórico-metodológicos
para captar a formação de professores, p. 401-414.
FERNANDES, Priscila Correia; MUNFORD, Danusa;
FERREIRA, Marcia Serra. Sentidos de prática pedagógica
na produção brasileira sobre formação inicial de
professores de ciências (2000-2010), p. 415-434.
PAULA, Benjamin Xavier de; GUIMARÃES, Selva. 10 anos
da lei federal nº 10.639/2003 e a formação de professores:
uma leitura de pesquisas científicas, p. 435-448.
MONTEIRO, Sara Mourão; SOARES, Magda. Processos
cognitivos na leitura inicial: relação entre estratégias de
reconhecimento de palavras e alfabetização, p. 449-466.
MARCHIORI, Patricia Zeni; GREEF, Ana Carolina. Atividade
de escrita colaborativa: percepção de alunos, princípio
cooperativo de Grice e social loafing, p. 467-482.
VALLERA, Tomás; PAZ, Ana Luísa. O sábio-aprendiz e o
efêmero lugar da escrita: para uma ética da inventividade
acadêmica, p. 483-498.
CORRÊA, Humberto. Antecedentes do baixo nível de
escolarização alcançado por uma coorte de jovens mães
brasileiras, p. 499-516.
FONSECA, Maria da Conceição Ferreira Reis; SIMÕES, Fernanda
Maurício. Apropriação de práticas de numeramento na EJA:
valores e discursos em disputa, p. 517-532.
TOMMASI, Livia De. Tubarões e peixinhos: histórias de
jovens protagonistas, p. 533-548.
ROSISTOLATO, Rodrigo; VIANA, Guilherme. Os gestores
educacionais e a recepção dos sistemas externos de
avaliação no cotidiano escolar, p. 13-28.
FREITAS, André Luís Policani; SILVA, Vinicius Barcelos da.
Avaliação e classificação de instituições de ensino médio:
um estudo exploratório, p. 29-47.
OSTI, Andréia; MARTINELLI, Selma de Cássia. Desempenho
escolar: análise comparativa em função do sexo e
percepção dos estudantes, p. 49-59.
BARREYRO, Gladys Beatriz; ROTHEN, José Carlos. Percurso da
avaliação da educação superior nos governos Lula, p. 61-76.
BROOKE, Nigel; FERNANDES, Neimar da Silva; MIRANDA,
Isabela Pagani Heringer de; SOARES, Tufi Machado.
Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos
iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERES, p.
77-94.
MONTEIRO, Maria Inês Bacellar; FREITAS, Ana Paula de.
Processos de significação na elaboração de conhecimentos
de alunos com necessidades educacionais especiais, p.
95-107.
SOFIATO, Cássia Geciauskas; REILY, Lucia Helena.
Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo
comparativo iconográfico e lexical, p. 109-126.
SILVEIRA, Kelly Ambrosio; ENUMO, Sônia R. Fiorim;
POZZATTO, Renata N.; PAULA, Kely M. Pereira de.
Indicadores de estresse e coping no contexto da educação
inclusiva, p. 127-142.
GOMES, Rosana Carvalho; NUNES, Débora R. P. Interações
comunicativas entre uma professora e um aluno com
autismo na escola comum: uma proposta de intervenção,
p. 143-161.
BARBOSA, Heloiza H. Conceitos matemáticos iniciais e
linguagem: um estudo comparativo entre crianças surdas
e ouvintes, p. 163-179.
FONSECA, Eduardo Nuno. Nos interstícios da cidadania: a
inevitabilidade e urgência da dimensão da virtude cívica
na educação, p. 181-196.
CADAVID, Luz Elena Gallo. Expresiones de lo sensible:
lecturas en clave pedagógica, p. 197-214.
ADADE, Mariana; MONTEIRO, Simone. Educação sobre
drogas: uma proposta orientada pela redução de danos,
p. 215-230.
CARVALHO, Rodrigo Saballa de. O imperativo do afeto na
educação infantil: a ordem do discurso de pedagogas em
formação, p. 231-246.
Entrevista
Entrevista
SALVADORI, Maria Angela Borges; BICCAS, Maurilane de
Souza. Comparar: verbo transitivo; uma conversa com
Jürgen Schriewer, p. 549-564.
SOUZA, Denise Trento Rebello de; ZIBETTI, Marli Lúcia
Tonatto. Formação de professores e saberes docentes:
trajetória e preocupações de uma pesquisadora da docência
– uma entrevista com Ruth Mercado, p. 247-267.
859
Educação e Pesquisa
v. 39, n. 4, out./dez. 2013
Educação e Pesquisa
v. 39, n. 3, jul./set. 2013
Artigos
Artigos
URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. Do pensamento abissal
à ecologia de saberes na escola: reflexões sobre uma
experiência de colaboração, p. 843-858.
SOUZA, Ana Paula Gestoso de; OLIVEIRA, Rosa Maria Moraes
Anunciato de. Aprendizagem da docência em grupo
colaborativo: histórias infantis e matemática, p. 859-874.
OLIVEIRA, Adolfo Samuel de; BUENO, Belmira Oliveira.
Formação às avessas: problematizando a simetria invertida na educação continuada de professores, p. 875-890.
GUZMÁN-VALENZUELA, Carolina; BARNETT, Ronald.
O desenvolvimento da autocompreensão em posturas
pedagógicas: explicitando o implícito entre os novos
docentes. p. 891-906.
RABELO, Amanda Oliveira. Professores discriminados: um
estudo sobre os docentes do sexo masculino nas séries do
ensino fundamental, p. 907-926.
CHAGURI; Jonathas de Paula; JUNG , Neiva Maria.
Letramento no ensino fundamental de nove anos
no Brasil: ações legais e pedagógicas previstas nos
documentos oficiais, p. 927-942.
ROCHA, Eloísa Acires Candal; BUSS-SIMÃO, Márcia.
Infância e educação: novos estudos e velhos dilemas da
pesquisa educacional, p. 943-954.
OLIVEIRA, Carolina Bessa Ferreira de. A educação escolar
nas prisões: uma análise a partir das representações dos
presos da penitenciária de Uberlândia (MG), p. 955-968.
PADOVANI, Andréa Sandoval; RISTUM, Marilena. A
escola como caminho socioeducativo para adolescentes
privados de liberdade, p. 969-984.
MENDONÇA, Ana Waleska P. C. ; LOPES, Ivone Goulart;
SOARES, Jefferson da C. ; PATROCLO, Luciana B. A criação
do Colégio de Pedro II e seu impacto na constituição do
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Machado de Assis e a pedagogia da escolha, p. 1001-1016.
GARCÍA, Vicente Javier Llorent; IVANESCU, Carolina. La
religión como currículo social: educación, valores e Islam
en Europa, p. 1017-1028.
Dias, Juliana Maddalena Trifilio. Desenhos e vozes no
ensino de geografia: a pluralidade das favelas pelos
olhares das crianças, p. 1029-1048.
GORDON, Colin. Governamentalidade e a genealogia da
política, p. 1049-1066.
VIDAL, Diana Gonçalves. 80 anos do Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova: questões para debate, p. 577- 588.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Os primeiros tempos da pesquisa
em sociologia da educação na USP, p. 589-607.
CUNHA, Maria Isabel da. O tema da formação de professores:
trajetórias e tendências do campo na pesquisa e na ação,
p. 609-625.
SOUZA, Gizele de; ANJOS, Juarez José Tuchinski dos;
BARBOSA, Etienne Baldez Louzada. O arquivo público
paranaense: possibilidades para a pesquisa em história da
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FENERICH, Claudia. Razão, sentido e formação a partir de
um diálogo entre Benjamin e Habermas, p. 645-658.
VALLE, Ione Ribeiro. (In)Justiça escolar: estaria em xeque
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BARBOSA, Anna Carolina. Educação bilíngue nos Estados
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SILVA, Roberto Rafael Dias da. Políticas de escolarização e
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MOURA, Dante Henrique. Ensino médio integrado: subsunção
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humana integral?, p. 705-720.
LACERDA, Mitsi Pinheiro de. A cidade pequena, a escola e
o cotidiano interrompido, p. 721-739.
SAMPAIO, Patrícia Alexandra da Silva Ribeiro; COUTINHO,
Clara Pereira. Quadros interativos na educação: uma
avaliação a partir das pesquisas da área, p. 741-756.
NUNES, João Batista Carvalho; SALES, Viviani Maria Barbosa.
Formação de professores de licenciatura a distância: o caso
do curso de pedagogia da UAB/UECE, p. 757-773.
COSTA, Carolina; ALVELOS, Helena; TEIXEIRA, Leonor.
Motivação dos alunos para a utilização da tecnologia wiki:
um estudo prático no ensino superior, p. 775-790.
Entrevista
JARDIM, Fabiana. Breve genalogia dos estudos da governamentalidade: o efeito Foucault e seus desenvolvimentos.
Entrevista
AQUINO, Julio Groppa. Sérgio Niza: um aguerrido pedagogo
português, p. 793-808.
FORMAS DE PAGAMENTO
Em cheque: Nominal à FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP
Depósito em Conta ou transferência em Conta:
Banco: BANCO DO BRASIL
Nº do Banco:
001
Agência: 7009-2
Conta:13-0210-8
Nome/Instituição: _________________________________________________
Endereço: ______________________________________________________
CNPJ: _________________________________________________________
CEP: __________ Cidade: __________________ Estado: _____ País: ________
E-mail: ________________________________ Tel.: ( ) _________________
Contato: _______________________________ Data: _____/ _____/ _____
Estou enviando:
[ ]
comprovante de depósito bancário
[ ]
cheque nominal à Faculdade de Educação da USP, do banco____________,
nº do cheque: _____________________ valor: R$ _________________.
Referente a:
[ ]
assinatura de Educação e Pesquisa (especificar quantidades de assinaturas: ____)
[ ]
números avulsos: __________________________________________.
Números avulsos:
R$ 25,00
Assinatura:
Assinatura anual (4 exemplares): R$ 100,00 / Pessoa Jurídica
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