direito e cinema: adeus, lênin - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto

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direito e cinema: adeus, lênin - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto
DIREITO E CINEMA: ADEUS, LÊNIN! E A METÁFORA
DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE
LAW AND MOVIES: GOOD BYE, LENIN! AND THE METAPHOR OF
SOCIAL CONSTRUCTION OF REALITY
Nícolas Negri Pereira1
RESUMO
“Adeus, Lênin!”, do diretor Wolfgang Becker, foi um dos filmes assistidos e
debatidos no projeto Direito e Cinema da FDRP-USP. O filme permite discussões em
temas diversos, porém mantivemos o foco na construção social da realidade, que
permeia todo o filme. Após enfartar e ficar em coma, Christiane Kerner acorda em uma
Alemanha totalmente diferente. Os produtos, as marcas, a moda, enfim, a cultura
ocidental, havia soterrado como uma avalanche o “antigo mundo” da Alemanha
Oriental. Alex, filho de Christiane, tenta mantê-la alheia às mudanças transformando o
quarto da mãe em um pequeno pedaço da RDA. A “construção” do quarto deve ser
entendida como uma metáfora da construção social da realidade. Ademais, tal metáfora
pode ser expandida e faz com que passemos a enxergar os “quartos” em que somos
colocados, quase sempre inconscientemente, pelas Instituições (Igreja, Estado, família,
escola, etc.), pela mídia, dentre outros. O próprio Alex, que achava ter completo
domínio sobre a verdade que criou para a mãe, no fim também é acomodado em um
“quarto” construído por ela. Por fim, levantam-se as questões éticas e jurídicas
relacionadas ao assunto.
1
Graduando em Direito pela FDRP - USP. Coordernador adjunto do projeto “Direito e
Cinema – Debates sobre Direito, Filosofia, Ética, Política e História” – Bolsista da PróReitoria de Cultura e Extensão - USP
PALAVRAS-CHAVE: Direito e Cinema. Adeus, Lênin!. Construção
social da realidade. Ética. Direito de participação na construção da
realidade
ABSTRACT
"Good Bye, Lenin!" from director Wolfgang Becker, was one of the films viewed and
discussed at the project Law and Cinema of FDRP-USP. The film allows discussions on
various issues, but we kept the focus on the social construction of reality, which
permeates the whole movie. After having an infarction and staying in a coma,
Christiane Kerner wakes up in a totally different Germany. The products, brands,
fashion, in other words, the Western culture, there was like an avalanche that buried the
"old world" of East Germany. Alex, son of Christiane, tries to keep her alienated to the
changes transforming the mother's room in a small piece of the GDR. The
"construction" of the room should be understood as a metaphor for the social
construction of reality. Moreover, this metaphor can be expanded and causes for us to
see the "rooms" in which we are placed, usually unconsciously, by the institutions
(church, state, family, school, etc.), the Media, among others. Even Alex, who thought
he had complete dominion over the reality that he had created for the mother, in the end
also is housed in a "room" built by her. Finally, we raise the ethical and legal issues
related to the subject.
KEYWORDS: Law and Cinema. Good Bye, Lenin!. Social construction
of reality. Ethics. Right to participate in the social construction of reality
INTRODUÇÃO
O presente trabalho insere-se como fruto do projeto “Direito e Cinema – Debates
sobre Direito, Filosofia, Ética, Política e História”, coordernado pelo Prof. Nuno
Manuel Morgadinho dos Santos Coelho, que visa propiciar o debate e aprofundamento
sobre temas pertinentes aos cursos de Filosofia Geral e Filosofia do Direito a partir de
exibições semanais de filmes na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo, abertas ao público em geral.
Não se trata de uma experiência pioneira, mas permanece explorada por poucas
Faculdades de Direito no país. A discussão filosófica levantada a partir de filmes
possibilita um diálogo menos árido e mais includente, porque parte de uma base mais
assimilável para os alunos recém-ingressados no meio universitário e para o público em
geral, que às vezes não possuem conhecimentos filosóficos, jurídicos e/ou sociológicos
aprofundados e que encontram dificuldades nos primeiros contatos com livros
acadêmicos destas áreas, que muitas vezes adotam uma linguagem rebuscada, de difícil
compreensão, utilizando-se de conceitos que necessitam conhecimento prévio. Cabe
ressaltar, porém, que isso não torna as discussões rasas, vazias de problematização, de
conceitos científico-filosóficos. Estes vão sendo assimilados ao discurso de forma
natural através das colocações dos participantes e do coordenador. Mitiga-se assim a
ordem do discurso acadêmico, que reveste de poder e superioridade o discurso
acadêmico cientificista, como bem apontou Michel Foucault2, aproximando professores,
estudantes e o público externo ao campus, estabelecendo uma ponte entra universidade
e sociedade, concretizando dessa forma a proposta de extensão universitária do projeto
dentro do programa Aprender com Cultura e Extensão.
ANÁLISE DO FILME
Um dos filmes assistidos e debatidos no projeto foi “Adeus, Lênin!”, do diretor
alemão Wolfgang Becker. O filme permite discussões em temas diversos, porém
mantivemos o foco na construção social da realidade, que permeia todo o filme. Ele se
inicia apresentando os primeiros anos da Alemanha Oriental e do desenvolvimento do
socialismo em conjunto com a história das personagens do filme. Christiane Kerner é
uma mãe dedicada ao filhos e à pátria socialista. Em 1989, ao ver o filho Alexander em
uma manifestação revolucionária contra o regime, enfarta e entra em coma. Durante este
período o país passa por várias mudanças, incluindo a queda do muro de Berlim. Após 8
meses em coma, Christiane acorda em uma Alemanha totalmente diferente. Os
produtos, as marcas, a moda, enfim, a cultura ocidental, havia soterrado como uma
2
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 18 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2009
avalanche o “antigo mundo” da Alemanha Oriental. A fim de evitar uma forte emoção
na mãe, que poderia implicar em outro enfarte, Alex decide não permitir que a mãe
fique no hospital e resolve levá-la para casa, contudo esta estava ocidentalizada. Alex
tenta mantê-la alheia às mudanças transformando o quarto da mãe em um pequeno
pedaço da RDA, retornado os antigos móveis e decoração, os livros e os eletrônicos
antigos, além de limitar a visão da janela. .
A “construção” do quarto deve ser entendida como uma metáfora da construção
social da realidade. Ao retornar para casa a mãe diz: “Nada mudou aqui”, demonstrando
que a realidade está relacionada à forma como as coisas aparecem para nós. Essa
afirmação é reforçada pelo conceito de mundo dentro do horizonte fenomenológico, no
qual mundo designa uma totalidade de sentidos ou de significados que os entes
carregam, ou melhor dizendo, que os entes são, posto que o ente só é enquanto ser-nomundo.
Alex encontra dificuldade para manter o quarto que criara para a mãe das
interferências externas, como, por exemplo, as notícias vindas de um rádio do
apartamento vizinho ou um anúncio da Coca-Cola que é colocado em um prédio em
frente a janela do quarto. Juntamente com seu amigo Denis, Alex busca então formas de
inserir estas interferências dentro do contexto da realidade que criara. Criam então
vídeos caseiros, adaptando e distorcendo os acontecimentos para que fossem
compreensíveis dentro do conceito de mundo no qual Christiane estava inserida. Nas
palavras de Alex: “Entendi que a verdade era um conceito dúbio que eu podia adaptar a
visão que minha mãe tinha do mundo”. Observa-se uma clara privação a Christiane do
direito de participar da construção social da realidade.
Quando ela tenta andar e sai do quarto enquanto o filho estava dormindo,
depara-se com vários objetos estranhos a ela, além de, em momento apoteótico, vê
sendo levada de helicóptero a estátua de Lênin. Os filhos correm para resgatá-la e evitar
um possível colapso e a levam de volta ao quarto. Novamente Alex cria mais vídeos e
“inverte” a realidade. Sua encenação havia adquirido vida própria. Outro momento
importante acontece na ida ao chalé da família, onde a mãe revela toda a farsa que criara
para os filhos sobre o abandono do pai, que supostamente teria mudado para o lado
ocidental da Alemanha por causa de uma mulher e não mandara mais notícias, mas que
na verdade havia se mudado por causa do seu emprego e a mãe não quis acompanhá-lo,
abandonando a pátria socialista. Ademais, ela escondia as cartas que o pai mandava,
privando os filhos da realidade e criando também um “quarto” para eles.
O filme então se encaminha para seu epílogo. Christiane está com a saúde
seriamente debilitada. Alex então resolve ir ao encontro do pai, e percebe que o mundo
do pai era muito diferente do que ele imaginava, afinal fora privado de construir a
realidade de maneira efetiva. Na ausência de Alex, Lara, sua namorada e enfermeira de
sua mãe, conta para ela toda a realidade que Alex ocultara. Alex resolve “encerrar” a
encenação através de um último vídeo. Christiane assiste ao vídeo, mas não revela para
Alex que já tomara conhecimento da realidade dos fatos e morre algumas horas mais
tarde. Ela parece assumir as rédeas e passar a criar ela um quarto para Alexander,
fazendo-o crer que acreditava ainda no quarto. Alex acredita que a mãe morreu feliz,
acreditando em um país que nunca existiu daquela forma.
Ainda dentro do discurso fenomenológico heideggeriano, se entendemos que o
Dasein (ser-aí) é como compreende o mundo (um ser-no-mundo, ser-com-o-mundo), e
este mundo é uma totalidade instrumental de significados e sentidos, construídos a partir
de como as coisas aparecem para nós, e, por outro lado, que a ética é aquilo que nos
torna o que somos, a “construção de quartos”, isto é, a manipulação por outros de como
as coisas aparecem para nós afeta a maneira que significamos as coisas e por
conseqüência o mundo. Por fim, afeta a nossa autoconstrução como humano, isto é,
nossa ética. Poderíamos levantar assim uma “responsabilidade ética” que todos temos
para com os outros em sociedade, além de sugerir um direito a participarmos
efetivamente da nossa própria construção recebendo informações tão pouco
manipuladas quanto possível. É evidente, contudo que não se deve, ou não é possível,
excluir a intersubjetividade, afinal esta é condição ontológica da ética assim como do
direito e ela não se dá senão sob a condição mundana.
Significamos as coisas e nos tornamos o que somos fortemente influenciados
pelas instituições, entendidas no pensamento de René Lourau como “formas sociais
visíveis, porquanto dotadas de uma organização jurídica e/ou material, por exemplo,
uma empresa, uma escola, um hospital, o sistema industrial, o sistema escolar, o
sistemar hospitar de um país (...)”.3
3
LOURAU, René. A análise institucional. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, pg. 9
Para Peter e Brigitte Berger a acepção do termo vai além, não se restringindo a
essa estreita ligação entre o termo e as instituições sociais reconhecidas e reguladas por
lei. Dentro de uma perspectiva sociológica teríamos então a linguagem como, muito
provavelmente, a “instituição fundamental da sociedade, além de ser a primeira
instituição inserida na biografia do indivíduo.”. Através da linguagem se dá a
“objetivação da realidade – o fluxo incessante de experiências consolida-se, adquire
estabilidade numa série de objetos distintos e identificáveis”
A linguagem é responsável pela internalização dos papéis sociais, isto é, o
“assumir do papel do outro – que constitui um passo decisivo no processo de
socialização.”. Ademais, apontam como características fundamentais das instituições: a
exterioridade, a objetividade, a coercitividade, a autoridade moral e a historicidade.4
Portanto mostra-se claro o papel das instituições na construção social da
realidade de cada ser, ainda mais quando tomamos a linguagem por instituição, afinal
nossas relações no mundo dar-se-ão através da linguagem, mesmo que em formas
variadas. Nossa construção como ser humano não pode prescindir da alteridade, não há
uma essência do homem. A essência do homem, em Heidegger, é não ter essência, na
medida em que o Dasein se constitui ele mesmo como uma possibilidade, como um
projeto.
Podemos delinear assim um diálogo entre os conceitos sociológicos sobre
instituições de Peter e Brigitte Berger, o conceito de mundo e a fundação do homem no
horizonte do pensamento de Martin Heidegger e a metáfora do quarto como construção
social da realidade levantada pelo filme “Adeus, Lênin!”.
Penso que tudo parte do paradigma de que não há essência, de que não há algo
nos objetos que possam identificá-los sem que antes a experiência do objeto tenha se
concretizado junto ao ser. A partir desse ponto, os quartos são criados através da
linguagem em sentido amplo, que englobaria, por exemplo, os vídeos criados por Alex e
Denis que encaixavam os fatos cotidianos dentro da realidade que eles queriam manter
para Christiane. Esta não conseguiria de per si alterar a sua significação do mundo, isto
é, ela só conseguiria perceber que estavam construindo ou mantendo-a em uma
realidade que já fora alterada através da intersubjetividade, da alteridade, a qual já
4
BERGER, Peter e Brigitte. O que é uma instituiçao social? in FORACCHI, Marialice Mencarini e
MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade (Leituras de introdução à Sociologia). Rio de Janeiro:
LTC, 1983.
destacamos ser imprescindível. Por isso Alex procurava manter a mãe afastada de
jornais, noticiários do rádio, programas televisivos, produtos ocidentais, outras pessoas
que não estivessem “atuando” conforme Alex queria, dentre outras coisas e fatores que,
carregados de significação ou, em outras palavras, carregados de significação, de
linguagem, perturbariam o quarto que Alex criara para ela.
É justamente no momento da intersubjetividade, do contato com Lara, que
estava cansada de “atuar” no papel imposto por Alex, que Christiane enxerga para além
do quarto e, através de um processo comunicativo, lingüístico, altera os sentidos e
significados de como as coisas apareciam para ela, isto é, altera seu mundo, sua
realidade. O filme deixa claro ainda como todos são sujeitos criadores de quartos e,
simultaneamente, “hóspedes” de algum quarto, e que estes quartos podem ter uma
macro ou micro abrangência, ou seja, poder ser um quarto criado por um Estado
socialista que deseja que seus cidadãos enxerguem sua realidade conforme os interesses
do próprio Estado, como pode ser um quarto criado por uma filho para uma mãe ou
vice-versa.
Estamos imersos em uma grande esfera de linguagem, na qual outras instituições
atuam como centros irradiadores de sentidos e significados, que impõem verdades, que
constroem quartos. O interesse está em levantar a discussão para que enxerguemos pelas
brechas dos quartos em que somos colocados em diferentes momentos da vida, por
vários destes centros irradiadores, como a família, a Universidade, a Mídia, a Igreja,
porém será que podemos afirmar com convicção qual realidade é mais verdadeira? Qual
é o melhor caminho para uma construção social da realidade de forma inclusiva, que
conta com nossa própria autodeterminação? Podemos dizer que o conjunto de
significados que nos é apresentado pelas ciências e mais “real ou verdadeiro” do que o
conjunto de significados que nos são passados pela família, ou pela Igreja, por
exemplo? É possível estarmos libertos de um quarto ou construirmos nosso próprio
quarto? Estas questões dificilmente serão respondidas com consenso, mas afinal é para
isso que servem nossas sessões de filmes, para levantar esta zetética, possibilitando que
transformemos o mundo e, simultaneamente a nós mesmos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGER, Peter e Brigitte. O que é uma instituiçao social? in FORACCHI, Marialice
Mencarini e MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade (Leituras de introdução
à Sociologia). Rio de Janeiro: LTC, 1983.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 18 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2009
LOURAU, René. A análise institucional. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, pg. 9

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