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O Pessimismo em Kubrick, Rousseau e Schopenhauer: fundamentos da ética no
direito e na política
Saulo de Matos1
Resumo: O pessimismo como pensamento filosófico foi decisivo para a construção do
Estado constitucional, uma vez que foi defendido por filósofos como Rousseau,
Nietzsche e Schopenhauer. Trata-se de uma corrente filosófica que rejeita uma
concepção linear do tempo e, por conseguinte, de progresso da humanidade em direção
à felicidade. De certa forma, é uma filosofia negativa, uma vez que não apresenta um
modelo ideal de Estado ou sociedade e, ademais, não visa construir um sistema
filosófico, mas, sim, esclarecer sobre o próprio modo de ser do ser humano. Uma
filosofia que busca explicar o Geschehen na sua forma mais imediata. Este estudo
busca apresentar o pessimismo como fundamento ético na obra “Laranja Mecânica” de
Stanley Kubrick. Para tanto, apresentar-se-á Kubrick em dialogo com as concepções
pessimistas de Rousseau e Schopenhauer. Em um primeiro momento, será apresentada
uma definição hermenêutica de pessimismo. Após, a perda da liberdade primitiva do ser
humano, representada pelos conceitos de autopreservação e compaixão, será discutida
em Rousseau e Kubrick. Por fim, a impossibilidade de um fundamento ético para o
direito e a política com base em uma liberdade moral, i.e., liberum arbitrium
indifferentiae, será discutida a partir dos conceitos de caráter e liberdade intelectual de
Schopenhauer. Qualquer modelo político de Estado e de política criminal precisa,
segundo o pessimismo, esquecer ideais de ressocialização ou transformação do caráter
do ser humano. Deve, ao revés, estabelecer limites para a política e direito com base no
próprio modo de ser do ser humano.
Palavras-chave: pessimismo – ética – Kubrick – Rousseau – Schopenhauer
Abstract: Pessimism as a philosophical movement has a crucial role to the
development of the constitutional State due to its influence on the work of Rousseau,
Nietzsche and Schopenhauer. The doctrine of pessimism denies the concept of linear
time, and hence, the very idea of historical account of progress of mankind. From a
certain point of view, the doctrine can be regarded as a negative philosophy since it does
attempt to present neither an ideal model of State or society, nor to build up a
philosophical system. The doctrine of pessimism has to do with a reflection on the
present, how humankind exist in the world, and thus, it seeks to elucidate the
Geschehen in its most immediate form. This paper aims to disclose the elements of the
doctrine of pessimism as an ethical foundation in Stanley Kubrick’s masterpiece “A
clockwork orange”. In this sense, a dialogue is presented between the pessimistic
1 Professor da Faculdade de Castanhal (Fcat). Doutor pelo Departamento de Filosofia do Direito e
Filosofia Social da Universidade de Göttingen. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos
Humanos, Ética e Hermenêutica.
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concepts of Kubrick and, in contrast, Rousseau and Schopenhauer. In a first step,
pessimism is defined according to an hermeneutic conception of concepts. Next, the loss
of primitive human freedom is discussed on the basis of Rousseau’s concepts of selfpreservation and compassion. In the last part, Schopenhauer’s concepts of character and
intellectual freedom lead way to the analysis on the impossibility of an ethical
foundation of politics and law based on moral freedom, i.e., liberum arbitrium
indifferentiae. From a pessimistic point of view, a political model for the State and its
criminal policy needs to eliminate abstract ideas like resocialization and transformation
of human character. In spite of it, it has to set the limits of politics and law with focus on
the Dasein.
Keywords: pessimism – ethics – Kubrick – Rousseau – Schopenhauer
I. Introdução: Pessimismo na Filosofia
Joshua Foa Dienstag, em uma recente monografia (2006), sob o título
“Pessimism: philosophy, ethic, spirit”, apresenta uma tentativa hermenêutica de resgatar
uma corrente histórica da filosofia, aparentemente, deixada de lado pelo mainstream da
filosofia política, seja de matriz anglo-saxã, seja de matriz continental, a saber, o
pessimismo. O principal argumento do autor é que o pessimismo como correte
filosófica, influente na construção dos Estados constitucionais na modernidade, foi
isolado das discussões no âmbito da filosofia política e do direito por diversas razões,
sendo a principal a sua recusa em oferecer uma resposta definitiva e sistemática para o
problema ético no direito, moral ou política (Dienstag, 2006, p. 3). Um dos pontos
centrais de tal recusa, no âmbito da filosofia prática, consiste na ausência de um
conceito de liberdade que possa fundamentar, adequadamente, um sistema ético.
A primeira dificuldade, contudo, no que concerne ao tratamento do pessimismo
como uma matriz do pensamento filosófico é de natureza conceitual, i.e., definir as
características necessárias e suficientes do fenômeno “pessimismo”. Tal definição não
precisa, contudo, ser preposicional a ponto de eliminar totalmente as obscuridades ou
indeterminações próprias dos fenômenos históricos. Melhor seria pensar na definição do
pessimismo tal qual a tese das “semelhanças de família” (Familienähnlichkeiten),
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proposta por Wittgenstein (2006, §67, p. 278).2 Nesse sentido, no tocante ao
pessimismo, o desafio é buscas as características ou qualidades semelhantes, presentes,
historicamente, em diversas escolas filosóficas, mas que não podem ser reduzidas a um
único pensamento. Elas são como as semelhanças entre familiares, como diria
Wittgenstein (2006, §67, p. 278). Isto não é, de fato, um problema ou algo novo para a
filosofia, porquanto muitas correntes filosóficas, como, e. g., o liberalismo ou o
republicanismo, podem ser definidas sob tais premissas. Ou seja, dificilmente, alguém
poderia afirmar um único pensamento que seja seguido por todos os liberais ou
republicanos ao longo da história. O pessimismo segue esta mesma premissa.
Dois são os problemas fundamentais no que concerne à apresentação de um
conceito de pessimismo na filosofia (Dienstag, 2006, p. 4–5).
Primeiro, o pessimismo, para muitos, está ligado a um estado de espírito. Ou
seja, assim, como há pessoas felizes ou otimistas, há outras tristes ou pessimistas. E
estas pessoas são felizes, otimistas, tristes ou pessimistas porque possuem como
tendência determinadas atitudes perante o mundo. Não obstante, não é claro que a
atitude de uma filósofa perante o mundo implique a aceitação do pessimismo como
fundamento do seu pensamento filosófico. A filosofia de John Stuart Mill, por exemplo,
é conhecida por ser otimista com relação ao progresso histórico da humanidade com
base na aplicação e desenvolvimento da racionalidade. No entanto, ele, como filósofo, é
conhecido por sua depressão ou, mais precisamente, estado de espírito negativo perante
o mundo. De qualquer forma, o importante, aqui, é observar que a discussão acerca do
pessimismo é de natureza filosófica e não, acerca de atitudes ou posturas perante o
mundo. O desafio é apresentar os traços fundamentais da ideia de pessimismo como
pensamento filosófico.
Segundo, o pessimismo, tradicionalmente, é ligado a outras correntes mais
conhecidas na história da filosofia, como o niilismo, cinismo, ceticismo etc. Dienstag
(2006, p. 4) assevera acerca disso:
2 Acerca disso: Pfordten, 2009, pp. 25–26.
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Without getting into these debates in any detail, I think it is fair to say
that, in discussions such as these, the word ‘pessimistic’ is one of a list
of adjectives used very loosely to describe any ‘negative’ philosophy,
that is, any philosophy, opposed to traditional attempts at systembuilding or the defense of some concrete political order.
Nesse sentido, um traço que aproxima pessimistas, niilistas e céticos é o objetivo
módico de, por meio da filosofia, simplesmente esclarecer acerca da condição de
existência dos seres humanos ou Dasein, sem pretensão de construir um sistema ético
ou, em especial, a defesa de uma ordem política específica. A filosofia e, especialmente,
a ética, no sentido pessimista, se preocupam, muito mais, como esclarecimento do
Geschehen, i.e., com o desvelar do acontecer. Trata-se, portanto, de uma filosofia
negativa e, ademais, de uma ética que não é construída de forma imperativa, já que os
seus fundamentos derivam, sobretudo, do modo de ser do ser humano no mundo.3
Outro problema para a aceitação da matriz pessimista da filosofia consiste no
fato de que as filosofias pessimistas, em geral, negam uma hipótese velada em quase
todos os sistemas filosóficos contemporâneos, a saber, a concepção linear do tempo e o
progresso (Dienstag, 2006, p. 5). O pessimismo exige uma revisão da nossa concepção
tradicional de tempo. Ele questiona: Mas, e se nós considerássemos a hipótese de que
não há melhorias da condição humana? Ou seja, e se nós tivéssemos apenas que lidar
com quem e o que nós somos agora? E se não houve qualquer progresso para a
humanidade? E se o nosso tempo fosse circular? O pessimismo aceita este desafio ao
rejeitar a promessa do tempo como algo linear em direção à felicidade ou ao progresso
da humanidade. O pessimismo, nesse sentido, não é uma corrente que fomenta a
melancolia ou a depressão, mas, sim, uma escola que pensa sobre a nossa condição
como seres humanos, que é basicamente aquela de uma constante mudança sem
garantias de felicidade ou melhoria e que, no decorrer do processo de tomada de
consciência de si, todo indivíduo irá se modificar.
O pessimismo possui, portanto, como uma de suas características fundamentais a
tendência de não apresentar uma esquema ou modelo de governo ideal, uma estrutura ou
3 Ver Schopenhauer, 1977, p. 164 ss.
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princípios de justiça (Dienstag, 2006, p. 7). As pessimistas se interessam pouco por
discussões acerca das estruturas do Estado. Trata-se de uma filosofia mais ligada à
conduta pessoal e, portanto, às virtudes daqueles que fazem o agir político de uma
comunidade. Além disso, uma outra característica que aparece ao longo da história do
pessimismo é a negação de uma perspectiva linear do tempo. A aceitação desta hipótese
não implica a ideia de que a sociedade está em permanente declínio ou que não há
melhorias nas condições de vida dos seres humanos ao longo da história. Ao revés,
trata-se da hipótese de que o agir político de uma comunidade é determinado por uma
série de contingências e qualquer tentativa de identificação de modelos, estruturas ou
princípios de justiça de forma distanciada e nomológica não pode satisfazer uma
reflexão mais séria acerca da condição humana.
O presente estudo pretende apresentar a ética pessimista por meio
de um
diálogo entre três autores, Stanley Kubrick, Jean-Jacques Rousseau e Arthur
Schopenhauer. O pessimismo foi, de forma, importante, delineado pelo filme de Stanley
Kubrick, “A Clockwork Orange”, de 1971. Rousseau e Schopenhauer serão, então,
colocados em diálogo com as ideias de Kubrick. 4 O pessimismo filosófico de Kubrick
irá se manifestar em duas dimensões básicas, a saber, a dimensão cultural e de política
criminal. Todas elas estão relacionadas como o nosso modo de ser no mundo, com
nossas ações e expectativas. O objetivo é indicar a possível contribuição desta corrente
filosófica para os debates acerca da fundamentação ética como uma dimensão do agir
humano, no qual todas as hipóteses para a execução ou não de uma determinada ação
são consideradas, e, portanto, do direito, como razões determinantes para ações. Além
deste objetivo específico, outro desafio é tratar Kubrick como um pensador autônomo e
não o tornar um mero exemplo das ideias de Rousseau e Schopenhauer.
4 A conversação entre arte e ciência, ou poesia e filosofia tem sido ao longo dos séculos, desde de Platão
e, a partir da modernidade, desde o que se convencionou chamar romantismo, um diálogo profícuo.
Enquanto as ciências e a filosofia buscam limitar a realidade, restringir o alcance dos olhos por meio de
representações conceituais, a verdadeira arte aponta para os limites da tentativa de conceitualizar a
realidade. É por isso, que, semelhante aos mitos ou às nossas lendas amazônicas, o conhecimento artístico
se mantém aberto, avesso às regras das ciências. O filme de Stanley Kubrick, “A Clockwork Orange”, de
1971 é, semelhante a clássicos de outros gêneros artísticos, um espaço para discussões acerca dos nossos
problemas, acerca da nossa realidade.
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2. O Pessimismo Cultural de Kubrick a partir de Rousseau
A principal obra de filosofia política do século XVIII, De l’esprit des lois de
Montesquieu (1972), além da virtude de dialogar fortemente com a ética aristotélica,
apresenta a tese central, posteriormente, criticada por Rousseau, de que a adoção de um
modelo político possui como consequência uma mudança no modo de ser do ser
humano.5 Caso se adote um sistema político republicano, por exemplo, as cidadãs
pertencentes a esta comunidade política apresentarão determinadas virtudes diferentes
das apresentadas em um sistema político socialista. “Laranja Mecânica” brinca com esta
ideia ao apresentar uma linguagem e estética própria de uma época, que não pode ser
enquadrada como futuro ou passado, mas, sim, como um determinado modelo de
sociedade. Este modelo, contudo, não possui contornos claramente definidos, podendo,
dessa forma, a crítica do filme se estender a Estados democráticos, ditatoriais ou
socialistas. O tema central do filme é a relação entre os fundamentos éticos de uma
sociedade e seu agir político6.
Stanley Kubrick parece, em um primeiro momento, apresentar uma perspectiva
semelhante àquela de Montesquieu. Isto é, seria possível interpretar o filme “Laranja
Mecânica” como uma crítica a um determinado modelo de Estado, que busca, a
qualquer custo, igualar as determinações do agir de suas cidadãs, mesmo que, para
tanto, seja necessário retirar-lhes o próprio livre arbítrio, como acontece, na parte final
do filme, quando Alex já não pode escolher cometer um crime ou ouvir a nona sinfonia
de Beethoven. Contudo, conforme afirmado acima, seria difícil qualificar o modelo de
Estado apresentado por Kubrick com qualquer modelo puro da filosofia política.
5 Rousseau trabalhou, por um período, como secretário de Me. Dupin. Em 1748, quando Montesquieu
publicou o seu Esprit des Lois, Dupin quis publicar uma crítica e concentrou esforços de todos os seus
funcionários para concretização deste objetivo. Assim, pode-se observar a influência de Montesquieu
também em alguns aspectos da obra de Rousseau, o que é, constantemente, olvidado pela literatura. Ver:
Weigand, 1995, p. LXXXIII.
6 A política, aqui, é tratada como agir na medida em que possui como fim a realização dos interesses dos
indivíduos participantes deste agir coletivo.
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Conquanto haja traços do modelo socialista-soviético, sobretudo, do ponto de vista
estético, tal associação não é tão cândida no filme e a crítica do filme é ainda pertinente
no caso de Estados capitalistas ou democráticos.
O pessimismo presente em “Laranja Mecânica” não é com relação a um modelo
de Estado, mas, sim, à condição humana. Trata-se de um pessimismo filosófico e não,
histórico.
Rousseau, no fim de sua vida, quando já vivia isolado em uma ilha na zona rural
da Suíça, afirma que este foi o período mais feliz da sua vida. Ele explica que a
felicidade ou, mais precisamente, a fonte da felicidade tem a ver com a nossa inserção
no tempo. Nesse sentido, afirma: “tudo está em constante fluxo na Terra. Nada mantém
uma forma constante e estática, e a nossa sensibilidade que está necessariamente ligada
a coisas externas, necessariamente, se modifica e se transforma.” (Rousseau, 2000, p.
46). Nossas emoções estão “à frente ou atrás de nós, elas chamam o passado, o qual não
existe mais, ou o futuro, o qual, normalmente, não acontecerá.” (Rousseau, 2000, p. 46).
Rousseau, em sua ilha na Suíça, pode ter tido a experiência plena de felicidade, na qual
“o presente se mantém para sempre (...) sem nenhum vestígio da passagem do tempo.”
(Rousseau, 2000, p. 46).
O pessimismo cultural deriva do conhecimento de que o modo de ser no mundo
se modifica constantemente a partir do momento em que passa-se a ter consciência do
próprio eu, i.e., da própria inserção no tempo e consciência do passado e futuro. Passase, a partir deste momento, a agir de forma distanciada, uma espécie de actio per
distans, como afirma Blumenberg (2013, p. 46). Este agir distanciado do ser humano
moderno, contudo, passa a exigir conceitos ou regras e, portanto, a limitar a realidade tal
qual ela se apresenta, multifacetada. A solução para isso seria a espontaneidade, o
afastamento da linguagem e da perfeição, o que, contudo, não pode acontecer em um
estado social.
3. Da Liberdade Instintiva do Ser Humano
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Kubrick parece apresentar essa mesma noção pessimista da cultura ao traçar as
ações de Alex. Alex é apresentado, desde o início do filme, como uma personagem, sob
certa ótica, livre. Esta liberdade, contudo, não é racional do ponto de vista da ética de
matriz kantiana. Ao revés, trata-se de uma liberdade primitiva ou não-imperativa, ligada
aos instintos. No contexto do filme, esta corresponde, sobretudo, à sua forte ligação com
a música e com a sua sexualidade, símbolos do agir desvinculado das amarras da
influência cultural da sociedade ou de um pensamento conceitual.
Nesse sentido, é, primeiramente, notório que os momentos instintivos ou, em um
certo sentido, livres do agir de Alex vêm acompanhados de música. E, acrescente-se: as
duas músicas presentes nas ações violentas de Alex estão ligadas a dois gênios, a saber,
Beethoven e Gene Kelly.
É comum, por exemplo, pensar que as cenas de violência ou os crimes
cometidos são simplesmente frutos dos modelos políticos ou das desigualdades sociais.
Contudo, conforme o responsável por tutelar Alex, ao visitá-lo em casa, afirma, a
sociedade não consegue explicar por que crianças ou pessoas de famílias estruturadas e
com boa condição de vida cometem crimes ou praticam o mal. E este é o caso de Alex.
Mas, mais do que isso e de forma quase paradoxal, Kubrick apresenta a violência física
de Alex como um momento de pura liberdade ou como uma dimensão do próprio
sublime de um ponto de vista estético. Poucos observam isso. É que todas as vezes que
Alex agride ou estupra alguém, o belo, em forma de música, está sempre presente e os
atos de violência são apresentados de forma harmônica, deixando transparecer a beleza
intrínseca a esta harmonia, mesmo que os atos de Alex, do ponto de vista imperativo da
ética, sejam considerados maus.7 Nota-se, por exemplo, que as violências contra Alex,
após a sua dita recuperação, passam a não ser mais acompanhadas de música, deixando
claro que estas não são mais fruto do belo ou da espontaneidade do ser humano.
7 A relação entre beleza e moral já é tratada, mas de forma oposta à intenção de Kubrick, por Kant (1974,
p. 294–299).
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A música, ao fundo, em diversas passagens do filme, representa o momento
sublime do suposto livre arbítrio atribuído ao agir instintivo da personagem. Além dos
momentos de violência como característicos da liberdade de Alex, há, igualmente, as
diversas cenas de sexo, nas quais Alex também é retratado como alguém com plena
liberdade com relação à sua sexualidade, como, por exemplo, quando encontra duas
garotas e, espontaneamente, as convida para ouvir música e ter relações sexuais.8 Outro
ponto importante da exaltação de um tipo de liberdade instintiva na obra de Kubrick é a
opção de Alex pela noite e o repúdio da vida diurna, representada por seus pais, presos
ao trabalho e às obrigações familiares, i.e., a sua recusa à vida regrada. A liberdade
instintiva de Alex, contudo, não conduz a consequências boas para outras pessoas, mas,
sim, ao cometimento de crimes, ao sexo, à violência. O livre arbítrio, assim como o
acontecimento do gênio na arte, não é tratado como uma decisão racional e qualquer
ética, diria Kubrick, baseada no conceito livre arbítrio racional, a partir de um mundus
noumenon, está fadada ao fracasso como explicação do agir humano.
Quando age de forma racional ou, mais precisamente, social, Alex é apresentado
como qualquer outra pessoa de sua sociedade, determinado por regras sociais e pela
influência cultural, econômica e política, as quais corrompem o agir natural do ser
humano. Isto fica claro quando ele dialoga com uma mulher que possui diversos
artefatos eróticos. Dado que Alex é retratado, conforme já dito, como alguém com uma
sexualidade bem definida, era esperado que sua reação a uma residência com objetos
eróticos fosse mais natural. No entanto, Alex reage como qualquer membro medíocre de
sua sociedade, externando os seus preconceitos com relação às preferências sexuais e
estéticas da mulher, representadas pelos seus objetos eróticos. Destarte, a liberdade
social ou, em outros termos, racional de Alex não conduz igualmente a consequências
boas para outras pessoas, mas, sim, a externar preconceitos injustificados e, igualmente,
ao cometimento de crimes.
O dilema consiste então em pensar na liberdade não como algo que
necessariamente irá conduzir à realização do bem, mas, sim, como algo inerente à nossa
8 Naturalmente, numa perspectiva mais ligada ao momento histórico do filme, é possível associar essa
imagem ao movimento inglês das décadas de 60 e 70 do século XX.
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vida. Tanto a liberdade instintiva, quanto a liberdade racional, segundo Kubrick, podem
conduzir ao mal.
4. Pressupostos do Pessimismo Cultural
Kubrick se aproxima, com a sua descrição de Alex e das demais personagens
do “Laranja Mecânica” a uma visão, que, no bojo da filosofia política, é constantemente
atribuída a Rousseau.9 Isto porque não há uma única personagem, dentro da ficção de
Kubrick, que não seja, de alguma forma, corrompida pelo sociedade e, conforme se
depreende do desfecho do filme, não há nenhum remédio para certos problemas das
sociedades humanas.
Os cientistas, por exemplo, são descritos como ingênuos e maus. Ingênuos porque não
percebem que retirar a capacidade de autopreservação de Alex irá culminar em sua
morte no seio da sociedade, já que o ser humano, em sociedade, age de forma
imprevisível e, amiúde, sem piedade dos seus semelhantes. Além disso, os cientistas são
maus por não possuírem compaixão. Ou seja, mesmo a boa intenção dos cientistas que
acreditam no progresso da ciência e que, portanto, acreditam nos bons resultados do
experimento com Alex, ao se depararem com uma falha na execução do experimento,
relativa à música do Beethoven, preferem deixar o experimento em curso, mesmo que
isso gere uma dor desnecessária para Alex ao ouvir a sua amada nona sinfonia de
Beethoven.
4.1. Autopreservação e Compaixão
9 Acerca do pessimismo em Rousseau: Dienstag, 2006, p. 49–82.
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O fato do agir instintivo de Alex ser apresentado como algo sublime, como no
caso da violência e dos ato sexuais, leva à ideia de que uma ação boa a partir de um
estágio ou dimensão social do ser humanos passa a ser impossível.
Diria Rousseau: antes do aparecimento da linguagem ou da autoconsciência, o
ser humano era guiado por duas leis, a saber, a autopreservação e a compaixão. “(...) j’y
crois apercevoir deux principes antérieurs à la raison, dont l’un nous intéresse
ardemment à notre bien être et à la conservation de nous-mêmes, et l’autre nous inspire
une répugnance naturelle à voir périr ou souffrir tout être sensible, et princialement nos
semblables.” (Rousseau, 1995, pp. 70–72). Estas duas características não são próprias
ou exclusivas dos seres humanos, mas, sim, presentes em todos os animais. Interessante
notar que, nesse viés, cumprir as regras naturais, aquelas leis derivadas da nossa
natureza, não pode ser considerado um agir racional e, portanto, não se trata de uma
obrigação em sentido estrito. Denominar a própria autopreservação e compaixão de lei é
em si um problema para uma ética na forma imperativa, já que estas leis não são
motivos racionais para o agir humano.
Em especial, a compaixão é responsável pela convivência pacífica dos seres
humanos, conforme também expressa Kubrick. Nota-se, por exemplo, que, no desfecho
do filme, não é uma motivo racional que conduz ao perdão social de Alex e, portanto, à
condenação do projeto científico do governo, como, por exemplo, o argumento de que o
livre arbítrio é a essência do ser humano, conforme defendia o padre,. Ou seja, não é
porque a liberdade humana é um valor intangível, que o projeto é rejeitado, mas, sim,
porque Alex “já sofreu o suficiente”. E, ademais, Alex só passa a sofrer o suficiente
após a tentativa de suicídio. A compaixão da opinião pública com relação à situação de
Alex leva ao seu perdão social e ao fim do projeto. Mais interessante que isso, Alex, no
fim do filme, volta a apresentar o semblante de quem irá cometer mais crimes, o que
reafirma o pensamento de que a liberdade, em Kubrick, não é algo a ser perseguido
como intrinsicamente bom e que a condenação do projeto não é uma consequência do
valor intrínseco da liberdade humana, mas, sim, do seu instinto natural de compaixão.
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Contudo, como a compaixão e a autopreservação são leis ou motivos para ações
derivadas da natureza, mas, paradoxalmente, não da razão, seria difícil qualificar
qualquer ação decorrente desses instintos como boas. É por tal razão que o filme
termina de forma brusca com a simples assertiva de que Alex já sofreu o suficiente e
que as pessoas têm, agora, compaixão da sua situação. Não se trata de um ato racional,
repise-se, mas, sim, do mais puro instituo humano. A ética, segundo Kubrick e
Rousseau, pode ser desenvolvida desta forma, i.e., de forma não-imperativa, baseada em
virtudes e valores.
4.2. Perfeição e Linguagem: a natureza social do ser humano
No entanto, embora o filme apresente uma visão positiva com relação aos
momentos instintivos do ser humano em sociedade, as demais personagens são
apresentadas sem compaixão e prontos para, por meio de um agir racional, cometer
atrocidades. Relevante notar, também, que estas personagens não possuem gosto
musical, o que reforça a relação já destacada entre o belo e o bom em Kubrick.
Algumas características sociais diferenciam os seres humanos dos animais, caso
se queira dialogar ainda com Rousseau (1995, p. 106). O livre arbítrio, a perfeição e a
linguagem são as características adquiridas pelos seres humanos em sua dimensão
social. O aparecimento destas qualidades marca, por outro lado, o fim do domínio da
autopreservação e da compaixão. Diferente do Rousseau acreditava, entretanto, segundo
Kubrick, estas características podem ser mantidas na sociedade, conforme já dito acima.
O livre arbítrio, como característica social do ser humano, consiste na habilidade
de agir de forma contrária às leis naturais, tais quais definidas acima i.e., sobretudo, a
compaixão. A compaixão é o sentimento de se identificar com os outros e, assim, sentir
a dor alheia. A autopreservação é a capacidade de defender a sua própria vida.
Além do livre arbítrio, que não parece possuir um significado central para a
determinação do bem, tanto em Rousseau, como em Kubrick, a reflexão ou a
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capacidade de pensar sobre o seu próprio estado, a consciência de si, é a característica
central que diferencia o ser humano dos demais animais. Esta é derivada de outras duas
qualidades, a linguagem e a perfeição. A linguagem é tratada como um meio para a
reflexão, enquanto a perfeição é justamente o aspecto mais importante do estado social
do ser humano. A perfeição consiste na capacidade humana de ter consciência da sua
condição temporal, i.e., que nós seremos amanhã algo que não somos hoje. A linguagem
permite ao ser humano apreender o mundo além da imediatez dos sentidos. A
combinação de linguagem e perfeição abre ao ser humano a possibilidade de apreender
o mundo de forma abstrata e temporal e cria, ao mesmo tempo, novas necessidades ou
motivos que não estão ligadas diretamente aos sentidos e que, portanto, ultrapassam o
controle do próprio indivíduo. Eis aí o pessimismo cultural de Rousseau presente. Após
adquirir as características da linguagem e da perfeição e, dessa forma, de se diferenciar
dos demais seres vivos de forma definitiva, o indivíduo humano passa agir por
interesses contingentes, frutos das diversas atribuições de significados às ações
humanas, presentes, de forma contínua, no seio da sociedade.
4.3. O estado da dependência pessoal como consequência do estado social do ser
humano.
Nota-se que a ânsia de eliminar os instintos malignos de Alex por meio de
experimentos científicos, químicos e psicológicos, leva-no a um estado de dependência
pessoal maior com relação aos demais seres humanos, já que, além da sua dependência
natural em razão da linguagem e da perfeição, ele passa a estar privado da capacidade
de autopreservação, que o protege da ausência de compaixão no agir dos seus
semelhantes.
Diria Rousseau que, a partir da entrada no estado social, os seres humanos
passam a depender pessoalmente dos outros, pois os motivos que dirigem as suas ações
não são mais naturais, tais quais os instintos de autopreservação e de compaixão. A
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linguagem e a perfeição criam necessidades culturais criadas pelas relações econômicas
e sociais. Os seres humanos vivem acorrentados em qualquer sociedade. Pois, os
motivos para as suas ações são produto da consciência das coisas e do outro O saciar
das suas necessidade e interesses não depende da sua vontade, mas do jogo de
atribuição de significados existente na sociedade, os quais não são mais guiados pelos
instintos naturais e permanecem presos à tendência de perfeição temporal do ser
humano.
5. O Problema do Livre Arbítrio como Fundamento da Ética
A ética, como conhecimento humano, busca investigar a pergunta “O que eu
devo fazer?”. Ou, de maneira mais precisa, o seguinte silogismo: P1. Todo justo deve
ser feito; P2. X é justo; C1. X deve ser feito. Nesse sentido, as diversas correntes da
ética, ao longo da história, buscam discutir quais as condições de possibilidade para a
identificação do X.
A ética, na antiguidade, é eudemônica, porque busca identificar virtude e
felicidade como resposta ao problema do justo, ou, em outros termos, do X acima. A
virtude, portanto, seria um meio para o fim da felicidade. Trata-se, portanto, de uma
ética baseada no princípio da identidade. Ao revés, a ética moderna se baseia em
motivos para as ações. Dessa forma, a partir de Kant, a resposta para o silogismo ético
passa a ser concebida na forma de motivos justos no sentido de justificados
racionalmente para as ações humanas. Se a liberdade for aceita como ideia determinante
– mas não verificável – para este agir justo, então, a ação justa passa a ser consequência
de uma determinada ideia de liberdade associada à livre escolha racional – não
decorrente de uma causalidade natural, mas, sim, de uma causalidade moral – da ação.
Pode-se denominar o motivo racional como critério de uma ação justa de livre arbítrio
(liberum arbitrium indifferentiae).
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A identificação de X, no âmbito do silogismo, passa a depender da ideia de
liberdade. Esta ideia é discutida em Kubrick, além do exposto acima, por meio da teoria
da pena.
O padre é a única personagem que defende o livre arbítrio como base para a
ética e, consequentemente, como base para uma crítica à política criminal proposta pelo
Governo.10 No momento em que ele se posiciona contra o método empregado pelo
cientistas para modificar o comportamento de Alex, afirma que tal método tem por
consequência retirar aquilo que qualifica os seres humanos como espécie, a saber, o
livre arbítrio. Por conseguinte, este método não pode ser permitido do ponto de vista
ético.
Kubrik, assim como outros pessimistas (e. g. Schopenhauer), defende que essa
perspectiva acerca do agir humano não corresponde à realidade e, portanto, deve ser
rejeitada.11 A tentativa de construção de uma ética, baseada em uma lei moral, não passa
de uma petitio principii na visão do pessimismo filosófico (Schopenhauer, 1977, p.
160).
5.1. Teorias da Pena em Kubrick
As possíveis posições com relação à liberdade são discutidas, em Kubrick, com
base na teoria da pena. O objetivo, contudo, não consiste exatamente em discutir as
teorias da pena. Uma teoria da pena adequada busca dar uma resposta ética à questão da
punição, ou seja, da reação à infração a uma regra de comportamento, que seja
considerada uma resposta a esta infração e não a outra coisa (Hoerster, 2012, p. 12). No
10 O fato do padre, i.e., um sacerdote defender tal perspectiva é decisivo, pois muitos autores atribuem a
forma imperativa da ética de matriz kantiana, desconhecida na Antiguidade, à filosofia cristã. Ver:
Schopenhauer, 1977, p. 161 ss.
11 Tal conclusão pressupõe, naturalmente, uma determinada posição epistemológica, que não será
discutida aqui. Para uma visão geral: Fumerton, 2014.
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entanto, como tudo na filosofia, cada uma dessas teorias depende de uma determinada
concepção de ser humano e liberdade, as quais já foram expostas acima.
Há três teorias da pena apresentadas no filme “Laranja Mecânica”. As três
teorias são concorrentes e Kubrick, como reflexo do seu pessimismo, não apresenta
nenhuma decisão definitiva para este problema. As três teorias concorrentes durante o
filme são:
(a) Teoria retributiva: defendida, sobretudo, pelo agente penitenciário. Ele acredita
que a pena de Alex é justificada como forma igualar o sofrimento que ele
causou, por meio da sua violação às normas de conduta, como no caso dos
crimes de estupro ou homicídio. Trata-se de uma forma do princípio de Talião
“olho por olho, dente por dente”.
(b) Teoria da prevenção especial: defendida pelo cientista, que acredita que a função
da pena consiste, sobretudo, em modificar o comportamento de Alex com fito de
que ele não venha a cometer mais crimes.
(c) Teoria da prevenção geral: defendida, sobretudo, pelos políticos, os quais
defendem a justificação da pena como forma de prevenir o cometimento de
outros crimes semelhantes.
Contudo, as três teorias são contraposta, durante o filme, às condutas pessoais
dos seus respectivos defensores, ou, em outros termos, às virtudes das personagens. O
novo projeto político de tratamento dos presos por meio de um experimento psicológico
é uma resposta que agrada todas as posições acima. Aliás, “Laranja Mecânica” possui a
virtude de demonstrar que nenhum sistema criminal pode ser concebido de forma pura,
como se fosse baseado em um só fundamento ético.
O experimento psicológico, apresentado no filme, consiste em reabilitar os
presos com base em um procedimento de recondicionamento do seu agir. O preso é
levado a um instituto médico e é submetido a sessões de cinema, nos quais a ele são
apresentadas cenas fortes de violência, estupro etc. Além disso, antes de cada sessão,
um medicamento ou droga é aplicado no preso/paciente. Após alguns dias de
tratamento, o preso/paciente passa a desenvolver uma reação às cenas de violência
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apresentadas durante as sessões: uma dor na forma de ânsia de vômito passa a ser
consequência de qualquer pensamento ligado às cenas vistas durante o tratamento.
Assim, quando o preso pensa em cometer qualquer crime, ele não consegue ter o último
impulso para determinação da sua ação, a saber, a escolha, pois sente uma dor intensa
que limita o controle do seu corpo.
Em primeiro lugar, o experimento satisfaz, com devidas ressalvas que serão
expostas abaixo, a teoria retributiva, defendida pelo agente carcerário. O agente é contra
o projeto do Governo, porque acredita que Alex e os demais presos devem pagar pelos
seus crimes, i.e., devem sofrer em razão dos atos que cometeram. Contudo, Alex, ao ser
submetido ao tratamento, passa a desenvolver dores intensas quando pensa em praticar
qualquer crime. A dor sofrida por Alex, inclusive, desnecessária no que toca à nona
sinfonia de Beethoven – aliás, esta dor dificilmente pode ser considerada também uma
pena, já que não decorre diretamente da infração das normas, realiza, mesmo que de
forma não precisa, a teoria retributiva. Isto fica claro por meio do comentário irônico do
cientista que, ao observar que Alex sentirá dor ao ouvir Beethoven, comenta que os
guardas ficarão felizes com este fato, i.e., com a sua dor desnecessária.
Em segundo lugar, a prevenção especial como teoria direcionada a impedir que o
indivíduo volte a cometer crimes é o objetivo mais direto do experimento proposto
pelos cientistas, pois Alex foi recondicionado a não pensar mais em atos violentos ou
infração das normas. Finalmente, a prevenção geral é objeto da defesa dos políticos, na
medida em que a adoção do experimento como política criminal visa também indicar à
sociedade a dor que pode ser sofrida em caso de cometimento de crimes.
Em Kubrick, nenhuma das teorias acima logra em razão da condição humana,
exposta a partir do pessimismo em seu filme. Alex se torna vítima, ao cabo do filme,
após sofrer sob o controle dos mendigos, policiais e políticos e tentar o suicídio, em
razão da compaixão da opinião pública com relação ao seu sofrimento e não, em razão,
por exemplo, da violação de uma lei da moralidade.
Poder-se-ia pensar em uma defesa da teoria retributiva, uma vez que a dor
sofrida por Alex é aceita como suficiente como pena pelos crimes cometidos. Contudo,
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deve-se observar que a dor, neste caso, não corresponde a uma medida da dor causada
por Alex, o que dificulta a correspondência a uma teoria retributiva. Não há qualquer
critério para determinação desta dor e, ademais, o escritor idoso que tenta levar Alex ao
suicídio não acredita que o seu sofrimento foi suficiente, uma vez que ele causou
supostamente a morte da sua esposa e a sua limitação física. Aliás, para as vítimas, não
parece haver uma dor correspondente à dor causada pela violência de Alex.
Pressupor que a liberdade no sentido de liberdade moral ou livre arbítrio possa
ser a base de uma justificação ética para a pena é um erro, conforme indica o filme. Não
é certo, nesse sentido, que as pessoas, ordinariamente, podem escolher cumprir ou não
cumprir as normas. O que guia o comportamento de Alex, conforme acima explicitado,
parece ser uma liberdade mais instintiva que o torna livre em certo sentido, mas, ao
mesmo tempo, nocivo para o convívio social. A punição de Alex e o seu posterior
perdão seguem o mesmo raciocínio.
5.2. Do Problema do Livre Arbítrio a uma Questão de Caráter
Conforme esboçado acima, conquanto uma interpretação mais tradicional da
obra de Kubrick pudesse conduzir ao problema do livre arbítrio como centro da sua
fundamentação ética, este passo parece ser um πρωτον ψευδος (um passo falso). A
sociedade, em Kubrick, é apresentado em um estágio, no qual ela mesma não consegue
mais lidar com pessoas como Alex, as quais, sem quaisquer problemas aparentes
vinculados às condições sociais de acesso à educação ou à família, cometem crimes e
praticam violência desmedida. De forma paradoxal – haja vista o ideal de racionalidade
de determinados sistemas éticos, contudo, Alex é apresentado como alguém livre, que
segue os seus instintos mais naturais, i.e., alguém que, de certa forma, “escolhe” agir da
forma que age.
A fundamentação de Kubrick, tal qual interpretada neste estudo, se aproxima de
uma visão que pode ser considerada pessimista: o livre arbítrio é uma ficção e o
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determinante para as ações humanas é a virtude. Para fins de diálogo com outra
concepção pessimista, a dizer, a de Schopenhauer, pode-se compreender virtude como
caráter.12
O caráter, nesse sentido, é uma constituição especial e individual da vontade,
segundo a qual toda reação aos mesmos motivos será diferente em cada ser humano,
uma vez que ele não é conhecido a priori, mas, sim, através da experiência
(Schopenhauer, 1977, p. 87). Através dele e somente dele, é determinada a forma de
reação dos diferentes motivos para agir. Nesse sentido, o caráter é (1) individual – é um
em cada indivíduo; (2) empírico – só pode ser conhecido através da experiência; (3)
constante – ele permanece o mesmo durante toda a vida; e (4) natural – cada indivíduo
nasce com um caráter, i.e., não se trata de um artefato ou de algo sujeito às
contingências do meio, mas, sim, de uma obra da natureza (Schopenhauer, 1977, pp.
87–93). Se esta tese for aceita, como parece ser o caso no filme de Kubrick, então, para
indivíduos com um caráter como o de Alex, não há outra saída, a não ser a sua exclusão
da sociedade ou o experimento proposto no filme, já que o caráter é algo imutável e, in
casu, já identificado por meio das experiências.
Não obstante, embora Kubrick e Schopenhauer defendam uma fundamentação
pessimista da ética, baseada também no conceito de caráter, conforma acima delineado,
não se pode concluir de tal premissa que o experimento proposto pelo Governo, no
filme, é permitido do ponto de vista ético. Isto porque direito e política, conquanto não
sejam baseados em uma liberdade moral para o pensamento pessimista, tal qual as éticas
imperativas propõem, estão baseados em um outro tipo de liberdade (aristotélica)
(Schopenhauer, 1977, pp. 139–142).
A causalidade que determina o agir humano não é pensada, segundo essa
concepção, tal qual a causalidade natural, observável na natureza. Ao revés, trata-se de
uma causalidade cognitiva, uma vez que os motivos ou causas que determinam a ação
precisam ser conhecidos pelos indivíduos. As condições de possibilidade do
conhecimento dos motivos que irão determinar a ação individual é o ponto problemático
12 Ignora-se, para fins deste estudo, se há alguma diferença específica entre virtude e caráter em
Schopenhauer.
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de qualquer tentativa de limitação da capacidade cognitiva dos indivíduos, tal qual
apresentada no filme. Em outros termos, dado que o caráter só pode ser conhecido de
forma a posteriori e que a sua determinação depende das condições (sociais, culturais e
físicas) de possibilidade do conhecimento dos motivos ou circunstâncias em um dado
caso, direito e política, como formas de ação humana, devem garantir aos indivíduos as
condições de acesso a todos os motivos que possam determinar as suas ações. A
limitação da capacidade cognitiva de Alex, por meio do experimento, passa a não ser
justificada em virtude (a) da impossibilidade de determinação apodítica do seu caráter e,
consequentemente, (b) da própria função do direito e da política como garantidores das
condições para a real cognição dos motivos. Contudo, os limites para a restrição da
capacidade cognitiva dos indivíduos não podem ser dados a priori e dependem, em
grande medida, de escolhas circunstanciadas das sociedades. Kubrick tenta, em seu
filme, demonstrar que o inaceitável no tratamento de Alex não é a sua insustentabilidade
do ponto de vista teórico, mas, sim, a sua insustentabilidade do ponto de vista prático,
i.e., sob a perspectiva da própria condição humana na política e no direito.
6. Conclusão.
A pergunta que Kubrick se coloca é no sentido de questionar se o ser humano é
realmente livre. “Laranja Mecânica” apresenta uma sociedade que aceita a limitação da
capacidade cognitiva do ser humano como ultima ratio da política criminal. Ao invés de
buscar defender uma posição teórica específica, Kubrick apresenta uma filosofia
negativa que demonstra os reais problemas práticos de qualquer ação política.
Segundo Kubrick, há duas ideias que limitam políticas criminais, como aquelas
apresentadas no filme, a saber:
(1) Em primeiro lugar, a ficção, defendida pelo padre, de que há uma dignidade
ou uma liberdade intrínseca a cada ser humano, sem a qual não é possível
viver humanamente.
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(2) Em segundo lugar e, no filme, prioritariamente, a compaixão e a liberdade
intelectual.
A compaixão, como capacidade do ser humano de se igualar a outro e,
consequentemente, sentir a dor que o outro sente, é a virtude ou motivo responsável pela
garantia da paz no âmbito social, segundo Rousseau. Em sua obra, Kubrick defende a
mesma ideia ao imputar à compaixão a salvação de Alex. Nesse sentido, não é um
argumento racional que irá conduzir à compreensão da impossibilidade de realização de
experimentos com os seres humanos, tal qual o do filme, mas, sim, ao revés, o
sentimento de compaixão no seio da sociedade. É porque Alex sofreu o bastante após a
sua saída do instituo médico/prisão que ele irá ser perdoado e tratado dignamente pela
sociedade.
Ademais, além do problema da compaixão, o experimento realizado pelo
Governo em Alex seria também impróprio do ponto de vista ético em razão da limitação
ilegítima da liberdade cognitiva ou intelectual do indivíduo. Embora o livre arbítrio,
como base de uma liberdade moral, seja problemático, a causalidade que determina o
agir humano não é a mesma da natureza. Trata-se, ao revés, de uma causalidade
cognitiva, que depende, portanto, das condições de possiblidade dos seres humanos
conhecerem os motivos ou causas para as suas ações por meio do caráter, conforme
também argumenta Schopenhauer. Direito e política, assim, como realizações da ética,
são artefatos, criados para garantir as condições de possibilidade do agir humano em
sociedade.
Os fundamentos éticos de Kubrick, como também de Rousseau e Schopenhauer,
são pessimistas por não acreditarem em um progresso no sentido de que os modelos
políticos possuem a tendência de, a partir do reconhecimento de determinadas estruturas
ou ideias morais, realizar a felicidade. Ademais, não há leis morais para garantir ações
justas em todos os casos. Os seres humanos são determinados pelo seu caráter e este não
pode ser modificado – ou se pode, não o será de forma tão simples. Alex, por exemplo,
mesmo tendo sofrido na penitenciária e após a sua liberação, não parece ter se
reabilitado ou ressocializado. Não obstante, a sociedade precisa construir a sua política e
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direito sob as condições reais dos seres humanos, a partir das suas reais limitações,
como, por exemplo, a impossibilidade de mudança de determinados indivíduos.
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