Capítulo 2 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte
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Capítulo 2 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte
Capítulo 2 Ensaio Visual: CORPO PELES / ESTRANHAS / ENTRANHAS peles / eles / pelancas poupanças estranhas / antigas antiguas éguas águas estranhas / estráguas estranhas entranhas peles / pedaços de aços pedaços de asnos peles / estranhas / entranhas vísceras / víboras ecos / elos peles / pedaços / envólucros / cascas capas Contatos / contidos / contornos peles estranhas entranhas... Lucimar Bello. Dezembro/1989 Este capítulo é um ensaio não-convencional de escrita, como foi mencionado na introdução, e constitui um texto voltado às referências visuais para pensar o corpo. As imagens aqui mostradas, numa abordagem descritiva, darão sustentação à articulação da memória visual da pesquisadora e dos leitores na constituição da sua produção plástica e da produção de leitura, uma vez que trazem referências visuais, plásticas, composicionais e teóricas. A imagem é o foco ou o elo, a base desta pesquisa. Pensar na imagem como ponto de partida deste trabalho e responder como se deve aliar a pesquisa prática com a pesquisa teórica, sem uma ser o suporte da outra, me fez chegar a uma solução que é uma junção de caminhos diferentes para saber ver e saber dizer para melhor “fazer pensar através de imagem” (Samain, 1993:008 apud Achutti, 1997, p. 38). É um ensaio com a função de investigar todo o material coletado durante esse período de construção da pesquisa e que ajudou a pensar nos caminhos 48 que ela deveria seguir, tanto na questão formal da escrita, quanto na construção visual, ou seja, a produção artística que é o foco da pesquisa. As imagens expostas neste capítulo fazem parte de um diário visual que ao longo da pesquisa foi sendo construído. A idéia era trabalhar com o corpo em movimento, dar às fotografias o movimento corporal, não só do objeto corpo, mas também do movimento da câmera e do corpo da fotografa, porque este corpo não pára, seu movimento é junto com os corpos dos atores, numa construção conjunta entre eles. As imagens foram reunidas de dois modos. O primeiro foi um levantamento de imagens dentro de estratégias da História da Arte, respeitando os elementos da iconografia; o outro modo foi a produção de imagens através da observação participante do grupo de performers Castra Doloris. De início foram reunidas todas as imagens que entrariam no capítulo, busca em revistas, livros, Internet, catálogos de exposições. Após uma seleção daquelas que seriam utilizadas, elas foram escaneadas e guardadas em uma pasta. As categorias nasceram da experiência com o grupo de performance que eu observava e das observações e experiências anteriores do mestrado. Todo esse movimento ampliou meu repertório para pensar no corpo e selecionar imagens e categorizá-las. Portanto, essas categorias possuem um caráter subjetivo, poético, por se tratar da minha relação com as imagens, possibilitando, a partir daí, a compreensão e desenvolvimento do meu processo de trabalho. Essa subjetivação se encontra no campo visual. A classificação foi realizada a partir dos diferentes tipos de abordagens do corpo: corpo movimento; corpo pele, que desmembra em corpo fragmento e representações do corpo; corpo cenário/objeto. 2.1. Corpo Movimento A seleção desta categoria corpo movimento foi feita a partir das considerações de Serres e das referências dessas imagens para a construção da minha produção. Os corpos aqui estão em diferentes situações. Há registros 49 desde os rituais indígenas, cultos xamânicos, passando pela performance, por exercícios corporais com crianças até chegar à dança contemporânea. A pele reveste os músculos dos corpos em movimento, peles que esticam e se transformam de acordo com os movimentos do corpo. As obras classificadas como corpo movimento traduzem a totalidade dos sentidos, daí a importância de colocarmos nosso corpo em movimento. Para Serres, O corpo em movimento federa os sentidos e os unifica nele (...) Para que se consiga realizar uma caminhada sem fadiga na montanha, mesmo que o percurso seja árduo, basta que, dentro do silêncio, nunca se perca nenhum tema ou nenhuma de suas variações: a partir do ouvido externo, eles enviam preciosos sinais de segurança e equilíbrio ao ouvido interno. Esse canto prodigioso e intenso que surge do corpo exposto ao movimento ritmado do coração, à respiração e à regularidade parece sair dos receptores musculares e das articulações, do sentido dos gestos e do movimento para invadir inicialmente o corpo e depois o ambiente, com uma harmonia que celebra sua grandeza e que, posteriormente, se adapta transbordante ao próprio corpo que a emite. (Serres, 2004, p. 15). Ao mesmo tempo em que vivencio com meu próprio corpo, observo outros corpos, como é o caso da participação e observação do grupo Castra Doloris. Os registros dos atores são corpos em ensaios, alongamentos, treinamentos corporais para a construção de um evento. Essa vivência com o grupo, as leituras de Serres sobre as relações entre o corpo parado e o corpo em movimento, a crítica do corpo sedentário, essas questões me estimulam a pensar no meu próprio corpo. Algumas dessas sensações corporais começaram a ser vivenciadas a partir do momento em que iniciei práticas de exercícios físicos como a yoga, a corrida e fazer sessões de acupuntura. Pude perceber o movimento, o som do corpo e aprender a dominar certos movimentos, pensar no meu próprio movimento corporal, nos espaços de repouso para o corpo, nos momentos desse repouso e do não repouso, fazendo correlações e encontrando referências com as imagens aqui expostas, e a partir disso transpor todas essas reflexões/ referências para um plano bidimensional. 50 Assim como no trabalho do coreógrafo Ivaldo Bertazzo1, penso nessa movimentação do corpo nos encontros e desencontros, nas organizações corporais para alcançar determinadas representações poéticas na minha produção. “Esculpir, dar corpo, incorporar o movimento, até que gere identidade. Uma identidade produzida justamente pelo conhecimento e pelo trabalho: este é o ideal - concreto e viável – que Ivaldo Bertazzo pratica na dança”. (Bogéia apud Bertazzo, 2004, 54). O método de Bertazzo é sempre sobre experiências vividas, uma percepção do que vivemos corporalmente a cada dia. Para Bogéia, a consciência perceptiva do corpo vem das sensações que se organizam – pelo encadeamento da passagem de tensões, músculo a músculo, promovendo a sensação da unidade.(...) O corpo se comunica por movimentos, sons e palavras, que expressam um saber. Assim que ele se organiza para o movimento e para a dança, sua expressão alcança novos níveis na fala, na escrita e na comunicação verbal. A construção da linguagem se dá no corpo de cada indivíduo e reflete sua posição no mundo. (Bogéia apud Bertazzo, 2004, p. 54). É a idéia de que através do movimento percebo o corpo no espaço. Essas colocações vão ao encontro do pensamento de Serres, quando fala sobre a necessidade de colocar o corpo em movimento, comentado anteriormente. E na instalação proposta por esta pesquisa um dos ambientes criados tem essa finalidade: gerar atividades que possibilitem aos visitantes perceber o seu próprio corpo no espaço. Podemos também pensar o corpo através das performances de Hudinilson Jr., das experimentações de Hélio Oiticica, com seus Parangolés e Penetráveis, e dos objetos relacionais criados por Lygia Clark e experimentados pelo público. Hudinilson Jr. é um dos artistas pioneiros, no Brasil, da Arte Xerox e da Arte Postal, além da performance e tem uma importância significativa dento da História da arte brasileira por suas intervenções, atitudes e obras. Foi um dos integrantes do grupo 3Nós3, juntamente com Mário Ramiro e Rafael França. Fez diversas performances utilizando a máquina fotocopiadora para reproduzir cópias do seu corpo. 1 Ivaldo Bertazzo é coreógrafo, professor de dança e terapias corporais. O espetáculo referido aqui é Samwaad: rua do encontro, realizado no SESC Belenzinho de março a junho de 2004. 51 As fotos de Hudinilson Jr. aqui expostas são um ensaio fotográfico que tem uma semelhança com a performance realizada no palco do Centro Cultural de São Paulo. Contou com uma máquina de xerox e um espelho suspenso, a uma distância de 1,5m de altura e posicionado num ângulo de 60º com relação ao palco, para a platéia (termo utilizado por Hudinilson). Foram instaladas duas câmaras de TV atrás da copiadora, focalizando um plano geral, conectadas a 8 televisores, de forma alternada, quatro em cada plano da platéia. O palco apresentava pouca luz e um áudio de uma máquina em funcionamento. Os televisores estavam funcionando, a máquina, pronta para xerocar, um fotógrafo encontrava-se sobre o palco e outros dois junto à platéia para registrar a performance. Hudinilson começa a tirar todos os acessórios do corpo, inclusive a roupa. As primeiras cópias são das mãos, depois pés, braços, rosto, peito, pernas, costas, pênis, nádegas. A cada 39 cópias, elas são retiradas da máquina e colocadas no palco para serem distribuídas aos espectadores. Essas ações inserem Hudinilson Jr., também, na categoria corpo cenário/ objeto. Todo o corpo se relacionando com a máquina permite a existência de um outro corpo, reproduzido, retalhado, e que não é mais o corpo original, e sim um novo corpo. “A cópia da cópia e seu auto-contraste, a redução à exaustão, e mesmo a ampliação, à redução gráfica dos contornos e sombras. O voyeurismo de mim mesmo” (Hudinilson Jr., 1983, p. 06). Imagens sensuais, narcisistas, fragmentadas, detalhes de detalhes do corpo. Como o próprio artista afirma, detalhes que fascinam a retina, instigam a mente para um estado libidinoso. Um corpo liberto das máscaras impostas pela sociedade ao longo do tempo. Utilizar o corpo como matriz, a partir de uma relação especial de trabalhar no contato físico, entre a idéia e o processo mecânico; debruçando-me e deitando-me por inteiro sobre o visor do xerox, compondo, assim, formas/texturas. O xerox recria o corpo de maneira própria, destruindo detalhes e valorizando outros, resultando imagens que se aproximam da abstração, num exercício de leitura/visão. (Hudinilson Jr., 1983, 06) Nas experimentações de Hélio Oiticica o corpo ocupa o espaço, este construído para ser habitado, quando se trata dos Penetráveis, dos Bólides. Já 52 os Parangolés são criados para serem vestidos pelas pessoas e estas ocuparem um determinado espaço de acordo com sua dança. “Parangolés foram criados para serem experimentados: ou a pessoa os veste e se move com eles, ou os vê em movimento quando eles são vestidos/levados por um outro participante.”( Jacques, 2003, p.37). Nas experiências de Lygia Clark com o corpo, podemos citar várias experiências que trazem reflexões de um corpo a partir da “tensão entre o dentro e fora, o eu e o outro, o intelectivo e o sensório, o prazer e a realidade”. (Milliet, 1992, p.109) Lygia Clark, na instalação chamada A Casa é o Corpo: Labirinto (1968), montada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e posteriormente na Bienal de Veneza2, constrói um ambiente estimulante à participação do visitante, proporciona um experimentação variada e ao mesmo tempo calculada pela artista. Milliet descreve a instalação: Para ser penetrada pelo visitante como “abrigo poético”. Passando por compartimentos chamados “penetração”, “ovulação”, “germinação’ e ‘expulsão”, o indivíduo é levado a experimentar sensações táteis, de perda de equilíbrio, de deformação, resgatando a vivência intra-uterina. Nessa proposição, o espaço é continente. Constitui cenário estimulante obtido pelo uso de materiais transparentes, iluminação, oferecendo condições para revivescências psicossensoriais. A organização espacial é preestabelecida e a participação em larga medida previsível, significando a manutenção de razoável controle do artista sobre a obra-ambiente. Sensibilizar o outro é a intenção do artista, ainda construtor. (Milliet, 1992, p. 114) Em muitos trabalhos de Clark, o uso do corpo é feito de maneira coletiva. Ela trabalhava com grupos, em que as pessoas se relacionavam, se tocavam, criando movimentos únicos compartilhados por todas e às vezes individualmente, gerando trocas entre os corpos, construindo uma poética vital. “Vital porque envolve todo o organismo provocando a sensualidade e sacudindo o psíquico”. (Miliet, 1992, p. 116). 2 A obra depois foi doada ao MAM do Rio de Janeiro. Lygia relata “Voltou de presente, mas não tiraram da alfândega. Foi leiloada e nunca mais apareceu. A Casa é o Corpo acabou”. Depoimento de Lygia Clark 53 2.2 Corpo Pele A pele é um outro ponto relevante para pensarmos o corpo. Nas obras aqui apresentadas sob a classificação corpo pele, pensamos a pele como a história do corpo. Para o filósofo Michel Serres (2001) a pele traz e mostra a história, para ele a pele é o lugar onde se imprime a memória: Nossa veste cutânea traz e expõe nossas lembranças, não as da espécie, como acontece com os tigres ou jaguares, mas as da pessoa, a cada um sua máscara, sua memória exteriorizada. Nós nos cobrimos de capas ou mantas por pudor ou vergonha de mostrar nosso passado, nossa passividade, para esconder nossa pele historiada, mensagem privativa, mensagem caótica, linguagem indivisível, demasiado desordenada para ser compreendida, e substituí-la pela impressão convencional ou cambiável das roupas, pela ordem simplificada do cosmético. (Serres, 2001, p. 32) A pele aqui é apresentada através da pintura do artista alemão Lucian Freud, com fotografias por Jenny Saville na obra Closed Contact, John Coplans com Self-Portrait, Melanie Manchot com as fotos de sua mãe Mrs. Manchot Sitting on Stool I, Spencer Tunick, vídeo de Zhang Huan, que documenta seu grupo de performance, e algumas das minhas obras. Cada um desses artistas traz, a sua maneira, a memória da pele, peles esticadas, texturas, fissuras, rugas, pintadas, superfície do corpo que escuta, vê e que para Serres é a reunião dos sentidos, é o elo deles, a pele é multissensorial. Peles integradas à paisagem formando outra paisagem de peles mestiças, confrontando com o urbano e questionando a vulnerabilidade do corpo, como é o caso das fotografias de Spencer Tunick. A pele representada por Lucian Freud é de pinturas que trazem uma pele viva, seu movimento histórico. Encontramos nas pinturas de Freud uma vivacidade e uma veracidade em suas peles, estas saem do corpo físico e se tornam tecidos que revestem seus corpos nus, numa constante troca de envolvimento entre artista, modelo e obra. Numa breve definição de sua obra, ele nos confessa: My work is purely autobiographical...It is about myself and my surroundings. I work from people that interest me and that I care about, in rooms that I know... When I look at a body it gives me a F. Cocchiarale e Ana Bela Geiger, em Abstracionismo Geométrico e Informal: A Vanguarda Brasileira nos Anos Cinqüenta, Rio de Janeiro, 1987, p.150. (Milliet, 1992, p. 114) 54 choice of what to put in a painting, what will suit me and what won't. There is a distinction between fact and truth. Truth has an element of revelation about it. If something is true, it does more than strike one as merely being so. Lucian Freud in http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/freud/, acessado em 30/03/200 Corpo pele que são descobertos, aceitos como belos ou não, como, por exemplo, na obra de Melanie Manchot, que fotografa sua mãe Mrs. Manchot, que antes não tinha intimidade com a câmera e não mostrava seu rosto para não ser reconhecida. De início recebia instruções para posar, mas, depois de certa intimidade com a máquina, Mrs. Manchot passou a mostrar seu rosto, tornando-se colaboradora da filha. Mrs. Manchot posa nua e freqüentemente faz poses imitando modelos glamurosas. Este tipo de trabalho questiona como e onde nós olhamos e por que nós encontramos beleza e erotismo em alguns corpos e não em outros. As fotos de Mrs. Manchot se assemelham às fotos de Coplans e de Claudia Andujar na obra Corpo/Tronco, da série O Ser Yanomani de 1974/1976/2002. Todos mostram um corpo “velho”, uma não beleza para muitos. Nas minhas produções me refiro também a uma pele que tem história, memória. Na obra Maria Pé No Chão fica clara essa referência tanto da pele, quanto nos detalhes de seus pés, rosto e mãos. Já na série poses, de 2004, a pele é visualmente excitante, tanto pela cor quanto pelos recortes, os enquadramentos do corpo. As imagens que trago aqui me fazem pensar na pele como: tato – identidade – suporte – superfície – planos - rugas – cores – retorcida – esticada – reconhecimento...; como no exemplo que Serres dá sobre o conto Cinderela: ela veste o pé docemente, como uma bolsa invaginada, prega reversa espécie de gorro ou dedo de luva, a gente sente a forma, tenda aberta ou fechada, feita pelo tato e para ele, pele sobre pele em lugares onde ele sofre, doentiamente sensitiva. Que chefe, que líder de entendimento afirmaria que a suprema delicadeza dos sentidos reside nos pés? Diria que nada está na sua cabeça sem que tenha estado primeiro em seus pés? (...) a pele precede o olhar no ato do reconhecimento (Serres 2000, p. 59). Esse reconhecimento através do tato, das texturas, superfícies, planos, encontros, aconchegos, cores, repouso da pele, a pele nua e que é 55 visualmente excitada pelo ato da visão, todas essas considerações me fazem voltar a minha construção de imagem para esta pesquisa. Para Serres nós ouvimos pela pele e pelos pés. Ouvimos pela caixa craniana, pelo abdômen e pelo tórax. Ouvimos pelos músculos, nervos e tendões. Nosso corpo-caixa retesado (esticado) por cordas vela-se de tímpano global. Lendo e relendo essas palavras percebemos o quanto o corpo é uma unidade, é único. Os sentidos se misturam como se fossem um saco de coisas, de sensações” (2001, p.138). 2.2.1 Corpo fragmento O corpo pele se desmembra em corpo fragmento, são imagens que remetem a detalhes do corpo pele. Ao falar de fragmentos do corpo, é importante uma referência às obras de Francis Bacon, tomando a análise de Siqueira3 sobre sua obra: Francis Bacon é um artista que não disfarça o real do corpo despedaçado e as fantasias em torno da imagem fragmentada do corpo. (...) A estética de Bacon é difícil porque nela algo da verdade se revela, sem apaziguamento. Bacon atira-nos o real na cara, retrata a brutalidade dos fatos e a violência íntima das coisas reais. O efeito de suas distorções é o de burlar a rotina do olhar, capturando inesperadamente o espectador e fazendo do aversivo algo convidativo ao olhar. (Siqueira, 2000, p. 226). Bacon aborda figuras, muitas vezes fragmentadas, esticadas, um corpo de dor, de pele plástica e carnal. Siqueira considera as figurações de Bacon carnes dilaceradas, muitas vezes tensas, e em constante movimento de luta. Outro artista que fragmenta corpos é o americano John Coplans. Seu trabalho traz a figura humana generalizada, uma representação universal, o corpo e sua geração. Coplans representa seu próprio corpo, sem cabeça, mas partes de todo o corpo, desmembradas, só pé, pernas e tronco, imagens que falam da idade da memória corporal. Enquanto Coplans não registra a cabeça em suas fotografias, Ana Et Ses Souers cria uma composição de cabeças numa grande mandala. Daisy Xavier utiliza fragmentos de corpos múltiplos, registros de vários corpos juntos, 3 Beatriz Elisa Ferro Siqueira no ensaio Francis Bacon: um grito suspenso na distorção da imagem In: Escola Letra Freudiana “O corpo da Psicanálise”, ano XVII, N.º27, 2000. 56 uns sobre os outros. Nas obras Closed Contact (1995/96), a artista Jenny Saville utiliza partes do corpo friccionadas contra uma superfície de vidro, chegando quase a uma abstração do corpo. As imagens desta classificação corpo fragmento trazem referências para minha pesquisa no sentido de construção da composição, pensando o corpo fragmentado, os recortes, os diferentes olhares para o corpo e como esses olhares possibilitam outros olhares para daí construir outras produções para serem olhadas. Na verdade acredito nas referências e influências que o artista vai tendo ao longo de sua caminhada, fato facilmente perceptível ao estudar a História da Arte. 2.2.2 Representações do corpo Representação do corpo é um dos desdobramentos da classificação corpo pele. Diferentes registros e representações, usos de vestimentas e estetização do corpo. As vestimentas, os acessórios, o gênero, as atitudes, os seus fazeres e as diversas formas de representação do corpo humano são elementos utilizados nas diferentes representações do corpo. Para Serres, “pela cosmética a verdadeira pele torna-se visível, como que vivida por si; pelo enfeite a lei singular do corpo aparece, como pelos traçados convencionais, cores ou curvas no mapa-múndi, o mundo em sua ordem mostra suas paisagens. O nu tatuado caótico e provocante traz sobre si o lugar comum e instantâneo de seu sensorium próprio, planícies e relevos onde se misturam os fluxos vindos dos órgãos da audição, da vista, do paladar, do olfato ou atraídos por eles, pele chamalotada onde o tato totaliza o sensível. A cosmética reproduz esta soma ou esta mistura, procura pintá-las, variando quanto às convenções sociais, segue instintivamente essa tatuagem temporária.(2001, p. 28) Podemos entender as máscaras muitas vezes criadas por muitas pessoas no dia-a-dia e também criadas pelos artistas, cada qual com sua maneira de representar impressões pessoais, individuais, muitas vezes traçando sua própria identidade. É como se o corpo fosse coberto de peles que o mapeiam escondendo a memória, a história, mas ao mesmo tempo trazendo seus valores, sua cultura. 57 Como diz Serres, “seu mundo sensível se recobre de um plano, na escala exata de sua superfície: traço a traço, olho a olho” (2001, p. 28). 2.3. Corpo Cenário/Objeto No corpo cenário/objeto, foi pensado, para seleção das imagens, como o corpo está sendo representado, o corpo fazendo parte da grande cena que é a obra, como, por exemplo, nas imagens do artista Joel-Peter Witkin, onde o corpo está inserido na paisagem, é colocado como um elemento central da representação. Witkin refere-se à tradição religiosa em sua obra, na idéia de que nós temos uma herança de mártires crucificados, e busca referências, para sua produção, em “grandes obras”, como é o caso da pintura Las Meninas, de Velásquez. Nesse exemplo da obra Las Meninas, de Velásquez, Witkin substitui a filha de Phillip IV da Espanha por uma garota de nove anos de idade, de Detroit, sem pernas. Na obra “Um Santo Oscuro” (Los Angeles, 1987), Witkin tomou como referência as pinturas espanholas que utilizavam clérigos de instituições. Um homem vítima da Talidomida foi seu modelo. O homem não tinha pele, braços, cabelos, cílios e pálpebras. Essa teatralidade da obra de Joel-Peter Witkin remete à construção cenográfica montada com corpos esquecidos, dilacerados, excluídos e que muitas vezes não têm “valor”, são desprezados pela sociedade. A construção do cenário faz que o corpo físico quebrado, dilacerado seja transformado num corpo importante, fazendo o papel principal da cena. Um fator a se destacar é o modo como esse artista captura as imagens, como consegue as pessoas com problemas físicos para fazerem as fotos e como organiza os cenários para elas. Vários são os artistas que envolvem corpos violentados, violência corporal, transformações, metamorfoses. Alguns utilizam o próprio corpo como construção, suporte para tal realização. A artista Orlan, que vive e trabalha em Paris, é um exemplo de tal fazer. A dor, a sinestesia a transgressividade corporal fazem parte de uma produção de registros corporais como um evento estético, fazendo com que as pessoas tenham um envolvimento emocional com suas imagens. “Orlan procurou obter os precursores das mudanças que 58 experimentou medicamente no próprio corpo a fim de se ajustar a si mesma a um plano mestre em termos estéticos”. (Grosenick, 2001, p. 414). Nas performances de Vanessa Beecroft o corpo é representado de maneira teatral. As mulheres de certa forma entram no local da apresentação e por alguns instantes permanecem estáticas e numa posição de distanciamento do espectador. O corpo é revestido, algumas vezes, de belas roupas íntimas ou um outro acessório, sandálias, perucas, maquilagem, em cenas em que nada acontece a não ser a entrada, a pose e a saída das mulheres. Na categoria representações da morte, estamos diante de imagens como as de Witkin, Andre Serrano, Roberta Graham, Gerhard Richter, Wang Wei, Chieh-Jen Chen, Wang Guang YI, Diana Thorneycroft, que nos revestem de registros estéticos de momentos da morte. Podemos pensar, a partir das imagens da morte, na compreensão da vida. Ela traz nossas limitações, por não podemos controlar o corpo para sempre. Michel Serres compara o ato de escrever com o esforço do corpo: neste momento todo o corpo se une dos pés ao crânio (2004, p. 17). Talvez essa seja uma justificativa para propor um capítulo que fale muito mais com o visual do que com o textual. Aqui construí meu pensamento visual dessas imagens e, a cada vez que retorno e as olho, construo novas coisas. É como se fosse um círculo que não termina. A maneira como organizei este ensaio é proposital para fazer com que cada pessoa que ler este trabalho possa ter a sua construção visual e, além disso, elaborar um pensamento visual das imagens que tomei como referência para criar a minha obra instalacional. Dentro de todas as categorias que foram estabelecidas para a montagem deste ensaio visual, a que gerou a idéia de pele foi a que mais me atiçou visualmente, poeticamente e textualmente, e foi a que me possibilitou definir qual seria e como seria o corpo retratado visualmente na construção da obra final.