fortuna crítica - Luciana Caravello

Transcrição

fortuna crítica - Luciana Caravello
FORTUNA CRÍTICA
2
Inventando corpos e/ou desvelando o erótico em inquietante devassidão: o encantamento
dolorido
Miriam Chnaiderman
É em nosso corpo que experimentamos a obra de Nazareth Pacheco: somos tomados pela
vertigem de um mundo que nos estraçalha, esparramando vísceras em orgasmos bizarros
entre a dor e o êxtase. Contrariamente ao artista que expõe seu corpo como objeto artístico, é
o nosso corpo que fica desnudado diante dos objetos agudos e cortantes. Penetrar os
cortinados feitos de lâminas de barbear e miçangas, no seu brilho sedutor, fascinante, faz com
que os rasgos aconteçam e esmigalhem imagens corporais, dilacerando qualquer identidade
possível. É a própria noção de sujeito psíquico que fica questionada, o jogo de espelhos se
inverte, perdemo-nos do olhar que nos constituiu, tornamo-nos ferida exposta. O Eu-pele
explode, os suspiros são indiscerníveis, algo do imponderável circula. Desruptor movimento
de campos do desejo, esvaindo contornos, degelando montanhas. Todos passamos a fazer
parte da chamada body-art, todos nossos corpos são campos de batalha. É essa a radicalidade
do trabalho de Nazareth Pacheco: instaurar um corpo-carne naquele que olha seu trabalho. E,
ao fazer assim, obriga a um trabalho de recostura do próprio eu. Nisso, vários eus se tornam
possíveis, vários corpos podem acontecer. As cirurgias são coletivizadas, os interiores dos
corpos misturam-se em comunhão ao mesmo tempo ascética e sanguinolenta. Um
sanguinolento sem sangue. Os cortinados, os adornos, os vestidos, são inodoros, atemporais,
sem marcas. Inumanos e profundamente humanos. Ficamos nós com os corrimentos, os
cheiros, os escarros, o informe. Tornamo-nos profanadores de terrenos sagrados: o leito do
amor, o banheiro, lugares do toque despudorado, do prazer clandestino, possível libertinagem
de cada um.
Dos instrumentos de tortura (tema que percorre toda a obra de Nazareth Pacheco) ao leito,
imensa cama acrílica. “Autour du lit fatal, chaque objet est nouveau”,(“Em torno da cama
fatal, cada objeto é novo”) disse Paul Éluard. Cama fatal, mesa de dissecação: “Belo como...o
encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de
dissecação.” Breton interpretou a mesa de dissecação da frase de Lautréamont, como cama, o
guarda-chuva representando o homem e a máquina de costura a mulher. O acaso é portador de
sentidos inesperados. Destruição de qualquer ordem estabelecida. E, não é esse o efeito do
desejo? Na cama que Nazareth Pacheco construiu não conseguimos deitar. Qualquer sentido
conhecido explode e inusitadas descobertas ocorrem em um erótico paradoxal, comunicação
3
cósmica e misteriosa, os amantes engendram o cosmos. O leito é rodeado de material cortante,
lâminas de barbear fixadas em miçangas. Masculino cortante e feminino ofuscante.
Instrumentos de dissecação, transfigurando encontros, fabricando corpos, mutação
permanente. O que se rasga é a própria representação da cama como ninho acolhedor da vida
e da morte. “O coito é a paródia do crime”, afirmou Bataille, inscrevendo o erótico na
violência. O encontro amoroso dissolve formas constituídas, destrói o descontínuo, propõe a
unidade. O sentido último do erotismo é a morte.
Freud mostrou que onde a fúria da destruição é mais cega pode sempre estar presente uma
satisfação libidinal. Impressões freqüentemente dolorosas são fonte de intenso gozo.É o que
há de demoníaco, inumano, em todos nós.
Nazareth Pacheco trabalha com a questão do gozo, desse gozo que é barrado pelo desejo. Isso
implica em romper barreiras, um enfrentamento com os limites. O gozo é do campo do que
não cabe na palavra, do que não pode ser nomeado. Gozo tem a ver com pulsão, pura
intensidade, forças em redemoinho. O desejo retoma ao nível da vida de fantasia o gozo que
ficou do lado da pulsão. Só que o gozo é morte e, portanto, o desejo jamais é satisfeito. Gozo
implica em forçar a barreira do princípio do prazer, e, portanto, questiona o interdito.
Nazareth Pacheco propõe uma mais além do desejo, um encontro com o que é originário no
erotismo. Transgride, indo em direção a um real pulsional. Libertinagem contemporânea,
invenção de uma linguagem que faz coincidir sentido e signo. Não há metáfora possível,
estamos no nível do real, das paixões do corpo. Valery afirmou sobre Restif, libertino do
século XVIII: “...quem é verdadeiramente livre não é obsceno (...) Porque quem é livre está
além do bem e do mal - como o é o real”.
Lacan diferenciou o princípio do Nirvana, tendência de retorno ao inanimado, da pulsão de
morte. Fiel a Bataille, a pulsão de morte passou a equivaler à vontade de destruição direta. A
pulsão quer sempre atender um Outro, tornar um Outro pleno. Destruir o Outro, formando
Um, busca da unidade total. O Outro que é fonte da linguagem e da inserção na cultura. Só
que o Outro pleno é morte, movimento que cessa. No sadismo, o gozo vem do suposto gozo
no outro: ao provocar dores no outro, gozamos por identificação com o objeto sofredor.
Coloca-se uma intersubjetividade que faz o gozo do sujeito escorar-se sobre o gozo que ele
imagina no outro. Gozo jamais alcançado. Leiris afirmou já em 1930: “o masoquismo, o
sadismo(...) são meios de sentir-se mais humano, justamente por manterem relações mais
profundas e mais abruptas com os corpos”. É esse o jogo erótico que Nazareth Pacheco nos
propõe: quem goza com o gozo de quem? São nossos corpos objetos de um gozo sádico?
Mas, o sublime emerge disso tudo, questionando a imagem que temos de nós mesmos. Ainda
4
que seja através de uma pele marcada por rasgos de lâminas, ou cicatrizes de bisturi
escarafunchando furúnculos purulentos de nosso triste cotidiano.
A obra de Nazareth Pacheco busca desalienar nossa imagem, sempre construída a partir de um
olhar que nos olha. Somos obrigados a refazermo-nos como sujeitos de nossos desejos. Um
imaginário do dilaceramento, a referência a suplícios e tortura – que, segundo a própria artista
vem acompanhando todo seu trabalho - mostra um corpo convulsivo. Não há apaziguamento
possível. A agonia fala do êxtase, “confirmação da vida até na própria morte”, diria Bataille.
Mas, contrariamente a toda uma corrente modernista, que se inaugura no início do século
XX, a obra de Nazareth Pacheco não vai no sentido de uma desantroporfização, não vai no
sentido de negar o corpo humano. Pelo contrário: trabalha com adornos, com roupas, com
cortinados, com instrumentos de tortura ou de exame médico. Ocorre uma estranhamente
familiar antropomorfização. A ausência do corpo costurado, remontado (contrariamente a
Orlan, que filma suas cirurgias) faz com que nosso corpo fique pesadamente presente em
nossas sensações. São nossos corpos que são retalhados em estranhas plásticas e cicatrizes
costuradas. O invisível corpo torna-se um corpo carregado de órgãos e vísceras com ruídos e
odores. O que não podia aparecer, surge em fascínio de cantos de sereia. O corpo ausente
fala do mais recôndito do desejo. E, através dos adornos cortantes, a mulher aparece radiante,
triunfa na possibilidade de um erotismo inomeável, corpos de mil zonas de prazer. Vagina
dentada?
Freud nos fala da sensação de estranhamento terrorífico que o homem experimentaria diante
do sexo feminino. O termo alemão que Freud utiliza é Das Unheimlich. Mas, o que é o Das
Unheimliche? No texto em que trabalha esse conceito, Freud começa por um levantamento
nos dicionários da palavra alemã “heimlich”. A partir da curiosa etimologia da palavra
“heimlich” que vem de “heim” (lar) e significa íntimo, familiar, e também secreto,
clandestino, que não deve ser mostrado: é preciso que outros não saibam dele nem sobre ele
Freud conclui de que em tudo que é familiar está sempre contida a idéia de ocultação. O
“unheimlich” diz respeito a um efeito de estranheza que atinge o conhecido e familiar,
tornando-os motivo de ansiedade. A frase de Schelling, citada por Freud, sintetiza tal
vivência: “Chama-se ‘unheimlich’ a tudo que, destinado a permanecer em segredo, oculto (...)
veio à luz”. Freud mostra como etimologicamente, “unheimlich” e “heimlich”, seguindo uma
ambivalência, acabam se unindo
Em toda sua obra, Nazareth Pacheco opera radicalmente o unheimliche, o “estranhamente
familiar”. É uma experiência que, já no começo de sua carreira, acontece a partir da
5
manipulação de materiais cortantes e pontiagudos para construir objetos do dia a dia de todos
nós.
Ao descrever seu trabalho para a exposição que realizou no Centro Cultural em 1990, na sua
Dissertação de Mestrado, Nazareth Pacheco compara o “prazer do fazer” – pinos para cortar,
furar e parafusar – com a época em que sua avó ensinava crochê e tricô aos seus netos:
“Todos na fazenda agulhas e lãs na mão”. As agulhas se transformam em pinos pontiagudos
pretos de placas de borracha, fixados com parafusos em placas de compensado. A disparidade
dos materiais utilizados mostrava a possibilidade de construir objetos bizarros e até mesmo
ameaçadores. Depois, Nazareth Pacheco passa do painel para objetos tridimensionais, tendo
sentido a necessidade de expandir os trabalhos para o espaço, “fazendo com que ele ocupasse
o mesmo lugar do meu corpo”.
Os pinos pontiagudos tornam-se volumes autônomos.
Naquele momento, os objetos eram “dependentes” como afirmou Tadeu Chiarelli, precisavam
ser manipulados para ganharem múltiplas formas virtuais. A passividade do feminino, tão
apregoada por Freud e tão combatida pelas feministas? Podemos afirmar qquee, já nesse
momento, Nazareth Pacheco põe a subjetividade em circulação, esparramenado os gozos.
Depois, e Eu-pele foi questionado no seu trabalho com borracha “...tive a impressão de estar
participando de uma briga corporal ao me dar conta da resistência da borracha sendo
aprisionada pela brida de chumbo”. Configura-se aí a luta com o informe da matéria. E, com
Bataille, Nazareth Pacheco aí sabe que a forma oprime a matéria. Essa opressão é figurada
nessa sua etapa de trabalho. Nomeia essa etapa de seu trabalho: “A pele...borracha natural” ,
utilizando alguns cognomes para identificar esse seu momento: “Objetos Evasivos, Colares e
Objetos de Aprisionamento”, conforme explicita em nota de rodapé. A pele limita a
possibilidade da fusão, busca erótica. O látex líquido passa por uma prensa que o transforma
em mantas rugosas. Nazareth Pacheco descreve: “Estas mantas de borracha natural, quando
saem da estufa e são isoladas uma das outras por camadas de plástico, permitiram por meio da
manipulação modelagens especiais”. Metamorfoses movidas por gestos aprisionantes,
violência necessária para a transformação: as mantas de borracha foram sendo “torcidas,
moldadas e estranguladas por uma longa brida de chumbo”. Nazareth Pacheco cita Rosalind
Krauss, que afirmou que, na arte processual, os processos de transformação empregados
“eram principalmente aqueles de que as culturas se utilizam para incorporar as matérias
primas da natureza, como a liquefação, para refino, ou o empilhamento, para a construção”.
Algo originário, arcaico, algo de um não representacional está presente nisso tudo. Bataille
fala de uma persistente vontade de modificar as formas que acontece através de “gestos de
destruição”. Naquele momento do trabalho, a borracha era retorcida. Hoje, são nossos corpos
6
que são estrangulados por requintados apetrechos de tortura, disfarçados em adornos que
brilham como nobres rubis de coroas reais.
No início do capítulo “Objetos Aprisionados”, Nazareth Pacheco escolhe como epígrafe
Louise Bourgeois: “O tema da dor é meu campo de batalha. Dar significado e forma à
frustração e ao sofrimento. O que acontece com meu corpo tem e recebe uma forma abstrata
formal. Então, pode-se dizer que a dor é o preço pago pela libertação do formalismo”.
Breton, já nos anos 30, havia proposto a necessidade de ir ao fundo da dor humana. E, Bataille
propõe elevar a vida ao nível do pior. Bataille quer ultrapassar as visões sublimadas da
realidade, o que só pode ser conseguido através de uma “cólera negra e até mesmo uma
indiscutível bestialidade”.
Nazareth Pacheco expõe, então, objetos relacionados ao seu
corpo. Mas, seu corpo é o de todos nós. Suas cirurgias passam a ser nossas cirurgias, os
corpos se fundem, a mutilação instaura novos territórios erógenos. O humano é disparado, o
homem ao alcance de si próprio,. “nada mais real do que este corpo que imagino; nada menos
real do que este corpo que toco...”(Octavio Paz)
Depois, a pesquisa dos objetos relacionados ao universo da mulher. Mas, Freud já nos
mostrou que a feminilidade é uma questão também para os homens - passagem do tempo,
representação da perda e da ausência. A alteridade do feminino na impossibilidade de
nomeação de um real de um corpo que goza. Nazareth Pacheco instala em uma sala espéculos
transparente sendo apenas um de aço. Um único espéculo de aço e gelado. No desejo, a
imaginação erótica atravessa os corpos, torna-os transparente.; Ou os aniquila. E, numa bacia
de alumínio, cem dius. O diu destrói o que o espermatozóide cria. O espéculo no lugar da
vagina exposta, somos todos, homens e mulheres penetrados por espéculos, transparentes e/ou
de aço. Transparência sugerindo um invisível presente em nosso mundo moldado para ocultar
aquilo que permanentemente nos fere. Depois, o molho de saca-rolhas e um saca-miomas. A
vida como violência permanente. Diálogo mortal entre Eros e Tânatos. Freud afirmou que a
doença é o estado normal do civilizado. Males imaginários pelos quais a civilização passa, a
domação de nossos institntos é paga com sangue. Existe erotismo que não seja destrutivo?
No trabalho seguinte, os colares feitos de cristais, agulhas, lâminas e anzóis. E, ainda depois,
o “vestido de baile”. Sempre o terrorífico da sedução.
Mas, parece que Nazareth Pacheco sentiu-se apertada nisso tudo e precisou pensar mais
amplamente todas essas questões. Passou a utilizar-se do acrílico fabricando peças que
“tinham grande proximidade com objetos de tortura e aprisionamento”. Sade nos ensinou que
as paixões se distinguem entre si pela violência, proclamando então uma declaração de
direitos das paixões, fundando os Estatutos da Sociedade dos Amigos do Crime. Minski,
7
personagem de Sade, alimenta-se de carne humana. Deixa de haver qualquer diferença entre
os homens e os animais, as ações deixam de ter qualquer substância moral: “O crime não tem
realidade alguma; melhor dizendo, não existe a possibilidade do crime porque não há maneira
de ultrajar a natureza”. Profanar a natureza é honrá-la. Sade, na leitura de Octávio Paz,.
“imagina a matéria como um movimento contraditório, em expansão e contração incessantes.
A natureza destrói a si mesma; ao se destruir se cria”. Não mais distinção entre criação e
destruição. Prazer e dor são nomes tão enganosos como quaisquer outros. O prazer passa a ser
dor e a dor, prazer. A imaginação se multiplica, o mundo das sensações passa a ser meta
única. A mesa de operações, de dissecação, altares ensangüentados.. O prazer, à medida que
cresce e se faz mais intenso, roça a zona da dor. O prazer mais forte passa a ser dor
exasperada, que, por sua própria violência, se transforma de novo em prazer. Um prazer
inumano, uma mais além da sensualidade. Os instrumentos de tortura de Nazareth Pacheco, o
balanço fixado em corda de cristal, o tampo perfurado de agulhas de costura ( agulhas de
crochê de sua infância com sua avó), mordaça transparente, algemas em grande cubo de
acrílico, tudo isso nos fala de um inumano em direção a uma fusão com a natureza. A
violência precisa encarnar e converter-se em substância.
Já em Sade, o mal, para ser belo, precisa ser feminino, mostra-nos Octavio Paz. Os cortinados
de Nazareth Pacheco, feito de lâminas de barbear, suas jóias cortantes, dão concretude ao belo
mal que só pode ser feminino. Perigosa sedução.. Transcendência da própria vida, a entrega
total é morte. Na exposição “Transcendências”, Nazareth Pacheco expôs um berço construído
em acrílico transparente com o cortinado cortante. Relata, como em seu percurso, a pesquisa
sobre sua gestação e como o estar viva foi “uma possibilidade de transcender os próprios
limites da vida”. O homem sempre cria sua realidade, ele não é realidade. A consciência
radical do corpo é afirmação da vida. Transcender os próprios limites da vida é pura
libertinagem: “o libertino deve inventar uma situação que seja simultaneamente, de absoluta
dependência e de infinita mobilidade” (Octavio Paz) . A libertinagem é a busca de um mais
além das sensações, a insensibilidade aperfeiçoa, é ferramenta de destruição. Nazareth
Pacheco manipula lâminas e se fere. Vence a matéria inanimada.
Mas, a matéria plástica de Nazareth Pacheco é o invisível, o mundo das sensações. Em seu
trabalho, vai manipulando nossas sensações e nos propondo novos mundos. Mundos
descobertos através de cortinados doloridos, mundos descobertos no informe da dor. Sensação
radicalizada, animalizante.
E, agora, unindo seus instrumentos de tortura e seus vestidos e jóias de universos femininos, a
cama aparece com o cortinado de miçangas e lâminas cortantes. O ato sacrificial ritualizado,
8
cama de vida e cama do morto – a morte é signo de vida. Anatomia humana em
metamorfoses, a figura humana é sacrificada. Nós somos sacrificados. Humanidade não tem
nada a ver com bondade ou felicidade, já nos disse Leiris.
O ato erótico passa a ser uma cerimônia que se realiza de costas para a sociedade e diante de
uma natureza que jamais contempla a representação. Em nossa muda contemplação, fiicamos
nós de costas para a civilização. Catacumba, quarto de hotel, cabana na montanha, cada um
que fabrique o seu gozo impossível, fusão mortal. O erotismo é um mundo fechado tanto à
sociedade quanto à natureza. O ato erótico nega o mundo – nada real nos rodeia, exceto
nossos fantasmas. São nossos fantasmas os personagens de Nazareth Pacheco. Passamos a ser
estrangeiros de nós mesmos, estraçalhados em nossa indestrutibilidade,
reduzidos a ser
apenas mais uma espécie animal no universo infinito.
Observações finais
As citações de Bataille, Leiris, Breton e Lautréamont foram todas retiradas do inspirador
livro de Eliane Robert Moraes, O corpo impossível, editado pela FAPESP e Iluminuras, São
Paulo, 2002.
O livro de Octávio Paz a que me refiro é : Um mais além erótico: Sade, da Editora Mandarim,
São Paulo, 1999.
Para conceituar a noção de gozo em Lacan, foi-me de enorme utilidade o ensaio da MarieChristinne Laznik-Pénot, “A construção do gozo em Lacan”, publicado na revista Percurso
n.8, primeiro semestre de 1992, São Paulo.
A Dissertação de Mestrado de Nazareth Pacheco, Objetos Sedutores, defendida na Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação de Carlos Fajardo no
dia 26, de março de 2002, foi de enorme importância no delineamento das questões que
nortearam esse ensaio.
9
Entre o tato e a visão
A vida real e o universo cultural são linhas tecidas que se entrecruzam e, para ambas
vale dizer que, se não soubermos olhar para trás, de onde viemos, não saberemos quem somos
e para onde vamos. Nazareth Pacheco, nesta mostra, reúne algumas obras de cada momento
de seu percurso como artista plástica, comemora quinze anos de trabalho. Para nós, é um
privilégio ver em conjunto sua obra que, apesar de ser construída por tão jovem artista,
apresenta coerência e amadurecimento. Mas não é só isso. Ao observar tal caminho, não pude
deixar de ver mãos, pele, revestimentos, um corpo. O corpo é um todo de sentidos, direções.
A obra de Nazareth provoca movimentos que se alternam na dança das ordens sensoriais,
proximidade (tato) e distância (visão), possibilidade e impossibilidade. Talvez escutemos:
“toca e não me olhes, olha e não te aproximes, não me toques”! Assim sendo, pensei ser
provável que alguns de seus trabalhos sejam sentidos via comunicação tátil, para aqueles que
não tem o sentido da visão ou o tem diminuído.
Desde o início de sua carreira, em 1988, Nazareth desliga-se do plano bidimensional.
Constrói objetos tridimensionais, expandindo seus trabalhos para o espaço, fazendo com que
eles ocupem o mesmo lugar do meu, do teu, do nosso corpo. Mas que espaço ocupa este corpo
contemporâneo? Como bem diz Flusser, “espaço, aqui estão as minhas dores”. Suas
primeiras peças tridimensionais foram qualificadas por Tadeu Chiarelli de Objetos
Dependentes. Quando feitos em borracha, a artista colocava pinos pontiagudos do mesmo
material. “Pinos e mais pinos para cortar, furar e aparafusar. Descubro o prazer do fazer. A
mão precisa estar ocupada, acabou um, começa outro” 1. Surgem volumes autônomos,
formas filiformes, tiras. Das mãos da artista para as mãos do espectador. Maleáveis, aguardam
o contato, disponíveis para ocuparem o espaço de outras maneiras.
Ainda no final da década de 90, agrega à borracha metais, como filetes de aço, cobre e
latão. Fixadas na parede, horizontalmente, na altura dos olhos, as obras perdem o caráter de
serem manipuladas. As formas pontiagudas, presentes nos objetos de borracha, migram para
as tiras metálicas, porém o tato deve distanciar-se.
Da borracha vulcanizada para a borracha natural, Nazareth passa a confeccionar uma
série de objetos em látex. Esta matéria sofre transformações, as quais a própria artista quis
1
PACHECO, Nazareth. Objetos Sedutores. Dissertação de Mestrado, apresentada ao
Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
2002, p.10.
10
acompanhar. O látex chega líquido ou coagulado, passa por uma prensa que o transforma em
mantas rugosas, secas em estufas especiais. Em 1991, Nazareth começa a enrolar as mantas
sobre mantas, camadas e camadas. “São pedaços e mais pedaços de peles rugosas que
começo a cortar, que começo a trançar”. Ela torce, busca formas e assim que as encontra, as
estrangula com bridas de chumbo. Briga material, briga corporal. Ora só látex, ora látex e
chumbo. Sem a visão, pode-se tocar. O látex é material rugoso, áspero, contudo porta
impressões, como nossa pele. Já o chumbo é denso, intransponível. Parece leve, mas trata-se
do metal mais pesado utilizado pelo homem.
Nazareth nunca dá títulos às obras. Às vezes, críticos ou a própria artista nomeiam
uma fase de seus trabalhos. Esta chama-se Peles. Não é à toa a expressão “sentir na pele”. É
na pele que sentimos a dor e o prazer. Os órgãos dos sentidos são recobertos de pele. Nela
inscreve-se nossa história e através dela percebemos a história do outro. Ainda em 1991,
Nazareth apresentou uma instalação na Pinacoteca com espécies de grandes travesseiros,
revestidos de veludo, um dos quais aqui presente. O veludo é macio, agradável ao tato, pele
igualmente.
Os Objetos Aprisionados são obras de 92/93. Seu trabalho é exposto em uma série de
caixas que contem objetos como fotos, radiografias, arcada dentária, documentos, frascos e
chumbo. Caixas guardam segredos. Tanto segredos como caixas fechadas são intocáveis.
Contam a história de um corpo inúmeras vezes tocado, corpo que sentiu na pele tratamentos
estéticos e cirúrgicos.
Já em 1994/95, sua reflexão amplia-se de um corpo para o universo do corpo
feminino. A artista começa a trabalhar com instrumentos médicos e cirúrgicos ligados à
condição da mulher. Espéculos, dius, saca- miomas são os materiais que trabalha para
apresentar sua visão de mundo. O interior do corpo da mulher como destino. Produção em
massa como metáfora.
Em 1996, do interior do corpo, para o exterior novamente. Sua produção apresenta
objetos que nos remetem à superfície da pele. Esta adapta-se sempre, flexível, como umbigos
de mulheres grávidas, movimentos da pele. Nos objetos de chumbo e borracha, mensagens da
pele. Neste nosso maior órgão, nada é superficial. O que está na profundidade aflora para a
pele e vice-versa.
Em 1997, suas mãos voltam a tecer, mas objetos que não podem ser tocados.Apenas
ela os toca. Sem proteção, ela tece com cristais, agulhas, lâminas de bisturi, de lancetar, de
11
barbear, anzóis, são os Colares. Corta, fura o dedo. Nas mostras em que participa 2 estes
objetos são colocados em vitrines, como jóias. O olho à distância flana, seduzido aproxima-se,
vai de encontro a uma beleza perigosa, “sedução perversa” 3. O mesmo ocorre com as vestes
construídas com cristais e lâminas de barbear. O tato fica cego. Os sentidos isolam-se.
Adornos e vestes, a impossibilidade de tocarem a pele. A pele é limítrofe, separa e protege o
interior do exterior.
É importante observarmos que Nazareth nunca desiste de pesquisar novos materiais. A
partir de 1998, começa a trabalhar com o acrílico cristal. Como as miçangas ou os cristais de
vidro, o acrílico também seduz o olhar e atrai o tato, tem pele macia. De novo o embate, as
duas faces da mesma moeda, os contrastes. O acrílico é material duro, mas trinca facilmente.
As mãos da artista não participam inteiramente na confecção de tais obras. Ela prepara os
projetos de forma minuciosa, as peças são produzidas numa indústria especializada. Quando
voltam para seu atelier, ela os finaliza, como é o caso do banco ou do berço, aqui presentes.
No banco, ou quem sabe um divã, em acrílico preto, do comprimento e largura iguais ao seu
corpo, há 1600 agulhas que, uma a uma, a artista fixou em seu assento. O berço, em acrílico
branco, translúcido, recebe um véu elaborado, pacientemente, com lâminas de barbear e
miçangas. Instalados no espaço estes objetos instauram no espectador estranheza e fascinação.
Véus são peles. Comunicação ou incomunicação?
Tendo conhecido a artista Louise Bourgeois, em Nova York, Nazareth lá participa de
suas reuniões e reflete sobre a transcendência. Elabora, em 2001, peças em resina. Sem a
visão, o tato pode reaproximar-se. As pontas dos dedos percebem texturas e formas, a via é a
tátil, o olho não censura.
Por ocasião da XXV Bienal de São Paulo, em 2002, na mostra Paralela a artista
participou com alguns trabalhos. Pinça das lojas cirúrgicas objetos que ajudam no
conhecimento científico do corpo. Em suas construções, aqui expostas, apresenta
enclausurados um coração e um esqueleto. Partes do corpo, corpo sem pele. Por outro lado, há
também objetos que desenham linhas no espaço, como as agulhas de acupuntura e um fio de
um marcapasso. Linhas e fios que atravessam os limites da pele, estimulam o ritmo da vida.
Quando Nazareth esteve na Alemanha, em 1992, visitou o Museu do Crime, em
Rothenburg. Impressionada, guardou em sua memória aquelas imagens, as quais, nos anos
2
Em 1998, participa da XXIV Bienal Internacional de São Paulo, com uma coleção de
Colares.
3
Expressão utilizada pela crítica Angélica de Moraes em artigo publicado no Estado de
São Paulo, 1997.
12
2001 e 2002, transformaram se em projetos, obras que denomina Objetos de Aprisionamento.
Trabalha grandes blocos de acrílico, mas não sozinha. Os desenhos são adaptados com ajuda
do CAD4, projeto assistido por computador. São peças em acrílico e latão cromado, porém
suas mãos distanciam-se deste fazer.
Para o espectador, que tem o tato como guia, é
permitido tocar.
Nazareth retoma, a mão precisa estar ocupada. Neste semestre, participa de três
mostras individuais, para as quais elabora instalações inéditas. Para nosso espaço, esta que
descrevo. Um pequeno compartimento, paredes laterais lisas e brancas e na parede em frente
há um espelho. Ao redor do mesmo, 22 lâmpadas redondas, usadas, em geral, em camarins.
Na entrada para o espaço descrito há uma cortina produzida pelas mãos da artista, feita com
miçangas que unem 1008 laminas de barbear. Sim, pela descrição, com ou sem o sentido da
visão, pode se ter uma oportunidade de formar nossas próprias imagens mentais, treinar nossa
capacidade imaginativa.
Que espaço ocupa este corpo contemporâneo? Num processo imperceptível, vagaroso,
mas eficiente, o mundo reduziu o espaço do corpo e promoveu o êxodo dos sentidos.
Ocupamos o espaço como objetos, imagens. A meu ver, poderia sugerir para esta fase de
Nazareth que são Objetos Silenciosos. Mesmo torturado, aprisionado, o corpo contemporâneo
não grita, pois não sabe mais ouvir seus gemidos. Concordamos com Michel Serres quando
afirma que nosso corpo sabe mais do que fala, falava mais do que sabia. Ele sabe, esquece que
sabe. A sensibilidade desta artista não esquece, ela compartilha. Sua obra não lamenta, apenas
expõe nossas cicatrizes. Sua obra está sempre em construção, longa vida para ela. Não sei se
podemos dizer o mesmo sobre o corpo contemporâneo.
Elisabeth Leone
Membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia.
4
CAD significa computer aided design . É um software específico, torna possível
executar toda a criação e dimensionamento de um determinado item ou conjunto de
peças por meio de computação gráfica.
13
Elogio do feminino
Margarida Sant’Anna
“Que a feminilidade seja autêntica ou superficial,
é fundamentalmente a mesma coisa.”
Joan Rivière1
O nome de Nazareth Pacheco está ligado a uma geração de artistas surgida no final dos
anos 80 e início dos 90, que conjuga aspectos da tradição minimalista com elementos
simbólicos, alguns remetendo a fatos autobiográficos.
Paulista, licenciou-se em artes plásticas pela Universidade Mackenzie, complementando sua
formação acadêmica em diversos ateliês livres e wokshops. Realizou sua primeira individual
de maior relevância em 1988, momento em que começa a trabalhar esculturas filiformes,
associando às longas fitas de borracha ou latão formas pontiagudas, que remetiam
incontestavelmente a instrumentos de dor.
Em 1993, apresentou no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, vitrines-arquivos
de objetos autobiográficos. Numa exposição ao mesmo tempo catártica e libertária, a artista
investigava tratamentos médicos e estéticos aos quais foi submetida desde o nascimento,
sem fazer da obra, entretanto , uma ilustração da própria vida.
Na seminal coletiva “Espelhos e sombras”, com curadoria de Aracy Amaral, Nazareth
apresentava o corpo por meio de instrumentos da medicina destinados à mulher. Os
exercícios de embelezamento, mesclados a técnicas de tortura, foram tema dos trabalhos
desse período e mais tarde seriam objeto de estudo em seu mestrado, apresentado na
Escola de Comunicações e Artes da USP em 2002. Além das experimentações anteriores, a
artista incorporava agora uma iconografia inédita para a construção dos novos objetos:
instrumentos de suplício e aprisionamento vistos no Museu do Crime (Rothenburg,
Alemanha) e gravuras de Debret, em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil.
Convidada por Tadeu Chiarelli a integrar o Panorama da Arte Brasileira de 1997, no qual foi
premiada, a artista apresentou a produção de colares e vestidos. Concebidos para adornar, a
fim de compensar os limites da nossa frágil existência, tornavam-se cada vez mais
14
ameaçadores. O crítico salientava, em texto da mesma época2, que o risco potencial dos
objetos do início dos anos 90 era agora uma realidade. Uma realidade cada vez mais
aterradora.
Em 1998, na XXIV Bienal Internacional de São Paulo, a artista apresentou uma coleção de
colares, todos protegidos em caixas de acrílico como objetos de desejo. No catálogo
individual, Lisette Lagnado salientava que “reunidos na sintaxe do colecionismo, os adornos
acabam formando um sistema, graças a um trabalho de perlaboração que os permitiram
passar do registro privado à dimensão pública. Além disso, porém, a dor foi o depósito
compulsório para um ajuste com a volta mítica às origens”.
Em 1999, a partir de textos de Louise Bourgeois, que a artista conhece naquele verão, surge
um berço com “mosqueteiro”, exposto na mostra “Transcendência”. O tema da
cortina/transparência irrompe nesse momento, reaparecendo aqui, mais denso.
O recente trabalho apresentado na Mercedes Viegas Arte Contemporânea resgata questões dos
trabalhos anteriores. Entretanto, um dado novo surge em sua recente pesquisa, exibida aqui
pela primeira vez: a elaboração de espaços reservados à privacidade. Construídos por meio de
uma parede/cortina, a passagem do olho é possível, mas não a penetração, sob risco de
ferimentos, já que construída com lâminas de barbear. Nesse espaço, superficialidade e
profundidade se confundem visto que não podem ser vividas, experimentadas pelo espectador.
Nessa ambigüidade, tornam-se alegorias do feminino.
No livro De la séduction3, Baudrillard argumenta que não é exatamente o feminino como
superfície que se opõe ao masculino como profundidade, mas “o feminino como indistinção
da superfície e da profundidade. Ou como indiferença entre o autêntico e o artificial.”
Valorizando a “pele” desses impenetráveis, sem nos dar o direito de experimentação do
interior da redoma, a artista parece responder de forma irônica aos abrigos de Hélio Oiticica,
de Lygia Clark. Enquanto ali eram protetores, aqui nos jogam de volta para o espaço público
(logo, político), obrigando-nos a rever nosso papel no mundo.
15
CRISTAIS DE DOR
O trabalho de Nazareth Pacheco representa uma perturbante relação da arte com a
vida. Todavia, este exercício é uma via dolorosa. Quando se suporia que a obra de arte
encenaria um momento de catarse, um território de libertação, ela mergulha a pique no
problema e adensa-o.
Nazareth Pacheco nasceu com um problema congênito que ao longo dos seus 39 anos
de vida a obrigou a múltiplas intervenções cirúrgicas. O corpo de Nazareth transformou-se,
não num território de intervenção casual, mas num espaço de intervenção programada, num
ritual de sofrimento.
O seu corpo foi sendo cirurgicamente abordado, por um lado em função de problemas
que se iam declarando, por outro lado em função da necessidade de construir um corpo mais
viável.
Podemos de certa forma afirmar que o trabalho de Nazareth é o negativo do trabalho
de Orlan. Enquanto nesta última, a reconstrução do corpo é uma opção, uma possibilidade
estética, na primeira é uma necessidade vital. Enquanto Orlan exibe o processo e o resultado
da transformação, Nazareth exibe os instrumentos dessa transformação: lâminas de bisturi,
agulhas de sutura, integradas em adereços femininos (colares, brincos, vestidos). Como se ela
reivindicasse sistematicamente a sua condição de mulher e a articulasse com o seu sofrimento
pessoalíssimo.
Estas jóias do horror, que nenhum corpo suportaria colocar, sinalizam e iluminam um
território escuro e sofrido em que o drama de um percurso se revela através da arte.
É como se todos estes ornamentos, se todos estes objetos de superfície, adquirissem
subitamente uma brutalidade sacrificial.
Nazareth coloca cada um dos seus trabalhos pertencentes a essa série dentro de uma
caixa (será um estojo?) transparente, transformando-os em objetos individuais de cobiça. Dá
16
vontade de os adquirir, de lhes pegar. São sedutoramente repulsivos e repulsivamente
sedutores. Por isso, apesar de estranhos, são nos extremamente convivíeis. A História da dor,
do Sofrimento é uma história coletivamente individual. Todos nós sofremos, mas o
sofrimento de cada um (podendo ser comunicável) não é partilhável. A artista precipita e
clarifica essa comunicação através da manufatura destes espelhos da dor, sabendo, contudo,
que o território mais intimo dessa dor é inexoravelmente seu, não havendo nenhum paliativo
para esta vivencia solitária.
Revolvendo Luis Miguel Nava, não estamos aqui perante “as entranhas sobre o céu”.
A evidencia de um corpo patológico e deformado esmaga qualquer possibilidade de o
entender como objeto estético. E os objetos tidos consensualmente tidos por estéticos (as jóias
femininas) são eles próprios adulterados por essa contaminação da evidência. O belo e o
horrível encontram-se nos mesmos artefatos.
Inicialmente, por um erro de paralaxe e de habituação, pensamos estar perante um
catálogo de joalheria, mas se nos aproximamos um pouco esse catálogo funde-se com um
catálogo de instrumentos cirúrgicos. Estes objetos intermediários na sua concepção mas,
terminais no seu efeito, colocam-nos, assim, perante o medo mais nuclear da nossa condição.
O medo do nosso próprio corpo.
Esse medo do nosso próprio corpo e o seu entendimento paradoxal, já não como um
lugar de fruição e prazer, mas, sobretudo de dor e sofrimento, é particularmente evidente na
série de novos trabalhos que a artista (também nesta exposição) nos apresenta. A família de
objetos perfurantes, concebidos para abrir o corpo, para produzir uma descontinuidade na
pele, para, a partir do exterior, se alcançar o interior, dá agora lugar a uma nova família de
objetos. Elementos de tortura estranhamente vítreos, obsessivamente transparentes, como se a
artista quisesse fazer dessa evidência uma mensagem cristalina sem qualquer tipo de
interferência, de opacidade.
Nazareth Pacheco constrói, desta forma, cristais para encarcerar a sua dor.
PAULO CUNHA E SILVA
Março de 2000.
17
O SOFRIMENTO PELO BELO
Em 1993, 0 Museu de Arte Moderna de São Paulo apresentou a exposição "Espelhos e
Sombras” *. Premonitora das tendências ocorrentes na arte brasileira desta década, reuniu
trabalhos de uma nova geração questionando o corpo, a morte, a existência. Os trabalhos de
Nazareth Pacheco integrantes desta notável exposição apontavam a futura produção da artista:
dezenas de espéculos de acrílico transparente cartesianamente organizados (herança
construtiva presente em vários artistas brasileiros) formavam um conjunto atraente por sua
beleza. Até o espectador se dar conta do que eram e para que são utilizados...
A partir desta obra, Nazareth deu início a uma produção construída a partir de objetos
ligados ao mundo feminino, sempre de maneira modular. Utilizando cristais e miçangas,
realizou uma série de ornamentos e vestimentas, nas quais a sedução é inevitável, a exemplo
do belíssimo vestido negro presente nesta exposição. Quando o vemos, o desejamos.
Mas a sedução tem um preço. Ao tocá-lo podemos nos ferir, pois entre os belos
ornamentos encontram-se objetos extremamente cortantes: lâminas. A beleza se torna cruel..
O trabalho de Nazareth espelha a sociedade deste final de século: era de corpos
esqueléticos resultantes de regimes intermináveis, de modelos que desfilam roupas que só elas
podem usar, de infindáveis cirurgias buscando a eterna juventude. Há que sofrer belo...
Rejane Cintrão
Julho 1999
18
VESTIDO DE BAILE
Ao examinarmos uma peça de roupa, seja ela qual for, apreendemos diversas
informações sobre ela mesma e sobre seu usuário. Pela textura dos tecidos (macio, engomado,
fio natural ou sintético, etc.) pelo corte (justo ou folgado, atualizado ou ultrapassado)
deduzimos sua função (trabalho, esporte, festa, etc.), seu grau de conforto, assim como o
gosto e a condição econômica do usuário.
Sabemos também que um mantô é mais apropriado para um dia frio, assim como um
par de sandálias, para um clima tropical; um vestido longo, noite de gala; uma bermuda, lazer,
e assim por diante. Mesmo quando nos deparamos com uma peça de roupa desenhada e
assinada, nos vemos formulando questões aparentemente simples, mas que tomam uma
dimensão especial: como deve ser vestido, pelos, pés ou pela cabeça? Como será o caimento?
Se abre completa ou parcialmente? E fechado por colchetes, botões ou zíper? Será
confortável? São pequenos segredos que somente o usuário conhece.
Mais assépticos do que as preciosas peças cheias de histórias, perfumes e segredos de
nosso guarda-roupa, estão os modelos criados para os desfiles de alta costura. Nos anos 90,
grande destaque foi dado pela mídia às temporadas de desfiles de moda. Disputados, foram
vistos de fato por poucos, mas, através dos meios de comunicação, por um significativo
contingente de interessados. Tecidos sintéticos, recortes esdrúxulos, transparências e muito
brilho foram a tônica das roupas apresentadas pelas mais conhecidas grifes das principais
capitais do mundo. Nas passarelas da alta costura imperou uma moda vestida de irrealidade,
composta por peças para serem admiradas, para indicar tendências.
Para ser admirado, e não usado, é também o vestido "Sem Título", de miçangas,
cristais e lâminas, de autoria de Nazareth Pacheco, integrado ao acervo do Museu de Arte
Moderna de São Paulo em 1997, ocasião em que recebeu o Grande Prêmio Embratel no
Panorama da Arte Brasileira. O vestido confeccionado por Pacheco, quando contemplado de
longe, se destaca por seu brilho e glamour. Poderia fazer parte de um universo de refletores e
grifes. No entanto, de perto, o vestido de gala, antes transparente, reluzente, luminoso,
transforma-se numa perigosa arma branca. Aqui a elegância nunca esteve tão longe do
conforto, do bem-estar, da comodidade. Praticamente intocável, chama atenção pela
19
hostilidade e pelo risco iminente. Inspira cuidados, convida ao desvio e à evasão.
Cautelosamente ousamos nos indagar: como seria vestir este vestido? Por onde pegá-lo? É
necessário ajuda ou seria apropriado manuseá-lo sozinho? Mas é impossível sentir suas
texturas e compartilhar seus segredos. O toque excluído, resta-nos a resignação de estarmos
condenados de modo definitivo à distância.
É, sem dúvida, uma obra eloqüente, visto que aborda -direta ou tangencialmente -diversas
questões representativas dos anos 90. Adentra no terreno da moda, e transita no limiar de duas
linguagens -a da moda e a das artes plásticas –assim como diversas manifestações no período,
situadas nas interfaces de duas formas de expressão.
Da mesma forma, o Corpo foi um mote bastante glosado nas artes plásticas durante a última
década. No vestido de Pacheco a referência ao corpo não é proposta de forma direta, como em
outros trabalhos da artista. Aqui a questão do corpo é abordada através daquilo que não está
presente. A ausência, a absoluta impossibilidade de um usuário para vesti-lo, traz à tona a
referência ao corpo. Percebemos a existência através daquilo que nos damos conta que falta.
Regina Teixeira de Barros
Agosto 1999
20
O CORPO EM CONSTRUÇÃO
Ao longo de já vários anos, Nazareth Pacheco faz de seu trabalho o Registro físico de
sua condição de vida: uma mulher que traz no corpo as marcas de uma má-formação
congênita, uma mulher que traz no corpo as marcas das muitas cirurgias reparadoras a que se
submeteu e se submete, uma mulher que traz no corpo as marcas do que a individualiza e que
a torna por isso igual a tantas.
Separados do toque humano por convenções museológicas, os objetos cobertos de
pontas de borracha que construía no início dos anos 90 apenas sussurravam a dor que um
corpo estranho a si mesmo sente. Num quase grito, mudou adiante o rumo do trajeto criativo,
expondo, em pequenas caixas, fotografias, documentos e outros rastros da reinvenção
cirúrgica de sua carne e pele, do nascimento à idade adulta. Estabelecidos os limites extremos
dentro dos quais transforma em coisas o que lhe é incômodo, matizou finalmente seu discurso
expressivo, tornando-o mais ambíguo e contudo mais eloqüente. É neste ponto do percurso
que se encontram as peças que vem fazendo nos anos recentes.
São colares, miçangas, gargantilhas e outros ornatos feitos do entrelace entre contas de
cristal e instrumentos diversos – lâminas, anzóis, giletes e agulhas – que cortam, furam e
rasgam a epiderme humana. Visualmente atraentes em brilho e forma, são incapazes de
adornar algum corpo sem abrir feridas, tornando-se por isso depositários de lembranças de
dores sentidas em outros momentos. Atando o que se aparenta oposto, esses objetos estranhos
se transformam em elo simbólico entre o prazer de acomodar-se a parâmetros convencionados
como de normalidade física e a dor que se origina de qualquer violação do corpo como
nascido.
Tecem, em tom baixo, um discurso crítico sobre o desejo que o corpo certo do outro
sempre desata e sobre a quase impossibilidade de não se deixar avizinhar por uma norma de
belo a despeito dos sacrifícios que esta proximidade engendre.
Guardados pela razão descrente e quase cínica que suas formas incorporam, estes
adornos são como objetos votivos postos ao avesso de seu intento: construídos não como
agradecimentos pelo alcance de graças pedidas, mas como reconhecimento dos limites do que
21
é possível alcançar no âmbito dos procedimentos humanos. Expostas em relicários de acrílico,
as obras de Nazareth Pacheco são testemunhas caladas e imóveis do caminho imenso, doído e
frágil da construção de um corpo que a ele próprio não se contenta. E é a partir desta
singularidade absoluta que seu trabalho toca a dor do outro, se alarga e encontra lugar no
mundo.
MOACIR DOS ANJOS
Setembro de 1999.
22
UMA LÓGICA DO ADORNO
A produção de Nazareth Pacheco corresponde a um processo de individuação:
assimilar questões próprias, relacionadas a operações a que se submetera para efetuar
correções estéticas devido a malformações congênitas. Não é difícil imaginar que, a partir
dessa reflexão autobiográfica, o questionamento se tenha estendido a uma dimensão
sociológica: a manipulação do corpo, do da mulher em particular, na sociedade
contemporânea. Esses dois momentos encontram-se reunidos na produção exposta pela XXIV
Bienal de São Paulo. Sob a regência das ressonâncias culturais da antropofagia, a mostra
critica noções de etnocentrismo, geopolítica e logocentrismo, de Montaigne à recente
engenharia genética. Inserido nesse contexto, o depoimento de Nazareth fincou um argumento
contundente: a insuficiência da Razão diante da barbárie civilizatória.
Trata-se de um conjunto de quarenta adornos produzidos ao longo de dois anos,
agrupados pela curadoria de maneira a formar uma coleção. Mas como denominar de
“colares” essas hipóteses ornamentais, feitas de agulhas de sutura, lâminas de bisturi e giletes,
entremeadas de miçangas e cristais? Além do fato de privilegiar uma parte do corpo, elevando
o pescoço a uma região fetichista, é curioso observar que a veia jugular se situa perto da
garganta e que, portanto, qualquer corte seria fatal. A artista aproxima perigosamente o prazer
e a agressão até uma fusão dos dois instintos. Ornatos para o corpo constituem, a princípio,
símbolos de identidade cultural que remetem a práticas e costumes do calendário das
festividades. Sendo os colares de Nazareth de uso não recomendado para a integridade do
corpo, os dados biológicos de seu sujeito se impõem à interpretação. Percebe-se nesse gesto
uma marca essencial para estudar a identidade artística contemporânea: a dissolução de
fronteiras entre experiência interior e rituais coletivos, entre natureza e cultura. 1
O trabalho de Nazareth transcende a mera confissão ao tangenciar a análise
antropológica. Sua necessidade de arquivar uma trajetória pessoal passou a incorporar um
duplo sentido. Arquivar: 1. memorizar acontecimentos; 2. suspender o inquérito sobre o
presente. Sabemos que os arquivos têm o poder de conservar documentos históricos, mas
“arquivar” é também retirar de circulação. Apresentados de forma museológica, unificados e
“classificados” dentro da assepsia proporcionada por pequenas caixas de acrílico, tais enfeites
parecem vestígios de uma cultura distante. As vitrines exercem a função de domesticar o
contato entre nosso olhar e a obra, projetando-a para uma comunidade que teria pertencido a
23
uma história longínqua, de latitudes desconhecidas e, conseqüentemente, irracionais. Afinal,
como compreender a lógica da dor dentro do adorno?
Num contragolpe irônico, a discussão do Belo volta a ter pertinência como valor de
verdade e vontade de transformar o mundo. Hegel já mencionava que a obra de arte é
reprodução e reflexo do sujeito: “Através dos objetos exteriores, ele busca encontrar-se a si
mesmo. Não se contenta em permanecer tal como é: cobre-se de ornamentos. O Bárbaro
pratica incisões em seus lábios e orelhas; tatua-se. Todas essas aberrações, por mais que sejam
barbáras e absurdas e até mesmo contrárias ao bom gosto, causadoras de deformações ou
perniciosas, só têm um objetivo: o homem não quer ficar tal como a natureza o fez.”2
Criar artifícios para o corpo significa então pleitear um acréscimo de beleza. No
entanto, esse ganho muitas vezes inflige uma série de sacrifícios. Sacrifício consentido, cabe
ressaltar, alimentado pela mídia e as indústrias farmacêuticas que nunca proferiram tantas
promessas de felicidade. A questão crucial que sustenta esta fase da obra de Nazareth Pacheco
reside no questionamento das normas que definem o bem-estar do organismo. Afinal, o que é
um corpo saudável se este só consegue responder à expectativas funcionais? Na realidade, o
que está em jogo não é diretamente um ideal estético, questão mais evidente nas plásticas de
Orlan, mas uma negociação sem fim entre saúde física e saúde mental.
Reunidos na sintaxe do colecionismo, os adornos acabam formando um sistema,
graças a um trabalho de perlaboração que os permitiram passar do registro privado à
dimensão pública. Antes disso, porém, a dor foi o depósito compulsório para um ajuste com a
volta mítica às origens. Nesse contrato, a sedução é uma moeda capaz de desmistificar o medo
mais arcaico: o corte do real e a vivência da Ferida.
1 “... os fundamentos éticos e estéticos, com repercussão hoje, recorrem à história recente que vai de Eva
Hesse a Doris Salcedo. Nesse sentido, a recuperação da autobiografia e a abertura dos arquivos ocupam um
lugar central: dos ‘diários’ bordados de Leonilson à obra política de Rosângela Rennó...”. Lisette Lagnado,
“Em busca da identidade da Geração 90”, in ARCO’97, boletim informativo da Feira Internacional de Arte
Contemporânea, Madrid, dezembro de 1996, pp. 4-9.
2 Cf. “Arts plastiques, beauté, vérité”, in Esthétique des arts plastiques (Paris: Hermann Éditeurs des
Sciences et des Arts, 1993), p.43.
Lissette Lagnado
Agosto de 1998
24
Uma realidade... dilacerante:
a produção de Nazareth Pacheco
“O terrível da sublevação do objeto tem sua raiz
em seu silêncio e em sua imobilidade”
Juan-Eduardo Cirlot
No início desta década, ao escrever sobre os primeiras peças decididamente
tridimensionais que Nazareth Pacheco apresentava ao público, qualifiquei-as de “objetos
dependentes”1 . Herdeiros das tradições povera e pós-minimalista, aqueles objetos filiformes,
produzidos em metal ou borracha, pareciam colocar-se no mundo completamente à mercê dos
estímulos que os cercavam. O espectador poderia manipulá-los, dando-lhes novas
configurações no espaço, ou simplesmente observá-los na inércia que os dominava, parecendo
não existir em si mesmos, constituindo-se como contrapontos à auto-suficiência do objeto de
arte convencional.
No entanto, eles possuíam outras particularidades que na época não me mobilizaram
com tanta intensidade.
Quando feitos em borracha, a artista colocava alguns pinos pontiagudos do mesmo
material (elementos que quebravam o caráter liso da tira), conferindo à peça - vejo hoje com
clareza - uma estranha semelhança com objetos de tortura.
O mesmo ocorria com os filetes de latão, que Pacheco situava na parede, à altura dos
olhos do espectador - filetes esses em que, de tantos em tantos centímetros, a artista também
colocava pinos pontiagudos de borracha...
Entre esses primeiros objetos e a exposição que realizaria em 1993 no Gabinete de
Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, Nazareth Pacheco produziu uma série de objetos em
látex, em que o caráter linear visto na produção anterior ainda era mantido. Eram tiras
imensas de látex rugoso, só interrompidas por nós decididos, que dobravam e retorciam
violentamente a matéria, para depois seguir de novo até outro nó. . .
Eram ainda “dependentes”, sem dúvida, e muito próximos dos filetes de borracha e
metal anteriores. Porém, essa nova produção como que parecia ter absorvido a agressividade
existente nos trabalhos anteriores (via os pinos de borracha agregados), manifestando-a agora,
25
no entanto, de maneira mais “orgânica”, não só pela própria materialidade agressiva do látex
bruto, mas igualmente pelos nós que acabavam por estruturar de maneira precária aquelas
peças filiformes.
Como foi mencionado, em 1993, Nazareth Pacheco apresentou novas obras no
Gabinete Raquel Arnaud. A maioria dos trabalhos ali mostrados parecia diferir muito dos
objetos anteriores, tanto do ponto de vista formal quanto conceitual.
A artista exibia pequenas caixas, repletas dos objetos mais variados, que narravam sua
trajetória, ou a trajetória da reconstrução ideal de seu corpo, desde a infância até a idade
adulta.
Uma produção de forte cunho catártico, quase terapêutico? Sem dúvida, a mostra
possuía muito dessas características. Mas, por outro lado, sinalizava para uma viagem que a
artista fazia dentro de si mesma e de sua biografia, à procura de uma verdade possível, capaz
de fazê-la transcender seu próprio drama individual e encontrar, no espaço da criação, o
significado para continuar existindo enquanto indivíduo, mulher e artista.
Ali, a artista mostrava os vários procedimentos e objetos que foram utilizados para a
adequação de seu corpo aos padrões de beleza feminina hegemônicos, como documentos de
tortura a que ela própria fora submetida durante anos.
Sintomaticamente, após aquela exposição especialíssima, Nazareth começa a trabalhar
com instrumentos médicos e cirúrgicos, conhecidos sobretudo para a manipulação do corpo
da mulher: espéculos, saca-mioma...
Na mostra “Espelhos e sombras”, apresentada nos MAM de São Paulo e no Centro
Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, respectivamente em 1994 e 1995, a artista exibiu
uma série de espéculos de acrílico, colocados lado a lado. No meio deles, um mesmo
instrumento, só que produzido em metal.
Usando com ironia e espírito subversivo uma receita formal de origem minimalista um módulo atrás do outro, metaforizando a produção industrial de massa, Nazareth
contrapunha à aparente leveza e quase imaterialidade (visual e conceitual) dos espéculos em
acrílico a brutalidade ascética do mesmo instrumento em metal. Assim procedendo, parecia
perguntar: é possível observar tais aparelhos apenas na beleza fria do design anatômico, sem
esquecer a função a que estão destinados, tão próxima de outros instrumentos de tortura?
É nessa fase que o encaminhamento da produção da artista se esclarece.
26
Primeiro, aqueles “exercícios” do início da década, em que Pacheco é quase ainda uma
aluna (talentosa, sem dúvida) da “tradição” pós-minimalista, fortíssima em São Paulo. Uma
aluna aplicada, mas que sentia um certo prazer em subverter o receituário da “escola”,
introduzindo em suas tiras uma perversidade estranha e inquietante, que só explicitará sua
origem mais remota na individual de 1993.
A exposição desse ano, apesar de “catártica”, serviu para que a artista conseguisse
ampliar a perspectiva de seu drama pessoal. A partir dali, ela parece ter concluído finalmente
não mais ser possível entender-se apenas como um indivíduo isolado, a sentir sozinho os
efeitos da ditadura dos padrões de gosto acerca do corpo da mulher, mas como um entre
milhões e milhões de seres submetidos a inúmeros procedimentos e/ou objetos torturantes,
usados com o fim de se adequarem a exigências exteriores.
Por isso, a artista saiu da documentação autobiográfica para a produção de objetos ou
instalações, criados a partir de objetos médicos e/ou cirúrgicos, concebidos para o
“aprimoramento” do corpo feminino em geral, a despeito de suas características
violentadoras, invasivas, prepotentes, fundamentalmente autoritárias.
Agora, nessa mostra na Galeria Valu Oria, Nazareth Pacheco apresenta esses objetos...
sádicos. Colares feitos de cristal e instrumentos de perfuração: anzóis e os mais diversos tipos
de agulhas.
Os adornos em geral - e, nesse universo, o colar - fazem parte do nosso cotidiano.
Sedutores, concebidos para compensar nossa condição tão imperfeita, tão efêmera, tão
humana, eles tendem sempre à perfeição, ao eterno. Usá-los nos torna melhores, como se,
pelo contato, eles nos passassem todas as suas qualidades.
Os colares de Nazareth Pacheco nos seduzem: cristalinos e brilhantes, sugerem o
toque, a posse, o desejo inconfessável de - como ocorre frente a qualquer adorno - trazê-los
para junto do corpo para que nos tornemos um pouco o que eles são. Ou o que deveriam ser,
mas não são...
Tocá-los, possuí-los, tomá-los na mão e trazê-los para junto do corpo, esses são os
desejos que nos animam...
São dependentes como seus primeiros trabalhos, filiformes como eles, porém agora
tão familiares e sedutores e, ao mesmo tempo, tão perversos nesse dado novo que
acrescentam: a capacidade real de ferir.
Os “colares” de Nazareth Pacheco se alojam em um estojo muito pequeno, porém
extremamente instigante, da arte deste século. Ao lado daquele do ready made de Duchamp,
27
ele surge como o compartimento que a história da arte criou para os “objetos construídos”.
Exatamente aqueles objetos que, embora estruturalmente preservem a aparência de inócuos
objetos cotidianos, agregam novos elementos que subvertem suas funções originais, ou as
negam. Ou as impossibilitam.
O “Presente” de Man Ray, concebido em 1921, talvez seja o mais emblemático dos
“objetos construídos”: um prosaico ferro de passar roupa, em cuja base o artista aplicou 14
pinos de metal. Sádico, tanto em sua configuração final quanto no próprio título, o “Presente”
extrapola os limites do real, por meio de uma perversidade fria, calculada.
Mas ele não é a única peça emblemática desse estojo. Existe igualmente o “Objeto” de
Merret Oppenheim: um pires e uma xícara recobertos de pelo. Dependentes igualmente, uma
vez que foram concebidos originalmente para serem manipulados (tanto quanto o “ferro” de
Man Ray), revestidos de peles eles adquirem uma estranha imobilidade - uma inquietante
imobilidade. Ali, silenciosos, parecem ter ganho, de repente, uma auto-suficiência brusca
advinda das ameaças que passam a representar: ameaça física (podem comprometer a
integridade de outros objetos ou do próprio corpo do eventual usuário) e ameaça psíquica
(destroem nossas certezas sobre a “realidade” cotidiana).
Os colares de Nazareth Pacheco causam essas mesmas sensações: adornos, objetos
dependentes da nossa vontade, pela introdução de elementos cortantes entremeados às pedras,
adquirem uma auto-suficiência derivada justamente da operação realizada pela artista, no
próprio conceito do objeto “colar”: concebidos para adornar, para compensar os limites da
nossa existência, eles agora representam uma ameaça a ela.
Observando a produção do início da carreira da artista, tendo como ponto de partida
essa sua produção atual, percebe-se claramente que, desde o início, Nazareth vem fazendo o
mesmo trabalho: objetos filiformes, dependentes do espectador. Só que agora mais belos. E a
ameaça que representavam em potencial no início dos anos 90 agora é uma realidade...
dilacerante.
1 - O texto “Objetos dependentes” foi publicado duas vezes: no “folder” produzido para a individual da artista
no Centro Cultural São Paulo,1990, e no “folder” produzido para a individual na Galeria Macunaíma, IBAC, RJ,
1991.
Tadeu Chiarelli
Maio de 1997
28
O único, O mesmo, O A – Fundamento
Nazareth Pacheco tem buscado expressar a oscilante percepção do individual e do
coletivo tomando o corpo como referência. A mostra o corpo como destino de 1994, embora
predominantemente calcada em documentos autobiográficos, deixava vislumbrar essa dupla
orientação: às múltiplas intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos a que foi submetida
para sanar deficiências congênitas somavam-se tratamentos de beleza. Na construção do
corpo, o terapêutico aproxima-se do estético submetendo o indivíduo ao padrão adotado pela
coletividade. Na presente instalação, as mãos dos seus amigos foram moldadas em gesso e
pendem do teto em contraste com as dela pousadas abaixo. Este contraponto entre o plural e o
singular põe em cheque alguns conceitos antigos e faz surgir indagações: numa sociedade
onde o corpo é produzido genética, terapêutica e cosméticamente, subsiste o normal/natural?
Numa cultura de consumo e expressão massificada existe ainda o subjetivo? É bom lembrar
que na política do eu, o outro é sempre referido até porque as sensações de prazer e dor tem
no objeto do desejo a sua fonte.
Maria Alice Milliet
Agosto de 1996
29
Nazareth Pacheco
Usando seu próprio corpo como ponto de partida, Nazareth Pacheco modela, em
gesso, suas mãos, rosto, seios e umbigo. A escolha dessas “matrizes” nada tem de acidental;
se num extremo invade um território privado (seios e umbigo), como antítese representa o que
sempre fora público(mãos e rosto). Soma-se a este conjunto autobiográfico moldes de outros
corpos - mas que invariavelmente lhe dizem respeito - como as mãos de amigos ou
impressões digitais de seus ascendentes, irmãos e sobrinhos. Neste transito entre o que é
íntimo e o que é exposto , entre o que lhe pertence e o que pertence a seres queridos,
Nazareth pontifica acontecimentos de sua história pessoal, assim delineando seu percurso de
vida.
Ao mesmo tempo em que generosamente se presta a uma leitura autoreferente da
artista, esta série de trabalhos nos remete a algo maior, que transcende a singularidade do
sujeito. Vistos sobre outro aspecto, esses mesmos moldes e objetos fundidos carregam um
discurso sobre a Vida, onde a noção de ponto linear é posta a xeque. Tudo que resulta do
transcorrer do tempo, como transformações, desenvolvimentos e envelhecimentos, é excluído.
Os instantes são petrificados, numa tentativa de perpetuar o presente, de reter acontecimentos,
de preservar a vida em sua integridade. Trata-se sem dúvida, de um aferrado elogio à vida.
Não obstante, a assepsia dos trabalhos chama a atenção para uma naturalidade
longínqua ou inexistente, percorrendo um viés anti-natura , ao mesmo tempo que os
movimentos congelados (das mãos, por exemplo) apontam para a morbidez e estagnação que
sondam a Morte.
Regina Teixeira de Barros
Fevereiro de 1996
30
ESPELHOS E SOMBRAS
“É o corpo, nossa relação com ele, a sensualidade inerente à sua intimidade ou os
confrontos que por meio dele parecem desafiar-nos, o que parece estar à flor da pele nas obras
de Nazareth Pacheco. O corpo visto através dos instrumentos que são utilizados para
examinar seus orgãos, ou para aborda-lo cientificamente. Nunca os artistas estiveram tão
próximos da medicina, das salas de cirurgia, das UTI, dos laboratórios de análises e pesquisas
químicas. Os exercícios de embelezamento que se confundem com as técnicas de tortura são
também tema de Nazareth, depois de sua exposição individual catartica realizada no ano
passado. E no entanto eis aqui uma artista que não constrói um discurso movida por
reivindicações de ordem individual ou social. Suas propostas têm um envelope formal de
limpeza asseptica quase a ocultar-nos o agente que aflora de sua sensibilidade a uma pratica
poética tão contundente.”
Aracy Amaral
Agosto de 1994
31
O CORPO EM CONSTRUÇÃO
O corpo nos informa e reforça a idéia de ser e existir. Afinal é ele o lugar mais
acessível ao tormento e ao prazer, ao mesmo tempo nosso contato é frágil abrigo do resto do
mundo. O corpo funda a identidade do ser. Não é novo. Através da História da Arte ocidental
temos visto a representação do corpo humano usada como uma metáfora, uma representação
simbólica de significantes associada à ordem das coisas, às aparências e à semelhança.
Embora visível e idealizado, sua carnalidade, entretanto, era ocultada pelos discursos
predominantes da moral, da religião ou da estética, que determinavam a imagem, a linguagem
e a cultura. Mais recentemente, certas produções artísticas trazem o corpo como questão
central do trabalho detonando questões políticas outras além da especificidade da arte, e
inscrevendo novos discursos que identificam algumas das questões mais urgentes da
contemporaneidade: gênero, sexismo, identidade sexual, aborto, violência, doença e morte. O
corpo tornou-se a ultima fronteira e um campo de batalha cultural. Não é mais apenas o
objeto de representação ou de investimento sexual, mas o território de múltiplas tensões
apontando em diversas direções em reação a qualquer colonização do corpo.
Nazareth Pacheco (1961) constrói seu trabalho recente a partir da história do seu
próprio corpo. Se antes suas esculturas e objetos também podiam ser lidos por esta
perspectiva se tomados como metáforas, embora eles se constituíssem a partir de pressupostos
do post-minimalismo e da arte povera como outros artistas de sua geração no Brasil, agora a
referência é direta a esta história. Nascida com problemas de formação congênitos, a artista
passou por 16 cirurgias plásticas reparadoras e modeladoras para ter sua aparência atual. Os
testemunhos deste longo processo - fotos, radiografias, pinos metálicos, receitas, relatórios
médicos, seringas, formas e moldes - foram guardados como um diário, memória desta
experiência. Eles são o registro que reconstituem a história da construção do corpo da artista.
A partir desta experiência pessoal, Nazareth montou urna série de trabalhos
acondicionando, em caixas de madeira forradas de chumbo e fechadas por um vidro, todos
32
estes fragmentos de vivências do próprio corpo em transformação. O esforço é similar ao da
investigação da genealogia de alguém que inventaria as marcas dos ancestrais que fazem dele
ou dela a sorna de seus predecessores. Os trabalhos resultam em algo enxuto, urna sequência
de objetos que refletem uma visão dissecante de resíduos, e que informam sobre a
determinação do artista de provar e experimentar. Mais, em Nazareth, estes trabalhos exalam
o sentido de uma indagação obstinada na combinação de elementos que se recusam à beleza
estética e formal. Eles podem ser divididos em dois grupos: os que se referem às cirurgias e
terapias de modelação da estrutura do corpo (ossos, cartilagens, sentidos); e os que se referem
à aparência plástica do corpo (dermatologia, cosmética, cirurgia estética). O efeito geral
destes trabalhos é o de resquícios de uma história petrificada, mas sem ser mórbida ou
apiedante. O espectador é deixado a contemplar estes resquícios mudos, irremediavelmente
alienados do sofrimento evidente que artista experimentou uma vez, confrontando-se, no
entanto, com anseios contraditórios entre ficar olhando hipnotizado ou voltar-se
imediatamente, porque é incapaz de escapar da sensação desconfortável que demarca a
pequena distância do destino dele do da artista. Estas caixas falam ao medo recalcado em
todos nós das transformações físicas, da mortalidade, do sofrimento e, ao mesmo tempo, do
desejo intelectual de conhecer intimamente a dor agonizante a qual a carne é sucetível.
Entretanto, nas caixas de Nazareth há uma certa calma, um agenciamento psíquico
sem ansiedade, algo que passa quase indiferente pelo sofrimento experimentado pela artista.
Valendo-se de sua condição singular, ela se afasta da retórica de seus contemporâneos para
instaurar a diferença de seu trabalho: não ser metafórico. A "fisicalidade" destes fragmentos
ordenados não transportam nada além da sua história pessoal e não informam nada além da
materialidade de seu próprio corpo. As obras mostram detalhes ou referências ao processo de
modelação do corpo da artista, organizados e expostos com uma ostentação inquietante.
Contudo elas se constituem a partir de uma manipulação não enquanto forma capaz de conter
um sentido, mas pela apropriação que a artista faz de si mesma. Deste modo Nazareth trabalha
sobre a questão do vinculo entre o artista e o mundo e exprime sua própria dificuldade de dar
conta da realidade que ela explora. As fotos, os relatórios, os moldes, os instrumentos que
invadem o olhar aparecem como fendas no desejo de ver, onde ator e espectador, vítima e
33
voyeur se confundem. A realidade do corpo que esvazia a imagem exige o corpo do
espectador para alimentar o olhar. É para reencontrar a profundidade desta experiência, a
verdade deste instante, que ela confronta o espectador com estes fragmentos do real,
implicando-o em seu desejo de dar o corpo novamente à visão.
IVO MESQUITA
Dezembro de 1993.
34
O CORPO COMO DESTINO
“O outro é o que me permite
de não me repetir ao infinito”
Baudrillard
Há sintomas de rompimento do acordo tácito de não agressão que vem anestesiando
as relações entre a arte e o público. A revelação de conteúdos potencialmente perturbadores
começa a aparecer em mostras isoladas no Brasil e com maior insistência no exterior. Ante
um poder difuso e uma apatia generalizada, as manifestações individuais surgem como
potencialmente ativadoras da sensibilidade coletiva quando impregnadas de força crítica e
reflexiva. A arte deixa de ser um tranquilizante ou um euforizante para dar a dimensão do
real.
Nazareth Pacheco propõe algo inquietante. Vista retrospectivamente a poética que
vem desenvolvendo há cinco anos, assume hoje, um significado explícito. O que se anunciava
em suas obras feitas com borracha e metal, seguidas por instalações — entendido por alguns
como de extração pós-minimalista — evidencia-se nesta apresentação austera como reflexão
sobre a identidade fundada na história do corpo. O corpo humano — “lugar fantasmático por
excelência” (Barthes) — é continente, laboratório e expressão: marcado por sucessivos
acontecimentos fisiológicos e psíquicos encerra a complexidade de um percurso voltado para
a superação de amarras existenciais em busca do prazer. Objetual ou documental, a obra de
Nazareth resulta de experiências vividas na intimidade corporal; daí retirando a intensidade
capaz de tocar o espectador. É, portanto, um trabalho do desejo.
Dispondo duas séries de caixas contendo objetos e documentos diversos, fixadas ao
muro, a artista cria um corpo histórico. A anamnese se manifesta pelo recolhimento de
fragmentos e resíduos de sua história pessoal articulados segundo uma sintaxe própria. O
processo que podemos chamar de “bricolage” organiza um discurso que “fala por meio das
coisas” (L. Strauss) produzindo a reativação dos signos — receitas, bulas, diagnósticos,
fotografias, medicamentos, seringa, máscara, mecha de cabelos, etc. — não para reproduzir
situações mas para re-velá-las. A primeira sequência de caixas refere-se a tratamentos
médicos visando a recuperação física e a segunda, aos chamados tratamentos de beleza.
Entretanto, na narrativa a distinção se dilui insinuando-se a analogia entre os procedimentos
35
terapêuticos e esteticistas no que tange à submissão do corpo à intervenções justificadas pelo
alcance dos resultados funcional e estético. O subtexto alude à sexualidade feminina enquanto
sujeita à fisiologia e aos padrões culturais de comportamento e ao erotismo que impregna a
associação de prazer e dor e o fetichismo.
No centro do espaço expositivo, um conjunto de blocos de látex forma um grande
paralelepípedo e impõe-se pelo rigor formal. Metáfora do corpo. O látex puro é extremamente
sensual. Sua consistência é de uma rigidez relativa sendo perfurado ou cortado com
facilidade, a superfície é texturada e tépida, a cor nuançada em tons castanhos, desprende um
odor característico, é deformável e reduz-se com o tempo. Pode ser industrializado e
reciclado. Solene, repousa a matéria na fatalidade da transformação. Com esta redução,
Nazareth rompe com qualquer subjetividade. Escapa a si mesma.
A encenação instalada abaixo do solo refaz o ciclo temporal, fio condutor de toda
metamorfose.
Maria Alice Milliet
Agosto de 1993
36
OBJETOS DEPENDENTES
Nazareth Pacheco faz parte de uma geração de artistas paulistanos que acredita poder
transformar a sensibilidade complacente do publico numa sensibilidade violada, através da
produção de objetos que buscam formar outras possibilidades de percepção do espaço e da
matéria.
No entanto, as propostas da maioria dos artistas dessa nova geração não vem se
realizando de maneira satisfatória. Mesmo descontando a extrema juventude destes artistas é
preocupante o quanto suas produções vêm repetindo soluções já desenvolvidas à exaustão por
alguns de seus predecessores. Seus trabalhos procuram não incorrer em erros e em ousadias
comprometedoras buscando, enfim, operar dentro de um gosto de origem pós-minimalistas
mal absorvido, tido por alguns segmentos da crítica e do publico paulistano como a única
alternativa para a arte de hoje em dia.
Uma arte supostamente alternativa, supostamente deflagradora de novas percepções e
que, na verdade, nada mais tem feito do que repisar propostas já devidamente
institucionalizadas.
Mas a produção de Nazareth Pacheco não se enquadra neste contexto. Apesar da
artista ter a mesma ascendência dos seus colegas, sua produção vem apresentando nos últimos
dois anos a preocupação real em se colocar como um fator problematizador da percepção da
obra de arte.
Os objetos de Nazareth podem ser caracterizados como construções aditivas de
materiais diversos, sem nenhum aparato que os separe (literal ou metaforicamente ) do espaço
onde se inserem. Seus objetos não possuem base, pedestal e nem são produzidos com
materiais nobres. E são essas, na verdade, as características dos trabalhos da artista que
podem coloca-los ao lado dos trabalhos de seus colegas: características do objeto
tridimensional de extração pós-minimalista. Mas as semelhanças acabam aqui.
A maioria dos trabalhos de Nazareth Pacheco possuem como questão fundamental de
sua gênese conceptiva a característica da maleabilidade que os tornam singulares no contexto
não só da jovem produção tridimensional paulistana, mas na maioria da produção
tridimensional atual.
Concebendo objetos cujas estruturas são realizadas com materiais maleáveis (chapas
delgadas de metal, chapas ou filetes de borracha) onde são adicionados outros materiais, a
37
artista rompe com uma condição
inerente ao objeto de arte
moderno, que nem os
minimalistas e a maioria dos pós-minimalistas (sobretudo os brasileiros) conseguiram romper:
a integridade do objeto de arte, ou seja, sua auto-referência, sua independência em relação ao
espaço e ao observador.
Qualquer um dos objetos moles de Nazareth, na sua recusa em posar como exemplo
do que deveria ser um objeto de arte (no sentido da arte moderna), propõe a possibilidade real
de interação com o ambiente onde está instalado e com aquele que o percebe. É como se os
objetos da artista existissem apenas quando percebidos pelo olhar e pelo tato.
Dependentes, manipuláveis, moles e desprovidos de aura, por tudo isso os objetos de
Nazareth Pacheco são possuidores de uma singular potência significativa dentro do contexto
da arte atual, conseguindo, de fato, violar a sensibilidade complacente do publico.
TADEU CHIARELLI
Março de 1990
38
OS OBJETOS DE NAZARETH PACHECO
A pesquisa laboriosa de Nazareth Pacheco vem cada vez mais expressando um
aprimoramento refinado: o interesse na experimentação de materiais díspares em
confrontação contínua mostra sua determinação em transpor a resistência de cada um deles. A
familiaridade que vai adquirindo face a esses materiais vem à tona no conjunto uníssono de
seu trabalho, sempre calibrado por saborosas e intrigantes associações. As convergências,
quer das chapas metálicas quer do mármore, com a borracha, ou ainda desta com o couro,
provocam um jogo tencionado entre massas diversificadas, tanto em relação à forma, quanto à
cor ou à textura. Nestes objetos ocorre uma fusão amalgâmica ativa surpreendente, originária
do entrelaçamento harmônico de uma geometria nuançada por uma organicidade sutil. O
apuro com que a artista manipula a articulação dual entre a instância geométrica e a orgânica
atrai outros pares antagônicos, bipolaridades em perpétuo devir – frio / calor, porosidade /
lisura, alvura / negritude, brilho / opacidade, maciez / rudeza, placidez / desafio – que, por sua
condição movente, medram situações permeadas por permutações cíclicas. É através dessas
correlações cambiantes, acentuadas pela incisiva repetição rítmica dos pinos de borracha, que
os objetos de Nazareth adquirem conotações multifacetadas e extrapolam o caráter inanimado
da matéria. A sensorialidade aguda que deles emana se dissimula como um código a ser
decifrado através do próprio embate dos materiais, numa luta corpórea transcendente, que se
traduz em densidade reflexiva e nos convida, com insistente desenvoltura, a novos e
instigantes achados.
STELLA TEIXEIRA DE BARROS
1989
39
FACÍCULOS DE ARTE COMTEMPORÂNEA
Entrevista de Tadeu Chiarelli com Nazareth Pacheco
1 – Seus primeiros trabalhos, de caráter marcadamente autobiográfico, evidenciavam a
história de reconstrução de seu corpo a partir dos parâmetros mais aceitos da beleza feminina
ocidental. Em poucas palavras você poderia relatar esse processo?
R – Eu dividiria esse processo em duas partes: nas cirurgias de reparação de um problema
congênito, em que me submeti à correção do lábio leporino, transplante de córnea, cirurgia
nas mãos, pés, nariz e boca. Já a segunda parte, seria o registro de tratamentos chamados “de
beleza”: tratamento da pelo do rosto, aparelho dos dentes, depilação, limpeza de pele, entre
outros. Essas duas partes do processo se deram, na verdade, desde quando eu nasci. A partir
dos anos 80, deixei de fazer as cirurgias corretivas e o enfoque passou a ser dirigido apenas à
questão estética.
2 – A necessidade de adaptação do corpo a um modelo ideal (e irreal) de beleza inscreve-se
no quadro autoritário da sociedade que impõe à mulher a necessidade de construção de uma
persona, uma máscara adequada a padrões quase sempre inatingíveis. Como você
transformou essa questão em arte? Ou melhor, em que medida sua experiência de vida foi
“traduzida” para o campo da arte?
R - Por meio de questões ligadas à identidade e à memória. Chegou um momento em minha
vida em que a questão do modelo ideal de beleza passou a ter um peso grande e foi por meio
desta questão que, trabalhando com esses dados, a minha experiência de vida foi
“transformada” em arte, mas com uma grande preocupação formal e estética ao realizar os
chamados “objetos de arte”.
3 – Essa relação conflituosa entre aquilo que você “deveria aparentar” (dentro dos padrões
estéticos estandardizados) e sua aparência real levou-a à produção de objetos de adorno, em
que a sedução do brilho dos materiais escondia o perigo real da mutilação, do ferimento em
quem ousasse vesti-los ou mesmo manipula-los. Fale um pouco da perversidade implícita
nessa fase de sua produção.
40
R – Não posso negar a perversidade presente nos colares e vestidos, mas acima de tudo os
materiais cortantes e de perfuração escolhidos para confecção desses objetos estavam
diretamente ligados a objetos que sempre me causaram medo e pânico: agulhas, lâminas etc.,
as quais sempre eram utilizadas nas cirurgias às quais me submeti. Mas, por outro lado, utilizo
cristais, pérolas, materiais esses extremamente sedutores, que se tornaram desejados através
de suas formas e brilhos. Ao desejar alcançar o belo, tenho que me submeter a cortes e
perfurações.
4 – Em uma recente viagem a Nova Iorque você conheceu a importante artista francoamericana Louise Bourgeois e com ela se envolveu num projeto de aprofundamento de
questões artísticas e estéticas muito importantes para o desenvolvimento posterior do seu
trabalho. Você poderia relatar com brevidade essa experiência e os resultados já passíveis de
serem vistos em sua obra?
R - Louise Bourgeois, que completa 90 anos em dezembro deste ano, costuma se encontrar
com outros artistas, sempre aos domingos, em sua casa, em Nova Iorque. Participei de três
desses encontros em 1999 e 2000 e o que me chamou mais a atenção, em primeiro lugar, foi
o interesse de Bourgeois pelo trabalho de seus convidados e não propriamente pela divulgação
de sua própria obra.
No ano passado, quando voltei a Nova Iorque, telefonei para Louise que me solicitou que
levasse alguns trabalhos no domingo seguinte. Eu não havia levado nenhum trabalho para
Nova Iorque, apenas fotos de obras já realizadas. Louise não se deu por vencida e pediu que
eu produzisse novas obras para serem apresentadas ao grupo dois dias depois (o telefonema
ocorreu numa sexta-feira).
Depois de sugerir que eu comprasse um tipo de massa plástica utilizada para modelagem,
interrogou-me a respeito do que eu pretendia fazer. Senti-me pega totalmente desprevenida e
ela sugeriu, então, que eu fechasse os olhos e imaginasse o objeto que eu deveria fazer.
Respondi que, com certeza, faria um objeto relacionado ao corpo e que teria de dez a vinte
centímetros. “Como você é tímida”, me respondeu Louise.
41
No domingo apresentei os protótipos para Louise e o resto do grupo e ela se mostrou muito
satisfeita até insistindo que passasse os objetos para o gesso. De volta a São Paulo, resolvi que
não apenas passaria os objetos para o gesso mas também os ampliaria.
Esses objetos estão muito relacionados à fecundação do óvulo pelo espermatozóide e, num
segundo momento, eu consigo sugerir naquela forma totalmente orgânica alguma
interferência capaz de provocar alguma mutação no desenvolvimento daquele suposto
“embrião”.
Em função desses trabalhos, passei a me aprofundar no projeto genoma e gostaria de explorar
essas questões formalmente.
Março de 2001.
1
2
3
Citada por Jean Baudrillard em De la séduction, Folio Essais, Paris, 1979.
Texto escrito para a individual da artista na Valú Ória Galeria de Arte (São Paulo), em 1997.
Baudrillard, op. cit., p. 23.

Documentos relacionados