fortuna crítica - Luciana Caravello
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fortuna crítica - Luciana Caravello
FORTUNA CRÍTICA 2 Inventando corpos e/ou desvelando o erótico em inquietante devassidão: o encantamento dolorido Miriam Chnaiderman É em nosso corpo que experimentamos a obra de Nazareth Pacheco: somos tomados pela vertigem de um mundo que nos estraçalha, esparramando vísceras em orgasmos bizarros entre a dor e o êxtase. Contrariamente ao artista que expõe seu corpo como objeto artístico, é o nosso corpo que fica desnudado diante dos objetos agudos e cortantes. Penetrar os cortinados feitos de lâminas de barbear e miçangas, no seu brilho sedutor, fascinante, faz com que os rasgos aconteçam e esmigalhem imagens corporais, dilacerando qualquer identidade possível. É a própria noção de sujeito psíquico que fica questionada, o jogo de espelhos se inverte, perdemo-nos do olhar que nos constituiu, tornamo-nos ferida exposta. O Eu-pele explode, os suspiros são indiscerníveis, algo do imponderável circula. Desruptor movimento de campos do desejo, esvaindo contornos, degelando montanhas. Todos passamos a fazer parte da chamada body-art, todos nossos corpos são campos de batalha. É essa a radicalidade do trabalho de Nazareth Pacheco: instaurar um corpo-carne naquele que olha seu trabalho. E, ao fazer assim, obriga a um trabalho de recostura do próprio eu. Nisso, vários eus se tornam possíveis, vários corpos podem acontecer. As cirurgias são coletivizadas, os interiores dos corpos misturam-se em comunhão ao mesmo tempo ascética e sanguinolenta. Um sanguinolento sem sangue. Os cortinados, os adornos, os vestidos, são inodoros, atemporais, sem marcas. Inumanos e profundamente humanos. Ficamos nós com os corrimentos, os cheiros, os escarros, o informe. Tornamo-nos profanadores de terrenos sagrados: o leito do amor, o banheiro, lugares do toque despudorado, do prazer clandestino, possível libertinagem de cada um. Dos instrumentos de tortura (tema que percorre toda a obra de Nazareth Pacheco) ao leito, imensa cama acrílica. “Autour du lit fatal, chaque objet est nouveau”,(“Em torno da cama fatal, cada objeto é novo”) disse Paul Éluard. Cama fatal, mesa de dissecação: “Belo como...o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação.” Breton interpretou a mesa de dissecação da frase de Lautréamont, como cama, o guarda-chuva representando o homem e a máquina de costura a mulher. O acaso é portador de sentidos inesperados. Destruição de qualquer ordem estabelecida. E, não é esse o efeito do desejo? Na cama que Nazareth Pacheco construiu não conseguimos deitar. Qualquer sentido conhecido explode e inusitadas descobertas ocorrem em um erótico paradoxal, comunicação 3 cósmica e misteriosa, os amantes engendram o cosmos. O leito é rodeado de material cortante, lâminas de barbear fixadas em miçangas. Masculino cortante e feminino ofuscante. Instrumentos de dissecação, transfigurando encontros, fabricando corpos, mutação permanente. O que se rasga é a própria representação da cama como ninho acolhedor da vida e da morte. “O coito é a paródia do crime”, afirmou Bataille, inscrevendo o erótico na violência. O encontro amoroso dissolve formas constituídas, destrói o descontínuo, propõe a unidade. O sentido último do erotismo é a morte. Freud mostrou que onde a fúria da destruição é mais cega pode sempre estar presente uma satisfação libidinal. Impressões freqüentemente dolorosas são fonte de intenso gozo.É o que há de demoníaco, inumano, em todos nós. Nazareth Pacheco trabalha com a questão do gozo, desse gozo que é barrado pelo desejo. Isso implica em romper barreiras, um enfrentamento com os limites. O gozo é do campo do que não cabe na palavra, do que não pode ser nomeado. Gozo tem a ver com pulsão, pura intensidade, forças em redemoinho. O desejo retoma ao nível da vida de fantasia o gozo que ficou do lado da pulsão. Só que o gozo é morte e, portanto, o desejo jamais é satisfeito. Gozo implica em forçar a barreira do princípio do prazer, e, portanto, questiona o interdito. Nazareth Pacheco propõe uma mais além do desejo, um encontro com o que é originário no erotismo. Transgride, indo em direção a um real pulsional. Libertinagem contemporânea, invenção de uma linguagem que faz coincidir sentido e signo. Não há metáfora possível, estamos no nível do real, das paixões do corpo. Valery afirmou sobre Restif, libertino do século XVIII: “...quem é verdadeiramente livre não é obsceno (...) Porque quem é livre está além do bem e do mal - como o é o real”. Lacan diferenciou o princípio do Nirvana, tendência de retorno ao inanimado, da pulsão de morte. Fiel a Bataille, a pulsão de morte passou a equivaler à vontade de destruição direta. A pulsão quer sempre atender um Outro, tornar um Outro pleno. Destruir o Outro, formando Um, busca da unidade total. O Outro que é fonte da linguagem e da inserção na cultura. Só que o Outro pleno é morte, movimento que cessa. No sadismo, o gozo vem do suposto gozo no outro: ao provocar dores no outro, gozamos por identificação com o objeto sofredor. Coloca-se uma intersubjetividade que faz o gozo do sujeito escorar-se sobre o gozo que ele imagina no outro. Gozo jamais alcançado. Leiris afirmou já em 1930: “o masoquismo, o sadismo(...) são meios de sentir-se mais humano, justamente por manterem relações mais profundas e mais abruptas com os corpos”. É esse o jogo erótico que Nazareth Pacheco nos propõe: quem goza com o gozo de quem? São nossos corpos objetos de um gozo sádico? Mas, o sublime emerge disso tudo, questionando a imagem que temos de nós mesmos. Ainda 4 que seja através de uma pele marcada por rasgos de lâminas, ou cicatrizes de bisturi escarafunchando furúnculos purulentos de nosso triste cotidiano. A obra de Nazareth Pacheco busca desalienar nossa imagem, sempre construída a partir de um olhar que nos olha. Somos obrigados a refazermo-nos como sujeitos de nossos desejos. Um imaginário do dilaceramento, a referência a suplícios e tortura – que, segundo a própria artista vem acompanhando todo seu trabalho - mostra um corpo convulsivo. Não há apaziguamento possível. A agonia fala do êxtase, “confirmação da vida até na própria morte”, diria Bataille. Mas, contrariamente a toda uma corrente modernista, que se inaugura no início do século XX, a obra de Nazareth Pacheco não vai no sentido de uma desantroporfização, não vai no sentido de negar o corpo humano. Pelo contrário: trabalha com adornos, com roupas, com cortinados, com instrumentos de tortura ou de exame médico. Ocorre uma estranhamente familiar antropomorfização. A ausência do corpo costurado, remontado (contrariamente a Orlan, que filma suas cirurgias) faz com que nosso corpo fique pesadamente presente em nossas sensações. São nossos corpos que são retalhados em estranhas plásticas e cicatrizes costuradas. O invisível corpo torna-se um corpo carregado de órgãos e vísceras com ruídos e odores. O que não podia aparecer, surge em fascínio de cantos de sereia. O corpo ausente fala do mais recôndito do desejo. E, através dos adornos cortantes, a mulher aparece radiante, triunfa na possibilidade de um erotismo inomeável, corpos de mil zonas de prazer. Vagina dentada? Freud nos fala da sensação de estranhamento terrorífico que o homem experimentaria diante do sexo feminino. O termo alemão que Freud utiliza é Das Unheimlich. Mas, o que é o Das Unheimliche? No texto em que trabalha esse conceito, Freud começa por um levantamento nos dicionários da palavra alemã “heimlich”. A partir da curiosa etimologia da palavra “heimlich” que vem de “heim” (lar) e significa íntimo, familiar, e também secreto, clandestino, que não deve ser mostrado: é preciso que outros não saibam dele nem sobre ele Freud conclui de que em tudo que é familiar está sempre contida a idéia de ocultação. O “unheimlich” diz respeito a um efeito de estranheza que atinge o conhecido e familiar, tornando-os motivo de ansiedade. A frase de Schelling, citada por Freud, sintetiza tal vivência: “Chama-se ‘unheimlich’ a tudo que, destinado a permanecer em segredo, oculto (...) veio à luz”. Freud mostra como etimologicamente, “unheimlich” e “heimlich”, seguindo uma ambivalência, acabam se unindo Em toda sua obra, Nazareth Pacheco opera radicalmente o unheimliche, o “estranhamente familiar”. É uma experiência que, já no começo de sua carreira, acontece a partir da 5 manipulação de materiais cortantes e pontiagudos para construir objetos do dia a dia de todos nós. Ao descrever seu trabalho para a exposição que realizou no Centro Cultural em 1990, na sua Dissertação de Mestrado, Nazareth Pacheco compara o “prazer do fazer” – pinos para cortar, furar e parafusar – com a época em que sua avó ensinava crochê e tricô aos seus netos: “Todos na fazenda agulhas e lãs na mão”. As agulhas se transformam em pinos pontiagudos pretos de placas de borracha, fixados com parafusos em placas de compensado. A disparidade dos materiais utilizados mostrava a possibilidade de construir objetos bizarros e até mesmo ameaçadores. Depois, Nazareth Pacheco passa do painel para objetos tridimensionais, tendo sentido a necessidade de expandir os trabalhos para o espaço, “fazendo com que ele ocupasse o mesmo lugar do meu corpo”. Os pinos pontiagudos tornam-se volumes autônomos. Naquele momento, os objetos eram “dependentes” como afirmou Tadeu Chiarelli, precisavam ser manipulados para ganharem múltiplas formas virtuais. A passividade do feminino, tão apregoada por Freud e tão combatida pelas feministas? Podemos afirmar qquee, já nesse momento, Nazareth Pacheco põe a subjetividade em circulação, esparramenado os gozos. Depois, e Eu-pele foi questionado no seu trabalho com borracha “...tive a impressão de estar participando de uma briga corporal ao me dar conta da resistência da borracha sendo aprisionada pela brida de chumbo”. Configura-se aí a luta com o informe da matéria. E, com Bataille, Nazareth Pacheco aí sabe que a forma oprime a matéria. Essa opressão é figurada nessa sua etapa de trabalho. Nomeia essa etapa de seu trabalho: “A pele...borracha natural” , utilizando alguns cognomes para identificar esse seu momento: “Objetos Evasivos, Colares e Objetos de Aprisionamento”, conforme explicita em nota de rodapé. A pele limita a possibilidade da fusão, busca erótica. O látex líquido passa por uma prensa que o transforma em mantas rugosas. Nazareth Pacheco descreve: “Estas mantas de borracha natural, quando saem da estufa e são isoladas uma das outras por camadas de plástico, permitiram por meio da manipulação modelagens especiais”. Metamorfoses movidas por gestos aprisionantes, violência necessária para a transformação: as mantas de borracha foram sendo “torcidas, moldadas e estranguladas por uma longa brida de chumbo”. Nazareth Pacheco cita Rosalind Krauss, que afirmou que, na arte processual, os processos de transformação empregados “eram principalmente aqueles de que as culturas se utilizam para incorporar as matérias primas da natureza, como a liquefação, para refino, ou o empilhamento, para a construção”. Algo originário, arcaico, algo de um não representacional está presente nisso tudo. Bataille fala de uma persistente vontade de modificar as formas que acontece através de “gestos de destruição”. Naquele momento do trabalho, a borracha era retorcida. Hoje, são nossos corpos 6 que são estrangulados por requintados apetrechos de tortura, disfarçados em adornos que brilham como nobres rubis de coroas reais. No início do capítulo “Objetos Aprisionados”, Nazareth Pacheco escolhe como epígrafe Louise Bourgeois: “O tema da dor é meu campo de batalha. Dar significado e forma à frustração e ao sofrimento. O que acontece com meu corpo tem e recebe uma forma abstrata formal. Então, pode-se dizer que a dor é o preço pago pela libertação do formalismo”. Breton, já nos anos 30, havia proposto a necessidade de ir ao fundo da dor humana. E, Bataille propõe elevar a vida ao nível do pior. Bataille quer ultrapassar as visões sublimadas da realidade, o que só pode ser conseguido através de uma “cólera negra e até mesmo uma indiscutível bestialidade”. Nazareth Pacheco expõe, então, objetos relacionados ao seu corpo. Mas, seu corpo é o de todos nós. Suas cirurgias passam a ser nossas cirurgias, os corpos se fundem, a mutilação instaura novos territórios erógenos. O humano é disparado, o homem ao alcance de si próprio,. “nada mais real do que este corpo que imagino; nada menos real do que este corpo que toco...”(Octavio Paz) Depois, a pesquisa dos objetos relacionados ao universo da mulher. Mas, Freud já nos mostrou que a feminilidade é uma questão também para os homens - passagem do tempo, representação da perda e da ausência. A alteridade do feminino na impossibilidade de nomeação de um real de um corpo que goza. Nazareth Pacheco instala em uma sala espéculos transparente sendo apenas um de aço. Um único espéculo de aço e gelado. No desejo, a imaginação erótica atravessa os corpos, torna-os transparente.; Ou os aniquila. E, numa bacia de alumínio, cem dius. O diu destrói o que o espermatozóide cria. O espéculo no lugar da vagina exposta, somos todos, homens e mulheres penetrados por espéculos, transparentes e/ou de aço. Transparência sugerindo um invisível presente em nosso mundo moldado para ocultar aquilo que permanentemente nos fere. Depois, o molho de saca-rolhas e um saca-miomas. A vida como violência permanente. Diálogo mortal entre Eros e Tânatos. Freud afirmou que a doença é o estado normal do civilizado. Males imaginários pelos quais a civilização passa, a domação de nossos institntos é paga com sangue. Existe erotismo que não seja destrutivo? No trabalho seguinte, os colares feitos de cristais, agulhas, lâminas e anzóis. E, ainda depois, o “vestido de baile”. Sempre o terrorífico da sedução. Mas, parece que Nazareth Pacheco sentiu-se apertada nisso tudo e precisou pensar mais amplamente todas essas questões. Passou a utilizar-se do acrílico fabricando peças que “tinham grande proximidade com objetos de tortura e aprisionamento”. Sade nos ensinou que as paixões se distinguem entre si pela violência, proclamando então uma declaração de direitos das paixões, fundando os Estatutos da Sociedade dos Amigos do Crime. Minski, 7 personagem de Sade, alimenta-se de carne humana. Deixa de haver qualquer diferença entre os homens e os animais, as ações deixam de ter qualquer substância moral: “O crime não tem realidade alguma; melhor dizendo, não existe a possibilidade do crime porque não há maneira de ultrajar a natureza”. Profanar a natureza é honrá-la. Sade, na leitura de Octávio Paz,. “imagina a matéria como um movimento contraditório, em expansão e contração incessantes. A natureza destrói a si mesma; ao se destruir se cria”. Não mais distinção entre criação e destruição. Prazer e dor são nomes tão enganosos como quaisquer outros. O prazer passa a ser dor e a dor, prazer. A imaginação se multiplica, o mundo das sensações passa a ser meta única. A mesa de operações, de dissecação, altares ensangüentados.. O prazer, à medida que cresce e se faz mais intenso, roça a zona da dor. O prazer mais forte passa a ser dor exasperada, que, por sua própria violência, se transforma de novo em prazer. Um prazer inumano, uma mais além da sensualidade. Os instrumentos de tortura de Nazareth Pacheco, o balanço fixado em corda de cristal, o tampo perfurado de agulhas de costura ( agulhas de crochê de sua infância com sua avó), mordaça transparente, algemas em grande cubo de acrílico, tudo isso nos fala de um inumano em direção a uma fusão com a natureza. A violência precisa encarnar e converter-se em substância. Já em Sade, o mal, para ser belo, precisa ser feminino, mostra-nos Octavio Paz. Os cortinados de Nazareth Pacheco, feito de lâminas de barbear, suas jóias cortantes, dão concretude ao belo mal que só pode ser feminino. Perigosa sedução.. Transcendência da própria vida, a entrega total é morte. Na exposição “Transcendências”, Nazareth Pacheco expôs um berço construído em acrílico transparente com o cortinado cortante. Relata, como em seu percurso, a pesquisa sobre sua gestação e como o estar viva foi “uma possibilidade de transcender os próprios limites da vida”. O homem sempre cria sua realidade, ele não é realidade. A consciência radical do corpo é afirmação da vida. Transcender os próprios limites da vida é pura libertinagem: “o libertino deve inventar uma situação que seja simultaneamente, de absoluta dependência e de infinita mobilidade” (Octavio Paz) . A libertinagem é a busca de um mais além das sensações, a insensibilidade aperfeiçoa, é ferramenta de destruição. Nazareth Pacheco manipula lâminas e se fere. Vence a matéria inanimada. Mas, a matéria plástica de Nazareth Pacheco é o invisível, o mundo das sensações. Em seu trabalho, vai manipulando nossas sensações e nos propondo novos mundos. Mundos descobertos através de cortinados doloridos, mundos descobertos no informe da dor. Sensação radicalizada, animalizante. E, agora, unindo seus instrumentos de tortura e seus vestidos e jóias de universos femininos, a cama aparece com o cortinado de miçangas e lâminas cortantes. O ato sacrificial ritualizado, 8 cama de vida e cama do morto – a morte é signo de vida. Anatomia humana em metamorfoses, a figura humana é sacrificada. Nós somos sacrificados. Humanidade não tem nada a ver com bondade ou felicidade, já nos disse Leiris. O ato erótico passa a ser uma cerimônia que se realiza de costas para a sociedade e diante de uma natureza que jamais contempla a representação. Em nossa muda contemplação, fiicamos nós de costas para a civilização. Catacumba, quarto de hotel, cabana na montanha, cada um que fabrique o seu gozo impossível, fusão mortal. O erotismo é um mundo fechado tanto à sociedade quanto à natureza. O ato erótico nega o mundo – nada real nos rodeia, exceto nossos fantasmas. São nossos fantasmas os personagens de Nazareth Pacheco. Passamos a ser estrangeiros de nós mesmos, estraçalhados em nossa indestrutibilidade, reduzidos a ser apenas mais uma espécie animal no universo infinito. Observações finais As citações de Bataille, Leiris, Breton e Lautréamont foram todas retiradas do inspirador livro de Eliane Robert Moraes, O corpo impossível, editado pela FAPESP e Iluminuras, São Paulo, 2002. O livro de Octávio Paz a que me refiro é : Um mais além erótico: Sade, da Editora Mandarim, São Paulo, 1999. Para conceituar a noção de gozo em Lacan, foi-me de enorme utilidade o ensaio da MarieChristinne Laznik-Pénot, “A construção do gozo em Lacan”, publicado na revista Percurso n.8, primeiro semestre de 1992, São Paulo. A Dissertação de Mestrado de Nazareth Pacheco, Objetos Sedutores, defendida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação de Carlos Fajardo no dia 26, de março de 2002, foi de enorme importância no delineamento das questões que nortearam esse ensaio. 9 Entre o tato e a visão A vida real e o universo cultural são linhas tecidas que se entrecruzam e, para ambas vale dizer que, se não soubermos olhar para trás, de onde viemos, não saberemos quem somos e para onde vamos. Nazareth Pacheco, nesta mostra, reúne algumas obras de cada momento de seu percurso como artista plástica, comemora quinze anos de trabalho. Para nós, é um privilégio ver em conjunto sua obra que, apesar de ser construída por tão jovem artista, apresenta coerência e amadurecimento. Mas não é só isso. Ao observar tal caminho, não pude deixar de ver mãos, pele, revestimentos, um corpo. O corpo é um todo de sentidos, direções. A obra de Nazareth provoca movimentos que se alternam na dança das ordens sensoriais, proximidade (tato) e distância (visão), possibilidade e impossibilidade. Talvez escutemos: “toca e não me olhes, olha e não te aproximes, não me toques”! Assim sendo, pensei ser provável que alguns de seus trabalhos sejam sentidos via comunicação tátil, para aqueles que não tem o sentido da visão ou o tem diminuído. Desde o início de sua carreira, em 1988, Nazareth desliga-se do plano bidimensional. Constrói objetos tridimensionais, expandindo seus trabalhos para o espaço, fazendo com que eles ocupem o mesmo lugar do meu, do teu, do nosso corpo. Mas que espaço ocupa este corpo contemporâneo? Como bem diz Flusser, “espaço, aqui estão as minhas dores”. Suas primeiras peças tridimensionais foram qualificadas por Tadeu Chiarelli de Objetos Dependentes. Quando feitos em borracha, a artista colocava pinos pontiagudos do mesmo material. “Pinos e mais pinos para cortar, furar e aparafusar. Descubro o prazer do fazer. A mão precisa estar ocupada, acabou um, começa outro” 1. Surgem volumes autônomos, formas filiformes, tiras. Das mãos da artista para as mãos do espectador. Maleáveis, aguardam o contato, disponíveis para ocuparem o espaço de outras maneiras. Ainda no final da década de 90, agrega à borracha metais, como filetes de aço, cobre e latão. Fixadas na parede, horizontalmente, na altura dos olhos, as obras perdem o caráter de serem manipuladas. As formas pontiagudas, presentes nos objetos de borracha, migram para as tiras metálicas, porém o tato deve distanciar-se. Da borracha vulcanizada para a borracha natural, Nazareth passa a confeccionar uma série de objetos em látex. Esta matéria sofre transformações, as quais a própria artista quis 1 PACHECO, Nazareth. Objetos Sedutores. Dissertação de Mestrado, apresentada ao Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2002, p.10. 10 acompanhar. O látex chega líquido ou coagulado, passa por uma prensa que o transforma em mantas rugosas, secas em estufas especiais. Em 1991, Nazareth começa a enrolar as mantas sobre mantas, camadas e camadas. “São pedaços e mais pedaços de peles rugosas que começo a cortar, que começo a trançar”. Ela torce, busca formas e assim que as encontra, as estrangula com bridas de chumbo. Briga material, briga corporal. Ora só látex, ora látex e chumbo. Sem a visão, pode-se tocar. O látex é material rugoso, áspero, contudo porta impressões, como nossa pele. Já o chumbo é denso, intransponível. Parece leve, mas trata-se do metal mais pesado utilizado pelo homem. Nazareth nunca dá títulos às obras. Às vezes, críticos ou a própria artista nomeiam uma fase de seus trabalhos. Esta chama-se Peles. Não é à toa a expressão “sentir na pele”. É na pele que sentimos a dor e o prazer. Os órgãos dos sentidos são recobertos de pele. Nela inscreve-se nossa história e através dela percebemos a história do outro. Ainda em 1991, Nazareth apresentou uma instalação na Pinacoteca com espécies de grandes travesseiros, revestidos de veludo, um dos quais aqui presente. O veludo é macio, agradável ao tato, pele igualmente. Os Objetos Aprisionados são obras de 92/93. Seu trabalho é exposto em uma série de caixas que contem objetos como fotos, radiografias, arcada dentária, documentos, frascos e chumbo. Caixas guardam segredos. Tanto segredos como caixas fechadas são intocáveis. Contam a história de um corpo inúmeras vezes tocado, corpo que sentiu na pele tratamentos estéticos e cirúrgicos. Já em 1994/95, sua reflexão amplia-se de um corpo para o universo do corpo feminino. A artista começa a trabalhar com instrumentos médicos e cirúrgicos ligados à condição da mulher. Espéculos, dius, saca- miomas são os materiais que trabalha para apresentar sua visão de mundo. O interior do corpo da mulher como destino. Produção em massa como metáfora. Em 1996, do interior do corpo, para o exterior novamente. Sua produção apresenta objetos que nos remetem à superfície da pele. Esta adapta-se sempre, flexível, como umbigos de mulheres grávidas, movimentos da pele. Nos objetos de chumbo e borracha, mensagens da pele. Neste nosso maior órgão, nada é superficial. O que está na profundidade aflora para a pele e vice-versa. Em 1997, suas mãos voltam a tecer, mas objetos que não podem ser tocados.Apenas ela os toca. Sem proteção, ela tece com cristais, agulhas, lâminas de bisturi, de lancetar, de 11 barbear, anzóis, são os Colares. Corta, fura o dedo. Nas mostras em que participa 2 estes objetos são colocados em vitrines, como jóias. O olho à distância flana, seduzido aproxima-se, vai de encontro a uma beleza perigosa, “sedução perversa” 3. O mesmo ocorre com as vestes construídas com cristais e lâminas de barbear. O tato fica cego. Os sentidos isolam-se. Adornos e vestes, a impossibilidade de tocarem a pele. A pele é limítrofe, separa e protege o interior do exterior. É importante observarmos que Nazareth nunca desiste de pesquisar novos materiais. A partir de 1998, começa a trabalhar com o acrílico cristal. Como as miçangas ou os cristais de vidro, o acrílico também seduz o olhar e atrai o tato, tem pele macia. De novo o embate, as duas faces da mesma moeda, os contrastes. O acrílico é material duro, mas trinca facilmente. As mãos da artista não participam inteiramente na confecção de tais obras. Ela prepara os projetos de forma minuciosa, as peças são produzidas numa indústria especializada. Quando voltam para seu atelier, ela os finaliza, como é o caso do banco ou do berço, aqui presentes. No banco, ou quem sabe um divã, em acrílico preto, do comprimento e largura iguais ao seu corpo, há 1600 agulhas que, uma a uma, a artista fixou em seu assento. O berço, em acrílico branco, translúcido, recebe um véu elaborado, pacientemente, com lâminas de barbear e miçangas. Instalados no espaço estes objetos instauram no espectador estranheza e fascinação. Véus são peles. Comunicação ou incomunicação? Tendo conhecido a artista Louise Bourgeois, em Nova York, Nazareth lá participa de suas reuniões e reflete sobre a transcendência. Elabora, em 2001, peças em resina. Sem a visão, o tato pode reaproximar-se. As pontas dos dedos percebem texturas e formas, a via é a tátil, o olho não censura. Por ocasião da XXV Bienal de São Paulo, em 2002, na mostra Paralela a artista participou com alguns trabalhos. Pinça das lojas cirúrgicas objetos que ajudam no conhecimento científico do corpo. Em suas construções, aqui expostas, apresenta enclausurados um coração e um esqueleto. Partes do corpo, corpo sem pele. Por outro lado, há também objetos que desenham linhas no espaço, como as agulhas de acupuntura e um fio de um marcapasso. Linhas e fios que atravessam os limites da pele, estimulam o ritmo da vida. Quando Nazareth esteve na Alemanha, em 1992, visitou o Museu do Crime, em Rothenburg. Impressionada, guardou em sua memória aquelas imagens, as quais, nos anos 2 Em 1998, participa da XXIV Bienal Internacional de São Paulo, com uma coleção de Colares. 3 Expressão utilizada pela crítica Angélica de Moraes em artigo publicado no Estado de São Paulo, 1997. 12 2001 e 2002, transformaram se em projetos, obras que denomina Objetos de Aprisionamento. Trabalha grandes blocos de acrílico, mas não sozinha. Os desenhos são adaptados com ajuda do CAD4, projeto assistido por computador. São peças em acrílico e latão cromado, porém suas mãos distanciam-se deste fazer. Para o espectador, que tem o tato como guia, é permitido tocar. Nazareth retoma, a mão precisa estar ocupada. Neste semestre, participa de três mostras individuais, para as quais elabora instalações inéditas. Para nosso espaço, esta que descrevo. Um pequeno compartimento, paredes laterais lisas e brancas e na parede em frente há um espelho. Ao redor do mesmo, 22 lâmpadas redondas, usadas, em geral, em camarins. Na entrada para o espaço descrito há uma cortina produzida pelas mãos da artista, feita com miçangas que unem 1008 laminas de barbear. Sim, pela descrição, com ou sem o sentido da visão, pode se ter uma oportunidade de formar nossas próprias imagens mentais, treinar nossa capacidade imaginativa. Que espaço ocupa este corpo contemporâneo? Num processo imperceptível, vagaroso, mas eficiente, o mundo reduziu o espaço do corpo e promoveu o êxodo dos sentidos. Ocupamos o espaço como objetos, imagens. A meu ver, poderia sugerir para esta fase de Nazareth que são Objetos Silenciosos. Mesmo torturado, aprisionado, o corpo contemporâneo não grita, pois não sabe mais ouvir seus gemidos. Concordamos com Michel Serres quando afirma que nosso corpo sabe mais do que fala, falava mais do que sabia. Ele sabe, esquece que sabe. A sensibilidade desta artista não esquece, ela compartilha. Sua obra não lamenta, apenas expõe nossas cicatrizes. Sua obra está sempre em construção, longa vida para ela. Não sei se podemos dizer o mesmo sobre o corpo contemporâneo. Elisabeth Leone Membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. 4 CAD significa computer aided design . É um software específico, torna possível executar toda a criação e dimensionamento de um determinado item ou conjunto de peças por meio de computação gráfica. 13 Elogio do feminino Margarida Sant’Anna “Que a feminilidade seja autêntica ou superficial, é fundamentalmente a mesma coisa.” Joan Rivière1 O nome de Nazareth Pacheco está ligado a uma geração de artistas surgida no final dos anos 80 e início dos 90, que conjuga aspectos da tradição minimalista com elementos simbólicos, alguns remetendo a fatos autobiográficos. Paulista, licenciou-se em artes plásticas pela Universidade Mackenzie, complementando sua formação acadêmica em diversos ateliês livres e wokshops. Realizou sua primeira individual de maior relevância em 1988, momento em que começa a trabalhar esculturas filiformes, associando às longas fitas de borracha ou latão formas pontiagudas, que remetiam incontestavelmente a instrumentos de dor. Em 1993, apresentou no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, vitrines-arquivos de objetos autobiográficos. Numa exposição ao mesmo tempo catártica e libertária, a artista investigava tratamentos médicos e estéticos aos quais foi submetida desde o nascimento, sem fazer da obra, entretanto , uma ilustração da própria vida. Na seminal coletiva “Espelhos e sombras”, com curadoria de Aracy Amaral, Nazareth apresentava o corpo por meio de instrumentos da medicina destinados à mulher. Os exercícios de embelezamento, mesclados a técnicas de tortura, foram tema dos trabalhos desse período e mais tarde seriam objeto de estudo em seu mestrado, apresentado na Escola de Comunicações e Artes da USP em 2002. Além das experimentações anteriores, a artista incorporava agora uma iconografia inédita para a construção dos novos objetos: instrumentos de suplício e aprisionamento vistos no Museu do Crime (Rothenburg, Alemanha) e gravuras de Debret, em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Convidada por Tadeu Chiarelli a integrar o Panorama da Arte Brasileira de 1997, no qual foi premiada, a artista apresentou a produção de colares e vestidos. Concebidos para adornar, a fim de compensar os limites da nossa frágil existência, tornavam-se cada vez mais 14 ameaçadores. O crítico salientava, em texto da mesma época2, que o risco potencial dos objetos do início dos anos 90 era agora uma realidade. Uma realidade cada vez mais aterradora. Em 1998, na XXIV Bienal Internacional de São Paulo, a artista apresentou uma coleção de colares, todos protegidos em caixas de acrílico como objetos de desejo. No catálogo individual, Lisette Lagnado salientava que “reunidos na sintaxe do colecionismo, os adornos acabam formando um sistema, graças a um trabalho de perlaboração que os permitiram passar do registro privado à dimensão pública. Além disso, porém, a dor foi o depósito compulsório para um ajuste com a volta mítica às origens”. Em 1999, a partir de textos de Louise Bourgeois, que a artista conhece naquele verão, surge um berço com “mosqueteiro”, exposto na mostra “Transcendência”. O tema da cortina/transparência irrompe nesse momento, reaparecendo aqui, mais denso. O recente trabalho apresentado na Mercedes Viegas Arte Contemporânea resgata questões dos trabalhos anteriores. Entretanto, um dado novo surge em sua recente pesquisa, exibida aqui pela primeira vez: a elaboração de espaços reservados à privacidade. Construídos por meio de uma parede/cortina, a passagem do olho é possível, mas não a penetração, sob risco de ferimentos, já que construída com lâminas de barbear. Nesse espaço, superficialidade e profundidade se confundem visto que não podem ser vividas, experimentadas pelo espectador. Nessa ambigüidade, tornam-se alegorias do feminino. No livro De la séduction3, Baudrillard argumenta que não é exatamente o feminino como superfície que se opõe ao masculino como profundidade, mas “o feminino como indistinção da superfície e da profundidade. Ou como indiferença entre o autêntico e o artificial.” Valorizando a “pele” desses impenetráveis, sem nos dar o direito de experimentação do interior da redoma, a artista parece responder de forma irônica aos abrigos de Hélio Oiticica, de Lygia Clark. Enquanto ali eram protetores, aqui nos jogam de volta para o espaço público (logo, político), obrigando-nos a rever nosso papel no mundo. 15 CRISTAIS DE DOR O trabalho de Nazareth Pacheco representa uma perturbante relação da arte com a vida. Todavia, este exercício é uma via dolorosa. Quando se suporia que a obra de arte encenaria um momento de catarse, um território de libertação, ela mergulha a pique no problema e adensa-o. Nazareth Pacheco nasceu com um problema congênito que ao longo dos seus 39 anos de vida a obrigou a múltiplas intervenções cirúrgicas. O corpo de Nazareth transformou-se, não num território de intervenção casual, mas num espaço de intervenção programada, num ritual de sofrimento. O seu corpo foi sendo cirurgicamente abordado, por um lado em função de problemas que se iam declarando, por outro lado em função da necessidade de construir um corpo mais viável. Podemos de certa forma afirmar que o trabalho de Nazareth é o negativo do trabalho de Orlan. Enquanto nesta última, a reconstrução do corpo é uma opção, uma possibilidade estética, na primeira é uma necessidade vital. Enquanto Orlan exibe o processo e o resultado da transformação, Nazareth exibe os instrumentos dessa transformação: lâminas de bisturi, agulhas de sutura, integradas em adereços femininos (colares, brincos, vestidos). Como se ela reivindicasse sistematicamente a sua condição de mulher e a articulasse com o seu sofrimento pessoalíssimo. Estas jóias do horror, que nenhum corpo suportaria colocar, sinalizam e iluminam um território escuro e sofrido em que o drama de um percurso se revela através da arte. É como se todos estes ornamentos, se todos estes objetos de superfície, adquirissem subitamente uma brutalidade sacrificial. Nazareth coloca cada um dos seus trabalhos pertencentes a essa série dentro de uma caixa (será um estojo?) transparente, transformando-os em objetos individuais de cobiça. Dá 16 vontade de os adquirir, de lhes pegar. São sedutoramente repulsivos e repulsivamente sedutores. Por isso, apesar de estranhos, são nos extremamente convivíeis. A História da dor, do Sofrimento é uma história coletivamente individual. Todos nós sofremos, mas o sofrimento de cada um (podendo ser comunicável) não é partilhável. A artista precipita e clarifica essa comunicação através da manufatura destes espelhos da dor, sabendo, contudo, que o território mais intimo dessa dor é inexoravelmente seu, não havendo nenhum paliativo para esta vivencia solitária. Revolvendo Luis Miguel Nava, não estamos aqui perante “as entranhas sobre o céu”. A evidencia de um corpo patológico e deformado esmaga qualquer possibilidade de o entender como objeto estético. E os objetos tidos consensualmente tidos por estéticos (as jóias femininas) são eles próprios adulterados por essa contaminação da evidência. O belo e o horrível encontram-se nos mesmos artefatos. Inicialmente, por um erro de paralaxe e de habituação, pensamos estar perante um catálogo de joalheria, mas se nos aproximamos um pouco esse catálogo funde-se com um catálogo de instrumentos cirúrgicos. Estes objetos intermediários na sua concepção mas, terminais no seu efeito, colocam-nos, assim, perante o medo mais nuclear da nossa condição. O medo do nosso próprio corpo. Esse medo do nosso próprio corpo e o seu entendimento paradoxal, já não como um lugar de fruição e prazer, mas, sobretudo de dor e sofrimento, é particularmente evidente na série de novos trabalhos que a artista (também nesta exposição) nos apresenta. A família de objetos perfurantes, concebidos para abrir o corpo, para produzir uma descontinuidade na pele, para, a partir do exterior, se alcançar o interior, dá agora lugar a uma nova família de objetos. Elementos de tortura estranhamente vítreos, obsessivamente transparentes, como se a artista quisesse fazer dessa evidência uma mensagem cristalina sem qualquer tipo de interferência, de opacidade. Nazareth Pacheco constrói, desta forma, cristais para encarcerar a sua dor. PAULO CUNHA E SILVA Março de 2000. 17 O SOFRIMENTO PELO BELO Em 1993, 0 Museu de Arte Moderna de São Paulo apresentou a exposição "Espelhos e Sombras” *. Premonitora das tendências ocorrentes na arte brasileira desta década, reuniu trabalhos de uma nova geração questionando o corpo, a morte, a existência. Os trabalhos de Nazareth Pacheco integrantes desta notável exposição apontavam a futura produção da artista: dezenas de espéculos de acrílico transparente cartesianamente organizados (herança construtiva presente em vários artistas brasileiros) formavam um conjunto atraente por sua beleza. Até o espectador se dar conta do que eram e para que são utilizados... A partir desta obra, Nazareth deu início a uma produção construída a partir de objetos ligados ao mundo feminino, sempre de maneira modular. Utilizando cristais e miçangas, realizou uma série de ornamentos e vestimentas, nas quais a sedução é inevitável, a exemplo do belíssimo vestido negro presente nesta exposição. Quando o vemos, o desejamos. Mas a sedução tem um preço. Ao tocá-lo podemos nos ferir, pois entre os belos ornamentos encontram-se objetos extremamente cortantes: lâminas. A beleza se torna cruel.. O trabalho de Nazareth espelha a sociedade deste final de século: era de corpos esqueléticos resultantes de regimes intermináveis, de modelos que desfilam roupas que só elas podem usar, de infindáveis cirurgias buscando a eterna juventude. Há que sofrer belo... Rejane Cintrão Julho 1999 18 VESTIDO DE BAILE Ao examinarmos uma peça de roupa, seja ela qual for, apreendemos diversas informações sobre ela mesma e sobre seu usuário. Pela textura dos tecidos (macio, engomado, fio natural ou sintético, etc.) pelo corte (justo ou folgado, atualizado ou ultrapassado) deduzimos sua função (trabalho, esporte, festa, etc.), seu grau de conforto, assim como o gosto e a condição econômica do usuário. Sabemos também que um mantô é mais apropriado para um dia frio, assim como um par de sandálias, para um clima tropical; um vestido longo, noite de gala; uma bermuda, lazer, e assim por diante. Mesmo quando nos deparamos com uma peça de roupa desenhada e assinada, nos vemos formulando questões aparentemente simples, mas que tomam uma dimensão especial: como deve ser vestido, pelos, pés ou pela cabeça? Como será o caimento? Se abre completa ou parcialmente? E fechado por colchetes, botões ou zíper? Será confortável? São pequenos segredos que somente o usuário conhece. Mais assépticos do que as preciosas peças cheias de histórias, perfumes e segredos de nosso guarda-roupa, estão os modelos criados para os desfiles de alta costura. Nos anos 90, grande destaque foi dado pela mídia às temporadas de desfiles de moda. Disputados, foram vistos de fato por poucos, mas, através dos meios de comunicação, por um significativo contingente de interessados. Tecidos sintéticos, recortes esdrúxulos, transparências e muito brilho foram a tônica das roupas apresentadas pelas mais conhecidas grifes das principais capitais do mundo. Nas passarelas da alta costura imperou uma moda vestida de irrealidade, composta por peças para serem admiradas, para indicar tendências. Para ser admirado, e não usado, é também o vestido "Sem Título", de miçangas, cristais e lâminas, de autoria de Nazareth Pacheco, integrado ao acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1997, ocasião em que recebeu o Grande Prêmio Embratel no Panorama da Arte Brasileira. O vestido confeccionado por Pacheco, quando contemplado de longe, se destaca por seu brilho e glamour. Poderia fazer parte de um universo de refletores e grifes. No entanto, de perto, o vestido de gala, antes transparente, reluzente, luminoso, transforma-se numa perigosa arma branca. Aqui a elegância nunca esteve tão longe do conforto, do bem-estar, da comodidade. Praticamente intocável, chama atenção pela 19 hostilidade e pelo risco iminente. Inspira cuidados, convida ao desvio e à evasão. Cautelosamente ousamos nos indagar: como seria vestir este vestido? Por onde pegá-lo? É necessário ajuda ou seria apropriado manuseá-lo sozinho? Mas é impossível sentir suas texturas e compartilhar seus segredos. O toque excluído, resta-nos a resignação de estarmos condenados de modo definitivo à distância. É, sem dúvida, uma obra eloqüente, visto que aborda -direta ou tangencialmente -diversas questões representativas dos anos 90. Adentra no terreno da moda, e transita no limiar de duas linguagens -a da moda e a das artes plásticas –assim como diversas manifestações no período, situadas nas interfaces de duas formas de expressão. Da mesma forma, o Corpo foi um mote bastante glosado nas artes plásticas durante a última década. No vestido de Pacheco a referência ao corpo não é proposta de forma direta, como em outros trabalhos da artista. Aqui a questão do corpo é abordada através daquilo que não está presente. A ausência, a absoluta impossibilidade de um usuário para vesti-lo, traz à tona a referência ao corpo. Percebemos a existência através daquilo que nos damos conta que falta. Regina Teixeira de Barros Agosto 1999 20 O CORPO EM CONSTRUÇÃO Ao longo de já vários anos, Nazareth Pacheco faz de seu trabalho o Registro físico de sua condição de vida: uma mulher que traz no corpo as marcas de uma má-formação congênita, uma mulher que traz no corpo as marcas das muitas cirurgias reparadoras a que se submeteu e se submete, uma mulher que traz no corpo as marcas do que a individualiza e que a torna por isso igual a tantas. Separados do toque humano por convenções museológicas, os objetos cobertos de pontas de borracha que construía no início dos anos 90 apenas sussurravam a dor que um corpo estranho a si mesmo sente. Num quase grito, mudou adiante o rumo do trajeto criativo, expondo, em pequenas caixas, fotografias, documentos e outros rastros da reinvenção cirúrgica de sua carne e pele, do nascimento à idade adulta. Estabelecidos os limites extremos dentro dos quais transforma em coisas o que lhe é incômodo, matizou finalmente seu discurso expressivo, tornando-o mais ambíguo e contudo mais eloqüente. É neste ponto do percurso que se encontram as peças que vem fazendo nos anos recentes. São colares, miçangas, gargantilhas e outros ornatos feitos do entrelace entre contas de cristal e instrumentos diversos – lâminas, anzóis, giletes e agulhas – que cortam, furam e rasgam a epiderme humana. Visualmente atraentes em brilho e forma, são incapazes de adornar algum corpo sem abrir feridas, tornando-se por isso depositários de lembranças de dores sentidas em outros momentos. Atando o que se aparenta oposto, esses objetos estranhos se transformam em elo simbólico entre o prazer de acomodar-se a parâmetros convencionados como de normalidade física e a dor que se origina de qualquer violação do corpo como nascido. Tecem, em tom baixo, um discurso crítico sobre o desejo que o corpo certo do outro sempre desata e sobre a quase impossibilidade de não se deixar avizinhar por uma norma de belo a despeito dos sacrifícios que esta proximidade engendre. Guardados pela razão descrente e quase cínica que suas formas incorporam, estes adornos são como objetos votivos postos ao avesso de seu intento: construídos não como agradecimentos pelo alcance de graças pedidas, mas como reconhecimento dos limites do que 21 é possível alcançar no âmbito dos procedimentos humanos. Expostas em relicários de acrílico, as obras de Nazareth Pacheco são testemunhas caladas e imóveis do caminho imenso, doído e frágil da construção de um corpo que a ele próprio não se contenta. E é a partir desta singularidade absoluta que seu trabalho toca a dor do outro, se alarga e encontra lugar no mundo. MOACIR DOS ANJOS Setembro de 1999. 22 UMA LÓGICA DO ADORNO A produção de Nazareth Pacheco corresponde a um processo de individuação: assimilar questões próprias, relacionadas a operações a que se submetera para efetuar correções estéticas devido a malformações congênitas. Não é difícil imaginar que, a partir dessa reflexão autobiográfica, o questionamento se tenha estendido a uma dimensão sociológica: a manipulação do corpo, do da mulher em particular, na sociedade contemporânea. Esses dois momentos encontram-se reunidos na produção exposta pela XXIV Bienal de São Paulo. Sob a regência das ressonâncias culturais da antropofagia, a mostra critica noções de etnocentrismo, geopolítica e logocentrismo, de Montaigne à recente engenharia genética. Inserido nesse contexto, o depoimento de Nazareth fincou um argumento contundente: a insuficiência da Razão diante da barbárie civilizatória. Trata-se de um conjunto de quarenta adornos produzidos ao longo de dois anos, agrupados pela curadoria de maneira a formar uma coleção. Mas como denominar de “colares” essas hipóteses ornamentais, feitas de agulhas de sutura, lâminas de bisturi e giletes, entremeadas de miçangas e cristais? Além do fato de privilegiar uma parte do corpo, elevando o pescoço a uma região fetichista, é curioso observar que a veia jugular se situa perto da garganta e que, portanto, qualquer corte seria fatal. A artista aproxima perigosamente o prazer e a agressão até uma fusão dos dois instintos. Ornatos para o corpo constituem, a princípio, símbolos de identidade cultural que remetem a práticas e costumes do calendário das festividades. Sendo os colares de Nazareth de uso não recomendado para a integridade do corpo, os dados biológicos de seu sujeito se impõem à interpretação. Percebe-se nesse gesto uma marca essencial para estudar a identidade artística contemporânea: a dissolução de fronteiras entre experiência interior e rituais coletivos, entre natureza e cultura. 1 O trabalho de Nazareth transcende a mera confissão ao tangenciar a análise antropológica. Sua necessidade de arquivar uma trajetória pessoal passou a incorporar um duplo sentido. Arquivar: 1. memorizar acontecimentos; 2. suspender o inquérito sobre o presente. Sabemos que os arquivos têm o poder de conservar documentos históricos, mas “arquivar” é também retirar de circulação. Apresentados de forma museológica, unificados e “classificados” dentro da assepsia proporcionada por pequenas caixas de acrílico, tais enfeites parecem vestígios de uma cultura distante. As vitrines exercem a função de domesticar o contato entre nosso olhar e a obra, projetando-a para uma comunidade que teria pertencido a 23 uma história longínqua, de latitudes desconhecidas e, conseqüentemente, irracionais. Afinal, como compreender a lógica da dor dentro do adorno? Num contragolpe irônico, a discussão do Belo volta a ter pertinência como valor de verdade e vontade de transformar o mundo. Hegel já mencionava que a obra de arte é reprodução e reflexo do sujeito: “Através dos objetos exteriores, ele busca encontrar-se a si mesmo. Não se contenta em permanecer tal como é: cobre-se de ornamentos. O Bárbaro pratica incisões em seus lábios e orelhas; tatua-se. Todas essas aberrações, por mais que sejam barbáras e absurdas e até mesmo contrárias ao bom gosto, causadoras de deformações ou perniciosas, só têm um objetivo: o homem não quer ficar tal como a natureza o fez.”2 Criar artifícios para o corpo significa então pleitear um acréscimo de beleza. No entanto, esse ganho muitas vezes inflige uma série de sacrifícios. Sacrifício consentido, cabe ressaltar, alimentado pela mídia e as indústrias farmacêuticas que nunca proferiram tantas promessas de felicidade. A questão crucial que sustenta esta fase da obra de Nazareth Pacheco reside no questionamento das normas que definem o bem-estar do organismo. Afinal, o que é um corpo saudável se este só consegue responder à expectativas funcionais? Na realidade, o que está em jogo não é diretamente um ideal estético, questão mais evidente nas plásticas de Orlan, mas uma negociação sem fim entre saúde física e saúde mental. Reunidos na sintaxe do colecionismo, os adornos acabam formando um sistema, graças a um trabalho de perlaboração que os permitiram passar do registro privado à dimensão pública. Antes disso, porém, a dor foi o depósito compulsório para um ajuste com a volta mítica às origens. Nesse contrato, a sedução é uma moeda capaz de desmistificar o medo mais arcaico: o corte do real e a vivência da Ferida. 1 “... os fundamentos éticos e estéticos, com repercussão hoje, recorrem à história recente que vai de Eva Hesse a Doris Salcedo. Nesse sentido, a recuperação da autobiografia e a abertura dos arquivos ocupam um lugar central: dos ‘diários’ bordados de Leonilson à obra política de Rosângela Rennó...”. Lisette Lagnado, “Em busca da identidade da Geração 90”, in ARCO’97, boletim informativo da Feira Internacional de Arte Contemporânea, Madrid, dezembro de 1996, pp. 4-9. 2 Cf. “Arts plastiques, beauté, vérité”, in Esthétique des arts plastiques (Paris: Hermann Éditeurs des Sciences et des Arts, 1993), p.43. Lissette Lagnado Agosto de 1998 24 Uma realidade... dilacerante: a produção de Nazareth Pacheco “O terrível da sublevação do objeto tem sua raiz em seu silêncio e em sua imobilidade” Juan-Eduardo Cirlot No início desta década, ao escrever sobre os primeiras peças decididamente tridimensionais que Nazareth Pacheco apresentava ao público, qualifiquei-as de “objetos dependentes”1 . Herdeiros das tradições povera e pós-minimalista, aqueles objetos filiformes, produzidos em metal ou borracha, pareciam colocar-se no mundo completamente à mercê dos estímulos que os cercavam. O espectador poderia manipulá-los, dando-lhes novas configurações no espaço, ou simplesmente observá-los na inércia que os dominava, parecendo não existir em si mesmos, constituindo-se como contrapontos à auto-suficiência do objeto de arte convencional. No entanto, eles possuíam outras particularidades que na época não me mobilizaram com tanta intensidade. Quando feitos em borracha, a artista colocava alguns pinos pontiagudos do mesmo material (elementos que quebravam o caráter liso da tira), conferindo à peça - vejo hoje com clareza - uma estranha semelhança com objetos de tortura. O mesmo ocorria com os filetes de latão, que Pacheco situava na parede, à altura dos olhos do espectador - filetes esses em que, de tantos em tantos centímetros, a artista também colocava pinos pontiagudos de borracha... Entre esses primeiros objetos e a exposição que realizaria em 1993 no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, Nazareth Pacheco produziu uma série de objetos em látex, em que o caráter linear visto na produção anterior ainda era mantido. Eram tiras imensas de látex rugoso, só interrompidas por nós decididos, que dobravam e retorciam violentamente a matéria, para depois seguir de novo até outro nó. . . Eram ainda “dependentes”, sem dúvida, e muito próximos dos filetes de borracha e metal anteriores. Porém, essa nova produção como que parecia ter absorvido a agressividade existente nos trabalhos anteriores (via os pinos de borracha agregados), manifestando-a agora, 25 no entanto, de maneira mais “orgânica”, não só pela própria materialidade agressiva do látex bruto, mas igualmente pelos nós que acabavam por estruturar de maneira precária aquelas peças filiformes. Como foi mencionado, em 1993, Nazareth Pacheco apresentou novas obras no Gabinete Raquel Arnaud. A maioria dos trabalhos ali mostrados parecia diferir muito dos objetos anteriores, tanto do ponto de vista formal quanto conceitual. A artista exibia pequenas caixas, repletas dos objetos mais variados, que narravam sua trajetória, ou a trajetória da reconstrução ideal de seu corpo, desde a infância até a idade adulta. Uma produção de forte cunho catártico, quase terapêutico? Sem dúvida, a mostra possuía muito dessas características. Mas, por outro lado, sinalizava para uma viagem que a artista fazia dentro de si mesma e de sua biografia, à procura de uma verdade possível, capaz de fazê-la transcender seu próprio drama individual e encontrar, no espaço da criação, o significado para continuar existindo enquanto indivíduo, mulher e artista. Ali, a artista mostrava os vários procedimentos e objetos que foram utilizados para a adequação de seu corpo aos padrões de beleza feminina hegemônicos, como documentos de tortura a que ela própria fora submetida durante anos. Sintomaticamente, após aquela exposição especialíssima, Nazareth começa a trabalhar com instrumentos médicos e cirúrgicos, conhecidos sobretudo para a manipulação do corpo da mulher: espéculos, saca-mioma... Na mostra “Espelhos e sombras”, apresentada nos MAM de São Paulo e no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, respectivamente em 1994 e 1995, a artista exibiu uma série de espéculos de acrílico, colocados lado a lado. No meio deles, um mesmo instrumento, só que produzido em metal. Usando com ironia e espírito subversivo uma receita formal de origem minimalista um módulo atrás do outro, metaforizando a produção industrial de massa, Nazareth contrapunha à aparente leveza e quase imaterialidade (visual e conceitual) dos espéculos em acrílico a brutalidade ascética do mesmo instrumento em metal. Assim procedendo, parecia perguntar: é possível observar tais aparelhos apenas na beleza fria do design anatômico, sem esquecer a função a que estão destinados, tão próxima de outros instrumentos de tortura? É nessa fase que o encaminhamento da produção da artista se esclarece. 26 Primeiro, aqueles “exercícios” do início da década, em que Pacheco é quase ainda uma aluna (talentosa, sem dúvida) da “tradição” pós-minimalista, fortíssima em São Paulo. Uma aluna aplicada, mas que sentia um certo prazer em subverter o receituário da “escola”, introduzindo em suas tiras uma perversidade estranha e inquietante, que só explicitará sua origem mais remota na individual de 1993. A exposição desse ano, apesar de “catártica”, serviu para que a artista conseguisse ampliar a perspectiva de seu drama pessoal. A partir dali, ela parece ter concluído finalmente não mais ser possível entender-se apenas como um indivíduo isolado, a sentir sozinho os efeitos da ditadura dos padrões de gosto acerca do corpo da mulher, mas como um entre milhões e milhões de seres submetidos a inúmeros procedimentos e/ou objetos torturantes, usados com o fim de se adequarem a exigências exteriores. Por isso, a artista saiu da documentação autobiográfica para a produção de objetos ou instalações, criados a partir de objetos médicos e/ou cirúrgicos, concebidos para o “aprimoramento” do corpo feminino em geral, a despeito de suas características violentadoras, invasivas, prepotentes, fundamentalmente autoritárias. Agora, nessa mostra na Galeria Valu Oria, Nazareth Pacheco apresenta esses objetos... sádicos. Colares feitos de cristal e instrumentos de perfuração: anzóis e os mais diversos tipos de agulhas. Os adornos em geral - e, nesse universo, o colar - fazem parte do nosso cotidiano. Sedutores, concebidos para compensar nossa condição tão imperfeita, tão efêmera, tão humana, eles tendem sempre à perfeição, ao eterno. Usá-los nos torna melhores, como se, pelo contato, eles nos passassem todas as suas qualidades. Os colares de Nazareth Pacheco nos seduzem: cristalinos e brilhantes, sugerem o toque, a posse, o desejo inconfessável de - como ocorre frente a qualquer adorno - trazê-los para junto do corpo para que nos tornemos um pouco o que eles são. Ou o que deveriam ser, mas não são... Tocá-los, possuí-los, tomá-los na mão e trazê-los para junto do corpo, esses são os desejos que nos animam... São dependentes como seus primeiros trabalhos, filiformes como eles, porém agora tão familiares e sedutores e, ao mesmo tempo, tão perversos nesse dado novo que acrescentam: a capacidade real de ferir. Os “colares” de Nazareth Pacheco se alojam em um estojo muito pequeno, porém extremamente instigante, da arte deste século. Ao lado daquele do ready made de Duchamp, 27 ele surge como o compartimento que a história da arte criou para os “objetos construídos”. Exatamente aqueles objetos que, embora estruturalmente preservem a aparência de inócuos objetos cotidianos, agregam novos elementos que subvertem suas funções originais, ou as negam. Ou as impossibilitam. O “Presente” de Man Ray, concebido em 1921, talvez seja o mais emblemático dos “objetos construídos”: um prosaico ferro de passar roupa, em cuja base o artista aplicou 14 pinos de metal. Sádico, tanto em sua configuração final quanto no próprio título, o “Presente” extrapola os limites do real, por meio de uma perversidade fria, calculada. Mas ele não é a única peça emblemática desse estojo. Existe igualmente o “Objeto” de Merret Oppenheim: um pires e uma xícara recobertos de pelo. Dependentes igualmente, uma vez que foram concebidos originalmente para serem manipulados (tanto quanto o “ferro” de Man Ray), revestidos de peles eles adquirem uma estranha imobilidade - uma inquietante imobilidade. Ali, silenciosos, parecem ter ganho, de repente, uma auto-suficiência brusca advinda das ameaças que passam a representar: ameaça física (podem comprometer a integridade de outros objetos ou do próprio corpo do eventual usuário) e ameaça psíquica (destroem nossas certezas sobre a “realidade” cotidiana). Os colares de Nazareth Pacheco causam essas mesmas sensações: adornos, objetos dependentes da nossa vontade, pela introdução de elementos cortantes entremeados às pedras, adquirem uma auto-suficiência derivada justamente da operação realizada pela artista, no próprio conceito do objeto “colar”: concebidos para adornar, para compensar os limites da nossa existência, eles agora representam uma ameaça a ela. Observando a produção do início da carreira da artista, tendo como ponto de partida essa sua produção atual, percebe-se claramente que, desde o início, Nazareth vem fazendo o mesmo trabalho: objetos filiformes, dependentes do espectador. Só que agora mais belos. E a ameaça que representavam em potencial no início dos anos 90 agora é uma realidade... dilacerante. 1 - O texto “Objetos dependentes” foi publicado duas vezes: no “folder” produzido para a individual da artista no Centro Cultural São Paulo,1990, e no “folder” produzido para a individual na Galeria Macunaíma, IBAC, RJ, 1991. Tadeu Chiarelli Maio de 1997 28 O único, O mesmo, O A – Fundamento Nazareth Pacheco tem buscado expressar a oscilante percepção do individual e do coletivo tomando o corpo como referência. A mostra o corpo como destino de 1994, embora predominantemente calcada em documentos autobiográficos, deixava vislumbrar essa dupla orientação: às múltiplas intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos a que foi submetida para sanar deficiências congênitas somavam-se tratamentos de beleza. Na construção do corpo, o terapêutico aproxima-se do estético submetendo o indivíduo ao padrão adotado pela coletividade. Na presente instalação, as mãos dos seus amigos foram moldadas em gesso e pendem do teto em contraste com as dela pousadas abaixo. Este contraponto entre o plural e o singular põe em cheque alguns conceitos antigos e faz surgir indagações: numa sociedade onde o corpo é produzido genética, terapêutica e cosméticamente, subsiste o normal/natural? Numa cultura de consumo e expressão massificada existe ainda o subjetivo? É bom lembrar que na política do eu, o outro é sempre referido até porque as sensações de prazer e dor tem no objeto do desejo a sua fonte. Maria Alice Milliet Agosto de 1996 29 Nazareth Pacheco Usando seu próprio corpo como ponto de partida, Nazareth Pacheco modela, em gesso, suas mãos, rosto, seios e umbigo. A escolha dessas “matrizes” nada tem de acidental; se num extremo invade um território privado (seios e umbigo), como antítese representa o que sempre fora público(mãos e rosto). Soma-se a este conjunto autobiográfico moldes de outros corpos - mas que invariavelmente lhe dizem respeito - como as mãos de amigos ou impressões digitais de seus ascendentes, irmãos e sobrinhos. Neste transito entre o que é íntimo e o que é exposto , entre o que lhe pertence e o que pertence a seres queridos, Nazareth pontifica acontecimentos de sua história pessoal, assim delineando seu percurso de vida. Ao mesmo tempo em que generosamente se presta a uma leitura autoreferente da artista, esta série de trabalhos nos remete a algo maior, que transcende a singularidade do sujeito. Vistos sobre outro aspecto, esses mesmos moldes e objetos fundidos carregam um discurso sobre a Vida, onde a noção de ponto linear é posta a xeque. Tudo que resulta do transcorrer do tempo, como transformações, desenvolvimentos e envelhecimentos, é excluído. Os instantes são petrificados, numa tentativa de perpetuar o presente, de reter acontecimentos, de preservar a vida em sua integridade. Trata-se sem dúvida, de um aferrado elogio à vida. Não obstante, a assepsia dos trabalhos chama a atenção para uma naturalidade longínqua ou inexistente, percorrendo um viés anti-natura , ao mesmo tempo que os movimentos congelados (das mãos, por exemplo) apontam para a morbidez e estagnação que sondam a Morte. Regina Teixeira de Barros Fevereiro de 1996 30 ESPELHOS E SOMBRAS “É o corpo, nossa relação com ele, a sensualidade inerente à sua intimidade ou os confrontos que por meio dele parecem desafiar-nos, o que parece estar à flor da pele nas obras de Nazareth Pacheco. O corpo visto através dos instrumentos que são utilizados para examinar seus orgãos, ou para aborda-lo cientificamente. Nunca os artistas estiveram tão próximos da medicina, das salas de cirurgia, das UTI, dos laboratórios de análises e pesquisas químicas. Os exercícios de embelezamento que se confundem com as técnicas de tortura são também tema de Nazareth, depois de sua exposição individual catartica realizada no ano passado. E no entanto eis aqui uma artista que não constrói um discurso movida por reivindicações de ordem individual ou social. Suas propostas têm um envelope formal de limpeza asseptica quase a ocultar-nos o agente que aflora de sua sensibilidade a uma pratica poética tão contundente.” Aracy Amaral Agosto de 1994 31 O CORPO EM CONSTRUÇÃO O corpo nos informa e reforça a idéia de ser e existir. Afinal é ele o lugar mais acessível ao tormento e ao prazer, ao mesmo tempo nosso contato é frágil abrigo do resto do mundo. O corpo funda a identidade do ser. Não é novo. Através da História da Arte ocidental temos visto a representação do corpo humano usada como uma metáfora, uma representação simbólica de significantes associada à ordem das coisas, às aparências e à semelhança. Embora visível e idealizado, sua carnalidade, entretanto, era ocultada pelos discursos predominantes da moral, da religião ou da estética, que determinavam a imagem, a linguagem e a cultura. Mais recentemente, certas produções artísticas trazem o corpo como questão central do trabalho detonando questões políticas outras além da especificidade da arte, e inscrevendo novos discursos que identificam algumas das questões mais urgentes da contemporaneidade: gênero, sexismo, identidade sexual, aborto, violência, doença e morte. O corpo tornou-se a ultima fronteira e um campo de batalha cultural. Não é mais apenas o objeto de representação ou de investimento sexual, mas o território de múltiplas tensões apontando em diversas direções em reação a qualquer colonização do corpo. Nazareth Pacheco (1961) constrói seu trabalho recente a partir da história do seu próprio corpo. Se antes suas esculturas e objetos também podiam ser lidos por esta perspectiva se tomados como metáforas, embora eles se constituíssem a partir de pressupostos do post-minimalismo e da arte povera como outros artistas de sua geração no Brasil, agora a referência é direta a esta história. Nascida com problemas de formação congênitos, a artista passou por 16 cirurgias plásticas reparadoras e modeladoras para ter sua aparência atual. Os testemunhos deste longo processo - fotos, radiografias, pinos metálicos, receitas, relatórios médicos, seringas, formas e moldes - foram guardados como um diário, memória desta experiência. Eles são o registro que reconstituem a história da construção do corpo da artista. A partir desta experiência pessoal, Nazareth montou urna série de trabalhos acondicionando, em caixas de madeira forradas de chumbo e fechadas por um vidro, todos 32 estes fragmentos de vivências do próprio corpo em transformação. O esforço é similar ao da investigação da genealogia de alguém que inventaria as marcas dos ancestrais que fazem dele ou dela a sorna de seus predecessores. Os trabalhos resultam em algo enxuto, urna sequência de objetos que refletem uma visão dissecante de resíduos, e que informam sobre a determinação do artista de provar e experimentar. Mais, em Nazareth, estes trabalhos exalam o sentido de uma indagação obstinada na combinação de elementos que se recusam à beleza estética e formal. Eles podem ser divididos em dois grupos: os que se referem às cirurgias e terapias de modelação da estrutura do corpo (ossos, cartilagens, sentidos); e os que se referem à aparência plástica do corpo (dermatologia, cosmética, cirurgia estética). O efeito geral destes trabalhos é o de resquícios de uma história petrificada, mas sem ser mórbida ou apiedante. O espectador é deixado a contemplar estes resquícios mudos, irremediavelmente alienados do sofrimento evidente que artista experimentou uma vez, confrontando-se, no entanto, com anseios contraditórios entre ficar olhando hipnotizado ou voltar-se imediatamente, porque é incapaz de escapar da sensação desconfortável que demarca a pequena distância do destino dele do da artista. Estas caixas falam ao medo recalcado em todos nós das transformações físicas, da mortalidade, do sofrimento e, ao mesmo tempo, do desejo intelectual de conhecer intimamente a dor agonizante a qual a carne é sucetível. Entretanto, nas caixas de Nazareth há uma certa calma, um agenciamento psíquico sem ansiedade, algo que passa quase indiferente pelo sofrimento experimentado pela artista. Valendo-se de sua condição singular, ela se afasta da retórica de seus contemporâneos para instaurar a diferença de seu trabalho: não ser metafórico. A "fisicalidade" destes fragmentos ordenados não transportam nada além da sua história pessoal e não informam nada além da materialidade de seu próprio corpo. As obras mostram detalhes ou referências ao processo de modelação do corpo da artista, organizados e expostos com uma ostentação inquietante. Contudo elas se constituem a partir de uma manipulação não enquanto forma capaz de conter um sentido, mas pela apropriação que a artista faz de si mesma. Deste modo Nazareth trabalha sobre a questão do vinculo entre o artista e o mundo e exprime sua própria dificuldade de dar conta da realidade que ela explora. As fotos, os relatórios, os moldes, os instrumentos que invadem o olhar aparecem como fendas no desejo de ver, onde ator e espectador, vítima e 33 voyeur se confundem. A realidade do corpo que esvazia a imagem exige o corpo do espectador para alimentar o olhar. É para reencontrar a profundidade desta experiência, a verdade deste instante, que ela confronta o espectador com estes fragmentos do real, implicando-o em seu desejo de dar o corpo novamente à visão. IVO MESQUITA Dezembro de 1993. 34 O CORPO COMO DESTINO “O outro é o que me permite de não me repetir ao infinito” Baudrillard Há sintomas de rompimento do acordo tácito de não agressão que vem anestesiando as relações entre a arte e o público. A revelação de conteúdos potencialmente perturbadores começa a aparecer em mostras isoladas no Brasil e com maior insistência no exterior. Ante um poder difuso e uma apatia generalizada, as manifestações individuais surgem como potencialmente ativadoras da sensibilidade coletiva quando impregnadas de força crítica e reflexiva. A arte deixa de ser um tranquilizante ou um euforizante para dar a dimensão do real. Nazareth Pacheco propõe algo inquietante. Vista retrospectivamente a poética que vem desenvolvendo há cinco anos, assume hoje, um significado explícito. O que se anunciava em suas obras feitas com borracha e metal, seguidas por instalações — entendido por alguns como de extração pós-minimalista — evidencia-se nesta apresentação austera como reflexão sobre a identidade fundada na história do corpo. O corpo humano — “lugar fantasmático por excelência” (Barthes) — é continente, laboratório e expressão: marcado por sucessivos acontecimentos fisiológicos e psíquicos encerra a complexidade de um percurso voltado para a superação de amarras existenciais em busca do prazer. Objetual ou documental, a obra de Nazareth resulta de experiências vividas na intimidade corporal; daí retirando a intensidade capaz de tocar o espectador. É, portanto, um trabalho do desejo. Dispondo duas séries de caixas contendo objetos e documentos diversos, fixadas ao muro, a artista cria um corpo histórico. A anamnese se manifesta pelo recolhimento de fragmentos e resíduos de sua história pessoal articulados segundo uma sintaxe própria. O processo que podemos chamar de “bricolage” organiza um discurso que “fala por meio das coisas” (L. Strauss) produzindo a reativação dos signos — receitas, bulas, diagnósticos, fotografias, medicamentos, seringa, máscara, mecha de cabelos, etc. — não para reproduzir situações mas para re-velá-las. A primeira sequência de caixas refere-se a tratamentos médicos visando a recuperação física e a segunda, aos chamados tratamentos de beleza. Entretanto, na narrativa a distinção se dilui insinuando-se a analogia entre os procedimentos 35 terapêuticos e esteticistas no que tange à submissão do corpo à intervenções justificadas pelo alcance dos resultados funcional e estético. O subtexto alude à sexualidade feminina enquanto sujeita à fisiologia e aos padrões culturais de comportamento e ao erotismo que impregna a associação de prazer e dor e o fetichismo. No centro do espaço expositivo, um conjunto de blocos de látex forma um grande paralelepípedo e impõe-se pelo rigor formal. Metáfora do corpo. O látex puro é extremamente sensual. Sua consistência é de uma rigidez relativa sendo perfurado ou cortado com facilidade, a superfície é texturada e tépida, a cor nuançada em tons castanhos, desprende um odor característico, é deformável e reduz-se com o tempo. Pode ser industrializado e reciclado. Solene, repousa a matéria na fatalidade da transformação. Com esta redução, Nazareth rompe com qualquer subjetividade. Escapa a si mesma. A encenação instalada abaixo do solo refaz o ciclo temporal, fio condutor de toda metamorfose. Maria Alice Milliet Agosto de 1993 36 OBJETOS DEPENDENTES Nazareth Pacheco faz parte de uma geração de artistas paulistanos que acredita poder transformar a sensibilidade complacente do publico numa sensibilidade violada, através da produção de objetos que buscam formar outras possibilidades de percepção do espaço e da matéria. No entanto, as propostas da maioria dos artistas dessa nova geração não vem se realizando de maneira satisfatória. Mesmo descontando a extrema juventude destes artistas é preocupante o quanto suas produções vêm repetindo soluções já desenvolvidas à exaustão por alguns de seus predecessores. Seus trabalhos procuram não incorrer em erros e em ousadias comprometedoras buscando, enfim, operar dentro de um gosto de origem pós-minimalistas mal absorvido, tido por alguns segmentos da crítica e do publico paulistano como a única alternativa para a arte de hoje em dia. Uma arte supostamente alternativa, supostamente deflagradora de novas percepções e que, na verdade, nada mais tem feito do que repisar propostas já devidamente institucionalizadas. Mas a produção de Nazareth Pacheco não se enquadra neste contexto. Apesar da artista ter a mesma ascendência dos seus colegas, sua produção vem apresentando nos últimos dois anos a preocupação real em se colocar como um fator problematizador da percepção da obra de arte. Os objetos de Nazareth podem ser caracterizados como construções aditivas de materiais diversos, sem nenhum aparato que os separe (literal ou metaforicamente ) do espaço onde se inserem. Seus objetos não possuem base, pedestal e nem são produzidos com materiais nobres. E são essas, na verdade, as características dos trabalhos da artista que podem coloca-los ao lado dos trabalhos de seus colegas: características do objeto tridimensional de extração pós-minimalista. Mas as semelhanças acabam aqui. A maioria dos trabalhos de Nazareth Pacheco possuem como questão fundamental de sua gênese conceptiva a característica da maleabilidade que os tornam singulares no contexto não só da jovem produção tridimensional paulistana, mas na maioria da produção tridimensional atual. Concebendo objetos cujas estruturas são realizadas com materiais maleáveis (chapas delgadas de metal, chapas ou filetes de borracha) onde são adicionados outros materiais, a 37 artista rompe com uma condição inerente ao objeto de arte moderno, que nem os minimalistas e a maioria dos pós-minimalistas (sobretudo os brasileiros) conseguiram romper: a integridade do objeto de arte, ou seja, sua auto-referência, sua independência em relação ao espaço e ao observador. Qualquer um dos objetos moles de Nazareth, na sua recusa em posar como exemplo do que deveria ser um objeto de arte (no sentido da arte moderna), propõe a possibilidade real de interação com o ambiente onde está instalado e com aquele que o percebe. É como se os objetos da artista existissem apenas quando percebidos pelo olhar e pelo tato. Dependentes, manipuláveis, moles e desprovidos de aura, por tudo isso os objetos de Nazareth Pacheco são possuidores de uma singular potência significativa dentro do contexto da arte atual, conseguindo, de fato, violar a sensibilidade complacente do publico. TADEU CHIARELLI Março de 1990 38 OS OBJETOS DE NAZARETH PACHECO A pesquisa laboriosa de Nazareth Pacheco vem cada vez mais expressando um aprimoramento refinado: o interesse na experimentação de materiais díspares em confrontação contínua mostra sua determinação em transpor a resistência de cada um deles. A familiaridade que vai adquirindo face a esses materiais vem à tona no conjunto uníssono de seu trabalho, sempre calibrado por saborosas e intrigantes associações. As convergências, quer das chapas metálicas quer do mármore, com a borracha, ou ainda desta com o couro, provocam um jogo tencionado entre massas diversificadas, tanto em relação à forma, quanto à cor ou à textura. Nestes objetos ocorre uma fusão amalgâmica ativa surpreendente, originária do entrelaçamento harmônico de uma geometria nuançada por uma organicidade sutil. O apuro com que a artista manipula a articulação dual entre a instância geométrica e a orgânica atrai outros pares antagônicos, bipolaridades em perpétuo devir – frio / calor, porosidade / lisura, alvura / negritude, brilho / opacidade, maciez / rudeza, placidez / desafio – que, por sua condição movente, medram situações permeadas por permutações cíclicas. É através dessas correlações cambiantes, acentuadas pela incisiva repetição rítmica dos pinos de borracha, que os objetos de Nazareth adquirem conotações multifacetadas e extrapolam o caráter inanimado da matéria. A sensorialidade aguda que deles emana se dissimula como um código a ser decifrado através do próprio embate dos materiais, numa luta corpórea transcendente, que se traduz em densidade reflexiva e nos convida, com insistente desenvoltura, a novos e instigantes achados. STELLA TEIXEIRA DE BARROS 1989 39 FACÍCULOS DE ARTE COMTEMPORÂNEA Entrevista de Tadeu Chiarelli com Nazareth Pacheco 1 – Seus primeiros trabalhos, de caráter marcadamente autobiográfico, evidenciavam a história de reconstrução de seu corpo a partir dos parâmetros mais aceitos da beleza feminina ocidental. Em poucas palavras você poderia relatar esse processo? R – Eu dividiria esse processo em duas partes: nas cirurgias de reparação de um problema congênito, em que me submeti à correção do lábio leporino, transplante de córnea, cirurgia nas mãos, pés, nariz e boca. Já a segunda parte, seria o registro de tratamentos chamados “de beleza”: tratamento da pelo do rosto, aparelho dos dentes, depilação, limpeza de pele, entre outros. Essas duas partes do processo se deram, na verdade, desde quando eu nasci. A partir dos anos 80, deixei de fazer as cirurgias corretivas e o enfoque passou a ser dirigido apenas à questão estética. 2 – A necessidade de adaptação do corpo a um modelo ideal (e irreal) de beleza inscreve-se no quadro autoritário da sociedade que impõe à mulher a necessidade de construção de uma persona, uma máscara adequada a padrões quase sempre inatingíveis. Como você transformou essa questão em arte? Ou melhor, em que medida sua experiência de vida foi “traduzida” para o campo da arte? R - Por meio de questões ligadas à identidade e à memória. Chegou um momento em minha vida em que a questão do modelo ideal de beleza passou a ter um peso grande e foi por meio desta questão que, trabalhando com esses dados, a minha experiência de vida foi “transformada” em arte, mas com uma grande preocupação formal e estética ao realizar os chamados “objetos de arte”. 3 – Essa relação conflituosa entre aquilo que você “deveria aparentar” (dentro dos padrões estéticos estandardizados) e sua aparência real levou-a à produção de objetos de adorno, em que a sedução do brilho dos materiais escondia o perigo real da mutilação, do ferimento em quem ousasse vesti-los ou mesmo manipula-los. Fale um pouco da perversidade implícita nessa fase de sua produção. 40 R – Não posso negar a perversidade presente nos colares e vestidos, mas acima de tudo os materiais cortantes e de perfuração escolhidos para confecção desses objetos estavam diretamente ligados a objetos que sempre me causaram medo e pânico: agulhas, lâminas etc., as quais sempre eram utilizadas nas cirurgias às quais me submeti. Mas, por outro lado, utilizo cristais, pérolas, materiais esses extremamente sedutores, que se tornaram desejados através de suas formas e brilhos. Ao desejar alcançar o belo, tenho que me submeter a cortes e perfurações. 4 – Em uma recente viagem a Nova Iorque você conheceu a importante artista francoamericana Louise Bourgeois e com ela se envolveu num projeto de aprofundamento de questões artísticas e estéticas muito importantes para o desenvolvimento posterior do seu trabalho. Você poderia relatar com brevidade essa experiência e os resultados já passíveis de serem vistos em sua obra? R - Louise Bourgeois, que completa 90 anos em dezembro deste ano, costuma se encontrar com outros artistas, sempre aos domingos, em sua casa, em Nova Iorque. Participei de três desses encontros em 1999 e 2000 e o que me chamou mais a atenção, em primeiro lugar, foi o interesse de Bourgeois pelo trabalho de seus convidados e não propriamente pela divulgação de sua própria obra. No ano passado, quando voltei a Nova Iorque, telefonei para Louise que me solicitou que levasse alguns trabalhos no domingo seguinte. Eu não havia levado nenhum trabalho para Nova Iorque, apenas fotos de obras já realizadas. Louise não se deu por vencida e pediu que eu produzisse novas obras para serem apresentadas ao grupo dois dias depois (o telefonema ocorreu numa sexta-feira). Depois de sugerir que eu comprasse um tipo de massa plástica utilizada para modelagem, interrogou-me a respeito do que eu pretendia fazer. Senti-me pega totalmente desprevenida e ela sugeriu, então, que eu fechasse os olhos e imaginasse o objeto que eu deveria fazer. Respondi que, com certeza, faria um objeto relacionado ao corpo e que teria de dez a vinte centímetros. “Como você é tímida”, me respondeu Louise. 41 No domingo apresentei os protótipos para Louise e o resto do grupo e ela se mostrou muito satisfeita até insistindo que passasse os objetos para o gesso. De volta a São Paulo, resolvi que não apenas passaria os objetos para o gesso mas também os ampliaria. Esses objetos estão muito relacionados à fecundação do óvulo pelo espermatozóide e, num segundo momento, eu consigo sugerir naquela forma totalmente orgânica alguma interferência capaz de provocar alguma mutação no desenvolvimento daquele suposto “embrião”. Em função desses trabalhos, passei a me aprofundar no projeto genoma e gostaria de explorar essas questões formalmente. Março de 2001. 1 2 3 Citada por Jean Baudrillard em De la séduction, Folio Essais, Paris, 1979. Texto escrito para a individual da artista na Valú Ória Galeria de Arte (São Paulo), em 1997. Baudrillard, op. cit., p. 23.