Substâncias Húmicas

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Substâncias Húmicas
DOIS
Substâncias Húmicas
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2 SUBSTÂNCIAS HÚMICAS
2.1 Considerações Iniciais
A matéria orgânica existente em solos, turfas, sedimentos e
águas naturais apresenta-se como um sistema complexo de várias
substâncias de diversas naturezas e por uma transformação contínua, sob a
ação de fatores físicos, químicos e biológicos.
O ataque inicial aos materiais orgânicos é promovido por
formigas, cupins, oligoquetas e outros representantes da mesofauna. Em
seguida, ocorrem transformações promovidas por diversos microrganismos.
A fase inicial da biodegradação microbiana é caracterizada pela perda rápida
dos
compostos
orgânicos
menos
recalcitrantes,
como
açúcares,
aminoácidos, proteínas, amido e celulose, onde as bactérias são
especialmente
ativas.
Na
fase
subseqüente,
produtos
orgânicos
intermediários e protoplasma microbiano recentemente formado são
biodegradados por uma variedade maior de microrganismos com produção
de nova biomassa e liberação de gás carbônico. O estágio final é
caracterizado pela decomposição gradual de compostos mais resistentes,
exercida pela atividade de actinomicetos e fungos (Stevenson, 1994).
O material originado de todas essas transformações pode ser
dividido em dois grandes grupos. O primeiro, denominado genericamente de
substâncias não húmicas, é constituído por proteínas, aminoácidos,
polissacarídeos,
ácidos
graxos
e
outros
compostos
orgânicos
de
características físicas e químicas bem definidas. O segundo, denominado de
substâncias húmicas (SH), origina-se da oxidação e subseqüente
polimerização da matéria orgânica. Esse último grupo apresenta-se como
uma mistura heterogênea de moléculas polidispersas com elevadas massas
Substâncias Húmicas
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moleculares e grupos funcionais distintos, sendo responsáveis por inúmeros
processos naturais (Stevenson, 1994).
Com base nas suas solubilidades em meio aquoso, as SH são
usualmente classificadas em:
•
ácidos fúlvicos (AF): fração solúvel em meios alcalino e ácido;
•
ácidos húmicos (AH): fração solúvel em meio alcalino e insolúvel em
meio ácido (pH < 2);
•
humina: fração insolúvel em qualquer condição de pH.
Dos ácidos húmicos, pode ser extraído o ácido himatomelânico,
que é a parte dos AH solúvel em álcool (Rezende, 1999).
Embora
as
propriedades
fertilizantes
das
SH
fossem
conhecidas desde os antigos egípcios, seu estudo iniciou-se no fim do
século XVIII, com o trabalho pioneiro de Achard em 1786. Achard dissolveu
turfas em solventes alcalinos, obtendo uma solução escura que precipitava
por ação de ácidos. Ao material solúvel em álcali e insolúvel em meio ácido,
foi dado diversos nomes, até chegar a ácido húmico, utlizado atualmente
(Stevenson, 1985). A Saussure é creditado a introdução do termo “húmus”,
em 1804, para designar o componente escuro da matéria orgânica do solo, e
a Döbereiner, em 1822, o termo “ácido húmus”. Já a origem do termo “ácido
húmico” não é precisa, mas já era comum no tempo de Berzelius (1839).
As SH desempenham um papel importante no meio ambiente
por diversas razões. Nos solos e sedimentos, por exemplo, elas contribuem
para a retenção de calor (devido à sua coloração escura), estimulando dessa
maneira a germinação de sementes e o desenvolvimento de raízes. Além
disso, as SH favorecem a aeração do solo, devido aos agregados oriundos
da combinação das SH com argilas, e atuam contra a erosão, pois evitam o
escoamento devido à sua alta capacidade de retenção de água. Em
ambientes aquáticos, as SH governam a produtividade primária, estimulando
o crescimento do fitoplâncton, além de participarem de reações fotoquímicas
em águas superficiais.
A presença de grupos funcionais distintos, tais como
carboxilas, hidroxilas fenólicas e carbonilas, faz com que as SH assumam
um comportamento polieletrolítico e atuem como agentes complexantes de
Substâncias Húmicas
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vários íons metálicos (Rocha e Rosa, 2003), além de adsorverem diversos
poluentes orgânicos, como pesticidas (Messias, 1998), diminuindo as
concentrações desses materiais no ambiente.
2.2 Origem e Formação das Substâncias Húmicas
Existem pelo menos quatro vias principais (figura 1) pelas quais
as SH podem ser formadas durante a decomposição da matéria orgânica
(Stevenson, 1994).
FIGURA 1 - Mecanismos de formação das substâncias húmicas (adaptado
de Stevenson, 1994).
A teoria de formação de SH a partir de açúcares (teoria da
condensação amino-açúcar – via 1 da figura 1) é, talvez, a mais antiga.
Maillard, em 1916, acreditava que as SH eram produtos da reação
exclusivamente química entre açúcares redutores e aminoácidos (estes sim
originados da atividade microbiana). Esse autor inclusive sintetizava
compostos de coloração escura “semelhantes às substâncias húmicas”.
Surge então o conceito de humificação, que considera que a formação das
SH se deve à decomposição microbiológica da matéria orgânica.
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Em 1921, Fischer e Schrader postularam uma nova teoria na
qual se preconizava que as SH seriam essencialmente ligninas parcialmente
modificadas (via 4 da figura 1). A lignina (figura 2) é um biopolímero de
estrutura complexa, formado pela combinação de unidades fenilpropanóides
(álcoois coniferílico, cumárico e sinapílico) com outras subunidades, tais
como éter guaiacilglicerol-β-coniferílico, álcool diidroconiferílico, pinorresinol
e dibenzodioxocina.
De acordo com Stevenson (1994), as vias 2 e 3 da figura 1
formam as bases da chamada teoria dos polifenóis. Essas duas vias são
muito semelhantes, diferindo apenas na fonte de polifenóis. Na via 2, os
polifenóis originam-se de fontes de carbono não lignínicas ou são
sintetizados por microrganismos específicos. Na via 3, a fonte de polifenóis é
a lignina. Os aldeídos e ácidos fenólicos, originados a partir da degradação
parcial do biopolímero, podem sofrer recombinações entre si ou com outras
moléculas orgânicas convertendo-se em quinonas. Essas quinonas,
poderiam sofrer reações de condensação com a amônia e outros compostos
nitrogenados, como aminoácidos e proteínas, originando dessa forma as
substâncias húmicas.
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HO
OH
O
O
OCH3
H3CO
O
HO
HO
OCH3
HO
OCH3
HO
O
O
O
OCH3
O
OCH3
HO
OH
O
O
OH
H3CO
O
O
OCH3
HO
OH
O
OH
O
O
HO
H3CO
OCH3
O
H3CO
O
O
HO
OH
OCH3
O
FIGURA 2 - Estrutura parcial de uma lignina, evidenciando algumas das
principais subunidades: éter guaiacilglicerol-β-coniferílico (em vermelho),
álcool diidroconiferílico (em azul), dibenzodioxocina (em verde) e álcool
coniferílico (em rosa) (adaptado de Giovanela, 2003).
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2.3 Estrutura Molecular das Substâncias Húmicas
O “esqueleto macromolecular” das SH tem sido, ao longo dos
anos, objeto de inúmeras investigações.
Na busca de uma estrutura para essas substâncias, várias
técnicas analíticas foram e têm sido extensamente utilizadas, dentre as
quais destacam-se a a análise elementar, as espectroscopias nas regiões do
infravermelho (FTIR) e ultravioleta-visível (UV-Vis), a ressonância magnética
nuclear de hidrogênio (1H-NMR) e de carbono 13 (13C-NMR), a pirólise
acoplada à cromatografia gasosa e à espectrometria de massas (PyGC/MS), a cromatografia de exclusão por tamanho (SEC), a eletroforese
capilar (CZE), o espalhamento de luz, entre muitas outras.
No final do século XIX, já se compreendiam as substâncias
húmicas como uma mistura complexa de substâncias orgânicas com
natureza principalmente coloidal e com propriedades fracamente ácidas.
Também já havia informações a respeito da sua interação com outros
componentes do solo.
Uma estrutura das substâncias húmicas muito popular foi
proposta por Fuchs em 1931 (figura 3). Em 1948, Dragunov propôs que as
SH eram constituídas de anéis aromáticos substituídos por grupos hidroxilas
e quinonas, sendo os anéis aromáticos ligados por grupos –CH2O– e –CN.
Carboidratos e peptídeos estariam ligados aos C que uniam os anéis
aromáticos e a grupos CH2 ligados diretamente aos anéis (figura 4). O
modelo de Flaig de 1964 (figura 5) continha anéis aromáticos e quinonas
substituídas por grupos hidroxilas, carboxilas e metoxilas.
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HO
OH
HO
O
O
HO
OH COOH
OCH3
COOH
H
O
OH
COOH
HOOC
COOH
FIGURA 3 - Modelo de ácido húmico proposto por Fuchs, em 1931
(adaptado de Stevenson, 1985).
HO
COOH
C6H11O5
CH2
O
HC
H2
C
O
OH
HO
H2
C
HC
H2
C
O
H2
C
O
N
O
O
H2
C
O
O
N
H3CO
O
O
CH2
OC
H
N
OH
C8H16O3N
FIGURA 4 - Modelo de ácido húmico proposto por Dragunov, em 1948
(adaptado de Stevenson, 1985).
Ar
OH
O
OH
H2 C
OH
HO
O
HO
O
O
OH
OCH3
COOH
HO
OH
HO
O
OH
COOH
H
N
C3
HO
O
OH
O
CH2
O
Ar
FIGURA 5 - Modelo de ácido húmico proposto por Flaig, em 1964 (adaptado
de Stevenson, 1985).
No modelo proposto por Kleinhempel em 1970 (figura 6), os
núcleos aromáticos seriam conectados por átomos de O, N e outras
“pontes”, enquanto polissacarídeos e peptídeos estariam presentes como
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estruturas lineares. Nesse modelo, mostrou-se o papel de cátions
polivalentes, como Fe2+, na associação entre substâncias húmicas e a
porção mineral do solo. O modelo proposto por Stevenson em 1982 (figura
7) mostra a presença de ligações de hidrogênio e de estruturas do tipo
quinona, e indica a ocorrência de resíduos de carboidratos e proteínas.
FIGURA 6 - Modelo de ácido húmico e de associação de ácido húmico com
argila e íons metálicos proposto por Kleinhempel, em 1970 (adaptado de
Novotny, 2002).
HC
COOH
COOH
HO
R
OH
OH
C
CH
O
HO
O
HC
COOH
N
O
H
O
O
HC
O
O
O
O
H
O
OH
O
COOH
H2
C
CH
O
COOH
O
N
O
O
NH
R
OH
CH
C
O
NH
FIGURA 7 - Modelo de ácido húmico proposto por Stevenson, em 1982
(adaptado de Stevenson, 1985).
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Pode-se observar que, até meados da década de 90, a maioria
dos pesquisadores acreditava que as SH eram constituídas essencialmente
de centros aromáticos policondensados com alto grau de substituição.
Contudo, graças principalmente aos dados obtidos por espectroscopia de
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C-NMR, verificou-se que o grau de aromaticidade seria muito menor do
que o esperado.
O modelo de Schulten e Schnitzer de 1993 (Schulten e
Schnitzer, 1993; Schulten e Schnitzer, 1997; Schulten et al., 1991)
apresentou, dessa forma, uma nova concepção de modelo estrutural para
essas substâncias, ao enfocar um número significativo de porções alifáticas
(figura 8).
HO
O
O
O
O
OH
O
OH
O
O
HO
OH
OH
O
O
OH
O
OH
(CH3)0-3
OH
O
O
OH
(CH3)0-2
OH
OH
O
HO
H
N
H
HO
HO O
OH
HO
O
O
OH
OH
O
O
O
HO
O
OH
N
H
OH
OH
C
OH
N
OH
O
HO
(CH3)0-2
OH
O
O
OH
(CH3)0-4
(CH3)0-3
O
O
O
O
O
OH
OH
OH
(CH3)0-2
OH
(CH3)0-4
N
O
O
OH
OH
OH
HO O
O
OH
O
O
OCH3
OH
(CH3)0-2
HO
O
OH
O
C
O
N
OH
OH
OH
CH2OH
O
(CH3)0-5
O
O
(CH3)0-5
OH
O
OH
FIGURA 8 - Modelo de ácido húmcio proposto por Schulten e Schnitzer
(1993).
Em 1995, esses mesmos pesquisadores apresentaram a
estrutura tridimensional (figura 9) do modelo que havia sido proposto em
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1993 (Schulten, 1995; Schulten e Schnitzer, 1995). Eles puderam constatar
que o modelo em questão, otimizado através de cálculos matemáticos,
apresentava uma série de espaços vazios de diferentes tamanhos. Esses
espaços poderiam alojar outros compostos orgânicos, hidrofílicos ou
hidrofóbicos, tais como carboidratos, lipídios, pesticidas e outros poluentes.
Poderiam também estar presentes elementos inorgânicos como argilas e
oxi-hidróxidos.
FIGURA 9 - Modelo tridimensional de ácido húmico proposto por Schulten e
Schnitzer (1997), evidenciando os átomos de carbono (em azul), hidrogênio
(em branco), oxigênio (em vermelho) e nitrogênio (em azul escuro); as letras
A, B e C indicam os espaços vazios presentes na estrutura.
Por outro lado, estudos mais recentes têm levado a acreditar
que, diferentemente dos modelos que consideravam as substâncias húmicas
como compostos macromoleculares, de massa molecular variável, essas
substâncias poderiam ser formadas por estruturas supramoleculares
(Piccolo, 2001; Piccolo e Conte, 2000; Piccolo e Mbagwu, 1999), que
consistiriam
em
agregados
de
moléculas
relativamente
pequenas,
denominadas “building blocks” (Jansen et al., 1996; Sein Jr. et al., 1999),
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mantidos por ligações fracas como ligações de hidrogênio e interações
hidrofóbicas.
De acordo com esse modelo, os ácidos fúlvicos seriam
formados por pequenas micelas estáveis que permaneceriam dispersas pela
repulsão das cargas negativas originadas da dissociação da grande
quantidade de grupos ácidos presentes na sua estrutura. As micelas de
ácidos húmicos, por outro lado, por apresentarem uma menor quantidade de
grupos funcionais ácidos, poderiam aproximar-se o suficiente para formar
agregados de elevada massa molecular (Hayes e Clapp, 2001; Wershaw,
1993).

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