DOS PROBLEMAS AOS CONCEITOS: CONSERVAÇÃO

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DOS PROBLEMAS AOS CONCEITOS: CONSERVAÇÃO
1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
DOS PROBLEMAS AOS CONCEITOS:
CONSERVAÇÃO, RESTAURO E RENOVAÇÃO DE
REVESTIMENTOS EXTERIORES,
EM CENTROS HISTÓRICOS
José Aguiar*
Correio electrónico: [email protected]
Resumo
Os revestimentos exteriores de paredes são camadas sacrificiais e de
expressão estética com grande relevância no comportamento físico e para a
percepção visual da arquitectura.
Do desaparecimento da cultura artesanal que lhes deu origem e da sua
substituição por uma cultura industrial que impõe o consumo quase exclusivo
de materiais e técnicas modernas, resultaram efeitos devastadores que
afectaram a qualidade estético-histórica e a imagem do nosso património
urbano, produto de preconceitos culturais (avidez pelo novo) e da ignorância
teórica e construtiva de muitos protagonistas dos processos ditos de
“reabilitação”.
O problema parece simples mas na realidade é substancialmente
complexo apresentando matizes teóricas ainda não totalmente resolvidas (no
já tradicional conflito entre a conservação estrita, restauro e renovação);
impactos sócio-culturais, económicos e políticos óbvios (pela grande
visualidade do tema); importantes carências de conhecimento e de
investigação; e ainda claras necessidades de reformulação nas metodologias
de projecto e da construção, perante a incoerências dos conceitos de
“apresentação” e a não compatibilidade dos materiais e técnicas que hoje
mobilizamos.
Nesta conferência procura-se reflectir sobre alguns dos aspectos
enunciados, apresentando-se alguns exemplos de situações “tipo” ou limite,
procurando descortinar os principais problemas existentes e alguns dos novos
caminhos que ainda temos de trilhar. Conclui-se apresentando alguns
princípios essenciais que importa nunca esquecer quando pretendemos operar
dentro de uma verdadeira praxis do “restauro e/ou da conservação”.
Palavras-chave: Conservação, Revestimentos, Patologia, Património Urbano
*
Investigador Auxiliar do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Edifícios;
Professor Auxiliar da CEUL.
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1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
1 Introdução
Os revestimentos exteriores são soluções de protecção, de expressão e
comunicação arquitectural de primeira importância quando discutimos a
conservação de um edifício ou de um “centro histórico”.
O enfoque do estruturalismo construtivista moderno prejudicou durante
muito tempo a nossa clara percepção dessa importância. No último século
muitas vezes aspiramos a um belo sonho que por vezes resultou em drama: o
de alcançar uma arquitectura em que a estrutura e a forma resultavam do
mesmo material numa procura de total coerência entre possibilidades
construtivas e expressivas nos materiais constitutivos.
Primeiro encantamo-nos com as possibilidades do ferro (entre Paxton e
Fuller), depois com a extraordinária plasticidade do betão (de Saarinen a
Tange), mais tarde encantamo-nos com as virtudes dos plásticos (empregues
nos protótipos de casas tipo Homem-Michelin, de Dyoden, nos desvarios de
Coop Himmelbau e nas “tendas” em policarbonato de Munique); mais
recentemente tentamos as estruturas integrais em vidro.
Entre o High e o Low Tech o sonho da procura da “verdade” na expressão
dos materiais tornou-se por vezes um pesadelo; outras vezes estivemos muito
próximos. Na realidade o material mágico capaz de ser, ao mesmo tempo,
estrutura e forma, recheio e superfície, parece ainda não se descortinar
nitidamente no horizonte.
Nos antigos edifícios as relações entre a pele e o interior das paredes eram
bem mais complexas. Os revestimentos (rebocos, guarnecimentos e pinturas)
constituíam “multi-camadas sacrificiais” ciclicamente renováveis, destinadas à
protecção das alvenarias e, ao mesmo tempo, simulando materiais nobres, não
só por óbvias necessidades de fingimento mas também por razões filológicas
ligadas à necessidade de expressar a escrita do sistema das “ordens” na
arquitectura, proveniente do classicismo ou da tradição vernacular.
A longa continuidade dos saberes (que continuaram presentes entre nós até
finais da década de 60) e o baixo custo da mão de obra necessária à
manutenção, reparação e/ou renovação destes revestimentos, assegurava a sua
perenidade, gradualmente permitindo também o surgimento de variações nos
gostos, harmonizadas de forma natural pelos limites nas capacidades
expressivas das técnicas tradicionais e pelo seu profundo enraizamento na
cultura dos lugares (os materiais de cor e de revestimento provinham do
próprio solo local, pelo que as possibilidades de diversidade eram
naturalmente restritas).
Esta harmonia, como todos sabemos, acabou. Hoje, não valendo a pena
chorar sobre o leite derramado, temos a tarefa árdua de construir uma nova
indústria capaz de lidar cultural, científica e tecnicamente com os problemas
de conservar construções cuja lógica e cultura já não são as nossas mas que
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constituem um recurso de primeira importância, não só em termos identitários
como também em termos económicos.
No tempo que os optimistas designam por “era do lazer” não são as
“Cataratas do Niagara” ou as Brasílias – que não temos – os atractivos
Europeus para os desejados visitantes japoneses ou das américas. O que traz
estes estrangeiros são as nossas cidades históricas e o que os seduz é a cultura
urbana de um continente, a Europa, onde essa máxima expressão civilizacional
atingiu o seu apogeu.
Mas o nosso património urbano não se destina essencialmente aos outros e
as suas vocações são hoje, para nós, essenciais, no tempo em que pouco nos
reproduzimos, o que torna ainda mais lógica a reutilização de um parque
disponível, e perante o descalabro identitário e descontextualizado da
especulação urbana que fez iguais as periferias das nossas cidades, de Norte a
Sul, e pelo menos de duas das Ilhas.
2. Que revestimentos e quais os seus valores estéticos e
históricos
Pensamos durante muito tempo que a qualidade da expressão
arquitectónica dos revestimentos e superfícies mais usuais em Portugal
(provenientes das técnicas da cal), com as evidentes excepções dos azulejos e
da ornamentação em pedra, era relativamente pobre ou de muito baixo nível
artístico, reduzindo-se em grande medida ao usual branco da cal aérea
rematado pelos cores amarelas ou azuis do costume.
A sucessão, ainda recente, de uma série de estudos sobre a conservação de
revestimentos e sobre alguns monumentos classificados (como os Palácios
Nacionais de Sintra e de Queluz) ou sobre a imagem urbana de alguns centros
históricos (como em Lisboa e Évora) e da sua arquitectura doméstica, alterou
de forma radical esta visão [1]. Sabemos hoje que também em Portugal
existiram (mas cada vez menos existem) expressando-se por vezes com
elevado nível artístico, técnicas ornamentais de grande valor estético e típicas
do mundo mediterrânico.
Coimbra teve (e já desapareceram devido à destruição da Alta) e Évora
ainda tem esgrafitos que nada ficam a dever aos esgrafitos que nos levam a
Segóvia ou a Barcelona, ou até a Florença.
A simulação de materiais nobres como a pedra, através de argamassas cuja
coloração se obtinha pela selecção dos agregados e pelo controlo das texturas
ou por técnicas de pintura de fingidos, era muito corrente nas nossas cidades
históricas e ainda hoje muito extensiva no Centro e Sul do país.
Os guarnecimentos de pasta de cal e pó de pedra, carregados com cor (ou
não) abundavam nas nossas cidades, existindo exemplos, como em Sintra,
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onde simulavam os aparelhos de tijolo à vista, a madeira (como no semidestruído Challet da Condessa d´Edla) ou a pedra, por vezes preenchendo
também com cor as paredes de palacetes românticos espalhados pela serra.
Os ornamentos exteriores em técnicas de “stucco”, com ornatos simulando
cantaria e relevos em pedra, por vezes intimamente articulados a pinturas
murais (a seco ou a fresco) eram extremamente comuns do Norte ao Sul do
País (visite-se a “esquecida” Campo Maior, para se perceber o extraordinário
nível artístico que atingiram entre nós estas artes decorativas).
Temos até vestígios de simulações, por pintura, de azulejos e de outros
materiais geralmente fabricados no litoral e portanto caros no seu transporte
para o interior, pelo que nessas zonas eram fingidos recorrendo a pinturas com
estampilhas (dos quais persistem hoje muito poucos exemplos em terras do
interior como em Évora, Reguengos, Castelo Mendo, Crato, etc.).
Na maior parte dos casos estas diferentes técnicas articulavam-se,
misturando-se numa combinatória de grande qualidade expressiva.
O aumento de sondagens estratigráficas prova também que em muitas
pequenas vilas históricas (como por exemplo na “alva” Monsaraz) a cor era
muito frequente e que a exclusividade do branco é um mito demasiado recente,
ligado a interpretações estilisticamente selectivas e hiper-nacionalistas da
história (a vontade de fazer o Sul de um branco moçárabe e o Norte granítico,
tectónico e Românico), ou proveniente de higienismos mais ou menos recentes
(dos finais do século XIX ao Moderno).
Até ao explodir da revolução industrial os revestimentos e as cores
expressavam o forte enraizamento no contexto geográfico e geológico das
nossas arquitecturas urbanas. Os materiais de cor, provindo do próprio lugar,
das suas terras, pedras e madeiras, diferenciavam com matizes específicos as
suas arquitecturas (um ocre de Moura nunca é cromáticamente igual ao ocre de
Évora). Assim, os revestimentos e as cores enunciavam também uma estreita
ligação entre imagem urbana e o desejo de uma diferenciação identitária,
quando essa identidade se afirmava pelo desejo da diferença (Beja não queria
ser igual a Évora, tal como Chaves não queria ser igual a Vila Real) e não pela
actual imposição de uma extremamente pobre igualdade morfológica e
expressiva: escandalosamente visível nas edificações iguais, das periferias
iguais, que tornam iguais, do Norte ao Sul do País, as cidades suburbanas que
continuamos a teimar fazer.
Os revestimentos eram (e são) fundamentais para a fruição da
“apresentação visual” dos monumentos e antigos edifícios, no sentido em que
esta é determinante para a reconstrução e interpretação crítica da linguagem
arquitectónica, restituindo a possibilidade de leitura do texto original, ou dos
textos acrescentados pelo tempo.
Os revestimentos estratificam a história sedimentada destas “apresentações
visuais” da arquitectura ao longo da história, constituindo provas materiais de
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primeira importância sobre as modificações nas formas de comunicação
arquitectural.
As distintas argamassas, na análise dos seus constituintes e da sua técnica
de execução e de aplicação, tornam-se também um importantes testemunho da
história tecnológica e cultural a quem deram rosto, ao relatarem (como já
explicitaram Pilar de Luxán e F. Borrego) o nível tecnológico de um povo, ao
mesmo tempo que nos informam sobre o comportamento e durabilidade da
construção perante o micro-ambiente específico a que pertencem e ao qual têm
de resistir construções que pretendemos conservar, dado precioso para a
própria definição de critérios de intervenção [2].
3. Da patologia à terapia: alguns problemas
3.1 Problemas téoricos (conservação vs restauro vs
renovação)
Cesare Brandi definiu como objectivo essencial do restauro: «mantenere in
efficienza, facilitare la lettura e trasmettere integralmente al futuro [os valores
essenciais da obra de arte]» [3].
Assim, os principais problemas conceptuais que nos ocorrem quando
confrontados com vestígios arqueológicos e com provas materiais concretas de
cores, superfícies e revestimentos históricos – como depois esclareceu Paul
Philippot [4] - consiste em determinar até que ponto a sua função estética, na
reconstrução da leitura de uma dada arquitectura e imagem urbana, e da sua
funcionalidade construtiva – enquanto sistema de protecção das alvenarias das
paredes - podem ainda ser restabelecidas, ou não.
Importa aqui, isto se nos movimentamos no domínio da conservação do
património, assegurar o estrito respeito por um outro princípio básico,
repetidamente afirmado por Brandi (depois vertido para a Carta de Veneza), de
que “o restauro termina onde a hipótese começa”, reforçado pelo sublinhado
de Philippot quando este recomendou ”interditar toda a hipótese”.
A imagem de um conjunto urbano está em gradual e perpétua
transformação. No entanto a análise e o estudo histórico dos processos de
evolução dessa imagem informam-nos que sempre se verificam permanências,
traduzidas no respeito por compromissos e a manutenção de tradições (pelo
recurso a uma cultura material cujas expressões cromáticas eram limitadas e
contextualizadas ao serem dependentes das possibilidades dos lugares). Esses
compromissos restringiram, durante séculos, as possibilidades práticas do
recurso à cor, submetendo-a a regras com possibilidades combinatórias finitas,
o que hoje nos permite a restituição da lógica da evolução dos diversos fácies
históricos da cidade ao longo do tempo. E é esta, sem a menor dúvida, a base
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da gramática de referência que deve guiar as possibilidades de intervenção
contemporânea.
Num tecido histórico as opções para uma fachada em particular dependem
tanto quanto afectam todo o ambiente edificado (e não edificado) envolvente.
As decisões de substituição ou do restabelecimento de uma cromia, ou da
policromia de um edifício, num dado património urbano, dependem de
dimensões formais e espaciais (as relações travadas entre a arquitectura e a
cidade) tanto quanto de dimensões histórico-culturais (as relações possíveis
entre as cromias originais e as acrescentadas pela história, na evolução de uma
policromia do conjunto que estabelece novas e mais amplas unidades), isto
para além, evidentemente, das dimensões tecnológicas, dos materiais
disponíveis e do grau e tipo de degradação [5].
Atendendo à dimensão do objecto (a cidade histórica), este processo não é,
nem pode ser, obviamente estanque. Optar por cromias e superfícies originais
num dado edifício pode sacrificar o conjunto urbano a valores excessivamente
individuais. A lógica oposta, ou seja, impor um valor colectivo ou tipológico a
cada elemento individual, pode anular os valores da autenticidade patrimonial,
impondo uma imagem urbana profundamente artificial, que pode nunca ter
existido nessa cidade e nesse estágio de completamento.
O problema é teoricamente complexo mas, como esclareceram Philippot e
Piero Sanpoelesi [6], não é na sua essência substancialmente diferente da
problemática crítica inerente a qualquer outra intervenção de conservação e
restauro. A resolução do paradoxo implica sempre, como em qualquer outra
operação de restauro, uma cuidadosa análise crítica, através da qual, a cidade
histórica, como qualquer obra de arte colectiva, deve ser lida e interpretada em
toda a sua complexidade e globalidade. Torna-se, assim, imprescindível uma
capacidade de síntese crítica que integre a cuidadosa ponderação dos valores
em presença (a estudar com métodos da própria história), da autenticidade do
momento criativo original às suas relações com a passagem do tempo, que não
se podem obliterar, isto tanto ao nível da obra individual (o edifício), como do
conjunto onde esta se insere (a cidade histórica).
Importa ainda não esquecer que uma intervenção de restauro será sempre,
também, uma intervenção de transformação, implicando a consciência do
legado histórico a salvaguardar, tanto quanto a perfeita consciência da
contemporaneidade da própria intervenção (e da sua historicidade). As maiores
dificuldades disciplinares residem hoje exactamente aqui, ou seja, em
determinar soluções que ultrapassem o fortuito, a moda momentânea, assim
como a tentação da reescrita filológica em novo registo, ou da reposição de um
historicismo mais ou menos mimético, mais ou menos kitsch.
Outros problemas teóricos, ainda hoje não completamente pacificados
prendem-se com o grau de intervenção e de alteração admitidas, ou seja,
determinar até que ponto podemos e devemos conservar os materiais originais
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– recorrendo a uma panóplia, cada dia mais ampla, de técnicas e de produtos
químicos mais ou menos milagrosos (como os adesivos e os consolidantes) –
ou devemos proceder à sua reposição com técnicas e materiais o mais similares
possíveis. Esses conflitos reenviam-nos constantemente para a constante
(eterna?) dialéctica entre “conservação” e “restauro”, a qual infelizmente em
Portugal ainda tende mais para a estabelecer-se entre a esfera do “restauro” vs
“renovação”. Ou seja: até quando e como podemos, ou devemos, preservar os
originais e a partir de quando e como devemos aceitar a sua substituição por
soluções materialmente o mais similares possíveis, mas claramente
distinguíveis nos modos e no tempo da sua execução.
A essência deste debate ficou marcada pela tentativa infrutífera, em 1987,
de substituir a celebérrima (para o mundo da conservação) Carta Italiana do
Restauro de 1972 [7], por uma nova Carta da Conservação e Restauro de
Objectos de Arte e Cultura [8].
Os questionamentos da Carta de 1972 (ainda em vigor) surgiram
intimamente associados aos princípios da Teoria del Restauro de Brandi,
assentando essencialmente na constatação crítica de que esta Carta estendia
para a arquitectura e para o património urbano, princípios de conservação
desenvolvidos sobretudo para aplicação em obras de arte móvel (pintura de
cavalete, estatutária, ou obras essencialmente “artísticas” como por exemplo a
pintura mural), nas quais sempre se privilegiam os aspectos visuais sobre os
aspectos construtivos, estruturais ou funcionais, aspectos essenciais para as
disciplinas da arquitectura e do urbanismo.
Começou assim um questionamento da primazia da «instância estética»
defendida por Brandi, ou seja o entendimento da arquitectura como
acontecimento eminentemente visual, preferindo-lhe a sua assunção como
resultado de um processo (encomenda, programa, projecto, obra, etc.) que
resulta de uma multiplicidade de actuações, com grande pluralidade de
protagonistas (e portanto, também de “autores”).
Marconi, o principal inspirador desta reacção às ideias de Brandi,
considera as contradições apontadas como uma incompreensão de fundo da
própria essência da arquitectura, que afectaria uma das suas mais íntimas
constantes: a importância da relação entre forma e construção. Sustenta assim
uma crítica mordaz ao absoluto respeito pela imagem e pelas pátinas
superficiais, que considerou excessivo face à relativa permissividade com que
sempre se acolheu a consolidação material dos elementos tectónicos, que
alteram dramaticamente a construção e estruturas não visíveis mas não menos
essenciais para o valor de uma arquitectura, enquanto tal [9].
É de facto verdade que a arquitectura está submetida a uma amplitude de
agressões de diversíssima origem, abrangendo desde a sua situação em
ambiente mais agressivo (a exposição exterior aos elementos da natureza), até
ao mau uso e abusos dos utilizadores, aos riscos acrescidos de segurança
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(sismos, fogo, intrusão, ao uso, etc.), aspectos que se tornam impossíveis de
controlar com métodos de abordagem similares aos aplicados à arte móvel.
Acrescem a estes os problemas da manutenção corrente, sobretudo no caso
de conjuntos urbanísticos extensos, por exemplo - se aceitarmos o conceito dos
acabamentos como «camadas sacrificiais», as quais têm de ser ciclicamente
renovadas para preservar a qualidade estrutural e construtiva dos imóveis -, o
que frequentemente nos obriga a medidas de renovação «estética» que se
revelam, na prática, fora do espírito e âmbito da Carta de 1972.
Os revestimentos, ao serem ao mesmo tempo soluções de “expressão” - e
portanto do maior interesse para a fruição visual da arquitectura – e soluções
de protecção – ao garantirem adequadas condições de funcionamento das
paredes -, resolvendo estes objectivos em forma “auto-sacrificial” – quer dizer,
degradando-se para que o interior das paredes não se degrade – sempre
exigiram a capacidade de um saber fazer que permitisse a sua renovação, ainda
que parcial. Estamos assim, sempre na fronteira entre a conservação e o
restauro, que aqui sempre significa resolver lacunas cada vez mais amplas, as
quais – sejamos claros – em demasiados casos e muitas das vezes se
aproximam demasiado de uma renovação extensiva.
Na evolução deste debate, ainda sem final anunciado, resulta que hoje se
tornou particularmente importante não só aceder e dominar as técnicas de
conservação estrita, quer dizer, aquelas que nos permitam conservar e manter
os elementos originais de uma construção, como também dominar as técnicas e
saberes que nos permitam refazer e renovar – em forma estética e
funcionalmente compatíveis - elementos cuja continuidade não possa ser já
garantida pelas técnicas e meios disponíveis (também pela economia) mas que
são imprescindíveis para a própria conservação das arquitecturas.
3.2 Problemas de projecto
Neste domínio importa cada uma das nossas disciplinas não alijar as suas
responsabilidades específicas. Assim e entre nós, penso que a arquitectura,
enquanto disciplina do conhecimento humano, tem investido demasiado pouco
- ao nível da investigação, da produção, e sobretudo da transmissão e do
intercâmbio de conhecimento - no aprofundamento das suas vocações e
capacidades próprias no domínio da conservação e do restauro. São conhecidas
as dificuldades existentes na necessária e gradual alteração da sua praxis
projectual concreta, até hoje eminentemente concentrada sobre o projecto do
“novo”, atendendo às prementes necessidades que a reciclagem e reutilização
do existente colocam [10].
Digo isto aceitando o argumento de que as capacidades de projecto não são
distintas entre estes dois domínios de actividade, mas reafirmando a
importância do “conhecimento” e da necessidade da sua integração nas
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decisões de síntese projectual neste domínio; não esquecendo todas as
dificuldades colocadas no lado da construção, perante a baixíssima qualidade
dos operadores genéricos (i.e. sem alvará) quando se aproximam deste sector
específico de actividade.
Nas últimas três décadas – ou seja no período de meias tintas em que ainda
estamos, entre o fim da cultura da construção dita “tradicional” e o início de
uma cultura industrial avançada, disponibilizando agentes informados e
tecnicamente capacitados para operar em reabilitação e restauro, que ainda
estamos longe de ter - o problema de conservar e/ou restaurar cores,
superfícies e revestimentos históricos na arquitectura e património urbano pura
e simplesmente não se colocava: o que todos fizemos durante demasiado
tempo foi recomendar “picar até ao osso”, renovando rebocos e pinturas.
Foram muito poucos os cuidadosos, ou mais sabedores, que recomendaram e
conseguiram a (re) utilização de argamassas e pinturas com cal aérea, sendo
que a imensa maioria acabou por pintar com as novas tintas “de areia” e ou “de
água”.
Coincidente com este difícil período que ainda vivemos foi o
desaparecimento do “património intangível” dos saberes, ou seja o
generalizado abandono das tecnologias artesanais (artes da cal) a que acresceu
a longa demora na disponibilidade (ainda por resolver) de novos tipo de
técnicos, os “Restauradores” (e também “arquitectos e engenheiros
restauradores”, ou seja com adequada especialização em conservação e
restauro), que possam projectar, dirigir e fiscalizar os trabalhos de maior
responsabilidade. E friso bem “Restauradores” pois não me estou a aqui referir
aos apressados detentores de cursos secundários que usam e abusam desse
almejado título, que já tem adequada regulação profissional no quadro de uma
corporação digna desse nome.
3.3 Problemas técnicos e científicos ainda por resolver
De forma excessivamente simplista poderíamos dizer que os principais
problemas dos antigos revestimentos e suas superfícies derivam das seguintes
e principais somas de razões: causas humanas (dos erros de projecto e de
execução, ao mau uso e escrita vandálica); a degradação provocada pela
exposição aos agentes naturais e, sobretudo da presença da água (nas suas
diversas fases); o ataque biológico (biodeterioração). As mais graves
anomalias surgem da substituição pura e simples dos revestimentos, resultando
em perda de coerência nas formas de apresentação da arquitectura por perda de
camadas de cor, texturas e materiais originais, a que se somam as diferentes
formas de agressão ou intervenção física directa (incluindo a escrita
vandálica), a fendilhação e fissuração, a perda de aderência aos suportes e
entre camadas, a perda de coesão interna e desagregação das argamassas [11].
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Desde há já algumas décadas que a forma de lidar com este tipo de
problemas mudou de forma radical: da sistemática renovação evoluiu-se para a
conservação e restauro, procurando manter in situ o maior número de partes e
elementos originais, e refazendo as lacunas com técnicas o mais similares
possíveis às preexistentes. Uma das razões dessa evolução (não a única),
prende-se com o amplo desaparecimento dos revestimentos antigos, que
tornam as fachadas ainda revestidas com técnicas de cal e mantendo ainda a
sua ornamentação e superfícies originais, exemplos cada vez mais raros e
portanto adquirindo um novo e maior valor em termos patrimoniais.
A salvaguarda e manutenção dos rebocos, guarnecimentos e pinturas antigos
obriga à sua cuidadosa limpeza e tratamento, o qual em geral consiste na sua
consolidação seguida da colmatação e reintegração das lacunas existentes, por vezes
terminando por aplicar um sistema de protecção (camadas sacrificiais) recorrendo a
velaturas ou novas pinturas com técnicas e materiais compatíveis.
Para proceder a estas operações, altamente especializadas, tem-se
procurado simplificar algumas técnicas derivadas da conservação e restauro da
pintura mural, ou do tratamento e consolidação das pedras porosas, adaptação
que apenas na duas últimas décadas foi iniciada e que está muito longe de estar
concluída [12 e 13].
Tem-se também articulado o desenvolvimento dessas técnicas específicas
de consolidação com a retoma do emprego de materiais e tecnologias
ancestrais, utilizadas cada vez mais extensamente na execução das novas
partes a refazer, pois estas têm sido julgadas e defendidas por muitos como as
mais compatíveis tanto em termos estéticos, como mecânicos e químicos, ao
que acresce o importante factor de que minimizam os problemas decorrentes
do processo de envelhecimento diferencial entre antigas e novas partes.
Torna-se evidente também que, nestes processos de translação para a
industria dos métodos desenvolvidos para operações de conservação estrita, se
torna fundamental hoje conseguir simplificar e tornar mais seguras (sobretudo
para os executantes) algumas destas técnicas, colocando-as ao alcance de
aplicadores pouco especializados e permitindo atingir os rendimentos em obra
que garantam a sua viabilidade económica.
Quanto à retoma das soluções e dos materiais tradicionais, existem hoje
demasiados hiatos em conhecimento que importaria muito resolver. Ainda que
o LNEC [14] e outros centros de excelência como o IST e a Universidade
Nova já tenham iniciado algumas vias de investigação e experimentação nesta
área, importaria, por exemplo, continuar a aprofundar o estudo e a testar mais
amplamente diferentes formulações de caiações (aditivadas ou não),
nomeadamente procedendo à avaliação do seu desempenho quando aplicadas:
(i) sobre suportes executados com argamassas de cal, de cal e pozolanas
naturais, ou de cal e caulino; (ii) sobre argamassas bastardas executadas com
baixas percentagens de cimento e de cais hidráulicas com baixo teor de sais
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solúveis; (iii) sobre argamassas de cal executadas com cais impuras do tipo
vulgarmente designado por cal de obra, cal parda ou, ainda, cal preta, ligantes
que apresentam propriedades naturais ligeiramente hidráulicas e que em
algumas zonas do país, como no Alentejo, eram muito mais frequentes em
rebocos antigos do que a mais conhecida cal branca, a qual geralmente se
reservava para os acabamentos.
Sabendo-se da importância dos pigmentos portugueses - Portugal, desde a
antiguidade clássica e até aos anos 50, foi um dos maiores produtores mundiais
de pigmentos vermelhos e de ocres obtidos com terras naturais -, importa
sublinhar que, até hoje, continuamos a não dispor de estudos caracterizadores
das principais fontes nacionais desses pigmentos, o que nos permitiria registar
as suas principais características cromáticas (para além das físicas, químicas e
mineralógicas). Tal estudo é muito importante para podermos propor a
reintrodução de colorações próximas dos valores cromáticos da história,
facilitando em muito a definição de atlas cromáticos de referência que
possibilitem a reprodução in loco ou até o fabrico pela indústria de novas
tintas com melhor compatibilidade cromática (e de aspecto, por exemplo de
textura) para com as antigas arquitecturas e revestimentos, para além de
funcionalmente compatíveis [14].
Importaria aqui, e ainda, realçar a importância de: estudar e desenvolver
técnicas e produtos de limpeza que permitissem uma mais fácil e mais barata
manutenção das fachadas (hoje praticamente inexistente e constituindo um
aspecto fundamental para manter fachadas com técnicas da cal); conhecer
melhor outros tipos de pinturas minerais, como as tintas de silicatos de
potássio, actualmente em fase de grande expansão no mercado da reabilitação
urbana (ainda que este tipo de estudos já tenham sido também iniciados no
LNEC [15]), nomeadamente utilizando pigmentos mais adequados e mais
próximos das colorações históricas, pois na aplicação recente deste tipo de
tintas tem-se verificado que as cores hoje disponíveis em catálogo são
profundamente estranhas à nossa realidade (aspecto parcialmente resolvido em
outros países como a Alemanha e a Itália, onde os fabricantes desenvolveram
meios de obter tonalidades que satisfazem necessidades específicas, chegando
até a produzir atlas cromáticos locais específicos, como sucedeu por exemplo
em Turim).
4. Por fim: alguns princípios e conceitos a não esquecer
4.1 «Autenticidade»
A autenticidade é um valor patrimonial não totalmente esclarecido ou
pacificado, porque sempre dependente da diferente realidade das diferentes
culturas - o que é genuíno e autêntico para uma cultura, pode não o ser para
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uma outra -, abrangendo uma pluralidade de facetas como a autenticidade
estética, a autenticidade histórica, a autenticidade documental, etc.. Esta
somas de questões estão em geral ligadas ao problema fundamental da procura
e do alcance da verdade (estética e científica) em todo o processo de
conservação, da fase de análise e processo de projecto à intervenção concreta
nos objectos patrimoniais, documentando o caminho tomado, com verdade e
rigor.
Ao nível dos revestimentos este princípio implica que se desenvolvam esforços
no sentido de manter ao máximo os materiais, as técnicas e suas expressões
estéticas originais, assim como a mais-valias deixadas pela passagem do
tempo, ao mesmo tempo em que nos obriga a identificar, no pormenor, as
alterações, acrescentos e novos materiais introduzidos.
4.2 «Inteiro Conhecimento (do objecto)»
As decisões respeitantes à conservação devem ser fundamentadas num
conhecimento completo e rigoroso do objecto patrimonial sobre o qual
incidem. Isto implica estudar profundamente o contexto físico e cultural do
bem patrimonial, aceitando toda a sua história (e não seleccionar apenas parte
desta), considerando os edifícios antigos como «documentos» onde se regista a
passagem do tempo, pelo que não é legítimo remover (-lhes) sedimentos dessa
história. Implica também perceber as modificações introduzidas no tempo e
avaliar a sua importância relativa na afectação do(s) valor(es) do objecto.
4.3 «Intervenções Mínimas»
Implica desenvolver esforços no sentido de manter o mais possível os
materiais e partes originais, evitando a sua substituição através de acções de
renovação extensivas, ou excessivamente substitutivas. Ao nível dos
revestimentos, a aplicação deste princípio implica evitar ao máximo a
remoção, alteração e/ou substituição das preexistências, optando por
intervenções que minimizem os impactos sobre o existente.
Implica também estabelecer uma noção de graduação no processo de tomada
de decisões, isto é: antes manter que reparar; antes reparar que restaurar; antes
restaurar que renovar. Este processo de decisão tem também óbvias dimensões
técnicas, relacionadas com a degradação do existente [5].
4.4 «Compatibilidade»
As tecnologias e os materiais a mobilizar para a conservação, restauro ou
renovação de revestimentos, devem possuir características químicas, físicas, e
termomecânicas compatíveis com os materiais utilizados nas partes antigas.
12
1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
Os novos elementos a introduzir não deverão possuir comportamentos
diferenciais relativamente às partes antigas, apresentando um desempenho e
uma capacidade de envelhecimento similar aos dos materiais originais.
Idealmente, conforme progride o processo natural de degradação, os novos
materiais deveriam poder degradar-se primeiramente, sem provocar
consequências indesejáveis nos materiais mais antigos.
A aplicação do princípio da compatibilidade à conservação de revestimentos é,
no entanto e na prática, muito controversa. Por exemplo, a maior parte dos
materiais hoje disponíveis para proceder à consolidação de rebocos e de
pinturas murais são de origem orgânica, portanto muito diferentes em termos
de constituição química dos compostos inorgânicos.
Para Giorgio Torraca, o princípio da compatibilidade requer que, e cita-se:
«(...) the composite formed by ancient and modern should behave in a
favourable way in the expected environmental conditions. In the ideal case,
when deterioration of the treated object starts anew, as must inevitably happen
sooner or later, the modern material should decay first without undesirable
consequences for the ancient one (fail-safe design) (...) Mechanical
compatibility should insure that mechanical properties are properly matched
and that it is unlikely for original parts to become over-stressed because of
differential thermal expansion, or the movements imposed by the environment;
Physical compatibility involves the matching of such properties as porosity
and water vapor permeability and the future behavior of the composite when
exposed to water. Chemical compability should provide insurance against the
risk that by-products formed in setting reactions (e.g. soluble salts) or
decomposition products (e.g. sulphur-containing gases) of the material used in
conservation might cause damage to the object we intend to preserve. Total
compability is obviously a very difficult goal, but the task may be made easier
by reducing the stresses caused by environmental conditions (e. g. by reducing
light exposure, temperature and humidity fluctuations, and contact with
moisture» [16].
Sobre este tema dos conceitos e sobre a «compatibilidade» consulte-se ainda o
sintético e pioneiro texto de Fernando Henriques «A Conservação do
património histórico edificado», assim como os resultados do Projecto de
Investigação Old Renders, co-financiado pela Agência de Inovação onde se
procurou identificar as características envolvidas na compatibilidade de
argamassas para rebocos e quantificar os parâmetros que a devem definir,
ambos os documentos editados pelo LNEC [17 e 14].
4.5 Reversibilidade
Este conceito, muito popular, pressentiu-se no articulado da Carta de Veneza, mas
na realidade apenas mais tarde foi teorizado pelo Art. 8º da Carta Italiana del
Restauro de 1972, onde se afirma que todas as intervenções de restauro: «(...)
13
Comment [JA1]: foto de
budapeste com ebvelhecimento
diferencial
1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
devem realizar-se de tal forma e com tais técnicas e materiais que possam dar a
segurança de que no futuro sejam possíveis novas intervenções de salvaguarda ou
restauro ». Com esse objectivo, importa garantir que um dado material ou solução
construtiva possam ser removidos no termo da sua vida útil, isto sem causar danos
aos restantes materiais que com eles contactem, sem afectar de forma decisiva a
autenticidade da obra e sem implicar excessivos custos na sua remoção.
Na realidade, e mais uma vez, o princípio da reversibilidade é controverso e de
difícil, por vezes impossível, aplicação aos revestimentos e acabamentos
arquitectónicos correntes (ou seja, aqueles que não possuam um valor artístico
excepcional, como é o caso de algumas pinturas murais).
Giorgio Torraca define o mesmo conceito da seguinte forma: «The principle of
reversibility states that it should be possible to undo what is done for conservation
purposes without undue risks for the original material or excessive cost. The
empirical basis of this principle is obviously the difficoulty met by modern
conservators in removing deteriorated materials used with the best of intentions by
previous generations» (Cf., G. Torraca, ob. cit., p. 2; sobre o mesmo tema,
consulte-se Fernando Henriques, ob. cit., p. 4.) [16 e 17].
Dória Rodrigues da Costa, já apontou também o paradoxo que existe entre o desejo
de reversibilidade e a garantia de estabilidade, e cito: «O carácter reversível
implica desequilíbrio, instabilidade, de forma a ser possível voltar ao ponto de
partida, contudo e no caso de ser adequado, um tratamento de conservação que
apresente estas características não será estável no tempo e perderá a sua eficácia
rapidamente» [18].
As tecnologias disponíveis de consolidação, fixação, ou de reintegração são quase
sempre, na prática, irreversíveis. Depois de aplicar a maior parte dos produtos de
tratamento depois e em geral é muito pouco económico retirá-los, pelo que cada
vez mais se põe o acento tónico na possibilidade da repetição futura dos
tratamentos agora desenvolvidos, sem afectar as propriedades básicas dos materiais
históricos.
4.6 «Manter», depois de restaurar
A ausência de uma manutenção continuada, provoca sempre a necessidade de
proceder ao restauro, sempre mais caro. As exigências e implicações futuras da
manutenção devem ser consideradas com o maior cuidado nas actuais intervenções.
Assim, de pouco serve aplicar agora uma técnica ou produto que, passados alguns
anos (como já sucedeu com alguns produtos ditos “milagroso”) deixe de existir no
mercado, ou que obrigue à sua remoção, da qual resulta a danificação ou a
necessidade de refazer os revestimentos que originalmente se pretendia preservar.
4.7 Da Reversibilidade para a «Repetibilidade, Reaplicabilidade e/ou
Reparabilidade»
Devido à questão central da manutenção, já focada no ponto anterior, nos últimos
anos e nos encontros de especialistas em restauro e conservação, cada vez mais se
fala em algo que poderíamos recolher num novo conceito, ainda não
suficientemente teorizado ou balizado por “cartas internacionais”, trata-se do que
14
1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
poderíamos chamar de “repetibilidade”, ou “reparabilidade”, ou ainda de
“reaplicabilidade” nos processos e materiais de intervenção, ou seja: a capacidade
de repetir a aplicação de um determinado tratamento no tempo, sem que dessa
repetição resultem danos, incompatibilidades ou alterações substantivas nas
propriedades físicas, químicas e de aspecto dos materiais tratados.
Essencialmente, deseja-se agora que um tratamento hoje executado – ainda que
irreversível – não prejudique nem inviabilize tratamentos futuros.
Alguns produtos, actualmente muito utilizados em consolidação de materiais, como
certos compostos inorgânicos porosos, não sendo reversíveis, permitem, em geral,
a retratibilidade dos materiais assim tratados pois não alteram significativamente as
sua principais características físicas (como o aspecto e a porosidade) e químicas
dos revestimentos minerais, podendo converter-se em produtos quimicamente
amorfos, ou seja em apenas mais um elemento inerte, no interior dos antigos
revestimentos.
Outros produtos, como, por exemplo, algumas variantes dos silicones vulgarmente
utilizados para hidrofugar materiais porosos, são inicialmente irreversíveis mas ao
fim de alguns anos tornam—se reversíveis por gradual quebra das ligações
químicas com os materias que recobrem. Assim o produto aplicado vai
desaparecendo e após alguns anos é possível proceder, de novo, à (re)aplicação
desse mesmo produto, sem assim se provocarem alterações substanciais nas
propriedades do material original.
O principal problema na aplicação mais generalizada deste novo conceito reside
em que, para a maioria dos produtos de tratamento que hoje se utilizam em restauro
ou em conservação, se desconhece a forma como, a longo prazo, interagem com os
constituintes dos materiais originais. Também se desconhece como se irá processar,
a longo prazo, o processo de envelhecimento conjunto dos novos compostos agora
produzidos.
Assim, tem-se conjugado o novo princípio da “reaplicabilidade” e/ou da
“reparabilidade” com o conceito de “fail-safe”, ou seja, aceitando a inevitabilidade
da deterioração, os materiais modernos aplicados nos restauros devem poder
degradar-se primeiro, e sem consequências de maior, para o material original, ou
mais antigo.
Importa, por fim, destacar ainda os conceitos de «eficácia, nocividade e
durabilidade» que se tornam cada vez mais importantes e usuais no processo de
avaliação e selecção dos produtos e dos processos de tratamento a empregar na
conservação, nomeadamente de revestimentos [18].
5. Como conclusão
O acto de conservar, ou de restaurar, passa a fazer parte integrante da história do
objecto sobre o qual incide, pelo que deve ser reconhecível e ficar claramente
registado. Exige-se assim ao "conservador" ou ao “restaurador” a plena
consciência da historicidade da sua intervenção, já que esta inevitavelmente
influencia e altera a história material do objecto, assim como se lhe exige - cada
vez mais - a percepção de que a sua é, apenas, mais uma das muitas intervenções
que afectam a evolução de uma vida que se deseja longa.
15
1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
A nós, arquitectos e engenheiros, estas questões obrigam-nos a um grande respeito
pela subsistência da materialidade nos edifícios históricos, exigindo uma prática
pluri e interdisciplinar, que integre profundos conhecimentos artísticos, científicos
e técnicos e, sobretudo, uma extraordinária humildade intelectual e de contenção
“autoral”, particularmente difíceis de manter nesta nossa sociedade do (sobre)culto
da imagem e do consumo.
Devemos também discutir mais e mais abertamente o “conceito” – aspecto fulcral
da disciplina da conservação e que entre nós monosprezamos demais – que sempre
deve presidir, conduzindo, o desenvolvimento da conservação. Ao nível dos
revestimentos e acabamentos, como magistralmente sintetizou Cesare Brandi (na
sua célebre Teoria), devemos conseguir restaurar a unidade estética dos edifícios (e
também dos pedaços de cidade histórica a que hoje chamamos Centros Históricos)
sem proceder a falsificações ou abolições da própria história, o que só se consegue
através de uma cuidadosa avaliação crítica dos valores presentes e da minimização
dos seus conflitos, garantindo o equilíbrio entre os valores estéticos e os valores
históricos a preservar através da definição de um conceito de «apresentação» da
obra (dos edifícios), que sempre se deve verter e traduzir em Projecto (que aqui
vale a pena sublinhar com um “P” grande).
Termino por agradecer, reconhecido, as sugestões e a revisão científica deste texto
efectuada pela Eng.ª Maria do RosárioVeiga, minha colega do Departamento de
Edifícios do LNEC.
Bibliografia e Notas
[1] Aguiar, José - Estudos Cromáticos nas intervenções de conservação em
centros históricos. Dissertação de Doutoramento, Universidade de Évora,
1999.
[2] Pilar de Luxán, M.; Dorrego, F. - Morteros antiguos y la intervencion en el
patrimonio, em Actas do Seminário Intervenção no Património Práticas de
Conservação e Reabilitação. Porto, FEUP-DGEMN, 2002.
[3] Brandi, C. - Teoria del Restauro. Picola Biblioteca Einaudi, Turim, 1963 (2ª
ed. de 1977), pp. 133-154.
[4] Philippot, P. - La restauration des façades peintes: du problème critique au
problème technique, em Facciate Dipinte, conservazione e restauro, Atti del
convegno di studi. Genova, Sagep Editrice, 1982, pp. 105-107.
[5] Veiga, M. Rosário; Aguiar, J. - Definição de estratégias de intervenção em
revestimentos de edifícios antigos. 1º PATORREB, Porto, FEUP, 2003.
[6] Philippot, P., ob. cit., (1982); Sanpaolesi, Piero - Discorso sulla metodologia
generale del restauro dei monumenti. Florença, Editrice Edam, 1973.
[7] Carta del Restauro de 1972, imposta por força de lei às superintendências e
institutos autónomos italianos, por circular nº 117 de 6-4-1972 do Ministero
della Pubblica Istruzione.
[8] Publicada em italiano em Arte/Documento, Milão, Electa, 1988; tb. Giornale
dell´Arte, nº 57. Turim, Ed. Allemandi, 1988; em versão inglesa encontra-se
em: Richerche di Storia dell Arte. Roma, NIS, 1988; em castelhano e
16
1º PATORREB, PORTO, FEUP, 2003
traduzida por Maria Justícia - Antología de textos sobre restauración, Jaén, ed.
Universidade de Jaén, 1996, pp. 195-239.
[9] Marconi, P. - Il progetto di restauro come disciplina squisitamente
appartenente alla cultura architettonica, em Il Progetto di restauro, Atti della
Giornata di Studio, S. Michele. Roma, Soprintendenza per I beni ambientali e
architettonici di Roma, 1994.
[10] Aguiar, J. - Memória, cidade e projecto, Questões e paradoxos na
conservação do património arquitectónico e urbano, em I Congresso da
Ordem dos Arquitectos Portugueses. Évora, OA, 2000.
[11] Magalhães, A. Cristian - Patologia de Rebocos Antigos, em Cadernos
Edifícios 2. Lisboa, LNEC, 2002, pp. 69-85.
[12] Milene, Casal - Conservação de Pintura Mural, Estudo e consolidação de
argamassas de cal aérea e areia com falta de coesão. Lisboa, LNEC, 2002.
[13] Aguiar, José, Tavares, M. Lins; Veiga, Rosário Veiga, M. - Consolidação de
revestimentos exteriores (rebocos e barramentos) de edifícios antigos.
Reflexões para um plano de estudo. Lisboa: LNEC, Setembro de 2001.
Relatório 216/01-NA.
[14] Veiga, M. Rosário et al. - Methodologies for characterisation and repair of
mortars of ancient buildings. International Seminar Historical Constructions
2001, Guimarães, Universidade do Minho, Novembro de 2001. Da mesma
autora veja-se ainda: Veiga, M. Rosário et al., Metodologias para
Caracterização e Conservação de Argamassas de revestimento de Edifícios
Antigos. Relatório final do Projecto OLDRENDERS (co-financiado pela
Agência de Inovação). Lisboa: LNEC, Outubro de 2001 e ainda Veiga, M.
Rosário & Carvalho, Fernanda – Argamassas de reboco para edifícios antigos.
Requisitos e características a respeitar. Cadernos de Edifícios, nº 2. Lisboa:
LNEC, Outubro de 2002.
[15] Tavares, M.; Rosário Veiga; Isabel Eusébio, M. - Uma solução actual para
acabamentos de paramentos exteriores de edifícios antigos: As tintas de
silicatos. LNEC, Lisboa, 2002.
[16] Torraca, G. - The scientist’s role in historic preservation with particular
reference to stone conservation, em Conservation of Historic Buildings and
Monuments. Washington, National Academic Press, 1982, p.4. Sobre o tema
veja-se ainda de Torraca, G. - Processes and Materials used in Conservation.
Roma, ICCROM, 1980; Torraca, G., - Porous building materials. Roma,
ICCROM, 1982 e ainda Torraca, G. - Definizione delle proprietà richiesta per
le materie prime (leganti e inerti) e I prodotti finali (malte e intonaci), em
Intonaco, colore e coloriture nell´edilizia storica, Atti del Convegno di Studi,
Roma 15-17 Outubro 1984, em Bolletino d´Arte, supl. 35/36, I-II, 1986.
[17] Henriques, F. - A Conservação do património histórico edificado, Memória
nº. 775. Lisboa, LNEC, 1991.
[18] Costa, Dória - Métodos de avaliação laboratorial de tratamentos de
conservação aplicados em rochas graníticas. Lisboa, LNEC, 1998, p. 10.
17

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