a voz como primeiro objeto da pulsão oral

Transcrição

a voz como primeiro objeto da pulsão oral
Dossiê
A autora problematiza a tese freudiana segundo a qual o funcionamento psíquico e pulsional apoia -se sobre a
experiência de satisfação
das necessidades vitais
do organismo, e em especial a fome. Segundo
ela, aquilo que é alucinado pelo bebê no polo
alucinatório desta experiência de satisfação é
antes de tudo a voz materna, e mais especialmente seus picos prosódicos, que devem ser tomados como primeiros
objetos da pulsão oral.
Psicanálise de bebês pulsão oral - voz materna
THE VOICE AS THE FIRST
OBJECT OF THE ORAL
DRIVE
The author
discusses
the freudian thesis of
the anaclisis of the
psychic functions of
the vital needs. She
sustains that the first
objects of the oral drive
are not those related to
the hunger, but the
prosodic peaks of the
maternal voice.
Babies
psychoanalysis;
oral drive;
maternal
A VOZ C O M O
PRIMEIRO OBJETO
DA PULSÃO ORAL
Marie-Ch ristine
Laznik
H n t i t u l e i este a r t i g o " A v o z c o m o p r i m e i r o
objeto da p u l s ã o oral", mas, após ter t r a b a l h a d o
c o m a l g u m a s p e s q u i s a s p s i c o l i n g ü í s t i c a s a t u a i s , eu
deveria p r o p o r " O s p i c o s p r o s ó d i c o s c o m o p r i m e i ros objetos da p u l s ã o o r a l " .
Freud, n o final de sua vida, dizia n a " I n t r o d u ção..." (1938): " O p r i m e i r o ó r g ã o q u e se m a n i f e s t a
e n q u a n t o z o n a e r ó g e n a e q u e e m i t e p a r a o psiquism o u m a r e i v i n d i c a ç ã o l i b i d i n a l , é, d e s d e o n a s c i m e n t o , a b o c a . Q u a l q u e r a t i v i d a d e p s í q u i c a é agenc i a d a p a r a p r o p o r c i o n a r satisfação às n e c e s s i d a d e s
dessa z o n a . Trata-se e v i d e n t e m e n t e e m p r i m e i r o lugar de agir para a autoconservação pela a l i m e n t a ç ã o .
Todavia, c u i d e m o s de n ã o c o n f u n d i r fisiologia e
psicologia. M u i t o c e d o , a criança, s u g a n d o o b s t i n a d a m e n t e , m o s t r a que existe u m a necessidade de satisfação q u e , a i n d a q u e extraia sua o r i g e m d a a l i m e n tação e seja excitada p o r ela, p r o c u r a seu g a n h o de
prazer, i n d e p e n d e n t e m e n t e desta. Assim, esta necessid a d e p o d e e deve ser qualificada c o m o sexual". Referindo-nos ao texto sobre a p u l s ã o (1915), p o d e m o s
acrescentar: " p u l s i o n a l " .
Freud insistia em partir do orgânico, e port a n t o a p o i o u sua " p s i c o l o g i a científica" - c o m o ele
a d e n o m i n a n o Projeto
( F r e u d , 1895) - s o b r e o
•
Psicanalista. Membro da Associação Freudiana Internacional.
estudo do organismo. Lembremo-nos,
Mais tarde, t r a b a l h a n d o atenta-
p o r e x e m p l o , da i m p o r t â n c i a d a n o -
mente o "Projeto"*, compreendi que
ção de desamparo d o p e q u e n o h o m e m
Freud pensava que n o p ó l o alucina-
(Hilflosigkeit)
t ó r i o de satisfação estão i n s c r i t o s os
periência
na sua elaboração da ex-
alucinatória
de
satisfação.
traços m n ê m i c o s e os a t r i b u t o s desse
H á doze anos havíamos organi-
p r ó x i m o assegurador
(Nebenmensch),
Klein
aquele que está a t e n t o às necessidades
em nossa sociedade lacaniana. Confes-
d o recém-nascido e t a m b é m u m a par-
so q u e m e p a r e c e u e s t r a n h o
te r e c o l h i d a , q u e p e r m a n e c e
zado jornadas sobre Melanie
ouvir
a l g u n s de m e u s colegas, da p r i m e i r a
u m a coisa (das Ding),
como
e ele acrescen-
geração d e l a c a n i a n o s , d i z e r - a res-
tava: "Seriam, p o r e x e m p l o , n o nível
p e i t o j u s t a m e n t e deste pólo
alucina-
visual^, os t r a ç o s " . Pareceu-me possí-
tório
- que
vel a s s o c i a r i s t o a o o l h a r
de satisfação
do desejo
fundador
a q u i l o q u e era a l u c i n a d o p e l o b e b ê
da m ã e (Laznik, 1995) - o u d o s pais
n a e x p e r i ê n c i a de satisfação era a
- e ao q u e W i n n i c o t t c h a m a o " r o s -
esses
to da mãe c o m o espelho". Algo d o
experiência
desejo d a m ã e s o b r e a c r i a n ç a seria
das psicoses a d u l t a s e m q u e , efetiva-
t r a d u z i d o p e l o s t r a ç o s de seu r o s t o ,
m e n t e , os p r i m e i r o s f e n ô m e n o s ele-
n o m o d o de olhá-lo; isto
mentares alucinatórios que aparecem
estava r e g i s t r a d o n o p ó l o a l u c i n a t ó -
voz m a t e r n a . Para afirmá-lo,
colegas apoiavam-se na
também
são acústicos. D e v o reconhecer q u e a
r i o de s a t i s f a ç ã o . H o j e ,
idéia de q u e a q u i l o q u e p o d e r i a ser
d i z e r q u e esses t r a ç o s s ã o
permito-me
registrado no pólo alucinatório
de
a c ú s t i c o s e q u e t ê m seu e i x o
nos
satisfação, n o nível d o s t r a ç o s m n ê -
m o d o s p r o s ó d i c o s da palavra
dos
m i c o s das representações de desejo
pais a seu b e b ê . F o r a m os t r a b a l h o s
(Wunschvorstellungen),
também
seriam sons,
d o s psicolingüistas, b e m c o m o certos
o u traços p r o s ó d i c o s , parecia-me im-
casos clínicos, que m e p o s s i b i l i t a r a m
p e r t i n e n t e . P a r a m i m h a v i a aí m a i s
esta f o r m u l a ç ã o .
os t r a ç o s m n ê m i c o s d a s
satisfações
das necessidades p r i m e i r a s de f o m e e
de sede. Freud (1905) havia
dito:
" Q u a n d o v e m o s u m a criança satisfeita largar o seio d e i x a n d o - s e i n c l i n a r
p a r a trás e a d o r m e c e r , c o m as faces
OBSERVAÇÕES
CLÍNICAS
r o s a d a s , u m s o r r i s o feliz, n ã o p o d e m o s n o s i m p e d i r d e d i z e r q u e esta
imagem permanece como o protótip o d a expressão d a satisfação sexual
n a existência u l t e r i o r " . Eu p e r m a n e cia p o r t a n t o m u i t o l i g a d a a u m a
c o n c e p ç ã o clássica d o a p o i o d o func i o n a m e n t o p s í q u i c o e p u l s i o n a l sobre a experiência de satisfação
necessidades vitais d o o r g a n i s m o .
das
É n o C e n t r o Alfred Binet, em
n o s s o g r u p o d e p e s q u i s a s o b r e os
bebês, graças às l e i t u r a s q u e n o s for a m apresentadas p o r Marie-Françoise
Bresson, que m i n h a atenção é atraída
pelos trabalhos dos psicolingüistas.
As pesquisas dos psicolingüistas, resumidas para o grande público em
1977 p o r B e n é d i c t e de B o y s s o n Bar-
dies (1996) e, dez a n o s antes, p o r M e h l e r et D u p o u x (1990), e os
t r a b a l h o s de Mme. Busnel sobre as c o m p e t ê n c i a s acústicas de fetos,
q u e s t i o n a m m u i t o nossos h á b i t o s de p e n s a m e n t o . C a m i n h a n d o
e n t ã o de surpresa em surpresa, fui o b r i g a d a a m e dizer que o bebê
de Freud - c o m o eu o representava p a r a m i m - estava s e n d o seriam e n t e r e c o n s i d e r a d o . M a s o b e b ê de Lacan t a m b é m carecia de rem a n e j a m e n t o s . Lacan c h a m a o sujeito h u m a n o o "falasser", pois ele
se e n c o n t r a , d e i m e d i a t o , n a l i n g u a g e m . C e r t a m e n t e . M a s c o m o
isto se passa c o m o infans, o u seja, c o m aquele que a i n d a n ã o fala?
C o m o isso acontece n o p l a n o clínico? Lacan falou m u i t o d o desejo d o O u t r o , m a s n ã o d i s p u n h a de u m a clínica de bebês q u e l h e
p o s s i b i l i t a s s e a r t i c u l a r suas h i p ó t e s e s n o p l a n o f e n o m e n o l ó g i c o .
A l é m d i s s o , Lacan fica m u i t o p r e s o ao " P r o j e t o " . Para ele, a p r i m e i r a m a n i f e s t a ç ã o d o b e b ê é u m g r i t o , isto é, u m a descarga m o t o r a q u e a c o n t e c e p o r q u e a f o m e o u a sede e s t ã o n a o r i g e m de
u m a excitação i n t e r n a .
3
J á n o i n í c i o de seu l i v r o , Mme. de B o y s s o n - B a r d i e s l e m b r a
que o bebê identifica a voz da mãe antes m e s m o da p r i m e i r a
m a m a d a , p o r t a n t o , antes q u e q u a l q u e r leite possa acalmar q u a l q u e r
necessidade^.
Recentemente a c o m p a n h e i , em m i n h a família mais próxima,
c o m o n a s c i m e n t o de u m b e b ê , u m a p e q u e n a Alice. N a m a t e r n i d a d e n ã o lhe d e r a m m a m a d e i r a , a g u a r d a n d o a descida d o leite de
sua mãe. Esta dizia a seu bebê que havia recebido a p e n a s c o l o s t r o ,
e Alice, b e b e n d o as p a l a v r a s de sua m ã e , acalmava-se e escutava.
Ela a c o m p a n h a v a , c o m p l e t a m e n t e i n t e r e s s a d a , os m o v i m e n t o s d a
b o c a da m ã e .
Essa observação clínica, d o m e s m o m o d o q u e as pesquisas dos
p s i c o l i n g ü i s t a s n ã o a p o n t a m n a d i r e ç ã o das a f i r m a ç õ e s de S p i t z
sobre a passagem necessária pela experiência de satisfação da necessidade alimentar para a constituição d o aparelho psíquico. Spitz
(1962) h a v i a se a p o i a d o s o b r e u m caso c l í n i c o a p a r e n t e m e n t e incontestável. E m 1957, ele estuda u m dos p r i m e i r o s casos de criança
a l i m e n t a d a d i r e t a m e n t e n o e s t ô m a g o , a p e q u e n a M o n i c a , que, pela
sua descrição, estava n u m estado de m a r a s m o s e m e l h a n t e ao h o s p i t a l i s m o . Spitz c o n c l u i que, se n ã o h á experiência de p r o c u r a , exper i ê n c i a d e s a t i s f a ç ã o a l i m e n t a r p e l a b o c a , a n e g a ç ã o , i s t o é, os
movimentos
cefalógiros negativos da negação n ã o p o d e m se estabelecer. Para Spitz, q u a l q u e r atividade psíquica criadora - autogeração
de f o r m a s q u e c o n d u z a aos processos de p e n s a m e n t o - é i n i c i a d a
pela experiência sensorial ligada à s i t u a ç ã o de a l i m e n t a ç ã o . Se esta
a t i v i d a d e p s í q u i c a n ã o se estabelece, haverá c o n s e q ü ê n c i a s d a n o s a s
n o p l a n o s i m b ó l i c o . G i n e t t e R a i m b a u l t (1980, pp.5-84), n u m a pesquisa t e r m i n a d a em 1979 sobre as crianças em r e a n i m a ç ã o digestiva,
havia e n c o n t r a d o a c o n f i r m a ç ã o da teoria d o a p o i o n a satisfação da
n e c e s s i d a d e . Estes p r i m e i r o s bebês, salvos a s s i m pela m e d i c i n a de
m o r t e certa, a p r e s e n t a v a m t o d o s os a t r a s o s p s i c o m o t o r e s , relacionais e da l i n g u a g e m q u e se p r o l o n g a r a m até os 6 a n o s . Estes result a d o s p a r e c i a m c o n f i r m a r as h i p ó t e s e s de Spitz.
N o c o n s u l t ó r i o de bebês e pais d o C e n t r o Alfred Binet, receb e m o s u m b e b ê d e 11 meses, q u e v o u c h a m a r d e M a r i a n n e . E m
f u n ç ã o de u m a m á - f o r m a ç ã o fetal digestiva g r a v e , ela foi inicialm e n t e a l i m e n t a d a p o r cateter, d e p o i s ^ p o r s o n d a , n ã o t e n d o p o r t a n t o n u n c a t i d o a experiência de satisfação d a necessidade alimentar pela b o c a .
5
N o i n í c i o M a r i a n n e se a p r e s e n t a c o m o u m b e b ê t r i s t e , c o m
pais t e n s o s , c r i s p a d o s s o b r e seu fracasso e m a l i m e n t á - l a de m o d o
n a t u r a l . M a s , n o t r a b a l h o t e r a p ê u t i c o , ela vai, m u i t o r a p i d a m e n t e ,
mostrar-se viva, c a p a z de c o m e r as h i s t ó r i a s q u e lhe c o n t a m o s , de
beber as palavras de u n s e de o u t r o s . Ela a p r e s e n t a b o a s representações de mãe a m a m e n t a d o r a , m o s t r a u m auto-erotismo oral, dá
provas de u m a o r g a n i z a ç ã o d a s i m b o l i z a ç ã o , e, m u i t o r a p i d a m e n t e ,
ela fala.
Se isso é p o s s í v e l t ã o r a p i d a m e n t e , é p o r q u e M a r i a n n e n ã o
foi a l i m e n t a d a apenas artificialmente; ela havia recebido t a m b é m de
seus pais, já n o h o s p i t a l , palavras a l i m e n t a d o r a s ^ .
Q u a n d o b r i n c o de m e deixar a l i m e n t a r , M a r i a n n e repete, e m
e s p e l h o , o p r a z e r q u e se p o d e ter e m ser a l i m e n t a d o , o q u e significa q u e ela a p r e s e n t a algo q u e l h e é d e s c o n h e c i d o n o p l a n o alim e n t a r . E m o u t r o j o g o , é ela q u e vai se o f e r e c e r c o m o o b j e t o
delicioso, " b o a de m o r d e r " , e eis q u e ela descobre a cavidade bucal
de seus p a i s , e d e p o i s a sua p r ó p r i a . É t o d o o c i r c u i t o da p u l s ã o
oral, e m seus diversos t e m p o s sucessivos, q u e nela se estabelece.
N u m a sessão recente, a o r g a n i z a ç ã o s i m b ó l i c a aparece n i t i d a m e n t e : M a r i a n n e t e m 14 meses, e seu p a i viajou. Ela c o l o c a u m a
b o n e c a atrás de u m a cadeira, faz c o m q u e ela desapareça notificand o - m e disso, e, q u a n d o eu lhe d i g o " s i m , p a p a i n ã o está, é c o m o
a b o n e c a que n ã o está", ela r e s p o n d e : "lá, lá", representação de u m
" f o r a " . Ela vai e n t ã o b u s c a r o t e l e f o n e e, d i z e n d o " n ã o , p a p a i " ,
a p o n t a a p o r t a , l u g a r d a saída, d o fora. E s t a m o s p o r t a n t o d i a n t e
d e a l g u é m q u e , n ã o t e n d o s i d o j a m a i s a l i m e n t a d a pela b o c a , n ã o
apresenta, entretanto, n e n h u m atraso na organização simbólica ou
da l i n g u a g e m .
Por ocasião de u m de nossos s e m i n á r i o s m e n s a i s , c o m o discut í a m o s esse caso**, foi-me d i t o q u e p o r q u e M a r i a n n e n u n c a t i n h a
sofrido f o m e , ela teria feito u m a espécie de experiência de satisfação da n e c e s s i d a d e e q u e talvez p o r isso t o d o o resto se seguisse.
O p r o b l e m a é m a i s c o m p l i c a d o . Se p e n s a m o s n o b e b ê de S p i t z ,
ou naqueles descritos por Ginette
Raimbault, não p o d e m o s dizer que
se M a r i a n n e t e m u m b o m desenvolv i m e n t o s i m b ó l i c o é p o r q u e a o ser
a l i m e n t a d a teve a e x p e r i ê n c i a de satisfação da necessidade. T o d a s as crianças citadas a n t e r i o r m e n t e foram alim e n t a d a s , o q u e n ã o as i m p e d i u de
conhecer u m destino p u l s i o n a l m u i t o
mais obstruído.
Eu teria talvez p e n s a d o n u m
d e s t i n o excepcional para M a r i a n n e se
eu n ã o tivesse c o n h e c i d o o t r a b a l h o
de A n n i e Mercier (1995). Ela descreve
bebês alimentados artificialmente
n u m s e r v i ç o p a r i s i e n s e de p e d i a t r i a
geral. É m u i t o provável que certo
n ú m e r o de o b s e r v a ç õ e s feitas p o r
G i n e t t e R a i m b a u l t já tivesse s i d o lev a d o e m c o n t a ^ , p a r t i c u l a r m e n t e as
q u e visavam facilitar, desde o i n í c i o ,
o laço dos pais ao bebê. P o d e m o s
supô-lo, pois a evolução dos bebês
desse serviço, c o m o descreveu A n n i e
M e r c i e r , c o m f r e q ü ê n c i a foi s e m e l h a n t e à que p u d e m o s c o n s t a t a r c o m
Marianne. O que obriga a autora a
dizer q u e essa clínica r e c o n s i d e r a algumas hipóteses c o m u m e n t e admitidas sobre a teoria do a p o i o . N o
â m b i t o de u m a tese de m e s t r a d o , ela
n ã o se p e r m i t e ir até o fim d o q u e
apresenta aqui u m problema. Annie
Mercier contenta-se em pensar, c o m o
eu m e s m a fiz n u m p r i m e i r o t e m p o
a respeito de M a r i a n n e , que "cada
u m a dessas crianças d e m o n s t r o u competências e x c e p c i o n a i s " 10.
E se aí n ã o se tratasse de exceção? D e v e r í a m o s d i z e r e n t ã o q u e os
bebês p o r t a d o r e s dessas p a t o l o g i a s
alimentares radicais n o s e n s i n a m que,
se as necessidades vitais são apaziguadas, o b e b ê e m p r e g a suas c o m p e t ê n -
cias n a b u s c a d e u m o u t r o o b j e t o d i f e r e n t e d a q u e l e d a satisfação
da necessidade vital.
V a m o s levantar algumas questões teóricas sobre as conseqüências desses d a d o s c l í n i c o s . F r e u d era u m h o m e m c u r i o s o s o b r e as
pesquisas de seu t e m p o , e a c r e d i t o que, d i a n t e de d a d o s desse gên e r o , ele seria o p r i m e i r o a tirar conclusões em relação a sua teoria. Talvez essas lhe permitissem articular m e l h o r algumas dificuldades de a l g u n s de seus c o n c e i t o s .
ALGUMAS REFLEXÕES TEÓRICAS
U m d o s p r o b l e m a s n a o b r a de Freud é o r e e q u i l í b r i o p e r m a n e n t e q u e ele deve g a r a n t i r entre a teoria d o a p o i o e u m a de suas
c o n c e p ç õ e s d o a u t o - e r o t i s m o . Ele estava d i v i d i d o e n t r e esses d o i s
p o n t o s o p o s t o s . Talvez as pesquisas atuais lhe possibilitassem resolver esse i m p a s s e . T e n t e m o s , p r i m e i r a m e n t e , f o r m u l á - l o b e m :
a) O c o n c e i t o d e a p o i o
" O seio a m a m e n t a d o r d a m ã e é p a r a a c r i a n ç a o p r i m e i r o
o b j e t o e r ó t i c o , o a m o r aparece e m b a s a n d o - s e n a satisfação da necessidade de a l i m e n t o " (Freud, 1938).
O a p o i o possibilita a Freud estabelecer u m a r e p r e s e n t a ç ã o teórica d o a p a r e l h o p s í q u i c o q u e s u p õ e u m a h i s t o r i c i d a d e - o que é
m u i t o i m p o r t a n t e - e u m laço c o m u m O u t r o p r i m o r d i a l q u e ele
c h a m a de próximo
assegurador
(Nebenmensch),
aquele q u e vai dar
a resposta específica c a p a z de a p a z i g u a r as necessidades (de f o m e ,
de sede, b e m e n t e n d i d o ) . Segue-se u m a q u e d a d a t e n s ã o i n t e r n a
p a r a o bebê, vivida c o m o experiência de satisfação, q u e irá inscrever-se n o p ó l o a l u c i n a t ó r i o de s a t i s f a ç ã o . M a i s t a r d e , q u a n d o é
d e i x a d o s o z i n h o , o bebê p o d e r á reevocar os traços m n ê m i c o s dessa
experiência de satisfação
b e m c o m o os traços deste O u t r o atent o , e r e e n c o n t r a r u m a p a z i g u a m e n t o ; é a experiência
alucinatória
primária.
É nesses t e r m o s que Freud (1973) descreve, n o "Projeto",
a constituição do aparelho psíquico.
A p a r t i r daí p o d e m o s pensar u m a u t o - e r o t i s m o , s u c e d â n e o da
e x p e r i ê n c i a a l u c i n a t ó r i a p r i m á r i a , m i s t u r a d o a certos traços desse
O u t r o assegurador. Esta c o n c e p ç ã o visa integrar o auto-erotismo na
h i s t o r i c i d a d e da relação c o m o O u t r o
M a s esta a t r a p a l h a Freud,
e é compreensível, n a m e d i d a em que faz q u a l q u e r experiência psíquica derivar do registro fisiológico.
C o m o n ã o c o n f u n d i r fisiologia e p s i c o l o g i a , pergunta-se ele?
C o m o s e p a r a r as p u l s õ e s , sexuais p o r e x c e l ê n c i a , d o r e g i s t r o d a
conservação d o o r g a n i s m o ? A esta q u e s t ã o central, Freud r e s p o n d e rá i n t r o d u z i n d o a i d é i a d e u m a u t o - e r o t i s m o i n a t o , q u e c o m a
a p a r ê n c i a de s o l u ç ã o irá criar n o v o s p r o b l e m a s t e ó r i c o s .
b) A h i p ó t e s e de u m a u t o - e r o t i s m o i n a t o
A l í n g u a alemã p o s s u i d u a s palavras diferentes p a r a o "verbetéter", c o n f o r m e a referência a a l i m e n t a r - s e , b e b e r o u sugar, sem
n a d a absorver. É desta sucção q u e t r a t a o livro de H a v e l o c k Ellis
e m q u e F r e u d e n c o n t r o u o c o n c e i t o de a u t o - e r o t i s m o .
" T o m a m o s c o m o m o d e l o das manifestações sexuais i n f a n t i s a
sucção (sucção v o l u p t u o s a ) " , escreve Freud (1905), e mais longe: "A
s u c ç ã o , q u e já a p a r e c e n o r e c é m - n a s c i d o e q u e p o d e p r o l o n g a r - s e
até a m a t u r i d a d e o u manter-se d u r a n t e t o d a a vida, consiste n u m a
repetição rítmica c o m a b o c a (os lábios) de u m c o n t a t o de sucção,
cuja finalidade a l i m e n t a r está e x c l u í d a " (1905, p.102).
F r e u d irá e n u n c i a r e n t ã o q u e , n o a u t o - e r o t i s m o , o o b j e t o
p o d e se c o n f u n d i r c o m a fonte, isto é, a z o n a erógena; n a sucção,
os l á b i o s . O p a s s o s e g u i n t e c o n s i s t e , p a r a F r e u d , e m s e p a r a r o
a u t o - e r o t i s m o d o o b j e t o , e ele se t o r n a , e n t ã o , a n o b j e t a l , i n a t o e
n ã o d e p e n d e m a i s de n e n h u m O u t r o d a e x p e r i ê n c i a p r i m o r d i a l .
Q u a l q u e r h i s t o r i c i d a d e estará, assim, excluída.
U m a tal c o n c e p ç ã o de u m a u t o - e r o t i s m o i n a t o opõe-se radicalm e n t e àquilo que está a p r e s e n t a d o n o Esquisse^.
M a s esta possibilita a F r e u d c o n c e b e r u m a p a r e l h o p s í q u i c o q u e n ã o seria m a i s ,
e n t ã o , t o t a l m e n t e t r i b u t á r i o da experiência da satisfação d a necess i d a d e . Ele e m a n c i p a a s s i m o p s i c o l ó g i c o d o f i s i o l ó g i c o e a b r e ,
pela m e s m a via, a p o s s i b i l i d a d e de u m c a m p o da p u l s ã o i n d e p e n d e n t e d o c a m p o da a u t o c o n s e r v a ç ã o .
E n t r e t a n t o , existe u m a c o n t r a d i ç ã o , in adjeto, e m pensar-se u m
auto-erotismo inato. Primeiramente, porque Eros, na mitologia
grega, está sempre d o lado d o sexual, isto é, da i n t e r v e n ç ã o de u m
o u t r o para que isso possa acontecer. Eros v e m se o p o r a t o d o s os
m i t o s a u t o g e r a d o r e s , de r e p r o d u ç ã o p o r c i s s i p a r i d a d e . N a d a é
possível sem o o u t r o .
A l é m disso, h á a p r ó p r i a m a n e i r a c o m q u e o a u t o - e r o t i s m o
aparece n o livro de H a v e l o c k Ellis s o b r e a s u c ç ã o . Esse livro trata de sexualidade, e de sexualidade n o s a d u l t o s . Nessa sucção, é o
a s p e c t o m a s t u r b a t ó r i o q u e interessa ao a u t o r , q u e o excita, p o d e r í a m o s dizer, p o i s é u m l i v r o e x c i t a n t e . N o i n í c i o d o s é c u l o , esses senhores de c o l a r i n h o d u r o , gravata e m o n ó c u l o d e v o r a v a m trat a d o s e m o n o g r a f i a s sobre a s e x u a l i d a d e solitária. M a s , a i n d a q u e
ela fosse solitária, isso n ã o significa q u e ela n ã o fosse s u s t e n t a d a
p o r f a n t a s m a s i m p l i c a n d o o o u t r o . Só q u e , aí está, F r e u d a i n d a
n ã o havia c o n s t r u í d o a teoria d o f a n t a s m a .
P o r t a n t o , eis aí o p a n o de f u n d o
sobre o qual Freud irá afirmar a existência de u m a sexualidade infantil,
d e s d e o n a s c i m e n t o . C o m o H . Ellis,
ele vai considerar a sucção c o m o sexual. Pelo fato de n ã o derivar da experiência de satisfação da necessidade, ele
vai considerá-la inata, isto é, i n d e p e n d e n t e d a relação c o m u m O u t r o .
Levando às últimas conseqüências
esse m o v i m e n t o d o p e n s a m e n t o d e
Freud, certos autores serão c o n d u z i dos a dar o seguinte passo: conceber
u m a u t o - e r o t i s m o s e m E r o s , i s t o é,
u m primeiro t e m p o autista em t o d o
b e b ê . M . M a h l e r a f i r m a r á isso e será
seguida, n u m p r i m e i r o t e m p o , p o r F.
T u s t i n ^ . É preciso observar a q u i q u e
foi d i a l o g a n d o c o m seu a m i g o C .
T r e v a r t h e n - j u s t a m e n t e u m d o s fund a d o r e s d a p s i c o l i n g ü í s t i c a - q u e F.
T u s t i n disse ter c o m p r e e n d i d o que
essa h i p ó t e s e seria i n s u s t e n t á v e l .
A i n d a q u e F r e u d n ã o t e n h a jamais chegado a u m e x t r e m o semel h a n t e , ele devia s e n t i r q u e sua h i p ó tese s o b r e u m a u t o - e r o t i s m o i n a t o
n ã o era segura, e c o m p r e e n d e - s e q u e
ele t e n h a se l i g a d o a i n d a m a i s à teoria d o a p o i o p a r a fazer frente a esse
m o v i m e n t o em sua o b r a . E m "Três
ensaios p a r a u m a teoria da sexualidad e " as observações sobre o a p o i o são
f r e q ü e n t e m e n t e acréscimos de 1915, o
q u e é c o e r e n t e c o m o q u e F r e u d elab o r a , n o m e s m o a n o , e m seu t e x t o
"Pulsões e seus d e s t i n o s " . Ele apresenta aí seu c o n c e i t o de p u l s ã o , d i z e n d o
q u e h a v e r á m o d i f i c a ç õ e s . S e r i a essa
pulsão o representante psíquico das
excitações v i n d a s d o i n t e r i o r d o corpo? C o m p r e e n d e m o s e n t ã o que ele dê
o e x e m p l o d a f o m e e d a sede. Lacan
(1964) terá a a u d á c i a de m o s t r a r q u e
aí estão tergiversações, m a s o fio q u e
leva F r e u d a forjar esse c o n c e i t o é o
o u t r o . " N ã o se t r a t a d o o r g a n i s m o
e m sua t o t a l i d a d e . É o vivo q u e está
i n t e r e s s a d o ? N ã o " , e n u n c i a ele, e
acrescenta mais adiante: "A constância
d o c r e s c i m e n t o p r o í b e q u a l q u e r assim i l a ç ã o da p u l s ã o a u m a f u n ç ã o biológica, a q u a l s e m p r e t e m u m r i t m o .
A p u l s ã o n ã o t e m s u b i d a n e m descida, é u m a força c o n s t a n t e " (p.150). A
f o n t e é a z o n a e r ó g e n a q u e , n o recém-nascido, é, p o r excelência, a boca.
Mas n ã o p o d e m o s seguir Freud q u a n d o , a r e s p e i t o d a s u c ç ã o , t o m a esta
z o n a c o m o o b j e t o . E l e o faz p a r a
tentar pensar o u t r a coisa além do
objeto de satisfação da necessidade,
n o que ele t e m razão. R e l e n d o Freud,
Lacan observa que: " N e n h u m objeto
d a n e c e s s i d a d e p o d e satisfazer a p u l s ã o . A b o c a q u e se a b r e n o r e g i s t r o
da p u l s ã o n ã o se satisfaz c o m aliment o " ^ . I m e d i a t a m e n t e , à lista h a b i t u a l
de Freud (seios, nádegas), ele acrescenta e n t ã o o o l h a r e a v o z . Estes d o i s
ú l t i m o s objetos - q u e n ã o são os da
satisfação de u m a necessidade qualquer
- são centrais na clínica d o recémn a s c i d o . Q u a n t o ao seio, este p e r m a nece m a r c a d o p o r seu v a l o r de objet o d a s a t i s f a ç ã o d a n e c e s s i d a d e alim e n t a r , e v i m o s , n o caso de M a r i a n ne, o q u a n t o a satisfação da pulsão
o r a l está n u m o u t r o r e g i s t r o .
L a c a n irá m a n t e r o t e r m o p u l s ã o a p e n a s p a r a as p u l s õ e s s e x u a i s
p a r c i a i s e p o r á t u d o o q u e se refere
à conservação do indivíduo n u m
registro diferente. T o d o o registro
d a n e c e s s i d a d e sai, dessa f o r m a , d o
campo pulsional^.
O c r e s c i m e n t o , a fonte e o objet o são os três p r i m e i r o s c o m p o n e n t e s
da p u l s ã o . É p r e c i s o acrescenter u m
q u a r t o , o objetivo de a t i n g i r a satisfação p u l s i o n a l que consiste n a m o n t a g e m de u m c i r c u i t o p u l s i o n a l e m
três t e m p o s . Trata-se, p a r a a p u l s ã o ,
de realizar u m certo p e r c u r s o . É
este p e r c u r s o q u e t r a z a s a t i s f a ç ã o
p u l s i o n a l , r a d i c a l m e n t e s e p a r a d a de
q u a l q u e r satisfação de necessidade orgânica. Este trajeto, em f o r m a de circ u i t o , v e m se f e c h a r e m seu p o n t o
de p a r t i d a . A p a r t i r d a í , p a r a a p u l são n ã o se t r a t a m a i s de ir n a direção de u m objeto da necessidade e
de satisfazer-se, mas sim de e n c o n t r a r
u m o b j e t o q u e a c r i e , i s t o é, q u e
p e r m i t a a ela p e r c o r r e r t o d o s o s
t e m p o s necessários para seu fechament o , i n ú m e r a s vezes.
O p r i m e i r o é ativo, o recémn a s c i d o ( n o caso q u e n o s i n t e r e s s a )
vai n a d i r e ç ã o de u m objeto e x t e r n o
- o seio, o u a m a m a d e i r a . O segund o é reflexivo, t o m a n d o c o m o objeto u m a parte do p r ó p r i o corpo - a
c h u p e t a o u o d e d o ; é aí q u e F r e u d
situa a s u c ç ã o ^ . O terceiro t e m p o
da p u l s ã o é q u a n d o o recém-nascido
faz a si m e s m o objeto de u m o u t r o ,
este c o n h e c i d o n o v o sujeito - a m ã e ,
por exemplo. Freud qualifica-o de
"passivo". O bebê não é passivo na
s i t u a ç ã o , ele a s u s c i t a , c o m t o d a a
e v i d ê n c i a . É ele q u e p r o c u r a s e r
o l h a d o , ser o u v i d o o u e n t ã o , n o
nível o r a l , "oferecer o p e z i n h o p a r a
c o m e r " . Este aspecto do terceiro
t e m p o d o circuito p u l s i o n a l , e m i n e n t e m e n t e ativo, já havia s i d o observad o p o r Lacan, que o c h a m o u de
t e m p o d o "fazer-se". R e c e n t e m e n t e
vimos u m bebê que, colocado nu
sobre seu t r o c a d o r , agita-se, oferece a
si m e s m o c o m o o b j e t o n a a n t e c i p a -
ção d a v o l u p t u o s i d a d e oral m a t e r n a .
Ele d á seu d e d o p a r a m o r d e r e espia, e n t ã o , a t e n t o . A alegria inscrevese n o r o s t o e n o o l h a r de sua m ã e ,
p a r a q u e m ele é " b o m de m o r d e r " .
É j u s t a m e n t e este g o z o q u e ele v e m
l i g a r a ela. A i n d a é p r e c i s o q u e a
m ã e , s a b o r e a n d o este g o z o , saiba rap i d a m e n t e privar-se dele d i z e n d o a
seu bebê que n ã o deve excitar-se tanto e que papai - ou qualquer o u t r o
t e r c e i r o q u e vier à cabeça d a m ã e n ã o estaria de a c o r d o . P o r m e i o desta p r i v a ç ã o d e g o z o q u e a m ã e se
i m p õ e , ela significa a seu b e b ê q u e
ela m e s m a está s u b m e t i d a à lei, marcada pela castração, pela falta.
Q u a n d o esse t e r c e i r o t e m p o
a c o n t e c e , ele g a r a n t e q u e , n o p ó l o
a l u c i n a t ó r i o d e satisfação d o desejo
haverá traços m n ê m i c o s deste O u t r o
m a t e r n o , deste p r ó x i m o assegurador.
M a s , m a i s p r e c i s a m e n t e , traços m n ê m i c o s d e seu g o z o ; d e s t e m o m e n t o
e m q u e a m ã e s o r r i de p r a z e r p a r a
esse b e b ê q u e se faz o l h a r o u q u e
oferece seu p é p a r a m o r d e r . T e m o s
certeza e n t ã o de que, em seguida,
q u a n d o ele estiver s o z i n h o , s u g a n d o
seu p o l e g a r o u c h u p e t a , haverá reinv e s t i m e n t o d o s traços m n ê m i c o s deste O u t r o m a t e r n o . F r e u d , n o "Projeto", chama-os de representações d o
desejo (Wunschvorstellungen).
Como
ele fala d o recém-nascido, só p o d e se
t r a t a r d o d e s e j o d e seu O u t r o P r i m o r d i a l , seu p r ó x i m o a s s e g u r a d o r ,
c o m o ele o c h a m a . Nesse caso, estam o s certos de que auto-erotismo contém Eros. Sem Eros, a u t o - e r o t i s m o se
escreve
autismo.
D e fato, esse t e r c e i r o t e m p o d o
c i r c u i t o p u l s i o n a l , esse m o m e n t o e m
q u e ele v a i se fazer o b j e t o d e u m
n o v o sujeito, o autista n ã o o c o n h e c e . Para ele o circuito p u l s i o n a l
n ã o se fecha. D e i m e d i a t o n ã o existe a p o s s i b i l i d a d e de n e n h u m
t e m p o p r o p r i a m e n t e a u t o - e r ó t i c o , p o r q u e n a d a de u m p r a z e r susc i t a d o n o O u t r o p o d e ser registrado n o p ó l o a l u c i n a t ó r i o de satisfação. Esta n e c e s s i d a d e d e p e n s a r p r i m e i r o n o t e r c e i r o t e m p o d o
circuito p u l s i o n a l antes de p o d e r afirmar a natureza auto-erótica d o
s e g u n d o é t ã o c e n t r a l , q u e D . W i d l õ c h e r p r o p õ e c l a r a m e n t e inverter a o r d e m , i s t o é, p õ e o a u t o - e r o t i s m o n o t e r c e i r o t e m p o .
V o l t e m o s agora à q u e s t ã o d o objeto p a r a situar o m o d o c o m
q u e a v o z p o d e r i a ser o p r i m e i r o o b j e t o d a p u l s ã o o r a l .
Fernald (1982, pp.104-13), u m dos f u n d a d o r e s da psicolingüística, c o n s t a t a v a n o s r e c é m - n a s c i d o s u m a a p e t ê n c i a oral exacerb a d a p a r a u m a f o r m a p a r t i c u l a r d e p a l a v r a m a t e r n a , q u e foi cham a d a d e "motherease"
( " m a m a n h ê s " ) . Este motherease
apresenta
u m a série d e c a r a c t e r í s t i c a s específicas d e g r a m á t i c a , d e p o n t u a ç ã o ,
de e s c a n ç ã o , e u m a p r o s ó d i a especial. O a u t o r interessou-se pelas
características p r o s ó d i c a s d o motherease
e s o b r e o efeito q u e este
p r o d u z na apetência d o recém-nascido. T r a b a l h a n d o c o m bebês
de 1 a 3 dias d e v i d a , o q u e d e s c o b r i u ele? Q u e antes m e s m o da
d e s c i d a d o leite, u m r e c é m - n a s c i d o q u e p o r t a n t o a i n d a n ã o teve
a e x p e r i ê n c i a d a satisfação a l i m e n t a r , o u v i n d o u m a f o r m a p r o s ó d i c a p a r t i c u l a r d a v o z d e sua m ã e d i r i g i d a a ele, t o r n a - s e m u i t o
atento e começa a sugar i n t e n s a m e n t e u m a chupeta n ã o nutritiv a ^ . O r e c é m - n a s c i d o c h u p a d e c i d i d o o u v i n d o a p r o s ó d i a desse
" m a m a n h ê s " , até m e s m o q u a n d o se t r a t a de u m a gravação. E n t r e t a n t o , F e r n a l d d e s c o b r i u q u e se ele grava a p a l a v r a da m ã e faland o a seu b e b ê , s e m a p r e s e n ç a d o m e s m o , o r e s u l t a d o o b t i d o é
d i f e r e n t e . N ã o se e n c o n t r a m m a i s os m e s m o s p i c o s p r o s ó d i c o s e
o b e b ê d e m o n s t r a e n t ã o m e n o s interesse. E, se u m a m ã e se dirige
a u m o u t r o a d u l t o , o s p i c o s p r o s ó d i c o s se t o r n a m a i n d a m a i s
fracos e a a p e t ê n c i a d o b e b ê se a n u l a .
F e r n a l d t e n t o u d e s c o b r i r se h a v i a u m a s i t u a ç ã o e m q u e u m
a d u l t o , f a l a n d o c o m o u t r o a d u l t o , p r o d u z i s s e esses m e s m o s p i c o s
p r o s ó d i c o s específicos d o motherease
( " m a m a n h ê s " ) . Esta s i t u a ç ã o
existe, mas para o b t e r esses picos é preciso u m a situação que some,
o q u e é r a r o , e s t u p e f a ç ã o , s u r p r e s a e, a o m e s m o t e m p o , g r a n d e
prazer, alegria. P o r t a n t o , estupefação e prazer conjugados p r o d u z e m
esse t i p o d e p i c o p r o s ó d i c o . F e r n a l d n a d a c o n c l u i .
E n q u a n t o psicanalistas, c o m o ler esses dados?
O b s e r v e m o s , p r i m e i r a m e n t e , a diferença radical e n t r e o objeto
causa de desejo - o d a p u l s ã o - e o o b j e t o de satisfação da necessidade, q u e n ã o está p r e s e n t e a q u i .
Freud e m O chiste e suas relações com o inconsciente
descreve
o q u e c h a m a de p a p e l da terceira pessoa. N a prática analítica c o m
crianças autistas observamos que o
terceiro t e m p o d o c i r c u i t o p u l s i o n a l ,
o m o m e n t o em que o gozo do Out r o (e d o o u t r o ) está " e n g a n c h a d o "
c o r r e s p o n d e ao papel desta terceira
pessoa. Aquela que, o u v i n d o " u m a
f o r m a ç ã o de palavra defeituosa c o m o
u m a coisa ininteligível, i n c o m p r e e n s í vel, e n i g m á t i c a " , l o n g e d e rejeitá-la
c o m o não p e r t e n c e n d o ao código,
a p ó s u m t e m p o de estupefação deixase levar pela i l u m i n a ç ã o e r e c o n h e c e
aí u m c h i s t e . A c e i t a r deixar-se c o n fundir, estupefazer é a m a r c a da falta
n o O u t r o . Este O u t r o n ã o está e n t ã o
n ã o i n i c i a d o , t e m u m a falta. E o seg u n d o m o m e n t o é o d o riso. T o d a a
s e g u n d a p a r t e d o livro de F r e u d é
sobre esse riso, q u e é prazer, g o z o ^ .
C o m a estupefação e o riso do O u t r o b a r r a d o , estamos n o terceiro temp o d o circuito p u l s i o n a l . Estupefação
e alegria são t a m b é m as características
d a p r o s ó d i a d o motherease
("maman h ê s " ) de q u e o r e c é m - n a s c i d o é t ã o
ávido. O que nos ensina a pesquisa
de Fernald? Esta n o s diz que desde o
n a s c i m e n t o , e antes de q u a l q u e r exper i ê n c i a de satisfação a l i m e n t a r , o recém-nascido t e m u m a apetência extraordinária para o gozo que a visão
de sua p r e s e n ç a d e s e n c a d e i a n o O u tro materno.
O s bebês q u e se t o r n a r a m autistas n o s levam a p e n s a r q u e o recémnascido só olharia para sua mãe - o u
o O u t r o P r i m o r d i a l de sua vida q u a n d o ele fizesse a experiência desta
p r o s ó d i a n a voz m a t e r n a . Esta p r o s ó d i a l h e p o s s i b i l i t a r i a i d e n t i f i c a r sua
presença c o m o o objeto causa de u m
g o z o deste O u t r o P r i m o r d i a l . Ele vai
procurar o rosto que corresponde a
esta v o z p a r t i c u l a r . E ele p r o c u r a r á
t a m b é m fazer-se o b j e t o d e s t e o l h a r , n o q u a l ele lerá q u e ele é o
objeto causa dessa surpresa e dessa alegria q u e a p r o s ó d i a d a v o z e
os traços d o r o s t o m a t e r n o refletem. Ele terá e n t ã o a m a r r a d o c o m
ela u m c i r c u i t o p u l s i o n a l e s c ó p i c o .
O b s e r v e m o s q u e as pesquisas d o s psicolingüistas fazem-se fora
d o c o n t e x t o d e q u a l q u e r a p o i o sobre a satisfação d a s necessidades
v i t a i s . É s o b r e t u d o aí q u e a p u l s ã o i n v o c a n t e p a r e c e irresistível;
isto é, q u a n d o ela é a p e n a s p u l s ã o . Isto justifica o fato d e t e r m o s
r e t o m a d o seriamente a teoria d o apoio.
Parece-me q u e c o m o objeto voz - ou mais
precisamente
c o m a p r o s ó d i a p a r t i c u l a r d a v o z m a t e r n a - F r e u d teria p o d i d o
sair d o i m p a s s e e m q u e se e n c o n t r o u e n t r e u m a p o i o m u i t o a n c o r a d o n a fisiologia e u m a u t o - e r o t i s m o i n a t o , i s t o é, e x c l u i n d o
o O u t r o . T a l v e z ele t i v e s s e t i d o a i d é i a o u v i n d o o p o e m a d e
Heinrich
Schütz:
0
nomem
In
ore mel, in aure
In corde
Tuum
Jesu,
In aeterno
Oh
nome
Mel
na
E
cibus
dulcisseme
nomem,
in ore meo
de J e s u s ,
boca,
nos
alimento
da
alma
ouvidos
coração
que t e u nome,
para
Jesu
portabo
verdadeiro
melodia
em meu
por isso
Levarei
animae
melo
laeticia mea
itaque
Alegria
verus
eempre
em
doce
minha
Jesus,
boca
•
R E F E R Ê N C I A S BIBLIOGRÁFICAS
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vient
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NOTAS
* Ú n i c o t e x t o em q u e F r e u d (1973) a b o r d a l o n g a m e n t e o p a p e l d o o u t r o
assegurador na c o n s t i t u i ç ã o d o a p a r e l h o p s í q u i c o d o bebê.
^ O que significa que p o d e r i a haver o u t r o s níveis além d o visual.
^ Talvez ousar e m a n c i p a r a experiência de satisfação p u l s i o n a l da experiência
de satisfação da n e c e s s i d a d e fosse u m passo de r u p t u r a c o m F r e u d q u e ele
n u n c a deu.
^ B. de Boisson Bardies c o n t a t a m b é m que os bebês s u b m e t i d o s à escuta de
u m p o e m a d u r a n t e os ú l t i m o s meses da vida fetal d i f e r e n c i a m esse p o e m a .
Eles o preferem a u m o u t r o , n ã o o u v i d o , a i n d a que seja a voz de sua mãe
que o lê. Eles preferem o p o e m a que eles c o n h e c e m , a i n d a que seja u m a voz
f e m i n i n a d e s c o n h e c i d a q u e o lê. Eles são até m e s m o c a p a z e s , s u g a n d o de
m o d o p a r t i c u l a r , de o p t a r pela fita d o p o e m a c o n h e c i d o em d e t r i m e n t o daquela c o m a voz da m ã e . V e m o s p o r t a n t o q u e , desde o n a s c i m e n t o , a voz
da mãe n ã o é o ú n i c o d e t e r m i n a n t e acústico em jogo, mas t a m b é m algumas
c a r a t e r í s t i c a s das cadeias s i g n i f i c a n t e s p r e v i a m e n t e o u v i d a s . V e r e m o s que a
p r o s ó d i a t a m b é m tem, de i m e d i a t o , u m papel p r e p o n d e r a n t e .
T r a t a - s e de u m a " l a p a r o s c h i s i s " g r a v e q u e n e c e s s i t o u de seis m e s e s de
i n t e r n a ç ã o e de algumas intervenções cirúrgicas
^ Situação que ainda persistia n o m o m e n t o em que esta apresentação foi feita, t e n d o M a r i a n n e 14 meses. Foi apenas a p a r t i r de 28 meses que ela p o d e
se a l i m e n t a r exclusivamente pela boca.
^ Esse h o s p i t a l está e q u i p a d o p a r a q u e os pais p o s s a m estar c o m os bebês
desde o i n í c i o . E n t r e t a n t o , há p r o g r e s s o s a fazer; graças à sua e x p e r i ê n c i a
pessoal e à sua p r o f i s s ã o , os pais de M a r i a n n e e s p e r a m p o d e r m e l h o r a r o
t i p o de acolhida nesse t i p o de espaço h o s p i t a l a r , para que a relação do bebê
c o m seus pais seja mais bem
favorecida.
Talvez c o m receio de p ô r o p r ó p r i o Freud em perigo r e p r o p o n d o a teoria
d o a p o i o sobre a satisfação da necessidade.
^ Ainda
mais que a pesquisa
de G. R a i m b a u l t
foi e n c o m e n d a d a
pelo
INSERM.
^
N o ú l t i m o p a r á g r a f o A. M e r c i e r (1995) faz a l u s ã o às o u t r a s
cias dos r e c é m - n a s c i d o s
e cita o livro
Nascer
humano,
competên-
de M e h l e r
e
D u p o u x (1990), p r i m e i r o l i v r o a d i v u l g a r em francês os t r a b a l h o s de pesq u i s a dos psicoling'iistas s o b r e os r e c é m - n a s c i d o s , o b r a s o b r e a q u a l já fizemos
referência.
^
Q u e Freud c h a m a Wunschvorstellungen,
representações de desejo.
^
Esta é m a n t i d a p o r Laplanche e Pontalis em seu Dicionário
e c o n t a com
a a p r o v a ç ã o da m a i o r i a dos a u t o r e s p s i c a n a l i s t a s franceses.
^
M e s m o que o t e r m o " a u t o - e r o t i s m o " n ã o t e n h a a p a r e c i d o a i n d a - pois é
apenas em 1905 que Freud o emprega -, é evidente que a p r ó p r i a n o ç ã o de
p ó l o a l u c i n a t ó r i o de satisfação, que supõe a revivescência de traços m n ê m i c o s
ligados a traços d o O u t r o inesquecível, implica q u a l q u e r o u t r a concepção do
auto-erotismo.
^
Se esse passo foi d a d o p o r autores anglo-saxões, e n ã o p o r autores da es-
cola francesa,
é p o r q u e esta p e r m a n e c e u
m u i t o l i g a d a à i d é i a de
uma
historicidade.
^
O p r ó p r i o Lacan n ã o teve t e m p o de t i r a r c o n c l u s õ e s dessa asserção, que
i m p l i c a u m a revisão c o m p l e t a da teoria d o a p o i o .
^
A pulsão n ã o é mais u m c o n c e i t o c h a r n e i r a entre o biológico e o psíqui-
co, mas u m conceito que articula o significante e o c o r p o , o que não é o organismo.
^
Mas i r e m o s ver q u e é a p e n a s d e p o i s d o t e r c e i r o t e m p o q u e p o d e r e m o s
dizer se há ou n ã o a u t o - e r o t i s m o .
^
Este detalhe é i m p o r t a n t e se q u i s e r m o s d i s t i n g u i r os objetos da satisfação
da necessidade dos objetos p u l s i o n a i s p r o p r i a m e n t e d i t o s .
^
N ã o se t r a t a a q u i de p r a z e r n o s e n t i d o d o princípio
s o b r e t u d o u m princípio
de não
desprazer.
de prazer,
que é

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