Parceiro Só - Eduardo Campos

Transcrição

Parceiro Só - Eduardo Campos
O Parceiro
Só
COLEÇÃO ALAGADIÇO NOVO
COORDENADOR
Antônio Martins Filho
CONSELHO EDITORIAL
Francisco Carvalho
Joaquim Haroldo Ponte
Geraldo Jesuino da Costa
CAPA
Eduardo Campos
MONTAGEM DA CAPA
Assis Martins
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Carlos Alberto Dantas
Eduardo Campos
O Parceiro
Só
Estudos do Ceará e do Nordeste
UFC
Casa de José de Alencar
PROGRAMA EDITORIAL
2000
SUMÁRIO
O CENÁRIO, O HOMEM E AS CONDIÇÕES
PRÉ-MOTIVADORAS DA AÇÃO DO DNOCS — 11
INSTANTES INICIAIS DA LUTA CONTRA OS EFEITOS DAS SECAS –
AS ARMAS TÉCNICAS / E OS HOMENS DESSA ESTRATÉGIA –
A ARRANCADA DE 1932 — 29
OS NOVOS DESAFIOS – A PREOCUPAÇÃO ECONÔMICA COMEÇAM
OS TEMPOS DO BNB.CHESF, CVSF E SUDENE. AS SECAS DA
DÉCADA 1950-59 — 65
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS E POLÍTICOS DO PODER
LEGISLATIVO NO CEARÁ
(IDÉIAS E CIRCUNSTÂNCIAS) — 93
ANTECEDENTES SOCIOPOLÍTICOS À AÇÃO DA JUSTIÇA DO
TRABALHO DO CEARÁ
(IDÉIAS E CIRCUNSTÂNCIAS) — 149
CONHECIMENTO POPULAR
(DA FAUNA DO NORDESTE DO BRASIL) — 191
A PRESENÇA DE SERES FANTÁSTICOS E FORMIDÁVEIS; AS
CRENÇAS, BICHOS E PRESSÁGIOS — 211
DOS TRÁCIOS AOS ENCOURADOS VAQUEIROS DA CAATINGA.
MAGIA E PARTICIPAÇÃO DA FAUNA NO QUOTIDIANO — 229
A ATIVIDADE PESQUEIRA, OS HABITANTES DAS AGUAS E O
FANTÁSTICO DO MUNDO AQÜÍFERO — 257
A ESTRATÉGIA DO CAÇADOR. O EXERCÍCIO DA PESCA E DA
CAÇADA PELO ÍNDIO E O SERTANEJO — 277
PALAVRAS DO EDITOR
SOMAM-SE aqui, para privilegiar o leitor, quatro substanciosos ensaios assinados por Eduardo Campos. É dizer pouco. Melhor referir que se reúnem quatro prospecções
socioculturais de inestimável interesse para a história e tradições do Ceará, a que não falta pertinente digressão de cunho
folclórico sobre a fauna do Nordeste.
Esses ensaios (ora enfeixados em volume independente, certamente concorrerão agora para facilitar o acesso de pesquisadores e estudiosos dos temas nordestinos), originariamente
foram editados em parcerias honrosas a abrir os textos de valiosas publicações, quais o “DNOCS, O Novo Nordeste”, 1985
(Ministério do Interior, Brasília); “O Legislativo Cearense: 150
anos de atuação”, 1986 (Editora Stylus, Fortaleza);: “Contribuição à História da Justiça do Trabalho no Ceará”(Separata da
“Revista do TRT da 7ª Região, números 10 e 11 (1987, 1988) e
“Fauna do Nordeste: Conhecimento Cientifico e Popular”, 1995
(Banco do Nordeste do Brasil, Fortaleza), os dois primeiros em
parceria com os historiadores João Alfredo de Sousa Montenegro,
o terceiro com os já citados e mais o professor João Hipólito
Campos de Oliveira, e o último em companhia do zoólogo
Melquíades de Pinto Paiva.
Conquanto centrados ora na rememoração da longa
trajetória do DNOCS, ora a enfatizar os primórdios do desem-
penho legislativo do Ceará, ou a elucidação dos caminhos
iniciais do percurso do direito laboral entre nós, e, ao final, a
deter-se em lúcida e curiosa interpretação do folclore nordestino, inspirado na fauna e moldura ecológica em que nos
inserimos nessa região. Eduardo Campos é copioso no levantamento de preciosos dados a respeito dos temas estudados,
contribuindo com as suas idéias de investigador bem nutrido
de informações, e, quase sempre, de modo bastante pessoal,
para a melhor compreensão da natureza de que somos feitos
homem e coisas do Nordeste.
Por tudo isso, que não nos parece pouco, acreditamos
valiosa a iniciativa da presente edição, de cunho nitidamente
educativo e cultural.
1
A AÇÃO DO DNOCS
(NA DIMENSÃO DO PASSADO)
O CENÁRIO, O HOMEM E AS CONDIÇÕES
PRÉ-MOTIVADORAS DA AÇÃO DO DNOCS
A IDENTIFICAÇÃO correta dos fatores que concorrem para
desestabilizar a economia e a vida dos que se vulneram à ação
cíclica da grandes estiagens, só em época mais próxima do
nosso tempo, contribuiria para exprimir a conscientização das
responsabilidades assumidas pelo mecanismo administrativo em
favor do Nordeste, território geográfico com 1.542.271 km2,
dos quais 950.000 estão hoje incrustados no chamado Polígono
das Secas, onde vivem 21.711.161 pessoas.1
Nordeste, no dizer de Gilberto Freyre vocábulo desfigurado pela expressão “obras do Nordeste”, que significa:
“obras contra as secas”, acabando por conceituar “sertões de
areia seca”, de “paisagens duras”, e “mandacarus” e animais
“angulosos”.
A essa imagem apreendida pelo tempo, e se crescente,
formada pelo sofrimento do povo, antagoniza-se a outra face
do antiecúmeno sáfaro; o das “árvores gordas, de sombras
profundas, de bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredondada quase em sanchos-panças pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e
sempre o mesmo, pela opilação, pela aguardente, pela garapa
de cana, etc., etc.”2
1
2
Conf. IBGE, 1980.
Gilberto Freyre, “Nordeste”, Rio, 1937, p.21.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
11
Pretendido assim esse território particularizado na paisagem de massapê, terra visguenta, gulosa de água,
encharcadora, que se estende da área do Recôncavo, do
Maranhão, centrando-se em território pernambucano.
Mas em rigor o Nordeste não está só na região mencionada pelo sociólogo; existe, com ilhas de verdumes, de abastança inesperada, em vários pontos da cercadura ecológica
em que se inserem os largos espaços do semi-árido do Polígono
das Secas como sucede no Ceará, a exemplo, representado às
vezes por pronunciamentos orográficos não de raro elevados
a 800 metros sobre o nível do mar.
Tem considerável contributo no regime clínico do Nordeste as projeções montanhosas, cujas precipitações são fatores importantes “sobre os totais pluviométricos”, circunstância
que “acaba por tornar a distribuição da duração do período
seco muito complexo”.3
Ainda sob análise científica, “as saliências locais do
relevo abreviam o período seco, enquanto as depressões o
prolongam, mesmo tratando-se de topografia cujos acidentes
não sejam muito importantes do ponto de vista morfológico...”
Enquanto na área do Raso da Catarina (Bahia) decorrem de 10 a 11 os meses secos, e em outras depressões estes
baixam até o total de 7, Guaramiranga (Ceará) “não possui
um mês seco, quando sua área circunvizinha apresenta sete...”4
Na verdade são vários os Nordestes, se o entendemos
pelas diferenciações de suas regiões fisiográficas, nem sempre amenas, que ásperas são, e contundentes, ou brutais, como
as contemplou J. Tricart, caracterizando sob essa designação
pouco amável mas bastante severa a zona da mata, a zona
do agreste e a zona do sertão – esta a que patrocina e conceitua
3
Edmon Nimer, “Climatologia da Região Nordeste do Brasil”, in: Vingt-un Rosado “Quarto Livro das Secas”, Col. Mossoroense, vol. CLXXXV, 1982, p. 179.
4 Edmon Nimer, op. cit., idem.
EDUARDO CAMPOS
12
mais demoradamente a geografia humana da Região, onde
os chãos têm pedagogia própria de existência, compatibilizada
com as alternâncias do clima, do qual decorre sua “vegetação
xenófila, em grande parte endêmica, fruto de uma longa adaptação, que é ela também um sério argumento era favor de
uma relativa estabilidade das condições paleoclimáticas”.5
É imperioso aprender a conviver com as disparidades
do regime6 pluviométrico de Região, onde a “desigualdade
na repartição das chuvas durante o ano assume “(...)” feição
das mais contrastantes do mundo ...”7
A insuficiência de chuvas, a distribuição desigual destas, em anos calamitosos, predispuseram o homem a adotar
estratégia de resistência. Desse modo, em estágio primitivo,
sucedia com os índios que, apercebidos da importância d’água,
diligenciavam represá-la8 , preocupação que não esmorece.
Quer-se a medida por instintiva, comum a outras expressões
geográficas que, amiúde, experimentam a escassez prolongada de recursos hídricos.
O habitante do semi-árido mais áspero e adusto que
possa existir possui qualificação sobremodo pertinente para o
terreno em que pisa: “solo de pedra”, qual o da caatinga do
Rio Grande do Norte, que apura sob solo de schistos cristalinos (gnaiss, schistos micáceos, anfibólicos e cloríticos) e
metamórficos (quartzitos, schistos micáceos, argilosos e
calcáreos e rochas eruptivas maciças (granitos, dioritos, etc).
Terreno vocacionalmente inclinado a apressar o escoamento
desembaraçado das águas, de que resulta a retenção de parte
5
J. Tricart, “As zonas morfoclimáticas do Nordeste”, In: “Sétimo Livro das
secas” Coleção Mossoroense, Vol. CCX, 1983, p, 58.
6 Edmon Nimer, op. cit., idem.
7 Tomaz Pompeu Sobrinho, “História das Secas” (Século XX), 2. ed. Coleção
Mossoroense, Vol. CCXXV, 1982, p, 76.
8 Orville Dcrby, “Aspectos do um problema econômico”, in: Joaquim Alves, “H
(Séculos XVII a XIX)”, Coleção Mossoroense, Voi. CCXXV, 1982, p. 133.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
13
“relativamente pequena”, destinada a manter fontes e cursos
d’água perenes”.9
Outro tipo de solo do Nordeste seco é o das chapadas,
formado por sedimentos arenosos, argilosos e calcáreos, de
fraca consolidação.10
A caatinga desolada, no agudo da adustão, é “formação vegetal aberta, com grandes manchas de rocha ou solo
nu, tanto maiores quanto mais seco é o clima, ou quanto
mais degradada a área pelo homem. Tudo isto colabora para
favorecer o escoamento superficial, fato especial de região
xerófita. As gotas das chuvas torrenciais, violentas, batem no
solo, principalmente porque este ficou dessecado durante
meses”. O escoamento se processa, inevitável, transformando-se em enxurros, cuja “possível concentração fica impedida
pelos arbustos com raízes profundas demais para serem derrubados...” A areia então se desprende, desce carregada pelas
águas; é retida, desce novamente, e outra vez é presa pelos
mesmos obstáculos. Sucede um desce-pára-desce-pára caprichoso, enquanto a lama, diferentemente, chega fácil “aos pés
das escarpas e transportada para fora pelas correntes”.11
Numa cercadura de limitações não apenas de caráter
ecológico e geográfico mas de débil economia sob a tutela de
coronelismo oligarca a que não faltam as manifestações de
mandonismos e o patrocínio confesso a clientelismo privilegiado, o Nordeste desses dias – e até por muitos anos depois –
está representado sociofisiograficamente pelos Estados do
Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Esta fase só recentemente começou a ser estudada com
mais profundidade, e custa crer se houvesse demorado tanto
9
Idem, Idem.
J. M. Mabesoone, “Ambiente semi-árido do Nordeste Brasileiro” (1. os rios
efêmeros). in Vingtun Rosado, “Nono Livro das secas”, Col. Mossoroense, Vol,
CCLXXXV, 1983, p. 238-239.
11 José Octávio, “A Revolução estatizada”, Paraíba, 1984, p.170.
10
EDUARDO CAMPOS
14
a surpreender aqueles detalhes que interferem na Região, com
defeitos e qualidades, para, ao final, restarem mais os últimos
do que os primeiros.
Estágio que amadurece pelos anos 20 quando o Nordeste é marcado “por tensões econômico-sociais, culturais,
militares e, educacionais” 12 e o “segmento políticoinstitucional” não podia continuar à margem da passagem
do tradicional para o que, vindo, com sabor de inovação,
moderniza. Vai surgir, desde então, o “Nordeste como Região não geográfica, mais social e culturalmente considerada” 13 . São os tempos da “consciência publicizante”,
identificada por Rafael Corrêa de Oliveira”, associada ao
modernismo literário e, principalmente, as obras contra as
secas (grifamos), capazes de acelerar a introdução da economia assalariada no sertão, através da evolução de suas
forças produtivas”, fato que se concretizará, como observa
Otacílio Queiroz14 , “indiretamente com o engenheiro, o técnico de caminhão, o cassaco, a rodovia, a estrada de ferro,
o cinema, a luz elétrica, o milagre, enfim, realizado até
perdulariamente pela antiga Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas, a IFOCS, que terminou por afugentar o
cangaceiro, alterar hábitos e costumes de toda a região,
aproximando o sertão do litoral”. E mais: o valor da água
represada, para acudir o homem, fez com que os mais habilidosos permutassem a enxada pelo comando de alavancas
e direção de máquinas – de guindastes e de rolos compressores, a erigir barragens, tornando-as úteis na interceptação
de córregos e riachos.
As mazelas desse crescimento são nefastas à Região,
como o coronelismo de empreiteiros fantasmas, ganhando
12
13
14
José Octávio, op.cit., idem.
Idem, p.170 – 171.
Idem, pp. 266-267.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
15
açudes que “simplesmente não existiam” e estradas que
nada mais eram que “picadas apressadamente abertas no
mato”15
Nesse clima de afirmações, que clamam respeito, e de
erros ou vícios tutelados pelo interesse político, não se pode
deixar de também considerar, por outro lado, a precariedade
dos sertões, os empecilhos à marcha para dias melhores, condições desanimadoras que o Governo enfrentará com ajuda
da Inspetoria.
Temos de nos impor à avaliação e compreensão do
nível econômico, político e social dessa época, o que alcança
os começos do século atual; as dificuldades tangenciantes ao
seu precário processo de desenvolvimento, vinculado a condições de quase nenhum estímulo e aguardado progresso –
mas só aguardado –, postulado ou entrevisto pelos mais letrados ou inovadores natos, inesperados, como Delmiro Gouveia,
para se poder dimensionar os desafiantes anos iniciais, vividos pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
(DNOCS).
Assim, quem demandava os sertões, percebia e experimentava a impraticabilidade dos caminhos. No Rio Grande
do Norte, as estradas faziam-se por “altos pedregosos, que os
melhores terrenos” os resguardavam os agricultores para plantações e pastagem.16 Quem fosse a Piancó (PB), em “50 quilômetros de caatinga” teria de lutar para obter água, sendo
quase nula a existência de habitações. De Crato até Sant’Ana
(CE), numa distância de 7 léguas apenas encontraria o viajante uma única morada distante das duas povoações, obrigados os seus moradores a buscarem água quatro léguas
15
Phelippe Guerra e Theophilo Guerra, “Seccas contra a Secca”, Col. Moss.,
vol. 29 (Edição Facsimllar), p. 144.
16 Philipp von Luetzelburg, “Estudos Botânicos do Nordeste”, Col. Moss., Vol.
CLXVI (Edição Facsimilada s.d. pp.46-68).
EDUARDO CAMPOS
16
adiante...17 No Ceará, como de resto na Paraíba e Estados
limítrofes, foi ato de perseverança e heroísmo (anotam os
observadores) o se levar máquinas e até operários para os
locais de obras públicas.
A única indústria referida, então, é a da pecuária ou
indústria pastoril, tida por indústria agrícola com bastante ênfase pelas autoridades.18 A maquinaria disponível resumia-se
a locomóveis instalados precariamente, valendo dizer que,
no Ceará, a adoção dos movimentados a vapor ocorreria pelos ano 7019 , tempo em que as posturas municipais aludem
pela primeira vez às “prensas de algodão a vapor”, para efeito de tributação.
Aos 20 anos deste século, o Ceará não possuía mais do
que 80 motores acionados a vapor; 3 a água (no Cariri) e 1
apenas, solitário, a querosene, instalado e funcionando em
Pentecoste. A indigência motopropulsora é comum a outros
Estados nordestinos não se livrando nem mesmo Pernambuco,
favorecido pela indústria do açúcar, onde as condições poderiam ser mais técnicas, e, no entanto, quanto a esse aspecto,
pouca vantagem tinham para apresentar.
As próprias caldeiras a vácuo, de aproveitamento mais
racional, que começariam a ser utilizadas na Europa na
17
José Octávio op. ct. p.214. Têm-se aí trechos de mensagens dos presidentes,
paraibenos Suassuna e João Pessoa notadamente deste último, na Abertura da
2a Reunião da décima legislatura da Paraíba, em 1925: “ ...tenho dispensado à
agricultura e as nossas indústrias agrícolas toda a proteção autorizada por leis
do Estado”.
18 Eduardo Campos “Procedimentos de Legislação Provincial do Ecúmeno
Rural e Urbano do Ceará”, Secretaria da Cultura e Desporto, Fortaleza, 1981,
refere o assunto citando, nesse sentido, Resolução no 1.818, de 1o de fevereiro de 1879. (p.45)
19 Thomaz Pompeu Sobrinho, “Retatório dos Trabalhos Relativos ao ano de
1918” (datilografado), p. 106 (Acervo da Biblioteca Pública Governador Menezes
Pimentel, de Fortaleza).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
17
década 1850-59 (já eram mencionadas nas grandes exposições internacionais a partir de 1851) só teriam melhoramento introduzido naquele Estado pelos anos que vão de
1870 a 1879.
Daí a pasmosa ausência de gente habilitada para o manejo de motores e equipamentos, quando, em trabalho pioneiro, adentram a região as turmas precursoras identificadas com
as chamadas Comissões, Inspetoria de Obras Contra as Secas
(IOCS) e Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS).
Raros os serralheiros, funileiros, soldadores, mecânicos, maquinistas e, mais raro ainda, as oficinas especializadas.
Thomaz Pompeu Sobrinho se queixava amargamente
da exploração dos serviços de fundição e serralheria feitos
em Fortaleza, a deplorar a “falta de uma oficina mecânica e
fundição de ferro e bronze”, em 1914.20
O DNOCS, desde os primeiros momentos de sua atividade, em fase precursora desenvolvida pela IOCS, depois
pela IFOCS, de permeio com as Comissões, sempre animou à
vocação de servir, sob urgente necessidade de estudar, pesquisar
e diligenciar solução para problemas e desafios que hoje perseveram.
Não está, no entanto, sua trajetória – a de ontem mais
que a de hoje – isenta de falhas. Critérios operacionais a
dado instante, à falta de recursos e de gente mais adestrada,
não alcançam resultados satisfatórios.
Nem sempre os que estavam à frente da Repartição puderam evitar a concretização de obras que, na realidade, apenas
serviam aos proprietários das terras; estradas que beneficiam mais
a fazendeiros do que aos moradores de povoações, gente ansio20
Em 1914 a inspetoria autorizou dentre outros o açude “Bethania’ do Dr José
Pompeu Pinto Accioly, obra nitidamente política. O açude tinha 4 metros de
profundidade e capacidade de 54.310m3. (Cf. Thomaz Pompeu in: “Relatório
dos trabalhos relativos ao ano de 1914”, p. 7).
EDUARDO CAMPOS
18
sa por acesso as cidades maiores; açudes construídos do mesmo
modo, imperando o tráfico da influência política.21
Mas no todo – compreendidos na avaliação os anos de
trabalhos pioneiros, ora da IFOCS, ou de pretéritas Comissões –
ficou saldo bastante positivo a favor do DNOCS em sua obstinada tarefa de lutar para prevenir e combater as secas.
Da fase de eleição da água – motivo que durante
anos foi prioritário para a Repartição –, às últimas décadas,
assiste-se a avanço em direção ao homem, que, de verdade,
por destinação social, específica, se sobrepõe à natureza
redimida, ou por se redimir; – a açudes, a canais de irrigação, a águas piscosas, a atividades florestadoras –, usuário
privilegiado deste mundo, a quem se devem, mais do que
nunca, conhecimentos atualizados de defesa e luta, indispensável à sua sobrevivência.
REMEMORE-SE: até a meia centúria passada, para atender os habitantes das províncias do Norte em suas crises climáticas, como ocorrera antes em 1827, o Governo Imperial
tentava remediar ou consertar “os males da fome”
subministrando às administrações provinciais sementes de canais, para as distribuírem às Câmaras; providência que iria se
repetir em 1846, acrescida da ordem para serem supridos “os
cofres das Províncias do Ceará, com 40 contos de réis; do Rio
Grande do Norte, com 20 contos, e da Paraíba, com 30”, (...)
“durante os exercícios de 45/46/46/47/48”.22
Para os anos do último quartel de século, a 19 de junho de 1877, o povo se informava pela Fala do Trono, de
que o Governo, “auxiliado pela caridade particular, tinha acudido às populações com gêneros alimentícios e autorizava ao
mesmo tempo os presidentes a despenderem o que fora ne21 Pinto de Aguiar, “Nordeste, o drama das secas”, Rio, 1983, p. 56, conforme
“Coleções de Leis do Brasil (1827, 1846).
22 Max Flelus, “História Administrativa do Brasil”.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
19
cessário para aliviar os sofrimentos das classes mais necessitadas, e estudar os meios de prevenir, quanto fosse possível, os
graves efeitos desse mal de que periodicamente eram vítimas,
com especialidade, as províncias do Norte”23
Na abertura da Assembléia, a 15 de dezembro de 1878,
S.M.R. ocupa-se novamente do problema, a relatar que o
“flagelo da seca devastava havia quase dois anos uma parte
considerável do Império; para minorar as conseqüências de
tamanha calamidade, tinha o Governo empregado os meios
a seu alcance, fazendo remessas de gêneros alimentícios e
fornecendo trabalho”.
No ano seguinte, a 3 de maio, o Imperador alude aos
nocivos efeitos da calamidade e à “mudança da condição e
hábitos da população”, combatidos pelo Governo, assim como
a manifestações criminosas, contanto “fosse mantida a segurança individual e respeitada a propriedade”.24
“Pelos dias 30 de outubro desse ano, voltava a deplorar a não cessação total dos efeitos da seca, a insistir em
declarar que o Governo continuava a cumprir “um preceito
constitucional humanitário”, não se descuidando de providenciar socorros e cuidados para estarem bem fiscalizados os
dinheiros públicos empregados.25
O problema haveria de se repetir em desafio que, às
vezes, se entendia não mais suceder... e dava de ocorrer a
aumentar as aflições do nordestino que, nesses momentos
desfavoráveis, resiste lutando no próprio meio que lhe é
hostil ao faltarem as chuvas, ou emigra, desertando dele,
circunstância que atua sobre o seu espírito injuriado, de tal
forma, que passa a se reger, em suas rememorações, por
calendário especial. A rigor, dá-se com ele comportamento
23
Idem, p, 339.
Idem, p, 340.
25 Cf. pensamento de E E. Evans-Pritchard, citado por Dirceu em, Rio, 1983, p 22.
24
EDUARDO CAMPOS
20
análogo ao de sociedades primitivas26 , sensível ao tempo
ecológico, tal a influência que recebe do seu ecossistema.
O tempo, para o sertanejo, tem limitações ditadas pelo próprio ecúmeno: – é de pouco alcance espacial, indo
preferentemente suas marcas a anos secos, ásperos, ou aos
de grande inverno (entendido por estação das águas), em
sua semântica designado por “seca d’água”.
Daí o conceito até certo ponto intempérico dessa contagem de tempo em sua história: “Os mais velhos, perecendo,
consolidam a grei de quantos, daí por diante, só serão
relembrados por circunstâncias de referencial histórica: “perdi
o pai, no 15” - “Minha mãe morreu, não agüentou o repuxo
de 58" – “Minha irmã se foi no inverno de 24”.27
Primitivos habitantes desses espaços, mais do que o
colonizador, sentiram agruras e desafios impostos pelos caprichos do clima.
Foram eles que, a empenho de não sucumbirem, desprovidos da noção do direito de propriedade, quando lhes
fazia falta a caça, falhando as chuvas, consideraram os gados,
em pastejo, bem comum a todos, qual dádiva da natureza.
Decorreria daí, pelo último quartel do século XVII, a
imperiosa necessidade de o colonizador, manu militari,
aplacar a insidiosa ação da indiada de corso, devastadora
de fazendas, destruidora de gados, e até eliminadora de
pessoas.28
Com o fluir dos anos, aumentando a população, iamse repetir, recrudescendo, os mesmos episódios desafiantes
da instabilidade social que se nutre nas grandes estiagens. O
índio, sob essa motivação, simplesmente seria empurrado para
mais longe, enquanto a fome, mais obstinada do que o siste26
27
28
Eduardo Campos, “A viuvez do verde”, Fortaleza, 1983, p.84.
Joaquim Alves, op.cit. p. 36.
Idem, Idem, p. 42.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
21
ma defensivo do colonizador, fará persistirem os tradicionais
abusos à propriedade e às gentes.
É então a vez do “mestiço aliado ao português sem
haveres, que só encontrava um recurso para sobreviver à fome
– recorrer ao assalto, ao crime, praxe que se repetiu em todas
as crises climáticas”, como o mencionam Falas e Relatórios do
Império e Províncias.29
Mas não se infira que para atender o Nordeste, passado o agudo das crises, ficassem os cuidados nos pronunciamentos do Imperador, a quem se atribui, a dado instante,
compunção caritativa e melodramática em frase inserida no
anedotário histórico: “Quando o Tesouro não tiver mais dinheiro para socorrer as vítimas da seca, eu empenharei as
jóias da Coroa”.30
Mesmo na fase paternalista ou assistencial, como querem os observadores do interesse oficial pelo Nordeste de
então, não deixam de ocorrer dlsposições e intenções práticas, como a do episódio da visita do naturalista Louis
Jacques Brunet à Região, particularmente a Pernambuco,
Paraíba e Rio Grande do Norte, pelos anos 50, coincidindo
com os Avisos de 8 de novembro de 1848 e de 6 de julho
de 1850, aos quais responderiam os vereadores do Apodi
(RN) em agosto de 1951, em sessão do dia 6 de junho de
1853, informando e sugerindo: “Como porém as vistas benéficas de S.M.I.” (...) “tinham por fim também não somente o reconhecimento das causas das secas, como dos meios
que mais profícuos forem para extinguir, ou ao menos minorar a calamidade dela, esta Câmara pela própria experiência, e pelas de todos que sabem o que é uma seca, está
autorizada a informar a V.Exa., que nenhum meio pode
29
Rodolfo Teófilo, “A seca de 1915”, Fortaleza, 1980, p.69.
Vingt-un Rosado – Antonio Campos e Silva, “Louis Jacques Brunet – naturalista viajante”, Coleção Mossoroense, Série C., Vol. 30, 1973, pp. 78-83-84.
30
EDUARDO CAMPOS
22
ser mais profícuo do que os Açudes ou grandes receptáculos, que conservem água por 3 e mais anos de seca, disseminados pelos municípios, nos lugares mais aptos para a
vegetação, onde se refugiem (...) não somente o povo,
mais ainda muito gado...”31
Missões especiais (duas Comissões, uma em 1859 e
outra em 1877) visitaram o Ceará, considerando o problema das “províncias do Norte”. A primeira, Científica da Exploração, muito bem constituída, mas insatisfatória em seus
propósitos e resultados; a segunda, criada por proposta do
Instituto Politécnico, chegaria a Fortaleza a 13 de janeiro
de 1878, integrada dos drs. Júlio Pinkas, Alfredo José Nabuco
de Araújo Freitas, Ernesto Lassance Cunha, Henrique Folgare,
Adolfo Schwars e Limpo de Abreu, em decorrência da quadra angustiosa de 1877, que abalara os sentimentos da Corte.
Considerou-a Thomaz Pompeu Sobrinho, o “primeiro passo na luta contra a seca, em que o Governo pretendeu
empenhar-se”, juntando a esta apreciação uma outra com
merecimento aos resultados obtidos, qual o de propor “a
construção de açudes de todas as dimensões, o prolongamento da via férrea de Baturité, a instalação do observatório metereológico, a construção de um canal para derivação
31
Ao tempo do Brasil Colônia, já o ouvidor da Câmara do Crato, Dr José
Raimundo do Paço Por Bem Barbosa lembrava a Câmara de Jardim, (CE) “a
necessidade de se reclamar de Dom João VI a contrução do canal do São
Francisco”. Marco Macedo, na Ceará, em l859, Henrique Beaurepaire Rohan,
em 1860, – o primeiro a favor e o segundo contra –, ocuparam-se do assunto,
Em 1912 a IFOCS providenciaria estudos topográficos da região. Publicação
no 37, Série II, M. da Inspetoria decide pela impraticabilidade do canal. Em
maio de 1959, o então Diretor, do DNOCS considera injustificável a obra. No
mesmo mês o Eng. F. J. da Costa Barros, com igual espírito, escreve artigo no
BOLETIM do DNOCS, Em 1982 o ministro Mário Andreazza retoma, com
entusiasmo, a idéa já convertida em projeto e sob o interesse de financiadores internacionais Cf. J. Colombo de Souza, “O Nordeste e a Tecnocracia
da Revolução”, 1981, p 60, Separata do Boletim do DNOCS, n. 4, vol. 19, maio
de 1959, reimpresso em 1981.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
23
do rio S. Francisco32 para o Jaguaribe, a perfuração de
poços artesianos e arborização”.33
Terceira Comissão – a chamada “comissão de engenheiros” – que visitou o Ceará, ponto mais vulnerável de
então do Nordeste seco –, em 1881, sob a direção de J. J.
Revy, culminaria com a indicação da construção do açude
Quixadá (atual Barragem do Cedro).
O projeto inicial, de 1882, concebera-o aquele engenheiro. Não foi executado imediatamente. Aguardou sete
anos, tempo em que lhe seriam acrescentadas modificações para a construção, iniciada em 1890. As obras dessa
barragem enfrentariam inúmeros contratempos, e só se concluiriam em 1906, com o Ceará recém-saído dos flagelos
de 1900 e 1903.
Haveria de se renovar mais vezes o procedimento já
tradicional de ajuda aos nordestinos, o de “se aguardarem as
conseqüências dos verões prolongados para as enfrentar com
o exercício da caridade e medidas de emergência”.34
E a essas eventualidades, ao modo da burocracia da
época, constituir-se-iam outras comissões, qual a criada por
portaria do ministro Lauro Müller (Comissão de Açudes e Irrigação), sob chefia do engenheiro Piquet Carneiro e sediada
em Fortaleza; Comissão de Estudos e Obras Contra os Efeitos
das Secas, dirigida pelo engenheiro José Matoso Sampaio Correia, e, finalmente, a Comissão de Perfuração de Poços, “a
cargo do Engenheiro Pereira Reis, estas no Rio Grande do
Norte. À margem ficavam desta vez as necessidades da
Paraíba”.35
32
Thomaz Pompeu Sobrinho. “O Problema das Secas”, 2. ed. Fortaleza, 1920, p. 5.
Naylor Bastos Vilas Boas, “As obras contra as secas no lmpério e no primeiro período republicano”, in: BOLETlM IFOCS, 7 (2), abril-maio, 1937, p. 94.
34 Idem, Idem.
35 Idem, p. 95.
33
EDUARDO CAMPOS
24
Ao inaugurar-se o açude Quixadá, em 1906, aludidas
comissões fundir-se-iam, por ato do mesmo ministro, na Superintendência de Estudos e Obras Contra os Efeitos das Secas, sob os cuidados gerais do engenheiro Antônio Olinto dos
Santos Pires.
No Governo do presidente Afonso Pena, o ministro
Miguel Calmon suprimiria essa “superintendência e dava outras instruções à Comissão de Açudes e Irrigação”, novamente
dirigida por Piquet Carneiro, menos em seus últimos dias,
quando passou o cargo ao engenheiro Ayres de Souza, ficando com aquele o açude “Quixadá”.36
A história da “motivação das obras contra as secas”
guarda compreensível cronologia subordinada à “teoria de
desafio-proposta”, modelo de sistematização da trajetória do
interesse público em favor do Nordeste, concebido por F.
Alves de Andrade.37
Não faltam razões ao analista apreendido nesses faustos.
Até os que não se animam a estudar e entender as
pecularidades da longa caminhada do Governo em direção
aos problemas do semi-árido, caracterizados antes nas chamadas províncias do Norte (Ceará, Rio Grande do Norte e
Paraíba), acabam por descobrir que o DNOCS (latente em
vários organismos administrativos que o precederam) viabiliza
cuidados que o fazem, de direito, ocupante de espaço dos
mais representativos nessa estratégia, em todos os tempos.
Ultrapassada a fase humanitária, como propõe F. Alves
de Andrade, etapa inicial expressável pela comiseração e
paternalismo assistencial dos governos; vencida a fase do reconhecimento, que se projeta com os trabalhos desenvolvidos pelas Comissões de 1859 e 1877, é alcançado o terceiro
36 F. Alves de Andrade, “Ensino e Desenvolvimento das Ciências Agrárias no
Nordeste (Ceará. 1915-1978)”, BNB, Fortaleza, 1979, p. 47.
37 Idem, p. 48.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
25
estágio, o da integração e sistematização de estudos e obras,
verificável ao surgimento da IOCS, que se efetiva administrativamente pelo Decreto no 7.619, de 21 de outubro de 1909.38
De 1909 aos anos iniciais da década 1930-39, ocorre o
que F. Alves de Andrade explica como “fase de diferenciação”, predomínio do IFOCS.
Nesse período, modernizam-se os instrumentos de combate ao flagelo, a partir do estabelecimento de infra-estrutura
conveniente à ação do poder público. Assim, começar-se-à a
assistir à utilização de máquinas de melhor empenho, em
substituição às vigentes, convencionais e até obsoletas.
Para longe vão ficando os dias de bovinos tracionando
couros curtidos, de arrasto, no transporte de barro para a
construção de paredes dos açudes de terra39 ; ou de jumentos, para igual função, aproveitada ainda a ação de seus cascos para o apiloamento das paredes, providência mais tarde
efetuada com malhos de madeira, martelos pesadões, manejados por operários.
Distanciam-se os dias em que os sertões não sabiam o
que era automóvel nem caminhão; estes, breve, seriam adquiridos pela IFOCS, assim como máquinas de maior rendimento de trabalho; locomotivas Baldwin, logo incorporadas à
vida das grandes barragens públicas em construção, e de uma
vez só importadas 77, acompanhadas de 428 vagões.40 Deixariam de ser novidade os motores de 35 HP a querosene. Ia
consolidar-se o uso da máquina de mais recursos dinâmicos,
e, para isso, registre-se a tempo, concorria a influência de
firmas estrangeiras contratadas para a construção de açudes
no Nordeste, como o Poço dos Paus, em cujo canteiro de
38
Phelipe Guerra e Theophilo Guerra, op. cit pp 123-124.
Miguel Arrojado Lisboa, “Introdução ao Relatório dos Trabalhos executados
no ano de 1922”. 1923, Publicação 62, M. V. O. P. ,p 52.
40 Thomaz Pompeu Sobrinho, cf. “História das Secas”, p. 379.
39
EDUARDO CAMPOS
26
obras Dwigth P. Robinson and Co Ltda. instalariam seis caldeiras de 1.200 HP e 4 geradores de 325kw.41
Secundando essa mutação tecnológica, assiste-se então à formação da mentalidade do homem que se insere,
mais bem servido, nesse contexto permanente de luta. Na
verdade, aproximam-se os benefícios científicos, como os de
outras conquistas que, graças à IFOCS, ensejarão visão mais
avançada para o uso da terra, de plantas cultiváveis, de recursos de irrigação, de novas possibilidades da piscicultura, etc.
41 A Tavares de Lyra “As secas do Nordeste”, in: Vingt-un Rosado, “Memorial
da Seca” Col. Mossoroense, vol.CLXIII, p. 41.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
27
INSTANTES INICIAIS DA LUTA CONTRA OS EFEITOS
DAS SECAS – AS ARMAS TÉCNICAS / E OS HOMENS
DESSA ESTRATÉGIA – A ARRANCADA DE 1932
A CADA ESTIAGEM mais dolorosa, evidenciava-se que
para o socorro às vítimas, dando-lhes condições de subsistência e trabalho, combalia-se o erário público, circunstância
que já em 1890 identificava o Ministro da Fazenda, Conselheiro Rui Barbosa: “As despesas com os Estados afligidos
pela seca formam, no orçamento, uma voragem, cujas
exigências impõem, continuadamente ao País, sacrifícios
indefinidos”. Aditava com lucidez: “Cumpre que a política
republicana, apenas consiga desvencilhar-se dos grandes
problemas que envolvem a sua inauguração, busque a
esse problema solução mais inteligente e menos
detrimentosa para os contribuintes”. 42
A inevitabilidade de o poder público se capacitar do
problema, – e de seus custos, robustecia-se a cada calamidade instalada. Não só se tornavam deficientes as verbas como
não eram alocadas com oportunidade, sempre autorizadas
quando a situação das áreas atingidas não conhecia meios
para resistir.
Faltava a constituição de organismo público, capaz de
patrocinar estudos e diligenciar planos de trabalho para os
tempos anormais, compreendido que ocorriam praticamente
42
Paulo Brito Guerra, “A civilização da seca”, Fortaleza, 1981, p. 41.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
29
de modo cíclico. É quando se dá, a partir de 1903, a vigência
da Lei n. 1.145, de 11 de dezembro, primeiro passo para a
formação de Comissões, sucedendo ser a primeira a de Açudes e Irrigação, exarada por uma portaria do ministro Lauro
Müller, a 2 de maio de 1904.43
Importante mesmo, por possibilitar a geração de recursos para as despesas, é o Decreto n. 1.396, de 10 de outubro
de 1905, que dispõe “sobre se despesas a fazer com a construção de obras preventivas dos efeitos das secas que periodicamente assolam alguns Estados do Norte”, cujo art. 29 explicita
a obrigatoriedade do concurso da União debaixo de recursos
oriundos de “fundo especial”.44
Até 1909 vão-se desenvolver estudos e projetos de
obras para açudes que deverão ser construídos na Região,
estudo e projeto de drenagem “nos vales do Maxaranguape,
do Ceará-Mirim e do Cajupiranga”; (...) a limpeza do pequeno Rio de Maxaranguape, em Touros; o Açude Sant’Ana, em
Pau dos Ferros; e uma pequena barragem perto da cidade
de Mossoró. Além de “5 poços instalados em Natal, 2 perfurações concluídas, uma em Natal e outra em Desterro, e
ainda diversas iniciadas e abandonadas em vários pontos
do Rio Grande do Norte, além de construções deixadas em
andamento...”45
O fato mais representativo da época, no tocante a
obras realizadas, do término da construção do açude Quixadá
e, adiante, o do seu “primitivo sistema de irrigação”46 , possi43
Segue-se parágrafo único: “Para que se torne efetivo este concurso devem
ser verificadas as seguintes condições: 1) Prova de que o Estado é periodicamente assolado pela seca; 2) que consigne em seus orçamentos verbas especiais para tais obras, não podendo as quantias voltadas serem inferiores a 5%
de suas receitas anuais”
44 Luiz Carlos Martins Pinheiro, “Notas sobre as secas”, BOLETIM IFOCS 20 (6), p. 71.
45 Idem, idem.
46 Thomaz Pompeu Sobrinho, Op. cit., p. 3.
EDUARDO CAMPOS
30
bilitado mediante ajuda do Governo (art. 49, Lei n 1.145)
que concorria com a “distribuição anual e cada um dos Estados de quantia, no mínimo, de 200:000$000 (duzentos contos de réis).
Do mesmo modo, pela apreensão da natureza dos serviços que seriam diligenciados em favor do Norte, será valioso o Decreto n. 7.619 de 21 de outubro de 1909, quando
presidia o País, Nilo Peçanha.
Surge aí a IOCS – divisão especial do Ministério da
Viação – cujas atividades são regulamentadas para prevenir e
atenuar os efeitos das secas, missão a que se empregaria com
mais ênfase e orientação técnica e científica, efetuando os
“Serviços de estudos e obras”, então determinados:
I – estradas de ferro de penetração;
II – estradas de ferro afluentes das estradas principais;
III – estradas de rodagem e outras vias de comunicação entre os diversos pontos flagelados e os melhores mercados e centros produtores;
IV – açudes e poços tubulares ou artesianos e canais
de irrigação;
V – barragens transversais submersas e outras; obras
destinadas a modificar o regime torrencial dos cursos d’água;
VI – drenagem dos vales desaproveitados no litoral e
melhoramento das terras cultiváveis do interior;
VII – estudo sistematizado das condições meteorológicas,
geológicas e topográficas das zonas assoladas;
VIII– instalação de observatórios meteorológicos e de
estações pluviométricas;
IX – conservação e reconstituição das florestas;
X – outros trabalhos cuja utilidade contra os efeitos das
secas a experiência tenha demonstrado”.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
31
Os serviços descritos são de execução da União “ou
por esta e pelo Estado conjuntamente”, para o que importam
os termos, em vigência, da Lei n. 1905, art. 2o.
Prevista a elaboração de “estudos dos Estados assolados pelas secas, entregando aos respectivos governos cópias
das cartas levantadas, com as indicações dos lugares onde a
construção de açudes e a perfuração de poços artesianos ou
tubulares for conveniente e exeqüível” (art. 5, § 1o).
O auxílio do Governo às obras é “entregue em duas
prestações semestrais” (art. 10). No art. 16 estão os açudes
pela primeira vez classificados em grandes, médios e pequenos, dizendo-se em artigos subseqüentes como deverão ser
assim compreendidos.
Disciplinados igualmente a perfurações de poços, o
traçado das estradas de rodagem “construídas entre os pontos
flagelados e os melhores mercados e centros produtores”, barragens transversais no leito dos rios, drenagem dos vales, instalação de estações pluviométricas e observações
fluviomótricas”. O art. 36 autoriza a distribuição de prêmios
aos indivíduos ou sindicatos agrícolas que construírem açudes médios ou pequenos.
A direção de estradas de ferro não será mais compreendida nas atribuições da Inspetoria de Obras Contra as Secas (art.59).
Vão se seguir anos em que se verá o despertar do
interesse pelo trato agrícola, experiências e estudos, com inovações de ordem técnica, como a da aplicação do “dry farming”
em Quixadá (CE), trabalho proposto por Thomaz Pompeu
Sobrinho e efetivado com a Estação Experimental de Lavoura
Seca, em 1913, secundando o aproveitamento de recursos de
forrageiras e de indivíduos vegetais por meio do Horto Florestal, ali instituído, e dirigido àqueles anos por Alberto Loígren
e Alfredo Benna.
EDUARDO CAMPOS
32
Três anos antes de ser novamente – e aí de modo mais
rude – exigida a capacidade do Nordeste para enfrentar a
inclemência do tempo, ao impacto da seca de 1915, a IOCS
passaria a funcionar como repartição, superando a sua formação original de simples divisão.
Quando irrompe a seca, angustiante e severa, ver-se-à
que, não obstante as idéias mais definidas sobre o problema
e planos então elaborados, e mais regulamentos aprovados
(além do provido pelo Decreto n. 7.619, de outubro de 1909;
do 9.256, de 28 de dezembro de 1911, e do 11.474, de 3 de
fevereiro de 1915) a Inspetoria pelos seus dois Distritos em
funcionamento no ecossistema injuriado reflete “a ineficiência da ação administrativa quase completa” (...) “resultado
lógico e manifesto de erros” que se impunha corrigir “com
prejuízo do tempo, sem preocupações pessoais”.47
Na realidade, a seca do 15 porá à mostra o
desadestramento governamental, confundido com o da própria inspetoria, mediante sucessos ignorados pelo grande público que, privado de informações reais, acompanhará as
providências de ordem administrativa pelos jornais, igualmente
desinformados. É que o ano anterior sobrecarregara a IOCS,
no Ceará, de encargos e problemas. Caótica a situação contemplada no canteiro de obras do interior deste Estado. Ali,
mais do que em qualquer outro local, alguns fornecedores
dos açudes, o que vale dizer, da repartição, faliram, diminuindo o número destes, enquanto cresciam as exigências de serviço. A fiscalização das obras aviltou-se, “forçada a viver à
custa do favor de fornecedores. Por fim, um só veio a manterse, graças aos esforços do auxiliar Raimundo Bezerra, que lhe
obteve um negociante em grosso para fornecer, mediante a
47 Thomaz Pompeu Sobrinho, “Relatório dos Trabalhos Realizados no ano de
1914” (datilografado), p. l36 (Acervo da Biblioteca Pública Governador Menezes
Pimentel, Fortaleza).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
33
garantia do Engenheiro”. Os débitos da construção do açude
Acarape se elevaram a “cerca de 120 contos”. O mais lamentável: operários passavam fome.48 Thomaz Pompeu Sobrinho acrescenta: “Temos aqui uma grande, mas quase inútil
coleção de estudos e até projetos cuja execução teria uma
grande temeridade. O estudo sistemático das bacias fluviais
poderia ser feito econômicamente nesta secção com uma organização que esta chefia poderia dar-lhe em vista do conhecimento das condições deste meio que há longos anos constitui
objeto de estudos. Se a situação financeira do País não comporta a execução de um plano avantajado, abrangendo simultaneamente numerosas bacias, poderia proceder-se
modestamente, iniciando-se os trabalhos em uma ou duas
ordens, ou secundariamente”.
Aos poucos, vai-se libertando a IOCS da influência prejudicial da política e da intrigalha provinciana, aguda, por
exemplo, no Ceará, onde culminará com dois episódios que
marcam esses dias: o do inquérito da Inspetoria, mandado
abrir pelo ex-Ministro da Viação e Obras Públicas, à época,
dr. Francisco Sá, ante acusações assacadas pelo eng. Bernardo
Piquet Carneiro contra a honorabilidade dos engenheiros José
Ayres de Souza e Thomaz Pompeu Sobrinho, provado, ao
final da demanda, serem caluniosas e improcedentes; e do
incêndio da sede da Repartição, na Capital.
Conclusivo o Inquérito, que deve ter constituído entrave aos serviços em curso: “As acusações da carta delatora de
12 de abril do corrente ano foram simples pretexto, armado
com arte, que facilitara ao Engenheiro Piquet a oportunidade
de ventilar questões do interesse das suas passadas relações
com a superior administração no Rio e nos Estados, fazendose vítima da chamada influência política.” (grifado no origi48 Ct. “Inquérito procedido pela Inspetoria de Obra Contra as Secas”, Rio, 1912,
pp. 19-20.
EDUARDO CAMPOS
34
nal). Assim se expllca a freqüência de frases agressivas tanto
aos predecessores de V.Exa. (ministro Francisco Sá) e a V.Exa.
mesmo, como aos homens públicos”.49
Adiante, seqüenciando o pronunciamento final, no
mesmo tom oficial: “A maioria das acusações feitas o engenheiro Bernardo Piquet Carneiro tinha pleno conhecimento
que eram falsas, já porque foi com suas próprias declarações
escritas que se evidenciou a inexatidão de muitas delas...”.50
A peça processual reconstitui, à falta de outros documentos, como eram as atividades da IOCS ao tempo em que
operava como divisão, no que diz respeito à quantidade e
qualidade de ferramentas e materiais de que se supria.
Pelos depoimentos sabe-se, por exemplo, que em julho de 1908, o eng. Thomaz Pompeu Sobrinho é instado pelo
próprio Bernardo Piquet Carneiro a manter uma pá mecânica, ainda não utilizada nas obras, o que não será feito na
primeira tentativa, à falta de desenhos do esquema, falha
suprida posteriormente graças ao eng. Samuel Pontual Júnior.
Vê-se alí como eram precários os materiais disponíveis
no almoxarifado de Quixadá, em 1908. Existiam 4.160 “parafusos para troly”, estanhados e com porcas; 10 “polias para
forja”; 359 “rebites para caldeira”; 8 “rodas de engrenagem”; 9
“ralos para poços”; 3 “vidros para caldeira”; 2 “manômetros”;
117 “tubos de caldeiras“; 5 “tampas de mancal”; 1 descaroçador de algodão, foices inglesas, sabres, cinturões, chocalhos,
buchas para carroças, etc.51
Como não bastasse o problema do desentendimento
em nível administrativo, verificado anteriormente na IOCS, a
1o de dezembro de 1912 ocorrerá incêndio devastando a sede
da Inspetoria em Fortaleza, – palacete Cel. Carvalho Mota.
49
50
51
Idem, p. 21.
Cf. documentos n. 23 do “Inquérito da Inspetoria”(op.cit). pp. 57, 58, 59.
Luis Carlos Martins Pinheiro. Op. cit., p.74.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
35
Na ocasião foram destruídos “trabalhos importantíssimos”, como o projeto dos grandes reservatórios “Orós” (projetado para ser o maior do mundo), o “Arneirós” (100 milhões
de m3) e “Lavras” (502 milhões de m3). Também se perderam o projeto e estudo da rodagem de Baturité a
Guaramiranga, das bacias de irrigação dos grandes açudes
“Poço dos Paus” (150 milhões de m3), “Riacho do Sangue” (8
milhões de m3) e “Espírito Santo” (7 milhões de m3).”52
Sobre o deplorado acontecimento, Rodolfo Teófilo refere a cena de engenheiros presos, “conduzidos ao cárcere
comum, a pé, pelas ruas, dentro de um quadrado de soldados”.53
Condenando o indesculpável tratamento, o escritor
acrescenta: “Este rigor com homens de posição, que não podiam no momento ser considerados criminosos, impressionou
muito mal a população da cidade”.
As testemunhas arroladas, indo depor à Polícia, o fazem nitidamente industriados para comprometer e denegrir a
reputação dos dirigentes da IOCS.
“A Folha do Povo”, jornal pouco simpático às atividades
administrativas da Repartição, abria espaços generosos às
cavilosas declarações dos depoentes, afirmações que em sua
maioria fogem a verificação mais lúcida, de bom senso, como
a que se extrai das palavras do ex-praça de Polícia, Lúcio Lopes,
ex-soldado do extinto Batalhão de Segurança da Capital, a
fazer crer verdadeira a ordem atribuída ao Dr. Pompeu Pequeno, responsável pela Repartição: “Vá ver” – diz o diretor –
“aquele saco que está vizinho à Pagadoria; abra-o e dentro
52 Rodolfo Teófilo, “A Sedição do Juazeiro”, Fortaleza, 1969, p.35. p.35, sobre
o assunto, lé-se mais; “As prisões dos engenheiros, e de mais alguns empregados da Inspetoria foram relaxadas a falta de provas”. Sabidamente criminoso,
o incêndio restou sem que as autoridades apontassem os responsáveis.
53 “A Folha do Povo”, edição do dia 14 de dezembro de 1912.
A. Tavares de Lyra, op. cit., pp. 44-4S
EDUARDO CAMPOS
36
está um caixão com duas latas de gás (querosene); abra estas e
espalhe o querosene por todos os móveis...”
E em face de pretendida relutância do depoente: –
“Você parece que está com medo?”
Ao implantar-se a IOCS, em 1909, – o testemunho é de
A. Tavares de Lyra54 , “já era notável a acumulação de subsídios, cada um destes mais valioso, para a solução do problema do Nordeste: conhecíamos as causas originárias, geralmente
apontadas, para explicar a existência do fenômeno climático
– e direção dos ventos, as mínimas solares e a devastação das
florestas – tínhamos perfeito conhecimento dos seus desastrosos efeitos; sabíamos que o registro de fatos e observações
feito em muitas dezenas do anos demonstrava que a média
da chuvas caídas em longo período não era suficiente às
necessidades da lavoura e criação da zona flagelada e que,
com o aproveitamento das águas do subsolo e das provenientes dos invernos copiosos (estas se escoam rapidamente
em virtude da forte declividade do solo e da natureza geológica), fácil seria atenuar as conseqüências de sua falta, mediante um serviço regular de irrigação, quando viessem as
estiagens...”
A evolução das despesas (a fixada e a efetuada) de
1909 a 1914, considerados aqui apenas os desembolsos realmente efetivados, evidenciam a instabilidade das parcelas:
1909
1910
1911
1912
1913
1914
54
446:471$448
1.099:134$807
2.341:827$807
6.686:227$104
6.935:311$986
2.008:766$206
Idem, p. 47.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
37
Em 1911, é de notar que o “regime de construção por
empreitada” hoje tão comum em diversos setores de atividades públicas, já fora instituído pela IFOCS. Neste ano estavam
empreitadas “as seguintes obras de açudagem: a) Acarape do
Meio – Dods – Worth & Comp, b) Salão – Antônio Mazinni;
c) Santo Antônio – Pompeu Ferreira da Costa Souza Rego; e)
Gargalheira (atual Marechal Dutra) – Saboya Albuquerque &
Comp.; f) Bodocongó – Arlstides Madeira; g) Soledade –
Getúllo Alves de Nóbrega e Claudino Alves de Nóbrega”.55
Em 1915, as verbas votadas totalizavam 2.200:000$000,
montante insuficiente, a demonstrar ficarem parcimoniosos
os recursos, falíveis ante qualquer emergência, como a que
sucederia.
Declarada a seca, outros valores seriam sem tardança
acrescentados aos referidos para o ano em causa, por iniciativa do presidente Wenceslau Braz. Dessa forma, de 1915 a
1918, de acordo ainda com o apanhado estatístico de A.
Tavares Lyra, a IOCS teve condições de empregar em suas
atividades 7.572;960$000.
1915 será ano de grande desafio às obras contra as
secas, para as quais a IOCS já contava com elenco de bons
trabalhos ultimados e a atualização de sua equipe técnica, em
matéria de conhecimentos técnicos e científicos, por nomes
que logo ganhariam o respeito dos brasileiros estudiosos.
Basta folhear o índice de publicações do Boletim da
IFOCS, de preferência os números mais recuados no tempo,
para conhecimento do excelente desempenho desses profis55
Na década de 1920-29, O “DNOCS continuava a editar numerosas publicações sobre variados temas. Havia séries referentes à botânica, clima, piscicultura,
hidrologia, geologia, assuntos ligados às secas, inclusive referentes às condições egrícolas, econômicas e sociais da Região flagelada, bem como folhetos
técnicos ao alcance do povo, sobre meios e medidas destinados ao alcance
do povo, sobre meios e medidas destinados a atenuar as conseqüências da
seca”, cf. João Gonçalves de Souza, “O Nordeste Brasileiro”, BNB, 1979, p.
114.
EDUARDO CAMPOS
38
sionais que legariam trabalhos importantes sobre o Nordeste,
não apenas livros, mas projeções cartográficas, etc.
Horace Williams e Roderic Grandall, do Serviço Geológico, faziam estudos sobre “Chuvas e Climatologia da Região das Secas, Pluviometria do Norte do Brasil e suas Relações
com a Vazão das Correntes e com a Açudagem”; Gerald A.
Waring assinava “Suprimento dágua no Nordeste do Brasil”;
Horatio L. Small. “Geologia e Suprimento dágua subterrânea
no Ceará e parte do Piauí”; Ralph H. Sopper, “Geologia e
suprimento dágua subterrânea no Rio Grande do Norte e
Paraíba”; Alberto Lofgran “A tamareira e seu cultivo”; do mesmo autor: “Contribuição para a questão florestal da Região
Nordeste do Brasil”; de Philipp Von Luetzelburg “Estudo botânico do Nordeste do Brasil”; “Atlas pluviométrico do Nordeste
do Brasil”, por C.M. Delgado de Carvalho, etc.56
Na área nordestina, até dezembro de 1918, estavam
construídos 23 açudes públicos, dos 97 projetados. Estudados havia 262 e em construção 7. Dezenove açudes eram
construídos ou reconstruídos; projetados, 25; estudados 6;
em construção 24. O número de barragens submersíveis
construídas ou reconstruídas, 6; em construção, 1; estudadas, 27; e em estudos, 4. Diligenciados, contavam-se 296
poços públicos e 246 particulares. Duas estradas de rodagem haviam sido construídas ou reconstruídas; 10 projetadas
e 11 estudadas.57
Nos Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, a IOCS já
instalara 341 estações pluviométricas.58
“Por conta dos créditos abertos de 1901 a 1918, foram
construídas, entre outras, as obras que se seguem: estradas de
56
57
58
A. Tavares de Lyra, op.cit., pp. 48 e 49.
Idem. Idem.
Idem, p. 50.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
39
rodagem de Floriano a Oeiras, Baturité a Guaramiranga, Sobral
a Meruoca, Macau a Açu (ainda em construção), Campina Grande a Soledade, Mossoró a Alexandria, Souza a Cajazeiras
(suspensa quando reapareceram as chuvas) e Rio Branco a
Buíque (entregue ao Governo de Pernambuco, que a concluiu), açudes de Anajás, Riacho do Sangue, Patos, Parazinho,
Velame, Caio Prado, Guaiúba, Baú, Várzea da Volta, Mulungu,
Arapuá, Vinte e Cinco de Março, Baú, Saco, Bodocongó,
Cajazeiras e Serra do Cavalo, afora reparos e construções de
outros, como Serra Vermelha, Alecrim, Bêbado, Nova Cruz,
Santa Cruz, Campinas e Santa Luzia; linhas telegráficas na extensão de 3.000 quilômetros; drenagem de vales e construção
de aterros em Ceará-Mirim, Maxaranguape, Carnaubal, Catu,
Propriá e Cachoeira; barragens submersíveis em Mossoró,
Upanema e Seridó; perfuração de poços e auxílios para acelerar trabalhos como os dos açudes Acarape e Salão, a cargo da
Inspetoria, além de outros serviços de menor importância nos
Estados em que mais se acentuou a calamidade”.59
O açude, no elenco de providências para garantir e fixar
a vida nos sertões, ostentava o interesse maior da IOCS. Expressiva a cópia dos que, à época, falam e questionam a açudagem,
como Miguel Arrojado Lisboa, primeiro Inspetor de Secas, considerando-a “solução naturalmente indicada para a retenção dágua
(no Nordeste do Brasil)”, enaltecendo serem os sertões do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte (menos os do Piauí) de
terra ideal para a construção de açudes.60
Nessa quadra, a atividade ponderável dos encargos públicos em favor das obras de emergência foi executada pelas
Obras Contra as Secas, Comissão dirigida pelo dr. Aarão Reis,
ex-lnspetor da IOCS, particularidade por ele próprio explicada
em Relatório ao Governo: “Apresentando a V.Exa. (Ministro
59
60
Thomaz Pompeu Sobrinho, op.cit., p. 118.
Cf. Rodolfo Teófilo, in: Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. cit. p. 83.
EDUARDO CAMPOS
40
Augusto Tavares de Lyra) este Relatório Geral dos trabalhos e
serviços que – constituindo Comissão independente (grifamos)
da Inspetoria de Obras Contra as Secas – julgou V. Exa. mais
acertado prosseguirem sob minha chefia...”61
Às instruções à ação das Obras Novas Contra as Secas,
aprovadas pela Portaria n. 21 5, do Ministro A. Tavares de Lyra,
seguem-se créditos repassados às Delegacias Fiscais do Tesouro Nacional, nos Estados, ao longo das obras, totalizando estas
numerário em desacordo com o total mencionado pelo próprio Ministro na sessão do dia 24 de maio de 1919,
8.570.000$000, que, inclusive com os extraordinários previstos
chegaria a 11.500:000$000.
É esclarecedor o Relatório Aarão Reis pelos indicativos
administrativos e de caráter social que envolveram nossa quadra o desempenho da Inspetoria. Fica-se sabendo que até
começo de 1917 não existia na vizinhança de Caruaru sequer
um açude para o fornecimento dágua de consumo à população; sessenta por cento dos alistados, no açude Bodocongó,
“eram homens combalidos por moléstias”; na construção do “
25 de Março”, no Rio Grande do Norte, era tal o “estado de
miséria e fraqueza dos operários. que o engenheiro Tasso
Benjamin da Motta considerou necessário providenciar a cada
um adiantamento “correspondente à sua alimentação durante
a ida e a volta” para o local de trabalho. Ainda em terra
potiguar, a água para apiloamento da parede – por exemplo,
do Açude São Miguel, supria-se por cacimbões abertos a 600
metros de distância, transportada à cabeça de operários, em
vasilhames de querosene.62
A fome não poupava acampamentos de açudes em
construção, “Com a seca de 1915 e a crescente desorientação
(61) Aarão Reis, “Obras Novas Contra as Secas, Relatório apresentado ministro
Augusto Tavares de Lyra, Rio, 1920, p. III (Introdução).
(62) Aarão Reis, op. cit., p. 3, 19, 75, 86.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
41
da Administração Central no Rio de Janeiro - testemunha o
engenheiro Thomaz Pompeu Sobrinho - a situação do açude
Salão, “como de todas as construções quantas se processarem
no Nordeste, piorou consideravelmente, tomando proporções
e aspectos verdadeiramente catastróficos, A fome começara a
flagelar os operários e a segurança pessoal dos auxiliares e
construtores tornara-se crítica”.63
A preocupação com os procedimentos de irrigação não
despertara ainda a disponibilidade de empreendimentos da
Inspetoria, ocupada “exclusivamente com estudos e construção de açudes e algumas raras estradas de rodagem”, aduz
Thomaz P. Sobrinho.
O Decreto 13.687., do dia 9 de julho de 1919, a Meio
Portanto do último ano da década 1910-19, de mais uma
calamidade, vem consagrar o terceiro regulamento à já agora
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (sucessora da
IOCS), Com dispositivos amadurecidos o disciplinamento sobre a condição de estudos, serviços o obras que urgiam empreendidas. Firmam-no o Vice-Presidente da República, em
exercício, Delfin Moreira da Costa Ribeiro e o ministro de
Viação Afrânio de Mello Franco.
Para atingir os objetivos propostos, a área mencionada
nos regulamentos anteriores (“alguns Estados do Brasil, compreendidos entre o Piauí e o Norte de Minas Gerais”) passava
a vigorar compreendendo os Estados do “Ceará, Rio Grande
do Norte, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia
e norte de Minas Gerais”, definição geográfica alterada pela
lei n. 175, de 7.01.36; Decreto-Lei n. 9.857, de 13.09,46 e Lei
n. 1.348 de 10.02.51.
O art. 5 determina providências meteorológicas, seguindo-se-lhe os artigos 6 e 7 que mandam se estabeleçam progressivamente as observações anemométricas e anemoscópicas,
(63) Thomaz Pompeu Sobrinho, op, cit., p. 312.
EDUARDO CAMPOS
42
adquiridos os instrumentos necessários para tal empenho; assim como, nos grandes açudes, a Inspetoria deveria instalar
uma estação para efetuar medições por pluviômetros,
anemoscópio, anemômetro, termômetro, higrômetro,
nefoscópio, heliógrafo e evaporômetro.
Estudos geológicos, hidrométricos e topográficos admitiam-se com precisão, enquanto o art. 11 estatuía dever a
Repartição criar “em cada açude, sem sacrifício do cultivo
de cereais, viveiro de plantas florestais, forrageiras e frutíferas, indígenas ou exóticas, distinguindo nas essências florestais as espécies do governo europeu que mais resistirem a
incleméncia do meio; e nas terras impróprias à floração desenvolverá a cultura da “opuntia ficus indica” e da “opuntia
encantha” de Bulbank”. Incrementada a perfuração de poços, não esquecida a orientação de serem abertos estes “ao
longo das estradas”, espaçados convenientemente e administrados pela Inspetoria. Os açudes, por se construírem, enquadrar-se-iam em classes conforme o tamanho e
profundidade (o que repete praticamente normas anteriores
jâ em curso), ficando a Inspetoria autorizada a fazer estudos, projetos e orçamentos de açudes para agricultores, criadores e industriais, e também para os sindicatos agricolas ou
criadores organizados...”
Incentivar-se-ia – como determinava o Regulamento
de 1903 – a quem construísse açudes e junto a estes plantasse
árvores frutíferas e essências florestais, quem o fizesse em
área não inferior a dois ha., ganharia prêmio de 200$000,
inovação no tocante.
Por igual, estimulada a edificação de núcleos de “populações agrícolas” em derredor dos grandes açudes” (art.
44), não esquecida a criação de uma escola (alínea e) no
início das obras, de utilização por meninos e meninas, nelas
sa instruindo os filhos de operários.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
43
O ano de 1919 é “marcante na história das secas no Brasil, pois ao flagelo juntou-se outro fato de relevo, aliás o de
maior destaque até então: a passagem de Epitácio Pessoa pela
Presidência da República representa, sem dúvida, um marco de
grande relevo para o Polígono. Homem nascido e criado no
Nordeste, dedicou ponderável parcela de sua administração à
integração da zona árida do país à economia nacional”.64
Ia ser ultrapassada, graças aos créditos à disposição das
obras a partir dc 1919 (neste ano a IFOCS aplicaria
7.000:000$00065, a fase de tração animal; de modo definitivo, a
de trabalhos manualizados e vagarosos, enquanto os equipamentos importados – novos motores e caldeiras principalmente
– alinhar-se-iam sob aproveitamento técnico mais racional e
avançado, como o da instalação de usina termoelétrica pela
firma Dwight P. Robinson & Comp., em seu canteiro de obras.
Fundamental para a Região o Decreto no 3.965, de 25
de dezembro desse ano, autorizando a “construção de obras
necessárias à irrigação de terras cultiváveis no Nordeste brasileiro”, com outras providências de não menor interesse, como
a da “Caixa Especial”, reunindo recursos das mais diversificadas
fontes de operação de crédito, externas ou internas; da percentagem de dois a cinco por cento da receita ordinária dos Estados em que se executassem serviços e obras; do produto da
venda ou do arrendamento das terras cedidas pelos Estados e
das que fossem desapropriadas; de rendas provenientes de
qualquer outra procedência, e, o mais destacável: dois por cento da receita geral da República habilitavam as obras “necessárias à irrigaçâo de terras” passíveis de agriculturamento.
O art. 3o especificava de utilidade pública, para efeito
de desapropriação, “as terras necessárias à construção das
barragens e obras complementares e preparatórias; as inun64
65
Cf. J. Pires do Rio, in: “Relatório de 1919 do MVOP”, idem, idem.
Thomaz Pompeu Sobrinho, op.cit., p. 413.
EDUARDO CAMPOS
44
dadas, as irrigáveis e bem como as florestas indispensáveis à
manutenção dos cursos dágua”.
No parágrafo primeiro estava mencionado: as terras
irrigáveis “desapropriadas quando seus proprietários se recusarem a entrar em acordo com o Governo sobre a construção
de obras necessárias à irrigação; deixarem de pagar durante
dois anos as taxas de que trata a presente lei (art. 5o), ou não
cultivarem as mesmas terras segundo as determinações constantes dos regulamentos expedidos”.
Passam a ser aperfeiçoadas as condições de tráfego
nas estradas, principalmente com o aumento do número das
carroçáveis que, no Ceará, por exemplo, alcançam todas as
partes do Estado. Em Relatório, o inspetor Arrojado Lisboa
menciona, como indicador desse progresso, o fato de no Ceará, no interior, em 1919, não existir um só automóvel. Em
1925, no entanto, os carros vendidos em Fortaleza, quase
todos para os sertões, subiam a 210.66
Amanhecem os dias de valorização técnica e adestramento da infra-estrutura dos Portos do Nordeste (ainda que
com o fiasco do Porto do Varadouro, na Paraíba, cujas obras
contratadas com a firma C. H. Halker & Comp. Ltda., seriam
suspensas em 1924);67 e das ferrovias merece destaque o funcionamento da Usina de Clínquer, em Fortaleza, cuja produção até o final de suas atividades, em 1923, seria da ordem de
38.267 barricas de cimento processadas.
Estocadas na praia, à falta de lugar apropriado para o
armazenamento, ficariam 14.459 toneladas desse material
que, à ausência de aproveitamento imediato, se tornou
imprestável ao aproveitamento pela Repartição na construção de barragens.68
66
67
68
Jose Joffily. “Porto Político”, Rio, 1983. p. 19.
Thomaz Pompeu Sobrinho, op.cit., p. 390-391.
Raimundo Girão “História econômica do Ceará’Fortaleza, 1947, pp. 333-334.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
45
Assiste-se por esses dias a “novo ciclo da revolução
econômico-social do Nordeste” (...) “Na realidade será passível a “desconexação entre o volume dos dinheiros gastos e os
efeitos obtidos, o que iria à conta do espírito de peculato e da
gana dos proventos ilícitos em empresas desta sorte, mas é
irrecusável que horizontes se descortinaram ao homem e às
coisas, gerando modificações essenciais.
Da praia às caatingas mais ínvias, ocupando os rochedos, derramaram-se, quais bandeirantes de nova laia, os funcionários oficiais, conduzindo, sem perceberem, o progresso
que iam deixando pregado ao chão com piquetas marcadoras
das suas visadas geodésicas nos trânsitos de Guerley e nos
níveis de Wild. Andaram por todos os lugares, pelas grotas e
pelas rochas, demarcando, medindo, cavando, aterrando,
numa agrimensura inquieta e incessante, ao sol e à chuva,
fosse dia ou noite, para que dos levantamentos surgissem as
estradas, os açudes, os poços, as irrigações, vale dizer a própria alma da terra desúmida e, também quantas; novas aldeias,
futuras cidades, outra civilização, limpando os olhos dos
tabaréus, que não enxergavam o mundo moderno que rolava, sem eles verem, nas rodas dos automóveis, cujos velocímetros, dagora por diante, e não mais o passo das alimárias,
seriam o estalão das suas deliberações e dos seus negócios”.69
O plano do Governo Epitácio Pessoa dura o biênio 1919/
1920, quando são construídos no Ceará os açudes Riachão,
Santa Maria, São Vicente. Seguiam em construção: Nova Floresta, Santo Antonio de Russas e Acarape. Orós tinha os trabalhos
reduzidos, mas se aprontavam as rodovias MaranguapeGuaramiranga, Quixadá-Serra do Estevão, Massapé-Palma, Granja-Palma, Baturité-Olho d’Água. Em ritmo de construção seguiam
as estradas Fortaleza-Maranguape-Sobral.
69
Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. cit. pp. 85-86.
EDUARDO CAMPOS
46
No Rio Grande do Norte, o açude Malhada Vermelha
ficava pronto e continuavam em obras o Morcego e o
Gargalheira, como também as rodovias Cabeça Branca-Lajes,
Lajes-Açu-Logradouro.
Na Paraíba, concluíra-se o açude Macapá, e o Pilões
estava em trabalho. Davam-se por terminadas as estradas
Cajazeiras – Taperoá, Borborema – Pirituba. Em Pernambuco,
eram diligenciados os serviços no açude Terra-Nova; em
Sergipe, na mesma situação, a estrada Salgado-Anápolis, enquanto na Bahia continuava a construção do açude Rio do
Peixe. No Piauí já se aprontara a rodovia Floriano-Oeiras.70
É desse período – escreve outro memorialista da vida
do DNOCS – a Lei no 3.965, de 25 de dezembro de 1919",
criando uma caixa especial, graças a cujos recursos correriam
as despesas com obras e serviços de irrigação de terras cultiváveis no Nordeste.
As despesas, que eram de 17.613.000$000, em 1920,
subiram para 89.501:000$000 e para 95.166:000$000 em 1921
e 1922, respectivamente. No ano subseqüente, esfumava-se o
ritmo de obras do Nordeste, com a queda vertical das despesas para 43.882:000$000, que as aviltariam surpreendentemente em 1924, baixando para 7.620:000$000.71
OS ANOS que defluem a partir de 1924 vão testemunhar a modificação do trem de obras da IFOCS, tornada então desafortunada feitora de serviços que tinham curso
vagarosamente, quase paralisados à falta de recursos. A ação
contra as secas recebia golpe mortal com a publicaçâo do
Decreto n 16.403, de 12 de março, que extinguiu a Caixa
Especial das Obras de Irrigação de Terras Cultiváveis do Nordeste. Os serviços deveriam – daí por diante – custear-se com
70
Oto Guerra. “A Batalha das Secas”, in: “Memorial da Seca”. Op. cit., p. 162.
Orris Barbosa, “Secas de 32”. Rio, 1935., p. 124.
Naylor Bastos Villas-Bons, op. cit. p. 97. Achou as seguintes despesas, respectivamente, de 1923 a 1926 – de 1927 a 1930:87.056:275$256 – 35.644:119$731.
71
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
47
recursos anualmente atribuídos nas leis orçamentárias (art.1).
Preside o País Artur da Silva Bernardes.
Por esse diploma legal, as estradas de ferro, com exceção dos ramais destinados ao transporte de material das barragens, desvinculavam-se da Inspetoria, retornando ao
Ministério da Viação e Obras Públicas.
De igual modo, os portos do Nordeste saíam da alçada
da IFOCS para os da Inspetoria Federal de Portos, Rios e
Canais (art. 4).
Recursos disponíveis, à ordem da IFOCS, atingindo o
ápice de aplicações em 1922, com 145.947:000$000, decresceriam em 1923 para 67.213:000$000. Ao ano seguinte, a queda
desses valores ia tornar-se mais sensível, ficando em nível de
ll.000:000$000, até despencar-se a patamar altamente
desencorajador – 3.827:000$000, em 1925. De 1926 até 1931,
a média anual de dispêndios com as obras contra as secas foi
de 10.454:466$000.72
Com o distanciamento dos dias de euforia, ou de
perdularismo, quando os dinheiros foram fáceis para o Nordeste, seguiu-se fase em que reportariam dívidas de todos os
lugares. Compromissos celebrados não se cumpriam; operários, ainda no desempenho de sua atividade tinham seus salários sob condenável atraso. No interior dos Estados, como ocorreu
em Sobral (CE), o quadro era desolador: “Não há por aí quem
nos dê notícia dos srs. pagadores da Inspetoria de Obras Contra as Secas? Que nos dirão da Inspetoria de Obras Contra as
Secas, que há quase um ano não paga os seus operários nesta
zona nem aos seus fornecedores? Aos primeiros, deram-lhes
uns vales proibidos por Lei e desvalorizados pelos agiotas com
29% de abatimento e hoje o recusam até com 30%”.
Inúmeras as acusações à Repartição, que expiava crime
que não era seu, mas do Governo que lhe negava verbas sufici72
“Correio da Semana”, Sobral (CE), 1o de maio de 1928.
EDUARDO CAMPOS
48
entes para honrar os compromissos assumidos. O “Correio da
Semana” em 1928, pela pena do jornalista e sacerdote Leopoldo
Fernandes, profligava a situação herdada após os tempos de
efusiva movimentação da IFOCS: “Certamente alguma coisa se
tem feito no sentido de minorar os efeitos da seca; alguns açudes, pedaços de estradas, pequenos trechos de via-férrea... Mas
que vale tudo isto em face das vultosas quantias despendidas e
dos ruidosos alardes com que se procura disfarçar as indecências administrativas daquela repartição?”73
Em editorial do mesmo jornal, é comentado e parcialmente transcrito artigo, do jornalista Assis Chateaubriand, difundido por todo o País: “... foi um grande erro do Sr. Epitácio
Pessoa” (...) “querer realizar no curto prazo de três anos serviços que exigiam talvez um decênio para execução. Daí o
esbanjamento de milhões de contos de réis e as empreitadas
fantásticas que valeram às obras do Nordeste o epíteto nada
honroso de “Panamá brasileiro”.
Mas são dias de rudes aflições, provocadas pela escassez d’água adiante, em 1930, que despertarão a administração pública federal à retomada de suas responsabilidades, o
que se formaliza a partir de telegrama do engenheiro Luiz
Vieira, antigo chefe do 1o Distrito da Inspetoria, enviado a 9
de abril de 1932 ao eng. Lima Campoa, em que manifesta a
opinião de estar o país ferido por novo flagelo, para o qual
urgiam providências imediatas, dispensada até mesmo a antecipação de faturas e orçamentos, então exigidas.74
O jornalista Orris Barbosa, que acompanhou o presidente Getúlio Vargas e o ministro Josa Américo de Almeida
na visita de ambos ao Nordcste, em 1933, sob visível entusiasmo, que se deve atenuar, narra como se deu a “intervenção
do Estado no sentido de evitar mal maior dos conflitos que
73
74
Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. cit. p. 86.
Orris Barbosa, op. cit., p. 77.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
49
resultariam dos que não não queriam morrer de fome com os
que não tinham nenhuma obrigação social de amparar, em
massa, a miséria clamante”.75
Acrescenta noutro comentário: “O Governo Provisório
abandonou, então, a atitude clássica que norteia a linha neutra do Estado que se equilibra no liberalismo econômico, e
interveio, com decisão, na resolução do problema da seca, de
acordo com o novo plano aprovado em 1931, devido a insistente colaboração do ministro José Américo de Almeida...”
O trabalho nesse momento, deflagrado o esquema de
luta, foi bastante intenso, dirigido por Lima Campos, a enfrentar “hordas já furiosas de pedintes que se atiravam
desordenadamente aos locais onde se projetava um serviço,
como ainda por organizar, em ambiente tão agitado, num
máximo de quarenta dias, estudos topográficos que exigiam
mortificantes vigílias de engenheiros e desenhistas”.76
Interventores do Nordeste, particularmente Antenor
Navarro, na Paraíba, e o cap. Carneiro de Mendonça, no
Ceará, excediam-se em medidas pata facilitar os precursores
que chegavam à região em missão do Governo Provisório – a
do próprio DNOCS, dos dias da IFOCS.
Rememorando episódios dessa batalha, que comandou
com inexcedível entusiasmo e conhecimento do homem e da
natureza afetados, José Américo de Almeida escreveu: “Se me
perguntassem pelos 317.136:589$947, de verbas orçamentárias
e créditos especiais, dispendidos em assistência às vítimas da
seca, eu poderia dizer simplesmente: Matei a fome de dois
milhões de brasileiros, no maior cataclisma que já se abateu
sobre todo o Norte, pela sua força destruidora e por seus reflexos em zonas isentas desses acidentes do clima. Só em 1932, a
75
Orris Barbosa, idem. Idem.
José Américo de Almeida, “O ciclo revolucionário do Min, da Viação”, 2. ed.
1982, p. 161.
76
EDUARDO CAMPOS
50
Inspetoria de Secas tinha em trabalho 220.000 operários que,
computada a média de quatro pessoas por família, representavam 880.000 pessoas, sem contar outros tantos empregados em
construções ferroviárias, açudes particulares em cooperação com
o Governo, prédios para Correios e Telégrafos, colônias agrícolas ou recolhidos aos campos de concentração.77
O emprego desses avultados recursos justificar-se-ia,
apenas, pelo capital humano escapo à calamidade. Seria uma
nonada para cada pessoa salva. Foi amparada uma população em peso, desde os famintos a todas as classes que viviam,
indiretamente desses socorros públicos. Essa devastação, sem
precedentes históricos, por sua violência e generalidade, abrangeu no ciclo mortal as terras que vão do Piauí e parte do
Maranhão, até os vales do Vasabarris e Itapicuru, na Bahia,
sem poder ser atenuada por obras anteriores, que não tiveram intervenção compensadora na redução dos seus efeitos
desastrosos”.78
A pressão da opinião pública, em 1932, clama por mais
açudes construídos. Carneiro de Mendonça, no Ceará, a 1o de
abril dirige-se por telegrama ao ministro José Américo a encarecer e edificação de mais reservatórios no Estado, refletindo apelos recebidos do interior, com Icó pretendendo o açude Estreito;
Crato, vários, inclusive o Barro Vermelho e o Canta Brava.
R. Gomes de Matos, na Capital, em artigo de impacto,
dramatiza na imprensa local: “A salvação do Nordeste está na
construção de grandes barragens, na retenção dos cursos
d’água que correm para o mar”. Adiante, a fustigar diretamente o poder público: “Cumpre indagar se o Governo Provisório está no firme propósito de gastar ao menos o que o sr.
Artur Bernardes desperdiçou para arrasar a capital de São
Paulo, em julho de 1924, e na perseguição da Coluna Prestes,
77
78
José Américo de Almeida, idem, idem.
O POVO Fortaleza, 17 de maio de 1932.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
51
quantia tão fabulosa que ainda hoje não se sabe quanto atingiu, por nunca ter sido publicada, havendo ainda muitos débitos a serem pagos. É preciso o emprego de bastante dinheiro,
seja para a construção das barragens, seja unicamente para
alimentar os famintos”.79
Visitando Fortaleza, a 30 de junho de 1932, o eng. Luiz
Vieira, Inspetor das Secas, dá entrevista detalhando a situação
dos serviços de emergência, os trabalhos da IFOCS na Bahia,
Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Informa, então, sobre a construção do açude Orós e da transferência da sede da IFOCS do Rio para a Capital cearense, e
nesta mantida até quando a medida se adequasse às providências que exigia o momento.80
Faziam parte da comitiva do Inspetor os engenheiros
Moacir Ávidos e Vinícios Berredo, da Secção Técnica, além
de outros funcionários, dentre estes José Olímpio.
A essa altura, a Inspetoria mantinha ocupados nas diversas obras em curso, 45.000 operários e já havia em todos
os açudes, armazenados, 1 bilhão de metros cúbicos.
Acionado pelo Governo Provisório, o então ministro
da Guerra, gen. Leite de Castro, cria a “Missão de Socorro do
Nordeste”, atendendo à sugestão feita pelo Ministro da Viação. E designado pelo titular da Pasta o major médico Carlos
Guimarães para chefiar os serviços de Cruz Vermelha, caben79
“O POVO” edição n. 1.250.
Os artigos referidos: 21 – “Além da cooperação de que trata o art. 13, a
Inspetoria, nos casos de reconhecida conveniência auxiliará os Estados ou
Municípios com 70%, e os particulares, individualmente, ou associados, com
50% da importância dos orçamentos, por ela organizados, na construção de:
a) açudes não compreendidos nos sistemas gerais de obras de açudagem e
irrigação (art. 9); b) obras de regularização nos leitos dos rios. “art. 30 – “No
contrato para construção de um açude por cooperação, ficará estipulado que,
no caso de paralisação da obra, por culpa do proprietário, a Inspetoria a
concluirá, se for de reconhecida utilidade, ficando com o direito de explorá-lo
como público, até ser paga a importâncla despendida”.
80
EDUARDO CAMPOS
52
do o comando da missão ao major Cícero Góis Monteiro. A
comissão instalará postos de socorro e depósitos de víveres
em Pernambuco, Paraíba e Ceará.
De 1932 é o Decreto no 21.260, de 8 de abril assinado
pelo presidente Getúlio Vargas e pelo ministro José Américo de
Almeida, estabelecendo normas de execução das obras de irrigação enquanto durasse os efeitos da seca, no art. 1o dispunha
que “os proprietários de terras que se prestem, na região semiárida do Nordeste, à irrigação ou à cultura agrícola, poderão
executar por intermédio dos governos, as obras de cooperação
de que tratam os arts. 21 e 30 do Regulamento da IFOCS, aprovado pelo Decreto no 19.726, de 20 de fevereiro de 1931.81
Não faltam verbas para o período; e até se admite sobrarem, que, a dado momento, por autorização do Ministro,
349:836$700 são aplicados longe da área flagelada, ou seja, na
construção da “estrada de rodagem Porto Velho a Cachoeira da
Samuel” e na organização do núcleo agrícola no Amazonas.82
A Inspetoria, no Piauí, dá seguimento â construção de
65km de estradas, com obras d’arte, assim como instala um
Centro Telefônico, ao lado de outras obras ativadas pelo Setor de Reflorestamento, na verdade uma Comissão de
Florestamento, autônoma, inicialmente ligada ao gabinete do
próprio Ministro, e depois transformada em Comissão de Serviços Complementares.83
No Ceará, enquanto se estendem os trilhos de Sobral
para o Piauí (além dos ramais, em construção, de Barbalha e
Itapipoca), a rede de estradas alcança a extensão de 875 km.,
81
José Américo de Almeida, op. cit , p, 278. As informações sobre as obras
efetivas e por serem concluídas desse período são extraídos das pp. – 280, 281,
282, 283, 284, 285, 286, 287, 289.
82 Paulo de Brito Guerra “Irrigação em quatro doses”, Col. Mossoroense, Vol.
XCVII, 1978 p 76. Aduz “Mais adiante seria o Serviço Agroindustrial do DNOCS,
que persistiu até o advento da Autarquia”, instalado junto ao Lima Campos.
83 O POVO, 5 de junho de 1932.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
53
acrescida de obras d’arte que totalizam 2.576 metros lineares.
Estava construído, e em regime de obras, um elenco de açudes
públicos e particulares” com capacidade, respectivamente, de
662.394.000m3 e de 81.868.390m3"; perfuravam-se 68 poços, enquanto a Comissão de Reflorestamento intensificara os trabalhos
em Iguatu, São Mateus, Senador Pompeu, Quixeramobim, Cedro, Crato, Joazeiro, Trairi, Pacatuba e Fortaleza, com o preparo
e plantio de sessenta e sete campos de palma. Sobreleva detalhe
importante, o do alcance social das atividades da Inspetoria,
construindo quinze hospitais e oito escolas.
No Rio Grande do Norte, enquanto a Estrada de Ferro
de Mossoró estende mais trilhos, a rede de rodovias ganha
aumento de 321 quilômetros, com 789 metros lineares de
obras d’arte. Aí já estão construídos ou em fase de obras os
açudes públicos e particulares com a capacidade, no primeiro
caso, de 138.020.000m3, e, no segundo, 1.518.680m3. Perfurados contam-se 26 poços e 2.112$000 são ali recebidos para a
“colonização agrícola e outros melhoramentos”.
A Paraíba se beneficiaria já com 988 quilômetros de
estradas e 850 metros de obras d’arte; açudes públicos,
construídos e em construção, alcançavam a capacidade nominal de 404.948.000m3; particulares, terminados; 9.284.039m3.
A Comissão de Reflorestamento continuava atuando em treze
municípios, resultando o trabalho em dois postos agrícolas e
sete campos de palma. Sessenta açudes haviam sido peixados.
O jornalista Renato Sóldon, em julho de 1932, contempla as grandes barragens de Piranhas e São Gonçalo (PE);
verifica que a estrada, antes de Cajazeiras, “há alguns anos”
não recebe cuidados. Deplora as pontes de cimento armadas,
fendidas; e defeitos técnicos no percurso para Sousa, quais
“curvas com pequeno raio”, rampas íngremes” com perigosos
aterros”... No entanto se deslumbra diante do Boqueirão de
Piranhas, vista das instalações da parede da barragem; e alí
EDUARDO CAMPOS
54
tem oportunidade de saber pelo Inspetor de Secas e pelo Dr.
Vinícius Berredo, que são empregados 1.200 operários. Anota
as obras em curso, demorando-se em apreciações sobre o
Piranhas, o São Gonçalo e o Pilões.84
Em Pernambuco, cuja Capital vê estabelecido o pouso
obrigatório para o Graff Zepelin, reservatórios públicos e particulares, terminados ou em obras, podem armazenar
3.850.000m3. São nove os poços cavados e mais treze açudes
peixados. Material da Inspetoria é cedido para prosseguirem
as obras do “quartel federal”.85
Em Alagoas, verbas no total de 862:948$650 são cedidas ao Estado para o programa local de “colonização e obras
de assistência aos flagelados”, não faltando verbas para o
corporativismo sindical nem para perfuração de mais poços.
A Bahia, na mesma oportunidade, assiste à inauguração de 46 km de estradas de rodagem. Açudes públicos e
particulares, feitos ou em obras no Estado, totalizavam já,
respectivamente, 48.518.420m3, de capacidade. Cinco poços
estavam perfurados e a IFOCS fazia o repasse de
1.600:000$000 para os trabalhos de um posto agrícola e oito
campos de palma.
Mencionável detalhe que assinala o progresso imposto pela presença do automóvel, que passa a contribuir na
melhoria dos sistemas de Correios. Em Alagoas, inauguramse novas “linhas postais em automóveis, com a extensão de
322 quilômetros”; em Sergipe, 95. No Rio Grande do Norte
as linhas postais passam a utilizar o “auto-ônibus”, assim
denominado, Na Paraíba, os Correios se valem igualmente
84
José Américo dc Almeìda, op. cit. Verbas, quantitativos de quilômetros
construídos, capacidade dos reservatórios construídos, etc, mesmo sem estarem aspeados, decorrem da mesma fonte, ao longo das referências às obras
da IFOCS dessa época.
85 José Américo de Almeida, op. cit., p. 167. São aprovitados das páginas 162,
163 e 166.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
55
de automóveis, que cobrem, em seus serviços, 708 quilômetros. Em Fortaleza é estabelecida a linha postal por “subônibus”, de Fortaleza a Sobral. Iniciativas todas decorrentes
do bom estado de conservação das estradas ultimamente
construídas pela IFOCS.
Sobre a atividade da Inspetoria de Secas nessa quadra,
observa o ministro José Américo de Almeida ter a repartição
forcejado por manter “a par da vastíssima organização de
trabalho, improvisada para comportar milhares de necessitados que ainda podiam dar alguma coisa de si, as diretrizes
fixadas na reforma aprovada pelo Decreto 19.796, de 20 de
fevereiro de 1931. Ateve-se, o quanto pôde, ao plano geral
estabelecido, para que não continuasse a esterilizar-se em
pequenas obras dispersivas, ao sabor de interesses pessoais
ou regionais e por falta de um programa definitivo de conjunto, sem nenhuma perspectiva de solução” (...) “do gigantesco empreendimento de salvação da zona semi-árida. Foram
atendidas, de preferência, as linhas gerais dos grandes sistemas de irrigação, do plano rodoviário correlato e das obras
de cooperação, só tendo sido atacados trabalhos complementares, para socorrer as populações de zonas estranhas à área
das maiores construções projetadas ou desprovidas de outros
meios de assistência.
Nâo foi, entretanto, possível evitar os campos de concentração, que chegavam a conter, num só dia, no Ceará, 105
mil pessoas”.86
Adiante, sob igual tom: “O Governo Provisório incentivou, o mais possível, a construção de açudes em cooperação
com particulares. A capacidade desses pequenos reservatórios construídos, até 1930, limitava-se a 30.292.776m3, ao passo
que os já construídos, na atual administração, atingem a
86
Francisco José da Costa Barros, “A Inspetoria de Secas no seu 30o aniversário, in: BOLETIM IFOCS.
EDUARDO CAMPOS
56
32.402.866m3 e os em construção representam 60.864.307m3,
ou o total de 93.267.173m3.
Até 1930 foram construídos 36 desses açudes; em 1931,
achavam-se em andamento 11; finalmente, no triênio de 1931
a 1933, foi iniciada a construção de 51".
Expressivas as atividades levadas â responsabilidade
da Comissão Técnica de Reflorestamento; inúmeros os estudos, a implantação de postos agrícolas, preparo e distribuição
de mudas, os campos de palma forrageira, plantas forrageiras
em observação, etc. além de adequada infra-estrutura indispensável a trabalhos dessa natureza.
É a partir de 1932 que a IFOCS inaugura a Comissão
de Serviços Complementares, incumbida de “colaborar nos
trabalhos de irrigação, na estrutura dos cadastros de terras e
exames nestas, na formação de florestas protetoras e nas de
rendimentos de madeiras e do rama, na arborização marginal
dos canais e regimento para explorar os terrenos, fazendo
não só a divulgação dos processos de conserva de forragens,
fenação, etc., como os ensaios culturais apropriados e investigações da flora regional, introdução das plantas exóticas, produzindo e espalhando as mudas e sementes, ao mesmo tempo
que relizando a campanha educativa da previdência e preocupação contra os efeitos das secas”.87
Onze postos, como o “Pirajá”, no Piauí, “São Gonçalo”
e “Condado” na Paraíba, “Mundo Novo” e “Cruzeta”, no Rio
Grande do Norte “Palmeira dos Índios” em Alagoas,
“Itabaiana”, em Sergipe, “Tucano” e “Queimada”, na Bahia,
“Lima Campos” e “Joaquim Távora”, no Ceará. Desses haveria
de destacar-se o de São Gonçalo, dirigido pelo agrônomo José
Augusto Trindade, onde foram realizados trabalhos importantes
e pioneiros “com dezenas de plantas nativas, especialmente com
87 Paulo de Brito Guerra, “Açudes e Xerófilas”, Col. Moss, Vol XCVIII, 1978, pp.
61, 63, 64.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
57
carnaubeira, oiticica, umbuzeiro, favela, cactáceas”, (...) “por
exemplo: estudou-se a produção assexuada da oiticica, e instalou-se o primeiro bosque de mudas enxertadas.”88
José Augusto Trindade, quer como funcionário do Ministério de Agricultura (1917 a 1930), quer como chefe da Comissão de Serviços Complementares da IFOCS (1933 a 1941, quando
morreu), exaltava o “aproveitamento integral dos açudes públicos, a educação dos agrícolas e a conservação de alimentos e
forragens como fatores decisivos na solução das questões agrícolas”. Foi quem iniciou a irrigação nos açudes públicos.89
Em conferência realizada na Escola de Belas Artes, atendendo a convite da Sociedade Nacional de Agricultura, a 2 de
fevereiro de 1937, faria a apologia do açude e da educação
do homem do campo:
“Mas, a finalidade precípua da açudagem – embora
sediça a afirmativa, importata repetí-la – é a irrigação, e, através desta, a normalização da vida social das populações sujeitas ao martírio da retirada. É a fixação do homem à terra. É
a formação de núcleos de bem-estar coletivo, de centros de
produção Intensiva e permanente, bem como de focos de
civilização e cultura em pleno sertão.
Está aí esboçada a complexidade do problema do uso
pelo homem das gigantescas obras que a Inspetoria de Secas
está construindo no Nordeste, e de que o País pode orgulhar-se.
Tal problema oferece múltiplos aspectos: os métodos
de trabalho a empregar na exploração das terras lrrigáveis e
as culturas a adotar; a educação do homem para tirar o máxi88
José Guimarães Duque. “Perspectivas Nordestinas” BNB, Fortaleza. 1982, p. 57.
Os postos agrícolas continuaram bastante atuantes. O de São Gonçalo com
maior soma de serviços, com o falecimento do seu chefe, José Augusto Trindade,
em 1942 passou e se donominar Instituto Agronômico José Augusto Trindade em sua homenagem, Assumindo a direção, o prof. Guimarães Duque
retomou a orientação dos trabalhos, arregimentou equipes, “realizando diversos levantamentos de solos e de plantas forrageiras, oleaginosas e cerígenas”.
(Cf. “Nota prévia”, de F. Alves de Andrade, In: J. G. Duque, op. cit., p. 7.)
89
EDUARDO CAMPOS
58
mo proveito do trato irrigado em que trabalha; a defesa da
saúde o crédito agrícola.”
Os postos agrícolas da Inspetoria, em 1938, já possuíam um acervo de trabalho que lhes garantiria relevo especial
na Exposição do Estado Novo, promovida no Rio de Janeiro
no dia 10 de novembro desse ano, quando então eram doze,
com o do Rio São Francisco.90
A respeito, veja-se o que pública o Boletim da IFOCS
no ano de 1939: as fotografias da Exposição mostram os “12
postos agrícolas não só em estudos experimentais de irrigação como também na aplicação dos resultados obtidos na
cultura de diversas espécies e variedades de plantas de alto
valor econômico, tais como a oiticica, a carnaubeira, o algodão, o arroz, a tamareira, o “citrus”, as forrageiras, etc; 21
espécies e 29 variedades de plantas alimentares e industriais
em ensaios de adaptação e cultura nos postos agrícolas; 26.332
plantas frutíferas em local definitivo; 38 espécies e 163 variedades de plantas frutíferas em ensaios de adaptação e cultura; 87 espécies e 124 variedades de plantas forrageiras em
ensaios de adaptação e cultura; 1.089.869 mudas de diversas
espécies e 38.111 quilos de sementes distribuídas aos agricultores; processo artificial de reprodução de peixes, original da
Inspetoria: 82 trabalhos publicados sobre piscicultura, assunto
novo no Brasil; 161.000 exemplares de peixes distribuídos
para o povoamento dos açudes...”91
Os que a 1o de dezembro de 1938 visitaram a Exposição do Estado Novo puderam ver a “farta documentação do
período de trabalho intenso e realizações “da Inspetoria de
Secas, cujo “stand” expunha em representações gráficas, fotográficas, através de bem elaborados painéis e até da exibição
de produtos agrícolas, o resultado dessas atividades.
90
91
BOLETIM IFOCS, Rio de Janeiro, 11 (1), pp. 125-126.
BOLETIM IFOCS, op.cit., idem.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
59
O motivo central da mostra – “uma região transformada pela irrigação, era representada por meio de dois painéis
artísticos medindo 1m50 x Im50 cada um, colocados lado a
lado, representando um deles uma cena de ‘retirada’ de
flagelados da seca e o outro uma cena de irrigação já conhecida de grande parte dos nordestinos graças aos empreendimentos administrativos atuais. Havia embaixo do quadro da
seca, a legenda: ‘As obras evitarão as cenas dolorosas da
retirada durante uma seca’. Abaixo do quadro da Irrigação,
lia-se: ‘A Irrigação garantirá permanentemente a abastança,
mesmo durante uma grande seca.’92
Os visitantes podiam contemplar adiante, no salão, em
quadros bem dispostos, a estatística do empenho da IFOCS
em servir ao Nordeste: “a capacidade de acumulação dos
açudes públicos no período 1930-1937 representa mais do
dobro da obtida de 1906 a 1930; em açudagem por cooperação foi conseguida uma capacidade 5,5 vezes maior do que
no período 1912-1930; 100.934 metros de canais de irrigação
contra 28.530 metros concluídos no açude Cedro em 1906;
3,21 quilômetros de rodovias, ligando oito Estados nordestinos, mantidas em ótimas condições de conservação; 2.896
obras d’arte correntes e 769 obras d’arte especiais em concreto armado, com a extensão de 6.645 metros; tráfego nas rodovias intensificando-se de ano para ano...”93
Mais gráficos, mais fotografias ampliadas indicavam os
“resultados conseguidos no período 1930-37, nos quais está
assinalado “pela sua repercussão importante na economia nordestina” (...) “o grande sistema da irrigação do Alto Piranhas”
com os açudes São Gonçalo e Piranhas, já construídos cerca de
40 km de canais; a grande barragem “Curema’”, mostrada em
92
Idem, Idem.
Rodolpho von Ihering, “Aspectos Biológicos do sertão”, in: Meiquiades Pinto
Paiva, “Permanencia de Rodolpho von Ihering”, Col. Mossoroense, Vol X, 1983 p.
38.
93
EDUARDO CAMPOS
60
adiantado ritmo de construção, “o grande sistema de irrigação
do Jaguaribe, com o açude Lima Campos e cerca de 20 km de
canais concluídos, o túnel de ligação entre os açudes Orós e
Lima Campos em construção, estudos da nova localização da
barragem Orós e respectivo projeto, mais de 3.000 km de rodovias construídas; descoberta de processos de enxertia da oiticica
permitindo o cultivo racional”, etc., etc.
A década 1930-39 exprime o adestramento da IFOCS
na estratégia de luta que empreende. Do dia 12 de novembro
de 1932, a portaria ministerial que cria a Comissão Técnica de
Piscicultura do Nordeste, sob a direção de Rodolpho von
Iherlng, cujos objetivos estabelecidos decorreram de orientação do próprio Ministro da Viação: “A) promover o povoamento das águas internas do Nordeste, com peixes de boa
qualidade, prolíficos e precoces, e defender essa fauna contra
seus inimigos e moléstias; B) metodizar-as pescarias e determinar as épocas de sua realização; C) divulgar os processos
de conservação do pescado...”94
Até então em decorrência dos desacertos que certamente sobrevieram da falência de verbas e da desídia ou
desencorajamento administrativo, faltavam ferramentas para
o atendimento das obras, à medida do desejável, como falhavam também na execução de determinados projetos o material de construção, transporte e água.95 Em 1932, as falhas
estavam corrigidas e se assistia a uma apropriação de transporte mais atualizados e convenientes às solicitações de serviços: eram então adquiridos 122 caminhões, e, no ano seguinte,
44. Quanto a máquinas pesadas e motores, ocorreria considerável avanço de capacidade e desempenho.
A atualização técnica em 1932 já passaria a aproveitar
rotineiramente caldeiras verticais e horizontais “Wilckes”, de
95
Idem, p. 96.
Eng. Luiz Augusto da Silva Vieira, “Relatório do DNOCS, 1931/33”, in Luiz
Carlos Martins Pinheiro, op. cit., pp. 88-89.
94
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
61
300 HP. Guindastes já são denominados assim (e não mais
“derricks”), com força de elevação acima de cinco ou mais
toneladas. Em 1933, entravam para uso da Inspetoria as motoniveladoras; em setembro, do mesmo ano, os modernos
rolos “sheep’s foot”, rebocados a tratores, rendendo cada
máquina destas o trabalho de 400 operários e “reduzindo a
terça parte o custo do apiloamento”.96
Ante o apreciável resultado obtido com as máquinas
em uso pela IFOCS, seriam adquiridos mais dois tratores 75,
dois 50, seis rolos compressores “sheep’s foot”, duas plainas
tipo 60, para construção de rodovias, reboques metálicos
“rotary scrapers”, um “road builder”, perfuratrizes de percussão, acionadas (o que significava inovação) por motor à óleo
“díesel”; uma perfuratriz rotativa, etc.97
A máquina, desse modo, ia-se incorporando ao instrumental dessa luta, enquanto o operário, peça indispensável à execução dos serviços, passava a merecer atenções da
Repartição que lhe cuidava mais a tempo da saúde, compreendida a necessidade de ser mantido higienizado o seu ambiente de trabalho, principalmente o dos acampamentos,
locais que, em alguns anos, quando o emprego de mão-deobra alcançava números exagerados, mais pareciam campos de concentração.
A Inspetoria coordenaria em 1932, em estreita colaboração com os governos do Ceará, Rio Grande do Norte e
Paraíba, “assistência médica sistemática”, instituindo, uma caixa médica custeada pelos próprios operários”.
96
Luis Carlos Martins Pinheiro, op. clt., p. 96. A utilização do primeiro conjunto de máquinas (organizadas em patrulhas) começará também em 1932. Constituíam-no tratores road-builder,” escarificadores “scrapets” escavadora
mecânica, plainas niveladoras, ditas auto-motoras e caminhões basculetas cf.
Luiz Augusto da Silva Vieria, in: “A Rodovia o combate à seca no Nordeste”, In
BOLETIM IFOCS 10(2), out/dez, 1938, pp. 119-120.
97 Idem, p. 90.
EDUARDO CAMPOS
62
Sendo a diária de apenas 2$500, insuficientes até mesmo à manutenção própria do trabalhador, o Inspetor Luíz
Vieira toma a iniciativa de solicitar verba especial para cobrir
os pagamentos de médicos e enfermeiros – no que o atende,
em outubro, o ministro José Américo, – eliminando-se desse
modo a cobrança estabelecida, que onerava os operários.98
Em 1939, o acudimento às condições médico-sanitárias dos locais de serviços, notadamente a canteiros de obras
dos açudes em construção, apresentava-se mais orientado
do que o de 1932, obtendo desempenho merecedor de
encômios. Em área de atuação da Inspetoria, nos meses de
abril, maio, e junho99 efetivaram-se 10.869 consultas médicas; 14.661 receitas foram aviadas e praticadas 180 intervenções cirúrgicas, – e mais: 13.014 injeções aplicadas, 7.197
curativos feitos e 283 dietas passadas.
Os serviços de proxilaxia documentaram 2.883 vacinações antitíficas por via hipodérmica; 1.201 vacinações e
revacinações antivariólicas; 1.621 quininizações, além de atento
trabalho de polícia, educação e propaganda sanitária (no 2o
Distrito), com a construção de seis fossas e inúmeras visitas
domiciliares, freqüentes; remoção de imundícias, fiscalização
de gêneros alimentícios, etc.100
Apreciável também o desempenho do setor de colonização empreendido pela inspetoria. Raul Senna Caldas destaca-o, comentando as atividades, por exemplo, da Colônia
5 de julho, em Palmeira dos Índios (Alagoas), onde 89 colonos cultivavam 385 hectares, sendo destes 185 plantados de
algodão, 121 de milho e feijão consorciados, 38 de mandioca, 48 de mamona e 2,37 de arroz”. “Nessa fazenda-tipo está
98
Cf. BOLETIM IFOCS, Vol. 12, n 1, julho/setembro de 1932, p. 62.
Raul Senna Caldas, “A Questão não é apenas água”.
100 No açude Tucunduba, em 1914, Thomaz Pompeu Sobrinho menciona escola desse tipo para 64 alunos.
99
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
63
se encaminhando” – refere o observador – “um assunto muito
Interessante: escolas para operários e escolas para agricultores”101. Na verdade era “apenas um curso prático”, mas de
bons frutos. Os operários-agricultores dessa Colônia, em 1937,
tinham feito “418 visitas aos postos agrícolas em funcionamento, para coletar dados, para obter ensinamento, para
resolver casos, para fazer consultas, como se fossem a um
médico”.102
101
102
Raul Senna Caldas, op. cit., idem.
Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. Cit., pp. 98-99.
EDUARDO CAMPOS
64
OS NOVOS DESAFIOS – A PREOCUPAÇÃO
ECONÔMICA COMEÇAM OS TEMPOS DO BNB., CHESF,
CVSF E SUDENE. AS SECAS DA DÉCADA 1950-59
A DÉCADA 1940-49, com vigência de mais um período
(1942) de irregular e baixa pluviosidade, vulnerando os sertões
do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, vê estabelecido pela
Inspetoria o plano de emergência com o alistamento de pessoas (não mais mencionadas como flagelados, mas retirantes)
nas obras dos açudes Curema e Mãe d’Água, na Paraíba, nos
trabalhos de construção do ramal ferroviário de Mossoró; rodovia de acesso ao vale Ceará-Mirim”, e “localização gratuita, nas
vazantes disponíveis dos açudes públicos, de famílias de retirantes (grifamos), desde que, em cada caso e a critério dos
Chefes de Distrito ou Comissão, a situação se justifique”.103
Confirmada a previsão de seca, tornava-se conveniente a “abertura de um crédito especial de Cr$ 16.470.000 para a
conclusão do trecho Canudos-Salgueiro, da Rodovia Fortaleza-Salvador; do ramal do Cariri, no Estado da Paraíba; do
trecho Jardim do Seridó-Caicó e conclusão da Rodovia Fortaleza-Teresina.
Mais recursos, em face da situação que experimentava
a região, seriam solicitados. É quando o próprio eng. Vinicius
Berredo, Inspetor da IFOCS, se dá conta de que, não obstante
a “atenuação momentânea resultante das últimas chuvas” caí103
Luiz Carlos Martins Pinheiro, idem, idem.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
65
das pelos sertões, não se modificara o quadro da crise. Deparavam as populações com a “carestia dos gêneros alimentícios, falta de confiança dos proprietários, dificuldades de
transporte”, etc.104
Leis de números 4.475, de 14 de julho; 4.663, de 4 de
setembro; 4.964 e 4.965, autorizavam créditos totalizando mais
de Cr$ 821.000.000 de verbas concedidas.105
Thomaz Pompeu Sobrinho inclui esse tempo (que começa, a seu ver, em 1935 e expira em 1949) num quinto
período de esforço do poder público (em grande parte do
próprio DNOCS sob a designação dos órgãos que o precederam) na luta contra secas e os seus efeitos, escrevendo: “Como
de costume, os trabalhos da Inspetoria de Secas sofreram sensível declínio com a paralisação de obras importantes, iniciadas sob a pressão dos flagelos que passavam
paulatinamente”.106 Mas na última fase do período admitido
por Thomaz Pompeu Sobrinho, como o quinto, que se estende de 1942 a 1949, as verbas são mais abundantes, conquanto menos rendosas – no seu referir – os efeitos. “O que de
mais interessante cumpre assinalar no fim do período foi o
ressurgimento da idéia de grandes ou colossais reservatórios.
No Ceará, embora durante tão dilatado tempo hibernasse o
propósito da construção dos açudes Orós, Poços dos Paus e
outros de grande vulto, surgiu a idéia de construir as barragens dos grandes reservatórios projetados ou simplesmente
anteprojetados do Banabuiú, no Boqueirão do Mondobim, e
do Araras, no rio Acaraú. Os indícios da seca do começo do
século seguinte despertaram e reforçaram tais idéias”.107
104
Idem, p. 163.
“História das Secas (Século XX)”, p. 479.
106 Idem, p. 485.
107 Raul Barbosa, “O Banco do Nordeste do Brasil e o desenvolvimento econômico da Região”, Fortaleza, 1979, p. 175.
105
EDUARDO CAMPOS
66
Nessa década, a 28 de dezembro de 1945, Decreto-Lei de
8.468 reorganiza a lnspetoria de Obras Contra as Secas, que
passa a denominar-se Departamento Nacional de Obras Contra
as Secas (DNOCS), com a finalidade de realizar “todas as obras
destinadas a prevenir e atenuar os efeitos da secas na Região a
que se refere o art. 2o da Lei no 175, de 7 de janeiro de 1936, e
em outras zonas do País, a que a Lei venha a estender o seu
campo de ação”. (Preâmbulo e parte do art. 19).
É presidente dos brasileiros um cearense, ministro José
Linhares, a quem coube assinar o diploma legal, referendado
por Maurício Joppert da Silva e J. Pires do Rio. A 28 do mesmo
mês, pelo Decreto no 20.284, é aprovado o Regimento do
DNOCS, dispondo sobre o desempenho funcional, sede (Rio
de Janeiro) e setores de atividades, deste modo: 1 Divisão Técnica, 1 Serviço de Administração, 1 Serviço de Documentação,
4 Distritos, 1 Serviço de Estudos, outro Agro-Industrial, e mais
um, o último, de Piscicultura (art. 20 , capítulo II).
Em 1946 o DNOCS já dispunha de 75.318.983 de verbas
para enfrentar as despesas de seu programa; em 1947 de
88.118.223; em 1948, de 124.071.682. Em 1949, os recursos
descem para 54.167.190, ascendendo em 1950 para 178.286.411,
e, no ano seguinte para 421.287.919, subida requerida mais
uma vez pelos graves problemas deflagrados pela seca, a ensejar
inaugurasse o Departamento suas atividades, testando-se seriamente em nova emergência estabelecida para o Nordeste.
Os anos que vão de 1946 à eclosão da seca, a que
aludimos, contemplam-se com outras previdências administrativas do poder público que, mais adiante, começarão a
render resultados de maior resistência aos efeitos desencadeados pelas rupturas do clima. Em 1945 (Decreto-Lei no 8.301)
é criada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco; em 1948,
a Comissão do Vale do São Francisco, quando o País não está
distante do funcionamento do Banco do Nordeste do Brasil
no
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
67
(BNB), autorizado a se constituir a 19 de junho de 1952 (Lei
no 1.064); e da superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), viabilizada em 15 de dezembro de 1959;
providências decorrentes da conscientização de que se fazia
urgente (como lembraria com propriedade o sr. Celso Furtado, mais tarde) a criação de “uma economia no Nordeste
“capaz de resistir às secas”.
Já a esses dias era evidente o interesse por nova política econômica, o que fica dito e repetido em entrevistas, artigos, estudos da época, e como ocorrerá na Mensagem de no
363, do mês de outubro de 1951, pela qual o Poder Executivo
se dirige ao Congresso Nacional propondo a criação do BNB.,
“impregnada de nítido sentido novador, que se expressa, logo
de início: “(...)” A política federal, no sentido de defender das
secas as vastas extensões do Nordeste e do Leste setentrional,
a elas sujeitas periodicamente, e de integrar tais regiões na
economia moderna, requer uma revisão, com o aperfeiçoamento, quando não superação dos métodos tradicionais. O
próprio título de “obras contra as secas” expressa uma limitação, focalizando o problema sobretudo pelo ângulo das obras
de engenharia. E tempo de, à luz da experiência passada e
da moderna técnica de planejamento regional, imprimir-se ao
estudo e solução do problema uma definida diretriz econômico-social”.108
Na verdade, principiam todos a entender que se requeria demasiado da capacidade operacional do DNOCS,
sobrecarregando-o de incumbências que já aí, com o crescimento demográfico, se tornam exageradas para o seu desempenho na adustão dos sertões sem condições econômicas
de sobrevivência. Ver-se-ia, então, que não bastava a água,
o canal de irrigação, o trabalho ofertado com generosidade –
108
Op. cit., p. 103.
EDUARDO CAMPOS
68
e que todos os descompassos clínicos nada mais eram que
um recuo à assistência paternalista –, para ajudar o homem
a permanecer na terra. Impunha-se solução para assalariar o
homem de modo que não se transformasse em simples indigente remunerado.
Em outro raciocínio, mas assistido pela intimidade dos
problemas da Repartição, sobre igual situação opina o engenheiro-agrônomo Paulo de Brito Guerra109: “Grandes tarefas
caíram nos ombros do velho órgão (DNOCS), geralmente alquebrados pela fraqueza de verbas (grifamos) ou pela sobrecarga de lutas em anos calamitosos. Muitas das grandes coisas,
boas ou más, especialmente estas, acontecidas nestas plagas
ensolaradas, eram atribuídas à “Inspetoria”. Foi ela responsável não só pela construção de açudes públicos e particulares
premiados (inclusive o pagamento do prêmio em dinheiro),
mas pelo próprio projeto e execução da rodovia transnordestina e centrais estaduais que a ela se ligaram, pela construção de trechos de estradas de ferro, de cais marítimos e de
campos de pouso, pela geração de energia, pela iluminação
e abastecimento dágua de cidades, por levantamentos
fitogeográficos, geofísicos, topográficos e serofotogramétricos,
pela introdução de peixes e peixamentos de açudes, pela
produção de milhões de mudas frutíferas e florestais, pela
disseminação da palma e pelo desenvolvimento da irrigação.
Pouco a pouco, novas e poderosas estruturas seriam
montadas, permitindo ao órgão respirar melhor e dedicar-se a
linhas de situação mais especializadas”.
No auge dos efeitos da seca de 1953, descobrem os
técnicos do Planejamento da Presidência da República ser
imperioso o aumento das “reservas d’água”, e de mais reten109
Cf. “Planejamento do combate às secas”, Banco do Nordeste do Brasil,
Comissão Incorporadora. Publicação 4, nov., 1983. As citações que se seguem
são extraídas das pp. – 32, 6, 14, 15, 16, 17, 18, 28, 32.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
69
ção desta, pois “tudo o que está feito com essa finalidade
ainda é muito pouco e nem sempre bem orientado”;110 pregam, com ênfase, a organização e fortalecimento da economia “no sentido de distribuir na região as reservas econômicas”.
Clamam a integração das “instituições e as populações regionais numa consciência do problema das secas”; e postulam
“programa de inversões federais básicas em obras e serviços
públicos”; mais “inversões em crédito e empreendimentos
públicos ou locais, que reduzam as desvantagens da Região
em relação ao Sul”. (...) “Este o sentido de Paulo Afonso e
outros investimentos públicos bem planejados na Região, tendo
ao lado o Banco do Nordeste do Brasil”.
Esse documento da Assessoria Econômica da Presidência da República, em 1953, “base para o eficiente planejamento da ação contra as secas e da organização do Nordeste”,
considera improdutivas as “medidas e realizações” até então
adotadas, postas em prática, a começar pela “deficiência de
informações seguras sobre os problemas da área, sobretudo
da situação meteorológica, agrícola e social”. E, a seguir, dá
por insuficientes as atividades promovidas pelo DNOCS, que
ostenta “desfavorável conceito público, há muitas décadas,
quanto ao controle da aplicação de recursos, a despeito da
notória honestidade de muitos dos seus técnicos e de períodos de “desinteresse geral do Governo pelos serviços” do
Departamento, ocasionando o “desfalque de técnicos; desinteresse pelos vencimentos “pagos”, resultando na permanência dos abnegados, dos desanimados em tentar nova carreira
e dos que têm outras “compensações”, etc.
O documento reconhece no entanto que o DNOCS era
obrigado a enfrentar “uma grande burocracia no Rio de Janeiro”, à tramitação de requerimentos para recebimento de verbas
110 José Osvaldo Pontes, “O trabalho do DNOCS e o programa da irrigação no
Nordeste semi-árido”, 1978, p.4.
EDUARDO CAMPOS
70
e de prestações de contas, sendo referidos os “frequentes cortes de dotações, implicando descontinuidade administrativa,
pelos azares da elaboração orçamentária e pelos planos de
economia”. E não esquece como “fatores das deficiências dos
serviços de combate às secas” (...) “as pressões políticas, visando – o que já em 1930 o Governo Provisório tentara inutilmente resolver – a agradarem “aos aglomerados eleitorais”.
Nesse mesmo desenvolver de pensamento é alvitrada
a melhoria de funcionamento da repartição, com a contratação
de “maior número de técnicos”, mais bem pagos, e de lhe
ser concedida “autonomia administrativa ampla, com registro e distribuição automáticos de verbas”; o “afastamento de
chefes e técnicos suspeitos, sem preocupação de nada apurar em inquérito”, exemplificados estes como os de “fortunas de origem duvidosa” (...) “aparentados com empreiteiros,
dos que permitiram exploração humana de barracões e falsas cooperativas”.
É solicitada, como providência final, a transferência da
“sede do DNOCS para um ponto da Região sujeito a secas,
quando possível central em relação aos extremos do
Polígono”(...) “Este local” – é afirmado a seguir – “poderá ser,
talvez, Paulo Afonso, no eixo do São Francisco e com instalações completas e disponibilidade de alojamento, em virtude
da próxima redução a mínimo dos quadros da CHESF”.
Sobre pressões políticas, está dito que a “racionalização dos Serviços oficiais, na área das secas, para que os sacrifícios financeiros da Nação produzam os frutos desejados,
defrontará sempre, por certo, os interesses políticos de zona e
mesmo de grupos e indivíduos, (grifamos) aos quais o planejamento e as escalas de prioridade, fixados à base dos interesses gerais, não poderá contentar”.
Os desacertos de atendimento à força de trabalho, agenciado pelas secas, identificados em eventual distribuição de
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
71
privilégios, favoritismo e atos de improbidade, atribuídos ao
DNOCS, antes deveriam ser imputados à debilidade do sistema governamental, ao longo de episódios da usura praticada
através de pagamentos por vales, por exemplo, e que mais
tarde, por ocasião do extenso período de seguidas estiagens
(de 1939 a 1983) se repetiria nos cheques nem sempre recebidos e em folhas de pagamento que, não obstante controlados
oficialmente, não dão cobro a atos de desonestidade, nem
tornam imune a vícios do sistema de atendimento à inscrição
de flagelados fictícios.
Os problemas do Nordeste, com os novos órgãos administrativos surgidos na década 1950-59, não se acabaram.
Mas contribuíram para que o DNOCS se despisse de obrigações que lhe eram atribuídas a mais, tendo então condições
de operar em seu campo de trabalho específico, condicionado à aua vocação, como em 1978 exprimia o eng. José Osvaldo Pontes, atual Diretor do Departamento, a de “interferir no
meio rural do Nordeste, visando à modernização das atividades agrícolas, prioritariamente através da irrigação”.111
A linguagem desse administrador àqueles dias – quase
duas décadas depois das alterações na ordem administrativa
em atuação no Nordeste –, conquanto não tencionasse absolver o DNOCS por falhas que ocasionalmente houvesse cometido, expressa o seu novo comportamento, de bom senso, de
opção natural por missões mais ajustadas a reais objetivos.
“Por essa via” – escreve o eng. José Osvaldo Pontes –
“espera o DNOCS atender às imposições de sua própria
destinação legal. A ele foi confiada a missão de radicar as
populações nordestinas, minorando-lhes os efeitos do flagelo
das secas e inundações periódicas, com vistas à melhoria do
seu padrão de vida. Esses objetivos, aliás, vêm norteando as
111
José Osvaldo Pontes, op. cit. Idem.
EDUARDO CAMPOS
72
atividades do Departamento desde seus primeiros dias. E permanecerão como suas metas ao longo do tempo, reajustadas,
à vista da evolução da tecnologia aplicável às urgentes exigências da comunidade regional”.112
O certo é que, com a queda de Getúlio Vargas em 1945,
e a subida do ministro José Linhares ao poder, ao lado de atos
decorrentes desse momento político, e de outros que se lhe
seguiram, praticamente surge “nova visão dos problemas da
zona semi-árida”, com a criação da CHESF e da C.V.S.F.113
Mais à frente, idéias defendidas no “Seminário para o
Desenvolvimento do Nordeste”, promovido pela Confederação Nacional da Indústria, em 1959 (um ano após a grande
seca de 1958), como as do economista Celso Furtado, refletem o despertar de consciência administrativa, responsável,
voltada para a solução de problemas que se eternizavam.
Celso Furtado considerava então: “exagerar a importância das
secas é desconhecer a significação real dos demais problemas
econômicos da região.”114 E configurando esse pensamento,
não aceitava a descapitalização das bacias irrigadas, salvo se
aproveitadas para “fim social” e “dar mais estabilidade à oferta de alimentos”, enquanto propunha a “organização de empresas mistas ou cooperativistas tecnicamente assistidas “para
operarem no que hoje se pode entender por perímetros irrigados. Em síntese, almejava “economia suficiente e resistente,
não só para atravessar as longas estiagens, como também
para enfrentar as secas periódicas”.115
Os anos 50, principalmente ao meio da década, aguçam a opinião de outro economista, prof. Mário Simonsen
112
José Gonçalves de Souza, “O Nordeste Brasileiro”, Fortaleza, 1979, p. 87.
Idem, Idem.
114 Celso Furtado, op. cit., idem, idem.
115 Mário Henrique Simonsen, in: “Comissào Coordenadora de Estudos do
Nordeste”, Estuods no 1, Brasília, 1971, p. XXV.
113
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
73
que os comenta ao escrever sobre o “Estudo no 1 da “Comissão Coordenadora de Estudos do Nordeste” (COCENE), em
1971, propondo medidas para o desenvolvimento do Nordeste e sua desejável integração à economia nacional: “Em meados do decênio 1950, o desnível econômico entre o Nordeste
e o Centro-Sul atingiu o seu hiato mais agudo. Fixou-se então
a convicção de que a economia nordestina precisava receber
um impulso exógeno bem mais amplo do que a tradicional
política de defesa contra as secas. Essa convicção conduziu,
em poucos anos, à criação da SUDENE, à instituição dos incentivos fiscais, às inversões na Região, e à elaboração de um
modelo de desenvolvimento do Nordeste baseado na industrialização”116
Quem contava apenas nove anos, em 1951, não tivera
o dissabor de conhecer os efeitos da seca. De 1942 até se
declarar a calamidade, esse ano, a vida para os nordestinos
transcorrera sem anormalidades. Mas se falharem as chuvas,
instalada a crise, antes de declarada pela voz oficial, os homens desertam. Evadem-se. Emigram.
Exaurida a vida da natureza, extinguiam-se, aos poucos, também as condições para a existência humana.
Como sempre, o Ceará servia de termômetro da crise
que, começando em 1951, prosseguiria, cruenta, até 1953. Ali,
expirado 1951, que exigira mais uma vez os cuidados do
DNOCS, constatava-se que, mal entrado o novo ano, já os
jornais denunciavam a “instabilidade dos serviços mantidos
pela União”, ocasionada pelo pagamento deficiente à mãode-obra e conseqüente evasão desta. Os sertanejos retornavam
aos seus pontos de origem, para o preparo dos campos,
prelibando a ocorrência do inverno...que não viria.
116
Cf. noticiário in: “Diário do Povo”(CE), 7,02;19,02; “Unitário”(CE), 8.04;
2.10.1952.
EDUARDO CAMPOS
74
O mesmo problema agravava a situação nos canteiros
de obras de vários açudes na região. Em Pentecoste, as coisas iam de mal a pior no açude “Raposa”, onde as condições de trabalho eram péssimas. À falta de “verba para o
pagamento, os menores completamente nus desfilam pelas
ruas” da cidade...
Em abril de 52, estava generalizada a diminuição de
mão-de-obra nos açudes em construção, situação que
emperrava. No Ceará, notadamente o Banabuiú, a certo momento só tinha a seu serviço pouco mais de cem operários.
E o pior: existiam recursos da ordem de cinco milhões
de cruzeiros, dos quais, parcela considerável – a persistir a
evasão de trabalhadores – teria de ser devolvida, medida que
não satisfazia o eng. Pereira de Miranda.
Ao final do ano, a imprensa alertava a população: “iminente o colapso do DNOCS à falta de verbas”, esgotadas as
dotações de emergência.117
Em outubro o senador Olavo Oliveira (CE) consegue
de seus pares a aprovação de projeto “regulando o estudo,
o orçamento e a construção dos açudes em cooperação com
os Estados, Municípios e particulares”. O art. 7 previa: “As
despesas da presente lei correrão por conta das verbas orçamentárias e para tais fins consignadas ao DNOCS”. Não era
a solução ideal.
Custa crer, mas voltava cáustico o flagelo, seguindo-selhe o constrangimento, a miséria, a falência humana.
117
José Américo de Almeida, op. cit., p. 42. O Instituto Agronômico José Augusto
Trindade (IAJAT) seria infelizmente desenvolvido na década 1960-69. A 31 de
julho de 1984, em expressiva solenidade voltou a prestar seus serviços tão
úteis no interesse da pesquisa e estudos do Nordeste. O presidente do CNPq,
presente ao ato, usando da palavra lembrou que a “desativação do IAJAT foi
um equívoco que só países pobres e subdesenvoividos conseguem cometer.
In: “Solo & Água” Ano 1, n 9, agosto de 1984 (MINTER-DNOCS).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
75
Cenário e personagem desse drama os conhecia José
Américo de Almeida. Desde os primeiros instantes de sua volta
ao Ministério de Viação, dizia a si mesmo que precisava
recontemplar os sertões desolados. Em outubro, satisfazendo a
esse desejo, sobrevoa “cinco mil quilômetros, passando de um
avião para outro, conforme os campos de pouso.” Penetra o
semi-árido, vai ao fundo do seu recesso. Anda de automóvel e
a pé. Vai a tudo, testemunhando os fatos. Reconhece “angustiado as caatingas desfeitas do planalto da Borborema, os cenários do Seridó, resseco e desolado; o chão do Ceará, todo cinza
e salpicado da verdura perene que as gotas dágua acumuladas
por seu povo laborioso iam regando: o ar de fogo do Piauí; as
solidões de Pernambuco”. 118
E fechando um período de raro antologismo de sentimentos bem expressados oficialmente, o ministro é novo Ulisses
contando seu retorno à casa. finda a jornada emocional, estendo, novamente, as mãos, sentindo as necessidades humanas, no seu auge, vendo que o Nordeste só se salva, antes de
as chuvas correrem, se choverem rios de dinheiro. É preciso
irrigar de nova vida esse organismo desfeito”.
Palavras tocadas de drama, ferindo realidade que agride pelo inusitado, pela violência da fome, da sede, da separação de famílias na migração mais dolorosa que pode haver,
a dos que migram em sua própria terra, fundamentam ó preâmbulo da exposição do Ministro perante a Câmara de Deputados, em sessão do dia lo de novembro de 1953.
Por sua explanação vai-se saber o que realizou o Ministério e notadamente o DNOCS, em mais um confronto
com a adversidade nordestina.
A seca eclodida em 1951 intermediava-se, até atingir e
vigorar, devastadora, em 1953. No ano de 1952, as chuvas,
ainda que caindo com mais freqüências em alguns lugares,
118
José Américo de Almeida, “As Secas do Nordeste”, 1981, pp. 24-25.
EDUARDO CAMPOS
76
não garantiram mais do que percentual mínimo de colheitas
nas lavouras que escapavam ao sol. Não havia o que esperar
da quadra insólita senão o aumento, cada vez mais avultado,
de braços ociosos, agudizando problema social mais contundente do que o presenciado antes.
Dessa forma, o desempenho do DNOCS na administração Souza Lima, ao transcurso do primeiro semestre de
1953, já podia oferecer á Nação expressivo desempenho. Achavam-se em estudos um açude publico, outro particular, e 125
km de estradas de rodagem. Trabalhos executados, de aterro,
fundação, apiloamento, cortes, sangradouros, e alvenaria levantada, totalizavam 1.115.092 m3; canais e drenos, 35.129
metros lineares, assim como já se viam ultimados quase 100.000
m3 de terraplanagem em campos de pouso, e, por igual,
2.723.051 m3 em leitos abertos para rodovias, além de 61
poços perfurados.
Ao terceiro trimestre (administração José Américo de
Almeida) o ritmo de trabalho, considerado o tempo em que
eram desenvolvidos, surpreendia. Estudos de rodovias logo
totalizariam 206 km; 1.118.853 m3 era o resultado obtido em
fundações, aterros, apiloamento, etc., enquanto, sob aceleração
das obras, as rodovias ofertavam de resultado 3.119.854 m3. 119
A 30 de setembro do mesmo ano prosseguiam as obras
(mencionadas aqui as mais importantes) do açude público
Cajazeiras; das rodovias Terezina-Picos. Central do Piauí, Picos-Jaicós, no Piauí; açude publico Pentecoste (Pereira de
Miranda); Banabuiú (Arrojado Lisboa) e Araras (Paulo
Sarasate), estes últimos respectivamente com 1.000.000.000 m3
e 1.500.000.000 m3; o Várzea do Boi, com 52.000.000 m3,
além de 30 outros açudes particulares em regime de cooperação, a rede de irrigação do Aires de Souza, do General Sampaio,
e mais serviços em favor das Rodovia Central do Ceara, Sobral119
José Américo de Almeida, op. cit., p. 41.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
77
Meruoca-Massapê; na infraestrutura e reparo de 4 postos agrícolas, em dois de piscicultura em 44 poços.
No Rio Grande do Norte os trabalhos se concentravam
nos açudes Pataxó, Trairi, General Dutra, etc; nas rodovias
Mossoró – Luiz Gomes, Manau – Açu, etc. Estavam perfurados 17 poços. E ali a IFOCS construía ponte com vão de 300
metros sobre o rio Piranhas.
Na Paraíba seguiam as obras dos açudes públicos Mãe
d’Água, Cabaceiras, Tribofe, etc. Atacavam-se as rodovias Patos – Piancó (trecho de Piancó), Boa Vista, etc. Postos agrícolas recebiam cuidados especiais, particularmente o do açude
São Gonçalo, onde se destacavam os “serviços de pesquisas e
desenvolvimento da cultura agrícola realizados pelo Instituto
José Augusto Trindade”.120
Em Pernambuco intensificavam-se as providências em
favor do açude público Poço da Cruz e reiniciavam-se as
obras do Abóboras e do Arruído. Dava-se por concluída a
rodovia Araripina-Crato, atacavam-se outras estradas, postos
agrícolas, etc.
Os açudes públicos Poço das Trincheiras e Jacaré dos
Homens eram atacados em Alagoas; em Sergipe também se
construíam dois, além da rodovia Central no trecho Aracaju –
Frei Paulo (85 km); na Bahia avançavam os trabalhos dos açudes públicos Jacurici, Champrão, Corocochó, etc., e de mais
nove particulares, em cooperação, assim como várias rodovias.
No norte de Minas Gerais seis poços eram perfurados.121
120
José Américo de Almeida, op. cit., p. 59.
Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. cit., p. 113. No mesmo lugar tem-se quadro
elucidativo da freqüência de operários. Os primeiros algarismos correspondem
ao primeiro semestre e os seguintes ao segundo, em cada exemplo: 1o Distrito
(CE) 8.673, – 15.852; Serviço Agroindustrial; 3.616 – 3.298; 2o Distrito (PB) 12.385
– 17.411; 3o Distrito (Pe) e (Al); 2.587 – 4.745; 4o Distrito (BA) e (SE): 2.889 –
4.440; 5. Distrito (RN); 6.381 – 6.584; Comissão do Piauí (PI): 1.361 – 6.891;
Comissão da Bahia – Minas; 155 – 171.
121
EDUARDO CAMPOS
78
O eng. Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, então Diretor
Geral do DNOCS, ao se ocupar dos fatos desses dias escreveu: “Contra a situação generalizada de desemprego não havia senão ampliar os centros de trabalho, com a multiplicação
das obras governamentais”. E assim, com efeito, aconteceu,
evitando-se o êxodo rural que, mais uma vez, se prenunciara
de forma iniludível.
As construções tiveram de desdobrar-se a fim de ser
colocado número sempre crescente de trabalhadores. E se é
verdade que a procura de emprego diminuía com a queda de
escassas chuvas, em vista das esperanças renascidas com a
precipitação pluvial, não é menos exato que, desfeitas as promessas de inverno, muitíssimo mais considerável se verificava
a oferta de mão-de-obra”.122
Adiante: “Para concorrer às despesas com as construções em andamento e superar as dificuldades urgentes, contou o DNOCS com dotações orçamentárias, ascendendo a
um total de Cr$ 504.647.620. Tais recursos não puderam ser,
contudo, inteiramente aplicados, havendo, ao encerrar-se o
exercício, saldo a recolher de algumas consignações. Muitas
verbas “eram destinadas a construções para às quais não
havia projetos nem mesmo “estudos preliminares”. Perdiamse assim valiosos recursos, anomalia corrigida pela Lei no
1.918.123 que autorizava para o exercício subseqüente, para o mesmo fim, a aplicação dos recursos não aproveitados
em tempo hábil.
Em 1954, já com o inverno não obstante tardio na
Região nordestina, observa mais uma vez o eng. Luiz Mendes124 , nada aconselhava a redução de “assistência às populações que, por três anos continuados, vem sendo duramente
122
123
124
Lei Paulo Sarasate.
Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. cit., 114.
Luiz Carlos Martins Pinheiro, op. cit., 115.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
79
castigadas pelos efeitos da seca”. (...) “E porque se lhes hajam
tornado mais prementes as necessidades com as provações
sofridas, explica-se que, não sendo, agora, o inverno tão deficiente quanto os dos últimos três anos, o pessoal em serviço
se mantinha em nível mais bem elevado, como fica evidente
pelo quadro de permanência de operários:
MESES
Janeiro
Fevereiro
Março
FREQÜÊNCIA MÉDIA DOS OPERÁRIOS
1951
1952
1953
1954
4.597
40.372
16.604
54.498
4.745
36.948
15.454
47.032
125
24.107
30.345
26.918
34.61
Em importante documento mandado publicar pelo Ministério do Interior126 pode-se ler a respeito desse período de
desajustamento não apenas ecológico mas social, o ano de
1958, quando mais se acentuaria a inesperada face do problema: “As duas grandes secas de 1951 – 1953 e 1958 favoreceram
o estabelecimento de uma nova compreensão da realidade do
Nordeste. A “solução hidráulica”, apresentada desde 1877, começou a perder terreno para as novas concepções de
equacionamento da problemática regional. Constatava-se ser
de pouca valia a acumulação de bilhões de metros cúbicos de
água, nos milhares de açudes da Região, se não se cogitava do
seu aproveitamento racional. As atividades do DNOCS foram
então orientadas no sentido de promover a completa e bem
planejada exploração das obras já construídas e de pesquisar
novas fontes de produção de riquezas”.
125 “Plano Integrado para o combate preventivo aos efeitos das secas no Nordeste”, abril 1973, Minter, Coordenação de Otomar Carvalho, p. 183.
126 José Cândido Pessoa “Explanação do Diretor-Geral do DNOCS na Assembléia Legislativa da Bahia a 29 de maio de 1959”, in: BOLETIM DNOCS, n. 5,
Vol. 20, agosto de 1959, p. 6.
EDUARDO CAMPOS
80
Diante, portanto, do “acentuado desajustamento do
elemento humano às novas tarefas, inicia o DNOCS a educação de camponeses, no sentido de formar pioneiros nas
técnicas modernas de irrigação, e criar, no Nordeste, uma
mentalidade irrigatória, A experiência fracassou, de inicio,
em virtude do exagerado desnível entre professores e alunos: “mestres com instrução universitária e alunos analfabetos e ignorantes”.
Havia a perspectiva de se aumentarem as verbas para
as grandes obras a que propunha o DNOCS, vencida a etapa
de quase crônica insuficiência de recursos, principalmente pelos
anos que antecederam a administração na Direção Geral, do
eng. José Cândido Pessoa, que confessava: “Realmente, quando assumi a direção do Departamento de Obras Contra as
Secas, havia muita crítica ao Departamento, no Ceará, porque
estávamos quase há vinte anos sem concluir um só açude
público no Estado (grifamos). As anotações que existiam no
nosso orçamento”, (...) “eram, geralmente, por exemplo, no
montante de um milhão de cruzeiros, para que fosse construída
uma obra orçada em 300 milhões de cruzeiros. Dentro dessa
orientação, podíamos passar 300 anos para concluir determinada obra”.127
Mais do que recursos, pretendiam todos a reformulação
da infra-estrutura da Região, admitindo então o governo federal que ja era “tempo de à luz da experiência passada e da
moderna técnica do planejamento regional, imprimir ao estudo da solução do problema (nordestino) uma definida diretriz econômico-social”. Surge a compreensão de que é
necessário prevenir-se contra os efeitos das secas, fenômeno
inevitável e presentementemente irremovível”.128
127
128
Otomar Carvalho, cit., obra citada página anterior.
Otomar Carvalho, op. cit., 183-pp.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
81
Referida nessa oportunidade, ainda, nesse documento –
como se mencionou anteriormente – a criação do BNB, cujo
Conselho Consultivo passava a contar com a presença do Diretor do DNOCS, do Superintendente da CVSP e de “representantes dos Estados incluídos no Polígono das Secas”. Seguiu-se
a essa providência, em 1956, a formação do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN).
Mais dois anos à frente será lançada a chamada Operação Nordeste (OPENO) e simultaneamente instalado o Conselho do Desenvolvimento do Nordeste (CODENO), caminho
natural para a implantação da SUDENE, que ocorreria em 1959.
“A seca de 1958, quase tão aguda quanto as de 195153, veio provar, mais uma vez, a ineficácia dos instrumentos
de combate, reforçando o inconformismo das lideranças regionais e aumentando as pressões no sentido de serem tomadas medidas mais eficazes para a solução do problema
nordestino”.129
Da estratégia de ação pode-se dizer que se originou a
SUDENE, a 15 de dezembro de 1959, um ano após a calamidade que, na década de que nos ocupamos, infligiu bastante
sofrimento à Região. Ainda aí para a nova missão de “estudar
e propor diretrizes para o desenvolvimento do Nordeste; –
supervisionar, coordenar e controlar a elaboração e a execução de projetos de órgãos federais na Região e que se relacionem com o seu desenvolvimento; executar, diretamente ou
mediante convênio, acordo ou contrato, os projetos relativos
ao desenvolvimento do Nordeste”; “coordenar programas de
assistência técnica, quer nacional, quer estrangeira, conforme
dispositivos básicos (art. 1o parágrafos 1 e 2)130. O Departamento, ao lado dos outros órgãos em atuação na área nordestina, teria desempenho de bastante relevo, mais capacitado
129
130
Idem, pp. 183-184.
Rubens Vaz da Costa, “O primeiro passo”Rio, 1973, pp. 38-39.
EDUARDO CAMPOS
82
a enfrentar os problemas que haviam crescido superiormente
à sua capacidade de trabalho.
Os acidentes provocados pelas grandes estiagens que
viveriam os nordestinos, ao longo dos anos do qüinqüênio
1959-1964 – que se comentará adiante, na oportunidade –,
praticamente conformaram os vaticínios e o clima despertado
de insegura indagação que acudia a economistas preocupados com a situação do Nordeste Rubens – Vaz da Costa, por
exemplo, em livro dado à publicidade em 1973, alertava:
“Apesar do progresso nordestino, sua economia está hoje
mais ‘vulnerável’ a uma seca de proporções do que no passado”. E “não é menos certo que a próxima seca, que não se sabe
quando virá, encontrará o Nordeste mais vulnerável do que, por
exemplo, em 1958, quando “o Governo chegou a empregar 536
mil trabalhadores em obras públicas de emergência”, não obstante
no muito que tenha sido feito pela Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas (IEOCS), criada em 1909, e pelo seu sucessor, –
o DNOCS – em termos de açudagem, construção de estradas,
implantação de culturas resistentes à seca, etc”.131
De 1940 a 1950, a Região assistiu à diminuição do
ritmo de trabalho das construções de seus açudes. Nesse
período, terminadas estavam se obras de seis reservatórios.
De 1951 a 1960, apenas seriam construídos 64, numa média
anual de 6,4.132
Na década de 1950-59, as lideranças políticas e empresariais se sentiam bastante sensibilizadas pelos problemas da
área infelicitada pelas secas. Em 1956 tem-se o I Encontro dos
Bispos de Campina Grande, ao qual, três anos depois, de 24
a 26 de maio, outro conclave sucederá em Natal (RN).
131
“MINTER, DNOCS – Açudes públicos no Nordeste”. Fortaleza, 1980, p. 62,
in: “O Nordeste e a tecnocracia da Revolução”, J. Colombo de Sousa; Brasília,
1981, p. 70.
132 João Gonçalves de Souza, op. cit., p. 151.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
83
As manifestações, a partir daí, tornam-se freqüentes a
favor da Região na Câmara Federal, nas Assembléias, pelos
Estados, em congressos, nas Universidades, na Imprensa, etc.
“Os Bispos “(...)” promoviam reuniões recomendando a necessidade do desenvolvimento para o Nordeste: o jornalista
Antônio Calado escrevia uma série de artigos no “Correio da
Manh㔠(...) “sobre a urgente necessidade de modificar o quadro social do Nordeste” e “sanear o DNOCS”.133 No entanto
lavrava a falta de unidade nas idéais propostas, e foi em meio
desse clima que surgiria a SUDENE, rastreando remissivamente
os sofrimentos e as debilidades também econômicas dos nordestinos que, a duras penas, haviam ultrapassado os terríveis
dias impostos pela seca de 1938.
“Além da reação originada de setores do Congresso e
da Imprensa, a SUDENE teve ainda de enfrentar outros problemas, como a hostilidade de um órgão rival, o DNOCS, a principal instituição federal a serviço do Nordeste semi-úmido e, de
outro lado, a inexperiencia profunda da quase totalidade de
sua equipe técnica, idealista e dedicada, mas constituída de
jovens recém-graduados pelas universidades da Região”.134
Teorias, projetos, como soldados, só se definem experimentados. A cada confronto, conquanto atingidos alguns
objetivos da estratégia que se desejava exercitada em êxito
reparador, sobravam outros sem atendimento suficiente.
A seca de 1958, não obstante todos os bons propósitos
administrativos, a presença já atuante do BNB e de outras
instituições do porte da CHESF e CVSF, soaria ao poder público dantesca em suas “proporções trágicas”.135
133
Idem, p. 152.
“A luta contra as secas no Nordeste”, publicação no 19, com a exposição do
ministro Lúcio Meira na Câmara Federal dos Deputados, em 11 de junho de
1958, Rio, p.3.
135 Cf. op., página anterior, p. 12.
134
EDUARDO CAMPOS
84
Dicionário, que se criasse, de expressões definidoras
dessas tragédias, estaria suprido a partir de 1958 de nova
designação para os locais de concentração da força de trabalho disponível e ofertada: “frentes de trabalho”, estratégias
para aproveitar a mão-de-obra abundante, que, em 1979, seria trocada por “bolsões da seca”.
Em 1958, em 15 dias, diante da irreversibilidade do
quadro, uma centena de frentes de trabalho já estavam abertas para ocupar a população carente.
“Como tudo isso custa dinheiro, cuidou o ministro Lúcio Meira de obter a liberação de verbas do “Fundo de Secas”
(§ 1o do art. 198 da Constituição Federal) e dos duodécimos
das dotações devidas ao DNOCS a ao DNER (Departamento
Nacional de Estradas de Rodagem) até o mês de junho. Conseguiu-se assim mobilizar imediatamente Cr$ 466.249.360".136
A 11 de julho do ano malsinado a que se referem esses
fatos, o Ministro repetiria a história, comparecendo à Câmara
Federal, e o fazendo para confessar humildemente que a seca
ainda era incontrolável. Surpreendido se confessa diante das
exigências de verbas, a afirmar que se trata de “um problema
muito caro para um País no estágio de desenvolvimento em
que se encontra o Brasil. Basta dizer “– declara –” que os 480
mil flagelados” (...) “já alistados nos serviços federais do Nordeste, exigem, só para pagamento de auxílios, a verba astronômica, diária, de 19 milhões e 200 mil cruzeiros, ou seja, 576
milhões de cruzeiros137, mensalmente”.
136
Idem, p.13. Note-se que em 1983 as despesas com os chamados “bolsões
das secas” chegaram a algarismos surpreendentes. O Fundo de Emergência e
Abastecimento do Nordeste (FEAME) desembolsaria recursos da “ordem de
Cr$ 184,9 bilhões, atuando em 989 municípios (72% do total do Nordeste) e
assistindo a 2.502 mil trabalhadores, além da utilização 4.086 carros-pipa”. Cf.
“Ação frente à seca”, BNB, Fortaleza, 1984, p. 23.
137 Idem, p.13.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
85
O trabalho de sua assessoria, o próprio texto de seu
pronunciamento, identificam o amadurecimanto administrativo de tão diligente Ministro, equiparável em idéias e trabalhos a José Américo de Almeida. E bem intencionado,
capacitado a olhar para trás, como refere amiudamente, a ver
que muito já se havia feito, a destacar, na oportunidade de
sua explanação, que para o combate oficial dos efeitos da
estiagem “um dos recursos mais eficazes” era indiscutivelmente”
a construção de açudes, onde a água possa ser acumulada
para dessedentar os homens e os animais e para irrigar, através de canais, as terras ressequidas”.138
Adiante, com igual propriedade de raciocínio: “A verdade, porém, é que não há nenhuma solução isolada na
luta contra as secas. Faz-se mister um conjunto de providências, dentre as quais, efetivamente, uma das mais necessárias é a construção de açudes e o seu aproveitamento
para múltiplas finalidades: irrigação, controle de enchentes,
regularização de descargas, navegação, eletrificação, aproveitamento de vazantes, pesca, colonização, abastecimento
d’água às populações, dessedentação dos rebanhos, melhoria
técnica de processos agrícolas, possibilitada pela concentração demográfica, etc.”139
Em sua irrepreensível exposição o ministro Lúcio
Meira se reporta à atuação do DNOCS, ressaltando a atividade do Departamento a partir de 1956, com a informação
inicial de que este concluíra até aquele momento obras de
açudagem que represavam 3.522.000.000m3, “cerca de 120%
do total represado pelos reservatórios que vinham sendo
executados desde o Império até a posse do Presidente Juscelino Kubitschek”.
138
139
Idem, p. 14.
Idem, Idem.
EDUARDO CAMPOS
86
Aditava: “...até maio de 1958 o DNOCS concluíra “439
açudes sob regime de cooperação” e havia perfurado “4.221
poços, num total de 12.600.000 litros/h.”140
Destacaria também a intenção do governo de tornar
perene o rio Jaguaribe, o que seria conseguido com o Orós141;
o fomento agrícola por intermédio do Serviço Agroindustrial,
que mantinha sob controle 18 açudes; e repele as críticas – de
observadores apressados – aos problemas de irrigação; valoriza a piscicultura racional, com a produção de peixes no 1o
trimestre de 1938, da ordem de 285 toneladas.
Registra o aproveitamento do potencial hidrelétrico procedido pelo DNOCS ultimamente, instalando uma turbina de
200 CV no açude Piranhas (PB), e no Curema (PB) –, etc.
No tocante à construção de rodovias, demora-se, referindo-se elogios ao desempenho do DNOCS, destacando
o abastecimento dágua a 30 cidades (que nomeia); os campos de pouso preparados; a irrigação por motobomba: os
pastos arbóreos; a grande açudagem, representada pelos sistemas do Baixo Piranhas ou Açu, Acaraú, Curú, Banabuiú,
Jaguaribe.
Em dado instante afirma de modo peremptório: “Verifica-se, portanto, que as obras do DNOCS, cobrindo tantos
setores de atividades, estão programadas de molde a produzir
140
Longa a história da construção desse importante reservatório, o mais significativo do Nordeste. Seus estudos foram autorizados pelo eng. Arrojado Lisboa
em 1911, mas o projeto acabou destruído pelo incêndlo da sede da IOCS em
Fortaleza. Em 1920 é elaborado novo projeto e procedidos os “estudos preliminares da construção”. O inverno de 1924 arrombaria o dique que mudava o
curso do rio para ensejar os trabalhos de engenharia. Em 1930, o eng. Luiz
Vieira retoma os trabalhos. Em 1958 “mais uma vez” são recomeçadas as obras,
a barragem em “U” proposta dos engos. Anastácio Maia e Casimiro Munarnki. No
inverno de 1960, torrencial, perderia 30% da parede, depois do que prosseguiriam os trabalhos até a inauguração a 5 de janeiro de 1962. Conf. Abdeel Goes de
Oliveira in: “O grande Orós”, “Solo & Água”, Ano 1, n. 5, 1984 (MINTER)
141 Idem, p. 25.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
87
os melhores benefícios à população que habita o Polígono
das Secas”.142
Vaticínio e averiguação assentados em fatos e na realidade dos problemas acudidos pelo grande órgão público ao
longo de árdua caminhada, mas profícua, que atinge o final da
década 1950-59, consciente ainda mais de suas responsabilidades, com seus dirigentes e técnicos amadurecidos na compreensão de que a açudagem e a irrigação, conquanto realizações
necessárias, que não suprimem os efeitos das secas.143
O DNOCS, não tardará a atualizar sua orientação em
favor de “projetos de agricultura irrigada em lotes familiares,
com a preocupação de aumentar a produtividade e absorver
parte da mão-de-obra à procura de emprego”.
Dentro dessa linha de pensamento e ação é que atuará
o eng. José Osvaldo Pontes, “pondo em execução um novo
modelo de colonização dos açudes públicos”.
142 Cf. Genésio Martins, “DNOCS – um órgão a serviço do Nordeste”, MINTERDNOCS, 1974 p.13, in: João Gonçalves de Souza, op. cit., p, 132.
143 João Gonçalves de Souza, idem, idem.
EDUARDO CAMPOS
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2 de outubro de 1952
EDUARDO CAMPOS
92
2
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS E
POLÍTICOS DO PODER
LEGISLATIVO NO CEARÁ
(Idéias e Circunstâncias)
O PODER Legislativo, no Ceará, como de resto no País,
a despeito de sua importância como motivador do diálogo
político que nos vem animando ao longo do percurso republicano; e de sua pronunciada tendência à participação do
povo, é ainda um “instrumento de socialização política” para
o exercício das diversas funções executivas1. Tem sido pouco
estudado e discutido por nós, não obstante seu desempenho
vinculado principalmente aos nossos anseios de efetivação
do trato das preocupações partidárias, expressivas da própria
problemática comunitária, mesmo quando as decisões parecem correr mais ao sabor de interesses personalísticos, individuais, do que pelos de inspiração grupal. E reflete, com justeza
de significado, os fatos sociais mais importantes da sociedade
em que, ao longo do tempo, nos inserimos.
Se existência é histórica, como explicam os estudiosos,
a política não deixará de ser o seu fator de inspiração. E aí,
nesta definição a que não aproveita apenas o sentido semântico, o modo de ser, de existir, de convivência de pessoas,
como no caso específico do Ceará, incrustadas num mundo
nem sempre áspero mas indiscutivelmente desafiante, provocador de atitudes firmes e heróicas.
1
Consuelo Novais Sampaio – “O Poder Legislativo da Bahia”, Salvador. 1985, p.19.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
95
Não é sem razão que Romano Guardini insinua: “El
sentimiento del poder puede vincular-se incluso a situaciones
que parecen contradecirlo: el sufrimíento, la privación, la
inferioridad”, e, como acrescenta Fernando Whitaker da Cunha,
“até a motivos escatológicos, em seu mais baixo sentido”.2
O mundo em que vivemos, argüido por pecualiaridades
próprias, particularizantes, é importante para nós na mesma
medida em que nos tornamos também importantes para ele.
Não é sem razão que Djacir Menezes 3 , analisando o
posicionamento do homem, ou de sua vida, no meio físico,
escreve: “A vida prática resolve a oposição entre o homem e
o mundo, que o dualismo agravara. Pela interpretação de
ambos. A história da humanidade é a adaptação da natureza
às necessidades do homem, num duplo esforço: adaptandose a ela e adaptando-a a si; é esse duplo processo, que constitui o trabalho, a práxis”.
No ritual da posse da terra, na efetivação de nossa vocação agrária, começa a vigência da lei, e com ela a do próprio
Direito, ainda que, sob o realismo de análise humanista, arbitrária a gestação, e em prejuízo de outrem. Mas é assim – ou
pelo menos entre nós o foi. Circunstância que se ajusta ao
pensamento sociojurídico de Carlos Nardi-Greco,4 ao afirmar
que “el Derecho en ausencia del Estado y aun en ausencia de
toda organización política, y por algún tiempo al menos, se
desarrola sin sufrir la influencia de los fenómenos politicos”.
O Direito, dessa forma, é expressão de uma vontade
dominante, e não de outra vontade – mais amadurecida, dizemos nós que surge organizada do poder público regularmente estabelecido.5
2
“El poder”. P. 21, citado por Fernando Whitaker da Cunha, in: “Democracia e
Cultura”, Forense, Rio, 1972, 76.
3 “O Outro Nordeste”, Livraria José Olímpio Editora, Rio, 1937, p.41 .
4 In “Sociologia Jurídica”, Editorial Atalaya, Buenos Aires, 1947, p. 28
5 Idem. o. c., p. 28.
EDUARDO CAMPOS
96
Depois da sinalização, do balizamento de limites da
propriedade, o direito é impetuoso: grito e posse. O homem
estabelece sua própria defesa como regra que o torna conquistador que usurpa pela imposição. É assim que se funda a
fazenda e o criatório pelos sertões, amparados pelos seus
dois sustentáculos fundamentais: “o latifúndio e a escravatura, depois o salariado, como sistema de exploração.”6
Conveniente ter em mente, para melhor entendimento
do que seja o ingresso desse segmento de nossa história social, em formação, no exercício da ação política, a compreensão da verdadeira identidade parental explicada pela lucidez
de Oliveira Vianna, quando a definiu constituída de figuras
que atuam decisivamente: o patriarca da família; os parentes
consangüíneos (filhos e netos); os parentes colaterais (irmãos,
tios e sobrinhos); os parentes por afinidade civil (genros e
cunhados); os parentes por afinidade religiosa (os “compadres” e “afilhados”); os parentes por adoção (os “crias” da
casa senhorial e, sem dúvida, os “moleques mimosos” de
Antonil e os de Vilhena).7
Na verdade, a chamada “solidariedade parental”, definida por Oliveira Vianna, impõe regras, consolida o comportamento do clã através dos anos, enquanto a organização
6
Djacir Menezes, o. c., p. 72. “Desde a Colônia, ser proprietário era tudo. A
condição de não proprietário acarretava a desvalia social, a carência econômica, a não importância política, a desclassificação cultural. Vem daí aclientela
formada pelos despossuídos que compunham verdadeiros rebanhos humanos tangidos pela vontade do “coronel”. In: “Fernandes Távora e o Tenentismo
no Cearᔠ(1921-1924), João Alfredo de Sousa Montenegro p. 30.
7 In: “Instituições Políticas Brasileiras”, José Olímpio Editora, Rio, 1949, 1 o
Vol., pág. 242. “O parentesco oferece singularidades: além do parente legítimo ou ilegítimo, do parente consangüíneo ou afim, há o parente espiritual,
muitas vezes vinculado às pessoas com laços mais estritos, com obrigações
e deveres. Resulta essa forma de parentesco do batismo ou da noite de São
João... In: “O Homem do Nordeste”, Tomás Pompeu Sobrinho, Rio Tomo LI,
Ano II, 1937, p. 386
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
97
familiar se consolida e enriquece. E se torna poderosa. Mas,
ainda assim, amorfa, insubsistente. Não se apresenta com “organização legal, nem religiosa”, e a tanto a sua “unidade moral e a sua solidariedade parental só se revelam nas ocasiões
mais graves”. Pelo menos desse modo sucedeu ao transcurso
dos “três primeiros séculos e, depois, no quarto, por ocasião
dos prélios eleitorais, decorrentes do regime democrático
ínstaurado nesse século”.8
O patriarca desse clã, qualificação que ainda seduz a
cronistas mundanos de hoje, é o fazendeiro que se tornou
rico e dono de poderes, aquele que aperfeiçoou, muitas vezes, o seu grito e força. Entidade de mando no topo da
incipiente hierarquia hinterlândica, ancorada na caatinga
enfornalhada, onde praticamente se enfeuda; e disposto a
vender caro a sua vida e a acudir a quem se valesse de sua
participação. Nesse tocante, bastando reunir a mão-de-obra
disponível, os vadios que viviam acostados ou transitando de
fazenda em fazenda, e lhes dar à mão alguns trabucos, e
facas, e punhais, para que logo se transformassem naquelas
legiões miseráveis mas agressivas, os “pés de poeira” ao dizer
de João Brígido.
Com o advento da Constituição de 1824, chegaram
novos dias para as províncias no tocante às prerrogativas políticas, tendo aquelas o direito de postular e possuir também
senadores e deputados, subindo ao Senado os que, em gozo
de seus direitos políticos, como brasileiros, tivessem no mínimo quarenta anos de idade, fossem de reconhecido saber,
capacidade e virtudes, e, de preferência, com serviços prestados à Pátria; ainda possuíssem renda anual superior a 800$000
(Capítulo III, art. 40).9
8
Oliveira Viana, in: o. c, p. 242-243.
José Aurélio Saraiva in: “Fatos e Documentos do Ceará Provincial” Imp. Universitária, UFC, Fortaleza, 1970, p.135. “O processo eleitoral exigia uma renda
9
EDUARDO CAMPOS
98
Não será ocioso repetir que a estrutura política do Império subordinada ao exercício eleitoral vigente, estava fora
da realidade; “não correspondia aos ideais do século”10 mas
nem por isso deixou de ser atrativa para as lideranças
hinterlândicas, certas de que chegava o momento de, por
meios mais ortodoxos, conquistarem também o seu espaço
legal de atuação.
Sob o patrocínio dessa nova circunstância, a da
institucionalização política do Império, os “fazendeiros se integraram nas facções e partidos, tomando parte no processo
eleitoral e na disputa do poder provincial local. Compreenderam que seu prestígio e autoridade estavam dependentes do
grau de recursos de que pudessem dispor para influenciar as
decisões governamentais que lhe afetassem (grifamos)11.
Retomada de comportamento, ou recrudescimento
maior deste, já observado antes como aludiu Fernando
Whitaker da Cunha, explicitando: “Pelo fato de as eleições
coloniais no Brasil terem se desenrolado, na órbita municipal,
revestiam-se elas de intenso localismo (grifamos) que exerceu insondável influência em nossa formação político-social,
constituindo um dos significativos sistemas de nossa
predestinação à forma federativa de Estado. Era, então, subsmínima de 100 mil reais anuais, como condição para o exercício do direito do
voto que, em uma primeira etapa, escolhia os representantes de paróquia; 200
mil reais anuais credenciavam os eleitores de paróquia para a escolha dos
representantes de província. Estes últimos elegiam os deputados, cuja renda
mínima era fixada em 400 mil reais. e, destes, saíam as listras tríplices para
preenchimento dos cargos de Senador, para o qual, além da renda anual de
800 mil reais, era necessária a confirmação de um dos selecionados pelo
Poder Moderador”, in: Manuel Maurício de Albuquerque, “Pequena Hist. da
Formação Social Brasileira”, GRAAL, 1984, p.344
10 João Camilo de Oliveira Torres, in: “Democracia Coroada”, Vozes, 1964, cit.
por Fernando Whitaker da Cunha, o. c., p. 118
11 Maria Arair Pinto Paiva, in: “A Elite Política do Ceará Provincial”, Tempo
Brasileiro, Rio, 1979, p. 54-55.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
99
tancial, o papel da nobreza rural, com o grupo de pressão
(grifamos) e do prestígio das famílias importantes, fatores que
de um lado prepararam o “coronelismo” o “caciquismo” o
“mandonismo” o “afilhadismo” da República, e de outro serviram, mesmo, de germe dos partidos políticos...”.12
Nos sertões sanfranciscanos, da ribeira do grande rio
da unidade nacional, na Bahia, surge um caudilhismo plebeu, no referir de Wilson Lins, ainda que a defrontar a região
decadente em seus recursos econômicos mas “firme e respeitável em sua superestrutura social”. Aproveitaria ali o patrocínio dos novos tempos republicanos, “desconhecendo os
privilégios de famílias”, a inaugurar “novo estilo de vida,
alijando” sua anacrônica estrutura social, e a arrebentar os
“freios das convenções que, no lmpério, até certo ponto, opunham resistência ao espírito especulativo, à ambição do lucro, etc.”13
Mas, entre nós, os tempos surgentes da República não
alterariam a vocação para a eletização dos mandões do espaço agrário, melhor dito, interiorano. Muito ao contrário; vieram presidir, pelo menos ao longo de três quartos de século,
o predomínio da parentela organizada, circunstância que induz Maria Arair Pinto Paiva a repetir o pensamento de Maria
Isaura Pereira de Queiroz, afirmando que ela, a forma patriarcal, compunha “um sistema poderoso para dominação política e para a aquisição e manutenção do prestígio e “status”.14
A subida de partido político, assenhoreando-se do mando administrativo, significa vantagens, proteção, favores, empregos, mas tudo apenas para a facção triunfante, desprezadas
12
º C., p. 121.
Wilson Lins, in: “O Médio São Francisco’, Brasiliana, V. 377, Cia. Editora
Nacional, 1983, p.62.
14 Maria Isaura Pereira de Queiroz, in: “O Mandonismo Local na Vida Política
Brasileira”; I. E. B., SP, São Paulo, cit. por Maria Arair Pinto Paiva, o. c., p. 52.
13
EDUARDO CAMPOS
100
as postulações legítimas mesmo lastreadas pela competência
técnica.
A família Alencar, sofrida e experimentada inclusive nos
reveses, é, em todos os tempos desse passado, a mais importante, a mais sequiosa de poder, seguida no dimensionamento
de sua atuação, também ostensiva e absorvente, pelos Feitosas,
Fernandes Vieiras, Castros, Paulas Pessoas, etc. O que se relata
de uma facção entronada poderá dizer-se de outra, adiante, no
poder, como refere o jornal “Constituição” do dia 18 de fevereiro de 1866: “Quem estudar com atenção a marcha dos negócios do Ceará depois da ascensão do partido liberal ao poder,
achará na distribuição que os senadores Padre Pompeu e Paula
Pessoa têm feito dos altos cargos a verdadeira imagem daquela
fábula em que o leão, fazendo sociedade com outros animais
para dividirem entre si as presas de caça, em resultado os sócios do leão sofreram a mais irrisória logração”.15 Os dois senadores, que eram primos – apresta-se a sublinhar Abelardo F.
Montenegro, acrescendo a opinião do jornal – “começaram a
obra de sua dominação colocando parentes seus em todos os
lugares de maior importância ou de rendimento mais pingüe:
(Ibidem, idem).
E os sertões vão então para as Assembléias e para o
Senado, alcançando no primeiro exemplo, no Ceará, a média
aritmética de 10.916 de participação, resultado que não expressa aínda rigorosamente o total dessa classe, subtraída a
outras qualificações que prevalecem por ostentação e adotadas
por interesse, e por isso mesmo supridas por patentes da Guarda Nacional. Daí os numerosos alferes, tenentes, capitães,
majores, tenentes-coronéis, coronéis... que acabam
conceituando o tradicional “coronelismo” sertanejo. Vaidosa
qualificação que faz com que 23,32% dos 596 eleitores do 2o
15
16
In: Abelardo F. Montenegro, “Os Partidos Políticos do Ceará”, UFC 1980, p. 40.
Maria Arair Pinto Paiva, o. c., p. 138.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
101
Distrito (Sobral) . do colégio eleitoral para a eleição de senadores, em 1870, tenham patentes da Guarda Nacional.17
É essa gente que postula, e, eleita, vai tomar assento
na Assembléia Provincial, e que vivendo o clima de sertão,
deficiente de tudo, sob irrefragável asperidade, sabe o que
foram os anos de seca, a partir de 1824; e o que significa não
ter voz para reclamar na hora das concessões de recursos. A
voz ainda aí é grito, sob duvidoso processo civilizatório.
O jornalista J. M. Ibiapina, em 192718 expressaria, incisivo e impiedoso, o modo de ser da política que ainda praticávamos: “No interior anárquico do Estado, a Lei tem uma
escora: o trabuco. E a espada da Justiça, um símile: a
Parnaíba. A autoridade copia o bandido. Uma, a projeção
do outro. O bandoleirismo fraterniza com a polícia, no mais
imoral e cínico dos contubérnios. As populações indefesas,
desamparadas da proteção legal, são trucidadas pelo sicarismo
infrene, irresponsável e brutal. O governo, sentindo fugir rapidamente todos os apoios, apela para o bandoleiro político
e estriba-se no cangaço. O chefe político é o mandatário das
cidades sertanejas. Sua vontade, um dogma. Sua ordem, um
cânone.
É aviltante, mas verdadeiro. Chega o momento em que
a todos é mais perceptível o exercício político como fonte de
negócio, de aproveitamento familiar, enriquecimento, etc.
A crônica séria e repudiosa dos que analisaram esses
fatos, ao calor dos acontecimentos, está cheia de ardência
recriminadora a esse tipo de política arbitrária e interesseira,
que se vai nutrir no patriarcalismo agenciador de votos, garantidor de empregos. Tudo vale, tudo serve, tudo convém aos
seus inspiradores. A ambição política distribui favores do erário, e chega a pensar, por simples ampliação de mandonismo
17
18
José Aurélio Saraiva Câmara, o. c., p. 294
In: “O Ceará”, 7 de junho de 1927, cit. por Abelardo F. Montenegro, o. c., w. 94
EDUARDO CAMPOS
102
exacerbado, em dividir, fatiar a própria Província. Desse modo,
antes, a tentativa lograda, praticada pelo senador Martiniano
d’Alencar, a intuito politiqueiro, de elevar “a região onde nasceu (o Cariri), e onde viviam os seus familiares, à dignidade de
província”19 em 1839 o que de pronto levou a Assembléia do
Estado a se manifestar favorável, gesto acoimado de exorbitante,
pelo Senado. Isso não impediu que a Assembléia Legislativa
Provincial (CE), em 1846, novamente se dirigisse ao Senado e
Câmara dos Deputados, a este respeito:
“A Assembléia Provincial, Augustos e
Digníssimos Senhores Representantes da Nação, julga ter-vos apresentado razões poderosas para suplicar-vos a aprovação do projeto
de lei mencíonado, devendo somente refletir
que da dívisão proposta para a formação da
nova província (a ser integrada pelos municípios do Riacho do Sangue, lcó, lnhamum, São
Mateus, Lavras, Jardim e Crato; do município
de Pajeú das Flores e dos compreendidos no
antigo Julgado de Cabrobó, na província de
Pernambuco; e do município de Piranhas, da
província do Piauí, convém excluído o município do Riacho do Sangue desta Província, o
qual, por sua posição, será mais vantajoso que
continue a pertencer a esta mesma Província”.20
Mas, indiscutivelmente, o Legislativo já no limiar de
seu estabelecimento é força de surpreendente efeito político.
É o que revela a aguda crise por que passaram as relações
entre o Legislativo e o Executivo, a partir de 1838, com os
deputados arregimentados em luta aberta contra o Presidente
19
José Aurélio Saraiva Câmara, o. c., p. 37.
In: “Província dos Cariris-Novos”, RIC, Fortaleza, 6:225, 1892, cit. por José
Aurélio Câmara, o. c., p. 45.
20
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
103
da Província, aproveitando o noticiário dos jornais, inclusive
do Sul, quando a imprensa local estava a soldo dos governistas. Na corte, é a “Aurora Fluminense” que amplia o trombetear
da revolta antigovernista.
Desse modo, via-se pelo “Correio da Assembléia Provincial”, em edição do dia 19 de janeiro daquele ano, sob a
epígrafe “Rio de Janeiro”, nota precedendo a transcrição daquele jornal, informando que as “Câmaras Municipais da Província apressaram-se a tomar parte na contenda, a reunir suas
vozes às da Assembléia contra o arbítrio, a parcialidade e
espírito reacionário da política do Sr. Manoel Felizardo”21
É destacável na matéria do jornal a afirmativa de que
os “representantes legítimos e oficiais do povo cearense no
Senado, na Câmara temporária, na Assembléia Provincial, nas
municipalidades, estão de acordo em reprovar altamente a
administração reacionária do Presidente. Entretanto, o orgulho dos Ministros persiste em uma denegação de Justiça”.22
A indisposição política da Assembléia Provincial se faz
oficializada e pública, em agosto de 1838, com o lançamento
de uma Representação, peça publicada em dezembro do
mesmo ano, na Corte, para armar efeito junto ao Imperador,
e acolhida pelo “Correio da Assembléia Provincial”, a 2 de
março de 1838:
“llmo. e Exmo. Sr. Os abaixo-assinados, Deputados à Assembléia Geral Legislativa, pela Pro21
Manoel Felizardo de Souza e Mello.
Está dito mais no mesmo pronunciamento dos deputados em nome da Assembléia Provincial: “A principal missão que a Assembléia Provincial deve propor-se no meio do geral azedume e exacerbação dos espíritos é semear os
princípios da paciência, de ordem, de moderação, esperando que a aurora de
melhores dias desponte no nosso horizonte político. O Sr. Manoel Felizardo,
apesar da doçura de seu caráter, não podia subtrair-se ao juízo, à influência da
política geral que governa houve os brasileiros, política de vindita, de rancores,
que tem por fim ressurgir do sepulcro o cadáver amaldiçoado do passado...”
22
EDUARDO CAMPOS
104
víncia do Ceará, têm a honra de representar a
V. Exa. para ser presente ao Regente lnterino,
em nome do lmperador, que participações e
notícias fidedignas que receberam de sua Província, concordam em qúe a administração do
atual Presidente, o Exmo. Sr. Manoel Felizardo
de Souza e Mello, não é tal qual convém aos
interesses e tranqüilidade da mesma Província,
nem corresponde, por maneira alguma, aos fins
da utilidade geral que o governo de S.M.I. teve,
sem duvida, em vista, quando nomeou aquele
seu delegado. Colocado à frente de um partido
reactor a quem de tudo se há votado, já lhe é
dado poder de administrar a Província com
aquela imparcialidade e justiça; com aquela calma e prudência próprias do Governo Constitucional que felizmente nos rege. Pelos atos de
sua administração que, por agora, deixam de
enumerar, mas que aparecem nas folhas publicas, é fora de duvida que ele se há tornado
surdo à voz da razão e da justiça, e que inteiramente se tem constituído instrumento das vinganças desse Partido. Bastará referir este fato
para conhecer-se quando está longe aquele
Delegado das regras e máximas de todo governo ilustrado, e que tem por fim fazer a prosperidade dos povos, sendo incontestável que a
exata observância de semelhantes regras e
máximas nunca se torne mais necessária do que
na época atual. Os abaixo-assinados, expondo
sem fraqueza a V. Exa. a marcha tortuosa do
atual presidente da sua Província, satisfazem a
um dever sagrado, e concebem a lisonjeira esperança de que o Governo de S.M.L. não será
surdo às suas vozes, nem deixará de expedir
as providências que em sua sabedoria elas apaO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
105
recem mais próprias e adequadas. Rio de Janeiro, 1o de agosto de 1838. Ass. Manoel do
Nascimento Castro e Silva, Carlos Augusto Peixoto de Alencar, Joaquim lnácio da Costa
Miranda, José Mariano de Albuquerque Cavalcante, José Ferreira Lima Sucupira e Vicente
Ferreira de Castro e Silva”.23
No dia 8 de fevereiro de 1839, outro presidente chega
ao Ceará para substituir Manoel Felizardo, qual “aurora de paz
e de sossego” (...), “depois de tão prolongadas agitações”24 Na
esteira das acusações ao ex-presidente, produzidas pelo “animus”
belicoso da própria Assembléia Provincial25, somam-se, na composição dos desmandos normais à época, as acusações de demissões “em massa” de empregados públicos, “honrados pais
de família que não tinham outro crime senão o de desaprovar
as reações e vinditas do tiranete”; a perseguição, denunciada
incisivamente, a “magistrados populares, que não haviam obedecido a ordens ilegais”; injúrias ao Código de Foros Provinciais; insidiosa maneira de efetivar o recrutamento “cujo horror
havia subido ao ponto de se profanar os templos com
soldadesca armada que ia separar noivos à face dos altares”, –
tudo a arrepio dos “homens bons”, isto é, dos cidadãos de
prestígio na comunidade, gente moderada que acaba sendo
para a verdade histórica desse episódio, representada em seus
direitos e reivindicações pelo Poder Legislativo.
A crônica da derrota infligida pela oposição (encastelada
na Assembléia), desfechada contra o presidente da Província,
que se retira, dá conta de maneira minuciosa como se comportaram os desgostosos dos atos do governo, posicionamento
23
Publicada no “Jornal do Comércio” de 3 de dezembro de 1838. Em vez de
Vicente Ferreira da Costa e Silva, leia-se Vicente Ferreira de Castro e Silva.
24 Edição do dia 8 de junho de 1839, no 76.
25 Conf. comentário publicado na “Aurora Fluminense”.
EDUARDO CAMPOS
106
que se manteve com “paciência cívica”, ressaltado que os
“partidos políticos não são susceptíveis de tanta moderação
quando têm por si a fora do número e a justiça da causa”.
Mas essa euforia dura pouco. Aos dezoito dias de agosto
daquele ano, a Assembléia Legislativa Provincial se dirige ao
novo presidente da Província26, inaugurado no poder: “V.Exa.
antes mesmo de tomar conta da administração creou sinistras
apreensões nos espíritos dos cearenses tão dispostos a favor
de V. Exa. Perto de oito dias, a Província continua a ser presidida pelo sr. M. F. (Manoel Felizardo) não obstante a representação de alguns deputados aqui residentes (no dia 12 de
fevereiro) exortando a V.Exa. para apressar sua posse, e assim pôr término a tantas perseguições que o partido do Sr. M.
F. promovia, e V.Exa. só quis tomar posse no dia 8! Por sete
dias o expediente ordinário esteve parado, pois se trabalhava
em lavrar portarias de demissões”
A proceder a informação da Assembléia, por ocasião
da posse do presidente João Antônio de Miranda à frente da
Província, fatos condenáveis se verificaram a partir da entrega, em Palácio, naquele momento, de “ofícios de demissões”
de funcionários imediatamente acolhidos, atos que feriam frontalmente a lei.27
Os que se manifestavam em nome da Assembléia Provincial, diante do comportamento equívoco do novo Presidente, o fazem de modo desabrido e incisivo, acusando-o de dar
mão aos “célebres assassinos Mourões’; de ter dissolvido uma
brigada inteira de guardas nacionais só por terem esses pedido
26
Bacharel João Antônio de Miranda. A comissão que, em deputação, foi ao
Palácio do Governo fazer a entrega dessa mensagem era integrada dos vigários Lourenço Correia de Sá (Visitador de Província), Manoel Pacheco Pimentel
e Domingos Carlos de Sabóia; capitão-mor Joaquim José Barbosa e o Dr. José
Lourenço de Castro e Silva.
27 Benedito Santos, in: “A Assembléia Provincial – Processos de Magistrados”,
RIC, Tomo XXIV, ano XXIV, 1910, Tip. M in reserva, p. 105.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
107
a reintegração de seu comandante; permanecido indiferente
ao ato arbitrário de juiz “intruso”; sentenciado a “trinta e três
dias de prisão” vereadores da Câmara; enviado fortes destacamentos para os principais colégios eleitorais, etc.
Sem perceber, e ainda que servidos por interesses nitidamente político-partidários, os deputados já questionam os
abusos de autoridade, tornando pública sua repulsa a atos que
constrangiam a humildes funcionários, que pagavam por ser
amigos ou protegidos de políticos desagradados do Executivo.
Por longo período, mais precisamente de 1837 a 1885,
as Assembléias Provinciais, amparadas por letra da Constituição de 1824, atribuíam-se o poder de “decretar a suspensão,
e ainda mesmo a demissão de magistrados (grifamos), contra
quem houvesse queixa de responsabilidade, sendo ele ouvido, e dando-se-lhe lugar à defesa”. Assim, a Assembléia Provincial do Ceará votou a Lei no 70, de 14 de setembro de
1837, sancionada pelo então Presidente, Senador José
Martiniano d’Alencar, estatuto só revogado a 12 de dezembro
de 1885 pela Lei Provincial 2.111.28
Não foram poucos os magistrados, com razão ou não,
alcançados pelo cumprimento dessa legislação naturalmente
esdrúxula, como o juiz de direito de Sobral, acusado de “dispensar proteção aos criminosos de morte denominados
Mourões”, anotou Benedito Santos, ajuntando o rol com o
nome de outros punidos pela Assembléia, valendo destacar
os casos do juiz Clemente Francisco da Silva (de Fortaleza),
“pelo crime de expedição de ordem ilegal”; Francisco de Abreu,
juiz de paz, suplente, de Messejana, por prevaricação; Dr.
José Lourenço de Castro e Silva, suplente do juiz municipal,
como juiz de direito da Comarca de Fortaleza, pelo crime do
art. 143 do Código Criminal, por queixa do juiz de paz Pedro
28
O. c., ibidem, idem.
EDUARDO CAMPOS
108
José Fiúza Lima; bacharel Francisco Bernardo de Carvalho,
juiz de Inhamuns, por prevaricação; Leocádio de Andrade
Pessoa, juiz de direito do Ipú, pelo mesmo motivo, e desse
modo o juiz municipal de Icó, Manuel Coelho Cintra Júnior e
outros.
Os processos, às vezes, em virtude do prestígio e das
amizades dos querelados, como sucedeu com o último dos
mencionados acima, “protegido do ex-Ministro da Agricultura, conselheiro Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque...”,
não andavam.
O ritual da acusação e da defesa efetivava-se na própria Assembléia Provincial, onde ingressava formalizada a
acusação, seguindo-se-lhe a nomeação de comissão especial,
geralmente constituída de três deputados, para dar parecer
sobre o caso.
O querelado defendia-se, mandando sua resposta (até
o presidente da Província podia ser o portador) à Assembléia,
onde uma segunda comissão (como ocorreria no caso em
que era parte o juiz de Canindé, Dario Fortuna Pessoa), tinha
prazo para emitir também parecer.
Para funcionar no julgamento, melhor será dizer, na
acusação e julgamento, a Assembléia elegia comissão integrada por três bacharéis deputados, sendo que geralmente dois
deles (desse modo no caso a que se refere) se encarregavam
da acusação. No processo instaurado contra o bacharel Joaquim Simões Daltro e Silva, a defesa, o que pode parecer
inusitado, esteve a cargo do deputado Padre Leopoldo de
Araújo Feitosa, nomeado pela própria Assembléia. Foi condenado. Este o teor da sentença do Poder Legislativo:
“A Assembléia Legislativa Provincial do Ceará tendo em vista que o juiz de Direito da Comarca do
Aracaty, bacharel Joaquim Simões Daltro e Sílva,
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
109
havendo ordenado que o Tenente Francisco Joaquim Nogueira denunciado como suplente do juiz
municipal do termo do Aracaty, por Manoel
Felippe da Silva respondesse no prazo
improrrogável de quinze dias sobre a mesma denúncia dada pelo dito Manoel Felippe; tendo também em vista, que em conseqüência disto, o
respectivo escrivão expediu ao denunciado um
officio datado de 4 de junho último contendo cópia da denúncia, e dos documentos a esta juntos
para que o denunciado respondesse no prazo já
mencionado; tendo mais em vista que este officio
com a cópia referida foi entregue ao denunciado
no dito dia 4 de junho, e que portanto, o prazo
marcado para a resposta só podia terminar no dia
19 do citado mês; tendo ainda em vista que sendo a resposta do denunciado apresentada no dia
17 do mesmo mês ao referido juiz de direito,
este não aceitou-a sob o pretexto de que a mesma resposta continha injuria a sua pessoa como
particular e como magistrado; tendo finalmente
em vista que o que fica relatado está plenamente
provado nos autos respectivos; e considerando
que o mencionado juiz de direito bacharel Joaquim Simões Daltro e Silva assim procedendo
está incurso no art. 129 do Cod. Crim. porquanto
deixou para promover interesse pessoal seu de
mandar juntar aos respectivos autos a resposta do
supra referido denunciado tenente Francisco Joaquim Nogueira, o que importou o mesmo que
negar a este o direito de responder dentro do
prazo legal, direito que é conferido pelo Cod. do
Proc. Crim. e Reg. no 120 de 31 de janeiro de
1842 – Resolve decretar, como decreta, a pena
de três anos de suspensão do mesmo magistrado
bacharel Joaquim Simões Daltro e Silva, juiz de
EDUARDO CAMPOS
110
Direito da Comarca de Aracaty – Sala das Sessões, em 22 de agosto de 1884. Padre Antero
José de Lima, Presidente; Manuel. Sedrim de Castro Jucá, 1o Secretário; Dr. Venancio Ferreira Lima,
2o Secretário.
Publique-se e execute-se. Palácio do Governo
do Ceará na Fortaleza, 25 de Agosto de 1884”.
Carlos Honório Benedicto Ottoni.29
O Presidente da Província, Carlos Ottoni, era amigo do
querelado, por quem tudo fez, inclusive indagando do Conselho de Ministros se devia adiar o cumprimento da decisão
da Assembléia. Diante de resposta negativa que “lhe foi transmitida por telegrama, publicada no Diário Oficial”, teve de
render-se à evidência dos fatos, advertido ainda por aquele
Conselho, que “suposto a Assembléia fosse legalmente irresponsável pelo julgamento, contudo tinha responsabilidade
moral perante a Província”.30
Por todo o trânsito da atuação do Poder Legislativo,
por esses anos e por mais adiante, assiste-se a mais das vezes
a sua ação nitidamente ínterferente na vida administrativa da
Província, de tal modo praticada, que fica evidente a
extrapolação de suas prerrogativas. O bacharelismo em formação, patrocinado pelo clã sertanejo que começa a compreender que ter filhos padres não é tudo, ao lado desses
desenvolve (e o fará ainda por quase dois três quartéis de
século) atividades políticas, a insistir num ideário de postulações
que não disfarçam os interesses oligárquicos.
Mas nem sempre os abusos são cometidos sem a
ponderação de parlamentares atentos aos limites da ação do
Legislativo. É como acontece na sessão ordinária do dia 24 de
29
30
Benedito Santos, o. c., p. 1 17-118.
Idem, p. 119.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
111
outubro de 1883, quando o deputado Justiniano de Serpa, de
grande altivez moral e intelectual, profere veemente pronunciamento contra a interferência punitiva do Legislativo em
âmbito judiciário:”31
“Ainda há pouco tempo foram denunciados perante o Tribunal da Relação dois magistrados
muito dignos, tão distintos como os que possam ser neste País – os drs. Manuel Juvenal
Rodrigues da Silva e João Hircano Alves Maciel,
honrados juízes de direito de Pacatuba e
Maranguape (muitos apoiados). Devo declarar
à Assembléia que eles não foram denunciados
por terem cometido crime, mas por ser “indispensável” arredá-los de certos julgamentos”.
Palavras secundadas, com o mesmo nível de
entendimento ético, pelo deputado Paula Pessoa: “Sou infenso a esta conversão de Assembléias Provínciais em Tribunais Jurídicos;
conversão que se acha quase caduca, pois tem
reconhecido que sempre exorbitam estas
corporações, só tratando de processos políticos
(grifamos) ou que interessam à política e nos
quais a Justiça é pesada e aferida pela paixão
da maioria, pelo interesse ofendido das idéias
adversas. Não é de hoje que assim penso. Há
seis anos ocupo um lugar nesta Casa e já tive
ocasião de exprimir-me aos meus amigos de
então pelo modo por que faço agora” (...) “O
julgamento de magistrados pelas Assembléias
Provinciais, composta de indivíduos alheios aos
conhecimentos jurídicos, não tem razão de ser;
e se continuar a figurar esta atribuição em nos31 In: “Anais da Assembléia Provincial”, 1883, Col. da Biblioteca da Assembléia
Legislativa do Ceará.
EDUARDO CAMPOS
112
sa legislação, não se faz mais vezo a ela; e não
me consta que em província alguma seja posta
em prática essa prerrogatíva”.32
A Assembléia Provincial, a se instalar em 1835, herda o
espírito de trabalho que antes inspirara o Conselho Geral da
Província, cujas decisões eram publicadas em jornal próprio,
do qual se conhecem apenas alguns números. Na edição de
número 13 tem-se a idéia de tudo que se discutia nas sessões
do Conselho, como seja: autorização de ordenados e propinas atribuíveis a juizes de fora (como os de Aracati e Sobral);
emenda a respeito desses pagamentos, efetuados via Resolução de proposição de conselheiro, dispondo que os “ordenados pagos pelas Câmaras aos Juizes de fora, a título de
aposentadoria” fossem saldados “pelas Rendas do Tesouro
Público”. Nessa mesma ocasião dava o Conselho, sem efeito,
as propinas que vencia o juiz de fora de Aracati, e efetivava a
leitura de alvarás e a discussão de posturas, as da Câmara da
Vila de Imperatriz na ordem do dia.33
Na proximidade do assunto, assinale-se que o Conselho, em primeira precedência era chamado a decidir sobre as
atividades municipais, nas autorizadas pela Lei de 1o de outubro de 1828. Esta prática que se reeditaria na Assembléia
Provincial, à qual competiam aqueles cuidados e prerrogativas de decidir, não escapando porém ao que Sérgio Buarque
de Holanda34 considera ditadura dos domínios rurais, expressão ostensiva de mandonismo que vigorou com mais intensidade nos tempos coloniais, quando os que comerciavam
nas cidades se queixavam “contra o monopólio das poderosas Câmaras Municipais pelos lavradores”.
32
33
34
No Piauí, à época, ainda tinha curso o mesmo abusivo expediente.
In: “Diário do Conselho de novembro de 1830.
In: “Raízes do Brasil” , 1934, p. 120.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
113
Na verdade, esse tipo de influência (a designação de
monopólio quer-nos parecer inadequada) aproveita as oportunidades que a legislação patrocina para continuar, via Assembléia Provincial, principalmente nesta, a dispor, a seu
talante, dos destinos administrativos do ecúmeno rural, entregue a simples regência de posturas que lhe são atribuídas.
Daí não causar espécie o entranhado envolvimento do
Legislativo com o segmento municipal, dispondo sobre tudo,
desde proventos de meros serventuários de rotina (simples
porteiros); passando por desimportantes pagamentos a terceiros, arrematação de dízimos, pedágio, abatimentos, etc, até a
alienação de imóveis, situação de tamanha dependência que
leva o deputado Paulino José de Souza, Ministro do Império,
em 1864, a repetir pensamento do comprovinciano seu ante
o não desempeçamento da máquina administrativa municipal: “Quer a Câmara Municipal construir um cemitério? Ao
presidente da Província compete aprovar o plano” – “Quer
fazer obra de utilidade pública? Não o pode fazer sem prévia
licença do presidente da Província, se for de custo excedente
a 500$000”. “E, como não bastassem todas estas dependências, ainda se pretende que o empregado por ela demitido,
pode ser reintegrado por uma simples portaria do presidente
da Província”.35
O funcionamento administrativo dos municípios, como
se depreende, não escapa do poder centralizador do Presidente da Província, e da concordância ou não da Assembléia
Provincial. Dura demasiado essa dependência, e é bem possível que responda ela pela fomentação dos ressentimentos
bastante ásperos por anos e mais anos.
Que valem os camaristas municipais, distanciados do
poder da Província, se até o Procurador da Câmara da Capi35 In: “Administração Local”, Tipografia Nacional, Rio, 1869, p. 18, citado por
Eduardo Campos, “Posturas Municipais da Fortaleza Provincial” (i nédito).
EDUARDO CAMPOS
114
tal, é passível de ser processado? Não foi assim que ocorreu
em 1849, quando o Presidente da Província assim decidiu: “O
Promotor Dr. João Carlos lbiapina, que recusou dar a denúncia, foi substituído pelo Dr. Jaguaribe; este assinou, e o processo se fez”.36
A fragilidade do nosso incipiente municipalismo é
irrefragável. Tudo que lhe poderia pertencer, na gestão administrativa, é manejado pelo Executivo em concordância
com o Legislativo da Província. As mínimas autorizações são
discutidas em primeiro lugar na Comissão de Câmaras Municipais das Assembléias, para criar ou modificar posturas,
para efetuar pagamentos, para conceder, decidir sobre mercados, talhe de carne, cessão de imóveis, cemitérios, etc,
como se verá em exemplos respigados ao acaso, pinçados
dos Anais da Assembléia Provincial do Ceará: Joaquim José
de Sant’Ana, arrematante de impostos sobre rês morta (do
Icó), “pedindo o abatimento de 400$000 pelos prejuízos que
diz ter na arrematação” (sessão ordinária do dia 2 de agosto
de 1871); concessão para sepultamento em Capela, em área
municipal em Sant’Ana: “Fica concedido ao Dr. Francisco de
Assis Bezerra, sua mulher e filhos, e ascendentes, o privilégio de serem sepultados na Capela...” (idem, do dia 28 de
julho de 1871); discussão e aprovação de proposta sobre o
código de posturas da Câmara Municipal de Ibiapina (idem,
de Canindé, a 18 de agosto de 1879); discussão de pareceres sobre compromissos de confrarias (idem, dia 23 de agosto de 1879); autorização para a Câmara Municipal de Baturité
“vender em hasta pública a antiga casa de suas sessões”
(idem, 4 de agosto de 1879); prestação de contas de receita
e despesas de várias Câmaras Municipais à Comissão da
Assembléia (idem); etc.
36 João Brígido, in: “Antologia de João Brígido”, organizada por Jáder de Carvalho, “Terra de Sol”, 1969, p. 97.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
115
A vocação para o diálogo, para a comunicação em
espaço aberto, é de adoção recente, muito distante do ritual
consuetudinário da arregimentação política aristocratizante,
preferente de locais públicos, mas sociais – salões de clubes,
de associações; de banquetes e bailes; ou de reuniões religiosas –, amparada pela respeitabilidade dos templos.
O exercício político, de passado mais remoto, compreendendo ainda os anos de Império e da Velha República,
desconhece a manifestação comunitária patrocinada pelo entusiasmo popular. “Nada realmente nos poderia levar ao
municipalismo do velho direito foraleiro dos “conselhos do
povo” e das “assembléias de aldeia” já desaparecidas desde
as ordenações; nem às microcomunidades agrárias “peninsulares” “menos ainda ao “populismo” das populações
helênicas”.37 Há apenas um exemplo como exceção: a que
ocorre na “fase das concentrações de mineradoras, quando
se concediam diminutas “datas” de terra aos exploradores de
ouro e pedrarias. Coincide aí, maior consciência democrática
da gente, necessariamente aglomerada na proximidade das
minas, obrigadas a resolver, por si mesmas, problemas de
representação coletiva que exigiam o esboço de instituições
políticas mais abertas à participação popular”.38
No Ceará, o discurso político arregimentador é proferido sempre em locais distintos. Quando sai da igreja é para
conviver à mesa a que se assentam os parciais do partido,
representantes do patriarcalismo, ou para subir à fruição dos
salões de clubes onde transcorrem banquetes ou bailes “políticos”. Fértil o Ceará de exemplos no tocante a este aspecto.
Tradicionais sua festas, seus regabofes partidários; famosos os
bailes, como o que marcaria a visita do Presidente da Provín37 Paulo Edmar de Souza Queiroz in: “Sociologia Política de Oliveira Vianna”,
citando Oliveira Vianna, “Instituições Políticas Brasileiras”, 2o vol., p. 139.
38 Paulo Edmar de Souza Queiroz, o. c., p. 51.
EDUARDO CAMPOS
116
cia a Sobral, em janeiro de 1868.39 Ali acodem os políticos
situacionistos a participar de “baile inteiramente político”, promovido com exclusividade para os membros do Partido Liberal Progressista. No clube, aqueles “com o número de 250 e
tantas pessoas se dirigiram com S.Exa. (o presidente) ao lugar
em que se achava extensa mesa, onde com profusão havia
diversas qualidades de doces e iguarias suaves ao gosto e
agradáveis ao paladar”. O “Jornal do Ceará”, que efetiva esse
registro, acrescenta: “Depois da meia-noite foi servido o chá
em bandejas ricamente preparadas, de uma das quais pendiam duas bandeirinhas gravadas em letras de ouro: “Viva o
Exmo. Sr. Presidente!”, “Vivam os progressistas!”
A oratória política, se não nascia nessas horas, pelo menos era nelas que se afirmava, sendo às vezes mais importantes
os pronunciamentos nessas circunstâncias, mais públicos, naturalmente, e mais objetivos para o agrado das elites, do que as
orações parlamentares expressadas na Assembléia, a cujas galerias não iam os “homens bons”. Daí a mania da oratória que nos
persegue até hoje, a obsessiva sucessão em reuniões políticas ou
mesmo sociais, dos “eu peço a palavra”, já sob reserva àquele
tempo, como se entenderá pela breve descrição da homenagem
ao comendador Lucena, efetivada em banquete: “Vários brindes
(leia-se: discursos) foram erguidos ao som de duas bandas de
musica”. (...) “Além de 12 brindes, até de Juvenal Galeno, ainda
se fizeram outros que o repórter não pôde perceber”.40
“A atração pela bela frase e a repulsa à análise
objetiva não seria uma atitude de autodefesa
da elite política? A eloqüência, ‘a torrente de
palavras sonoras, é como uma canção de ninar.
É o tratamento reservado a populações que
39
40
“Jornal do Ceará”, edição do dia 3 de janeiro de 1868.
In: “Constituição”, jornal do dia 4 de junho de 1872.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
117
devem permanecer na infância, sem atingir a
idade adulta”.41 A esse modo de analisar a oratória política, de empolgação, Abelardo F.
Montenegro aduz: “A aristocracia rural com seu
obsoleto sistema de produção agrícola dependente do trabalho escravo e a burguesia urbana
com comércio e indústria rudimentares se mostravam infensas ao desenvolvimento tecnológico,
aos problemas práticos de economia. Tornavam-se, assim, matrizes de oradores, coadjuvadas
ainda, pela própria educação e instrução ministradas. Sé não havia técnica para vencer a
natureza, havia a eloqüência que, na definição
do Cônego Francisco Freire de Carvalho, “é
dom ou o poder da inteligência dominando pela
voz as inteligências e vontades alheias”.42
Mas a oratória sempre foi manejada com muita segurança na Assembléia Provincial do Ceará. Não raro sincera
como no pronunciamento do Capitão-Mor Joaquim José Barbosa, presidente do biênio 1835-1837, a se dirigir agradecido
pelo trabalho feito, aos seus parciais:”... felicito-me convosco
por terdes, no princípio do nosso tirocínio parlamentar, desenvolvido idéias úteis à Província, organizando leis que não
serão olhadas com indiferença pelos que tiveram o precioso
conhecimento de nossas necessidades. Das atas de nossas
sessões, que já têm (sido) publicadas, e serão de publicar
pelo Correio da “Assembléia Provincial” verão os nossos
concidadãos que no curto espaço de 2 anos, e para melhor
dizer, em quarenta e cinco sessões, foram aprovadas, para
serem sancionadas e promulgadas, vinte e nove decretos e
instruções, além de três propostas e várias representações que
41
42
Abelardo F. Montenegro, o. c., p. 55.
Abelardo F. Montenegro, o. c., p. 55-56.
EDUARDO CAMPOS
118
subiram à Assembléia Geral Legislativa; e daquelas leis e resoluções uma até o presente não mereceu a sanção do Sr.
Presidente da Província.43
Mas um dos grandes momentos da oratória parlamentar vai suceder, a nosso ver, em 1867, por ocasião do pronunciamento do deputado Félix José de Souza Júnior, bacharel
em Direito pela Faculdade do Recife. Expositor versátil, ágil e
atualizado em conhecimentos que demonstram não apenas o
acompanhamento das transformações políticas e sociais porque passava o mundo à época, mas da situação e defesa do
escravo desamparado e oprimido.44 A manifestação de idéias
do deputado Félix de Souza à proposta de taxação de 1$000
sobre o escravo é memorável intervenção parlamentar, ocorrido na sessão do dia 21 de agosto de 1867. Peça para ser lida
e meditada, e que tem passado despercebida aos nossos pesquisadores.45
Discutiam os deputados as emendas que mais se ajustariam aos interesses da comunidade: se a que estipulava o
imposto de 1$000 réis por cada escravo maior de dez anos e
menor de sessenta, ou a redução de 50$000 para 30$000
sobre o escravo que fosse negociado e assim exportado para
outras províncias.
Félix de Souza rememora para seus pares, no início de
sua fala, a legislação que a Assembléia havia deliberado em
1851 (cobrança de taxa da ordem de 10$000), majorada no
ano seguinte até 30$000, quando ocorresse terem os escravos
menos de 12 anos; e para 60$000,quando das operações que
abrangiam a transação de cativos de idade superior àquela.
43 Coleção de Atas da Assembléia Provincial do Ceará 1835-1837, Arquivo da
Assembléia Legislativa do Estado do Ceará.
44 Eduardo Campos, “Félix de Souza, o Antiescravista Esquecido”, in: RIC, T0,
7, Fortaleza, 1984, p. 133.
45 In: “Anaes da Assembléia Provincial do Ceará”, Tipografia Brasileira, de João
Evangelista, 1867, p. 168 seguintes.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
119
Em 1853, pagavam todos, menores e adultos, o mesmo quinhão de taxação, e depois de 1854, até 1863, 100$000.
Em razão de ter diminuído a exportação de escravos
em 1864, conforme elucida o deputado, sucederia substancial
redução daquele imposto, rebaixado para 40$000, posição de
cobrança alterada posteriormente para 50$000.
O número de escravos assinalado pelo senador Pompeu
(“cerca de 34 a 35.000”) foi considerado excessivo não apenas pelo deputado expositor da sessão, mas por outro companheiro, o deputado Rufino, que em aparte sublinhou o
desacerto do cálculo.
Atente-se para este detalhe esclarecedor: se o total da
população escrava se estimava em 35.000 almas, àqueles dias,
informação recebida como se vê com reservas pelos coevos
do Senador, fica cada vez mais distante a idéia de se ter como
certa a população de 30.000 cativos por ocasião da festa da
Abolição, a 25 de março de 1884.
Prosseguindo: o pronunciamento do deputado Félix
de Souza envolve também a opinião de seus pares, o que é
importante, para que se possa compreender em que moldura de interesses contrariados falavam os defensores da
extinção da escravatura. No decorrer da sessão as interferências dos representantes situacionistas, ora conferem às
idéias de Félix de Souza tom subversivo, ora exprimem o
reconhecimento então dominante de o escravo nada mais
era do que propriedade legítima, legal, de seus senhores.
Afora as manifestações de alheamento ao problema e descrença na abolição, como a do deputado Barroso, taxativo:
“Deixo isto (a defesa dos escravos) aos poderes competentes; entendo que não nos incumbe cuidar deste grande melhoramento, deste meio de salvar a Pátria (falava com ironia),
e penso que tudo quanto dissermos a semelhante respeito
são palavras que se perdem”.
EDUARDO CAMPOS
120
Após esclarecer a situação em que se encontravam os
estatutos legais de cobrança de imposto sobre escravos exportados, vigentes, o deputado ipuense passou a desenvolver o
seu pensamento com segurança e propriedade, sabendo certamente, que se chocava com as idéias retrógradas, escravistas,
então dominantes na Assembléia Provincial, em 1867:46
“O Sr. F. de Sousa: – Para explicar o
procedimento da comissão, suprimindo o imposto sobre escravos exportados, me é preciso expor as razões que pesaram em meu ânimo
para tomar essa iniciativa.
Uma voz: – Muito honrosa,
O Sr. F. de Sousa: – Sr. Presidente, essa
instituição execranda, anticivilizadora, e até
mesmo anticristã, deve acabar; e não seremos
nós que a devemos ter por mais tempo, mormente sendo ela hoje reprovada por quase
todo mundo civilizado. Os Estados Unidos, esse
colosso americano que ombreia com as primeiras potências do mundo, ainda ontem tinham também escravos; reconhecendo porém
esse grande, injusto e monstruoso erro, não
trepidou em arcar com a horrível guerra civil,
pela salutar idéia da emancipação dos escravos; acabando com um só golpe, de elevar
todos à condição de homens livres, dandolhes direitos de cidadãos americanos dos Estados Unidos. Nós, cearenses, dotados de gênio
tão liberal quanto os americanos dos Estados
Unidos, não podemos também deixar de concorrer fortemente para acabar com esse direito imoral e detestável.
46
Participaram das discussões os deputados José Maximiniano Barroso, Bento
José da Fonseca e Silva; João Felipe da Cunha Bandeira de Melo e prof. Joaquim
Catunda.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
121
Um Sr. Deputado: – Se é direito não
pode ser imoral.
Outro Sr. Deputado: – E não podemos
fazer nada a este respeito.
O Sr. F. de Sousa: – Parece-me que estas duas
idéias se repelem, entretanto é a pura verdade...
Um Sr. Deputado: É um fato.
O Sr. F. de Souza: – É fato, Sr. Presidente,
que no Brasil existem homens livres e escravos,
que a lei assim o permite: entretanto o homem
não foi criado para servir a outro debaixo de
condição tão abjeta, nasceu para fins mais sublimes, e ninguém tem o direito de o reduzir à
condição estranha àquela para que Deus o criou.
O Sr. J. Felipe: – Não me trate disso.
O Sr. Paiva: – É uma manifestação filantrópica.
O Sr. F. de Souza: – A sociedade não
quer que um ente de sua espécie, dotado dessa faculdade por excelência a que se chama
razão, lhe seja sujeito, para dele servir-se como
dos animais, dos brutos...
Um Sr. Deputado: – A Inglaterra não tem
escravos, mas tem colonos.
Outro Sr. Deputado: – E a Rússia tem os
servos da gleba.
O Sr. F. de Souza: – A Inglaterra tem colonos
e a Rússia tem os servos da gleba, ou antes, já não
os tem, e os colonos da Inglaterra e servos da gleba
podem comparar-se aos escravos da América? Os
boyardos têm os chamados servos da gleba, mas
entre estes e os escravos há uma diferença extraordinária: os servos da gleba não são mais do que
colonos que estão presos, adstritos à terra em que
habitam, e passam de domínio com a propriedade
territorial, isso não procede para justificar a existência dos escravos, quando sabemos que na Rússia há
EDUARDO CAMPOS
122
tendência muito pronunciada para extinguir completamente esta instituição.
Um Sr. Deputado: – Estão extintos...
O Sr. Paiva: – E os polacos, como estão?
O Sr. F. de Souza: – Os polacos não são
considerados servos da gleba nem escravos: é
um povo infeliz de um país conquistado despoticamente pela Rússia. Demais, senhores: o Brasil é um país que tem uma constituição livre, a
Rússia é um país despótico, e portanto não pode
estabelecer-se termo de comparação entre um e
outro. Nós vimos, Sr. Presidente, que na fala do
trono o Monarca indicou mais ou menos a necessidade da abolição da escravatura.
Um Sr. Deputado: – E a resposta do Senado?
O Sr. F. de Souza: – Não imposta que o
Senado entenda que não se deva, desde já, dar
passos para acabar com a escravatura no Brasil,
talvez que o Senado, mais conhecedor das circunstâncias das Províncias do Sul, do que das do
Norte, tenha razão; para assim pensar. Não
obstante, Sr. Presidente, eu não vejo motivo em
que possa apoiar-se a idéia da conservação da
escravatura; entendo que essa nódoa deve ser
extinta do nosso País, e que nós devemos ser os
primeiros a concorrer para esse fim, devemos
dar os primeiros passos para a extinção dela,
não só por dignidade nossa, mas ainda em satisfação à sociedade e ao estrangeiro mesmo.
O Sr. Barroso: – Para isso sim, e para isso...
Um Sr. Deputado: – Como satisfação ao
estrangeiro, não. (Trocam-se apartes)
O Sr. F. de Souza: – Eu entendo que todo
o homem tem direito de procurar o benefício
de seu semelhante, e as nações têm o direito
indisputável de se manifestarem em favor dos
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
123
que vivem oprimidos. Os que possuem escravos legalmente não devem ser privados da sua
propriedade, dizem alguns; mas o mundo civilizado não pode olhar com bons olhos para os
poucos países em que existe a escravidão.
O Sr. Barroso: – Quando se acabou na
lnglaterra?
O Sr. Catunda: – Há muito tempo.
O Sr. Barroso: – Há muito tempo, não.
O Sr. F. de Souza: – Ainda no século presente algumas nações conservam escravos, e até
há pouco tempo uma grande nação, os Estados
Unidos tinham escravos, razão por que a Inglaterra sofreu que o Brasil os tivesse também, por
que respeitava os Estados Unidos, razão por que
os cruzeiros ingleses não nos incomodaram mais.
(Há um aparte)
Não quero saber se a idéia é ou não filantrópica, se os ingleses se manifestaram contra ela por simples espírito de filantropia; sei
somente que a razão de seu procedimento para
conosco é esta que acabei de apontar. Mas tendo os Estados Unidos reconhecido o seu erro,
depois de lutar com uma guerra por cinco anos,
guerra de extermínio, e tendo felizmente triunfado a idéia da civilização, restituindo à condição de cidadãos os escravos que ali existiam, o
Brasil, país onde predominam as idéias liberais, tanto como nos Estados Unidos, não deve
deixar de empregar todos os esforços para conseguir esse grande resultado; e sendo a Província do Ceará uma das mais liberais do Império,
e das mais patrióticas, deve ser a primeira a
render essa homenagem à liberdade.
O Sr. Barroso: – Principalmente aqueles
que não têm escravos e que nada perdem.
EDUARDO CAMPOS
124
O Sr. B. Fonseca: – É um borrão na história da atualidade. (Trocam-se apartes)
O Sr. F. de Souza: – Responderei ao ilustre deputado que diz que apresento estas idéias porque não tenho escravos; dir-lhe-ei que é
verdade, que não tenho escravos e nem desejo
tê-los porque sempre abominei semelhante
coisa; mas se a realização de minhas idéias ofender aos interesses de alguém, vai também ofender aos interesses da minha família; que,
infelizmente, tem bastantes.
O Sr. Barroso: – Felizmente, porque o Sr.
os há de herdar; mas quando chegarem à sua
posse passe-lhes a carta, não faça como o Sr.
Montesuma, que mandava castigar todas as semanas o preto Simão na casa de correção.
O Sr. F. de Souza: – Espero em Deus que
quando isso venha a suceder, já a escravidão
não existirá mais. Mas se o meio que nós temos
de concorrer para a extinção da escravatura na
Província é facilitar a exportação, qual a razão
porque não lançaremos mão deste meio abolindo o imposto existente, e dando livre saída?
Depois a exportação dos escravos traz lucros
aos proprietários, porque, se os escravos saem
o capital fica, e o capital empregado na agricultura e na indústria terá de produzir muito mais
do que os escravos... (Trocam-se apartes)
Se for imposto ou exigência do governo
geral ou por outro meio qualquer a liberdade
aos escravos, que remédio teremos nós senão
perder os capitais neles empregados?
Um Sr. Deputado: – Isso é uma idéia
subversiva!
O Sr. F. de Souza: – Oh! subversiva, uma idéia
humana; uma idéia beneficente e cuja realização a prudência tão altamente recomenda.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
125
Um Sr. Deputado: – Quem nos pode obrigar a perder?
O Sr. F. de Souza: – O mesmo poder que
os fez perder nas colônias inglesas, francesas,
e ultimamente nos Estados Unidos, em uma palavra, a sociedade, a justiça do Cristianismo”.
Anos depois, a Assembléia Provincial assiste outra vez a manifestações de seus parciais em torno da situação dos escravos e da
pertinência de atualização legal a este respeito. É o ano de 1870, e aos doze dias de seu
mês de setembro, em primeira discussão, questiona-se a redação para alterar a Resolução no
1.254 de 1868:
“§ 1 – Fica o Presidente da Província autorizado a despender anualmente a quantia de
20:000$ com alforrias de escravos, cuja idade
não exceder a 7 anos;
§ 2 – Os de sexo feminino serão alforriados
de preferência aos de sexo masculino;
§ 3 – Cada escravo dos que tratam os
parágrafos anteriores será libertado por preço
nunca excedente de 120$”47
Os deputados Manoel Soares e Gustavo Gurgulino –
conta o historiador Raimundo Girão – se opuseram ao procedimento alforriante à custa dos dinheiros públicos. Mas o deputado Manoel Ambrósio Portugal, autor do projeto, insistia
na sua defesa, e ressaltava que surgiria para o País o “dia em
que dos ventres das mulheres, que hoje são escravas, não
saíssem senão defensores da liberdade e obreiros do progresso”. Insistia em que o “fim do projeto não era libertar de
chofre, de uma só vez, todos os escravos da Província” (...),
47
Raimundo Girão, in: “A Abolição no Ceará”, 3a Edição melhorada, Secretaria
de Cultura, Fortaleza, 1984, pp.-68-69.
EDUARDO CAMPOS
126
mas “fazer alguma coisa em bem do elemento servil”. Estava
ciente de que os cofres provinciais não possuíam cabedais
suficientes para liberar a todos.48
Deputado discordante, Soares Bezerra, não obstante
sua formação católica ilibada, expressava-se com a “linguagem dos que, presos aos interesses patrimoniais, desejavam
sentimentalmente a liberdade dos negros, porém na realidade não queriam efetivá-la” – escreve ainda Raimundo Girão,
repassando um trecho do pensamento do parlamentar: “O
que seria do Brasil com essa multidão de homens sem educação, sem sentimentos, sem brios, como são os escravos, feitos
de repente cidadãos e gozando de todos os direitos Homens
acostumados ao trabalho forçado, porque têm senhor que
lhes dê o comer e vestuário, a que não ficaria exposta a nossa
propriedade?”49
Mas a oratória mais flamejante, a gosto do povo que
acudia às galerias, anos depois, é de Justiniano de Serpa.
Nenhum orador se lhe compara, na legislatura em que pontificou com a sua palavra equilibrada e responsável. É dele o
ardoroso pronunciamento em defesa – que coincidência! –
dos libertadores cearenses que se destacaram na manumissão
dos escravos do Ceará.
E como se vê pela sua atuação na 23a Sessão Ordinária
do dia 6 de agosto de 1884, em nome dos libertadores cearenses
a repelir injúria assacada contra esses, por ocasião da discussão de projeto sobre a elevação da vila de Lavras à categoria
de Cidade:
“Justiniano de Serpa: – Sr. Presidente, como sabe
V. Exa., eu nesta Tribuna não costumo retaliar;
não tenho palavras de desatenção para os meus
48
49
O. c., p. 70.
Idem, p. 69.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
127
colegas, e capricho em respeitar as individualidades (Apoiados da bancada conservadora). Mas,
Senhores, eu seria indigno desta cadeira, se no
momento em que se faz uma nova injustiça aos
libertadores cearense, eu não tivesse uma palavra de indignação para protestar contra as injúrias que Ihes são arrogadas em nome da Justiça,
da verdade e da opinião. (Apoiados no recinto e
manifestações nas galerias):
Há troca de apartes, inflamados, e o presidente da Assembléia Provincial chama a atenção do orador. Este, firme,
prossegue:50
Senhor Presidente, V.Exa. sabe como eu costumo obedecer às decisões da Mesa, como sei
respeitar as intimações que me faz em nome
da Lei. Mas, desta vez, eu não posso deixar de
concluir o meu protesto, completando o meu
pensamento. (Apoiados). Senhores, estou cansado de ouvir nesta Casa chamar-se os libertadores cearenses de especuladores e ladrões de
escravos. Não há maior injustiça (Apoiados).
O Sr. Teófilo Rufino: – V.Exa. e seus colegas dizem que
todos os meios são justos!
O Sr. Justiniano de Serpa: – Os libertadores, Senhor
Presidente, são assim insultados porque tiveram a coragem
de afrontar os negreiros da Província e do povo, exigindo em
nome da dignidade humana a libertação dos cativos. (Apoiados, muito bem!) São ladrões de escravos, senhores, porque
tiveram a coragem do dever para impor aos roubadores da
liberdade humana a sua restituição às vítimas dos furtos e da
50 In: “Anais da Assembléia Provincial do Ceará”, Tipografia do “Cearense”,
Tomo XIX, 1884, p. 147-148.
EDUARDO CAMPOS
128
pirataria (Aplausos das galerias); chamá-los especuladores! Mas
o que ganharam eles, fazendo-se apóstolos das idéias da abolição? Ganham a pobreza, o insulto, a injúria (Apoiados e
apartes). São especuladores, senhores, porque reconquistaram todo o esplendor do nome cearense, perdido pela calamidade da seca (Apoiados). São especuladores, senhor
presidente, porque fizeram da nossa Província, ainda há bem
pouco insultada (Apoiados) a estrela mais bela da constelação do Cruzeiro (Aplausos nas galerias).
O Sr. Teófilo: – Queixa-se de injustiça!... injustiça dizer
que furtaram escravos alheios!
O Sr. J. de Serpa: – Não há razão, senhor presidente,
para se repetir a injúria. Os libertadores só podem ser acusados por um crime, não reconhecem a propriedade escrava
(grifamos) que, incontestavelmente, é uma extorsão, mais do
que isso, é um roubo! (Apoiados e não apoiados).51
Não se pode negar o pouco espaço de ação de que
dispunha o Poder Legislativo, submetido inquestionavelmente
ao Presidente da Província, a quem cabiam entendimentos
superiores, de nível ministerial e com a Corte. “Essas assembléias basicamente limitavam-se a desempenhar funções rotineiras. Por um lado, podiam tomar decisões administrativas;
legislativas, judiciárias, eclesiásticas e legislar no tocante aos
orçamentos e à educação municipal e da Província (grifamos), mas, por outro lado, não possuíam qualquer força para
interferir na política administrativa de base”.52
51
Pronunciamento em resposta a aparte de deputado, por ocasião da discussão de proposta elevando a vila de Lavras à categoria de cidade: os libertadores foram chamados, aí, de “súcia de libertadores, ladrões de escravos e
especuladores”. (In: “Anais da Assembléia Provincial do Ceará”, Tomo XIX,
Tip. do “Cearense”, 1884, p. 147.
52 Billy Jaynes Chandler, “Os Feitosas do Sertão dos Inhamuns”, UFC, Civilização Brasileira, Fortaleza, 1981, p. 64.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
129
Na educação municipal e provincial, sem dúvida alguma, vigoraram atividades bem significativas inspiradas pela
Assembléia Provincial do Ceará, conquanto vistas essas atividades de modo irreverente por Yaco Fernandes,53 que as
dava mais à diligência dos presidentes de províncias que “para
lisonjear as veleidades culturais de Pedro II, enfrentam o problema da instrução pública, que nem as reduções inacianas
haviam considerado, quando se instala a vila de Baturité,
antiga colônia dos jesuítas; do juiz ao derradeiro vereador
todos assinam em cruz... “ E adiante: “Essa instrução, a que os
presidentes impulsionam, se limita, contudo, aos filhos das
famílias ricas, ansiosas, agora, por ter uma parentela ao lado
do obrigatório sacerdote, o triunfante bacharel do segundo
reinado. A grande massa do povo continua sadiamente analfabeta; as mulheres, também, que as moças não devem aprender a ler e a escrever “para que não mandem bilhetes aos
namorados” ...
Nem tanto assim, entenda-se. Por outra maneira de ver
menos exigente e mais condescendente com a realidade então
defrontada, tem-se de reconhecer o esforço, principalmente do
Executivo e, em segundo plano, do Legislativo, em favor da
instrução pública, conquanto se veja, ao diante, que a própria
proposta de mais escolas não disfarça de modo algum, via de
regra, o aproveitamento político do partido dominante.
Vale ser recordado, neste particular, o esforço do presidente José Martiniano de Alencar, em 1836; delegando por lei
às câmaras municipais a nomeação de dois inspetores para
fiscalizarem o desempenho dos professores.54 Nesse mesmo
estatuto, pelo seu art. 9, está dito que as “Câmaras Municipais
devem estabelecer um artigo de postura, em que imponham
53 In: “Notícia do Povo Cearense”, Imprensa Universitária do Ceará, Fortaleza,
1977, p. 166.
54 Lei n. 50 de 20 de setembro de 1836, art. 3.
EDUARDO CAMPOS
130
penas ao pai de família, que esquecido de seu dever para
com seus filhos, e do grande benefício, que lhes faz, mandando-os educar, deixar de os mandar para as escolas públicas ou particulares sem justificado motivo”.
Não obstante todo o esforço diligenciado em favor da
instrução pública ao longo desses dias, o quadro sombrio
dessas atividades só vai tomar alento, desobscurecer-se, com
a fundação do Liceu, a 14 de outubro de 1845, acontecimento “da mais reconhecida relevância” (...) “que marcou a estréia de nova era para o ensino, na Província”.55
A situação do ensino já apresentava salutar reação de
melhoria pelos anos 50, quando funcionavam 35 escolas, sendo
nove reservadas a meninas, as primeiras com 1.203 matrículas
e as segundas com 455. “Afora estas havia 9 escolas de latim
acrescenta Raimundo Girão, com 161 alunos e o curso de três
ou quatro anos, escolas na verdade umas excrescências, pois
que ensinavam rotineiramente uma língua “que não podia
servir de utilidade alguma no uso da vida”.56
Duas décadas depois, por informação que se colhe
nas discussões parlamentares da Assembléia Provincial, já funcionavam cursos noturnos em Fortaleza, num total de cinco
cadeiras. Os deputados, a vezo difícil de entender, por sua
maioria são contrários à criação de novas cadeiras no interior
do Estado, propostas para pequenas localidades, a fim de
que faz com que o deputado Teodolfo Franco Pinto Bandeira, em sessão ordinária, indague perplexo: “Para que tanta
prodigalidade em favor de quem não precisa (a Capital) e
tanta escassez para quem precisa?”
No ano seguinte, em plenário, o deputado Dr. Antônio
Benício Saraiva Leão Castelo Branco, desabafa: “Os nobres
55 Raimundo Girão, in: “Pequena História do Ceará”, Editora A. Batista Fontenele, Fortaleza, 1953, p. 158.
56 Ibidem, p. 160.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
131
deputados não querem a instrução elementar, fazem-lhe uma
guerra de morte, mas querem a criação de uma vila para
poder-se nomear um juiz municipal”.57
Em 1879, a situação de novos equipamentos para o ensino elementar, graças ao consenso dos parlamentares, parece
evoluir. Na sessão ordinária do dia 19 de agosto o deputado
Cartaxo subscreve emenda a projeto de interesse da Fortaleza,
patrocinando a criação de “um curso noturno de ensino para
adultos, em duas escolas” (...) “e bem assim um na cidade de
Baturité, Sobral, Aracati, lcó e Crato”. O deputado cel. Antônio
Pereira de Brito Paiva, na mesma oportunidade propõe à consideração de seus parciais outra emenda: “Quando a escola
noturna não for freqüentada por 20 alunos não terá o professor gratificação alguma”. Proposição logo consertada por outro
deputado, que a corrige, fazendo acrescentar: “Pelo excesso de
trabalho”. Finalmente, por proposta do deputado Soares e Silva: “suprimidos os cursos noturnos que não forem freqüentados por mais de 20 alunos”.
Em 1880, o ensino para meninos e meninas, em um
mesmo recinto, acende as discussões no Legislativo cearense.
O deputado João Lopes58 é partidário do ensino misto, como
expõe para seus pares:
“Sr. João Lopes: – A co-educação dos sexos, sr.
Presidente, é idéia aceita em teoria e praticada
em diversos países adiantados, notadamente nos
Estados Unidos, onde são mistas as escolas desde
o ensino primário até o ensino superior. Temse colhido em todos aqueles Estados os mais
lisonjeiros resultados. O Sr. C. Hippecue em
57
Sessão Ordináría, do dia 9 de novembro de 1871.
João Lopes Ferreira Filho. São aparteantes os deputados Padre Antero José
de Lima, ten. cel. João Paulino de Barros Leal e o padre Leopoldo de Araújo
Feitosa.
58
EDUARDO CAMPOS
132
seu relatório sobre a instrução pública nos Estados Unidos assinala as seguintes vantagens
obtidas na co-educação dos sexos:
Em primeiro lugar grande economia tanto no que diz respeito aos horários dos professores, como no que concerne às despesas com
edifícios (...) Para as famílias há a vantagem de
ter a menina em seu irmão o natural apoio e os
dois filhos de uma mesma família freqüentando na mesma escola estreitam laços de natural
adesão e simpatia. Os perigos (...) são quiméricos. A moralidade não corre perigo algum...
Sr. Antero: – Não apoiado.
Sr. J. Lopes: – Em primeiro lugar porque nessa
idade não se o deve esperar, e depois a fiscalização e manutenção da ordem é facílimo...”
O deputado Soares de Castro, que aparteara, em 1880,
a exposição de motivos de João Lopes, vai à frente com suas
idéias contrárias às cadeiras de ensino misto, o que suscita
este momento de troca de idéias, em plenário da Assembléia,
por ocasião de sua 16a Sessão Ordinária, no dia 9 de novembro de 1885:
“Sr. P. Leopoldo: – ...diz o nobre deputado (Soares de Castro) que combate a criação de cadeiras mistas, no interior da Província, porque o
ensino misto favorece a imoralidade, visto como
vão para a escola meninos de idade já crescidos, ao passo que não se opõe a esse ensino na
Capital e centros populosos, onde freqüentam
essas aulas crianças em tenra idade.
O Sr. Barros: – O povo do sertão é mais moralizado do
que o da cidade.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
133
Sr. P. Leopoldo: – Não vejo, Srs. que tenha razão o
nobre deputado para opor-se ao projeto e aditivo em discussão, porque ele que agora combate com tanto afã, foi
um daqueles que concorreram nesta Casa, em legislaturas
passadas, para reforma da instrução pública, em cujo regulamento há uma parte consagrada especialmente a esta matéria. E se essa lei é imoral, porque motivo, dízei-me, esta
Assembléia a conserva em suas coleções de leis? Se assim
pensa o nobre colega por que não trata de suprimir uma tal
disposição? Penso, Sr., diversamente de S.Exa., penso que se
o ensino misto é necessário nos centros populosos, muito
mais necessário julgo no interior da Província, nas pequenas
localidades, sempre desfavorecidas, e que não dispõem dos
recursos da Capital, e das outras cidades, para derramar no
seio da população a instrução necessária a todas as classes
da sociedade”.
É patente o interesse da Casa Legislativa pelos assuntos de ensino. Repetem-se as discussões, as propostas de
novos cursos, e não falta nem mesmo o requerimento do
deputado Henrique Arraes (em Sessão Ordinária do dia 10
de julho desse ano) querendo do Presidente da Província
estes esclarecimentos:
“1o – Quais as cadeiras de ensino primário postas em
concurso desde junho de 84 até janeiro do corrente ano?
o
“2 – Desde quando começou a funcionar a Escola
Normal, e qual o número de alunos por ela
diplomados?
o
“3 – Se além do Regulamento aprovado pela Lei no
1.951, de 12 de setembro de 1881, alguma outra
disposição de lei anterior rege o provimento do
ensino primário?
EDUARDO CAMPOS
134
“4o – Se para as cadeiras do sexo masculino da cidade
de Sobral, da vila de Boa Viagem, da povoação
de Lameiro e da Conceição, em Baturité, concorreram candidatos do sexo masculino?”
Como se vê, já não prevalece o simples interesse de
espicaçar o Executivo, mas da postulação de informações que
certamente esclarecem pontos negativos ou positivos do ensino escolarizado na Província.
A saga dos sertões, pontilhada por crimes e atentados à
propriedade e à segurança das populações, favorece a germinação de ódios entre familiares; coloca na gangorra política,
que só tem realmente dois lados, o que fica em cima, e o que
fica embaixo, como já se aludiu, as diferenças entre os clãs
patriarcais a volúpia da vingança, seja que título for, dos que,
estando debaixo sobem, um dia, para se vingar.
Essa alternância de posicionamento de mando, refletida nas barbaridades cometidas, levou J. Catunda59 a exprimir-se sob amargo pessimismo: “A República morreu pela
incapacidade nativa da raça para qualquer regime da libertação política”. (...) “Entretanto, depois de mais de meio século
de tirocínio de governo constitucional, o Ceará se acha ainda
nos primeiros dias de sua inauguração. Ruem as instituições,
desconhecidos os seus intuitos, negativas nos seus efeitos pela
ação esterilizadora das facções, vermes políticos que devoram a substância da Província; impotentes para o bem, feridas de profunda desconsideração, funcionam aí, como formas
mortas, abandonadas da vida, o município, os tribunais populares, a Assembléia Provincial”.
Tudo, ou quase tudo, à conta de distorções partidárias,
de quase nenhum respeito ao comportamento cívico, inspira59 “Estudos de História do Ceará”, Tipo-Lito Gadelha, Fortaleza, 1919, 2 a edição, p. 128.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
135
dos, como sentencia com propriedade Abelardo F. Montenegro,
pelo “banditismo político”.60 Esse banditismo de fraque e cartola, de regalias institucionais, nutre o outro, o estruturado na
lei dos sertões, imposto pelos “pés de poeira” a soldo dos
coronéis, amoedado para o crime, para a vindita. Mãos armadas de modo impune por quem não tem coragem de enfrentar desafetos a peito aberto, de frente.
Pode-se dizer que é com Manuel Inácio de Sampaio, à
frente dos destinos da Capitania do Ceará, que se inaugura
uma administração de “pulso de ferro” a combater a “desenfreada e assustadora criminalidade que provocara uma situação de terrível insegurança para a então Capitania”. (...) “Pois
bem. Não tergiversou o intimorato administrador em enfrentar sem complacências alguns daqueles figurões, tendo, inclusive, que se indispor com representantes de prol da Justiça,
como Ouvidores, que lhes davam escandalosa proteção”.61
Repete-se essa postura cívica no presidente José
Martiniano de Alencar, em seu governo, ao sancionar a Lei no
51, de 23 de setembro de 1836, discutida e aprovada pela
Assembléia Provincial do Ceará – a ação do Executivo em
favor da ordem pública, estabelecendo um “agente de polícia”,
de sua nomeação, com a “incumbência de prender os criminosos de morte, dissolver os séquimos e bandos de homens armados, que vagarem na Província, apreender as armas da Nação,
que estiverem em mãos particulares “, etc.62
60 In: “Fantásticos e Cangaceiros”, Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1973,
p. 196.
61 João Alfredo de Souza Montenegro, in: “Ideologia e Conflito no Nordeste
Rural”, Tempo Brasileiro, 1976, p. 158.
62 Revogada pela Lei . n. 154, de 27 de setembro de 1938; ampliada, no tocante
ao artigo 1o, descrito, também pelo artigo 1o da Lei no 79, de 19 de setembro de
1837. A tal respeito ver ainda Regulamento do dia 7 de janeiro do mesmo ano,
conforme “Compilação das Leis Provinciais do Ceará”, organizada por José
Liberato Barroso, Tomo I (1835-1846), Laemmert, Rio, 1863, p. 55.
EDUARDO CAMPOS
136
O art. 7 é incisivo contra a prática do coiterismo: “Todo
indivíduo que acostar em suas terras, ou que estejam debaixo
de sua administração, ou em sua casa, assassinos ou homens
armados conhecidamente de má fé, será preso pelo respectivo agente de polícia, como incurso no art. 6 § 2o do Código
Criminal, para ser punido na forma da Lei”.
As providências do presidente José Martiniano de
Alencar não alcança, no entanto, os fins almejados. Os
prepotentes têm fôlego encompridado pelas injunções políticas. E desse modo continuam a praticar tropelias. Mas, na
verdade, de certo modo o estado facinoroso da hinterlândia
diminuiu, o que induziria o Presidente, em Fala na Assembléia. em 1837, a confessar: “... já não se ouvem todos os dias
(grifamos) as formidáveis empresas de Mourões, Molambos,
Tetéus, Bem-te-Vis, Mata-Velhos, Faz-Fomes, Zelhões, Famas,
Folgazões e outros cruéis e afamados assassinos...”63
O desrespeito à lei, por quem exerce o “mandonismo”,
é forma residual que avança no tempo. Dela decorrem muitos episódios, nem todos necessariamente graves, que sucedem em todos os setores da vida pública cearense,
principalmente por aqueles dias. Em 1856, o jornal “O Sol”64
invectiva o fato de Antônio Ferreira dos Santos Caminha, pronunciado por crime de calúnia, tomar assento na Assembléia
Provincial. O jornal julga ato “onipotente” do Poder Legislativo,
que prefere preterir e violar toda e qualquer legislação em
vigor para obsequiar a um de seus protegidos, conquanto a
posse do deputado fosse vedada pelas disposições claras e
terminantes da Lei de 3 de dezembro de 1841 (art. 94); pelo
63 Abelardo F. Montenegro, o. c., p. 220. Convém ter em mente, a respeito do
clima belicoso, os antecedentes políticos, sublinhados por movimentos armados, que começam em 1817, passando por 1824 e culminando em 1831 e
1835. Ver, nesse sentido, João Alfredo de Sousa Montenegro, o. c., p. 96-97.
64 7 de julho.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
137
Regulamento de 21 de janeiro de 1842 (art. 293) e pelo Aviso
de 8 de agosto de 1846.
É evidente, noutra passagem, também denunciada por
aquele jornal, que a administração pública continua usando
de violência sempre que essa prática aproveita à vingança
contra adversários. A um instante, chega-se a ponto de, no
Legislativo, tramitar requerimento, ao Presidente da Província, para que dê explicações sobre 16 dúzias de palmatoadas
com que foram castigados 4 indivíduos livres no quartel do
Corpo Policial, por ordem do Chefe de Polícia...
Para os que redatoriavam “O Sol”, os “membros da
maioria da Assembléia, como homens podem ser bons, mas
como legisladores são péssimos, descuidosos de seu dever,
dominados pela afilhadagem, servis e aduladores do Poder
Executivo, porque entendem que o Presidente da Província é
tudo, e que o Deputado Provincial é o mesmo que um caixeiro, um servo, ou fâmulo, empregado a serviço do salário...”65
Na década de 1870-79, continuam repetidas as denúncias contra as arbitrariedades da administração provincial,
seqüenciando novos atos de “banditismo político”. Às vezes
são os próprios emissários do governo que se excedem no
cumprimento da lei, como se depreende pelo pronunciamento exaltado do deputado Oliveira Sobrinho, em plenário, deplorando o procedimento do delegado de Baturité, em Acarape,
acompanhado de força policial: “Logo que ele (o delegado)
chegou a Acarape, na ocasião da eleição, espalhou-se a confusão, a desordem; os liberais foram apedrejados, o seu sangue correu e manchou o templo; correu também o sangue
dos conservadores, que não têm posições oficiais...” 66
Peticionava na ocasião, para que a Assembléia dirigisse ao
Presidente da Província requerimento solicitando esclareci65
66
In: edições respectivamente de 7.6.1857; 30.6.1859.
In: Sessão Ordinária da Assembléia Provincial do Ceará, dia 19 de julho de 1871.
EDUARDO CAMPOS
138
mento sobre o ocorrido. O Plenário, nitidamente situacionista,
votou o adiamento da discussão para uma semana depois.
Nessa oportunidade, depois da proposta do deputado ir à
discussão duas vezes, foi rejeitada.
Em 1882, fervem na Assembléia Provincial as referências
a crimes e perseguições. Aos 29 dias do mês de novembro do
ano em causa o deputado J. Paulino propõe à Casa medidas
para dar cobro a atos de ostensiva convivência de autoridades
e criminosos, como os verificados com “o delegado e
subdelegado de Independência (que) convivem com criminosos de morte, com eles se divertindo em sambas, onde os seus
brasões ou as suas proezas são contadas por aqueles ao som
da infalível viola, como há pouco sucedeu na povoação das
Vertentes, entre aquelas autoridades e o criminoso Julião, exescravo de D. Luíza de Matos, feroz assassino do infeliz Antônio Joaquim; como muitas vezes tem sucedido entre o
subdelegado de polícia do Distrito de Belém, termo de
Quixeramobim, Antônio Lopes de Mesquita Galvão e os criminosos Joaquim, Geracina (mais outros, nomeia) reunidos desfrutam os sambas da Serra do Machado, nos quais figuram de
músico o subdelegado, com o seu realejo, e um dos criminosos com a sua rabeca, para fazerem dançar aos demais...”67
As discussões em plenário, na década que principia
em 1880, não esmorecem o entusiasmo parlamentar pelos
assuntos pessoais, notadamente os que evidenciam interesses
contrariados, engendrados por divergências políticas
interioranas. Não raras as reclamações – como vimos atrás,
contra o abuso de poder da autoridade, seguidas de pedidos
de esclarecimentos ao Presidente da Província, já que só a
esse cabia o direito de prestar informações. E como procede
o deputado Felipe Sampaio, em sessão do dia 16 de outubro
67 In: Sessão Ordinária da Assembléia Provincial do Ceará, dia 29 de novembro
de 1882.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
139
de 1883, requerendo explicações sobre “medidas tomadas pelo
Chefe de Polícia e autoridades policiais, do termo de São
Francisco para punição dos autores do espancamento de
Florencio Pereira de Paiva, no distrito de Santa Cruz”.
Debaixo desse clima é que o deputado abolicionista
Justiniano de Serpa, em sessão do dia 25 de agosto de 1884,
investe de rijo contra um de seus pares68, argüindo-o de atitude condenável de proteção a criminosos:69
“O Sr. J. de Serpa: – No mês de novembro de 1882 deu-se na Comarca de Aracati um
crime horrendo e imoral. Um escravo de Francisco de Melo Barreto, eleitor da parcialidade
do nobre deputado, estuprou barbaramente uma
pobre menina de oito anos. Denunciado perante a Justiça da terra, e não podendo o escravo deixar de ser pronunciado no art. 222, do
Código Criminal, atento à natureza do crime as
provas colhidas, Barreto apressou-se em darlhe carta de liberdade, com data anterior ao
crime, para furtar-se deste modo ao pagamento das custas.
“Essa carta de liberdade, que foi junta
aos autos, dava ao escravo idade de 17 anos.
Com ela esteve Barreto livre do pagamento
das custas do processo, mas era preciso conseguir mais. Era necessário isentar o escravo
da penalidade do código, e então a idade reconhecida na carta de liberdade foi alterada
para 13 anos, para se provar que o escravo
não havia procedido com discernimento e ser
julgada a denúncia improcedente...”
68
Cr. Manoel de Sá Barreto Sampaio.
In: “Anais da Assembléia Legislativa Provincial do Ceará”, Tomo X I X,
Tipografia do “Cearense”, Fortaleza, 1885, p. 190.
69
EDUARDO CAMPOS
140
Conclusão: o escravo foi despronunciado.
Mas sem que a maioria perceba, não está longe desses
dias o momento em que se alterará profundamente o desempenho político do Império, com o advento da República, a
abrir capítulo novo da História do Brasil, e que inaugura inovações constitucionais, circunstância que envolverá – ainda
que de modo lento, mas progressivo – modificações do próprio exercício político-eleitoral, com o afastamento final, já
no período de 1935-1937, da presença total de padres com
acesso ao nosso Legislativo.70
A primeira Constituição do Ceará, de 16 de junho de
1891, de existência breve, se não brevíssima, frustrou-se por
ato do vice-governador Major Benjamim Liberato Barroso,
então em exercício da governadoria, fulminada pelo Decreto
1, de 18 de fevereiro do ano seguinte. Um “novo Congresso
Estadual, com as funções constituintes” que lhe eram outorgadas, a 12 de julho de 1892 podia já apresentar a nova Carta
Constitucional, “não se fazendo mais referência à Constituição Estadual de 16 de junho de 1891”.71 Daí decorre o reco70
A análise qualitativa dos que tomam assento na Assembléia Legislativa, de
1835 a 1837, é trabalho que fascina, e por fazer. Por ela, a uma breve interpretação, ver-se-à o predomínio de deputados com patente militar, e padres. De
1835 a 1837, 9 padres são deputados... e 9 os militares. Esse “score” sofre
alterações bem nítidas a partir de 1850-51, quando os militares descem para 3
posições, e os padres ficam com 7. Em 1860-61 os padres sobem para 12, e os
militares caem para 2. De 1872 a 1879 há uma diminuição de acesso de deputados militares e padres, posição que se modifica de 1881 a 1889, com os
padres em destaque, como no biênio de 1884-85, quando aí detêm 10 cadeiras. Mais recentemente, isto é, por ocasião da 2a Constituinte (1905-1908), os
deputados, com patente, são destaque maior, situação que alcança até o ano
de 1912. Os padres ocupam apenas 2 cadeiras. E no período legislativo que vai
de 1935 a 1937, só dois militares são deputados... contra nenhum lugar dado
aos padres. (Conforme exame da listagem dos deputados eleitos em todas as
legislaturas, até a última data mencionada).
71 José Parsifal Barroso, in: “Uma História da Política do Ceará – (1881-1954) “,
Banco do Nordeste do Brasil, Fortaleza, 1984, ps. 30-31.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
141
nhecimento de que a primeira eleição, ainda que por via
indireta, para presidente do Ceará, na jornada republicana
que se inicia, é a do tenente-coronel José Freire Bezerril Fontenele.72
Escreve o historiador José Parsifal Barroso que, na primeira Mensagem do presidente Bezerril Fontenele à Assembléia, em 1893, há registro do “primeiro pleito municipal com
as Câmaras e os Intendentes Municipais, cujas posses haviam
ocorrido a 10 de junho do mesmo ano”. Aduz o estudioso:
“Como em muitos municípios não tinha sido realizada a primeira eleição, o Presidente Bezerril Fontenele apela para o
Poder Legislativo do Ceará, nos seguintes termos: “E assunto
este (o da eleição) de que deveis curar, sem perda de tempo,
na revisão e retoques indispensáveis à citada Lei no 33, de
fundamentos nitidamente de interesses municipalistas”.73
Assunto, como se verá a seguir, a merecer argüição
pertinente:
O municipalismo brasileiro, reprimido
pela ação do poder centralizador, que tem sua
ação mais incisiva a partir do século XVIII, é
aparentemente beneficiado com a Lei de 1o de
outubro de 1828, que confere “nova forma às
Câmaras Municipais”, titulando-as de
“corporações meramente administrativas”, impedidas de “exercerem jurisdição alguma
contenciosa” (art. 24) Prestavam contas, todos
os anos, ao Conselho Geral, depois de as ter
tomado o Procurador; davam parte das “infrações da Constituição e das prevaricações” (art.
57) ao Presidente da Província e ao Conselho
Geral; obrigavam-se a prestar informações a
72
73
O. c., p. 39.
Idem, p. 40.
EDUARDO CAMPOS
142
Deputados e Senadores (art. 63); não podiam
fazer “ajuntamento para tratar ou decidir negócios não compreendidos” no Regimento, assim
“como proposições, deliberações e decisões
feitas em nome do povo (grifamos), e por isso
nulos, incompetentes e contrários à Constituição” (art. 78). Os presidentes da Província impunham-se com seus únicos administradores.
Nem o Ato Adicional, de 12 de agosto de 1834,
atenuou esse posicionamento de dependência camarista,
dependência que se arrastaria até a Proclamação da República, quando, inaugurada a Constituinte de 1891, ao
povo foi conferido o exercício do poder político, “sufrágio universal masculino e o voto direto a descoberto”, e,
nessa esteira de conquistas políticas, consideráveis, terse-ia o Estado separado da Igreja; ia vigir a autonomia
dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e nova organização municipal que, no Ceará, vai praticada pelo
Decreto no 23, de 21 de abril de 1892, oriundo do Executiva. Depois sucederam outros procedimentos legais, até
culminar com a Lei n o 33, de 10 de novembro de 1892,
cujo preâmbulo invoca o “povo do Estado do Ceará, por
seus representantes”, para decretar...
A linguagem é nova; fala o discurso de novos tempos,
a começar por definir que o “município é a base da organização do Estado” (art.1). E se lhe seguindo: “a criação e extinção
dos municípios compete à Assembléia Legislativa, mediante
reclamação dos novos eleitores e contribuintes”. Semântica
também nova.
O art. 75 é determinante: “Nenhuma ingerência terão
no desempenho das funções municipais quaisquer autoridades estranhas à hierarquia municipal, salvo os casos previstos
pela Constituição do Estado”.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
143
A ação do Legislativo se ajusta ao pensamento político dos novos dias, e, no que tange às Câmaras, é agente de
proposta simplesmente orientadora, não lhe cabendo pedir
e aprovar contas, mas tão só atender ao exame de orçamentos e balanços quando, por dois anos consecutivos, se verificar déficit.
As Câmaras podiam, daí por diante, deliberar, fazer
suas próprias posturas, conquanto tivessem de as mandar ao
Presidente e à Assembléia para ser verificado se atentavam
“contra a Constituição e Leis Estaduais”.
Na verdade, assistia-se ao prenúncio da independência dos poderes, perspectiva de exercício parlamentar mais
altivo e responsável, que, até se firmar, bem-sucedido – como
no caso do Legislativo cearense – haveria de percorrer todo
um longo período de ajustamento aos novos propósitos ditados
pelo tempo.
EDUARDO CAMPOS
144
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ALBUQUERQUE, Manuel Maurício de – “Pequena História da
Formação Social Brasileira “, GRAAL, Rio, 1984.
BARROSO, José Liberato – “Compilação das Leis Provinciais
do Ceará”, Tomo I (1835-1846), Laemmert, Rio, 1863.
BARROSO, José Parsifal – “Uma História da Política do Ceará”
(1881-1954), BNB, Fortaleza, 1984.
CAMPOS, Eduardo – “Posturas Municipais da Fortaleza Provincial” (Inédito).
CARVALHO, Jáder de – “Antologia de João Brígido”, Terra de
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EDUARDO CAMPOS
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O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
147
3
ANTECEDENTES SOCIOPOLÍTICOS
À AÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO
DO CEARÁ
(Idéias e Circunstâncias)
O MUNDO experimenta considerável expansão pela década de 1850-59. Descortinam-se novos mercados; terras se apresentam aos olhos do homem, que empreende com fulgurações
que o enriquecimento repentino proporciona. Transcorrentes
os dias marcados pelo liberalismo econômico e importância do
aproveitamento da técnica a serviço do homem.
Nesse cenário de afirmação e ambições, em que passam a prevalecer as inovações técnicas e a valorização do
Capital, desponta o homem moderno, “pobre diabo ideológico”, como o haveria de qualificar Lewis Mumford; – “criatura
formada enquanto continuassem a existir as condições e, necessidades que o fizeram surgir.” (Mumford; 1952, 298, 299)
Havia esperança em tudo: nos empreendimentos mercantis nos resultados produzidos pela máquina, na força do
dinheiro. “O mecanismo, o absolutismo e o capitalismo, todos formulados durante o século XV”, no mundo, “tinham
agora chegado ao estado de completa corporificação e expressão: no novo meio que eles invadiam e enchiam, não
deixavam lugar para outra tendência.” A ferrovia, o navio, a
fábrica, a ponte, atestavam o desempenho dos novos poderes da criatura humana (Mumford; 1953, 342).
Mas os fatos como estão ditos, mesmo onde sucedia o
avanço rumo à acumulação de riqueza, não queriam signifiO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
151
car necessariamente o contentamento das reais condições de
que o homem carecia para poder viver.
Nessa moldura de transformações funciona o ideário
rousseauniano, colocando sob conveniente atenção o “bemestar de todos os cidadãos”, proposta que aproveita “uma geração mais tarde, consubstanciada na cláusula do bem-estar geral”,
a Constituição dos Estados Unidos (Mumford; 1952, 356).
Mas ao meio de tanta euforia, desajustamentos, infelizmente incontroláveis ou até mesmo insanáveis pelo homem,
conflitos e guerras civis como a Americana e, mais próxima
de nós, ferindo-nos em todos os sentidos, a do Paraguai, tudo
com propriedade lembrado por Hobsbawm (1978, 96) e explicado em “primeiro lugar” pelo “próprio processo de expansão capitalista global, que multiplicava as tensões no mundo
não europeu.”
No Brasil, em 1871, terminada a guerra com o Paraguai,
tem-se com mais assiduidade o debate sobre a situação social
e política da Nação. É questão nacional, porque questão de
terra, do setor industrial da agricultura, de que se aproveita o
País na chamada “lei do ventre livre”. Pesa na balança das
decisões – e também na das ações – a comunidade dos que
trabalham a terra (não apenas latifundiários) e insistem na
utilização da mão-de-obra escrava.
Mas a Nação, sem ter como se decidir ainda pela industrialização, principia a experimentar os efeitos do processo. A
instrução primária é tornada obrigatória; positiva-se melhoria
no aproveitamento do ensino; trilhos de ferro se estendem e
fazem enlace providencial da área produtora de café com o
Porto de Santos. E, se cresce a dívida externa, por outro lado
há o advento do telefone; surgem o fonógrafo e o telégrafo,
assinalando as vantagens de sua utilização, enquanto Thomas
Edson (13.03.1879) conquista o privilégio para introduzir no
país “o sistema da luz elétrica...” (Renault, 1982, 143)
EDUARDO CAMPOS
152
A corrente imigratória, estabelecendo-se do exterior para
o Brasil, coloca as autoridades diante de insustentável situação: aos olhos dos abolicionistas ofende a dolorosa realidade
(que testemunham) do governo ofertar tudo – desse modo
são os protestos públicos – ao homem recém-chegado, e nada
ao braço-escravo tratado ainda como coisa, objeto de aproveitamento mecânico.
O indivíduo, quer escravizado, quer livre, não se vê
contemplado com a política de cunho social que merece a
criatura humana. Tem-se, por essa quadra – e por muitos
anos adiante – sociedade estruturadamente agrária, que repousa em incipientes condições de remuneração. O próprio
criatório, exercido em maior porção pelos que só dispõem de
pequenos rebanhos, “é insuficiente como fonte de renda.”
Em grandes propriedades agrícolas, nas quais se cultivava o café, o plantio mais rentável e em moda, o “pequeno
agricultor” não consegue ultrapassar a sua humílima condição de meeiro. Esse cultivar possui apetites incontentáveis
por novos espaços, da parte de “fazendeiros poderosos”, enquanto simples senhores de engenhocas se conservam numa
perpétua mediania, ou caem, pouco a pouco, na pobreza
geral.” (Vianna, 1938, 171 e ss)).
Lembra ainda o autor citado: “... as instituições de ordem administrativa e política, que regem a nossa sociedade
durante a sua evolução histórica, não amparam nunca, de
modo cabal, os cidadãos sem fortuna, as classes inferiores,
das camadas proletárias, contra a violência, o arbítrio e a
ilegalidade.” (Vianna 1938, 194).
Há, portanto, em forma aguda, por muitos e muitos
anos, carência de “instituições de solidariedade em nosso
povo.” (Vianna 1938, 205). Não há como ser diferente, a nosso ver, com a economia saturada pelo aproveitamento do
braço negro, vilipendiado, e pela força-de-trabalho livre, pouco
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
153
considerada e respeitada à época, pela legislação vigorante,
desatenta aos conflitos então gerados.
O Ceará, no contexto do período que vai de 1870 a
1883, salva sua economia de perigoso comprometimento graças ao tráfico interprovincial, beneficiado por aqueles “poderosos” cafeicultores paulistas, sedentos de mão-de-obra a
qualquer preço, adquirindo-a num total de 18.106 peças negras, no mercado do Ceará. (Silva, 1986, 19).
A remuneração, por trabalhos executados em vigência
e à margem da exploração da mão-de-obra servil, repousa
em consenso doméstico estabelecido pelas partes que pactuam. O guarda-livros, por exemplo, é contemplado no comércio local com contrato de pagamento final, ao término do
ano, vigorante a remuneração em muitos casos, com tradicionais acréscimos de vantagens patrocinadas pelo estatuto legal: “quarto para morar”, “cama, criado”, “jantar, almoço e
ceia”, vantagens ordinariamente desfrutadas na casa do próprio empregador, situação que tende à convivência nitidamente familiar e dependência maior do empregado ao patrão.
(Oliveira, l884, 558).
Os trabalhadores de categoria inferior, “pobres”, ou
“muito pobres”, mas ligados entre si pela falta de instrução,
não passavam de meros criados, e se regiam pelo que estava
dito nas “Ordenações”, localizadamente no Liv. 4, Tits. 29, 3a,
até 35, legislação que, em rigor, não obstante desatualizada
em face das novas propostas às relações de emprego, prosseguia como indicativo consultável e obedecido na celebração
de obrigações entre as partes. Em razão do que se observa,
preceituado no tit. 35, o “dano feito pelo criado ao amo deve
ser-Ihe pela soldada, perante o juiz, quando o criado se retirar...” (Oliveira, 1884, 60, 561).
Desse período, a tentativa de correção dos efeitos da
legislação portuguesa que nos alcançava e seguia orientando
EDUARDO CAMPOS
154
as relações laborais: o Decreto no 2827, de 15 de março de
1879, dispondo sobre “a locação dos serviços aplicados à
agricultura”, ressalvados os casos não abrangidos em seu texto, que se regiam pelos “arts. 226 e seguinte do Código Comercial.” (art. 1, parágrafos 1 e 2).
A nova lei aplicava-se a nacionais e estrangeiros, entendida no parágrafo 3o do art. 9 a “locação de serviços mediante a parceria na criação dos animais úteis à lavoura,
denominada parceria pecuária.”
O locatário ao espírito desse diploma legal (art. 38)
podia “despedir o locador” por justas causas, que eram:
“Embriaguês habitual, injúria à honra do locatário e família;
imperícia; insubordinação.”
Mas, no inverso, funcionavam como justas causas para
empregado despedir-se: falta de pagamento, imposição de
obrigações não pactuadas; enfermidade; casamento celebrado noutra freguesia; e não poder comprar gêneros de que
precisasse a terceiros, constrangidos a adquiri-los apenas ao
patrão; caso ferida ou injuriada a sua honra ou a da família.
(art. 39)
O art. 40 desse mesmo estatuto é taxativo: “Despedindo-se o locador com justa causa, ou sendo despedido sem
justa causa, não tem direito senão aos ganhos vencidos, descontados no seu débito.” (art. 32).
No tocante à parcela agrícola, dispunha a regulamentação legal que o locador, caso se ausentasse do trabalho
(naturalmente :por prazo capaz de causar prejuízos ao locatário), estava sujeito a ser apenado com 5 a 25 dias de prisão.
(art. 69).
Contra o grevista estabelecia o art. 78:
“Os locadores que, para fazer paredes,
ameaçarem ou violentarem a outros locadores,
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
155
serão presos e remetidos à autoridade pública”,
por estarem passíveis de enquadramento no Código Criminal (em vigor na época). Apensava o
artigo seguinte: “Se (os locadores) efetuarem a
parede e por meio dela cometerem ameaça e
violência, serão punidos pelos crimes praticados.”
O Juiz de Paz, chamado a decidir em função da lei que
sé vem mencionando, foi sem dúvida alguma o primeiro
julgador de feitos ligados à Justiça do Trabalho ainda incipiente
e em formação, pois todas as infrações ou descumprimentos
estabelecidos em Lei ordenavam-se pelo que dispunha o art.
83 e seus parágrafos:
“§ 2o Citado o réu, e presente na audiência
com as suas testemunhas, que poderá levar independente de citação, ou à revelia do mesmo
réu, se não comparecer, o Juiz de Paz ouvirá as
testemunhas de uma e outra parte, mandando
tomar por termo os depoimentos.”
“§ Concluídas as inquirições e tomando o depoimento ou o juramento de qualquer uma das
partes, se for ordenado pelo Juiz, serão as testemunhas ouvidas verbalmente, juntando-se aos
autos, com quaisquer alegações, os documentos que oferecerem, depois do que o Juiz proferirá sua sentença na mesma audiência ou na
seguinte.”
No regime escravocrata vigorante no Ceará, por volta de
1880, praticamente os “direitos” trabalhistas, se assim podemos
considerar, além de inadequados para o próprio homem livre,
para o escravo tido ainda por “peça de fôlego”, “coisa”, eram
prioritariamente desumanos. É verdade que pela Lei de 28 de
setembro de 1871, quem viesse à luz, filho de escravo desde
EDUARDO CAMPOS
156
então seria livre, com direito ao exercício do voto (em eleições
primárias); podia encarreirar-se na vida pública e pertencer aos
quadros da Guarda Nacional. Mas a obrigação do escravo prestar
serviços ao senhor por esse tempo, pertencendo a condomínio, não obstante indenizado a um dos donos o valor da quota
de sua alforria, ainda se obrigava (até por 7 anos!) a prestar
ao(s) outros(s) condômino(s) em serviço não remunerado o
restante do valor da(s) quota(s).
Exigido então curioso “contrato de prestação de serviços” para obtenção de liberdade, pactuado com os dizeres
que ensinavam os manuais legais por volta de 1884:
“o escravo fulano fica portanto obrigado a prestar
ao Senhor Sicrano todos os serviços para que é
apto, durante (tantos anos), tempo útil em que
entram os dias de guarda (grifamos), mas excetuam-se os de ausência em prisão por fato alheio
à vontade do locatário, e os de moléstia prolongada, que serão preenchidos com outros (grifamos). O locatário obriga-se a tratar dito escravo
durante tal e tal período como pessoa de sua
família, a vesti-lo e alimentá-lo conforme as
suas posses, e a não exigir dele maior número
de horas de trabalho do que aos outros fâmulos,
ou daqueles que forem de uso e costume no
lugar, assim como a não lhe impor maus-tratos
nem castigos aviltantes à dignidade humana”
(Oliveira, 1884, 103). Não cumprindo o escravo as condições pactuadas, ficava sujeito ao
rigorismo do Reg. 5.135, de 13 de novembro
de 1872. Anote-se que, mesmo por ocasião da
vigência do Dec. no 2.827, de 15 de março de
1879, as inovações contratuais entre o locador
e locatário, introduzidas, não contemplavam a
mão-de-obra escrava...
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
157
O mundo entra em fase de grandes experimentos e invenções ao final do século. Passa a funcionar a máquina de
escrever; o telefone desperta a atenção do Imperador do Brasil,
na Exposição do Centenário, em Filadélfia, em 1876. Os Estados Unidos ganham, com entusiasmo, a liderança do avanço
tecnológico; e se conhece a primeira lâmpada incandescente, a
broca elétrica, a eletricidade aplicada industrialmente, o gerador elétrico, o fonógrafo...
Para esse amadurecimento de idéias, proveitosas para
o desenvolvimento da humanidade, demora a adequação da
mão-de-obra. A disponibilidade maior da força-de-trabalho,
como no Brasil, está representada por escravos entorpecidos
pela miséria e sem condições de concorrer para o progresso
da Nação.
Impossível falar em assistência social, em direitos e justiça pera o trabalhador, onde vigora, infamante, o regime
escravocrata.
Quando o Ceará parte à frente, libertando seu contingente de escravos, conquanto não obtendo de imediato a adesão de todo o País, há a certeza de que a queda da escravatura
está próxima: É como vai ocorrer em 1888, a um passo da
Proclamação da República e de novas idéias, e novas propostas de aproveitamento da força-de-trabalho (já daí por diante
toda livre) em favor do fortalecimento da economia nacional.
Quando o homem exercia o seu trabalho como se fosse máquina, a serviço do seu semelhante, o escravocrata, fundamentou algumas razões o padre Jorge Benci de Arimino,
em 1705, para concluir que de todos os bens naturais o único
de “que goza o escravo, é a saúde. O bem de riqueza não o
alcança; porque nada tem de seu; pertence a seu Senhor tudo
que lucrou. Menos alcança o bem das delícias, pois vive continuamente entre os trabalhos e penalidades do cativeiro”.
(Benci Sd, 1977, 74).
EDUARDO CAMPOS
158
A jornada de trabalho exigida ao escravo, mão-de-obra
utilizada prioritariamente na chamada indústria agrícola, “desde
o alvorecer”, o que se deve entender pelas 5 horas da manhã
ou antes, e estendia-se até às 9 ou 10 horas, momento em
que era servido o almoço, com direito a repouso de 30 minutos. Reincetadas as atividades, seriam estas paralisadas pela
segunda vez por ocasião da trégua do jantar, constam de
feijão e angu, como ocorria na primeira refeição. Já aí os
escravos tinham direito à “sesta mais longa”, possivelmente
mais de uma hora, prosseguindo o trabalho até o anoitecer, o
que se dava por volta das 19 horas (Ribeyrolles, 1980, 46,47).
Ao todo, 12 ou 13 horas de atividade física, quase sempre debaixo de sol abrasador. Em engenhos, por ocasião do
período de moagem, o serviço exigia a aplicação de turmas
alternadas, de 4 em 4 horas, quer de noite quer de dia, sistema que desorganizava e afligia ainda mais o homem desse
modo exaustivamente requerido, não de raro podendo ocorrer sua atividade por 18 horas seguidas, como anotou estudioso do assunto (Silva, 1984, 335).
Por ser capital de permanente risco, do escravo tiravam
todo o rendimento possível, o que fazia oscilar de 18 a 30
anos seu desfrute compensador como força-de-trabalho. (Silva, 1984,177). Acrescente-se outra particularidade que confluía para o senhor aproveitar-se ainda mais de suas peças
negras: a perspectiva, à vista, de ser liberado por legislação
pertinente, o que fazia com que o proprietário aproveitasse
dele “a maior soma possível de trabalho”, enquanto era tempo (Smith, apud Silva, 1984, 174).
Chega momento em que o problema, por demais
infamante, passa a ser a eliminação dessa mão-de-obra explorada ao máximo, permutada já em algumas áreas pelo
trabalho livre. Desse modo torna-se “imperativa a substituição
do trabalhador negro pelo colono branco. Incrementa-se enO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
159
tão a migração. E as tímidas tentativas de colonização, do
começo e meados do, século, afirmam-se com a entrada de
530.000 migrantes europeus entre 1881 e 1890.
“Com este fluxo, novas técnicas penetram na vida rural, indo libertar maior quantidade de mão-de-obra. O uso do
arado, por exemplo, segundo Taunay, em 1870, já era geral
nas fazendas paulistas.” (Aguiar, 1960, 1o vol., 150)
Um ano após a libertação dos escravos em todo o País,
sucede a grande mudança; a instituição da república federativa. Pedro Calmon resume esses dias com muita propriedade:
“A passagem do Brasil, porém, do modelo francês e inglês da política do Império para o modelo norte-americano da política republicana,
não lhe valeu a paz interna, menos a calma dos
espíritos” (Calmon, 1945, 340).
Sobrepõe-se a esse estado de animus o sentido
idealizador dos positivistas, que tinham disponibilidades mais
realistas e humanas de entender os muitos problemas que
acudiam o Brasil republicano.
Na República, vê-se a tentativa de incorporação do proletariado à sociedade moderna nos limites brasileiros, defendido, “o reconhecimento de vários direitos sociais, em oposição
ao liberalismo do século XIX, que idealizou as relações de
suposta igualdade entre Capital e o Trabalho, confrontados
no mercado” (Fausto 1977, 50).
Coincidentemente, é de 1889 o projeto visando à
“melhoria das condições de vida da classe operária”, que principiava a emergir do panorama nacional, ao se caracterizar
maior preocupação pelo setor industrial.
O estatuto pretendia dentre outros pleitos a supressão
do pagamento por tarefa e a divisão do salário em duas parEDUARDO CAMPOS
160
tes, senda uma fixa e outra variável de acordo com a produtividade; sete horas de trabalho diário (grifamos): descanso
dominical e nos dias de festa nacional, além de 15 dias de
férias anuais; salário-enfermidade, correspondendo pelo menos á parte fixa das remunerações; garantia de permanência
no emprego após sete anos de serviço (grifamos), permitida a
demissão somente por meio de processo que demonstre infração prevista no regulamento e para a qual seja cominada
tal pena; aposentadoria (grifamos) pelo menos com a parte
fixa dos salários, por invalidez ou por atingir o trabalhador 63
anos, desde que, no último caso, não tivesse filhos ou netos
maiores que fossem empregados nas oficinas públicas; pensão por morte do operário, concedida à viúva e, na falta
desta, aos avós, filhas solteiras, filhos menores de 21 anos,
correspondendo a dois terços do salário fixo; admissão de
aprendizes somente após 14 anos, com vinte horas semanais
de trabalho, prolongando-se o aprendizado até os 21 anos.”
(Ivan Lins, apud Fausto, 1977, 50,51).
Certamente, no todo ou em parte, as sugestões pertinentes ao desejável aperfeiçoamento das relações sociais de
trabalho iam esperar ainda a hora de sua efetivação, pois o
Estado – refere Oliveira Vianna – “pode subverter, alterar ou
modificar, na sua ação política, certos traços da psique histórica dos povos; mas, ainda assim, não o poderá fazer eficientemente senão dentro do lema d’annunziano – isto é, lentamente
– “o tempo nada conserva do que se faz sem ele” – disse
Mauclair.” (Vianna, 1949, 143).
Restava muito o que modificar, principalmente a condição de mau patrão originária dos anos de exploração da
mão-de-obra servil vejo que prossegue às vezes, de modo
impertinente no trato de pessoas livres, como ocorreu, por
exemplo, bem próximo de nós, no Ceará, na zona serrana da
Pacatuba, fato denunciado pela Constituição, a 17 de deO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
161
zembro de 1885, quando encarecia a atenção do presidente
da Província, por caber a este “socorrer umas pobres donzelas,
órfãs desvaliadas, uma delas com educação primária e de
família, mocinhas que tiveram o infortúnio de, com a seca,
ficarem sem os pais e serem apanhadas pelo português José
Antônio de Medeiros, o qual traz ditas órfãs com a maior pressão possível”, tratando-as “grosseiramente, de chicote em punho (grifamos), chamando-as de égua e outros nomes injuriosos,
açoitando-as (grifamos) por vezes.” (Campos, 1984, 44)
Nada de admirar. De modo bem mais grave agiriam os
escravocratas de Milagres (CE), três anos depois de declarados
libertos todos os escravos do Ceará (1883), como alude o jornal Libertador (7 de abril de 1886): “Ao tesouro provincial acaba de determinar o Exmo. Sr. Des., Presidente da Província,
que faça efetiva a cobrança judicial do imposto e multa a que
estão obrigados os indivíduos residentes no município de Milagres, que a falsa fé e criminosamente conservam escravizados
sob seu domínio, depois do dia 25 de março de 1883, com
ostentoso menoscabo da Lei de 19 de outubro e grande escândalo para a Província e para o país.” (Campos, 1984, 76).
Outros acontecimentos assemelhados transcorriam paralelos com o autoritarismo sobrado da extinção do sistema
de cativeiro. Urgia evitada a “síndrome dos vadios”, estado de
vagabundagem em que se encontram os que realmente não
têm onde se empregar, e também os que se contentam com o
pouco que ganham, optando pelas horas de ócio mais do
que pelas aplicadas em atividade laboral.
No Sul do País muitos fazendeiros, positivada a
manumissão dos escravos, passam a praticar contratos com
turma de trabalhadores pelo regime de empreitadas utilizando, muitas vezes, a mão-de-obra dos libertados disponíveis.
Desse modo conta Eduardo Silva (Silva, 1984, 241), aludindo
que, no Rio de Janeiro, “a organização nas fazendas cristaliEDUARDO CAMPOS
162
zou-se sob a forma de parceria, suplementada pelo emprego
de camaradas.” Acrescenta mais: em meados de 1890 a parceria estava generalizada em Vassouras e, no ano de 1897, era
relação contratual freqüente “em todo Estado do Rio.” (J.
Stanley Stein, apud Silva, 1984, 242, 243).
O ideário comteano preconizava para o operário sua
incorporação à sociedade moderna, acesso legitimado pelo
“direito a um salário suficiente para que a mulher” (...) “pudesse exercer seu papel de preparo espiritual da família, definida como fonte de toda a cultura moral”; “direito de receber
instrução englobando todos os resultados essenciais da evolução científica, filosófica e humanidade”; “necessidade de
“atribuir ao” proletariado, no seu conjunto, um papel social e
torná-lo digno de exercê-lo.” (Fausto, 1877, 48, 49).
Boris Fausto, no mesmo lugar, escreve ainda: “Parece
inútil lembrar que o positivismo era uma ideologia conservadora”, mas a partir de um “programa mínimo” comteano se
empenhava na luta pelos direitos operários, inclusive o direito
de greve, e no reforço das organizações sindicais no exterior.
Nessa fase fundam-se os partidos operários no Rio de
Janeiro (década de 1890), mas de quase nenhum progresso
na conquista de seus programas de luta.
Tenente de Marinha, no caso José Augusto Vinhais, do Rio
de Janeiro, em 1890, vê transformado o Centro Artístico do Rio
de Janeiro em Partido Operário, ao qual preside. E é graças a ele,
por interferência direta, que Deodoro da Fonseca aquiesce em
alterar “dispositivos do Código Penal (de 1890), que definiam
como crime a paralisação do trabalho.” (Fausto, 1977, 45).
Pelo Decreto no 1.162, de 12 de dezembro de 1890, os
arts. 205 e 206 do Código Penal ganham nova redação:
“Parágrafo primeiro – Desviar operários ou trabalhadores dos estabelecimentos em que foO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
163
rem empregados, por meio de ameaças, constrangimento ou manobras fraudulentas;
Penas: de prisão celular por um a três meses e
de multa de 200$ a 500$000.
Parágrafo segundo – Causar ou provocar cessação ou suspensão de trabalho por meio de ameaças ou violências para impor aos operários ou
patrões aumento ou a diminuição de salário ou
serviço:
Penas: de prisão celular por dois a seis meses
e de multa de 200$ a 500$000.”
No art. 2o revogam-se as disposições em contrário.
Dessa forma – comenta Evaristo de Moraes, em 1905: –
“pela lei penal” de então, o direito de greve no país estava
“plenamente reconhecido” (...) “Assim como um operário pode
isoladamente deixar de trabalhar, muitos operários têm o direito de recusar o esforço de seus braços ao chamamento e às
necessidades de patrões. Nem seria” – acrescenta Evaristo de
Moraes – “compatível com um governo republicano a negação desse direito, que deriva das condições econômicas do
tempo” (Moraes, 1971, 1950).
No começo do século vão amadurecer as idéias
revisionistas da situação sociopolítico-administrativa que
emoldura o País. Mas, na verdade, as “classe inferiores” enfrentavam, por então, condições de trabalho bastante
limitantes. “Um relatório sobre as indústrias de São Paulo,
em 1901, observa que os trabalhadores viviam em condições miseráveis; todavia, quando protestavam diante das reduções de salários, tão comuns aos caprichos da indústria
brasileira, eram sempre “obrigados pela reflexão e pelas circunstâncias a voltarem ao trabalho, resignando-se às condições que as dificuldades pecuniárias obrigam o industrial a
impor” (Morse, 1979, 284).
EDUARDO CAMPOS
164
Os remanescentes do regime escravocrata, agregados
ao contingente de trabalhadores livres, somam mais problemas à absorção de mão-de-obra.
A realidade do Ceará no tocante, pelo interior do Estado, é o que se descreve: os habitantes “vivem na propriedade
(rural) sem nunca terem terras suas.” (...) “O uso fixa os direitos e os deveres respectivos do proprietário e dos moradores.
Não pagam renda em dinheiro pela terra; poderá dizer-se
que apenas pagam em serviço.” (...) “Os operários empregados na cultura do café são pagos a jornal ou, mais freqüente,
por empreitada.” Os salários são insuficientes para a manutenção desse tipo de trabalhador do campo. Por isso, repetese o exemplo de outras áreas: cada morador dispõe de terreno
para plantio próprio, cedido pelo “proprietário e do qual não
paga renda.” (Denis, 1909, 366, 367, 377).
As estiagens prolongadas, cíclicas, praticamente estabelecem corrente migratória que, movimentada em direção
da Capital, acaba tomando o destino da Amazônia, numa
primeira etapa evasionista. Mesmo ali, o trabalhador continua
à mercê das circunstâncias (também adversas) e do dono do
seringal, que o explora de todos os modos, tornando-o escravo à maneira usual na região.
Há muitos fatores limitantes das atividades econômicas
no Nordeste. A observação um tanto rude de Joaquim Alves,
a respeito, ajuda-nos a compreender determinados fatos que,
principalmente na quadra a que nos referimos, não se ausentam do contexto da vida em sociedade: “No Sul a terra favorece o esforço do homem que, possuidor de conhecimentos
técnicos e científicos, aperfeiçoa e desenvolve as indústrias e
o comércio, abrindo amplos horizontes à inteligência; no Nordeste, a luta do homem contra a natureza inutiliza todo o
esforço empregado para melhorar as condições físicas e econômicas da região: dum lado a deficiência dos profissionais,
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
165
desde o agricultor, que se prende aos velhos princípios da
cultura do solo, até o aproveitamento dos nossos produtos,
que são exportados em estado natural” e importados por nós,
“depois de manipulados; doutro, a estreita visão política dos
dirigentes, que resumem toda a capacidade administrativa em
fazer política de sucessão” (Alves, sd, 207).
No Sul do País, vão-se iniciar as primeiras propostas de
melhoria da condição de trabalho do homem, estimuladas
pelo grupo de anarquistas de São Paulo, manifestação de
nítida conscientização do direito do operário (assim o chamavam), movimento que resulta na “organização de greves estratégicas e suas ligas ad hoc para combater a escassez de
gêneros, a ganância dos senhores, os altos preços e a censura
à imprensa”, com resultados parciais (Morse, 1970; 284).
Em rigor, há muito para ser feito, mas lentamente.
Se o saneamento da vida do trabalhador cearense não
chega a tempo, nas grandes cidades, nos centros mais metropolitanos do País firma-se a convicção de que é imperioso
acudir o homem que trabalha, o operário, o proletário.
Desse modo percebem patrões e autoridades, e não
tardam os primeiros regulamentos de proteção ao trabalho,
como todos vão deparar no Decreto no 1.313, de 1891, de
marcado cunho social, disciplinando a atividade laboral de
crianças e adolescentes, segmento comunitário costumeiramente passível de exploração não só àquele momento, no
Brasil, mas em outros países ditos progressistas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1907, o operário
ainda executa suas tarefas ao longo de sessenta horas semanais. Adolescentes, que comprovavam oficialmente ter alcançado a idade de 14 anos, percebem praticamente 1/4 do que
ganhava o operário adulto (Fraser, 1907, 295).
O estatuto legal estabelecido pelo Decreto no 1.313, de
1891, não se cumpria no Brasil. Daí movimentarem-se as pouEDUARDO CAMPOS
166
cas lideranças, á época, em postulação a que “menores do
sexo feminino de 12 a 15 anos e os do sexo masculino de 12
a 14 anos” não trabalhassem mais do que sete horas por dia
“não consecutivas, de modo que não excedesse de quatro
horas o trabalho contínuo; e os do sexo masculino de 14 a 15
anos até nove horas por dia, nas mesmas condições” (Moraes,
1971, 32).
Jorge Street, prestigioso industrial de São Paulo, em
1917, confessa:
“Se entre nós o trabalhador nunca teve,
depois da primeira grande lei social da libertação dos escravos, uma vida que se pudesse,
nem de longe, chamar de trágica, tal qual nos
mostram os inquéritos e as publicações da Europa Industrial, havia entre nós, no entanto, incontestavelmente, abusos e injustiças contra
crianças, mulheres e mesmo operários homens,
no que diz respeito à idade de admissão, do
horário e do salário principalmente. E sabeis
que falo da experiência própria, porque durante mais de 35 anos dirigi fábricas com mulheres de operários e sei bem o que vos digo.
Confesso que trabalhei com crianças de 10 ou
12 anos e talvez menos, porque nesses casos
os próprios pais enganavam. O horário normal
era de 10 horas e, quando necessário, de 11 ou
12 horas” (Moraes, 1971, XXVII-XXIX).
Ao redor desses dias, por ocasião do Congresso de
Prefeitos Municipais do Estado do Ceará, sob a Presidência
de Justiniano de Serpa, o edil de Independência comunica,
em resposta a questionário proposto a todos os dirigentes
municipais, que as crianças no sertão começam a trabalhar
“desde os seis e sete anos.” Em Sant’Ana do Acaraú a prática
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
167
é mais escandalosa. Crianças de 5 a 6 anos já são utilizadas
nos “trabalhos de campo” (Congresso 1924, 257).
Noutro município do Ceará, no de Lages, o salário pago
ao trabalhador rural em 1924 oscila de 1$500 a 2$000 a diária. Os encargos de plantio e cultivo começavam às 6h e só se
concluíam às 17h, “havendo interrupção de uma hora para a
primeira refeição” (Congresso, 1924, 190).
Pelos dados de que dispomos, a remuneração do trabalhador no Ceará era baixíssima. Considera-se: o referencial
de salário pago ao operário nos dias que integram o primeiro
quartel deste século, ordinariamente de 1$000 a 2$000, não
está muito distante do oferecido em 1883, 30$000 por mês
(com casa e comida) para quem quisesse trabalhar em engenhos no Recife.
Para ter-se idéia da desatualização desse pagamento,
basta ver o que representavam 2$000 (como poder de compra)
em 1904. Quem dispunha dessa quantia tinha de pensar duas
vezes para comprar: um quilo de carne (um cruzado); 1 litro de
arroz, uma pataca; 1 quilo de açúcar branco, 380 réis; 1 quilo
de café de Baturité, 700 réis; verdura (coentro e tomate) dois
vinténs... E o dinheiro estava acabado (Alencar, 1965, 25).
Nas cidades-sede dos municípios – da mesma forma
com mais abuso nas vilas afastadas – o comércio abria as
portas às 7h para fechá-las à noite, por volta das 19h. Os
caixeiros explorados ao máximo, tinham, geralmente, apenas
uma hora para ir à casa fazer a principal refeição do dia. Aos
sábados, o horário de funcionamento não diferia dos demais
dias da semana. Domingo, o comércio abria as portas até o
meio-dia, procedimento que pelo primeiro quartel do século
principiou a modificar-se, graças à iniciativa da autoridade
municipal, mais evoluída, a entender que o empregado, no
caso o caixeiro, desfrutasse o repouso dominical. O prefeito
de Ibiapina, em 1925, toma-se de entusiasmo para cumprir a
EDUARDO CAMPOS
168
Lei de no 31, de 18 de dezembro de 1924, que declara “terminantemente proibida aos domingos em todo o território do
Município de Ibiapina, a abertura e funcionamento de qualquer casa comercial de vendas a varejo ou por atacado,
excetuadas as farmácias, ficando transferidas as feiras públicas para o dia de sábado.”
A “Gazeta da Serra”, de Ubajara, em edição de 3 de
janeiro de 1925, exulta: “A Gazeta, cheia de júbilo por este
fato, congratula-se com os ubajarenses em particular e com
os ibiapanos em geral, por esta bela conquista da civilização,
que vem implantar-se na Serra Grande.”
Curioso e ao mesmo tempo significativo como os ideais
de renovação e melhor atenção aos direitos do empregado
prosperam em cidade interiorana do Ceará, por aqueles dias,
como ocorre em Ubajara, onde aquele jornal discute em
veemente artigo de fundo o que entende por “exploracionismo” capitalista, detendo-se adiante, noutra oportunidade,
em analisar o procedimento de greve afetivada, com observações que soam sobremodo avançadas à realidade política
do sertão:
“Quem quer que observe a evolução da luta
entre o Capital e o Trabalho, verá que o combate é gigantesco, mas as probabilidades de
vitória pendem todas para o lado do povo, que
vai compreendendo, felizmente vai compreendendo, que o seu direito de viver é um direito soberano, um direito que precisa reinar
pela própria força do direito.” (Gazeta da Serra, 23.05.1926)
As condições de trabalho da incipiente indústria cearense
na Capital, resumida à inexpressividade de poucas atividades
fabris, pelo menos na área de atuação das cigarreiras (estabeleciO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
169
mentos dedicados à manufatura de cigarros e charutos) são
precaríssimas, comprometendo não apenas a saúde do operário,
mas ainda a dos que têm a pouca sorte de morar na vizinhança.
Aos jornais da Capital acodem reclamações, qual a que
acolheu o jornal “Unitário”, em sua edição do dia 22 de maio
de 1914, dirigida ao Intendente Municipal: “Não tem bastado
o clamor dos moradores da vizinhança das cigarreiras da Rua
Major Facundo, para que se retirem dali essas fábricas incômodas que derramam pelas casas de família a nicotina que
cega e mata. No quarteirão correspondente, as exalações são
contínuas e os moradores vivem incomodados, noite e dia,
carecendo de tratamento profilático.”
Se quem morava na proximidade desses estabelecimentos fabris sofria os efeitos poluidores e realmente
martirizantes provocados pelo manuseio do fumo, que dizer
do operário que enfrentava locais de trabalho praticamente
improvisados, funcionando em dependências de pouca iluminação e aeração, quase sempre no mesmo ponto onde
residia o proprietário com a família? Vale registrar: o trabalhador desse ramo industrial ligava-se em Fortaleza, ao seu emprego, num relacionamento que o induzia a total dependência
e respeito familiar, qualificados o local da aplicação laboral
de “honrada casa” e o empregador de “digno patrão”. Desse
modo está mencionado por Canuto José de Aguiar, em
24.10.1865, no jornal “Cearense”.
Por outro lado, nem sempre a fiscalização, que se
pode entender por autoridade sanitária, chegava àquelas
oficinas com capacidade de coibir os abusos vigentes, prejudiciais à saúde do empregado. Nada capaz de diferir da
situação encontrada por “comissão fiscal do trabalho industrial dos menores de 18 anos, liberada pelo curador de menores” em São Paulo, em 1929: “...ainda ao transpor o portão
da primeira fábrica já se sentia o cheiro forte e penetrante
EDUARDO CAMPOS
170
do fumo; e a atmosfera, saturada de emanações deste, causava ardor nos olhos e afetava a respiração.” A atmosfera no
ambiente de trabalho “impregnada de substâncias” irritava
“as mucosas respiratórias e a conjuntiva”, originando sua
infecção e abrindo “portas de entrada aos germes
tuberculosos” (Carone, 1977, 573).
Pode-se afirmar: as condições de vida do homem urbano nas relações sociais ainda incipientes e pouco
satisfatórias, a par da sistemática de trabalho então vigente,
disparam o entusiasmo de alguns pelo que passa a ser considerado problema social, nutrido nos atos de injustiça dos de
mais posse (poder econômico) para com os de nenhuma
riqueza, que se empregam, circunstância prejudicial à existência do operário e de sua família. Em rigor, situação decorrente do estado em que corriam as relações de trabalho no
regime que a República viera substituir, espécie de herança
malsã a “sem solução alguma”, como viam os mais pessimistas, sentindo agudos o desemprego e a miséria.
Em toda parte transcorre idêntica falta de providências
administrativas e ausência de planos. Quer no Rio, quer em
São Paulo (muito pior no Ceará), a urbanização projetada
livremente desconhece o sentido sério da orientação. Faltam
habitações, tornam-se escassos os meios de transportes; ocorrem “ruas sujas, estreitas. e sem calçamento; serviços de água
e esgoto precário, o abastecimento insuficiente” (Moraes Filho, 1979, 11). Baixos os salários e excessivas as horas de
trabalho, enquanto a desnutrição apressa a morte.
Em maio de 1914, tenha-se idéia, em Fortaleza a ceifeira pérfida faz 152 óbitos; de enterite morrem 37 pessoas; de
tuberculose pulmonar, 13; de tétano, 6; de broncopneumonia,
3 etc. (Unitário, 10.06.1914).
A comunidade fortalezense passa a perceber como a
falta de higiene lhe compromete a saúde. Os leitores servemO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
171
se dos jornais. locais para reclamar da localização de oficinas,
que indicam por prejudiciais pelas “fumaças e maus cheiros
de composição do combustível” que empregam (Unitário,
idem, idem)
Os paus vendidos às cozinhas da cidade, para a utilização do fogo doméstico, quando comburidos, podiam produzir “moléstias sem conta, inclusive cegueira instantânea, como
o pau mocó...” (Unitário idem, idem).
Em edital publicado em março de 1912, no mesmo
jornal, a municipalidade, ante abusos cometidos pela população, chama a atenção para o que proíbe em estatuto legal:
lançamento “nas ruas, praças e mais lugares públicos da cidade (de) águas servidas, matérias fecais, animais mortos, lixo,
vidros ou quaisquer imundícies.”
A situação assim descrita concorre para despertar nas
pessoas mais responsáveis da comunidade o sentido de correção aos abusos cometidos, e que, em certo momento, não
apenas afligem mas concorrem para poluir a cidade. A comunidade também ganha consciência de que não é tratada com
respeito: quem se emprega é explorado em horários
abusivamente alongados e sobremodo ganha pouco. Desse
modo, revoltados, incitam-se a movimento paredista, por melhores salários, tipógrafos e ferroviários (Venâncio, 1981, 25).
Na verdade, o despertar de sentimentos políticos, populares, que parece despontar em todo o País a partir de
1890, com o movimento liderado por Gustavo Lacerda, torna
o operariado da Capital mais apto a se congregar e ir à luta
por suas reivindicações, aquelas que, amadurecendo no transcorrer dos dias, marcam o direcionamento do operário para
as idéias que tendem à formação de um sentimento de frustração por falta de Justiça, e clama por reparação.
Fábio Leopoldo de Oliveira, ao analisar a evolução do
salário social no Brasil, escreve com justeza: “A Política cede
EDUARDO CAMPOS
172
lugar ao Direito, e este ordena, normatiza e instrumentiza os
meios de satisfação das necessidades sociais que deixam de
figurar num nebuloso e puramente demagógico, para se fixarem no campo de atendimento das necessidades, concretamente consideradas”. Acrescenta: “Para tanto, necessário se
faz a delimitação das necessidades materiais e imateriais que
se pretende combater e, ao mesmo tempo, fixar o instrumento de proteção que se pretende oferecer, a fim de que o
ordenamento jurídico ponha em funcionamento a mecânica
da proteção” (Oliveira, 1974, 24).
O fator de arregimentação política é importante na fase
em que a classe dirigente, instalada no poder, tem consciência melhor definida da impropriedade das normas então vigentes e que presidem as relações entre empregadores e
empregados.
A um primeiro momento da economia clássica, tradicional, o interesse fundamental de quem emprega é obter cada
vez maior lucro, remunerando baixo a mão-de-obra. Na contra-partida o operário, representando a força-de-trabalho, deseja melhor remunerado. Eric J. Hobsbaw viu claro o problema:
“A situação ideal almejada pela economia clássica era aquela
em que a taxa do salário era fixada exclusivamente através
do mercado, sem a intervenção da compulsão econômica de
qualquer das partes. Para os patrões isto significa ter um exército permanente de trabalhadores, pleno ou mesmo
superpleno. Significava também que ambas as partes seriam
atuadas por motivos de mercado: os patrões pela busca do
mais alto lucro possível (o que significava o mais baixo custo
possível de mão-de-obra), os trabalhadores, pela busca do
salário mais alto possível (o que significara sensibilidade completa aos incentivos salariais” (Hobsbaw, 1981, 348).
Ao sopro dessas circunstâncias (e idéias) as tensões
entre patrões e empregados contam, com toda certeza, com a
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
173
irrigação cultural de propósito político, que ainda precisa ser
convenientemente explicada, mas é permitido percebê-la na
presença do trabalhador estrangeiro que se incorpora, por
exemplo, em São Paulo, ao enorme contingente de novos “operários da indústria, empregados do comércio ou artesãos. Em
1900, 92% dos trabalhadores na indústria de São Paulo são
estrangeiros; 81% eram italianos” (“Nosso Século”, 1980, 91).
Em rigor, já passa a existir campo propício à afirmação
das idéias propostas pelo Partido Operário do Brasil: “1. Sustentar, por todos os meios ao seu alcance, ou pelos representantes de classe que ela mandar à Assembléia Legislativa, ou
por intermédio do próprio executivo, todos os direitos das
classes, seja qual for sua categoria. 2. Apressar, quando for
possível, as leis necessárias para tornar as habitações dos operários mais higiênicas, confortáveis e baratas, com meios fáceis de condução. 3. Apresentar leis imprescindivelmente
urgentes, para melhor educação dos filhos dos operários.”
E mais: combater a injustiça na cobrança de impostos,
a diminuição destes; proteger o operário em caso de doença
e falta de trabalho; manutenção da lei que revogou a locação
de serviço; criação de escolas técnicas; abolição de privilégios
e monopólios ofensivos à classe; reformulação do sistema
judiciário; regularização e solucionamento da “questão da
duração e remuneração do trabalho.”
O Partido Operário de São Paulo, em 1890, dentre outras metas, promove movimento para a fixação de “oito horas
de trabalho, medidas preventivas sobre imposições dos proprietários e patrões, salvo quando a estes assistir inteira justiça” etc. O Partido Operário Brasileiro (1893) pretende
participação ativa com o seu programa (o mais extenso dos
congêneres) reivindicando: “criação de bolsas de trabalho”,
“construção de habitações higiênicas, cômodas e agradáveis,
levadas a efeito pelos municípios”; “exclusão dos patrões e
EDUARDO CAMPOS
174
proprietários na administração das sociedades operárias”; “proibição do trabalho a criança menores de 12 anos”; “criação de
estabelecimentos profissionais técnicos”; “criação de juízes
arbitrais (grifamos), compostos de operários e patrões para
decidir questões de aumento ou diminuição de salários”; “fixação de oito horas para o dia normal de trabalho e sua
redução equitativa nas indústrias nocivas à saúde, e de cinco
horas para os trabalhos noturnos”; “rigorosa inspeção higiênica nas fábricas etc.”, “reforma judiciária por meio de códigos elaborados de acordo com as necessidades atuais e os
progressos da sociedade” (grifamos) etc. (Moraes Filho, 1979,
238, 239, 240, 241, 242 e 243).
O despertar da consciência política e social, no Ceará,
com percebíveis repercussões nas relações de trabalho entre
patrões e empregados, não obstante fazer-se de modo tímido,
localiza-se em 1890, por ocasião da fundação do Partido Operário, que inaugura no Estado a primeira proposta de
aglutinação de operários locais (Fortaleza), iniciativa que,
concomitantemente, dá de ocorrer com maior ou menor sucesso noutras regiões do País.
É de imaginar que a circulação de “O Combate”, jornal
patrocinado pelo Partido Operário, em 1891 (Ribeiro, NUDOC,
1987, 1), tenha contribuído para a eclosão de movimento
paredista nas oficinas da Estrada de Ferro de Baturité, acontecimento, conquanto de modo bastante superficial, referido
pela gazeta “O Operário”, a 6 de março de 1892. A nota,
frontalmente contrária a movimentos de massa dessa natureza, compreende, no entanto, o nível baixo dos salários
incompensadores e as fadigas dos que sofriam no trabalho,
aduzindo: “Aqui no Ceará, no tempo em que o abolicionismo
chamava aos seus arraiais os filhos devotados desta grande
terra, a classe tipográfica revoltou-se em uma greve de dignidade (grifamos) contra a injustiça dos que não enxergavam
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
175
no escravo mais do que uma massa de carne... Mas a outra
greve prossegue o articulista do jornal – “a que se deu nas
oficinas da Estrada de Ferro de Baturité, é a prova exuberante
das conseqüências funestas que sempre nos trazem este meio
de resistência de que os nossos irmãos têm lançado mão,
aconselhados por indivíduos que se intrometem na classe dos
que têm interesse em especular com os filhos do trabalho”
(Carone, 1979, 431,432).
Os movimentos paredistas, tudo indica, irrompem pelo
Nordeste em torno desse período e, quase sempre, tendo por
palco as oficinas de empresas ferroviárias, como haveria de
suceder no Ceará, e adiante, mais vezes, em Pernambuco, na
administração Knox-Little, quando os operários da The Great
Western of Brazil Railway Company Limited promovem parede postulando “50% de aumento nos salários, passe gratuito
nos trens (quando estiverem de folga) e a garantia de que
não seriam despedidos sem a anuência do Centro Protetor
dos Operários” (grifarmos).
Outro movimento paredista, enquadrável no que se
pode entender por identificável reação de cunho Luddista
(atitude hostil com fito à destruição de máquinas e equipamentos técnicos), ocorre depois em Pernambuco, na mesma
empresa, com os operários arrancando trilhos e danificando-os para neles não correrem trens. Nessa oportunidade,
não foi protestada nenhuma reivindicação salarial (Pinto,
1949, 133, 134).
Aparentemente transcorrem muitos anos em Fortaleza,
a partir de 1891, para que se efetivem outros movimentos
.grevistas, o que se vai dar em março de 1912 e, também
dessa vez, envolvendo no questionamento os ferroviários, com
a adesão de tipógrafos.
À proporção que flui o tempo, as idéias de interesse
classista, em favor da melhoria das condições de emprego do
EDUARDO CAMPOS
176
operariado tomam corpo em abrangência nacional, sublinhando ainda mais os pensamentos apresentados anteriormente.
Desse modo, o programa do Partido Operário Socialista pretende o sufrágio universal, instrução gratuita e obrigatória, redução da jornada de trabalho para oito horas, interdição
do trabalho para os menores de 12 anos, proibição do trabalho durante a noite para os menores de 16 anos. Idem para o
trabalho das mulheres na indústria, sempre que esse trabalho
seja incompatível com a moral e a higiene; adoção de condições de higiene e segurança; “responsabilidade real e efetiva
dos patrões nos acidentes de trabalho, por meio de uma lei”,
considerado dia feriado o dia 1o de maio, por ser o dia do
proletariado” etc. (Moraes Filho, 1979, 243, 245).
O Partido Socialista, em 1902 compreendia, à frente
das propostas mais incisivas e amadurecidas em favor do trabalhador: “8 horas de trabalho para adulto, 6 para os menores de 14 a 18 anos; descanso obrigatório de 36 horas
contínuas, ou dia e meio, por semana”; “responsabilidade
civil dos patrões nos acidentes de trabalho”; “regulamento
higiênico do trabalho industrial; proibição do trabalho das
mulheres quando haja perigo para a maternidade (grifamos)
e inconvenientes para a moralidade”, “criação de comissões
de inspetores das fábricas, oficinas e fazendas (note-se a intenção da proposta abranger também a área rural), eleitas
pelos operários”; “criação de tribunais arbitrais, nomeados dois
terços, pelos operários e um terço pelos patrões, para resolverem as divergências entre as duas classes se produzam”; “igualdade de retribuição (princípio de isonomia salarial, anotamos),
desde que haja igualdade de produção para ambos os sexos”; “justiça gratuita”; “tornar privilegiados, em primeiro lugar, todos os créditos dos operários nos casos de falência e
quaisquer execuções de dívidas e liquidações forçadas”; “pensão aos inválidos e a todos. os operários com mais de 60 anos
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
177
de idade”; “reconhecimento da liberdade profissional”; “abolição dos artigos 204 e 207 do Código Penal, limitando a
liberdade de greve”; “absoluta proibição do pagamento de
salários em gêneros de consumo” etc. (Moraes Filho, 1979,
248, 249, 250).
O homem, não obstante imerso na miséria, como ocorre na seca do 15 no interior do Ceará, tem consciência de
que, qual criatura humana, merece acudimento da autoridade pública. Periódico da Capital, o “Correio do Ceará”, a 25
de agosto de 1915; focaliza aspecto da “nova e áspera sociologia da seca”, narrando o procedimento do retirante João
André, líder conflagrador que, à frente de outros companheiros de infortúnio, cansado de esperar, o cumprimento de promessas de socorro por parte do governo decide-se pelo
seqüestro de uma composição ferroviária, na Cidade de Senador Pompeu, compelindo o maquinista a conduzir o comboio – “o trem da fome” – até Fortaleza (Campos, 1982, 14).
João André, nessa atitude inesperada, queria tão só
defender os seus companheiros de infortúnio. Não praticou o
saque. E à frente da multidão de maltrapilhos, famintos, declarou ao funcionário da ferrovia, rendido à sua imposição: –
“Não queriam violentar ninguém, não eram malfeitores” (Campos, idem).
Pode-se admitir no gesto audacioso de João André um
pronunciamento de consciência social, algo que, a despeito
do chamado, coronelismo, imperante nos sertões, começa a
existir. Uma advertência, sem dúvida, aos que no mando da
coisa pública, mesmo diante da miséria do povo, demoram
providências. É que chega um instante em que o homem
cansa de esperar socorro, no sertão, dos patrões desidiosos
que possui: o fazendeiro e o governo.
Na verdade, as relações entre empregador e empregado, a sofrida dependência do homem do campo com o faEDUARDO CAMPOS
178
zendeiro; os salários geralmente pagos de modo inconveniente, usada a deficiente refeição do meio-dia como fator maior à remuneração do esforço braçal, despertavam a atenção
daqueles que, em número ainda reduzido, apoucado, passam a se interessar pelo problema.
Tudo vai acontecendo lentamente, mas vai acontecendo...
No dia 21 de maio de 1921, outra vez os operários da
Rede de Viação Cearense (antiga Estrada de Ferro de Baturité)
resolvem cruzar os braços diante do não cumprimento da Lei
no 3.990, de 2 de janeiro de 1914. O pagamento dos trabalhadores está em atraso na ferrovia, o que gera justificada insatisfação. Em conseqüência, movimento paredista é articulado pelos
mais audaciosos, pretendida a paralisação inclusive do material rodante, locomotivas de preferência. Mas estas, acionadas
pela madrugada, acabam seguindo para o interior do Estado,
puxando composições de carga e passageiros. Nas oficinas do
Urubu a classe cruza os braços e, por duas horas bastante
tensas, ninguém trabalha, a despeito da pressão do diretor, que
vai ao local parlamentar com os grevistas. E é anunciada a
vinda de força policial embalada (Campos, 1982, 16).
O sentido associativo, com a intenção de obter benefícios comuns à classe trabalhadora no Ceará, parece estabelecer-se desde 1905, quando em Fortaleza é fundada a Sociedade
de Socorro Mútuo, entidade que, dois anos adiante, tem modificadas as suas finalidades: “Art. 1. – A Sociedade de Socorro Mútuo” (...) “tem por fim beneficiar os seus associados em
caso de moléstia e concorrer com as despesas para os funerais dos que faleceram, não podendo em tempo algum ser
dissolvida. Art. 2. – A Sociedade tem o direito de tomar a si e
advogar as questões referentes à classe, proteger os seus associados e defendê-los em qualquer emergência, assegurandolhes assim a solidariedade que entre eles deve existir e as
garantias individuais que necessitam. Parágrafo único: – ReO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
179
vogam-se em contrário a todos aqueles que ostensivamente
abusarem” (Carflne, 1979, 460).1
Praticamente coincidindo com a publicação do Manifesto Comunista de 1848, transcorre o despertar da atenção
internacional mais esperta e objetiva em amparo ao proletariado, circunstância que apressa de igual modo, nas áreas mais
industrializadas, a necessária compatibilização dos interesses
recíprocos de patrões e operários.
No Brasil, a primeira manifestação oficial a respeito do
disciplinamento de prestação de serviços data de 11 de outubro de 1837, diploma que, no Ceará, em 1858, invoca o Regulamento no 38, do dia 2 de janeiro desse ano, referente às
atividades das Companhias de Transportes – Auxiliadores da
Agricultura e Obras Públicas, para efeito de “despedida de
locadores pelos locatários”, “rescisão do contrato por parte
dos mesmos locadores” etc.
No aludido regulamento, os trabalhadores engajados
(podemos mencionar: contratados) iam designados para serviço por escala, como em atividade de corporação militar,
com encargos igualmente atribuídos a todos. Os operários da
Companhia, em regra, só deviam empregar-se em serviço dentro de seu município ou nos limítrofes, salvo se voluntariamente se prestarem ou engajarem para trabalhos em qualquer
parte.” O art. 19 estatuía: “Aos que forem trabalhar fora do
município se abonará, além disso, por conta da obra a que
1
A preocupação de atendimento assistencial aos que empobrecem, aos realmente necessitados de ajuda, foi sempre boa causa de confrarias religiosas no
Ceará. A de Nossa Senhora, do Riacho de Sangue, aprovada por Lei no 28, de
outubro de 1838, dispunha em seu estatuto: “O irmão que por infortúnio falir
de bens, não será por isso desprezado pela irmandade”. E adiante: “A irmandade será obrigada a fazer enterros das pessoas pobres, assim como cada
irmão, tomará como uma obrigação restrita socorrer de qualquer maneira ao
seu alcance todos os infelizes que se acharem enfermos e em estados de
pobreza que não se possam manter...” (Campos, 1980, 6).
EDUARDO CAMPOS
180
forem destinados, uma diária igual à quarta parte de seus
salários, e desde o dia em que saíram do lugar de sua residência, contando-se uma diária, por cada oito léguas de caminho, de ida e volta.”
Na parte de “engajamento dos trabalhadores” é mencionado o contrato estipulado clara e precisamente: “1. – O
tempo de locação que nunca excederá de seis meses, embora
possa renovar-se no fim deste”; 2. – O dia em que começarem os serviços e o que em que devem cessar. 3. – O preço
por dia, semana ou por mês, e a espécie e lugar onde o
pagamento se deve efetuar.”
Em 1850 vigora o Código Comercial, garantido pelo
art. 79 aos “empregados vitimas de acidentes imprevistos e
inculpados, a percepção de seus vencimentos por um prazo
não excedente “de três meses contínuos.” O art. 84 “assegura
ao empregado despedido, no caso de prazo ajustado, direito
a aviso prévio de um mês; dispõe o mesmo artigo sobre os
“casos de justa causa por rescisão contratual’’, prescrição de
prazo, sobre as dívidas oriundas de salários “devidos aos agentes, caixeiros ou operários...” O art. 453 dispunha sobre o
pagamento de soldados (Neto, RCNT, 1947, 18,19).
Eliminado o trabalho servil, grande conquista de 1888,
sucede em 1890 a vigência do Decreto no 213, do dia 22 de
fevereiro, revogando “todas as leis e disposições relativas aos
2
Outros dispositivos de interesse das atividades trabalhistas a partir de 1890:
Decreto no 897 de 11 de outubro desse ano, concedendo ao Banco dos Operários “diversos favores relativamente aos edifícios que construir para habilitação
de operários e classes pobres”; Decreto de no 979, de 6 de janeiro de 1903,
facultado aos “profissionais da agricultura e indústrias rurais a organização de
sindicatos para a defesa de seus interesses”. Decreto no 1.150, de 5 de janeiro de
1904, concedendo “privilégio para pagamento de divida proveniente de salários
de trabalhador rural”. Decreto de no 1.607, de 29 de dezembro de 1906, derrogando
o art. 19 do Decreto no 1.150, de 5 de janeiro de 1904; na parte final que restringe
o privilégio dos trabalhadores agrícolas, Decreto no 1.637, de 5 de janeiro de
1907, citando “sindicatos profissionais e sociedades cooperativas”. Decreto no
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
181
contratos de locação de serviços.”2 Temos os arts. 204 e 206
do Código Penal, como vimos antes, “sobre os crimes contra
a liberdade do trabalho”; a “Constituição de 1891, que assegura o direito de associação e garantia à liberdade do trabalho (art. 72 § 8)”; e, em 1916, o Código Civil que, “em vários
de seus dispositivos”, regula a “situação dos empregados do
comércio, indústria e agricultura” (Neto, RCNT, idem).
No Ceará, também no período correspondente ao primeiro quartel do século, anima-se o pensamento da
reformulação do estágio que se encontram as condições trabalhistas. O interesse pelo segmento de força-de-trabalho, o
operariado, é de quase nenhum significado nessa fase, considerado que, afora as empresas (inclusive as públicas) onde
se empregam os obreiros da Capital, a classe que prepondera
é a dos caixeiros, estes mais bem amparados pelo sistema
mutuário de assistência proposto pela Fênix Caixeiral, entidade que fulgura em Fortaleza por suas atividades e propósitos
socioculturais.
Analisando a situação em que se empenham os mais
idealistas, com ímpetos revolucionários, Maria do Socorro
Venâncio (Venâncio, 1981, 25) considera a luta trabalhista (nessa
1.329, de 22 de novembro de 1918, declarando” “dissolvida a associação denominada União Geral dos Trabalhadores do Rio de Janeiro”. Decreto 14.109, de
24 de março de 1920, relevando “a 18 o número de membros da comissão
consultiva para o estudo de assuntos concernentes aos seguros contra acidentes
de trabalho...” Decreto 4.209, de 11 de dezembro de 1920, autorizando “o Poder
Executivo a construir casas para operários e proletários...” (Fleiuss,
1925,495,502,590,592,617;618,745;768 e 623), No dia 23 de agosto de 1923, “com
funções meramente consultivas dos Poderes Públicos, destinou-se o Conselho
Nacional do Trabalho a ser um centro de pesquisa do meio social brasileiro, do
modo a concorrer para a solução dos problemas referentes à economia soclal,
divisando o Ministro Viveiros de Castro “sua missão conciliadora” e finalidade
de órgão da concórdia social. (Soares, Revista do TST, 1947,50). O Conselho
pôde a partir de 1928, “em face do Decreto 18.074, de 19 de janeiro daquele
ano, exercer com plena eficiência suas funções fiscalizadoras no campo da
previdência social e também iniciá-la no do trabalho (idem, ibdem).
EDUARDO CAMPOS
182
época) como “se desenvolvendo apenas no terreno econômico; as organizações apresentam fins apenas beneficentes, não
existindo preocupação que envolva a causa (do trabalho) como
um todo.” “Só com a função do Partido Socialista, em 1919, é
que os trabalhadores cearenses começam timidamente a desenvolver uma consciência política.” Adiante: “Além de quase
não existir uma massa operária devido a uma pequena industrialização, a população encontrava-se impregnada pelas raízes
de uma sociedade voltada para’ os interesses de uma pequena
elite agrária” (Venâncio, 1981, 26).
Não só por isso, mas pela falta de óptica para ver que
o caixeiro, mais do que o operário (que praticamente não
existe, é o grande injustiçado desses dias, quando sua forçade-trabalho, debaixo de ínfima remuneração, utilizam-na as
firmas de mais projeção na Capital (Aarão Amaral, Leitão,
Irmãos & Cia., Machado Coelho & Cia., Joaquim Sá, Braga
Barroso & Cia., Zuca Acióli, Philomeno Gomes & Filhos etc.),
todas situadas em torno da Avenida 7 de Setembro (Praça do
Ferreira) – é pelo menos o que sucede em 1912 –, comércio
que abre as portas às 7 h e vai cerrá-las ao anoitecer, funcionando durante todo o dia de sábado, enquanto existe clientela
por despachar.
Os Caixeiros formam classe popular bastante numerosa. Os mais dotados de estudo e bons vendedores são privilegiados não apenas pela proteção de seus patrões mas também
pelo franco acolhimento da sociedade, legitimando o que se
pode entender por formação da nossa classe média. Mas, por
não ter condição de mobilização para fins políticos, quem vai
animar-se às idéias trabalhistas, de renovação, é exatamente
a classe operária, minoria de mão-de-obra disponível que se
emprega, por exemplo, na Rede de Viação Cearense, amparada no regulamento aprovado pelo então ministro J. Pires,
em 1917. Nas oficinas da ferrovia, o expediente é de “8 horas
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
183
por dia ou 40 horas por semana”. O operário vence salário
acrescido de 50%, depois de duas horas extras, fruindo férias,
seguidas ou intercaladas, de 15 dias (Rede de Viação Cearense,
1930, 26).
Em contrapartida, no entanto, o operário que se emprega na periferia urbana, pelo menos em 1912, na Capital,
vê-se desprotegido. Eusébio Mota Alencar conta a própria
experiência: “Nessa época, eu era aprendiz de mecânico na
oficina de Alfredo Mamede, na Rua do Trilho de Ferro n o
104, ganhando uma gratificação semanal de 600 réis. Essa
gratificação ínfima, irrisória, dava para comprar o pão do
café da manhã, que custava quatro vinténs, pão do tamanho dos de hoje (1964), que custa 70 cruzeiros, e ficava
ainda um vintém, que era a rapadurinha da merenda diária
(Alencar, 1965, 27).
Terminada a Grande Guerra de 1914-1918, a “integração
do Brasil no sistema de divisão ínternacional do trabalho determinava que as oscilações do capitalismo mundial atingissem também a economia brasileira”. (...) “O crescimento
industrial trazia, como conseqüência, a definição de um novo
segmento na sociedade brasileira: a burguesia industrial”
(Garcia, 1982, 31).
Nesse contexto desperta e amadurece o sentido de organização grupal, aguçadas as reivindicações populares, com
o operário do meio urbano fazendo sentir sua presença, a
postular por aquilo que, não obstante o modo impreciso, significa atendimento a direitos apenas vislumbrados para quem
trabalha e deveria ser melhor assistido pela sociedade. “O
número de operários, que era de 54.164 em 1889 (no país) e
de 159.600 em 1910, passava para 275.000 em 1920, e 450.000
em 1930” (Apud Carone, Garcia 1982, 31, 32).
O espaço que se embute nos anos que decorrem de
1880 a 1914, para a maioria dos que estudam a evolução da
EDUARDO CAMPOS
184
inteligência no Brasil, marca-se com o surgimento da primeira
geração de nacionalistas (Lauerhass, Jr., 1986, 35). A vida intelectual desses dias adquire vivaz coloração de sentimentos
de exaltação nacionalista, com os intelectuais “criticando os
males nacionais e, depois receitando o remédio para suas
curas, isto é, formulando uma ideologia para o nacionalismo”
(Lauerhass, Jr. 1986, 37) que, adiante, estará mais firme através da ação cultural de “Revista do Brasil” e da Semana de
Arte Moderna. “Os brasileiros deveriam ser levados a olhar
para si mesmos, e, dessa introspecção, resultaria uma corrente
de idéias e sentimentos comuns e uma nova concepção da
consciência nacional” (idem, 63).
No entanto, afirma ainda Ludwig Lauerhass, Jr., futuras
reformas sociais “teriam de se fazer dentro de um sistema
ordeiro e através das instituições conservadoras tradicionais.
Coincidentemente eclodem “revoltas iniciadas com o levante
de um grupo de jovens oficiais no Forte Copacabana; os “tenentes” (...), e “nesse processo a disposição da sociedade
brasileira tornou-se das mais destacadas figuras políticas da
sua geração. Somente crescentemente rebelde, e das hostes
tenentistas emergiram alguns heróis populares que, na década de 1930, iriam se tornar algumas depois de 1930, quando
os tenentes assumiram um papel político importante dentro
do governo revolucionário, assim como nas forças da oposição, é que se caracterizou mais claramente a natureza do seu
nacionalismo, à medida que o movimento tenentista se desenvolvia em nível ideológico e internacional” (Apud, Carflne,
Lauerhass, J., 1986, 75).
Nessa quadra de renovação e afirmação de valores
políticos e sociais, vai ter-se na década de 1930, com a chamada Revolução de 30, visão mais aclarada e a diligência de
acudimentos objetivos à situação do trabalhador carente de
proteção especial. Até 1930, a existência de organismo aproO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
185
priado “para fazer cumprir as leis então baixadas”, estas a
pouco e pouco se tornam inoperantes. “A grande massa trabalhadora, na sua maioria inexperiente e inculta, quedava-se,
assim, ao desamparo, suportando as rudezas da vida, na marcha inexorável do tempo, sem se preocupar para onde era
conduzida.” (Neto, RCNT, 1947, 19)
No Ceará, a semente plantada quando da fundação do
Partido Operário, em 1890, passando pela circulação de “O
Combate” e instalação da Sociedade Artística Beneficente, prospera com mais entusiasmo nos Círculos Operários Católicos,
em 1915, no aparecimento de uma dezena de sindicatos em
1919, oportunidade em que surge o Partido Socialista e, mais
tarde, em 1925, a Federação Operária Cearense, o movimento do Centro Artístico Cearense, o Partido da Mocidade, o
Bloco Operário Camponês, a flamejante participação do jornal “A Esquerda”, de Jáder de Carvalho (de 1920 a 1929), e,
finalmente, o Congresso do Bloco Operário e Camponês, em
1930.
São os novos tempos revolucionários que, no Ceará,
esplendem com entusiasmo incomum no setor da organização
social, liderados pelo tenente Severino Sombra, fundador da
Legião Cearense do Trabalho, e envolvendo o interesse idealístico
de destacadas figuras do Ceará – Waldemar Falcão, Colombo de
Souza, Marco Forte, Ubirajara Índio do Ceará, Lauro Maciel,
Sinobilino Pinheiro, Jeová Mota, Terêncio Mota, Carvalhedo, pe.
Hélder Câmara e tantos outros (Alencar, 1965, 41).
Foram dias de efervescência cívica e Entusiasmo público. E de sindicalização operária. “Até as aguadoras de cova,
no cemitério, foram sindicalizadas” (Alencar, idem, ibdem).
Narra Eusébio Mota de Alencar como se deu então a
“maior concentração operária realizada no Ceará”, momento
em que “todos os Sindicatos com suas bandeiras saíram à rua
e formaram na Tristão Gonçalves, desde o muro da Estação
EDUARDO CAMPOS
186
Central até a Duque de Caxias, fazendo esquadro ali até a
Praça do Carmo. Severino Sombra, Ubirajara Índio do Ceará
e Lauro Maciel, em automóvel, passaram revista à massa e a
sua passagem, cada Sindicato levantava a bandeira e gritava
o nome da Associação” (Alencar, idem, ibidem).
Já não estavam distantes o Brasil e particularmente o
Ceará da revisão do sistema tributário, do incremento à
policultura, da reorganização do judiciário e, dentre outras
metas deveras importantes, da criação do Ministério do Trabalho, que se incumbiria de “superintender a questão social,
o amparo e a defesa do operariado urbano e rural.”
Haveriam de consolidar-se, por diante, eficazes providências à “institucionalização de um sistema jurisdicional de
solução dos conflitos de trabalho” (Costa, ANAIS, 1981, 54).
Era o caminho, que não nos compete contar agora,
para a legitimação da Justiça do Trabalho, que, no dizer de
Orlando Teixeira da Costa (Costa, idem, ibidem), se instalaria
a 1o de maio de 1941 e estaria judiciarizada em 1946.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
187
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EDUARDO CAMPOS
190
4
CONHECIMENTO POPULAR
(Da Fauna do Nordeste do Brasil)
CAPÍTULO I
OS ANIMAIS IMPERFEITOS:
ESQUISITOS, PERTURBADORES E
AMEDRONTANTES
SE VERDADEIRA a preferência de o homem identificar-se
com os animais, que elege em seus nem bem esclarecidos
princípios de convivência com seres estranhos, dentre os quais
sobrelevam muitas vezes exemplos de ferocíssimas espécies,
não menos precedente a afirmativa de o constrangerem, atemorizando-o, algumas criaturinhas animais visivelmente vulneráveis ao seu trato. Mas todavia não fáceis de serem
dominadas, vencidas.
Dá-se de prova o caso de ser mais plausível alguém
livrar-se da ameaça de onça canguçu, do que da arremetida
implacável das chamadas “formigas soldado” que, em hordas
incontíveis, caminham obstinadas, e por onde passam na mata,
vão mordendo, triturando, pulverizando o que lhes deparar
de obstáculo.
Tais monstrinhos, também chamados “carregadeiras”, não
se dobram ao menos às suas “competidoras habituais: as formigas de fogo e os marimbondos” (Roosevelt, 1943, p. 330).
Curiosas as apreciações, a respeito, de observadores
mais antigos, a se tirar pelas do senhor mestre Frei João César,
ilustre membro da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
193
Em linguagem preciosa, denunciou a existência do
que, a certo momento de sua dissertação, dá por indivíduos
“aéreos” e “insetos voláteis”: “Quase molestos perturbadores
dos viventes, pungentes e ruidosos despertadores do sono,
vociferantes, e roucos clarins do meio-dia, reluzentos
Piraustas da noite, volantes Clícies das Luzes, estragos sussurrantes das flores, e vorazes destruidores das plantas”
(Castello, 1971, p. 216).
No rol desses aéreos indesejáveis os que contrapõem,
no dizer do douto acadêmico brasílico, a “melifluidade e doçura” com “aspereza, insulto, e crueldade”: as “vespas maiores, e menores, Capueruçus, Uruperanas, Aiçavas, e Tupeiçavas,
mais conhecidas por Marimbondos-de-tatu, Marimbondos de
Caboclo, e Petiocabos, que não só com seus pungentes aguilhões infestam aos homens, mas também penetram a grossa,
a áspera pele dos brutos, comovendo-os até a última
desesperação; porque próprios, e naturalmente no Brasil;
mediis, feruoribus acrior instant” (idem, p. 216).
Antológica a “Dissertação Oitava” do dito senhor mestre Frei João César, “na qual se descrevem os Insetos Voláteis
do Brasil”: nenhum dos chamados “imperfeitos” escapa às
curiosas definições do erudito religioso: “são mais grosseiros
e obscuros no nome” – afiança o acadêmico a seus pares – os
esplêndidos Voláteis Insetos, cintilantes Piraustas da noite,
ígneospíropes dos campos, luminosos pequenos Astros, ou
exalações viventes, relâmpagos volantes, alígeros luzentos bichinhos, aos quais Plínio com os Gregos chama Lampírides,
os Latinos Cincidela, os cultos Pirilampos...” (o.c., p. 220).
Indivíduos desse porte formam mundo à parte. Vão desde
os ortópteros, de mandíbulas vigorosas adestradas para cortar
paus, até os isópteros, terríveis na proliferação e fome, comendo madeira, papelão, couro, enquanto percorrem o chão ou
furam parede, deixando para trás um rastro excrementício de
EDUARDO CAMPOS
194
destruição. E nessa projeção de seres indesejáveis, não raro
senhores de apetite voraz, os anopluros, família que abrange
os nauseantes piolhos que sugam o homem.
Crê o povo inexistir sangue nesses pequenos seres. Neles
a Ciência explica, mas sem convencer os menos aprendidos,
que, circula sangue incolor ou “levemente colorido de verde”, “frio”, pois não portam coração nem vasos de circulação,
entendíveis como veias (Moreira, 1921, p. 184).
Miran de Barros Latif testemunha: nas regiões tropicais,
“em pleno verão, até os animais se aproximam das fogueiras
para se livrarem da perseguição dos insetos”, e dá exemplo
de fracasso do homem no trópico” “ante a coexistência de
minúsculos animais de sangue frio”, como foi ver, a mostrar
ao leitor, em documento do século XVIII. Nesse dito expediente, de natureza oficial, desesperado soldado escreve aos
seus superiores a avisar que “o posto avançado dos paulistas
à margem do Paraná será abandonado não devido às onças
ou pressão dos paraguaios, mas da bicharia’ que atacando os
cavalos, os fazia correr a buscar abrigo junto ao fogo, no
interior dos ranchos” (Latif, 1959, pp 66, 67).
Na “Relação do Maranhão”, informação valiosa escrita
pelo inaciano Luiz Figueira em 1608, está contado o que foi a
grande incursão que empreenderam ao Ceará o dito missionário e seu companheiro de ordens religiosas, Pe. Francisco
Pinto, trucidado pelos índios da região. Enfatizada na obra,
em algumas passagens, a presença de animais atormentadores do homem, quer por sua ação venenosa, quer pelas
importunações à feição de vexame.
Desse estado, mencionado: “Nesta triste serra dos corvos
parece q’ se ajuntarão todas as pragas do Brasil, inumeráveis
cobras e aranhas a q’ chamão caranguejeiras, peçonhentíssimas
de cuja mordedura se diz q’ morrem os homens, carrapatos sem
conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranham-te, e ferem
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
195
como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora...” (Três Documentos do Ceará Colonial, 1967, p. 81).
Em nota de esclarecimento ao assunto, na mesma publicação, Th. Pompeu Sobrinho vê o enxame das “meruanhas”
(Itamaxia caleitrans, Geof.), díptero hematófago da família
dos Eumüdeos), como “extremamente incômodo” (o.c., p. 126).
Os que perlustraram por esses dias os sertões, os longes, a interioridade mais funda do país, não aceitam sem
visível azedume a agressão insólita de indesejáveis insetos,
sobre os quais Claude d’Abbevile, a propósito, ajustaria esta
definidora apreciação da condição atenazante daqueles: “Muitas pessoas ouviram falar na existência, no Maranhão, de animais que, embora pequenos, incomodam o homem. E muito
se admiram do fato. Mas é pura verdade. Devem eles saber
que em qualquer país onde existam animais perfeitos também os há imperfeitos, a que alguns denominam insecta e
outros anulosa ou annulata e outros ainda, com Aristóteles e
Plínio, Eyvooyu. São pequenos animais sem sangue ou sem
membros distintos, apenas alguns têm cabeça e ventre ou
simplesmente um centro que serve de peito e dorso; têm uns
a pele golpeada; outros a têm enrugada ou ainda anelada ou
feita de rodelas” (Abbeville, 1975, p. 204).
Vivem em todas as partes. Na França, acrescenta Claude
d’Abbeville, alguns são dotados de asas e voam, como borboletas. São moscas, abelhas, vespas, mosquitos, besouros e caracóis. “Outros, possuidores de pés, correm ou rastejam, como o
gafanhoto ou saltarelo, a pulga, o escorpião e a víbora. Outros
ainda participam dos dois tipos, como as formigas; outros ainda não têm asas, nem pés como os vermes, as lêndeas em
crescimento. Vivem uns nas matas e outros no corpo do homem como o oução e outros vermes” (idem, ibidem).
O Maranhão, prossegue o capuchinho francês, não se
isenta desses seres imperfeitos. Ali abundam as abelhas, a
EDUARDO CAMPOS
196
motuca, o maruim, o içá, o cupim, e dentre muitos mais,
como esclarece Mário Guimarães Ferri em nota de pé de página à obra já mencionada, qual a espécie de “díptico
hematófago”, um tipo de “moucheron” – assim grafado por
Claude d’Abbeville – pequenas moscas, inominadas ou grandes, possivelmente as varejeiras (o.c., p. 205).
Mas quem descreve a presença insuportável de tais
seres imperfeitos, por experiência própria, é Theotônio José
Juzarte, através das páginas do “Diário da Navegação do Rio
Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Gustemi”, relato escrito a partir de 10 de março de 1769 (Taunay, 1981, p. 236).
Lembrados com ênfase os insetos importunadores dos
monçoeiros: “mosquitos chamados pólvora, borrachudo;
pernilongos, e em tal quantidade, que se formam nuvens;
além destes há os vermes que, picando na cútis, introduzem
dentro um bicho negro gadelhudo à semelhança de uma lagarta de couve.” E mais carrapatos, moscas de ferrão etc.
No dia 4 de maio de 1769, quando a expedição do
sargento-mor passava sua gente por terra, abandonadas momentaneamente as embarcações nas quais subiam o rio, veiolhes do mato uma “nuvem de marimbondos”, mordendo a
todos, de lastimar; os homens fugiam, gritavam as mulheres e
as crianças choravam (o.c., p. 256).
A expedição de Theotônio José Juzarte teve de enfrentar
depois as pragas de imundícies que por lá, à época, engendravam “muitas doenças e amiudavam as mortes.” Assim, surgiram
os ratos; não faltaram as pulgas seguidas de “uns bichos grandes
felpudos, nojentos, e muito moles, que por toda a parte se trepavam e perseguiam a gente”; por diante, baratas que, voando,
“davam na cara” das pessoas, e grilos, tão a fim de perturbarem,
que ninguém podia dormir; e, finalmente os gafanhotos “grandes, que se levantavam em nuvens que escureciam o sol”, tudo
a modo de “coisas sobrenaturais” (o.c., p. 280).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
197
Oscar Canstatt mais próximo de nós, em 1871, anotou
serem os mosquitos “uma praga no país.” Deles, escreveu,
“três espécies se distinguem como tormento dos homens e
igualmente do gado: o maruim, o pium e a carapanã.” Ajuntou: “O ataque desses pequenos demônios pode também levar o mais calmo dos homens à impaciência e ao desespero”
(Canstatt, 1975, p. 67).
Spix e Martius em sua peregrinação pelo Brasil, no
primeiro quartel do século passado, demoraram observação sobre o mucuim: “inseto microscópico, sem asas, do gênero
Trombidum; vive nos capins verdes e agarra-se com avidez à
pele, onde aparece como quase invisível pontozinho escarlate.
Aí, ele penetra logo, por meio de sua tromba: morto, permanece
com peçonhenta irritação e provoca desagradabilíssima coceira
que dura dois e três dias” (Spix-Martius, 1981, v. 3, p. 55).
Às vezes dão-se migrações desses chamados animais
imperfeitos. Francisco de Barros Júnior, conhecido caçador e
pescador, autor de vários livros sobre os “prazeres cinegéticos”,
conta as “migrações de insetos alados” que assistiu nas jornadas esportivas pelo interior do país. Deixou-nos um quadro
rememorativo de ocorrência testemunhada: “Em determinado
dia, e quase à mesma hora, como obedecendo a um secreto
comando, saem dos cupins legiões de mimosos ternicídeos
alados, para gáudio de pássaros e peixes. Dos formigueiros
enxameiam os içás, suculenta alimentação do mundo alado,
fácil alimento dos desdentados tamanduás e tatus...” (Barros
Júnior, 1981, p. 164).
Outra descrição surpreendente: “Subindo o rio Madeira em 1937, encontramos descendo pela margem direita, voando em coluna cilíndrica, uma nuvem de mariposas brancas,
pequenas de um centímetro. Para fazer-se idéia de seu número, basta dizer que viajando em sentido contrário, levamos
mais de uma hora para passar pela gigantesca coluna, com
EDUARDO CAMPOS
198
um diâmetro de pelo menos cinqüenta metros e longa de
uma legua e meia” (idem, p. 165).
Caçando pelo Tocantins, esse conhecido cinegista fez
um desabafo “contra os incômodos provocados pelos ‘piuns”’.
O chamado mosquito pólvora atravessava-lhe o mosquiteiro
vexando-o e o atacando de modo persistente. “Quase todas
as feridas notadas nas pernas de homens, e mulheres e animais”
– esclareceu aí ; “nessa região equatorial, são causadas pela
picada do terrível Simulium amazonicum” (idem, p. 57).
Mas nem todos os representantes dessa fauna tão
importunadora e até exasperante – como se verá por diante – é
de tamanho insignificante. Há por exemplo a jaquiranabóia,
também conhecida por “cobra-do-ar”, “cobra-de-asa”, “cigarracobra”, “gafanhoto-cobra”, como registrou Karol Lenko. Inseto
“da ordem Homóptera, família Fulgoridae, é o gigante entre
eles, pois o comprimento de algumas espécies, com asas dobradas, chega a 10 cm, a envergadura chega a 16 cm. Além
disto, as asas posteriores possuem grandes membranas ocelares,
amarelas, circundadas de preto, do tipo ‘olho de coruja’.”
(Almanaque Agrícola Chácaras e Quintais, julho 1963, p. 120).
Tem-na o sertanejo como inseto-monstro, perigosíssimo,
podendo cegar as pessoas nas quais se chocar. “Seu ferrão”
registrou Osvaldo Orico – “infunde pavor e obriga a todos a
se defenderem de suas picadas” (Orico, 1937, pp 129, 131).
Trata-se de um hemíptero luminescente, conforme descobriu
Marie Sibille Mérian, em 1819, propriedade confirmada pelo
entomólogo de Paramaribo, H. Heyde, em 1952, em seu livro
Bioluminescence. (Almanaque Agrícola Chácaras e Quintais,
1963, p. 122).
Outros representantes dos animais imperfeitos sempre
atenazaram o homem. Nesse caso, as pulgas, os percevejos,
não incomuns e localizados no interior de abrigos de pouco
uso, e no interior das próprias residências.
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199
Mas o Tunga, o chamado bicho-de-pé, no dizer de
Oscar Canstatt (Canstatt, 1975, p. 68) é “peculiaridade do país
(Brasil) e altamente perigosa.” A fêmea do Pulex penetrans se
enterra nos dedos dos pés, particularmente debaixo da unha,
e aí põe grande número de ovos que podem produzir postemas
perigosas, a gangrena e muitas vezes a morte de homem e de
animais.”
É inseto sobremodo incômodo, que a linguagem popular consagrou como bicho-de-pé, criaturinha animal de
hábitos nocivos ao homem, diligente aproveitador da exposição de pés e mãos no chão, e muito sensível ao estímulo de
certas circunstâncias falta de aeração, luz solar, desasseio.
Antigamente surgia com bastante freqüência em casebres abandonados, ou em lugares de pernoite ocasionais. Mas não importunava a quem se resguardasse usando, por exemplo, como
repelente, as ramas de Melão São Caetano (Mmordia
Charantia, Linn) espalhadas pelo chão.
Quero crer que o hábito generalizado no país, pelo
século passado, de as pessoas lavarem os próprios pés antes
de dormir (ou da refeição da noite), estava vinculada também à precaução contra o assédio das impulsivas pulgas do
bicho-de-pé. “Todo mundo, antes de se deitar, lava os pés em
água quente”, conta Auguste de Saint-Hilaire (Saint-Hilaire,
1938, p. 189) acrescentando no mesmo lugar: “Nas casas ricas
um negro, com sua toalha ao ombro, leva a água ao estrangeiro em uma grande bacia de cobre; os pobres, porém, se
contentam com uma gamela de madeira.”
Há inesperado episódio narrado pelo Barão João Tiago
Von Tschudi, suíço, em sua estada no interior de São Paulo,
em 1860, a respeito: “Durante o jantar, senti, de repente, que
alguém me tirava os sapatos com grande agilidade. Surpreendido, debrucei-me para olhar para baixo da mesa e vi que
um negro, munido de grande bacia, prontificava-se a lavarEDUARDO CAMPOS
200
me os pés, o que o fez e tornou a calçar-me, procedendo
assim com as demais pessoas” (Tschudi, 1980, p. 180).
A prática de lavar os pés, com ou sem cerimonial, perde-se no tempo, elucido. Penélope nem percebeu que se
dirigia a Odisseu, seu amado esposo, nestes termos:
“Sim, tenho em casa uma velha dotada de espírito justo, que serviu de ama a Odisseu, o
infeliz, e o criou delicada, desde o momento
do parto, a lhe pôr a mãe dele nos braços.
Ela, conquanto mais fraca, há de os pés, cuidadosa, lavar-te.”.
Quem andava descalço pelos sertões, passeando por
armazéns e choças, parando às vezes debaixo de árvores
ensombradas, corria o risco de contrair com indesejável freqüência os importunantes bichos-de-pé. Por essa razão -e
pela que se explicará logo – os escravos viviam muito vulneráveis ao desadorado inseto. Pelo menos se depreende,
pois em meados do século passado as posturas da Câmara
Municipal do Icó, em seu artigo 72, explicitava que “escravos, à exceção dos pajens e criados, não poderão andar
calçados de sapatos, botinas, Sc., Sc. Os senhores que o
consentirem ficam sujeitos a multa.” Daí a facilidade de os
cativos, àquele tempo, adquirirem o bicho-de-pé, ocorrência
que, como tudo parece indicar, além de incomodar, os
defeituava. Nesse caso está, a exemplo, de escravinho
Marcelino, mulato cozinheiro de 16 anos, que fugiu ao seu
senhor em junho de 1870, “os pés indicando ter muito bicho...” (Jornal da Fortaleza, 9.06.1870).
Caminhar sem sapatos foi sempre de muito risco para
os que viveram entre nós nos séculos passados. Ao tempo
dos holandeses, em Recife, “muitos soldados” que “andavam
descalços” (às vezes por não haver sapatos nos armazéns da
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
201
Companhia), pelos idos de 1683, ficavam inválidos e incapazes de marchar por terem os pés cheios de bichos; – relata
José Antônio Gonçalves de Mello. (Mello, 1979, 2a., p. 127).
Os que adentravam o interior, no século XIX, principalmente estrangeiros, ao escreverem a memória de suas experiências em nossa terra, via de regra registravam a presença do
bicho-de-pé sob acentuado azedume, tais e quais padecimentos advindos de seu contacto.
Eram em tamanha quantidade esses insetos encontrados no interior das casas, de permeio com as pulgas, que
revoltaram a José Mariano, companheiro de Auguste de SaintHilaire na viagem empreendida às nascentes do São Francisco, começada em Minas Gerais.
No rancho dos Viajantes, em Registro, na mencionada
jornada, o cientista sem se conter acabou por escrever: “fui
quase devorado pelos bichos-de-pé.” Para cúmulo do azar,
não escaparia também das conseqüências. Assim, sofreu a
ação de um deles no “index direito” da mão, circunstância
que quase o deixou sem escrever naquela ocasião as impressões de viagem (o.c., p. 296).
Mas quem melhor observou e escreveu a respeito foi
sem dúvida Auguste de Saint-Hilaire, que demora a atenção
numa descrição dos incômodos e da forma como a tunga
penetrans torna-se hospedeira do homem: “A pulga (bichode-pé) penetrante perfura a pele e esconde-se completamente sem deixar perceber, além do orifício que abriu, senão os
dois ou três últimos anéis do abdome; a nutrição que absorve
a vontade dilata-lhe o tubo intestinal de modo extraordinário;
mal penetrou na carne e já não pode sair pela abertura por
ela própria feita, adquirindo rapidamente o tamanho de um
grão de cânhamo, ou mesmo de ervilha. Nesse estado, o
inseto apresenta um aspecto completamente diferente, e seria
incapaz de mudar de lugar; mostra-se então um globo
EDUARDO CAMPOS
202
embranquecido, achatado, apresentando em cada uma das
faces uma proeminência pardacenta pequena; a face superior
é formada pelos últimos anéis do abdome, e a proeminência
da face inferior pela da cabeça e tórax, que não sofreram
distorção. Uma ligeira comichão...”, e se instala insuportável
vexame, dizemos nós, em quem o hospeda (Saint-Hilaire,
1938, Tomo l, pp. 46-47).
Carls Seidler, alemão “agenciador de colonos e soldados” como o identifica o cel. F. de Paula Cidade, a nos visitar
em 1835, deplorou:
“A natureza, cuja história secreta nos continua
vedada, também aqui apresenta bastante outros males. É singular que especialmente os
insetos tenham sido inoculados do pendor e do
poder para o despotismo, de maneira que o
homem, com toda a sua glória de liberdade, é
tiranizado pelos mais ínfimos bichos da terra,
que ele encara com desdém. Uma dessas pragas da terra, em todo o Brasil, inclusive na
‘divina capital’, é a pulga da areia (pulex
penetrans) que os naturais do país chamam de
‘bicho-de-pé” (Seidler, 1976, p. 69).
O indesejado hóspede dos pés (não raro das mãos), é
mais conhecido do que podemos imaginar. Richard Burton,
ao mencionar o problema, registrou a presença do “bicho-depé” (em inglês: Jigger) “imortalizado” numa canção negra:
Rose, Rose, lubly Rose,
I wisch may be figgerer if don’t lub Rose.
Narra igualmente que viajantes mais precavidos não
andavam descalços. E repete seu colega Southey, a informar:
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
203
as pessoas lavavam “cuidadosamente os pés todas as noites
como o melhor preservativo contra as chiguas (bicho-de-pé).”
Burton acrescenta mais: “Os tupis chamam-no tumyra.
Os espanhóis preferem nigua e chigua, donde os franceses
tiraram chique, e o termo chegou até nós (ingleses) sob várias
formas: chigre, cheger, chegre, chegoe, chiga, chigos, chiger, e,
finalmente, jigger.”
Mas os imperfeitos dão, e como dão, sua contribuição
ao homem do campo. O embuá é aproveitado como isca na
pesca, quando falta minhoca; o grilo, outro incrível
importunador à hora do sono, é meizinha muito recomendada para aliviar os incômodos de urina presa. Carrapato, esmigalhado em pano até tintar de sangue, aplicado na “direção de
dente cariado”, faz desaparecer a nevralgia. A substância da
casa do besouro, conhecido por “busca-vida”, diluída n’água
e aplicada em área de pescoço comprometida pela parotidite –
a cachumba sertaneja; alivia; chá de barata, torrada, é de
pronto valimento no tratamento de cólica intestinal de crianças... (Campos, 1967).
Outro exemplar dessa família de indivíduos pouco aceitos pelo povo, que, em certas circunstancias, os combate a
pretextos múltiplos (repulsa, receios, abusões etc.) é o morcego, explicado na sabedoria popular como nascido de ratos
malfazejos, pela semelhança que esse quiróptero guarda dos
últimos. Seguem-se-lhe, na exclusão de sentimento de afeição,
os gafanhotos. “Em Salgadinho (Pernambuco) apareceram alguns maiores do que morcegos. .. Vozes santas, entre as quais
a do Pe. Cícero, disseram que os gafanhotos ‘são os membros
do demônio’” (Bradesco-Goudemand, 1982, p. 14).
No mesmo lugar a autora lembra folheto de José Soares e Francisco Sousa Campos, “Abelhas, Morcegos e Grilos
Sugando a Humanidade”, livreto “baseado também em fatos
reais: uma invasão de grilos de ‘dentes’ afiados, de morcegos
EDUARDO CAMPOS
204
e de abelhas africanas que não poupam nada, nem animais,
nem gente” (idem, p. 142).
A fome, em determinadas circunstâncias, parece funcionar como boa orientadora do homem. Desse modo, não difícil
ver o ser humano aproveitando inusitada alimentação zoomorfa,
que se imagina originar-se de situações de extrema falta de
provisão. Assim, termina acostumado, por exemplo, ao repasto
de escorpiões, de minhocas cruas, aranhas, e, dentre essas, a
caranguejeira, artrópode dado por petisco saboroso, assado e
polvilhado de sal (Mello Leitão, 1953, p. 169).
Isso, objetará o leitor, será ocorrência de lugares distantes (ilhas remotas). Mas os “imperfeitos” também entre nós
acabam sendo deglutidos vorazmente. “Dos insetos não há
nenhum, por mais repelente, que o homem não coma. Nem
o piolho, o nojento piolho escapa. Dos índios da Serra do
Norte diz Roquette Pinto: ‘De um modo geral pode dizer se
que os Nahambiquaras comem tudo; um mosquito que apanham sobre o corpo, um piolho (grifamos), um gafanhoto,
uma lagartixa...” (o.c., p.170). Nada escapa ao homem, quando a fome aperta”. Nem os cupins, apreciadíssimos pelos
Araruaques.” (idem, p. 176).
Entusiasmado pela disposição com que os mandacarus
consumiam “lagartas, bichos-de-coco e algumas formigas e
certos insetos como cupins” no século passado, o etnólogo F.
S. Hart comeu cabeças de saúva, manifestando-se a respeito:
“Quando o inseto ficou esmagado entre meus dentes, a minha boca ficou invadida por um sabor de especiaria, assemelhando-se um pouco ao cravo” (Santos, 1987, p. 87).
Resta de tudo a impressão de que o homem dos
sertões nem sempre sabe distinguir os animais de sangue
frio dos que os têm quente. Luís da Câmara Cascudo anotou a respeito: “O sertanejo ensina que as cobras se dividem em duas seções: cobras de sangue frio, que são as
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
205
venenosas, e as cobras de sangue quente, que não o são”
(Cascudo, 1956, p. 71).
Mas os imperfeitos, malquistados, temidos, amedrontantes ou simplesmente deglutidos pelo homem, acabam aproveitados para substituir os ensalmos que adestram ou protegem
o vaqueiro no trato de gado rebelde.
Getúlio César ouviu de vaqueiro pernambucano Cícero
Romão curiosas indicações de como adentrar-se na caatinga,
ainda que de noite, e submeter o boi brabo:
“Mata-se um urubu em uma sexta-feira e enterra-se numa encruzilhada do camim, adepois de
sete dias se desenterra o urubu e se encontra na
cabeça dele três tapurus, sendo um branco, outro escuro e um outro preto. Tira-se os tapuru,
enrola-se bem enrolado, adispois, bota-se em
saquim de couro e se guarda em um lugar que
ninguém veja. E quando se vai campeá, leva-se
o saquim no bolso do gibão. O tapuru preto é
pra se campeá de noite, o escuro é pros cafús e
o branco é pra se corrê de dia...” (César, 1941,
p. 81).
Ainda no capítulo de interesse aos seres de sangue
frio, por oportuno lembrar em seus aspectos curiosos o que
foi a questão levantada pelos “religiosos de Santo Antônio”,
no Maranhão, intentando “ação de força às formigas ou às
saúvas para as fazer despejar da sua cerca”, como conta, a
repetir documentos dos dias de 1713, o erudito autor da “Crônica do Brasil Colonial”, aí narrado que o Procurador da dita
ordem deu “libelo contra as formigas” indesejáveis, no que
foi contrariado pelo “procurador daquele negro e miúdo povo”,
a alegar que “elas, uma vez recebido o benefício da vida por
seu Criador, tinham direito natural a conservá-lo por aqueles
EDUARDO CAMPOS
206
meios, que o mesmo Senhor lhes ensinara. Item, que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos
homens os exemplos das virtudes que lhes mandara; a saber,
de prudência acautelando os futuros, e guardando para o
tempo da necessidade: Formica populus infirmus qui
praeparat in messe cibum sibi (Prov. 30,26), de diligência ajuntando nesta vida merecimento para a eterna.” E empós outras
tantas e pertinentes citações piedosas, em bom latim, acrescentado que “eles (os religiosos) eram irmãos mais nobres e
dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas...”
Ao arrastar do questionamento, com réplicas e contraréplicas, restou finalmente a sentença para que “fossem obrigados” os frades “a assinalar dentro de sua cerca sítio
competente para vivenda das formigas, e que elas sob pena
de excomunhão mudassem logo habitação, visto que ambas
as partes podiam ficar acomodados sem muito prejuízo,
maiormente, porque estes religiosos tinham vindo ali por obediência a semear o Grão Evangélico, e era digno o operário
do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio de sua indústria, a menos custo” (Lisboa,
1976, pp. 426, 606 e 607).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
207
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EDUARDO CAMPOS
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CAPÍTULO II
A PRESENÇA DE SERES FANTÁSTICOS E
FORMIDÁVEIS; AS CRENÇAS, BICHOS E
PRESSÁGIOS
O HOMEM, em dado momento de sua existência, alimenta-se do que consegue capturar nas primeiras ações venatórias;
e nos leva a supor que, ao longo do tempo, enquanto se
aprimora na condição de luta pela sobrevivência, mais se compenetra da importância assumida na postura e prática do exercício da caça, a compreender também estar a tarefa, de garantir
seu sustento, ligada a melhor entendimento de como os animais, passíveis de apreensão, se comportam.
V. Gordon Childe, ao analisar o que denomina de
“selvagenria paleolítica”, vê o “primeiro capítulo da história humana” (...) “ainda entretecido com a História Natural” em recuado tempo, quando “idealizados ritos mágicos destinados a
assegurar o abastecimento de alimentos, a promover a multiplicação dos animais e êxito na caça.” (Childe, 1981, pp. 29 e 43).
E muito por diante vem momento em que o homem em
estado selvagem “age como se julgasse que, com feitiços e ritos,
pudesse dirigir os fenômenos naturais, hoje sabidos por impossível controlar pelo menos com tais métodos.” (o.c. p. 49).
Mas em verdade sejam por quais razões apresentadas,
simplesmente materiais ou espirituais, “as zonas de caça e
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pesca e os alimentos nelas obtidos ‘passam a prevalecer’ de
propriedade e utilização comum.” (idem, ibidem).
Com o desfilar dos séculos o homem aperfeiçoa a técnica de lidar com os animais, quer pelos artifícios da caça,
quer pelos da pesca. Assim, no decorrer de vários períodos
da evolução da humanidade, lembra Luís da Câmara Cascudo,
vão surgindo armas (ou artefatos de captura) mais adequadas
àquela finalidade. Amplia-se a ação mortífera do dardo e da
javalina. E já nos tempos madalenenses, “o arpão é arma
poderosa”, assim como “existem silvos, apitos, chamas para
aves, flautas mágicas que os feiticeiros, vestindo peles de bichos, sopram, atraindo abundância nas caçadas futuras e presentes.” (Cascudo, 1983, p.292).
Também aí mencionadas outras “armas maravilhosas,
o arco e a flecha alcançando a caça bem longe, como prolongando o braço humano em sua vontade letal. Os dardos têm
propulsores que os atiram bem distantes. Os propulsores vieram antes dos arcos. Os nossos cariris ainda empregam propulsores no século XVII.” (idem, ibidem).
Vê-se que, por tais avanços de engenhosidade técnica,
os animais acabam tomando posição de relevo para o homem, não só por se lhe tornarem indispensáveis à alimentação ou à sua complementação, mas sobretudo pelo fascínio
que passam a exercer, levando-o inclusive a imitá-los na técnica de emboscadas, de lutas, circunstância que o faz jactarse, em determinadas ocasiões, de atitudes e ações
assemelhadas a esses irracionais. Assim, contentado por vigiar
o inimigo “como um zorro”; “de atacarlo como um tigre y de
esquivarlo como una liebre.” (Molina Téllez, 1947, p. 163). E
no caso nordestino: ligeiro como uma piaba; liso que só muçu,
feroz que só piranha etc., etc.
Por tais sentimentos as velhas civilizações – apensa o
mesmo escritor – adoravam os animais não pelo que eram,
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mas pelo espírito “que para ellas (civilizações) representaron.
concedido por las relaciones animistas que con ellos
mantenfan.” (o.c., p. 163).
No Brasil, a inícios da nossa colonização, os “espectros
noturnos e demônios selvagens” acodem aos silvícolas, a
amedrontá-los. Destacável, dentre estes, o Curupira, ao qual
referiu o Pe. Anchieta dando-o por tinhoso em acometer aos
índios inflingindo-lhes açoites, machucando-os até à morte.
Nessa ordem de seres fantásticos, ou de animais formidáveis,
quais o Baetatá ou Boitatá, o Igpuriara.
Somos supersticiosos desde esses tempos.
“A superstição” – anota Barbosa Rodrigues, em quem
nos respaldamos – “companheira quase inseparável da lenda, transforma esta, e em vez de deleitar o espírito, o acabrunha e o exalta.”
Não tivemos lendas, diz ainda aquele estudioso, mas
apenas crenças. “Entre o gentio o viajante não ouve uma
lenda; não vê o pavor, nem pressente a influência do medo.
Entretanto, entre o tapuio, assentado à sua rede, passa o viajante as noites, entretido, ouvindo histórias de crenças plantadas outrora pelos invasores, que o tempo modificou, coloriu
e tornou romanescas, inutilizando a inteligência indígena. Não
é uma história, não é um conto, é uma verdade, uma realidade” (Cascudo, s.d., p. 155).
A presença do fantástico não se ausenta desse narrar
de expressiva transmissão oral. E em tudo, pessoas e animais
confundem-se: a Yara é metade peixe, metade mulher; o
Jurupari anima-se do poder de transformar as pessoas em
animais, geralmente cervos.
O jaburu, em mito Karajá, colhido por Fritz Krauss e
repassado por Herbert Baldus (Baldus,1937, pp. 204, 205) é
personagem de evidência ao lado do carcará. “O pai dos
Karajá é Deus (Kinoxiwe). O mundo estava nas trevas. Deus
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engoliu ar, então ficou com a barriga grossa; estava deitado
no chão. Veio o jaburu. Depois veio a ave pequena carcará e
sentou-se ao lado. Disse: vamos comer. O outro disse: Espere
até mais tarde. O jaburu fez voltas por cima. A pequena ave
disse: Ele está morto. O jaburu disse: Não, ele está vivo. O
jaburu voou ainda ao redor. Depois sentou-se na barriga de
deus. O deus agarrou-o e ficou vivo. Obrigou o jaburu a
trazer luz; porque ainda não havia luz. O jaburu trouxe uma
luz pequena. Deus disse: Não, quero outra. O jaburu trouxe
uma luz maior, a lua, e perguntou: É esta? Deus disse: Não,
quero outra. Então o jaburu trouxe o próprio sol e tudo ficou
na claridade do dia” etc. (idem, ibidem).
Não de raro a ocorrência de homens-bichos quais a
mulher-mutum, mulher-periquito, homem jacu, como se nos
depara no mito “o incêndio universal”, quando depois do
fogo “outros homens e mulheres ficaram na terra, tendo de
esconder-se em covas. Assim aconteceu depois que a terra
acabou de arder, e um velho apareceu transformado em jacaré; uma velha, em tamanduá; outros entes em veados, avestruzes, raposas etc. (o.c., p. 1219). O Curupira, duende protetor
da mata, percorre-a cavalgando um veado ou um coelho. E
até usa o casco de jaboti para bater nas árvores, afugentando
a tempestade. No Ceará – documentou Osvaldo Orico – esse
curioso ser “muda de aspecto, perde o pelo do corpo, que se
transforma em cabeleira de cabelos hirtos; apresenta dentes
afiados como os dos guaribas e os olhos em brasas; sempre
que sai dos matos da serra, monta num caititu, com uma
chibata de iapecanga na mão” (Orico, 1937, P. 77).
Os animais, vale referir ainda, estão permanentemente
lembrados na elaboração de crenças míticas. Mais perto de
nós, Herbert Baldus deparou entre os Boróro “dois mitos de
origem (ursprungsmythen), cujos elementos são muito espalhados neste continente. Uma moça da tribo casa-se com o
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jaguar.” Noutro mito Boróro “o homem sobrevivente, depois
da grande enchente que destruiu tudo, povoava novamente
a terra por meio de casamento com uma veada. Por isso,
hoje, em geral, se evita comer carne de veado. Os Boróro
crêem que adoeceriam se a comessem. Só em raríssimos casos a magia de um bari especialmente poderoso é capaz de
tornar comestível essa carne” (Baldus, 1937, pp. 161, 162).
Dos Tapirapé o etnólogo aproveitou versão de narrativa sobre o “incêndio universal.” Novamente, no curso do
mito, figuram os animais de aceitação mágica da tribo, senão
vejamos: “Todos os Tapirapé tinham morrido. Numa velha
casa de dança havia um buraco grande com fogo, no qual
todos tinham morrido. Dois homens jacu, uma mulher-mutum
e uma mulher-periquito estavam numa velha cabana” etc.
(Baldus, o.c., p. 219).
O nome de um Boróro, Aipobureu (muito clara a dependência totêmica, a significar “jaguatirica ou gato do mato
grande” (Felis pardalis), educado pelos salesianos, sem se conter em sua inclinação atávica, um dia resolve retornar à “religião de sua tribo”, ciente da regra do próprio clã: “ser homem,
quer dizer ser caçador e lutar com a onça; (e) tornou-se inteiramente caçador. Ou pelo menos quis tornar-se perfeito caçador”
mas fracassou. Já não possuía a condição de enfrentar e vencer
as feras. Desse modo, não se houve mais como abatedor de
animais, caindo-lhe daí por diante a família em miséria. “Não é
de admirar” – conclui Herbert Baldus – “que a mulher o abandonasse por outro...” (o.c., pp. 169,170).
Possível aceitar: só de raro o animal não comparece
como personagem aos mitos dos aborígines brasileiros. Por
extensão em toda a América, lembra Félix Molina Téllez, os
animais “tienen un papel importante en la vida de la
comunidad.” Na Argentina, através de “el casamiento entre
animais” se dão graças pela boa colheita (o.c., p. 162, 165).
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No mito de origem dos Tumerehá, tanto os Chamacoco
como os brancos sobem de debaixo do chão à superfície por
fio logo cortado por um cão. “Por isso, mais tarde, os
Chamacoco e, com eles, os brancos e os outros homens subiram por meio de um pau para o céu, onde há mais caça...”
(o.c., pp. 194). Noutro mito os heróis são encarregados de
“buscar o sol, que era propriedade do urubu vermelho ou
urubu-rei” (o.c., p. 145).
Incidem na mítica aborígine o sapo, a anta, pássaros;
do mesmo modo o veado, o cachorro do mato, a onça pintada, o gato do mato, a avestruz, a seriema, o jaburu, o jacu,
peixes, jacarés etc., etc. Típica desse narrar a história do
tamanduá, colhida pelo Padre Teschauer:
“Os ciganos costumavam fazer todas as noites grandes fogueiras para espantar a treva. Não
havia, então, animais. Todos tinham sumido na
inundação. A arca de Noé não passou por aí para
salvá-los. Então o Cadjurucré aproveitava para fabricar os animais do mato. Assim fez a onça, o
javali, o veado, o macaco, o tatu, a cobra, o besouro, a coruja, a preguiça, e foi dizendo a cada
um deles o que devia comer para se alimentar.
Depois ensinou a onça a rugir; o veado,
a correr; ao macaco ensinou como devia pular; à preguiça, o meio de não trabalhar; ao
tatu, como devia esconder-se; à cobra, de como
devia enroscar-se; à coruja, como devia piar.
E assim por diante.
A fogueira continuava acesa. Do carvão e
da cinza, que ficaram no chão, Cadjurucré prosseguia o seu trabalho de fabricar os animais do
mato.(...) o mato ficara cheio de bichos. Havia animais de todas espécies.(...) De tanto fazer bicho,
Cadjurucré já estava cansado. E disse consigo:
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– Bom, esta é a última noite em que trabalho. Toca a aproveitar a escuridão do tempo
e a cinza da fogueira, porque, de manhã em
diante, não faço mais nada.
E deu inicio a um animal novo. Fez um
corpo muito comprido , coberto de pelo, pôslhe uma cauda longa, arranjou-lhe uns pés, umas
unhas fortes e inventou uma cabeça pontuda,
com um pequeno lugar para a boca.
Era um bicho mesmo muito esquisito.
Mas, justamente no momento em que ia
completar o animal, veio a madrugada e a fogueira apagou. Não podendo trabalhar com a luz
do dia, o espírito teve de arranjar um jeitinho. O
animal estava incompleto; não tinha ainda nem
língua, nem dentes. E não havia mais um tiquinho
de carvão ou de cinza na fogueira. Então, que fez
o espírito? Pegou uma varinha fina, que estava ali
perto, meteu-a na boca do bicho e disse:
– Anda, vai-te depressa, que o dia vem
chegando.
O bicho protestou:
– Mas o que vou comer, se não tenho
dentes?!
O espírito foi e disse ao animal:
– Por não teres dentes, vais comer
formigas.
Assim apareceu no mundo o tamanduá”.
(Orico,1937, pp. 237, 238 e 239).
Repete-se essa inspiração mítica zoomorfa. E não faltam as lendas como a do homem e do veado, em que o
primeiro elege a fêmea do cervo para mulher, e termina deste
modo narrada: “Daquele momento em diante (da união dos
dois) a veada esteve com ele (o homem) e nunca mais se
separou.” (Baldus, 1937, pp. 177-178).
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Nos mitos Karajá a participação da fauna é flagrante.
Não estranha a presença de urubus – de todos os tipos, inclusive brancos; e desse modo, carcarás, urubus-rei, papagaios,
piranhas, mutuns, jaburus etc., etc.
Vai restar então, de tantas legendas de sabor primitivo,
misterioso, o prevalecimento de superstições que confluem
para marcar as ações dos que, mais perto de nós, habitam
pelos sertões ou florestas em contacto mais direto com a natureza.
No tocante vige o saruá, espécie de influência ou ação
má que “alguém pode produzir ainda que de longe” na pessoa atingida. A mulher grávida é tida por saruá, conta Ermano
Stradelli, principalmente para os índios (Cascudo, s.d., p. 294),
sentimento ou receio que alcança por igual a população sertaneja do Ceará, a considerar fatal a visita de mulher grávida
a picados de cobra venenosa.
Como refere Stradelli “saruá são todas as fêmeas grávidas, pelo que é obrigação estrita do caçador, que as encontrar, deixá-las ir em paz, sob pena de se tornar panema e
nunca mais voltar a ser caçador afortunado.” (Cascudo, o.c.,
idem, ibidem).
Panema, notadamente na área da Amazônia, é influência negativa de espíritos, ou algo assemelhado que prejudica as ações do homem, tornando-o em última análise sem
sorte, azarado.
Charles Wagley anotou: “Um caçador ou pescador que
tem fracassos sucessivos que não podem ser explicados por
causas naturais, atribui-os à panema, força maligna que se
apodera da pessoa.” (...) “A mulher grávida que come caça
ou peixe pode transmitir panema ao caçador ou pescador
que os apanhou. Um homem poderá apanhar panema de
algum amigo com quem esteja aborrecido por causa de desavença em questões de alimentação” (Wagley, 1977, 91-92).
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Percebível em muitos casos dessa natureza ser a “sombra” dos indivíduos algo apropriável para efeito do malefício.
Daí o sentido de proteção à sombra alcançar o sertanejo do
Nordeste, que detesta ver alguém pisar a que vai fazendo no
chão, quando caminha.
Mas quem provoca panema, quem tenta arrebatar a
sombra das pessoas... é outra sombra, um fantasma, o
Anhangá, que se disfarça muitas vezes nas nambus perseguidas pelos caçadores desprevenidos.
Em Iracema, José de Alencar registra a influência malsã do indesejável avantesma. Ao deparar o guerreiro, que se
aproximara furtivamente, a “virgem dos lábios de mel” exclama: “– Anhangá turbou sem dúvida o sono de Irapuã...”
(Alencar, 1965, p. 203).
Anhangá pode estar escamoteado num peixe, na
tintureira (Prionodon glaucus), em cujo corpo se vendo refletido, o infeliz pescador vai-se perdido para as profundezas do
mar... (Cascudo, 1984, p. 752).
A idéia de os animais, pelo menos alguns destes, serem portadores de condições indesejáveis ao homem, é evidente nas abusões alimentadas pelo povo em sua ingenuidade.
E por certo não estranhável se descobrir, nas atitudes dos
animais, não raro avisos de circunstâncias especiais que podem funcionar ou não a nosso favor.
Desse modo, no Ceará, onde graúna voando sobre o
telhado de casa funciona como mensageira de más novas;
“canto de galo em noite escura” avisa infelicidade. O de “anum
branco” pressagia morte. E sob igual vaticínio o vôo da borboleta, ou do beija-flor; conforme recenseou o Barão de Studart
(Cascudo, s.d., p. 299 e ss.).
Cumprem-se na coletividade interdições especiais: assim, não recomendado o abate da lavandeira (Floricula
climazura, W.), avezinha que a tradição refere ter lavado as
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roupas de Nossa Senhora. Vedado alvejar-se urubu, pois o
procedimento acaba penalizando o caçador, tornando-se-lhe
inutilizada a arma para o exercício cinegético.
A última crendice percorre todas as Américas.
Na Argentina, conta Félix Mollina Télez, “el cuervo
negro de las missiones annuncia lhuvia. No se puede matar,
porque la escopeta que le apunta se descompone.” “O folclore de las regiones missioneras”, acrescenta o referido autor, arrimado em Ambroseti, consigna: “Al puma o león, no
puede matár-se con arma de fuego.” (Mollina Téllez, o.c.,
pp. 165, 205).
O canto do acauã, “lúgubre e arrastado gemido”, sob a
observação de Osvaldo Orico, “deflagra uma enfermidade
nervosa que se conhece pelo nome de ‘canto de cauari. O
indivíduo atacado vive a repetir mecanicamente o grito soturno e melancólico. Apontam-se vários casos em Faro e Paratins.
Tais manifestações, semelhantes às que produz certo gavião
no arquipélago nipônico...” (Orico, 1937, p. 20).
Paulino Nogueira registrou: no Ceará os índios traduziam no canto da acauã a informação de que receberiam um
aguardado visitante, ou, por tal meio explicado, o tempo em
que este demorava em sua jornada.
Outro pássaro possui canto pressagiador; o carão (Ardes scopacea, L.), muito festejado pelos interioranos do Nordeste do Brasil, por anunciar a proximidade de chuvas. Já o
oitibó, espécie de coruja, de canto lúgubre, metia medo nos
fndios. O tatu (principalmente o tatu-bola) é tido e havido
como pactuante com o demônio. Citando E. Liais, Paulino
Nogueira escreve que “mais de uma hora depois de morto,
já separado do corpo, o casco se fecha bruscamente ao ser
tocado por um escapelo.” (Nogueira, Revista do Ceará, 1887,
p. 443 e ss).
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Está repassado no trabalho de Paulino Nogueira (“Vocabulário Indígena” igualmente a informação de o urubu-rei
subir “além das nuvens, e que as flechas ornadas com suas
penas não erram o alvo...” (o.c., p. 429).
A influência ibérica, por intermédio da presença lusohispânica que entre nós se juntou à de origem ameríndia e
negra, concorre para a estocagem de folclore dinamizado e
revigorado principalmente nas narrações que se transmitem
oralmente pelo Nordeste, e repontam com detalhes ou maior
evidência na literatura de cordel.
Seres estranhos, misteriosos, excitantes, portadores de
dons especiais, ora confundidos com criaturas humanas, mas
sempre artistas da astúcia, fazem a cercadura vivenciada das
crianças, particularmente pelos sertões do Nordeste, onde não
de raro o animal, o “bicho”, é participativo da extensão familiar de suas próprias vidas.
Aduza-se: e “entendidos” pelo povo, através da palavra e canto de seus versejadores populares, como criaturas
que agem quais seres humanos, cada qual com a sua característica própria e exercício profissional, a se vê a exemplo na
inventiva do poeta popular Luís Dantas Quesado, recenseada
por Leonardo Mota (Mota, 1962, pp. 148, 149):
“Vi um teú escrevendo
Um camaleão cantando,
Uma raposa bordando,
Uma ticaca tecendo,
Um macaco velho lendo,
Cururu batendo telha,
Um bando de rã vermelha
Trabalhando num tissume,
Vi um tatu num curtume
Cortando couro de abelha.
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Vi um quati marceneiro,
Vi um furão lavrador,
Vi um porco agricultor
E um tibu velho ferreiro...
Um veado sapateiro,
Caitetu tocando buso,
Punaré fazendo fuso,
Aranha tirando empate,
Vi um besouro alfaiate,
Cortando roupa de uso.
Vi um peba fogueteiro
Soltando fogo do ar,
Vi papa-vento mandar
À rua trocar dinheiro;
Carrapato redoleiro
Comendo farofa pura,
Um bando de tanajura
Empregada num café,
Vi um percevejo em pé
C’um grajau de rapadura.”
Em decorrência da herança mítica, se assim possível
mencionar, os animais chegam aos nossos dias, e ao homem
do campo, marcados por qualidades que os diferenciam. Há
os que simbolizam vigor físico, destreza, valentia; outros, sabedoria, prudência por diante. Vale referir o exemplo da história d”’O Casamento da Raposa com o Veado”, cordel de
Minelvino Francisco Silva: “O veado apaixona-se pela raposa,
e a desposa, malgrado a oposição do pai, que deplora essa
união com pessoa tão sem vergonha, viciada na cachaça,
deixando de lado tantas corças encantadoras. A festa do casamento se realiza. reunindo a raposada e a veadagem, dirigida
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pelo padre tamanduá, imponente em sua marcha lenta e solene. A festa acaba mal, como costuma acontecer muitas vezes nas festas populares em que corre muita cachaça e retumba
a batucada. As raposas embebedam se, os caçadores chegam
e as massacram com seus cães, enquanto os veados fogem e
o futuro marido solta um suspiro de alívio: É muito certo o
ditado: cada qual com os seus iguais.” (Bradesco-Goudemand,
1982, p. 131 e ss.).
Narrações desse tipo fazem o encanto das pessoas simples; o povo é sensível às manifestações de sua natureza
circundante e do mundo sobrenatural que os envolve, de
padagogia renovada na oralidade dos mais vividos.
Histórias muitas vezes alongadas, constituídas de episódios distintos, como se de dentro de um conto outro mais
se fizesse – escrevi antes. A narração obedece a uma cadência triplicadora universal, técnica esclarecente que inspira movimento, continuidade, e, ao mesmo tempo, vira refrão a aliciar
a atenção de quem escuta. Assim, ouve-se: “O homem foi
andando, andando, andando...” Ou, “voltando para casa, armou a rede, dormiu, dormiu, dormiu...”
Persistem no sertão as estórias de animais; do bode e da
onça, um ajudando ao outro, sem o saber, no levantamento de
nova moradia, ocorrendo ao final o elemento surpresa; do
jabuti intrometido que vai à festa organizada no céu, mas, ao
voltar despenca-se na terra, ficando de casco estilhaçado, diferente do que exibia antes, lindo de ver (Campos, 1980, p. 21).
Contos que se repetem, e, quando menos se espera,
tomados por narrações privativas do nosso ecúmeno,
deparâmo-los reeditadas noutros lugares distantes. Desse modo
a desventura do sapo (repetindo a infelicidade do jaboti), a
se meter na viola do urubu, sem que este perceba, indo participar de uma festa celestial. Do instrumento emborcado, propositadamente, o batráquio despenca-se ao chão, ficando então
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
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com o “couro cheio de remendos.” Em narrativa de curso em
antologia para estudantes primários da Argentina, o urubu é
substituído pela águia. Cenário idêntico ao da história encontrada pelos sertões “desde muy alto.”
Queda realmente desastrada. “El golpe fué terrible y el
cuerpo se llenó de heridas. Las cicatrices son las manchas que
han quedado para siempre en la piel del sapo.” (Coluccio –
Schianf fino, 1948, p. 274).
Contos, fábulas, histórias, crenças, superstições; – todo
um contar e recontar que gira com ênfase, pelo Nordeste, em
torno de animais.
Nisso, cumpre a região a tendência da adoção de folclore nitidamente nacional, que sempre dispôs de “um semnúmero de bichos mais ou menos fantásticos, o que não tem
nada de surpreendente num país onde a fauna é tão rica”,
anotou Ivone Bradesco-Goudemand (o.c., p. 90)
O povo observa e apreende à sua maneira, exagerando
o que entende por manifestações da “sabedoria” (leia-se: inteligência) dos animais, que contempla. Assim, sabe destacar a
ação do teiú, que picado por cobra se vale de batata tomada a
uma planta do mato, para curar-se; comenta e aplaude o macaco, molhando a cara com a própria urina, para se apossar do
mel de uma “caixa” (ninho) de marimbondos etc., etc.
Fatos dessa natureza também impressionam os eruditos. Robert Southey, em História do Brasil, consignou: “Quando
o rio se espraia, deixam-lhe os peixes o leito em busca duma
certa fruta; apenas sentem cair nágua, correm a apanhá-la
quando vem à tona, e na sua avidez saltam ao ar. Sugeriu
este hábito um curioso estratagema à onça; trepa a algum
ramo debruçado sobre as águas, ferindo-as de vez em quando com a cauda, e imitando assim o som que ao cair produz
a fruta, e quando o peixe salta para apanhá-la, é a onça que
com a pata o apanha a ele” (Southey, 1965, v. I, p. 147).
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O guaxinim, conta Câmara Cascudo em nota de pé de
página na tradução de Travels in Brazil, “põe a cauda no
buraco do caranguejo, espera que esse agarre com suas patas
e então, num brusco safanão, sacode longe o crustáceo. Depois de gemer, lamentar-se e lamber a cauda, o ‘ aproveita a
caçada” (Koster, 1942, p. 419).
Nessa ordem de argúcia animal, de certa “inteligência”
– se possível mencionar de tal forma – destacam-se os papagaios na área nordestina, que entram para o anedotário popular com divertidas estórias, às vezes também surpreendentes.
O folclorista Nery Camello, chegando a uma fazenda
em Assú, no Rio Grande do Norte, pelas seis da tarde, ouviu
“um papagaio, preso pelo pé a uma corrente” em casarão
sertanejo, cantar:
“Quem passa?
É o rei que vai à caça
Com três cachorros de raça... “
(Camello, 1989, p. 30)
Ave, a “mais conhecida de todo o mundo”, no dizer de
Paulino Nogueira (ver A Quinzena, 26 de agosto de 1887,
páginas 3 e 4); no mesmo lugar afirma ter possuído um “louro” que “resava o Bemdito”, e arremedava perfeitamente uma
galinha choca.
“O direito não olhou para os papagaios com os mesmos olhos da lenda, da religião e da história” – escreveu
Gustavo Barroso. E aduziu: “Citada por João Brígido, uma
postura colonial de 1803 impunha, no Nordeste, a cada lavrador a obrigação de anualmente apresentar à câmara de sua
vila certo número de cabeças de pássaros de bico redondo,
papagaios e seus parentes: araras, periquitos, jandaias, curicas,
maracanãs, canindé”, “pelo mal que infligiam aos roçados,
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bicando-lhes os grãos plantados ou vulnerando a messe por
colher (Barroso, 1927, p. 13).
O procedimento fiscal prosseguiu no Ceará, e em 1854,
na vila de Maria Pereira, a resolução 665, de 4 de outubro do
referido ano, dava vigência a posturas municipais que expressavam no art. 14: “Todo agricultor será obrigado a trazer
no mês de junho ao secretário da câmara 50 cabeças de pássaros daninhos, das quais o secretário passará recibo, sendo o
fiscal obrigado em suas correições a exigir dos agricultores
dito recibo para pôr no verso o seguinte: ‘Vistos em correição,
tanto de tal mês e ano – F –. Os contribuintes pagarão a multa
de dous mil réis para o Concelho.”
EDUARDO CAMPOS
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ALENCAR, José de – Iracema, 3a edição, vol III, in: Obras
Completas, Biblioteca Luso-Brasileira – Cia. Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1965, 1.130p.
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EDUARDO CAMPOS
228
CAPÍTULO III
DOS TRÁCIOS AOS ENCOURADOS VAQUEIROS DA
CAATINGA. MAGIA E PARTICIPAÇÃO DA FAUNA NO
QUOTIDIANO
EM SUA jornada pelo Nordeste, depois de ter vencido o
Ceará-Mirim, em 1810, ainda em terras do Rio Grande do
Norte Henry Koster deparou a “figura comum do sertanejo
em viagem. O cavaleiro observado assentava-se em pequeno
cavalo com cauda e crinas compridas”, vestindo grandes calções ou polainas de couro taninado, mas não preparado, de
cor suja de ferrugem, amarrados da cinta e por baixo víamos
as ceroulas de algodão onde o couro não protegia’.” (Koster,
1942, p. 133). Em nota de esclarecimento Luís da Câmara
Cascudo, tradutor da obra, repete Martius, informando como
se indumentava o peão paulista interiorano, a se ver: com
“curto gibão, perneiras justas e chapéu em forma de prato,
preso ao pescoço com uma correia, tudo de couro pardo de
veado ou de capivara...” O vestuário assim descrito o protegia
de modo eficaz “contra cercas de espinheiro que tem de atravessar na perseguição dos animais” (o.c., p. 145).
Perde-se no tempo o procedimento de o homem aproveitar a pele de animais para confeccionar a própria vestimenta.
Os Trácios, a exemplo, como está em Heródoto, “tinham na
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
229
cabeça peles de raposa e envergavam túnicas por cima das
quais traziam uma roupa de diversas cores, muito ampla. Calçavam borzeguins de pele de cabrito...” (Heródoto, s.d., pp.
584, 585). Os Armênios, por volta do século IX, usavam peixe, mulas e falcões como moedas, com as quais se desobrigavam junto aos califas, e exportavam “peles de animais,
destacáveis os panos feitos de pelo de cabra muito apreciados então por causa de sua espessura e duração” (Nersessian,
1973, pp. 69, 70, 71).
Sérgio Buarque de Holanda anotou: “escudos, couraças, e capuzes de toda espécie entravam no arsenal dos conquistadores”, mas a maioria, no Brasil, “dispensava, sem
dúvida, semelhante luxo, pois escudos e coletes de couro
eram em geral o quanto bastava para garantir contra o perigo
dos setas” (Holanda, 1957, p. 135).
Nos documentos de “procedência castelhana e jesuítica,
refere ainda Sérgio Buarque de Holanda, os sertanistas vestiam ‘largamente’ as ‘couras de anta.’ Em uma das suas incursões ao gentio bravio do Paraguai, narrado pelo aventureiro
de Domingos de Irata, “usaram paveses (anteparos quadrados ou oblongos) de ‘couros de antas e veados’, em número
aproximado de 400” (idem, ibidem).
Os índios do Chaco – narra Alfred Métraux –, especialmente os que adotaram o cavalo, usavam jaquetas de couro
– geralmente de onça – que algumas vezes chegavam até os
joelhos, em vestimentas de duplo efeito: ornamentava-os e os
protegia. A pele da onça assim posta no indumento transmitia
a “ferocidade do animal.” Os Ocaina – repassa ainda Métraux,
“possuíam armaduras de couro de anta” (SUMA Etnológica
Brasileira, I, 1986, p. 160).
Os bosquímanos, no período final da Idade da Pedra,
tinham seus capotes feitos de peles (Fagan, 1972, p. 42). “Em
muitas regiões” Está dito aí. (o.c., p. 42).
EDUARDO CAMPOS
230
Pelos anos presumivelmente situados entre 3.00 a 1.200
a. C., no lugar Cabezas Largas, ao sul de Pisco (Peru), descobriu-se um “cemitério com seis sepulturas (alguns corpos estavam flectidos, outros estendidos) e um ossário que guardava
os restos de sessenta pessoas. Os corpos estavam envolvidos
em peles de camelídeos, provavelmente de vicunha” (Bushnell,
1972, p. 33).
Todos os povos, em determinado momento de sua existência, souberam utilizar em proveito próprio os recursos propiciados pela caça abatida ou capturada. Desse modo sucedeu
com os Maias, habitantes da meso-américa, onde também se
encontravam animais perigosos como o jaguar, “perseguido
pela sua resplandente pele”, além do tapir, cuja carne servia
de repasto, e a “pele, excepcionalmente dura, utilizada na
confecção de escudos e armaduras para os guerreiros” (Coe,
1971, p. 25).
No Nordeste do Brasil, mais que em outra região, podese argüir: a pele de animais domesticados, principalmente do
gado vacum, alcançou em tempos passados ilimitada serventia,
de que dá copiosos exemplos J. Capistrano de Abreu, ressaltando a época do couro, “verdadeira civilização experimentada pelos dias coloniais, quando de couro era a porta das
cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a
cama dos partos; de couro todas as cordas, a borracha para
carregar água; o mocó ou alforge para levar comida, a mala
para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia
para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e
surrões, a roupa de entrar no mato’ ” (Abreu, 1963, p. 147).
O aproveitamento do couro do animal não se faz apenas sob intenção utilitária. Na verdade mesclam-se em muitos
procedimentos, para apropriá-lo, sentimentos ou intenções
mágicas. Nesse caso, quando o Boróro sai a campo para matar a onça “mori”, e que, pelo ritual, vai destinada ao seu
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
231
parcial falecimento, conduz o couro do animal abatido – contam os padres Colbacchini e Albisetti (1942, p. 158) – “até o
meio da praça da aldeia e o deixa lá”, indo então buscar o
irmão do tal finado que, por seu mori, ele matou a onça; etc.
(o.c., idem, ibidem). O índio, agraciado com a oferta do couro da onça, está compelido a “fazer arco e flechas e enfeites
vários do cl㔠para o caçador que abateu o felino.
A cerimônia do mori da onça – assim relatado por
Akirio Boróro Kegger (Tiago Aipobureu), já referido antes – é
sobremodo extensa e repetitiva. Mas em todas as suas passagens o couro animal é manejado, passa de um lugar a outro,
anda de mão em mão conforme a importância dos que se
envolvem diretamente no ritual, até que tudo culmina como
descrito: “o matador da onça recebe novamente os dentes, as
garras e o couro da onça, e entrega o couro àquele a que já
está determinado; os dentes para a mãe, ou para uma parenta
do finado, e as garras para um rapaz parente do finado”
(idem, ibidem).
Lembra Gioconda Mussolini: “o índio (Kaingang) pressente as relações humanas com os ‘espíritos do mundo natural’, seres ‘que controlam ou animam fenômenos naturais e
as espécies de animais (Mussolini, 1980, p. 44). Está ciente de
que, dentre outros benefícios alcançados da ação dos espíritos, pode obter a indicação de lugar de boa caça, de abundância de mel”, proteção para a convivência, no quotidiano,
das atividades cinegéticas, e, em ocasiões inusitadas, de procriação, como a da índia que “tomou o filho da abelha, colocou-o no ventre, deu-o à luz sob a forma humana, e desde
então foi-lhe fácil conseguir sempre mel em abundância...”
(idem, ibidem).
Escreveu von Martius: “De acordo com a idéia do índio, todos os seres da natureza e todas as manifestações dos
elementos naturais existem para mutuamente se auxiliar ou
EDUARDO CAMPOS
232
prejudicar. Cada qual tem que servir ao outro, e daí lhe advém
a idéia de que natureza há um principio bom, salutar, e outro
mau, pernicioso. Estes dois princípios ele vê representados
por toda parte e os antropomorfisa. Povoa assim florestas e
campos com serem inimigos os que lhe são nocivos e se
torna visionário. Todas as forças hostis, tais como animais
venenosos e feras, são para ele unicamente manifestações de
princípios maus” (Martius,1939, pp. 204, 205).
A concepção animística para a vida das criaturas vegetais e animais é indissociável do pensamento popular. Superstições, crendices as mais diversas, carreiam para o
conhecimento do povo observações que acabam por presidir
às relações do homem com o mundo animal.
No continente, generalizada a postura de recorrência
às superstições zoológicas. O osso do pênis do tigre, sob esse
contexto, é apreciável amuleto que confere força, valor pessoal, aos que o portam consigo em saquitel pendurado ao
pescoço, observou Félix Molina-Téllez na Argentina, onde também a pele da raposa exerce a influência negativa, pois enfraquece a pessoa que a possui.
No Brasil, e de modo particular no Ceará, os pássaros
prenunciam tanto desgraça como alegria. Beija-flor ou borboleta preta entrando em casa significa infortúnio à vista, diferente, por exemplo, da esperança (inseto ortóptero) que vale
por um aviso de muita euforia. Gato preto azara o lar; mulher
grávida, se pisar escama de peixe, não se alivia da placenta;
cupim em cumieira é morte do dono da casa; suor de cavalo
dado a beber a alguém, de mistura com café, provoca loucura; “canto de anum traz morte”; “calango, que penetra em lar,
dá boa notícia de dinheiro para o seu morador”; “sapo cururu
atirado sobre a casa de vizinho desafeiçoado, proporcionalhe ruína”; “pena de pica-pau ferreiro, na ocasião que trabalha para furar o pau, se apanhada por alguém, dá-lhe
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
233
felicidade” – anotou Guilherme Studart. (Cascudo, s.d. p. 298
e ss).
Mas em compensação acode por igual a influência zoológica protetora. É na verdade, pelo menos no Nordeste,
copiosa a quantidade de ensinamentos zooterápicos passados de geração a geração, predominante pelos sertões.
A banha do teiú (tejuaçu), mais precisamente do
(tupinambis tequixim), friccionada sobre costas e peitos dos
reumáticos opera como terapia infalível: a carne do gatomourisco (felis jaguarundi) cozida, ministrada aos asmáticos, dá bons resultados; o chamado chocalho (guizo) da
cascavel (crotalus terrificus) tem poderes terapêuticos para
aliviar as crises reumáticas; raspa (aparas) de dente de jacaré, aplicada na cavidade de cáries dentárias, alivia a nevralgia;
a gordura (banha, como a denominam os sertanejos) é
desinflamatório nas afecções de garganta ou problema nas
glândulas do pescoço; a belida aliviam-na com aplicações
sucessivas (sobre a vista enferma) da pele da moela da juriti;
a extremidade da cauda do tatu-peba (dasypus-sexcintus),
quando introduzida em ouvido dolorido, elimina o mal-estar; banha do cágado costumeiramente é aproveitada para
eliminar as crises de reumatismo; para a mesma enfermidade nada melhor do que a carne da cascavel cozida em rodelas; do mesmo modo o caldo servido ao enfermo com os
mesmos sintomas.
Tomar ferroada de formiga vermelha, ou abelha (também terapia usada na União Soviética), é providencial para
debelar dor reumática localizada.
Há práticas inusitadas adotadas pelos enfermos e que
não se restringem a habitantes dos sertões nordestinos. Uma
destas é o ato de quem sofre de apostema em dedo, unheiro
por exemplo, introduzi-lo no ânus de uma galinha, ou vagina
de pessoa ou animal. Terapia absurda, mas ancestral.
EDUARDO CAMPOS
234
Dentes, ferrões, peles, substâncias graxas, urina, fezes
de animais, tudo isso tem considerável aplicação terapêutica
universal. Um couro de boto (stena tucuxi), improvisado em
cinturão e passado em torno do corpo de doente, é eficaz no
tratamento de hérnia; dente de caranguejeira, conservado em
saquitel e conduzido assim por uma criança, favorecer-lhe-á a
dentição. Quem conduz consigo guizo de cascavel pode dizerse a escapo de dores de ouvido; o galo-de-campina (Paroaria
gularis, L.), aberto ao meio e posto dessa maneira sobre um
dedo enfermo, alivia o padecimento etc. (Campos, 1967).
Em interessante notícia sobre escorpiões o prof. Otávio
Magalhães, nos anos quarenta, registrou: “... encontra-se em
grande número de habitações (em Minas Gerais), guardada
na copa ou na cozinha, uma coisa que depois se verifica
tratar-se de uma pedra confeccionada de chifres de veado. Se
a pessoa que a descobre é curiosa e pergunta a dona da casa
para que serve, ela responde que aquilo é remédio contra os
escorpiões. Onde há chifres de veado, o inimigo não causa
dano.” (Vamos Ler, 23 de janeiro de 1941).
Para dar combate aos “malditos”, tumores de mau aspecto – escrevi anteriormente – e que “produzem lesões fétidas geralmente deflagrados pelo bacilus anthracis, não
poupando criaturas humanas e animais – mais identificados
por carbúnculo, tinha-se terapia assentada em aplicações de
meizinha obtida da pele dos sapos, descrita no jornal O Sol,
editado em Fortaleza (CE), no século passado:
“Apanha-se um sapo dos grandes (sendo em
maio, melhor), tire-se a pele, guarde-se; e aparecendo sintoma de carbúnculos, corte-se de dita
pele quanto cubra o tumor, e ponha-se de molho em vinagre forte até ficar bem flexível, e
aplicam-se com atilho, de modo que não vá para
outra parte. Conserva-se por 24 horas, umideO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
235
cendo-se com o mesmo vinagre em que esteve
a pele do tumor, de molho. Passadas as 24 horas,
aplica-se uma rodela do tamanho do tumor, de
molho, e preparada da mesma forma” etc.
Deve-se admitir, conforme a explicação de estudiosos,
que os sapos segregam um tipo de veneno elaborado de suas
pústulas dorsais e glândulas parótidas, como informa dentre
outros Félix Molina Téllez, repassando descrição de Jean
Rostand. Tem-se aí, em ação terapêutica apreciável, a bufaguina
e a bufotoxina. (Molina Téllez, 1947, p. 201).
Os sapos, conquanto se apresentem com aspecto repulsivo, sempre estiveram incluídos na zooterapia de interesse humano. Howard W. Haggard (1947, p. 41) registra o
aproveitamento destes para o tratamento da hidropsia, processado através de beberagem obtida de sapos fervidos, iniciativa modernamente explicada pela quantidade de substânciá
benéfica ministrada aos enfermos, a bufonina.
Alceu Maynard Araújo, estudando o comportamento
de comunidade ribeirinha do Rio São Francisco (Piaçubuçu),
comentou: “No mundo animal é que encontramos os causadores e portadores de enfermidades e males”, dando as cobras por “inimigas irreconciliáveis do homem e criações.”,
destacando dentre essas a “jaracuçu traíra, preta e cinzenta,
papa-ovo, salamentra, cobra de veado, surucuru, duas cabeças, papa-barata, jararaca do rabo branco, mata-boi, papagaio, mija-sangue, jericrá grande, cipó e de coqueiro; costela
de vaca, talo de aninga e papavento ” (Araújo, 1961, p. 172).
Temor e idiossincrasias a determinados bichos, no meio
sertanejo, são reminiscências também de fundo religioso, algumas facilmente identificadas com o pensamento bíblico. Está
dito no Levítico 11-2, que o Senhor dirigiu-se a Moisés e a
Arão, lhes dizendo quais os animais que os deveriam alimentar. Desse modo, permitidos à refeição sadia os quadrúpedes
EDUARDO CAMPOS
236
de “unhas fendidas” e cujo casco dividisse em dois, sendo
ruminante, exceto, por exemplo, o camelo, “que rumina, mas
não tem unhas fendidas”, declarado imundo (Lev. 11-4).
Na mesma ordem de exclusões o argarnaz, a lebre, o
porco; permitidos à refeição humana os animais existentes
nos rios e mares, com barbatanas e escamas. Excluídos, por
abomináveis, o quebrantosso e a águia marinha, o milhano,
o falcão, o corvo, a avestruz, a coruja, a gaivota, o gavião, o
mocho, o corvo marinho, o abutre, a cegonha, a garça, a
poupa e o morcego.
Interditado para refeição os insetos que voam tendo
quatro pés e cujas pernas traseiras são maiores. Deglutíveis
o gafanhoto devorador, a locusta, o grilo. Considerado imundo todo animal de “unhas fendidas, mas o casco não “dividido em dois, e que não rumine”; “todo animal quadrúpede,
que anda nas plantas dos pés”, a doninha, o rato e o “lagarto segundo a sua espécie”; o “seco, o crocodilo da terra,
a lagartixa, o lagarto da areia e o camaleão” (Lev. 11-3 a
11-30).
Abomináveis as cobras, pois estão sob esse aspecto englobadas em texto orientador do próprio Lev. (11,2) “Tudo que
anda sobre o ventre e tudo o que anda sobre quatro pés, ou que
tem muitos pés...” Aí firmemente condenado todo o “enxame de
criaturas que se arrastam sobre a terra” (Lev. 11-44).
Na proximidade do assunto vale mencionar a figura de
Sansão, homem tomado de paixões e vingativo. Tendo perdido a esposa filistéia para um de seus amigos, resolveu praticar inusitada vingança incendiando as searas dos filisteus. Ele
e mais os amigos, sob idêntico propósito, juntaram 300 raposas presas umas às outras pelas caudas, às quais em engenhoso artifício ataram fachos acesos, soltando-as em seguida em
meio às culturas dos desafeiçoados, onde se queimou tudo,
vinhas e olivais (Davis, 1983, p. 539).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
237
A mítica universal não dispensa a presença de animais
em suas representações de crença. Thiasi, na mitologia
germânica, é gigante em figura de águia; Fenria, outra divindade, um lobo gigante; Si Wang-mu, Rainha Mãe do Ocidente, na mítica chinesa, assume figura humana “com cauda de
leopardo e dentes de tigre”; Inari, deusa japonesa do arroz,
figura “um ancião de longa barba a cavalo numa raposa branca.” Prestam-lhe todas as homenagens as gueizas, “fiéis do
deus-raposa.” Tartaruga, javali, peixe, são encarnações alinhadas na teogonia bramânica da divindade denominada
Vixem, na mitologia indiana. Nesta, encontrável o deus-macaco Hamuruan. E mais, cobras, serpentes, todos estão integrando a vida de Garuda, que serve de “montaria” ao deus
Vixenu. Nesse mito de Garuda as serpentes em dado momento tornam-se piedosas, ansiando por beber ambrosia, que só
causa efeito miraculoso nos que se encantam em estado de
purificação (Spaldin, 1973, p. 69 e ss). ‘
A zoolatria de mais presença no mundo antigo é a
egípcia. Dela diz-se que “provocou o espanto dos gregos, as
crueldades dos persas, os sarcasmos dos romanos e as zombarias indignadas dos Padres da Igreja, no albor do Cristianismo” (o.c. p. 271) Em todos lugares havia deuses encarnando
“uma espécie protegida pelo tabu: bovinos, carneiro, cão, gato,
macaco, leão, hipopótamo, crocodilo, serpentes, falcão etc.”
(idem, ibidem).
Retomando o tema da repulsa, aliás discutível, do homem do povo às cobras, veja-se por outro ângulo – como
referido já em algumas passagens deste capítulo – a utilização
dos répteis pelo sertanejo a proveito próprio. Não difíceis de
encontrar os exemplos do uso de gordura (banha) de cobras
venenosas e até a ingestão da carne destas em terapias sobremodo estimuladas, além das recorrências mágicas ao seus
guizos etc. Não de todo incomum a utilização da cobra de
EDUARDO CAMPOS
238
veado em substituição a felinos domesticados, para cumprir a
tarefa exterminadora de ratos em casa e armazéns comerciais.
A papa-ova alcança o mesmo uso, como o cancão ensinado
a acabar com as baratas e grilos. Noutra seqüência de aproveitamento, vale nomear a marreca e o tetéu, criados em
galinheiros, de asas aparadas, servem para alertar os seus
donos da presença de visitantes indesejáveis.
O cancão ostenta outra qualidade: é capaz de lutar
contra cobras, impedindo-se de entrar na casa onde o criam.
Defensor ideal do lar, capta e toma para si as doenças que
ameacem acometer os seus habitantes.
O guaxinim, passível de domesticação, se cuidado desde pequeno, funciona também como perseguidor implacável
de ratazanas.
Outros animais nos orientam. Entremostram-se curiosos e bem aprendidos na maneira de aproveitar a própria
moldura natural em que se inserem para defender-se dos
imprevistos clímicos e simples alterações meteorológicas. Nesse caso, o admirável joão-de-barro, previdente em instalar
sua vivenda estruturada engenhosamente de argamassa e detritos, com a abertura voltada para o poente, a intuitos de
evitar que se lhe arremeta de ninho adentro a água da estação pluviosa.
Como o meio ambiente, principalmente sob a pressão
dos verões prolongados, estirados e secos, importa para os
elementos da fauna nordestina. Esses em muitas situações,
entregam-se como que a “um sono estival, análogo à hibernação” – anotou um grande estudioso da fisiografia do Ceará; possibilitando “ao animal atravessar a estação que lhe não
é favorável à existência pela d eficiência de umidade, com
um gasto nulo ou quase nulo deste elemento. Entre os peixes, têm-se um exemplo notável nos caris ou cascudos que se
enterram na lama quando as lagoas secam, e assim aguardam
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
239
as águas da estação futura. O mesmo se dá com os batráquios,
como é vulgarmente sabido: com alguns répteis e com os
insetos etc” (Pompeu Sobrinho, 1962, p. 199).
O povo sabe que em certos bichos há um quer que
seja mais de “astúcia”, “jeitinho” ou “inventiva”, para escapar
aos seus perseguidores, por exemplo. Nessas horas uma ou
outra espécie usa de disfarces (mimetismo) para esconder-se
e o caçador não lhe identificar o esconderijo escolhido. Assim
ocorre com o camaleão que, coincidentemente com a época
das chuvas na região, conserva-se verde, a cor vistosa,
propiciadora de artifício salvador, pois trepado nas árvores
clorofiladas intensamente consegue pôr-se fora da mira das
armas. E pelos verões alongados, quando o sol guloso cresta
a copa das árvores e desfolha as decíduas, de modo agudo
nos meses de setembro a dezembro, outra ajuda providencial
a esse esquisito (mas saboroso) réptil, desveste-se do verde
vivo de antes, tomando indumento de coloração entre o amarelo queimado e o próprio escuro fusco.
Pássaros e bichos do mato, afiança a sabedoria popular, alertam-se a si e ao homem para as alterações do tempo,
e nisso muitos vezes se condenam, denunciando o lugar em
que estão. No primeiro exemplo são múltiplas as situações de
formigas que mudam o ninho, baratas que voam do mato
para o interior das residências etc., etc. Sob tal contexto
notadamente os macacos (guaribas) que roncam prenunciando a quadra chuvosa. A esse aviso animal, juntam-se por
certo outros vários com a mesma evidência, testemunhou
Richard Burton: “...o ajuntamento de borboletas em lugares
úmidos, o aumento dos concertos feitos pelos sapos, o chilrear dos cicadídeos, a mordidela das moscas mordedoras e o
canto do sabiá...” (Burton, 1983, p. 368).
Peixes também roncam. Burton, à margem do rio São
Francisco, observou a respeito: “O peixe chamado mandim
EDUARDO CAMPOS
240
estava acordado e roncava como um peixe-cabra. Essa fome
à tarde levou os barqueiros a concluírem que era sinal de
chuva.” (Burton.1983, III, p. 49).
Seguem o procedimento do mandim (adivinhando chuva?), que grunhe, o “cará bandeira (Mesonata insignis,
Gunther)”, espécie comedora de lama e considerado venenoso; e um loricarídeo, o cascudo, de carne apreciada e “muito
comum dos rios do interior” (o.c., p. 76).
Pelos rios, açudes e lagos, no chamado Polígono das
Secas, igualmente identificados como “roncadores” a curimatã
e a pescada. Esta, em águas mais profundas, faz ruído bastante perceptível à superfície...
Desse modo, voando ou se “assanhando” – o que quer
significar indocilidade, chiando ou tomando feição diversa
da comum em sua espécie, toda qualidade de bicho, no entender do sertanejo, manda o seu recado, avisa ao homem
como vai decorrer o tempo, se de boas chuvas, ou de muita
secura e angústia, e fome.
Poeta do povo, de apelido Lobo Manso, versejando “contra os profetas e experiências da chuva” do Cariri, alinhou cópia esplêndida de “avisos” de indivíduos da fauna da região:
De manhã canta o jacu
À tarde a rã rapa a cuia
O sapinho canta aleluia
Gargareja o cururu
Canta e apita o inambu
E o tempo abafado e quente
Geme o trovão no nascente
Nada disso faz chover
Depois de Deus não querer
Não há homem experiente
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
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Nem o xexéu cantando
Nem cupim criando asa
Nem aranha fechar casa
Nem pau-darco florando
Nem todo padre rezando
Os que existem no mapa
Nem o Bom Jesus da Lapa
Nada disso faz chover
Depois de Deus não querer
Nem mesmo as preces do papa
Nem o imbuá trepado
Nem formiga se assanhando
Nem seriema cantando
Nem o peixe bem ovado
Nem buriti carregado
Nem reza de inocente
Nem dia frio e nem quente
Nada disso faz chover
Depois de Deus não querer
Nem dia de São Vicente
Nem dia de São José
Nem peitica assoviando
Nem sabiá gorjeando
Nada disso eu tenho fé
Regula é se Deus quiser
Nem os anuns enxurrando
Nem capuxu se mudando
Nada disso faz chover
Depois de Deus não querrer
Nem mesmo o carão cantando
EDUARDO CAMPOS
242
Nem cantando o lagartão
Nem o besouro serrar pau
Nem gritando o bacurau
Nem voando o corujão
Nem besourinhos furar chão
Nem mata-pasto florando
Nem o caboré cantando
É bastante Deus querer
Nada empata de chover
Nem tanajura voando.
(Macedo, 1984, pp. 111, 118, 119)
Vai além a participação da fauna nordestina na vida
do homem. Animais, bichos como de comum referidos, estão
sempre participando vivamente das atividades e pensamento
do povo simples, sertanejo, que tem maneira própria de ver e
encarar os fenômenos que não sabe explicar. Assim, comparecem às histórias, às abusões, e persistem nas afeições de
vivência agrária, na nomeação de localidades, produtos de
trabalho, apelidos etc. A propósito escreveu Mauro Mota: “A
zoofilia é um sentimento comum. Vai de fio a pavio. Não se
dilui no modernismo. Pelo contrário: aí expressa-se num imaginário às vezes audacioso. Vejam-se alguns casos nordestinos. Os bichos de Manuel Bandeira, alguns criados de meia –
a andorinha, a cotovia, a aranha, os sapos, o boi...” (Mota,
1969, p. 20). Esses e outros coexistem com os que têm largo
trânsito na literatura regional, como se vai deparar n’A
Bagaceira, em cenário de pungente drama de pobreza e muito
sol, da Paraíba, em que o autor atribui aos animais circundantes
o dom de se comunicar com inteligência e voz. M. Cavalcante
Proença, em introdução à obra, destaca desse contexto o grito do xexéu, as risadinhas das casacos-de-couro e a “risada
da seriema (que) parecia um soluço.” A matreirice animal
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
243
está mais uma vez flagrada: a casaco-de-couro compondo “o
ninho com espinhos e gravetos” e o beija-flor nidificando nos
pés de urtiga, para ludibriar o homem. É também sublinhada
a preferência sensual das “piabas famintas, como as
pirambebas do rio do Peixe”, sabidas beliscadoras de “coxas
pubescentes.” (Almeida, o.c., 1988, p. XXXIV e 59).
Bicho nomeia livro de cordel; é jogo, o do bicho; nome
de país, cidade, riacho, lagoa, fazenda... Pontos de arte de
“rendas de bilros e almofada”, em anotação de Mauro Mota,
conforme as semelhanças chamadas “aranha, moscas, de rato,
mão de onça, papagaio, olho de jandaia, olho de pombo,
caracol; os padrões, ou de pinto, aranha na corrente, espinha
de peixe, casca de cobra, dente de caranguejo...” (o.c., p. 25).
Os animais participam da vida das pessoas em todos
os instantes, concorrendo para as alegrias da mesa com copiosas e saborosas guloseimas. Nada comparável, nesse caso, a
uma paçoca de carne de veado, batida firme em pilão de
madeira; a uns ovos mexidos de anum – simplesmente deliciosos; a avoantes assadas e flambadas em aguardente. A
tanajura (içá), abundante às primeiras chuvas, torrada e com
acompanhamento de farinha de mandioca é manjar difundido e apreciado. A propósito refere Sérgio Buarque de Holanda:
“Ainda em outubro de 1717, quando percorreu a capitania
em demando das minas, D. Pedro de Almeida e Portugal
encontrou quem lhe oferecesse, sem hesitar, antes com o mais
vivo empenho, ‘humas poucas formigas’, acompanhando meio
macaco. O macaco, explicou-lhe o obsequioso hospedeiro,
era a caça mais mimosa daqueles matos e as formigas, depois
de convenientemente tostadas ao fogo, comparavam-se à
melhor manteiga de Flandres” (Holanda, 1957, p. 66).
O tatu sabe a carne de galinha. Vai bem cozinhando
antes até amolecer para um assado providencial. Mesmo o
cassaco é reputado bom alimento, desde que se lhe dê
EDUARDO CAMPOS
244
também competente fervura, para desodorizar-lhe o fartum do couro.
São pratos de primeira: jacu e veado. E foram antes
disputados no Ceará, como boa alimentação, paca e cotia.
Por outra feição, a participação da fauna (como
inspiradora) é indissociável dos folguedos, das alegrias nordestinas. Faz-se presente às manifestações de contentamento
coletivo, por exemplo, quando forma o bumba-meu-boi e o
Vaqueiro lembra a ema:
Voa, voa,
Minha Ema,
Se tu queres avoar
A cabeça pra baixo
E as perninhas
pro ar!
Momento em que acode o coro, jocoso, a proclamar:
Olhe o pássaro que avoa
Peneruê (peneiro eu)
Lá no meu sertão
Peneruê
Todo pássaro avoa
Peneruê
Só a Ema não,
Peneruê!
(Campos, 1960, pp. 35-36)
Não de raro, à arrecadação de espórtulas para festejar
os santos de devoção popular, os foliões “batem tambor e
vão entoando ‘cantigas em louvor’ do padroeiro, ‘que nada
têm de religiosas’,” anotou José Carvalho:
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
245
Meu Carão está chorando
Em cima do matupá
– Por que chora, meu Carão?
– Porque não acho uruá!
Uruá, uruá!
Peixinho do fundo,
Uruá!
(Carvalho, 1973, p. 69)
No entendimento popular, os santos participam de pescarias e caçadas. Em Pitanga dos Palmares (Bahia), um rezador
na “Dança de São Gonçalo” cantava:
São Gonçalo foi pro mar (bis)
pescar seu peixe xeréu (bis)
vender por meia pataca (bis)
para comprar seu chapéu. (bis)
(Araújo, 1986, p. 207)
Os brincantes do cucumbi – folguedo para homem –
na Barra do Rio Grande (Bahia) lembra ainda Nélson Araújo,
identificam o anjo Gabriel como caçador:
Quem matou meu passarinho
foi um grande atirador
quem matou meu passarinho
foi um grande atirador
foi o anjo Gabriel
que o rosário mandou
foi o anjo Gabriel
que o rosário mandou.
EDUARDO CAMPOS
(o.c., p. 135)
246
Nas danças, principalmente, não faltam alusões
zoomorfas. Em Alagoas – freqüente no passado –; na do “caranguejo”, em que as moças empreendendo-a, volteavam a bater
palmas, e, em dado instante, arregaçavam “um pouco o vestido para mostrar a pontinha do pé” (Brandão, 1957, p. 44).
O mesmo estudioso do folclore nordestino escreveu a respeito: “Variedade especial de rodas de passeiro ou de valsar são
aquelas semelhantes ao ‘Arara’ das danças de parelha do salão,
em que um cavalheiro fica sem a dama e ao grito de ‘Arara’ toma
a primeira que alcança, mudando-se todos os pares.”
No Papagaio louro, a troca dos pares inicia-se no estribilho cantando:
Papagaio louro,
Do bico dourado,
Quem tem sua dama dança
Quem não tem fica parado.
(o.c., p. 47)
Em Acaraú, Ceará, a “dança da Aranha” teria sido “criada” – informa Nicodemos Araújo – por descendente dos
Tremembés: “A função tem lugar em terreiro amplo. Inicialmente forma-se um circulo com gente de ambos os sexos e
de qualquer idade, tendo ao centro o ‘chefe’ ou Cantador de
Aranha, com uma sanfona ou viola” (...) “A dança consiste
na rotação do círculo vivo (dos brincantes), em ritmo de baião”,
enquanto o “chefe” desfia o canto:
O lê lê, rapazeada,
Serra o pau e apara o pó.
Esta Aranha não é minha:
É do Xico Mossoró.
(Araújo, 1972, p. 218)
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
247
Por que Tremembés, como refere Nicodemus Araújo?
É que o Acaraú se originou da Almofala, seu primeiro povoado pelo século XVIII, aldeia habitada inicialmente por aqueles indígenas (idem, ibidem, p. 37).
E por esse fato pode-se identificar a “Aranha” com as
manifestações supersticiosas antigas, comuns aos primitivos
habitantes não apenas da região.
O prof. Adaucto d’Alencar Fernandes reproduz uma
“poesia selvagem” recolhida pelo general Dionísio Cerqueira
e cantada por índias moças, que lembra a influência da aranha nos folguedos tribais.
A aranha me mordeu,
A aranha me mordeu.
Longe, a aranha me mordeu.
No caminho de tua roça
eu andava atrás de um moço.
A aranha me mordeu.
Qua1 é o meu remédio, oh! moça?
Pele de gente, rapariga.
Me dê já o meu remédio
Senão eu morro e me vou.
A aranha me mordeu.
(Fernandes, 1922, pp. 139-140)
A aranha – acuda-se a tempo – tem sortilégios mágicos. A sua teia não deve ser removida, principalmente se
criada em canto de parede. Amalgamada com picumã é decisiva meizinha para golpe em mão ou em pé, no Nordeste.
Mas, retomemos o tema.
Alceu Maynard Araújo, ao assistir no bairro do Alecrim,
no Asa Branca, “um jongo” – o bambelô –, viu o folclorista
EDUARDO CAMPOS
248
Veríssimo de Melo, “exímio cantador de coco”, participar do
folguedo, cantando:
Eh! quem de mim tem pena,
diga quem de mim tem dó,
levaram minha patativa,
deixaram meu curió.
(Araújo, 1973, p. 75)
Um batráquio pouco receptível à convivência familiar,
no Nordeste, surge festejando na “Dança do Sapo”: Entra,
entra, sapinho / Faça uma cortesia / Para o dono da casa / E
pra sua família” (Pellegrini Filho, 1982, p. 82).
Luís da Câmara Cascudo no verbete piranha, do Dicionário do Folclore Brasileiro, transcreve curiosa informação de A. Americano do Brasil (Cancioneiro de Trovas do
Brasil Central, 273-274, São Paulo, 1925) sobre a Dança da
Piranha, folguedo daquela região: “Compõe-se de homens,
mulheres e até crianças que formam uma grande roda, saindo ao meio dela um dos dançantes, que executa passos
variados, tempo em que os da roda girando à direita e à
esquerda, cantam:”
Chora, chora, piranha,
Torna a chorar, piranha,
Põe a mão na cabeça,
Piranha!
Põe a mão na cintura...
Dá um sapateadinho,
Mais um requebradinho,
Piranha!
Diz adeus ao povo, piranha,
Pega na mão de todos, piranha!
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
249
“A tal piranha faz o que lhe mandam, chorando,
pondo a mão na cabeça etc. Por fim, conseguindo
agarrar a mão de qualquer dos da roda, puxa-o
para o meio do circulo, tomando-lhe o lugar.
Assim se continua.” (Cascudo, 1984, p. 621).
Até os quirópteros são lembrados pelo povo em seus
momentos efusivos. Em Olinda, Pernambuco, conta Paulino
de Andrade, em livro de memórias, o que era a animação do
Pastoril e o Presepense, ali, com o “carnaval dos morcegos”, à
frente a popular figura de Cícero Manta cantando:
O morcego bateu asas,
Mas não pôde “avoar”.
– Quem não tem prazer na vida,
Não diverte o “carnavá”.
(Andrade, 1962, p. 81)
Mas é na paremiologia que a fauna inspira, a enriquecer a conversação do dia-a-dia, quando a propósito de tudo –
da esperteza de vizinhos, armadilhas da existência, intenções,
falhas humanas, mentiras etc. – está sempre presente a
criatividade, o espírito observador e analista do sertanejo, ajustando sua opinião a julgamentos que vão do que é jocoso ao
que é sério. Múltiplas e inteligentes, nessas ocasiões, as sentenças proferidas, não de raro algumas apreendidas ou adaptadas do folclore de outros lugares, mas umas e outras, daí
por diante, cada vez mais adotadas na transmissão oral de
didática sem convenções nem métodos.
Desse modo juízos como estes:
“Cascavel quando não mata aleja”;
“Desgraçado é o bicho que o outro engole’;
EDUARDO CAMPOS
250
“Formiga corta longe de casa”;
“Cobra que não anda, não engole sapo”;
“Em terreiro de galinha, barata não tem razão”;
“Jabuti não pega ema “;
“Macaco velho não mete a mão em cumbuca”;
“Quem anda pela cabeça dos outros é piolho;
“Quem foi mordido de cobra, tem medo de minhoca”;
“Cachorro bom de tatu, morre de cobra”
(Mota, 1982)
Não diferentes dessas saborosas comparações e avaliações populares, envolvendo o mundo animal a interesse de julgamentos humanos, as sentenças colhidas por Fontes Ibiapina:
“Feio, que só ninho de jaburu”; “carrancudo
que só rabo de tatu”; “xexéu e rola-bosta, cada
um do outro gosta”; “em lagoa de piranhas,
macaco bebe água de canudo”; “barata sabida
não atravessa galinheiro”; “desconfiado que só
cabeça de jabuti”; “onde não há onça, veado
folga”; “quem gaba o toco é a coruja”; “urubu
pelado não voa em bando”; “conselho de raposa, mata galinha”; “quem nasce para tatu, morre fuçando”; “uma gambá cheira outra”;
“atravessado que só coração de peba” etc.
(Ibiapina, 1982).
Repisando: universal sem dúvida a participação de animais na vida do homem, de todas as formas, e, inclusive,
como suprimento de suas necessidades de provisão de boca.
Adorados em algumas circunstâncias como a vaca na Índia,
onde é considerada por todos a “mãe da vida”. Conta Marvin
Harris: “Em toda a Índia, pendem das paredes calendários
estampando belas e ornadas jovens, com o corpo de grandes
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
251
vacas brancas. Vê-se o leite jorrar das tetas dessas deusas,
meio mulher, meio-zebu” (Harris, 1978, p. 18).
O grande amor a outro animal está situado na Nova Guiné
e Ilhas Malanésias do Sul. Para os seus habitantes os porcos são
sagrados e devem ser sacrificados e comidos “em todas as ocasiões importantes, tais como casamento e funerais” (...) “E tão
irresistível a avidez pela carne suína entre vivos e mortos, que,
de tempos em tempos, organizam-se grandes festas e quase todos os porcos são devorados...” (o.c., p. 36).
São procedimentos de vinculação religiosa, como os
que sempre existiram desde que o homem se deu conta da
presença de seres animados. Por isso inusitado, mas característico dos séculos, a utilização de animais para o pagamento
de pecados. Desse modo, fato testemunhado por Fernão Mendes Pinto, no século XVI, no Japão, em solenidade religiosa
transcorrida no templo de Tinagoogoo, cuja vila ostentava
balanças em profusão onde se pesavam as pessoas cumprindo votos os mais diversos. “E a coisa que dava por si era
conforme ao pecado que tinha cometido.” (...) “Os culpados
na preguiça se pesavam a lenha, arroz, carvão, porcos e frutas.” (...) “E o pecado da soberba se pagava a peixe seco, e a
vassouras e bosta de boi...” (...) “O que pecou em falar muito
em prejuízo do próximo, sem lhe pedir perdão, ofereceu por
si na balança uma vaca, ou um porco, ou carneiro ou veado...” (Pinto, 1984, p. 482).
EDUARDO CAMPOS
252
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EDUARDO CAMPOS
256
CAPÍTULO IV
A ATIVIDADE PESQUEIRA, OS HABITANTES DAS
AGUAS E O FANTÁSTICO DO MUNDO AQÜÍFERO
OS ESTUDIOSOS que perscrutaram o passado do homem, geralmente atribuem maior importância às atividades venatórias, votando à pesca uma atenção simplesmente
circunstancial e, às vezes, pouco esclarecedora da captura
de peixes e seu aproveitamento na dieta da sociedade em
formação.
Mas, na verdade, os magdaleanos já a exerciam, afeitos
que eram à “apreensão de peixes através de artefatos próprios,
como linhas e anzóis, e utilização de arpões de pontas
destacáveis” esclarece Gordon Childe (Childe, 1981, p. 71).
Nas Américas, vale considerar: os maias, no chamado
Formativo Primitivo de sua evolução, 1000 a 860 a.C. “exploraram eficazmente a proximidade das águas salobras, ricas
em peixes, praticando a pesca das ostras, dos mangaios e do
mexilhão do lodo, apanhando caranguejos e tartarugas, e
perseguindo os iguanas pela sua saborosa carne e pelos ovos.
Nas lagoas e nos rios próximos pescavam o solho, o robalo, o
pargo e a lampréia” (Coe, 1971, pp. 44-45).
No Peru, os Primeiros Agricultores (2000 a.C.) “apanhavam o peixe com simples anzóis feitos de conchas e ossos, e com redes que tinham cabaças como flutuadores, e,
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
257
como pesos para as fazer mergulhar, seixos com um buraco
no meio.” (Bushnell, 1972, p. 36).
A utilização de ictiotóxicos, como os colonizadores vão
deparar na prática da captura de peixe entre os aborígines do
Brasil, ocorria com os maias, em Iucatão, no Pós-Clássico (aproximadamente de 1.500 a 1.200 a.C.), que lançavam entorpecentes na água e apanhavam o peixe à mão, à medida que aparecia
a flutuar. “Fora de dúvida: o peixe era nitidamente importante
fonte de alimentação na economia dos habitantes do alto Amazonas, por volta dos 3.000 a.C.” (Lathrap, 1975, p. 94).
O frade Andié Thevet, em 1555, durante a permanência no país, fez curiosas observações sobre a fauna ictiológica
do “rio Guanabara” e sobre o modo como os índios se desempenhavam no exercício da pesca, narrando então como
“fleicheiam o peixe” e puxam por “corda de algodão ou de
casca de árvore.” (Thevet, 1944, p. 169).
Há superstições também evidentes aí – do cação, que
os índios não lhe provavam a carne; do mesmo modo, da
tartaruga, pois sendo animal vagaroso, quem a comesse poderia tornar-se apático, pouco disposto às atividades normais
(o.c., p. 70).
Mencionada por Fernão Cardim a captura do peixeboi, do bigjuipirá (beijupirá), olho de boi, camurupig
(camurupim), pirambá, baleia, espadarte, tartaruga, tubarão,
peixe voador, tuninha, linguados e salmonetes, além dos de
peçonha. De algumas espécies, como do peixe-boi, aproveitavam-se as formações ósseas da cabeça, “duas pedras de
bom tamanho, alvas e pesadas”, que, tomadas com vinho,
serviam para atenuar a “dor de pedra” presumível obstrução
dos rins. Com a tromba do espadarte, à feição de espada, os
americanos iam à caça das baleias. Na vida tribal, usavam-na
com a estranha finalidade de açoitar os filhos, ou a lhes meter
medo (Cardim, 1939, p. 70 e ss).
EDUARDO CAMPOS
258
Em capítulo especial sobre a pesca, Luís da Câmara
Cascudo, no livro Civilização e Cultura, descreve os “utensílios haliêuticos”, dando-os por assemelhados no mundo inteiro. Enumera-os aí: “Redes pequeninas, puçás, jereré, mangote
(diminutivo de transmalho), que é rede para camarões”, e
mais: caçoeira, tarrafa, puçá de arrasto, landuá, covo, jiqui
etc. (Cascudo, 1983, p. 316).
Os índios pescavam em terra firme, ou embarcados, e,
nesse caso no Nordeste, por exemplo, utilizando toscas embarcações, as jangadas. Em cursos d’água, principalmente em
empoçados e lagoas, exercitavam a pesca com ictiotóxicos,
prática depredadora repassada aos sertanejos.
Em rigor, o colonizador português a seu turno não ignorava a pesca com ictiotóxicos. Em Portugal, o entroviscamento de peixes chegava a ser exercitado com privilégios
reais, estimuladores dessa condenável ação, pois se animavam as pessoas a que “povoassem terras hermas “através de
forais, como se vê no Conselho Trás-os-Montes, aí acrescentado: “quando o rico-homem for no rio fazer troviscata, que
eles lhe dem (dêem) huma merenda porretas (guisado de
alhos porros, segundo o Dicionário Morais) com vinagre, sem
mais outro foro” (Vasconcellos, 1982, p. 378).
Pelo ano de 1591, fazendo frente à ação devastante
contra a fauna ictiológica fluvial, conta Sérgio Buarque de
Holanda: “Os camaristas de São Paulo tentaram impedir a
destruição inútil de peixes”, proibindo que no “curso do
Tamanduateí se fizesse pescarias com tingui”, acordado em
sessão daquele ano o pregão em altas vozes “para que se não
desse tingui para o conselho e para o acusador...” (Holanda,
1957, p. 82).
No Ceará, ao longo do século passado, as Câmaras municipais impunham-se sobremodo vigilantes na tentativa, nem sempre bem-sucedida, de obstar os tinguijamentos. Desse modo na
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
259
vila de Canindé, em 1848 (Res. 474), proibindo o lançamento de
tingui nas lagoas; em Cascavel, da mesma forma, e em rios
(1849, Res. 502); “no Riacho do Sangue, excetuados os açudes
bem cercados” (1851, Res. 546); na vila da Barra do Acaracú, em
“lagoas e poços dágua” (1852, Res. 580), onde se ajuntava proibida a pesca “de linha nos meses de outubro até março entre
uma e outra carreira de currais de pesca”.
No Crato (1854, Res. 640), na vila de Santa Cruz (1854,
Res. 643); e, em Santa Quitéria (1860, Res. 959); na vila da
Imperatriz (1869, Res. 1.309) etc. e mais perto de nós, em
1890, em Missão Velha (Decreto 113, de 15 de dezembro do
mesmo ano), mantidas idênticas restrições.
Há peculiaridades interessantes no corpo de posturas
provinciais interioranas do Ceará. O pary, armadilha utilizada
na captura de peixes, proibiam-na as autoridades em Granja
(CE), e só permitida “nas partes não distem mais de um quarto de légua d’água salgada” (1846, Res. 373); na vila de Baturité,
em 1855 (Res. 744) interditava-se aos moradores as tapagens
“que proíbem a livre passagem dos peixes...”; na vila de Jardim, os moradores em 1866 (Res. 1.199) não deveriam fazer
“pescarias, cortunes e tudo que contribuísse para toldar as
águas de servidão pública...” Em Aracati (... 1871) era defeso
a “pescaria de rede de arrasto, curral (de pesca) ou outra
qualquer armadilha, a começar da boca da barra. ..” (Res.
1.391); no município de União, em 1870, “proibido pescar-se
no rio Jaguaribe” (Decreto no 14); em Boa Viagem as pescarias obedeciam a regime especial de disciplina, consentidas
“nas terças, quintas e sextas-feiras, e o pescador ‘só podia
pescar uma vez por dia’.” (Res. 1.531) etc.
De certo modo não será temerário afirmar que a população – pelo menos em Fortaleza (CE) – tinha muita dificuldade para satisfazer a dieta diária, problema que não parecia
contornado pelo abate de gado vacum, por esse produto ficar
EDUARDO CAMPOS
260
acima do poder de compra da maioria, ou por serem mais
generosos, e possivelmente mais fáceis, os produtos do mar.
João Brígido anotou: “as pescarias e consumo de peixe, tudo estava regulado de modo vexatório.” Os jangadeiros
– contei antes em Fortaleza Provincial: urbana e rural, seguindo opinião do fundador de Unitário – eram compelidos
pelas postura de 26 de outubro de 1811 a “ir ao mar em horas
apropriadas. Se não o fizessem, a Câmara punia-os com até
trinta dias de prisão” (Campos, 1988, p. 38).
Indiscutível estar no litoral, na extensa costa brasileira,
a grande estocagem ictiológica supridora da dieta comum
do povo. Descrevendo-a, no que nos toca, Eurico Santos
(Santos, 1977, pp. 26 e 55) nomeia quantas espécies são
encontradas a partir do que denominou de “costa atlântica
da região norte do Brasil”, onde se depara o robalo, a pescada
amarela, a tainha, a curimã, o serra, o xaréu, a enxova, a
pirapema, o mero, paru, a piramutaba, “que é a defesa do
pobre”, o bagre, o bacu, a pescada branca etc. além de camarões, caranguejos e siris.
A estocagem ictiológica do “nordeste oriental, capturada pelo ‘puçá de murada, para camarão; puçá de arrasto,
rede de cauda, candomblé’ e ‘arrastão de praia’, reproduz-se
na ‘costa atlântica do nordeste ocidental’” (o.c., pp 30, 31),
que começa, de norte para sul, com Maranhão e Piauí, e
prossegue com o Ceará, passando pelo Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, até Alagoas.
Nessa área o autor dá notícia de “aparelhos fixos” aproveitados para a pesca de mar, representados pelos “currais de
peixe”, que, no tocante ao Ceará, têm uma considerável tradição vivida nas posturas camerárias do século passado, disciplinando-lhes o uso.
Florival Seraine, ao pesquisar e estudar os currais-depesca de Paracuru (CE), repetindo informações pertinentes
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
261
tomadas a Alfredo da Matta, Otto Schubert e Oscar Gonçalves, anotou estarem registrados em 1944, no Nordeste, os
seguintes currais: “Ponta de Pedras (alguns), Maria Farinha
(cerca de dez) na Praia da Piedade, no Estado de Pernambuco;
e praia de Tambaú, perto de João Pessoa, na Paraíba (cerca
de cinco). Entretanto, há referência ainda a currais no chamado Canal Grande, perto do Trapiche da Barra, na Lagoa do
Norte, em Alagoas.” (in: “Boletim de Antropologia”, UFC, ano
2, V. 1, 1958, p. 29).
No aludido trabalho o professor Seraine inventariou
os peixes que se deixam aprisionar nos currais-de-pesca de
Paracuru: “Camoropim, xaréu, camorim, garajuba (preta e
amarela), enchova, pampo, carapeba, salema, sargo,
graximbora (aracimbora). Aparecem, no entanto, muitos outros, a saber: tamatarana, pirambu, carapiau, sabirré, biquara,
ariacó, curimã, pirocaia, cumbuba, caraúna, parum (paru),
parum dourado, ubarana, carapeba branca ou carapitinga e
carapeba-de-lixa, coró (amarelo e branco), garabebéu, frade, olho-de-boi, sardinha, arraia, serra, vermelha, pelada ou
saia-rota, pacamon, agulha-de-vela, sabão, arenque, mercador, barbado, galo, baicu (com a variedade baiacu-caixão,
áspero, de consistência dura), batata (batato, na dicção popular), gulosa (golosa, na fala dos pescadores), palombeta
(pelombeta, na pronúncia dos praieiros), solha, cangulo.”
(oc., pp. 30,31).
Profusa cópia de peixes. Abundantes os de outras espécies pelos cursos d’água, como no Rio São Francisco, que,
a começo do século passado, continuavam a despertar a atenção de viajantes ilustres. Spix e Martius dão notícias aí do
“pacu, surubim, dourado, congo ou cascudo, madrinha, pirãtamanduá, piranha ordinária e rondadeira, acari, mandi,
mandi-pintado, grumatã (curimatã), gorubina, piau, pocomo,
traíra, bagre e sarapó.”(Spix-Martius, 1981, p.97)
EDUARDO CAMPOS
262
Pelos sertões do Nordeste, onde os rios são intermitentes, nem mesmo no Jaguaribe, de longo curso, existem pacum,
surubim, dourado, por exemplo, mas naturais nessa precária
fauna fluvial a traíra, o muçu, a curimatã, o cará, o piau – e
destes os azuis, encontráveis inusitadamente no Rio Grande
do Norte; e assim por diante: – população ictiológica que
gera o que se pode considerar a dinãmica cultural da pesca
com implicações diretas no comportamento social das comunidades interioranas.
A ictiofauna dos sertões está nomeada nos versos de
Ignácio da Catingueira:
Os peixes de minha terra,
São piau e cangati,
Curimatã e traíra,
Piranha e Jundiaí,
Branquinha, cará, piaba,
Bico de pato e mandi,
Uiú ou cabeça seca,
Tamboatá e cari...
Eu tanto pesco de anzol,
Como mato de tingui,
O que escapa da tarrafa,
Cai dentro do meu jequi.
(Lamartine, 1980, p. 141)
Abundante a fauna ictiológica da costa nordestina. “Peixes de alto mar; peixes de água funda; peixes das pedras, que
não sendo os mais saborosos, são entretanto os mais bonitos e
os mais cheios de cores vivas”, conta Gilberto Freyre. Estes,
acrescenta, “tão bonitos que não se compreende que não sejam também os de melhor sabor: o aguiuba vermelho; o pirauma,
também vermelho; o tucano e o budião, azues. Mas não são. E
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
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é a gente mais pobre que fica com esses peixes mais bonitos
para seu almoço e para sua ceia com farinha de mandioca e
molho de pimenta.” (Freyre,1937, p. 57).
O peixe no Nordeste entra na vida da família. Variado
o seu aproveitamento no exercício curativo de enfermidades, de que decorrem receitas, ou orientações bastante curiosas como a que recomenda alguém que sofre de asma
cuspir na boca de um cará recém-pescado, e o devolver à
água, após fisgado. Mulheres que dão à luz só devem se
alimentar de peixes não “carregados”, isto é, daqueles sem
humores nocivos ao organismo, como traíra e piau, – anotou Alceu Maynard Araújo. Há mais: óleo de peixe elétrico
faz passar a dor de cabeça; o cavalo-marinho (hipocampus),
torrado e moído, dado a tomar a asmáticos, produz efeitos
terapêuticos. (Araújo, 1969, 183 e ss). Do guaiá (caranguejo
grande) que vive no mar – consignou Paulino Nogueira – “o
povo obtém excelente remédio para o fluxo das mulheres’.”
O dente do pitu, camarão encontrável em rios e cursos d’água
serranos, costuma ser atado “ao pescoço das crianças como
remédio para a dentição.” (Nogueira, in: Revista do Instituto
do Ceará, 1887, p. 379).
Sebastião Almeida Oliveira (Oliveira, 1940, p. 240)
inventariou: Peixe “engolido vivo ensina a nadar”, e nenhum
“resultado se consegue em pesquisa feita por ocasião de trovoada; os peixes abrigam-se em seus ninhos nesse momento.”
Os habitantes, ribeirinhos do São Francisco alimentam
curiosas abusões, qual o da traíra (hoplias malabarius, Bloch)
transformar-se em serpente, crendice originada presume-se
de seus antepassados, pois é comum ainda hoje aos índios
do Xingu a superstição de que os peixes são “sobrenaturais”,
impressionando-lhes vivamente a imaginação. (Rosado -Silva, 1973, p. 250, citado por Fenelon Costa, in: Suma Etnológica
Brasileira, 3, 1986, pp. 250, 251).
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264
Pelas margens do rio São Francisco, Louis Jacques
Brunet, 1858, tomou conhecimento da existência de um espécime ictiológico, o “peixe-de-chuva”. No dizer dos habitantes
das margens do rio, o peixe não foi jamais capturado ali, nem
nos seus grandes afluentes, e aparece apenas nos alagadiços
temporários formados pelas chuvas nas depressões e planícies. Esse pequeno peixe “teria cerca de um decímetro de comprimento, a forma da piranha e seria marcado de bandas
negras” (Rosado Silva, 1973, p. 251).
Os mehináku possuem e acionam curioso aparelho
zunidor, o “Matapú”, refere Maria Heloisa, que os estudou; e
o consideram peixe, de tal modo representado nele. É mais
provável que não tenha correspondente algum – acrescenta –
“na fauna ictiológica da região (alto Xingu), sendo distinto (o
instrumento) de peixes particulares e antes representativos de
todos eles” (o.c., p. 256).
As lendas, ou mais propriamente os contos míticos,
acompanham de perto o pescador, de regras especiais para
contactar os rios. Remeiro do rio São Francisco, antes de beber água tomada à correnteza, atira-lhe um pedaço de pau
para ver se as águas estão em movimento. Se o pau estacionar, não havendo correnteza, é sinal de que o “rio dorme.”
Nessa circunstância não se lhe pode acordar, pois de pronto
acodem os castigos da “Mãe d’água”.
No fundo do rio, por esse momento “os peixes se deitam e a ‘Mãe d’água’ vem para fora pentear os cabelos nas
canoas, as cobras perdem o veneno, e os que morreram afogados saem do fundo do rio, rumo às estrelas” (Antologia
Ilustrada do Folclore Brasileiro, s.d., 2a edição, p. 215).
O mar, na costa nordestina, confere especial contribuição ao que se denominar de ictiofauna da impostura. São
relatos de peixes misteriosos, desconhecidos, que se deixam
entrever nas noites de luar, ou que, mortos, acabam por vir
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
265
encalhar na orla marítima, ou ainda, em situações mais raras,
fisgados acidentalmente.
Nada a admirar a narração desses acontecimentos, que
provocam romarias ao local em que tais criaturas se acham: e
não tardam notícias em jornais, a conversa pelos povoados e
praias, a exagero elástico dos contadores de prosa.
O europeu – acode a dizer Luís da Câmara Cascudo
“transferiu para os peixes brasileiros as lendas e os pavores
locais, ampliando-os na relatividade da paisagem tropical”
(Cascudo, 1984, p. 606).
Persevera no Nordeste ainda hoje um quer que seja de
adesão às idéias de ancestralidade indefinida, mas que submete o homem do povo à aceitação de manifestações
inexplicáveis.
Em março de 1962, à praia “Rancho-do-Peixe”, de
Acaraú (CE), foi ter um “peixe descomunal”: de cor vermelha,
sem escamas, media 45 palmos de comprimento por metro e
meio de largura, e dentadura somente na maxila inferior. Só
um dente do “monstro”, incompleto, pesou 75 gramas (Araújo, 1972, p. 175).
Às vezes um golfinho pode tomar tamanho incomum
na linguagem de pescadores. Nas praias de Trairi (CE), recenseou D. Antônio de Almeida Lustosa: para darem idéia do
tamanho do colosso marinho” que encalhara no lugar, os
pescadores “diziam que dois homens, montados a cavalo e
colocados um de cada lado do golfinho, não se viam um ao
outro” (Lustosa,1952, p. 64).
O mar concorre também com seu fascínio, motivando
estórias. É por ele que anda o hipocampo, e, cavalgando-o, a
Janaína:
“Mesmo no fundão do mar, Janaina fingiu que
tinha cansado para ver se os peixes eram seus
EDUARDO CAMPOS
266
amigos” – narra Souza Carneiro –”Todos se ofereceram para tanger a ‘Mãe d’água’ no lombo
até a casa dela. A baleia, o tubarão, o boto, e
ela foi recusando com muita tristeza deles. Por
fim, ela cantou quando viu o último”:
Cavalinho, meu cavalinho,
Senhor das areias do mar,
Prepare o seu cangotinho
Para Janaina voltar.
“O Cavalo-Marinho enfreiou-se todo e ela montou nele, que partiu num carreirão desempedido...”
E assim, por diante, o “Cavalinho do Mar passou a ser
encantado” (Carneiro, 1937, p. 323).
Não há pescador pelo Nordeste que não tenha uma
história (ou estória) sobre o “cavalinho”. Principalmente quando se reúne em prosa descontraída para passar o tempo, instante em que pontuando relembranças de um e de outro,
apelidos, maneiras-de-dizer, venturas e desventuras, abusões
e o mais, valorizam o vocabulário popular, ao qual não faltam sentenças, provérbios, de profuso adagiário que dá pouca atenção à presença dos tempos modernos.
Aprende-se então, observou Mariza Lira, que “espetadela
de peixe, quando se o está limpando, é perigoso e só se evita
o perigo, furando o olho do peixe e passando a gosma no
lugar’’; do mesmo modo: “mulher grávida, se comer peixe,
gerará molas, salvo se beber água após, para separar” (o.c., p.
277).
À feição do que são e fazem as criaturas do mar, ou
dos rios, formam-se idéias geralmente depreciativas quanto
às pessoas. Assim, baiacu representa criatura bastante gorda;
boca de arraia, apelido aplicável a quem possui boca grande;
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peixe podre, é ente desprezável (idem, ibidem); E mais: olhode-peixe-morto traduz o aspecto de indivíduo indolente; bucho de piaba, passa a ser quem não guarda segredo;
boca-de-aruá nomeia pessoa de lábios curvos; arraia-miúda,
gente sem a menor importância; piranha, mulher atirada, de
mau gênio, ou muito animada para os prazeres sexuais etc.
(Mota, 1969).
Leonardo Mota recolheu para o seu “Adagiário Brasileiro” curiosas sentenças com trânsito ainda hoje por todo o
país: “Cada qual puxa brasa para sua sardinha; caranguejo
não criou pescoço pra não ser enforcado; peixe esperto come
peixe pequeno; anzol sem isca, peixe não belisca; quando o
mar briga com a praia, quem apanha é o caranguejo; peixe
podre, sal não cura; pela boca morre o peixe; camboatá é
que suja a água; o que cria, cair na rede é peixe; pai fazendeiro, filho doutor, neto pescador, etc. (Mota, 1982).
Gonçalves Fernandes, entendido no folclore do Nordeste, notadamente de Pernambuco, inventariou uma série
de proibições do “faz-mal”, nas quais vislumbrou “documentário de mais interesse mesmo ao psicanalista propriamente que ao etnólogo”, é, desse modo nos tabus que
influenciam o povo “a previsão de atos simpáticos ou que
se poderiam transformar em instrumento de inclinações inconscientes a que se fariam objeções e censura.” Debaixo
desse conceito, anote o leitor alguns dos “faz-mal” do folclore nordestino, no que nos interessa por esta parte: “assobiar de noite chama cobra”; “comer peixe misturado com
carne – crescem as orelhas”; “matar lavandeira – porque
esse pássaro lava a roupa de Nossa Senhora”; “matar urubu –
dá lilíu”; “matar grilo porque grilo traz dinheiro”; “matar sapo
cururu sem ser duma pancada só”; “espanar teia de aranha
– espanta tristeza”; “sapo cururu debaixo da cama – é agouro”
(Maior-Valente,1988, p. 93).
EDUARDO CAMPOS
268
Extensa e curiosa a paremiologia, ou simples maneiras
de dizer do povo, apropriando mais lições referenciadas pela
atitude de pessoas e animais: como “siri debaixo da lata” (a
referir pessoa barulhenta); “chuva de matar sapo afogado” (para
explicar aguaceiro despropositado); “língua de peba” (qual
bainha de faca); “cágado de botas” (depreciando pessoas
baixotas, calçadas desajeitadamente) etc. (Cabral, Costa, Mota
e Santiago, apud Souto Maior, 1988). E mais: “afogar o bagre”
(alusão a coito); “camarão que dorme é levado pelo rio”; “em
terra onde não há carne, espinha de peixe é lombo”; “jacaré é
pra quem é e não pra quem quer”; “Quem tem medo de jacaré, tira o covo fora d’água”; “liso que só muçu”; “cada dia, o
peixe amarga o caldo” etc. (Souto Maior,1988).
Continuando: as águas do mar dão produção e ofertam
ao homem determinadas “safras” que se verificam, como refere Câmara Cascudo, “por ocasião da passagem dos cardumes, tainha, albacoras, voadores, agulhas...” Por esses dias
“das piracemas” o mar adquire dos pescadores batismo especial: “água do voador”, “água das albacoras”, “água das
tainhas”, “água das agulhas”... (Cascudo, 1957, p. 47).
O mar possui outros inquilinos. Além de “caranguejos,
lagostas, lagartas, algas, estrelas, planctons, cetáceos, formas
elegantes e monstruosas”, como em linguagem pintoresca alinha Hélio Galvão; pássaros. Sim, pássaros que “moram lá
mesmo” – escreve – “em companhia dos peixes. Pássaros que
vão lá todos dias, como pescadores, mas voltam todos os dias
como eles” (Galvão, o.c., p. 70).
Conversando com os pescadores, Hélio Galvão quis
saber se “esses pássaros pousam nas embarcações, na ponta
dos mastros, que é o ponto mais alto...” Responderam-lhe
negativamente. De todos, só a gaivota, “menos arisca.” O
“guarapirá se aproxima em atitude de luta, tentando arrancar
o peixe do anzol...” (o.c., p. 71).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
269
Pois bem, se o poeta é um sonhador, e povoa o mar
com pássaros, não se pode negar o direito de cada um ver as
coisas sob a dimensão de seu sentimento. Por isso, nada de
estranho imaginar alguns, em Portugal, indo ao mar não para
pescar, mas para “caçar”:
Fui ao mar, cacei um peixe,
Cacei Santa Margarida;
Ó Santa da minha alma,
Que estavas no mar metida!
Se, fores ao mar caçar,
Leva redinhas de linho,
Hás-de-me cair nos braços,
Hás-de-ser o meu peixinho.
(Vasconcellos, 1982, V. 5, p. 277)
Francisco de Barros Júnior, tantas vezes mencionado,
escreveu: “A pescaria, ou antes, a caça de traíras praticada no
inverno, é muito interessante. Faz-se sem anzol ou rede, apanhando-se o peixe com a mão...” (...) “Enfia-se o braço
tateando de baixo para cima, com a mão espalmada na mesma direção (da traíra). Quando lhe tocamos o ventre, vamos
docemente ajeitando os dedos de forma a poder segurá-la
logo abaixo da cabeça...” (Barros Júnior, 1a série, s.d., p. 48).
O pescador, em particular o dos sertões, observa procedimentos também especiais para capturar peixes, a começar da
posição que elege a se dispor pescar de vara ‘(linha e anzol),
ocupando sítio em que a sua própria sombra não se projete
nágua. Está convencido de que os peixes não apenas enxergam
muito bem, mas igualmente percebem qualquer ruído.
Nunca leu, por exemplo, os estudos do prof. Henri
Piéron, nem imagina que exista uma psicologia zoológica. No
EDUARDO CAMPOS
270
entanto o hábito de pescar lhe ensinou que os peixes têm
bastante sensibilidade e às vezes, como vimos antes no caso
da traíra, rendem-se a agrados bem localizados... Aquele professor francês esclarece a propósito: “As conclusões negativas
de numerosos autores (à sensibilidade dos peixes) não justificam a sua ausência, pois provável dever-se a falta de reação
ao fato dos estímulos não interessarem ao seu comportamento, e não que sejam (eles) sensorialmente ineficazes.” (Piéron,
1951, p. 57.
Sabe o sertanejo, que pesca de anzol, os cuidados a
observar. Entende que para apanhar traíra, por exemplo, a
isca deve ser de carne sangrenta, e, na falta dessa, trapo de
pano vermelho. O piau tem suas esquisitices em matéria de
olfato: não obstante ser frugívero, aprecia sobremodo iscas
de toucinho e coração de boi...
Conquanto a maioria das pessoas imagine que ruídos
perturbam de modo generalizado os peixes, as traíras até que
gostam de ser molestadas, o que se faz, a esse título, malhando a água pelo menos três vezes com a vara de pescar... A
tanto, não de raro, irritado, o peixe abocanha a isca.
Já noutra modalidade de pescaria, de “batição” em
“tapagens”, que significa aproveitar a população que ficou nos empoçados, o que funciona mesmo é o atordoamento do peixe pelo ruído desordenado dos que malham
as águas paz’ a fazer subir à tona o que restou entocado,
na defensiva.
Fáceis, vão sendo capturados os últimos sobreviventes:
piau, cangati, traíra, muçum, cará, mandi, cascudo e até pitu,
descido de alguma serra. O procedimento lembra a pescaria
dos índios, quando empreendiam o tinguijamento das águas.
O trivial, o pequeno, pode parecer grande nas histórias
de peixes ou “bichos” que aparecem em rios e mar. A memória dos viajantes está cheia de saborosos exageros que assinaO PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
271
lam alguns caprichos (melhor, fraquezas) da inventiva do
homem.
Depois de referir, citando Plínio Livro IX, 12), onde
está afiançada a existência “nas costas das dias e nas ilhas do
Mar Vermelho” de tartarugas, cujos cascos davam para “cobrir
uma casa habitável”, nada fica a dever o que escreveu Jean
Léry sobre o quelônio que ele e seus companheiros de viagem consumiram a bordo: “Era tão grande, tão grande mesmo, que forneceu copioso jantar para oitenta” comensais
(Thevet, 1961, p. 66).
Estivesse presente o arguto observador, que foi D. Frei
Cristóvão de Lisboa, teria também ajuntado algumas revelações inusitadas. O inteligente evangelizador esteve entre nós
no Maranhão, em 1625. Se não exagera em tudo que narra,
confirma as más-artes do baiacu, por exemplo. É ver para crer:
“Baiacu é um peixe de palmo de comprimento e muito perigoso de comer para quem não o sabe com certeza e para quem o
não conhece: quem o quizer comer há de meter a pele fora e
tripas, e fel, e lavá-lo muito bem; eu vi um francês em uma
aldeia comer de um com a pele e veio doido e cego dois ou
três dias, e foi necessário amarrá-lo; e quem comer o fel misturado com alguma coisa há de morrer logo, e como está em
terra incha a barriga como sapo; ele é de cor parda e verde e a
pele é muito áspera e é pintado.” (Lisboa, 1985, p. 15).
Mas nem tudo é tão mal como se pensa. O Baiacu, atualmente é peixe aproveitado em atividade pesqueira, empresarial,
no Espírito Santo. E a piranha, apesar de execrada por todos
pela sua incontida voracidade, é prato apetecente à gula.
E se dizer que Theodore Roosevelt a malquistou com
imoderada ênfase, dando-a de “focinho curto, olhos malignos, sempre atentos e mandíbulas cruelmente armadas, a
bater” (...), “a fisionomia de” (...) “ferocidade demoníaca”
(Roosevelt, 1943, p. 41).
EDUARDO CAMPOS
272
Gostosa depois de preparada e servida à mesa, mas
terrível inimiga do homem e dos animais dentro d’água, atenta à mais insignificante presença de sangue. “Houve em Mato
Grosso uma horda de selvagens que por andarem com uma
bolsa de couro protegendo-lhes as partes pudendas, receberam dos portugueses o nome de porrudos. Esses sacos de
couro eram usados pelos bugres, constantemente, para evitar
os inúmeros casos de castração que sofriam nas caçadas em
que necessitavam entrar na água” (Cascudo, 1984, p. 621,
citando Visconde de Taunay).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
273
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1835, 1865, 1870 e 1879), apresentação de F. Alves de
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EDUARDO CAMPOS
276
CAPÍTULO V
A ESTRATÉGIA DO CAÇADOR. O EXERCÍCIO DA
PESCA E DA CAÇADA PELO ÍNDIO E O SERTANEJO
PARA SOBREVIVER ao longo de sua evolução, principalmente a inícios dessa como desfrutante do meio ambiente, o
homem aprendeu a desempenhar-se no exercício da caça e
apreensão de animais quer terrestres, encontráveis na superfície do chão, ou em sobrevôos a este; quer dos que vivem em
seu habitat, as águas.
Antigamente, à falta de armas apropriadas a caça desenvolvia-se baseada no elemento surpresa, originando-se por
então em forma de espera, que, segundo Lacher Nunes, evoluiu depois para “os meios de captura, nos quais o homem
tem atitude passiva. Por isso distiguem-se as armas (de choque, arremesso e fogo); as formas de caçar (de espera, de
salto ou perseguição); o uso de meios de atração (chamarizes
e negaças); o uso de animais auxiliares como cães, aves de
rapina (altanaria), leopardos caçadores, cavalos, elefantes etc.,
etc. (Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Vol. 4., p. 335).
Compreensível: o homem também caça com auxílio de
animais em todas as partes do mundo, chegando a utilizar o boi
domesticado para acompanhá-lo, à feição de disfarce ou esconderijo móvel, ao abate de perdizes e outras peças do campo.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
277
Na caçada de altanaria tradicionalmente recorre a açores,
falcões e gaviões. Utiliza-se do cavalo, como ocorre no Brasil
(Rio Grande do Sul), ao abater ou apanhar a ema, pondo em
ação a boliadeira.
Vai às atividades venatórias servido de cães e furões.
A propósito narra J. Leite de Vasconcellos: “Vem de
longe o uso de furões na caça, como se vê em Lages, onde se
diz: ‘... foron (foro) 2 denários’.” E também se fala em furão
num privilégio de 1.357, concedido a besteiros de caçarem
com cães, bestas e furões, em todos os lugares, exceto nos
que forem coutados “pera aver prazer en elles” (Vasconcellos,
1982, p. 311).
No Brasil, os aborígines adotam superstições pertinentes à caça, aproveitadas em favor do exercício venatório. Em
ação cinegética, além de se pintarem, atam plantas de efeito
mágico no arco do que lidera o grupo de caçadores. E “mastigam a folha de uma planta chamada Kiegue ett arureu dos
passarinhos as folhas, para que, ao encontrarem a onça, esta
se torne menos forte e seja vencida” (Colbacchini – Abisetti,
1942, p. 81).
Os bororós praticam a caça social de modo infalível, e
no dia da morte de um índio – recensearam os mesmos autores citados. O ato tem igualmente sentido religioso e “explicado de modo vário pelos índios. Alguns dizem que matam as
feras para vingar a morte do índio” (o.c., p. 81).
A atividade cinegética entre os indígenas insere-se também no ritual fúnebre. Morto o índio, dá-se a invocação de
sua alma “para saber onde se encontra a caça.” É como ocorre igualmente com os Bororós (o.c., p. 156).
A peça obtida em louvor do falecido é entregue a seus
familiares e comida em comum. Em ato contínuo “um parente do morto dá o’poari’ a um caçador, uma cabaça da qual
obtém sons, o’canto de aroe’. Com essa prenda mágica
EDUARDO CAMPOS
278
o’caçador tem o dever de matar uma fera, jaguar, jaguatirica,
como reparação ou mori, dado pelo mau espírito bope, aos
parentes do morto...” (idem, ibidem).
Localizar a caça exige também do caçador argúcia e
aprimoramento da técnica venatória. Daí a aprendizagem de
procedimentos especiais por parte dele ou dos que o acompanham como auxiliares.
D. João de Portugal e dos Algarves e Senhor de Ceuta
é autor de curiosa obra – Livro da Montaria – inserido entre
os cinco trabalhos denominados Obras dos Príncipes de Avis.
Encarecido aí a maior atenção dos monteiros ao rastro
do porco montês, inclusive com este próprio, assim como
indicados os procedimentos de medição que concorrem para
a compreensão do tamanho do animal perseguido. “Compre
ainda muyto ao monteiro” – está escrito – “conhecer de que
horas eh, he muy maao em no homem poder dar a conhecer
em escritura aquelles que daprender quiserem...” (João de
Portugal, 1981, pp. 60-63).
O homem do sertão, pelo Nordeste, maneja também
surpreendente capacidade para traduzir os sinais deixados no
chão – quer molhado, quer enxuto, ou sobre ervas – dizendo
qual a espécie de animal, se bípede, quadrúpede ou réptil –
que passou, a que horas, de onde vinha e para onde foi...
Sem dúvida possui o sertanejo grande senso de observação, exercendo-o com acuidade e exatidão. “Pelo comprimento do ‘cachorro’ (haste que liga a roseta ao pé) da espora
de um vaqueiro que lhe aparecesse, sabia se ele era do sertão
descampado, cheio de agreste, de limpos, de tabuleiros, de
carrascais, de grandes pastagens verdes alcatifando as várzeas, de ribeira inçada de grandes matas e de catingas profundas. Com efeito, num sertão descampado o vaqueiro pode
andar com grandes esporas, mas numa ribeira cheia de matas
não pode” (Barroso, 1962, pp. 140141).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
279
E então, para identificar com precisão a que animal
pertence o rastro observado antes, é mestre. Gustavo Barroso
ouviu esta explicação a um homem do campo, que reconheceu ser o animal procurado (sumido) uma besta torta do
olho direito, castanha escura e de saia comprida: “... andando a cavalo muito cedo, de madrugada, pelas várzeas, vira
rastros de um arumal de fora. Sabia que era uma égua,
porque não pisara na urina; que era cega do olho direito,
porque a pastagem da vereda só estava comida do lado
esquerdo, que tinha rabo comprido, porque deixava fios
agarrados às tiriricas rasteiras, e esses fios eram castanhoescuro...” (o.c., p. 141).
O caçador, mais do que o pescador no Nordeste, adota
práticas supersticiosas para ser bem sucedido nas caçadas. Por
esse entendimento, não permite sua arma (espingarda) apontada para aves tidas e havidas como azarentas, quais urubu e
anum. Considera interditados os disparos contra gato, gavião e
garça. No curso de sua jornada venatória não deve preocuparse em contar as peças abatidas, nem marcá-las, como usam
algumas pessoas fazer na coronha da arma. Ainda que não
dado à prática de mascar fumo, é-lhe aconselhável conduzí-lo
em naco ou pele, no bolso, como engodo para aplacar o furor
do caapora, assim como de todo conveniente não ir ao mato, à
procura de caça, no Dia dos Mortos. Guilherme Studart registrou: “Quando o pássaro fica morto em cima da árvore, após o
tiro do caçador, basta virar para baixo a boca da espingarda.” E
também: “Para pescador do alto-mar ser feliz e apanhar maior
quantidade de peixe, deve levar consigo um pedaço de osso
de menino pagão, e nunca deixá-lo de enfeitar com fita de
santo.” (Cascudo, s.d., p. 315, 317).
Oswaldo Lamartine tratando de caçadas e caças, e de
animais de interesse da prática venatória, escreveu: “Das oito
espécies extintas no Seridó – 13o da fauna cinegética local –
EDUARDO CAMPOS
280
é fácil concluir tratar-se de: a) animais mais perseguidos pela
beleza exótica, de menor prolificidade e que tem seu habitat
na mais densa mata; b) os de boa carne, capazes de reforçar
o carente cardápio sertanejo mormente na época das secas
(cotia, jacu, caititu e veado); c) os predadores de outros produtos comerciáveis, embora de carne (ou ovos) inferior –
como ema, que teve sua defesa natural reduzida após a divisão das propriedades; d) os mais perseguidos por serem daninhos à criação (onças).”
Por diante o autor de Sertões do Seridó anota: “de 21%
das espécies arroladas de animais ‘extintos em alguns municípios e muito raros’ noutros, o gato maracajá ‘está desaparecendo’, o papagaio, a jandaia, o urubu-rei, o macaco, o
tatu-bola, o sagüi e o tamanduá ‘estão extintos, em percentagem que abarca de 15 a 50% dos municípios’. Finalmente, a
onça vermelha –, embora tratando-se de animal sabidamente
andejo’ – é ausente em sete municípios e raro nos oito restantes” (Lamartine, 1980, pp. 211 e 212).
A caçada, a exercita o homem de todas as maneiras.
Com armas convencionais, de fogo central; com atiradeiras
(estilingues), fundas, bodoques, besta, arco e flecha etc. E
por outros meios, mais engenhosos. Dessa maneira, por intermédio de armadilhas, quais os fojos para preás, mocós
etc. E como se tal não bastasse, o caçador além de desempenhar-se com as formas tradicionais de caçar, utiliza-se de
aguardente (cachaça) para a captura de gambá e raposa...
Armas, ardis e abusões. Armadilhas astutamente preparadas, tudo enfim praticado minuciosamente para apreender
o animal desejado. Artefatos de madeira, e varas; uns engendrados com alavanca, cordas, pedras e piso falso. “Até rituais
indígenas ligados à arte venatória sobreviveram deformados,
secularizados, algumas vezes despidos de sua significação primitiva.” (Holanda, 1957, p. 69).
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
281
Não raro “elementos tirados à religião católica incorporam-se grosseiramente” às crenças herdadas aos aborígines. Desta
maneira “a bala de cera benta, que serve para prostrar de morte a caipora, se atinge bem no umbigo; o laço de rosário, que é
o único meio de aprisionar o saci...” (o.c., p. 70).
As armadilhas: arapuca armada na proximidade dos
roçados ou na orla do mato; perto d’água para apanhar a
sericóia; o chiqueiro, disfarçada armação com engodo largado em seu interior; o fojo – que já referimos – lançado em
cima de cavidade no chão, ao qual desce o animal, capturado, depois de deslocar a prancha falsa na tentativa de ultrapassagem; o mondéu etc., etc, e mais redes, ratoeiras, tudo
como está em extenso inventário a respeito, recenseado por
C. Ribeiro de Lessa (Lessa, 1944).
Apreende-se; mata-se a caça de todas as formas; de
facho, a pauladas, por afogamento, principalmente avoantes
na ocasião em que “descem” à bebida. As vezes custa crer a
quantidade de peças obtidas por esse processo de caçada à
avoante (Zenaida auriculata noronha, Chubb), que exige
definida estratégia.
Há tempo de espera para abater a avoante no “pombal” , lugar em que demoram por dias e até mês. Caça noturna, exercitada por “facho”, modalidade também chamada
“facheio.” Um dia o homem do campo, o sertanejo, identificou no ar, em vôo de grupo, a presença das “pombas de
bando.” Noutros pontos, mais pessoas também as viram, o
que bastou para se entenderem uns com os outros e descobrir onde “desceu” o “pombal” para dormir. Por esses momentos, alvoroçam-se jovens e idosos, e se preparam para o
dia (noite, melhor dizer) de atacá-lo a “facheio”.
Marcada a noite da caçada, os homens se reúnem para
empreendê-la; à mão balaios, bacias e sacos de aniagem em
que deverão acomodar as peças recolhidas, e também o caEDUARDO CAMPOS
282
cete, grosso pedaço de pau de pelo menos um metro e sessenta centímetros de comprido, dimensionado para atingir,
em repetidos golpes, as aves empoleiradas na dormida.
À frente do bando (ou bandos) caminha o guia com
uma lamparina grande, apagada, apetrecho indispensável a
essa inusitada excursão cinegética. Outros igualmente armados, portam idêntico artefato iluminante. Talvez dez, vinte ou
mais, que clareiam, os pavios ostensivamente acesos nas proximidades da área do “pombal”. Daí por diante, cumpre-se a
caçada, com o contingente humano avançando sob a luz das
lamparinas, e, de modo implacável, acionando os bastões.
Efetiva-se o morticínio, ato selvagem que culmina com o
destroçamento total do “pombal”.
De não se acreditar tenham resistido até ali as avoantes.
Gustavo Barroso é de opinião que durante a postura – escreve – as aves ficam sem o sentimento do medo. Por isso parece, em movimento intenso acodem ao pombal “cães, gatos
bravios, raposas, guaxinins, cassacos, gaviões, punarés, cobras; todos os esfaimados, todos os salteadores e todos os
gastrônomos. Começa a destruição: pombas estraçalhadas,
devoradas, sangradas; ovos, chupados, engolidos, espatifados! E elas nem procuram fugir entregando-se aos carrascos,
alheadas do perigo” (Barroso,1962, p. 86).
Tradicionalmente o caçador sertanejo é mais sensível a
caçada de espera, na qual aplica mil truques para o colocar
frente à frente com o animal perseguido. Caça veado ou onça,
demorando em jirau armado na copa das árvores, onde aguarda, à noite, que um deles se aproxime da ceva adrede preparada embaixo...
O cão sertanejo, nem sempre acompanha o caçador, e
se o faz, representa o êxito da captura ou abate da peça
desejada. Conquanto de bastante serventia, é aliado pelo qual
o interiorano não se sente agradecido.
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
283
Por oportuno o relato que Gustavo Barroso ouviu a
matuto e renarrou em Terra de Sol, a respeito: “Graças a Deus”
– desabafa o homem – “há dias em que eu passo bem! A
minha cachorrinha vai à mata, pega um preá e vem comê-lo
no terreiro. Eu tomo o bichinho, cozinho, e o como.”
“– E a cachorrinha?”
“– A cachorrinha rói os ossos ou vai atrás de outra
coisa. . .” (o.c., p. 69).
De causar inveja a quantidade de caça apetecente que
Spix e Martius contemplaram em sua. viagem pelo Brasil, no
século passado. “Assustados pelos viajantes” – escreveram –
“voam inúmeras famílias de pombas-rolas semelhantes a pardais, de moita em moita, e as pombas maiores (amargosa e
trocaz), ciscando no chão, apressam-se inquietas e a voar aos
mais altos topos do mato vizinho, onde ostentam, ao brilho do
sol, o esplendor metálico de sua plumagem; numerosos bandos de macacos gritam e assobiam, correndo de volta para o
cercado mato; os mocós, que andam pelos cumes das rochas,
se escondem rápidos entre as pedras desagregadas; as avestruzes americanas (emas), que pastam unidas em famílias, galopam ao menor ruído, como cavalhada por cima de arbustos,
montes e vales, acompanhadas pelos filhotes; as seriemas, caçadoras de serpentes, ora se somem no meio do outeiro, de
onde fazem ressoar o seu carcarejo enganador, que ecoa longe, semelhante ao do galo silvestre; o sobressaltado tatu-canastra (peba-bola) foge medroso correndo em torno, à procura de
um esconderijo, ou, achando-se em maior perigo, encolhe-se
na sua armadura; os estranhos tamanduá-bandeira e mirim galopam lentamente pelo campo e, quando seguidos de perto,
deitam-se nas costas, ameaçando o perseguidor com as suas
garras pontudas. Longe de todo o ruído, pastam na orla do
mato o elegante veado, a anta escura, ou algum confiante
porco-do-mato (caititu) etc.” (Spix-Martius, 1981, p. 199).
EDUARDO CAMPOS
284
Nos anos quarenta, Francisco de Barros Júnior percorrendo as margens do São Francisco pôde encontrar a cena a que
denominou “fantástica”: colhereiros e guarás dando-lhe a visão
de “incomensurável toalha de renda flutuando nas alturas, ora
branca, ora rubra! “ (Barros Júnior, 3a série, s.d., p. 199).
Mais referências a marrecas, patos e tuiuius, um destes
abatido em magnífico tiro com bala holow-point, e sobre o
qual informa: “Um homem desarmado, ou mesmo armado
de faca, levaria desvantagem na luta com essa ave de bico
enorme, afiado e dotado de grande força de percussão. Tanto ela como as garças atacam qualquer inimigo, visando sempre os olhos” (o.c., p. 123).
A caça não pode ser perseguida, capturada ou morta em
determinadas áreas. “Juridicamente, a caça é um ato de ocupação de um coisa que não pertence a ninguém (res nullius)”,
expõe F.A. Pires de Lima, apensando: “Por isso não podem ser
objeto de caça os animais domésticos nem os selvagens que
tenham sido anteriormente capturados e reduzidos à propriedade privada. Com mais ênfase, atualmente há legislação pertinente – a brasileira, por exemplo – regulamentando os períodos de
exercício venatório, lugares defesos etc.” (Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, s. d., 4 v., p. 352).
Em Pacatuba (CE), pelos inícios do século, dois habitantes do lugar duelaram-se na serra da Aratanha, não concordando um e outro contendores com a invasão do que lhes
parecia área particular de sua ação venatória.
Moveu possivelmente os dois rancorosos caçadores, ao
confronto, um antigo e secular questionamento de direito
amparado na de venatione et piscatione das “Instituições do
Direito Civil Lusitano”, onde se indaga a certa altura: “Se a
ave (caça) ferida é daquele que primeiro a toma às mãos”.
Resposta: “assenta-se, por costume universal, que é do Caçador, tudo conforme o pensamento jurídico de Leiser Jus.,
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
285
Georg., L.3., C 13, 1 n 16; Müller e Struvio; Exerc., 41, p. 95,
Co. 2, sob a análise jurídica de Manoel d’Almeida e Souza, de
Lobão, em livro escrito em 1835.
Nas Institutas, codificação que encerra a
elementaridade do Direito Romano, obra mandada organizar
pelo Imperador Justiniano, no Liv. II, T. 1 (“Da divisão das
coisas e das qualidades delas”), parágrafo 13, vê-se referido:
“Entrou em dúvida se entende-se logo tua uma caça que
feriste de modo a poder ser apanhada. Entendiam uns que
era desde logo tua; outros, pelo contrário, que somente parecia tua enquanto a perseguisses, pois se deixasse de perseguila, ela deixaria de ser tua para torrar-se do ocupante”, vocábulo,
dizemos nós, que significa proprietário, dono do imóvel. “Outros julgam que não era tua antes que tivesses apanhado. Nós
porém confirmamos a última opinião, porque muitas coisas
podem suceder que te não deixem apanhá-la” (Rodrigues,
1879, p. 68).
O art. 14 acrescentava explicitando sobre a atividade
do caçador, ao afirmar: “Certamente quem anda caçando ou
passarinhando em terreno alheio, pode ser proibido de andar
nele pelo dono, se este o vir. Qualquer coisa, porém, que
apanhar aí, entende-se ser tua, enquanto a conservas sob tua
guarda. Mas se escapar desta e recuperar a liberdade natural,
deixa de ser tua e torna-se de novo ocupante (grifamos).”
(idem. ibidem).
Interessantíssimo, debaixo de igual raciocino, o parágrafo 14 do título I, ao mencionar: “A natureza das abelhas é
bravia também. Assim as que sentarem-se em uma árvore tua,
antes de serem recolhidas a um cortiço teu, não são mais tuas
do que as aves que fizeram ninho na tua árvore. E pois, se
alguém recolhê-las, será seu dono. Adiante: “Do mesmo modo,
se fizeram favos, qualquer pode tirá-los. Mas se antes de tirálos, vires alguém andando em teu terreno, tens o direito de
EDUARDO CAMPOS
286
proibir-lhes que ande. O enxame que voar de teu cortiço
somente supõe-se teu, enquanto estiver à tua vista e não for
difícil perseguí-lo. Aliás, torna-se do ocupante.” (ibidem, pp.
68-69).
Todas essas disposições de Direito, com nítida vocação
agrária, intuitivamente animaram aqueles dois caçadores
pacatubanos a funesto desentendimento em duelo, em plena
aba da frondosa serra de seu município. É que o veado perseguido por um dos contendores, já baleado ou morto, indo
cair no terreno do ocupante, indicou pertencer a este e não
ao autor do disparo fatal.
O sentimento do direito à caça, e não a exasperação
de rancores, há-de ter funcionado forte nos dois caçadores
mais do que qualquer outra emoção.
A abelha, vem a caso dizer para terminar, está inserida
na moldura do quodidiano, pelos sertões. Vale adiantar que,
com maior ênfase, pelos anos mais recuados, quando em
muitos lugares o apetecente mel era o sucedâneo do açúcar,
houve-se por componente ideal para preparo de meizinhas,
de particular recomendadas para as infecções de garganta e
trato respiratório.
Para tanto, afamado o mel da abelha chamada jandaíra,
que, se lhe ajuntado o limão como ainda sucede por hoje,
tem garantido o seu uso no combate a resfriados.
São de muitas diversidades as abelhas. Em folha da
Auxiliadora Nacional, de 1845, um curioso piauiense, Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco, inventariou 25 espécies do Piauí, número elevado para 32 por José Martins
Pereira d’Alencastre (Revista do Inst. Histórico e Geográfico
Brasileiro, T. XX, 1 Tri., 1857, senão vejamos:
“Tiuba-grande, tiuba-pequena, urussu-amarelo,
urussu-preto ou urussu-boi, preguiçosa, urussuy
O PARCEIRO SÓ – ESTUDOS DO CEARÁ E DO NORDESTE
287
ou pé de pau, mijuy ou bijuy, tuby ou tubiba,
borá, moça-branca, manoel-d’abreu, limão,
tatayra-preta, tatayra-amarela, mosquito-grande,
mosquito-pequeno, cupira ou abelha do cupim,
sanharó, boca de barro, feiticeira, vamos-nosembora, mangangá ou chupé-grande, chupépequeno, arapuá, mombuca, abelha de sapo,
juthay ou jitahy, mulher-pobre, trombeta,
mandassaia, enxu, enxuhy, cabussu.”
A respeito da abelha feiticeira, também denominada
vamos-nos-embora, esclarece Alencastre: “Acredita o povo ignorante que aquele que depois de comer o mel desta abelha,
diz para o companheiro – vamos-nos-embora – infalivelinente
morre em poucas horas” (idem, ibidem).
Têm trânsito ainda hoje, principalmente no interior
de São Paulo, uns versos que animam os tiradores de “melde-pau”:
Caragatá na ponta,
Cupim no pé;
Este pau tem mé.
Chega, chega, rapazeada.
EDUARDO CAMPOS
(Cascudo, 184, p. 489)
288
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EDUARDO CAMPOS
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