Dois irmãos - Colégio Sant`Ana
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Dois irmãos - Colégio Sant`Ana
Dois irmãos (Milton Hatoum) tes. A mãe, Zana, entretanto, estabelece preferência pelo caçula, que é boêmio, libertino e corajoso. Esse afeto diferenciado acirra ainda mais a rivalidade natural entre eles. O narrador pode ser visto como produto do processo multicultural apresentado por Milton Hatoum em Dois irmãos, porque resulta da miscigenação do um libanês com uma índia, Domingas. A angústia desse narrador é descobrir, afinal, quem é seu pai. Para isso cria uma narrativa que reúne as lembranças da mãe e suas para recompor sua própria história. Ele freqüenta a casa da família, mas será sempre o filho bastardo, que sonha com a possibilidade de sair desse círculo vicioso. O elemento sensorial se destaca na descrição da cidade de Manaus. Entretanto, não é apenas a cor local que passa pelo crivo atendo do olhar de Milton Hatuoum, mas também o processo de modernização do país e da cidade, bem como a formação étnica de sua população. Dois irmãos é um romance inovador tanto nos aspectos plurilingüísticos que o autor incorporou na sua elaboração, como na capacidade de captar o regional não apenas pelo cenário exótico da região amazônica, mas pela densidade do material humano. Cores, formas, gostos e cheiros misturam-se, nesse mundo sensorial, à multiplicidade de etnias, línguas e costumes da população manauara. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA Milton Hatoum nasceu em Manaus, em 1952, filho de libaneses. Mudou-se aos 16 anos para São Paulo, onde estudou arquitetura na USP. Estudou literatura e história da arte durante um ano em Barcelona e quatro em Paris, na Sorbonne. Viajou pelo mundo. Voltou para Manaus, onde lecionou língua e literatura francesa na universidade do Amazonas. Viajou novamente pelo mundo e tornou-se mestre e doutor em literatura pela USP. Entre seus prêmios está a façanha de escrever três livros e ganhar três Jabutis. OBRAS Relato de um certo Oriente (1989); Dois irmãos (2000); Cinzas do norte (2005). 2. INTRODUÇÃO Dois elementos são fundamentais para a compreensão do romance Dois irmãos: a percepção do leitor não de uma Manaus real e atual, mas de um espaço imaginário vivido por meio da memória do narrador, e o contexto social e multicultural que forma a população da cidade. Partindo do primeiro elemento, o geográfico parece ultrapassar as fronteiras regionais e transitar pelo universal. Essa universalidade poderá ser percebida, por exemplo, a partir do tema central: a luta entre gêmeos e a destruição de uma família por causa de um comportamento amoroso obsessivo entre mãe e filho. O mesmo tema poderá ser percebido, ainda que de maneira menos radical, em Esaú e Jacó, de Machado de Assis. A intertextualidade é evidente. Hatoum retoma em certos aspectos a luta entre irmãos gêmeos pelo carinho materno e o amor. O elemento intertextual pode ser também traçado com a Bíblia. O conflito entre gêmeos está presente em várias culturas. Yaqub e Omar são idênticos fisicamente, mas possuem personalidade e comportamento muito diferen- 3. ANÁLISE DA OBRA A história é contada por Nael, que acompanha a decadência da família de Halim e Zana e da casa em que vivem. Esse processo pode também ser observado com relação à cidade de Manaus, que perde sua identidade com a chegada de um progresso voraz e devastador, completado pelos anos de ditadura militar. As angústias do narrador são de ordem tanto pessoal quanto familiar. Ele busca descobrir quem é seu pai entre os homens da família. A história só é contada trinta anos depois dos acontecimentos que marcaram sua vida e a de seus familiares. 1 irmã para casa e voltasse depois. Quando regressou, encontrou Omar dançando com o rosto colado em Lívia. Não teve coragem de falar com ela. Odiou o baile, como contou à empregada da casa, Domingas. Dois meses depois, viajou para o Líbano. Tudo aconteceu num sábado, depois do carnaval. Domingas costumava levar os gêmeos à casa de Abelardo Reinoso no último sábado de cada mês para uma sessão de cinema. Era uma ocasião especial. Por isso os gêmeos e Domingas iam bem arrumados. Lívia sorria para os dois. Omar ficou enciumado. Lívia ofereceu um selo do álbum para Yaqub. “Mas ela gostava mesmo era dos gêmeos; olhava dengosa para os dois; às vezes, quando se distraía, olhava para Yaqub como 1 se visse nele alguma coisa que o outro não tinha.” (HATOUM, Milton. Op. cit., p. 27) Omar pensava que Lívia só pensaria nele depois do baile dos Benemou. Chegou a planejar o roubo do Land Rover dos pais para passear com ela até as cachoeiras de Tarumã. Domingas desconfiou e escondeu a chave do jipe. Quando o homem do cinematógrafo chegou, Yaqub já reservara uma cadeira para Lívia, o que desagradou Omar. Vinte minutos depois houve uma pane no gerador. Omar viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yaqub, quando alguém abriu a janela. Omar quebrou uma garrafa e rasgou o rosto do irmão. Não se falaram depois desse dia. Yaqub levou 13 pontos. Na escola era chamado de “cara de lacrau” ou “bochecha de foice”. Zana culpou Halim pela falta de mão firme, mas o marido discordava porque considerava que ela tratava Omar como se fosse filho único. Temiam que o silêncio do mais velho se transformasse em reação, em violência dentro de casa. Halim decidiu a viagem do filho e a separação. “A distância que promete apa2 gar o ódio, o ciúme e o ato que os engendrou .” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 28) Yaqub segue para o sul do Líbano. Quando Yaqub chega do Líbano, Halim vai buscálo no Rio de Janeiro. Passaram-se cinco anos. O rapaz tem agora 18 anos. Tudo aconteceu um ano antes da Segunda Guerra Mundial. Zana esperou o filho no aeroporto de Manaus. Não parou de abraçar o filho até que Halim disse que chegava e que iam descer. Os gêmeos estudavam no colégio dos padres. Yaqub era tímido e quase não falava, porque trocava o pê pelo bê. Era alvo de chacotas dos colegas, mas também dos olhares femininos e dos assédios das 3 cunhantãs . Logo se destaca também nos estudos para orgulho do pai, que afirma que Yaqub tem cabeça para os HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 11. Zana sentava no chão sozinha e chorava pela volta de Omar. Antes de abandonar a casa, viu o vulto do pai e de Halim nos pesadelos. Sentia a presença deles no quarto. Durante o dia dizia que vieram visitá-la e estavam na casa. Alguns dias antes de morrer, Zana perguntou em árabe se os filhos já fizeram as pazes. Ninguém respondeu. Nós esperamos até tarde da noite. Minha mãe e eu no nosso quarto dos fundos. Rânia e Zana no andar de cima, deitadas, com a porta aberta, atentas a qualquer ruído. Deram duas horas e nada de Halim chegar. Por volta das três, escutei o ronco de minha mãe, quase um assobio grave, um sopro. Um nambuaçu piou por ali; olhei para o chão do quintal, nem sombra da ave. Depois reconheci o canto de um anum, me senti melancólico, mareado. As copas escuras cobriam os fundos da casa. Um barulhinho esquisito riscava a noite, podia ser mucura faminta no faro de um poleiro ou morcegos mordendo jambo doce. Lembro que as palavras do livro que eu lia foram se apagando e sumiram. O livro também foi engolido pela escuridão. Cochilei, debruçado na mesinha. Lá pelas cinco da manhã (ou um pouco depois, porque o cortiço dos fundos já emitia sinais de despertar e a noite começava a perder a sua treva), um ruído me despertou. Vi uma claridade na cozinha e logo depois um vulto. Era uma mulher. 1 Halim e Zana são libaneses. Fixaram residência em Manaus e moram na praça dos Remédios. Eles têm três filhos: os gêmeos Yaqub e Omar, e Rânia. Omar, o caçula, é mais ousado que Yaqub, que admirava a coragem do irmão ao subir em árvores e brigar com outros moleques parrudos. Os gêmeos tinham 13 anos. Durante um baile no casarão dos Benemou, Yaqub quis ficar até a meia-noite porque Lívia, sobrinha dos Reinoso, participava de sua primeira festa dos adultos. “Queria ficar para pular abraçado com ela, sentir-se quase adulto como ela.” (HATOUM, Milton. Op. cit., p. 19) Zana ordenou que levasse a 1 O mesmo comportamento pode ser percebido em Flora, personagem de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, que não consegue decidir se ama Pedro ou Paulo. 2 Formou, gerou. 3 Meninas, moças, em tupi. 2 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Zana teve que deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quinal, onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio século. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. números e de sobra o que faltava em Omar, que ouvia a frase do pai. Enquanto o mais velho se esforçava, o caçula dava trabalho: saía toda noite e bebia, subornava os porteiros do colégio, faltava às lições de latim. O pai, um dia, perdeu a paciência com o estado de ressaca do filho: “Não tens vergonha de viver assim? Vais passar a vida nessa rede imunda, com essa cara?” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 33) Omar parecia não se importar com a repreensão do pai. Foi reprovado dois anos seguidos e acabou expulso, depois de acertar um soco no queixo e um chute no saco do professor de matemática, padre Bolislau. Omar foi estudar no Liceu Rui Barbosa, conhecido como “Galinheiro dos Vândalos”. Omar tornou-se amigo do professor de francês, Antenor Laval. Yaqub ingressaria na Politécnica de São Paulo, para onde partiu em janeiro de 1950. Yaqub recusou ajuda financeira do pai. Halim chorou com a partida do filho. Lívia foi despedir-se de Yaqub. No quintal, o rapaz acariciou o ventre e os seios de Lívia. Halim ficou conhecendo Zana no restaurante de Galib. Ela tinha 15 anos e ajudava o pai a servir os clientes. Halim apaixonou-se por Zana. Ele morava na Pensão Oriente. Abbas, amigo de Halim, escreveu um gazal4 de 15 dísticos, que traduziu para o português. Halim deixa o gazal sobre a mesa do restaurante e fica uma semana sem aparecer. Quando voltou, Galib devolveu o envelope com o gazal. Halim passou a ler em voz baixa, mas Zana não estava ali para ouvir. Galib elogiou os versos e disse-lhe que “uma mulher sentiria essas palavras na carne”. Saiu do restaurante lembrando as palavras de Galib. Numa madrugada de uma sexta-feira, encontrou Cid Tannus, um cortejador das últimas polacas e francesas que ainda moravam na cidade decadente. Beberam o vinho que Tannus comprara de marinheiros franceses e italianos. Depois chegou Abbas, ainda sóbrio, mas animado com outras encomendas de gazais. […] Halim foi aconselhado a tomar as duas garrafas de vinho que ganhou de Abbas, voltar ao restaurante e ler para Zana os gazais. No sábado, Halim declamou de fogo, para vencer a timidez, os gazais para Zana, que ficou desnorteada e buscou refúgio no pai. Muitos freqüentadores riram, mas isso não alterou a fisionomia de Halim. Em dois meses, tornou-se esposo de Zana. Antes disso, teve que enfrentar o escândalo entre as cristãs maronitas de Manaus, que não se conformavam de ver Zana casar-se com um muçulmano. Havia também muitos boatos sobre o dote que o mascate teria oferecido a Galib. Halim nunca passou de um modesto negociante, mas Zana decidia tudo sozinha. O primeiro capítulo mostra o comportamento protetor de Zana em relação ao filho Omar e sua pouca preocupação com Yaqub. Halim, ao contrário da mulher, percebe o erro que está sendo cometido. O resultado é previsível: o sucesso do mais velho dos gêmeos e a decadência do caçula. O ciúme de Zana em relação aos filhos é doentio, e seu comportamento é de proteção às atitudes inadequadas de Omar. Durante todo o capítulo, o narrador conta os fatos que ouviu de sua mãe, Domingas, que conviveu com os gêmeos desde a infância deles. 2 Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O almoço era servido às 11, comida simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. […] Desde a inauguração o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente […] Foi assim desde os 15 anos. Era possuída por uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando; depois, armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o outro estatelado. […] Casaram-se diante do altar de Nossa Se5 nhora do Líbano, com a presença das maronitas e católicas de Manaus. Galib convidou amigos do porto da Catraia, das escadarias dos Remédios, pescadores e peixeiros que abasteciam o Biblos, e também compadres dos lagos da ilha do Careiro e do paraná do Cambixe. Uma mistura de gente, de línguas, trajes e aparências.6 […] HATOUM, Milton. Op. cit. p. 53. Halim e Zana passaram três noites no Hotel América e uma noite “nas cachoeiras do Tarumã, perto de Manaus”. Zana mandava na casa, na empregada e nos HATOUM, Milton. Op. cit. p. 47-48. 4 Gênero de poesia amorosa dos persas e dos árabes, estruturado em dísticos, com a mesma rima funcionando para os dois versos do primeiro dístico (estrofe de dois versos) e para o segundo verso dos demais. 5 Quem nasce na Maronéia, cidade da Trácia (antiga província do Império Romano, em região hoje dividida entre a Grécia e a Turquia. 6 A passagem mostra a presença multicultural e étnica, que é um dos traços marcantes do romance Dois irmãos. 3 Omar continuava dormindo no alpendre. Caçoava das fotos do irmão expostas na sala com a mesma voz de Yaqub. Ficava fazendo macaquices quando Rânia beijava a foto do irmão. A lembrança de Yaqub triunfava. “O duelo entre os gêmeos era uma centelha que prometia explodir.”8 (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 61) Halim, que não queria ter filhos tão cedo, preferia aproveitar a vida com Zana. Não suportava mais ouvir a mulher falar todo o tempo de Galib, das lembranças da terra natal à beira do Mediterrâneo onde passeava com o pai, e esquivar-se de suas carícias. Pensou em levar Zana para Biblos, desenterrar o sogro e mandá-la ficar com os ossos. Mas esperou paciente. Depois, fecharam o restaurante e abriram uma loja. Uma freira ofereceu-lhes uma órfã, Domingas, que cresceu nos fundos da casa. Zana gostou dela, apesar do trabalho que deu. Rezavam juntas. Halim ria da aproximação entre patroa e empregada por meio da religião. Domingas asssustava-se com a barulheira dos patrões na hora do amor. Yaqub e Omar nasceram dois anos depois da chegada de Domingas. Yaqub primeiro, depois Omar, que adoeceu muito nos primeiros meses. Cresceu com zelo excessivo e o mimo da mãe. Yaqub foi cuidado por Domingas. Rânia nasceu quatro anos depois dos gêmeos. Depois do nascimento dos filhos, Halim ficou dois meses sem tocar no corpo de Zana. Os tempos de prazer pelos cantos da casa desapareceram, mesmo depois de ter reconquistado a esposa. Omar deu muito trabalho ao pai. Halim perdeu seu espaço para os filhos. Aproveitava as visitas da mulher à loja para ficarem juntos. Quando reabria a loja, fazia liquidação das tralhas todas para comemorar o encontro. “Foi o que se poderia chamar de pai, só que um pai consciente de que os filhos tinham lhe roubado um bom pedaço de privacidade e prazer. Anos depois, iriam roubar-lhe a serenidade e o bom humor.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 71) “[…] … A minha maior falha foi ter mandado o Yaqub sozinho para a aldeia dos meus parentes”, disse com uma voz sussurrante. “Mas Zana quis assim… ela decidiu.” HATOUM, Milton. Op. cit. p. 57. O capítulo coloca o leitor a par dos acontecimentos que antecederam e sucederam o casamento dos pais dos dois gêmeos. Nesse capítulo fica-se sabendo da personalidade dominadora de Zana e da personalidade paciente de Halim. No final do capítulo, todo ele contado por Halim ao narrador Nael, o leitor descobre que a decisão de mandar Yaqub para longe de casa foi da mãe, prontamente acatada pelo marido. A predileção de Zana por Omar fica mais evidente. O narrador também comenta que Halim nunca teve intimidade com os filhos. Coube a ele, o bastardo, ouvir as histórias do avô. 3 Yaqub mandava pontualmente uma carta para os pais ao final de cada mês. Zana lia para todos “como quem lê um salmo ou uma surata7” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 59), com a fala emocionada e pausas. Era motivo para Halim convidar os vizinhos para um jantar festivo. Yaqub morava na Pensão Veneza, no centro de São Paulo. Ele descrevia o ritmo de sua vida paulistana. Apesar do sofrimento, sentia-se fascinado pela vida nova. No sexto mês, começou a lecionar matemática. Abreviou as cartas. Noticiou, sem grande alarde, seu ingresso na universidade de São Paulo. Ia ser engenheiro. Ele devolveu o dinheiro que os pais mandaram. “Entenderam que o filho nunca mais precisaria de um vintém. Mesmo se precisasse, não lhes pediria.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 60.) As correspondências tornaram-se mais raras. O capítulo fixa os momentos que antecedem e sucedem o nascimento dos gêmeos. Além disso, mostra o período de adaptação de Yaqub em São Paulo, pressupondo a guerra permanente entre os gêmeos. Omar sente ciúme e inveja de Yaqub e procura desprezar as conquistas do irmão. A fixação da mãe pelo caçula é um ponto importante desse capítulo, bem como o incômodo trazido pela chegada e pelo crescimento dos filhos trouxeram ao pai, que não via com bons olhos o excesso de mimo da mulher com o caçula. Cresci vendo as fotos de Yaqub e ouvindo a mãe dele ler suas cartas. Numa das fotos, posou com a farda do Exército; outra vez uma espada, só que agora a arma de dois gumes dava mais poder ao corpo do oficial da reserva. Durante anos, essa imagem do galã fardado me impressionou. Um oficial do Exército, e futuro engenheiro da Escola Politécnica. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 61. 7 8 Seção, versículo ou capítulo do Corão. O narrador anuncia de forma dramática a luta silenciosa e permanente entre os gêmeos. 4 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. filhos. Halim tinha toda a paciência e aceitava tudo, mas “era um demônio na cama e na rede”. Galib volta para o Líbano, Cedros, onde cozinhava pratos amazônicos. Morreu dormindo na casa perto do mar. Zana só ficou sabendo bem depois. Passou dias chorando, queria filhos porque se sentia órfã. Passou trancada no quarto duas semanas, sem dormir com o marido. Gritava o nome do pai. Halim pensa, ao contar para Nael a história de seu casamento com Zana, que quando alguém morre no outro lado do mundo, era como se desaparecesse. mir uma ou duas sessões, até ser acordado pelo lanterninha. Ele podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá e nas cadeiras da sala, mas não se sentava à mesa com os donos da casa. Podia comer a comida deles que não se importavam. Nael não suportava a quantidade de trabalho da mãe. Ele costumava fazer compras ou entregar recados, inclusive para as vizinhas que pediam a Zana para o garoto ir a um lugar ou outro para elas. Nael um dia recusa-se a servir de mensageiro a Estelita Reinoso, que descendia das elites de Manaus. Omar costuma implicar com Nael. Não aceitava o garoto na mesa quando ele ia comer. Omar costumava chegar embriagado e machucado e acordava as mulheres da casa. Nael tinha que ajudar. 4 Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela […] Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 73. Domingas pediu para passar o domingo fora. Ela saiu com o filho de Manaus. Caminharam até o porto da Catraia e embarcaram num motor até a margem do Acajatuba, afluente do rio Negro. Durante a viagem, Domingas se alegrou com o cenário do rio. Nascera perto do povoado de São João, na margem do Jurubaxi, braço do rio Negro. Não se lembrava da mãe. O pai foi encontrado morto num piaçabal9. Foi levada para o orfanato, onde rezava, aprendia a ler e escrever; limpava os banheiros e o refeitório; costurava e bordava. Sabia que nunca mais ia ver o irmão. Um dia a irmã Damasceno mandou-a tomar banho de verdade e arrumar-se. Levou-a até a casa de Zana. Nunca mais visitou as irmãs, não gostava delas. Havia apanhado várias vezes da irmã Damasceno com a palmatória. Nem bem chegaram à margem do Acajatuba, e Domingas resolveu voltar. Tinha medo de chegar tarde a Manaus. Na volta, apanharam uma tempestade perto do Tarumã. Não havia bóias. Ficaram agarrados à amurada. Ficaram enjoados e vomitaram. Parecia que iam naufragar. Chegaram à noitinha. Domingas pediu a Nael que ficasse ao lado dela. “No meio da noite acordei com a voz de Domingas: se eu gostava de Yaqub, se eu me lembrava dele, do rosto.10 Não escutei mais nada. Às cinco ela já estava pronta para ir ao Mercado Municipal.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 79) Nael desconfia que há um pacto entre a mãe, Halim e Zana para que ela não diga quem é seu pai. Depois da viagem, Halim sugere que Nael ocupe o quartinho dos fundos, porque já passara da idade de dormir com a mãe. Domingas não deixou de vigiar o filho, quando ele saía à noite, com medo de que o destino “confluísse para o de Omar, como dois rios indômitos e turbulentos: águas sem nenhum remanso.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 80) Aos domingos, Nael costuma ir comprar miúdo de boi. Costumava admirar o rio Negro. Quando Halim lhe dava dinheiro, ia ao cinema, costumava dor9 […] enquanto o Caçula se contorcia, arrotava, mandava todo mundo à merda, se exibia, era um touro, agarrava minha mãe, bolinava, dava-lhe um tapinha na bunda e eu pulava em cima dele, queria esganá-lo, ele me tacava um safanão, depois um coice, e aí a gritaria era geral, todo mundo se intrometia, Zana me despachava para o quarto, Domingas me socorria, chorava, me abraçava, Rânia enlaçava o irmão, “Pára com isso, pelo amor de Deus!”, mas ele persistia, queria acabar com a noite de todos, escornar Deus e o mundo, acordar os moradores do cortiço, da rua, do bairro. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 89. Nael odiava aquelas noites perdidas e as broncas que tomava de Zana porque ele não entendia o filho dela. Pensava em fugir, mas adiava a partida por causa de Domingas. Alguma vezes via Halim e Zana em seus momentos de amor. Halim parecia querer esquecer algumas partes de seus encontros com Zana, porque não contara a Nael que costumava recitar os gazais antes de amar a mulher. Yaqub comunicou seu casamento, mas não disse nem o nome da noiva. O Caçula abandonara a escola. Mantinha amizade com o professor Antenor Laval, para quem lia poemas antes de saírem para a calçada do Café Mocambo para verem as veteranas e calouras do Liceu Rui Barbosa. Omar não tomava jeito. Uma manhã amanheceu nu com uma moça no sofá de casa. Halim acordara e viu a cena. Nesse dia, Omar tomou um bofetada do pai e foi acorrentado na maçaneta do cofre. Halim saiu de casa e sumiu por dois dias. As mulheres cuidavam de Omar: “Três escravas de um cativo.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 92) No aniversário de Zana, Omar costumava deixar flores e bilhetinhos amorosos nos vasos da sala. Rânia admirava o gesto nobre do irmão e sonhava com um noivo que agisse da mesma forma. Abraçava e beijava o irmão, que logo voltava ao seu comporta- Aglomerado de piaçabas (tipo de palmeira da qual se fazem escovas e vassouras). Essa passagem é um índice do apego de Domingas com Yaqub, mas não se pode afirmar que ele seja o pai de Nael. 10 5 Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sorriso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. No fundo, Zana não dava muita trela às mulheres que o Caçula levava para casa. Ele não escolhia, não se empolgava com a cor dos olhos ou cabelos. Namorava as anônimas, mulheres que ninguém da família ou da vizinhança podia dizer: é filha, neta, sobrinha de fulano ou beltrano. […] Todas foram vítimas de Zana. Todas, menos duas. A que eu conheci e vi de perto surge agora diante de mim, como se aquela noite distante se intrometesse nesta noite do presente. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 100. Omar não costumava chamar as mulheres que trazia pelo nome, mas de princesa ou queridinha. Só que dessa vez a mulher tinha um nome: Dália. Omar chegou a revelar seu sobrenome. Vestida de vermelho, Dália atrai mais olhares que Rânia, que se recolheu no fim da sobremesa, porque sua beleza foi ignorada. Zana sente que não consegue vencer a rival. Quase no final da dança das irmãs Talib, entra Dália dançando de forma sensual e atraindo todos os olhares num vestido prateado11. No final, Omar deu-lhe um beijo teatral e pediu palmas aos presentes. Zana não quis saber do bolo que preparou com Domingas. As velinhas ficaram por apagar. Halim seguiu-a logo depois para o quarto. Zana sentiu-se traída pelo Caçula. Ao voltar do quarto, Zana pediu ajuda a Dália para arrumar a mesa. Logo Dália vai ao banheiro e volta 11 Ela é chamada por Nael de Mulher Prateada. 6 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. com o vestido vermelho. Nael nota que seu rosto não era o da mesma mulher que entrara, mas o de uma mulher humilhada. Antes de sair, disse: “Vamos ver, vamos ver”. Omar levantou-se da rede e desapareceu atrás da mulher. Souberam depois que Dália era uma das Mulheres Prateadas que se exibiam na Maloca dos Barés. Eram amazonenses, mas se diziam cariocas para ter maior audiência. Zana fez de tudo para convencer Yaqub a hospedar o filho farrista. Yaqub ofereceu-se para alugar um quarto numa pensão e matricular o irmão num colégio particular. Não permitiria o irmão sob o mesmo teto. Omar ficou vários dias sem aparecer em casa, depois de saber do plano da mãe. Zana descobriu o endereço de Dália e mandou Nael procurá-la na Vila Saturnino. Nael ofereceu às tias de Dália o dinheiro enviado por Zana. No começo relutaram, mas acabaram aceitando. Dália sumiu da Maloca dos Barés, da casa e da cidade. Omar apareceu numa tarde de chuva, bêbado. Omar foi a São Paulo. Zana quase se arrependeu, porque “a separação tinha o travo da morte”. (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 106.) Nael entrou para o Galinheiro dos Vândalos. Nael concluiu o curso que Omar deixou no último ano. Na escola havia marcas da passagem de Omar, que desprezava qualquer diploma e qualquer coisa que não lhe desse prazer intenso. No começo, Omar mostrou-se aplicado. Quase não saía do quarto. Jantava numa pensão da rua Tamandaré. Não faltava às aulas, embora se sentisse deslocado por ser um marmanjo. No final de agosto, a empregada de Yaqub levou dois casacos, um pulôver, uma calça de veludo e doces árabes enviados pela mãe. A empregada contou que Omar devorou os doces sentado na cama. Em 15 de novembro, antes de viajar com a esposa, Yaqub foi ao bairro da Liberdade ver onde morava Omar. Ele acreditava que o desamparo, a solidão, o sofrimento e a labuta seriam decisivos na educação de Omar. Não queria encontrar-se com o irmão. Uma semana depois, passou pelo colégio onde o irmão estudava, conversou com os professores. Omar era impulsivo, ousado, gostava de vencer obstáculos, mas assistia às aulas com assiduidade. Yaqub descobriu que deixara de freqüentar o colégio logo depois do feriado. Yaqub vai até a pensão e descobre que o irmão abandonou o quarto sem nenhuma explicação e sem pagar. Não havia nenhum bilhete. Procurou nos hospitais, delegacias, necrotérios, mas nada. A esposa o aconselhou a não contar aos pais o desaparecimento de Omar. Em dezembro receberam o primeiro cartão-postal. mento imoral e fazia cócegas nas pernas e nos quadris da irmã, dirigindo a mão para o vão das pernas dela. Rânia suava e afastava-se dele. Rânia era bela, mas teimava em permanecer sozinha. Não saía para festas. Tornara-se assim desde uma tarde em que ela e a mãe se estranharam. Abandonara a universidade no primeiro semestre e decidiu trabalhar com o pai na loja. Tornou-se uma águia nos negócios. Não quis saber dos pretendentes, rasgava suas cartas. Iludia os pretendentes que a mãe convidava no dia do aniversário dela. Dançava muito próxima deles, mas bastava Omar entrar na sala e atirava-se nos braços do irmão. A intimidade entre os irmãos irritava os pretendentes, a ponto de alguns saírem sem se despedir. Rânia mantinha sua solidão. Somente se vestia de maneira sensual para o aniversário da mãe. Nael sentia-se atraído por Rânia. O viúvo Talib era tarado por ela, chegando a oferecer a Halim as duas filhas por Rânia. Na noite do aniversário da mãe, Omar chegava sempre acompanhado de uma mulher diferente. Nessa ocasião, Zana já soubera que ele estava de caso com uma mulher mais velha e muito bonita. Sempre bela, a ponto de impressionar Nael, Rânia envelhecia com a beleza da mãe. O capítulo reforça o amor doentio de Zana pelo filho caçula, a qual chega a ponto de enfrentar as pretendentes e oferecer dinheiro para que uma delas desapareça da vida de Omar. Enquanto isso, surge uma dúvida em relação a Rânia, cujo comportamento pode ser considerado estranho para uma jovem bonita e inteligente. O narrador instiga a curiosidade do leitor, porque ela se transforma depois de uma briga com a mãe e sugere também a intimidade dela com Omar para enciumar os pretendentes. Da mesma forma, sua saída antes do final da festa da mãe, porque se sente inferiorizada pela amante do irmão, causa estranheza. […] Ela mimava os gêmeos e se deixava acariciar por eles, como naquela manhã em que Yaqub a recebeu no colo. As pernas dela, morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo. Como ela se tornava sensual na presença de um irmão! Com esse ou com o outro formava um par promissor. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 117. Rânia se empetecou como nunca nos quatro dias da visita de Yaqub. Ganhou dele os melhores presentes: um colar de pérolas e um bracelete de prata. Nael viu quando ela e Yaqub subiram as escadas e entraram no quarto dela e alguém fechou a porta. A imagi13 nação de Nael correu solta. Os dois só desceram para comer com os pais, Talib e suas duas filhas. Durante o café debaixo da seringueira, Talib perguntou a Yaqub se não sentia falta do Líbano. Yaqub empalideceu e demorou a perguntar que Líbano, afirmou depois que havia esquecido tudo, o nome da aldeia e dos parentes, menos a língua. Ia dizer que não esqueceu outra coisa, mas não completou a frase. Zana convidou-os para um licor na sala. Talib agradeceu e retirou-se com as filhas. Yaqub ficou só sob a seringueira e fumava com ânsia. “Estava transfigurado, e parecia trincar os dentes até a alma.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 119) À noite saiu para jantar apenas com Halim e revelou alguns detalhes sobre o sumiço de Omar. Halim não sabia de nada do que o caçula aprontara. Pocu, um ex-barqueiro e amigo de Halim, contou a história de um casal de irmãos que viviam como amantes num 14 barco encalhado . Depois da saída de Pocu, Halim falou que nem São Paulo corrigiu Omar. Yaqub contou que Omar fizera pouco dele e da mulher. Enviara postais de Miami, Tampa, Mobile e Nova Orleans, contando farras e peripécias. Roubou o passaporte, uma gravata de seda e duas camisas de linho irlandês e 820 dólares de Yaqub, que explodiu enquanto cobrava o que o irmão roubara e afirmou que não lhe perdoaria. A raiva maior de Yaqub é que Omar olhou as fotos do casamento e descobriu que ele se casara com Lívia. Além disso, fizera desenhos obscenos e palavrões nas fotos do casamento. “Yaqub ficou louco… Não tinha perdoado a agressão do irmão na infância, a cicatriz… Isso nunca tinha saído da cabeça dele. Jurou que um dia ia se vingar”. (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 125) Depois do desabafo do filho, Halim voltou para casa, arrumou um vaso de orquídeas, chamou Zana e dei- Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 5 Na vida de Omar aconteciam lances incríveis, ou ele os deixava acontecer, como quem recebe de mão cheia um lance de aventura. E não há seres assim? Pessoas que nem carecem buscar o lado fantasioso da vida, apenas se deixam conduzir pelo acaso, pelo inusitado que assoma nas ventas. Yaqub só revelou a verdade sobre o irmão quando visitou pela primeira vez a família desde que partira para São Paulo. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 111. Nael ficou agitado com a notícia da chegada de Yaqub. Como a imagem que fazem dele é de um ser perfeito, Nael pensa que pode ser filho de um homem quase perfeito. Pensava em qual dos dois teria atraído sua mãe. Yaqub abraçou primeiro Domingas. Nael lembrouse da voz que ouvia aos quatro ou cinco anos. Yaqub trouxera livros para ele. Não veio com a esposa para Manaus. Zana quis saber como era a nora. Na véspera sonhara com os gêmeos conversando e depois com Yaqub partindo. Evitou que os gêmeos se encontrassem. Durante três noites conseguiram esconder Omar. Durante um passeio com Yaqub, Nael percebeu que o gêmeo não se mostrava na defesa com ele, não vestia uma armadura sólida, como dissera Halim. Passearam de canoa e foram até uma mesma palafita onde Yaqub e Domingas iam aos domingos. A dona não o reconheceu. Yaqub estava alegre, mas depois foi ficando quieto e pensativo. Confessou a Nael que foi horrível o dia em que foi obrigado a ir para o Líbano. Yaqub criticou a presença dos amigos do pai e o jogo de gamão no comércio. Chamou esses freqüentadores de urubus, porque ficavam ali esperando a hora do lanche da tarde. Assim não iriam muito longe. Rânia perguntou para que ir tão longe, e sobre o prazer do jogo e da conversa. Segundo Yaqub, o co12 mércio não se alimentava de prazeres fortuitos . Halim pediu a Nael que o acompanhasse à loja de Balma para assistir à partida de bilhar entre Issa e Talib. 12 Que acontecem por acaso; não planejados; imprevistos. O índice de sugestão de incesto é retomado pelo narrador. 14 Sugestão de incesto entre Rânia e Yaqub. 13 7 çuda, roliça, alta e escura, de boca enorme e cabelos longos e alisados. Zana contratou Zanuri, um delator profissional e funcionário do tribunal de justiça, para descobrir tudo sobre o filho. Omar decidira fugir com a amante, mas enfrentou o desespero e a ira de Zana, que prometeu trazer o filho de volta para casa ou ir embora de vez com aquela mulher. tou-se nu na rede. Ela chegou e ouviu-o declamar alguns versos de Abbas. Era a senha… Halim precisava esquecer um pouco os filhos. Yaqub prosperava em São Paulo. Zana orgulhavase do filho doutor, mas venerava Omar. Tinha ciúme do casamento de Yaqub, comia escondida as guloseimas que a nora lhe enviava. Halim elogiava a nora que lhe mandava presentes. Zana irritava-se com a falta de objetos modernos em casa. O progresso que tomava o país não chegara até sua casa. Halim preocupava-se apenas com a fartura da mesa. Durante a visita que fez à casa dos pais, Yaqub percebeu a carência e transformou a casa. Utensílios domésticos novos foram descarregados de um caminhão. “Se a inauguração de Brasília havia causado euforia nacional, a chegada daqueles objetos foi o grande evento da nossa casa.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 129) A casa foi restaurada, e a loja pintada. O mesmo aconteceu com o quarto de Nael e da mãe. Rânia modernizou a loja, mas por trás de tudo aquilo estavam as palavras de Yaqub. Omar recusou que pintassem seu quarto e não quis usufruir de qualquer conforto que viesse do irmão. Não comia em casa. Zana fingia não ver que o caçula furtava seu dinheiro. Outras vezes colocava dinheiro no bolso dele. Omar fingia não ver que o dinheiro vinha de Yaqub. A loja foi modernizada e ficou muito diferente do armarinho de secos e molhados. Só a parte de cima foi mantida intacta, porque era onde Halim se refugiava. Omar acabou se envolvendo com uma mulher apelidada de Pau-Mulato. Estava mudado, não chegava embriagado, dormia no quarto, barbeava-se, acordava cedo. Não trouxe a nova amante para casa. Escondeu-se com ela. 6 Halim já estava com quase 80 anos, mas ainda era forte como um cavalo. Exibia-se para Zana ao abrir as portas de ferro da loja. “Até um pouco antes de morrer, foi discreto em roda de amigos, incapaz de rir sem gana, generoso sem pensar três vezes, mas imprevisível na coragem de macho. Um homem capaz de dar um coice em queixo inimigo e machucar.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 151) Isso aconteceu com Azaz e sua gangue um ano antes do fim da Segunda Guerra. Foi quando Nael nasceu. A cidade toda comentou a briga. “Ninguém se intrometeu. Em duelos assim, só Deus é mediador.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 154) Halim procurou o contrabandista Wyckham, que ocultou o verdadeiro esconderijo de Omar, dizendo que viajara para os Estados Unidos e ainda não dera notícias. Halim procurou Tannus, antigo companheiro de jogo. Durante três noites vasculharam clubes grã-finos e espeluncas dos subúrbios de Manaus. Na quarta noite, num botequim da Colina, sentaram-se numa mesinha para tomar um uísque presenteado a Tannus por Wyckham. Foi ali que Halim descobriu que o homem não era inglês, chamava-se Francisco Alves Keller, o Chico Quelé. Foi por intermédio do falso inglês que Omar ficou conhecendo a Pau-Mulato. Halim alugou um barco e passou meses procurando pelo caçula junto com Pocu, Nael e Tannus. Voltou triste por não ter achado o filho antes de Zana. Halim passa a estranhar a quantidade de peixes que são comprados, contrariando o controle que Zana exercia sobre as despesas. Comeu-se bem e com desperdício durante a estação das chuvas. O peixeiro Adamor, conhecido como Perna-deSapo, porque arrastava uma perna, fora incumbido por Zana de encontrar Omar. Adamor, em 1943, resgatara um tenente-aviador norte-americano que caíra na selva. Por causa de sua bravura foi condecorado com uma Esse homem metamorfoseado em anjo assombrou sua mãe. E o anjo, em lugar de apaziguá-la, transtornou-a. Zana achava esquisito ver o filho à mesa nas refeições, ver o homem que nunca tinha trabalhado acordar cedo, barbear-se […] HATOUM, Milton. Op. cit. p. 135. Omar dizia trabalhar num banco estrangeiro. Rânia passou a conviver mais com o irmão. Certa feita Omar levou um tal Wyckham ou Weakhand, que dizia ser gerente de um banco estrangeiro. Possuía um Oldsmobile conversível, prateado com bancos forrados de azulão. Para surpresa de todos, era o carro de Omar. Zana não engoliu a história do banco estrangeiro. Descobriu que Wyckham era contrabandista. Omar conferia as mercadorias contrabandeadas, que eram enviadas do armazém número nove para uma chácara. Por trás daquilo estava a mulher que envolvera o filho: a Pau-Mulato, uma gigante, uma mulher ma- 8 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. O capítulo destaca o ciúme de Zana pelos filhos. A chegada de Yaqub altera a rotina da família. Os gêmeos confirmam suas diferenças psicológicas. Omar é o oposto do irmão, preguiçoso, boêmio, aproveitador. Seu comportamento muda depois que se apaixona por uma nova mulher. A mãe estranha e contrata um delator para dar o paradeiro do filho, envolvido também em contrabando. medalha de honra. Não foi à toa que passou a vender os peixes mais caros e também os encalhados para Zana, que impediu Domingas de escolher os peixes. Numa manhã de sábado, Halim viu a mulher sair com o peixeiro. Zana usava sua melhor roupa. Halim sabia que Omar seria fisgado. Estava escondido a 300 metros da toca de Halim, como descobriu o astuto Adamor. 7 Na primeira semana de janeiro de 1964 Antenor Laval passou em casa para conversar com Omar. O professor de francês estava afobado, me perguntou se eu havia lido os livros que me emprestara e me lembrou, com uma voz abafada: as aulas no liceu começam logo depois do Carnaval. […] HATOUM, Milton. Op. cit. p. 185. Laval vivia num porão cheio de papéis, garrafões vazios de vinho e restos de comida ressequida. Ele conseguiu convencer Omar a ir até sua casa para uma sessão de poesia. Omar só voltou na madrugada do dia seguinte. Pediu muito dinheiro a Rânia, que recusou o pedido. Nael visitava os fregueses da loja para tentar vender alguma mercadoria. O movimento estava pequeno. Rânia insistia nessas visitas. Halim via Rânia carregar caixas de mercadoria e vender de porta em porta. Sentia piedade da filha, que se matava para sustentar o parasita do irmão. Não suportava mais olhar para o filho. Em março, Laval passou algumas semanas sem aparecer nas aulas. Estava muito abatido quando apareceu. Não conseguiu dar sua aula. Saiu sem dizer uma palavra. Não voltou mais ao liceu. Foi preso numa manhã de abril. […] Morava num motor velho, barquinho de aluguel, bem barato. Dormiam numa rede, ele e a mulher. E dormiam ao ar livre em praias desertas, onde atracavam o motor. Passariam a vida assim? Talvez. Ela, a Pau-Mulato, dando uma de cartomante, lendo a mão calosa dos ribeirinhos, recebendo farinha e moedas em troca de destinos fantasiosos. […] ambos na honrosa pobreza, sem horário para nada. Soltos e livres, viviam a vida sem o previsível. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 169-170. Omar estava careca, barbudo e quase preto de tanto sol. Mais magro. Usava uma bermuda suja e cheia de furos. Entrou em casa destruindo tudo com uma corrente de aço. Rasgou os retratos do irmão, a quem culpava junto com o pai. Queria saber de Halim. Demonstrou claramente os seus ciúmes de Yaqub. Não parava de xingar a mãe, Domingas e Nael, que se preparou para revidar se Omar o atacasse. Pensou em atacar Zana, mas ela usou seu poder de mãe, insultou a mulher com quem o filho vivia. Sabia de tudo, do contrabando, do aliciamento de meninas para o inglês de araque. Omar acalmou-se. Domingas e Nael começaram a limpar a bagunça e consertar as cadeiras quebradas. O espelho veneziano estava destruído. Halim pedira a Nael que seguisse Zana. Sabia que algo aconteceria. Sentia ciúme do filho como nunca. Nael acompanhou a cena toda até o regresso de Omar, que passou vários dias fechado no quarto. O gêmeo foi mimado como nunca, para desespero de Halim. Rânia foi obrigada a abrir o cofre da loja, ceder aos caprichos do irmão. Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó branco explodiu de vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas procurando uma apoio […] Laval foi arrastado para um veículo do Exército […] Tudo isso em abril, nos primeiros dias de abril. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 189-190. Nael apanhou a pasta surrada de Laval. Dois dias depois, todos souberam que o mestre estava morto. Choveu muito no dia da morte de Laval. Os estudantes se reuniram no coreto para ler poemas manuscritos do professor. “Omar foi o último a recitar. Estava emocionado e triste, o Caçula.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 190) Escreveu com tinta vermelha um verso de Laval. Nael não conseguiu odiá-lo naquele momento. No mesmo dia, Yaqub voltou a Manaus. Estava com Domingas na varanda quando Omar chegou. Este ignorou o irmão. Domingas não atendeu ao seu chamado. Halim e Zana chegaram. Depois de beijar o filho, Zana foi cuidar de Omar. Halim trouxe notícias de que os militares cercaram a cidade flutuante. Rânia conversou com o irmão. Zana cuidava do doente, que mal conseguia engolir. Yaqub olhava. Domingas sabia que ele matutava alguma coisa. Nael tinha medo, mas Yaqub nada temia. Levava Nael com ele pela cidade. Ele ouvia a ladainha e começava a acariciar a irmã: um beijo nas mãos, um afago no pescoço, uma lambida no lóbulo de cada orelha. Enlaçava-a, carregava-a no colo, olhando para ela como um conquistador cheio de desejo. As palavras que adoraria ouvir de um homem ela ouviu de Omar, “o irmão que nunca ficou longe de ti, que nunca te abandonou, mana”, ele sussurrava. Rânia se derretia, sensual e manhosa, e a voz dela, mais pausada, ia cedendo um pouquinho, até balbuciar, concordar: “Está bem, mano, te dou uma mesadinha, assim tu te divertes por aí.” HATOUM, Milton. Op. cit. p. 178. O capítulo destaca o resgate de Omar para os braços de Zana, que se desesperava com o ausência do filho mimado. Novamente, o narrador sugere uma relação incestuosa entre Omar e Rânia. O comportamento de Halim em relação ao filho sugere o distanciamento entre eles e aproximação entre o velho e o narrador. Ele [Yaqub] sabia que Manaus se tornara uma cidade ocupada. As escolas e os cinemas tinham sido fechados, lanchas da Marinha patrulhavam a baía do Negro, e as 9 contrar-se com as prostitutas. Não era a primeira vez que ficava doente. Zana aplicava compressas no membro do filho. Ao urinar, ele acordava a casa inteira. Halim costumava escapulir de casa durante o dia. Nael era enviado por Zana para ir atrás do avô. Comia as comidas que a nora Lívia enviava de São Paulo. Desprezava a comida de casa. “Era um insulto para Zana, mas ele não se importava mais.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 210) Halim revoltou-se com a demolição da Cidade Flutuante. Chorou quando viu seu bar predileto ser derrubado. Na véspera de natal, Halim desapareceu. Ninguém o viu, nem mesmo os amigos. Zana esperou por ele, não procurou a polícia. Sabia que voltaria para casa. Todos acabaram dormindo, mas atentos à chegada de Halim. Quando Zana se levantou, lá pelas cinco da manhã, encontrou Halim no sofá cinzento. Chamou-o pelo nome. Perguntou por que chegara tão tarde. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 198. Nael sentiu-se mal ao acompanhar uma fila interminável de veículos militares e lembrar-se da prisão de Laval. Yaqub e Halim mostraram-se preocupados com ele, que passou vários dias de cama. Yaqub, Halim e Domingas comemoraram o aniversário de Nael. Omar fez um grande barulho, como se quisesse roubar a festa que ocorria no quarto dos fundos da casa. Yaqub foi se despedir de Nael e do pai, que o abraçou chorando e disse que aquela era a casa dele, Yaqub. Nael perguntou à mãe se Yaqub era seu pai. Domingas pediu que aproveitasse para descansar e ler. Omar também sentiu a morte de Laval, de quem era verdadeiramente amigo. Quando saiu do quarto, tinha o olhar fixo e parecia um farrapo. Deixou as noitadas, dedicando-se a catar frutas podres no quintal e cuidar das plantas. Numa tarde de sábado, Nael é chamado por Rânia para ajudá-la a empilhar umas caixas de mercadoria no depósito da loja. Rânia trancou as portas da loja para não serem importunados. O andar de cima fica atulhado de caixas. Rânia resolveu arrumar toda a loja, a começar pelo depósito. Jogou fora as quinquilharias e os objetos de outro século. […] Halim não respondeu. Estava quieto como nunca. Calado, para sempre. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 213. 8 Omar desapareceu numa tarde de outubro, dois meses antes da morte de Halim. Mortificara o corpo todos os dias, mesmo nos dias mais quentes. Omar não se conformou com a morte do pai naquela madrugada. Apontava o dedo em riste e gritava com o pai. Talib chegou a tempo de evitar um confronto entre o filho vivo e o pai morto. Nael arrastou o Caçula para fora da sala. Não suportou vê-lo tão corajoso diante do finado Halim. Enfrentou Omar, que o ameaçou com um terçado. Chamou-o de covarde. Omar empunhou o facão, mas recuou. […] Quando se curvou para abrir uma caixa de lençóis, vi os seios dela, morenos e suados, soltos na blusa branca sem mangas. Rânia demorou nessa posição, e eu fiquei paralisado ao vê-la assim, recurvada, os ombros, os seios e os braços nus. Os lábios se moveram e a voz manhosa sussurrou lentamente: Vamos parar? Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar. Omar foi ao enterro, mas permaneceu distante, tão distante que o irmão, mesmo ausente, parecia estar mais próximo da despedida ao pai. Yaqub mandara entregar no cemitério uma cora de flores e um epitáfio, que Talib traduziu e leu em voz alta: Saudades do meu pai, que mesmo a distância sempre esteve presente. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 206. Rânia não fugiu do abraço, afagos e beijos de Nael. Passaram horas juntos naquele suadouro.16 Rânia confessou a Nael que a mãe implicou com o homem que ela amava, cancelou a festa de 15 anos da filha, ameaçou fazer um escândalo. Por isso desprezou todos os pretendentes escolhidos por Zana. Rânia pediu que Nael fosse embora, dormiria ali na loja. Nael nunca mais foi chamado por Rânia para outro sábado na loja, apesar de confessar que gostaria. Tampouco descobriu quem era o homem por quem Rânia foi apaixonada. Omar contrai doença venérea (gonorréia). À noite costumava escapar da tarefa de jardineiro e ia en15 16 HATOUM, Milton. Op. cit. p. 220. Algumas semanas depois, Zana repreendeu Omar por ter humilhado o pai morto. Não admitia o dedo em riste e as palavras duras. Zana mandou que parasse de bancar o coitadinho, de esfolar as mãos e os braços como péssimo jardineiro. Deveria procurar um emprego e parar com a mania de desocupado porque não tinha pai. Zana recusou o carinho do Caçula, que veio atrás dela até a sala. O golpe militar alterou a rotina da cidade de Manaus, como de todo o país. Ainda que o incesto com o irmão não seja confirmado, o incesto com o sobrinho Nael é claramente descrito no romance. 10 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. estações de rádio transmitiam comunicados do Comando Militar da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja, porque a greve dos portuários terminara num confronto com a polícia do Exército. Halim me aconselhou a não mencionar o nome de Laval fora de casa. Outros nomes foram emudecidos. A tarja preta que cobria uma parte da fachada do liceu fora arrancada e as portas do prédio permaneceram trancadas por várias semanas. 15 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. construtora estava destruído. Rochiram procurara Rânia na loja e ameaçava com um processo para ser indenizado pelo prejuízo com a comissão do terreno e com o que pagou a Yaqub pelo projeto. Rânia pediu um tempo. Rânia tentaria tudo para evitar um processo de Yaqub contra Omar. Domingas não contou a briga para Zana, apenas disse que Yaqub não pôde reagir. Rânia convidou o irmão para trabalhar com ela, mas ele não aceitou. Omar voltou à noite manauara. Zana mostrava-se calada, triste por causa da morte de Halim. Omar contava à mãe que Manaus estava mudada, cheia de estrangeiros. Zana não deu atenção ao buquê e ao convite de Omar para jantarem juntos, só os dois. Queria a paz entre os filhos. Num sábado, Omar chega com um homem, o indiano Rochiram. Domingas estava indisposta e não gostou do visitante sentar no sofá de Halim. Por isso recusou-se a ajudar Zana a preparar um lanche. Rochiram passou a freqüentar a casa, sempre acompanhado por Omar, porque percebera que podia cativar Zana. Trazia presentes. Rochiram queria construir um hotel em Manaus. Domingas não gostava do estrangeiro. Sonhara com Halim na primeira noite que o homem esteve lá. Zana enviou uma carta para Yaqub falando do estrangeiro, que queria construir um hotel em Manaus. Procurava conciliar os filhos num projeto comum. Pedia perdão por ter enviado o filho para o Líbano. Quase um mês depois veio a resposta. Yaqub não aceitou ou recusou qualquer perdão. O atrito entre ele e Omar era um assunto dos dois. Na carta acrescentou: “Oxalá seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma cena bíblica.”17 (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 228) Interessou-se pela construção do hotel. Omar debochou da carta. Passou um bom tempo incomodando Rânia e a mãe por causa da carta do irmão. Gastou todo o dinheiro que ganhara de comissão na venda do terreno do hotel em bebidas e presentes para namoradas. Nael ouve um cochicho entre Zana e Rânia de que Yaqub estava hospedado num hotel barato em Manaus. Domingas duvidava porque ele viria vê-la. Yaqub apareceu depois de um dia de muita chuva. Nael acreditou que um dos olhares de Yaqub para ele eram olhares de um pai. Esboçara os cálculos para uma grande construção em Manaus. Esteve muito próximo, muito íntimo de Domingas. Recusou-se a ir embora, como Domingas aconselhou. Estava em casa. Nael assustou-se com a chegada de Omar, que avançou sobre o irmão e socava e chutava. Nael não conseguiu detê-lo sozinho. A chegada dos vizinhos do cortiço dos fundos pôde conter a raiva de Omar. Yaqub foi levado por Domingas a um hospital, muito machucado. Ferira gravemente a mão esquerda e perdera três dentes. Além de sentir muitas dores nas costas. Yaqub pediu que Domingas inventasse para a mãe que ele partira para São Paulo com pressa. Mas Zana descobriu tudo. Seu sonho de unir os filhos numa 17 18 9 Uma tarde Domingas e o filho foram passear na praça da Matriz. Não havia mais uma multidão de pássaros. O aviário estava silencioso. Índios e migrantes esmolavam na escadaria da igreja. Nael fica sabendo que Halim ajudou Domingas quando o filho nasceu. Foi Halim que escolheu o nome do neto. Ela sentia que ele gostava muito do neto. Domingas contou que uma noite Omar entrou no seu quarto e a agarrou com força. Ela não queria. Omar nunca pediu perdão.18 Depois que contou isso ao filho, evitava sair do quarto. Zana mandou jogar fora o cofre de Halim. O mesmo cofre em que acorrentara o filho. Omar continuava sumido. Zana pedira aos amigos de Halim, Talib e Cid Tannus, que trouxessem o filho de volta. Nael encontrou Domingas morta na rede de Omar, descorada depois de lavada para tirar o sangue de Yaqub. Morreu, mas não sem antes revelar o segredo do nascimento do filho. Zana abraçou Domingas de joelhos. Nael pediu a Rânia para enterrar a mãe no jazigo da família, ao lado de Halim. Rânia concordou. O capítulo exerce a função de decifrar um dos enigmas do romance: a paternidade de Nael, o narrador. A morte de Domingas e sua confissão destacam a importância dessa passagem. 10 A família tinha que se mudar para um bangalô. Zana não queria sair da casa. Zana começou a caducar. Primeiro quebrou o braço e a clavícula esquerda. Costumava dependurar as roupas no varal e colocar os sapatos de Halim no alpendre. Chamava por Domingas. Rânia não suportava ver a mãe conviver com fantasmas. Sabia que a casa deveria ser vendida para pagar a dívida com Rochiram. Rânia mudou-se sozinha para o bangalô. Zana costumava conversar com Nael, depois que restaram apenas os dois na casa. Ela mesma fazia as perguntas e respondia. Nael ficou sabendo mais sobre Zana, Halim e Galib. Não suportava a ausência de Omar. Referência à passagem bíblica da luta entre Caim e Abel. Finalmente, Nael descobre que é filho de Omar, que estuprou Domingas quando estava bêbado. 11 O capítulo destaca a decadência final da família de Halim que, na ausência do patriarca, encontrase numa difícil situação financeira e deixa a casa, já bastante arruinada. A morte de Zana mostra o fim do ciclo familiar e a separação definitiva dos demais membros, cabendo a Nael reunir pela memória as lembranças familiares. […] Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos. 11 Zana morreu quando Omar estava foragido. Na viu a reforma da casa. Os azulejos portugueses foram arrancados. Em pouco tempo, a fachada transformou-se num horror. Houve uma festa de estrondo na inauguração da casa de Rochiram. A Nael coube como herança apenas uma passagem e os fundos da casa. Yaqub decidira dessa forma. Achara sensato vender a casa e uma boa parte do terreno a Rochiram para Omar não sofrer as conseqüências. Na noite que passara no hospital, Yaqub fora obrigado a embarcar para São Paulo porque Omar invadira o hospital e por pouco não agrediu novamente o irmão. Omar só não foi preso porque subornou policiais. Depois da morte da mãe, Yaqub agiu, colocando um oficial de Justiça atrás do irmão. Omar não parava em lugar nenhum para escapar da Justiça. Rânia costumava ser cobrada pelas dívidas que Omar deixava. Passou a ser procurado por vários delitos. Rânia não podia quitar todas as dívidas do irmão. Tinha que poupar para o que viria depois. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 264. Nael viu Omar pela última vez quando este saiu do presídio. Nael tornara-se professor no liceu e dera sua primeira aula. Voltou para casa e estava envolvido com os escritos de Laval e com a anotação das conversas com Halim. Omar invadiu o seu refúgio. Nael esperava que ele confessasse a desonra, a humilhação. Esperava o perdão. Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 266. 4. SÍNTESE DO ENREDO O narrador participa da ação principal do romance Dois irmãos. Nael conta as histórias que viveu ou ouviu Halim, sua mãe Domingas ou Zana contar. A angústia do narrador é descobrir quem é seu pai, já que é considerado neto de Halim, apesar de morar com a mãe nos quartinhos dos fundos da casa da família. A história gira em torno do drama de uma família de libaneses que vivem em Manaus. Halim casou-se com Zana e não queria filhos para atrapalhar o amor 12 Cedo ou tarde, o tempo e o acaso acabam por alcançar a todos. O tempo não apagara um verso de Laval pintado no piso do coreto da praça das Acácias. Alguns anos depois, num dos primeiros dias de abril, um lance do acaso uniu o destino de Laval ao de Omar. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 259. Rânia encontrou Omar na praça das Acácias, mas não conseguiu aproximar-se. Três policiais o fareja- 12 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. vam. Omar riu na cara dos “meganhas”. Recebeu uma coronhada no rosto e foi arrastado até uma viatura. Rânia tentou intervir, mas foi repelida brutalmente. Nael intuiu que a amizade com Laval “era uma forma de condenação política”. Omar foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão. Rânia escreveu a Yaqub condenando sua vingança, que era mais patética que o perdão. Ameaçou desprezá-lo para sempre, queimar suas fotos e devolver as jóias e roupas que ganhou, se não renunciasse à perseguição de Omar. Cumpriu a promessa diante do silêncio do irmão. Nael afastou-se de Rânia, porque ela não aceitou a omissão dele diante da prisão de Omar, que saiu pouco antes de cumprir a pena. Omar chorou a morte da mãe. Esquivou-se de Rânia e de todos os vizinhos. Nael recebia cartas breves e esparsas de Yaqub, que pedia para cobrir de flores o túmulo dos pais e cobrava uma visita a São Paulo. Nael adiou a visita por 20 anos. Rochiram apareceu para cobrar sua dívida: a casa em troca da dívida dos irmãos. Afirmou que Yaqub concordava. Poucos dias depois um caminhão levou a mudança para o bangalô. Zana partiu sem conhecer o desfecho da história. Nael ficou sozinho em seu quartinho dos fundos. Num domingo Rânia pediu que tomasse conta de Zana enquanto ia ao mercado. Nael voltou às leituras. Zana entrou no galinheiro e não queria mais sair de lá. Estava com as roupas de Halim sobre o corpo. Com dificuldade, conseguiram colocá-la no carro. Nunca mais voltou. Nael voltou a encontrar Zana numa clínica, com hemorragia interna. Depois de pronunciar algumas palavras em árabe, balbuciou “Nael… querido…” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 254) Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. viviam precariamente na cidade, e os anos que se seguem, até o período de implantação e domínio da ditadura militar. A modernidade convivia com o comércio tradicional e retrógrado dos secos e molhados e com a proliferação de produtos importados. A narrativa focaliza ainda a inauguração de Brasília e as mortes e transformações causadas pela repressão/opressão militar. C) Espaço: O espaço principal é Manaus, onde se passa a maior parte da narrativa. Estão presentes o centro, os bairros e os subúrbios da cidade ribeirinha. A miséria e o fausto convivem nesse cenário, onde o consumismo começa a espalhar-se depois da crise da borracha, com o processo de modernização. No entanto, também está presente a São Paulo dos anos de 1950, como na descrição da seringueira da praça da República, objeto de identificação com o mundo de onde Yaqub partiu e de que não consegue se esquecer. O Líbano é um referencial lembrado apenas por Zana e Halim, já que Yaqub em nenhum momento fala do que viveu nos cinco anos que passou na terra natal dos pais. D) Foco narrativo: O foco narrativo está na primeira pessoa. O narrador-personagem é Nael, um membro à parte dentro do clã de Halim, que escreve o que viu e viveu, mas principalmente transcreve as histórias contadas pela própria mãe. O narrador-observador é uma testemunha privilegiada, que tenta reconstruir a própria identidade com fragmentos das histórias contadas pelos outros ou que presenciou, distanciado da cena principal em quartinho no fundo da casa. sensual entre ele e a esposa. O sogro Galib volta para o Líbano, onde morre longe da única filha. O casal acaba tendo dois filhos homens, gêmeos, Yaqub e Omar, e uma filha, Rânia. Os gêmeos tornam-se inimigos mortais desde muito jovens. Eram diferentes em tudo: à ousadia e à coragem de Omar opunhamse a timidez e a covardia de Yaqub. Ambos, mas principalmente Omar, foram estragados pelos mimos e desvelos da mãe. Zana tem ciúme doentio dos dois filhos até mesmo de Rânia, a quem impede de continuar namorando o homem pelo qual era apaixonada. Yaqub foi enviado para o Líbano, depois de ser atacado por Omar durante uma briga por causa de Lívia, uma menina por quem Omar era apaixonado. Depois de voltar para o Brasil, Yaqub vai para São Paulo, torna-se engenheiro sem a ajuda da família e casa-se escondido com Lívia. O ódio entre os gêmeos continua. Omar leva uma vida devassa entre bares e prostíbulos, amores vadios com mulheres da vida, para desespero da mãe. Não trabalha, não estuda e ganha dinheiro da mãe para continuar sempre em casa. Zana não admite os namoros do filho. Omar atormenta a vida de todos na casa, inclusive da pobre Domingas e de Nael, com suas brigas e bebedeiras. Rânia assume os negócios da família, com o apoio de Yaqub. Nael descobre pela mãe que Omar invadiu seu quarto numa noite e estuprou-a. Sabe que é filho de Omar, mas sente-se mais próximo de Yaqub, de quem a mãe sempre foi amiga e confidente. Depois da morte de Halim, o ódio entre os irmãos cresce, a ponto de, numa visita de negócios incentivada pela mãe para aproximar os filhos, Omar agredir violentamente o irmão, que vai parar no hospital. Yaqub abre processo por lesão corporal contra Omar. Zana morre sem rever Omar. Depois de algum tempo, Omar é preso e cumpre pena. Rânia afasta-se definitivamente de Yaqub. Omar sai da cadeia. Nael torna-se professor no liceu e vê pela última vez Omar. Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância sem nenhum sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 73. E) Personagens: Apesar da aparente concentração nas figuras masculinas dos gêmeos, são as figuras femininas que possuem o poder de decisão na narrativa. A história é contada por um narrador masculino, mas a partir da memória de sua mãe, cuja visão faz parte do estrato inferior dentro da família. A memória reside, portanto, nas figuras femininas, principalmente Zana e Domingas. Cabe a Zana a verdadeira escolha dos destinos dos homens da família. Seu apego pelo filho caçula conduz a ação ao limite da disputa entre os dois gêmeos pela atenção, o carinho e o amor da mãe. 5. ESTRUTURA DA OBRA A) Ação: A narração é realizada como uma colcha de retalhos através dos fragmentos ouvidos ou vividos pelo narrador-personagem porque já se passaram 30 anos e quase todas as personagens já estão mortas. B) Tempo: Ambientada entre as décadas de 1940 e 1970, a narrativa focaliza Manaus entre a época da Segunda Guerra, período de grande miséria e exploração norte-americana, comércio realizado por imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos, que 1. Nael: É o narrador, que conta a história da família à qual pertence, mas como elemento intruso, já 13 que é filho ilegítimo de um dos gêmeos com a índia Domingas. Sua posição na família é definida pelo lugar em que vive – um quartinho nos fundos da casa, junto com a mãe. A narrativa parece uma forma de busca da própria identidade. Sua dúvida em relação à figura do pai permanece durante quase toda a narrativa, despertando a curiosidade do leitor. Não consegue deixar esse vínculo e encontra na escrita uma forma de libertação que parece uma nova escravidão, porque se sente preso à memória da família. 2. Omar: É o caçula dos gêmeos. Indivíduo ousado, agressivo, boêmio, não gosta de estudar e só faz o que lhe dá prazer. Sedutor incorrigível, ele apresenta um comportamento que pode ser considerado imoral. Bebe muito e torna-se violento. Apesar de fisicamente idêntico ao irmão, sua personalidade é oposta. 3. Yakub: Ao contrário do irmão, é esforçado. Forma-se engenheiro pela USP. Assim como o irmão, disputa um lugar na família e no coração da mãe. Apesar de silencioso e pensativo, não é uma pessoa tranqüila. Seu humor é oscilante. Sofreu um forte trauma ao ser separado de seu mundo e mandado para uma aldeia no Líbano por cinco anos. Seu afastamento para São Paulo e sua independência financeira confirmam sua capacidade de superação. 4. Zana: A mãe dos gêmeos; ela é uma libanesa forte e determinada. Guarda por toda a vida os gazais que Halim, seu marido, recitou para conquistá-la, símbolos da sua cultura de origem. São essas mulheres que decidem os rumos da família, enquanto o destino inexorável não lhes toma as rédeas das mãos. 5. Halim: Marido de Zana e pai dos gêmeos e de Rânia, é patriarca da família de libaneses. Adaptou-se muito bem em Manaus, onde começa como mascate. Depois de casar-se com Zana, cuida por um tempo do restaurante do sogro, mas depois monta um estabelecimento comercial pequeno. Não consegue conter sua sensualidade em relação à esposa, e sente-se incomodado pela chegada dos filhos. Seu desalento resulta do fato de ter perdido o amor de Zana para os filhos. Boa parte das narrativas de Nael resultam das histórias que ouviu de Halim. 6. Domingas: Mãe de Nael, é ela quem conta boa parte da história dos gêmeos e da família ao filho. Ela morre pouco depois de revelar o segredo da verdadeira paternidade de Nael. 7. Rânia: Irmã dos gêmeos, ela é bela e sensual. Apesar de inteligente, deixa a faculdade e prefere ajudar o pai nos negócios, no que se sai muito bem. Recusa as propostas de pretendentes e prefere fechar-se dentro do próprio quarto. Sua sexualidade fica quardada, porque parece realizar-se apenas com os irmãos ou com alguém desconhecido. Dois irmãos é um romance contemporâneo que confirma a força narrativa e o domínio de linguagem de Milton Hatoum. Sem dúvida, o autor está entre os principais escritores da atualidade, como a crítica positiva de leitores e profissionais da área tem demonstrado. Não se trata de um estreante, mas de um autor maduro tanto no instrumento ficcional quanto em sua postura diante do papel do escritor na sociedade brasileira. Milton é uma pessoa conscientemente crítica, um professor experiente. A modernidade da obra está presente na linguagem fluente, sem ser descuidada. O vocabulário confirma a intenção do escritor de integração entre grupos sociais, étnicos e profissionais que convivem numa Manaus em ritmo de transformação. Expressões e termos da cultura árabe misturam-se com o tupi e outras línguas, dando equilíbrio ao romance. É uma característica realista da obra essa mistura de línguas e expressões, já que pode ser facilmente percebida nas ruas e no porto de Manaus. Essa transculturação é o traço mais importante. Os nomes de peixes, frutos, plantas e comidas mostram essa pluralidade lingüística e cultural, e os cheiros e gostos de Manaus se destacam entre os outros sentidos que a leitura de Dois irmãos desperta. […] O homem que deixara a clientela do restaurante manauara com água na boca já era um exímio cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade do azul. […] E quando visitava uma casa à beira-mar, Galib levava seu peixe preferido, o sultan ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas cujo segredo nunca revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos fortes com a pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com tucupi jambu e regava o peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez. HATOUM, Milton. Op. cit. p. 63. A presença da metalinguagem é outro traço de modernidade do romance: Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo nos faz esquecer, também é cúmplice delas. […] HATOUM, Milton. Op. cit. p. 244. O romance ambienta-se em Manaus e região, mas nem por isso pode ser considerado regional, porque os aspectos exóticos do espaço não formam o cerne da narrativa, mas a ambiência espacial. O centro da 14 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 6.ESTILO DE ÉPOCA E INDIVIDUAL narrativa focaliza o psicológico — o desmantelamento de uma família, por extensão de uma cidade, de um país, no que se refere ao pós-guerra e à implantação dolorosa de um regime militar na vida das pessoas. Assim mesmo esse regional torna-se transcultural pela inserção de usos e costumes, cheiros e gostos, vocabulário de outros lugares e regiões. O regional destaca e individualiza o local, a região amazônica, mas universaliza-se. A Manaus de Milton Hatoum é real, porém fruto da memória, da lembrança. Antenado em seu tempo, o escritor denuncia a modernização do país, que maltrata a população regional e procura massacrar os costumes regionais. 8.BIBLIOGRAFIA HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MARTINS, Gilberto. “Garras da modernidade ferem Dois irmãos.” O Estado de S. Paulo, 18 jun. 2000. A valorização dos elementos sensoriais é uma característica que se destaca de maneira fundamental na composição da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum. De que maneira esses elementos contribuem de maneira sugestiva para a construção do cenário do romance? Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 7. PROBLEMÁTICA E PRINCIPAIS TEMAS Dois irmãos parece dialogar com a temática milenar do desentendimento entre irmãos gêmeos já encontrada em Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Em entrevistas, Milton Hatoum chegou a afirmar essa relação intertextual de Dois irmãos com a referida obra de Machado de Assis. Entretanto, percebe-se que Yaqub e Omar agem de maneira mais violenta e vingativa do que os gêmeos machadianos. O comportamento dos gêmeos aproxima-se mais de que passagem bíblica? Atribua o papel bíblico de cada um dos irmãos no romance. Um ponto importante para que se amplie ao leitor a perspectiva de contextualização de Dois irmãos é entender que as famílias de origem libanesa chegaram à Amazônia na primeira década do século XX. O ciclo da borracha tornava a região rica e próspera, mas sem abandonar o arcaísmo presente nas figuras dos coronéis. Os primeiros imigrantes libaneses dedicaram-se ao comércio ribeirinho, por isso eram chamados de regatões. A ascensão socioeconômica veio não só do comércio ambulante, mas também de estabelecimentos fixos no meio urbano. Ao contrário da Manaus que enfrenta com dificuldade o desenvolvimento a qualquer preço, surge a São Paulo da década de 1950: Essa intertextualidade bíblica é mencionada numa carta. Quem é o autor da carta e a quem ela se destina? (U. Amazonas) Um dos enunciados abaixo, feitos a propósito do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, não está correto. Assinale-o: a) Omar, o Caçula, foge com uma mulher chamada PauMulato, e sua mãe, inconformada, persegue o casal até fazer o filho retornar à casa paterna. b) Antenor Laval, mestre no Liceu Rui Barbosa, apelidado de Galinheiro dos Vândalos, foi morto em abril de 1964, logo após o golpe militar. c) Para conquistar Lívia, Yaqub passou a freqüentar o restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da moça. d) Domingas, uma índia do rio Negro que servia como empregada na casa de Halim e Zana, é a mãe de Nael, o narrador do romance. e) A rivalidade entre os gêmeos fica bem expressa no episódio em que Omar faz uma cicatriz no rosto de Yaqub. […] Com poucas palavras, Yaqub pintava o ritmo da vida paulistana. A solidão e o frio não o incomodavam; comentava os estudos, a perturbação da metrópole, a seriedade e a devoção das pessoas ao trabalho. De vez em quando, ao atravessar a praça da República, parava para contemplar a imensa seringueira. Gostou de ver a árvore amazônica no centro de São Paulo, mas nunca mais a mencionou. […] HATOUM, Milton. Op. cit. p. 59-60. São dois brasis que se confrontam, numa espécie de releitura modernizada de Os sertões, de Euclides da Cunha. As dificuldades econômico-sociais do norte e o progresso do sudeste. A grande dúvida permanecerá ao final da leitura: há um caso incestuoso entre a mãe e o filho Omar? Ou entre um dos irmãos e a irmã? Assim como a ambigüidade presente no melhor da obra machadiana, Dom Casmurro, o narrador deixa os leitores na dúvida, mostrando índices de incesto, mas não os confirmando ao final da narrativa. Sem dúvida, o incesto está presente, mas entre Nael e a tia Rânia. (UFMS, adaptada) Com relação ao romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, assinale a(s) alternativa(s) correta(s). a) Em torno da família de Halim, vivem diversos agregados, tais como o poeta Antenor Laval, o escroque Rochiram, o viciado em jogo Cid Tannus, o dissimulado Zanuri e imigrantes recém-chegados do Líbano. b) Halim teve quatro filhos: os gêmeos Yaqub e Omar, e duas moças, Zana e Raina. 15 Trata-se do enfrentamento entre Halim e A. L. Azaz, um grandalhão façanhudo que espalhara que Halim se deitava com várias moças de família. Astucioso diante da envergadura do oponente, Halim leva a melhor no duelo e, mesmo muito machucado, só não corta a língua do adversário devido à intervenção da assistência. e) Entre os papéis do poeta Antenor Laval, professor de francês preso e assassinado pelo exército quando deflagrado o movimento militar de março de 1964, o narrador descobre as cartas apaixonadas que Rânia lhe enviava. O final trágico do poeta denota a filiação do autor ao movimento ultra-romântico inspirado na vida e na obra de Lorde Byron. (UFMS) O romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, recupera a história de uma família manauara ao longo do século XX. O narrador afirma: “Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritos de Antenor Laval, e a anotar minhas conversas com Halim. Passei parte da tarde com as palavras do poeta inédito e a voz do amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa alternância — o jogo de lembranças e esquecimentos — me dava prazer.” (p. 265). É, pois, um registro ao sabor dos meandros da memória. A propósito do enredo dessa narrativa, assinale a(s) alternativa(s) correta(s). a) Halim casa-se com Zana, dela se separa e tornam-se amantes; por fim, ela rompe o novo relacionamento, retornando para Halim. b) Rânia, filha de Halim e Zana, mantém um curto romance secreto com o narrador; ela, no entanto, permanece solteira, justificando sua opção pela necessidade de se dedicar aos negócios da família. c) O título Dois irmãos decorre dos gêmeos Yaqub e Omar: o primeiro, introvertido, torna-se engenheiro em São Paulo; o segundo, “o Caçula”, é farrista, não trabalha, mas é o predileto da mãe. Os dois disputam o amor da mesma mulher, Domingas, mas quem com ela estabelece um romance secreto é Halim, o velho sedutor. d) Um episódio do romance é assim introduzido pelo narrador: “A briga que toda a cidade ficou sabendo, e se lembrava, em tom de anedota, hoje tão distorcida, nas versões fantasiadas pelo tempo e suas vozes.” (p. 152). Expectativas de respostas 1. A composição do cenário da obra Dois irmãos é feita a partir de elementos sensoriais que criam um cenário exuberante em torno da Manaus dos anos de 1960. O narrador Nael capta não apenas o que vê ou sente através do olfato, mas também o que Halim e as demais personagens percebem do cenário que as cerca. Os elementos sensoriais parecem preencher esse cenário, recriando de forma exuberante tanto a beleza da paisagem ribeirinha da cidade e das proximidades de Manaus, como a pobreza de alguns bairros e casas. O olfato é algo muito vivo no transcorrer da narrativa, parecendo colocar os leitores dentro de algumas cenas, como o cais, as margens do rio Negro e as ruas de Manaus. 2. O comportamento dos gêmeos Omar e Yaqub aproxima-se da passagem bíblica dos irmãos Caim e Abel, cujo ódio leva à morte de Abel. Omar exerceria o papel de Caim, daí a violência que demonstra contra o irmão em três ocasiões: na adolescência, quando fere o irmão na face esquerda; na maturidade, quando o agride violentamente na rede diante de Domingas; e logo depois, ao tentar agredir o irmão no hospital enquanto ele era socorrido. Yaqub teria o papel de Abel. 3. A carta foi escrita por Yaqub quando a mãe tenta aproximá-lo de Omar por meio do projeto de construção de um hotel em Manaus. Ele sugere a violência bíblica da passagem de Caim e Abel. O destinatário é Zana, mãe dos gêmeos. 4. c 5. c 6. d 16 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. c) Neto de Halim, o narrador é filho da doméstica Domingas e de Omar. d) Centrado na vida de uma família de libaneses fixada em Manaus, o romance narra a destruição da paz familiar devido à intempestividade de Omar e aos negócios que Yaqub, formado em engenharia, empreende, investindo na construção de Brasília. e) O livro não sugere relacionamento incestuoso, mas deixa clara a paixão doentia de uma mãe pelos filhos a ponto de arriscar a própria estrutura familiar para manter um dos filhos junto dela.
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