Apresentacao COP Barcelona

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Apresentacao COP Barcelona
A organização do desporto em PORTUGAL
O tema que me convidam a apresentar nesta jornada dedicada à diplomacia
desportiva internacional e modelos desportivos espelha alguns dos traços
gerais que tornam a organização do desporto em Portugal uma realidade
singular no panorama europeu.
São esses traços gerais, e o percurso que levou à sua concretização, que
pretendo aqui abordar.
Para elucidar os presentes sobre o modelo português começarei por
contextualizar a emergência do desporto em Portugal identificando aqueles
que considero serem os fatores críticos do seu desenvolvimento e a estrutura
organizativa que lhe suporta.
De seguida apresentarei a configuração geral do sistema desportivo português
e o quadro de competências das organizações que atualmente lhe dão forma,
abordando a sua dinâmica de funcionamento e identificando os aspetos mais
relevantes nessa relação de forças.
Por fim, farei um resumo sobre aquelas que considero serem as maiores
debilidades e potencialidades no modelo de organização do desporto em
Portugal.
CONTEXTO
As primeiras formas de organização do desporto em Portugal surgem no final
do século XIX, sendo a primeira, a Real Associação Naval de Lisboa, fundada
em 1856, o mais antigo clube desportivo da Península Ibérica.
Na sua vasta maioria, estas primeiras entidades tinham por missão propiciar a
prática organizada de atividades desportivas às famílias reais e à aristocracia,
em particular nos desportos de mar, principalmente a vela, e noutras
modalidades enraizadas nas classes da alta sociedade, como a equitação, a
esgrima ou o tiro com a configuração de acesso restrito que adotou dos clubs
britânicos.
Com exceção do sector militar, onde a denominada “cultura física” fazia parte
da formação, o desporto era um bem exclusivo de uma elite social,
importando modelos desenraizados de Inglaterra, e assim continuou até a
ditadura militar assumir o poder em 1926.
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A partir desta data, com a ditadura do Estado Novo, o desporto passou a ser
o instrumento de afirmação da política e da ideologia dominante.
Uma política de inspiração fascista que via na prática desportiva um meio de
revigorar a raça e militarizar a juventude ao serviço da trilogia ideológica que o
celebrizou: “Deus, Pátria e Família”.
A Mocidade Portuguesa foi, neste contexto, a organização que a ditadura
criou ao serviço do revigoramento da raça junto da juventude e da adesão ao
cunho militarista com que via o desporto. De resto o desporto era
considerado algo pouco importante para o Poder.
Esta menor relevância conferida pelo poder político contribuiu de certa forma
para que a sociedade encontrasse nas grandes competições desportivas,
particularmente no futebol, um cenário propício para uma “válvula de escape”
e até de contestação ao sistema.
O futebol rapidamente se tornou uma modalidade popular um pouco por
todo o país e a mobilizar o interesse das comunidades locais onde começaram
a florescer clubes desportivos os quais, ainda que sujeitos a um apertado
controlo e aproveitamento politico, tiveram um papel determinante na
democratização do regime e na construção da estrutura descentralizada do
associativismo desportivo português.
A popularidade do futebol deu origem à criação de um jogo social, o Totobola
(semelhante à vossa quiniela) cujas receitas em muito contribuíram para
financiar o desporto e outras importantes causas sociais, juntamento com a
Lotaria Nacional.
O livre associativismo foi, aliás, uma das principais conquistas com a transição
democrática operada no país em 25 de abril de 1974.
Escrevia um dos maiores pensadores do desporto português, recentemente
falecido, naquela época que “a prática desportiva tem sido, ao longo da História, um
privilégio de certas classes; continua a sê-lo efetivamente, no nosso tempo”
Mais do que uma transição, no que ao desporto diz respeito, pode-se falar de
uma completa rutura, que abriu caminho a alterarem-se progressivamente
estas circunstâncias de privilégio a uma elite:
Rutura com a intervenção e controlo estrito do Estado na vida das federações
e das associações desportivas.
Rutura através da progressiva emancipação das mulheres e do crescente
aumento da sua participação desportiva.
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Rutura através da valorização da importância e da formação dos profissionais
de educação física e desporto e bem assim do desporto na escola.
Rutura através do crescente envolvimento dos Municípios na promoção da
prática desportiva para todos, no apoio ao associativismo desportivo e na
construção de equipamentos e instalações desportivas.
ESTRUTURA
A primeira Lei de Bases do Sistema Desportivo publicada em 1990 veio
consolidar o processo de democratização do desporto no país e definir os
pilares que dão forma ao sistema desportivo nacional, o qual obedece aos
traços gerais do modelo europeu de desporto, atualmente designado por
dimensão europeia do desporto:
1. Estrutura em pirâmide e hierarquizada a partir dos clubes, na base,
até às federações internacionais, no topo, passando sucessivamente,
pelas associações regionais, federações nacionais e confederações
europeias;
2. Organização sob a forma associativa sem fins lucrativos, na
generalidade dirigida por amadores e voluntários, com uma forte
ligação à identidade local, regional e nacional;
3. Sistema de organização e de competição, com base no critério aberto
de promoção-despromoção, com vista a promover a igualdade de
oportunidades, incerteza nos resultados e valorizar o mérito
desportivo, com distribuição solidária das receitas das competições
mais lucrativas pelas de menor âmbito, através do papel central
atribuído às federações desportivas;
4. Tradição de unicidade desportiva, isto é, uma modalidade desportiva
apenas é organizada por uma federação desportiva por unidade
territorial, e uma federação desportiva (salvo as exceções de federações
multidesportivas) engloba apenas a tutela de uma modalidade
desportiva
DINÂMICA
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Podemos considerar a organização desportiva
intervencionista, centralizada e não consolidada
português
como
Intervencionista quanto ao modelo regulador onde acrescem às normas das
federações desportivas um elevado número de diplomas legais através dos
quais o Estado regula o funcionamento de todo o sistema desportivo na vasta
maioria das suas áreas (doping, financiamento ao desporto, orgânica e
competências das federações desportivas, desporto escolar, instalações
desportivas, combate à violência e corrupção).
Para aplicar e garantir o funcionamento deste quadro hiper-regulador, e sendo
Portugal um pequeno Estado, a intervenção e jurisdição governamental segue
claramente uma perspetiva centralizada onde a máquina administrativa do
Estado liderada pela Secretaria de Estado do Desporto e da Juventude
estabelece as orientações de política desportiva e é a fonte da maioria das
normas que regulam o funcionamento do sistema, sendo o Instituto
Português do Desporto e da Juventude o seu braço operacional junto das
organizações desportivas.
O Conselho Nacional do Desporto, que agrega representantes públicos e
privados de várias áreas do desporto, é o órgão consultivo que acompanha a
implementação das orientações de política desportiva, submetendo as suas
opiniões para o efeito.
Apesar das sucessivas versões da lei de bases referenciarem o princípio da
descentralização administrativa em favor dos governos locais (Municípios) as
competências de regulação e implementação de programas desportivos
permanecem ao nível central, ainda que sejam os municípios que cada vez
mais desempenham um papel vital no apoio e financiamento ao desporto,
nomeadamente o desporto local.
As federações desportivas são os principais parceiros do Estado na
implementação e coordenação das políticas desportivas.
O Estado, aliás, cumprido um conjunto de requisitos estabelecidos na lei
delega nas organizações desportivas, através da atribuição do estatuto de
utilidade pública desportiva, o direito a exercer um conjunto de poderes
públicos de natureza reguladora e disciplinar na sua área de atividade.
A titularidade do estatuto de utilidade pública desportiva é um requisito
essencial para as federações desportivas receberem dinheiros públicos para a
realização das suas atividades através de contratos públicos de
desenvolvimento desportivo assinados com o Instituto Português do
Desporto e Juventude onde se estabelecem os termos, as condições objetivos
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a alcançar em cada programa desportivo levado a cabo pela respetiva
federação.
Esta dependência do Estado, que em várias circunstâncias avocou para si
poderes originários do movimento desportivo, em particular os que se
referem à sua organização interna e regulação do poder disciplinar dos seus
agentes, contribui para dar forma a um movimento desportivo não
consolidado de cariz dual.
Na cúpula do sistema desportivo português existem duas entidades, o Comité
Olímpico de Portugal e a Confederação do Desporto de Portugal, com um
conjunto de competências que se sobrepõem e federações desportivas
nacionais representadas em ambas as entidades.
Ou seja, ao contrário da generalidade dos restantes países europeus onde estas
organizações de topo se fundiram, ou em que dividiram competências representando uma delas as federações de modalidades olímpicas e a outras as
restantes federações - em Portugal subsiste uma situação sui generis onde as
federações desportivas se encontram simultaneamente representadas no
Comité Olímpico de Portugal, criado em 1909, e na Confederação do
Desporto de Portugal, criada em 1993.
TENDÊNCIAS e OPORTUNIDADES
A democratização tardia de um país com uma economia frágil, níveis de
escolaridade reduzidos, onde durante décadas se reservou à educação física
um papel menor, no quadro de uma matriz cultural profundamente católica e
fechada nos valores tradicionalistas da família, foram determinantes para erigir
o modelo de organização desportiva cujas linhas gerais se apresentaram.
A herança destas tendências, incorporadas num modelo de cariz centralista
com carências de consolidação, para além de determinar a estrutura e
dinâmica da orgânica desportiva em Portugal, tem um impacto relevante que
se projeta em diversos fatores críticos relevantes para situar os indicadores
desportivos de Portugal na média europeia:
• Portugal é, de acordo com estudos recentes da Comissão Europeia, um
dos países com menor financiamento privado ao desporto, quer se trate
do consumo das famílias em bens e serviços desportivos ou do
investimento, patrocínio e mecenato de entidades privadas;
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• O peso das receitas dos jogos sociais no financiamento público central
ao desporto tem vindo a crescer em relação ao financiamento
proveniente do Orçamento de Estado, tendo sido apenas no ano
passado regulada a abertura do mercado de apostas desportivas;
• O potencial do desporto para o crescimento económico, o emprego, a
integração social e o desenvolvimento do turismo não tem sido
aproveitado;
• A dependência de um modelo centralizado condiciona a iniciativa das
federações desportivas para inovarem os seus processos de gestão,
procurarem outros mecanismos de financiamento, e transforma-as em
organizações burocráticas administrativas condicionando os recursos
disponíveis para a sua principal missão de desenvolver as respetivas
modalidades e quadros competitivos;
• A educação através do desporto tem vindo a ser desvalorizada através
da diminuição do número de horas semanais de educação física na
escola e da sua não contabilização para o cálculo da avaliação do
desempenho escolar dos alunos;
• Portugal apresenta dos indicadores mais baixos de prática de atividade
física e desportiva da União Europeia segundo o estudo
Eurobarómetro de 2014, tendo aumentado esses indicadores em
relação à anterior edição do estudo.
Inverter este cenário e tornar o modelo de organização do desporto português
mais eficiente passa pela capacidade dos seus agentes e organizações
conseguirem colocar o desporto como uma prioridade efetiva na agenda
política, conferindo-lhe meios e recursos de acordo com o seu impacto e
relevância no desenvolvimento social do país.
Por isso, a visão estratégica do Comité Olímpico de Portugal se designa
“valorizar socialmente o desporto”, e se projeta em vários projetos muito para
além da preparação da participação olímpica, tendo em atenção a capital
importância de sensibilizar os decisores políticos, os líderes empresariais e os
dirigentes desportivos que o desporto vale mais para a sociedade do que
aquilo que custa.
O desporto constitui uma ferramenta de inegável valor estratégico para
estimular e rentabilizar algumas das vantagens comparativas do país como o
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clima, a hospitalidade ou o turismo que só poderá exprimir o seu potencial e
alcançar níveis de desenvolvimento de acordo com a média europeia se for
tratado no mesmo plano de igualdade que outras áreas congéneres.
Não é necessário reinventar a roda, pois sabemos que consolidar o modelo
orgânico do movimento desportivo por forma a criar sinergias e valor
estratégico para diversificar parcerias e fontes de financiamento, recentrando o
desporto no sistema educativo do país é a pedra de toque para aspirar a
resultados sustentáveis nos diversos níveis de prática desportiva.
Barcelona, 27 Novembro de 2015
José Manuel Constantino
Presidente do Comité Olímpico de Portugal
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