ano i- número iii

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ano i- número iii
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471
REVISTA ACADÊMICA
SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA
ISSN 2316-8471
CAPANEMA (PARÁ) – ANO 1 – NÚMERO 3 – 2013
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FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471
FACULDADE PAN AMERICANA
REITOR
DIRETORA GERAL
DIRETOR PEDAGÓGICO
DIRETOR ACADÊMICO
SECRETÁRIA ACADÊMICA
COORDENADOR DE FILOSOFIA
COORDENADOR DE LETRAS
COORDENADOR DE PEDAGOGIA
COORDENADOR DE TEOLOGIA
Mons. Dr. Dom Dirceu Milani
Profª Cleudimar Milani
Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula
Profº Lionel Milani
Madre Francesca Soares Milani
Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso
Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista
Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula
Prof. MSc. Sharles Cruz
SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA
ISSN 2316-8471
Capanema (Pará) – ANO 1 – NÚMERO 3 - 2013
DIRETOR-GERAL Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista
MEMBROS Profa. MSc. Graciane Felipe Serrão
Profa. MSc. Renata de Cássia Dória da Silva
Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista
Prof. MSc. Regis Guedes
Prof. MSc. Marcelo Dias
Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso
Prof. Esp. Marco Antônio Teixeira de Paula
Profa. Esp. Grazielle de Jesus Leal de Sousa
Prof. Esp. Adson Manoel Bulhões da Silva
O Periódico SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA é uma publicação acadêmica do Curso de Letras da
Faculdade Pan Americana com periodicidade semestral e suporte em CD-ROM.
Os artigos e resenhas aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Suas
opiniões não refletem necessariamente as do corpo editorial desta publicação.
Figura da capa: http://www.joseeduardomartins.com/10000-univ-big.jpg
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APRESENTAÇÃO
É com muita satisfação que a Coordenação do Curso de Letras da Faculdade Pan
Americana coloca em público a terceira edição do Periódico SABERES LINGUÍSTICOS
N’AMAZÔNIA. Trata-se de uma publicação desenvolvida em conjunto entre docentes e
discentes da Instituição. Assim, busca-se por meio da reflexão e observação diante da
problemática educacional a apresentação de pesquisas desenvolvidas em âmbito
amazônico com o intuito de dar retorno à sociedade a qual esta Instituição de ensino
superior está inserida e, também, com textos que colaborem com a formação dos
estudantes e pesquisadores que atuam no âmbito amazônico.
A primeira contribuição – intitulada ASSIMILAÇÃO EM APURINÃ: o espalhamento
do traço palatal de autoria de Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa e de Marcos
dos Reis Batista – tem por objetivo descrever e analisar um processo fonológico que
ocorre na língua Apurinã (Aruak), falada por comunidades indígenas que vivem no
sudeste do estado do Amazonas, ao longo do rio Purus. Para tanto, recorreu-se à
abordagem oferecida pela fonologia autossegmental.
O segundo trabalho de autoria de Darlan Machado Dorneles e de Lindinalva
Messias do Nascimento Chaves aborda a “Realização da vogal pretônica /e/ nos dados
de três atlas linguísticos da região norte”, trabalho que analisa à luz da Dialetologia e da
Geolinguística contemporânea, a realização da vogal pretônica /e/ na fala acriana, nos
dados do projeto Atlas Linguístico do Acre (ALiAC).
Em seguida, Isabel Cristina Rosa dos Santos trata da “designação de cidadão na
enunciação de Prudente de Moraes e Campos Sales”, Fundamentado na Semântica do
Acontecimento, ele busca compreender a designação da palavra cidadão na enunciação
dos dois primeiros presidentes civis do Brasil: Prudente de Moraes e Campos Sales.
O artigo intitulado “Propósitos comunicativos do gênero ofício” de Ismael Paulo
Cardoso Alves aborda um corpus de 30 ofícios e são elencados os propósitos
comunicativos mais recorrentes desse gênero. Para atingir esse fim, são utilizadas como
aporte teórico as teorias de Askehave e Swales (2009) e Alves Filho (2011) sobre
propósito comunicativo.
O “Glossário português-parakanã para uso na educação bilíngüe e na saúde:
produção, utilização e possibilidades” de Claudio Emidio Silva, Rita de Cássia Almeida
Silva e de Ana Zélia Alves trata da experiência de construção de um glossário PortuguêsParakanã realizado com os dois grupos Parakanã (ocidental e oriental) da Terra
Indígena Parakanã do Tocantins, nos municípios de Novo Repartimento e Itupiranga.
O “Cangaço nos romances fogo morto e os desvalidos: uma análise comparativa”
de Antonio Alan Dantas de Meneses é o último artigo onde apresenta um estudo visa
estabelecer uma análise comparativa entre dois romances da literatura brasileira do
século XX, no que tange à abordagem realizada pelas obras do fenômeno histórico-social
do cangaço. As obras escolhidas, Fogo Morto, de José Lins do Rego, e Os Desvalidos, de
Francisco Dantas, representam dois momentos distintos da produção ficcional
nordestina.
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Por fim, Marcos dos Reis Batista apresenta a tradução do texto “A multimídia no
ensino-aprendizagem do italiano. pro, contra... e erros para evitar” de autoria de T.
Marin onde o autor trata do uso da multimídia no ensino de italiano como língua
estrangeira. No entanto, mesmo se tratando de assunto específico – o ensino do italiano as considerações do autor podem ser refletidas para o ensino de línguas em geral, tanto
maternas quanto estrangeiras.
Desejamos a todos uma ótima leitura.
Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista
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SUMÁRIO
ASSIMILAÇÃO EM APURINÃ: o espalhamento do traço palatal
Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa – Universidade Federal do Pará
Marcos dos Reis Batista – Universidade do Estado do Pará
06
A REALIZAÇÃO DA VOGAL PRETÔNICA /e/ NOS DADOS DE TRÊS ATLAS
LINGUÍSTICOS DA REGIÃO NORTE
Darlan Machado Dorneles e Lindinalva Messias do Nascimento Chaves –
Universidade Federal do Acre
18
A DESIGNAÇÃO DE CIDADÃO NA ENUNCIAÇÃO DE PRUDENTE DE MORAES E
CAMPOS SALES
Isabel Cristina Rosa dos Santos – Universidade Estadual de Campinas
36
PROPÓSITOS COMUNICATIVOS DO GÊNERO OFÍCIO
Ismael Paulo Cardoso Alves – Universidade Federal do Piauí
52
GLOSSÁRIO PORTUGUÊS-PARAKANÃ PARA USO NA EDUCAÇÃO BILÍNGÜE E NA
SAÚDE: PRODUÇÃO, UTILIZAÇÃO E POSSIBILIDADES
Claudio Emidio Silva – Universidade Federal do Pará
Rita de Cássia AlmeidaSilva – Universidade do Estado do Pará
Ana Zélia Alves – Programa Parakanã
60
O CANGAÇO NOS ROMANCES FOGO MORTO E OS DESVALIDOS: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA
Antonio Alan Dantas de Meneses – Universidade Federal do Pará
72
A MULTIMÍDIA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DO ITALIANO. PRO, CONTRA... E
ERROS PARA EVITAR
T. Marin – Edizioni Edilingua
Marcos dos Reis Batista – Universidade do Estado do Pará (Tradutor)
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FONOLOGIA
ASSIMILAÇÃO EM APURINÃ: o espalhamento do traço palatal
Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa
Universidade Federal do Pará
Marcos dos Reis Batista
Universidade do Estado do Pará
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo descrever e analisar um processo
fonológico que ocorre na língua Apurinã (Aruak), falada por comunidades indígenas que
vivem no sudeste do estado do Amazonas, ao longo do rio Purus. Trata-se do
espalhamento do traço palatal, que incide sobre determinados segmentos da língua, em
contextos fonológicos específicos. Para tanto, recorreu-se à abordagem oferecida pela
fonologia autossegmental. Os dados e informações apresentados neste trabalho foram
retirados, principalmente, de Facundes (2000) e Pereira (2007).
Palavras-chave: Apurinã. Assimilação. Espalhamento. Palatal.
ABSTRACT: This paper aims to describe and analyze a phonological process that occurs
in Apurinã language (Arawak), spoken by indigenous communities living in the
southeastern area of state of Amazonas, along the Purus river. The phonological process
is the scattering of a palatal feature, which falls on certain segments of the language in
specific phonological contexts. Therefore, we used the approach offered by
autossegmental phonology. The data and information presented in this paper were
taken from Facundes (2000) and Pereira (2007).
Keywords: Apurinã. Assimilation. Scattering. Palatal.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os comentários aqui tecidos buscarão discutir acerca de um processo fonológico
que ocorre na língua Apurinã, referente ao espalhamento do traço palatal, que incide
sobre certos segmentos da língua. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é descrever e
analisar tal processo, com base nos pressupostos da fonologia autossegmental,
abordagem não linear caracterizada por tratar os traços fonológicos de maneira
diferenciada, em que, por exemplo, mesmo quando um determinado segmento não está
contíguo a outro, um de seus traços pode vir a “se espalhar” para esse outro som, o que
parece ocorrer na língua Apurinã. Para tanto, recorreu-se a Facundes (2000), Pereira
(2007), a fim de se obter informações sobre a língua e dados para análise, além de
outros autores, que deram suporte teórico para o presente estudo.
Além dessas considerações iniciais, este artigo, inicialmente, apresentará um
panorama acerca de características fonéticas e fonológicas da língua Apurinã; em
seguida, o fenômeno de espalhamento do traço palatal será caracterizado e analisado,
sob o viés da fonologia autossegmental; por fim, serão traçadas breves conclusões
acerca do assunto estudado.
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1. O POVO E A LÍNGUA APURINÃ: BREVES CONSIDERAÇÕES
A língua Apurinã (Aruák) é falada por comunidades que vivem ao longo do rio
Purus, no sudeste do Estado do Amazonas. Mesmo ultrapassando 2000-3000 pessoas,
apenas um quarto da população, aproximadamente, fala a língua (FACUNDES e CHAGAS,
no prelo). Com relação a estudos prévios da língua, esta já conta com uma gramática
detalhada (tese de doutorado de FACUNDES, 2000), além de outros trabalhos.
Nesta seção, serão apresentadas características fonéticas e fonológicas da língua
Apurinã, especificamente relacionadas ao quadro de consoantes e vogais e estrutura
silábica dessa língua (o que não está diretamente relacionado ao fenômeno em foco no
presente artigo, mas que pode ser interessante, em termos de contextualização),
conhecimentos esses que podem auxiliar na compreensão do processo de assimilação do
traço palatal em Apurinã, foco deste trabalho.
1.1. Inventário de consoantes e vogais
As tabelas 1 e 2 mostram o inventário de consoantes e vogais da língua.
Oclusiva
Nasal
Bilabial
Alveolar
p
t
m
Palatal
Glotal
k
n
Tepe
Velar
ɲ
ɾ
Fricativa
s
ʃ
Africada
ʦ
ʧ
Aproximante
w
h
j
Lateral
l
Tabela 1: quadro de consoantes da língua Apurinã.
Anterior
oral/nasal
Alta
i/ ĩ
Média
e/ ӗ
Baixa
Central
Posterior
oral/nasal
oral/nasal
ɨ/ĩ
u/ ũ
a/ ã
Tabela 2: quadro de vogais da língua Apurinã.
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A tabela 1 mostra que a língua em questão apresenta apenas oclusivas surdas, [p],
[t], [k], sendo uma bilabial, uma alveolar e outra velar, respectivamente; há, na língua,
três consoantes nasais, sendo uma bilabial, [m], outra alveolar, [n], e a última palatal, [ɲ];
observa-se a ocorrência de tepe alveolar, [ɾ]; quanto às fricativas, as três encontradas
são surdas, em que uma é alveolar, [s], uma é palatal, [ʃ], e a outra é glotal, [h]; Verificase a ocorrência de consoantes africadas, apenas surdas, tal como as oclusivas e as
fricativas (o que parece presumível), as quais são a alveolar [ʦ], e a palatal [ʧ]; há, ainda,
duas consoantes aproximantes na língua, sendo ambas sonoras: a bilabial [w] e a palatal
[j]; por fim, observa-se a ocorrência de consoante lateral alveolar [l].
Quanto às vogais, a língua apresenta contraste de nasalidade e prolongamento (o
que não aparece na tabela, embora ocorra de fato na língua), em que figuram vogais
altas, médias e baixas. Observam-se, então, as vogais altas [i] (anterior), [ɨ] (central) e
[u] (posterior); a vogal média [e]; e a baixa [a]. Todas elas apresentam contrapartes
nasais e longas (cf.: FACUNDES, 2000).
1.2. Breves considerações acerca da estrutura silábica da língua Apurinã
Com relação à estrutura silábica da língua Apurinã, observe-se o esquema abaixo:
σ
O
R
n
(C)
V(V)
A sílaba, em Apurinã, pode ou não apresentar onset (O), elemento representado
por uma consoante (ex: [ã.pu.ta] ‘abano’). Toda sílaba em Apurin~ precisa
necessariamente apresentar pelo menos uma vogal, único elemento obrigatório da
sílaba; o núcleo silábico pode vir sob a forma de uma única vogal, havendo a
possibilidade de ocorrência de vogal longa (como em [ã.pa.ɾã] ‘|gua’ e [ã:.ta] ‘canoa
tradicional, casco’, respectivamente). N~o h| coda na estrutura sil|bica dessa língua.
Com base nessas considerações, observam-se as seguintes possibilidades, em
termos de sílaba, na língua Apurinã:
V
VV
CVV
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Após essa visão panorâmica relativa ao inventário de consoantes e vogais da
língua Apurinã, bem como algumas considerações acerca da estrutura silábica dessa
língua, será apresentado, na seção seguinte, um processo fonológico que incide sobre a
língua em estudo, relacionado à assimilação do traço palatal.
2. Espalhamento do traço palatal em Apurinã: uma abordagem não linear
Em Apurinã, ocorre um processo fonológico que incide sobre segmentos da
língua, atribuindo a esses o traço [+palatal]. Antes de se discutir esse processo,
considera-se importante mencionar o contexto em que ele se inscreve, o que será feito
na seção a seguir.
2.1. Contextualizando o fenômeno
A maioria dos dados utilizados para a análise aqui apresentada corresponde a
palavras articuladas ao morfema indicativo de sujeito (no caso dos verbos) ou possuidor
(no caso dos nomes), o que poderia conduzir a um equívoco, relacionado à atribuição do
processo que será aqui discutido a questões morfológicas. No entanto, há evidências na
língua Apurinã de que o processo em questão não é morfológico, mas sim
fonologicamente condicionado. Tais evidências encontram-se, sobretudo, relacionadas
às restrições fonotáticas da língua (o que será discutido mais adiante).
Ocorre que o paradigma de verbos, articulados à marca de sujeito, e de nomes,
articulados ao possuidor, são ambiente propício à visualização do processo fonológico
que se pretende discutir aqui. Por conta disso, antes de apresentar a análise
propriamente dita do processo de assimilação do traço palatal em Apurinã, considera-se
importante mostrar o paradigma1 mencionado acima:
‘passar’
‘comer’
‘caçar’
‘abano’
‘copular’
napa
ɲika
ajata
hãputa
himata
1S2
nɨ-napa
ɲi-ɲika
n-ajata
nɨ-hãputa
ɲĩ-himata
2S
pɨ-napa
pi-ɲika
p-ajata
pɨ-hãputa
pĩ-himata
3M.S ɨ-napa
i-ɲika
ø-ajata
ɨ-hãputa
ĩ-himata
3F.S
u-napa
u-ɲika
ũ-ajata
ũ-hãputa
ũ-himata
1P
a-napa
a-ɲika
ã-ajata
ã-hãputa
ã-himata
2P
hĩ-napa
hĩ-ɲika
h-ajata
hĩ-hãputa
hĩ-himata
3P
ɨ-napa-na
i-ɲika-na ø-ajata-na ɨ- hãputa-na ĩ-himata-na
Tabela 3: paradigma de verbos e nomes, articulados à marca de sujeito/possuidor.
1 Os dados em questão foram fornecidos pelo professor Sidney Facundes, em comunicação pessoal, em
12/07/2013, e correspondem à parte da análise demonstrada em sua tese de doutorado.
2 Em que 1, 2 e 3 correspondem à primeira, segunda e terceira pessoas pronominais; S = singular; M =
masculino; F = feminino; P = plural.
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Há, com base no paradigma apresentado, um caso de alomorfia nas marcas de
sujeito/possuidor da língua Apurinã, conforme as tabelas a seguir:
Plural
Singular
1
a-; ã-
1
nɨ-; ɲi-; n-; ɲĩ-
2
hĩ-; hĩ-; h-
2
pɨ-; pi-; p-; pĩ-
3M
ɨ-; i-; ø-; ĩ-
3F
ɨ-...-na;
3
u-; ũ-
i-...-na;
ø-...na;
ĩ-...-na
Tabela 4: marcas de sujeito/possuidor singular.
Tabela 5: marcas de sujeito/possuidor plural.
Nota-se que ocorrem mudanças em determinados segmentos, no interior dos
morfemas supramencionados, mudanças essas ocasionadas por um conjunto de
processos fonológicos, expressos por determinadas regras que, ordenadas, conseguem
dar conta de explicar a alomorfia em questão. Vejamos, a seguir, cada uma das referidas
regras3:
Regra 1: [h]
ø / V_V;
Regra 2: [ɨ]
[i] / _ C [+ palatal] ou C[i]C[i];
Regra 3: [n]
[ɲ] / _ [i];
Regra 4: [ɨ]
ø / _V;
Regra 5: V [- central - baixa]
V [+ nasal] / _V
De todas essas regras, apenas as de número 2 e 3 serão focalizadas no presente
artigo, já que envolvem o processo de assimilação do traço [+ palatal] em Apurinã, foco
deste estudo. Como dito anteriormente, considerou-se importante oferecer o quadro
geral em que esse processo, expresso pelas regras 2 e 3 supramencionadas, se inscreve,
a título de contextualização.
3 Análise feita pelo professor Facundes, em comunicação pessoal, em 12/07/13, também apresentada em
sua tese de doutorado.
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Segundo a regra 2, a vogal alta central [ɨ] se transforma na vogal alta anterior [i],
quando diante de consoantes palatais. Os dados4 a seguir ilustram essa ocorrência:
(1) ɨ-taka
‘ele planta (coloca)’
(2) ɨ-seɾӗna ‘ele dança’
(3) i-ɲika
‘ele come’
Em (1) observa-se a ocorrência de [ɨ] diante da consoante oclusiva alveolar surda [t],
enquanto que em (2) a mesma vogal ocorre com a consoante fricativa alveolar surda [s];
por outro lado, em (3), verifica-se o emprego da vogal [i], diante da consoante nasal
palatal [ɲ]. Os demais exemplos a seguir também podem ilustrar essa questão:
(4) i-jumɨteka
‘ele corre’
(5) i-jutɨpaka
‘ele se senta’
(6) i-jana
‘ele anda’
(7) i-ʃikaɾewata ‘ele canta’
(8) i-tʃa
‘ele diz’ ou ‘ele faz’
Nos exemplos de (4) a (8), observa-se a ocorrência de [i] diante das demais
consoantes palatais da língua Apurinã, além de [ɲ], o que comprova a eficácia da regra 2.
Há, no entanto, uma outra possibilidade de aplicação dessa regra, que incide sobre casos
em que se observa uma sequência composta por uma consoante qualquer mais a vogal
[i], seguida de outra consoante qualquer mais a vogal [i] novamente. Seria o caso de
palavras como:
(9) i-piti
(10) ɲi-kiti
‘pena dele’
'meu pé'
Em (9), ainda que se observe a consoante oclusiva bilabial [p] e em (10) a
oclusiva velar [k], e não uma consoante palatal, emprega-se a vogal [i], precedida, no
caso de (10), por [ɲ], o que revela uma espécie de fuga ao padrão da língua, prevista
apenas para esse contexto específico de consoante + vogal [i] + consoante + vogal [i].
Outra questão que chama a atenção no dado (10) se refere à utilização de [ɲ],
como consequência do uso de [i], já que, na língua Apurinã, a consoante nasal alveolar
[n] nunca ocorre diante de [i], sendo esta uma restrição fonotática da língua; essa
informação acaba por conduzir à terceira regra mencionada mais acima.
Segundo a regra 3, a consoante nasal alveolar [n] passa a [ɲ], quando diante da
vogal [i], o que pode ser confirmado também com base no exemplo (10), além dos
demais exemplos abaixo:
(11) ɲi-jumɨteka
(12) ɲi-jutɨpaka
‘eu corro’
‘eu me sento’
4 Todas as palavras apresentadas neste artigo foram extraídas de Facundes (2000) e Pereira (2007).
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(13) ɲi-jana
‘eu ando’
(14) ɲi-ʃikaɾewata ‘eu canto’
(15) ɲi-tʃa
‘eu digo’ ou ‘eu faço’
(16) ɲi-ʃĩɲi
‘minha carne’
(17) ɲi-ʃiɾipi
‘minha flecha’
(18) ɲi-tʃiɾĩ
‘meu dente’
(19) ɲika
‘comer’
(20) akaɲi
‘piqui|’
Os exemplos acima mostram a aplicação da regra 3, tanto no caso do morfema
‘ɲi’ (exemplos de 11 a 18) quanto em outros contextos (exemplos 19 e 20), o que
comprova o caráter fonológico desse processo, e não morfológico.
Neste ponto, alguns questionamentos poderiam surgir, como, por exemplo, se as
vogais [i] e [ɨ] contrastam, isto é, se são fonemas diferentes ou alofones de um mesmo
fonema. Como dito na seção 1.1 deste artigo, no quadro de vogais da língua Apurinã,
estes são fonemas diferentes, o que pode ser comprovado com o par [iɾi] ‘fruta’ e [ɨɾɨ]
‘pai’.
Outro aspecto a ser esclarecido diz respeito à possibilidade de sons
foneticamente semelhantes à consoante nasal alveolar [n], tais como [t], [s] e [ts],
poderem sofrer o processo referido na regra 3, quando diante da vogal [i]. Para discutir
essa possibilidade, observem-se os exemplos abaixo:
(21) nɨ-tika
(22) nɨ-tikata
(23) sikimaɾi
(24) tikiɲi
‘minha tripa’
‘eu defeco’
‘capitari, macho da tartaruga’
‘atr|s’
Com esses exemplos, pode-se perceber que os sons [t] e [s], mesmo sendo
foneticamente semelhantes a [n], não estão sujeitos ao processo expresso pela regra 3, já
que, quando diante de [i], esses sons, no contexto dos exemplos de (19) a (22), não
sofrem palatalização. Com relação ao fone [ts], não foram encontradas, nos dados
utilizados, palavras em que tal som ocorresse diante de [i].
Mais acima, afirmou-se que o processo aqui discutido se dá no nível fonológico,
não estando restito à marcação de sujeito/possuidor da língua Apurinã, embora a
maioria dos dados fornecidos se enquadre neste último caso. Afirmou-se, ainda, que as
evidências capazes de confirmar esse caráter fonológico do processo em foco se dariam
dentro das restrições fonotáticas encontradas na língua. Dessa forma, segundo
Facundes, em comunicação pessoal, a tabela abaixo ilustra as restrições relacionadas ao
fenômeno ora estudado:
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*ɨɲ
*ɲɨ
*ɨi
*iɨ
*ɨj
*jɨ
*ɨʃ
*ʃɨ
*ɨtʃ *tʃɨ
Tabela 6: restrições fonotáticas da língua Apurinã relacionadas ao processo de palatalização.
Acredita-se que as evidências apresentadas nesta seção sejam suficientes para
caracterizar o processo de assimilação do traço palatal na língua Apurinã, o qual será
analisado na seção seguinte.
2.2. Fonologia autossegmental e espalhamento do traço [+palatal] em Apurinã
Os processos focalizados na seção anterior, nas regras 2 e 3, podem ser tratados
sob uma abordagem não linear, isto é, a partir de um ponto de vista que considera
que não há uma relação de um para um entre o segmento e o conjunto de traços que o
caracteriza. Isso significa dizer, por exemplo, que o apagamento de um segmento não
implica, necessariamente, o desaparecimento de todos os traços que o compõem e que
os traços podem estender-se além ou aquém de um dado segmento. É dentro desse tipo
de abordagem que se inscreve a fonologia autossegmental, a qual, segundo Goldsmith
(1974 e 1976 apud GOLDSMITH e LAKS5, 2011), desafiou o caráter linear de
representações fonológicas visto na fonologia generativa tradicional, permitindo uma
simplificação considerável da concepção de regra fonológica. Muitas regras fonológicas
produtivas, sob esse viés, poderiam ser reinterpretadas.
Acredita-se que o tipo de perspectiva mencionado acima pode dar conta de
explicar de maneira satisfatória os fenômenos descritos nas regras 2 e 3 da seção 2.1
deste trabalho. Nesse sentido, com base nos pressupostos da fonologia autossegmental,
procurar-se-á discutir brevemente o processo fonológico da língua Apurinã focalizado
neste trabalho, o qual diz respeito à assimilação do traço [+palatal].
A análise em separado de cada uma das regras supramencionadas, sob uma
abordagem linear, poderia conduzir à interpretação de que ocorreriam dois processos
diferentes, embora envolvendo o mesmo traço. Sob essa perspectiva, as regras em
questão assim poderiam ser interpretadas:
a) no caso da regra 2, a vogal [ɨ] passa a [i], diante de consoante palatal ou da sequência
“CiCi”. Para esta regra, as consoantes palatais parecem funcionar como gatilho, tendo
como alvo a vogal [ɨ]. Em se tratando dos traços6 envolvidos nesse processo, teríamos o
seguinte:
5 http://hum.uchicago.edu/~jagoldsm/Papers/GenerativePhonology.pdf
6 Com relação aos traços distintivos adotados nesta análise, recorreu-se a Ladefoged (1982 apud CLARK e
YALLOP, 1990), que propõe a adoção de traços segundo uma escala física, articulatória ou acústica; desse
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[+vocálico+alto–anterior–posterior]
[+vocálico+alto+anterior+palatal]/__ [+
consonantal + palatal] ou sequência {[+consonantal [+vocálico+alto+anterior+palatal]
[+consonantal [+vocálico+alto+anterior+palatal]}
b) já na regra 3, poder-se-ia considerar como gatilho a vogal [i], sendo o alvo a consoante
palatal [ɲ]. Teríamos, portanto, os seguintes traços envolvidos:
[+nasal+alveolar]
[+nasal+palatal] / __ [+vocálico+alto+anterior+palatal]
No entanto, sob um enfoque não linear, acredita-se que estes não sejam processos
separados, mas um mesmo processo, em que um traço de um determinado segmento
acaba por “contaminar” n~o apenas o segmento adjacente a ele, mas também um outro
segmento não contíguo àquele cujo traço é assimilado. Se vistos sob essa perspectiva, os
processos mencionados nas regras 2 e 3 poderiam ser tomados como um único processo
de assimilação do traço palatal, sendo que esse traço seria espalhado para outro
segmento.
Para melhor ilustrar essa hipótese, retomemos aqui o exemplo (11) ɲi-jumɨteka
‘eu corro’. Em um primeiro momento, agregar-se-ia ao verbo o morfe nɨ-, gerando a
forma *nɨ-jumɨteka; [ɨ], então, passaria a [i], por conta da assimilação do traço [+palatal]
da consoante [j]; dando origem à forma *ni-jumɨteka; em seguida, esse traço [+palatal]
seria espalhado para o outro segmento (consonantal), na direção regressiva; nesse caso,
a consoante nasal [n] passaria a [ɲ], conduzindo ao seguinte resultado final: ɲi-jumɨteka.
Assim, nesse segundo estágio, poder-se-ia considerar como gatilho a presença do traço
palatal da vogal /i/, cujo alvo seria a consoante /n/, que assimilaria o traço [+palatal].
Isso é confirmado por formas como n-ajata ‘eu caço’, pois essa forma demonstra que
somente a presença de uma consoante com o traço palatal, nesse caso /j/, em ambiente
não contíguo à consoante /n/, não provoca o espalhamento do traço palatal até a
consoante nasal alveolar [n].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, foram discutidas questões relacionadas ao processo de assimilação
do traço palatal na língua Apurinã, sob uma perspectiva não linear, a partir da hipótese
de que esse traço estaria se espalhando para outro segmento, além daquele adjacente ao
segmento que desencadeou o processo.
Nesse sentido, foram apresentadas informações relativas ao povo e à língua
Apurinã, especificamente no que se refere a características fonéticas e fonológicas. Após
a apresentação dos dados da pesquisa, além de alguns esclarecimentos necessários à
contextualização desses dados, apresentou-se uma análise, com base nos pressupostos
da fonologia autossegmental, a fim de sustentar a hipótese de que, na língua Apurinã,
ocorre o espalhamento do traço palatal, na direção regressiva, tendo como gatilho
autor, utilizou-se o traço [+palatal]. Além de Ladefoged, também a proposta de Halle e Clements (1983) foi
adotada, os quais admitem os demais traços aqui mencionados, entre outros.
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consoantes palatais e uma vogal com o traço palatal, e como alvo a vogal alta central [ɨ],
a qual se converte em [i], e a consoante alveolar [n], que se converte em [ɲ].
As breves discussões aqui apresentadas correspondem a um estudo preliminar,
sendo que seria necessário analisar um corpus mais extenso para que se pudesse chegar
a uma análise mais detalhada.
REFERÊNCIAS
CLARK, John; YALLOP, Colin. An introduction to phonetics and Phonology. Oxford:
Basil Blackwell,1990.
HALLE, Morris; CLEMENTS, G. N. Problem Book in Phonology: a workbook for
introductory Courses in Linguistics and in Modern Phonology. Cambridge,
Massachusetts: MIT Press, 1983.
FACUNDES, Sidney da Silva. The Language Of The Apurinã People Of Brazil
(Maipure/Arawak). Nova York, Búfalo: Faculty of the Graduate School of State
University of New York at Buffalo (Tese de Doutorado), 2000.
______.; CHAGAS, Angela.Verbos e Estrutura Argumental em Apurinã (Aruák). In:
FRANCHETTO, Bruna; LIMA, Suzi. Sintaxe e Semântica do Verbo em Línguas
Indígenas do Brasil. São Paulo: Parábola Editorial (no prelo).
PEREIRA, Érika Lúcia Barreto. Variação Linguística em Apurinã: aspectos linguísticos
e fatores condicionantes. Belém – Pará: Universidade Federal do Pará - Programa de
Pós-graduação em Letras – Estudos Linguísticos, 2007 (dissertação de Mestrado).
GOLDSMITH
e
LAKS
FONOLOGIA
GERATIVA.
Disponível
em:
http://hum.uchicago.edu/~jagoldsm/Papers/GenerativePhonology.pdf. Acesso em 03
Ago. 2013.
APÊNDICE
LISTA DE PALAVRAS DA LÍNGUA APURINÃ
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8
PALAVRAS
ãputa/ hãputa
kӗmap~n~/ kӗmap~na
tsapɨɾɨkɨ/ tsapeɾɨkɨ/ sapuɾiki
tsapɨɾɨkɨna/ tsapeɾɨkɨna
makawa/ makawã
apaɾãa/ ãpaɾãa
maɾãkata/ ma:ɾãkata
ãpaɾ~/ ĩpuɾ~/ ĩpaɾã:
TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS
Abano
Abelha que faz mel
Açaí
Açaizeiro
Acauã
Afogado
Agarrar
Água
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Amãa/ ãmãa
kijumãɲi/ kiumãne
jana
kӗma/ kӗm~
katsakitiɾu/ katsakatɨɾu/ kasakitiɾu
kamĩ:ɾɨ/ kãmeɾi
ajumata/ ajamata
kumɨɾɨkatɨ/ kumeɾɨkata
kukanɨɾɨ/ kukã:neɾɨ
ɨtakaɾaw~tĩɲi/ itakaɾewatĩɲi
tikiɲi
putʃi/ putʃu
tsupata/ supata
katsaɾe/ katsaɾɨ
pɨpӗtӗka/ pɨpɨtӗka
ɨpĩtɨkɨɾɨ/ epĩtikiɾi
kutʃapɨɾɨ/ kutʃipɨɾɨ
jumakɨ/ jũmakɨ
tɨnɨkɨ/ tenɨkɨ
tʃuɾatu/ tʃuɾatɨ
paikumakɨ/ puikumakɨ
katati/ katatu
sãnɨ/ sãne
ʃimiɾi/ ʃimeɾi
kemiʃike/ kimiʃike
apakatɨɾɨ/ apakatiɾi/ apakatɨɾu
tuɾũkãnɨ/ tɨɾũkãnɨ
anãpãnaɾi/ anãpãnali/ aɾãpãnaɾi
kapasãnɨkɨ/ kapasãɲiti
meɾiti/ miɾiti
Kitsĩna/ kits~na
ã:ta
ʃikaɾewata
sikimaɾi/ ʃikimaɾi
pɨtetɨ/ pɨtɨtɨ
jutɨpa/ jũtɨpa
ʃĩɲi/ ʃӗɲi
mãɲitɨhãwite/ mãnɨtiãwita
amãakɨ/ ãmãakɨ
kutʃiti/ kitʃiti
awĩɲi/ awĩnɨ
makɨ/ maku
ajata
iʃiwãwita/ iʃuwãwite
kũteɾi/ kĩtule
ã:tapãɲi/ a:tapãɲi/ atapãɲi
ukapita/ ukapite
ɨmɨnɨ/ imӗne/ ӗmӗne
Anajá
Ancião, o mais velho
Andar
Anta
Aranha
Arara
Arrumar-se
Árvore ou galho de mandioca
Assassino
Ato de plantar algo
Atrás
Bacuri grande
Barata do mato
Barro de fazer panela, tabatinga
Bater
Bem-te-vi
Besouro cascudo
Bico de flecha
Bico do seio
Bocão, saco de padre
Bola feita de paikuma (para pescar)
Borboleta
Caba
Caba de oco
Cabelo de milho
Cacau da terra firme
Cachoeira
Cachorro
Cachorro do mato
Caititu
Calango
Canoa tradicional, casco.
Cantar
Capitari, macho da tartaruga
Caquinho
Cará grande
Carne
Carneiro
Caroço de anajá
Carrapato
Casa nossa
Castanha
Caçar
Cavalo
Cigarra
Cinza
Cipó
Cobra (em geral)
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ɲika
kupӗna/ kupӗne
himata
katɨɾũkãnɨ/ kajtɨɾũkãnɨ
jumɨteka
kɨata/ kujata
katʃikiɾɨkɨ/ kutʃikiɾɨkɨ
kɨpɨtĩna/ kɨpetĩna
kɨpɨtɨkɨ/ kɨpetɨkɨ
seɾӗna/ seɾӗne/ se:ɾӗna
tikata
tʃiɾĩ
tʃa
ʃiɾipi
napa
kiti
piti
akaɲi
taka
jutɨpaka
tika
Comer
Copaíba
Copular
Corredeira (do rio)
Correr
Cuia
Cumaru de cheiro
Cutia preta
Cutiara, cutia pequena
Dançar
Defecar
Dente
Dizer ou fazer
Flecha
Passar
Pé
Pena
Piquiá
Plantar, colocar
Sentar-se
Tripa
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FONOLOGIA / SOCIOLINGUÍSTICA
A REALIZAÇÃO DA VOGAL PRETÔNICA /e/ NOS DADOS DE TRÊS ATLAS
LINGUÍSTICOS DA REGIÃO NORTE
Darlan Machado Dorneles7
Lindinalva Messias do Nascimento Chaves8
Universidade Federal do Acre
RESUMO: Nesta pesquisa, analisa-se à luz da Dialetologia e da Geolinguística
contemporânea, a realização da vogal pretônica /e/ na fala acriana, nos dados do projeto
Atlas Linguístico do Acre (ALiAC). Em seguida, comparam-se os resultados do presente
estudo aos de Pereira (2011), voltados para uma zona urbana de Rio Branco, aos do
Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) e aos do Atlas Linguístico Sonoro do Pará
(ALiSPA). O objetivo, de modo geral, é apresentar um perfil da pronúncia da vogal
pretônica /e/ no português falado no Acre, no Amazonas e no Pará, revelando um pouco
das peculiaridades linguísticas dos falares amazônicos. Os resultados revelam um
comportamento variável da realização da vogal pretônica /e/ nas quatro regionais
analisadas no Estado do Acre (Alto Acre, Baixo Acre, Purus e Juruá), mas com tendência
à pronúncia aberta, o que vai ao encontro das demarcações de Nascentes (1953). Da
comparação dos dados com os de Pereira, verifica-se que, de modo geral, no estudo da
autora, o sexo masculino apresenta maior tendência para a pronúncia fechada (61%), ao
passo que nas realizações da presente pesquisa ocorre certa aproximação dos
percentuais referentes às duas realizações. Da comparação entre os três atlas, nos dados
do ALAM destaca-se o fechamento (46%) contrapondo-se a 28,5% da abertura, nos do
ALiSPA há um equilíbrio entre a abertura (36%) e o fechamento (35%) e no ALiAC
ocorre uma diferença não muito grande, 41,4% referente a abertura e 38,5% ao
fechamento . Logo, os resultados levam à constatação de que os falares amazônicos
possuem um comportamento variável e diferenciado no que se refere à pronúncia da
referida vogal.
PALAVRAS-CHAVE: Vogal pretônica /e/; ALiAC; Falares amazônicos.
FINANCIADOR: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
RÉSUMÉ: Dans cette recherche on analyse la réalisation de la voyelle pretonique /e/
dans les données du Projet Atlas Linguístico do Acre (ALiAC) sous l’optique de la
Dialectologie et de la Géolinguistique. Ensuite on compare les résultats de la présente
étude à ceux de Pereira (2011), dont les questionnaires ont été appliqués dans une zone
urbaine de Rio Branco, { ceux de l’Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) et { ceux de l’
Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA). De façon générale le but est celui de présenter
7 Acadêmico do Curso de Letras – Português e Bolsista PIBIC do CNPq.
8 Doutora em Linguística pela Universidade de Strasbourg, Professora Associada III da área de Linguística
do Centro de Educação, Letras e Artes (CELA) da Universidade Federal do Acre (UFAC) e Líder do Grupo
de Pesquisa Centro de Estudos dos Discursos do Acre (CED-AC).
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um profil de la prononciation de la voyelle pretonique /e/ da la variante du portugais
parle dans les États brésiliens “Acre”, “Amazonas” et “Par|”. Ainsi, l’étude montre un
peu des particularités linguistiques des parlers amazoniens. Les résultatas révèlent une
variation de la réalisation de la voyelle dans les quatre régions de l’Acre (Alto Acre,
Baixo Acre, Purus et Juruá), mais une tendance à la prononciation ouverte, ce qui
confirme les délimitations de Nascentes (1953). Dans les données de l’ALAM, la
fermeture est majoritaire (46%) et dans eux de l’ALiSPA il y a um equilibre entre
l’ouverture (36%) et la fermeture (35%). Donc, on constate que les parlers amazoniens
possèdent um comportement variable et différent entre eux en ce qui concerne la
prononciation de la voyelle surmentionnée.
MOTS-CLÉS: Voyelle pretonique /e/; ALiAC; parlers amazoniens.
1 INTRODUÇÃO
A variação na pronúncia da vogal pretônica /e/ constitui-se em um elemento de
diferenciação dialetal tanto no português brasileiro como no português europeu; tratase de um fenômeno de alta produtividade, pois as vogais pretônicas /e, o/ podem ser
realizadas abertas, fechadas ou alçadas dependendo da região ou mesmo do falante
(NASCENTES, 1953; MATTOSO CÂMARA JÚNIOR, 1976; CRISTÓFARO SILVA, 1999;
CALLOU; LEITE, 2004; MATTOS, SILVA, s.d.).
Neste estudo, nosso objetivo é contribuir para a demarcação das realizações
(aberta ou fechada) da vogal média pretônica /e/ na fala de três Estados da Região
Norte, a saber, Acre, Amazonas e Pará. Em um primeiro momento, examinamos os dados
do projeto Atlas Linguístico do Acre (ALiAC), buscando identificar o grau de abertura e
fechamento do /e/ pretônico na fala de quatro Regionais do Acre: Alto Acre (Brasileia e
Xapuri), Baixo Acre (Plácido de Castro e Rio Branco), Purus (Sena Madureira e Santa
Rosa do Purus) e Juruá (Cruzeiro do Sul e Porto Walter). Traçamos um perfil dessa vogal
nos dados mencionados e comparamos os resultados obtidos com os dados do estudo
realizado por Pereira (2011), acerca da abertura e fechamento das vogais médias
pretônicas /e, o/ em uma zona de Rio Branco, capital acriana.
Diante da proposta de apresentar um panorama dialetal da pronúncia da vogal
pretônica /e/ nos falares dos três estados supracitados, em um segundo momento,
comparamos os resultados nos dados do ALiAC aos registrados no Atlas Linguístico do
Amazonas (ALAM) e aos do Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA), apresentando,
como produto, Cartas Geolinguísticas que registram as variantes respectivas a cada
atlas, com seus percentuais.
Verificamos, em um terceiro momento, se a divisão estabelecida por Nascentes
(1953) se aplica aos dados dos três atlas linguísticos: ALiAC, ALAM e ALiSPA, ou seja, se
há maior tendência à pronúncia aberta da vogal pretônica /e/. Cabe aqui esclarecer que
o alçamento não se constitui em nosso objeto de pesquisa e que os dados referentes a
esse fenômeno constam apenas por haver ocorrências na amostra.
O trabalho estrutura-se da seguinte forma: Introdução; noções básicas do que
vêm a ser Dialetologia, Geolinguística e Atlas Linguísticos, neste último caso, com uma
breve apresentação dos já publicados; exposição das vogais pretônicas no português, em
seu aspecto histórico, e de alguns estudos realizados no português brasileiro; Aspectos
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Metodológicos, com descrição do perfil dos informantes; das localidades da regional do
Juruá e procedimentos de análise. Incluímos nessa parte pequena apresentação dos três
atlas a cujos dados os nossos foram comparados; Resultados e Discussões (análise dos
dados das quatro regionais; comparação com os dados de Pereira e, em seguida, com os
do ALAM, os do ALiSPA e os do ALiAC), e, por fim, as Considerações Finais e as
Referências Bibliográficas.
2 DIALETOLOGIA, GEOLINGUÍSTICA, ATLAS LINGUÍSTICOS
A Dialetologia e a Geolinguística constituem-se em áreas interdisciplinares da
Linguística que mantêm uma interface com vários outros campos do saber como a
História (para a descrição histórica da região), a Cartografia (para a elaboração do
mapa-base onde serão inseridos os gráficos ou símbolos), a Informática (para a
armazenação dos dados), a Sociolinguística (para o estabelecimento de relações entre as
formas de falar analisadas e a sociedade envolvente), a Linguística Histórica (para a
compreensão dos fenômenos linguísticos em sua essência), entre outras (TELES,
RIBEIRO, 2006; CARDOSO, 2010; ALENCAR, 2011).
Para Cardoso (2010, p. 15) “a dialetologia é um ramo dos estudos linguísticos que
tem por tarefa identificar, descrever e situar os diferentes usos em que uma língua se
diversifica, conforme a sua situaç~o espacial, sociocultural e cronológica”. A
Geolinguística, por sua vez é o “método por excelência da Dialectologia”, e “ainda hoje se
mostra eficaz para o conhecimento das variantes populares do Português do Brasil”
(CRUZ, 2004, p. 20).
Essa ramificação da Linguística é comumente utilizada na construção de atlas
linguísticos e para demarcar as variações linguísticas em pesquisas menores. Esse
método “foi aperfeiçoado e difundido por Jules Gilliéron que, entre 1902 e 1910,
publicou o Atlas Linguístico da França (ALF), obra considerada como marco dos estudos
dialetais e que muito contribuiria para o progresso da ciência da linguagem”. (CRUZ,
2004, p. 20).
Trata-se, segundo a literatura específica, de um método hábil e eficaz a ser
empregado na análise linguística, pois registra, apresentando como resultados cartas
que revelam alguns fenômenos de variação da fala.
Até o presente momento foram publicados doze atlas linguísticos no Brasil, sendo
um regional e onze estaduais: Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB (ROSSI,
FERREIRA, ISENSEE, 1963), Esboço de um Atlas linguístico de Minas Gerais - EALMG
(RIBEIRO, ZÁGARI, GAIO, 1977), Atlas Linguístico da Paraíba - ALPB (ARAGÃO,
MENEZES, 1984), Atlas Linguístico de Sergipe - ALS (ROSSI, FERREIRA, ISENSEE, 1987),
Atlas Linguístico do Paraná - ALPR (AGUILERA, 1994), Atlas Linguístico-Etnográfico da
Região Sul do Brasil - ALERS (KOCH, KLASSMAN, ALTENHOFEN, 2002), Atlas linguístico
sonoro do Pará - ALISPA (RAZKY, 2004), Atlas linguístico de Sergipe II - ALS II (CARDOSO,
2005), Atlas linguístico do Amazonas - ALAM (CRUZ, 2004), Atlas Linguístico do Paraná II
– ALPR II (ALTINO, 2007), Atlas linguístico de Mato Grosso do Sul - ALMS (OLIVEIRA,
2007) e, por fim, o Atlas linguístico do Ceará - ALECE (BESSA, 2010).
Os Atlas Linguísticos mostram a história e os avanços das pesquisas no âmbito da
Dialetologia e da Geolinguística no Brasil, visto que, no decorrer dos anos, diversos
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pesquisadores estão mostrando as características e peculiaridades do português falado
no Brasil. Nesse sentido,
A visão atual é bem diferente. Falamos do século XXI, em plena era
eletrônica, em que o português passa por um processo de explosão e
internacionalização do vocabulário. Um informante que mora no Ceará,
sob influência do crescente poder dos meios de comunicação de massa
(rádio, jornal, televisão), percebe rapidamente, que em outras
localidades desse nosso imenso país, se fala diferente, principalmente,
no que diz respeito à pronuncia, e que há diferentes maneiras para se
dizer a mesma coisa, embora a língua nacional seja a mesma (ALENCAR,
2011, p. 27).
A importância dos atlas linguísticos reside na capacidade de mostrar de forma
visual e bastante fácil, mesmo para os não especialistas, essa diversidade da língua, mas
não se trata apenas de mostrar, pois os atlas se constituem em verdadeiros arquivos de
uma variante falada em determinada época, em determinado lugar.
3 AS VOGAIS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS
Sabe-se que Antenor Nascentes (1953) é um marco histórico nos estudos das
vogais pretônicas no português brasileiro, tendo em vista o fato de ter dividido o Brasil
em dois grandes grupos: o do norte (Amazonas, Pará até a Bahia) e o do sul (do Espírito
Santo até o Rio Grande do Sul). No mapa abaixo, podemos visualizar essa divisão dialetal
antiga do português brasileiro, que até hoje é citada e comparada a outros estudos
empreendidos tanto à luz da Sociolinguística, como da Dialetologia e da Geolinguística.
Fonte: Nascentes (1953, p. 25).
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Ao dividir o Brasil em dois grandes grupos, o do Norte e o do Sul, Nascentes
(1953) diz que os falares do norte apresentam uma tendência maior à pronúncia aberta
[, ] e os do sul à fechada [, ]. Essa divisão dialetal serviu como base para diversos
estudos j| que “a realizaç~o aberta ou fechada das vogais médias pretônicas é
considerada uma marca regional, desde a proposta de Antenor Nascentes, que tomou o
par}metro de realizaç~o das pretônicas para a divis~o dos dialetos do norte e do sul”.
(ARAGÃO, 2003, p. 105).
Mattoso Câmara Júnior (1970), em uma perspectiva estruturalista, define as
vogais levando em consideração a posição na palavra, em posição tônica: sete vogais /,
, , , , , /, em posição pretônica cinco: /, , , , /, e em posição átona final três: /, ,
/. Ocorre essa redução vocálica devido ao processo de neutralização, que consiste na
perda do traço distintivo entre dois fonemas, // e //, // e //, oposição entre
fechamento e abertura. Exemplo: []l[]fante – []l[]fante / B[]lívia – B[]lívia.
A harmonização vocálica e o alçamento sem motivo aparente são dois outros
fenômenos recorrentes nas ocorrências das vogais médias pretônicas, contudo, por não
se constituírem em objeto de análise do presente estudo, não nos deteremos sobre o
assunto.
Dentre os estudos mais recentes, na perspectiva da Linguística Histórica, sobre as
vogais, citamos Basílio (1972), Silva (1989), Cristófaro Silva (1999), Araújo (2007),
Viegas e Cambraia (2011) e Mattos e Silva (s.d.).
Basílio (p. 50-51) compara o sistema vocálico do português com o do latim e diz
que a diferença mais notória é que as vogais médias no português possuem “graus de
abertura, opondo-se as fechadas / / às abertas / /, que não existem no sistema
latino”.
Para Silva (1989, p. 41), em sua descrição do percurso histórico das vogais
pretônicas na língua, “s~o escassas as referências à realização de vogais antes da tônica,
j| que elas n~o interessavam”, aos gram|ticos e ortógrafos do século passado, “cuja meta
era, quase sempre, o estabelecimento de uma escrita portuguesa”. Todavia, comumente
ao se referir às vogais tem-se sempre em mente o sistema normativo gramatical em
situação acentuada, sem considerar a sua ocorrência não acentuada, o que
[...] explica as parcas informações sobre as vogais em sílabas pretônicas,
que quase sempre se obtém de comentários secundários, às vezes
restritos a algumas variedades do português, ou de lista de “erros”. É
desse material que se deve valer quem quiser perscrutar o passado
(SILVA, 1989, p. 41).
Ainda no plano histórico, Viegas e Cambraia (2011, p. 14), dizem que, no decorrer
do tempo, o antigo sistema vocálico latino evoluiu e modificou-se até culminar hoje na
distinção entre a pronúncia aberta que se opõe à fechada das vogais pretônicas no
português brasileiro. Esses autores observam ainda que “a história do sistema voc|lico
pretônico da língua portuguesa é complexa e, por isso, demanda dados de diferentes
fontes para sua melhor compreens~o”.
Sobre a temática, Mattos e Silva (s.d.), assim como Silva (1989) e Viegas e
Cambraia (2011), destaca que, para traçar um histórico das vogais pretônicas, dados de
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gramáticos e ortógrafos são as únicas fontes de que dispomos sobre o passado, pois,
como já se disse, a descrição era apenas pelo viés gramatical. Hoje, porém, já se tem
dados recentes pautados no estudo do português brasileiro.
Esse desinteresse pelas realizações das médias pretônicas não persiste nos dias
atuais. A própria Silva (1989) destaca a importância concedida aos estudos acerca das
pretônicas a partir do marco de Nascentes (1953), que despertou o interesse sobre os
estudos das vogais no português.
No que se refere a essas variações, Cristófaro Silva (1999, p. 81) diz que as vogais
pretônicas podem ser pronunciadas de forma idêntica ou não idênticas uma vez que tal
fato é uma “marca de variaç~o dialetal geogr|fica ou mesmo de idioleto”. No que
concerne { import}ncia do estudo das referidas vogais, para essa autora, “embora haja
grande número de trabalhos sobre as pretônicas no português do Brasil, urge ainda um
estudo mais detalhado e acurado sobre o assunto”.
Outros autores, tal qual Araújo (2007), também mencionam o fato de que as
vogais pretônicas têm sido alvo de múltiplas discussões e estudos tanto no âmbito da
Dialetologia quanto no da Sociolinguística. Ela reafirma, assim como Silva (1989), a
preocupaç~o que se tinha inicialmente com a quest~o normativa das “variantes de /e/ e
/o/ em posição pré-acentuada”.
Dentre os inúmeros estudos sobre as vogais pretônicas em diversas regiões do
país, destacamos os trabalhos desenvolvidos por: Silva (1989), Hora e Pereira (1998),
Leite e Callou (2004), Brandão e Cruz (2005), Araújo (2007), Vieira (2010), Pereira
(2011), Sousa (2011) e Razky, Lima e Oliveira (2012).
Silva (1989) debruçou-se sobre o estudo das pretônicas no falar baiano, em uma
perspectiva Sociolinguística, através de dados do projeto Norma Urbana Culta de
Salvador (NUC-SSA), analisando produções de 24 informantes, 12 do sexo masculino e
12 do feminino, todos de nível superior, distribuídos em três faixas etárias, 25 a 35, 36 a
55 e maiores de 55 anos. Os resultados da autora atestam que, no contexto CVC
(consoante – vogal – consoante), ocorreu uma predominância das “vogais baixas
(nòvela, nècessário) exceto em dois contextos: antes de vogal média não-nasal (côrreio,
cêrveja); e antes de vogal alta, situações em que, na maioria dos casos, ocorrem vogais
da mesma altura (pulítica, pirigo)” (p. 312). Silva concluiu que o falar baiano apresenta
uma distribuição complementar das vogais pretônicas médias e baixas.
Hora e Pereira (1998) com base nos dados do projeto “Variaç~o Linguística no
Estado da Paraíba (VALPB)”, investigaram também { luz da Sociolinguística, como são
correlacionadas as vogais pretônicas médias na sílaba seguinte pelos pessoenses. Para
isso, analisaram 6.401 realizações de /o/ e 8.679 de /e/, totalizando 15.080 casos. Os
resultados revelaram que as pretônicas abertas [] e [] são expressivas no falar
pessoense, embora haja a pronúncia das elevadas [] e [], bem como [] e [] fechadas
“subordinadas { presença das vogais de mesma altura na sílaba seguinte”. Esses autores
concluem, dizendo que a harmonização vocálica norteia a variação das pretônicas no
dialeto pessoense, o que “justifica a posiç~o da vari|vel vogal da sílaba seguinte que se
evidencia como a mais importante em relação às demais variáveis lingüísticas e sociais
consideradas” na pesquisa.
Leite e Callou (2004, p. 39) destacam o fato de que os estudos das vogais
pretônicas têm servido n~o só para fazer diferenciações “entre os falares brasileiros,
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mas também entre o português do Brasil e de Portugal”. Com o intuito de estabelecer,
assim como Nascentes (1953), uma linha divisória entre os falares do norte e do sul,
essas autoras buscam os limites relativos em cinco grandes capitais brasileiras, obtendo,
no tocante às pretônicas médias abertas [] e [], os seguintes percentuais: “60% em
Salvador, 47% em Recife, 5% no Rio de Janeiro, 0% em S~o Paulo e 0% em Porto Alegre”.
Ao examinarem as vogais médias pretônicas nas cartas fonéticas do Atlas
Linguístico do Amazonas (ALAM e no Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA), Brandão
e Cruz (2005) constataram “o predomínio da média fechada (46%) na fala do Amazonas
e da média aberta (36%), na do Pará, embora, neste último caso, a variante concorra
com a média fechada (35%), tendo em vista que a diferença que as separa é de apenas
um ponto percentual”. Brand~o e Cruz (2005) concluem que “as cartas selecionadas do
ALAM e do ALiSPA confirmam a existência, na fala amazonense e na paraense, de vogais
abertas em situação pretônica, como sugerira Nascentes na sua proposta de divisão
dialetal do Brasil em áreas linguísticas”.
Araújo (2007), utilizando o método da Sociolinguística Variacionista com os
dados do projeto “Norma Oral do Português Popular de Fortaleza (NORPORFOR)”,
examinou as vogais médias pretônicas no falar popular de Fortaleza com um corpus de
72 informantes, 36 do sexo masculino e 36 do feminino, nas faixas etárias de 15 a 72
anos. A autora atestou, em sua análise, a preponderância das variantes baixas, como por
exemplo, “(c[]rrente, g[]lado), à exceção de dois ambientes, a saber: diante de vogal
média não-nasal (p[]rteiro, d[]scer) e diante de vogal alta (n[]tícia, r[]vista) em que,
na maioria das vezes, ocorrem vogais de mesma altura”. Araújo (2007, p. 141) afirma
que:
as pretônicas médias e baixas, excetuando-se alguns poucos casos,
ocorrem em distribuição complementar: médias fechadas antes de
vogais fechadas e médias-abertas antes de vogais abertas. As variantes
altas ocorrem predominantemente antes de vogal da mesma altura, mas
também ocorrem antes de vogais médias e baixas.
Vieira (2010), tomando como base o corpus do Atlas Linguístico do Espírito Santo
(ALES) e do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), mais precisamente, de Vitória, estudou a
manutenção, abaixamento e alçamento das pretônicas /e/ e /o/. Em termos percentuais
os resultados do estudo dessa autora revelaram: []: 39% (138 ocorrências), []: 0,8%
(3 realizações), []: 57, 6% (204 casos) e outros 2,6% (9). Desse modo, na comunidade
estudada, “predomina a regra de alçamento das vogais médias em contexto pretônico”,
ao passo que foram mínimos os casos de abaixamento, “ocorrendo somente na capital do
Estado, com predomin}ncia na fala das mulheres”. Essa autora destaca, por fim, que os
resultados de sua pesquisa são apenas um retrato, estudos posteriores podem
esclarecer e investigar mais detalhadamente a variação das vogais pretônicas na fala do
Espírito Santo.
No Acre, temos dois estudos, o de Pereira (2011) e o de Sousa (2011), o primeiro
realizado na capital, Rio Branco, o segundo em três municípios da Regional do Purus
(Sena Madureira, Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus).
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Pereira9 (2011) analisou a realização aberta ou fechada das vogais médias
pretônicas /e, o/ em uma zona urbana da capital acriana, Rio Branco, em uma
perspectiva Sociolinguística, com 36 informantes, 18 do sexo feminino e 18 do
masculino, nas idades 16 a 29, 3 a 45 e 46 a 60 anos, com escolaridade de ensino
fundamental e superior. Os resultados do estudo de Pereira revelaram que os homens se
destacam quanto à abertura, sobretudo da faixa etária mais jovem (15 - 29 anos) entre
os níveis médio e superior.
Sousa (2012), por sua vez, cartografou 17 fenômenos fonéticos ocorrentes nas
cidades de Sena Madureira, Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano, integrantes da
Regional do Purus (Ac). Seus informantes, no total de 12, situam-se em duas faixas
etária, de 18 a 30 e de 50 a 65 anos. Nas cartas fonéticas referentes às realizações das
pretônicas há os seguintes resultados: Preferência pelo alçamento da vogal pretônica
/e/ por [i] nos três municípios, Sena Madureira, 84,6%, Manoel Urbano 67, 3%, Santa
Rosa do Purus, 53, 8%; no que tange ao gênero, prevalência do alçamento na população
masculina, e não tão numeroso quanto o alçamento, ocorrência equiparada do fenômeno
de abertura em ambos os sexos.
Razky, Lima e Oliveira (2012) analisaram as vogais médias pretônicas no falar
paraense com base nos dados do Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA). Os
resultados revelam preferência pela pronúncia fechada dessas vogais, pois “as variantes
[o] e [e] foram as que se mostraram mais frequente no estado, seguidas,
respectivamente, por [ó] (26%) e [u] (23%), para a média posterior; e [é] (35%) e [i]
(23%), para a média anterior”. A conclus~o a que esses autores chegaram foi que os
resultados impõem uma revis~o da proposta de Nascentes (1953), “uma vez que
demonstram que o Pará, possuindo norma de pronúncia fechada das vogais médias
pretônicas, não pode ser agrupado aos estados do nordeste brasileiro, como imaginava
Nascentes” (1953).
4 PERFIL DOS INFORMANTES, PROCEDIMENTOS, ATLAS VERIFICADOS
Para este estudo, escolhemos no banco de dados do projeto ALiAC, 8 informantes
na Regional do Alto Acre (Brasileia e Xapuri10), 8 na Regional do Juruá11 (Cruzeiro do Sul
e Porto Walter12), 8 na Regional do Purus (Sena Madureira, Santa Rosa do Purus e
Manoel Urbano)13, 8 na Regional do Baixo Acre (Rio Branco e Plácido de Castro),
totalizando 32 informantes, sendo 16 do sexo masculino e 16 do feminino, com
escolaridade máxima até o 5º ano do ensino fundamental, em duas faixas etárias 18 – 30
anos e 50 – 65 anos. Os sujeitos da pesquisa são naturais da localidade, não tendo dela se
afastado por mais de um terço de suas vidas.
Para a realização da pesquisa, a dividimos em três fases.
9 Embora retomemos, de certa forma, a pesquisa de Pereira, é importante destacar que nosso viés se
distancia do da referida autora por ela ter trabalhado no âmbito da Sociolinguística e por nós situarmos
nossa análise na Dialetologia e na Geolinguística.
10 Dados do banco de dados do projeto ALiAC.
11 Dados do banco de dados do projeto ALiAC.
12 Dados do banco de dados do projeto ALiAC.
13 Dados do banco de dados do projeto ALiAC.
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Na primeira fase, analisamos os dados do projeto Atlas Linguístico do Acre
(ALiAC) já coletados das regionais do Alto Acre (Brasileia e Xapuri), Baixo Acre (Rio
Branco e Plácido de Castro), Juruá (Cruzeiro do Sul e Porto Walter) e Purus (Sena
Madureira e Santa Rosa do Purus). Os dados foram coletados in loco através da aplicação
do Questionário Fonético–Fonológico elaborado pela equipe do projeto Atlas Linguístico
do Brasil (ALiB).
Para o registro, utilizou-se um gravador digital e um microfone unidirecional a
fim de garantir a qualidade do som; na sequência, os dados foram arquivados em
computador e em CDROM.
Para a análise selecionamos as palavras que apresentam variação na pronúncia
da pretônica /e/; são elas: terreno, televisão, tesoura, elétrico, fecha, grelha, peneira,
fervendo, cebola, elefante, remando, estrada, seguro, real/reais, prefeito, escola, defesa,
pernambucano, questão, pego, pecado, perdão, pescoço, ferida, desmaio, perfume,
perdida, perguntar, presente e esquerdo. Em seguida, fizemos a transcrição grafemática
e a fonética, tabulamos os percentuais e elaboramos as Cartas Geolinguísticas. Para a
análise, segunda fase, consideramos:
A) Os fenômenos de:
- abertura e fechamento da vogal pretônica /e/.
B) Variação Diassexual e Diageracional:
- gênero em que houve mais abertura da vogal;
- gênero em que houve mais fechamento da vogal;
- faixa etária em que houve mais abertura da vogal;
- faixa etária em que houve mais fechamento da vogal;
Após tabularmos os dados, preferimos exibi-los em termos percentuais para
possibilitar a comparação entre os resultados deste estudo aos de Pereira (2011). Na
terceira e última fase14, comparamos nossos dados com os registrados no Atlas
Linguístico do Amazonas (ALAM) e no Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA).
4.1 Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM)
Desenvolvido em uma perspectiva Dialetológica, Geolinguística e Sociolinguística
Variacionista Laboviana, o ALAM representa os falares de nove municípios do
Amazonas: Barcelos, Tefé, Benjamin Constant, Eirunepé, Lábrea, Humaitá, Manacapuru e
Parintins. Fruto da tese de doutorado empreendido pela professora da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM), Maria Luiza de Carvalho Cruz, na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2004, esse atlas possui 107 cartas fonéticas e 150
semântico-lexicais. Cada ponto de inquérito foi composto por seis informantes, de
ambos os sexos, nas faixas de 18 a 35 anos, de 36 a 55 anos e 56 anos em diante,
14 Brandão e Cruz (2005) no trabalho intitulado Um estudo contrastivo sobre as vogais médias pretônicas
em falares do Amazonas e do Pará com base no ALAM e no ALiSPA já fizeram a análise das realizações dessa
vogal no ALAM e no ALiSPA.
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perfazendo um total de 54 entrevistados, com escolaridade máxima até a 4ª série do
ensino fundamental.
4.2 Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA)
Esse atlas é parte integrante do projeto Atlas Geossociolinguístico do Pará,
primeiro atlas sonoro do Brasil, publicado em 2004, resultado do trabalho do Professor
Doutor Abdelhak Razky no Laboratório de Linguagem da Universidade Federal do Pará
(UFPA). São 10 pontos de inquéritos nas seis mesorregiões do Estado do Pará
(Abaetetuba, Altamira, Belém, Bragança, Breves, Cametá, Conceição do Araguaia,
Itaituba, Marabá e Santarém), 600 cartas linguísticas, quarenta informantes, de ambos
os sexos, nas faixas 18 a 30 anos e 40 a 70 anos, com escolaridade máxima até a 4ª série
do ensino fundamental.
4.3 Atlas Linguístico do Acre (ALiAC)
Projeto coordenado pela Profa. Dra. Lindinalva Messias do Nascimento Chaves no
grupo de pesquisa Centro de Estudos dos Discursos do Acre (CED-AC), da Universidade
Federal do Acre (UFAC), encontra-se em desenvolvimento, comportando vários
subprojetos, dentre eles, o Atlas Fonético do Acre (AFAc) e o Atlas Linguístico Sonoro do
Acre (ALSAc ).
Os pontos de inquérito constituem-se em cinco regionais: Alto Acre (Assis Brasil,
Brasileia e Xapuri), Baixo Acre (Rio Branco, Plácido de Castro e Porto Acre), Juruá
(Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Porto Walter), Purus (Sena Madureira, Santa Rosa do
Purus e Manoel Urbano) e Tarauacá – Envira (Feijó, Tarauacá e Jordão).
Tanto o AFAc como o ALSAc encontram-se fundamentados nos princípios da
Dialetologia e Geolinguística Contemporânea e contarão com 40 informantes (20
masculinos e 20 femininos). Tais informantes, quatro por localidade, situam-se em duas
faixas etárias, 18 a 30 e 50 a 65 anos, possuem como escolaridade máxima o 5º ano do
ensino fundamental e são naturais de sua localidade respectiva.
5. DISCUSSÕES E RESULTADOS
5.1 Análise da realização da vogal pretônica /e/ nos dados do ALiAC
Analisamos 992 realizações, 142 por regional, porém, como já destacado no item
anterior, fundamentamos o exame apenas em índices percentuais, no sentido de
estabelecer uma comparação com o estudo de Pereira (2011) e o de Brandão e Cruz
(2005). Na carta 1 aparece a realização da vogal pretônica /e/ nas quatro regionais do
Estado do Acre (Alto Acre, Baixo Acre, Juruá e Purus).
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Carta 1. Realização da vogal pretônica na fala acriana.
Registramos que, enquanto a Regional do Alto Acre, a do Baixo Acre e a do Purus
revelam uma tendência ao fechamento (63,5%, 41,3%, 39,1% respectivamente), a
Regional do Juruá, ao contrário, prefere a abertura (51,6%).
Detalhando, há um comportamento variável da pronúncia dessa vogal nos dados
com os seguintes destaques: fechamento na Regional do Alto Acre (63,5%) face à
abertura (19,9%); equilíbrio entre os percentuais do fechamento (41,3%) e da abertura
(39,9%) na Regional do Baixo Acre; tendência ao fechamento (39,1%) e menor
ocorrências de abertura (24,6%) na Regional do Purus; preferência pela abertura
(51,6%) e menor casos de fechamento (30,5%) na Regional do Juruá.
Na sequência, compararemos os dados das quatro Regionais (Alto Acre, Baixo
Acre, Juruá e Purus) com os de Pereira (2011), e, em seguida, confrontaremos com os
registrados no ALAM e no ALiSPA.
5.2 Comparação dos dados do ALiAC aos dados registrados por Pereira (2011)
Comparando os percentuais das Regionais Juruá (2012), Purus (2012), Alto Acre
(2012), Baixo Acre (2013) com os dados obtidos por Pereira (2011), no quadro 1 e 2,
temos um perfil geral da pronúncia do /e/ pretônico no que tange à variação diassexual
e diageracional (faixas etárias: 18 – 30, 50 – 65 anos) no Estado do Acre.
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Quadro 1. Comparação dos dados das Regionais Alto Acre, Baixo Acre, Juruá e Purus com os dados de
Pereira (variação diassexual).
FAT
OR
GÊN
ERO
Regional do Juruá Regional do Purus
(2011)
(2012)


Alçamento


Regional do Alto Acre (2012)
Baixo Acre (2013)
Pereira – Rio
Branco
(2011)
Alçamento


Alçamento
Troca
por [o]


Alçamento
, 
, 
Mas 13,2% 26,9%
culi
no
9,7%
19,6% 20,7%
9,7%
32,8%
5,0%
11,2%
0,1%
20,6%
20,6
%
8,8%
61%
59%
Fem 17,2% 24,6%
inin
o
8,2%
23,2% 18,3%
8,5%
30,7%
9,6%
9,5%
0
21,8%
19%
9,2%
38%
41%
Examinando a variação diassexual, constatamos um comportamento bastante
aproximado da realização da vogal pretônica /e/, em ambos os sexos, em todas as
regionais, não havendo grande distância dos números entre a realização tanto aberta
quanto fechada.
Comparando o resultado das quatro regionais com os dados apurados por Pereira
(2011), os dela se diferenciam pelo fato de ter um corpus maior do que o nosso e por a
autora ter analisado o /e / e o /o/ juntos. De modo geral, no estudo de Pereira, o sexo
masculino destaca-se quanto à pronúncia fechada tanto do /e/ como do /o/ (61%). Nos
nossos resultados, há, conforme já dito, um certo equilíbrio entre as realizações aberta e
fechada do /e/ o que talvez possa ser revisto com um corpus maior.
No quadro 2, continuamos a comparar nossos dados com os de Pereira, desta
feita no que tange à variação diageracional.
FATOR
IDADE
15 –
29
30 – 45
46 – 60
18 – 30
50 – 65
Quadro 2. Comparação da Regional do Alto Juruá e Purus com os dados de Pereira (variação
diageracional).
Regional do
Regional do Purus
Regional do Alto Acre (2012)
Baixo Acre
Pereira – Rio
Juruá (2011)
(2012)
(2013)
Branco
(2011)


Alçame
nto


Alçame
nto


Alçame
nto
Troca por
[o]


Alça
ment
o
, 
, 
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
30,99
%
43,9%
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
47,2%
29,3%
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
21,9%
26,8%
16,2% 25,3%
8,5%
21,6% 19,5%
8,9%
31,9%
9,4%
8,7%
-
21,4
%
19,4
%
9,2
%
-
-
14,2% 25,3% 10,5%
21,2% 19,5%
9,3%
29,6%
8,2%
12,1%
0,1%
21,0
%
20,2
%
8,8
%
-
-
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Pereira utilizou idades diferentes das de nossa pesquisa, portanto selecionamos
as faixas mais aproximadas às de nossos dados, 15 a 29, 18 a 30, 46 a 60 e 50 a 65 anos.
Tanto na faixa mais jovem (18 – 30 anos) da Regional do Alto Acre quanto na mais jovem
de Pereira (15 – 29 anos) atesta-se a preferência pela pronúncia fechada, 31, 9% e
30,9% respectivamente. Na faixa mais velha desta regional e da de Pereira há uma
diferença não muito grande, 29,6% e 21,9%, no entanto, no estudo da autora,
diferentemente do nosso, é a abertura que tem maior ocorrência (26,8%).
Quanto à abertura, a Regional do Juruá revelou percentual igual nas duas faixas
etárias e pouca diferença nos percentuais concernentes ao fechamento (16,2% na faixa
mais jovem e 14,2% na faixa mais idosa).
5.1.3 A realização da vogal pretônica /e/ no ALAM, no ALiAC e no ALiSPA
Brandão e Cruz (2005) selecionaram as cartas fonéticas do ALAM e do ALiSPA
que apresentavam variação das vogais médias pretônicas e as analisaram apresentando
os resultados em tabelas. Para efetuar a comparação no que concerne à variação do /e/
pretônico, Brandão e Cruz (2005) escolheram 22 cartas no ALAM e 31 no ALiSPA.
No quadro seguinte, identificamos os números dessas cartas fonéticas e os
vocábulos levados em consideração no exame por essas autoras. O quadro foi adaptado,
isto é, só utilizamos os vocábulos contendo o /e/ pretônico, descartando os do /o/
pretônico, por não ser objeto de estudo nesta pesquisa.
Número
da carta
fonética
07
06
08
09
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
32
33
47
66
82
101
103
105
Quadro 3. Vocábulos do ALAM e do ALiSPA examinados por Brandão e Cruz (2004).
ALAM
ALiSPA
Número
Vocábulo
da carta
Vocábulo
fonética
d(e)pois
10
(e)strada
b(e)bida
12
r(e)al / r(e)ais
(e)ducação
15
d(e)svio
m(en)tira
17
t(e)rreno
(e)stragada
21
pr(e)feito
(e)sgoto
22
(e)scola
(e)spinha
27
p(e)rnambucano
p(e)scoço
33
p(e)cado
t(e)soura
35
p(e)scoço
pr(e)sente
49
d(e)smaio
m(e)lancia
64
(e)squerdo
m(e)lhor
67
prat(e)leira
p(e)rfume
71
t(e)l(e)visão
p(e)rdido
73
t(e)soura
r(e)al
75
p(e)rfume
r(e)ais
77
trav(e)sseiro
d(e)sovar
80
(e)l(e)trico
dir(e)tora
85
pr(e)sente
r(e)sultado
95
s(e)guro
d(e)vagar
97
(em)prego
r(e)médio
100
d(e)fesa
m(e)dicina
108
(en)contrar
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Fonte: Adaptado de Brandão e Cruz (2005).
109
110
121
125
133
136
139
150
152
p(e)rdido
p(e)rguntar
m(em)tira
d(e)vagar
p(e)neira
f(e)rvendo
c(e)bola
f(e)rida
(e)l(e)fante
Além de descartar os vocábulos referentes ao /e/ pretônico, deixamos de lado,
embora as tenhamos mantido no quadro 3, as palavras cujo /e/ pretônico nos parece
n~o passível de pronúncia aberta, tais quais “emprego” e “encontrar”. Em todo o caso,
conforme já foi dito, nossa comparação se fez apenas com os percentuais relativos à
abertura e ao fechamento das vogais nos dados dos dois atlas.
Na carta 2, reunimos os dados referentes aos três atlas analisados.
Carta 2: Comparação da vogal pretônica /e/ nos dados do ALAM, do ALiAC e do ALiSPA.
O Acre apresenta maior tendência à abertura, 41,4%, embora registre também
expressiva preferência pela realização fechada, 38,5%.
A pronúncia da vogal pretônica /e/ no Amazonas é majoritariamente fechada
(46%), o dobro dos 28,5% para []; no Pará a diferença entre as duas realizações é de
apenas um ponto percentual: []: 35%, []: 36%.
Na carta 3, apresentamos as tendências de cada estado.
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Carta 3: Perfil geral da vogal pretônica /e/ nos falares do Amazonas, Acre e Pará.
Portanto, diante do exposto, pode-se afirmar que, relativamente à pronúncia da
vogal pretônica /e/ no Acre, a proposta lançada por Nascentes (1953) ainda continua
válida, ao passo que, no Pará, tem-se um equilíbrio entre as duas pronúncias, e no
Amazonas a ocorrência das vogais abertas em contexto pretônico não é tão expressiva,
ou seja, confirma-se maior tendência ao fechamento da vogal pretônica /e/.
Assim, no que se refere à delimitação de Nascentes (1953), cabe destacar que a
Região Norte é muito extensa para que haja em sua fala inteira uniformidade e,
sobretudo, que a questão da variação não se condiciona somente pelo aspecto
geográfico.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados desta pesquisa mostram que o Acre possui maior tendência à pronúncia
aberta da vogal pretônica /e/, o Amazonas ao fechamento, e o Pará ao equilíbrio das
duas realizações. Logo, conclui-se que os falares amazônicos possuem um perfil
linguístico variável e diversificado, ou seja, não existe uma uniformidade e sim uma
heterogeneidade linguística.
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Esse resultado não confirma as demarcações de Nascentes, muito baseadas em
divisões geográficas, mas confirma, de certa forma, uma ocorrência expressiva da
abertura da vogal, haja vista que no ALiAC ela foi majoritária, no ALiSPA ela se equilibra
com a realização fechada e apenas no ALAM perde significativamente para o
fechamento.
Por outro lado, não se pode ignorar que os dois estudos – o de Nascentes e a
presente pesquisa – se realizaram em épocas muito diferentes, 60 anos de diferença de
1953 a 2013, nesse lapso de tempo mudanças nos falares locais tenham ocorrido desde
a percepção do referido autor. Pereira (2011) já alertava para uma mudança na
tendência histórica à abertura da vogal pelos acrianos, mudança esta possivelmente
motivada pela mídia e pela migração de pessoas do centro-sul para o Acre a partir de
1970. Dessa forma, não se trata de contrapor a presente análise às marcações de
Nascentes, mas de verificar se a tendência à abertura das vogais é, de fato, uniforme na
região, ou diferenciada.
Finalizando, cabe destacar o interesse de se efetuar pesquisas em dados de outros
atlas linguísticos referentes aos demais estados do Norte do Brasil, a exemplo do Atlas
Linguístico de Rondônia (ALiRO), em desenvolvimento.
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BRANDÃO, Silvia Figueiredo; CRUZ, Maria Luiza de Carvalho. Um estudo contrastivo
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ESTUDOS DA ENUNCIAÇÃO
A DESIGNAÇÃO DE CIDADÃO NA ENUNCIAÇÃO DE PRUDENTE DE MORAES E
CAMPOS SALES
Isabel Cristina Rosa dos Santos
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO: Este é um trabalho de Iniciação Científica financiado pelo CNPq.
Fundamentado na Semântica do Acontecimento, ele busca compreender a designação da
palavra cidadão na enunciação dos dois primeiros presidentes civis do Brasil: Prudente
de Moraes e Campos Sales. O intuito é compreender as especificidades desta palavra
fundamental nas Repúblicas Ocidentais modernas na enunciação do Estado brasileiro,
neste primeiro momento de governo republicano civil eleito democraticamente. O
corpus consiste dos discursos dos referidos Presidentes, contidos no livro Discursos e
Mensagens, de Glezer e Souza e Manifestos e Mensagens, de Pinto. A Semântica do
Acontecimento, de Guimarães (2002), constituiu o embasamento teórico. Esta teoria
considera que sentido da palavra não é fixo, tampouco se reduz a um conceito ou
definição; ele se constrói no enunciado, no texto que integra, na relação entre o
acontecimento em que funciona e sua memória de enunciações. Consideramos que a
relação dos elementos linguísticos marcam operações enunciativas e colocam em
relação o locutor com aquilo que ele fala. Utilizamos recortes dos discursos dos referidos
presidentes escolhidos segundo o critério da presença da palavra cidadão e suas
predicações bem como das predicações recebidas pelas palavras República, Concidadãos,
Pátria, Nação e demais substantivos que designam coletivamente os cidadãos. Como
resultados, tivemos: a co-ocorrência de ‘cidad~o(s)’ e a cognata ‘concidad~os’; ambas
designando ora a coletividade dos brasileiros ora grupos e indivíduos. Elas concorrem
com outras palavras, que tendem a designar o todo: ‘P|tria’, ‘Brasil’, ‘(todos os)
brasileiros’, ‘povo (brasileiro)’. Juntos, esses nomes (e suas predicações) significam uma
identidade nacional em construção, na qual o sentido jurídico-político de
‘cidad~o(s)/concidad~os’ fica enfraquecido. A palavra ‘República’, que predica
indiretamente ‘cidad~o(s)’, reiterada v|rias vezes, tem o seu sentido jurídico-político
diluído nas predicações que significam a instabilidade do regime que designa pela
necessidade de defesa e manutenção, e, por outro lado, sua instabilidade em sentidos
administrativos.
PALAVRAS-CHAVE: cidadãos, concidadãos, República e civis.
ABSTRACT: This is a paper of Scientific Initiation funded by CNPq. Founded on the
Semantics of the Event, he seeks to understand the description of the word 'citizen' in
enunciation of the first two presidents civilians from Brazil: Prudente de Moraes and
Campos Sales. The aim is to understand the specificities of this fundamental word in
Western modern Republics in enunciation of the Brazilian State, at this first moment of
republican government democratically elected civilian. The corpus consists of
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discourses of those Presidents, contained in Speeches and Messages, Glezer and Souza
and Manifests and Messages, Pinto. The Semantics of the Event, Guimaraes (2002),
formed the theoretical basis. This theory believes that sense of the word is not fixed, nor
reduces to a concept or definition; it is built in, in the text that incorporates, in relation
between the event in which it operates and its memory of enunciations. We believe that
the relationship of linguistic elements mark operations proclamatory and put in relation
with the speaker what he speaks. We used cutouts of discourses of those presidents
chosen according to the criterion of the presence of the word 'citizen' and their
predications as well as predications received by words Republic, fellow citizens,
Homeland, Nation and other nouns that designate collectively the citizens. As results, we
had: the co-occurrence of 'citizen(s)' and the cognate 'fellow'; both assigning or the
collectivity of Brazilians or groups and individuals. They compete with other words,
which tend to designate the whole: 'Homeland', 'Brazil', ' (all) Brazilians', 'people
(Brazilian) '. Together, these names (and their predications) signify a national identity in
construction, in which the legal sense-political 'citizen(s) /fellow citizens' is weakened.
The word 'Republic', who preaches indirectly 'citizen(s) ', repeated several times, have
your legal sense-diluted in political predications which signify the instability of the
regime that designates the need for defense and maintenance, and, on the other hand, its
instability in administrative directions.
KEYWORDS: citizens, fellow citizens, Republic and civilians.
1
INTRODUÇÃO
Segundo Guimarães (2002, p. 7), a posição do semanticista é um domínio de
saber que inclui, no seu objeto, a consideração de que a linguagem fala de algo. Não há
como pensar uma semântica linguística sem levar em conta que o que se diz é
obrigatoriamente construído na linguagem. Assim, o real que a palavra cidadão significa
é também construído pelas enunciações da palavra.
Por isso, a Semântica do Acontecimento, que fundamentará a pesquisa ora proposta,
assume que a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da
enunciação, do acontecimento do dizer. Nesta perspectiva, se considera que sentido da
palavra não é fixo, tampouco se reduz a um conceito; ele se faz no enunciado, no texto
que integra, pela relação que tem com o acontecimento em que funciona.
Segundo Oliveira (2013), na Semântica do Acontecimento,
O acontecimento é definido como “diferença na sua própria ordem”
(Guimarães, 2002, p.12). A diferença na enunciação se faz a partir da
temporalização: o acontecimento instaura uma temporalidade que não é
cronológica, mas simbólica. Inscrito no interdiscurso, memória
ideológica de sentidos15, o acontecimento enunciativo configura o seu
presente pela rememoração de um passado de enunciações (os
memoráveis), a partir dos quais projeta um futuro de interpretação. Este
15 A memória interdiscursiva ou interdiscurso é compreendida como o conjunto do dizível historicamente
constituído, tal como a define a Análise do Discurso (AD) de linha francesa (Pêcheux, 1975; Orlandi, 1996).
Esta memória se atualiza e se refaz na relaç~o entre discursos, entendidos como “efeitos de sentidos entre
locutores”, produzidos na enunciaç~o (Orlandi, ibidem, p.38).
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movimento é político. O político (ou a política) na enunciação é
caracterizado “pela contradiç~o de uma normatividade que estabelece
(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento
dos que n~o est~o incluídos” (GUIMARÃES, ibidem, p.16).
Tomando o conceito de político de Guimarães, procuramos compreender de que
modo por meio da enunciação de cidadão se afirma, na toma da palavra pelos dois
primeiros presidentes civis da República brasileira, a relação entre governante e
governados, e o pertencimento do governo ao regime republicano. Para responder a
essas questões, investigaremos o que a palavra cidadão designa ao longo do corpus. A
designação é entendida como a significação de um nome enquanto “uma relação
linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação
tomada na história” (Guimar~es, 2002:9). N~o se trata, como afirmamos anteriormente,
de um sentido fixo ou único, mas do modo como o presente do acontecimento trabalha
sobre a latência de significação da palavra, repetindo e/ou deslocando sentidos e de que
modo.s
2
METODOLOGIA
Concebendo as enunciações dos presidentes como textos, seguiremos o
procedimento de Oliveira (2013): observaremos a designação das palavras-objeto pela
sua relação com outras palavras em dois procedimentos de textualidade: a reescritura e
a articulação.
A reescritura (c~o), conforme Guimar~es (2007, p. 84), “é o procedimento pelo
qual a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito, fazendo
interpretar uma forma como diferente de si”.Ela é concebida nas relações intra e
intertextuais, e é nesses dois movimentos que será levada em conta em nosso corpus.
Por sua vez, a articulação diz respeito às relações de contiguidade locais que, não
redizendo, afetam as expressões linguísticas no interior dos enunciados ou na relação
entre eles (ibidem, p. 88). Estes dois procedimentos textuais – a reescritura e a
articulação – nos permitem observar as determinações semânticas das palavras
estudadas ao longo dos textos.
Os recortes tirados dos discursos presidenciais proferidos nos respectivos
mandatos, nos quais estão presentes as cenas enunciativas que serão analisadas, foram
selecionados segundo o critério da presença da palavra cidadãos e suas derivadas
(cidadãos e civis) bem como da palavra República e suas predicações, além daquelas que
significam o coletivo de cidadãos, como Nação, Povo, Povo Brasileiro e, País ,com as
respectivas predicações.
Representaremos os Domínios Semânticos de Determinação (DSD) das palavras
analisadas nos textos analisados. Tais determinações são instáveis, embora funcionem
sob o efeito da estabilidade. As relações entre as palavras são escritas no DSD por meio
de alguns sinais específicos, determinados por Guimar~es (2007): “├ ou ┤ou ┬ ou ┴
(que significam determina); — que significa sinonímia; e um traço como _______,
dividindo um domínio, significa antonímia” (Guimar~es, 2007, p.81). O modo como a
palavra aparece predicada/determinada nos movimentos textuais de retomada e de
contiguidade nos permitirão chegar à sua designação, e responder as questões postas
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acima, sobre o que a palavra significa no gesto de afirmação da relação entre governante
e governados, e do pertencimento do governo ao regime republicano. Iremos também
analisar o caráter personalista do discurso que é a representaç~o de um “eu” que atribui
a si ou a “outrem” a responsabilidade pelo dizer. Através dessa an|lise nos ser|
permitido dizer como o locutor se posiciona no discurso presidencial, mostrando a
relação entre governantes e governados.
Apresentamos, primeiramente, os recortes dos discursos de Prudente de
Moraes, desde a posse até o de entrega do governo a Campos Sales e, posteriormente, os
de Campos Sales, nos quatro anos de seu mandato.
3
ANÁLISE DOS RECORTES DOS DISCURSOS DE PRUDENTE DE MORAES E
CAMPOS SALES.
Selecionamos os recortes que contêm os exemplos mais ilustrativos dos discursos
de um e outro presidente para a análise em questão.
A - Designação da Palavra cidadão e derivadas no Discurso de Prudente de
Moraes.
a) Neste recorte, em seu discurso de posse na Presidência da República (1894),
Prudente de Moraes dirige-se à Nação e ao Congresso Nacional. Aparecerão as palavras
República, Concidadãos, Nação, que sofrem processos de reescrituração e de predicação,
conferindo o sentido que a palavra cidadãos recebe no acontecimento da enunciação,
por predicação indireta, pois a mesma não aparece no trecho em questão.
“À Nação Brasileira
Assumindo hoje a Presidência da República, obedeço à resolução da
soberania nacional, solenemente enunciada pelo escrutínio de 1º de
março. Aceitando este elevado cargo,que não pretendi por julgá-lo
muito superior às minhas forças,especialmente na atual situação,
submeto-me a imperioso dever patriótico, e não pouparei esforços nem
sacrifícios para corresponder à extraordinária prova de confiança de
meus concidadãos, manifestada de modo inequívoco no pleito eleitoral
mais notável da vida nacional.
Cumpre-me neste momento, manifestar à nação quais os princípios e
normas que me guiarão no desempenho de honrosa, mas difícil missão
que me foi imposta.
O lustro da existência, que hoje completa a República brasileira, tem
sido de lutas quase permanentes com adversários de toda espécie, que
tem tentado destruí-la, empregando para isso todos os meios (...)”.
(MORAES, P. Discursos e Mensagens-Discurso de Posse na Presidência
da República, em 15 de novembro de 1894,p.109).
Neste primeiro recorte, analisamos a primeira cena enunciativa, na qual o
Locutor, ocupando o lugar social de Locutor- presidente, dirige-se à Nação brasileira. O
prefixo con confere ao radical um sentido de pertencimento a um grupo de iguais, pois o
locutor- Presidente , no acontecimento da enunciação, através do emprego de
concidadãos, também se mostra como um cidadão. Além disso, o determinante meus,
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aqui, não recebendo um sentido de posse, mas de igualdade, fortalece esse sentido
aproximativo. Nota-se, portanto, uma aproximação do Locutor com seu interlocutor.
Por outro lado, concidadãos é, também, uma reescritura de Nação Brasileira, da
qual o Locutor mostra um certo distanciamento, promovendo uma divisão entre ele,
locutor-Presidente da República e os outros cidadãos, a Nação Brasileira, mostrando ser
ele um tipo específico de cidadão.
A palavra República aparece predicada por brasileira e por de lutas quase
permanentes com adversários de toda espécie, que tem tentado destruí-la, empregando
para isso todos os meios, conferindo um sentido específico ao de regime de governo,
qualificando-a como uma República difícil de manter estável.
O caráter personalista do locutor-presidente faz com que o presidente, para falar
da República, fale de si mesmo, como centro dos acontecimentos narrados. Neste
recorte, o “eu” atribui a si muitos esforços para a manutenç~o do regime em quest~o, a
República. Essa característica do seu discurso pode ser muito bem visualizada no trecho
que se segue: (...) Aceitando este elevado cargo, que não pretendi por julgá-lo muito
superior às minhas forças, especialmente na atual situação, submeto-me a imperioso
dever patriótico, e não pouparei esforços nem sacrifícios para corresponder à
extraordinária prova de confiança de meus concidadãos(...).
Como resultado, neste recorte, temos que a ocorrência de concidadãos ora
designa a igualdade entre governante e governados ora essa palavra concorre com
outras palavras, que tendem a designar o todo, ou seja, o conjunto de cidad~os: ‘Naç~o’,
‘Naç~o Brasileira’. Juntos, esses nomes (e suas predicações) significam o anseio por um
regime republicano, algo desejado por governantes e governados e uma identidade
nacional em construção, na qual o sentido jurídico-político de concidadãos fica
enfraquecido. A palavra ‘República’, que predica indiretamente ‘concidad~o(s)’,
reiterada várias vezes, tem o seu sentido jurídico-político diluído nas predicações que
significam a instabilidade do regime que designa pela necessidade de defesa e
manutenção, e sua instabilidade.
Pela importância que a palavra concidadãos assume no acontecimento da
enunciação, com suas reescrituras e predicações, podemos expressar estas relações
através do Domínio Semântico de Determinação (DSD). O DSD para concidadãos seria:
Nação
┤
República
Brasileira
┴
Concidadãos ├
Nação Brasileira
A palavra cidadãos, embora não apareça no recorte selecionado, aparece no texto
como um todo e, predicada indiretamente, por Concidadãos, Nação Brasileira, Nação e
República designa, por um lado, aqueles que queriam a República, os que apoiavam o
Presidente e, por outro, um tipo particular de cidadão “Presidente da República”, que
se dirige à Nação, os outros cidadãos, mostrando ser ele um cidadão em particular. O
DSD para ela é:
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Nação Brasileira
┴
Cidadãos ├
┬
Concidadãos
Nação
____________________________________________________________________________
Presidente da República ┤
Cidadão
b) Neste segundo recorte, também, na posse de Prudente de Moraes (1894),
dirigindo-se ao Congresso Nacional, aparecerão as palavras Nação e concidadãos, que
recebendo as predicações e sofrendo os processos de reescrituração contribuem para a
designação de cidadãos.
(…) Conheço e avalio bem os grandes embaraços e dificuldades de toda
ordem com que terei de lutar no desempenho de minha árdua missãodesanimaria, se não me sentisse apoiado pela nação e se não contasse
com a cooperação patriótica de cidadãos dos mais ilustrados e
competentes(...)
(MORAES, P. Discursos e Mensagens-Discurso de Posse na Presidência da
República. p.111)
Percebemos novamente, nesse recorte, o caráter personalista do discurso de
Prudente de Moraes, que produz um eu que atribui a si a avaliação das dificuldades de
seu governo. Este modo de dizer a República e os cidadãos por meio de auto-referências
é bastante característico dos dois presidentes, como veremos.
No trecho acima, a palavra cidadãos reescreve nação e forma o sintagma cidadãos
dos mais ilustrados e competentes, que por sua vez também qualifica cidadãos. Portanto,
esse recorte apresenta um determinado grupo de cidadãos como aqueles que o
apoiavam, que eram os patriotas, dos mais ilustrados e competentes, sem os quais,
segundo ele, desanimaria. A palavra Nação, por outro lado, predica cidadãos em sua
totalidade. Para a palavra “cidad~os” temos o seguinte DSD:
Nação
┤
cidadãos
├
dos mais ilustrados e competentes
c) No terceiro recorte selecionado, também em sua posse à Presidência da
República (1894), aparecerão as palavras concidadãos e Nação que recebem
predicações que mostram os movimentos de sentido de designação de cidadãos.
Senhores membros do Congresso Nacional (...)
(…) A 15 de novembro de 1894, ao tomar posse do elevado cargo,
que me foi confiado pelo sufrágio espontâneo de meus concidadãos,
afirmei em manifesto dirigido à Nação, que no desempenho de tão
honrosa quanto difícil missão que me fora imposta, obedeceria aos
princípios e normas seguintes: (...)
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( MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao
Congresso Nacional em 3 de maio de 1897. p155).
O locutor-presidente dirige-se aos membros do Congresso Nacional, dizendo-se
fiel às promessas feitas àqueles que demonstraram confiança nele, ou seja, seus
concidadãos. Ao dirigir-se aos seus concidadãos, além de se dirigir aos membros do
Congresso Nacional, o locutor dirige-se também a todos aqueles que o elegeram, à Nação
como um todo, reescrevendo concidadãos, por substituição, através de Nação. Nação,
Membros do Congresso Nacional e Concidadãos são, portanto, reescrituras de cidadãos.
A palavra cidadãos, não aparece no recorte, mas apresenta-se algumas vezes no
texto, e predicada indiretamente pelos substantivos coletivos Membros do Congresso
Nacional, Nação e por Concidadãos, confere a cidadãos o sentido daqueles que apoiaram
o Presidente da República , que o escolheram livremente.
d) No quarto recorte Prudente de Moraes dirige-se ao Congresso Nacional
(1898), sobre o “incidente” da morte do general Carlos Machado Bittencourt. Aparece a
palavra cidadão, que ao mostrar-se predicada e reescriturada, vai receber, por esses
movimentos, sua predicação.
(...) Travou-se então rápido e terrível conflito, que terminou com a prisão
do agressor;mas infelizmente, desse conflito saíram feridos:-mortalmente
o Ministro da Guerra, que expirou momentos depois, e o chefe da casa
militar com largo ferimento no baixo ventre. Enquanto se passava esta
cena rápida e sanguinolenta, fui cercado por pessoas da minha comitiva e
por grande número de cidadãos e oficiais do Exército, que me rodearam
para impedir que o assassino realizasse seu intento; afastaram-me do
lugar e levaram-me até o portão do Arsenal, onde tomei o carro, que me
conduziu ao pal|cio, sem ter recebido ofensa física(...)”
(MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao Congresso
Nacional em 3 de maio de 1898. P. 181)
A palavra cidadãos, no trecho acima, aparece em oposição a pessoas da minha
comitiva e a oficiais do Exército. O Locutor, ocupando o lugar social de locutorpresidente, opondo cidadãos como a oficiais do exército e a pessoas de minha comitiva,
significa cidadãos como civis. O DSD para a palavra cidadãos é:
Cidadãos
├ (civis)
__________________________________________________
Aqueles que não são da comitiva
Aqueles que não são oficiais do Exército
e) Este quinto recorte foi extraído da mensagem de Prudente de Moraes ao
Congresso Nacional, quando rende homenagens ao Marechal Carlos Machado
Bittencourt, assassinado em ato de defesa do presidente. Ele vai mostrar as palavras
Concidadãos, Nação, Governo e República, que conferem a a cidadãos, indiretamente, sua
designação.
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“(…) O Governo, querendo prestar, em nome da Nação, pública
homenagem de reconhecimento
à memória do Marechal Carlos
Machado Bittencourt, que, depois de haver prestado constantes e
relevantes serviços à sua Pátria, encerrou sua grande e gloriosa carreira
militar, legando a seus concidadãos um extraordinário exemplo de
dedicação e lealdade a ponto de sacrificar a própria vida em defesa do
Chefe do Estado, resolveu que seus funerais fossem feitos à custa da
República (...)”.
(MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao
Congresso Nacional em 3 de maio de 1898. P.182)
A palavra Concidadãos reescreve Nação, estando ambas distintas de governo,
estando estas três relacionadas a Pátria, à qual o Marechal teria prestado serviços. O
Marechal é incluído nos concidadãos, produzindo uma inclusão dos militares entre eles.
Este sentido é dado pelo enunciado “ (….) depois de haver prestado constantes e
relevantes serviços à sua Pátria, encerrou sua grande e gloriosa carreira militar,
legando a seus concidadãos um extraordinário exemplo de dedicação e lealdade ( ...)”
f) O recorte da mensagem do presidente Prudente de Moraes ao Congresso
Nacional, item “Água”, fala a respeito dos problemas sanit|rios do Rio de Janeiro, em
1898 e mostra as palavras cidade e população, apresenta as palavras cidade e
população.
“(...) O serviço de abastecimento d'|gua { Capital Federal continua nas
mesmas condições desfavoráveis em que tem estado desde muitos anos.
Os mananciais têm sofrido grande redução no volume de suas águas;
por outro lado, desenvolve-se a cidade e as necessidades da população
têm crescido sensivelmente (...).”
(MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao
Congresso Nacional em 3 de maio de 1898. P 201)
O locutor-presidente refere-se à cidade e às necessidades da população. Cidade e
população remetem ao que é urbano, à concentração de pessoas, e isso é confirmado
pela presença da palavra população, que também designa quantidade, concentração de
pessoas, pois o locutor refere-se ao seu crescimento, sobretudo nas periferias. População
é uma palavra administrativa (e não política) que reescreve cidadãos. Sendo assim,
temos que:
cidade
┤ população
├
conjunto de pessoas aglomeradas
g)- Este recorte apresenta o presidente Prudente de Moraes dirigindo-se ao
Presidente Campos Sales, declara o Estado de Sítio que se encontrava o país em 1898,
devido a vários incidentes, inclusive , do assassinato do Marechal Bittencourt.
(...) Rendendo a devida homenagem à heroica vítima do dever, o
Governo, em nome do povo brasileiro, Marechal sobre uma coluna de
granito- o que foi feito no Arsenal da Marinha desta Capital- a fim de ser
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inaugurado no primeiro aniversário do lutuoso acontecimento e no
próprio local em que se perdeu a vida aquele servidor da Pátria- uma
das glórias do Exército Nacional, pelos seus valiosíssimos serviços, tanto
na paz como na guerra, e que, ao terminar sua útil existência, ainda
legou a seus concidadãos um raro exemplo de civismo e de
fraternidade humana.(...)”
(MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de
Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898,
p.274)
Neste recorte, a palavra concidadãos, que se refere aos concidadãos do Marechal,
reescritura povo brasileiro, em nome do qual fala o presidente, em uma de porta-voz,
pela qual se distingue do povo, como seu representante.
O DSD para a palavra concidadãos, aqui neste enunciado, torna-se significativo,
pois recebe a predicação indireta de várias palavras que designam o coletivo de
cidadãos.
Pátria
┤
Concidadãos
├
povo brasileiro
No DSD acima, concidadãos é determinado por Pátria e Povo Brasileiro.
h)- Neste recorte do discurso de Prudente de Moraes, dirigido ao seu sucessor na
Presidência da República, Presidente Campos Sales, sobre o Clube Militar, observamos a
presença das palavras cidadãos e sua cognata civis.
(...) Que o clube fora mandado fechar até segunda ordem, mas que
esta segunda ordem só poderia ter sido expedida dentro do estado
de sítio depois dele, tal ordem seria ociosa porque pelo artigo 72
da Constituição Federal é garantido a todos o direito de associação,
e nem poderia ela ter lugar, porquanto o clube,
que
é
composto de oficiais do Exército e da Marinha, de civis com honras
militares ou postos na Guarda Nacional, não é subordinado ao
Ministro da Guerra.
Que foi, pois, escudado na Constituição, que o presidente do clube
fez a convocação a fim de eleger os cidadãos que deviam
preencher os cargos vagos na diretoria (...)”.
(MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente
de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de
1898, p.275)
Neste recorte, a palavra cidadãos aparece pela primeira vez e vem predicada e
reescriturada por aqueles que deveriam preencher os cargos vagos na diretoria.
A palavra civis traz uma especificação: com honras militares. Aparece em
referência a sócios do Clube Militar, em oposição a oficiais no enunciado: (...) Oficiais do
Exército e da Marinha, de civis com honras militares ou postos na Guarda Nacional(...).
Cidadãos reescritura as duas expressões.
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oficiais
┤
Cidadãos
├
civis com honras militares
i)- No recorte em questão, Prudente de Moraes dirige-se ao seu sucessor na
Presidência da República, Campos Sales, mostrando a relação do seu governo com os
estados. Nele, aparece a palavra cidadão, predicada por brasileiro.
(...) A 12 de julho de 1895, o general de divisão Inocêncio Galvão de
Queiroz, comandante e chefe das forças em operações no Estado do Rio
Grande do Sul, enviou-me a ata da conferência celebrada a10 do mês em
Piratini, com o general honorário João Nunes da Silva Tavares, chefe dos
revolucionários as contra o governo daquele Estado.
Constava, desse documento que os revolucionários estavam prontos a
depor as armas perante o governo da União, mediante as seguintes
condições:
1º, garantia da efetiva posse dos direitos que a Constituição confere a
todo cidadão brasileiro.
(MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de
Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898, p.
278)
O locutor-presidente dirige-se neste recorte ao seu sucessor na presidência. A
palavra cidadão aparece predicada por todo e brasileiro. A palavra se refere assim à
coletividade dos sujeitos na relação com o Estado, e vem especificada pelo seu caráter
nacional. O enunciado: garantia da efetiva posse dos direitos que a Constituição confere a
todo cidadão brasileiro (…) afirma o caráter jurídico da condição de cidadão, atribuído
pela Constituição Federal. Ao mesmo tempo, ao afirmar a necessidade de garantir tais
direitos, indica ainda a instabilidade da República. Eis o DSD de cidadão:
brasileiro
┤
cidadão
├ aqueles que possuem direitos
j) Neste recorte em que aparece a palavra cidadãos, o Presidente Prudente de
Moraes dirige-se a Campos Sales sobre aspectos da economia do país.
(…) O congresso havia determinado na lei n. 428 de 10 de
dezembro de 1896,art. 7º, a nomeação de uma comissão,
constituída por empregados de fazenda, negociantes e industriais,
para proceder à revisão detalhada e completa da atual tarifa. O
Governo, em execução do pensamento do legislador, conseguiu no
ano passado organizar esse trabalho de revisão, por intermédio de
uma comissão de cidadãos de reconhecida competência , o qual,
apresentado ao Congresso, foi incluído na lei n.489 de 1897, com
as modificações constantes do artigo 1º. Estas modificações
determinam a necessidade de redigir as novas tarifas de acordo
com as resoluções legislativas(...)”.
(MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de
Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de
1898.p.307)
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O caráter personalista permite mostrar um eu que atribui ao Governo e ao
Congresso a nomeação de uma comissão destinada a fazer a revisão, apresentação,
inclusão e modificações na lei em questão.
Na express~o “comiss~o, constituída por empregados da fazenda, negociantes e
industriais” temos uma reescrituraç~o por expans~o de comissão, pois, o enunciador
descreve de que é constituída a comissão, especificando quais são seus integrantes: os
empregados da fazenda, os negociantes e os industriais.
A expressão cidadãos de reconhecida competência também reescreve comissão
por expansão. O sintagma de reconhecida competência predica a palavra cidadãos e
assume, no acontecimento da enunciação, a significação de que somente alguns cidadãos
são de reconhecida competência e são os que fazem parte da comissão. O DSD de
cidadãos aqui é:
Empregados, da fazenda
negociantes e industriais
┤
cidadãos
├
de reconhecida
competência
Segundo o DSD acima, cidadãos é determinada por empregados da fazenda,
negociantes e industriais e de reconhecida competência.
k)- Este recorte foi selecionado pelas predicações recebidas pela Palavra
República, que indiretamente predicarão cidadãos, embora esta última e seus derivados
não apareçam. Nele, Prudente de Moraes apresenta-se concluindo aspectos referentes
seu mandato.
“(...) Fui, desde o princípio do meu governo, dominado pela ideia de
extinguir as lutas que nos dilaceravam, fazendo uma política de paz e de
congraçamento, dentro da qual pudessem viver com honra e encontrar
garantias todos os brasileiros.
Os movimentos armados, tão contrários à índole e ao temperamento
nacional, tinham-se repetido, dividindo-nos em facções hostis,
enfraquecendo os princípios de ordem, gerando suspeitas sobre a
tendência de predomínio que atribuía às classes armadas e criando
ódios que podiam provocar divergências muito profundas e que seriam
de graves consequências para a integridade da República.(...)”
(MORAES, P. Manifestos e Mensagens-.Mensagem de Prudente de
Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898,
p.315)
O locutor-presidente, no acontecimento da enunciação, refere-se a brasileiros aos
quais ele sugere querer dar honras e garantias através das ações do seu governo. A
palavra brasileiros aparece predicada por todos e refere ao conjunto da nação; ela se
opõe a “movimentos armados”. Os sujeitos s~o predicados em relaç~o ao Estado pela
nacionalidade, e mais uma vez, não por qualquer participação política.
l)- Neste recorte, selecionado pela presença abundante de palavras que predicam
indiretamente cidadãos, como civis, concidadãos e República, Nação, país, Prudente de
Moraes conclui as ações de seu mandato.
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“(...) Est|, portanto, consolidado o governo civil da República e sente-se
que todos anseiam pelo desenvolvimento das forças da Nação, que uma
série de desastres havia atrofiado. Firma-se o crédito público. Com o
acordo de 15 de junho foi encontrada, já o dissestes, a chave para a
solução da crise financeira. No exterior melhora a cotação dos nossos
títulos; no país, a taxa cambial ascendente denuncia o renascimento da
confiança.No momento de findar o mandato com que fui honrado pela
confiança dos meus concidadãos, afirmo à República que procurei
zelar da verdade constitucional, inspirando-me na lição dos grandes
mestres como na experiência dos povos que se regem pela mesma forma
de governo.
(MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de
Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898.p.316)
A palavra civil aparece predicando governo, e, por sua vez, governo civil aparece
predicando República, sinalizando um momento outro para a o regime, não mais
liderado por militares. A palavra concidadãos reescritura, por substituição, Nação, País e
todos. Elas referem à coletividade da nação.
B- Designação da Palavra cidadão e derivadas no Discurso de Campos Sales.
a)- O primeiro recorte em análise é parte do discurso do Presidente Campos Sales em
seu Manifesto Inaugural, e nele observaremos a presença das palavras concidadãos,
Nação, eleitorado brasileiro, voto popular e República.
“(…) À Nação.
Ao assumir o governo da República, cheio de confiança nos poderosos
elementos de vitalidade nacional e seguro da dedicação patriótica dos
meus concidadãos, cumpre-me expor à Nação, com sinceridade e
clareza, todo o meu pensamento na direção dos seus altos destinos.
Em presença das urnas, quando o eleitorado brasileiro precisava
conhecer para escolher, falei a linguagem franca e leal, que me ditava a
cosnciência e me aconselhava o patriotismo. Investido de poder, venho
trazer ao paiz sobre o império dos mesmos sentimentos, a ratificação
solemne de todos os meus compromissos.
Elevado a este posto de honrosa confiança e de incomensurável
responsabilidade, apraz-me, acreditar que, o que pretendeu o voto
popular, nos comícios de 1º de março, foi collocar no governo da
República o espírito republicano, na sua acentuada significação(...)”
(Manifestos e Mensagens- Campos Sales, Manifesto Inaugural, 1889, p.
39)
Ao analisarmos o recorte acima, do discurso de posse presidencial de Campos
Sales, percebemos o caráter personalista já presente na enunciação de seu antecessor.
A palavra Nação aparece reescriturada por substituição por concidadãos,
eleitorado brasileiro e por repetição, no primeiro parágrafo, por Nação. Vemos o quanto
outras palavras se relacionam com cidadão(s) e suas cognatas, direcionando seus
sentidos para uma memória nacionalista e patriótica, e na qual a responsabilidade do
cidadão se restringe ao voto.
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No primeiro parágrafo, na palavra concidadãos, o prefixo con confere um sentido
de pertencimento a um conjunto de iguais e, juntamente com o pronome possessivo
meus, de aproximação do Locutor com seu interlocutor. Se por um lado o prefixo con
possibilita que ele, o locutor-presidente, seja também um cidadão, por outro, o caráter
personalista da enunciação o distingue dos seus concidadãos. A palavra concidadãos tem
a seguinte determinação:
Nação
┴
República ┤ Concidadãos
├
Eleitorado Brasileiro
No DSD acima, concidadãos é determinado por República, Eleitorado Brasileiro,
Nação e Voto Popular.
b)- Neste recorte, mostramos mais um pouco do discurso presidencial de Campos
Sales dirigindo-se ao Congresso Nacional. Nele aparecem em negrito as palavras
República e concidadãos.
Senhores Membros do Congresso Nacional
(…) Chamado a presidir os destinos da República pelo sufrágio
nacional, apraz-me recordar em nossa presença que, em documento
político que antecedeu a eleição de 1º de março de 1898, e que tinha fim
especial de esclarecer a situação eleitoral, procurei desempenhar-me
deste dever de lealdade para com os membros concidadãos, iniciando
essa prática, da essência da electividade e ao mesmo tempo
indispensável como meio de intervir com efficacia no preparo da
opini~o(...)”
(Manifestos e Mensagens, Campos Sales. Mensagem apresentada na 3ª
sessão da terceira legislatura- 3 de maio de 1899. P.61)
A palavra concidadãos reescritura “Membros do Congresso Nacional” por
substituição. Temos, assim, um recorte sobre a coletividade da nação. A palavra
República aparece no sintagma os destinos da República, que indica um sentido de
instabilidade de regime, que dependeria do seu gestor para permanecer inabalável.
Concidadãos designa, portanto, no acontecimento da enunciação, o sentido daqueles que
cuidam dos destinos da República.
c)- Neste recorte, o presidente Campos Sales, em mensagem ao Congresso
Nacional, presta contas das ações do seu governo no discurso do último ano de seu
mandato. Nele, aparecerão as palavras República, concidadãos, povo brasileiro,
importantes na predicação indireta de cidadãos e sua designação.
(...) Releva ponderar que não foi, infelizmente senão vencendo graves
obstáculos que o meu governo poude chegar aos resultados que ahi
deixo consignados. Em diversos momentos as difficuldades aggravaram48
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se profundamente pela intercurrencia de acontecimentos, cujos effeitos
perderam ainda em parte. Sobrevieram os terriveis flagellos da seca, no
Estado do Ceará, e da peste bubônica na Capital da República e outros
pontos, a crise bancária resultante da suspensão de pagamentos do
Banco da República, e como o mais energico fator da crise economica, a
considerável e súbita baixa de preço dos principaes productos
nacionaes.
Foi atravez de taes accidentes, que me coube dirigir a ação governativa.
Bem pode isto ser-me levado em conta pelo que tenha deixado de fazer.
Ahi está, entretanto, a minha obra no governo da República. Entrego-a
de animo sereno e na paz de uma consciência altiva ao julgamento dos
meus concidadãos. Devo-a, principalmente, ao patriotismo do povo
brasileiro, ao esforço e à lealdade com que fui secundado pelos meus
ministros, aos quaes, é com verdadeira satisfação que o declaro, reservei
maior amplitude em suas respectivas espheras de acção(...).
(Manifestos e Mensagens- Campos Sales- Terceira sessão da quarta
legislatura de 3 de maio de 1902, p. 231-232)
Observamos, neste recorte, mais uma vez, o caráter personalista, pelo qual o
Locutor atribui ao seu governo as ações e obras realizadas. No discurso de Campos Sales,
presente neste recorte, podemos perceber que a palavra concidadãos é reescriurada, por
substituição, através de povo brasileiro, o que predica os sujeitos na relação com o
Estado, produzindo um sentidos de identidade nacional. Chama a atenção, com relação à
palavra República, sua reiteração nos sintagmas Capital da República, Banco da
República e governo da República. Esta palavra, diferentemente de cidadão(s) que vai
perdendo espaço para concorrentes cognatas e não-cognatas, vai aparecendo cada vez
mais.
d)- Neste recorte, o presidente Campos Sales, em seu discurso ao Congresso
Nacional, no final do seu mandato, refere-se às questões do território brasileiro no seu
governo. Nele, aparecerá em destaque a palavra cidadãos.
(...) Por contrato, firmado em Londres com um syndicato estrangeiro,
approvado com poucas modificações pelo Congresso Nacional e
promulgado pelo Poder Executivo, confia ao governo boliviano a
administração do território do Acre, pelo prazo prorrogável de sessenta
anos, à companhia que o mesmo syndicato organizar e que será
considerada administrador fiscal (...).
(…) Nesta nota, de 14 de abril ultimo, fez o governo brasileiro a seguinte
declaração:
O arrendamento do territorio do Acre, objecto ainda de contenda com
outra nação americana e dependente em todas as suas relações do Brasil
, não interessa somente à economia da Bolivia(...).
(...) Fazendo esta declaração o governo brasileiro mostra o empenho que
tem em manter com firmeza a legitimidade dos seus direitos, em
garantir a propriedade de cidadãos brasileiros e em sustentar nesta
parte do nosso continente a unica politica digna dos elevados
destinos(...).
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(Manifestos e Mensagens- Campos Sales -.Terceira sessão da quarta
legislatura de 3 de maio de 1902, p. 234)
Neste recorte, a palavra brasileiros aparece como adjetivo, predicando cidadãos e
governo, o que reitera o sentido nacionalista dos modos de dizer os sujeitos na relação
com o Estado.
4
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Diante das análises realizadas à luz da Semântica do Acontecimento de Eduardo
Guimarães, podemos dizer que, quanto ao critério do caráter personalista, no discurso
de Prudente de Moraes, há um maior número de recortes onde se verifica a produção de
um eu que atribui a si as ações do governo. Porém também encontramos um eu que
atribui a outrem (governo, congresso, indefinido) as ações em questão. Já no discurso de
Campos Sales, há um predomínio da produção de um eu que atribui a si as ações em
questão, com pouquíssimos casos de atribuição a outrem. O caráter personalista das
enunciações dos dois presidentes indica que a República vai sendo significada como
obra de alguns, e não da coletividade dos cidadãos. Os presidentes, ao falar de si para
dizer a República, se colocam com os principais personagens do processo de construção
do novo regime, e apagam o próprio processo histórico ao subordiná-lo às suas ações e
nada mais. Aos cidadãos cabe o voto, o sufrágio, que marca a passagem dos governos
militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto para os civis.
Nos recortes selecionados dos dois primeiros presidentes civis, pode-se
perceber a presença das palavras cidadãos e concidadãos, com predomínio desta
última. Ambas as palavras referem à coletividade da nação, como também a setores da
população: os que apoiavam a república, patriotas, aqueles que apoiavam o presidente,
aqueles que não são civis, aqueles que habitavam a cidade e os que possuíam direitos,
entre outros. Pudemos observar ainda, a concorrência de palavras como povo,
brasileiros, nação para referir aos sujeitos na sua relação com o Estado, em detrimento
das palavras políticas republicanas.
Como efeito, vai-se construindo uma identidade de desigualdade política dos
sujeitos em relação ao Estado, que os representa e é ator principal da história da
República em nome deles, ficando a participação do coletivo ou restrita ao voto, com a
censura de outros modos de participação, como a luta armada e os protestos, ou
relegada a setores específicos da sociedade.
Cidadão, como palavra da República, se dilui em meio a um conjunto de outras
palavras que produzem uma identidade antes de pertencimento nacional do que de
participação política. A palavra República, por sua vez, toma a frente, sendo dita e redita,
e se construindo a partir da relação com esses modos discrepantes de dizer o governo e
os cidadãos.
REFERÊNCIAS
GLEZER, R.; SOUZA, J. S. Prudente de Moraes-Discursos e Mensagens- Museu da USP,
S. P p. 107-316.
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Pontes Editores, 2007.
ORLANDI, E. Os Sentidos do Povo -A Noção de Povo que se Constitui em Diferentes
Discursividades. p.7-30, Unicamp, Campinas, SP
Imprensa Oficial- Manifestos e Mensagens- Campos Sales- Coleção Paulista, SP, 2007.
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ESTUDOS DO DISCURSO
PROPÓSITOS COMUNICATIVOS DO GÊNERO OFÍCIO
Ismael Paulo Cardoso Alves16
Universidade Federal do Piauí
RESUMO: O ofício, gênero bastante circunscrito ao domínio discursivo burocrático, é um
gênero que, por vezes, encontra-se destituído de seus aspectos sociorretóricos. Isso é
facilmente encontrável nos Manuais de Redação, como o da Presidência da República
(2002) e o do Governo do Estado do Piauí (2006), que longe de oferecer ao usuário do
gênero orientações de como produzir um ofício, de modo que possa atender à
necessidade comunicacional da empresa emissora do gênero, de modo que possa obter
aquilo que objetiva do destinatário do gênero, apenas lhe enumera regras de como
escrever um bom texto sem orientá-lo das especificidades e funcionalidades de cada
regra que aparece no texto. Uma categoria que poderia ajudar esse usuário na produção
de exemplares do gênero é o de propósito comunicativo, que corresponde às finalidades
pelo qual uma pessoa escolhe um gênero e não outro(s). Neste trabalho, montamos um
corpus de 30 ofícios e elencamos os propósitos comunicativos mais recorrentes desse
gênero. Para atingir esse fim, utilizamos como aporte teórico as teorias de Askehave e
Swales (2009) e Alves Filho (2011) sobre propósito comunicativo.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Ofício. Propósito comunicativo.
INTRODUÇÃO
O ofício é um gênero que possui uma longa tradição retórica. Caracterizado como
um texto pertencente à esfera da burocracia, o ofício ainda é bastante utilizado em
instituições públicas e/ou privadas para estabelecer a comunicação entre empresas ou
entre empresas e pessoas físicas. Esse gênero, assim como outros gêneros da esfera
burocrática, reflete as especificidades da esfera comunicativa em que está circunscrita e,
talvez, por esse motivo, ainda seja tão amplamente utilizado, diferentemente de alguns
gêneros que foram substituídos por outros com o advento de novas tecnologias. O fax,
que foi substituído pelo e-mail, é um exemplo.
Nosso objetivo neste trabalho é descobrir o papel social que exerce esse gênero.
Para isso, montamos um corpus contendo 30 ofícios reais da Secretária de
Administração do Estado do Piauí. Ao final do relatório, constatamos que os ofícios
atendem a uma gama de propósitos comunicativos. Diferentemente dos Manuais de
Redação, Manual da Presidência da República (2002) e do Manual do Governo do Estado
do Piauí (2006), que definem o ofício como um gênero que possui apenas como
finalidade “estabelecer a comunicaç~o entre instituições públicas”, encontramos alguns
outros, dependendo da sua finalidade comunicativa.
16 Aluno graduando do curso de Licenciatura Plena em Letras Português na UFPI. E-mail:
[email protected]. Bolsista PIBIC/CNPq.
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O conceito, as características, a finalidade e os modelos de produção do gênero
ofício são facilmente encontrados nos manuais oficiais de redação. No entanto, grande
parte dos manuais orienta o usuário do gênero apenas no sentido de produzir um texto,
sem levar em conta a função sociorretórica do ofício. O que encontramos nos manuais
foi um conceito muito superficial do gênero, a didatização das normas diagramacionais
para a produção do ofício e modelos que serviam como orientação.
Tal perspectiva adotada pelos manuais de redação é insuficiente para uma
compreensão satisfatória sobre o ofício, pois tal perspectiva deixa de entrever o papel
social do gênero dentro da sua esfera comunicativa, e pode levar os usuários do ofício a
uma compreensão um tanto vazia sobre esse gênero. Contrária a essa perspectiva é a de
Silveira (2002, p. 107), que apresenta um conceito sobre o ofício que abrange o seu
papel sócio-retórico:
Ofício é um tipo de correspondência oficial que se presta a vários
propósitos comunicativos, os quais estão geralmente circunscritos a
ações corriqueiras na administração pública, visando à comunicação e
ao intercâmbio entre instituições públicas e também entre estas e as
instituições privadas. (...) Obviamente, a diversidade de propósitos
confere uma certa heterogeneidade aos ofícios, mas, ainda assim, o
caráter institucional das audiências, o formato, a formalidade da
linguagem, o tratamento retórico, a estrutura textual-discursiva e as
expressões formulaicas resguardam a sua identidade como gênero
exclusivo da burocracia administrativa.
A autora apresenta acima uma perspectiva acerca do ofício que atenta para os
seus aspectos sociais de significado, produção e interpretação por parte dos seus
usuários, os retores do gênero. Segundo a autora, o ofício atende a uma gama de
propósitos comunicativos voltados a ações corriqueiras da sua esfera comunicativa.
Além disso, os ofícios apresentam certa heterogeneidade mediante seu propósito
comunicativo e resguardam traços da sua esfera comunicativa específica.
Trabalharemos no decorrer deste trabalho com esta perspectiva sócio-retórica de
gênero adotada por Silveira (2012). Além da autora, autores como Alves Filho (2011),
Askehave e Swales (2009).
GÊNERO
Segundo Alves Filho (2011, p. 20), “os gêneros s~o como os grupos sociais e os
seres humanos que os usam: mutáveis, variáveis, dinâmicos, às vezes até mesmo
contraditórios”. Esta proposiç~o é, sem dúvida, muito rica e colaborativa, pois entende
gênero não só nos seus aspectos fixos (como a maioria dos livros didáticos faz), mas
também nos aspectos dinâmicos, ambos atrelados entre si e mantendo uma relação
direta com a sociedade. Esta assertiva corrobora com os estudos de Bakhtin (2003) e
Miller (2009), que ponderam o “papel responsivo” do gênero ante as necessidades
específicas dos indivíduos na esfera social à qual fazem parte (proposta esta que traz luz
a uma característica do gênero muitas vezes despercebida por seus usuários: a função
específica do gênero de atender aos anseios sociais).
Mas a que corresponde o “papel responsivo” do gênero? Da alcunha de Bakhtin
(2003), o “papel responsivo” corresponde { atitude do indivíduo de responder aos
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enunciados envoltos, ou seja, de atender às necessidades da esfera social em que se
encontra através dos gêneros, dado que a relação entre indivíduos dentro das esferas
sociais e das comunidades discursivas acontece através do uso da linguagem, de
enunciados, dos gêneros. Para atender às exigências da esfera, os sujeitos discursivos
utilizam-se dos enunciados que correspondem àquilo que lhes é exigido. Importante
ressaltar que o uso desses enunciados não se dá a esmo ou simplesmente seguindo uma
convenção, mas agrega função, finalidade e intencionalidade dos sujeitos discursivos, o
que garante ao enunciado um uso cada vez mais recorrente a ponto de assumir traços de
“relativa” estabilidade. Bakhtin (2003, p. 261-262) diz:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo
da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas
e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo por sua
construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo da comunicação.
Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.
Vemos que Bakhtin (2003) atrela o enunciado ao campo de atividade humana,
diferindo das perspectivas que não concebem ao gênero um inequívoco papel social.
Ainda, segundo o excerto, “esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo”. Com essa assertiva, Bakhtin rompe com a
concepção do gênero como forma destituída de contexto e de papel social.
Ainda no excerto, vemos que Bakhtin (2003) entende o gênero como algo
composto por três elementos constituidores: conteúdo temático, construção
composicional e estilo de linguagem. Para o teórico, a relativa estabilidade do gênero no
enunciado (a que ele chama no final do excerto de gênero do discurso) resulta da
recorrência e junção desses três elementos. Corrobora com esta proposição Miller
(2009), quando defende que a estabilidade do gênero ocorre consoante o uso recorrente
de elementos retóricos utilizados pelos usuários do gênero em situações análogas, ou
seja, numa situação real de uso de enunciados, o usuário de um gênero não lida com
situações únicas às quais responde, mas com situações semelhantes.
Tanto Bakhtin (2003) quanto Miller (2009) concordam que, embora o gênero
assuma um status de estabilidade, tal estabilidade se torna sempre relativa, pois as
situações mudam e com ela as exigências sociais e o uso que os usuários fazem do
gênero. Marcushi (2003, p. 19) defende que os gêneros “caracterizam-se como eventos
textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a
necessidades e atividades socioculturais (...)”. Entendemos assim que os gêneros
nascem, mudam e deixam de ser utilizados por seus sujeitos comunicativos ante as
situações sociais. Por este motivo não devemos entender os gêneros como objetos
estanques, fixos e imutáveis, mas nos manter atentos para os seus aspectos formais e
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funcionais (aspectos estes que servem como pistas para a compreensão dos gêneros).
Apoiando-nos em Bakhtin (2003, p. 262), que atenta para esse processo dinâmico do
gênero e sua relação sócio-comunicacional para com a esfera:
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque
são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e
porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de
gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo.
Alves Filho (2009) conclui que o gênero carrega consigo duas forças opostas,
inter-relacionadas: uma delas responsável pela regularidade do gênero, a que chama de
força centrípeta; e outra responsável pela dinamicidade do gênero, a que chama de força
centrífuga. Para este teórico, ambas as forças precisam ser vistas a partir do viés
histórico e social de uso do gênero.
PROPÓSITOS COMUNICATIVOS
De acordo com Alves Filho (2011), os propósitos comunicativos correspondem
às finalidades para as quais um gênero é recorrentemente utilizado em situações
também recorrentes. Entretanto, chama atenção o teórico, situações recorrentes não
podem ser entendidas como idênticas, mas análogas. Em outras palavras, os sujeitos
discursivos, ao lidarem com uma exigência comunicacional dentro de uma esfera social
específica, jamais se deparam com uma mesma situação comunicativa, mas semelhante,
pois a recorrência situacional se dá através de tipos, generalizações de eventos sóciocomunicacionais de uso da linguagem. Miller (2009, p. 30) defende: “A recorrência é
inferida pela nossa compreensão de situações como sendo, de alguma forma,
‘compar|veis’, ‘similares’, ou ‘an|logas’ a outras situações (...)”. Miller (2009, p. 31),
ainda no mesmo texto, denomina esse processo de “tipificaç~o” (termo adotado por
outro teórico, Alfred Schutz [1973]): “É através do processo de tipificação que criamos
recorrência, analogias, similaridades. O que recorre não é uma situação material (um
evento real, objetivo, factual), mas nossa interpretação de um tipo.
É a recorrência que garante, de acordo com Alves Filho (2011), respostas
específicas para exigências também específicas da esfera social. No entanto, aponta, um
gênero jamais se atém a apenas um propósito comunicativo, mas a um conjunto de
propósitos da esfera; perspectiva também adotada por Swales (2009, p. 224): “Um
gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros
compartilham um conjunto de propósitos comunicativos”. Alves Filho (2011) pondera a
dinamicidade dos propósitos comunicativos, que podem mudar com o passar do tempo
ou variar entre grupos ou instituições sociais.
Ainda, de acordo com Alves Filho (2011), a dinamicidade dos propósitos
comunicativos garante a possibilidade do surgimento de novos gêneros discursivos, a
retomada de gêneros antigos ou a mudança dos gêneros utilizados. Esta dinamicidade
faz com que um gênero assuma mudanças na sua forma e estilo que, diante de novos
propósitos comunicativos, adapta-se às novas exigências sociais do meio a que atende:
“a mudança dos gêneros n~o se d| apenas sobre a forma, o conteúdo e o estilo, mas pode
decorrer de alterações nos propósitos comunicativos, nas suas funções sociais. E não é
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raro que, havendo mudanças nos propósitos comunicativos, também surjam mudanças
na forma e no estilo dos gêneros” (Alves Filho, 2011, p.35).
O papel social de um gênero encerra-se em seu uso recorrente. Isso ocorre devido
o uso cada vez maior de enunciados que atendem a determinados propósitos
comunicativos de seus usuários. Desse modo, o domínio a que pertencem os propósitos
comunicativos também é social. Todavia, é importante distinguir, como apontam Alves
Filho (2011) e Bhatia (1993), que há ainda no gênero intenções dos usuários desse
gênero que pertencem ao domínio particular do usuário, não devendo ser confundidos
com o propósito comunicativo, por não apresentar, em contraste àquele, recorrência.
Atentemos que, quando a intenção apresenta relativa recorrência, ela passa ao domínio
do propósito comunicativo, isto porque deixa de pertencer ao domínio do indivíduo e
passa a pertencer ao domínio de um grupo discursivo.
Alves Filho (2011, p. 36), ao discorrer acerca das mudanças de propósitos
comunicativos de um gênero, defende que “é no nível individual que as mudanças
surgem”. Isso ocorre quando os usu|rios de um gênero passam a utiliz|-lo para atender
a outros propósitos comunicativos, que não aqueles propósitos já recorrentes do gênero.
Isso acontece quando os sujeitos comunicativos da esfera social se deparam com uma
nova exigência, que não conta com um repertório de gêneros específicos para atendê-la.
Assim, esses sujeitos comunicativos se deparam com a seguinte situação: ou criam novos
gêneros para atender a essa nova exigência ou passam a utilizar um repertório de
gêneros que atendem a outros propósitos, mas que (atente-se) possuem alguma
similaridade com esta. Se estes gêneros forem utilizados também por outros usuários da
esfera comunicativa para atender essa nova exigência, um novo propósito passa a fazer
parte dos mesmos. É desse modo que novos propósitos comunicativos levam a
mudanças na composição e uso do gênero. Há mudança na forma quando, no(s) novo(s)
propósito(s) comunicativo(s), alguns elementos do gênero deixam de ter função.
ANÁLISE DOS DADOS
O levantamento dos propósitos comunicativos do corpus de pesquisa é
segmentado em dois pontos principais: um voltado para os propósitos comunicativos
gerais e o outro para uma especificação dos propósitos comunicativos gerais em relação
ao elemento sob o qual incidiu a ação efetuada pelo propósito. A análise dos 30 ofícios
da SEAD - PI pode ser verificado na tabela abaixo:
Número
do ofício
01
02
03
04
05
06
Propósito
comunicativo
Geral
Solicitar
Encaminhar
Solicitar
Encaminhar
Prestar
esclarecimento
Solicitar
Elemento sob o qual incide a ação do propósito
Pagamento
Funcionário
Serviço
Documentos
Retorno de funcionário (à instituição)
Serviço (desbloqueio de crédito banco)
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07
08
09
13
14
Solicitar
Solicitar
Solicitar
Prestar
esclarecimento
Encaminhar
Prestar
esclarecimento
Solicitar
Encaminhar
15
Solicitar
16
17
18
Solicitar
Encaminhar
Encaminhar
19
Solicitar
10
11
12
21
Prestar
esclarecimento
Solicitar
22
Encaminhar
20
24
Prestar
esclarecimento
Solicitar
25
Solicitar
26
Solicitar
27
Solicitar
28
Solicitar
29
30
Encaminhar
Encaminhar
23
Serviço (liberação de passagem aérea)
Serviço (liberação de passagem aérea)
Serviço (liberação de passagem aérea)
Resultado de processo (administrativo)
Documentos (correspondência de empresa particular)
Cumprimento de Lei
Pagamento (adicional por serviço)
Documentos
Serviço (isenção da previdência social de funcionário
da instituição)
Pagamento (gratificação)
Documentos (ofício da Secretária da Fazenda)
Documentos (memorando)
Serviço (senhas do sistema da folha de pagamento da
SESAPI)
Gastos (gratificação de funcionários da instituição)
Autorização (para funcionários da instituição)
Documentos (lista de servidores que se afastaram da
instituição temporariamente)
Situação de funcionária da instituição (e substituição
desta por outro da mesma empresa)
Serviço (criação de código para cargo)
Autorização (criação de código p/ desconto do
Sindicato)
Autorização (de setor competente para emissão de
ficha financeira)
Autorização (de setor competente para criação de
código para cargo)
Autorização (de setor competente para gerar crédito
especial de pensionista da instituição)
Documentos (cópia protocolada de ofício)
Documentos (minuta de decreto)
Tabela 1
No decorrer da análise, verificamos a seguinte recorrência de propósitos
comunicativos: solicitar, encaminhar, prestar esclarecimento. Uma análise mais atenta
desses propósitos nos levou a uma segunda análise acerca dos propósitos comunicativos
desses ofícios, distribuídos desse modo na tabela abaixo (tabela 2). Verificamos assim
que o propósito comunicativo mais recorrente dos ofícios é solicitar (16), seguido
respectivamente pelos propósitos comunicativos encaminhar (09) e prestar
esclarecimento (05). Dentro desses propósitos comunicativos, a maior recorrência dos
elementos sob o quais incide a ação do propósito comunicativo é: solicitar serviço (08),
encaminhar documento (08); Já o propósito comunicativo prestar esclarecimento não
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apresenta elemento de maior recorrência, pois todos os elementos desse propósito
apareceram somente uma vez na análise do corpus.
Propósito geral
Solicitar
Encaminhar
Prestar
esclarecimento
Elemento sob o qual incide a ação
do propósito
Serviço
Autorização
Pagamento
Documento
Funcionário
Gastos
Processo
Situação de funcionário
Retorno de funcionário
Cumprimento de Lei
Recorrência
08
05
03
08
01
01
01
01
01
01
Tabela 2
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossa análise verificamos que o gênero ofício atende a uma gama de
propósitos que não só estabelecer a comunicação entre instituições públicas.
Compreendemos a importância dos Manuais de Redação como escopo para a orientação
e produção de determinados gêneros de um dado domínio discursivo. No entanto,
chamamos a atenção para o fato de que estes Manuais em algum momento deixam de
abarcar um traço de dinamicidade do gênero. Assim, consideramos prudente a revisão
constante desses Manuais e a orientação para produção voltada para traços
sociorretóricos do gênero e não apenas um rol de regras que devem ser obedecidas
pelos retores para produzir o ofício, como se fosse um produto. Mais que um produto, o
ofício é uma forma de ação social, do qual o usuário utiliza da língua para agir na
sociedade. Um estudo que não atente para esse aspecto do gênero não deve ser levado
em conta, pois, ao invés de incentivar, restringirá o usuário do gênero a agir.
REFERÊNCIAS
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fundamental. São Paulo: Cortez, 2011. (Coleção Trabalhando com... na escola)
_____________. Integridade genérica versus versatilidade no editorial de jornal. V SIGET. Rio
Grande do Sul: ISSN 1808-7655, agosto 2009.
ASKEHAVE, Inger; SWALES, John M. Identificação de gênero e propósito comunicativo:
um problema e uma possível solução. (Tradução: Benedito Gomes Bezerra, Maria
Erotildes Moreira e Silva e Bernaderte Biasi-Rodrigues). In: BEZERRA, Benedito Gomes.
et al (Org.). Gêneros e sequências textuais. Recife: Edupe, 2009. p. 221-247.
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BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. (Tradução:
Paulo Bezerra). 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 263-305 (Coleção biblioteca
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BHATIA, Vijay K. A análise dos gêneros hoje. (Tradução: Benedito Gomes Bezerra). In:
BEZERRA, Benedito Gomes et al (Org.). Gêneros e sequências textuais. Recife: Edupe,
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FIORIN, José Luiz. Os gêneros do discurso. In: Introdução ao pensamento de Bakhtin. São
Paulo: Ática, 2008. p. 60-76.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,
Ângela Paiva. et al (Org.). Gêneros textuais & ensino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
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MILLER, Carolyn R. Gênero como ação social. (Tradução: Judith Hoffnagel). In: DIONISIO,
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agência e tecnologia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. p. 21-44.
SILVEIRA, Maria Inêz Matoso. Análise crítica e sócio-retórica dos elementos enunciativos
do gênero ofício: Gênero Textual da Correspondência Oficial. 4º SIGET – Programação e
resumos – Schedule and abstracts, v. 1, p. 1451-1460, 2007. Disponível em:
<http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/cd/Port/89.pdf>
____________________________. Estudo sócio-retórico do ofício – gênero textual da
correspondência oficial e empresarial. Letras digitais: teses e dissertações originais em
formato digital, 2002. Disponível em: <http://www.pgletras.com.br/letrasdigitais/LDMaria%20Inez%20Matoso%20Silveira-Dout.pdf>
____________________________. O burocratês: Análise à luz de uma gramática retórica. Revista
da Abralin, Paraná, v. 7, n. 1, p. 215-258, 2008. Disponível em:
<http://www.abralin.org/revista/rv7n1/10-Maria-Inez.pdf>
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EDUCAÇÃO BILINGUE / TERMINOLOGIA
GLOSSÁRIO PORTUGUÊS-PARAKANÃ PARA USO NA EDUCAÇÃO BILÍNGÜE E NA
SAÚDE: PRODUÇÃO, UTILIZAÇÃO E POSSIBILIDADES
Claudio Emidio Silva17
Universidade Federal do Pará
Rita de Cássia AlmeidaSilva18
Universidade do Estado do Pará
Ana Zélia Alves19
Programa Parakanã
RESUMO: O presente trabalho trata da experiência de construção de um glossário
Português-Parakanã realizado com os dois grupos Parakanã (ocidental e oriental) da
Terra Indígena Parakanã do Tocantins, nos municípios de Novo Repartimento e
Itupiranga. Os Parakanã Orientais situavam as suas aldeias próximas ao rio Tocantins e
os Parakanã Ocidentais situavam as suas aldeias próximas ao rio Xingu. Após o contato
com a sociedade envolvente os Parakanã Orientais foram transferidos para a aldeia
Paranatinga e parte dos ocidentais foi reunida na aldeia Maroxewara, ambas na atual TI
Parakanã. Outro grupo de ocidentais também foi reunido em uma aldeia na TI
Apyterewa próximo ao rio Xingu. O trabalho foi realizado para auxiliar a comunicação
dos professores e dos agentes de saúde com os indígenas, havendo uma participação
deles na construção do glossário. Também tornou-se material de apoio nos cursos para
dirimir dúvidas dos professores indígenas em formação e alunos Parakanã bem como
estabelece comparações entre as duas variantes da língua Parakanã: oriental e ocidental.
Além do glossário também foram produzidas frases na língua Parakanã para uso na
escola e posto de saúde com suas respectivas traduções em português para que os
professores e técnicos de enfermagem pudessem desenvolver suas atividades da
melhorar forma possível, no que diz respeito a comunicação entre índios e não índios. O
atual glossário encontra-se em 2012 com mais de 2.000 palavras e frases. Optou-se por
grafar as palavras como são atualmente escritas pelos indígenas e não da forma
lingüística, assim o seu sentido de utilidade para os profissionais que trabalham na TI e
que não dominam os códigos lingüísticos foi muito maior, podendo usar e aprender a
língua Parakanã de forma mais dinâmica e útil.
PALAVRAS-CHAVE: Glossário; Educação bilíngüe; Povo Parakanã; Português-Parakanã.
17 Mestre em Ciências Biológicas; Doutorando em Educação ([email protected]).
18 Mestre em Teoria Literária ([email protected]).
19 Professora de História ([email protected]).
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ABSTRACT: This paper deals with the experience of building a glossary PortugueseParakanã performed with two groups Parakanã (western and eastern) Indian Earth
Parakanã of Tocantins, in the cities of Novo Repartimento and Itupiranga. The Eastern
Parakanã their villages were located near the Tocantins River and Western Parakanã
their villages were located near the Xingu River. After contact with the surrounding
society Parakanã East were transferred to the village Paranatinga and western part of
the village was gathered Maroxewara, both in current IE Parakanã. Another group of
Westerners was also meeting in a village in IE Apyterewa near the Xingu River. The
work was carried out to aid communication of teachers and health workers with the
Indians, with their participation in the construction of the glossary. It also became
supporting material in the courses to settle questions of indigenous teachers and
students in training Parakanã well as establishing comparisons between the two
variants of the language Parakanã: eastern and western. Besides the glossary were also
produced in the language Parakanã phrases for use in school and health post with their
translations in Portuguese for teachers and nursing technicians could develop its
activities to improve the way possible, with regard to communication between Indians
and non-Indians. The current glossary is in 2012 with more than a 2.000 words and
phrases. We chose to spell the words as they are currently written by Indians and not
the linguistic form, so their sense of usefulness for professionals who work in IE and
who have not mastered the linguistic codes was much bigger and can use and learn the
language Parakanã more dynamic and useful.
KEYWORDS: Glossary; Bilingual Education; Parakanã People; Portuguese-Parakanã.
1. INTRODUÇÃO
O povo Parakanã do Tocantins vive atualmente na Terra Indígena Parakanã,
sudeste do Pará, municípios de Novo Repartimento e Itupiranga, em uma área de
351.697,41 ha, onde se distribuem em 13 aldeias, formando uma população de 908
indivíduos e 31 de dezembro de 2011 (Programa Parakanã, 2011). Nas aldeias há
escolas onde são trabalhadas a alfabetização na língua materna e as demais disciplinas
em português, como uma segunda língua. Devido aos processos de contato, nem sempre
bem conduzidos, foram agrupados na mesma área Parakanã Ocidental (Maroxewara) e
Parakanã Oriental (Paranatinga). Segundo Fausto (2001) esses dois grandes grupos se
separaram a aproximadamente 100 e 200 anos atrás e estavam distribuídos em
pequenos aldeamentos no interflúvio Tocantins – Xingu, no sentido leste-oeste e entre a
região de Marabá e Tucuruí no sentido norte-sul. Havia guerras entre os dois grupos,
inclusive com rapto de mulheres entre eles, bem como guerreavam também com os
Kayapó e os Asuriní do Tocantins, entre outros grupos. Os Kayapó eram essencialmente
seus grandes inimigos. Os Parakanã se autodenominam awaete20, que significa gente de
verdade, em contraposição a akwawa, que além de designar entidades míticas que
podem lhes fazer algum mal também é o mesmo termo utilizado para designar os seus
inimigos tradicionais, os Kaiapó. Para os não índios o termo designatório é toria, que
significa qualquer pessoa da sociedade envolvente, podendo haver algum complemento:
toriatinga – não índio branco; toriapihona– não índio preto; toriapipi – não índio
20awa: gente; ete: verdadeiro.
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pequeno; toriapokoa – não índio alto; toriakoxoa – não índio mulher; toriakoma’e – não
índio homem. Este último pode vir sem o complemento, apenas toria.
A comunicação do povo Parakanã do Tocantins, atualmente é realizada na língua
materna (awaete xe’enga), sendo o português (toria xe’enga) utilizado como uma
segunda língua. Montserrat (2005; p. 98) mostra a seguinte classificação: tronco Tupi,
família Tupi Guarani, língua Akwáwa e dialeto Parakanã. E, Rodrigues & Cabral (2002; p.
335) estabelecem a seguinte estrutura, após uma excelente revisão: Família TupiGuarani, Ramo IV, numa posição lingüística com os Asuriní do Tocantins e Suruí
(Mujetire).
O processo de escolarização Parakanã passou por muitas fazes tendo linhas de
ensino da Escola rural e da Escola missionária, com poucos resultados satisfatórios. Com
a implantação do Programa Parakanã em 1987, devido às mudanças ocorridas com a
inundação das reservas onde moravam os Parakanã do Tocantins e transferência para a
atual TI Parakanã, este povo pôde se organizar melhor, com atendimentos
especializados nas áreas de saúde, educação, produção e proteção ambiental. A lingüista
Ruth Monserrat começou a organizar os fonemas da língua Parakanã e a montar uma
proposta de educação, que embora não tenha sido dado prosseguimento, contribuiu
para o inicio da organização dos escritos fonéticas do grupo e sua respectiva
organização para uso na escola.
Em dezembro de 1990, o Subprograma de Educação Parakanã iniciou uma nova
fase com a contrataç~o do lingüista ‘Jo~o das Letras’ que deu a continuaç~o dos estudos
lingüísticos iniciados com a Ruth Monserrat, formalizando uma base para uma ação
educacional verdadeiramente Parakanã. Começou-se por uma troca de experiência
lingüística na escola da aldeia Paranatinga, pela qual se pôde avaliar o nível de
informação dos índios, qual a herança das escolas anteriores e qual a perspectiva e
entendimento da comunidade sobre a questão educação. Após os estudos lingüísticos
levantados, em 1991 foi formada uma equipe de educação para atender as escolas recém
implantadas nas duas aldeias existentes: Maroxewara (que significada lugar do veado
branco) e Paranatinga (que significa rio de água branca).
Com o passar do tempo essas duas aldeias foram se dividindo e formando novas
aldeias, ocupando sistematicamente todo o entorno da Terra Indígena Parakanã. A
formação de novas aldeias se deve especialmente devido a diminuição de estoques de
caça, uma vez que os Parakanã são caçadores coletores ou por distensões Políticas, entre
outras necessidades. Assim, no final de 2011 as aldeias constituídas na Terra Indígena
Parakanã ficaram assim distribuídas, no total de treze: Aldeias originadas de
Maroxewara: Inaxyganga, Itapeyga, Parano’a, Paranoita e Paranoema; e aldeias
originadas de Paranatinga: Paranowaona, Itaygo’a, O’ayga, Itaygara, Itaoenawa e
Paranoawe.
Com tantas aldeias e escolas para serem organizadas foi necessários resgatar
todo o conhecimento que já havia sido organizado para formatar um método de
alfabetização na língua materna que desse conta de atender as escolas, ser de fácil uso
para os professores e ainda ter uma uniformidade para quando os alunos mudassem de
aldeia não estranhassem o ensino na escola nova. O quadro a seguir mostra como estão
organizados os fonemas Parakanã. Deu-se preferência em organizar o glossário da forma
que os fonemas são utilizados na escola, pois de outra forma o trabalho seria de pouca
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utilidade para os professores e especialmente para os próprios indígenas que
necessitam consultar o glossário para suas atividades na escola e nos cursos de
formação que acontecem na Terra Indígena.
Guia da pronúncia aproximada da língua Parakanã
Consoantes
Letra /
Fonema
h
m
n
k
p
r
g
t
x
w
kw
’
Pronuncia aproximada
- Como se fosse um sopro saído da garganta. Mais ou
menos como no inglês, home.
- Quando está em início de sílaba pronuncia-se como no
português, meu.
- No final da palavra, pronuncia-se como se estivesse
preparando a boca para dizer um p.
- No início de sílaba, como no português nu.
- No final de palavra, a ponta da língua deve encostar atrás
dos dentes superiores, como se fosse pronunciar um t.
- No meio ou no final da sílaba, nasaliza a vogal anterior.
- Como o c de casa e o qu de quero em português.
- Como no português.
- Sempre é pronunciado como o r de caro, tanto no começo
como no meio da palavra.
- Nunca inicia palavra. Precedida de n e em sílaba final de
palavra, tem o som muito fraco, como song, do inglês.
- No meio da palavra, precedida de n, fica nasalizada.
- Depois da vogal y, é produzida com um pouco de ar
raspando na garganta.
- Antes de a, e, o e y soa como no português.
- Antes de i, soa como se tivesse um som próximo do s ou z
entre o t e o i (tsi).
- Pode ser pronunciado como ch, tch, dj e algo como r com
a ponta da língua puxada um pouco mais pro céu da boca.
Depende do dialeto do falante. Isto acontece em
português, uma letra serve para representar vários sons:
s pode ser casa (z), saco (s); x pode ser táxi (quissi), taxa
(ch), auxiliar (s)
- Pronúncia bastante aproximada do v em português.
- Pronuncia-se como o qu em português, como na palavra
quadro.
Exemplos
aha, hohe
mopa, amana
opam, opotam
nana, ene
oken, axan
enong, xe’enga
ka’a, ipokoa
peyra, pipi
reina, ere, raira
xaong, enong, exang
anga, ingá,
i’yga,
ipyga,
xoxygara
neratyga, ita, tatoa
tepotinema, xaotia
maxa, taxeria
arawawa, wewe
kwanoa,
Itawaekwera
- É um interrompimento, no ossinho da garganta, da
corrente de ar. É chamado de glotal e em línguas
indígenas tem o mesmo valor de uma consoante.
Awaete’a, xa’e
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Vogais
Letra /
Pronuncia aproximada
Fonema
a
- Como no português
- Como e de dedo.
- Como é de pé.
e
- No ditongo, quando é a segunda letra, soa bem fraco
quase como se fosse i. Mas, uma observação deve ser
feita: não é i.
i
- Como em português.
- Pronuncia-se como o o de coco.
o
- Na segunda letra de ditongo, tem o som fechado como u.
Mas não é u.
- O importante é prestar atenção na posição da língua, da
boca e dos lábios. O y representa um som que não existe
na língua portuguesa, por isso é difícil para nós produzilo, da mesma forma como é difícil para os índios produzir
y
o l ou o ce no meio de palavras, por não ter na língua
deles. Para fazê-lo, pronuncie a letra a, segure a boca
nesta posição, a língua também, e faça a pronúncia do i.
Treine algumas vezes, pensando neste som como sendo o
y, aprimorando-o a cada vez que o fizer.
Exemplos
maxa, arara
ene
ere
aexang, eeron
ipira, konomia
katoete, konomia,
xaotia
yga, ygara, xoxygara
Alguns detalhes sobre a língua Parakanã que devem ser considerados: 1) A língua
Parakan~ (ou Awaetexe’enga) n~o é uma língua morta, portanto sujeita a mudanças no
decorrer do tempo e porque não dizer, do espaço; 2) Existem diferenças dialetais
importantes entre os dois grandes grupos de Awaete – Parakanã: ocidentais e orientais;
3) Existem diferenças nas falas da mulher e do homem, na da criança e do adulto e na do
jovem e do velho; 4) Objetos que não são de sua cultura podem ter diferenças nos nomes
entre ocidentais e orientais e até mesmo dentro do mesmo grupo, pois a língua precisa
de um longo tempo para se ajustar e solidificar um termo e/ou palavra;
Agora vamos conhecer os principais pronomes utilizados pelos falantes do
Awaete xe’enga e como fica o verbo quando associado aos diferentes pronomes no
tempo presente:
Pronomes Pessoais
ixe
eu
ene
você
a’e
ele
xane / ore
nós (inclusivo)
ore xowe
nós (exclusivo)
pe’e
vocês
eomia
eles
Pronomes interrogativos
moa pa
onde está
awapa / mopareke
quem?
mopa
a onde? / cadê
ma’epa
o que?
marai pa
qual?
maram pa / ma’ekwirapa como?
Maramnipa
quantos?
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Conjugação do verbo caçar -ata:
1ª pessoa do singular
2ª pessoa do singular
3ª pessoa do singular
1ª pessoa do plural
1ª pessoa do plural
2ª pessoa do plural
3ª pessoa do plural
Eu caço
Você caça
Ele caça
Nós caçamos (inclusivo)
Nós caçamos (exclusivo)
Vocês caçam
Eles caçam
Ixe aata
Ene ere ata
A’e oata
Ore oroata / xane xa’ata
Ore xowe oroata
Pee peata
Eomia oata
2. MATERIAL E MÉTODOS
Como já havia certa organização na forma da escrita Parakanã, mas os awaete
cobravam uma tradução de muitas de suas palavras para o português foi necessário
organizar um glossário dessas palavras para que houvesse fluência de seu uso nas
atividades escolares, tanto para os professores não índios que ministravam aulas, como
para os professores indígenas em formação e os próprios estudantes Awaete.
Assim os professores organizaram com seus alunos primeiramente as palavras
que os Awaete queriam saber o seu significado e depois as palavras que os professores
necessitavam saber para organizar suas aulas tanto na alfabetização como nas demais
atividades de educação e também alguns termos utilizados no atendimento a saúde
Parakanã, pois cada enfermeira nova que chagava as aldeias precisavam de um série de
comandos para poder atender de forma correta as crianças e os velhos que não
entendem muito bem o português. Também se resgatou as palavras colhidas por Ruth
Monserrat e João das Letras. Desta forma foi possível listar 2.000 palavras e termos em
Português e suas respectivas traduções para o Parakanã, nas duas variantes (oriental e
ocidental).
A professora Ana Zélia Alves foi treinada para fazer a gravação e conferência de
cada palavra com os falantes da língua. Para isso utilizou um dicionário escolar que a
ajudava a explicar cada termo que se desejava a tradução. O trabalho foi realizado em
todas as aldeias existentes para poder se ter um espectro o maior possível de falantes, e
claro, representantes das duas variantes. Deve ser ressaltado que devido às diferentes
dialetais entre Parakanã Ocidental e Oriental cada termo em português foi traduzido
pelos falantes dos dois grupos. A figura 1, a seguir mostra alguns momentos da coleta de
dados nas aldeias e nas reuniões das lideranças.
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Figura 1: Coleta de dados nas aldeias e em reuniões com os líderes Parakanã.
A preferência em se organizar o glossário a partir do português foi porque
atualmente a educação é realizada com professores não indígenas que precisam ter um
entendimento da língua Parakanã, para poder trabalhar nas salas de alfabetização,
mesmo quando há a ajuda dos falantes no processo. Mas, só foram escolhidas as palavras
que faziam um sentido muito claro de seu entendimento, após as explicações e sempre
que possível com mais de um falante em cada grupo (Oriental e Ocidental).
A medida que as palavras iam sendo gravadas eram arroladas em uma lista
definitiva fechando letra a letra do alfabeto. Os dados coletados de forma mais
sistematizado foi de 2000 a 2004, mas a coleta continua sendo realizada e atualizada a
lista de palavras, uma vez que os falantes Parakanã vão se apropriando melhor dos
termos em português para traduzir as palavras quando necessário, com mais
propriedade. Após a lista formada esta foi enviada a professora Ana Suelly Arruda
Câmara Cabral para que pudesse corrigir as palavras de forma lingüística para poder
estruturar as bases para um futuro dicionário, propriamente dito.
3.
RESULTADOS
A seguir iremos apresentar um quadro com 5 palavras de cada letra do alfabeto
para se ter uma idéia de como está organizado o Glossário Parakanã.
PORTUGUES
PARAKANÃ
ORIENTAL
Abacaxi
Abaixar
Agarrar
Abóbora
Anzol
Nana
-eroxym
-pyyng
Xoromo’a
Pina
PARAKANÃ
OCIDENTAL
A
Nana/Xoparapara
-eroxym
-pyhyng
Xoromoa
Taona
Bacaba
Bala
Bainha
Pinowa
Oywa (flecha)
Kygeipirera
Pinowa
Oywaina
Orowo’ea
OBSERVAÇÕES
Duas formas nos oci
Iguais
Duas formas
Diferente na terminação
Duas
formas
muito
diferentes
B
Iguais
-ina = pequena
Duas formas
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Boi
Bola
Tapi’iroa
Mamapyra/ywa
Cabeça
Caçar
Cacau
Cacaueiro
Café
-‘a
-ata
Aka’oa
Akao’ywa
Kaxe
Danado
Debulhar
Demarcar
Dente
Dinheiro
Okaoete
-ekyi
-monyxam
Hona
Tamatare
Égua
Embaixo
Embrulhar
Empatar
Enxada
Tapirangakoxoa
Ywype
-won
-xoxawenxowe
Porore
Face
Fantasma
Farelo
Fezes
Fino
Hekwara
Akwawa
Heakytom
Tepotya
Iwaipipi
Gafanhoto
Galho
Galinha
Galinheiro
Garoto (a)
Tokorapina
Hakoa
Wyrangawa
Wyragawaaranga
Konomia
Hemorragia
Herança
Hérnia
História
Hora
Wygo
Werikapota
Karowara
Morongetaemyna
Kwarayga/Ara
Idoso
Igarape
Imbaúba
Importante
Imaginar
Moroiroete
Paranopipia
Amaywa
Ypykopy
Oxeapyka
Jabota
Jabuti
Jacaré
Xaotiakoxoa
Xaotia
Xakare
Tapiroa
Ywa
C
-‘a/-akynga
-ata
Akaoangawa
Akao’ywa
Kape
D
Noporotingoihi
-ekyi
-amaka
Honia
Tamatare
E
Tapirangakoxoa
Iwyre
-’owon
-xoxawe
Xygakape/Marapaxa/Porore
F
Heikwera
Akwawa
Iakyta’a
Tepoty
Iporoipipi
G
Tokorapina
Ywakoa/Hakoa
Wyrapaxe
Wyrapaxeawyra
Konomia
H
Wygo
Werikapota/Hakykweripe
Karowara
Morongeta
Ara
I
Moroiroete
Paranoapipia
Awaywa
Katoete
Oxeapyka/Okakwaranta
J
Xaotiakoxoa
Xaotia
Xakare
Prolongamento da silaba ori.
Duas formas nos ori
Duas formas nos oci
Iguais
angawa = falso
Iguais
Diferenças nas terminações
Diferentes
Iguais
Diferentes
Diferentes
Iguais
Koxoa = fêmea
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Mais diferenças nos oci
Diferentes
Iguais
Diferentes
Diferenças nas terminações
Pipi = pequeno
Iguais
Duas formas nos oci.
Diferentes
Diferentes
Konomitoa = Coletivo
Iguais
Duas formas oci
Iguais
Diferentes (-emyna=velho)
Duas forma ori
Iguais
Pequena diferença
Diferentes
Diferentes
Duas formas oci
Iguais
Iguais
Iguais
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Jambo
Junto
Iapironwa’e
Oxopoywyry
Lagarta
Lama
Lâmpada
Levantar
Língua
Ygangoa
Ygo’oa
Kanina
-po’om
Iapekoa
Macaco-guariba
Macaxeira
Mãe
Magro
Mamão
Akykya
Manytawa
Y’yga
Ikawera
Mamao
Nascente
Negro
Nojento
Nublado
Nuvem
Oxam
Ipiona
Oxewaro
Homygo
Ywanga
Olho
Onça
Onde (está)
Ontem
Outro
He’a
Xawaraete
Mopa
Karowamo
Amote
Pato
Peixe
Porco-espinho
Pulga
Pus
Wyrapopewa
Ipira
Ixarokynga
Tonga
Ipewa
Quase
Quati
Quem
Quebrar
Queijo
Xeipaweteiweree
Kwatia
Awapa
Open
Tapiroakamia
Rã
Rachar
Rádio
Raiva
Raiz
Akawaxa
-maxaran
Toriakanga
Ipiray
Ha’apa
Saber
Saco
Saia
Akwawete
Korawa
Tyrowa
Iapytonwa’e
Oxoporemo
L
Yganga
Tixona
Kanina
-po’om
Ikoa
M
Akykya
Manyangatoa
Y’yga
Ikawepam
Mamao
N
Oxeom
Ipiona
Oxewaro
Homyn
Tatatingangawa
O
He’a
Xawaraete
Mopa
Karowawe
Amote
P
Wyrapypewa
Ipira
Hatiatiwa’e
Tonga
Ipewa
Q
Opamwerehe
Kwatia
Awapa
Open
Tapiroakamya
R
Myxa
-xygapota
Toriakinga
Ipirahy
Ha’apa
S
Okwaham
Tyropirera
Tyrokoa
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Diferentes
Iuais
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Iguais
Iguais
Pequena diferença
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Diferentes
Iguais
Diferentes
Diferentes
Diferentes
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Sapo
Seio
Kararakatanga
Ikoma
Kororoa
Ikoma
Diferentes
Iguais
T
Taboca
Tacho
Tamanduá
Tapa
Telefone
Takwara
Xa’e
Tamanowa
-nopo
Omongetatawa
Urtiga
Urubu
Urubu-pequeno
Urucum-bravo
Útero
Anamiaona
Orowoa
Orowo’ia
Rokoaporanywa
Hapiaoma
Veadovermelho
Veado-fuboca
Vento
Vespa
Vai buscar pra
mim.
Mixarete
Patania
Wytoa
Kawa
Ahapota
xeope
Takwara
Xa’e
Tamanowa
-nopo
Iapyharewara/Toriakyngaga
wa
U
Pynoa
Orowoa
Orowoyra
Rokoaporanywa
Hapiaoma
V
Mixarete
Maroxe
Wytoa
Kawa
herota Eroeha amo xeope
Iguais
Panela de barro (iguais)
Iguais
Iguais
Diferentes
Diferentes
Iguais
Pequena diferença
Iguais
Iguais
Iguais
Diferentes
Iguais
Iguais
Diferentes
X
Xampu
Xícara
Xixi
Xipaya
Xucro
Xaokawa
Kaxewawa
-koron
Awaete
Oporongetaote
Zangado
Zelar
Zero
Zoada
Zurro
Ipiraygete
-xemoryryima’ere
Oaerowang
Ixapepoa
Oxa’a
Tyxowa’e
Torixa’e
-koron
Awaete
Oporongetaere
Z
Ipiraygete
-xemoryryi
Oaerowang
Ixapepoa
Oxa’a
Diferentes
Diferentes
Iguais
Iguais (outro índio)
Pequena diferença
Diferentes
Pequena diferença
Iguais
Iguais
Iguais
Foram escolhidos aqui alguns exemplos das principais classes de palavras:
Verbos - Os verbos estão indicados com um traço (-) na frente da palavra. Esse traço
representa o complemento do verbo, pois em Parakanã a pessoa vem junto no verbo.
Por exemplo, abaixar se escreve -eroxym, porque em um modo prático, em uma frase
deve se dizer quem está abaixando. No verbo caçar (-ata) ficaria assim: eu caço (ixe
aata) e ele caça (a’e oata); Substantivos - os nomes das coisas são geralmente escritos
de forma completa como abacaxi (nana) e babaçu (inata). Mas pode em alguns casos
aparecer com a indicação para algum prefixo como na palavra galho que pode ser -akoa
porque o galho é parte de algo (da árvore), então deve ter algum complemento. Assim
como olho - hea (-ea), que pertence a alguém (ou é meu ou é dele); Preposição - Normal
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como em depois (amoteramo); Advérbio - embaixo (Ywyrype/Iwyre); Adjetivo normal como em fino (Iwaipipi/Iporoipipi);
Outro dado importante são as diferenças mostradas entre os dois grupos:
Parakanã Oriental e Parakanã Ocidental. Essas podem ser: 1) Um grupo pode conhecer a
palavra do outro grupo, mas chama o objeto de outra forma totalmente diferente, como
no caso do Abacaxi: PKN ORI chama de nana e PKN OCI conhece a designação nana, mas
prefere chamar de xoparapara; 2) Objetos novos, que conheceram após o contato,
podem receber nomes completamente diferentes (anzol = taona e pina) ou com apenas
uma pequena modificação em algum som na palavra (boi = tapi’iroa e tapiroa) ou ainda
com uma grande modificação, mas ainda com parte da palavra semelhante (galinha =
wyrangawa e wyrapaxe); 3) Pode acontecer de aparecer uma pequena diferença muito
comum nas palavras com: a. Som y e som h (-pyyng e -pyhyng); b. Som ‘ (xoromo’a e
xoromoa); c. Duplicaç~o do som (i’i); 4) Palavras existentes na língua Parakan~ sem
tradução para o português. É uma língua em movimento, falada, viva. Nem tudo pode
ainda ser traduzido e sempre haverá palavras que não precisarão ser traduzidas, pois
diz respeito apenas a sua cultura: a. Peyra: espécie de bolsa que os Awaete fazem de cipó
ou palha para carregar caça ou utensílios; b. Pariria: planta de folha larga e alongada
medicinal que serve para dor de cabeça e febre.
Com a organização das palavras ficou muito mais fácil construir o Método de
Alfabetização na Língua Parakanã, que a partir de palavras chaves concretas leva a
criança a aprender a escrita de sua língua de forma rápida, gradual e completa. Também
ajudou nos diálogos nos Postos de Saúde para atendimento de saúda aos Awaete de cada
aldeia.
4. DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Os Parakanã do Tocantins (TI Parakanã) guardam algumas diferenças dialetais
entre os dois grupos existentes, além de terem diferenças mais marcantes entre os
Asuriní do Tocantins e Suruí, do grupo lingüístico ao qual pertencem. Entretanto, a
comunicação se faz muito bem entre as três etnias. Os Parakanã já casaram tanto com
mulheres Asuriní do Tocantins como com mulheres Suruí e nas aldeias essas mulheres
se comunicavam muito bem no seu círculo familiar. Entre os Parakanã, as diferenças
também são marcadas na pintura corporal, na confecção do artesanato e nas danças.
Mas esses elementos são mais difíceis de serem observados. É na fala que percebemos a
entonação, a altura da voz, a velocidade com que as palavras são faladas.
Essa experiência com o glossário Parakanã foi muito importante do ponto de
vista da participação dos falantes. Em todas as aldeias as pessoas ficavam tentando
entender os termos, perguntavam para os mais velhos e repetiam as gravações quando
essas não ficavam adequadas o quanto fosse necessário. Nas escolas sempre ficam a
disposição dos alunos dicionários português-português que são bastante utilizados e
solicitados. Muitos alunos possuem o seu próprio dicionário. O glossário tem ajudado,
especialmente os mais jovens a entender termos que eles têm dúvidas ou não estão
acostumados a utilizar. Acreditamos que um dicionário Parakanã-Português será o
nosso próximo passo, com o desenvolvimento de uma metodologia em que os próprios
falantes do Parakanã possam construí-lo.
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Como já existe atualmente o dicionário feito com os Parakanã do Xingu
(Apyterewa) construído por Silva (2003), será bem mais fácil realizar essa construção
para os Parakanã Oriental oriundos da aldeia Paranatinga, bem como ampliar a
compreensão dos termos utilizados nas duas línguas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FAUSTO, C. 2001. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2005. Línguas indígenas no Brasil contemporâneo.
Em: CHAUI, Marilena de Souza & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.). Índios no
Brasil. 4ª ed. São Paulo: Global; Brasília: MEC. 93-104.
PROGRAMA PARAKANÃ. 2011. Relatório de Atividades. (relatório não publicado).
Tucuruí–PA. 281 p.
RODRIGUES, AryonDall’Igna, CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara, 2002. Revendo a
classificação interna da família Tupí-Guarani. Em: CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara,
RODRIGUES, AryonDall’Igna (Orgs.). Línguas Indígenas Brasileiras: Fonologia,
Grámatica e História. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre
Línguas Indígenas da ANPOLL; Tomo I, Editora Universitária/UFPA, Belém. 327-337.
SILVA, Gino Ferreira da. 2003. Construindo um dicionário Parakanã-Português.
Dissertação de Mestrado. UFPA – Letras (Lingüística e Teoria Literária). 148 p.
Agradecimentos
Agradecemos especialmente a todos os Awaete que de forma direta ou indireta ajudaram
na construção deste trabalho, especialmente: Os Orientais Amynyxoa Parakanã; Apoena
Parakanã; Axoa Parakanã Awaewoa Parakanã; Kwatinema Parakanã; Wawa Parakanã;
Wyraporona Parakanã; e os Ocidentais Awaxetywy’yma Parakanã; Ina Parakanã; Kytyga
Parakanã; Moroyroa Parakanã; Nananawa Parakanã; Rirore Parakanã; Takotywera
Parakanã; Tarana Parakanã; Tyge Parakanã; Xeteria Parakanã.
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ESTUDOS LITERÁRIOS
O CANGAÇO NOS ROMANCES FOGO MORTO E OS DESVALIDOS: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA
Antonio Alan Dantas de Meneses
Universidade Federal do Pará
RESUMO: O presente estudo visa estabelecer uma análise comparativa entre dois
romances da literatura brasileira do século XX, no que tange à abordagem realizada
pelas obras do fenômeno histórico-social do cangaço. As obras escolhidas, Fogo Morto,
de José Lins do Rego, e Os Desvalidos, de Francisco Dantas, representam dois momentos
distintos da produção ficcional nordestina. A primeira está inserida na corrente ficcional
das décadas de 30 e 40. Décimo romance do escritor paraibano, Fogo Morto representa o
cangaço na perspectiva do personagem José Amaro, seleiro que se transforma em
ajudante do cangaceiro Antônio Silvino. A segunda obra, publicada em 1993, representa
uma retomada da ficção regionalista. O romance focaliza o cangaço sob o ponto de vista
de Coriolano, personagem que, ao contrário de José Amaro, demonstra ódio implacável
pelo cangaço, no romance representado por Lampião. A análise comparativa das obras
foi precedida pelo estudo das raízes históricas do cangaço, bem como a caracterização
do cangaceiro como ser carregado de dubiedade no imaginário popular nordestino. Com
efeito, o cangaceiro ora é representado como herói, ora é encarado como bandido pelo
sertanejo, sendo que essa visão contraditória é transportada para a ficção, aparecendo
nos dois romances que são analisados neste trabalho. A abordagem histórica do cangaço
é realizada a partir de estudos de autores como Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977)
e Luiz Bernardo Pericás (2010). Também foi imprescindível um breve estudo de Câmara
Cascudo (2005), que auxilia a compreender a figura do cangaceiro enquanto herói
popular regional. Finalmente, como suporte para o estudo comparativo entre Fogo
Morto e Os Desvalidos foram utilizados trabalhos de autores como José Paulo Paes
(1995) e Luiz Gonzaga Marchezan (2003), que fornecem elementos importantes para o
estabelecimento de relações entre obras de cunho regionalista, produzidas por
escritores nordestinos.
PALAVRAS-CHAVE: Fogo Morto, Os Desvalidos, Cangaço.
ABSTRACT: This study aims to establish a comparative analysis between novels of the
twentieth century Brazilian literature, regarding the approach taken by the works of
social and historical phenomenon of the cangaço. The works Fogo Morto of José Lins do
Rego and the Os Desvalidos of Francisco Dantas represent two different moments of
northeast fictional production. The first work is inserted into the fiction of the '30s and
'40s. The Fogo Morto consists in the tenth novel of the writer represented by character
Jose Amaro, saddler that turns into helper outlaw Antonio Silvino. The second works
published in 1993 represents regional fiction. The novel is based in the point of view of
character Coriolano that unlike Jose Amaro he demonstrates hatred by cangaço
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represented by Lampião. The comparative analysis of the work was preceded by a
historical study of the cangaço, as well as, the ambiguous characterization of the
“cangaçeiro” presents in the northeast popular imagination. Indeed, the cangaçeiro is
represented as hero and sometimes seen as outlaw. The contradictory point of view
appears in the two novels analyzed in this work. The historical approach of the cangaço
is made from studies of authors such as Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977) and Luis
Bernardo Pericás (2010). It was also essential a brief survey of Camara Cascudo (2005)
which helps to understand the cangaçeiro as a regional folk hero. Finally, for the
comparative study between of Fogo Morto and Os Desvalidos were used works of
authors such as José Paulo Paes (1995) and Luiz Gonzaga Marchezan (2003), which
supply important elements to relation between works of nature regionalist produced by
writers from the Northeast.
KEYWORDS: Fogo Morto. Os Desvalidos. Cangaço.
INTRODUÇÃO
O Nordeste brasileiro alcançou um lugar de destaque na literatura nacional nas
décadas de 30 e 40 com o que se convencionou chamar romance regionalista. Essa
tendência literária, centrada na preocupação com questões sociais e na abordagem de
temas característicos da região, como a seca, o cangaço e os movimentos messiânicos,
marcou a produção de escritores dos mais variados rincões do Nordeste. Na Bahia, por
exemplo, encontramos Jorge Amado e suas obras sobre o Ciclo do Cacau; na Paraíba
tem-se José Lins do Rego e seus romances do engenho; o Ceará é representado, dentre
outros, por Rachel de Queiroz, que inicia sua carreira literária com o romance O Quinze,
obra contundente sobre a seca.
O que havia em comum entre todos esses escritores, afora o fato de pertencerem a
uma mesma região geográfica, histórica e socialmente construída, era sua obra, que
buscava retratar a região, seus problemas e suas crises. Havia, contudo, outro objetivo
na abordagem das questões regionais: a valorização do Nordeste, que outrora ocupara
uma posição de destaque na economia brasileira no período colonial, mas que
enfrentava um forte declínio a partir do século XIX.
A valorização da região teve como um de suas expressões a abordagem de temas
relacionados ao Nordeste, seu povo e suas tradições. Entre os assuntos que inspiraram
os escritores regionais estava o cangaço, fenômeno histórico-social peculiar da região
que conhece seu apogeu no início do século XX. José Lins do Rego, por exemplo, cita o
cangaço já em seu romance inicial, Menino de Engenho, na qual aparece a menção ao
temido cangaceiro Antônio Silvino, por meio das impressões deixadas pelo bandido no
protagonista. “Alta noite foi-se com o seu bando. Para mim tinha perdido um bocado do
prestígio. Eu o fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar
em mim a figura de herói” (REGO, 1995, p. 63).
Em Fogo Morto, obra publicada em 1943 e considerada por muitos críticos a
obra-prima do escritor paraibano, o cangaço surge por meio do personagem Zé Amaro,
mestre seleiro frustrado que se ressente de sua sorte e admira fervorosamente Antônio
Silvino. Para o personagem, o cangaceiro representa a promessa de justiça para os
pobres sertanejos, calejados das humilhações e desmandos dos poderosos coronéis. “O
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mestre estremeceu com a palavra do homem. O nome de Antônio Silvino exercia sobre
ele um poder mágico. Era o seu vingador, a sua força indomável, acima de todos, fazendo
medo aos grandes” (REGO, 2008, p. 114).
O cangaço, que foi extinto em 1940 com a morte de Cristiano Gomes Cleto, o
temido Corisco, não foi abordado somente na prosa regionalista dos anos 30 e 40.
Produções recentes, em verso ou prosa, embora distantes temporalmente do período de
ocorrência do fenômeno, continuam a utilizar o cangaço como tema. A literatura de
cordel, importante expressão cultural da região, volta-se comumente para relatos sobre
as aventuras e desventuras dos principais cangaceiros. Entretanto, no campo do
romance, objeto de interesse deste trabalho, o tema ainda encontra escritores que o
cultivem, a exemplo do romancista sergipano Francisco J. C. Dantas, autor da obra Os
Desvalidos.
Publicado em 1993, o romance apresenta como protagonista o seleiro remendão
Coriolano, um homem marcado por insucessos em sua vida, colecionando fracassos em
suas investidas pelos negócios e que nutre ódio mortal por Lampião, principal
responsável, segundo ele, pela vida miserável que o seleiro leva. Para Coriolano, o
cangaceiro representa, juntamente com as tropas volantes que perseguem Lampião, o
terror da populaç~o sertaneja. “O bando de Lampi~o e a volante do governo agora deram
pra esta zona do Aribé. Enquanto se perseguem e se chacinam em porfiadas e sangrentas
brigas, vão também esfolando a região, a saque, morte e desonra, metendo o pau na
pobreza desvalida.” (DANTAS, 1996, p. 125)
Embora as obras abordem personagens históricos distintos e que, ao que se sabe,
nunca tiveram contato algum entre si, é possível estabelecer paralelos entre os
romances. Como fica demonstrado ao longo do trabalho, o romance mais recente retoma
de forma dialógica a obra mais antiga, havendo, portanto, pontos de ligação entre Fogo
Morto e Os Desvalidos. Em virtude dos objetivos da análise comparativa que se pretende
fazer, limitar-mos-emos aos aspectos concernentes à abordagem do cangaço nos dois
romances, ou seja, a visão que se constrói sobre o cangaceiro nas narrativas. Não são
analisados aspectos como a decadência do Nordeste, tema também comum entre as duas
obras, mas que foge do escopo deste trabalho.
A partir da análise entre as obras procura-se demonstrar a importância do
cangaço para a produção cultural regional, notadamente para a literatura, além de
mostrar a validade da intertextualidade na construção literária. Finalmente, por meio da
análise da figura do cangaceiro, este trabalho pretende demonstrar a contradição da
figura deste bandido social, segundo terminologia utilizada por Eric Hosbsbawm. Ora
herói, ora bandido, o cangaceiro aparece nos romances como um ser dotado de uma
complexidade que destoa da visão estereotipada e simplista comumente forjada sobre
este que foi um dos tipos característicos do Nordeste brasileiro.
A ABORDAGEM DO CANGAÇO NO ROMANCE FOGO MORTO
Considerada a obra-prima do paraibano José Lins do Rego, Fogo Morto é o décimo
romance do escritor, constituindo, segundo José Aderaldo Castelo, “verdadeiramente um
trabalho de síntese do que o romancista em grande parte já havia feito nos romances
anteriores” (Apud MOISÉS, 1996, p. 198). A obra est| formalmente dividida em três
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partes: a primeira concentra-se no personagem José Amaro; a segunda focaliza o
engenho Santa Fé, desde os tempos prósperos do Capitão Tomás Cabral de Melo até o
declínio da propriedade nas mãos do Coronel Lula de Holanda; a terceira concentra-se
no capitão Vitorino Carneiro da Cunha, promovendo o fecho do romance.
O cangaço aparece no romance como um tema paralelo a outro, também
característico da região: a decadência. Esta marca a obra, expressando-se inclusive no
título do romance, referência direta aos engenhos falidos da Zona da Mata nordestina, de
que o Santa Fé constitui exemplo. A abordagem do cangaço ocorre na obra, sobretudo,
por meio da figura de mestre José Amaro. Este é um seleiro que vive nas terras do
engenho Santa Fé, ganhando a vida com pequenos serviços que faz em selas e arreios de
viajantes que passam na estrada de terra que conduz à vila de Pilar.
Profundamente inconformado com seu destino, incomoda o seleiro o fato de viver
nas terras de um homem sem força para o comando do engenho, como Lula de Holanda.
Também o constrange a decadência de seu ofício de seleiro, cada vez mais obsoleto
diante da produç~o industrial de selas e arreios. “Estou perdendo o gosto pelo ofício. J|
se foi o tempo em que dava gosto trabalhar numa sela. Hoje estão comprando tudo feito.
E que porcarias se vendem por aí! Não é para me gabar. Não troco uma peça minha por
muita preciosidade que vejo” (REGO, 2008, p. 50).
Como se não bastasse a frustração que alimenta em relação a seu ofício, mestre Zé
Amaro leva uma vida familiar bastante infeliz. Sua esposa lhe tem medo, a filha, já
mulher feita e em idade de casar, não encontra um homem que a tome por esposa,
vagando pela casa até enlouquecer. Desta forma, o seleiro vive um duplo drama: um
ofício que não lhe assegura uma sobrevivência digna, um futuro certo, além de uma
família que não compensa seus desgostos, antes aumenta ainda mais sua infelicidade.
Apesar de sua pobreza, Zé Amaro é um homem que possui seus brios, que não se
curva perante os ricos da terra. Não leva desaforo para casa e admira aquele que é
valente e que, como ele, se faz respeitar. Não baixa a cabeça, por exemplo, para o
poderoso coronel José Paulino, dono do próspero engenho Santa Rosa e homem mais
rico da regi~o. “- Vai trabalhar para o velho José Paulino? É bom homem, mas eu lhe
digo: estas mãos que o senhor vê nunca cortaram sola para ele. Tem a sua riqueza, e
fique com ela. N~o sou criado de ninguém. Gritou comigo, n~o vai.” (Idem, p. 49). Decorre
de seu gênio também a admiração por pessoas como o aguardenteiro Alípio, seu amigo,
um sujeito que, ainda muito jovem, envolveu-se em crime de morte para defender a
honra de seu pai.
Bicho homem, este Alípio. Avalie que quase menino se espalhou
na feira do Ingá que foi aquela desgraça. Gosto de homem assim.
Ele fora com o pai vender milho verde na vila e o cabo do
destacamento achou de desfazer do velho. Foi aquela desgraça.
Alípio fez na faca, espalhou a feira. O cabo ficou para um canto de
bofe de fora, e um soldado que se meteu a besta não ficou para
contar a história (Idem, p. 55).
Desse comportamento de valorização da coragem e de aversão aos poderosos da
terra, decorre a admiração de mestre Zé Amaro por uma figura temida na região: o
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cangaceiro Antônio Silvino, personagem ficcional que representa o personagem
histórico do maior cangaceiro do Nordeste até a chegada de Lampião. Para o seleiro,
Antônio Silvino incorpora os ideais de coragem e valentia, admirados pelo sertanejo,
como assevera C}mara Cascudo, ao afirmar que “o sertanejo n~o admira o criminoso,
mas o homem valente” (CASCUDO, 2009, p. 166).
Em relação ao papel da coragem e valentia nas relações sociais no Nordeste, é
interessante observar a relevância da honra nas relações sociais. Esta era vista como
algo que deveria ser prezado e defendido, se preciso fosse com a morte. Vale ressaltar
que muitos homens ingressaram no cangaço devido a questões ligadas à honra, pessoal
ou da família. Antônio Silvino e Lampião, por exemplo, segundo alguns historiadores,
tornaram-se cangaceiros para vingar o assassinato de seus respectivos pais. Essa ideia
da vingança também está presente nas trovas populares que cantam as aventuras dos
cangaceiros, como nesta citada abaixo, recolhida por Câmara Cascudo (2005, p. 168),
que conta o assassinato do pai de Antônio Silvino.
Eu tinha quatorze anos,
Quando mataram meu pai.
Eu mandei dizer ao cabra:
Se apronte que você vai...
Se esconda até no inferno
De lá mesmo você sai...
Em Fogo Morto, o cangaceiro é visto pelo seleiro José Amaro como alguém que
pode frear os abusos cometidos pelos coronéis, que oprimiam e dominavam a massa
sertaneja, recorrendo muitas vezes à violência para obter seus intentos. O cangaceiro
representa, como afirma Hobsbawm, “um agente de justiça, um restaurador da
moralidade” (2010, p. 71). Também n~o resta ao seleiro nutrir esperanças nas
autoridades, pois, segundo Zé Amaro, o aparato público, que deveria garantir a justiça
aos menos afortunados, estava corrompido, dominado pela influência dos grandes
chefes políticos e coronéis da regi~o. “Este Ambrósio é um banana. Queria ser delegado
nesta terra, um dia só. Mostrava como se metia gente na cadeia. Senhor de engenho, na
minha m~o, n~o falava de cima para baixo” (REGO, 2008, p. 57).
Embora a admiração pela figura de Antônio Silvino não seja partilhada apenas
pelo mestre Zé Amaro no romance, provém deste as maiores demonstrações do poder
que o chefe cangaceiro desempenhava no sertanejo. O seleiro alegrava-se por poder
servir a alguém tão poderoso e temido na Várzea, um homem temido até mesmo por
José Paulino, o rico proprietário do engenho Santa Rosa.
O homem se foi, e na casa do mestre José Amaro ficou o terror na
sua mulher, e uma sinistra alegria no coração do seleiro. Ele
matava galinha e dava ao capitão Antônio Silvino que mandava em
toda a cambada de senhores de engenho. (...) O velho José Paulino
dera um banquete ao capitão Antônio Silvino. Disseram até que a
filha do grande servira a mesa, como se fosse ama dos
cangaceiros. (Ibidem, pp.131-2)
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A visão do cangaceiro enquanto um herói, um protetor dos pobres e
marginalizados, não obstante a profunda admiração de mestre Zé Amaro e de
personagens como o cego Torquato e Alípio, não subsiste, porém, no romance. Em um
episódio do romance, que trata da invasão do engenho Santa Fé pelo bando de Antônio
Silvino, a face de bandido do cangaceiro acaba por se sobressair sobre a de herói. O
assalto ao engenho, com a motivação de busca de um suposto ouro que o coronel Lula de
Holanda mantinha guardado em casa, demonstra o lado violento e em nada nobre do
cangaceiro, que agride o senhor de engenho, quebra móveis na casa grande e o ameaça.
A atitude de Antônio Silvino é recriminada no romance por Vitorino Carneiro da Cunha,
que chega a tempo de presenciar a aç~o do bando. “Capit~o Antônio Silvino, o senhor
sempre foi da estima do povo. Mas deste jeito se desgraça. Atacar um engenho como este
do coronel Lula, é mesmo que dar surra em cego” (Idem, p. 364).
Neste mesmo episódio, outro fato vem contribuir para afastar qualquer suposto
heroísmo por parte do cangaceiro. Ciente do que estava acontecendo no engenho
vizinho, José Paulino chega ao Santa Fé. Ao deparar-se com a destruição provocada pelos
cangaceiros na casa grande, oferece dinheiro ao capitão Antônio Silvino, que aceita a
proposta do fazendeiro. Fica evidente o caráter espúrio do comportamento do
cangaceiro, que aceita o suborno do rico, demonstrando assim sua submissão à classe
dos coronéis, justamente os que mais oprimiam e exploravam o sertanejo.
Outro ponto que demonstra a despreocupação do personagem representativo do
cangaceiro com os sertanejos fica evidente com a prisão de José Amaro e do cego
Torquato, que são levados à cadeia pelas tropas do Tenente Maurício sob a acusação de
colaboração com Antônio Silvino. Apesar de arriscarem suas vidas para auxiliar o
cangaceiro, os dois são esquecidos pelo bandido e somente reconquistam a liberdade
pela intervenção do coronel José Paulino, ironicamente o mais poderoso e influente
proprietário de terras da região.
Segundo Luiz Bernardo Pericás, o cangaceiro não pode ser visto como um herói,
um justiceiro social. para ele, o que os cangaceiros defendiam, na verdade, eram seus
próprios interesses, buscando alianças com coronéis e até personalidades políticas para
alcançar seus objetivos. “O que se pode afirmar é que os cangaceiros não lutavam,
deliberadamente, para a manutenção ou para a mudança de nenhuma ordem política.
Eles lutavam, isso sim, para defender seus próprios interesses” (PERICÁS, 2010, p. 187,
grifos do autor). Essa opinião é partilhada ainda por estudiosos que, antes de Pericás,
também se debruçaram sobre a análise do cangaço, como Maria Isaura Pereira de
Queiroz. “Lampi~o lutou para si mesmo e em defesa do seu grupo, a fim de sobreviverem
e serem poderosos” (QUEIROZ, 1986, p. 14).
Como pode ser depreendido pela leitura do romance, o cangaceiro é figura
contraditória, oscilando entre herói e bandido, dotado de uma dupla caracterização. Fica
acentuada, contudo, a última face do cangaceiro, ou seja, a de alguém que se preocupava
somente com seus interesses. O suposto caráter heroico do cangaceiro nada mais era
que uma estratégia usada pelos bandos para conquistar a população sertaneja,
conseguindo assim o seu apoio, elemento importante para a sobrevivência do cangaço
por tantos anos. A admiração que mestre José Amaro concede a Antônio Silvino no
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romance avulta mais como uma atitude ingênua do que uma reação do sertanejo à
exploração e opressão impostas pelos coronéis.
Finalmente cumpre destacar que a atitude do seleiro de aliar-se ao cangaceiro,
submetendo-se às suas ordens, traduz-se também como submissão. Mudou o patrão,
mas não a relação de subordinação, ou seja, as relações sociais não se modificam
consideravelmente. O desfecho do romance, com a morte de José Amaro, abandonado
pela mulher e filha e sem o socorro do cangaceiro, revela a impotência do seleiro frente a
uma ordem de coisas que ultrapassa o seu domínio. Expulso da casa em que vive desde
que seu pai era vivo, angustiado com sua profissão decadente e abandonado por sua
esposa, o seleiro decide pelo suicídio, que representa para o personagem uma fuga das
humilhações que sofreu e constatação de sua impotência perante os problemas que o
afligem.
O CANGAÇO EM OS DESVALIDOS
Segundo romance do escritor sergipano Francisco J. C. Dantas, Os Desvalidos tem
como protagonista o seleiro Coriolano, um homem frustrado e inconformado com sua
sorte, que alimenta um profundo ódio pelo cangaceiro Lampião. A ação da narrativa
transcorre no final da década de 1930, momento este que coincide com o massacre do
bando de Lampião, ocorrido em Angicos, Sergipe, em 1938.
Coriolano é um seleiro que, antes de aprender a trabalhar com o couro, chegou a
ter uma curta prosperidade com a botica herdada do tio. Depois Fabricou por um tempo
bombons de mel de abelha, com os quais auferiu algum ganho. Tentou ganhar a vida com
uma pequena estalagem, em sociedade com o tio Filipe e o amigo Zerramo. Acabou,
entretanto, frustrado nas três tentativas, recorrendo ao trabalho com selas, ofício
aprendido precariamente com as lições de mestre Isaías, para garantir minimamente
seu sustento. Torna-se um homem amargurado, ressentido de sua pobreza e da
indiferença dos outros perante sua miséria.
O estafeta descia com o molhinho de cartas bem modesto, e diante
dele sentado ali na calçada, preferiu sacudir a cobrança do
imposto pelo buraco da janela do lado de onde vinha, do que
caminhar mais três passadas e entregá-la na mão do pobre
tamanqueiro. Tudo isso, minha gente, só por ter baixado de
posição. (DANTAS, 1996, p. 24)
Os Desvalidos é, portanto, o romance do malogro de Coriolano. Cumpre destacar
que o fracasso do protagonista com a botica e com a fabricação dos bombons de mel de
abelha decorreu de sua própria imperícia para os negócios. No primeiro caso, preso a
uma promessa feita ao tio, de quem herdara a fabriqueta de remédios, de recusar vender
qualquer produto industrializado, Coriolano assiste à decadência de sua botica, sufocada
pelos medicamentos de marca. No segundo, em nome da qualidade de seus bombons de
mel de abelha, recusa-se a misturar em seus produtos melaço de cana, o que baratearia a
mercadoria. Sucumbe com a concorrência das rapaduras de Robertão, maiores e mais
acessíveis.
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Reside no último malogro de Coriolano, contudo, seu ódio pelo temido cangaceiro
Lampião, fato que o narrador guarda para o final do romance. Os homens de Lampião
invadem a estalagem de Coriolano e seus amigos, humilhando Filipe, tio do protagonista.
Inconformado com a situação, Zerramo, amigo dileto de Coriolano, confronta Lampião,
mas é morto covardemente por um dos cangaceiros do bando. Este fato altera
completamente o destino de Coriolano, que a partir desse momento passa a fugir de
Lampião, em um sentimento de medo e ódio.
Deste Lampião, que um dia me levou pra um buraco, todo o bem
que botam é poetagem! É léria de imaginamento! Na verdade é um
malvadão do satanás. Raspa osso de canela a ponta de punhal. Se
me pegar de novo, vou ser fritado e cozido. (...) Depois que a
volante do governo lhe matou o irmão Livino, no ano de vinte e
cinco, diz que o peste cego se azedou e nunca mais teve pena de
nenhum vivente (DANTAS, 1996, pp. 175-6).
Embora o romance apresente Coriolano como protagonista, o narrador concede
importante papel a Lampi~o. O cangaceiro recebe, inclusive, “voz” para contar capítulos
de sua história, como suas desconfianças dos coronéis, os amores e cuidados por
Santinha, sua esposa, além de sua versão para fatos históricos como a malograda
tentativa de invasão da cidade de Mossoró, ocorrida em 1927.
Desta investida gorada pelo calor de bom sentimento, o povo
conta o que quer, cada um fazendo por mais me esculhambar. Até
no papel se bota vadiagem e se estampa potoca! Está aí como me
cobram vingança! Decerto que saiu desfeitado, levando os
embornais de couro, que queria estufados, completamente
encolhidos e vazios. Mas dizer que correu da macacada com medo
do enfrentamento, é puro comento acovardado de quem não lhe
pode abater os lanços da coragem (DANTAS, 1996, p. 180)
Entre os desabafos promovidos pelo personagem ficcional representativo do
cangaceiro, merece destaque o da morte de seus irmãos no cangaço. Em um tom
saudosista, Lampião relembra os a trajetória infeliz de seus três irmãos que decidiram
acompanhá-lo no cangaço.
Coitado de mano Antônio, perseguido e enganado em seu
dinheiro... e dos outros irmãos que também já se foram sem um só
aceno de partida, sem um só gemido atravessado, brigando na
mais limpa lealdade! Ah... Livino! Nome de arcanjo, morto atirado
que me encheu as mãos de sangue e a vida de mais desgosto no
ano de vinte e cinco! E Ezequiel, meu Deus, que homem
desassombrado! Estraçalhado a bala de fuzil no meio da seca de
trinta e dois (Idem, p. 152)
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Percebe-se pelo trecho citado, uma face humana do cangaceiro, o que destoa da
visão heroica construída sobre Lampião. Este aparece como alguém que teme pela vida
da esposa, pela qual se redobra em cuidados e zelo. O narrador obtém esse efeito com a
utilização do monólogo interior, também comum com Coriolano. Por meio desse recurso
formal, o cangaceiro expressa sua visão particular do mundo, o que permite perscrutarlhe os desígnios mais profundos de sua alma, emergindo daí uma figura mais humana e
menos lendária.
Por situar-se temporalmente no momento que coincide com o massacre do bando
de Lampi~o, o romance capta as diferentes impressões que o desaparecimento do “Rei
do cangaço” provocou entre os sertanejos. Assim, ao lado de manifestações de alívio por
parte de Coriolano, convivem desabafos de cunho pessimista pela morte de Lampião:
“Agora tudo muda para pior! N~o h| mais quem puna pelo pobre” (Idem, p. 14). Percebese que os sentimentos sobre o cangaceiro variavam bastante, o que comprova o caráter
contraditório da figura de Lampião.
Por outro lado, vale ressaltar que o próprio Lampião, da mesma forma que seus
antecessores no cangaço, buscava construir uma visão positiva de si mesmo, com o
intuito de angariar respeito e admiração entre os sertanejos. Distribuir dinheiro aos
pobres, lavar a honra de famílias, entre outras atitudes, eram uma forma de o cangaceiro
demonstrar preocupação com a população sertaneja, embora na maior parte dos casos
isso não ocorresse de forma desinteressada.
Cangaceiro também é gente, também tem coração. E muita vez até
se esparrama em certas bondades. Diz o povo que Jesuíno
Brilhante socorria a pobreza com uma canada de moedas. E
Antônio Silvino, que já chegou depois de o mundo piorar muito,
cansou de dar dote a moça desencabeçada. (...) E se diz que
Lampião mesmo só bole com quem tem posses; só gosta de
dinheiro avultado. (Idem, p. 175)
Finalmente, pode-se destacar que o romance promove uma humanização da
figura do cangaceiro. Este é visto não como herói ou bandido, mas como um homem
dotado de uma complexidade de caráter que permitia inclusive a expressão de suas
fraquezas e de seus insucessos, algo que se tornaria improvável em uma abordagem que
valorizasse a figura lendária construída sobre Lampião. Virgulino Ferreira da Silva
aparece como um homem que optou por uma vida de crimes e que por isso pagou um
alto preço. Como o título do romance aponta, todos são desvalidos, seja Coriolano, com
seus fracassos e seu medo, ou Lampião, com sua vida errante e as constantes perdas.
Cada um com seu destino, mas ambos desvalidos, como também o são tio Filipe,
Zerramo, Maria Melona, personagens do romance.
FOGO MORTO E OS DESVALIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA
José Paulo Paes e Luiz Gonzaga Marchezan, em ensaios elaborados à época de
publicaç~o d’Os Desvalidos, já haviam apontado relações entre este romance e Fogo
Morto, obra produzida meio século antes. Para Paes, o diálogo que Francisco J. C Dantas
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estabelece com o romance de José Lins do Rego principia já no primeiro romance do
escritor sergipano, Coivara da Memória, de 1991. Para o poeta e ensaísta, não obstante
as diferenças de estilo entre os dois escritores, o ponto de contato entre suas obras
reside no fato de concederem importância à memória popular.
O regionalismo do sergipano Francisco Dantas, em Coivara da
memória e em Os desvalidos, trabalha certos registros de estilo
bastante diferentes dos modos de expressão que pontuaram os
romances do engenho e do cangaço de José Lins do Rego, embora
ambos sejam escavadores da memória popular e da sua condição
de oralidade. (BOSI, 2002, p. 258)
Marchezan baseia sua análise dos romances na ideia de que a obra mais recente
parodia a mais antiga. Para o pesquisador, Francisco J.C. Dantas constrói um romance
que ironiza esteticamente a obra parodiada, apontando diversos traços em comum nos
dois romances, a começar pela caracterização dos personagens feita pelo romancista
sergipano.
Dantas, no bojo da sua paródia, por meio de seus desvalidos
Coriolano, Felipe e Lampião, ironicamente, contrasta, de forma
singular, as experiências vividas pelas personagens de José Lins –
Amaro, Vitorino e Antonio Silvino -, circunscritas aos universos
dos engenhos de Zé Paulino e Lula de Holanda, com as vividas
pelas suas personagens, em ambientes diversos, que as obrigam a
construir concepções mais dinâmicas do mundo (MARCHEZAN,
2003, p. 73)
O fato é que o próprio Francisco J.C. Dantas admite a influência recebida de
outros autores e obras em entrevista concedida ao jornal O Galo, ao afirmar que “a
grande literatura é sempre reescrever e revisar” (Apud MARCHEZAN, 2003, p. 68). No
romance, pode-se notar essa influência não somente em aspectos formais, como aqueles
apontados por Marchezan, como também em relação à exploração de determinadas
temáticas presentes em Fogo Morto, como a decadência e o cangaço.
Em Fogo Morto, a abordagem do cangaço concentra-se na figura de Antônio
Silvino, cangaceiro que precedeu a Lampião, sendo conhecido pela alcunha de
“Governador do Sert~o”. No romance, a figura do cangaceiro aparece de forma tímida,
neutralizada pela do poderoso coronel José Paulino, como já demonstrado no primeiro
capítulo. Fica patente, portanto, que o cangaceiro comporta-se como um homem que
cuida apenas de seus interesses, não demonstrando qualquer preocupação social com o
sertanejo. Também é acentuado no romance um caráter negativo do personagem,
reforçado pelas atitudes do cangaceiro nos episódios da invasão da vila do Pilar e do
engenho Santa Fé, do coronel Lula de Holanda. Antônio Silvino avulta como um títere
dos coronéis, subordinado aos próprios interesses e ao dinheiro dos grandes
proprietários.
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N’Os Desvalidos a caracterização recebida por Lampião ameniza os aspectos
negativos do bandido, à medida que permite que este exponha sua visão de mundo e
suas angústias e reconheça o embuste que sofreu por servir aos coronéis e até mesmo
admitir crimes que cometeu. “Traiç~o é bicha de olho grande! O primeiro coronel que
me fez perder a crença nessa raça refalsada que se esconde atrás do dinheiro foi a
serpente choca do Jo~o Nogueira.” (DANTAS, 1996, p. 151). O car|ter confessional do
discurso de Lampião alivia o caráter criminoso, acentuando a humanidade do
cangaceiro.
Para Marchezan, o cangaceiro de Francisco J. C Dantas é uma figura “mais
completa, humana” (2003, p. 76) que a de Antônio Silvino. Por meio dos monólogos
interiores, recurso comumente utilizado na narrativa do escritor sergipano, o leitor
penetra no âmago do sofrimento de Lampião, que surge como um homem comum,
sujeito aos mesmos medos e angústias do sertanejo.
Justamente por confrontar seus personagens com os do romance evocado,
Francisco J. C. Dantas tem a oportunidade de concebê-los de uma forma mais completa
que José Lins do Rego. Percebe-se que Coriolano e Lampião possuem uma complexidade
maior que Zé Amaro e Antônio Silvino, seus correspondentes em Fogo Morto, fato este
decorrente, sobretudo, da análise psicológica realizada pelo narrador. Assim,
construindo sua narrativa a partir do diálogo com o romance consagrado, Francisco J.C.
Dantas não somente demonstra a importância de José Lins do Rego para a ficção
regional, como também atualiza o romance, reafirmando a influência e vitalidade da
prosa regionalista.
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Global, 2005.
DANTAS, Francisco J. C. Os Desvalidos. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
HOBSBAWM, Eric. Bandidos. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
MARCHEZAN, Luiz Gonzaga. Os feitos dos desacreditados em Fogo Morto e Os
desvalidos. In __ e TELAROLLI, Sylvia (orgs). Faces do narrador. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2003.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
PAES, José Paulo. Transleituras. São Paulo: Editora Ática, 1995.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São
Paulo: Boitempo, 2010.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. 2ª ed. São Paulo: Global
Editora, 1986.
REGO, José Lins do. Fogo Morto. 67ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
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____ Menino de engenho. 62ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
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ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS
A MULTIMÍDIA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DO ITALIANO. PRO, CONTRA... E
ERROS PARA EVITAR21
T. Marin
Edizioni Edilingua
RESUMO: o presente artigo trata do uso da multimídia no ensino de italiano como língua
estrangeira. No entanto, mesmo se tratando de assunto específico – o ensino do italiano as considerações do autor podem ser refletidas para o ensino de línguas em geral, tanto
maternas quanto estrangeiras. O trabalho trata das vantagens e das vantagens do uso
das diversas mídias no ensino, a importância da interface, do feedback, a multimídia e os
aspectos neurológicos e por fim o papel do professor neste processo de aquisição de
uma nova língua.
Palavras-chave: multimídia; ensino-aprendizagem de línguas; italiano como língua
estrangeira
INTRODUÇÃO22
A didática das línguas é como sabemos uma disciplina um tanto quanto instável,
em contínuo movimento. Novas teorias, provenientes de várias disciplinas humanísticas
encontram, antes e depois, aplicação no nosso campo contribuindo constantemente com
a renovação da didática das línguas. As contribuições dessas teorias estão presentes com
a utilização de vários subsídios didáticos no ensino de línguas estrangeiras. Assim, se
poderia sustentar que entre os dois fatores – teórico e prático – existe uma
reciprocidade: não é fácil dizer que a difusão ou a facilidade de uso de certo subsídio
levou à difusão de certa aproximação didática ou foram determinadas teorias que
facilitaram a introdução de certas tecnologias no ensino de idiomas.
Em base, quando se afirma que as tecnologias para o ensino de idiomas, entre
estes o CD-ROM e Internet, são concisos com uma difusão dos contatos humanísticoafetivos e que este “encontro” foi e continua a ser ideal. Obviamente, as tecnologias de
aplicação lingüística. Não são os únicos fatores do ensino de línguas, mas o advento
destas não poderia se verificar em um período melhor.
Todavia, também se vem reconhecendo por muitos que as tecnologias do ensino
de línguas podem contribuir de maneira significativa a sua renovação e ao seu
21Texto
original: T. MARIN. I multimedia nell’apprendimento/ insegnamento dell’italiano.Pro, contro ... ed
errori da evitare. In: Rivista Ilsa/ italiano per stranieri - Rivista quadrimestrale perl’insegnamento
dell’italianocome lingua straniera/seconda, Roma-Atenas: Edilingua, n.1, p. 10-17, nov. 2005. Traduzido
por Marcos dos Reis Batista.
22 Este artigo foi produzido no âmbito do ensino do italiano como língua estrangeira. Entretanto, o
consideramos bastante interessante, principalmente para aqueles que estão começando sua carreira no
ensino de português brasileiro como língua estrangeira / língua segunda, que o traduzimos para
publicação em português do Brasil.
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enriquecimento, não se pode considerar obsoleta; nem podem, ao menos, no presente,
substituir a eficácia dos suportes didáticos. Podem completar e facilitar o nosso
trabalho, deixar a lição mais dinâmica e interessante. Estas tecnologias, apesar de
existirem por vários anos com diversos produtos e aplicações, não podem ser
consideradas maduras e com as mesmas possibilidades não são desfrutadas em
plenitude. O propósito do presente artigo é colocar em evidência os prós e os contras do
software didático multimídia.
AS VANTAGENS DO SOFTWARE DIDÁTICO MULTIMÍDIA
Em relação aos outros suportes didáticos, o computador apresenta vantagens de
tipo “técnico”: pode conter o equivalente a milhares de p|ginas escritas, muitas horas de
gravação, vídeo, imagens, etc., mas as vantagens mais importantes de tipo metodológico
e cognitivo são:
1. É extremamente flexível e adaptável às necessidades, aos interesses e aos
ritmos pessoais de cada usuário. É o único suporte didático que apresenta um alto grau
de interatividade (que varia segundo cada produto) que permite ao aluno de controlar e
guiar a sua aprendizagem: escolher os conteúdos e a ordem cujo percurso pretende fazêlo, o número de vezes que deseja repetir, o ponto cujo deseja abandonar ou recomeçar,
os pontos cujo acredita que devam exercitar-se mais, as palavras para procurar no
dicionário integrado.
2. Esta liberdade e autonomia do discente contribuem no seu crescimento
cognitivo, ao desenvolvimento de seu senso crítico. O estudante se sente uma pessoa
responsável, capaz de avaliar e escolher o seu percurso e o seu ritmo. Isto é, a sua volta é
benéfico a nível afetivo: o estudante é motivado quando sabe que é ele mesmo que tem o
controle e vice-versa, é diferente o que acontece comumente em sala de aula e, isto evita
a desmotivação que muito freqüentemente são criadas quando se sente constrangido a
fazer uma atividade, um dever;
3. A integração de linguagem e códigos diversos cria as condições para uma
melhor aprendizagem em quanto, como sabemos, lembramos 10% daquilo que vemos,
20% daquilo que escutamos, e 50% daquilo que vemos e escutamos. A interatividade
depois do moderno software didático acrescenta a eficiência do nosso cérebro, enquanto
recordamos 80% daquilo que fazemos;
4. O aluno se sente ativo porque faz, explora, descobre (e como sabemos o prazer
da descoberta constitui uma das melhores fontes de motivação) e também, se grande
parte de suas ações e descobertas foram previstas pelo software, o aluno percebe sua
exploração como uma verdadeira pesquisa, um caminho cada vez diferente e diferente
dos outros. Os tempos e os modos da exploraç~o s~o os seus: assim, aprende “fazendo’ e
é convidado de modo mais intenso (Pichiassi, 1999)”;
5. A “comunicaç~o” com a m|quina n~o é do tipo “certo/ errado”, mas se
aproxima (sempre mais) à interação com um tutor humano: existe um feedback
contínuo, sugestões e ajuda quando necessário, portanto, uma avaliação de tipo
construtivo, autoformativa e não só somativa. Esta relação torna-se ainda mais eficaz do
ponto de vista da aprendizagem quando o computador não se limita a fornecer a
resposta justa, mas premia o estudante com oportunas mensagens de gratificação, que
rendem a prática mais prazerosa e motivante. Este contínuo feedback diferencia o
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computador do laboratório lingüístico clássico, onde o rumo corre independentemente
para a correção ou menos para a resposta obtida (baixo grau de interatividade);
6. Este feedback é impessoal: o estudante não tem mais medo de errar, de ficar
sem graça diante do computador, de pedir um esclarecimento ou uma repetição, de
provar de novo, de dar uma resposta segundo os próprios ritmos sem que a máquina se
irrite ou perca a paciência, isto aumenta o seu senso de segurança, de confiança e de
autonomia, faz baixar os filtros afetivos e potencia a aquisição (Krashen, 1983);
7. O software didático, se bem programado, não é só o tutor que sabe tudo, mas
torna-se um verdadeiro guia, um contínuo estimulo, fornecendo não só a resposta certa,
mas mostra parte desta. Encoraja assim o aluno a ir mais adiante, a procurar respostas, a
superar a si mesmo, a desenvolver estratégias de aprendizagem e não a limitar-se de
aceitar seu fracasso;
8. O computador pode desenvolver as tarefas mais chatas e cansativas, como o
controle e a correção de testes e as atividades repetitivas, deixando ao professor
trabalhos mais criativos e comunicativos; entretanto, o aluno pode exercitar-se e
apreender também na ausência do professor;
Por fim, o software didático em CD-ROM apresenta uma série de vantagens em
relação à Internet:
a. Dá ao usuário a possibilidade de escolher livremente entre vários percursos
sem o risco, muito intenso na rede, da queda desta e da confusão por vias de
sobrevivência de materiais disponíveis;
b. Os conteúdos de um CD-ROM são muitos mais seguros daqueles apresentados
na rede pelo qual observa-se um material seguro, a unidade didática e, freqüentemente,
a moralidade;
c. Na Internet, os tempos de espera são imprevisíveis e comumente de uma
velocidade não aceitável muitas vezes se comparado a de um CD-ROM; entretanto,
incerta é a disponibilidade de certas páginas da WEB.
O DIFÍCIL CAMINHO DO SOFTWARE DIDÁTICO
Apesar das inevitáveis vantagens do computador, a sua difusão e recepção não
foram, e continuam não sendo, análogo às suas impressionantes possibilidades.
Entretanto, entre os docentes, e não somente entre os menos jovens, se nota certa
dificuldade. Uma primeira razão desta dificuldade nasce pelo medo que estes meios
colocam em discussão em relação ao papel do livro (Maravigliano 1994). O livro, de fato,
não é mais visto somente como instrumento didático, ao contrário, como o computador
ou o videocassete, mas é um modelo de cultura geral, que está presente no
conhecimento pedagógico para não ser mais pensado como medium.
Esta dificuldade nas análises das novas tecnologias de ensino é motivada talvez
por outro medo: o medo dos professores de perderem parte de seu papel de detentores
de conhecimento e de saberes e, assim, dos seus prestígios. Mas também da
incapacidade ou da falta de vontade de adaptar-se à realidade que muda, do desejo de
ficar ancorados às velhas certezas; motivo cujo existem muitos professores que ainda
hoje usam métodos ou materiais superadíssimos do ponto de vista metodológico, só
porque não julgam necessários manter-se informados sobre as novidades teóricas e
editoriais.
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Uma outra razão de resistência é talvez causada pela rapidez cujas novas
tecnologias se evoluem e se desenvolvem. Não apenas se aprende a usar novos meios ou
um novo software, este se torna obsoleto ou os mínimos requisitos de hardware
superam as características técnicas dos computadores de uma escola ou de um simples
usuário.
Mas talvez os “tecnocéticos” n~o em todas as considerações, entre eles existem
também alguns que acreditaram nas tecnologias desde o início. Porém, em muitos casos
o entusiasmo inicial pela novidade de um meio como o computador, exaltado pelos seus
efeitos milagrosos no estudo das línguas, se observou com a complexidade de seu uso e,
sobretudo, com a dificuldade de utilizá-lo para as suas específicas potencialidades,
melhor para fazer o quanto se pode continuar a fazer com a didática tradicional. Em
outros termos, o computador criou falsas esperanças: freqüentemente o recurso às
novas tecnologias foi ditado por fatores de curiosidade, de novidades ou da falsa
esperança que a adoção da tecnologia poderia resolver os problemas de uma didática
que não conseguia satisfazer as novas exigências.
Quando apareceu o livro impresso, com a sua linearidade e seqüencialidade,
representou um novo modo de organização do pensamento, valorizando a lógica linear,
a clareza, que são características à base da ciência moderna. Poderia dizer que o advento
e a grande difusão da internet, do software multimídia e da estrutura do hipertexto e da
hipermídia, especificamente nestes, representaram uma revolução análoga.
LIMITES E DESVANTAGENS
Vimos às potencialidades do software multimídia, mas também o ceticismo e a
freqüente desilusão, sobretudo nos tempos iniciais, mas somente, na era da multimídia.
Como acontece freqüentemente por uma série de motivos, entre os quais: o que poderia
ser e o que realmente é, existe uma consideravelmente distância. E sabe-se que quanto
maior são as expectativas que um software ou um livro didático criam, maior será esta
desilusão.
Isto vale, infelizmente, para muitos produtos multimidiáticos ainda em circulação
que do ponto de vista didático e educativo não correspondem à inovação e à eficácia que
o meio permite alcançar. Existem programas que revelam uma cultura ainda ligada à
tecnologia do livro e que pela modalidade de emprego podem ser definidas como
simples “volta p|ginas” eletrônicas. O motivo é que faz pouco tempo que, em medida
muito reduzida ainda hoje, acreditava-se que um expert na área de informática fosse
capaz sozinho de criar um software didático, sem a ajuda ou a supervisão de um expert
em didática de ensino lingüístico ou simplesmente de um professor. Acreditava-se, por
isso, que bastava apresentar os mesmos conteúdos em um meio novo para aprender
uma língua; por isso, na realidade, se desfrutavam as capacidades técnicas do CD-ROM,
mas não nas suas potencialidades a nível cognitivo. Hoje a mentalidade melhorou
bastante e desde já cada software didático de qualidade é fruto de uma colaboração
entre três pessoas, provenientes de diversos campos.
Apesar disso, se tende ainda avaliar as possibilidades didáticas das tecnologias de
ensino modernas, mantendo estas capazes de ensinar uma língua, sem a necessidade de
um currículo que as prenda ou as organize em devidos usos, sem a integração com
outros materiais e, até mesmo, sem a presença de um monitor. Necessitaria, ao
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contrário, considerar a multimídia como alguns dos ótimos subsídios didáticos, como o
livro, que para ser desfrutado ao máximo devem encontrar suas posições e integrar-se
com outros fatores: currículo, professor, classe, tempo, objetivos. E assim como o livro
não é por si só perfeito e suficiente, também um programa de multimídia seja adaptado
não adotado, no sentido que necessita de algum usuário mesmo ou professor,
avaliadores de conteúdos e dos percursos mais válidos e descartar aqueles menos
interessantes; tendo atenção, porém, atenção a não dar limites à autonomia do
estudante.
Independentemente desta avaliação, que necessita comumente evitar e apesar
disso, se entende a importância do trabalho em equipe para preparar produtos válidos,
como vimos na introdução, a multimídia apresenta algumas vantagens ou, se queremos,
alguns limites:
1. É muito difícil e dispendioso em termos de tempo poder integrar o software
didático com o manual impresso, em quanto comumente, os pressupostos
metodológicos não coincidem: selecionar materiais coerentes entre os empenhos destes
e a capacidade por parte do professor;
2. Predispor laboratórios multimídias é custoso e se as universidades dispõem de
fundos para realizar os ambientes adaptados, não acredito que isto seja sempre válido
para as pequenas escolas de língua ou as escolas estatais;
3. O problema do custo torna-se mais intenso se se considera que o hardware
torna-se obsoleto rapidamente e existe a necessidade de novos investimentos: telas
planas no lugar das tradicionais (a favor de uma melhor ergonomia), processadores
mais velozes para os novos programas que têm requisitos mínimos e etc.
4. Um computador é decisivamente mais complicado do que o velho livro
impresso que abrimos e fechamos: problemas técnicos podem surgir a qualquer
momento, até na instalação e, mesmo freqüentemente existe a necessidade de um
técnico para resolvê-los; a facilidade cujo estes problemas podem corromper cada
programação e criar ao professor maior insegurança e dificuldade no uso dos
computadores; por este motivo estudantes e professores devem proceder
discretamente, segundo cada produto, em nível de conhecimento técnico;
5. Estudantes e professores devem adaptar-se aos novos papéis deles, pelos quais
estão freqüentemente ainda não-preparados;
6. Freqüentemente muitos programas dão algumas respostas erradas como
certas, só porque um acento ou uma letra não está exato; ainda mais difícil é a situação
no caso do reconhecimento vocal, tecnologia ainda não amadurecida: em nível
psicológico isto resulta frustrante e desmotivamente para o estudante, depois se sente
que o programa não reconhece o seu empenho e joga a resposta inteira para uma parte
mínima de um todo correto;
7. Uma excessiva oferta de percursos alternativos, uma abundância de conteúdos
pode gerar desorientação e sobrecarga cognitiva, sobretudo no caso do estudante menos
autônomo;
8. Em muitos casos é difícil, se não impossível para o professor, avaliar as
prestações dos estudantes: se e quanto tempo trabalharam, a produção que obtiveram
etc.;
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9. A considerável maioria dos software didáticos foram desenhados para a autoaprendizagem ou, no melhor dos casos, para o trabalho individual integrado ao
currículo, algo que é comumente em contraste com a natureza da língua que se baseia na
comunicação entre três pessoas; além disso, o trabalho individual favorece o isolamento
e torna-se obstáculo ao desenvolvimento de algumas competências na classe e na
sociedade;
10. O trabalho individual no computador cria problemas logísticos: a classe deve
interromper a aula e se transferir para o laboratório de multimídia para continuar a
prática; de fato, não se trata mais de aula, mais de um aprofundamento individual e
simplesmente livre;
11. Por fim, não é o instrumento em si que cria as novas potencialidades
didáticas, quanto melhor os conteúdos e as formas de ensino e de aprendizagem que se
realizam através destes novos instrumentos.
MULTIMÍDIA E ASPECTOS NEUROLÍNGÜÍSTICOS
Os estudos recentes da Neurolingüística ao ensino de Línguas Estrangeiras
sublinharam a importância das tecnologias de ensino de LE modernas para o
desenvolvimento da autonomia do discente e da sua capacidade de aprendizagem. De
fato, segundo o modelo neurolingüístico de Marcel Danesi (1988), a língua ativa ambos
hemisférios do nosso cérebro, os quais operam com as modalidades diversas,
modalidade verbal e não-verbal. No conceito precedente da bimodalidade se associa
aquela da direcionalidade, segundo o qual as informações chegam ao cérebro passando
pelo hemisfério direito depois ao esquerdo.
Esta teoria, desde já amplamente aceita, implica uma série de astúcias e de
escolhas metodológicas, entre as quais, por exemplo, as estratégias de tipo indutivo: no
caso de novos input lingüísticos necessita proceder para as funções contextualizantes
cujo vêm geralmente as idéias (hemisfério direito) às seqüências e organizativas numa
fase secundária e formativa (hemisfério esquerdo) – Danesi, 1988.
Entretanto, interessante é a teoria da programaç~o neurolingüística (O’ Connor,
Seymour 1990): cada pessoa, e desde então, cada discente, elabora e imagina as
informações de modo diverso; existe quem tem uma forte predominância da modalidade
direita e, portanto, provavelmente encontrará algumas dificuldades se inserido em um
contexto didático tradicional e vice-versa. A didática tradicional não permite entender e
resolver os problemas enquanto o professor não pode, por falta de tempo, adaptar sua
aula às particularidades cognitivas e aos estilos de aprendizagem de cada estudante: tem
aluno que é preso pelo lado visual, outro auditivo, outro sinestésico. O computador
multimídia, com o software adaptado, pode ser muito mais flexível comprometendo
outros sentidos: isto implica com um compromisso mais complexo do discente, do ponto
de vista afetivo, mais ativo e eficaz.
Interessante é, enfim, de modo cujo hipertexto e o hipermídia, estruturas centrais
da multimídia, influenciam no conhecimento, aspecto que constitui um dos temas de
pesquisa abertas e mais importantes neste campo. Que é seguro e que uma tecnologia
que consente a um discente a possibilidade de construir um percurso próprio de estudo
e de descoberta, o que fica curioso através do recurso da mídia e códigos diversos, influi
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de modo determinante nos seus conhecimentos, estrutura do seu pensamento em forma
e com modalidades diferentes em relação à seqüência do livro.
A IMPORTÂNCIA DA INTERFACE
Com o termo interface entendemos a “linguagem”, a soma dos comandos e de
todos os elementos que permitem ao usuário de comunicar com o computador. Depois
que a “troca” usu|rio-software, isto é, todos os input que o homem envia e recebe da
máquina, passa pela interface, é fundamental que esta seja bem projetada pelos motivos
que são explicados a seguir.
Características principais de uma boa interface gráfica são a coerência e a
estabilidade: um comando, um elemento visual se deve repetir tendo possivelmente a
mesma função. Isto é, permite ao usuário de reconhecer e aprender facilmente a
“linguagem gr|fica” do programa. Sobretudo, é fundamental que o software n~o
apresente dificuldades acrescidas, ligadas ao emprego dos instrumentos informáticos
que são obstáculos ou dificultam a aprendizagem lingüística. Por isso o software deve
ter uma interface simples e intuitível, estável, familiar e previsível que não constrinja a
uma fase mais ou menos longa de training para aprender a “usar o programa”. O
programa ideal é aquele que não solicita uma aprendizagem (zero learning time).
Isto vale em geral para a interação homem-computador, porém, é mais válido no
caso do software didático, cujo é fundamental que o estudante consiga se concentrar nos
conteúdos e nos processos cognitivos para ativar e não só no instrumento e eventuais
dificuldades na comunicação com este. Em outros termos, se a tecnologia utilizada
resulta um tanto complexa para se tornar conhecida.
Demais energia por parte do usuário, o problema cognitivo para ser resolvido
passa por um segundo plano reduzindo as atenções do estudante e, a causa da
conseqüente ânsia, a capacidade de aquisição dos conteúdos.
Em outros, uma boa interface gráfica deve ser também prazerosa para ver, visto
que o usuário passa muito do seu tempo a olhar um esquema. Esteticamente significa
freqüentemente cativante, mas também simples: colorido demais e um excessivo uso de
animações e de sons desorientam o estudante e podem criar dispersão. Em outros
termos, necessita manter um equilíbrio entre satisfação e utilização.
A IMPORTÂNCIA DO FEEDBACK
Com o termo feedback entendemos aqui não a reação do software didático às
reações do usuário (ícones de animação, tempos de espera e etc.), mas as mensagens do
programa relativas às performance do estudante. Como já foi ilustrado em precedência,
o feedback do programa é muito importante por uma série de motivos e deve ser bem
projetado e variado para ajudar, guiar e motivar o estudante quando deste tem
necessidades.
Cada vez que pede ao programa a correção de um exercício, o estudante deveria
receber breves mensagens de feedback, consistentes possivelmente, em uma
combinação de textos escritos, imagens e sons que deveriam ter o propósito de gratificálos e ao mesmo tempo encorajá-los exercendo motivações complementares. É
importante que estas mensagens sejam claras e compreensíveis. Com a finalidade de dar
ao estudante a sensação que entre ele e o programa existe uma verdadeira comunicação,
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as mensagens deveriam ser também variadas: poderiam parecer banais ou ridículas e,
por isto não satisfatório, um programa cujo feedback assume a forma de uma expressão
estereotipa de elogio chato repetitivo para cada resposta correta. O propósito desta
variedade é de fazer com que o aluno sinta que o programa “est| do seu lado”; Um colega
de estudo, um tutor que o recompensa quando faz bem, que sabe também motivá-lo; em
caso contrário, que o convida a refletir sobre o seu percurso e a auto avaliar-se com o
propósito de melhorar. Um feedback que penaliza o erro tolerando em diversos graus,
que reconhece e premia o esforço, não só o resultado. Por isto, uma interação mais
variada, natural e “humana”.
O PAPEL DO PROFESSOR
Independentemente do tempo complexo para as aulas que se escolhe para
dedicar ao software didático, decidir sobre a sua integração no currículo implica
algumas mudanças no papel do professor e do aluno, ambos de qualquer modo em fase
de mudança graças à proposta humanistica-afetiva.
Entretanto, o professor não é mais infalível, detentor do saber, o único modelo de
língua e cultura, como era considerado na época dos métodos estruturalistas. É um
tutor, um consultor que guia o aluno, este último cada vez no centro das aulas,
consciente e responsável pelo próprio percurso.
Mas, se as tecnologias para o ensino de línguas modernas não pretendem que o
professor seja um expert da informática, requerem em compensação maior competência
didática. Não é só a capacidade de avaliar e selecionar os materiais adaptados, mas
também os de coordenar todos os componentes, de integrar os novos meios no
currículo, planificando e protegendo estes do uso em troca com os outros subsídios.
Além disso, o professor deve deixar o aluno mais ativo e responsável, formá-lo, se
poderia dizer, às necessidades autônomas para desfrutar em plenitude dos novos meios,
agirem para manter alta a motivação, fornecer apoio psicológico também durante a
prática individual, a qual pode criar isolamento.
Por outro lado, a mesma escolha dos materiais multimídia mais adaptados a um
específico tipo de estudante requer do professor algumas competências e outras de
natureza pedagógica e lingüística, necessárias para avaliar materiais impressos. Pedemse competência, também se mínimas relativas à informática (de qualquer modo, úteis
para oferecer suporte técnico cada vez que o aluno tenha alguma necessidade) e os
diversos códigos cujo software didático se vale. Em outros termos, não é suficiente
decidir simplesmente se o conteúdo lingüístico é adequado ao nível declarado, se as
atividades estão coerentes com as habilidades desenvolvidas, mas “ocorre prefigurar o
impacto a nível cognitivo e psicológico dos sons, das imagens e dos filmes cujos conteúdos
são apresentados” (Pichiassi, 1999).
No final da avaliação dos materiais eletrônicos para utilizar, o professor deve
levar em consideração, alguns fatores importantes como a coerência (nível, base
metodológica) com os outros materiais, a clareza dos objetivos didáticos, o balanceado
esquema dos materiais escritos, áudio e vídeo e alguns fatores citados na parte As
Vantagens do Software Didático Multimídia.
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