o estado islâmico: sua evolução e perspectivas teóricas

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o estado islâmico: sua evolução e perspectivas teóricas
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O ESTADO ISLÂMICO: SUA EVOLUÇÃO E
PERSPECTIVAS TEÓRICAS
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Pedro Henrique Pacheco Chamun
Santa Maria, RS, Brasil
2015
O ESTADO ISLÂMICO: SUA EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS
TEÓRICAS
Pedro Henrique Pacheco Chamun
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),
como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em
Relações Internacionais.
Orientadora: Prof. Ms. Danielle Jacon Ayres Pinto
Santa Maria, RS, Brasil
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ECONOMIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de
Conclusão de Curso
O ESTADO ISLÂMICO: SUA EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS
TEÓRICAS
elaborado por
Pedro Henrique Pacheco Chamun
como requisito para obtenção de grau de
Bacharel em Relações Internacionais
COMISSÃO EXAMINADORA:
Danielle Jacon Ayres Pinto, Ms. (UFSM)
(Presidente/Orientadora)
Jose Renato Ferraz da Silveira, Dr. (UFSM)
José Carlos Martines Belieiro Junior, Dr. (UFSM)
Santa Maria, 20 de novembro de 2015.
AGRADECIMENTOS
Dedico este trabalho a minha mãe, Enoir de Fatima Pacheco Chamun, que
sempre esteve comigo, sempre me apoiou e me ajudou quando precisei. Agradeço a
minhas irmãs pela paciência, Ruth Pacheco Chamun e Luiza Pacheco Chamun.
Agradeço a meu pai, Luiz Clayton Müzell Chamun (in memorian) pelo ideal e memória
que me concedeu, e que infelizmente não pode presenciar minha realização. Também
dedico este trabalho a minha querida tia, Jussara Müzell Chamun, e ao Luiz Vicente,
que amo muito.
Agradeço a minha orientadora prof. Ms. Danielle Jacon Ayres Pinto, por toda
compreensão, paciência e simpatia. Agradeço ao prof. Dr. Jose Renato Ferraz da
Silveira por todas vezes que me ajudou quando precisei e também ao professor Dr.
José Carlos Martines Belieiro Junior, que usou seu tempo para a leitura deste trabalho,
assim como para participar da banca de defesa.. Também agradeço e dedico este
trabalho para os outros professores que me ensinaram tanto.
Agradeço aos meus amigos Dr. Jeandre Augusto dos Santos Jaques e Ms.
Guilherme Chagas Kurtz por todo o apoio e auxílio. Agradeço também a todos meus
amigos e colegas do curso de Relações Internacionais da UFSM.
RESUMO
O presente estudo busca analisar a história do grupo terrorista islâmico conhecido
como Estado Islâmico, passando por suas diversas formas. Tal grupo é derivado da
al-Qaeda, mas tomou rumos diferentes, inclusive entrando em conflito direto com a
mesma. Também investiga-se as causas do surgimento do Estado Islâmico, iniciando
desde as causas menos aparentes como o Acordo de Sykes-Picot, passando pelo
governo ba’athista de Saddam Hussein e sua campanha de fé, a invasão pela coalisão
dos Estados Unidos da América e as ações do governo de transição e, após, o
governo e as políticas sectaristas de Nouri al-Maliki, assim como as ações da milícia
Sahwa. Ademais, realiza-se uma pesquisa sobre o perfil dos principais líderes da
organização, Abu Musab al-Zarqawi e Abu Bakr al-Baghdadi, e suas ideologias. O
estudo também busca compreender como o Estado Islâmico iniciou sua participação
na guerra civil na Síria, sua ideologia e organização institucional, assim como suas
estratégias e objetivos. Além disso, será examinado a conexão do grupo com o islã, a
declaração e o ideal do califado. Também busca-se analisar a questão do terrorismo
e suas diversas formas, e sobre a categorização do Estado Islâmico como um rogue
state e como um movimento de libertação nacional. Por fim, discorre-se sobre os
métodos de financiamento que o grupo possuí e como funciona a questão dos
combatentes estrangeiros.
Palavras-chave: al-Qaeda. Estado Islâmico. Iraque. ISIS. Islã. Jihad. Salafismo. Síria.
Terrorismo.
ABSTRACT
This study investigates the history of the Islamic terrorist group known as The Islamic
State, through its various incarnations. Such a group is derived from al-Qaeda, but it
took different paths, including entering into direct conflict with it. Also investigates the
causes of the emergence of the Islamic State, starting from the least apparent causes
as the Sykes-Picot Agreement, through the Ba’athist State of Saddam Hussein, and
his campaign of faith, the invasion by the coalition leaded by the Unites States of
America, and the transitional government’s actions, and after, the government and the
sectarian policies of Nouri al-Maliki, as well as the actions of the Sahwa militia.
Moreover, it is carried out a brief analysis on the profile of the main leaders of the
organization, Abu Musab al-Zarqawi and Abu Bakr al-Baghdadi, and their ideologies.
The study also seeks to understand how the Islamic State began its participation in the
Syrian civil war, its ideology and institutional organization, as well as their strategies
and objectives. In addition, it is examined the group’s connection with Islam and the
ideal of the caliphate. It also seeks to analyze the issue of terrorism and its various
forms, and the categorization of the Islamic State as a rogue state actor and as a
national liberation movement. Finally, it will discuss their financing methods and the
issue of the foreign fighters.
Keywords: Al-Qaeda. Iraq. Islamic State. ISIS. Islam. Jihad. Salafism. Syria.
Terrorism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 8
1.
AS RAÍZES REGIONAIS DO ESTADO ISLÂMICO.................................... 12
1.1
A história geopolítica do Iraque................................................................ 12
1.1.1
O Acordo de Sykes-Picot, Reino do Iraque e República do Iraque.............. 13
1.1.2
A ascensão e queda de Saddam Hussein.................................................... 15
1.2
Jama‘at al-Tawhid wal-Jihad…………………………………………………. 25
1.3
Al-Qaeda no Iraque…………………………………………………………….. 32
1.4
Mujahideen Shura Council……………………………………………………. 34
2.
O ESTADO ISLÂMICO MODERNO............................................................. 36
2.1
O Despertar de al-Anbar............................................................................. 37
2.2
O Estado Islâmico do Iraque..................................................................... 39
2.2.1
A derrocada do Estado Islâmico do Iraque e o movimento Sahwa.............. 40
2.2.2
Sobre Abu Bakr al-Baghdadi e o Campo Bucca........................................... 43
2.2.3
O ressurgimento do ISI sob a liderança de Abu Bakr al-Baghdadi.............. 45
2.2.3.1 Reestruturação e reconstrução.................................................................... 46
2.2.3.2 A natureza disfuncional do Estado iraquiano de al-Maliki............................ 47
2.2.3.3 O desaparecimento da influência da al-Qaeda de Zawahiri......................... 48
2.2.3.4 A guerra civil na Síria.................................................................................... 48
2.2.4
A cisão com a al-Qaeda e o nascimento da Jabhat al-Nusra....................... 51
2.3
Estado Islâmico do Iraque e da Síria........................................................ 53
2.3.1
Declaração do Califado................................................................................ 54
2.3.2
Organização Institucional............................................................................. 55
2.3.3
Estratégia e Objetivos................................................................................... 57
3.
PERSPECTIVAS TEÓRICAS SOBRE O ESTADO ISLÂMICO ................. 59
3.1
O Estado Islâmico e o Islã......................................................................... 59
3.2
Retorno ao ideal do Califado..................................................................... 61
3.3
Terrorismo e o Estado Islâmico................................................................ 62
3.4
O Estado Islâmico como um ‘Rogue State’.............................................. 65
3.5
Seria o IS um movimento de libertação nacional?.................................. 66
3.6
Sobre o financiamento do Estado Islâmico............................................. 68
3.7
Sobre os ‘Foreign Fighters’....................................................................... 71
CONCLUSÃO........................................................................................................... 77
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 81
8
INTRODUÇÃO
Após o término da Guerra Fria, o sistema internacional tem passado por
mudanças bruscas. A queda do sistema bipolar e a ascensão dos Estados Unidos da
América como superpotência única, e o deslocamento de sua política de contenção
para uma política baseada no neoliberalismo republicano intervencionista, assim
como o vácuo de poder deixado pelos soviéticos, criaram uma atmosfera adequada
para o surgimento de novos tipos de conflitos.
Tais conflitos se mostraram assimétricos, e dentre eles o terrorismo
fundamentalista islâmico mostrou-se um dos mais preponderantes e perigosos.
Apesar do terrorismo ter surgido muito tempo antes do término da Guerra Fria, foi no
ataque de 11 de setembro de 2001 pela al-Qaeda de Osama bin Laden, que ele obteve
mais visibilidade.
Este trabalho busca analisar a história e evolução do Estado Islâmico desde
suas raízes regionais, passando pela formação de suas organizações embrionárias
até 2014, quando o grupo deixou de se chamar de Estado Islâmico do Iraque e da
Síria para Estado Islâmico per se.
Serão apresentados três capítulos, os dois primeiros terão um viés histórico e
o terceiro terá uma abordagem teórica, como será apresentado a seguir. O primeiro
capítulo, As raízes regionais do Estado Islâmico, apresenta a formação da ideologia e
das raízes históricas do IS.
Um fator importante para a ascensão de tais grupos no Iraque foi o governo
ba’athista de Saddam Hussein. O partido Ba’athista subiu ao poder em um golpe de
estado em 1968, e Saddam tomou a presidência em 1979. O movimento Ba’ath foi um
movimento pan-arabista de características socialistas e seculares, com qualidades de
um culto à personalidade.
Entretanto, no final da década de 1980, após a Guerra Irã-Iraque, o regime de
Saddam muda sua abordagem e anuncia a “Campanha da Fé”, realizando uma
grande estimulação do pan-islamismo, incluindo suportar grupos radicais.
Após a destruição das Torres Gêmeas em Nova York, os EUA invadiram o
Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003. Tais intervenções, principalmente a
9
iraquiana, deram início a uma ‘reação em cadeia’ que desestabilizaram a região e
empoderaram organizações como a al-Qaeda.
Tanto que, em 1999, um jordaniano desiludido chamado Abu Musab al-Zarqawi
fundou a organização terrorista islâmica Jamaat al-Tawhid wal-Jihad (JTJ), ou
Organização para o Monoteísmo e Jihad. E através dela, Zarqawi cometeu diversas
atrocidades, como o bombardeio do Canal Hotel em Bagdá, que matou 22 pessoas,
entre elas o chefe da delegação da ONU no Iraque, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello.
A JTJ também tomou responsabilidade pelo bombardeio da mesquita Imam Ali, que
matou 95 pessoas incluindo o Aiatolá Mohammad al-Hakim, o clérigo xiita mais
importante do país. O grupo também deu início a produção de vídeos de seus
assassinatos, com a decapitação do empreiteiro americano Nick Berg.
Algum tempo depois, a organização alinhou-se com a al-Qaeda e mudou de
nome para al-Qaeda no Iraque (AQI), e nesse momento ela experienciou um
crescimento nos seus números. Pouco tempo depois, a AQI já possuía algum domínio
sobre o território de al-Anbar, e os crimes aumentavam cada vez mais. Tais ataques
tinham objetivo de gerar uma guerra civil sectária no Iraque e em algum nível, foi bem
sucedida.
Junto disso, uma série de más decisões do Coalition Provisional Authority, o
governo provisório americano, com objetivo de des-ba’athificar o Iraque, estipulou que
nenhum oficial, soldado ou empregado do antigo regime poderia fazer parte do novo
estado. Essa ação teve repercussões profundas e deixou mais de 500 mil pessoas
desempregadas e alienadas da sociedade política iraquiana, tal evento ficou
conhecido como “sunni disenfranchisement’.
Por culpa dessa perda de direitos por parte da população sunita da região,
muitos deles juntaram-se a grupos como a AQI, pois ao menos recebiam alguma
remuneração. Com os números e influência crescentes, a AQI tornou-se a filial da alQaeda mais poderosa, e isso gerou problemas entre as organizações. Nesse
momento, a AQI começou a desenvolver ideias de state-building, e sua ideologia se
distanciou da al-Qaeda Central, que focava-se na jihad global.
Com esse crescimento de influência na região, em 2006 diversos grupos
uniram-se a AQI, e a organização mudou de nome para Mujahideen Shura Council
(MSC). Mas essa organização teve pouca duração.
O segundo capítulo, O Estado Islâmico moderno, busca abordar os
acontecimentos que ocorreram após a queda do MSC e a formação do Estado
10
Islâmico do Iraque, assim como a mudança de liderança, quando Abu Omar alBaghdadi assumiu o poder, e Abu Ayyub al-Masri como seu braço direito, como
discorrerei a seguir.
A ideologia ultra violenta do MSC logo gerou graves repercussões para a
organização e sua base social na região estava ruindo rapidamente. Além disso o exlíder do grupo, Zarqawi, tinha sido morto em um ataque aéreo americano pouco tempo
depois. Portanto, logo o MSC se desfez e retornou como Estado Islâmico do Iraque
(ISI), e Abu Omar al-Baghdadi se torna o líder da organização.
Nesse momento, o grupo ganhou muita força e passou a focar-se em statebuilding, o que gerou ainda mais conflitos ideológicos com a AQI. O ISI já detinha
controle sobre as províncias de al-Anbar, Faluja, Qaim e Baqubah (como sua capital).
Apesar dessas aparentes vitórias, em 2007, o grupo estava passando por
sérias dificuldades. Sabendo da gravidade da situação, os EUA e o governo Iraquiano
de Nouri al-Maliki passou a armar as tribos da região para lutar contra o Estado
Islâmico do Iraque, esse movimento chamou-se de “Sahwa”, ou Despertar. Tal
estratégia foi bem sucedida e no final de 2008 o grupo tinha sido derrotado,
aparentemente.
Entretanto, com a diminuição das tropas americanas do Iraque em 2009 e a
quebra da promessa de al-Maliki de inserir o movimento Sahwa nas forças de
segurança e prestar os devidos pagamentos, houve cada vez mais deserções nas
forças iraquianas.
Logo após, o Estado Islâmico do Iraque retomou suas atividades e voltou a
conquistar territórios. Apesar disso, em 2010 o grupo sofreu um grande impacto, com
o assassinato de Abu Omar al-Baghdadi e de seu braço direito Abu Ayyub al-Masri.
Mesmo assim, o ISI manteve-se ativo e Abu Bakr al-Baghdadi assumiu a
liderança do grupo. Nesse momento, o grupo sofreu uma grande reestruturação. Tais
reformas se focaram na reestruturação ideológica e nas suas capacidades
administrativas e militares.
Além disso, a influência da al-Qaeda no Iraque tinha diminuído e as políticas
excludentes e sectárias do governo de al-Maliki polarizaram o conflito ainda mais.
Outro ponto de importância foi a erupção da guerra civil na Síria, que o ISI se
aproveitou para expandir sua influência além das fronteiras iraquianas.
Dessa forma, o ISI mandou seus oficiais e soldados para a Síria, onde
estabeleceram bases de apoio. Enquanto isso, em 2013, al-Baghdadi estipulou que o
11
Estado Islâmico do Iraque passou a chamar-se de Estado Islâmico do Iraque e da
Síria, e que o grupo não seria mais subordinado a al-Qaeda central. Entretanto, a alQaeda negou tal anuncio, e ambas organizações declararam guerra entre si.
Em 2013, o ISIS já possuía um grande domínio territorial no Iraque e na Síria,
movendo sua capital para Mosul (a segunda maior cidade iraquiana) e em 2014 o
grupo realizou uma grande investida contra o exército iraquiano e o derrotou. Tal
sucesso estrondoso deu confiança a Baghdadi para declarar o califado e se auto
intitular califa.
No terceiro capítulo, Perspectivas teóricas sobre o Estado Islâmico, serão
analisadas as principais questões levantadas sobre o IS. Uma delas é a perspectiva
religiosa do Estado Islâmico, e sua conexão com o Islã. Outra questão considerada é
a questão do califado, e sua legitimidade dentro do Islã.
A seguir, ponderarei a questão do terrorismo transnacional e seus tipos e
diferenças, passando pelo questionamento se o IS pode ser considerado um rogue
state. Também, abordará a análise do IS como um movimento de libertação nacional.
Após, será investigado como se dá o financiamento do Estado Islâmico e seu
processo econômico. E por fim, será examinada a questão dos combatentes
estrangeiros, como se dá sua radicalização e seu modo de operação.
Espera-se que com este trabalho seja possível, não apenas compreender a
existência de um grupo terrorista excessivamente violento como o Estado Islâmico,
como também demonstrar como políticas intervencionistas e sectaristas podem ter
resultados extremamente danosos ao Estado e a sua população, assim como,
ideologias radicais podem ter efeitos desastrosos nos seres humanos e na sociedade
que nos cerca.
12
1.
AS RAÍZES REGIONAIS DO ESTADO ISLÂMICO
Como Lilian Aguiar menciona em seu texto, “a história não se resume à simples
repetição dos conhecimentos acumulados. Ela deve servir como instrumento de
conscientização dos homens para a tarefa de construir um mundo melhor e uma
sociedade mais justa” (AGUIAR, 2011).
Para explicarmos os eventos atuais, devemos olhar para a recente história do
Oriente Médio. Tais eventos nos afetam como indivíduos, como membros de grupos
étnicos ou religiosos, e como cidadãos de determinados países (GOLDSCHMIDT;
DAVIDSON, 2010), eventos que auxiliaram na compreensão do que acontece
atualmente.
Nesta seção do estudo será analisado o surgimento do Estado Islâmico como
uma organização terrorista, iniciando por suas raízes regionais e situação dos países
envolvidos. Entretanto para que se tenha uma visão completa do assunto, deve-se
observar a história geopolítica do Iraque, tanto antes da guerra do Iraque, quanto
após. Além disso, no segundo capítulo, será feita uma análise similar da Síria e de
sua geopolítica atual.
1.1
A história geopolítica do Iraque
Apesar do que a “mainstream media” suporta, a maioria dos conflitos atuais no
oriente médio são conflitos regionais, não globais. Os desejos geopolíticos atuais do
Estado Islâmico não se estendem além do Grande Oriente Médio1 e eles têm fortes
raízes locais, portanto a necessidade de se analisar tal história geopolítica de forma
mais localizada.
1
Termo criado durante a administração Bush dos EUA, que incorpora, além dos países da península
arábica, mas também o Irã, a Turquia, o Afeganistão, o Paquistão, parte do Cáucaso (como Armênia e
Georgia) e o Magreb árabe (norte da África).
13
1.1.1 O Acordo de Sykes-Picot, Reino do Iraque e República do Iraque
Pouco antes do término da Primeira Guerra Mundial e a derrocada do império
Otomano, em 1916 foi feito o Acordo de Sykes-Picot (oficialmente, Acordo da Ásia
Menor). Era um acordo secreto entre a França e a Inglaterra (com consentimento da
Rússia) que dividiam entre si os territórios do Oriente Médio como zonas de influência.
Entretanto, antes do final da 1ª Guerra, os britânicos e franceses prometeram ao Xarife
Hussein de Meca (e a outros líderes árabes) que iriam suportá-los na revolta árabe de
1916 contra a dominação otomana e na criação de um Estado nacional árabe
(GOLDSHMIDT, DAVIDSON, 2010). Tanto que, em maio de 1917, o secretário do Estado
das Colônias inglês William Ormsby-Gore escreveu
As intenções francesas na Síria são certamente incompatíveis com os
objetivos de guerra dos aliados, tal como definidos pelo governo russo. Se o
princípio de autodeterminação dos povos é o objetivo principal, a interferência
francesa na seleção dos Emir e de consultores e do governo árabe em Mosul,
Aleppo e Damasco seriam completamente incompatíveis com nossas ideias
da liberação da nação árabe e do estabelecimento de um governo Árabe livre
e independente (...)2 (UK NATIONAL ARCHIVES, 1917)
O acordo de Sykes-Picot não somente mudou a geopolítica, mas, também,
influenciou profundamente a maioria dos acontecimentos futuros da região.
Após o golpe final contra o império turco-otomano, foi estabelecido o mandato
britânico no Iraque que colocou a monarquia Hashemita3 no poder, e definiram os
limites territoriais do Iraque (como mostrado na figura 1), sem levar em consideração
os diferentes grupos étnicos dentro do país (xiitas, curdos, entre outros).
Em 1921, Faisal I foi coroado Rei do Iraque através do apoio e propaganda
britânica, conseguindo 95% de aprovação popular. Foi um grande apoiador do
movimento pan-arabista4 e da inserção de outros grupos étnicos e religiosos no
governo.
[Tradução livre] No texto original lê-se: “French intentions in Syria are surely incompatible with the war
aims of the Allies as defined to the Russian Government. If the self-determination of nationalities is to
be the principle, the interference of France in the selection of advisers by the Arab Government and the
suggestion by France of the Emirs to be selected by the Arabs in Mosul, Aleppo, and Damascus would
seem utterly incompatible with our ideas of liberating the Arab nation and of establishing a free and
independent Arab State”.
3 É uma família real árabe que reinou em Hejaz (1916-1925; atual território da Arábia Saudita), Iraque
(1921-1958) e Jordânia (1921-presente).
4 Movimento nacionalista árabe que buscava uma união dos territórios do Iraque, Síria e do Crescente
Fértil sob uma única nação árabe.
2
14
Em 1932, o reino do Iraque adquire independência da Inglaterra, pela Liga das
Nações. Em 1933, o Rei Faisal I morre e é substituído por seu filho que continua a
monarquia até 1941, quando houve um golpe de estado suportado pelo regime
nazista. Tal governo pró-nazista durou somente um ano, e o Iraque voltou para os
ingleses, que ocuparam a região até 1947, e restauraram o poder para a família
Hashemita.
Em 1945, o Iraque, juntamente com o Egito, Líbano, Iêmen do Norte, Arábia
Saudita e Transjordânia tornam-se os membros fundadores da Liga dos Estados
Árabes e ela tinha o objetivo principal de
(...) buscar aproximação nas relações entre os estados membros e coordenar
suas atividades políticas com foco em aumentar a colaboração entre si, para
defender sua independência e sua soberania, e considerar, de forma ampla,
os assuntos e interesses dos países árabes 5 (PACT OF THE LEAGUE OF
ARAB STATES, 1945; p. 1).
Em julho de 1958, um golpe militar socialista liderado por Abd al-Karim Qasim6
derruba a ordem monárquica existente, matando no processo Nuri al-Sa’id (príncipe
herdeiro da coroa) e o Rei Faisal II, assim como toda a família real. Para a surpresa e
jubilo da população, foi estabelecido o nascimento da República do Iraque (DAWISHA,
2009).
O golpe de Qasim prometia uma melhoria de vida para os iraquianos mais
pobres e marginalizados, já que o governo Hashemita incluía apenas a elite sunita
rica na economia e política iraquiana. Apesar de tais reformas nas instituições
governamentais que Qasim tinha realizado, o mesmo não escondia que seu poder era
regido pela força militar (HOLDEN, 2012).
O novo regime semi-socialista nacionalizou a indústria do petróleo e também
decidiu interromper a cooperação com o ocidente, o que gerou insatisfação com os
governos ocidentais, principalmente os EUA. Diante da possibilidade de o Iraque
tornar-se um regime satélite soviético, em 1963 a CIA7 tentou realizar um ‘contragolpe’
contra o novo governo socialista, mas seu sucesso foi parcial, derrubando Qasim do
[Tradução livre] No texto original lê-se: “(…) draw closer the relations between member States and coordinate their political activities with the aim of realizing a close collaboration between them, to safeguard
their independence and sovereignty, and to consider in a general way the affairs and interests of the
Arab countries.”
6 O iraquiano Abd al-Karim Qasim (1914-1963) foi um brigadeiro do exército do Iraque de ideologia panarabista que realizou o golpe de estado contra a monarquia Hashemita que governava o estado
iraquiano na época.
7 Central Intelligence Agency (CIA), principal agencia governamental de inteligência dos EUA.
5
15
poder, mas mantendo a república. Esse evento foi chamado de ‘Revolução do
Ramadan’, e terminou com mais de cinco mil mortos, sendo a maioria membros do
partido socialista (MELARAGNO, OLLUNGA, 2003).
Figura 1 – Mapa político do Iraque
Fonte: http://www.ephotopix.com/iraq_political_map.html
1.1.2 A ascensão e queda de Saddam Hussein
Juntamente com al-Qasim, um dos líderes da revolução de 1958 foi Saddam
Hussein (1937-2006; figura 2), que nesse momento era o secretário geral do partido
Ba’ath. Hussein tornar-se-ia uma figura principal na história política do Iraque.
16
A queda da República do Iraque ocorreu em 1968, quando o partido socialista
Ba’ath liderado por Ahmed Hassan al-Bakr8 (que tinha sido um dos principais
conspiradores da Revolução do Ramadan em 1963) realizou outro golpe, mas dessa
vez foi bem sucedido.
Saddam Hussein se esforçou para ganhar a confiança de al-Bakr, e se referia
a ele publicamente como al-Abb al-Qa’id (o Pai Líder). Além disso, ambos vieram da
cidade de Tikrit, um dos principais territórios sunitas do país. Logo, al-Bakr passou a
depender do apoio de Saddam, e ambos criaram laços de confiança.
Bakr raramente contradizia seu conterrâneo e Saddam ganhava cada vez mais
influência sobre seu superior e, pouco tempo depois, Hussein tornou-se o principal
formulador de políticas do país.
Como admirador de Joseph Stalin, Hussein tentou replicar sua prática de
consolidação de poder, através da propaganda e da eliminação de rivais na oposição.
Figura 2 – Saddam Hussein após ser reeleito em 1995
Fonte: http://www.businessinsider.com/heres-what-life-in-iraq-was-like-under-saddam-hussein-2014-7
Sua primeira preocupação foi em domar as forças armadas iraquianas,
melhorando seus salários e promovendo tratamento preferencial a oficiais. Essas
indulgências criaram um sentimento de dependência a Saddam, que era seu objetivo
em primeiro lugar (DAWISHA, 2009). Hussein, em um de seus primeiros
pronunciamentos, disse
8
Ahmed Hassan al-Bakr foi o Primeiro Ministro instaurado após o golpe em 1963. Saddam Hussein era
seu primo.
17
O comando revolucionário ideal deveria dirigir efetivamente todos
planejamentos e implementações. Ele não deve permitir o crescimento de
qualquer outro poder rival. Deve haver um comando concentrando e dirigindo
os departamentos governamentais subsequentes, incluindo as forças
armadas. (DAWISHA, 2009; p. 234) 9
Para Hussein, o controle das forças armadas era essencial, tanto que em outra
entrevista ele menciona que “Com os métodos do partido, não há chance para que
alguém que discorda de nós pule em alguns tanques e derrube o governo” (DAWISHA,
2009; p. 234)10, e Saddam agiria através dessas palavras sem pena. Tanto que em
1971, seus principais rivais tinham sido removidos do poder, assim como seus
suportadores nas forças armadas.
Nesse momento, Saddam já possuía quase total controle sobre as forças de
inteligência do país, assim como tinha infiltrado as forças armadas com seus espiões.
Embora Saddam era o número 2, este estava consolidando o poder ao redor de si
mesmo, metodicamente “limpando” as instituições administrativas e de segurança de
competidores e da oposição.
Na segunda metade da década de 1970, Hussein estava seguro que outros
líderes da oposição tinham sido eliminados e que o exército estava domado sob sua
mão e Saddam Hussein já era o líder de facto. Apesar disso, apenas em 1979 que ele
assumiu a maior posição de poder, forçando al-Bakr a deixar o poder.
Nesse meio-tempo, sessenta e seis membros do partido foram sumariamente
indiciados por conspiração. Das sessenta e seis pessoas indiciadas, cinquenta e cinco
foram considerados culpados e vinte e dois foram sentenciados a morte. Não somente
as sentenças foram executadas imediatamente, sem recursos legais, como foram
realizadas pelos próprios colegas dos acusados, todos membros sêniores do partido.
Tanto o julgamento quanto as execuções foram filmadas e entregues a outros
membros do partido. De acordo com Dawisha, isso serviu para propagar a
culpabilidade e demonstrar as consequências da dissidência. Cada vez mais, Saddam
iria realizar “limpezas” no partido como todo e no exército e instituições burocráticas
(DAWISHA, 2009).
[Tradução livre] No texto original lê-se: “the ideal revolutionay command should effectively direct all
planning and implementation. It must not allow the growth of any other rival center of power. There must
be one command pooling and directing the subsequent governmental departments, including the armed
forces.”
10 [Tradução livre] No texto original lê-se: “With party methods, (…) there is no chance for anyone who
disagrees with us to jump on a couple of tanks and overthrow the government.”
9
18
No final de 1979, um novo sistema de governo tinha sido imposto no Iraque,
um regime no qual Saddam Hussein possuía poder total e inquestionável. E na base
desse sistema estava institucionalizado um reino de terror que mantinha toda a
população do país sequestrada pelas vontades e caprichos do “presidente”. Tanto que
o fundador do partido Ba’ath, Michel ‘Aflak escreveu: “Quando somos cruéis com
outros, sabemos que nossa crueldade é feita para trazê-los de volta a seus ‘eus’
verdadeiros, os quais eles são ignorantes” (DAWISHA, 2009; p. 237).
Esse uso da crueldade foi traduzido em uma grande expansão das instituições
de coerção. Serviços de inteligência prosperaram, o número de polícias secretas e
espiões multiplicaram-se e a milícia do partido percorriam as ruas. Em 1980, de acordo
com Kanan Makiya, um quinto dos iraquianos economicamente ativos foram acusados
institucionalmente com alguma forma de violência. Qualquer sinal de divergência com
a polícia do estado resultaria em anos de encarceração e atrocidades (DAWISHA,
2009).
O objetivo desse terror estatal era criar controle político e psicológico sobre a
população, e de criar uma “personalização do poder político” na figura do presidente,
elevando a persona de Saddam Hussein na consciência de todos os cidadãos. De
acordo com Dawisha, a melhor definição desse regime não era estado Ba’athista, mas
sim um Estado Saddanista.
Tal domínio sobre a população é exemplificado em um reporte do congresso
iraquiano em 1982, que
Elogia-se a liderança ética do camarada Saddam Hussein na reconstrução
do Partido (...) elogia-se seus sucessos históricos na liderança partidária (...)
elogia-se seu decisivo e histórico papel no planejamento e implementação da
revolução (...) elogia-se sua rara capacidade e imensa coragem em
confrontar as conspirações contra a revolução (...) elogia-se sua capacidade
singular para planejar, criar e implementar todos os sucessos proeminentes
do partido (...) elogia-se sua liderança criativa ao designar e implementar o
plano de desenvolvimento econômico (...) elogia-se seu papel de comando
na guerra – em todos aspectos militares, estratégicos, mobilizacionais,
políticos e econômicos – de maneira criativa, corajosa e democrática. 11
(DAWISHA, 2009; p. 239)
[Tradução livre] No texto original lê-se: “Praised the ethical leading role of comrade Saddam Husayn
in rebuilding the Party... praised his historic success in leading the party... praised his decisive and
historic role in planning and implementing the revolution... praised his rare ability and immense courage
in confronting the conspiracies against the revolution… praised his unique capacity to plan, devise and
implement all the party’s prominent successes… praised his creative leadership in designing and
implementing the economic development plan… praised his commanding role in the war—in all its
military, strategic, mobilizational, political, economic and psychological aspects — in a creative,
courageous and democratic manner.”.
11
19
Saddam Hussein não ficou conhecido como um ditador violento e belicoso
somente pelo tratamento de sua população. O Iraque de Saddam foi agressor em
duas guerras importantes para o Oriente Médio: A guerra Irã-Iraque (1980-1988) e a
Guerra do Golfo Pérsico (1990-1991), também conhecidas como Primeira Guerra do
Golfo e Segunda Guerra do Golfo, respectivamente.
A primeira guerra do golfo, foi um conflito não somente entre o Irã e o Iraque,
mas sim, um conflito entre o pan-arabismo12 e o pan-islamismo13. Para Paulo Vizentini,
conforme foi avançando, a guerra tornou-se um conflito irracional, e que se manteve
por quase uma década pelas seguintes razões:
(...) interesse dos exportadores de armas, manobras envolvendo a política
petrolífera, divisão do mundo muçulmano em benefício de Israel (que
aproveitou o conflito para destruir o reator nuclear iraquiano), as
necessidades internas de legitimação política e de construção de exércitos
modernos e experientes por Khomeini e Saddam Hussein, ao que se ligavam
rivalidades históricas entre árabes e persas, muçulmanos sunitas e xiitas
(VIZENTINI, 2002; p. 67-68)
A segunda guerra do golfo, foi um conflito importante para o oriente médio,
principalmente porque simbolicamente significou a falência do pan-arabismo (que
estava em decadência desde a década de 1970), pois nunca um país árabe tinha sido
o agressor contra outro país árabe.
Tal guerra durou um ano e foi um fracasso para Saddam, que resultou na
restauração da monarquia Kuwaitiana, assim como fortes sanções econômicas
aplicadas ao Iraque.
Normalmente se diz que o Iraque Ba’ath de Hussein foi um estado secularista
e pan-arabista. Embora essa visão esteja parcialmente certa, Saddam Hussein
utilizou-se do pan-islamismo como uma ferramenta pragmática de propaganda. Podese dizer que houve uma fusão da ideologia ba’athista com o conceito islâmico de
turath14, em quatro formas e em quatro momentos diferentes, cada um com um grau
maior de religiosidade.
Entre 1968 a 1977, foi o momento mais secular do estado ba’athista e era
baseado nos principios da wahda, hurriyya, ishtirakiyya (união, liberdade, socialismo,
respectivamente). Esse aumento do secularismo culminou nas revoltas xiitas de 1977.
12
O pan-arabismo é uma ideologia nacionalista que gira em torno de uma união cultural e política entre
países árabes. Um retorno à visão ideal da Arábia como uma nação única.
13 O pan-islamismo é uma ideologia religiosa que se baseia no fortalecimento da ummah (que significa
a comunidade islâmica, em sua totalidade) e na união dos povos muçulmanos.
14 Do árabe para “herança”.
20
Em resposta as revoltas, Saddam pronunciou-se dizendo: “Nosso partido não é neutro
vis-à-vis ateismo e fé. Pelo contrário! É sempre com fé! Mas não é um partido religioso
e não deve ser”. De acordo com Alianak (2007), Saddam Hussein estava aprendendo.
Ele argumentou que os ba’ath deveriam permitir uma certa liberdade religiosa, mas
que não utilizariam a religião como uma ferramenta política, já que esta causaria uma
desunião entre os árabes e apenas esta apenas auxiliaria o neo-colonialismo
(ALIANAK, 2007).
Esta mensagem se fortaleceu durante a Guerra Irã-Iraque, onde Khomeini (líder
iraniano e grande estimulador do pan-islamismo) fomentava revoltas xiitas contra o
governo secularista, tanto que essa foi uma das causas da guerra. Após o final da
guerra, quando Khomeini admitiu sua derrota e com sua morte em 1989, o partido
Ba’ath volta a abrir concessões ao pan-islamismo.
Em 1993, o Iraque Saddanista foi alvo de brutos embargos econômicos pela
comunidade internacional, tendo sua inflação crescido exponencialmente e o
desemprego aumentou para 50%. Isso devastou a classe média do país e como
resultado a população passou a buscar conforto nas mesquitas. Como um jovem
iraquiano disse: “Nós sentimos que precisamos de ajuda, nós precismos de paz, então
nós rezamos... Todos buscam refúgio em algum lugar... Eu busquei em Deus”
(BARAM, 2011; p. 7).
Nesse momento, o regime Saddanista, anunciou sua Campanha da Fé (por
mais paradoxal que seja) e ela se focava em um fortalecimento das instituições
religiosas no Iraque. Grande parte dos clubes noturnos e discotecas foram fechados,
assim como o consumo público de alcool foi proibido, com pena de até um mês de
prisão.
Foi lançada uma campanha massiva de ensino do Corão e do Hadith15, e o
ensino do Islã tornou-se o foco nacional e doutrina do partido. Em 1994, com o
crescimento do Islã radical, também surgiu a Sharia e o desmembramento e a
marcação de ladrões e criminosos começaram a ficar evidentes (BARAM, 2011).
Em 1991, por ordem de Saddam a frase “Allahu Akbar16” escrita com a caligrafia
do próprio Saddam, foi adicionada entre as três estrelas que representavam o estado
ba’athista.
15
16
Coleção de narrativas ditas pelo profeta Muhammed, não contidas no Corão.
Do árabe para “Allah é o maior”.
21
De acordo com Amatzia Baram (2011), a campanha da fé ajudou a transformar
o Iraque em direção a uma islamização mais radical, assim como as mesquitas
ganharam mais poder e influência sobre a população, e indiretamente fortaleceram
grupos terroristas que no futuro desestabilizariam o país.
Em 11 de setembro de 2001, o mundo foi tomado por horror quando a al-Qaeda
de Osama bin Laden atacou os EUA com aviões sequestrados. Isso gerou uma
resposta rápida pelos Estados Unidos, que logo atacou o Afeganistão, que abrigava a
al-Qaeda.
Pouco tempo depois, em março de 2003, os EUA e a Inglaterra, assim como
alguns outros países da região crusaram a fronteira do Kuwait com o Iraque, e com
uma campanha militar esmagadora derrotou o exército iraquiano e em menos de três
semanas ocuparam Bagdá. Esse ato de bravata sinalizou o final de uma era de 35
anos de reinado Saddanista sobre o Iraque. Pouco tempo depois, em dezembro do
mesmo ano, Saddam Hussein foi encontrado e capturado pelas forças americanas.
A razão dessa invasão foi a crença de que Saddam Hussein possuia armas de
destruição em massa e que o governo Ba’ath possuia ligações com grupos terroristas
islâmicos internacionais. Entretanto, a coalisão fracassou em encontrar tais “WMDs17”
e também em encontrar as ligações confiáveis entre Saddan e grupos terroristas. Este
fracasso enfraqueceu a legitimidade da invasão, e logo a opinião pública estaria
contrária a ocupação americana.
Com a queda do governo iraquiano, a coalisão americana obrigou-se a
governar o Iraque diretamente (até 2004). Tanto que em setembro de 2003, o
secretário de estado americano disse em uma entrevista que um “apecto inesperado
da ocupação pós-guerra foi a medida na qual a totalidade da estrutura da sociedade
civil e militar entrou em colapso assim que a guerra terminou, deixando um vasto
problema para as tropas americanas lidarem”18 (DAWISHA, 2009; p. 268).
Adicionando a este problema, a minoria dominante de sunitas que formavam a
elite governante do país desde sua fundação não conseguiam aceitar a perda de seu
poder e status. Esse é um ponto importante, que explica a ascensão de grupos
jihadistas sunitas, e será analisado mais profundamente no capítulo 2.
17
Do inglês para Weapons of Mass Destruction, ou Armas de Destruição em Massa.
[Tradução livre] No texto original lê-se: “unanticipated aspect of the post war occupation was the
extent to which the entire structure of military and civil society collapsed so completely as the war ended,
leaving a vast problem for the American troops to handle.”
18
22
Além disso, as áreas ao norte e oeste de Bagdá (que possuíam muito do
aparato militar e da polícia secreta de Saddam) rapidamente tornaram-se o centro da
resistência contra a ocupação americana. Acrescentando esse problema, era o fluxo
sem fim de jihadistas islâmicos infiltrando-se no Iraque a partir de países vizinhos.
Tais jihadistas tinham objetivos de martirizarem-se com objetivo de causar o máximo
de dano contra os infiéis americanos (DAWISHA, 2009).
Após a queda de Bagdá, a coalisão instituiu o Coalition Provisional Authority19
(CPA), que tinha objetivo de promover a recontrução do Iraque, a instituição da
democracia e o reestabelecimento de um governo iraquiano pró-americano.
Entretanto, as decisões políticas tomadas por Paul Bremer (o embaixador americano,
chefe e administrador do CPA) foram errôneas e irresponsáveis. Em duas semanas
no cargo, Bremer instituiu duas ordens: a dissolução de toda a força militar iraquiana
e o banimento da participação pública de membros do partido Ba’ath (DAWISHA,
2009).
Estas ordens provaram serem problemáticas, afinal, o que significaria retirar
auxilio monetário de milhares de oficiais militares, que antes eram respeitados na
sociedade? Além deles, o que aconteceria com os membros do partido Ba’ath que
agora se encontravam marginalisados, mas que poderiam ser cruciais a reconstrução
do Estado? Lembrando que, tanto os membros do partido ba’ath, assim como os exmilitares, não tinham um real respeito pela vida humana ou pelos direitos humanos.
É sabido que os primeiros focos de insurgência foram guiadas por ex-membros
do partido Ba’ath e ex-oficiais do exército. E assim que a insurgência se espalhou, ela
tornou-se mais violenta, sofisticada e começou a demonstrar sinais de perícia militar.
Com o aumento dos ataque e da violência dos insurgentes, militares americanos
responderam com maior beligerancia e com uma diminuição no respeito às
sensibilidades e normas culturais iraquianas. Dessa forma, com o aumento da
violência em ambos os lados, ficava cada vez mais difícil para os americanos
conquistar a simpatia da população do país.
Além dos custos de vidas humanas, a deterioração da segurança na região
teve um sério impacto no desenvolvimento socioeconômico do país, tanto que o
conselheiro de Bremer no Iraque, Larry Diamond explanou que a
19
Do inglês para Autoridade Provisória da Coalisão.
23
[a insurgência enfraqueceu] a construção pós-guerra a todo momento. Redes
elétricas não podiam ser religadas, instalações de pretróleo não podiam ser
reparadas, trabalhos de reconstrução não podiam ser comissionados,
suprimentos não eram entregues, a sociedade civil não se organizava, e a
transição para uma democracia não iria adiante, por culpa da pervasão do
terrorismo, da criminalidade e da violência insurgênte. 20 (DAWISHA, 2009; p.
269)
Nesse meio-tempo, o CPA instaurou o Iraqi Govenrment Council21 (IGC), que
tinha como objetivo auxiliar o governo da coalisão na tomada de decisão. Bremer
decidiu que os membros do IGC deveriam refletir a composição étnico-sectária do
país (como mostrado na figura 3). Enquanto essa decisão foi inicialmente aplaudida
por dar representatividade a grupos que antes não a possuíam, isto formularia as
bases para a institucionalização da divisão étnico-sectária no corpo político futuro do
país.
Figura 3 – Mapa étnico-sectário do Iraque
Fonte: http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/4525412.stm
Logo, Bremer e o IGC criaram um comitê que instituiu uma constituição
temporária, a Transitional Admnistrative Law22 (TAL), em março de 2004; e a ela
instituia que deveria haver eleições no Iraque o quanto antes. No início de junho, o
[Tradução livre] No texto original lê-se: “postwar construction at every turn. Electricity grids could not
be revived, oil facilities could not be repaired, reconstruction jobs could not be commissioned, supplies
could not be delivered, civil society could not organize, and a transition to democracy could not move
forward because of the pervasive terrorist, criminal and insurgent violence.”
21 Do inglês para Conselho de Governança Iraquiano.
22 Do inglês para Lei Administrativa Transicional.
20
24
IGC foi desfeito e cria-se um governo sob o primeiro ministro Ayad ‘Allawi, um exoficial ba’ath que criou uma organização anti-Saddam na década de 1990, em
Londres. E em 28 de junho de 2004, Paul Bremer deixa o Iraque e dá-se o fim da era
do CPA (DAWISHA, 2009).
O novo governo estava em dificuldades, já que a região a oeste de Bagdá, na
provincia de al-Anbar, a cidade de Faluja tinha se tornado o centro da insurgência
sunita e o quartel-general de jihadistas extrangeiros.
O novo governo obteve sucesso em expulsar os jihadistas de Faluja, entretanto
as tensões étnico-sectárias estavam aumentando. Enquanto os xiitas e curdos
queriam que as eleições fossem realisadas o quanto antes, os sunitas estavam
postergando as mesmas, já que estavam em menor número. E quando a estratégia
de postergação dos sunitas não deu certo, eles começaram a promover um boicote
contra a eleição.
Então, em janeiro de 2005, houveram as eleições para a Assembléia Nacional.
O maior partido, United Iraqi Alliance23, que constituia diversos grupos xiitas,
receberam 140 assentos. O segundo maior partido, Kurdistan Alliance24, conseguiu
75 assentos. O partido do primeiro-ministro ‘Allawi conseguiu 40 assentos, e outros
nove partidos menores receberam o restante dos 20 assentos (DAWISHA, 2009).
A United Iraqi Alliance ao receber a maioria dos votos, decidiu não forçar
decisões sectaristas já que isso somente aumentaria a divisão entre a população.
Contrária a United Iraqi Alliance, a Kurdistan Alliance (que conseguiu o segundo maior
número de votos) decidiu reforçar sua posição, aumentando o poder do Kurdistan
Regional Government e garantindo a criação de um exército curdo, as forças armadas
Peshmerga. Esse exército tornou-se o principal opositor das insurgências rebeldes e
de grupos terroristas como a al-Qaeda e o Estado Islâmico de dominarem a região.
Cerca de 75% da população sunita do Iraque resolveu optar pela opção sectária
(boicote) e, consequentemente, esse grupo recebeu apenas 17 assentos dos 275 na
Assembléia Nacional. Como mencionado anteriormente, essa divisão étnico-sectária
desigual (sunni disfranchisement25) tornaria-se uma das principais causas da
ascenção do ISIS, de acordo com diversos analistas de segurança internacional.
23
Do inglês para Aliança Unida Iraquiana.
Do inglês para Aliança do Curdistão.
25 Do Inglês para “privação de direitos sunitas”.
24
25
1.2
Jamaat al-Tawhid wal-Jihad
O Estado Islâmico tem sua origem em um obscuro grupo, chamado “Jamaat al-
Tawhid wal-Jihad26” (JTJ), liderado pelo jordaniano Abu Musab al-Zarqawi. O JTJ foi
uma organização militante jihadista criada na Jordânia em 1999. Sabe-se que alZarqawi e o antigo líder da al-Qaeda (AQ), Osama bin Laden, tiveram contato após a
invasão soviética ao Afeganistão (ZELIN, 2014).
De acordo com Gambill (2004), al-Zarqawi eclipsou bin Laden como inimigo
número um durante a guerra ao terror no Iraque, embora fosse
(...) menos capaz que bin Laden em quase todos os sentidos, Zarqawi
ascendeu para se tornar o ‘emir27’ de grupos terroristas islâmicos no Iraque,
principalmente por sua perícia em networking com outras organizações. Por
mais que talvez não seja o grande mentor terrorista que a mídia demonstra,
Zarqawi foi responsável por forjar as linhas básicas de uma estratégia que
‘descarrilhou’ a transição política iraquiana pós-guerra.28 (GAMBILL, 2004; p.
1)
Zarqawi (figura 4) nasceu com o nome de Ahmad Fadil Nazal al-Khalaylah, em
outubro de 1966, de uma família modesta na cidade de Zarqa, na Jordânia, há 16
milhas noroeste de Amman. Contrariando as notícias, Zarqawi não é descendente de
palestinos; o clã Khalaylah pertencia a tribo beduína Bani Hassan que era leal a família
real jordaniana Hashemita. O pai de Zarqawi foi o líder tribal local e morreu em 1984,
deixando uma pequena pensão para sua esposa e suas seis filhas e quatro filhos
(GAMBILL, 2004).
Após a morte de seu pai, Zarqawi ficou devastado e aos dezessete anos o
mesmo abandonou a escola e decaiu ao abuso de álcool, drogas e a violência nas
ruas de Zarqa. Logo teve que fugir das autoridades e foi preso por porte de drogas e
violência sexual. Ironicamente, foram suas atividades criminais que o levaram a ter
contato com outros muçulmanos marginalizados em um campo de refugiados
palestino, onde ele foi exposto ao salafismo radical. Lá, ele logo foi influenciado pela
Jihad: “Significa literalmente, “esforço” ou “luta”, mas tal esforço pode, após séculos de mudanças
religiosas, políticas e sociais, significar qualquer coisa, desde a reza individual até ações sociais que
levam à guerra. Esta última interpretação, “guerra santa”, é, obviamente, uma doutrina compartilhada
e mutualmente reforçada pelo cristianismo e judaísmo.” (HALLIDAY, 2005)
27 Emir: Título dado a vários líderes árabes.
28 [Tradução livre] No texto original lê-se: “Less gifted than bin Laden in nearly every way, Zarqawi rose
to become the "emir" of radical Islamist terror groups in Iraq largely on the strength of his networking
skills. While probably not the terrorist mastermind he is often made out to be, Zarqawi is responsible for
forging the broad outlines of a seemingly effective terrorist strategy for derailing Iraq's postwar political
transition.
26
26
ideologia e abandonou as drogas e álcool. Após ser liberto, adquiriu um posto clerical
em seu município, onde se casou com uma de suas primas.
Figura 4 – Abu Musab al-Zarqawi
Fonte: http://www.cbsnews.com/news/rebels-top-iraq-terrorist-dead/
Anos depois, em 1989, após as tropas soviéticas abandonarem o Afeganistão,
o mesmo abandonou sua família e foi a Kabul, onde desejava testemunhar o
estabelecimento do primeiro Estado Islâmico Sunita. Entretanto, o que presenciou
foram os mujahideen29 fragmentarem-se em grupos tribais e étnicos, incapazes de
realizar o coup de grace no governo secular soviético, instalado três anos antes.
Supõe-se que Zarqawi participou de alguns ataques, mas ele trabalhou principalmente
em uma revista radical islâmica durante esse período (GAMBILL, 2004).
Em 1991, ele passou grande parte de seu tempo em Peshawar, no Paquistão,
cidade que era um centro de voluntários árabes indo para o Afeganistão, mas que
nesse momento estava repleto de combatentes desiludidos, debatendo o que fazer a
seguir. Foi ali que Zarqawi encontrou o Xeique Abu Muhammad al-Maqdisi30 (também
conhecido como Issam al-Barqawi), personagem que o influenciou profundamente
(GAMBILL, 2004).
Juntos estabeleceram uma rede chamada Bayat al-Imman, que tinha o
propósito de organizar guerreiros veteranos afegãos e jordanianos. Após a queda de
Kabul em 1992, os líderes mujahideen voltaram-se contra si, e Zarqawi e Maqdisi
voltaram para a Jordânia para prepararem-se para uma jihad próximo de casa.
29
Guerrilheiros muçulmanos, especificamente aqueles que lutam contra forças não-islâmicas.
O jordaniano-palestino Abu Muhammad al-Maqdisi é considerado um dos mais importantes idealistas
da jihad vivo, e é independente de grupos terroristas (MCCANTS, 2006).
30
27
Quando voltou ao seu país de origem, ele começou a condenar publicamente
o governo e denunciar os clérigos que o suportavam, além de estocar munição,
armamentos e explosivos em sua própria casa, o que Gambill (2004) demonstra que
não foi uma boa ideia. Em 1994, forças de segurança invadiram sua casa e
descobriram seu armamento e Zarqawi foi levado preso. Zarqawi foi levado a corte
por fazer parte de uma organização ilegal e por porte de armas, o que talvez não seja
tão grave se ele tivesse sido respeitoso com os juízes, o que ele não foi. Ele foi
novamente sentenciado a prisão e trabalho forçado por quinze anos. Logo, Maqdisi
se juntou a ele.
Na prisão, Zarqawi serviu como executor e braço direito de Maqdisi, que pouco
depois tornou-se o líder espiritual dos outros prisioneiros. Entretanto, a posição mais
agressiva de Zarqawi gerou problemas entre os dois, e o pupilo ganhou mais poder
que o clérigo. De acordo com Kirdar (2011), a posição de liderança agressiva de
Zarqawi e seu carisma adquiriram um apelo quase hipnótico sobre seus seguidores.
Ele ficou aprisionado até 1999, quando o rei Abdullah II sobe ao poder e decreta
a anistia geral de prisioneiros. Logo após sua saída da prisão, Zarqawi foi apresentado
a Seif al-Adel, um dos chefes de segurança da al-Qaeda, e, impressionado com suas
motivações e carisma, este tornou-se o contato entre a Bayat al-Imman e al-Qaeda
(KIRDAR, 2011).
Meses após sua libertação, Zarqawi abandonou a Jordânia e voltou ao
Afeganistão, onde teve seu primeiro contato com Osama bin Laden, em Kandahar.
Nesse momento sua organização mudou de nome para Jamaat al-Tawhid wal-Jihad,
e abandonou o foco na derrubada da monarquia jordaniana, em parte porque seus
operativos demonstravam interesse muito maior em atacar judeus e europeus
(GAMBILL, 2004).
Em Herat no Afeganistão (figura 5), Zarqawi desejava ter seu próprio campo de
treinamento, utilizando-se dos seguidores libertos da prisão que estava. Zarqawi não
possuía os mesmos recursos que bin Laden, portanto, este o concedeu uma modesta
quantia de dinheiro ($5,000 dólares, de acordo com Kirdar) para que se estabelecesse
(através de Adel). Entretanto, de acordo com Zelin (2011), al-Zarqawi localizava-se
longe das bases de bin Laden e possuía uma agenda distinta da al-Qaeda. É sabido
que Osama tentou cooptar Zarqawi através de uma bay’ah31, mas foi recusado
31
Juramento islâmico de lealdade a um líder religioso (BURCKHARDT, 2008; p. 7).
28
repetidamente. Durante esse tempo, é suposto que JTJ possuía entre 2,000 a 3,000
membros, sendo a maioria deles do Levante sírio (KIRDAR, 2011).
Figura 5 – Mapa de Herat, no Afeganistão
Fonte: http://www.npr.org/2010/11/18/131421485/even-in-calm-corner-of-afghanistan-future-is-murky
A escolha de manter uma base em Herat foi significante, pois permitia-o
atravessar as fronteiras através de um sofisticado sistema ferroviário subterrâneo que
ligava o campo em Herat à cidade iraniana Mashhad, ao leste. Mas em 2002, dois
terroristas da JTJ foram capturados tentando entrar na Alemanha, e pouco depois teve
que se realocar para o Iraque (GAMBILL 2004).
Zarqawi possuía uma ideologia conflitante com bin Laden, já que ele acreditava
que a legitimidade da liderança da organização deveria ser baseada em vitórias nos
frontes de batalha, e não nos bastidores. E isso o pôs novamente em conflito com seu
mentor espiritual, al-Maqdisi.
No final da década de 90 e início dos anos 2000, o objetivo da al-Qaeda era
realizar uma proxy war32 no Cáucaso, em uma tentativa de liberar o que eles
acreditavam ser território muçulmano. Já a JTJ buscava liberar a Jordânia de sua
monarquia, esperando que o resto do Levante os seguisse. Embora, com o passar do
tempo, os objetivos de ambas organizações mudaram (ZELIN, 2011).
Nos anos que sucederam a invasão americana ao Afeganistão, em 2001, há
relatos de que Zarqawi esteve no Irã, Iraque e Síria buscando novos jihadistas para
seu grupo, ativamente evitando países em que a coalisão da OTAN estava sendo mais
ativa, como o Afeganistão (CORERA, 2005).
32
Proxy War é uma guerra instigada por atores externos, onde os próprios não participam diretamente
(CRAIG, 2010).
29
De acordo com Kirdar (2011), Adel encorajou Zarqawi a ir ao norte do Iraque,
no Curdistão, onde encontrou-se com o Ansar al-Islam, grupo terrorista que manteve
laços estreitos. Nesse meio tempo, Adel continuou mantendo o fluxo de terroristas da
Síria ao Iraque.
A JTJ tornou-se o principal canal de tráfico de armas e de terroristas
estrangeiros para o Iraque e região, talvez pela antecipação da invasão norteamericana. Neste momento, nas palavras de Kirdar (2011; p. 3), Abu Musab alZarqawi “(...) tornou-se o real emir dos terroristas islâmicos no Iraque”.
Antes da invasão americana ao Iraque, em coordenação com a al-Qaeda
central, Zarqawi começou a mobilizar suas forças e capital, montando redes de
inteligência, bases, safe houses, armamentos; efetivamente preparando uma
armadilha para as forças invasoras. Nesse momento ele delineou uma estratégia em
quatro pontos (KIRDAR, 2011; GAMBILL, 2004).
O primeiro ponto era pressionar outros atores internacionais a abandonar seu
suporte a invasão americana ao Iraque. Isso foi feito através do atentado com um
caminhão-bomba que explodiu o Canal Hotel, que foi a base de operações das
Nações Unidas em Bagdá, em outubro de 2003; matou vinte e duas pessoas, incluindo
o representante-chefe da missão no país, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, e feriu
mais de cem.
Este ataque efetivamente retirou as forças terrestres da ONU no Iraque. Os
outros alvos foram a embaixada jordaniana em Bagdá e a base da força paramilitar
italiana em Nasiriyah.
A segunda parte de sua estratégia foi montada para impedir que iraquianos
apoiassem a transição de governo americana. Assim, ele direcionou seus ataques
para delegacias de polícia e centros de recrutamento, matando centenas de pessoas,
incluindo vários políticos iraquianos.
A terceira parte foi obstruir a reconstrução iraquiana, através do sequestro e
decapitação de construtores civis, trabalhadores humanitários e outros estrangeiros;
distribuindo os vídeos das execuções na internet. Foi a JTJ que começou com esse
tipo de terrorismo, com a decapitação do construtor americano Nicholas Berg, ato
realizado pelo próprio Zarqawi, como retaliação ao vídeo de Abu Ghraib33, que
33
A prisão de Abu Ghraib, também conhecida como Prisão Central de Bagdá, foi um centro correcional
no Iraque, fechado em 2014 por abuso de prisioneiros e violação dos direitos humanos.
30
mostrava a tortura e abuso de iraquianos pelo exército americano. Além de Berg, o
grupo terrorista assassinou outras 10 pessoas subsequentemente.
A quarta parte identificada de sua estratégia, foi uma série de atentados a
bombas às mesquitas xiitas, que mataram centenas de pessoas. Os ataques não
visavam punir ou deter, eram deliberadamente indiscriminados. Em uma carta para
bin Laden, Zarqawi explica seu objetivo
Alvejando e atacando seus símbolos religiosos, políticos e militares, iremos
fazer com que eles mostrem sua raiva contra sunitas e sua vontade de
vingança. Se formos bem sucedidos em arrastá-los à uma guerra sectária,
isso irá acordar os sunitas adormecidos que estão preocupados com a
destruição e morte.34 (GAMBILL, 2004; p. 1)
Essa ideologia sectarista tornou-se uma das táticas mais importantes, e
usadas, para aquisição de cidades e de maior território pelo Estado Islâmico, como
será explicado no capítulo 2.
Em outro pronunciamento, este explicitamente religioso, Zarqawi fala que
Nós lutaremos pela causa de Deus até que Sua sharia prevaleça. O primeiro
passo será expulsar o inimigo e estabelecer o Estado do Islã. Após, iremos
buscar reconquistar os reinos muçulmanos e restaurar a nação islâmica... Eu
juro a Deus que mesmo que os americanos não tivessem invadido nossas
terras junto com os judeus, os muçulmanos ainda teriam que realizar a jihad
e lutar contra o inimigo, até que somente a sharia de Deus todo-poderoso
prevaleça ao redor do mundo... Nosso projeto político é expulsar esse inimigo
saqueador. Esse é o primeiro passo. Após nosso objetivo é espalhar a sharia
de Deus ao redor do globo...35 (HASHIM, 2014; p. 4)
Com isso, Zarqawi e a JTJ começou a tornar-se conhecido, através de
decapitações e atentados com carros bombas contra minorias xiitas e sunitas que o
opuseram. Dentre as casualidades entre os xiitas, estava Sayyid Muhammad al-Hakin
um proeminente líder religioso da cidade santa de Najaf (KIRDAR, 2011). Como
resultado dessa campanha, houve um influxo de jihadistas em seu grupo (ZELIN,
2011).
[Tradução livre] No texto original lê-se: “Targeting and striking their religious, political, and military
symbols, will make them show their rage against the Sunnis and bear their inner vengeance. If we
succeed in dragging them into a sectarian war, this will awaken the sleepy Sunnis who are fearful of
destruction and death."
35 [Tradução livre] No texto original lê-se: We will fight in the cause of God until His shari’ah prevails.
The first step is to expel the enemy and establish the state of Islam. We would then go forth to reconquer
the Muslim lands and restore them to the Muslim nation…I swear by God that even if the Americans
had not invaded our lands together with the Jews, the Muslims would still be required not to refrain from
jihad but go forth and seek the enemy until only God Almighty’s shari’ah prevailed everywhere in the
world…Our political project is to expel this marauding enemy. This is the first step. Afterwards our goal
is to establish God’s shari’ah all over the globe…
34
31
Enquanto os métodos brutais de Zarqawi apelaram para muitos sunitas
radicais, eles passaram a levantar uma controversa bastante considerável no mundo
islâmico. Líderes de grupos de insurgência menores reclamavam da brutalidade,
argumentando que isso diminuía a simpatia internacional por sua causa. A Associação
de Muçulmanos no Iraque condenou repetidamente as atrocidades cometidas contra
reféns estrangeiros como violação da lei islâmica (GAMBILL, 2004; p. 1).
A defesa de Zarqawi era de que o profeta Maomé ordenou a morte dos
prisioneiros da Batalha de Badr (que aconteceu no século VII), mas esse argumento
não conseguiu convencer os clérigos islâmicos. O famoso clérigo egípcio Yusuf alQaradawi, comparou Zarqawi com os antigos Kharijitas “que rezam e jejuam o tempo
todo... Mas leem o Corão, sem compreendê-lo”36 (GAMBILL, 2004; p. 1).
O genocídio de xiitas que a JTJ empreendia confundia muitos observadores, já
que Zarqawi era suspeito de ter laços com a inteligência iraniana, embora seu portavoz tenha sido dito que na verdade essas atrocidades tinham sido cometidas pela
inteligência israelita (GAMBILL, 2004).
Em maio de 2003, a Coalition Provisional Authority37 (CPA) instaurou a CPA
Order Nº 1, que barrava membros do partido Ba’ath de assumirem cargos
governamentais; e a CPA Order Nº 2, que debanda o exército iraquiano (250,000
pessoas). A ordem Número Dois fez com que muitos militares (agora desempregados)
se juntassem e formaram o centro da insurgência iraquiana (KIRDAR, 2011).
Essa base de insurgentes aumentou ainda mais pelo chamado de líderes
muçulmanos ao redor do mundo para viajarem ao Iraque e se engajassem em uma
“jihad defensiva”. Até mesmo parte do regime Baath (que reprimia o extremismo
religioso) estavam encorajando e facilitando esse fluxo de guerrilheiros. Há uma certa
legitimidade nesta jihad defensiva, afinal, é um pedido para que muçulmanos
defendam seu território da invasão ilegal americana (já que ela não tinha sido
aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU).
Encorajados pela vontade da Força Multinacional38 na negociação de um
cessar fogo, após a primeira batalha de Faluja em junho de 2004; os líderes islâmicos
36
[Tradução livre] No texto original lê-se: "who used to pray and fast all the time... but read the Qur'an
without understanding it."
37 A Coalition Provisional Authority, ou CPA, foi o governo de transição instaurado pela Força
Multinacional (MNF; composta pelos EUA, Reino Unido, Austrália e Polônia), com objetivo de derrubar
o governo de Saddam Hussein no Iraque.
38 Ou MNF (Multi National Force), era o comando militar da Invasão do Iraque de 2003.
32
radicais começaram a impor um “reino teocrático de terror”, distribuindo panfletos que
demandavam total submissão com seus decretos e listavam nomes de colaboradores
marcados para execução (KIRDAR, 2011).
De acordo com Kirdar (2011) naquele mês, em uma cerimônia feita em Fallujah,
os mujahideen locais juraram lealdade a Zarqawi, o emir do “Califado Islâmico em AlFallujah”.
Com o aumento de sua influência a JTJ passou a tornar-se um dos principais
grupos terroristas do Iraque, e começou a ameaçar a posição da al-Qaeda na região.
Dessa forma, após oito meses de negociações com bin Laden, em outubro de 2004,
Zarqawi juramentou a bay’ah e renomeou sua organização para Tanzim Qaidat alJihad fi Bilad al-Rafidayn39, também conhecida como al-Qaeda na Terra dos Dois Rios
(ou al-Qaeda no Iraque; AQI).
1.3
Al-Qaeda no Iraque
No Iraque, e agora em comando da al-Qaeda no Iraque e com maior quantidade
de recursos, assim como controle do fluxo de guerrilheiros jihadistas, Zarqawi ganhou
maior confiança de células terroristas. Isso foi importante, pois, a AQI controlava
grande parte dessas redes terroristas informais, e a próxima geração de terroristas
dependiam de tal confiança.
De acordo com Zelin (2014, p. 3; apud FISHMAN, Brian), a maior diferença
ideológica entre bin Laden e Zarqawi era em respeito à ummah40, onde o primeiro
acreditava que os problemas vinham de organizações seculares e elas deveriam ser
mudadas, enquanto o posterior acreditava que que o único modo de salvar a ummah
era através da limpeza de heresias (que Zarqawi acreditava ser o xiismo, o
secularismo e outras formas de islamismo que não fosse sunita ou salafita, além do
cristianismo, judaísmo, etc.).
Para o porta-voz oficial da AQI, Abu Maysara al-Iraqi, os objetivos da
organização eram
39
40
I.
Remover os agressores do Iraque;
II.
Afirmar o Tawhid, a unidade de Deus entre muçulmanos;
Do árabe para “Organização Base da Jihad no Iraque”.
Paradigma conceitual de uma comunidade islâmica global. (HALLIDAY, 2005; p. 216)
33
III.
Propagar a mensagem que “não há deus além de Deus” a todos os
países onde o Islã não está presente;
IV.
Promover a Jihad para liberar os territórios de infiéis e heréticos;
V.
Lutar contra o taghut41 em países islâmicos;
VI.
Estabelecer um Califado, no qual a sharia é a lei suprema, da mesma
forma que o profeta Maomé o fez;
VII.
Propagar o monoteísmo na Terra, limpando-a do politeísmo,
governando-a de acordo com as leis de Deus. (HASHIM, 2014)
Nesse período, houve um aumento notável em ataques contra alvos xiitas por
terroristas sunitas, de forma que, após a derrota que os insurgentes sofreram na
segunda batalha de Fallujah em novembro de 2004, aumentou as tensões sectárias,
como era o objetivo da JTJ. Em um pronunciamento, Zarqawi falou que “A batalha de
Fallujah removeu a máscara horrenda dos malditos Rafidha42, cujo ódio [contra
sunitas] se manifestou na batalha” (KIRDAR, 2011).
Figura 8 – Territórios dominados pela al-Qaeda no Iraque em dezembro de 2006.
Fonte: http://www.dailykos.com/story/2014/10/04/1334294/-Three-maps-that-explain-Iraqi-s-dilemma
41
Termo árabe para se referir ao ato de rebeldia ou de cruzar os limites. Na terminologia islâmica referese ao idolatrar outro Deus além de Alá.
42 Termo depreciativo usado por sunitas extremistas, ao se referir aos xiitas.
34
A divisão sectária também se manifestou nas eleições de 30 de janeiro de 2005,
que culminou em um boicote sunita da mesma. No futuro, tal boicote foi um “erro de
proporções históricas”, como muitos sunitas admitiram.
Entretanto, a frustação com os métodos de Zarqawi aumentava, de forma que
em 2005, o Xeique Atiyat Allah Abd al-Rahman al-Libi e o líder interino da al-Qaeda,
Ayman al-Zawahiri, em duas cartas aconselhavam que Zarqawi deveria diminuir a
violência e a aplicação pesada e agressiva da sharia43, argumentando que esta estaria
alienando sunitas e prejudicando seus objetivos a longo prazo. Zawahiri o lembrou
“que nós estamos em guerra, e que mais da metade dela está sendo lutada através
da mídia” (ZELIN, 2014, p. 2; KIRDAR, 2011, p.4). No decorrer desse ano, e no ano
seguinte, a AQI estabeleceu domínio sobre um grande território, como mostrado na
figura 8.
Em novembro de 2005, o desgosto contra Zarqawi e seu grupo chegou no nível
máximo, após a AQI coordenar três ataques contra três hotéis em Amman, na
Jordânia, que matou 60 pessoas, onde a maior parte deles era muçulmanos
participando de uma festa de casamento. Após o atentado, mais de 100,000
jordanianos foram às ruas entoando “Zarqawi, seu covarde, o que o trouxe aqui?”
(KIRDAR, 2011).
A repercussão foi tamanha, que para diminuir a visibilidade negativa que a AQI
estava recebendo, o grupo tornou-se subordinado a uma organização guarda-chuva,
chamada Mujahideen Shura Council (MSC), formada em conjunto com outros cinco
grupos terroristas, liderados por um conselho dos líderes de cada, sendo que Zarqawi
foi excluído.
Apesar da tentativa de retomar a liderança de sua organização, Zarqawi
manteve teve sua influência diminuída, até sua morte em 2006 por um ataque aéreo
americano.
1.4
Mujahideen Shura Council
O Mujahideen Shura Council (MSC), foi uma organização guarda-chuva
composta por seis grupos insurgentes radicais islâmicos, criada com objetivo de tomar
para si a autoridade política do Iraque, caso os EUA e seus aliados se retirassem do
43
Sharia: Sistema legal islâmico, derivado dos preceitos religiosos contidos no Corão e no Hadith.
35
país (FISHMAN, 2011). Além disso, a pedido de Zawahiri, o grupo deveria ser liderado
por um iraquiano.
De acordo com Sookhdeo (2007, p. 83), a organização era composta pelos
seguintes grupos:

al-Qaeda no Iraque, liderado por Abu Ayyub al-Masri (após a exclusão de
Zarqawi);

Jaish al-Ta'ifa al-Mansurah ou Army of the Victorious Sect, liderado pelo xeique
Abu Omar al-Ansari;

Ansar al-Tawhid Brigade;

Islamic Jihad Brigades;

Strangers Brigades;

Calamites Brigades;

E posteriormente houve a entrada de Jaish Ahlul Sunna wal-Jama‘a.
A liderança geral do conjunto de grupos foi dada Abu Omar al-Bahgdadi,
enquanto o atual líder do ISIS, Abu Bakr al-Bahgdadi era responsável pelo comitê da
Shariah (TOMÉ, 2015).
Entretanto, como Hashim (2014) explica, o MSC falhou em dois níveis distintos:
1) Muitos dos insurgentes iraquianos locais não estavam interessados na ideologia
expansiva da al-Qaeda, eles estavam focados em, simplesmente, retirar os
invasores de seu país;
2) A tentativa da MSC de recrutamento de sunitas nacionalistas e seculares foi
seriamente prejudicado pelas táticas violentas usadas contra civis pelo grupo de
Zawarqi, a AQI, em sua busca para implementar sua visão deturpada do Islã.
A incapacidade de recrutamento e seu histórico de violência contra árabes
sunitas levaram o MSC e a al-Qaeda a uma divisão cada vez mais evidente. Nesse
momento, outra figura proeminente ascendeu como líder da al-Qaeda no Iraque (que
estava se distanciando da al-Qaeda original), o egípcio Abu Ayyub al-Masri, que após
se tornaria um dos principais fundadores do ISIS, juntamente com Abu Omar alBaghdadi e, posteriormente, Abu Bakr al-Baghdadi.
36
2. O ESTADO ISLÂMICO MODERNO
O fracasso do Mujahideen Shura Council (MSC) em 2006 de manter os grupos
sunitas insurgentes sob sua bandeira ideológica, e o ataque aéreo realizado pela
coalizão americana que matou Abu Musab al-Zarqawi (o líder anterior da al-Qaeda no
Iraque) em junho do mesmo ano foram fortes golpes contra a organização, adicionado
às dificuldades em adquirir apoio popular e o desejo da AQI de instaurar um governo
similar ao do Taliban44, isto demonstrou para a liderança do grupo uma necessidade
maior de uma reforma interna (KIRDAR, 2011).
Após a morte de Zarqawi, a organização estrutural do MSC e da AQI foram
reformadas e tornaram-se mais burocráticas e institucionalizadas, embora nesse
momento o grupo ainda tinha forma de uma organização terrorista, portanto tal
reforma tinha características mais cosméticas do que reais. Entretanto, foi nesse
interim que começou-se a pensar em state-building45.
Dessa forma, Abu Omar al-Baghdadi tornou-se o líder do MSC e o egípcio Abu
Ayyub al-Masri foi escolhido para liderar a AQI. Sob a liderança de al-Masri, a AQI
logo saiu de seu momento de instabilidade, consolidando sua posição e ganhando
mais confiança. Crucialmente, al-Masri nunca prometeu lealdade à al-Qaeda Central.
Em contraste, alguns meses depois, quando o MSC mudou seu nome para Estado
Islâmico do Iraque (ISI), al-Masri imediatamente jurou lealdade a Abu Omar alBagdadi, através de uma baya.
É importante ressaltar, tanto sob a liderança de Zarqawi, quanto sob al-Masri,
a AQI estava longe de ser obediente das ordens da al-Qaeda Central (AQC). Tais
ordens eram frequentemente ignoradas, principalmente no que se refere a campanha
anti-xiita que Zarqawi tinha começado, que a AQC era contrária. Além disso, a AQC
não reconheceu o início dessa divisão entre os grupos, tanto que a mesma ainda
44
O Taliban foi uma organização sunita insurgente, composta por líderes religiosos e intelectuais
islâmicos que lutaram contra a invasão soviética do Afeganistão em 1989. Em 1994, o Taliban formou
a República Islâmica do Afeganistão e utilizava-se do wahabismo e da sharia como ideologias
principais. O regime tornou-se conhecido ao proteger membros da al-Qaeda, como Osama bin Laden;
e em 2001, após o ataque às Torres Gêmeas, os EUA depuseram o regime, e, em 2002 instauraram
um governo provisório chamado Afghan Transitional Government (Taliban." In The Oxford Dictionary of
Islam.
Ed.
John
L.
Esposito.
Oxford
Islamic
Studies
Online.)
http://www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t125/e2325
45 State-building (do inglês para construção de estado) é caracterizado pela “emergência de pessoal
especializado, controle sobre o território consolidado, lealdade, durabilidade e permanência de
instituições, com um estado autônomo que possuí controle sobre o monopólio da violência sobre uma
determinada população” (TILLY, 1975; p. 70).
37
acreditava que mantinha sua autoridade sobre a organização, e que ela estava sendo
somente desobediente ou que suas mensagens não estavam chegando à liderança
do MSC e da AQI (FEAKIN, WILKINSON, 2015).
Entretanto, apesar dessa aparente mudança de foco, foi entre o ano de 2006 e
2007 que houve o maior número de casualidades civis durante toda a década,
chegando ao auge em julho de 2006 onde 3298 civis iraquianos mortos (figura 9).
Figura 9 – Morte de civis iraquianos de março de 2003 a julho de 2010.
Fonte: BBC News46
2.1.
O Despertar de al-Anbar
No final de 2006, um fenômeno incomum aconteceu na província de al-Anbar
no oeste do Iraque (ver figura 1), onde devido as políticas terroristas e sectárias da
AQI, os xeiques e líderes tribais da região se aliaram à coalisão americana para
derrotar os jihadistas. Esse movimento se chamou “Sahwa”, ou “Despertar”, e no seu
auge uniu cerca de 100 mil militantes contrários a AQI. E isso aconteceu no coração
do jihadismo iraquiano.
Enquanto a AQI aumentava seu posto e sua influência na capital da província
de al-Anbar, Ramadi, e apesar dos líderes e xeiques inicialmente aceitarem as
políticas anti-xiitas aplicadas pela organização, durante o passar do ano de 2006, as
relações entre as tribos locais sunitas e jihadistas tornaram-se cada vez mais
conflitantes (PHILLIPS, 2009).
Três fatores foram importantes para essa cisão e para o aumento do
descontentamento e da violência dos militantes de al-Anbar contra a AQI. Foram eles:
46
Disponível em: http://www.bbc.com/news/world-middle-east-11107739 Acessado em: 11/10/2015.
38
1)
O interesse dos grupos jihadistas em se mesclarem à sociedade local, casando
seus membros com famílias proeminentes da região. Enquanto essa é uma prática
comum de jihadistas para adaptarem-se à sociedade local, nesse caso, tal prática foi
contraprodutiva, pois as tradições familiares locais não permitiam o casamento com
pessoas de fora das tribos. Tal ação era um tabu cultural, e gerou muita resistência
na região.
2)
Outro motivo foi que a AQI tentou forçar e coergir o mercado negro e criminal
da região, que era uma fonte de lucro para algumas tribos. Isso gerou um forte
incentivo materialista para o conflito contra os jihadistas, já que muitas tribos
utilizavam-se do tráfico e bandidagem para se enriquecer, e a tentativa da AQI de
usurpar esse mercado criminal aumentou a tensão na região.
3)
A terceira razão tida para o conflito foi a tentativa de imposição da agenda social
e política da AQI. As imposições salafistas puritanas de cunho moral, religioso e
ideológico, como a quebra de dedos para fumantes e o assassinato de mulheres que
recusavam-se de vestir o niqab47, e a proibição de práticas religiosas que o grupo
definia como não-islâmicas (como a veneração de tumbas e mausoléus). Além disso,
a tentativa da AQI de obrigar os líderes tribais a se conformarem com as regras
salafistas alienaram ainda mais a população local (PHILLIPS, 2009).
Estas razões, juntamente com o atentado a bomba contra a mesquita de alAskari48 na cidade de Samarra no Iraque, tinham objetivo de inflamar um maior
sectarismo na região. Tanto que, em agosto de 2006, o presidente americano George
W. Bush afirma que “(...) ficou muito claro – ao menos as evidencias indicam – que o
ataque a bombas ao santuário [mesquita de al-Askari] foi uma ação da Al Qaida, com
pretensão de criar violência sectária49” (BUSH, 2006).
Esses pretextos levaram a uma diminuição do apoio da comunidade sunita da
região a AQI, o que, juntamente com os conflitos ideológicos que estavam ocorrendo
com a al-Qaeda Central levaram a criação do Estado Islâmico do Iraque.
47
Do árabe para nicabe, é uso do véu cobrindo parte (ou todo) o rosto de mulheres na península arábica
e em outras partes do oriente médio. Comumente confundido com a burca, que cobre o corpo inteiro.
48 A mesquita de al-Askari na cidade de Samarra, é uma das mesquitas mais sagradas para o islã xiita
no Iraque, apenas superada pelas mesquitas de Najaf e Karbala, e é considerada um patrimônio
importante mesmo para muçulmanos sunitas da região.
49 [traduzido do inglês]: “it's pretty clear -- at least the evidence indicates -- that the bombing of the shrine
was an Al Qaida plot, all intending to create sectarian violence.” (BUSH, 2006)
39
2.2.
O Estado Islâmico do Iraque
O Estado Islâmico do Iraque (ISI, figura 10) teve início após o distanciamento e
rompimento final com a al-Qaeda Central, após a tentativa do MSC de melhorar sua
recepção com a população árabe sunita, que, como visto anteriormente, não obteve
sucesso algum.
Figura 10 – Bandeira do Estado Islâmico do Iraque e do Levante
Fonte: Monthly Review Magazine50
Continuando o que o MSC e a AQI iniciaram, o ISI focou-se em state-building
mais intensamente que as organizações anteriores. Tanto que, em 2007, Abu Omar
al-Baghdadi instaurou diversos ministérios: o ministério principal, o ministério da
guerra, o ministério de relações públicas, o ministério de segurança pública, o
ministério da mídia, o ministério do óleo, o ministério do comitê da Sharia, o ministério
dos mártires e prisioneiros, o ministério da agricultura e pesca e o ministério da saúde
(TAMINI, 2015).
Além disso, para manter a aparência de ser um estado tecnocrata, o ministério
do óleo tinha como chefe um engenheiro e o da saúde era chefiado por um professor
de medicina; e todos os ministros eram de nacionalidade iraquiana, exceto pelo
egípcio al-Masri (ex-líder da AQI, agora ministro da guerra do ISI).
Mas, como Al-Tamini questiona, o quanto esses ministérios tinham
funcionalidade de fato? Hashim (2014) responde que os jihadistas não possuíam os
recursos (agora distantes de seu primo rico, al-Qaeda), nem mão-de-obra suficiente
para cobrir o território que desejavam. Ademais, a morte de Zarqawi não diminuiu ou
refreou a crueldade e violência do grupo, que alienaram os possíveis apoiadores de
sua causa (como a al-Qaeda Central os tinha avisado anteriormente).
50
Disponível em: http://mrzine.monthlyreview.org/2011/syria231211.html Acesso em 11/10/2015.
40
Em 2006, a AQI passou a controlar Baqubah, a capital da província de Diyala,
e em março de 2007, o (agora renomeado) Estado Islâmico do Iraque anunciou
Baqubah como sua capital (mostrado na figura 11). Também possuíam territórios em
al-Anbar, de Faluja a Qaim (LEWIS, 2014).
Figura 11 – Territórios controlados pelo Estado Islâmico do Iraque em dezembro de 2006
Fonte: Institute for the Study of War
2.2.1. A derrocada do Estado Islâmico do Iraque e o movimento Sahwa
Além dos problemas que o ISI estava enfrentando, o movimento militante
Sahwa continuou sendo uma grande atribulação, ainda mais quando o governo recém
instaurado de al-Maliki prometeu aos mesmos a possibilidade de serem integrados às
forças de segurança do Estado do Iraque após a transição política. O movimento
Sahwa, juntamente com as forças da coalizão mostraram-se ser mais capazes do que
o esperado e em 2007, o ISI anunciou que estava em um estado de “crise
extraordinária” (HASHIM, 2014; p. 6).
Nesse mesmo ano, notando a mudança na recepção do ISI pela população, os
EUA alteraram sua política anti-insurgência, ajudando os militantes do Sahwa. Em
2007 e 2008, os americanos patrocinaram uma proxy war pagando mais de US$ 150
milhões em armamento e treinamento aos “rebeldes moderados”. Com essa ajuda, os
41
USA e os militantes do Sahwa rapidamente prevaleceram sobre o ISI e os expulsaram
de suas principais províncias no Iraque (PHILLIPS, 2009).
Além disso, o presidente George W. Bush tinha, durante esse ano e o seguinte,
aumentado seu contingente de tropas na região significativamente. Em 2007, o
número de tropas na região chegou a seu pico com mais de 170 mil soldados, esse
aumento de tropas ficou conhecido como “surge”.
Figura 12 – Número de soldados americanos no Iraque, de março de 2003 a dezembro de 2011
Fonte: BBC News51
Em janeiro de 2008, a Multi-National Force estabeleceu a operação Phantom
Phoenix, que tinha objetivo de proteger as nove maiores cidades iraquianas (com
ênfase em Bagdá), e destruir diversos esconderijos e o restante dos jihadistas do ISI.
O líder da operação, general Raymond T. Odiermo (2008) afirmou que
Trabalhando proximamente com a força de segurança iraquiana, nós iremos
buscar a al-Qaeda e outros extremistas onde quer que eles procurem
santuário, [Phantom Phoenix] sincronizará efeitos letais e não-letais para
explorar os recentes ganhos de segurança e desfazer as zonas de suporte
terroristas e os [centros de] comando e controle... [A operação irá incluir] uma
série de articulações entre os níveis de brigadas e divisões iraquianas e da
coalisão para buscar e neutralizar o restante da al-Qaeda no Iraque e outros
extremistas. [em adição], os aspectos não-letais desta operação foram
projetados para melhorar a entrega de serviços essenciais, desenvolvimento
econômico, e capacidade de governança local. 52
51
Disponível em: http://www.bbc.com/news/world-middle-east-11107739 Acessado em: 11/10/2015.
[Traduzido do inglês]: Working closely with the Iraqi Security Forces, we will continue to pursue alQaeda and other extremists wherever they attempt to take sanctuary. [Phantom Phoenix] will
synchronize lethal and non-lethal effects to exploit recent security gains and disrupt terrorist support
zones and enemy command and control...[The operation will include] a series of joint Iraqi and Coalition
division and brigade level operations to pursue and neutralize remaining al-Qaeda in Iraq and other
extremists. [In addition], the non-lethal aspects of this operation are designed to improve delivery of
essential services, economic development and local governance capacity.
52
42
No final da operação, em julho do mesmo ano, 900 jihadistas tinham sido
mortos e 2,500 capturados, aparentemente destruindo o restante da organização. Ao
final de 2008, o ISI perdeu grande parte do seu suporte, tanto da população, quanto
logístico e material.
Figura 13 – Territórios controlados pelo Estado Islâmico do Iraque em dezembro de 2007
Fonte: Institute for the Study of War
Ao que parecia, o Estado Islâmico tinha sido derrotado, mas no início de 2009
(com a eleição do presidente Barrack Obama, que prometeu a retirada das tropas do
Iraque), as forças americanas passaram a deixar as cidades iraquianas, voltando o
controle delas às forças de segurança (e milícias do Sahwa) estabelecidas do Iraque
de al-Maliki. Em junho, as tropas da coalisão tinham saído das maiores cidades
iraquianas (passando a ficar somente em suas bases), com isso, o presidente Nouri
al-Maliki proclamou feriado nacional.
Em janeiro do mesmo ano, o ISI ofereceu um “ramo de oliveira 53” a outros
grupos extremistas islâmicos, indo ao limite de estender uma “mão do perdão54” para
aqueles que se aliaram aos americanos (LONDOÑO, 2009).
Na superfície, as forças iraquianas eram numericamente superiores e mais
capazes que os jihadistas, mas para a consternação do governo americano, o ISI
53
54
Expressão que simboliza um oferecimento de paz entre as partes em um determinado conflito.
[Do inglês para]: “hand of forgiveness”.
43
recuperou sua força e lançou um ataque conjunto com objetivo de enfraquecer o
governo iraquiano (HASHIM, 2014).
Com a diminuição das tropas da coalizão no Iraque, e a aparente derrotada do
ISI, o investimento no mantimento e pagamento dos soldados e militantes do Sahwa
diminuiu, e somando ao fato do governo de Maliki não ter cumprido sua promessa de
integração das milícias às forças de segurança. Havia um sentimento de sectarismo
contra as tribos sunitas pelo governo iraquiano, tanto que a população sunita
considerava al-Maliki como uma “marionete do Irã” (BENRAAD, 2011). Em 2010
menos da metade das milícias estavam atuando.
Essa quebra de confiança entre o governo iraquiano e o movimento Sahwa
serviu para os objetivos do ISI, já que a motivação de muitos dos membros do Sahwa
era econômica, é sabido que muitos deles se voltaram contra o governo aliando-se ao
ISI ao receber pagamentos melhores e promessa de maior apoio (BENRAAD, 2011).
Em julho e agosto de 2009, o grupo realizou diversos atentados contra a
infraestrutura recém reconstruída do governo e contra civis, que causou centenas de
mortes. Mas, em abril de 2010, o grupo sofreu um ataque significante, quando seu
líder, Abu Omar al-Baghdadi, e seu braço direito, Abu Ayyub al-Masri, foram mortos
em um ataque conjunto americano-iraquiano próximo da cidade de Tikrit. E em junho
do mesmo ano, é suposto que 80% da liderança original do grupo tinha sido morta ou
capturada, incluindo em grande parte recrutadores e financiadores (HASHIM, 2014).
A “decapitação” da liderança do ISI, deixou o grupo ainda mais fragilizado e em
estado de emergência, o que facilitou a ascensão do atual e mais bem sucedido líder
do grupo desde 1999, Abu Bakr al-Baghdadi.
2.2.2. Sobre Abu Bakr al-Baghdadi e o Campo Bucca
Pouco se sabe sobre Abu Bakr al-Baghdadi (figura 14), também conhecido por
seus seguidores como Califa Ibrahim, mas em julho de 2013, Turki al-Bilani, um
ideólogo bahrani, escreveu uma bibliografia do mesmo. Nela, supostamente é
afirmado que al-Baghdadi é um descendente do profeta Muhammad, uma das
principais qualificações na história islâmica para a aquisição o posto de califa (o líder
da ummah, e de todos os muçulmanos) (ZELIN, 2014).
44
É destacado que Baghdadi é descende da tribo al-Bu Badri, baseada em
Samarra e Diyala, ao norte e leste de Bagdá, respectivamente. De acordo com alBilani, al-Baghdadi recebeu seu PhD pela Universidade Islâmica de Bagdá, em
história e cultura islâmica, jurisprudência e Sharia. Após, ele passou a pregar na
mesquita de Ahmad Ibn Hanbal em Samarra (ZELIN, 2014).
Figura 14 – Abu Bakr al-Baghdadi, em sua primeira aparição pública em Mosul, julho de 2014.
Fonte: BBC News55
De acordo com Zelin (2014), apesar de Baghdadi não ter estudado nas
instituições religiosas sunitas mais reconhecidas (como a universidade islâmica de
Medina, na Arábia Saudita, por exemplo), ele possuiu uma educação mais profunda
que os líderes da al-Qaeda, bin Laden e Zawahiri; e isso o concedeu um maior nível
de legitimidade e respeito de seus seguidores.
Durante a invasão americana do Iraque em 2003, Baghdadi ajudou a
estabelecer a organização insurgente Jamaat Jaysh Ahl al-Sunnah wa-l-Jamaah56
(JJASJ), que operava em Diyala, Samarra e Bagdá. Ele foi o chefe do comitê da
Sharia.
Ironicamente, em fevereiro de 2004 ele foi preso por forças americanas, mas
solto em dezembro do mesmo ano, por não ser considerado um alvo de alto valor
(HASHIM, 2014; ZELIN, 2014; BARRET, 2014). Ele foi mantido no Campo Bucca57
por suspeita de possuir laços com a al-Qaeda, e passou pelo menos meio ano lá.
O Campo Bucca era um campo de prisioneiros dividido. De um lado se
encontrava os xiitas, do outro os sunitas. E supõe-se que foi ali que houve a maior
55
Disponível em: http://www.bbc.com/news/world-middle-east-27801676 Acessado em: 15/10/2015.
[Do árabe para]: the Army of the Sunni People Group (tradução não-literal para: O Exécito do Povo
Sunita).
57 [Traduzido do inglês]: Camp Bucca.
56
45
parte do contato entre os líderes do Estado Islâmico. Dessa forma, Barret (2014, p.
19) afirma que
A aliança entre os membros da AQI e ex-Ba’athistas também foi reforçada
porque muitos deles se encontravam juntos em centros de detenção dos
americanos no Iraque, como o Campo Bucca. Parece provável, por exemplo,
que a estadia de Abu Bakr coincidiu com a de alguns outros ex-membros do
partido Ba’ath que posteriormente tornaram-se líderes do Estado Islâmico.58
Similarmente, Thompson e Suri (2014) descrevem que
Antes de sua detenção, o Sr. al-Baghdadi e outros eram radicais violentos
com intenção de atacar a América. Seu tempo na prisão aprofundou seu
extremismo e deu-lhes oportunidades para ampliar seus seguidores. (...) As
prisões tornaram-se virtualmente universidades terroristas: os radicais (...)
eram os professores e os outros detentos eram seus alunos, e as autoridades
da prisão desempenhavam o papel de guardiões ausentes. 59
Em 2006, quando a AQI passou a fazer parte do Mujahideen Shura Council, e
após sua saída do Campo Bucca, Abu Bakr al-Baghdadi, declarou baya e sua
organização (a JJASJ) passou a fazer parte dos grupos que incluíam o MSC.
2.2.3. O ressurgimento do ISI sob a liderança de Abu Bakr al-Baghdadi
Entre 2010 e 2013, quatro importantes fatores contribuíram para a
reemergência do Estado Islâmico do Iraque: 1) A reestruturação ideológica e
organizacional e a reconstrução de suas capacidades administrativas e militares; 2) A
natureza disfuncional do Estado Iraquiano e seu crescente conflito com sua população
sunita; 3) A diminuição da influência da al-Qaeda Central sob a liderança de alZawahiri; 4) A erupção da guerra civil na Síria.
[Traduzido do inglês]: The alliance between members of AQI and ex-Ba’athist was also strengthened
by many of them finding themselves thrown together in United States detention centers in Iraq such as
Camp Bucca. It seems likely, for example, that Abu Bakr overlapped there with some of the ex-members
of the Ba’ath party who subsequently became senior leaders in The Islamic State.
59 [Traduzido do inglês]: Before their detention, Mr. al-Baghdadi and others were violent radicals, intent
on attacking America. Their time in prison deepened their extremism and gave them opportunities to
broaden their following. (…) The prisons became virtual terrorist universities: The (…) radicals were the
professors, the other detainees were the students, and the prison authorities played the role of absent
custodian.
58
46
2.2.3.1
Reestruturação e reconstrução
Sob a liderança de Abu Bakr al-Baghdadi, os objetivos do ISI tornaram-se mais
articulados e esquematizados e passaram a ter o foco principal no state-building, em
subverter e derrotar o governo taghuti60, e na criação de um Estado Islâmico ou
Califado. Sob a nova identidade ideológica do grupo, o califado representaria uma
nova era de “poder e dignidade” para os muçulmanos.
Sua pretensão em criar de um estado islâmico no Iraque e na instituição do
califado detém muita importância, pois, mesmo se não obtivesse apoio ou visibilidade
popular, tinha-se diferenciado do seu antigo aliado (e agora inimigo) a al-Qaeda, que
até o momento não possuía a vontade ou capacidade de articular uma efetiva
estratégia para a criação de um estado sunita-salafita (HASHIM, 2014). Mas o anuncio
público do califado só se tornou possível em 2014 quando o grupo tinha se
reconstruído, sob o nome de Estado Islâmico do Iraque e Síria.
Em 2010, quando al-Baghdadi assumiu o poder, o ISI encontrava-se em
frangalhos. Muito do sucesso que o IS clama atualmente, se deu através da criação
de uma organização coesiva, flexível e disciplinada, com auxílio de alianças com
generais do antigo partido ba’ath, incluindo, alegadamente, com um indivíduo que
seguia sob o pseudônimo de “Hajji Bakr” (REUTER, 2015).
De acordo com Reuter (2015), o nome real da figura sombria era Samir Abd
Muhammad al-Khlifawi, morto em 2014 em um ataque realizado por insurgentes sírios.
Com ele foram encontrados documentos que demonstravam que al-Khlifawi era o líder
estrategista “de facto” do Estado Islâmico, sendo Abu Bakr al-Baghdadi o líder
espiritual, de maneira similar que al-Masri era para o líder anterior, Abu Omar alBaghdadi.
Al-Khlifawi era um coronel da inteligência de Saddam Hussein, e apesar de não
ser muito conhecido, sabe-se que ele foi o “mentor” de Baghdadi, estabelecendo os
objetivos primários do grupo, e mais importante, os “diagramas” de como estabelecer
um estado bem sucedido.
Com Khlifawi, al-Baghdadi aprendeu com os erros de al-Zarqawi e Abu Omar
al-Baghdadi. Para ele, Zarqawi gastava muita energia em ataques provocativos e
assustadores, energia que poderia ser gasta na criação de uma organização mais
60
[Do árabe para]: Ilegítimo.
47
sólida. Já com Omar al-Baghdadi, ele aprendeu que a administração dos militantes a
nível pessoal resultava em mais gastos de energia e recursos, dessa forma ele
estabeleceu uma organização hierárquica e centralizada, mas flexível o suficiente
para que seus líderes atuassem como tinham desejo, desde que seguissem as
orientações de seu líder (HASHIM, 2014).
Além disso, de acordo com Hashim (2014), al-Baghdadi reduziu o papel de
expatriados árabes em postos de liderança. A presença de líderes estrangeiros tinha
antagonizado potenciais aliados iraquianos no passado. Ao invés disso, al-Baghdadi
os colocou como parte do contingente de batalha, ou em posições de suporte como
na mídia, propaganda, recrutamento e coleta de impostos e doações.
2.2.3.2
A natureza disfuncional do Estado iraquiano de al-Maliki
Após as eleições de 2006 (na qual a população sunita realizou o embargo), a
comunidade internacional viu sua ascensão como um momento positivo. O país
estava no centro de uma escalada da violência, e as ações de Maliki surpreendeu a
todos, particularmente em relação à sua luta contra as milícias armadas e aos
esquadrões de morte que estavam destruindo o país (HASHIM, 2014).
Ele prometeu aos americanos, à população sunita, e aos insurgentes que tinha
se voltado contra a ameaça terrorista e jihadista. Entretanto, quando chegou o
momento dos americanos deixaram o país, em 2011, suas políticas de inclusão da
população sunita no processo decisório não tinham acontecido. O movimento Sahwa
não passou a fazer parte das forças de segurança que o governo tinha prometido, e a
qualidade de vida nos territórios sunitas diminuíam diariamente. Segundo Phillips
(2014, apud HASHIM, 2014), Maliki ignorava os pedidos desta comunidade, que ele
desprezava e a via como nostálgicos pelo tempo de Saddam Hussein.
Em 2012, al-Maliki começou a ativamente segregar a população sunita,
buscando eliminá-los do processo político. Além disso, ele removeu centenas deles
das instituições militares, dos serviços de segurança e de inteligência. Em 2013, as
regiões sunitas estavam em processo de rebelião contra o governo, tentando instaurar
sua versão da ‘primavera árabe”; Maliki, então, respondeu com o uso da força. Os
sunitas, por sua vez, tomaram as armas e aquelas tribos que faziam parte do
48
movimento Sahwa, aliaram-se diretamente ou indiretamente com o Estado Islâmico e
com outras organizações jihadistas (HASHIM, 2014).
2.2.3.3
O desaparecimento da influência da al-Qaeda de Zawahiri
Nos últimos anos, a al-Qaeda têm sido alvo de discussões em círculos
acadêmicos sobre sua relevância no cenário geopolítico da região. Alguns
argumentam que a organização ainda é relevante pois continua capaz de atrair
seguidores. Outros sugerem que, com a morte de Osama bin Laden, a organização
perdeu legitimidade, assim como sua incapacidade de cometer ataques em larga
escala diminuiu sua importância geopolítica, ao menos no Iraque (ROLLINGS, 2010).
O líder atual da organização Ayman al-Zawahiri não tem sido um líder efetivo,
o que é um ponto positivo para o oeste. Ele não tem sido capaz de controlar suas
organizações afiliadas e associadas, como foi o caso da AQI de Zarqawi em 2004, ou
da al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQIM) em 2006. Ele também tem sido acusado de
manter um excessivo número de grupos sob o guarda-chuva da organização (como
foi o caso do Mujahideen Shura Council, em 2006).
As incapacidades militares e administrativas da AQC de liderar esses
subgrupos, fizeram com que os mesmos não se sentissem compelidos em seguir as
ordens e medidas propagadas pela central, levando com que tais subgrupos
buscassem seus próprios interesses, como foi o caso do Estado Islâmico.
Além disso, a diferença das gerações entre os veteranos (normalmente mais
velhos) da AQC e seus subgrupos mais “jovens” criou uma divisão mais clara entre as
ideologias, sendo os últimos mais atraídos à violência brutal do Estado Islâmico em
comparação à da al-Qaeda Central (HASHIM, 2014).
2.2.3.4
A guerra civil na Síria
A segunda fase do Estado Islâmico do Iraque começou com a eclosão da
guerra civil na Síria (março de 2011 – presente), aliando-se com os jihadistas
insurgentes contrários ao regime de Bashar al-Assad (figura 15). Al-Assad faz parte
da minoria dominante da Síria, os Alauitas, que são um secto do islã xiita. Os alauitas
49
representam cerca de 12% da população (sendo que os sunitas representam 74% da
população), e dominam as principais instituições políticas sirianas (PAN, 2012).
Assad faz parte do mesmo ramo partidário de Saddam Hussein, o partido
Ba’ath, partido secular socialista e pan-arabista, que está no poder desde 1970
(através de um coup d´état), iniciado por seu pai, Hafez al-Assad (BBC, 2012). Em
2000, um mês após a morte de seu pai, Bashar al-Assad sobe ao poder e se mantém
até o presente.
Alega-se que al-Assad tenha cometido inúmeros abusos de direitos humanos,
como a prisão de mais de 200 mil prisioneiros políticos, incluindo mulheres e crianças
(DETTMER, 2014); e o ataque com armas químicas 61 de Ghouta62, em agosto de
2013, que causou 924 fatalidades, de acordo com o Violation Documentation Center
in Syria (2013), e injuriou 3,600 pessoas, de acordo com os Médicos Sem Fronteiras
(2013).
Figura 15 – Presidente Bashar al-Assad em março de 2013.
Fonte: The Telegraph63
Devido às décadas de constantes violações de direitos humanos e da liberdade
pessoal da população, grande parte da comunidade islâmica não considerava os
alauitas como muçulmanos, e viam uma pequena minoria secular dominando a
maioria sunita do país. Tal divisão sectária e insatisfação sunita, era um terreno fértil
para a aproximação de grupos jihadistas radicais, e al-Baghdadi percebeu isso.
61
A arma química usada foi o gás sarin.
Fontes possuem várias estimativas, de ao menos 281 mortos (inteligência francesa), 1,429 (EUA) a
1,729 (Free Syrian Army).
63
Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/middleeast/syria/9905784/WilliamHague-dismisses-Bashar-al-Assad-as-delusional.html Acesso em: 19/10/2015.
62
50
Além disso, a guerra civil era um campo de batalha adequado para os membros
do IS para aperfeiçoar suas táticas de guerra contra um exército mais capaz que o do
Iraque (HASHIM, 2014).
Deve-se observar que a Síria era um ambiente multifacetado, politicamente e
ideologicamente dividido. De um lado estava o regime secular ba’athista suportado
por forças tanto internas quanto externas; contrário a ele, estavam uma miríade de
forças, indo de nacionalistas seculares pan-arabistas, democratas liberais, a panislamistas (incluindo jihadistas).
De acordo com Reuter (2015), no final de 2012, Al-Khlifawi juntamente com
uma pequena força de reconhecimento, tinha um objetivo bastante ousado: o ISI iria
capturar o máximo de território possível na Síria, e após iria usar tais territórios como
bastiões para invadir o Iraque.
Khlifawi estabeleceu-se na pequena cidade de Tal Rifaat, ao norte de Aleppo,
e esta provou ser uma boa escolha, pois durante a década de 80, muitos dos
habitantes foram trabalhar em outros países da região, especialmente na Arábia
Saudita, e voltaram com ideologias radicais, como o wahabismo64. Em 2013, Tal Rifaat
se tornaria a principal base do Estado Islâmico na Síria, com centenas de militantes
estabelecidos (REUTER, 2015).
O plano de invasão começava com a criação de uma Da’wah65. Daqueles que
vinham ouvir os sermões e frequentar cursos sobre o modo de vida islâmico, eram
selecionados alguns indivíduos (normalmente jovens, de idade entre 16 e 17 anos)
para serem informantes. Tais indivíduos buscavam espionar os habitantes locais para
obter o máximo de informações possíveis (REUTER, 2015).
A partir do estabelecimento de uma rede de informantes na região, o ISI iria

Criar um aparato de segurança e de inteligência mais robusto, designar figuras
importantes como alvos, e estabelecer práticas como a extorsão e outras atividades
criminais com objetivos de levantar formas de renda;

Estabelecer funções administrativas e de finanças, e estabelecer as bases de
comando, recrutamento e logística;
64
É uma seita do islã sunita, ultraconservadora e ortodoxa, que busca reformar a religião à uma forma
pura, conforme descrita nos livros sagrados (Tawhid, ou monoteísmo puro). Os wahabistas são a
minoria dominante da Arábia Saudita, e organizações terroristas como a al-Qaeda, o Talibã a utilizam
(assim como o Estado islâmico).
65 O Da’wah é um centro missionário para a pregação do islã.
51

Introduzir uma rede de Sharia, e estabelecer relações com os líderes religiosos
locais;

Montar centros de mídia e de informações;

E, por fim, introduzir células militares com objetivos de conduzir ataques
(SHATZ, JOHNSON, 2015).
Além disso, de acordo com Shatz e Johnson (2015), o IS conduzia missões de
infiltração e assassinato com objetivo de intimidar os líderes locais, como foi feito no
Vale do rio Eufrates em 2006 (enquanto ainda era conhecido como AQI) e em Mosul
em 2007.
2.2.4. A cisão com a al-Qaeda e o nascimento da Jabhat al-Nusra
Da mesma forma que Khlifawi, al-Baghdadi enviou Abu Mohammed al-Golani
a Síria, mais especificamente nos territórios ocupados pelos israelitas em Golan
Heights66 (HASHIM, 2014). Lá, Golani estabeleceu sua célula, e ela ganhou
popularidade por lutar contra o regime de Assad (HASHIM, 2015; BARRET, 2014).
Com o aumento de sua popularidade e dos membros de sua célula, Golani foi
mandado para Alepo, e lá seu grupo de, agora veteranos, tornou-se ainda mais
aparente. Portanto, ele e seus comparsas deram um novo nome para o grupo, o
chamaram de Jabhat al-Nusra67 (JN).
De acordo com Hashim (2015), haviam consideráveis diferenças entre a alNusra e o IS.

Enquanto a JN estava disposta em cooperar com outros grupos jihadistas para
a criação de um estado islâmico na Síria, o IS não era tão pragmático;

Ao mesmo tempo em que a al-Nusra era vista como um grupo
predominantemente sírio, o IS era visto como uma força estrangeira;

A Jabhat al-Nusra buscava lutar ativamente contra o regime de Assad, já o
Estado Islâmico estava mais focado no estabelecimento de seu próprio domínio na
região, e evitava confrontos com o exército sírio.
66
Golan Heights é um território localizado ao sudoeste da Síria, capturado da mesma pelo Estado de
Israel em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, e efetivamente anexado elos israelitas em 1981. Após
a guerra de Yom Kipurr em 1973, Israel devolveu uma pequena parte do território para a Síria, e este
se tornou uma zona desmilitarizada.
67 Também conhecido como al-Nusra Front (Frente al-Nusra).
52
Os esforços do ISI estavam dirigidos para a construção de uma extensão do
seu estado iraquiano na Síria focando-se em al-Raqqah onde o grupo construiu “um
sistema de governança holístico, que incluía projetos religiosos, educacionais,
judiciais, humanitários, de segurança e de infraestrutura, entre outros” (CARIS,
RAYNOLDS, 2014; p. 9).
Em abril de 2013, com o aumento da popularidade da al-Nusra, tentando
capitalizar sobre os sucessos da mesma, assim como para reafirmar sua liderança
sobre ambos lados da fronteira, al-Baghdadi declarou que Golani era seu subordinado
e que Jabhat al-Nusra fazia parte do IS, e este passaria a se chamar Islamic State of
Iraq and Syria68 (ISIS). Golani recusou, argumentando que não tinha sido consultado
sobre o assunto (BARRET, 2014; HASHIM 2014).
Portanto, Golani apelou para Ayman al-Zawahiri, o líder da al-Qaeda (portanto,
deixando claro sua associação com a al-Qaeda). E em junho de 2013, Zawahiri
comunicou-se com Golani e Baghdadi, dizendo que era contrário à fusão dos grupos.
Abu Bakr al-Baghdadi rejeitou a ordem de Zawahiri, declarando que a fusão dos
grupos iria continuar (HASHIM, 2014).
Em outubro do mesmo ano, o líder da al-Qaeda ordenou que o ISIS fosse
debandado e retornado ao status de Islamic State of Iraq, mas al-Baghdadi contestou
essa ordem. Os argumentos de Baghdadi foram que “seria um pecado dissolver a
união”, “que o islã não reconhece as fronteiras artificiais criadas pelo acordo de SykesPicot, como consequência do término da 1ª Guerra Mundial, que dividiram a ummah
islâmica entre nações”, e que “não fazia sentido jihadistas lutarem desunidos”
(HASHIM, 2014; p. 12).
Em fevereiro de 2014, após oito meses de hostilidades e disputas pelo poder,
al-Qaeda Central renunciou todos seus laços com o ISIS, e em maio, Zawahiri ordenou
que a al-Nusra parasse imediatamente com todos os ataques contra o ISIS, mas não
houve reconciliação.
68
[Do inglês para]: Estado Islâmico do Iraque e da Síria.
53
2.3.
O Estado Islâmico do Iraque e da Síria
Na metade de 2014, o ISIS adicionou uma nova tática militar às suas
capacidades, a técnica do “Shock and Awe69”. É uma tática baseada em alto poder de
fogo e mobilidade, utilizando-se ataques relâmpago com objetivo de obter rápida
dominância sobre seus oponentes.
Tal ataque funcionou, pois a liderança do IS já tinha estabelecido um “governo
invisível” em Mosul, e este auxiliou a logística das tropas, assim como realizou
subornos ou convenceu diversos líderes tribais sunitas a abandonar seus postos. O
restante do exército iraquiano na cidade sofreu ataques com homens bomba ou eram
alvos de pelotões de assassinato, e aqueles que eram capturados eram massacrados,
com objetivo de mandar uma mensagem para as outras tropas do exército iraquiano
(HASHIM, 2014).
A maioria dos sunitas não tinham porquê de lutar junto ao governo de Maliki, e
eles desertaram em grandes números. Tanto que a maioria possuía mais medo do
governo do que dos jihadistas, como afirma um policial que desertou na cidade de
Tikrit (REUTER, 2014)
Eles [governo de Maliki] nem mesmo consideram nós sunitas como seres
humanos (...) Somente xiitas eram promovidos a oficiais, e somente eles
recebiam contratos do governo. Nós éramos cidadãos de segunda-classe.
(...) Maliki pediu a Assad nos bombardear porque ele não possuía aeronaves
próprias. Que tipo de líder é esse?70
Durante essa ofensiva em massa, as forças armadas e de segurança do estado
iraquiano colapsaram. Quatro divisões do exército debandaram. A 2ª divisão do
exército, estacionada em Mosul (a segunda maior cidade do Iraque), foi totalmente
derrotada. A 1ª divisão, estacionada em al-Anbar, perdeu grande parte de seus
soldados.
As 3º, 6ª e 9ª divisões fugiram da batalha. A 11ª divisão abandonou o exército.
Durante essa ofensiva, o ISIS capturou enormes números de equipamentos, incluindo
1,500 humvees71 blindados, muitas peças de artilharia e morteiros.
69
[Do inglês para]: Choque e pavor.
[Traduzido do inglês]: "They don't even consider us Sunnis to be human beings," (…) "Only Shiites
got promoted to become officers, and it was only the Shiites who landed government contracts. We
were second-class citizens." (…) "Maliki asked Assad to bomb us Iraqis because he didn't have any
aircraft of his own. What kind of leader is that?"
71 Veículos armados utilizados principalmente pelo exército americano.
70
54
A derrota do exército iraquiano nessas batalhas foram alvo de discussões entre
os analistas militares norte-americanos. A avaliação inicial foi que o exército iraquiano
tinha sido profundamente infiltrado por milícias sunitas, e sua liderança era não
profissional, de tal modo que a mesma não era capaz de manter as necessidades
logísticas de seus soldados. Os analistas concluíram que as forças iraquianas seriam
incapazes de repelir os jihadistas sem auxílio externo (HASHIM, 2014).
Figura 16 – Mapa territorial do ISIS em junho de 2014
Fonte: The Daily Mail72
2.3.1. Declaração do Califado
Devido ao sucesso estrondoso, a liderança do ISIS viu a situação como uma
oportunidade única para aumentar sua influência sobre o mundo islâmico. Ao final de
junho, o grupo começou a se referir a si mesmos como Islamic State (ou Estado
Islâmico) e declarou que os territórios conquistados agora eram parte de seu Califado,
e que Abu Bakr al-Baghdadi era seu legítimo Califa.
72
Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-2660455/Battle-Baquba-Isis-Sunnis-wrestleShiite-Iraqis-control-major-town-Baghdad-country-splits-sectarian-lines.html Acesso em: 19/10/2015.
55
O porta voz da organização afirmou que o califado era “um sonho que vive no
íntimo dos fiéis muçulmanos” e que “foi uma obrigação que essa era tinha
negligenciado”73. Ele também afirmou que todo muçulmano deveria prestar fidelidade
ao novo califa e que os fiéis deveriam emigrar para o Estado Islâmico (ZELIN, 2014).
A declaração do califado reverberou sobre o oriente médio e a sociedade
islâmica, ainda mais sobre o Iraque e a Síria. Primariamente, temerosos com o ganho
de poder do IS, um número de líderes tribais resolveram abandonar a luta e renderamse pacificamente, entregando suas milícias e permitindo a ocupação de suas cidades
e vilas.
Em segundo lugar, a criação deste califado gerou conflitos entre jihadistas
islâmicos. Alguns afirmavam que a criação do califado foi prematura, um erro, e a
maneira que foi declarada (sem consulta) foi inapropriada. Já para os seguidores de
al-Baghdadi, seu sucesso era a própria prova de sua legitimidade (HASHIM, 2014).
Entretanto, em círculos de teólogos do islã, é argumentado que não existe
legitimidade na afirmação do califado. No islã não existe papado, ou figura religiosa
centralizada, não existe líder dos muçulmanos, e nunca existiu. O que al-Baghdadi
propõe é uma mitologia, um retorno ao tempo de ouro do islã durante o primeiro
Califado criado pelo profeta Muhammad no século 7.
O Califado idealiza um tempo de união dos muçulmanos, onde não existia
divisão entre sunitas e xiitas e simboliza a governança, justiça social e proteção que
foram perdidas durante séculos de invasão, ocupação e colonialismo que a região
sofreu. É um sonho que nunca poderá ser alcançado, portanto, um mito que não tem
lugar, nos tempos modernos (GERGES, 2014). E é por isso que o ideal de Baghdadi
é tão perverso, pois usa as esperanças e desejos de um povo como combustível de
sua vontade de poder.
2.3.2. Organização Institucional
Em 2014, organização institucional do ISIS é composta pelo em al-Imara (poder
executivo e liderança), e era composta por al-Baghdadi (como califa), seus
conselheiros e os delegados-chefes no Iraque (Abu Muslim al-Turkmani) e na Síria
[Traduzido do inglês para]: a dream that lives in the depths of every Muslim believer” (…) “the
neglected obligation of the era”
73
56
(Abu Ali al-Ambari). O al-Imara são os tomadores de decisão e os principais
governantes do Estado Islâmico.
O restante da organização é dividida entre o primeiro escalão e segundo
escalão. O primeiro escalão era composto pelo Shura Council, o Millitary Council
(conselho militar), e o Intelligence and Security Council74 (conselho de segurança e
inteligência), esses conselhos são supervisados diretamente por al-Baghdadi.
O Shura Council vem imediatamente abaixo do al-Imara, em termos de
importância, e consiste de al-Baghdadi e seu gabinete de conselheiros. Eles têm o
poder de “demitir” o líder da organização se o mesmo não executar suas tarefas de
forma adequada (HASHIM, 2014).
O Millitary Council tem o poder de tomada de decisão em questões militares e
fazem o planejamento das operações. O chefe do conselho militar é escolhido
diretamente por al-Baghdadi. Ele consiste pelo chefe e três membros. Esse conselho
supervisiona os comandantes militares nas diversas províncias que o IS possuí
domínio (HASHIM, 2014).
O Intelligence and Security Council, é composto primariamente por ex-oficiais
do exército e de forças de segurança e inteligência de Saddam Hussein. Possui uma
vasta gama de atividades, são elas: 1) Prover segurança para al-Baghdadi; 2) Manter
comunicações entre al-Baghdadi, o al-Imara, e os governantes provinciais (e que
estes implementem as decisões da liderança); 3) Supervisionar para que as decisões
das cortes sejam realizadas, e executar as penalidades; 4) Prover contra inteligência;
5) Supervisionar e transportar as correspondências, e manter a segurança das
comunicações entre os diversos ministérios do Estado Islâmico; 6) Realização de
operações especiais, como assassinatos, sequestros e chantagens (HASHIM, 2014).
O Segundo escalão do IS consiste em uma série de departamentos, sendo
eles:

O Financial Council (conselho financeiro): Funciona como o ministério do
tesouro, e ele gira em torno de venda de armas e óleo, assim como supervisiona as
transações financeiras do grupo;

O Legal Council (conselho legal): Controla disputas familiares e tribais, e
infrações religiosas, assim como se responsabiliza no recrutamento de novos
militantes e nas decisões relativas a punições baseadas na Sharia.
74
Podem ser dois conselhos separados. Os dados disponíveis são conflitantes.
57

O Fighters Assistance Council (conselho de assistência a militantes): Suporta
os jihadistas estrangeiros, dando-os moradia, assim como os trazendo e levando do
Iraque e da Síria.

O Media Council (conselho da mídia): É responsável pela publicação de
propaganda, pronunciamentos e declarações na mídia (tanto na mídia clássica, como
em mídias sociais, como o facebook ou twitter) da organização (BELLINI,
MARKHOUL, 2014).
2.3.3. Estratégia e Objetivos
Após a reestruturação do Estado Islâmico em 2011, al-Baghdadi (com auxílio
de al-Khlifawi) baseou sua estratégia em evitar os erros do passado, e se focou em
duas estratégias principais: Idarat al-Tawwahush: Akhtar Marhala satamur biha alumma (A Administração da Selvageria: O período mais perigoso que a Ummah está
passando), e Khouta Istrategiyah li Ta’ziz al-Mawqif al-Siyasi lil Dawlah al-Islamiyah fi
al-Irak (O plano estratégico para melhorar a posição do Estado Islâmico do Iraque)
(HASHIM, 2014).
A Administração da Selvageria (Idarat al-Tawwahush) argumenta que através
da realização de constantes ataques contra estados muçulmanos iria, eventualmente,
exaurir a capacidade destes estados de aplicar sua autoridade, diminuindo sua
soberania e os levando ao limite do caos e da anarquia interna. Dessa forma, os
jihadistas possuirão maior capacidade de ação e levarão vantagem sobre o governo
“ilegítimo”.
Após a aplicação da “administração da selvageria” no Iraque e da derrota do
ISI pelo movimento Sahwa e tropas americanas, al-Baghdadi estabeleceu um plano
estratégico que buscou tomar medidas para reforçar suas estruturas políticas e
militares, para que quando os americanos saírem do Iraque a organização estiver
pronta para reestabelecer controle sobre seus territórios; assim que essa etapa fosse
realizada seria o momento de estabelecimento do califado. Ele estabeleceu uma
estratégia similar à do movimento Sahwa, baseado em operações PsyOps75 contra as
75
PsyOps são operações planejadas para influenciar e instigar determinadas emoções, sentimentos,
incapacitar o pensamento objetivo e em última instância, alterar o comportamento de estados,
organizações, grupos e indivíduos (Departamento de defesa dos EUA).
58
forças de segurança do estado iraquiano (tais operações demonstram capacidade
militar e de inteligência, reforçando ainda mais o paradigma operacional ba’athista do
grupo) (HASHIM, 2014).
59
3.
PERSPECTIVAS TEÓRICAS SOBRE O ESTADO ISLÂMICO
Diferentemente dos capítulos anteriores que foram escritos com uma
perspectiva historiográfica, este tem o objetivo de realizar algumas discussões
teóricas pertinentes ao Estado Islâmico e de responder algumas das principais
indagações sobre o mesmo, começando pela conceitualização de movimentos
transnacionais e se o IS se encaixa nelas.
Após, dando continuidade, será apresentado a perspectiva religiosa do IS, sua
conexão com o Islã e a questão do califado. Após argumentarei sobre a
transnacionalidade do grupo, as definições de terrorismo, e o tipo de terrorismo
praticado pelo grupo, também discorrerei se é possível classifica-lo como um rogue
state e como um movimento de libertação nacional e, por fim, será descrito o
financiamento do IS e o fenômeno dos combatentes estrangeiros.
Tendo em vista que um movimento social transnacional é uma coletividade de
grupos com membros de mais de um país que estão comprometidos com a uma ação
contenciosa sustentada durante um determinado tempo através de uma causa
comum, ou de uma constelação de causas comuns, frequentemente contrárias aos
governos, instituições internacionais ou privadas.
Apesar das abordagens conceituais o estudo de movimentos transnacionais
serem, de muitas formas, similares a análise de movimentos sociais domésticos ou
nacionais, a extensão dos movimentos transnacionais estende-se para além das
fronteiras definidas de um país. Apesar disso, os movimentos transnacionais
normalmente têm mais força em seus países de origem.
De acordo com Wilson (1971), um movimento social é uma tentativa
consciente, coletiva e organizada de trazer ou resistir mudanças de larga escala na
ordem social com meios não-institucionais. Para ele, movimentos sociais embarca
tanto “heróis quanto palhaços, assim como fanáticos e tolos”. Sua função é mover a
população para além de seus objetivos mundanos, através de atos de bravura,
selvageria e caridade. Animados pelas injustiças, sofrimentos, ansiedades que veem
à sua volta, homens e mulheres em movimentos sociais buscam além dos recursos
costumeiros da ordem social para lançar sua própria cruzada contra os males da
sociedade.
Zirakzadeh (1997) sugere que movimentos sociais são:
60

Um grupo de pessoas que buscam, conscientemente, a construção de uma
nova ordem social;

Envolve pessoas de uma ampla gama de backgrounds diferentes;

Implantam táticas confrontacionais disruptivas, tanto sociais, quanto políticas.
Já Byrne (1997) define movimentos sociais de forma diferente. Para ele,
movimentos sociais são:

Imprevisíveis (por exemplo, movimentos feministas nem sempre surgem onde
as mulheres são mais oprimidas);

Desproposital (aderentes ao movimento não agem de acordo com seu
interesse próprio);

Irracional (aderentes acreditam que seu desprezo pela lei é justificado);

Desorganizado (eles evitam formalizar sua organização mesmo quando é uma
boa ideia o fazer).
Tomando o paradigma de Wilson e de Zirakzadeh, o Estado Islâmico se
encaixa na definição de movimento social, entretanto na visão de Byrne, tal afirmação
não se comprova.
3.1. O Estado Islâmico e o Islã
O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 renovou a atenção do oeste
sobre a conexão do islã e o terrorismo. Visões extremistas do Corão e a revitalização
dos movimentos islâmicos salafistas fazem parte desta linha de pensamento.
Terroristas islâmicos legitimam sua jihad através de sanções religiosas, ou Fatwā, que
permitem o uso da violência como um ato de defesa e de forma a preservar a vontade
de Deus na comunidade islâmica, a ummah. Este é o argumento de grande parte da
mídia ocidental e dos tomadores de decisão, e é bastante simplista.
Os fundamentalistas islâmicos frequentemente usam o Corão para legitimar
seus atos. Na visão deles, seus atos deixam de ser sua responsabilidade, mas sim,
tornam-se a vontade de Allah. Somente Allah é onisciente, e somente Ele é capaz de
julgar a conduta humana. Dessa forma, a lei humana é tornada obsoleta. Entretanto,
tais extremistas recorrem à interpretação de precedentes históricos que validam seu
uso de conceitos islâmicos (TAARNABY, 2002), mas, tal interpretação depende do
61
conhecimento adquirido e compilado por seres humanos, não divinos. Esta é a
primeira incongruência do pensamento jihadista.
Para os muçulmanos, o Corão contém as revelações e ensinamentos
presenteadas a Muhammad por Allah. O Corão representa a voz de Deus, e para
entende-lo (como nas outras versões de livros sagrados) é necessário de
interpretação. Para isso, existe a Ijtihad, que significa “interpretação”, e ela é realizada
pelos Ulema, que são um grupo de estudiosos da religião capazes de interpretar
adequadamente o Corão e aconselhar o significado correto (TAARNABY, 2002). Com
o desenvolvimento e crescimento do Islã, o entendimento da Ijtihad tornou-se cada
vez mais fluido, permitindo interpretações mais distantes do sentido religioso e mais
próximas do campo político.
Um exemplo disso é o conceito de jihad, que significa “esforço” e é
normalmente acompanhado por “no caminho ou causa de Allah”. No Corão, tal
conceito é dividido em jihad interior (é o esforço a ser realizado para viver o dia-a-dia
de acordo com os mandamentos de Deus) e exterior (que significa a resistência física
contra os inimigos do Islã). Em um momento, de acordo com o Hadith, um jovem
procurou Muhammad em busca de juntar-se à jihad militar. O Profeta o perguntou
“Seus pais continuam vivos?” Quando o rapaz confirmou, Muhammad disse “Então
realize sua jihad servindo e cuidando deles” (MORGAN, 2010; p. 87-88). Além disso,
há poucas menções no Corão sobre o uso de “jihad” como sinônimo de “guerra”, e
nenhuma menção sobre seu uso como “guerra santa”.
Sabendo que a Igreja Católica que possui o Papado e suas diversas hierarquias
de bispos; e a Igreja Ortodoxa que possui o Patriarca Ecumênico, e seus bispos; e o
Arcebispo de Cantebury, da Igreja Anglicana. Diferentemente delas, o Islã não possui
hierarquia em sua organização e não possui uma autoridade central, nem sequer o
califa detinha autoridade central religiosa.
Tendo isso em mente, a questão é: O Estado Islâmico é Islâmico? A resposta
é, sim, o IS é islâmico. Afinal, o mesmo segue as doutrinas islâmicas interpretadas
pelo ramo salafista do Islã, apesar de serem ultrarradicais e extremistas. Tal seita é
originária do wahabismo saudita, que é a seita muçulmana que possui controle sobre
Meca e Medina, as duas cidades mais importantes para o Islã. Isto, somente, já os
dão legitimidade de considerar-se um grupo muçulmano.
62
Entretanto, mesmo com a autodeclaração de califa por Abu Bakr al-Baghdadi,
o IS não possui liderança sobre outros muçulmanos, ou legitimidade para exerce-la,
já que não existe autoridade central no islamismo.
3.2.
Retorno ao ideal do Califado
Uma questão central da ideologia do IS desde sua criação, foi a declaração do
califado. Embora ambos al-Qaeda Central e o Estado Islâmico buscassem a criação
de um califado islâmico sunita, para a al-Qaeda isso era um objetivo muito mais
utópico e etéreo, mesmo após quase 30 anos de existência. Já o IS, buscou
ativamente a criação do mesmo. Apesar disso, aparentemente, a AQC talvez tenha
sido influente no estabelecimento do paradigma do IS, tanto que em uma
correspondência entre Abu Musab al-Zarqawi e Sayf al-Adel (um chefe estrategista
militar da al-Qaeda) em 2001, este último menciona que
Isto [seria] nossa oportunidade histórica por meio da qual talvez nós seriamos
capazes de estabelecer o Estado Islâmico, que teria o papel principal na
erradicação da opressão e ajudando a estabelecer a Verdade no mundo, se
Deus quiser. Eu estava de acordo com meu irmão Abu Mus’ab nesta
análise.76 (BUNZEL, 2015; p. 15)
Em 2005 (lembrando que nesse momento o IS ainda era subordinado a alQaeda), outras três correspondências foram trocadas entre os grupos, e a al-Qaeda
estava otimista na criação de um estado. Em uma delas, como relatado por Bunzel
(2015, p.15), al-Adel afirma que os “fatos e circunstâncias, meu querido irmão, são
propícios e favoráveis para o anúncio deste estado”77. Em outra, desta vez para
Atiyyat Allah ‘Abd al-Rahman al-Libi, este declara que Zarqawi deveria “destruir o
poder e o Estado, e erigir dos destroços o Estado Islâmico, ou ao menos [o que] virá
a se tornar o bloco de construção na direção correta”78 (BUNZEL, 2015; p. 15).
76
[Tradução livre] No texto original lê-se: This [would be] our historical opportunity by means of which
perhaps we would be able to establish the Islamic State, which would have the main role in eradicating
oppression and helping establish the Truth in the world, God willing. I was in agreement with my brother
Abu Mus‘ab in this analysis.
77 [Tradução livre] No texto original lê-se: facts and circumstances, my dear brother, are propitious and
favorable for announcing this state.
78 [Tradução livre] No texto original lê-se: destroy a power and a state and erect on their debris the
Islamic State, or at least [what] is to be a building block in the right direction toward it.
63
Tal ideal mitológico é uma ideia relevante na ideologia do IS, pois tal paradigma
remonta ao terceiro grande reino muçulmano, o califado Abbasid que manteve sua
capital em Bagdá por quase cinco séculos79 (GOLDSHMIDT, DAVIDSON, 2010).
Nesse momento, o reino de Abbasid foi o centro da era de ouro do islã, e Bagdá tinha
se tornado, talvez, o maior produtor de conhecimento, ciência e filosofia da época.
3.3.
Terrorismo e o Estado Islâmico
Apesar das diversas definições de terrorismo espalhadas em livros e em
campos das ciências sociais, existe um conceito geral que permeia as ideias dos
pesquisadores deste campo. Conceitua-se terrorismo como uma forma de guerrilha
psicológica que tem como objetivo de espalhar medo e ansiedade sobre uma
população alvo. Este medo volta-se como pressão sobre os tomadores de decisão,
com objetivo destes alterarem suas políticas de forma a servir os interesses dos
terroristas. Dessa forma, estes criminosos buscam tirar proveito dos valores liberais
dos estados democráticos como resultado de ramificações físicas, econômicas e
psicológicas de tais ataques (GANO,2009).
De acordo com a Muslim World League (2001) o
Terrorismo é um ataque espantoso realizado tanto por indivíduos, quanto por
grupos ou estados contra o ser humano (sua religião, vida, intelecto,
propriedade e honra). Inclui todas as formas de intimidação, injúria, ameaça,
e assassinato sem uma causa... desde que aterrorize e horrorize pessoas
através de ferimentos, ou expondo suas vidas, liberdade, segurança ou
condições ao perigo... ou expor um recurso nacional ou natural ao perigo. 80
Heather S. Gregg (2014) define os principais tipos de terrorismo como:
1)
Terrorismo de esquerda81: possui características marxistas ou neomarxistas
(buscam promover a revolução do proletariado), ou anarquistas (buscam destruir o
governo) ou socialistas (buscam reestruturação econômica).
79
Bagdá foi a capital do Califado Abbasid de 762 a 796, 809 a 836 e 892 a 1258, quando o império foi
conquistado pelos mamelucos e a capital moveu-se para Cairo, no Egito.
80 [Tradução livre] No texto original lê-se: “Terrorism is an outrageous attack carried out either by
individuals, groups or states against the human being (his religion, life, intellect, property and honor). It
includes all forms of intimidation, harm, threatening, killing without a just cause… so as to terrify and
horrify people by hurting them or by exposing their lives, liberty, security or conditions to danger… or
exposing a national or natural resource to danger”
81 Exemplos de grupos terroristas de esquerda são os Montoneros e o Ejército Revolucionario del
Pueblo (ERP) na Argentina; os Red Brigades na Itália e os exércitos vermelhos no Japão e na
64
2)
Terrorismo de direita82: possuem características fascistas e nacionalistas e de
supremacia racial.
3)
Terrorismo étnico-separatista83: buscam derrotar forças estrangeiras de
ocupação e criar um estado etnicamente independente.
O terrorismo religioso possui características dos três tipos de terrorismos
supracitados, entretanto, a falta de consenso acadêmico-científico torna difícil a
teorização deste tópico. Tanto que David Tucker (2001; p. 7) afirma que “o termo
‘terrorismo de motivação religiosa’ não é analiticamente útil”84. Apesar disso, Gregg
(2014, p. 39) define o terrorismo de motivação religiosa como “a ameaça ou uso da
força com objetivo de influenciar ou coergir governos e/ou populações em direção a
objetivos salientemente religiosos.”85
A autora Heather S. Gregg define que o terrorismo religioso está dividido em
três categorias: Terrorismo apocalíptico, Terrorismo teocrático e Terrorismo de
limpeza religiosa. Interessantemente, o Estado Islâmico passou, em suas diversas
encarnações, por todas essas categorias.
O terrorismo apocalíptico tem sua principal motivação em causar destruição
cataclísmica sobre as pessoas, a propriedade ou ao ambiente, com objetivo de trazer
o fim do mundo, como descrito nos mitos religiosos. De acordo com a autora, este é
o tipo de terrorismo religioso mais comum (GREGG, 2014). O IS durante suas
primeiras aparições, sob a liderança de Zarqawi, utilizava-se da narrativa de criar uma
guerra sectária, onde, após uma série de presságios o Mahdi86 retornaria.
Tanto que, de acordo com William McCants (2015), em 2008, um dos líderes
do ISI buscou Osama bin Laden em correspondência e revelou que eles estavam
falando sobre o Mahdi, e tomando decisões estratégicas baseadas na sua chegada,
com isso, a al-Qaeda respondeu ordenou que abandonassem tal ideologia.
O terrorismo apocalíptico é particularmente perigoso, pois, a ideologia deste é
baseada na destruição do mundo, e é um dos tipos de terrorismo mais desconexos
Alemanha; o Popular Front for the Liberation of Palestine (PFLP) na Palestina e o Ejército de Liberación
Nacional (ELN) na Colômbia.
82 Exemplos de grupos terroristas de direita são a Klu Klux Klan, a Iron Guard romena e os Neonazistas.
83 Exemplos de grupos terroristas étnico-separatistas são o Irgun israelense, o Irish Republican Army
(IRA) e o Euskadi Ta Askatasuna (ETA) basco.
84 [Tradução livre] No texto original lê-se: the term ‘religiously motivated terrorism’ is not analytically
useful.
85 [Tradução livre] No texto original lê-se: the threat or use of force with the purpose of influencing or
coercing governments and/or populations towards saliently religious goals.
86 Mahdi seria o messias profetizado no Hadith, e ele viria à Terra antes do Dia do Julgamento com
objetivo de livrar o mundo do mal. (MOMEN, 1985)
65
da realidade, dificultando muito a realização de contraterrorismo e a negociação com
tais grupos. Além disso, muitos deles não teriam dúvidas morais ao usar armas de
destruição em massa ou armas químicas para infligir o máximo de dano possível
(GREGG, 2014).
O segundo tipo de terrorismo descrito por Gregg (2014) é o teocrático. Os
grupos que utilizam tal ideologia focam-se na criação de um estado teocrático, no caso
islâmico, este teria a implantação da Sharia e de outros costumes ultraconservadores.
Observa-se que grupos com foco em state-building não são novos, como o próprio
Osama bin Laden afirmou, em uma entrevista em 2001, “Nós queremos o retorno
desta nação [Afeganistão] sob o califado Islâmico, como previsto pelo profeta em suas
tradições. Ele disse que o califado irá retornar”87 (FBIS, 2004; p. 242).
Nas declarações para a mídia em junho de 2014, o porta-voz do IS Abu
Mohamed al-Adnani falou que “A legalidade de todos os emirados, grupos, estados e
organizações tornam-se nula através da expansão da autoridade do califa e a
chegada de suas tropas (...) Ouça a seu califa, e o obedeça. Suporte seu estado que
cresce todo dia” (AL-JAZEERA, 2014). Observamos, assim, que o IS também se
qualifica como praticante do terrorismo teocrático.
O último tipo de terrorismo religioso descrito pela autora é o terrorismo de
limpeza religiosa. Este foca-se na limpeza de ‘infiéis’ (seguidores de outras seitas,
como os xiitas, alauitas, yazidis, curdos sunitas, entre outros), com objetivo de criar
um estado religiosamente ‘puro’, fazendo toda a população conformarem-se a mesma
interpretação da fé.
Tal terrorismo é similar ao de limpeza étnica, mas o fator motivador é o
sectarismo, não o racismo ou xenofobia. Por isso observa-se grupos fundamentalistas
como a al-Qaeda, a Jabhat al-Nusra ou o IS com uma grande diversidade étnica.
O IS também pode ser classificado como um grupo de limpeza religiosa, já que
diversas vezes realizou ataques mortais contra minorias religiosas, como o
assassinato de mais de 5 mil yazidis (UNHRC, 2015), e o ataque da mesquita de Iman
Ali em 2003, que matou o Aiatolá Mohammad Baqir al-Hakim (mais importante clérigo
xiita do Iraque e líder da Assembleia Suprema Islâmica do Iraque) com objetivo de
causar uma guerra sectária.
[Tradução livre] No texto original lê-se: “We want the revival of this nation under the Islamic caliphate,
as predicted by the prophet in his traditions. He said that the caliphate would return.”
87
66
Tanto que, em 2004 a ONU classificou o IS como uma organização terrorista
(naquela época AQI), assim como a União Européia. Diversos países também o
classificou nessa categoria (Austrália, Canada, Turquia, EAU, USA, Arábia Saudita,
EUA, Rússia, Reino Unido, entre outros).
3.4.
O Estado Islâmico como um ‘Rogue State’
Primariamente, devemos começar com uma breve concepção de Estado. No
ensaio ‘Política como vocação’ do ilustre sociólogo Max Weber (1919, p. 98), é
afirmado que o Estado contemporâneo “é uma comunidade humana que pretende,
com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado
território.” Utilizando o paradigma weberiano podemos afirmar que o Estado Islâmico
é um Estado. É possível, também, aplicar a teoria de Weber na liderança do IS, no
qual o próprio Abu Bakr al-Baghdadi possui algum grau de carisma, ou como o autor
descreve, ‘dom da graça’, onde Baghdadi uniu um grande número de grupos e tribos
sob sua liderança carismática.
Deve ser levado em consideração, que o Estado Islâmico não é um Estado de
acordo com as definições modernas. De acordo com as mesmas, além das
características descritas por Max Weber, o Estado deve possuir reconhecimento
internacional. Dessa forma, o IS deveria ser categorizado como um quasi-state ou um
proto-state, em contraste com os Estados de facto já estabelecidos.
Como um exercício de abstração, tomando o IS como um Estado, nessa seção
será questionado se tal organização pode, ou não, ser definida como um rogue state.
Desde o final da Guerra Fria, os Estados Unidos começaram a utilizar a retórica
republicana de ‘rogue states’. Tais estados são acusados de violar as normas
internacionais, por exemplo, financiar terrorismo internacional, perpetuar abusos de
direitos humanos e buscar armas de destruição em massa. Tratados como párias pela
comunidade internacional (especialmente pelos aliados dos EUA), os rogue states
ficam muitas vezes sujeitos ao isolamento diplomático, embargos econômicos,
sanções políticas e econômicas, e até intervenções militares (HOYT, 2000). Exemplos
deste tipo de estado são: Cuba (antes da abertura econômica), Irã, Iraque (préinvasão americana), Líbia, Síria, Sudão e Coréia do Norte.
67
Enquanto este conceito seja um tanto subversivo e tendencioso da parte dos
tomadores de decisão americanos, o mesmo é indiretamente abordado na teoria da
imagem de Boulding, que explica que imagens são definidas como “figuras
conscientes descritas por países estrangeiros, nos quais seu líder representa através
da linguagem88” (1956, apud HOYT, 2000; p 306). Isto é, são os paradigmas
conceituais criados por líderes para expressar suas intenções sobre outro país.
Entretanto, apesar dessa função retórica e um tanto imperialista, o Estado
Islâmico busca, ao menos indiretamente, a destruição do sistema estatal instituído na
região desde o acordo de Sykes-Picot, em 1916. Com a destruição das fronteiras na
Síria e do Iraque, tal acordo não têm mais vigência nos territórios que o IS controla,
ao menos, essa é a visão do grupo e de seus suportadores.
Tanto que, quando o IS anunciou o califado, foi postado o vídeo intitulado “O
fim de Sykes-Picot89” por um jihadista chileno. Neste vídeo, o indivíduo aponta para o
mapa da fronteira do Iraque e da Síria e fala que “não há mais fronteiras aqui. Agora
tudo isso é um país só”, o jihadista continua afirmando que “Baghdadi é o quebrador
de fronteiras. Esta não é a primeira fronteira que derrubamos e não será a última (...)
Não há nacionalidade, somos todos muçulmanos. Isto é somente um único país” (ALARABIYA, 2014).
Pode-se dizer que IS é contrário a ordem internacional estabelecida no século
passado. Dessa forma, é plausível dizer que o Estado Islâmico é contrário ao estudo
das relações internacionais e do esforço que tal campo científico teve ao prevenir
guerras e conflitos? Essa afirmação pode ser um tanto controversa, já que um dos
principais causadores desta crise foram os EUA, e poucos os consideram um rogue
state.
Entretanto, através da negação das normas internacionais de soberania, sua
brutalidade e ataques contra os direitos humanos, e suas ações deliberadas em
causar guerras civis na região, arrisco-me a dizer que sim, o Estado Islâmico é um
rogue state, e deve ser contido.
88
[Tradução livre] No texto original lê-se: conscious pictures, descriptions of foreign countries that a
leader presents through language.
89 [Tradução livre] No texto original lê-se: The End of Sykes-Picot.
68
3.5.
Seria o IS um movimento de libertação nacional?
Se é suposto que no sistema internacional os estados devem seguir o direito
legal de autodeterminação dos povos, mas o estado em questão nega tal
possibilidade, a sua população (ou a uma parte dela) pode declarar guerra contra tal
estado para adquirir esse direito, já que não há normas internacionais que previnem
atos de rebelião. Esses conflitos são chamados de “guerras de libertação nacional”.
Apesar de desencorajar tais conflitos e buscar uma resolução pacífica, é
comumente aceitável a utilização de tais guerras para buscar a autodeterminação. De
acordo com o parágrafo 10 da resolução 2105 (XX) da Assembleia Geral das Nações
Unidas de 1965, ela
reconhece a legitimidade da luta pelas pessoas sob domínio colonial em
busca de exercer seu direito de autodeterminação e independência, e convida
todos os estados para fornecer assistência moral e material aos movimentos
de libertação nacional nos territórios coloniais.90 (MALANCZUK, 1997; p. 337)
A ONU não reconhecia somente aqueles povos que estavam sob domínio
colonial como merecedores de tal direito, mas também reconhece o povo palestino e
os sul-africanos que viviam sob o regime do apartheid.
No artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos é dito que
Naqueles estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas,
as pessoas que fazem parte de tais minorias não devem ser negadas o
direito, em comunidade com seus outros membros do grupo, de desfrutar sua
cultura, professar e praticar sua religião, ou usar sua língua. 91 (MALANCZUK,
1997; p. 338)
Tal artigo implica que grupos que não têm direito de secessão (ou de
autodeterminação externa), devem possuir alguma forma de autonomia interna sob a
estrutura de um estado. Entretanto, este artigo não garante o direito de secessão, já
que minorias não são reconhecidas como sujeitos do direito internacional,
controversamente, tal artigo não proíbe a busca de sucessão por tais grupos de
minorias (MALANCZUK, 1997).
90
[Tradução livre] No texto original lê-se: recognizes the legitimacy of the struggle by peoples under
colonial rule to exercise their right to self-determination and independence and invites all states to
provide material and moral assistance to the national liberation movements in colonial territories.
91 [Tradução livre] No texto original lê-se: In those States in which ethnic, religious or linguistic minorities
exist, persons belonging to such minorities shall not be denied the right, in community with the other
members of their group, to enjoy their culture, to profess and practise their own religion, or to use their
own language.
69
Malanczuk (1997) continua o debate, dizendo que caso o conflito interno de um
país escalou a ações genocidas, a “secessão torna-se uma resposta legítima que
deve ser protegida pela comunidade internacional” (p. 340). Ele vai além, citando
Thomas Franck (1993, apud MALANCZUK, 1997; p. 340), que diz que em
circunstâncias em que
a uma minoria em um estado soberano – especialmente se ela ocupa um
território descontínuo em tal estado – são negada igualdade política e social
e oportunidade de reter sua identidade cultural... é concebível que a lei
internacional defina tal repressão, proibida pelo Pacto dos Direitos Políticos,
como vinda de uma definição estendida de colonialismo. Tal repressão,
mesmo por um estado independente não normalmente visto como sendo
‘imperial’ daria, então, um incentivo para o direito de ‘descolonização’ 92
Fawaz Gergez (2013) argumenta que o oriente médio manteve suas raízes
coloniais após a descolonização, e que as crises atuais da região são baseadas na
falência da descolonização.
Portanto, tendo em vista que o sistema internacional não é contrário aos tais
movimentos, a luta do Estado Islâmico contra o estado sectarista iraquiano de Maliki
e contra a invasão ilegal dos EUA no Iraque, seria legítima? Argumento que não, já
que enquanto a luta contra um governo autocrático e ditatorial é adequada, de acordo
com as normas internacionais, o uso de extrema brutalidade e violência, adicionado
com suas intenções expansionistas e a negação da ordem internacional, reforçam sua
ilegitimidade perante ao cenário internacional. Então, não, o Estado Islâmico não seria
um exército de libertação nacional, e a comunidade internacional não deve conceder
legitimidade de secessão a este grupo.
92
[Tradução livre] No texto original lê-se: a minority within a sovereign state—especially if it occupies a
discrete territory within that state—persistently and egregiously is denied political and social equality
and the opportunity to retain its cultural identity…it is conceivable that international law will define such
repression, prohibited by the Political Covenant, as coming within a somewhat stretched definition of
colonialism. Such repression, even by an independent state not normally thought to be ‘imperial’ would
then give rise to a right of ‘decolonization’
70
3.6.
Sobre o financiamento do Estado Islâmico
Para manter sua capacidade organizacional, como qualquer outra organização,
o Estado Islâmico necessita de meios de aquisição de capital econômico. De acordo
com o Financial Action Task Force93 (FATF), o IS recebe financiamento de cinco
fontes principais, sendo elas (como mostrado na figura 13):
1)
Atividades ilícitas advindas da ocupação territorial;
2)
Sequestro de reféns;
3)
Doações feitas por ou através de organizações sem fins lucrativos;
4)
Suporte material relacionado aos combatentes terroristas estrangeiros;
5)
Arrecadação de fundos através de redes de comunicação modernas.
A principal forma de renda que o IS recebe vem de sua ocupação territorial. O
grupo estabeleceu maneiras sofisticadas de extorsão, focadas no controle das
instituições bancárias do antigo estado iraquiano.
O departamento do tesouro americano (2015) estima que o IS tem ou teve
acesso a não menos que meio bilhão de dólares desde que obteve controle sobre os
bancos estatais nas províncias de Ninevah, Al-Anbar, Salah Din e Kirkuk, desde
metade de 2014 (FAFT, 2015).
Figura 17 – Fontes de financiamento do Estado Islâmico por tipo (estimativa)
Fonte: BRISARD, MARTINEZ, 2014; p. 9.
O Financial Action Task Force, também conhecido como Groupe D’action Financière, é uma
organização intergovernamental criada em 1989 pelo G7, com objetivo de desenvolver protocolos para
combater lavagem de dinheiro. Em 2001, seus protocolos foram expandidos para impedir e investigar
financiamentos às organizações terroristas.
93
71
O roubo de bancos também é uma ameaça constante em áreas que o grupo
atua mais livremente, como em Faluja e Ramadi no Iraque, e em Raqqa, Alepo e Deir
ez-Zor na Síria.
O tráfico de pessoas também é uma fonte de renda do grupo, especialmente
focando-se em mulheres e crianças. De acordo com o FAFT (2015), a rede BBC
entrevistou mulheres de uma comunidade Yazidi no norte do Iraque, e elas
descreveram como muitas eram vendidas e compradas em “leilões de escravos”, pelo
preço de $13 dólares. Em um caso, uma mulher Yazidi foi retornada a família após
pagar resgate de $3,000 dólares. Em 2014, estima-se que o IS levantou entre 20 a 45
milhões de dólares em sequestros (FAFT, 2015).
O controle dos depósitos de gás natural e de petróleo também são fontes de
renda bastante lucrativas, já que o Iraque detém grandes reservas de tais minérios.
Antes das campanhas aéreas dos EUA e da Rússia, o IS detinha controle sobre cerca
de 350 poços de óleo no Iraque e 60% dos poços na Síria. Em agosto de 2014, é
estimado que o grupo produzia cerca de 80,000 barris de óleo por dia, e os vendendo
por $40 dólares o barril (LEVITT, 2014).
As redes de extorsões do IS se estendem ao setor agrícola, na forma de
“zakat94”. Além disso, o grupo confiscou o maquinário agrícola dos fazendeiros,
alugando de volta a seus ex-donos. Adicionando a essas atividades criminais, eles
também controlam os preços dos produtos no mercado, assim como seu
armazenamento e distribuição.
O Estado Islâmico também possui controle sobre os sítios arqueológicos da
região, realizando a venda dos artefatos culturais através do mercado negro. De
acordo com a National Geographic, o IS ocupa mais de 4,500 sítios arqueológicos,
alguns deles sob proteção da UNESCO. É sabido que algumas dessas relíquias
remontam mais de 8 mil anos (FAFT, 2015).
Embora o IS receber doações externas, tal fonte de capital é relativamente
pequeno, tanto que David Cohen (subsecretário do tesouro americano) afirmou que o
grupo “deriva parte de seus fundos de doadores ricos, [mas] apesar de, [eles] não
dependerem fortemente de redes de doadores externos, os mesmos mantêm ligações
94
O Zakat é uma forma de tributo religioso obrigatório e varia de 2,5% a até 20% dependendo do
produto.
72
com financiadores no golfo95” (LEVITT, 2014; p. 5). Mesmo assim, o grupo acumulou
ao menos $40 milhões de dólares ou mais em doações de países produtores de
petróleo, como a Arábia Saudita, Qatar e Kuwait.
Em setembro de 2014, estimativas colocam a renda diária do IS em 3 milhões
de dólares, e o valor total de seus bens em 1.3 a 2 bilhões de dólares, tornando o
grupo como a organização terrorista mais rica do mundo. Nesse prisma, o IS possui
renda maior que algumas nações como Tonga, Nauru e as ilhas Marshall (LEVITT,
2014).
De acordo com LEVITT (2014), as agências de segurança internacionais (e
financeiras) deveriam considerar o seguinte:
1)
Continuar a campanha de ataques aéreos contra os centros financeiros do IS
(refinarias e poços de petróleo), assim como contra as rotas de contrabando;
2)
Utilizar-se
de
inteligência
financeira
com
foco
nos
intermediários,
especificamente, no que se refere ao mercado de petróleo;
3)
Trabalhar em conjunto de governos e agencias intergovernamentais (como a
FAFT e a MENAFAFT96) com objetivo de parar o fluxo de doações de países como o
Kuwait, Qatar e Arábia Saudita;
4)
Isolar o mercado financeiro internacional do IS, incluindo o bloqueio
internacional de bancos situados no Iraque;
5)
Continuar a pressão internacional e estabelecer um consenso contrário ao
pagamento de resgate a grupos terroristas;
6)
Como parte da campanha aérea, expulsar o grupo de áreas que podem
proporcionar ao mesmo renda (recursos naturais, sítios arqueológicos, rotas de
contrabando, locais de extorsão e taxação, etc.);
7)
Em longo prazo, ajudar a estabelecer reais instituições políticas no Estado
iraquiano, assim como fundamentar agências de segurança capazes de controlar e
processar iniciativas criminais que possam estar realizando o financiamento do grupo;
8)
Expandir os esforços de contenção do financiamento ilegal de grupos
terroristas para além da Síria e do Iraque.
95
[Tradução livre] No texto original lê-se: derives some funding from wealthy donors, [but] even though
[it] currently does not rely heavily on external donor networks, it maintains important links to financiers
in the Gulf.
96 Middle East and North Africa Financial Action Task Force (MENAFAFT).
73
3.7.
Sobre os ‘Foreign Fighters’
Um dos pontos que chama mais atenção quando se estuda o IS e outros grupos
insurgentes radicais é a questão dos combatentes estrangeiros (foreign fighters). Este
fenômeno, onde indivíduos deixam suas casas e países para intervir em um conflito
que acontece, muitas vezes a milhares de quilômetros de distância, não é um
fenômeno novo. Campos de mercenários compostos por guerreiros de diversos
backgrounds diferentes estiveram presentes há muito tempo na história humana.
Obviamente, é complicado chegar a fortes conclusões sobre a quantidade de
guerrilheiros, suas origens, intenções, etc., mas a inteligência americana estima que
desde 2011, mais de vinte mil combatentes estrangeiros viajaram para o Iraque e para
a Síria, deles cerca de 3,400 eram ocidentais e a grande maioria destes eram
europeus (ARCHICK, et al., 2015), como mostrado na figura 14.
Figura 18 – Combatentes europeus na Síria e no Iraque em janeiro de 2015
Fonte: ARCHICK, et al., 2015; p. 10.
74
Talvez essa quantidade não pareça muito grande, mas comparando com o
fluxo de guerrilheiros que foram ao Afeganistão durante 1979 e 1989 (invasão
soviética do Afeganistão) e depois quando a al-Qaeda se instalou em tal país, até
2001 (quando os americanos os derrotaram), o número era de no máximo 20,000
combatentes. De fato, para alguns estudiosos no assunto tal número talvez não tenha
passado de mais de 5,000 indivíduos (BARRETT, 2014). Mesmo utilizando o número
alto de 20 mil combatentes em duas décadas de conflito no Afeganistão, em quatro
anos o IS trouxe uma quantidade de pessoas muito mais alta, relativamente.
Além disso, no Afeganistão o principal contingente dos estrangeiros vinha de
países árabes e de alguns poucos países ocidentais. De acordo com Barrett (2014),
é sabido que há combatentes de, ao menos, 83 países diferentes.
Uma questão importante nesse sentido é sua motivação, por que eles vão?
Qual o sentido que um inglês de 41 anos com três filhos, abandona sua casa para se
tornar um homem-bomba na Síria? (CASCIANI, 2014) Essa é uma pergunta
complicada, pois o motivo varia de indivíduo a indivíduo.
Mas existem alguns temas em comum, um deles é a enorme crise de desilusão
entre os jovens do oriente médio (e em outras regiões, também), devido ao
desemprego que em alguns países, como a Tunísia que chega a 40%.
Interessantemente, a Tunísia é o país que mais exporta foreign fighters do mundo.
Talvez eles tenham problemas em se relacionar com outras pessoas, ou
problemas familiares, ou talvez eles não tenham passado pelo processo de inclusão
na sociedade. Muitos não possuem um sentido de pertencimento ou de identidade, ou
não se identificam com seu governo ou com as políticas públicas que determinam seu
futuro. Portanto, eles deixam sua terra natal para buscar acolhimento e uma vida nova,
quase com uma visão de redenção.
Uma grande parcela também vai pelo motivo religioso, a vida no islã como era
nos tempos dos primeiros califados. Como o estudioso do Islã, William McCants (apud
BYMAN, SHAPIRO, 2014; p. 13) explica
a Síria é muito importante para esta narrativa. No início das profecias
islâmicas sobre o fim dos dias, poucas regiões importam mais que a Síria. O
profeta recomenda durante as últimas batalhas ir lutar na Síria se você puder;
se não puder, vá para o Iêmen. O profeta também fala sobre um grupo de
fiéis – os verdadeiros fiéis – que irão perseverar até o fim e lutarão nas ultimas
75
batalhas. Eles irão se encontrar na Síria – em Damasco – e ao redor de
Jerusalém, onde lutarão por Deus até a hora final.97
Novamente, observa-se a tentativa deles de pertencer a um ideal maior. Não é
uma decisão tomada levianamente, é a vontade de participação, de serem liderados.
É ter uma direção definida, e nesse propósito reside uma grande satisfação espiritual.
Outros buscam respeito e reconhecimento, principalmente aqueles que vêm de
países árabes ou africanos, com alto nível de desemprego. Uma parcela deles
também possui algum tipo de doença mental (NEUMANN, 2015), levando-os a ter
uma visão errônea da realidade, e criando uma certa desconexão com a população
de seu país. Estes fatores são descritos por Barrett (2014) como push factors98, e eles
estão normalmente ligados com o sentimento de pertencimento e de identidade.
Já os pull factors99 são os motivos que trazem pessoas para o Estado Islâmico,
a principal narrativa é “Esqueça o que aconteceu nos séculos passados. Isto é
totalmente novo, e você fará parte dele. Você estará ajudando a criar.” (BARRETT,
2014). Eles acreditam que serão heróis e que farão parte da história da região. Esta é
uma narrativa muito atrativa.
A criação de um Estado novo, juntamente com a sensação de fazer parte de
uma irmandade com muitas pessoas de um histórico e ideologia similar, cria uma ideia
falsa de causa nobre, que é “seu dever”, “sua obrigação” em fazer parte. Isso,
juntamente com o fato do indivíduo não necessitar de capacidades especiais, como o
próprio Abu Bakr al-Baghdadi menciona em um de seus discursos “Não importa se
você sabe lutar ou não. Nós precisamos de pessoas. Nós queremos pessoas que nos
ajudem a conduzir este estado” (BARRETT, 2014).
Também sabe-se que estes estrangeiros são mais radicais que os membros
nativos da região. São eles que realizam os atos mais brutais feitos pelo IS. De acordo
com Thomas Hegghammer (2014; p. 1) os
combatentes estrangeiros são representados, aparentemente, como os
realizadores dos piores atos do Estado Islâmico. Então eles ajudam a
radicalizar o conflito – tornando-o mais brutal. Eles provavelmente também
tornam o conflito mais intratável, porque aqueles que vem como combatentes
97
[Tradução livre] No texto original lê-se: Syria is very important to this narrative. In the early Islamic
prophecies about the end of days, few regions matter more than Syria. The prophet recommends during
the last battles to go fight in Syria if you can; if you can’t, go to Yemen. The prophet also talks about a
group of believers—the true believers—who are going to persevere until the end and fight in the last
battles. They will gather in Syria—in Damascus— and around Jerusalem, where they will fight for God
until the final hour.
98 Push factors são fatores geralmente desfavoráveis que levam a saída do indivíduo (LEE, 1966).
99 Pull factors são fatores que atraem um determinado indivíduo a outra área (LEE, 1966).
76
estrangeiros são, em média, mais ideológicos que o típico rebelde sírio. Então
eles são menos propensos a se comprometer e chegar a um acordo de
cessar-fogo100
Há, também, o fenômeno belga. Por que um país como a Bélgica gerou cerca
de 440 combatentes (média de 40 guerrilheiros por milhão de habitantes), sendo que
a mesma possui um sétimo da população da Alemanha, e esta gerou entre 500-600
jihadistas (média de 7.5 guerrilheiros por milhão de habitantes)? Este fenômeno
também afetou os países escandinavos como a Dinamarca que gerou entre 100-150
combatentes (média de 27 guerrilheiros por milhão de habitantes) (NEUMANN, 2015).
Por que tais países geraram tantos jihadistas? Infelizmente acredito que ainda não há
respostas para esse fenômeno.
Figura 19 – Modelo Complexo de Radicalização de Combatentes Estrangeiros
Fonte: BYMAN, SHAPIRO, 2014; p.23.
Byman e Shapiro (2014) desenvolveram um modelo teórico de como se dá o
processo de radicalização em cinco estágios (como demonstrado na figura 15), são
eles:
100
[Tradução livre] No texto original lê-se: Foreign fighters are overrepresented, it seems, among the
perpetrators of the Islamic State’s worst acts. So they help kind of radicalize the conflict – make it more
brutal. They probably also make the conflict more intractable, because the people who come as foreign
fighters are, on average, more ideological than the typical Syrian rebel. So they’re less likely to
compromise and to agree to ceasefires.
77
1)
Decisão: Neste momento, o indivíduo ainda está em dúvida quanto a sua
participação. Portanto, existem três possibilidades: a família ou comunidade intervém
e consegue convencer o indivíduo a não participar, ou o mesmo opta por uma opção
pacífica ao combate; Ou a pessoa decide seguir em frente e viajar para o local do
conflito.
2)
Viagem: O indivíduo pode ser preso durante a viagem, ou deportado, se for
parado nas fronteiras; ou pode ser bem-sucedido e conseguir chegar ao conflito.
3)
Treinamento e combate: lá ele obtém treinamento e passa a lutar contra os
inimigos do grupo. Ele pode ser morto em combate ou continuar lutando no conflito.
O indivíduo também pode retornar ao país de origem.
4)
Retorno: Caso o combatente retorne ao país de origem, ele pode ser preso; ou
pode se desradicalizado e reintegrado à sociedade, ou ele pode não desejar atacar
seu país. Existe a possibilidade que ele tenha desejo de cometer terrorismo em seu
país.
5)
Planejamento: Caso ele deseje conspirar um ataque terrorista em seu país, seu
ataque pode ser descoberto pelos serviços de segurança do estado, o ataque pode
fracassar devido à falta de treinamento ou capacidade; ou o ataque pode ser bem
sucedido e causar sofrimento em seu país de origem.
Devemos notar que a questão dos combatentes estrangeiros não é monolítica.
Não há uma identidade comum entre eles, suas ideologias, nacionalidades, visões
religiosas são heterogêneas e devem ser tratadas dessa forma, somente assim será
chegado a uma resposta real capaz de diminuir o fluxo de insurgentes para o Iraque
e a Síria.
78
CONCLUSÃO
O Oriente Médio é, desde após a Primeira Guerra Mundial, uma das regiões
mais atribuladas do mundo, e os eventos atuais demonstram que há pouca esperança
que isso mude em curto prazo. Neste trabalho foi analisado a história do Iraque e da
região com objetivo de compreender as causas da ascensão do Estado Islâmico como
a maior organização terrorista da região, ou talvez, do mundo.
Uma delas foi a Campanha da Fé instituída pelo Iraque de Saddam Hussein no
final da década de 1980. Tal campanha mudou radicalmente a natureza secular do
país,
de
ideologia
pan-arabista
socialista
para
pan-islâmica,
criando
um
“Frankenstein” ba’athista-salafista.
Outra causa foi a instituição do Coalition Provisional Authority e de suas
consequencias inesperadas, tanto que, Dawisha (2009) explica que um dos aspectos
inesperados da deposição de Saddam foi a extensão que se deu o colapso das
instituições civis e militares do Iraque. Mas esse não foi o único erro do governo
provisório.
Talvez o pior erro cometido pela coalisão americana e pelo governo de
transição tenha sido a criação das políticas de des-ba’ahtificação do Iraque, que
deixou mais de 500 mil oficiais, soldados e empregados do antigo regime
desempregados e sem perspectiva de futuro. Isto levou muitos deles a participar de
grupos insurgentes terroristas.
Outro motivo da ascensão do IS foram as políticas sectaristas instituídas pelo
governo de Nouri al-Maliki como primeiro ministro. Em 2009, o Estado Islâmico tinha
sido derrotado pela milícia do movimento Sahwa auxiliadas pelos americanos, evento
conhecido como Despertar do Iraque. Pela participação do movimento Sahwa, alMaliki tinha prometido incluir a milícia em suas forças de segurança e pagar seus
salários. Mas o governo iraquiano era extremamente corrupto e quebrou a promessa.
Logo o movimento tinha deixado de existir.
Mas, com a morte de Abu Omar al-Baghdadi e Abu Ayyub al-Masri, os principais
líderes do IS em 2010, outro tomou o poder da organização. Abu Bakr al-Baghdadi
assumiu a chefia do grupo terrorista, e ele tinha visões mais amplas e melhor
capacidade de liderança que os anteriores.
79
Sabe-se que Abu Bakr al-Baghdadi esteve preso por um ano no Campo Bucca,
um campo prisional americano no Iraque. Tal prisão foi um dos principais centros de
radicalização no Iraque. Supõe-se que al-Baghdadi tenha tido contato com outros
membros da liderança do Estado Islâmico nesse momento, tanto que assim que foi
liberto, o mesmo declarou baya ao Mujahideen Shura Council (organização que
antecedeu o Estado Islâmico do Iraque).
Em 2010, a Primavera Árabe varreu o oriente médio. Alguns governos da região
foram depostos, outros sofreram golpes e tornaram-se democráticos, como foi o caso
da Tunísia. Entretanto, a Primavera Árabe na Síria não teve o mesmo resultado.
Durante esse ano e nos seguintes, a Síria estava em processo de guerra civil
e o governo de Bashar al-Assad perdia cada vez mais território, criando um vácuo de
poder que o Estado Islâmico do Iraque decidiu tirar proveito. Em 2012, o ISI detinha
controle sobre algumas cidades na fronteira do Iraque e Síria, e lá a tentativa de statebuilding passou a ser realizada com mais esforço.
Logo, o ISI tinha deixado de se comportar como uma filial da al-Qaeda e as
diferenças ideológicas tornavam-se cada vez mais aparentes. A al-Qaeda não tinha
interesse em atacar outros grupos muçulmanos, em contraste do ISI que utilizava a
guerra sectária para angariar mais seguidores e legitimar suas ações. Mas foi somente
em 2014, quando o grupo decidiu integrar forçadamente o grupo Jabhat al-Nusra (que
faz parte da al-Qaeda Central), e renomear-se para Estado Islâmico do Iraque e da
Síria que o conflito entre as duas organizações eclodiu.
No mesmo ano, após as surpreendentes derrotas do exército iraquiano e a
tomada de Mosul, o ISIS anunciou a criação do califado, e al-Baghdadi como
autointitulado califa. Juntamente com essa declaração, o ISIS demonstrou suas
intenções expansionistas quando abandonou o Iraque e a Síria de suas iniciais,
mantendo somente Estado Islâmico, e anunciando que toda a comunidade islâmica
estava subordinada ao califado.
Apesar da necessidade do estudo histórico para a compreensão dos eventos
atuais no Iraque e na Síria, há uma série de questionamentos que devem ser feitos
para obter-se uma visão completa e correta deste conflito.
Também foi abordado a conceitualização de movimento transnacional, e
averiguou-se que, nas teorias de Wilson e Zirakzadeh, o IS pode ser considerado um
movimento transnacional, apesar do paradigma de Byrne essa afirmação é falsa.
80
A conexão do IS com o islã é uma variável importante no conflito. Foi analisado
como o Estado Islâmico não representa o Islã, já que não existe autoridade central no
mesmo. Apesar disso, o IS é islâmico, afinal o grupo utiliza-se de preceitos islâmicos
em suas práticas, e como não há uma autoridade central, tal decisão torna-se
individual.
Outra questão analisada, foi o ideal do califado e como ele é utilizado como
uma ferramenta propagandística. Assim como, o quanto a ideologia propagada pelo
IS é permissiva e perversa, pois ela promete um retorno a um momento ideal, quase
mítico do islã, manipulando pessoas menos iliteradas e desiludidas.
Também foi realizado uma breve análise dos principais tipos de terrorismo
atuais e de sua diferença do terrorismo religioso. Ademais foi observado os três tipos
de terrorismo religioso, apocalíptico, teocrático e de limpeza religiosa, e como o IS
teve características de cada um destes três.
Após, investigamos o transnacionalismo do IS, como a possibilidade do grupo
de ser categorizado como um “rogue state” e de como tal organização é contrária a
ordem internacional e as normas instituídas. Além disso, foi comentado a legitimidade
do grupo como um movimento de libertação nacional, e apesar do IS deter algumas
características de libertação e revolução, suas políticas sectaristas, violentas e
opressoras anulam sua reivindicação como um exército de libertação.
Foi abordado, também, como é feito o financiamento e a economia do IS, de
que forma é realizada a aquisição de capital pelo grupo. Observou-se que a principal
fonte de renda que o grupo possui é territorial, através de taxação da população e da
extorsão e controle das instituições bancárias. Também argumentou-se que o IS
ganha parte de sua renda com o sequestro e tráfico de pessoas, assim como o tráfico
de antiguidades, artefatos arqueológicos e doações por organizações sem fins
lucrativos.
Outro ponto tocado foi seu controle sobre 60% das reservas de petróleo e gás
natural da Síria, e de mais de 350 poços no Iraque; isso permitia que o grupo
movimentasse cerca de 80 mil barris de petróleo diariamente, em agosto de 2014.
Devido ao controle do petróleo, da taxação e da extorsão da população e do sistema
bancário da região, assim como pelos outros meios, o IS tornou-se a organização
terrorista mais bem financiada do mundo, com renda diária estimada em 3 milhões de
dólares e o valor total de seus bens em 1.3 a 2 bilhões de dólares, em setembro de
2014.
81
Além dessas, a última questão estudada foi o fenômeno dos combatentes
estrangeiros, onde foi descrito o por que houve um fluxo tão intenso de radicais para
a região e os pull e push factors que levam os jihadistas a abandonar seu país de
origem, e como funciona o modelo de radicalização.
Apesar da destruição completa do grupo ser um objetivo próximo do impossível,
um conjunto de políticas podem ser aplicadas para que a ideologia do grupo seja
contida, seus números diminuam e seu território liberado.
A curto-prazo deve-se impedir o financiamento do grupo. Isto é, frustrar o
acesso e a venda de petróleo do grupo com o auxílio dos países vizinhos. Deve-se
criar políticas para inclusão de muçulmanos e lhes dar participação social e política
na sociedade.
É necessário impedir e dificultar as viagens de possíveis combatentes
estrangeiros para o oriente médio, especificamente para a Síria e para o Iraque; e a
longo prazo restaurar o governo sírio e instituir um modelo inclusivo para a população,
onde não mais uma minoria decidirá o destino da maioria.
É imperativo que os países com interesse na região parem de estimular proxy
wars, e parar de armar e financiar grupos rebeldes. É necessário que o governo
iraquiano e inclua outras parcelas étnicas e religiosas em seu processo de tomada de
decisão, retirando a base social que o Estado Islâmico detém e dando a tal população
voz ativa e participação no governo e nas forças de segurança.
Alcançar o nível de cooperação para realizar tais propostas é possível, mas
difícil, e temo que enquanto essas medidas não forem instauradas, é improvável que
o Estado Islâmico seja derrotado.
82
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