Direitos Humanos e Políticas Públicas

Transcrição

Direitos Humanos e Políticas Públicas
DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Editora Universidade Positivo
Curitiba | Paraná | Brasil
2014
Carlos Alberto Richa
ORGANIZADORES
GOVERNADOR
Eduardo Faria Silva
José Antônio Peres Gediel
Silvia Cristina Trauczynski
Flávio Arns
VICE-GOVERNADOR
Revisão:
Claudiomiro Vieira-Silva
Maria Tereza Uille Gomes
SECRETÁRIA DE ESTADO DA JUSTIÇA,
Assistente de Pesquisa e Organização:
CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS
Kellyana Bezerra de Lima Veloso
Capa:
Leonildo de Souza Grota
Ana Carolina Gomes
DIRETOR GERAL DA SEJU
Fotos:
Denis Ferreira Netto
Regina Bergamaschi Bley
DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE
Diagramação e Editoração:
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA
Agência Experimental Practice | Letícia Corona e Ricardo Macedo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da Universidade Positivo - Curitiba - PR
José Pio Martins
REITOR DA UNIVERSIDADE POSITIVO
Arno Antonio Gnoatto
PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO
Márcia Sebastiani
D598
Direitos humanos e políticas públicas / organizadores, Eduardo
Faria Silva, José Antônio Peres Gediel, Silvia Cristina
Trauczynski. Curitiba : Universidade Positivo, 2014.
432 p. : il.
ISBN 978-85-8486-037-1
PRÓ-REITORA ACADÊMICA
Roberto Di Benedetto
COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE POSITIVO
1. Direitos humanos. 2. Políticas públicas. 3. Sociedade I. Silva,
Eduardo Faria. II. Gediel, José Antônio Peres. III. Trauczynski,
Silvia Cristina. IV. Título.
CDU 342.7
Sumário
Apresentação - Maria Tereza Uille Gomes
NAS FRONTEIRAS DA JUSTIÇA
FUNDAMENTOS, UNIVERSALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO
11
Direitos Humanos: fundamentação transmoderna
Celso Luiz Ludwig
207
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
37
A Fragmentação da proteção contemporânea dos direitos humanos econômicos,
sociais e culturais: uma análise a partir do cenário estadual
paranaense de proteção
Melina Girardi Fachin
223
O Projeto de Lei do Senado N° 236/2012 e o Retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
51
Direitos Humanos e Arte: diálogos possíveis para uma Episteme
Leandro Franklin Gorsdorf
245
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
Efraín Peña
Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura democrática,
autonomia e ensino jurídico
Eduardo C. B. Bittar
263
67
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
281
O Lugar do Paraná no Fluxo Contemporâneo das Migrações Internacionais
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
295
Porque o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
Eduardo J. Vior
85
Educação em Direitos Humanos
Thiago Assunção
HORIZONTES DA DEMOCRACIA E DA JUSTIÇA
IDENTIDADE, DIFERENÇA E CIDADANIA
99
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
Vera Karam de Chueiri
311
111
Justiça Restaurativa como Direitos Humanos: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
Um Estatuto para a diversidade sexual
Maria Berenice Dias
331
Estado, Sociedade e as Políticas Públicas para as Mulheres
Regina Bergamaschi Bley
131
Círculos de Diálogo: base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
Marcelo L. Pelizzoli
351
Igualdade racial e territórios tradicionalmente ocupados por quilombolas
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
153
Os Dois Pratos da Justiça Internacional: vencedores e Vencidos
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
371
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a
descolonialidade da justiça nas religiões afrobrasileiras
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
173
Breve Análise da Representação Política Face à Implementação da Defensoria
Pública do Paraná
Ana Zaiczuk Raggio
413
Políticas Públicas, Direitos Humanos e Cidadania em Relação à Água: o caso do
Programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional
Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich
191
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
Apresentação
O livro que ora apresentamos resulta do conjunto de atividades desenvolvidas
pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos - SEJU, com
a finalidade de aprofundar o debate e fomentar a implementação de políticas
públicas de Direitos Humanos e Cidadania, no Estado do Paraná.
Para a execução dessas atividades esta Secretaria teve sua estrutura alterada,
por meio do Decreto 5.558/2012 e, posteriormente, pelo Decreto 10.714/2014,
que definem o campo de atuação desta Pasta e afirmam que a política deve estar
focada no respeito à dignidade humana.
No plano institucional foi criado o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania
- DEDIHC, substituindo a Coordenadoria de Direitos da Cidadania (CODIC),
anteriormente responsável pela consecução dessa política. Essa alteração não
é banal, pois além de ampliar e reforçar a estrutura administrativa destinada
a formular e tornar efetivos os direitos humanos e os direitos de cidadania,
na esfera estatal, retira da invisibilidade essas questões e as coloca em pé de
igualdade com as demais atribuições a cargo da SEJU, quais sejam: a gestão do
sistema penitenciário, a defesa do consumidor e a execução de políticas públicas
sobre drogas.
Essa estrutura de políticas públicas específicas articula-se internamente, pois o
sistema penitenciário requer uma atenção especial no tratamento dos direitos
humanos dos apenados e dos servidores públicos responsáveis pelo seu
funcionamento, do mesmo modo que, a defesa do consumidor se constitui hoje
em um dos aspectos mais relevantes dos direitos do cidadão.
Para além das atribuições inerentes à SEJU, o DEDIHC tem o encargo de incentivar,
promover, apoiar e organizar a formulação das políticas públicas de direitos
humanos e cidadania, por meio de um diálogo permanente com a sociedade
civil e suas instâncias de participação democrática organizadas sob as formas
de conselhos, comitês, comissões e grupos de trabalho. Cabe, ainda, ao DEDIHC
organizar e promover as Conferências Estaduais de Direitos referentes às várias
políticas setoriais, e assegurar a participação dos representantes da sociedade
civil e do Estado do Paraná, nas Conferências Nacionais.
A formulação de Planos Estaduais, que detalham e atribuem responsabilidades aos
órgãos estatais, pelas políticas setoriais, também fica a cargo desse Departamento.
A par disso, o DEDIHC é responsável e compartilha a responsabilidade com outras
instituições e entidades da sociedade civil pelo funcionamento de Centros de
Referência de Direitos.
Cabe destacar a participação do DEDIHC para a implementação de ferramentas
de gestão de políticas públicas, como a que vem sendo desenvolvida por esta
Secretaria denominado Business Intelligence (BI), que consiste no processo de
coleta, organização, análise, compartilhamento e monitoramento de informações
que oferece suporte à gestão de políticas públicas e permite a interação com a
sociedade.
A natureza das atribuições do DEDIHC requer, assim, um diálogo atento com as
formulações teóricas, que orientam a elaboração de políticas, planos, propostas,
relatórios e outros documentos oficiais de caráter informativo e prescritivo. É
nesse contexto que o livro ora apresentado, “Direitos Humanos e Políticas
Públicas”, vem servir de instrumento de reflexão aprofundada sobre esses temas
e expor as questões mais candentes e as políticas em curso, no Estado do Paraná.
O livro é produto de um esforço comum de todos os servidores do DEDIHC, que
em seus afazeres específicos contribuem para dar corpo às políticas públicas, sem
descuidar do diálogo com a sociedade civil.
A obra resulta, também, da relação permanente com as universidades e seus
pesquisadores, em especial, com a Universidade Federal do Paraná e com
a Universidade Positivo, que firmaram Termos de Cooperação Técnica com
esta Secretaria, para permitir a aproximação e participação de professores e
estudantes, nos espaços de formulação de políticas públicas, conferências e
comitês, e o exercício da cidadania entre seus estudantes, possibilitando-lhes
acompanhar detidamente a formulação de instrumentos de defesa de direitos.
A Universidade Positivo é partícipe, de maneira especial, com o esforço intelectual
e organizativo dos professores Roberto Di Benedetto, Coordenador do Curso de
Direito, e Eduardo Faria Silva, professor titular da disciplina de Política, Estado e
Constituição, esforço esse que se amplia com a participação de outros professores
que se agregam a este projeto de cooperação interinstitucional.
O apoio da Universidade Positivo encontra na figura do seu Magnífico Reitor,
José Pio Martins, o entusiasmo e o dinamismo que tornaram possíveis a edição e
impressão da presente obra.
Curitiba, 2014.
Maria Tereza Uille Gomes
Secretária de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos
Celso Luiz Ludwig
FUNDAMENTOS, UNIVERSALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO
11
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
Celso Luiz Ludwig
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
Celso Luiz LUDWIG1
Os Direitos Humanos, em especial no aspecto da fundamentação,
ocupam lugar de algum destaque na reflexão filosófica latino-americana,
entre tantos outros temas importantes. A seguir apresento possível
enfoque do tema.
Antes de mais nada, no entanto, cabe perguntar se é possível uma
fundamentação nessa época de perplexidade, de pluralismo e de
fragmentação? Ou então, em tempos de afirmação do multiculturalismo
e da pluralidade das tradições, ou até mesmo de ceticismo mais extremo,
faz sentido investigar a possibilidade e também a necessidade de uma
fundamentação última e pós-metafísica?
1.A delimitação filosófica
O tema será apresentado no contexto teórico da disputa de alguns
dos principais modos do pensamento filosófico atual. A estratégia
argumentativa situa o tema no amplo contexto dos grandes paradigmas
da filosofia ocidental e, também, com as chamadas grandes condições ou
projetos de mundo, para a partir daí enfrentar a questão da fundamentação
dos Direitos Humanos. A proposta arquitetônica do tema será apenas
indicativa porque um tratamento mais analítico ultrapassaria o objetivo
e o limite deste texto.
1.1. Assim, o primeiro critério de demarcação teórica situa o tema no
contexto da análise paradigmática. A classificação vem de Habermas que
menciona o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de
paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas
com o auxílio de ser, consciência e linguagem”2. Providencial e justo
reclamo provém da Filosofia da Libertação, no sentido da inclusão de um
quarto paradigma, denominado por Dussel de paradigma da vida concreta
de cada sujeito como modo de realidade – ou paradigma da vida concreta,
ou ainda, simplesmente paradigma da vida. Com essa inclusão, a divisão
das épocas históricas da filosofia ficaria sugerida com o auxílio de ser,
12
1
Professor de Filosofia do Direito da UFPR e da Uninter. Procurador do Estado do Paraná.
2
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 21-22.p. citO
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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
consciência, linguagem e vida concreta. Metodologicamente, é prudente
ter em conta que tal mudança paradigmática deve, no entanto, ser
entendida no sentido da suprassunção (Aufhebung) hegeliana3, e não na
ótica de um processo natural de simples extinção das teorias precedentes
substituídas pelas novas. Nesse quadro da filosofia, a demarcação
teórica do nosso tema da fundamentação dos Direitos Humanos indica
uma argumentação que será paradigmática, e a escolha recai sobre o
paradigma da vida concreta de cada sujeito como modo de realidade.
Ou seja, a reflexão se dará no contexto dos argumentos e categorias do
paradigma da vida.
1.2. Por fim, o segundo critério de demarcação teórica leva em
conta a condição ou o projeto de mundo que está em jogo. Com isso,
queremos significar que ao atual debate, ainda centrado nas fronteiras
que delimitam a modernidade e a pós-modernidade, são necessárias
também orientações que provêm tanto de um projeto pré-moderno (são
as inúmeras tentativas filosóficas, por exemplo, que tentam reconstruir o
sistema-mundo desde as premissas da filosofia do ser, inclusive no campo
do Direito), quanto orientações no sentido de um projeto transmoderno
– particularmente proposto pelo pensamento contra-hegemônico e pelas
filosofias de libertação4. Portanto, no largo contexto invocado, situa-se a
questão no âmbito do também chamado pensamento do giro descolonial,
nas diferentes expressões da filosofia da libertação, da filosofia latinoamericana, da filosofia da exterioridade, da filosofia analética, da filosofia
da alteridade e, também, da, já anunciada, filosofia transmoderna.
Enfim, nosso tema será construído tendo em vista o paradigma da vida
concreta e o horizonte da condição transmoderna.
2. Em busca de uma fundamentação pós-metafísica pragmática
2.1. Fenomenologia de uso dos termos. O uso das palavras fundamento
e fundamentação ocorre no dia a dia das pessoas, nas mais diversas
3 APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica. Dialética e liberdade. Petrópolis : Vozes, 1993, p. 320.
4 Refiro-me aos grandes projetos da modernidade, da pós-modernidade e datransmodernidade, e mais
recentemente da hipermodernidade. Em geral, a polêmica fica reduzida ao projeto da modernidade – que com seu
caráter emancipatório aposta nas grandes utopias e promessas de igualdade, liberdade e paz, e a contrapartida
da pós-modernidade, descrente das grandes narrativas, e que Boaventura de Sousa SANTOS (2000, p. 29 e 37)
designa por pós-modernidade reconfortante – por não lançar utopias sugere que se aceite e celebre o existente;
posição que contrasta com a pós-modernidade inquietante ou de oposição, esta sim representativa de uma teoria
crítica, ainda que pós-moderna porque não subsume sequer o caráter emancipatório da modernidade. Enquanto
isso, o projeto da hipermodernidade, na linha de Gilles Lipovetsky, defende a tese da inexistência da condição pósmoderna, uma vez que os pilares da modernidade – indivíduo, mercado e tecno-ciência – não teriam desaparecido
em tempos atuais, tendo apenas assumido a forma exacerbada de lógicas do hiper-indivíduo, do hiper-mercado
e da hiper-tecno-ciência. O projeto transmoderno tem como ponto de partida as utopias factíveis criativamente
formuladas pelos dissensos legitimamente obtidos pelas diversas e heterogêneas comunidades das vítimas, e, ao
mesmo tempo, subsume o caráter emancipatório do projeto da modernidade, rejeitando, todavia, seu conteúdo
negativo e mítico de justificação de uma práxis irracional e violenta.
14
Celso Luiz Ludwig
situações. Portanto, trata-se de uma noção de senso comum, cujo uso é
frequente, até mesmo nas situações mais corriqueiras. Não é diferente na
produção do saber acadêmico ou científico, em especial para mencionar os
fundamentos da ciência, das premissas, dos postulados dessa ou daquela
tese. Ocorre o mesmo quando o assunto está no campo da filosofia. Essa
palavra, noção, categoria ou conceito acompanha, para afirmá-la ou refutála, de algum modo a história da filosofia desde seu início, com os présocráticos até nossos dias. Os significados desse uso são os mais diversos;
impossível seria inventariá-los, o que seria de todo modo inútil, talvez.
No entanto, de maneira geral, com as virtudes e vícios epistemológicos
que daí decorrem, os significados mais recorrentes de fundamento e de
fundamentação podem ser mapeados paradigmaticamente. A finalidade
seria a de reunir argumentos que possam indicar o estado da arte nesse
particular em tempos atuais, e a partir dessa moldura pensar o sentido
do tema, ou então sua falta de sentido, na sugestão dos tempos, que
talvez não sejam mais tão modernos assim. Acredito que o procedimento
metodológico que segui é um caminho possível - como se vê adiante -,
sem prejuízo de outros tantos. Creio que esse seja um dos aspectos que
o tema apresenta.
2.2. Fundamentação e fundamentalismo. Antes de enfrentar tal
questão, cabe mencionar outro aspecto de relevo que, se não considerado,
pode gerar equívocos conceituais importantes, bem como compreensões
distorcidas. Pois, antes de mais nada, o tema da fundamentação em
nossa epocalidade niilista está também relacionado inevitavelmente ao
tema do fundamentalismo. É prudente fazer as distinções conceituais
para evitar que a ideia de fundamentação reste colada a algum tipo de
fundamentalismo ou aos fundamentalismos de modo geral. A exigência da
fundamentação não pode ser confundida com a atitude fundamentalista,
seja esta religiosa, política, econômica, jurídica, ou até mesmo intelectual.
O fundamentalismo na condição de tema contemporâneo ganhou fase
nova no mundo da globalização, esta com seus problemas, riscos e até
mesmo com o terrorismo. Os acontecimentos terroristas mais marcantes
- em especial os do século XXI, e em particular a chocante terça-feira de
11 de setembro de 2001, na qual foram destruídos os ícones do império
norte-americano - ainda buscam no fundamentalismo uma das chaves
explicativas dos fenômenos de terror, de parte a parte, ou seja, tanto
do ocidente quanto do oriente. Porém, embora como atitude e como
tendência o fundamentalismo possa estar presente em todas as religiões
e práticas espirituais, bem como possa ser encontrado em todos os
sistemas, tanto na cultura, na ciência, na política, no direito, na economia,
nem por isso a busca de fundamentos necessariamente significa uma
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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
atitude fundamentalista. Há que se distinguir o que é distinguível. A
atitude fundamentalista se apresenta em qualquer sistema na medida
em que alguém ou uma ação se arvora a condição de portador exclusivo
da verdade ou da solução única para os problemas. Nesse caso, estamos
diante de atitudes fundamentalistas. Pois, em geral, podemos dizer que
o fundamentalismo não é uma doutrina, mas a forma de conceber uma
doutrina, a forma de compreendê-la, de interpretá-la e principalmente
a forma de vivê-la, como verdade única, absoluta, fechada e imutável.
Significa assumir a doutrina e suas normas na letra fria com descuido total
da história dinâmica na qual se insere, e que exige sua contínua atualização
semântica, diacrônica e diatópica. Ora, não é disso necessariamente que
trata o tema da fundamentação. Leonardo Boff, em palestra proferida
no Planetário do Rio de Janeiro, em novembro de 2001, intitulada
Fundamentalismo – a Globalização e o Futuro da Humanidade, ajuda a
compreender a diferença que aqui buscamos:
Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter
absoluto ao seu ponto de vista. Não é uma doutrina, mas uma forma de
interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas sem cuidar
de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da
história, que obriga a contínua interpretação e atualizações, exatamente
para manter sua verdade essencial.
Portanto, o problema do fundamento não pode ser confundido
com o tema do fundamentalismo, como se observa. Diante disso, que
sentido tem a questão da fundamentação, ou como poderia ela ser
sugerida, hoje, sem cair nas armadilhas fundamentalistas com todas as
suas consequências? Reflexões para essa questão serão examinadas na
sequência das discussões aqui propostas.
2.3. Fundamentação e niilismo. Outro aspecto a considerar, portanto, e
preliminarmente, se refere à própria situação em que se encontra a questão
do fundamento ou da fundamentação em tempos de ceticismo, niilismo,
relativismo, subjetivismo, provisoriedade, tempos de pensamento fraco,
enfim, tempos de pensamento na era pós-moderna, pós-metafísica,
pós-filosófica, como se propaga. Tempos em que a incerteza parece
ser a única certeza possível. Portanto, a atitude ou a pretensão de se
buscar os fundamentos de algo, ainda mais os fundamentos últimos –
inultrapassáveis – da vida humana e de toda a realidade, seus primeiros
ou últimos fundamentos parece tarefa inútil, pretensiosa, temerária,
quando não insana. É um tempo de quebra de paradigmas, incluídos
aí também os paradigmas filosóficos. Como compreender o tema da
fundamentação na crise dos paradigmas? Creio que cabe, primeiramente,
compreender o sentido no interior de cada paradigma. Para depois,
16
Celso Luiz Ludwig
e é o que mais interessa, compreender o sentido da fundamentação
na crise peculiar dos tempos atuais. Seria isso? Ou então, a questão da
fundamentação deve ser abandonada de vez? E se tanto, não seria este o
tempo mais adequado para isso? O desafio do tema se apresenta nesse
vazio da liquidez filosófica que acompanha o derretimento de certezas,
principalmente as hegemonicamente construídas.
Assim, as reflexões deste texto pretendem investigar, ainda que
indicativamente, a possibilidade ou não (critério de factibilidade) de,
no campo da filosofia, tendo em vista o estado da arte neste momento,
encontrar uma fundamentação para os Direitos Humanos na perspectiva
transmoderna e, enfim, verificar como seriam esses fundamentos, e qual
seria o sentido dessa fundamentação hoje.
2.4. Breve compreensão paradigmática5 da fundamentação. O que se
pretende mostrar nesse instante está relacionado diretamente ao núcleo
de cada um dos paradigmas filosóficos com a exclusiva finalidade de
caracterizar o movimento que se realiza no processo de fundamentação,
além de evidenciar o elemento que confere base à fundamentação, ou
propriamente revelar seu fundamento. Segue resumida caracterização da
questão em cada paradigma:
5 A noção de paradigma, amplamente utilizada nas mais diferentes áreas do saber, tornou-se usual também
na Teoria e Filosofia do Direito. Seu uso, no entanto, não é unívoco. Acepções diferentes surgiram no debate
jusfilosófico atual. Parece, entretanto, poder destacar dois sentidos recorrente: um primeiro sentido tem caráter
epistêmico, exaustivamente explorado; um segundo, nem tão desenvolvido, diz respeito aos paradigmas societais.
Empresto tal tipologia de Boaventura de Souza Santos (1977). Enquanto os paradigmas epistêmicos estão
ligados à transição entre saberes filosóficos, entre uma ciência e outra e entre um paradigma jurídico e outro,
os paradigmas societais referem-se a diferentes formas básicas de organização e vida em sociedade. Apresento
alguns esclarecimentos nesta nota sobre o uso da noção de paradigma neste trabalho em conexão com a noção
de perspectiva também útil na análise do tema da fundamentação que tenho como pano de fundo permanente na
reflexão em desenvolvimento. A noção de paradigma, foi recepcionada pela filosofia, ao ponto de Habermas (1990
p. 21-22) fazer alusão ao costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de paradigma, oriundo da história
da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e linguagem”. A noção de paradigma,
conceitualmente construída por Thomas S. Kuhn (1992), objetiva explicar a transformação do conhecimento
científico através de saltos qualitativos e não de modo cumulativo e contínuo. Afirma que “Um paradigma é aquilo
que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens
que partilham um paradigma” (1992, p. 219). Assim, a ciência apresenta duas fases: a fase da ciência normal e a
fase da ciência revolucionária. Kuhn chama de ciência normal a que se processa enquanto o paradigma é aceito pela
comunidade científica, e, de ciência revolucionária àquela que se processa quando da mudança de paradigma, com
base e nos limites deste novo paradigma. Pode-se dizer que um paradigma consiste num modelo de racionalidade,
num padrão teórico, hegemônico em determinados momentos da história e aceito pela comunidade que o utiliza
como fundamento do saber na busca de compreensões e soluções. A aplicação de tal conceito possibilita dizer que
a filosofia desde a Grécia antiga até a atualidade desenvolveu, segundo sugestão de Habermas, os paradigmas do
ser, da consciência e da linguagem. O primeiro critério de demarcação anunciado – a questão paradigmática da
filosofia – levou Habermas (1990, p. 21-22) a mostrar o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito
de paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e
linguagem”. A Filosofia da Libertação acrescenta um quarto paradigma à essa classificação. Portanto, são quatro
paradigmas. Esse quarto paradigma pode ser denominado de paradigma da vida concreta de cada sujeito como
modo de realidade – ou paradigma da vida concreta. Ou simplesmente paradigma da vida. Ou seja, a divisão das
épocas históricas da filosofia ficaria desenhada com o auxílio de ser, consciência, linguagem e vida. A utilização
dessa noção permite uma reconstrução teórica da compreensão filosófica, especialmente no que tange ao tema da
fundamentação. É nesse contexto que o termo será empregado.
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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
(a) Paradigma do ser – a fundamentação ontológica
A ideia de fundamentação, em especial de fundamentação do
conhecimento pode ser encontrada em Parmênides. Exame de seu poema6
revela indícios sobre a necessidade de um conhecimento qualificado, ao
anunciar: “deves saber tudo”, da “verdade bem redonda” e de “opinião de
mortais”. Também indica os caminhos (métodos): quanto aos caminhos
de investigação possíveis, há um que conduz à verdade: “diz que o ser é e
que o não-ser não é”7. O outro, indicado no mesmo Fragmento, “que não
é e portanto que é preciso não ser”. Do mesmo modo, apresenta os tipos
de conhecimento (o epistêmico e o dóxico): a deusa diz que este caminho
não gera certezas, apenas opiniões. Além disso, uma fundamentação
metafísica do conhecimento, critério último para avaliar determinado
conhecimento, se é verdadeiro ou falso.
Há uma fundamentação metafísica que encontra respaldo no Fragmento
3 do Poema: “Pensar e ser é o mesmo”. Ao negar a multiplicidade e o
movimento, o filósofo instaura uma forma de compreensão que mede
a experiência pela lógica dos conceitos e não pela lógica dos fatos.
Ao descobrir o conceito de ser, identifica pensar e ser. Portanto, o
conhecimento que gera certezas é fruto de uma operação que é própria da
razão, instaurando um conhecimento racional. E quanto ao fundamento,
também será identificado como sendo o Ser, porém não na sua faticidade,
mas enquanto Ideia do Ser.
Dessa maneira, Parmênides instaura o começo da filosofia como
ontologia: “O ser é, o não-ser não é”. O ser é tido como o fundamento dos
entes. O fundamento do mundo. O que não é ser, não é. É o nada. O ser
não é pensado ou compreendido como um fundamento distante e isolado
do mundo. Ao contrário, o ser como fundamento significa que o mundo,
os entes, as coisas (tà onta), os úteis (tà prágmata) são vistos, porque
iluminados por ele. Ser e mundo coincidem.
A partir de Parmênides descobriu-se explicitamente a fundamentação
ontológica: a compreensão do sentido e da forma dos entes desde o
horizonte do ser. O mundo (as coisas-sentido) é concebido nos limites do
ser. O caminho que conduz ao conhecimento verdadeiro conduz ao ser lugar epistêmico originário.
6 O poema de Parmênides divide-se em três partes: o prólogo, o caminho da verdade e o caminho da opinião.
O método do conhecimento verdadeiro estende-se do fragmento 2 ao fragmento 8; o caminho do conhecimento
dóxico inicia-se a partir do penúltimo parágrafo do frag. 8. Ver BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. 3a.
ed. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 53-63.
7 Fragmento n. 2 do Poema SOBRE A NATUREZA.
18
Celso Luiz Ludwig
É essa a dinâmica do processo de fundamentação neste paradigma, e
que tem como fundamento o próprio ser.
Tendo em vista os limites e a finalidade deste estudo, o tema não será
apresentado em outros filósofos nele classificados, em geral dependentes
da fonte parmenídica. Essa tese central torna os filósofos da tradição
grega, em geral, dependentes da fonte parmenídica indicada, o que
permite Habermas (1990, p. 22) afirmar, sempre na lógica do ser, que:
Apesar de todas as diferenças entre Platão e Aristóteles, a totalidade do
pensamento metafísico obedece a Parmênides e toma como ponto de
partida a questão do ser do ente – o que o torna ontológico.
Tendo em vista a finalidade deste texto, a conclusão de Habermas
serve como conclusão para caracterizar o fundamento e o movimento do
processo de fundamentação no paradigma do ser.
(b) Paradigma da consciência - a fundamentação subjetiva
Sob o ponto de vista filosófico, a modernidade se inaugura pela atitude
crítica de desconstrução do primado do ser sobre o pensamento. Não está
em crise a necessidade de fundamentação, nem seu sentido, ou então,
sua finalidade. Apenas expressa o desagrado com a fundamentação até
então elaborada segundo a lógica do paradigma do ser. Portanto, a crise
relaciona-se à natureza intrínseca da fundamentação até então formulada:
a fundamentação ontológica. No novo procedimento, desde o ponta pé
inicial dado por Descartes ao idealismo alemão, o jogo da fundamentação
do pensar tem nova e definida direção: encaminha-se para a consciência
do sujeito, ou para o sujeito consciente. Primeiro como razão pura, em
Descartes; depois como eu penso em geral, em Kant, para avançar como
interioridade absoluta do eu, em Fichte e alcançar a condição de eu
absoluto plenamente acabado, em Schelling; para finalizar como Ideia
absoluta do processo de totalidade, em Hegel. Nos pensadores centrais
do período, a direção do movimento é sempre a mesma: não mais em
direção ao ser, mas em direção à consciência (LUDWIG, 2006, p. 53-54)
A menção às concepções de Descartes e Kant, creio, exemplificam
teoricamente a mudança de fundamento e, ao mesmo tempo, revelam
a persistência e a nova dinâmica da temática. Algumas características e
breves argumentos mostram o procedimento cartesiano e o kantiano
em torno do assunto. Efetivamente como é sabido, a reflexão cartesiana
parte da facticidade e caminha na direção do pensamento. O movimento
rechaça a faticidade, mostrando sua precariedade, no intuito de instituir
o pensamento na condição de fundamento: penso, logo existo. Dussel
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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
(1976, p. 38-39) sugere que é nesse momento que a modernidade jogou
seu destino definitivo, uma vez que o caminho empreendido já não irá
para o ser que se im-põe, mas para a consciência que põe o ser. Em outas
palavras, a modernidade joga seu destino definitivo em virtude da nova
fundamentação lançada. A nova racionalidade concebida tem em sua
base o cogito, que por definição, é ponto de partida e de chegada de tudo.
Dessa maneira, a subjetividade se define como fundamento, ponta
pé inicial para novas formas de fundamentação nos limites do novo
paradigma, que passou a ser, desde então, hegemônico.
Kant amplia o horizonte da questão ao envolver o mundo das coisas que
são e das que devem ser. Em nova epistemologia, nega a possibilidade de
identificar o fundamento último como sendo um conhecimento objetivo
e das essências, decidindo pelas “condições de possibilidade” como o
a priori que viabiliza todo conhecimento objetivo. Para ele, o aparato
instrumental cognitivo, seja nas formas a priori da sensibilidade, seja nas
categorias a priori do entendimento, é transcendental. Nos respaldamos
nas palavras de Kant (2003, p. 58) diz que: “Denomino transcendental a
todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do
nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a
priori”..
Assim, a conhecida “revolução copernicana do conhecimento” consiste
em reflexivamente encontrar o eu cognoscente como uma estrutura de
condições de possibilidade de todo o conhecimento. A transcendentalidade
desses componentes estruturais funda um conhecimento numa regra que
reside no sujeito.
No campo da moral, ao refutar toda fundamentação heterônoma não
coloca em questão a possibilidade ou a necessidade de um fundamento.
Sustenta, entretanto, uma nova ordem: a fundamentação autônoma da
moral. A autonomia consiste no fato de o sujeito dar a si próprio a lei da
conduta. Ao afastar a fundamentação heterônoma, fundou-a na vontade,
na boa vontade. Kant (2004b, p. 21), assim, afirma: Nem neste mundo
nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como
bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade.
Portanto, tanto no campo da razão pura, quanto na esfera da razão
prática, estabelece novo fundamento, seja para o conhecer, seja para o
agir.
20
Celso Luiz Ludwig
(c) Paradigma da linguagem - a fundamentação intersubjetiva
Desde as últimas décadas do século XX, a temática da fundamentação
volta a ter papel de destaque. Primeiro, a partir da desconstrução. Exemplo
de rejeição do fundamentalismo filosófico foi realizada pelo racionalismo
crítico (Popper, Albert), como é conhecido. A crítica popperiana à metafísica
racionalista mostra que toda pretensão de fundamentação última cai
inevitavelmente no trilema münchausiano. Tal ocorre porque ela leva a
um regresso ao infinito; ou conduz ao chamado círculo lógico; ou então, o
procedimento de fundamentação terá que interromper dogmaticamente
o regresso fundacional. Embora concorde com a crítica popperiana nos
aspetos indicados, a Teoria do Discurso, em especial nas formulações de
Apel e Habermas, enfrenta o ceticismo como tal. No entanto, esse debate
está marcado pela necessidade da mudança paradigmática. É o momento
da construção. A exigência da elaboração de novo paradigma filosófico no
contexto da chamada crise da modernidade e da filosofia da consciência
reacendeu a discussão em torno da necessidade e da possibilidade da
fundamentação, e até mesmo da fundamentação última na atividade da
razão. Esta é uma questão que considero crucial na discussão filosófica
acerca dos Direitos Humanos.
Embora o paradigma em pauta não se esgote nisso, será dado maior
destaque a fundamentação intersubjetiva, tendo em vista sua importância
e atualidade. Primeiro, alguns aspectos gerais, e depois em especial os
argumentos de Karl-Otto Apel sobre o assunto.
Alguns aspectos gerais auxiliam na caracterização desse novo enfoque.
Grosso modo, o discurso argumentativo se constitui em mediação
necessária, em lugar intranscendível e em núcleo pragmático, instância
última de fundamentação.
Isso quer dizer, em primeiro lugar, que toda a fundamentação, seja
ela de ordem filosófica ou científica, ou de qualquer outra natureza,
deve sempre passar pela mediação do discurso. E por que o discurso
desempenharia essa função de meio ou mediação necessária? Porque
mesmo em toda crítica cética que tem por objeto a impossibilidade de
fundamentação existem pressupostas condições de validade inarredáveis.
Pois, aquele que formula um juízo (por exemplo, em que objetiva mostrar
que não existe possibilidade de fundamentação) tem a pretensão
de que seu discurso seja válido, de que faça sentido, de que possa ser
compreendido e que indique uma verdade. Se assim não fosse, o juízo
formulado não atingiria sua finalidade, que é a de realizar uma crítica a
toda tentativa de fundamentação definitiva. A não aceitação disso, teria
como consequência inevitável a descaracterização da crítica como uma
21
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
crítica. Portanto, aquele que formula um juízo pressupõe, pelo menos
implicitamente, que há pretensões. Pretensões quanto ao sentido, quanto
à validade, quanto à compreensão, e quanto à verdade. Assim, por
exemplo, as proposições semânticas podem ser qualificadas como válidas
ou inválidas, verdadeiras ou falsas, porque pressupomos a existência de
pretensões de validade em toda linguagem. Essa é a razão pela qual o
discurso desempenha a função de meio ou mediação de toda pretensão
levantada, inclusive aquelas pretensões que objetivam a rejeição de toda
e qualquer possibilidade de fundamentação.
Agora, por que o discurso seria o lugar intranscendível? Porque as
condições necessárias para a validade de toda pretensão discursiva não
podem ser ultrapassadas, sob pena de incorrer em autocontradição
performativa. Toda e qualquer tentativa que implica em negar uma
ou todas as pretensões de validade entra em contradição, pois para se
realizar necessita da presença das próprias pretensões que tenta refutar.
Dessa forma, o discurso não pode ser transcendido, pois nele residem
as condições irrefutáveis, sempre pressupostas na efetivação de qualquer
enunciado.
E enfim, o que no discurso é intranscendível? A resposta já está
encaminhada nos itens anteriores. Cumpre, no entanto, sublinhar o
papel dos pressupostos transcendentais do discurso argumentativo,
no processo de fundamentação. O fundamento não está e não se
efetiva na presença empírica do discurso, já que este pode ser válido ou
inválido, com ou sem sentido, verdadeiro ou falso, justo ou injusto. Essas
condições só podem, em geral, ser avaliadas em situações concretas. No
entanto, os pressupostos que tornam possíveis tais discursos, esses são
transcendentais, reconstruídos ou reconstruíveis por estrita autorreflexão,
e com tal representam o critério último, enfim, a fundamentação última.
A autorreflexão mostra a relação necessária entre a fundamentação
e o fundamentado. Portanto, no discurso, o intranscendível, porque
ineliminável, diz respeito não ao discurso em si, mas às condições que o
tornam possível. E as referidas condições não são de natureza metafisica,
mas pragmática. As condições transcendentais são da ordem pragmática
e não mais metafísica.
Karl-Otto Apel está convencido da possibilidade e da necessidade desse
novo fundamento, a partir de uma nova concepção de fundamentação,
posição que confronta a opinião filosófica hoje dominante. O tema
consiste em enfrentar o desafio da possibilidade ou não de uma
fundamentação última não-metafísica, no contexto da filosofia atual.
Sabemos que o pensamento da fundamentação última e, assim também,
22
Celso Luiz Ludwig
o conceito tradicional da metafísica devem ser abandonados. Apel
o faz e desde o início enfrenta o desafio a partir da própria questão:
justamente por se tratar de fundamentação última existe a necessidade
de uma filosofia pós-metafísica (APEL, 1993, p. 306). A crítica desferida
pelos popperianos à estrutura da fundamentação na linha da metafísica
tradicional revelou a impossibilidade de qualquer tipo de fundamentação
última. Os popperianos, com base nessa impossibilidade, abandonam a
ideia de fundamentação última.
Na contramão, Apel sustenta não só a possibilidade, mas também a
necessidade da fundamentação em tempos atuais. Nem mesmo abandona
a ideia da fundamentação última. Critica a concepção tradicional da
metafísica ontológica. E conclui pela possibilidade e necessidade de uma
filosofia pós-metafísica de fundamentação última, com a exigência de
uma nova filosofia. Apel mostra a necessidade8 e, até mesmo urgência,
de uma fundamentação filosófica específica em nosso tempo, tanto como
tarefa teórica quanto como tarefa prática. Ilustra a questão com a seguinte
situação problema:
Que faria um jovem que, na assim chamada crise da adolescência,
chegou ao ponto de problematizar, por exemplo, como Nietzsche todas
as tradições morais convencionais e que nesta situação levanta a questão:
“Por que em absoluto terei que agir moralmente?” Com uma resposta que
não fornece uma fundamentação última, mas que de antemão se relativiza
como condicionada ou passível de revisão? (APEL, 1993, p. 309)
Portanto, o que é possível e necessário é uma fundamentação última
não-metafísica - a pragmática transcendental. As condições da pragmática
transcendental estão contidas na pretensão de verdade e nas regras do
discurso. Quanto à fundamentação última, Apel parte da premissa de que
faz todo o sentido a exigência de que todos reconheçam a existência de
algo como pretensão de verdade, como vimos anteriormente. Exigência
inafastável no campo da comunicação, sob penas de torná-la impossível
ou, então, configurar a contradição performativa. As regras, inscritas
na linguagem, passam a ser condições normativas da possibilidade da
discussão acerca das proposições com pretensão de verdade. Pois,
enfim, (1o.) todos os participantes do discurso em princípio são iguais
(e, portanto, não devem ser excluídos quaisquer argumentos); e (2o.) a
obrigação de todos em argumentar sem violência (aberta ou oculta –
como por exemplo, ofertas de negociação e/ou ameaças).
8 A preocupação em testar os argumentos tem o sentido de prevenir ataques contrários, seja dos céticos, seja
dos cínicos. Por isso, encontramos a postura em Apel, em Habermas e em Dussel, entre muitos outros. O cuidado
metodológico, portanto, se justifica ante tal possibilidade, motivo que leva a considerar alguns pensamentos nessa
linha, como é o caso dos defensores do princípio do falibilismo sem limites, que não apenas consideram uma
fundamentação filosófica última de princípios de conhecimento impossível, mas também desnecessária. (APEL,
1993, p. 310).
23
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
Ainda assim, esse novo quadro exige redefinição da concepção de
fundamentação até então utilizada. Sem tal medida, o processo de
fundamentação seguirá inevitavelmente o caminho que leva ao trilema de
Münchhausen (Hans Albert). Pois, o tradicional conceito de fundamentação
se define como “dedução de um algo de outro algo”. Ora, este conceito
não pode ser subsumido pela fundamentação pragmático transcendental.
A formulação de Apel (1993, p. 317) consiste no recurso reflexivo sobre
as condições de validade da argumentação, e em consequência, a
fundamentação não se define como derivação de algo de alguma coisa
diferente e, com isso, não retrocede em seu proceder ao infinito. Pois,
a fundamentação requer apenas a certificação das pressuposições que
não podem ser refutadas, sob pena de autocontradição performativa.
Dessa maneira, Apel (1993, p. 322) reconhece pela reflexão a existência
de pretensões universais de validade que fazem parte do argumentar e,
ao mesmo tempo, são condições irretrocedíveis (nichthintergehbaren), e
nesta medida, não-contingentes do conhecimento válido do contingente, o
que implica na guinada linguística da filosofia, ou filosofia da comunicação.
O sentido de uma fundamentação pragmática nos interessa sobremodo
para o tema que estamos enfrentando, qual seja o da fundamentação dos
Direitos Humanos, que será posteriormente retomado.
(d) Paradigma da vida - a fundamentação na alteridade negada
Agora a pretensão é apresentar um pequeno esboço de fundamentação
no contexto da razão situada para além da lógica da totalidade, no
sentido de estar para além da fundamentação ontológica, subjetiva e
intersubjetiva. Trata-se de uma superação paradigmática no sentido
filosófico. Como mencionamos em outro texto9, não se trata de lógica
maniqueísta na relação entre totalidade e exterioridade, entre centro
e periferia, entre inclusão e exclusão e assim por diante. Pretendese, pressupostas as idiossincrasias das sociedades e culturas situadas
além do horizonte dos centros dominantes, esboçar o sentido de uma
fundamentação na perspectiva da libertação, na dinâmica do horizonte da
racionalidade negada, ou no sentido do paradigma da vida, evidenciando
a dimensão da vida negada.
A partir e para além do paradigma da linguagem é preciso anunciar, no
entanto, o principiuim exclusionis (DUSSEL, 1995, p. 113). Tal princípio tem
sua referência na vida real, empírica, enfim, concreta das comunidades, em
especial as latino-americanas e caribenhas (e analogicamente, africanas
e asiáticas). Metodologicamente, a reflexão parte de uma faticidade
9 Ver LUDWIG (2006).
24
Celso Luiz Ludwig
histórica e social, assim como fazem Hegel, Heidegger, Gadamer e todos os
filósofos comunitaristas. Em outras palavras, o princípio está enraizado na
faticidade. Portanto, não se origina no ideal ou no transcendental, como
na razão comunicativa de Habermas e de Apel, ou na proposta na linha da
tradição liberal de um Rawls. De outra parte, ainda metodologicamente,
nessa dialética não se permanece imerso na tradição como o fazem os
comunitaristas. A sistemática negação da exterioridade é o ponto de
partida. Dessa maneira, sem abandonar o real concreto (a injustiça da
exclusão do mundo da vida, sentida na corporalidade), a razão histórica
enquanto exterioridade constrói categorias pragmáticas com pretensão
de universalidade, que se projetam bem além de qualquer télos históricoconcreto (DUSSEL, 1995, p. 97).
É na e pela categoria da exterioridade que se manifesta o princípio
da exclusão como fonte originária instranscendível da possibilidade
e necessidade de afirmação da negação perpetrada pela lógica da
totalidade. Ou então, a afirmação do outro enquanto outro, isto é,
em sua exterioridade e não na semântica da totalidade, é a origem da
possibilidade da negação da negação dialética: afirmação analética da
exterioridade. Essa exterioridade analética10 como afirmação (afirmação
de sua dignidade, de sua liberdade, de sua cultura, de seus direitos, de
seu trabalho - trabalho vivo, primeiro, e fonte de todo valor) é condição de
possiblidade de mudança. Para exemplificar, pode-se dizer que além da
totalidade jurídica vigente não haveria direito, a não ser o já admitido pela
lógica do próprio sistema, o que em última análise implica em renovação
possível apenas segundo critérios autopoiéticos do sistema dominante.
No caso da fundamentação analética não. Portanto, a questão da
fundamentação dos Direitos Humanos não se encontra esgotada.
Outro exemplo teórico da ideia básica de fundamentação do direito na
racionalidade do outro (na concepção filosófica da exterioridade) pode ser
visto na seguinte moldura: o outro enquanto exterioridade irrompe como
de uma espécie de nada (sem as determinações semânticas da lógica da
totalidade dominante), - do infinito, como quer Levinas – o de outro modo
que ser. O princípio básico é o da libertação da exclusão; libertação da
miséria e da opressão das lógicas de dominação no plano concreto: este
é o fundamento - razão do outro enquanto exterioridade. É a vida como
modo de realidade de cada sujeito em comunidade. Positivamente, vida
afirmada. Negativamente, vida negada.
Não é o momento de explicitar cada um dos necessários fundamentos
para preservar a condição da vida afirmada, e desenvolver cada um dos
10 “El pueblo, como colectivo histórico, orgânico - não sólo como suma o multitud, sino como sujeto histórico con
memoria e identidad, con estructuras proprias - es igualmente la totalidad de los oprimidos como oprimidos en un
sistema dado (...), pero al mismo tiempo como exterioridad”. DUSSEL (1985, p. 411)
25
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
necessários fundamentos para transformar a condição da vida negada.
No entanto, em forma de anúncio, a arquitetônica do tema fica apenas
sugerida.
Primeiro, como ideia central o problema da fundamentação é visto
desde uma atitude multifundamental. A complexidade da vida requer
vários e distintos fundamentos em seu desdobramento e sempre estar
aberta para novos fundamentos.
Segundo, a fundamentação é concebida nos diferentes campos a partir
de fundamentos que são os pressupostos, condições intrínsecas – porque
operam implicitamente - constitutivas da existência originária dos demais
campos ou mesmo sistemas (como por exemplo, o ético, o político e o
jurídico). Tais princípios orientam a ação em geral, servem como referência.
São necessários com a finalidade de estabelecer marcos estritos, firmes,
bem sólidos para a atividade prática, tanto no que se refere aos fins a
alcançar como aos meios de luta utilizados, e, por derradeiro, aos modos
de luta (Luxemburgo 1990, p.118). Trata-se de uma fundamentação
principiológica, não-metafísica, com fundamentos múltiplos e com níveis
de abstração distintos.
Terceiro, a multifundamentação tem na vida concreta seu critériofonte. Esse critério fonte serve como referência de todo ato, norma,
estrutura, sistema, subsistema, instituição etc. Trata-se da vida humana
em comunidade. É o modo de realidade do sujeito – individual e coletivo
- nas situações concretas do mundo, na idade da globalização e da
exclusão. Mais concretamente, o que importa é a produção, reprodução
e desenvolvimento da vida de cada sujeito. Nessas três determinações
centrais, o sujeito humano em comunidade precisa ter objetivamente
satisfeitas certas condições que servem de mediações adequadas para
viabilizar sua vida. Condições essas que, se não forem levadas em conta,
acarretam negações a aspectos da vida e, no limite, fatalmente levam à
morte (negação do critério fonte e da condição de possibilidade). Trata-se
da originária e genuína vulnerabilidade da vida do sujeito. O critério assim
desdobrado conduz ao princípio geral e crítico: o princípio da obrigação
de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada
sujeito em comunidade.
Quarto, a atitude multifundamental desde o critério-fonte anunciado,
passando pelo princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver
a vida, chega positivamente ao fundamento material, ao fundamento
formal e ao fundamento do factível (possível). E chega negativamente
à crítica do fundamento material, à crítica do fundamento formal e à
crítica do fundamento do possível - o princípio libertação. Cada um desses
26
Celso Luiz Ludwig
fundamentos é um momento necessário para a afirmação (preservação)
da vida, sempre (tempo) e onde (espaço) há vida afirmada, e também um
momento necessário para a negação (transformação) da negação da vida,
sempre (tempo) e onde (espaço) há vida negada.
Nessa dinâmica, haverá, portanto, a necessidade de uma fundamentação
positiva e também uma fundamentação negativa, no que diz respeito
ao princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida
humana concreta de cada sujeito em comunidade. E de igual modo, haverá
a possibilidade e necessidade de uma fundamentação positiva e também
uma fundamentação negativa do Direitos Humanos.
3. A fundamentação do Direitos Humanos
O que ocorre com os Direitos Humanos? A atenção a um recorte
particular desta pergunta implica em dizer que ocorre aos direitos
humanos – consideradas as épocas históricas específicas – a lógica da
totalidade própria de cada paradigma em jogo, seja ele filosófico (recorte
da presente análise), seja ele societal, no atual processo de globalização
e exclusão. Vale dizer que ocorre aos direitos humanos o que ocorre aos
seres humanos submetidos ao impacto das lógicas reais produzidas pelo
processo que hoje tem a assinatura da globalização e da exclusão. Assim,
falar de direitos humanos significa falar da vida concreta dos sujeitos
em comunidade como modo de realidade. Enquanto vida afirmada,tem
o sentido do respeito e da efetividade dos direitos humanos. Enquanto
vida negada, tem o sentido do desrespeito e da inefetividade dos direitos
humanos. Significa falar da dignidade humana violada ou ameaçada por
um sistema mundo que se impõe com sua lógica e suas leis próprias,
numa espécie de autopoiese, que mundialmente passa por sobre grande
parte dos seres humanos, produzindo vítimas, em sua maioria talvez nãointencionais. Mesmo assim, vítimas – vida negada. A existência maciça
de vítimas exige, em especial para o mundo sul, em relação aos direitos
humanos, uma filosofia crítica que ultrapasse o horizonte da totalidade
dos paradigmas filosóficos de centro, bem como a autopoiese fechada
da totalidade do debate entre modernidade e pós-modernidade ou, no
máximo, admitido da hipermodernidade. Portanto, uma filosófica crítica
transmoderna ou descolonial dos direitos humanos.
3.1. A possiblidade e a necessidade de fundamentação transmoderna dos
direitos humanos
É conhecida a tese de Bobbio – que enuncio aqui livremente - de
que o problema dos direitos humanos não estaria mais na ordem da
27
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
fundamentação, mas na esfera da aplicação. Ou então, não mais na
necessidade de sua justificação, mas, precisamente, na urgência de sua
efetivação. Cabe protegê-los, afirma. Enfim, a questão central sobre os
direitos humanos não estaria na esfera da filosofia, mas na esfera política.
Não seria uma questão teórica, mas prática.
Embora se deva reconhecer que existem sérios problemas relacionados
à proteção dos direitos humanos em suas mais diversas dimensões, a
questão filosófica de longe se encontra esgotada.
No caso do terceiro mundo, dos países periféricos e semiperiférico,
em especial da América Latina e Caribe, a centralidade da questão – bem
como sua problematicidade mais dramática – pode ser conduzida pela
reflexão na tríplice orientação dos direitos humanos: (a) desde onde se
consideram; (b) para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam.
Ellacuria (1990, p. 590), em suas reflexões sobre o tema, adverte que
o desde onde, o para quem e o para que devem estar muito claros e
explícitos no processo de fundamentação dos direitos humanos.
Em outros termos, estamos diante da questão do sujeito ou dos
sujeitos da reflexão filosófica. Pelo visto até agora, a perspectiva da
reflexão permite dizer que estamos diante do sujeito ou dos sujeitos da
fundamentação filosófica transmoderna. Quem são esses sujeitos?
Porém, antes de investigar a determinação específica desse ponto de
partida, cabe estabelecer o seguinte juízo de “fato” com pretensão de
verdade: vivemos uma violação massiva e radical da condição humana.
Enfim, experimentamos uma violação dos direitos humanos, seja na ordem
nacional, regional ou na ordem internacional nunca antes vista, e essa
violação está atualmente na esfera da não satisfação das necessidades
básicas da maior parte da população mundial, particularmente do mundo
periférico e semiperiférico.
Há muitos e variados estudos estatísticos que indicam o quadro
mencionado. Apresento um deles para ilustrar um possível enfoque da
situação no sentido geral e global:
Aos 500 anos do começo da Europa Moderna, lemos no Relatório sobre o
Desenvolvimento Humano 1992 (UNDP, 1992: 35) das Nações Unidas que
os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a Europa Ocidental, os
Estdos Unidos e o Japão) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os
60% mais pobres ( a “periferia” história do “Sistema-Mundial”) consome
5,8% desses bens. Uma concentração jamais observada na história da
humanidade!
Celso Luiz Ludwig
Portanto, para acentuar, estamos diante de uma realidade global, na
qual, enquanto 20% mais abastados da humanidade consome 82% dos
bens, os 60% mais pobres consomem 5,8% desses bens.
Ou ainda, nessa lógica global do mundo, as vítimas, na idade da
globalização e da exclusão, alcançam quadros que impressionam
(POCHMANN, 2004, p. 56):
O mundo moderno está longe de ser um lugar onde a pobreza e a exclusão
social estejam sendo vencidas. Na verdade, as antigas regiões pobres
situadas entre os trópicos são as mesmas que hoje apresentam os piores
indicadores de exclusão social. Aliás, entre os 40 países com os piores
destes valores, 82,0% deles estão na África, 7,5% na América, 7,5% na
Oceania e 2,5% na Ásia.
Os 40 países com os melhores valores no IES11, estão distribuídos
desigualmente pelos cinco continentes (70,0% deles na Europa, 17,5% na
Ásia, 5% na América, 5,0% na Oceania e apenas 2,5% na África).
Entre os dois extremos, há 95 países que se encontram em posições
intermediárias, com um IES variando de 0,855 a 0,509. Neste bloco, aliás,
localiza-se a maioria dos países da América Latina, como por exemplo,
Argentina (57ª. posição), Uruguai (58ª. posição), Chile (68ª. posição), Costa
Rica (69ª. posição), Peru (81ª. posição), Brasil (109ª. posição) e Colômbia
(111ª. posição).
Enfim, observando o IES, o que se percebe é a existência de “ilhas” de
inclusão em meio a um “oceano” de exclusão em todo o planeta. Ou,
mais propriamente, nas regiões em torno ou abaixo do Trópico de Câncer.
Isso se repete, também, no estudo da maioria dos índices parciais que
compõem o IES.
Ou ainda o mesmo autor diz que:
Dois bilhões e setecentos milhões, cerca de 50,0% da população mundial.
Esse é o número aproximado de pessoas que vivem com menos de dois
dólares por dia, consideras aqui miseráveis e pobres.
Dos 40 países com os piores valores no Índice de Pobreza, ou seja, com
maior número relativo de miseráveis e pobres, 27 encontram-se na África,
8 na Ásia, 3 na Oceania e 2 na América. Nesses países, mais de 80 em cada
100 habitantes vivem com até 2 dólares por dia. Zâmbia (175a. posição),
Nigéria (174a. posição) e Mali (173a. posição) lideram o ranking dos piores
valores no Índice de Pobreza. Nesses países, especificamente, 90 em cada
100 pessoas vivem com até dois dólares dia.
11 Índice de Exclusão Social (IES)
28
29
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
Entre os países do ranking situados em posições intermediarias, encontrase a maioria dos países da América Latina. É lá que está o Brasil, ocupando
a 71ª. Posição. De cada 100 brasileiros, cerca de 24 vivem com até 2
dólares dia, ou seja, são miseráveis ou pobres. Outros países latinoamericanos, como Cuba (44ª. posição), Bahamas (46ª. posição), Argentina
(48ª. posição), República Dominicana (57ª. posição), Chile (60ª. posição),
México (73ª. posição), Panamá (74ª. posição) e Jamaica (76ª. posição)
também se situam no bloco intermediário da pobreza.
Finalmente, dentre os 40 países com os melhores valores no Índice de
Pobreza, 24 estão localizados na Europa, 8 na Ásia, 4 na América e 2
na África. Aliás, entre as primeiras posições no ranking, só há países
europeus: Bélgica (1a. posição), Dinamarca (2a. posição), Finlândia (3a.
posição), França (4a. posição), Alemanha (5a. posição), Luxemburgo (6a.
posição), Holanda (7a. posição), Noruega (8a. posição), Suécia (9a. posição),
Suíça (10a. posição). Nesses países, de cada 100 habitantes, apenas 1 vive
com até dois dólares por dia. (POCHMANN, 2004, p. 58)
Ou, considerando o critério da desigualdade existente no mundo,
temos (POCHMANN, 2004, p. 62):
A população total residente nos 40 países com os piores valores
no Índice de Desigualdade soma 841 milhões de pessoas. Essa
soma corresponde a quase 14% da população do planeta. Ou seja,
de cada 100 pessoas, 14 moram em algum dos 40 países mais
desiguais do mundo. Distribuídos por quatro dos cinco continentes
(24 na África, 2 na Ásia, 1 na Oceania e 13 na América), tais paises
são liderados pela Namíbia (175a. Posição do ranking), seguida por
Lesoto, Honduras, Paraguai, Serra Leoa, Botsuana, Nicarágua,
República Centro Africana, Brasil, África do Sul e Guiné-Equatorial,
respectivamente entre as 174a. e 165a. posições.
É esse o retrato a partir de apenas alguns dados estatísticos. No entanto,
eles já são suficientes para ilustrar a tese acima mencionada.
Dois aspectos de extrema importância para a ordem de ideias em
consideração merecem ser destacados.
Primeiro, é imperioso dizer que estamos diante de uma crise de
realidade. Não se trata de um problema que se coloca na ordem da
eficácia ou ineficácia de determinado campo de atuação, seja ele político
ou normativo. Para exemplificar, a dramaticidade do problema não
diz respeito apenas, nem sequer em seu cerne, a eventuais ou reais
deficiências de políticas públicas relacionadas à proteção dos direitos
humanos - isso também existe -, ou a eventuais ou reais defasagens ou
injustiças na ordem da positivação no campo do direito. O que o ocorre
é que a civilização do capital - para outros a civilização moderna - é que
30
Celso Luiz Ludwig
produz em sua lógica e em sua práxis relações sociais e sistêmicas de
massiva violação dos direitos humanos. Produz relações de negação da
mais elementar condição humana. E nas perspectivas das causas, a fonte
maior dessas violações, ou seja, aquela que supõe a violação mais grave
e está na raiz das demais violações, é a violência estrutural: a violência
da civilização do capital (quiçá moderna) que coloca a imensa maioria
da humanidade em condições biológicas, econômicas, sociais, políticas,
culturais e jurídicas em rigorosa precariedade, em condições desumanas.
É essa a violência estrutural fundamental e é dela que decorre uma
exigência crítica de denúncia constante. Decorre uma exigência ética de
responsabilidade pelos efeitos negativos gerados pela lógica do capital.
Decorre dela uma exigência político-jurídica pela violação estrutural dos
direitos humanos.
Segundo, mais recentemente, embora já se trate de um processo que
se alonga no tempo, o mundo periférico e semiperiférico, e aqui também
cabe a referência especial à América Latina e ao Caribe, experimenta
os efeitos da estratégia da globalização de forma extrema e radical. O
chamado terceiro mundo é por excelência o lugar da violação dos direitos
humanos. Em nenhuma parte há tantas vítimas como no terceiro mundo,
embora toda a retórica de exaltação dos direitos humanos. Essa é, sem
dúvida, uma das estratégias mais visíveis da globalização. Afinal, tudo
é feito em nome dos direitos humanos, e da proteção da natureza. No
entanto, o que o processo de globalização mantém e até mesmo acelera
e intensifica, é a mencionada violência estrutural fundamental, de onde
emanam as violações relacionadas à dignidade humana. Na América Latina
em especial, a estratégia da globalização consistiu nos chamados ajustes
estruturais relacionados a três dimensões da sociedade (Hinkelammert,
1999, p. 239 e segs). Estas relacionadas com a abertura tendencialmente
ilimitada ao capital financeiro e às mercadorias, à reestruturação do
Estado e imposição da lógica das privatizações, que resultam em nova
fonte de acumulação originária, e a flexibilização da força de trabalho, com
as consequências que daí decorrem na ótica da violação de direitos e da
fragilização da organização coletiva das forças sindicais dos trabalhadores.
Essa imposição dos ajustes estruturais vem acompanhada da propagação
da ideologia da competitividade e da eficiência. Instaura-se uma guerra
econômica. A questão toda está centrada na estratégia da vitória. É isso
que interessa. Vence quem consegue eliminar as distorções do mercado.
Essa é a razão porque a questão das distorções do mercado assume
uma importância central: a lógica real do processo de globalização se
expressa mais nitidamente em termos de eliminação das distorções do
mercado (HINKELAMMERT, 1999, p. 240). As distorções são fricções que
31
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
devem ser eliminadas. Quanto menos fricções, melhor o funcionamento
da máquina, que autopoieticamente vai se aperfeiçoando. Quanto
menos fricções, mais perfeito o sistema. As distorções são muitas e há,
entre elas, as que dizem respeitos aos direitos humanos. Na estratégia
da globalização, os direitos humanos, em sua totalidade, são vistos como
distorções do mercado. E, como tal, o aperfeiçoamento da máquina, ou
seja, a engrenagem do mercado no processo de globalização vai também
eliminando as fricções que causam a violação dos direitos humanos. No
entanto, enquanto isso não acontece, ocorre um choque entre os direitos
humanos e a lógica do processo de globalização. O choque é evidente. E
isso acontece exatamente na sociedade de um mundo globalizado que
fala dos direitos humanos numa intensidade jamais vista anteriormente.
Afinal, todos estão preocupados com os direitos humanos. Vencedores
e vencidos. No entanto, a concepção que as pessoas têm dos direitos
humanos certamente não é a mesma. Há uma compreensão, um uso e uma
práxis ambígua nesse terreno. Tanto vencedores quanto perdedores nesse
processo de globalização falam de direitos humanos. Falam, no entanto,
de perspectivas distintas. A atual estratégia de globalização compreende
os direitos humanos como direitos do proprietário. Direitos humanos que
têm sua raiz num mundo pensado como mercado e, agora, como mercado
globalizado. Direitos formulados desde onde? Desde o mercado. Direitos
formulados para quem? Para o proprietário. Direito formulados para
quê? Para a relação mercantil, econômica. Ou seja, para o mercado. O
âmbito da liberdade é o mercado. Ocorre uma extremada redução dos
direitos humanos ao direito de propriedade. Assim, direitos humanos e
direitos de mercado acabam identificados por inteiro. Não se pensam
direitos humanos para além do mercado. Ou então, menos ainda, direitos
humanos contra o mercado. A formulação dos direitos humanos desde e
nos limites do mercado, para os sujeitos do mercado, e com a finalidade
da permanente produção, reprodução e desenvolvimento autopoiético
do mercado, exclui de sua lógica a possibilidade e necessidade de uma
concepção e fundamentação diferente dos direitos humanos. Talvez, por
essa razão, a dramaticidade do problema dos direitos humanos esteja
reduzida à dimensão política da necessidade de sua proteção.
Feitas as rápidas observações nesses dois aspectos, é hora de voltar
para a questão do tríplice aspecto da fundamentação na perspectiva que
aqui interessa. Afinal, em nosso caso, como responder ao problema da
fundamentação dos direitos humanos: (a) desde onde se consideram; (b)
para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam, numa perspectiva
que não seja a da lógica do mercado na estratégia de globalização atual?
32
Celso Luiz Ludwig
A resposta não pode ser outra senão a que se orienta para o sujeito ou
os sujeitos da fundamentação dos direitos humanos ou, propriamente,
para os sujeitos dos direitos humanos, que são todos os oprimidos
e excluídos; os que têm a sua condição de sujeitos autônomos e livres
negada na e pela estratégia da globalização.
A questão dos direitos humanos, ao lado de todos os importantes
debates e posições teóricas, desde o universalismo abstrato, passando
pelo comunitarismo, à posições da razão discursiva habermasiana, aos
enfoques dos multiculturalismos, - todos com valiosas contribuições -, é
possível e necessário ir ao cerne do problema, ir à sua raiz, e demarcá-lo
no contexto da vida negada - que de algum modo é contexto de morte
- das maiorias excluídas e oprimidas, e das minorias discriminadas e
perseguidas.
Esses são os sujeitos do filosofar transmoderno ou descolonial. Esses são
os sujeitos dos direitos humanos na perspectiva da filosofia transmoderna
e descolonial. Direitos humanos que se definem desde tais sujeitos, para
tais sujeitos, e para que a vida negada desses sujeitos tenha a esperança
de se tornar vida afirmada. É esse o ponto de partida da afirmação
histórica dos direitos humanos na ordem da práxis libertadora frente a
práxis de opressão e exclusão, na estratégia capitalista de globalização.
As negatividades (tais como fome, miséria, pobreza, dor, doenças,
analfabetismo, desnutrição, discriminação cultural, social e sexista, étnica,
opressão política e ideológica), ou então, toda negatividade é o desde
onde – lugar de fundamentação e legitimidade da exigência dos direitos
humanos -, é o para quem – subjetividades com a vida negada pelo
mercado globalizado, fonte legitima da exigência dos direitos humanos
-, e é para quê - necessidade de negação da negatividade, exigência de
afirmação dos sujeitos, esses sim, fonte dos direitos humanos, antes,
depois e mesmo contra o mercado.
É tal contexto que exige a ampliação da questão concernente aos
direitos humanos. Não se pode entendê-la nos estreitos limites da esfera
da aplicação, ou a um problema de ordem prática, porque alguma coisa
está desajeitada, desajustada, inadequada; ou mesmo reduzi-la à esfera
da proteção. Tudo está definido em termos de direitos humanos, só não
estão sendo protegidos como deveriam, havendo atritos intrassistêmicos.
Portanto, retomando a ideia aqui defendida, a dramaticidade do
problema dos direitos humanos está na ordem da fundamentação e nesta,
especificamente, no momento da factibilidade.
33
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna
4. Conclusão
A violação massiva dos direitos humanos ocorre porque não são
factíveis no mundo do capitalismo, especialmente, agora, com a
globalização e sua específica estratégia. A factibilidade situada na ordem
da fundamentação permite examinar criticamente se a aplicação ou a
proteção dos direitos humanos é negligenciada em razão de desajustes,
distorções, fricções intrassistêmicas, ou se a violação é inevitável, porque
na totalidade do capital globalizado sua proteção não é possível. Pois,
como já vimos, a concepção e fundamentação dos direitos humanos, no
sentido hegemônico, têm sua origem no mercado e seu destino é o da
preservação do mercado. Resulta daí sua impossibilidade. Na concepção
e fundamentação crítica contra-hegemônica têm sua origem na vida
negada, e seu destino é a vida dos sujeitos antes, depois e mesmo contra
o mercado. Portanto, desde onde, para quem e para que os direitos
humanos devem existir.
34
Celso Luiz Ludwig
Franz Hinkelammert (1999, p. 248) o que podemos, no entanto, afirmar é
que uma ação alternativa só pode consistir de uma ação coletiva. Nesse
caso, a exigência de uma ação coletiva contra-hegemônica é a condição
de possibilidade necessária para enfrentar aquelas forças que, por sua
vez, resultam da supressão da ação coletiva. Tal processo envolve, como
pondera nosso pensador, a ação solidária. E esta ação coletiva, no entanto,
na estratégia hoje dominante, desemboca também nas dimensões globais,
sem as quais não pode ser efetiva. É o paradoxo a ser enfrentado.
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Nessa ótica, o modelo dos direitos humanos na concepção da civilização
ocidental, ou seja, como núcleo de legitimidade do ideal prático da
civilização do capital, agora globalizado, tem elementos de falsidade
que deslocam a problematicidade dos direitos humanos apenas para a
dimensão de sua proteção. Assim, o contexto exige a crítica material com
o objetivo de reivindicar conteúdos com pretensão de verdade contrahegemônica, em especial os das necessidades básicas, sem a satisfação
das quais a vida, nesse seu momento, estará sujeita a negação absoluta.
É necessária a crítica formal, porque há elementos indicativos de uma
injustiça estrutural como nunca antes visto e, portanto, de perda da
legitimidade, agora caracterizada como invalidade dos procedimentos
hegemônicos. E por fim, impõe-se o princípio da factibilidade crítica, eis
que se o existente não permite estruturalmente a proteção dos direitos
humanos, porque concebido e fundado na lógica do mercado globalizado,
o novo factível requer nova concepção e nova fundamentação, que
permita a efetividade dos direitos humanos.
APEL, Karl-Otto y DUSSEL, Enrique. Ética del discurso y ética de la liberación. Madrid:Trotta,
2004.
Cumpre, aqui, esclarecer que se é certo que não se pode cair na ilusão
filosófica ingênua de que a fundamentação leva espontaneamente à
realização, também é certo que o exercício filosófico crítico pode mostrar
a falsidade, a ilegitimidade e a impraticabilidade de um projeto que,
equivocadamente, pretende se afirmar em nome dos direitos humanos,
quando a rigor opera a lógica de sua impossibilidade.
DUSSEL, Enrique D. Hacia uma filosofia política crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001.
Há que pensar alternativas a partir dessa situação. Com a crise das
utopias modernas, e certa descrença pós-moderna nas metanarrativas,
não sabemos ao certo quais poderiam ser tais alternativas. Segundo
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36
Melina Girardi Fachin
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS
DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma
análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
Melina Girardi FACHIN1
Introdução
A singela reflexão que ora se erige tem como objetivo analisar as
políticas públicas voltadas aos direitos econômicos sociais e culturais.
Esta análise está sob o foco da concepção contemporânea dos direitos
humanos e com enfoque especial ao cenário estadual paranaense de
proteção.
A premissa da qual o presente artigo parte é de que os direitos
econômicos, sociais e culturais são direitos humanos dotados do mesmo
grau de importância e merecedores de igual tutela jurídica e política que
os direitos civis e políticos. Há entre as diferentes categorias de direitos
relação de interdependência e complementaridade em prol da maior e
melhor proteção da dignidade humana.
O discurso clássico protetivo dos direitos humanos não foi, todavia, apto
para tratar essas diferentes categorias de direitos de modo equânime.
Tradicionalmente, os direitos civis e políticos, ditos de primeira geração
ou dimensão, gozaram de maior proeminência, ao menos no que toca
a sua aplicabilidade, que os direitos econômicos e sociais. A justificativa
para esta discriminação na tutela jurídica repousa nos supostos custos
e padrão de comportamento estatal na aplicação desta categoria
dos cognominados direitos de segunda geração ou dimensão2. Essa
ambivalência impacta, mormente, no papel das políticas públicas voltadas
1 Doutoranda em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo/BR (2010-andamento), sob a orientação da Prof. Dra. Flávia Piovesan. Visiting researcher da Harvard
Law School (Cambridge/USA, janeiro a março de 2011). Mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo/BR (2008), sob a orientação da Prof. Dra. Flávia Piovesan, tendo defendido dissertação acerca
dos fundamentos dos direitos humanos (obra publicada pela ed. Renovar, 2009). Possui aperfeiçoamento em
Direitos Humanos pelo Institut international des droits de lhomme (Strasbourg/FR, 2005) e graduação em Direito
pela Universidade Federal do Paraná/BR (2005). É professora assistente da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), professora assistente voluntária de direitos humanos na Pós-Graduação Stricto Sensu da
PUC/PR e professora convidada no curso de especialização em direito constitucional do IDCC (Londrina/PR). Autora
de diversas obras e artigos na seara do Direito Constitucional Internacional e Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Advogada sócia da banca Fachin Advogados Associados (Curitiba/PR, 2006). Membro da Comissão de
Direitos Humanos da OAB/PR.
2 O presente trabalho não compartilha da classificação geracional ou dimensional – a mudança de signo apazigua,
mas não afasta a noção linear e evolutiva da história dos direitos fundamentais que se pretende repassar com a
análise. Em que pese bastante didática, a classificação reduz complexidades importantes e não espelha a realidade
dos direitos e de sua construção histórica. Os direitos humanos e os direitos fundamentais são processos de luta,
fruto dos muitos avanços e recuos da história. No dizer de Hannah Arendt, “os direitos humanos não são um dado,
mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”. In: ARENDT,
Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
37
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
à aplicação dos direitos e da postura estatal comprometida com a sua
realização. Novos nichos se abrem em prol da efetivação material desses
direitos, sobretudo, no campo judicial, por conta das lacunas derivadas da
inércia dos demais poderes constituídos. É esta a reflexão, à luz do cenário
contemporâneo de direitos humanos, com maior enfoque no cenário
judicial paranaense, que segue.
2. A Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e
Culturais: a integralidade e interdependência enunciadas
A concepção contemporânea dos direitos humanos, inaugurada no âmbito
internacional no pós-segunda guerra, erige-se como consequência do
sofrimento humano em decorrência das atrocidades perpetradas. Este
momento, em oposição ao ocorrido antes e durante conflito, reconstrução
e reafirmação dos direitos humanos, no âmbito nacional e internacional.
As atrocidades perpetradas necessitavam de uma resposta da comunidade
internacional, como explica Flávia Piovesan: “Se a segunda guerra significou
a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua
reconstrução”3.
Sob as cicatrizes indeléveis da barbárie, tal marco protetivo internacional
da pessoa humana traz consigo, espelhadas na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), as insígnias da universalidade e da integralidade.
De um lado, a universalidade que pugna a condição humana como único
fundamento para um conjunto inderrogável de direitos que deveriam ser
garantidos a todos os indivíduos no globo. De outro lado, a integralidade
que significa uma visão holística dos direitos humanos, apta a congregar
direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais para
melhor proteção da pessoa humana.
Rompeu-se com o discurso apartado que ainda dominava o
constitucionalismo estatal ao aliar as tradições protetivas do Estado de
Direito Liberal e do Estado de Direito Social em um único documento,
submetendo-os ao mesmo regime jurídico. Essa alteração refletiu nos
planos constitucionais internos e resultou na estruturação contemporânea
complexa do Estado Democrático de Direito – ou Estado Constitucional,
como quer Canotilho4 – plasmado no nosso plano local na Carta de 1988.
3 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 117.
4 Na lição do autor: “O Estado constitucional carece da legitimidade do poder político e da legitimação
desse mesmo poder. O elemento democrático não foi apenas introduzido para «travar» o poder (to check the
power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder. Se quisermos um Estado
constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (I) uma é
a legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no Estado de direito; (2) outra é
a legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político no Estado democrático.
O Estado «impoIítico» do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o
princípio da soberania popular, segundo o qual «todo o poder vem do povo», assegura e garante o direito à igual
participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado
segundo procedimentos juridicamente regulados serve de «charneira» entre o «Estado de direito» e o «Estado
38
Melina Girardi Fachin
Assim, consoante nos ensina Flávia Piovesan5, tal como há um direito pré
e pós 48 no âmbito internacional de proteção dos direitos humanos, há
um direito pré e pós 88 no campo protetivo constitucional pátrio e ambos
os movimentos sofrem influências recíprocas.
A concepção contemporânea de direitos humanos cedeu, todavia,
espaço a uma visão parcial de direitos, pautada na dicotomia de categorias
jurídicas – de um lado, direitos civis e políticos, e de outro, direitos
econômicos, sociais e culturais – tratadas de modo díspar e ambivalente.
Essa desarmonia teve como um primeiro reflexo a adoção, no plano
global, de dois Pactos – o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – que
instauraram regimes jurídicos profundamente diversos às duas espécies
de direitos. Aos direitos civis e políticos conferiu-se tutela reforçada com
a obrigação de respeito e realização imediata por parte dos Estados,
posto que supostamente reclamam postura abstêmia do ente estatal sem
necessidade de empregar recursos financeiros na sua realização. A par
dessas obrigações, erigiu-se um aparato forte de controle na realização
desses direitos. Aos direitos sociais, por outro lado, conferiu-se a tutela
fraca da realização progressiva, sendo os Estados responsáveis pela sua
implementação, ao longo do tempo, na medida dos recursos disponíveis,
tendo em vista que tais direitos reclamam políticas e ações públicas com
impactos orçamentários. E coerente com a enunciação normativa, há um
sistema parco de monitoramento – hodiernamente em consolidação – em
relação a esses direitos.
Esse padrão fragmentário e ambíguo prevaleceu e, ainda hoje, prevalece
tanto nos demais sistemas de proteção aos direitos humanos6. No âmbito
interno, a interpretação constitucional que se seguiu acerca da eficácia
das normas7 também relegou os direitos econômicos, sociais e culturais
democrático», possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático”. In: CANOTLHO,
José Joaquim Gomes. O Estado de Direito. Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 31.
5 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012.
6 Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos – que se erigem ao lado e em somatório dos demais
aparatos existentes – possuem sua tônica na defesa dos direitos civis e políticos, relegando os direitos econômicos,
sociais e culturais a um segundo plano. Isto porque, nos sistemas europeu e interamericano, a possibilidade de
justicialização apenas pode versar, de modo direito e em larga medida, sobre as liberdades negativas. Somente
o sistema regional africano de proteção dos direitos humanos se afasta desse paradigma, congregando
normativamente as duas categorias de direitos e fixando-as como interdependentes e inter-relacionadas. Todavia,
neste último caso, ainda há de se traçar a ponte da enunciação normativa à vivência fática desses direitos.
7 Nesse aspecto, referência deve ser feita à obra de José Afonso da Silva acerca da tripartição das normas
constitucionais consoante sua eficácia em normas constitucionais de eficácia plena, de eficácia contida e de
eficácia limitada. Em que pese a importância histórica da classificação faz-se mister – no que tange aos direitos
fundamentais – lê-la em conjunto com a determinação constitucional do art. 5º, parágrafo 1º, de aplicabilidade
imediata dessas normas. Para mais, ver: SILVA, José Afonso da. Eficácia das Normas Constitucionais. São Paulo:
Malheiros. Em revisão à luz da teoria dos direitos fundamentais, anota Virgílio Afonso da Silva a inadequação da
aplicabilidade da teoria porque “todos os direitos fundamentais são restringíveis e todos os direitos fundamentais
são regulamentáveis”. Para mais, ver: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e
a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado. São Paulo, vol. 4, p. 23-51, 2006. Citação à
página 47.
39
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
ao segundo plano.
Destarte, o projeto da universalidade e integralidade dos direitos
humanos não resistiu a esse processo de normatização e aprofundamento
dos padrões mínimos protetivos fixados na arquitetura internacional que
se seguiu.
3. A Fragmentação da Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos
Econômicos, Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência negadas
A concepção contemporânea de direitos humanos cedeu espaço a uma
visão parcial de direitos, pautada na dicotomia de categorias jurídicas – de
um lado, direitos civis e políticos, e de outro, direitos econômicos, sociais
e culturais – tratadas de modo díspar e ambivalente.
Nada obstante, esse norte dicotômico ter prevalecido, desnudou-se a
falácia desta abordagem partida entre direitos positivos e negativos que,
por questões ideológicas, levaram à discrepância na tratativa dos direitos;
a partir dessa predisposição de ambivalência; formaram-se, consoante
acima demonstrado, argumentos que se espraiam – sobretudo pelos
campos econômico, político e jurídico – que, todavia, não se sustentam8.
Não há como negar que esse divórcio possui conexões e também
consequências políticas. Os direitos econômicos, sociais e culturais, como
direitos subjetivos à participação do bem-estar social, exigem prestações
sociais e vinculam-se, sem dúvida, a uma melhor distribuição de recursos
financeiros e fiscais dentro de uma sociedade. Isso contribui para o
desenvolvimento humano na busca de condições mínimas de uma vida
digna9.
Obviamente, os direitos humanos são categoria diversa e complexa
que, por vezes, necessitam de arquétipos diferenciados para sua
realização. Todavia, sua plena realização apenas será alcançada se
abraçada a heterogeneidade que reside no seu âmbito. A diferenciação
8 “Sob essa perspectiva, os direitos civis e políticos se distinguem dos direitos econômicos, sociais e culturais
mais em uma questão de grau do que em aspectos substanciais. Pode-se reconhecer que a faceta mais visível dos
direitos econômicos, sociais e culturais sejam as obrigações de fazer e, é por isso, que às vezes são denominados
“direitos-prestação”. Contudo, não é difícil descobrir, quando se observa a estrutura desses direitos, a existência
concomitante de obrigações de não fazer: o direito à saúde compreende a obrigação estatal de não prejudicar a
saúde; o direito à educação pressupõe a obrigação de não piorar a educação; o direito à preservação do patrimônio
cultural implica a obrigação de não destruir esse patrimônio.” In: ABRAMOVICH, Victor. Linhas de trabalho em
direitos econômicos, sociais e culturais: instrumentos e aliados. In: Sur Revista Internacional de Direitos Humanos.
2005, vol.2, no.2, p. 189-223. p. 194. 9 Nessa direção, colhe-se de Rosas e Eide as seguintes afirmações: “Taking economic, social and cultural rights
seriously implies at the same time a commitment to social integration, solidarity and equality, including tackling the
question of income distribution. Economic, social and cultural rights include a major concern with the protection
of vulnerable groups, such as the poor, the handicapped and indigenous peoples.” In: EIDE, Asbjorn; ROSAS,
Alan. Economic, Social and Cultural Rights: a universal challenge. In: EIDE, Asbjorn; KRAUSE, Catarina; ROSAS,
Alan (Editors). Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition. Dordrecht: Martinus Nijhoff
Publishers, 2001. p. 5.
40
Melina Girardi Fachin
deve ser razão da promoção de direitos, tomados em sua relação integral
de complementaridade, e não de divisão, subjugação e hierarquização de
determinadas categorias em face de outras.
O legado da Declaração Universal de Direitos Humanos ainda,
concretamente, não se realizou, sendo a concepção de integralidade,
interdependência, indivisibilidade e universalidade do conteúdo dos
direitos humanos promessa a cumprir, nos planos global, regional e local.
A ruptura com a interconexão entre esses direitos espelha-se na ênfase
exacerbada nos direitos civis e políticos em detrimento dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Nas palavras de Cançado Trindade:
“Urge despojar esse tema de toda a retórica e passar a tratar os direitos
econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos que o são”10.
A fissura provocada na visão integral e inter-relacionada de direitos
acaba por gerar uma universalidade, paradoxalmente, relativa, no que
tange à proteção e à promoção desses direitos. O discurso universalista
assume a desigualdade e a separação operadas, o que, por sua vez, gera
preponderância dos direitos civis e políticos em prejuízo dos direitos
econômicos, sociais e culturais.
O discurso hegemônico claudica ao refletir a compreensão dividida dos
direitos, com foco nos direitos civis e políticos, tolerando a não realização
dos direitos econômicos, sociais e culturais sob a frágil justificativa da
progressividade e dos recursos disponíveis à sua realização. Esse projeto
de proteção mostrou-se parcial e relativo e acabou por consentir com o
crescimento das desigualdades e da exclusão social no mundo.
4. O Regaste da Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos,
Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência resgatadas
Mesmo de modo insuficiente e insatisfatório, pois ainda há um longo
caminho a singrar, a comunidade internacional tem se aberto à proteção
e consecução desses direitos. Tendo em vista a partição normativa e a
ambivalência de regimes jurídicos, experiências jurisdicionais, em maior
ou menor medida, tem desmitificado e ressignificado a proteção dos
direitos econômicos, sociais e culturais, colocando-os em patamar de
igualdade com aqueles civis e políticos.
Eleva-se, portanto, o Poder Judiciário, nacional e internacional, à
condição de importante espaço de realização dos direitos, sobretudo,
dos direitos econômicos, sociais e culturais que ficaram alijados de sua
10 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Legado da Declaração Universal e o Futuro da Proteção Internacional
dos Direitos Humanos. In: AMARAL JUNIOR, Alberto; PERRONE-MOISÉS, Claudia (orgs). O Cinquentenário da
Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1998. p. 13-51. p. 40.
41
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
universalidade de fato em consequência de seu menor reforço normativo.
A propósito, mencione-se tout court, que há forte contraposição à
justicialização nacional e internacional dos direitos de participação do
bem-estar social. Tradicionalmente, essas críticas refletem as frágeis
justificativas, acima já expostas e combatidas de realização dos direitos
sociais. As contraposições focam-se, sobretudo, no princípio da soberania
estatal, no princípio da separação dos poderes, na ausência de legitimidade
democrática do poder judiciário para consecução e políticas públicas e
manejo do orçamento11, dentre outras que se conectam a esse core.
Emerge, destarte, a necessidade de se revisitar as teorias tradicionais
do princípio da separação dos poderes e a teoria democrática, a fim de
preencher de novos significados tais significantes e de adequar a teoria
do estado à realidade e suas exigências, bem como à atuação do Poder
Judiciário das demandas que batem às portas da lei.
A clássica separação de funções de cada um dos poderes do Estado12
não encontra conexão com a realidade hodierna, pois nasce ligada a um
momento histórico em que se pretende a minimização dos poderes do
Estado por influência do pensamento liberal. Além disso, a importância da
teoria da divisão dos poderes conecta-se à defesa dos direitos individuais
como garantia destes frente ao poder absoluto.
Hoje, não há lugar para um rigoroso princípio da separação, se é que
houve mesmo, historicamente, tal secção13, uma vez que as mudanças
sociais e a crescente necessidade de intervenção estatal na sociedade
tornaram necessária a reestruturação dos fundamentos do próprio
Estado, incluso a teoria da separação dos poderes14. Exige-se, assim,
11 David Bilchitz traz dúvida com relação a este argumento, dizendo que: “It is not in fact true that significant
budgetary implications will invariably follow from orders involving socio-economic rights: the enforcement of
negative duties associated with socio-economic rights—for instance, preventing the state from demolishing houses
or evicting persons—will not necessarily attract major budgetary consequences. In relation to positive duties, the
exact nature of the budgetary consequences will depend on the order that is made and the context: the extension
of an existing feeding scheme, for instance, may cost less than the creation of a new feeding program. Moreover,
it is not clear that there is necessarily a significant difference in all societies between the amount spent on the
positive obligations imposed by civil and political rights as opposed to those imposed by socio-economic rights.”
In: BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights.
Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p.129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009,
doi:10.1093/acprof:oso/9780199552160.001.0001.
12 Diversos autores são destacados como antecessores e contributos desta divisão funcional do Estado, mas
foi Montesquieu em sua obra L´Esprit des Lois (1748) que fez emergir a noção de tripartição das funções típicas
de Estado (executivo, legislativo e judiciário) como “poderes” independentes entre si. Para mais, ver: SALDANHA,
Nelson. O estado moderno e a separação dos poderes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010. p. 78-85.
13 Bonavides destaca que James Madison, nos papeis federalistas, já sublinhava que: “o mais leve vislumbre da
Constituição Inglesa demonstra que nenhum dos departamentos jurídico, executivo e judiciário estava totalmente
separado ou distinto entre si”. In: Sobre a temática ver: BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2011. p. 148.
14 “... enquanto os direitos clássicos do Liberalismo eram direitos à proteção e à limitação jurídica do poder,
os direitos sociais são direitos à promoção, direitos que apontam à organização da solidariedade. Se no Estado
liberal buscava-se fazer valer direitos contra o Poder Público, no Estado Social insurgiram-se direitos ante o Poder
Público”. In: PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade
por omissão e mandado de injunção. 2. ed. rev. atual. amp. São Paulo: RT, 2003. p. 36.
42
Melina Girardi Fachin
uma nova separação dos poderes que, em colaboração, atuem para o
desenvolvimento constitucional sob as balizas democráticas, técnicas e
de proteção dos direitos fundamentais. Outrossim, diante da importância
conferida aos direitos fundamentais, deu-se a potencialização da atividade
do Judiciário, que recebeu a competência para salvaguardar e garantir a
aplicação desses direitos.
A carência de legitimidade democrática é outro argumento que não
merece prosperar, visto que todos os Poderes retiram sua legitimidade
para atuação do texto constitucional, no qual a dignidade da pessoa é fim
e fundamento. O processo de alargamento da democracia na sociedade
contemporânea não ocorre apenas por intermédio do aperfeiçoamento
dos modelos de participação democrática, mas também e, sobretudo, por
meio da extensão da democratização da arena política à arena econômica
e social, visto que a democracia real apenas exsurge com a efetiva garantia
(e respectiva realização) de direitos.
A democracia, nessa visão, não dialoga exclusivamente com o
princípio majoritário e ganha outros contornos15. É necessário, portanto,
a adoção de medidas – o que se faz por meio de qualquer dos Poderes
instituídos para a defesa da ordem dos direitos fundamentais, sobretudo
das minorias16 – que minimizem o arbítrio do Estado e das maiorias
ocasionais que estejam nos postos decisórios das instituições políticas.
Sobre a necessidade da revisão dessa ordem de ideias, explicita Jurgen
Habermas que “o esquema clássico da separação e da interdependência
entre os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção, uma
vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas
concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal”17.
15 Destaque-se, aqui, a lição de Roberto Gargarella que afirma: “O controle judicial pode ser um instrumento
crucial para enriquecer a deliberação pública a respeito dos direitos sociais. Ademais, o ativismo judicial na área
dos direitos sociais pode ser especialmente relevante, dada a íntima relação que existe entre direitos sociais e
a participação política”. In: GARGARELLA, Roberto. Democracia Deliberativa e o Papel dos Juízes Diante dos
Direitos Sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.(coord.) Direitos Sociais: fundamentos,
justicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 207-227. p. 219.
16 Acerca dessa importante função do Poder Judiciário em relação às minorias anota David Bilchitz:
“Representative institutions take decisions on the basis of a majority vote. As a result, they are well set up to
reflect the opinions of the majority of citizens. However, there is a clear institutional inclination towards
deciding matters on the basis of the interests of a majority. In relation to matters of fundamental rights, there
is often a delicate balance to be struck between the interests of different individuals. The interests of perpetual
minorities may simply be ignored by majoritarian institutions, and, even if they are taken into account, they may
be misconstrued through the prejudices of those in the majority. Discrimination and ethnic factors may further
contribute to distorting the judgment of the majority. The sidelining of minorities may not necessarily take place
through deliberate discrimination by majorities; rather, it may be that the interests of minorities are simply not
taken into account adequately by the democratic process. Consider most modern democracies in the developed
world. Political parties generally appeal to the middle class to be elected, and thus the concerns of the middle class
are dominant. Homeless people may also be voters, but their numbers may be insufficient to have an impact on
party policies or to warrant serious concern by political parties. Thus, their interests are sidelined and not placed
firmly on the political agenda. Scant attention can be paid to the homeless as there is little.” In: BILCHITZ, David.
Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Oxford/New York:
Oxford University Press, 2008. p. 124. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009, doi:10.1093/acprof:
os o/9780199552160.001.0001.
17 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Editora
43
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
Alçar também o Poder Judiciário, seja no âmbito interno ou
subsidiariamente na seara internacional, à realização dos direitos
humanos, sobretudo aqueles sociais mais básicos, não é apenas razoável
como imperativo. Todo o aparelho de Estado é responsável e deve se
somar na realização da dignidade da pessoa humana e é deste princípio
que decorre o mandato das instâncias judiciárias para atuar em relação
aos direitos humanos18.
Na conjuntura pátria torna-se ainda mais importante a participação
ativa e corresponsável das instâncias judiciais como forma de atuar em
relação à profunda desigualdade social. O Judiciário não pode quedar
passivo diante dessa realidade, sendo a participação da jurisdição na
realização dos direitos um importante mecanismo de democratização e
fruição da verdadeira cidadania.
Refutar a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais pela
via judicial atende a padrões ideológicos e não técnicos. As garantias
judiciais são um importante mecanismo para romper com a dicotomia e
ambivalência instauradas de que a categoria dos direitos civis e políticos
merece acatamento e plena realização enquanto os direitos sociais ficam
à mercê da boa-vontade e caridade estatal. A propósito, eis a precisa lição
de David Bilchitz:
(…) judicial duties in relation to socio-economic rights will not differ greatly
from those they perform in relation to civil and political rights. Courts
are not criticized for ordering the provision of legal representation to the
unrepresented, or for ordering that all are provided with the vote in a
society: why then should they be criticized for ordering a state to ensure
that people are provided with enough food to avoid malnutrition? The
rationale for this distinction seems to lie in the fact that the critics regard
socio-economic rights as in some way inferior to civil and political rights
and as not warranting equal protection.19
Fluem nesse intuito de levar os direitos econômicos, sociais e culturais
a sério e, por via de consequência, promover visão holística e universal
dos direitos humanos as experiências jurisprudenciais. Analisar-se-ão,
portanto, sem o intuito de esgotamento, mas a título de ilustração, alguns
casos que demonstram o esforço da jurisdição paranaense em, alçando os
Tempo Brasileiro, 2003. p. 326.
18 “Num Estado Social, modelo adotado pela Carta Brasileira de 1988, o Poder Judiciário é exigido a estabelecer o
sentido ou a completar o significado da legislação constitucional e ordinária que já nasce com motivações distintas
às da certeza jurídica, o que lhe dá o papel de “legislador implícito”. Dessa maneira, a agenda da igualdade redefine
a relação entre os três Poderes, adjudicando ao Poder Judiciário funções de controle dos poderes políticos.” In:
KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um
direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 98.
19 BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights.
Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p. 129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009,
doi:10.1093/acprof:os o/9780199552160.001.0001.
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Melina Girardi Fachin
direitos sociais à categoria de verdadeiros direitos, intentar traçar a ponte
da universalização parcial à integralidade da proteção de direitos.
Como recorte metodológico, a análise ater-se-á aos julgados produzidos
no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná porque intérprete
privilegiado de nossa realidade local. Em consonância com os frutos
colhidos na jurisprudência da Corte Suprema Pátria20, o Poder Judiciário
do Estado do Paraná tem tido papel de proeminência na fixação dos
standards para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Sob o pálio dos efeitos irradiadores do entendimento do STF, de um
modo geral, os entendimentos jurisprudenciais seguem os parâmetros
da efetivação da proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Entretanto, pontue-se que há vozes21, ainda fixadas na postura liberal
clássica de ofensa à separação dos poderes posto que não caberia ao
Poder Judiciário a análise da conveniência e oportunidade da alocação
dos recursos públicos, com base no argumento da reserva orçamentária.
Cada vez mais, o Poder Judiciário tem assumido seu papel de garante,
sobretudo dos direitos sociais. A jurisprudência da Corte de Justiça
estadual reafirma a legitimidade judiciária de intervir em casos de omissão
dos demais poderes na consecução de políticas públicas para efetivação
dos direitos sociais previstos no texto constitucional, afastando, assim, o
frágil argumento da separação dos poderes.
Ilustra o exposto voto recente da lavra da 4ª Câmara Cível acerca da
prestação do direito social à saúde pela via judicial. Nas palavras contidas
no acórdão:
20 A saber: “(...) Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a
prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda
que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria
Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem
os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com
a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE
INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever
de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento
negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno
da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. [...] Precedentes.” Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,
julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125.
21 Sobre esta postura anota Krell: “Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado
de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico,
ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas
constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição
da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais
Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos.” In: KRELL, Andreas
Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional
“comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 23.
45
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA LIMINAR PROFERIDA NOS AUTOS
DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM QUE FOI DETERMINADO O FORNECIMENTO
DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO DO PARANÁ A PORTADORA DE
FIBROMIALGIA. PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO EM VIRTUDE DE
TER SIDO CONCEDIDA SEM A OITIVA DO REPRESENTANTE DA PESSOA
JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO (ART. 2º DA LEI 8.437/92). POSSIBILIDADE.
HIPÓTESE EXCEPCIONAL. NATUREZA E ESSENCIALIDADE DO DIREITO EM
QUESTÃO QUE AUTORIZAM A MITIGAÇÃO DA CITADA REGRA. PRELIMINAR
AFASTADA. MEDICAMENTO NÃO CONSTANTE NOS PROTOCOLOS CLÍNICOS
PARA O TRATAMENTO DA DOENÇA. IRRELEVÂNCIA. DIREITOS À SAÚDE
E À VIDA PROTEGIDOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ELEVADOS
À CATEGORIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. DEVER DO ESTADO EM
PROVÊ-LO CONFORME PRECEITUA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART.
5º, II, 6º E 196). PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE
DEVE PREVALECER ACIMA DE QUALQUER REGRA BUROCRÁTICA DE
FORNECIMENTO. ATENDIMENTO AOS DITAMES DA RECOMENDAÇÃO
EDITADA PELO COMITÊ EXECUTIVO DO FÓRUM NACIONAL DO JUDICIÁRIO
PARA MONITORAMENTO E RESOLUÇÃO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE VEZ
QUE OS PRESENTES AUTOS EVIDENCIAM QUE OS MEDICAMENTOS
PRETENDIDOS SÃO ESSENCIAIS PARA O TRATAMENTO DA PACIENTE.
DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NEGADO
PROVIMENTO.22
A jurisprudência do TJ/PR é unânime em sobrepor a realização das
garantias constitucionais em face de discussões burocrático-formalistas.
A saber:
AÇÃO ORDINÁRIA. PEDIDO DE FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTO. TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA EM PRIMEIRO
GRAU. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. INOCORRÊNCIA. NEGATIVA
DE
FORNECIMENTO
CONFIGURADA.
ILEGITIMIDADE
PASSIVA.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO. PRELIMINARES
REJEITADAS. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE. REFLEXOS NA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. DEVER
DO ESTADO. MEDICAMENTO PRESCRITO POR PROFISSIONAL MÉDICO À
PESSOA IDOSA PORTADORA DE GRAVE DOENÇA (OSTEOPOROSE GRAVE).
AUTORA DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS PARA ARCAR COM O
ALTO CUSTO DO FÁRMACO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.23
Por igual modo, os argumentos acerca da limitação dos recursos
disponíveis são recebidos com granus salis pelo Tribunal. Segundo a
jurisprudência dominante, a reserva orçamentária não pode contrapor-se
à implementação mínima desses direitos, porque são imprescindíveis à
existência digna. Obviamente, não se devem ignorar os laços financeiros
que a concretização dos direitos sociais exigem. No entanto, estes
aspectos econômico-financeiros não podem ser manejados de modo
22 TJPR - 4ª C.Cível - AI 917988-8 - Umuarama - Rel.: Wellington Emanuel C de Moura - Unânime - J. 23.10.2012.
Grifo nossos.
23 TJPR - 4ª C.Cível - AI 839700-6 - Ponta Grossa - Rel.: Guido Döbeli - Unânime - J. 13.03.2012.
46
Melina Girardi Fachin
a negar a própria autoridade do texto constitucional. Reforçando esse
mesmo posicionamento fixa julgado recente:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR DEFERIDO EM AÇÃO
CIVIL PÚBLICA PARA CONDENAR O MUNICÍPIO DE PITANGA AO
FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO TEMODAL (TERMOZOLOMIDA)
AO SR. LAURIDES CARLOS BOSCHETO, PORTADOR DE TUMOR
CEREBRAL. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO
DE PITANGA. NÃO ACOLHIMENTO. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS
ENTES DA FEDERAÇÃO NO CUSTEIO E GERENCIAMENTO DO
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. A AÇÃO PODE SER PROPOSTA CONTRA
QUALQUER
DOS
ENTES
RESPONSAVELMENTE
SOLIDÁRIOS.
EXISTÊNCIA DE CACON CENTRO DE ALTA COMPLEXIDADE EM ONCOLOGIA
QUE NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. TRATAMENTO
NÃO REGISTRADO NA TABELA DE PROCEDIMENTOS DO SUS. IRRELEVÂNCIA.
DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. NECESSIDADE DO TRATAMENTO
DEVIDAMENTE DEMONSTRADA NOS AUTOS. PRINCÍPIO DA RESERVA DO
POSSÍVEL QUE NÃO PODE SERVIR DE OBSTÁCULO À CONCRETIZAÇÃO
DE DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL. LIMITE NA GARANTIA DO MÍNIMO
EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO DEVIDA PELO ESTADO INDEPENDENTEMENTE
DE MEDIAÇÃO LEGISLATIVA OU PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA POR ESTAR
INTIMAMENTE LIGADA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
E AO DIREITO À VIDA. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA QUE
AUTORIZAM A CONCESSÃO DA LIMINAR NOS TERMOS DA DECISÃO
AGRAVADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.24
Ainda, dialogando com a jurisprudência do STF25, o TJ/PR também
abriga a vedação do retrocesso social como parâmetro para realização
dos direitos econômicos, sociais e culturais, como baliza à limitação de
recursos. Leia-se, a propósito, no voto da 7ª Câmara Cível que “o princípio
da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais
de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas
pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”. E prossegue
o voto: “A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a
prestações positivas do Estado [...] traduz [...] obstáculo a que os níveis
de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser
24 TJPR - 4ª C.Cível - AI 788605-5 - Pitanga - Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - J. 26.06.2012.
Grifos nossos.
25 “A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO
INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso
impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas
pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos
a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública,
v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que
os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou
suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos
prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão
ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos
sociais já concretizados”. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda
Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125.
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Melina Girardi Fachin
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado”26.
Diversos poderiam ser os julgados aqui colacionados27, porém o objetivo
é somente demonstrar o sentido da proteção aos direitos econômicos,
sociais e culturais em nosso poder judiciário estadual. Nota-se que o
TJ/PR tem atuado para tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e
culturais, na tentativa de, ao menos em seu núcleo mínimo, equipará-los
ao tratamento jurídico que recebem àqueles civis e políticos.
A análise, todavia, nos demonstra que ainda há um longo caminho a
seguir. Em primeiro plano, as jurisdições são provocadas pela ausência
ou inércia dos demais poderes constituídos que ainda não operam em
tônica próxima dos direitos humanos. Ainda, a jurisdição, em face das
inúmeras violações existentes, é pouco provocada à realização desses
direitos e, quando o é, o foco ainda é a litigância individual que privilegia
alguns direitos, como a saúde e a educação, deixando os outros direitos
econômicos, sociais e culturais à mercê da efetiva universalização. Isso
corrobora a ambivalência na realização das diferentes classes de direitos.
Sobre esta distância a percorrer, anota Flávia Piovesan:
É necessário, contudo, avançar em estratégias de litigância que otimizem
a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos sociais, como verdadeiros
direitos públicos subjetivos, por meio do empowerment da sociedade civil
e de seu ativo e criativo protagonismo. Há de se reinventar a relação com
o Poder Judiciário, ampliando seus interlocutores e alargando o universo
de demandas, para converter este poder em um locus de afirmação de
direitos. Há que se fortalecer a perspectiva integral dos direitos humanos,
que tem nos direitos sociais uma dimensão vital e inalienável, aprimorando
os mecanismos de sua proteção e justiciabilidade, dignificando, assim, a
racionalidade emancipatória dos direitos sociais como direitos humanos,
nacional e internacionalmente garantidos.28
5. Conclusão
Em que pese os esforços jurisdicionais acima narrados, a realização
universal dos direitos tornou-se, ao menos para grande parte da
população mundial, vivendo na fome e na miséria, um mito em um mundo
divorciado de direitos. Ainda é necessário dar um passo adiante em
direção a concepção integral dos direitos humanos, alçando, não apenas
26 TJPR - 7ª C.Cível - AC 874812-3 - Foro Regional de Araucária da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba
- Rel.: Luiz Antônio Barry - Unânime - J. 12.06.2012.
27 A título de exemplo: TJPR, AI 840.235-1, 4ª Câmara Cível, rel. Des. Guido Dobeli, 15/06/2012; TJPR, Acórdão
864103-6, 4ª Câmara Cível, rel. Maria Aparecida Blanco de Lima, j. 08/05/2012; TJPR, Acórdão 864103-6, 4ª Câmara
Cível, rel. Des. Maria Aparecido Blanco de Lima, j. 08/05/2012; TJPR, Acórdão 869235-3, 4ª Câmara Cível, rel. Des.
Abraham Lincoln Calixto, j. 24/07/2012; TJPR- 691.697-6, 3ª CC, rel. Juiz Convocado Fernando Antonio Prazeres, jul
09/11/2010; Apelação Cível nº 748195-2 - 2ª Câmara Cível - Rel. Dra. Josely Dittrich Ribas.
28 PIOVESAN, Flávia. Proteção e Justiciabilidade dos Direitos nos Planos Global, Regional e Local. In: Revista
da Escola da Magistratura do TRT de São Paulo-SP, 2ª Região. Ano 3, nº 3, setembro de 2008. p. 139-182. p. 182.
48
pela porta jurisdicional, a realização desses direitos como verdadeiros
direitos humanos.
Apenas com a garantia real dos direitos sociais é que a proteção de
direitos alçará os anseios inaugurados com a concepção contemporânea,
em 1948 e com a Constituição Federal, em 1988. Sem levar os direitos
sociais a sério, a própria proteção dos direitos civis e políticos perde seu
sentido estrutural, convertendo-se em garantia meramente formal posto
que a participação política depende de uma adequada situação e inclusão
econômica e social dos indivíduos.
Referências
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Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011
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PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 917988-8 - Umuarama
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A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção
- Rel.: Wellington Emanuel C de Moura - Unânime - J. 23.10.2012. Grifo nossos.
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 839700-6 - Ponta Grossa
- Rel.: Guido Döbeli - Unânime - J. 13.03.2012.
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 788605-5 - Pitanga - Rel.:
Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - J. 26.06.2012. Grifos nossos.
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 7ª C.Cível - AC 874812-3 - Foro Regional
de Araucária da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Luiz Antônio Barry Unânime - J. 12.06.2012.
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50
Leandro Franklin Gorsdorf
DIREITOS HUMANOS E ARTE: dialógos possíveis para uma
episteme
Leandro Franklin GORSDORF1
Introdução
A sociedade encontra-se em tempos de questionamentos, tempos de
busca por novas perguntas e respostas, tempos de pensar em uma nova
forma de se dizer e fazer os Direitos Humanos.
Atualmente, a sensação que se tem sobre o futuro dos Direitos
Humanos é incerta frente aos índices violência, da desigualdade social,
dos atos de intolerância, das posições de governantes, dos discursos dos
“especialistas” e da desmobilização da sociedade civil.
Outros campos de luta pelos direitos humanos devem ser construídos,
reconstruídos e destruídos (pois, enfim, a morte tem seu potencial
criador), abrindo a novas concepções, novas relações, novos saberes.
A mudança deve ser feita no âmbito teórico, prático e simbólico,
que permita o fortalecimento dos sujeitos na ação política e jurídica
direcionada aos direitos humanos.
Este artigo tenta traçar alguns caminhos que podem ser percorridos
ao entrelaçar Direito, Política e Arte na construção de um novo saber de
Direitos Humanos, para que se torne menos aprisionado pelo discurso
jurídico travestido de “ciência” e mais liberto para um pensamento livre e
plural, de experimentação e sentimento.
O itinerário proposto para este artigo perpassa pela identificação da
colonização dos direitos humanos pelo conhecimento jurídico cientifico e
a possibilidade de passagem para a dimensão política. Porém, a política
vista aqui, sob o olhar da relação entre política e arte.
2. Direitos Humanos e “Ciência Jurídica”: a operação reducionista da
Modernidade
Ao se perguntar sobre o que são os direitos humanos? Pode-se deparar
com a resposta que está indicada na própria pergunta, são direitos. Incorre
1 Professor de Direitos Humanos do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal do Paraná, doutorando
em Direito pela Universidade Federal do Paraná, membro do Observatório de Direitos Humanos, membro do Grupo
de Pesquisa “Direito e Literatura”. Relator Nacional do Direito a Cidade da Plataforma Dhesca Brasil(2012-2014) e
conselheiro da entidade Terra de Direitos.
51
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
que ao se apegar a esta resposta, pode-se reafirmar o reducionismo dos
Direitos Humanos ao mundo jurídico, como se bastasse o direito a ter
direitos para consecução do fim dos direitos humanos, as necessidades
dos sujeitos.
A teoria dos Direitos Humanos, construída pela doutrina e pelos
teóricos, se referencia em tratados, convenções, leis, decretos, portarias e
decisões judiciais para construir as bases da exigibilidade. Por outro lado,
estas discussões se descolam da realidade, pois partem do “resultado”
para identificar o que são os direitos humanos. Inscrevem os direitos
humanos no campo jurídico e, tão somente, apartando-os de outras
racionalidades ou saberes.
Se os direitos humanos se inserem na seara do conhecimento jurídico
para construção de suas bases teóricas, tem-se o entendimento de que
as concepções e ideias do que vem a ser o Direito permeiam e exercem
influência nas delimitações dos debates e práticas sobre direitos humanos.
O Direito, desde o século XIX, se entende como ciência, em razão
do “discurso do saber científico que vem organizado a partir de uma
episteme lógico demonstrativo e que seja empiricamente verificável.”
(COSTA, 2012).
Esta forma de conhecimento jurídico, assentado na ideia de ciência,
“se fortalece com a instituição do Estado de Direitos no século XIX e
que ainda permanece nos tempos de hoje. Momento em que a política
deve obedecer aos processos jurídicos, os campos jurídicos e políticos
aparecem largamente sobrepostos, como lugar em que se desenrolam as
lutas simbólicas pela apropriação da competência de constituir direito.”
(HESPANHA, 2008, p.180).
O Direito, e, por conseguinte, os direitos humanos, que vem sendo
construídos posteriormente, o são sob a égide deste racionalismo
científico jurídico. O conhecimento jurídico, entendido como ciência, se
apartou da política, impingindo consequências para as diversas áreas do
Direito, inclusive dos Direitos Humanos.
Com o Direito sendo compreendido como ciência, a formação do
conhecimento jurídico sofre algumas implicações, como explicita BITTAR:
Para o racionalismo, não se pode crer naquilo que a ciência moderna não
tenha comprovado e, por isso, a fonte de todo saber é sempre fundada
na plataforma de pesquisa do próprio racionalismo. Se alimentando de si
mesmo, e negando valor a toda pratica de sabedoria que divirja de seus
cânones, a ciência moderna, racionalista e ocidental, se define a si mesma,
a se auto arroga a condição de saber único (...)(BITTAR, 2008, p.64)
52
Leandro Franklin Gorsdorf
Neste sentido, o racionalismo propugnou um culto a razão. Ou seja, uma
deformação da interpretação do valor da razão, onde “rigor, cientificidade,
lógica, epistemologia e método são termos suficientemente estéreis para
já significarem a falta de porosidade a tudo que pode ser visto como
deslocado destas práticas do racionalismo.” (BITTAR, 2008, p.63).
A concepção de direitos humanos que se alicerça sobre esta ótica,
busca os, ao mesmo tempo em que é refém dos, fins da ciência moderna,
que é a certeza e segurança. O conhecimento jurídico rigoroso se torna,
então, refém: do Estado, do capital, da universidade, de um sistema de
peritos, de um conhecimento profissionalizado, relativamente separado
das aspirações, dos anseios e das necessidades do cidadão comum.
Aprisionado por elites dominantes, por classes que tiveram a capacidade
de dominar e de controlar esse poder saber.
A pretensa objetividade e neutralidade epistêmica foram determinantes
para tornar-se estéril, inexpugnável, impassível de ser contaminada pela
dimensão interativa, espontânea e natural humana. (BITTAR, 2008, p.62).
A investida dos juristas pelo processo de depuramento do Direito e,
por conseguinte, da constituição da ciência exata do direito, se deve pela
busca de um método e de um sistema. (HESPANHA, 2008, 151). Para o
jurista, o que é central no saber jurídico é o direito que realmente é, e
não que o direito não é porque ainda não é, isto é, das pretensões, das
expectativas, previsões, do futuro. (COSTA, 2012).
O positivismo jurídico, aplicado aos direitos humanos, reforçou o senso
comum de que a “ciência jurídica seria, acima de tudo, uma ciência lógica
da interpretação cartesiana de textos racionais e objetivos, em que não
haveria lugar para as incertezas semânticas, a emocionalidade e até certa
irracionalidade da arte e da estética.” (FRANCO FILHO, 2011, p.18).
Desta forma, os direitos humanos são capturados por esta lógica de
pensamento dogmático e científico, instaurando um “juridicismo” que
é “um grande caldeirão de sonoridades que determinam condições
alienadas de passividade: uma overdose de crenças, verdades reveladas,
valores banalizados, sentidos de posse que destroem os esforços de
instauração de uma sociedade autônoma.” (WARAT, 1997, p.49).
Os Direitos Humanos como apreendido pela dogmática tradicional
se referem a uma realidade conquistada, já alcançada e não um ideal
a se conquistar. Isto é, são algo que já temos pelo fato de sermos seres
humanos, corroborando ideia jusnaturalista e positivista do Direito.
Estes juristas entendem que “os direitos ‘são os direitos’; quer dizer
os direitos humanos se satisfazem tendo direitos.” (HERRERA, 2009,33).
53
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
Novamente esta ideia se traduz numa generalização dos direitos, abstratos
e conceituais. Reforça a ideia de um a priori dos direitos humanos. Como
se a luta pelos direitos humanos fosse tão somente uma luta em termos
jurídicos, de direito a ter direitos.
Para esclarecer, podemos resumir em três falácias que este tipo de
pensamento de conhecimento jurídico aliado aos direitos humanos pode
resultar:
1.Independentizar as condições de produção do conhecimento do
contexto que a tornam impossíveis.
2.Invisibilizar as consequências reais que dito conhecimento tem
sobre a própria realidade que se pretende conhecer;
3.Trabalhar teoricamente os direitos humanos deixando de lado a
função social do conhecimento2.
A dimensão de transformação do Direito, em especial dos Direitos
Humanos deve optar pelo caminho das mudanças das concepções
jurídicas, do mundo e da vida, isto é, no campo da episteme. (GAMA,
2009).
Para contrapor o aprisionamento que o racionalismo jurídico impõe
aos direitos humanos, deve-se entender que os direitos humanos,
além de serem direitos “propriamente ditos”, são processos. Processos
políticos, que podem ser amparados por lutas no campo jurídico, mas
que, em última instância, são dinâmicas sociais que tendem a construir
condições materiais e imateriais necessárias para garantir o acesso a bens.
(HERRERA, 2009, p.35). A mudança de perspectiva dos direitos humanos
visa a garantir que se situe a realização dos direitos a partir de um lugar
político na sociedade.
Urgente, é a recuperação do político, no qual se romperia com a
“posição naturalista que concebem os direitos como uma esfera separada
e prévia à ação política democrática.” (HERRERA, 2009, p.78).
A realidade é resultado, produto cultural, visto sempre como categoria
impura, contaminada de contexto e submetida as relações fáticas de
poder. (HERRERA, 2009, p.79).
O caminho para uma teoria/prática de direitos humanos é o
enfrentamento das purezas e as idealizações de um corpo jurídico imune
as incertezas.
2 São três as condições mínimas para estabelecer a função social do conhecimento dos direitos humanos: a) não
se pode haver conhecimento critico, se não começarmos pela própria crítica do conhecimento;b)superação das
abstrações, reconhecendo os sujeitos nos seu fazer e não somente no seu pensar; c) nossa ideia de mundo não
pode recair no déficit de sentido(coisificação do humano) nem no excesso de sentido(idealização do humanos).
(HERRERA,2009, p.109-110)
54
Leandro Franklin Gorsdorf
A construção dos direitos humanos não pode se assentar na ideia de
puro, pois este somente “se alcança por via negativa, ou seja, despojandose o pretendido objeto de conhecimento de todas as suas impurezas e
negando-lhes sucessivamente os atributos de uma existência em si e por
si” (HERRERA, 2009, p.86). Como expõe OST, o direito deve ser abalado
em suas certezas dogmáticas e reconduzido a interrogações essenciais.
(OST, 2005, p.09).
Para avançar os limites impostos a esta racionalidade se propõe trazer
para o campo jurídico, as incertezas da política, da realidade, do mundo
vivido prenhe de suas contradições e paradoxos. Para um novo tempo
dos direitos humanos é imprescindível engendrar novas práticas sociais e
novos direitos.
Tal empreendimento deve ser levado a última instância, desde que
considere os direitos humanos nas suas facetas, a do político e a de um
jurídico não mais mediado pela racionalidade científica da modernidade.
Os direitos humanos devem ser entendidos como resultado de lutas
impulsionadas tanto por categorias teóricas como por categorias práticas,
isto é, por elementos conceituais ou materiais. No campo conceitual,
podemos falar em teorias, posição, espaço, valores, narração, instituições.
No campo material, forças produtivas, disposição, desenvolvimento,
práticas sociais, historicidade e relações sociais. (HERRERA, 2009, 122).
Essas categorias teóricas e prática devem ser revistas para a construção
de um novo conhecimento acerca dos direitos humanos. A Arte por ter sido
a racionalidade menos colonizada pela modernidade, em grande medida
por ter sido marginalizada é a opção para a transformação epistemológica
dos direitos humanos. Em oposição se encontra a ciência moderna e a
arte, pois aquela é negação desta, a certeza em detrimento da incerteza.
Por essa razão, ao estreitar laços com a Arte, o saber jurídico positivista
“tende a perder o revestimento “cientificista” que o caracterizava,
renuncia a pretensão de representar hegemonicamente a totalidade do
campo jurídico, converte em problema a ideia da própria capacidade de
descrever e a de sua objetividade.” (COSTA, 2012).
Por outro lado, no campo da política, “a arte propicia contundentes
indícios para se apreenderem os limites e os paradoxos da política, suas
razões e insuficiências esperançam de construção do espaço público e
frustração com os resultados alcançados” (CHAIA, 2007, p.13). A Política e
o Direito, dos direitos humanos devem ser repensados nos seus limites a
partir da Arte, lhes garantindo uma nova refundação.
55
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
A arte pode contribuir para a elaboração de uma teoria/prática de
direitos humanos, quando estiver compromissada com três objetivos:
“1. Desenterrar contínua e permanentemente aquilo que fica esquecido/
oculto; 2. estabelecer, de um modo constante, relações e vínculos que
foram negados; e 3. apontar recorrentemente cursos alternativos de ação
social e de reflexão intelectual.” (HERRERA, 2009, p.111).
Os próximos passos são identificar os possíveis diálogos entre a política
e arte e o direito e arte, e como resultante destas inter-relações um novo
horizonte para os Direitos Humanos.
3. Política e Arte: interações para autonomia dos Direitos Humanos
A arte garante um estranhamento frente ao mundo, capaz de indagar
sobre o estado das suas convenções e dos lugares comuns. (GAMA, 2009).
E por isso a força criativa dos questionamentos dados pela arte, do poder
estabelecido e das normas impostas, seja pelo Estado ou pela sociedade
civil.
Dois campos teóricos têm desenvolvido discussões sobre a relação
entre arte e política, trazendo fundamentações filosóficas específicas
sobre as múltiplas interações entre estas duas áreas do conhecimento.
Dentre aqueles que entendem que “a arte está relacionada às
condições externas a ela, ou seja, a obra e o artista encontram-se ligados
as condições sociais”, temos como origem, Karl Marx, e na mesma esteira,
Theodor Adorno, Guy Debord e Frederic Jameson. (CHAIA, 2007, p.15).
Outra corrente compreende “a arte num movimento interno em
direção ao sujeito, seja ele artista ou usufruidor.” Dentre os pensadores,
se destacam Friedrich Nietzsche, Antonin Artaud, Maurice Blanchot e
outros pensadores franceses.
As bases como essa relação pode ser construída é exemplificada por
quatro situações, que podem num determinado momento histórico
incorrer simultaneamente, se considerarmos as ações e produções dos
artistas, o desenrolar dos movimentos artísticos e as estratégias adotadas
por instituições políticas.
a) A situação da arte crítica, estabelecida pela consciência crítica
do artista, que propicia a um indivíduo ou a um grupo criar obras
baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços
e pesquisas para o avanço ou a revolução da linguagem. Aparece
como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma
modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a
56
Leandro Franklin Gorsdorf
realidade, representando em certos aspectos a condição humana, os
mecanismos de poder e da economia, ou a estrutura social no qual o
artista esta envolvido. (CHAIA, 2007, p. 22).
b) A situação da politização da arte, que trata-se do artista
assumidamente engajado que critica, protesta e age publicamente,
carregado de componentes ideológicos, de influências partidárias
e da circulação de ideias brotadas de manifestos de vanguarda.
Existe uma fusão de interesses individuais e institucionais, e por isso
mesmo em alguns casos resultando em propagação difusa de um
projeto político. (CHAIA, 2007, p.24)
A partir desta concepção podemos entender que “o artista politiza
a sua arte ao privilegiar seu papel de militante, trazendo para sua
obra parâmetros externos a sua subjetividade, dados por programas
políticos partidários e estatais que possam justificar ou alimentar a
sua ação criativa.” (CHAIA, 2007, p.25)
c) Situação da estetização da política, expressão cunhada por Walter
Benjamin, quando analisa o nazismo e o fascismo, e a atuação do
Estado ou de associações partidárias, constituindo-se como fonte
de ingerência externa sobre a produção da arte e tornando-a parte
de um projeto reformador da sociedade. A centralização política,
massificação, propaganda e tecnologia soam-se a arte para a
transformação totalitária da sociedade, eliminando-se a possibilidade
da discussão estética como esfera autônoma. (CHAIA, 2007,26-27)
Ainda para reforçar esta ideia, esta situação não permite que ela se
politize sem perder sua autonomia, pois influencia a ação cidadã de modo
autoritário, já que é, de certo modo, está presente uma intencionalidade
explícita. (BLOTA, 2008)
E por último, situação da “presença política da obra”, na qual
independentemente ou não da vontade do sujeito e do projeto do
artista, uma obra de arte pode tornar-se um símbolo político que evoca
um conjunto de ideias ou condições sociais, não representando um fato
histórico, mas sendo um fato. (CHAIA, 2007, p.28)
A transformação social, que está no cerne da discussão dos direitos
humanos, pode ser realizada:
por meio de atitudes contestatórias e ações autônomas – que se
desenvolvem num espaço democrático, aberto, heterogêneo e segmentado.
Neste processo, importa a presença do artista para transgredir e resistir,
seja ele visionário, rebelde ou revolucionário, na luta contra a sujeição
cultural, utilizando-se do esforço individual ou da cooperação coletiva,
57
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
dos meios eletrônicos ou do correio, do conceito ou da materialidade, dos
suportes tradicionais ou de novas tecnologias. (CHAIA, 2007, p. 38-39)
É importante frisar que as situações que se apresentaram, representam
como o artista e sua obra de arte, podem externalizar e aprimorar os
espaços existentes na nossa democracia, alterando os modos e formas
tradicionais do debate público, incitando pensar a democracia para além
dos espaços institucionais.
A possibilidade da arte e política se aproximarem para repensar os
direitos humanos, pressupõe a autonomia desta arte em relação ao poder
instituído e frente ao capitalismo, propiciando a reflexão em direção a
autenticidade e originalidade.
Privilegia-se “a dimensão simbólica dos direitos humanos como parte
constitutiva de um espaço público, que aglutina focos de autonomia dos
desejos, experimenta novas relações como saber, a lei e o poder, para
assegurar, sem garantias, o valor emancipatório da criatividade.” (WARAT,
1997, p.53).
A arte elaborada como lugar de resistência e de mudança na sociedade,
prima pelo fortalecimento do debate, do espaço público, da cidadania, em
confronto com o processo de transformação da arte em produto de fruição
individual, produto de consumo de massa. (ADORNO;HORKHEIMER,1985,
p. 113-156).
Recuperar os direitos humanos na sua concepção crítica, pela arte,
permite questionar a dominação das ideias e da ação no campo político,
da univocidade das discussões, suspendendo as decisões e deliberações
políticas que se tornam a regra na sociedade, por isso que temos que a
existência da regra na sociedade e implica na dificuldade da expressão
poética, pois é da regra querer a morte da exceção, onde a arte é exceção.
(CHAIA, 2007, p.39).
As relações entre Direitos Humanos e Arte podem engendrar novas
estéticas, práticas sociais e novos direitos.
Direito e Arte: entre a obra de arte e a experiência artística em Direitos
Humanos
O senso comum jurídico dos juristas3 está impregnado pelo dogma
cientificista do direito e é tarefa estabelecer um diálogo com outras
formas de conhecimento, para além do científico, para incorporar outras
racionalidades e formas de pensar e sentir os direitos humanos.
Leandro Franklin Gorsdorf
A forma como se articula o conhecimento científico do Direito e a arte
são distintos, pois
a razão científica se apresenta como objetiva racional e universal,
relegando a arte ao subjetivo, o emocional/passional e o particular,
isto é, não generalizável além do pano de fundo cultural sobre o qual é
realizado. Ao contrário a razão científica, sempre potencialmente aplicável
a qualquer contexto e qualquer forma cultural. A imagem do científico é a
flecha; enquanto que a do artístico é a espiral, ascendente e descendente,
horizontal e vertical (...) (HERRERA FLORES, 2000,248) (tradução do autor).
Ainda neste sentido, expondo traços comparativos:
A arte duvida até de si mesma. A ciência analisa, rompe o real para conhecer
as partes. A arte realiza, nos relaciona com nós mesmos e com o mundo,
sempre em função da presença real do outro. A ciência estabelece uma
autoridade, um meta-nível que potencializa a aparição dos mediadores, de
representantes da verdade. A arte permite o múltiplo comentário, a dúctil
e plural interpretação, a variedade de leituras e recepções. A verdade
científica pretende afirmar quatro princípios: a de independência com
respeito a existência humana (somente podemos atuar para encontra-la);
o da correspondência com a realidade; o de bivalência, cada enunciado
é verdadeiro ou falso; e o de singularidade, já que somente há uma
completa e verdadeira descrição da realidade. Enquanto a arte, são da
imediatez, o de compromisso pessoal e da responsabilidade. A ciência
avança eliminando o que considera erro. Ao contrário, a arte atua como
memória do humano. (HERRERA FLORES, 2000, p.249) (tradução autor)
Como manifestações culturais que são-mostrando o homem na relação
com aquilo que o rodeia, arte e direito sempre mantiveram uma grande
proximidade ao longo da história.” (FRANCO FILHO, 2011, p.18).
Esta relação entre arte e direito, é complementar ou conflituosa,
porém sempre estabelecendo uma reflexão ao direito instituído, dado,
em contraponto ao direito construído. Uma vez que “arte e estética- por
conta do seu não-dogmatismo, da sua dinâmica complexidade, da sua
refinada compreensão do mundo, da sua abertura e da sua criatividade –
tem sempre muito a dizer do direito, mesmo não se valendo da palavra.”
(FRANCO FILHO, 2011, p.22).
Apesar de se referenciar na literatura, muitas das afirmações de
OST, pode ser trazida para o âmbito da arte de forma mais ampla,
principalmente quando diz que “a literatura (leia-se arte) libera os
possíveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma rede de
qualificações convencionadas, a encerra num sistema de obrigações e
interdições.” (OST, 2005, p.13).
3 De acordo com WARAT, entende-se por um complexo articulado do imaginário social e cientifico, composto
pela ideologia que surge de um saber acumulado da experiência histórica que não é resultado de uma “atividade
cognoscitiva deliberada”.(WARAT,1995,p.35-36)
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59
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
A indisciplina da arte interpela o jurídico, fragilizando os pretensos
saberes positivos sobre os quais o direito tenta apoiar sua própria
positividade.
A arte pode engendrar novos olhares, novas realidades, inverter os
pontos de vistas, criando surpresa, perturbando a paz do sepulcro dos
ditamos da cientificidade do direito. (OST, 2005, p.15).
Enquanto o direito se rege pelo seu objeto, a lei, abstrata e genérica, a
arte se relaciona com o concreto e particular.
A função da arte é por em desordem estas convenções, suspender
nossas certezas, liberar os possíveis – desobstruir o espaço ou liberar o
tempo das utopias criadoras.
A abordagem do Direito e Arte, pode se apresentar sob dois formatos,
um construído teoricamente por juristas que entendem que a arte e
direito, são forjados e constituídos pela e como linguagem. Estamos
diante de movimentos como Direito e Literatura, Direito e Cinema, Direito
e Iconografia; nos quais todos estabelecem a mediação entre estas formas
de expressão artística, a partir do conceito de obra de arte e sua relação
com o Direito e conhecimento jurídico.
Por se tratar de linguagem, a discussão versa sobre significado e
significações, e o reflexo seja na arte ou no direito da produção de sentidos
e de discursos. Sob três óticas é possível construir esta articulação: Direito
na Arte (como o direito é representado nas obras de arte); Direito da Arte
(responsável por estabelecer as normas sobre direito autoral entre outros
temas) e Direito como Arte (onde o Direito é interpretado como uma
narrativa).
Outra forma de abordar a relação entre Direito e Arte, é buscar a
compreensão de como o fazer artístico/experiência artística pode trazer
sensações, sentidos, sentimentos e outras percepções sobre o Direito,
de forma a liberar criativamente pensamentos, mas também ajudar a
constituir as subjetividades das pessoas envolvidas com o Direito, neste
caso, os direitos humanos.
Nesta seara, muito se produziu a partir do pensamento de WARAT, e
por isso ele é ponto de partida para avançar sobre a própria discussão
sobre a epistemologia da arte e de como pode refletir no Direito, e numa
forma de prática em Direitos Humanos, mais humana, no sentido de se
pensar na totalidade do homem, para além da razão.
Nos próximos tópicos abordaremos estas duas correntes de forma a
explorar as potencialidades para a (re) construção dos Direitos Humanos.
60
Leandro Franklin Gorsdorf
4.1. Direito e Obra de arte: linguagem e imaginário
No texto de PESSOA, pode-se iniciar a reflexão:
Toda arte é uma forma de literatura, porque toda arte é dizer qualquer
coisa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são
literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que se procurar
em toda arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou
o poema, ou o romance, ou o drama. (PESSOA apud FRANCA FILHO, 2011,
p.13)
Pela arte ser traduzível e/ou expressada em literatura/texto, podemos
considerar que toda obra de arte é uma forma de linguagem, a qual é
aberta a interpretações. Dessa forma, “arte é texto e, justamente por
ser texto, pode dar lugar a uma leitura do discurso pictórico, a uma
hermenêutica do texto plástico ou mesmo a uma retórica da imagem
artística.” (FRANCA FILHO, 2011, p.15).
A obra de arte que se relaciona com o Direito, é constituída por
“conjunto de sinais, através dos quais alguém ou algo diz alguma coisa a
alguém.” (COUTINHO, 2003, p.59). Por se constituir por códigos, a obra de
arte pode expressar uma determinada compreensão do mundo, da vida,
inclusive, do Direito e dos direitos humanos.
Por diversas vezes, determinadas obras de arte contribuíram para a
reflexão dos Direitos Humanos, na maioria dos casos, de violações de
direitos humanos, sendo testemunho de um determinado contexto
histórico e revelador do exercício de um poder e de um Direito. Apenas
para citar um caso: Guernica, painel elaborado por Pablo Picasso, sobre os
horrores da 2ª Guerra Mundial.
A crítica trazida pela obra de arte neste caso, mais contundente, do
que qualquer discurso político ou decisão judicial, se refere a um “magma
de significações: um conjunto de significações imaginárias sociais que
conferem um sentido específico aos dados da experiência, além de serem
literalmente constitutivas das realidades que elas fazem advir ao nomeálas.” (OST, 2005, p.28). A obra de arte nos diz algo ao contexto de tudo
aquilo que temos que compreender.
Ao contrário, apesar de dizer muito, pode em muitas situações a
obra de arte, ser “caracterizada por ser enigma, onde suspende nossas
evidências, desfazendo as certezas, por criar um efeitos de deslocamento
que permite o descerrar do olhar.” (OST, 2005, p.32) É neste ponto a
fortaleza da arte para os direitos humanos, multiplicar infinitamente as
verdades, refutando a “verdade”. (APUD OST, 2005, p.35).
61
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
A obra de arte é carregada de significação, de um sentido que adquire
forma, sendo expressão da liberdade em ato. Como OST propõe, existe
ainda a faceta de contracriação: “um desafio ai mundo herdado, à natureza
circundante, à herança cultural, e a aposta de que ainda está por ser dito
algo de essencial que irá remodelar toda essa massa para fazer sair dela,
enfim um mundo novo.” (STEINER apud OST, 2005, p.32).
Na relação da obra de arte com o jurista, a primeira relação a qual
podemos identificar é a com formação do imaginário jurídico, o qual
“alimenta um infra direito, gerador das mais diversas formas de costumes,
hábitos, práticas e discursos que não cessam de agir, de dentro sobre os
modelos oficiais do direito instituído.” (OST, 2009, p.20).
Este entrecruzamento é possível no “complexo momento da
compreensão/interpretação: como objetos culturais, que são, arte e direito
reinventam, recriam, reveem e reinterpretam o mundo constantemente
e só fazem algum sentido se são interpretados/compreendidos por seus
destinatários.” (FRANCO FILHO, 2011, p.83).
A contribuição desta corrente de pensamento é estipular a importância
do destinatário neste processo hermenêutico, na mesma linha HERRERA
afirma que
A obra artística é um exemplo de que faz falta duas liberdades para construir
um conhecimento adequado da realidade. A razão cientifica somente
reconhece uma liberdade: a do grupo de especialistas que manejam os
instrumentos cognitivos e materiais necessários para chegar ao resultado
da investigação. A arte sempre tem que contar com duas liberdades: a do
autor e do leitor, e ambos não podem se separar do contexto geral sobre
qual se situa a obra. (HERRERA FLORES, 2000, p.248)(tradução do autor)
Obra de arte com seu papel de mediação, sob os auspícios do
imaginário entre o substrato da ação histórica e das produções jurídicas,
contribui para estabelecer uma nova ordem de valores, teorias sobre as
necessidades humanas, resignificando as lutas pelos direitos humanos. A
obra de arte para os direitos humanos inclui os destinatários na produção
do Direito, convidando-os a partilhar o processo hermenêutico e criador.
Abre-se o caminho para formação de novos direitos, a partir da
relação passado/presente, instaurando interpretações sobre as práticas
instituintes de direitos.
Enfim, as práticas políticas dos direitos humanos não podem fugir
das tarefas de libertação da linguagem como prática de libertação dos
desejos. (WARAT, 1997, p.16). E para esta libertação é preciso pensar o
Direito, e os direitos humanos que ultrapasse a fronteira do racional e da
racionalidade instrumental e utilitarista.
62
Leandro Franklin Gorsdorf
4.2. Direito e Arte: a experiência artística e a percepção dos Direitos
Humanos
A imanência dos efeitos da racionalidade jurídica construída sob os
auspícios da Modernidade provocou uma cisão entre teoria e prática, entre
razão e emoção, retirando dos direitos humanos, a essencialidade dos
sujeitos de direito, a sua integralidade como ser humano, marginalizando
o corpo e sentimento.
A negação dos “aspectos densos, imagéticos, simbólicos, sensíveis,
passionais, místicos, da experiência vivida foram deixados de lado em
detrimento dos aspectos intelectuais, racionais e científicos.” (GAMA,
2009).
Infere-se que a existência humana é complexa, polissêmica e plural, numa
“constante participação mística, sensível, estética, uma correspondência
sem fim, na qual o exterior e o interior, o visível e o invisível, o material e o
imaterial se manifestam e se relacionam na vida humana.” (WARAT apud
GAMA, 2009).
A subjetividade desaparece com a ciência moderna, sendo entendida
“como um roupão que se usa apenas em casa, o qual pode, e deve, ser
retirado assim que se vestem os trajes solenes e públicos da ciência.”
(COSTA, 2012).
A arte é uma alternativa a esta racionalidade, porque revela amor,
sofrimento, inquietude, desejos, ilusões, afirmando integralmente a vida,
porque “o homem não é sempre, nem necessariamente, racional nesse
sentido, mas que busca também satisfações simbólicas porque adere a
‘significações imaginárias instituintes” (OST, 2005, p.45).
Por isso, “as práticas políticas de direitos humanos precisam inaugurar
lutas, na ordem do simbólico, transgredindo os efeitos da produção
institucional de um homem negado pelas significações que pretendem
ser a racionalidade geral desta época.’ (WARAT, 1997, p.47).
Reafirmando esta mudança de atitude diante dos direitos humanos,
WARAT, reforça que estes precisam “gerar práticas e discursos de
preservação do amor, discursos que precisem falar de instâncias
libertatórias, que permitam ao homem reencontrar seus vínculos perdidos
com a vida.” (WARAT, 1997, p.11).
A proposta de novas práticas em direitos humanos vem alicerçada na
ideia que os juristas, operadores do direito, sujeitos de direitos devem
estar aptos para se permitir a experimentar, experienciar e vivenciar a
arte.
63
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME
Retomar na experiência artística, a realidade sensorial, o corpo e de
como esse corpo se relaciona com os outros corpos de indivíduos com
necessidades reais. (BITTAR, 2008, p.64). A proposta não é se tornar artista,
nem realizar obras de arte, mas permitir se abrir para a transformação de
sentidos e de se conhecer.
empreendido por meio da ação cultural, que com a sua fonte, seu campo
e seus instrumentos na produção simbólica de um grupo e as formas
imaginárias que a constituem, transforma o estado das coisas, questiona
o que existe e o coloca em movimento na direção do não conhecido.
(COELHO, 1989, p.33).
A criação e a investigação em arte pode facilitar aos indivíduos
conhecer os direitos humanos, por meio de sua percepção, que vem a
ser o significado que atribuímos a alguma informação, quando esta é
recebida através dos sentidos, isto é, na integralidade da sua existência.
(WOLFE apud PEREIRA, 2011, p.91). Dessa forma nossos sentimentos se
tornam tão concretos, que se torna difícil de encontrar uma linguagem
verbal que os traduza.
Repensar o direito lhe adjudicando um novo território de sentido, onde
se permite o múltiplo e interdita o unívoco, por estar intimamente ligado
a uma concepção de direitos humanos que inculcada numa sociedade
incerta, heterogênea e conflitiva. A ação deve garantir a autonomia e a
criatividade no processo, criando condições para a descoberta de novas
práticas e direitos.
Nesta seara, o que importa não é somente o produto cultural ou
artístico, isto é, a obra de arte, mas os componentes do processo cultural
artístico, os elementos do pensamento e do corpo que se entregam a uma
prática cultural artística. (COELHO, 1989,56).
Considerações Finais
Transmudar a nossa prática em direitos humanos na potencialidade da
capacidade expressiva, informativa e lúdica que precisam ter as leituras
do mundo e de nós mesmos. (WARAT, 1997, p.54).
Deve ser operada a “experimentação da arte em nossos corpos, investigar
os nossos sentidos, sensações, e perceber que essa experimentação
poderia produzir repercussões no campo da compreensão da relação
entre Direito e Arte.” (GAMA, 2009). Amplia-se, contudo “espaços de
compartilhamento, de trocas, espaços de alteridade, zonas onde circulam
afetos.” (GAMA, 2009).
Ao entrelaçar Arte e direitos humanos privilegia o humano que
habita em cada um, o sensível, o imagético, o mágico, pois ocorre “o
deslocamento para uma racionalidade mais ampla, flexível, inventiva, que
exige uma audácia de pensamento e, sobretudo que possui o sentimento
que é precário, aleatória, submissa ao instante.” (GAMA, 2009).
Esta operação deve ser apenas acionada por algo ou alguém de
fora, visando garantir a autonomia e a criatividade no processo para a
descoberta de novas práticas e direitos. A busca é para que os indivíduos
recuperem a subjetividade perdida, “que se apossem de si mesmas e
criem condições para a totalização, de um novo tipo de vida derivado do
enfrentamento aberto às tensões e conflitos surgidos na prática social
concreta”. (COELHO, 1989, p.42).
O processo da experimentação artística para os direitos humanos, não
deve escolher um caminho seguro, pois o seguro segura e tolhe. Deve ser
64
Leandro Franklin Gorsdorf
Qualquer que seja a aposta, pela obra de arte ou pela experimentação
artística, para refutar a domesticação dos direitos humanos pela ciência
jurídica moderna e sua verdade unívoca, avançará pelo terreno da teoria
crítica que almeja novas possibilidades para se pensar o Direito, desde
que voltado aqueles que tem suas necessidades negadas cotidianamente.
Os direitos humanos entremeados pela arte, prestam-se “para aumentar
nossa potência e nossa capacidade de atuar no mundo”. (HERRERA, 2009,
p.81).
A arte rompe com os ditames do Direito reificado ao apelar para os
elementos do mundo da paixão, da valoração, da imaginação, devolvendo
aos direitos humanos, a humanidade que havia perdido.
O novo conhecimento em direitos humanos, constituído pela Arte não
é um novo produto, é um novo processo.
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66
Eduardo C. B. Bittar
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS:
cultura democrática, autonomia e ensino jurídico1
Eduardo C. B. BITTAR2
1. Educação: entre treinamento e formação
A polêmica em torno da educação é de fundamental importância para a
constituição de um arsenal de conceitos para basearem o desenvolvimento
das concepções em torno de uma cultura democrática, aberta, pluralista
e voltada para os direitos humanos. O debate sobre o próprio conceito
de educação evoca, portanto, a necessidade de uma devida atenção
ao problema da racionalidade, tendo em vista que é sobre ela que se
estruturam as práticas educativas visando à socialização. Este debate
sobre a razão não se faz sem um recurso direto ao tema da razão herdada
da modernidade3, o que implica na avaliação, através do pensamento
da Escola de Frankfurt, na necessidade de se pensar que parâmetros e
práticas definem o encaminhamento de uma ponderada proposta de
ensino focado em práticas de educação para os direitos humanos.
Desde logo, deve ser desmistificada aquela ideia tradicional de que
tudo o que tem a ver com educação e racionalização tem a ver com
progresso, desenvolvimento e melhoria. O mito de que educar é formar
deve ser desfeito. A educação como Ausbildung (treinamento) deve
1 Este artigo foi produzido para atender a convite da Professora Dra. Rosa Maria Godoy Silveira, e publicado
no livro intitulado “Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos”, organizado por Rosa
Maria Godoy Silveira, Adelaide Alves Dias, Lúcia de Fátima Guerra Ferreira, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer
Feitosa, Maria de Nazaré Tavares Zenaide (SEDH, UFPB, MEC) publicado pela Editora da UFPB, João Pessoa, ps.
313-334, 2007. É por entender que a educação em e para os direitos humanos deve ser debatida, aprofundada
e refletida é que o texto é compartilhado em escala ampliada na web, licenciado pelo CreativeCommons (Este
trabalho está licenciado sob a Licença Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported da CreativeCommons.
Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou envie uma carta
para CreativeCommons, 444 Castro Street, Suite 900, Mountain View, California, 94041, USA.)e através da presente
publicação pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – PR-Curitiba, a pedido do Professor
Doutor José Antônio Peres Gediel, Diretor do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania.
2 Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (DFD - USP). Foi Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (www.andhep.
org.br) no período 2008-2010. É Professor do UniFIEO e Pesquisador N-2 do CNPq.
3 Esta crítica do legado moderno do Iluminismo é compartilhada pelos principais autores que inspiram as teorias
educacionais contemporâneas, entre os quais se encontra Michel Foucault. Aliás, sobre esta proximidade entre
Escola Crítica e Foucault, leia-se: “A questão da emergência e do desenvolvimento das formas de racionalidade
na cultura ocidental e seus efeitos constituem um dos temas cardeais tanto nas pesquisas de Weber, quanto nas
dos frankfurtianos e nas de Foucault. Quando, em uma das teses mais polêmicas de Vigiar e Punir, assevera que
as mesmas Luzes que descobriram as liberdades inventaram as disciplinas, situa-se no mesmo campo de crítica
e reprovação dos autores da primeira geração da Escola de Frankfurt, afinal eles “(...) começaram a expor o que
chamaram de ‘a dialética do Iluminismo’ – o lado sombrio do Iluminismo que fomenta sua própria destruição”
(BERNSTEIN, 1993, p.35-36). Tanto Weber como Adorno e Horkheimer são, ao mesmo tempo, herdeiros do
Iluminismo e seus críticos.” (Margareth Rago; Luiz B. Lacerda Orlandi; Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Imagens de
Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 73-74).
67
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
ser diferenciada da educação como Bildung (formação). Desta forma, o
que se percebe é que educar pode significar também a preparação que
direciona o desenvolvimento destas ou daquelas qualidades, habilidades
e competências, podendo atrofiar dados importantes da personalidade
humana, significando apenas treinamento. Se todo projeto educacional
induz certos valores, e não há educação isenta, desvios podem ocorrer, por
exemplo, aqueles que induzam ao fortalecimento de uma ideia de coletivo
que sufoca a autonomia individual, ou ainda, aqueles que priorizam a
formação técnico-operacional e reificadora da consciência, quando se
nega, ao mesmo tempo, a formação ampla, crítica e humanística.
Se a educação pode ser responsável por forjar consciências e moldálas conforme conveniências políticas, também a educação passa a ser
responsável politicamente pelos resultados que se tem na articulação da
vida social. Aqui se torna, ainda uma vez, de fundamental importância
distinguir educação como formação e educação como treinamento. Por
isso, pela leitura de “Educação após Auschwitz” de Theodor W. Adorno,
se percebe que Himmler não somente não era um indivíduo deseducado,
mas também que a educação pode ser opressiva e forjadora da
consciência opressora, bastando que seja vista como treinamento4. Daí,
o problema herdado pela filosofia da educação de pensar como lidar com
estes problemas, já que se tornou complexo pensar filosoficamente após
Auschwitz ignorando Auschwitz, e ignorando a responsabilidade histórica
do educador. Uma cultura para a democracia é antes de tudo uma cultura
preparada para o não-retorno do totalitarismo.
Neste sentido, o esforço de compreensão de como a razão pôde conduzir
aos eventos que marcaram Aushwitz é de fundamental importância,
e o segundo mito a se desfazer é exatamente aquele que prega que
razão é sinônimo de cultura, de progresso, de evolução. No entanto,
um exame mais detido do tema faz perceber que a racionalidade está
profundamente impregnada pelo gérmen de sua própria contradição, de
sua própria destruição. Quanto mais especialista, mais ignorante! Quanto
mais racional, menos sentimental! Formação e de-formação podem estar
andando lado a lado! Estas forças contraditórias são capazes de produzir
horrores históricos, morais, políticos, ideológicos, o que motiva por si só
que se repense que sentido possuem as práticas científicas, as pedagogias
4 “Por um lado, eles representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular
massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo
de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos
mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização” (Adorno, Educação e emancipação, 3. ed.,
2003, p. 127). E também este outro trecho: “A educação contra a barbárie”: “Por outro lado, que existam elementos
de barbárie, momentos repressivos, e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito
da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que – e isto é Freud puro – justamente
esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura”
(Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 157).
68
Eduardo C. B. Bittar
educacionais e o que engendram a partir de si mesmas5.
Mas, se a intenção for a de pesquisar a mais apropriada concepção de
educação para os direitos humanos, deve-se desde logo dizer que educar
só tem sentido enquanto preparação para o desafiar. Uma educação
que não seja desafiadora, que não se proponha a formar iniciativas,
que não prepare para a mobilização, que não instrumente a mudança,
que não seja emancipatória, é mera fábrica de repetição das formas de
ação já conhecidas. Educação é, por essência, incitação à formulação
de experiência, em prol da diferenciação, da recriação, do colorido da
diversidade criativa. A partir da educação deve-se ser capaz de ousar. Em
“Educação – para quê?”, Adorno se recorda de Goethe para grifar este
aspecto: “Lembro apenas de que há uma frase de Goethe, referindo-se
a um artista de quem era amigo, em que diz que – ele se educou para a
originalidade´. Creio que o mesmo vale para o problema do indivíduo”6.
2. Educação, autonomia e emancipação: a formação da cultura democrática
Vale a pena que, preliminarmente, o conceito de educação seja
apresentado, dentro do pensamento adorniano, em “Educação após
Auschwitz”, nas seguintes palavras: “A educação tem sentido unicamente
como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica”7. É certo que, a partir
daí, o que se percebe é que a educação é um processo que se afirma
na microscopia de ações que valorizam dinâmicas muito singulares de
afirmação de valores e desinculcação de desvalores. Somente assim se é
capaz de operar verdadeiras revoluções.
Um projeto de direitos humanos deve, acima de tudo, ser capaz de
sensibilizar e humanizar, por sua própria metodologia, muito mais que
pelo conteúdo daquilo que se aborda através das disciplinas que possam
formar o caleidoscópio de referenciais de estudo e que organizam a
abordagem de temas os mais variados que convergem para a finalidade
última do estudo: o ser humano. Sensibilizar e humanizar importam em
desconfirmar a presença da opressão permanentemente transmitida
pela própria cultura, esta mesma que constrói um indivíduo consumido
pela consciência reificada (verdinglichtesBewustsein). Por isso, Paulo
Freire afirma: “Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente,
reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica,
mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir
5 Esta leitura da educação vem inspirada do crédito dado pela Escola de Frankfurt à teoria freudiana, segundo
a qual Eros (impulso de vida) e Tanatos (impulso de morte) caminham lado a lado na história. Leia-se: “Entre as
intuições de Freud que realmente também alcançam o domínio da cultura e da sociologia, uma das mais profundas,
a meu ver, é a de que a civilização engendra por si mesma o anticivilizatório e o reforça progressivamente. As suas
obras O mal-estar na civilização e Psicologia de grupo e a análise do ego mereceriam a maior difusão, precisamente
em relação a Auschwitz. Se a barbárie está no próprio princípio da civilização, então a luta contra esta tem algo de
desesperador” (Adorno, Palavras e Sinais, 1995, p. 105).
6 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 153.
7 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 121.
69
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
desta dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre a outra
viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inclusão,
os inscrevem num permanente movimento de busca. Humanização e
desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo,
são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes
de sua inconclusão. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos
parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada,
mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça,
na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no
anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação
de sua humanidade roubada”8.
O modelo de educação que se tem, e as vocações que é capaz de
despertar estão intrinsecamente associados aos modos pelos quais se
pratica poder em sociedade. Ademais, a crise da educação, como reflexão
de uma crise política maior, é capaz de ser sentida como um desarranjo
social, cujas demonstrações práticas se dão efetivamente através das
marcas da própria violência9. Por isso, uma educação voltada para a
disseminação de uma cultura de direitos humanos tem de ser capaz,
acima de tudo, de propugnar a construção de uma sociedade preparada
para o exercício da autonomia, condição fundamental para o exercício da
cidadania.
Em “Educação – para quê?”, Adorno traduz esta ideia de que a tarefa
da educação para a democracia é a de conceder capacidade de expansão
da autonomia individual. Educação e emancipação estão conceitual e
umbilicalmente comprometidas: “A seguir, e assumido o risco, gostaria
de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente
não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o
direito de modelar pessoas a partir do exterior; mas também não a mera
transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi
mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira.
Isso seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido
dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever
de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda
pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada
enquanto uma sociedade de quem é emancipado”10.
A educação que prepara para a emancipação deve ser sobretudo uma
educação que não simplesmente formula, ao nível abstrato, problemas, mas
8 Freire, Pedagogia do oprimido, 1987, p. 30.
9 “Tanto a crise da educação, quanto o crescimento da violência no país – e esta á a hipótese deste texto – têm
uma relação específica, ambas as crises retroalimentam-se mutuamente e tornando suas respectivas soluções mais
problemáticas” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX,
fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 63).
10 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 142.
70
Eduardo C. B. Bittar
aquela que conscientiza do passado histórico, tornando-o presente, para a
análise da responsabilidade individual ante os destinos coletivos futuros.
Por isso, a necessidade de que a educação para os direitos humanos, se
emancipatória, vise, acima de tudo, a produção do enraizamento, porque
se trata de um modelo compromissório. Com Paulo Freire: “Parecia-nos,
deste modo, que, das mais enfáticas preocupações de uma educação para
o desenvolvimento e para a democracia, entre nós, haveria de ser a que
oferecesse ao educando instrumentos com que resistisse aos poderes do
“desenraizamento”, de que a civilização industrial a que nos filiamos está
amplamente armada. Mesmo que armada igualmente esteja ela de meios
com os quais vem crescentemente ampliando as condições de existência
do homem”11.
A subjetividade fragilizada da sociedade pós-moderna, a subjetividade
que se tem, está profundamente ameaçada em sua capacidade de emergir
do anonimato, da inconsciência e da reificação de sua condição pelo
consumo, e se acovarda crescentemente ante à própria autonomia. Muito
longe da autonomia e do esclarecimento, como abandono da menoridade,
na leitura de Kant, a subjetividade que se tem se vê acossada por um
forte influxo de heteronomias estrangeiras a si e que determinam como
a subjetividade deve ser desde fora. Está-se em uma era da heteronomia
e não da autonomia. Ora, a perda da razão emancipatória, ideada pelo
Iluminismo, significa um vácuo na construção de uma parte do ideário
moderno que se perdeu, porque cogitado dentro da reflexão kantiana e
anestesiado pelas formas e táticas de atuação do poder.
Uma sociedade mecanizada e amplamente colonizada, na esfera do
mundo da vida, na leitura de Habermas, pela lógica da razão instrumental
é exatamente o que consente que tudo se desvirtue em ser simplesmente
produto; o ser humano é produto, a educação é produto, o raciocínio é
produto12t. Ora, a razão instrumental deve existir e persistir, mas manterse, como racionalidade do cálculo e da decisão tendo em vista fins
pragmáticos, restrita à dimensão do agir estratégico, especialmente o
econômico. Por isso, a redefinição do cenário de valores que se tem deve
vir instrumentado por uma forte concepção de resgate da identidade
da vida comum pelo simbólico na esfera pública, pela limitação da
colonização sobre ela produzida pela razão instrumental. Daí o papel da
emancipação, da construção da autonomia, o que só é possível de ser
operada pela educação.
11 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p. 97.
12 “As patologias da modernidade, segundo Habermas, resultam da não-percepção dessas esferas distintas de
racionalidade ou de ingerências indevidas em domínios alheios. Não se trata de uma simples contraposição de
racionalidades, muito menos de uma exclusão recíproca. A racionalidade instrumental deve ficar restrita ao âmbito
da integração sistémica. Já a racionalidade comunicativa, que se encontra encarnada nos processos de reprodução
simbólica do mundo da vida, deve prevalecer no âmbito da integração social.” (Boufleuer, Pedagogia da ação
comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 16).
71
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
Contra este cenário de apatia, deve-se recobrar o sentido das práticas
educacionais, especialmente quando o tema é o da preparação para
uma cultura centrada no convívio plural e na aceitação da diversidade,
no respeito à dignidade da pessoa humana e na preocupação com a
justiça social, e quando se quer acentuar a luta pela conquista de direitos
humanos, mergulhados que estão na maré da indiferença estatal e da
ineficácia da legislação.
A busca de autonomia, necessária para a cultura democrática,
demanda também um forte esforço de recuperação da subjetividade.
Historicamente, foi o caso da sociedade alemã pós-holocausto, que
demandava também uma forte reflexão por parte da filosofia da educação.
Adorno, em “A educação contra a barbárie” afirma que: “Eu começaria
dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie
é decisiva para a sobrevivência da humanidade”13.
No contexto presente e na realidade brasileira, a construção da
subjetividade crítica depende sobretudo de um fortalecimento da
autonomia do indivíduo, plenamente tragado para dentro das exigências
da sociedade de controle, da sociedade pós-moderna. No lugar de
promover a adaptação, a reação somente pode vir das mentes capazes
de veicularem a resistência14. Por isso, se deve repetir o que se lê em
“Educação – para quê?”: “Eu diria que hoje o indivíduo só sobrevive
enquanto núcleo impulsionador da resistência”15. Aqui está o gérmen da
mudança, somente possível se fundada numa perspectiva semelhante à
incentivada por Michel Foucault, em seus últimos escritos sobre ética,
de criação de uma ética da resistência como forma de enfrentamento da
microfísica do poder.
3. Educação, conscientização e humanização
“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para
a educação”16. Esta frase abre a reflexão do célebre escrito de Adorno
intitulado “Educação após Auschwitz”. O que é Auschwitz para nós
hoje? Será que a barbárie desapareceu no ventilador da história, ou a
poeira foi empurrada para baixo do tapete? Ainda aqui, e mais uma vez,
a consciência da história (presente e passada) deve ser trabalhada com
afinco nos meios acadêmicos, como modo de fomentar a criação de
13 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 156.
14 Esta reflexão aparece em “Educação – para quê?”, onde se lê: “A educação por meio da família, na medida em
que é consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito
mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação.” (Adorno, Educação e emancipação, 3.
ed., 2003, p. 144).
15 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 154.
16 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 119.
72
Eduardo C. B. Bittar
um enraizamento entre conceitos abstratos, aprendidos em disciplinas
isoladas, e tempo histórico-aplicativo.
E, quando se trata de enfrentar a necessidade de formação de uma
juventude, que carece observar na história a realidade que a cerca, como
única forma de reação, deve-se também considerar o quanto a memória
não possui um papel pedagógico fundamental, porque formativo para
o direcionamento futuro. Paulo Freire, em Educação como prática da
liberdade, valoriza esta ideia: “É fundamental, contudo, partirmos de
que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no
mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à
realidade, que o faz ser o ente de relações que é”17. A descolorida apatia
política, a invisibilidade dos problemas sociais, a indiferença social, a
insatisfação sublimada no consumo e a inércia mobilizadora precisam ser
superadas através de um movimento pedagógico que aja na contramão
deste processo.
Por isso, e por outros motivos mais, Auschwitz não pode ser esquecida18.
Não se trata de um problema do povo alemão, se trata de um problema da
humanidade, especialmente de uma humanidade que está mergulhada na
barbárie do tempo presente, aquela apresentada por Zygmunt Bauman:
“E o grau de polarização (e, portanto, também da privação relativa)
quebrou, nessas três décadas, todos os recordes registrados e lembrados.
A quinta parte socialmente mais alta da população mundial era, em 1960,
trinta vezes mais rica do que o quinto mais baixo; em 1991, já era sessenta
e uma vezes mais rica. Nada aponta para a probabilidade, no futuro
previsível, de que essa ampliação da diferença seja reduzida ou detida,
quanto mais revertida. O quinto mais alto do mundo desfrutava, em 1991,
de 84,7% do produto mundial bruto, 84,2% do comércio global e 85% do
investimento interno, contra respectivamente 1,4%, 0,9% e 0,9% que era
o quinhão do quinto mais baixo. O quinto mais elevado consumia 70%
da energia mundial, 75% dos metais e 85% da madeira. Por outro lado, o
débito dos países economicamente fracos do “terceiro mundo” estava, em
1970, mais ou menos estável em torno de 200 bilhões de dólares. Desde
então, ele cresceu dez vezes e está hoje, rapidamente se aproximando
da atordoante cifra de 2.000 bilhões de dólares (ver Programa para o
Desenvolvimento, das Nações Unidas, edição de 1994)”19.
17 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p. 47.
18 “A exigência de que Auschwitz não se repita é primordial em educação. Ela precede tanto a qualquer outra,
que acredito não deve nem precise justificá-la. Não consigo entender por que se tem tratado tão pouco disso até
hoje. Justificá-la teria algo de monstruoso ante a monstruosidade do que ocorreu” (Adorno, Palavras e Sinais, 1995,
p. 104).
19 Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 76.
73
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
Os educadores devem se perguntar, não importa com qual disciplina
estejam trabalhando, o que é Auschwitz para um jovem hoje20? Será que
um jovem de hoje conhece o que foi a realidade dos dias de Auschwitz? Por
isso, Auschwitz não pode ser esquecida, e junto dela: Treblinka, Ditadura
Militar, Impeachment do Collor, Ruanda, 11 de setembro, Kosovo, Invasão
do Iraque etc. A consciência histórica é aquela que aponta que o passado
retorna, e que sem consciência do passado se torna impossível agir no
presente com vistas à mudança no futuro.
A racionalidade técnica não colabora para a melhoria das condições
de análise de nosso tempo. O conhecimento instrutivo e técnico,
preparatório para exames simplistas e operatórios (Concursos públicos,
Provas semestrais mono-disciplinares...), é alienante, se desacompanhado
de uma ampliação crescente da capacidade de leitura da realidade
histórico-social. A tradição inscreveu nas práticas nacionais de ensino,
do fundamental ao superior, inclusive e principalmente o ensino jurídico,
formas de conhecimento que estão completamente descoladas da
dinâmica da vida social21. O ensino fundado em raciocínios técnicooperativos não consente a formação de habilidades libertadoras, mas,
muito pelo contrário, fornece instrumentos para operar dentro do
contexto de uma sociedade exacerbadamente competitiva, consumista,
individualista e capitalista selvagem. Quem vive sob este modelo de
educação não “recebe educação”, verdadeiramente, “padece educação”.
A massificação que castra, que anula, que empobrece, que iguala o
desigual cultural e criativamente falando, em verdade, comete o mais
terrível dos erros: “E, quando julga que se salva seguindo as prescrições,
afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e
sem fé, domesticando e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro
objeto. Coisifica-se”22. Em poucas palavras, ela é a linguagem da própria
dominação, e não condição para sua libertação23.
No caso do ensino superior, em especial do ensino jurídico, um bacharel
treinado em Direito, altamente especializado em direito processual civil,
geralmente, é insuficientemente preparado para a análise de quadros
de conjuntura social, política e econômica, ou mesmo para pensar a
responsabilidade do exercício de sua função dentro do sistema. Nada
impede que um bom operador do direito hoje, formado em uma boa e bem
20 “O exercício da cidadania democrática torna-se dessa forma problemático, pois onde o exercício da liberdade,
é feito sem o concurso da razão, acaba sendo feito através da violência” (Barretto, Educação e violência:reflexões
preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 70).
21 “A influência positivista entronizou a técnica como o principal objetivo do processo educacional quaisquer
vestígios de análise sobre a natureza moral da educação” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in
Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 66).
22 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, ps. 51 e 52.
23 “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
alienada de si mesma” (Horkheimer/Adorno, Dialética do esclarecimento, 1985, p. 114).
74
Eduardo C. B. Bittar
conceituada IES brasileira, seja autor de atitudes serenamente guiadas
pelos mesmos princípios que levaram Rudolf Hess, Hermann Goering,
Rudolf Hoess, Joseph Goebbels, Wilhelm Keitel, Himmler e Eichmann a
cometerem as atrocidades que cometeram à frente da máquina nazista.
A visão de gabinete, a compreensão de mundo autocentrada, a ideia de
responsabilidade restrita à dinâmica da responsabilidade do código de
ética da categoria, a noção de mundo fixada pela orientação da ordem legal,
a ação no cumprimento do ‘estrito’ dever legal... são rumos e nortes do
agir do profissional bacharelado pelas escolas de direito que conhecemos.
A evitação da barbárie depende claramente do modelo de educação que
se possa habilitar através de projetos conscientes de desenvolvimento de
habilidades e competências, aliadas a sensibilidades históricas, sociais e
políticas. Por isso, as práticas educacionais para devem preparar para a
autonomia, que, na leitura de Adorno, seria o único elemento que poderia
se antepor à Auschwitz24.
Autonomia é, fundamentalmente, em seu traçado interior, liberdade.
Significa a posse de um estado de independência com relação a tudo o que
define a personalidade heteronomamente. Isto importa na capacidade
de analisar e distinguir, para o que é necessária a crítica, pois somente
ela divisa o errado no aparentemente certo, o injusto no aparentemente
justo.
4. Práticas pedagógicas e autonomia
Parece ser vital, para o processo pedagógico, neste contexto de
amorfismo, de apatia diante do real, de perda da consciência de ego
sobre alter, de crescimento do individualismo materialista, de indiferença
perante tudo e todos, que o colorido do real seja retomado. Por isso, a
educação desafiada deve, sobretudo, sensibilizar, agindo de modo a ser
mais que instrutiva (somatória de informações acumuladas), enfatizandose o seu aspecto formativo (geradora da autonomia do pensar). O que
quer dizer isto, senão que pretende tocar o espírito humano, quanto às
suas aflições, ambiguidades, torpezas, vilezas, virtudes, capacidades, no
jogo da condição humana? E, para isto, o recurso à história, aos fatos, a
contextos, a casos, a julgamentos, a episódios morais, a conflitos parecem
favorecer a recuperação da memória e da consciência.
O abandono de certas práticas pedagógicas corriqueiras é fundamental
como método de recuperação do espaço perdido pela educação para a
dinâmica sedutora da sociedade de consumo. Mas, o que é que se encontra
24 “A única força verdadeira contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, se me for permitido empregar a
expressão Kantiana; a força para a reflexão, para a autodeterminação, para o não deixar-se levar”(Adorno, Palavras
e Sinais, 1995, p. 110).
75
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
na educação, por parte dos professores, senão: a pressuposição de que
o aluno está consciente da importância da disciplina em sua formação
(o aluno precisa ser convencido); a erudição vazia do discurso (da qual
o aluno se sente simplesmente alijado); o distanciamento da realidade
entre ser e dever-ser (o aluno não percebe a conexão entre realidade
ideada e realidade vivida); o apelo excessivamente teórico (aluno não
constrói a ponte com a prática); o amor pela obscuridade da linguagem
técnico-especializada (com a qual o aluno não se identifica).
Por isso, as técnicas pedagógicas devem se orientar no sentido de uma
geral recuperação da capacidade de sentir e de pensar. Isto implica uma
prática pedagógica capaz de penetrar pelos sentidos e que, portanto,
deve espelhar a capacidade de tocar os sentidos nas dimensões do
ver (uso do filme, da imagem, da foto na prática pedagógica), do fazer
(tornar o aluno produtor, capaz de reagir na prática pedagógica), do sentir
(vivenciar situações em que se imagina o protagonista ou a vítima da
história), do falar (interação que aproxima a importância de sua opinião),
do ouvir (palavras, músicas, sons, ruídos, efeitos sonoros, que repercutem
na ênfase de uma informação, de uma análise, de um momento, de uma
situação). Este arcabouço de formas de fomentar a aproximação do sentir
e do pensar crítico se dá pelo fato de penetrar pelos poros, gerando
angústia, medo, dúvida, revolta, mobilização, reflexão, interação, opiniões
exaltadas, espanto, descoberta, curiosidade, anseios, esperanças...
Quando isto está em movimento, a sala de aula foi tornada um laboratório
de experiências significativas, do ponto de vista pedagógico. O educando
precisa, sobretudo, sentir-se tocado em diversas dimensões e de diversas
formas, assim como ter despertados os próprios sentidos à percepção
do real, o que permite recuperar a possibilidade de aproximação da
prática educativa, numa correção de rumos, em direção à reconquista da
subjetividade autônoma.
Para isto, práticas pedagógicas sincréticas podem colaborar
acerbamente para a produção de resultados, humanidades, ou seja,
explorando-se poesia, literatura, pintura, cinema, teatro, aproveitando-se
o potencial criativo para tornar a sala de aula um laboratório de ideias.
Esta experiência ético-estética reabilita o potencial transformador da
educação, e, portanto, do ensino jurídico. A técnicas pedagógicas podem
aliar: leitura; fichamento; interações grupais; seminários; grupos de estudo;
seminários de pesquisa; projetos de responsabilidade social; construção
de casos; discussões de pesquisas; interação social; desenvolvimento de
inserções comunitárias; leitura de textos; discussões; seminários; filmes;
debates plurais; produção do conhecimento orientada; representações;
discussões; cases; simulações; teatralizações; pesquisa em websites.
76
Eduardo C. B. Bittar
A educação que se quer, bem como, o ensino jurídico de que se carece,
deve sensibilizar, tocar, atrair, fomentar, descortinar horizontes, estimular
o pensamento. É desta criatividade que se nutre a autonomia. Por isso,
os educadores podem encontrar à sua disposição instrumentos para agir
na berlinda de suas atuais e desafiadas práticas pedagógicas. Se tudo
fala contra a formação da consciência crítica (a televisão, o consumo,
a internet, o individualismo, a estética...), a consciência histórica deve
reaparecer como centro das preocupações pedagógicas hodiernas. Pois,
fundamentalmente, a subjetividade pós-moderna é a de um indivíduo
deslocado, sem lugar próprio, e, exatamente por isso, incapaz de
independência e autonomia.
Uma pedagogia histórica trabalha sobretudo o resgate, e com quais
instrumentos, senão com aqueles que se tornaram linguagem corrente da
sociedade de informação? Cinema, internet, notícias de jornais, imagens,
fotojornalismo internacional, literatura animada, imagens, marketing
instrutivo... que apropriadas pelo discurso pedagógico se tornam
ferramentas de grande valor para o resgate da ‘consciência situada’, já que
o enraizar significa o fincar bases, instituir um solo-base, como modo de
se evitar o ser-levado-pela-força-da-maré. Por vezes, a enxurrada conduz
o indivíduo a valas profundas, as quais abeiram a própria banalidade do
mal.
5. Por uma pedagogia da ação comunicativa
A pedagogia da ação comunicativa, para que seja aceita e praticada
num modelo de educação para os direitos humanos já é reveladora de seu
próprio objetivo: conscientizar e humanizar pelos métodos de ensino. Tratase de opor à tradição da autoridade, a tradição do exercício da liberdade
pelo diálogo25. Somente o exercício da liberdade permite que se construa
a liberdade, por isso, a liberdade deve ser valorizada como um requisito
fundamental para a criação de uma cultura do exercício democrático do
convívio. Preparar para o exercício democrático significa, acima de tudo,
preparar para o desenvolvimento de habilidades que giram em torno da
capacidade de convívio, de socialização, de responsabilização na relação
ego-alter. Se as instituições de ensino não estimularem o exercício de uma
cultura democrática, ela não nasce espontaneamente, e mesmo tende a
acrisolar-se, conforme constatam os estudos de Kohlberg26.
25 “O diálogo – a sociedade dialogal de Habermas – base da sociedade democrática terminou substituído pelo
diktät autoritário, em sua forma política e pedagógica” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in
Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 65).
26 “Dada la importancia de las actuales experiencias de participación en una comunidad política por qué nos
apoyamos en la escuela secundaria para que ésta las provea?, por qué no se las delega a experiencias espontáneas
una vez terminada la escuela secundaria? La respuesta es que, a no ser que una persona deje la escuela secundaria
en un 4º. estádio, con sus intereses y motivaciones correspondientes, es muy improbable que él o ella lleguen
77
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
A ausência do desenvolvimento de habilidades relacionadas ao político,
e o excesso de adestramento nas especialidades, faz da cultura do ensino
um ambiente infenso ao desenvolvimento de qualquer tipo de identidade
política de grupo27. A identidade política somente pode ser cultivada onde
há estímulo à participação, ao diálogo e à formação da consciência sobre
questões e problemas comunitários; educar para uma sociedade mais
justa significa acima de tudo desafiar para o convívio social, o que implica
uma pedagogia crítico-comunicativa28.
Para isto, carece de que se vençam múltiplos empecilhos que gravitam
no universo da aura do modelo que se aceita comumente como linguagem
comum do ensino transmitido para estudantes, a saber: tradições,
valores, cultura, práticas ancestrais, concepções e visões de mundo29.
A escola é também um ambinete pleno de regulamentações, regras,
procedimentos, burocracias e reproduz a escala de exigências de uma
sociedade na formação do indivíduo. A ênfase na abordagem formativa,
e não meramente adestradora, implica na identificação de um projeto
pedagógico cujas distinções façam com que a instituição se distinga por
valorizar aspectos específicos do projeto pedagógico a favor de uma
cultura dos direitos humanos para a formação de uma sociedade mais
justa a partir da transformação da consciência dos indivíduos sobre sua
inserção no grupo.
Esta leitura se constrói sobre a ideia-base do pensamento habermasiano,
e encontra amparo também nos estudos kohlbergianos, de que se deve
abandonar o paradigma da consciência solipsista para buscar na pluralidade
da interação de sujeitos a construção linguística da verdade30. O agir no
más tarde a tener la capacidad y la motivación necesarias como para alcanzar posiciones de participación y
responsabilidad pública. Ellos, como nuestros estudiantes evitarán esas situaciones o no las buscarán” (Kohlberg,
La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 27).
27 “He traducido los argumentos socráticos para la democracia escolar en términos de experiencias participativas
para el desarrollo del 4º. estadio con orientación hacia los roles de ciudadano, así como también para desarollar
alguna aproximación a nuestro estadio 5 de los principios de la democracia constitucional. El obstáculo que
debemos enfrentar es que el gobierno burocrático y autoritario de la escuela secundaria, actualmente enseña
la alienación e ignorancia acerca de la sociedad democratica” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria:
educando para una sociedad más justa, 1992, p. 29).
28 “Nuestra conclusión es que una educación cívica para una participación cívica idealmente debería incluir
dos experiencias: una democracia directa en una pequeña escuela de la comunidad fundada en una escuela
alternativa, para el desarrollo de los conceptos y las actitudes hacia la comunidad del 4º. estadio; y la experiencia
de participación en una comunidad más amplia gobernada por la democracia participativa y reglementada por la
burocracia, para transferir dichas actitudes a una actitud participativa en una sociedad más grande” (Kohlberg, La
democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 31).
29 “Consequentemente,entendemos por “pedagogia da ação comunicativa” aquela que, da parte de seus
proponentes ou participantes, vem marcada por uma atitude fundamental voltada ao entendimento. Com isso a
clarificação conceituai da categoria de ação comunicativa adquire uma importância significativa para a reflexividade
crítica da prática educativa, mormente para os professores” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma
leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 85).
30 Cf. Bolzan, Habermas: razão e racionalização, 2005, p. 81. Em Kohlberg, a cultura do diálogo parece ser
fundamental: “La mejor forma de concebir a la educación moral es como un proceso natural de diálogo entre pares,
más que como un proceso de instrucción didáctica o de exposición. La mejor forma de concebir al docente y el
currículo es como facilitadores de este diálogo a través de la presentación de desafiantes dilemas o situaciones de
exploración de las razones de los estudiantes y de la atención a estas razones y la presentación de un razonamiento
78
Eduardo C. B. Bittar
mundo, segundo esta consciência do educando formado para pensar em
agir sem o outro, apesar do outro, sobre o outro, deve ser substituída
por uma consciência de que agir no mundo é sobretudo inter-agir com
o outro, a partir da consideração do outro31. A condição dialogal da
educação é um pressuposto para que o outro seja visto já em sala de aula,
já nas práticas educativas, já na inserção do estudo aplicado, já nas formas
pelas quais as dinâmicas pedagógicas privilegiem a interação e o diálogo
voltados para o entendimento32. A razão comunicativa é pressuposto
para uma lógica diversa daquela que se cultiva e se pratica no conjunto das
atividades formativas e preparatórias do indivíduo, seja para a vida, seja para
o mercado de trabalho, seja para o exercício de uma profissão, seja para a
compreensão do mundo.
Como a produção do consenso não é simples, e não é muito menos
automática na dialética das relações, exige-se, para sua prática, o
reconhecimento da correção, da autenticidade e da veracidade dos
discursos em interação33. Por isso, só pode ocorrer se incentivada para
que indivíduos sejam habilitados ao desenvolvimento de habilidades
dialogais respeitosas e competências que se afinizem com esta dinâmica
da interação humana, que cobra elevado compromisso intelectual e
moral. Recuperar a consciência do outro, numa racionalidade alterizada,
e numa alteridade racionalizada, em tempos em que o individualismo se
tornou uma marca histórica, é tarefa suficientemente deafiadora para as
práticas pedagógicas vigentes.
A pedagogia da ação comunicativa reclama uma aproximação da
dinâmica da vida para dentro das salas de aula, a superação da distância
entre docente e aluno, o desenvolvimento docente de uma identidade
socrática, ou seja, estimuladora do diálogo, a criação de procedimentos
e formas de interação que superem a insinceridade do protocolo, a
busca da interação criativa com relação ao modelo da intocabilidade da
autoridade-docente, entre outros fatores. A cultura do antidiálogo deve
ser substituída pela do diálogo: “O antidiálogo que implica numa relação
vertical de A sobre B, é o oposto a tudo isso. É desamoroso. É acrítico
e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é humilde.
É desesperançoso. Arrogante. Autossuficiente. No antidiálogo quebra-se
aquela relação de “simpatia” entre seus polos, que caracteriza o diálogo.
de un estadio superior” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa,
1992, p. 56).
31 Cf. Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 26.
32 “Torna-se, entretanto, necessário distinguir entre a revolta (o homem revoltado de Albert Camus) e a
violência; a primeira, é a seiva da cultura e a segunda, a sua morte, principalmente porque nega o instrumento
básico da comunicação cultural, que é o diálogo. Vê-se, então, como a porta de entrada da violência na cultura e,
em conseqüência na educação, foi a negação do diálogo como fonte de conhecimento e entendimento entre os
homens” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc.
165, jan.-mar. 1992, p. 68).
33 Cf. Bolzan, Habermas: razão e racionalização,2005, p. 100.
79
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados”34. E o diálogo
somente pode ser estimulado se o modo perguntador for desenvolvido
como mecanismo de instrumentação da metodologia de ensino, ou seja,
o modo socrático de desenvolver problemas morais35.
Para o ensino superior voltado para a cultura dos direitos, para o ensino
jurídico, esta questão é especialmente importante, tendo em vista que
cultiva modos e métodos, práticas pedagógicas e opções metodológicas,
que intensificam o modelo solipsista e auto-didata. Mas, como é possível
construir uma visão de sociedade baseada no isolamento atômico dos
atores do próprio conhecimento? Ora, como é possível uma metodologia
de ensino construir valores na base de conceitualizações abstratas que
prescindem de trabalhar sobre evidências extraídas do mundo da vida,
num verdadeiro desperdício da experiência36? Ainda, como é possível
falar em construção da justiça, já que a justiça é um bem alótrio, segundo
Aristóteles, que se dá não de si para si, mas de si para o outro, se a
consciência da interação é atrofiada no modus pedagogicus do modelo
subjetivista37?
Está-se acostumado demais a conviver com um modelo subjetivista e
que descarta de imediato a presença do outro como incômoda. É neste
estranhamento do outro que se curtem os azedumes sociais que acabam
por se tornar o empecilho fundamentral para a vida social interativa e
produtiva. Trata-se, portanto, de pensar em meios e métodos capazes de
valorizarem a condição de aceitação da liberdade como forma irrestrita de
contato intersubjetivo38. Onde se acusa esse modelo de ideal, deve-se dizer
que ele se baseia fundamentalmente em práticas concretas, de linguagem
e baseadas no quotidiano das interações da vida que pressupõem como
34 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p.116.
35 “Pienso que resulta claro que la sicología que se deduce de las prácticas del efecto Blatt es la sicología
de Piaget, por su énfasis en que el diálogo entre estudiantes es lo que suscita un conflicto cognitivo y permite
superar el egocentrismo del pensamiento a través de la necesidad de argumentos intersubjetivos y a través de la
exposición a un estadio próximo superior. Llamo a este neosocrático, no sólo porque los profesores tienen el rol de
cuestionador socrático, sino también porque el profesor como Sócrates asume ser un filósofo moral animado por
un interés por una forma de bien y de justicia” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para
una sociedad más justa, 1992, p. 57). “Implícita en la fé de Sócrates por el libre diálogo acerca de la justicia, está su
fé en la democracia ateniense. Aún cuando la democracia ateniense condenó a Sócrates a la muerte por enseñar
la justicia, Sócrates mantuvo su fé en ella y permitió que se ejecutara para el mantenimiento del contrato social”
(Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 58).
36 Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 44/ 45.
37 Baseio esta minha reflexão na preciosa consideração a seguir, de Boufleuer: “Não fica difícil perceber que
uma concepção de educação baseada no paradigma da consciência, centrada no sujeito, não consegue oferecer
uma solução adequada para as questões relativas à convivência das pessoas, mormente para as que envolvem
noções de dever e de justiça. Só o conceito de uma racionalidade comunicativa, centrada na intersubjetividade,
pode dar conta das múltiplas dimensões que fazem parte dos processos educativos” (Boufleuer, Pedagogia da ação
comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 33).
38 “A partir da teoria da ação comunicativa a relação professor-aluno aparece sob o horizonte da autoconstituição
da humanidade enquanto humanidade solidária e que implica o reconhecimento mútuo de sujeitos. A liberdade
solidária dos comunicantes requer a superação de toda e qualquer forma de opressão que negue o homem.”
(Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 86).
80
Eduardo C. B. Bittar
consenso de fundo a ideia de mundo da vida39.
Que ética se pensa estar desenvolvendo quando a interação é
desprivilegiada para dar lugar a conceitos abstratos? Que capacidade de
solução de litígios se está desenvolvendo quando se propugna a litigância
processual como único mecanismo de encaminhamento de controvérsias?
Que tipo de cultura é essa em que a educação privilegia os objetivos
pessoais e marginaliza o outro na própria interação escolar? Que tipo
de relação entre responsabilidade profissional e responsabilidade social,
quando se concebe uma forma de aprendizagem que estimula o aluno
ao desenvolvimento de parcas formas de interação e de egocentrismo
do sucesso profissional como autor-realizador? A reação carece de ser
instrumentada, portanto, pontuando-se alguns fatores fundamentais a
serem combatidos dentro da lógica de funcionamento do próprio sistema
atual de ensino e dentro destas específicas práticas de cultura. Uma
cultura democrática carece de incentivos para se desenvolver, enquanto
prática da liberdade assumida no encontro intersbjetivo de alto nível.
Uma cultura acadêmica para os direitos humanos implica na formação de
uma consciência alargada sobre as questões comunitárias e sociais que
cercam o indivíduo em fase de formação40.
6. Propostas conclusivas
Qual o método e qual a finalidade da educação e da pesquisa em
direitos humanos? Qual seria, senão a humanização? Por isso, se torna
extremamente conveniente pensar com e através de Heidegger, quando
afirma, em sua ÜberdenHumanismus: Briefan Jean Beaufret: “Que outra
coisa significa isto, a não ser que o homem (homo) se torne humano
(humanus)? Deste modo então, contudo, a humanistas permanece a
preocupação de um tal pensar; pois humanismo é isto: meditar, e cuidar
para que o homem seja humano e não des-humano, inumano, isto é
situado fora de sua essência”41.
Uma cultura democrática é aquela que é capaz de incentivar que
indivíduos que estão em processo de formação educacional sejam
incentivados a pensarem por si mesmos, o que não se faz sem incentivos
39 “A idealidade, assim definida, constitui uma exigência da vida coletiva e deve ser entendida como a alternativa
que se coloca em oposição à desconfiança total e à mentira ininterrupta. É claro que cada um de nós pode resolver
enganar ou manipular outros em determinada situação. Mas é impossível que todos ajam continuamente desse
modo. Facilmente podemos imaginar as dificuldades que um único indivíduo enfrentaria a partir do momento
em que ninguém mais pudesse acreditar nele. E se ninguém mais pudesse acreditar em ninguém, a vida social
simplesmente seria inviável.” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001,
p. 53).
40 “El objetivo de la educación social es desarrollar una persona con capacidad para realizar una sociedad
democrática con la habilidad y la motivación como para hacer una sociedad más justa y más comunitaria de lo que
es ahora” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 39).
41 Heidegger, Sobre o humanismo: carta a Jean Beaufret, 1973, p. 350.
81
EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino
jurídico
claros à autonomia, ao desenvolvimento humano e ao esclarecimento.
Pensar a si significa também tomar consciência de si, este que parece
ser o primeiro passo para se responsabilizar pelo outro, na medida em
que ego e alter são inseparáveis na constituição dos processos sociais. A
prática da liberdade se exerce com incentivos claros ao desenvolvimento
de habilidades e competências capazes de forjar a consciência crítica,
participativa, tolerante, o que não se faz sem uma consciência sobre a
importância das práticas comunicativas e dialogais. Nas palavras de
Häberle: “A educação para o respeito da dignidade humana constitui
um destacado objetivo pedagógico do Estado constitucional: dignidade
humana, para cada um, bem como para o próximo, no sentido dos ´outros´
(como tolerância, solidariedade)”42. O papel de uma educação pautada
por estes critérios é a inclusão e não a exclusão.
Ademais, a educação para os direitos humanos depende de compromisso
social, sensibilidade humana e desenvolvimento de conhecimentos através
das fronteiras da pesquisa. O desenvolvimento e valorização da pesquisa,
com vistas ao desenvolvimento da consciência crítica e enraizadora, deve
ser capaz de, acima de tudo: aprofundar a consciência sobre a importância
dos direitos humanos e de sua universalização; provocar a abertura
criativa de horizontes para a auto compreensão; incentivar a reinvenção
criativa permanente das próprias técnicas; habilitar à criticidade;
desenvolver o reconhecimento histórico dos problemas sociais; incentivar
o conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar
sobre a condição humana; habilitar a uma compreensão segundo a
qual a conquista de direitos depende da luta pelos direitos; valorizar a
sensibilidade em torno do que é humano; aprofundar a conscientização
sobre questões de justiça social; recuperar a memória e a consciência de
si no tempo e no espaço; habilitar para a ação e para a interação conjunta
e coordenada de esforços; desenvolver o indivíduo como um todo, como
forma de humanização e de sensibilização; capacitar para o diálogo e a
interação social construtiva, plural e democrática.
Finalizando, é possível alcançar uma síntese propositiva que, de certa
forma, pode também funcionar como uma espécie de conjunto de
indicadores. Esta síntese deve, necessariamente, externar as seguintes
ideias: repensar o condicionamento da razão pela razão frenética,
surgida como fruto contextual pós-moderno; propugnar a superação
da razão instrumental, tornada objeto da organização curricular e da
formação uni-centrada das antigas disciplinas monolíticas; postular a
superação da clausura especializada que determina a autopoiese dos
42 Häberle, A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, in Dimensões da dignidade (SARLET,
Ingo Wolfgang, org.), Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, 2005, p. 136.
82
Eduardo C. B. Bittar
conhecimentos especializados e encerrados sobre si mesmos; incentivar
o desenvolvimento de habilidades e competências interativas; estimular o
desenvolvimento do agir comunicativo fundador da cidadania, na relação
solidária entre escola e sociedade; convocar os educadores e docentes do
ensino jurídico a uma rebelião contra o pensamento compartimentado,
fragmentário, unilateral; desincentivar o modelo de ensino poucoprovocativo ou negador da intersubjetividade dialogal; propugnar a
formação humana integral, como retomada da consciência da prática de
uma razão emancipatória; superar o modelo de educação tecnicizante e
produtor de subjetividades rasas, na medida em que se define o que se é
pelo que o mercado exige que seja tornado o indivíduo.
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84
Thiago Assunção
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Thiago ASSUNÇÃO1
O que são Direitos Humanos?
Esta indagação remete a inúmeras respostas possíveis, que buscam
privilegiar diferentes valores, como a igualdade, a liberdade, e a
solidariedade. Dallari (1998) diz que “esses direitos são considerados
fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir
ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”.
Pode-se dizer, em linhas gerais, que os Direitos Humanos seriam direitos
inerentes a todos os seres humanos, independente de nacionalidade,
sexo, origem, cor, religião, língua ou qualquer outra condição. Não se
pode perder ou renunciar a esses direitos, na mesma medida que não
podemos deixar de sermos seres humanos. Nem o Estado pode negá-los
ou alterá-los, pois eles são hoje cláusulas pétreas, portanto intocáveis, da
nossa Constituição.
Os Direitos Humanos foram considerados indivisíveis (ONU, 1993):
não se pode negar um direito em detrimento de outro, por considerálo “menos importante” ou “não essencial”. Eles seriam também
interdependentes e inter-relacionados: fazem todos parte de um quadro
integrado e complementar. Um direito muitas vezes não faz sentido sem
a garantia de outros direitos. Finalmente, todos os direitos humanos se
relacionam com o fim máximo da dignidade da pessoa humana. Defender
os Direitos Humanos é exigir que a dignidade humana de todos seja
respeitada incondicionalmente.
Por outro lado, os Direitos da Pessoa Humana são tanto princípios
quanto normas de aplicação prática. Tais princípios foram construídos ao
longo da história, baseando-se na visão de um mundo cada vez mais justo
e pacífico, e constituem um conjunto de normas mínimas sobre como os
indivíduos e as instituições de todo o planeta devem tratar as pessoas.
São exemplos de Direitos Humanos: o direito à vida, dignidade,
liberdade (de ir e vir, de expressão, de crença, etc.), igualdade, diferença,
privacidade, educação, saúde, moradia, alimentação, a um meio ambiente
limpo e saudável, a votar e ser votado, entre outros.
1 Mestre em Educação para a Paz: Direitos Humanos, Cooperação Internacional e Políticas da União Europeia
pela Universidade de Roma III. Professor de Direitos Humanos do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
E-mail: [email protected]
85
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Mas até que surgissem normas escritas para garantir a aplicação de
regras basilares de convivência entre os seres humanos, passaram-se
milênios. Segundo COMPARATO (2011), já no período axial da história,
entre 600 e 480 a.C, pensadores de distintas regiões do globo “enunciaram
os grandes princípios e se estabeleceram as diretrizes fundamentais de
vida, em vigor até hoje”. Entre esses pensadores, figuram Buda, Lao-Tsé,
Confúcio, Pitágoras, além de outros. Entre lutas sangrentas e revoluções
gloriosas, a odisseia humana produziu conquistas históricas inegáveis,
sempre em nome da emancipação do indivíduo, no seu anseio por
equidade e justiça. É o caso da Revolução Francesa (1789), que operou
inovações radicais nos costumes e na cultura da civilização ocidental, com
seu lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, e que deixou como fruto e
marco histórico a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Falamos da Revolução Francesa apenas para usar um exemplo
marcante, já que uma infinidade de fatos cotidianos e de homens
comuns, mas muitas vezes grandiosos, fizeram da presença humana na
Terra uma luta constante por patamares civilizatórios mais elevados,
dando origem ao que hoje chamamos de Direitos Humanos. Portanto,
tratam-se claramente de direitos históricos, ou seja, “nascidos em certas
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 2004).
De qualquer modo, é principalmente no século XX que os direitos do
homem ganham contornos mais nítidos. Como precedentes históricos
(PIOVESAN, 2010), temos o surgimento, em 1863, da Cruz Vermelha,
preocupada com as vítimas dos conflitos armados e de onde emerge o
estabelecimento do Direito Humanitário. Já após a primeira grande guerra
mundial, aparece a tentativa de se criar uma organização para manter a
paz entre os povos. Era a Liga das Nações (1919), a qual deu origem, mais
tarde (1945), a atual Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1919
constitui-se a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a qual promove
padrões mínimos de tratamento dos trabalhadores em nível global. A
OIT influenciou a criação posterior de outras agências internacionais,
especializadas na promoção de temas fundamentais, como a UNESCO
(educação), UNICEF (direitos da criança), OMS (saúde), FAO (alimentação),
ACNUR (refugiados), etc.
A expansão e aceitação dos Direitos Humanos ganha impulso definitivo
a partir da Segunda Guerra Mundial. Com mais de 60 milhões de mortos,
o conflito é um divisor de águas, tanto em termos históricos, como para
o próprio direito, que viu nascer um conjunto de normas de caráter
86
Thiago Assunção
internacional, em resposta às atrocidades e horrores do nazismo, e que
eram destinadas a evitar que a catástrofe da guerra se repetisse. Era o
novo direito internacional dos Direitos Humanos, cujo marco inaugural é
a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Finalmente a humanidade
chegava a um consenso sobre quais seriam, afinal, os direitos considerados
essencialmente indispensáveis, em qualquer canto do planeta.
A partir da Declaração Universal, surgiram inúmeros tratados
internacionais para tutelar os direitos civis, políticos, econômicos, sociais,
culturais e ambientais. Normas internacionais que, não raras vezes,
servem de referência para a adoção de instrumentos internos de proteção
dos direitos da mulher, da infância, das pessoas com deficiência, dos
idosos, da população LGBT, entre outros grupos vulneráveis, bem como
para proteger os cidadãos contra a discriminação, a tortura, o flagelo da
pobreza extrema, a degradação ambiental etc.
Neste processo, é inquestionável a atuação de indivíduos e organizações
não-governamentais, na estruturação de um verdadeiro movimento
global pelos Direitos Humanos. Desde Mahatma Gandhi que lutou através
da não-violência pela independência da Índia, a Martin Luther King,
em sua cruzada pela igualdade racial, passando por Nelson Mandela,
que liberou a África do Sul do apartheid, além de organizações como a
Anistia Internacional, que reúne voluntários no mundo todo na luta por
esses direitos. Mas, para além de ídolos, sabemos que existem em toda a
parte cidadãos e cidadãs anônimos, que lutam com humildade e firmeza,
cotidianamente, para a consecução dos objetivos que possibilitem a
realização dos Direitos Humanos.
Cabe citar, ainda, a criação de sistemas normativos e institucionais de
proteção dos Direitos Humanos, contra a sua violação pelo próprio Estado.
É o caso do Sistema Global ancorado nas Nações Unidas, bem como os
sistemas continentais ou regionais: o Sistema Europeu, Interamericano e
Africano.
No continente americano, o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos foi estruturado com dois órgãos distintos: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, a qual está apta a julgar os Estados quando estes falharem na
garantia dos direitos assegurados pelo Pacto de San José da Costa Rica,
assinado e ratificado pelo Brasil.
No âmbito jurídico brasileiro, os Direitos Humanos contam com uma
proteção irrestrita. A Constituição Federal trata de maneira específica
(Título II, arts. 5° a 17) dos direitos e garantias fundamentais.
87
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Thiago Assunção
o conjunto de atividades de capacitação e de difusão de informação,
orientadas para criar uma cultura universal na esfera dos direitos
humanos, mediante a transmissão de conhecimentos, o ensino de técnicas
e a formação de atitudes, com a finalidade de: (a) fortalecer o respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; (b) desenvolver
plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade do ser
humano; (c) promover a compreensão, a tolerância, a igualdade entre os
sexos e a amizade entre todas as nações, os povos indígenas e os grupos
raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos; (d) facilitar a participação
efetiva de todas as pessoas em uma sociedade livre e democrática, na qual
impere o Estado de Direito; (e) fomentar e manter a paz; (f) promover um
modelo de desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça
social. (UNESCO, 2012, p. 4).
Ademais, leis como o Estatuto do Índio (1973); Código de Defesa do
Consumidor (1990); Estatuto da Criança e do Adolescente (1990); Estatuto
dos Refugiados (1997); Lei que define os Crimes de Tortura (1997); Lei de
Crimes Ambientais (1998); Estatuto do Idoso (2003); Lei Maria da Penha
(2006); Estatuto da Igualdade Racial (2010) são apenas exemplos da
legislação infraconstitucional que busca a proteção dos Direitos Humanos
no Brasil. Isso sem contar os diversos tratados internacionais sobre o tema,
assinados e ratificados pelo Brasil e que integram o nosso ordenamento
jurídico, de acordo com a própria Constituição (art. 5°, §§ 2° e 3°).
De qualquer forma, como ressalta Bobbio (2004, p. 9), uma coisa é
proclamar direitos, outra é desfrutá-los efetivamente. E, a implementação
das políticas públicas para efetivação dos direitos, representam o papel
fundamental da atuação do Estado em concretizar ações, programas,
projetos e planos que de alguma de alguma maneira sejam de alcance
dos cidadãos
Como afirmou com propriedade a Secretária de Estado da Justiça,
Cidadania e Direitos Humanos, Maria Tereza Uille Gomes (2011):
Políticas Públicas constituem-se em um processo cíclico que se materializa
em sucessivas etapas, através de discussão dialética entre os atores que
integram o corpo político, em busca de soluções para os problemas sociais,
que deem efetividade plena aos Direitos Humanos em busca de melhores
condições de vida digna para todos.
Conceituando Educação em Direitos Humanos
Mas o que seria “Educação em Direitos Humanos?” Educar para os
Direitos Humanos significa reunir esforços, conhecimentos, recursos e
atividades, por meio de iniciativas de todo gênero e através da cooperação
entre os mais diversos atores e instituições do Estado e da sociedade, com
o objetivo de disseminar uma cultura de paz, trabalhando para a melhoria
da vida em sociedade e em última análise, buscando a garantia de uma
vida digna a todo ser humano. De acordo com a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, “a educação em direitos
humanos é um processo ao longo da vida que constrói conhecimentos
e habilidades, assim como atitudes e comportamentos para promover e
apoiar os direitos humanos” (UNESCO, 2012, p. 2).
Segundo o conjunto de instrumentos internacionais (declarações e
tratados) que se referem à educação em direitos humanos, ela pode ser
definida como:
88
A questão central, quando pensamos numa educação voltada para os
Direitos Humanos, é que ela possua o objetivo premente de trabalhar
para reverter a indiferença que toma conta das mentes e corações, em
relação aos graves problemas que enfrenta a humanidade, estimulando
cada cidadão a buscar incessantemente soluções e alternativas, dentro do
seu possível, para reverter o quadro de miséria, intolerância, violência e
poluição que assola a sua comunidade e o planeta como um todo.
Por outro lado, quando falamos em se estabelecer uma cultura da
paz, nos referimos à formação de uma cultura de respeito aos direitos
humanos, “tomando como referência o próprio inacabamento do homem,
eterno aprendiz, sujeito de sua própria cultura que se constitui humano
pela própria experiência humana.” (GORCZEVSKI, 2008, p. 71).
Na História
Em plena ditadura militar, os ministros da Marinha, do Exército e da
Aeronáutica instituíram, por meio do Decreto-Lei n° 869/1969, a disciplina
Educação Moral e Cívica nas escolas de todos os graus e modalidades
dos sistemas de ensino no país. Este mesmo Decreto instituiu, ainda, no
ensino médio a disciplina Organização Social e Política Brasileira (OSPB).
A Educação Moral e Cívica, como entendida pelas autoridades militares
no comando do país, apoiava-se nas “tradições nacionais”, e tinha como
finalidade “a projeção dos valôres [sic] espirituais e éticos da nacionalidade
(...); o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições (...); o
aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e
à comunidade” (BRASIL, 1969).
Denota-se, pelo próprio conteúdo que reveste as diretrizes curriculares
desta disciplina, um forte caráter conservador e nacionalista. De fato,
o ensino da EMC servia ao projeto de poder da ditadura militar, já que
89
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
“buscava-se interferir nas formas de pensar e de agir dos indivíduos, de
modo a garantir a legitimidade da ditadura” (NUNES e REZENDE, 2008).
A EMC e a OSPB foram extintas pela Lei nº 8.663 de 1993, a qual
determina, quanto ao conteúdo dessas matérias, que “seu objetivo
formador de cidadania e de conhecimento da realidade brasileira (...)
sejam incorporados às demais disciplinas de ciências humanas e sociais”
(BRASIL, 1993).
Ocorre que desde então, não se criou praticamente nada para o
ensino, nas escolas, de noções de direito, cidadania, sustentabilidade
e democracia. Nota-se que o brasileiro está crescendo com uma carga
elevada de conhecimentos, muitas vezes, estéreis para a sua vida
cotidiana e deixando de aprender, de modo claro e estruturado, o seu
papel enquanto membro da sociedade: o que é a Constituição Federal,
para que serve o Estado, por que pagamos impostos, o que acontece se
violamos a lei, ou o que devemos fazer para mudá-la etc. Não se trata, por
óbvio, de reanimar algo nos moldes da Educação Moral e Cívica, que ficou
para trás em um contexto histórico obtuso e que nada tem em comum
com o que ser quer hoje.
Mas, com a ascensão do discurso universal da proteção dos Direitos
Humanos, começou-se a debater a necessidade da criação de uma
alternativa que fosse capaz de instrumentalizar processos educativos que
trabalhassem de alguma forma, conteúdos como: a ética nas relações
humanas, noções de direitos e deveres do cidadão, a imperatividade da
sustentabilidade ambiental, a valorização da diversidade cultural, além
da importância do respeito para com a diferença, entre outros valores,
princípios e conhecimentos a que chamamos de modo amplo de educação
em direitos humanos. Categorias e saberes que, nos parece evidente, se
tornaram indispensáveis para a construção de uma sociedade inclusiva,
mais justa, solidária e sustentável.
Estágio atual
Nota-se a existência de um número crescente de iniciativas, seja no
âmbito global, nacional e regional, que vão no sentido de inserir a
Educação em Direitos Humanos (EDH) em todos os níveis da educação.
Os estabelecimentos de ensino, principalmente a escola, são espaços
privilegiados de formação humana, por eles passam ou deveriam passar,
obrigatoriamente2, cada um dos pequenos cidadãos que irão compor a
sociedade em que viveremos amanhã.
2 O ensino fundamental é obrigatório no Brasil, de acordo com a Constituição Federal, art. 205, e a Lei 9.394/1996
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), art. 4, inciso I.
90
Thiago Assunção
Em relação a essas iniciativas, vamos analisar, ainda que brevemente,
os últimos e mais importantes instrumentos adotados em relação ao
tema que deram, recentemente, um impulso decisivo para a implantação
gradativa da Educação em Direitos Humanos (EDH) no Brasil.
No âmbito internacional, a EDH está avançando como nunca. É
compreensível que o tema receba cada vez mais atenção por parte da
comunidade internacional, já que este tipo de educação trabalha nas
raízes que levam à pobreza, aos conflitos, à discriminação, à intolerância,
e à degradação ambiental, entre outras mazelas que são os objetos de
atuação de um sem número de organizações internacionais.
Talvez por este motivo, tenha sido adotado pela Organização das Nações
Unidas e pela UNESCO, em 2005, o Programa Mundial para Educação em
Direitos Humanos. A ênfase da primeira fase do Programa Mundial (20052009) foi no sistema educacional (educação básica e ensino médio).
A segunda fase (2010-2014) busca se concentrar nos níveis seguintes
da educação, como no ensino superior (graduação e pós-graduação),
bem como nas instituições que formam “aqueles que possuem grande
responsabilidade pelo respeito, proteção e cumprimento dos direitos dos
cidadãos – desde servidores públicos e forças de segurança até mulheres
e homens do serviço militar” (UNESCO, 2012, p. 3).
Ademais, de grande inovação e importância foi a adoção, por
unanimidade em 16 de fevereiro de 2012, pela Assembleia Geral da
ONU, da “Declaração das Nações Unidas sobre Formação e Educação
em Direitos Humanos” (ONU, 2012). A Declaração é um marco no
reconhecimento da essencialidade da EDH, considerando que ela é fruto
de um longo debate mundial, que remonta à Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos de Viena (1993). Nesta ocasião, a EDH foi considerada
essencial para a promoção e respeito dos direitos fundamentais
conquistados historicamente pela humanidade (ONU, 1993), já que
apenas o conhecimento e adequada informação a respeito desses
direitos, possibilita sua exigência incondicional e imediata. Portanto, estes
dois instrumentos (o Programa e a Declaração), fundamentam o consenso
internacional em torno do tema, e pavimentam o caminho para a adoção
da EDH como prioridade a nível global.
Já em âmbito nacional, o Estado brasileiro adotou em 1996 o seu
primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). A segunda
versão foi publicada em 2002, e a terceira e última versão até o momento,
foi aprovada pelo Decreto n° 7.037 de 2009, alterado pelo Decreto n° 7.177
de 2010. O PNDH 3 resultou de intenso debate nacional, com diversos
atores sociais envolvidos. O fato é que um dos seis eixos orientadores do
91
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
PNDH 3, trata justamente da “Educação e Cultura em Direitos Humanos”.
O capítulo traz uma série de diretrizes para se trabalhar a temática, seja
no âmbito da educação formal (básica e superior), quanto na educação
não-formal, bem como na promoção da EDH no serviço público e, ainda,
se refere à garantia do acesso à informação para a consolidação de
uma cultura em Direitos Humanos. Assim, o PNDH 3 traz como objetivo
estratégico a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (PNEDH).
Instrumentos de efetivação da Educação em Direitos Humanos
A propósito, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(PNEDH), publicado em 2007, é fruto de uma parceria entre a Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério da Educação,
Ministério da Justiça e UNESCO. O PNEDH foi elaborado pelo Comitê
Nacional de Educação em Direitos Humanos, com a participação da
sociedade civil em diversos encontros estaduais ao longo de 2004-2005,
sendo atualmente o documento chave no que diz respeito às concepções,
princípios, objetivos, diretrizes e linhas de ação para a construção das
políticas públicas de educação e cultura em Direitos Humanos. Ele possui
cinco grandes eixos de atuação: Educação Básica; Educação Superior;
Educação Não-Formal; Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça
e Segurança Pública e Educação e Mídia (PNEDH, 2007). É lastimável, no
entanto, que o PNEDH seja ainda pouco conhecido, promovido e utilizado
pelos diversos atores envolvidos com a educação no Brasil. Além do mais,
os educadores podem contar hoje com “Conteúdos Referenciais para
a Educação em Direitos Humanos”, publicados em 2010 pelo Comitê
Nacional de Educação em Direitos Humanos, os quais podem servir como
ponto de partida para o trabalho em sala de aula.
Enfim, o fato é que a Declaração da ONU sobre Formação e Educação
em Direitos Humanos, de 2012, renovou o debate que já vinha ocorrendo
no Brasil3, onde se pensava como incluir as temáticas concernentes aos
Direitos Humanos na educação, em seus diversos níveis.
O tema foi, então, objeto de estudo pelo Conselho Nacional de Educação
(CNE), que, em conjunto com diversos órgãos do governo, universidades e
instituições da sociedade civil, publicou um parecer sugerindo “Diretrizes
Nacionais para a Educação em Direitos Humanos”, as quais foram
aprovadas e adotadas através da Resolução n° 1 de 2012.
3 Um dos primeiros artigos que apareceram no Brasil, especificamente, sobre a EDH foi da Professora da
Faculdade de Educação da USP, Dra. Maria Victoria Benevides, intitulado “Educação em direitos humanos: de que
se trata?” (2001).
92
Thiago Assunção
Agora, com diretrizes nacionais válidas para todos os níveis e sistemas
de ensino, passa a ser imperativo que as instituições públicas, sejam
elas federais, estaduais ou municipais, bem como toda e qualquer
instituição de ensino privada, reconheça e incorpore de modo transversal
e multidimensional os conteúdos de Direitos Humanos nas mais variadas
atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Interessante notar como a maior parte das dúvidas que pairava sobre
o ensino das temáticas que se inserem no grande espectro dos Direitos
Humanos, na educação básica, era em relação a se seria preciso ou
não criar uma nova disciplina com este conteúdo específico. Conforme
explicitado na Resolução n° 1/2012 do CNE, optou-se por não criar
disciplina autônoma de Educação em Direitos Humanos, mas se sugere
que os conhecimentos a que se referem os Direitos Humanos sejam
trabalhados de modo interdisciplinar, tanto de modo transversal entre as
disciplinas existentes, quanto de um modo que insiram conceitos, noções
e exemplos da temática no conteúdo específico de cada disciplina, como
história, geografia, matemática etc4.
Por fim, a resolução do CNE dispõe que a EDH “deverá orientar a
formação inicial e continuada de todos(as) os(as) profissionais da educação,
sendo componente curricular obrigatório nos cursos destinados a esses
profissionais” (MEC, 2012). Ou seja, componente curricular obrigatório
nos cursos de pedagogia e licenciaturas.
Essa norma também amplia o ensino da EDH para todas as áreas do
conhecimento, explicitando que a temática dos Direitos Humanos deve ser
trabalhada amplamente, na formação inicial e continuada “das diferentes
áreas do conhecimento”. Ainda, ressalta que deve haver um esforço dos
sistemas de ensino e instituições de pesquisa para fomentar e divulgar
estudos e experiências bem sucedidas na área dos Direitos Humanos,
bem como a criação de políticas de produção de materiais didáticos e
paradidáticos relacionados ao tema.
Finalmente, a norma estimula as Instituições de Ensino Superior
a promover ações de extensão voltadas para a proteção dos direitos
humanos, com diálogo e alcance aos mais diversos segmentos sociais,
principalmente aqueles em situação de exclusão social, bem como
movimentos sociais e órgãos da administração pública (MEC, 2012).
4 Um exemplo seria o estudo, por diversas disciplinas ao mesmo tempo, de uma problemática social localizada
no tempo e no espaço. Tomemos uma enchente em um bairro pobre da periferia de São Paulo, no ano de 2012. A
situação poderia ser estudada do ponto de vista de quando ocorreu a ocupação da área, pela história; quais são as
características topográficas e geológicas do terreno pela geografia; quais as estatísticas de chuvas e ocorrências de
enchente pela matemática e assim por diante.
93
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
O Paraná e a Educação em Direitos Humanos
No Estado do Paraná, há, do mesmo modo, uma intensa movimentação
para a implantação de ações voltadas à Educação em Direitos Humanos.
Já em 2007, foi criado o FOPEDH - Fórum Permanente de Educação em
Direitos Humanos do Paraná, uma articulação que busca fomentar o
debate, a formação e a elaboração de propostas relacionadas à educação
em Direitos Humanos, enfatizando o seu papel no fortalecimento do
Estado Democrático de Direito e na construção de uma sociedade mais
justa e democrática. O Fórum é composto por entidades, órgãos públicos,
movimentos sociais, pesquisadores e estudantes, sendo aberto à
sociedade como um todo (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2011).
Mas, foi principalmente a partir de 2011 que a temática começou a
avançar no Estado. Primeiramente, a Secretaria da Justiça e Cidadania
teve seu nome alterado para Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania
e Direitos Humanos. A partir daí, a pasta começou a promover diversas
ações e estabelecer projetos para o respeito e garantia dos direitos da
pessoa humana por parte do poder público. A Escola Penitenciária do
Paraná (ESPEN) foi transformada em Escola de Educação em Direitos
Humanos (ESEDH), passando a formar os servidores do sistema penal já no
paradigma contemporâneo da defesa irrestrita dos direitos fundamentais.
Foi criado, em 2012, o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania
(DEDIHC), que desempenha inúmeras ações de proteção e defesa dos
Direitos Humanos e promoção da cidadania. O DEDIHC se coloca como
um órgão há muito necessário na estrutura do Estado e vem atuando
de forma cada vez mais efetiva e integrada para lidar com questões de
Direitos Humanos no Paraná.
Este órgão público deve ser, portanto, cada vez mais divulgado e
conhecido pela população, que nele encontra mecanismos de controle
social e espaços para participar ativamente, como por exemplo, os
Conselhos de Direitos, em que são debatidas e construídas, de forma
paritária, as políticas públicas setoriais. Por outro lado, um espaço como
este não pode deixar de ser, na medida do possível, ampliado e fortalecido,
para que possa atender de modo adequado à demanda crescente por
cidadania, participação popular e efetivação dos Direitos Humanos no
Estado.
Desafios
Como se sabe, não é de hoje que sistemáticas violações dos Direitos
Humanos no Brasil acontecem no âmbito do seu sistema penitenciário5. E
5 Não entendemos com isso, apenas violações perpetradas por agentes públicos em face dos apenados, apesar
94
Thiago Assunção
o caso do Paraná não é diferente6. A partir de 2011, no entanto, nota-se
uma atuação da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, no
sentido de promover uma profunda mudança e reestruturação do sistema
penitenciário do Estado.
Além de medidas específicas no âmbito da execução penal, como a
construção de novas penitenciárias e a transferência de presos provisórios
das delegacias para lugares apropriados, o Plano Diretor do Sistema Penal
do Estado do Paraná (2011-2014) prevê um “Programa de Educação em
Direitos Humanos”, visando instaurar uma cultura de paz nos espaços
prisionais. Esta nova cultura surgiria, principalmente, para transformar
as penitenciárias em escolas de capacitação profissional, garantindo que
100% dos presos possam trabalhar e/ou estudar.
A mesma preocupação é evidenciada ainda pelo Plano para o
Desenvolvimento Integrado – PDI-Cidadania, que prevê a oferta de
educação pública para a alfabetização, ensino básico e superior aos
apenados; a realização de cursos, eventos e palestras relacionadas aos
Direitos Humanos, destinados aos servidores do Departamento de
Execução Penal; a melhoria do atendimento à saúde nas unidades penais
e, ainda, projetos de capacitação profissional em parceria com outras
instituições públicas e privadas, os quais permitem que o preso passe a
ter oportunidades efetivas de ressocialização.
Este tipo de ação deve ser de fato louvada, pois além de caminhar ao
encontro do que exigem os tratados internacionais, assinados e ratificados
pelo Brasil, bem como o que manda a Constituição Federal e a Lei de
Execuções Penais, trata-se de “remédio” efetivo para a urgente mudança
de mentalidade, necessária em relação aos próprios objetivos da pena
privativa de liberdade no Brasil7.
de ser inegável que estes fatos, infelizmente, ainda ocorram (vide sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos que condenou o Brasil por violações do Pacto de San José da Costa Rica, no presídio Urso Branco, em
Rondônia). Mas, toda a estrutura carcerária brasileira é alvo de críticas por parte de organizações e especialistas
nacionais e estrangeiros, que denunciam a superlotação, o tratamento muitas vezes desumano, degradante e cruel,
a insalubridade nos locais de encarceramento, a alimentação totalmente inadequada e o atendimento precário à
saúde, a corrupção e falta de controle que permite que grupos criminosos comandem atividades criminosas de
dentro dos presídios. Essas e outras sérias questões assolam inclusive o servidor público, principalmente o agente
penitenciário que se vê obrigado a trabalhar em condições difíceis, tendo que suportar todo o stress e pressão
decorrente desta situação.
6 Os relatórios preparados periodicamente pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR, que visita
os estabelecimentos prisionais de todo o Estado, dão conta da situação caótica em que se encontram algumas
unidades. Mas, o relatório não apenas critica como também contribui, relatando casos de “boas práticas”. Ou seja,
reconhecendo as unidades exemplares e divulgando a sua experiência para que as alternativas que funcionam
nestes locais sejam conhecidas e replicadas em outros.
7 Neste ponto, poderíamos evocar estudos criminológicos mais críticos, que colocam em cheque toda a pretensão
preventiva e eficácia punitiva da pena privativa de liberdade, o que, no entanto, fugiria do escopo deste trabalho.
Fato é que no Brasil, hoje, o índice de reincidência no crime é altíssimo; e isso se dá em grande medida pelas
condições da cadeia, que ao invés de ressocializar e oferecer oportunidades de arrependimento e recomeço ao
indivíduo, serve de verdadeira “escola do crime”, já que mistura criminosos perigosos com quem cometeu crimes
de menor potencial ofensivo e, por vezes, permite que seres humanos sejam tratados pior do que animais. A
psicologia demonstra que quem deste modo for tratado, não aprenderá outra coisa senão a fazer o mesmo com os
demais. Mesmo assim, em conversas com o cidadão comum, nota-se uma visão totalmente diferente, distorcida e
95
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Por último, é de se notar a criação, também pela Secretaria de Justiça,
Cidadania e Direitos Humanos do Paraná, dos Comitês de Educação em
Direitos Humanos8, com caráter interdisciplinar e descentralizados em
diversas regiões do Estado, que buscam agregar esforços de agentes
penitenciários, psicólogos, assistentes sociais, professores, pedagogos,
entre outros servidores atuantes no sistema penal do Estado, além de
setores da sociedade civil organizada, como OAB, Conselhos Tutelares,
Associações de Moradores, para uma efetiva ressocialização dos presos
e a promoção de uma cultura de paz e não-violência em torno desta
comunidade. Trata-se de uma aposta promissora, pois é justamente o que
quer a Educação em Direitos Humanos, ou seja, a prevenção de conflitos,
de modo a trabalhar com o indivíduo em nível de mentalidade, para que
ele reflita e se avalie antes de agir, tomando consciência do impacto e
consequências dos seus atos, para si mesmo e em relação ao seu entorno.
Conclusão
Frente a existência de um variado arcabouço legal e dada a necessidade
premente de uma educação transformadora, que ajude o indivíduo a
perceber o seu papel no mundo, faz-se necessário que os diversos órgãos
e instituições responsáveis, direta ou indiretamente, pela Educação em
Direitos Humanos, se integrem, e que as diferentes iniciativas existentes
em âmbito federal, estadual e municipal se articulem, buscando uma
maior efetividade na aplicação das políticas públicas de Direitos Humanos,
na educação formal e não-formal, em todas as etapas de ensino.
Assim, é de interesse vital para sociedade investir na Educação em
Direitos Humanos não como a única, mas como uma importantíssima
ferramenta para se perseguir o bem comum, através do desenvolvimento
sustentável e socialmente responsável, de uma sociedade pluralista e
democrática, e da busca de uma maior qualidade de vida para todos.
inculcada pelos meios de comunicação, em que a regra é um suposto clamor emotivo por “justiça”, mas que mais
se aproxima, muitas vezes, de um desejo irrefletido de vingança. Daí mais uma vez, a necessidade de se educar a
população para que ela perceba que o respeito aos direitos humanos é para todos, inclusive o detento que perdeu
sua liberdade temporariamente, como punição pelo cometimento de um crime, mas que nem por isso deixou de
ser um ser humano. Aliás, sim, os direitos humanos existem também para proteger as vítimas, que se socorrem
do Estado para buscar justiça, a qual se materializa justamente por meio do processo penal, pelo julgamento e
eventual condenação dos culpados. Que o aparato de investigação policial e o sistema judicial precisam ser mais
céleres e eficientes, o que estamos de acordo, já é outra história. Por último, imperioso se faz reconhecer, para
evitar mal-entendidos, que os direitos humanos se aplicam integralmente também aos funcionários do sistema
penal, que muitas vezes tem seus direitos violados, seja pelos próprios presos, seja pelas condições de trabalho que
frequentemente estão muito longe do ideal.
8 Fundamentados no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007) e no Plano Diretor do Sistema
Penal do Estado do Paraná (2011-2014). Maiores informações sobre os Comitês de Educação em Direitos Humanos
do Paraná, disponíveis em <http://www.comiteedheculturadapazpr.pro.br>
96
Thiago Assunção
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98
Vera Karam de Chueiri
HORIZONTES DA DEMOCRACIA E DA JUSTIÇA
99
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
Vera Karam de Chueiri
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
Vera Karam de CHUEIRI1
La razón de ser de la memoria es hacernos cargo de las injusticias pasadas,
aunque sea bajo la forma modesta de proclamar la vigencia de la injusticia.
Sólo en Segundo lugar cabe hablar de recordar para que la barbarie no se
repita, es decir, para que no nos pase a nosotros lo que les pasó a ellos. Lo
que se deriva de uno y otro objetivo es interrumpir la lógica política que ha
producido esas injusticias y esos daños. En la medida en que esa lógica siga
vigente estamos abocados o a ser victimas o a ser verdugos.
Reyes Mate (in Fundamentos de una filosofía de la memoria, p. 35)
What, if any, general lessons can be gleaned about the strategic advisability
of human rights trials in periods of democratic consolidation? Will these
trials hurt democracy or help it? Initially, it may seem that the most general
lesson is that there is no general lesson. Much depends on the specific
nature of the transition.
Carlos Santiago Nino (in Radical Evil on Trial, p. 127)
O Conselho de Segurança da ONU aprovou um relatório em setembro
de 2003, no qual se traçou as linhas da chamada Justiça de Transição ou
Justiça Transicional. Tal iniciativa respondia às demandas dos Estados,
interna e externamente, relativas à consolidação da paz e da democracia
após períodos mais ou menos longos de conflitos. Neste sentido, os Estados
vitimados por tais conflitos, invariavelmente marcados por violações de
direitos humanos, reclamavam sua reestruturação e reconstrução através
da criação de instituições legítimas e, também, de uma administração
legítima da justiça.
Desta forma, o documento das Nações Unidas define Justiça de Transição
como o conjunto de processos e mecanismos associados à tentativa de
uma sociedade lidar com o legado de abusos em larga escala ocorridos
no passado, buscando assegurar accountability, justiça e reconciliação.
A Justiça de Transição consiste em processos e mecanismos judiciais
e não judiciais, incluindo julgamentos individuais, acesso à verdade,
reparações, reformas institucionais e expurgos no serviço público. Seja
qual for a combinação escolhida esta deve estar em conformidade com
os padrões jurídicos internacionais e as obrigações (tradução livre)2. Vale
1 Professora associada de direito constitucional dos programas de graduação e pós-graduação em direito da
UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD/UFPR. Membro da Comissões de
Verdade do Estado do Paraná, da UFPR e da OAB/PR.
2 For the UN system, transitional justice is the full range of processes and mechanisms associated with a society’s
100
101
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
dizer, o documento da ONU se baseia, normativamente, na Carta das
Nações Unidas, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, no Direito
Penal Internacional e no Direito Internacional dos Refugiados, ou seja, nos
padrões normativos internacionais de direitos humanos.
Dentre os mecanismos judiciais de efetivação da Justiça de Transição
tem-se os julgamentos criminais. Estes são importantes na medida
em que submetem os violadores a um processo de responsabilização
pelos crimes cometidos e tal processo não só respeita os padrões
jurídicos internacionais, mas demonstra que as instituições dos Estados
democráticos de direito também se aplicam aos violadores de direitos
humanos. Ainda, há um sentido de justiça reivindicado pelas vítimas
das violências que se deflui da persecução penal. Neste caso, as vítimas
identificam no processo de responsabilização criminal dos seus algozes a
possibilidade de recuperação da sua dignidade. Para tanto, o sistema de
justiça dos Estados deve ser legítimo, eficiente e justo, pois, do contrário,
tem-se que recorrer aos tribunais internacionais que podem assumir esta
responsabilidade complementar.
Ainda em relação aos julgamentos, a forma da justiça de transição
remonta ao que sucedeu após a Segunda Grande Guerra relativamente
à Alemanha e aos demais Estados envolvidos no conflito. Instalou-se o
Tribunal de Nuremberg, o qual foi responsável pelo julgamento de vinte
e dois oficiais nazistas. Os chamados Estados aliados - Estados Unidos,
Inglaterra e França – condenaram, no total, cinco mil e seis alemães por
crimes de guerra, aplicando, pelo menos, setecentos e noventa e quatro
penas de morte.
Após Nuremberg, a própria Alemanha seguiu processando aqueles
que cometeram crimes contra a humanidade durante a Segunda Guerra,
o que resultou, até 1996, em seis mil, quatrocentos e noventa e quatro
condenações transitadas em julgado. Para além da responsabilização
criminal, institui-se um sistema legislativo de compensações financeiras.
Vários dos países envolvidos no conflito de 1939-1945 passaram por
processos semelhantes de transição, como o Japão, com o Tribunal
Militar Internacional de Tóquio e o Tribunal de Yokohama. O fato é
que tais tribunais tinham procedimentos muito específicos em razão
do ineditismo da situação, ou como bem disse Hannah Arendt, em um
texto de 1953, chamado Humanidade e Terror (2008, p. 325): entre as
grandes dificuldades de entender essa mais nova forma de dominação –
attempt to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice
and achieve reconciliation. It consists of both judicial and non-judicial processes and mechanisms, including
prosecution initiatives, facilitating initiatives in respect of the right to truth, delivering reparations, institutional
reform and national consultations. Whatever combination ischosen must be in conformity with international legal
standards and obligations. http://www.unrol.org/files/TJ_Guidance_Note_March_2010FINAL.pdf
102
Vera Karam de Chueiri
dificuldades que, ao mesmo tempo, provam que estamos diante de algo
novo, e não de uma simples variação da tirania - está o fato de que todos
os nossos conceitos e definições políticas são insuficientes para uma
compreensão dos fenômenos totalitários, e além disso todas as nossas
categorias de pensamento e critérios de julgamento parecem explodir em
nossas mãos no momento em que tentamos aplicá-los a eles. Ou seja, os
tribunais criados após a experiência do totalitarismo para julgar os crimes
contra a humanidade e os sistemas de proteção dos direitos humanos
erigidos a partir dali redefiniram processos e conteúdos com base em
um novo padrão de moralidade. Retomo Hannah Arendt (1994, p. 739)
e sua afirmação de que o horror do totalitarismo transcendeu todas as
categorias morais e explodiu todos os padrões jurídicos, isto é, foi algo
que os homens não poderiam punir adequadamente nem perdoar.
Outro caso emblemático de Justiça de Transição e com reflexos muito
recentes foi o que ocorreu na Espanha após o franquismo. Houve uma
lei de anistia de “mão dupla”, a qual permitiu, de um lado, a liberação
de diversos acusados pelo regime franquista que ainda estavam presos
sob a acusação de “crimes de sangue” e, de outro, a paralisação de todos
os processos contra os envolvidos com o regime. Os arquivos da polícia
secreta foram lacrados e não queimados e se determinou uma espécie de
política do esquecimento. Neste sentido, é de se destacar o trabalho do
ex-Juiz Baltazar Garzón que, em 2008, declarou que os atos de repressão
cometidos sob o comando de Franco foram crimes contra a humanidade.
Os casos sulamericanos forneceram à Justiça de Transição novos
elementos. O caso argentino enfatizou a responsabilização penal. Durante
o Governo Alfonsín, logo após o final da ditadura militar, foram elaboradas
duas leis: a do “Ponto Final” e a da “Obediência Devida”. Tais leis impediram
a responsabilização daqueles que serviram ou colaboraram com o regime
militar argentino exercendo todo tipo de crueldade contra o seu povo. Isto,
pois, a lei do ponto final (23.492 de 24/12/86) determinou a paralisação
dos processos judiciais contra os agentes que realizaram detenções
ilegais, torturas e assassinatos, ou seja, determinou a impunidade dos
responsáveis pelo desaparecimento de milhares de pessoas na Argentina.
A lei a obediência devida (23.521 de 04/06/87) estabeleceu que os atos
cometidos pelos militares durante a ditadura (a que eles chamaram de
Guerra Suja e Processo de Reorganização Nacional) não eram puníveis
por terem aqueles agido em virtude de obediência devida e, tal fato, não
admitiria prova em contrário.
Apesar disso, tais leis não constituíram obstáculo para o funcionamento
da Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, a CONADEP,
que produziu uma vasta documentação informando o desaparecimento
103
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
forçado de cerca de nove mil pessoas, número este que subiria para
vinte mil com o decorrer dos anos e o surgimento de novos documentos.
Entretanto, tais leis foram declaradas inconstitucionais pela Corte
Suprema em 2005, que reiterou a imprescritibilidade dos crimes contra
a humanidade. É importante dizer que a incorporação do Pacto de San
José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969)
pela reforma constitucional argentina em 1994 foi um grande passo em
direção à Justiça de Transição.
No Chile, o ditador Augusto Pinochet, através do decreto lei 2191 de
1978, outorgou a anistia (em realidade autoanistia) a todos os responsáveis
pelos crimes cometidos em nome do Estado durante a ditadura. O
referido decreto foi julgado constitucional pela Suprema Corte, porém as
investigações sobre os fatos ocorridos seguiram acontecendo em atenção
à determinação do governo Aylwin, tão logo assumiu a transição. Desta
forma, as investigações dos fatos relacionados às violações de direitos
humanos foram realizadas, mas sem possibilidade de responsabilização
penal, em razão da anistia. Houve, portanto, duas comissões: a da
Verdade, no governo Aylwin e a “Comisión Nacional sobre Prisión Política
y Tortura”, no governo Ricardo Lagos, a qual colheu o depoimento de mais
ou menos trinta e cinco mil pessoas.
Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu o caso
Almonacid Arellano y otros vs Chile, no qual declarou a impossibilidade
de concessão de anistia a crimes contra a humanidade, como também a
imprescritibilidade destes. Ainda, reforçou a ideia de crime continuado
nos casos de desaparecimento forçado e fez com o que o Poder Judiciário
chileno revisse sua posição acerca destes. Por fim, o decreto lei 2191 (da
anistia) acabou sendo revogado.
O que percebemos é que nos casos argentino e chileno, o direito
interno foi revisto à luz do direito externo, vale dizer, toda legislação de
(auto) anistia que alcançou os violadores de direitos humanos que agiram
em nome ou em colaboração com os Estados ditatoriais foi reinterpretada
a partir do Pacto de San José, isto é, da Convenção Interamericana de
Direitos Humanos.
Há outros exemplos de Justiça de Transição relevantes como o da África
do Sul e de países do leste europeu. Entretanto, seguirei minha análise,
a partir das experiências sul-americanas, em especial, o caso brasileiro.
No Brasil, os procedimentos de Justiça de Transição foram mais tardios
em comparação ao Chile e à Argentina. Isso se deve ao próprio processo
de transição e a interpretação de que se tratou de um grande acordo do
regime militar com a sociedade civil brasileira. Neste sentido, o próprio
104
Vera Karam de Chueiri
judiciário restou tímido e muito vinculado às instituições e legislações
da época do regime militar de forma que, mesmo com a promulgação
da Constituição de 1988 e a reconstrução da democracia brasileira, os
procedimentos de Justiça de Transição foram implementados (e têm sido
ainda) a conta gotas e num movimento de avanços e recuos.
Ainda que as democracias constitucionais sejam significadas pelas
demandas por direitos e sua efetivação e, ainda que isso se dê de maneira
conflituosa, no que diz respeito à Justiça de Transição e seus mecanismos,
não é admissível que em um tal regime (democrático e constitucional)
seja tolerável a composição, o acordo, o pacto. Isto é, quando se trata
de um passado de atrocidades, criminoso, cruel o único acordo possível
é o estabelecimento de mecanismos (de justiça) que reparem, perdoem,
responsabilizem e impeçam, de todas as formas, que o futuro repita o
passado.
O relatório Brasil Nunca Mais3, organizado pela Arquidiocese de São
Paulo e publicado em 1985, foi fundamental em relação à memória e
verdade relativamente aos fatos ocorridos no período da ditadura militar.
Na minha opinião, foi o primeiro documento fruto de extensa e cuidadosa
pesquisa que levantou a questão das torturas, das mortes, dos agentes
que as cometeram, das vítimas, enfim, da racionalidade do regime
autoritário. Em 1991, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão
Externa para acompanhar as buscas na vala comum do Cemitério de
Perus, em São Paulo, dos possíveis desaparecidos pela ditadura militar
brasileira. A partir de 1992, familiares de vítimas começam a ter acesso
aos documentos das DEOPS (Delegacias de Ordem Política e Social) de
diversos estados da federação, entretanto, havia processos com páginas
faltando, outros desparecidos, ou seja, a documentação e as respectivas
informações restavam incompletas e não totalmente acessíveis.
No Governo Fernando Henrique Cardoso, através da Lei 9140/1995,
se reconheceu oficialmente como mortos, para todos os efeitos legais,
os desaparecidos políticos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto
de 1979, assim como, se instalou, no âmbito do Ministério da Justiça,
a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (posteriormente,
o caput do art. 1o da Lei 9140/1995 foi alterado pela Lei 10.536/2002
estendendo o período até 05 de outubro de 1988). Esta primeira
Comissão governamental investigou e concedeu indenizações em casos
de desaparecimento de pessoas envolvidas com atividades políticas, bem
como, produziu um primeiro documento relatando cento e cinquenta
casos de desaparecidos políticos em um exercício do direito à memória
e à verdade.
3 Arns, Paulo Evaristo. Brasil nunca mais. São Paulo: Vozes, 1985.
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A justiça de transição e o Brasil: breve relato
A questão documental tem sido um nó no processo de Justiça de
Transição no Brasil desde 1985. Vários documentos relativos ao período
militar foram transferidos da Agência Brasileira de Inteligência para
o Arquivo Nacional, sob o comando da Casa Civil da Presidência da
República. Entretanto, em 2010, noticiou-se que o arquivo vinha sendo
gerenciado pela Associação Cultural do Arquivo Nacional, formada
também por militares da época do regime. Neste sentido, a presidente
Dilma Rousseff, por meio do Decreto 7.430/2011, transferiu o Arquivo
Nacional ao Ministério da Justiça.
Há, ainda, as informações disponibilizadas através do Centro de
Referência das Lutas Políticas no Brasil, referentes ao antigo Conselho
de Segurança Nacional, à Comissão Geral de Investigações e ao Serviço
Nacional de Informações.
Em 2002, o Congresso Nacional regulamentou o art. 8o do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, através da lei 10.559 e, com
ela, foi criada a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. É notável
o trabalho da Comissão, especialmente a partir de 2007, relativamente
aos pedidos de anistia política, como também de reparação moral e
econômica. Milhares de requerimentos solicitando o reconhecimento da
condição de perseguido político com ou sem reparação econômica foram
apreciados: tanto dos que foram perseguidos e tiveram suas liberdades
básicas e sua integridade física e mental violadas, como também dos que
foram demitidos de seus empregos durante o regime autoritário (e por
causa dele).
Pois bem, neste passo, chegou o Estado brasileiro e sua Justiça de
Transição à necessidade de uma comissão da verdade. Neste sentido,
foi enviado ao Congresso Nacional, no Governo Lula, o Projeto de Lei
7.376/2010, demanda esta estabelecida no Plano Nacional de Direitos
Humanos, o qual foi sancionado pela Presidente Dilma Rousseff,
transformando-se na Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011.
A Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV) foi criada no âmbito
da Casa Civil da Presidência da República e tem como objetivo examinar
e esclarecer graves violações de direitos humanos ocorridas no período
entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. Ela busca efetivar
o direito à memória e à verdade. Entretanto, desde o seu surgimento e da
sua composição, a CNV está enredada em uma teia de tensões externas
e internas.
As tensões externas, como era de se esperar, dizem respeito aos que
integraram, colaboraram e serviram aos regimes ditatoriais no Brasil,
notadamente, ao último, que se estabeleceu com o golpe militar de 1964.
106
Vera Karam de Chueiri
Ou seja, setores militares e civis que apoiaram e serviram ao golpe, desde
a feitura da lei, pressionam o Estado brasileiro em relação aos deslindes da
CNV. “Ditabranda”, amplo acordo, reconciliação nacional etc. são alguns
dos eufemismos utilizados por tais setores. As tensões internas, visíveis
no governo desde a discussão sobre a revisão da lei de anistia na ADPF
153, entre o ministério da defesa e o ministério da justiça e a secretaria
especial de direitos humanos - além de outras -, dizem respeito a setores
do governo e a membros da própria CNV relativamente ao que se entende
(e se quer) por justiça, transição, memória e verdade, finalmente, por
Justiça de Transição.
Outra questão relevante é o período abrangido (1946-1988), o qual
se mostrou muito extenso para o pouco ou nada extenso período de
trabalho da CNV (a lei 12.528/11, em seu art. 11, fixava como prazo de
funcionamento da CNV o interstício de apenas dois anos, a partir da
sua instalação em 16/05/2012). No entanto, a presidente Dilma Roussef
prorrogou o período de trabalho da CNV até dezembro de 2014.
A CNV é composta por sete membros escolhidos pela Presidente da
República, dentre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética,
identificados com o respeito à democracia, à Constituição e aos direitos
humanos (Lei 12.528/11, art. 2o, caput). A questão difícil, ao meu ver, é
que os sete membros nomeados, embora profundamente identificados
com a democracia, a constituição e os direitos humanos, divergem sobre
o sentido e a instrumentalização destes para a realização da Justiça de
Transição4.
O art. 3o da Lei 12.528/2011 fixa os objetivos da CNV. São eles: a)
esclarecer as circunstâncias de graves violações de direitos humanos;
b) promover o esclarecimento de crimes graves contra os direitos
humanos (desaparecimento forçado, tortura, mortes e ocultação de
cadáveres), mesmo que ocorridos no exterior e com nomeação dos
autores; c) identificar e tornar públicas as estruturas, locais, instituições
e circunstâncias vinculadas à prática daqueles crimes; d) encaminhar
aos órgãos públicos informações que possam auxiliar na localização e
identificação de corpos e restos mortais; e) auxiliar outros órgãos do poder
público na apuração da violação de direitos humanos; f) recomendar ações
que possam prevenir novas violações de direitos humanos, bem como
evitar repetições e assegurar reconciliação; g) promover a reconstrução
histórica das violações de direitos humanos.
4 Em 10 de maio de 2012, a Presidente Dilma Roussef nomeou os sete membros da Comissão Nacional da
Verdade, quais sejam: José Carlos Dias, Gilson Dipp, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Maria Rita Kehl, Cláudio
Fonteles, José Paulo Cavalcanti Filho e Paulo Sérgio Pinheiro. O comissário Cláudio Fonteles foi substituído, em
setembro de 2013, por Pedro Dallari.
107
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
Ainda que se trate, semanticamente, de uma comissão da verdade,
não há como divorciá-la da busca da justiça. Neste sentido, os trabalhos
da CNV, para cumprimento dos seus objetivos, podem colaborar com a
responsabilização judicial daqueles que violaram os direitos humanos
cometendo crimes de lesa humanidade.
De toda maneira, no parágrafo 4o do art. 4o da Lei 12.528/11 determinase que os atos da CNV não terão caráter jurisdicional ou persecutório. Daí
que os poderes da CNV, nos termos do referido art. 4o, são os seguintes:
receber testemunhos e depoimentos, inclusive podendo assegurar o
sigilo da identidade do depoente; requerer informações e documentos
de órgãos públicos, inclusive os que estejam classificados sob sigilo;
convocar pessoas que possam ter relações com as violações; realizar de
perícias e diligências; realizar audiências públicas; requerer a proteção de
depoentes; instituir parcerias com órgãos públicos e privados, nacionais
e internacionais, para o intercâmbio de informações; requerer auxílio de
órgãos públicos. A prerrogativa de recorrer ao judiciário foi prevista para
o caso de uma determinada informação estar acobertada pela chamada
cláusula de reserva de jurisdição.
O art. 5o da referida lei institui a publicidade dos atos da CNV e o art. 6o
dispõe que observadas as disposições da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), a
CNV poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos
públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia
e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos. Por fim,
o art. 11 exige que a CNV elabore relatório circunstanciado contendo as
atividades realizadas, fatos examinados, conclusões e recomendações,
que deverão ser remetidos ao Arquivo Nacional para integrar o projeto
Memórias Reveladas.
A Comissão Nacional da Verdade, como também as Comissões de
Anistia e Mortos e Desaparecidos, integram as instituições públicas que
vem realizando a Justiça de Transição no Brasil. Há outras instituições,
governamentais e não governamentais, das várias esferas da federação
brasileira como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, o Ministério
Público Federal, as Universidades, a Ordem dos Advogados do Brasil,
Sindicatos, entre outras, que colaboram neste árduo e necessário
trabalho. Há comissões de verdade estaduais, como também comissões
de verdade institucionais (das universidades, da OAB, da CUT etc.) que
trabalham para auxiliar a CNV, atentas às suas especificidades. Entre as
instituições não governamentais, nacionais e internacionais, que há muito
militam em prol da justiça, memória e verdade no Brasil, há os comitês
para anistia criados desde o final da década de setenta, os grupos “tortura
Vera Karam de Chueiri
nunca mais”, entre tantos outros.
Se a Justiça de Transição exige reparação às vítimas e definição das
formas de reparação, ela igualmente exige definição de critérios para a
acusação dos perpetradores, como também das formas de punição sejam
através de sanções penais ou políticas. Em relação à primeira exigência,
o Estado brasileiro tem respondido favoravelmente. Já em relação à
segunda exigência, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 153, que julgou constitucional
o parágrafo 1o, do art. 1o da Lei de Anistia, antecipou um futuro desolador.
De toda forma, a decisão da Corte Interamericana no caso da guerrilha do
Araguaia (caso Gomes Lund x Estado brasileiro)5 trouxe-nos um sopro de
esperança.
A questão agora é agir politicamente para exigir do Estado brasileiro o
respeito à decisão da CIDH que o condenou pela grave violação de direitos
humanos (vida, integridade e liberdade) ocorrida na região do Araguaia,
entre 1972 e 1975; pelos desaparecimentos forçados; pela violação ao
direito às garantias judiciais; pelo descumprimento da obrigação de
adequar seu direito interno à Convenção Americana de Direitos Humanos.
Neste sentido, a CIDH determinou que o Brasil deve conduzir, de maneira
eficaz, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos e
aplicar as sanções previstas em lei, como também determinar o paradeiro
das vítimas desaparecidas, identificar seus restos mortais e entregá-los às
famílias. Ainda, o Estado brasileiro deve dar publicidade interna e externa
sobre sua responsabilização no caso, envidar ações que capacitem seus
efetivos das Forças Armadas em matéria de direitos humanos e, por fim,
prestar contas à esta Corte Interamericana, a partir da sua notificação,
acerca das medidas adotadas em relação ao cumprimento da sentença
que o condenou.
O Brasil vem enfrentando o desafio de implementar os mecanismos
de Justiça de Transição. Como disse anteriormente, desafio que alcança
discordâncias morais, políticas e jurídicas no âmbito dos próprios governos
democráticos pós-1988 e, por isso mesmo, o cumprimento da sentença
da CIDH no caso Gomes Lund pode significar mais do que isso, ou seja,
uma nova e decisiva rodada na consolidação da nossa democracia e do
nosso constitucionalismo.
5 http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf acessado em 29/09/2013
108
109
A justiça de transição e o Brasil: breve relato
Referências
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110
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações
éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas1
Artur Stamford da SILVA2
Virgínia LEAL3
“ninguém nega que o direito possa ser achado no foro. Mas lá não se
acha necessariamente. Basta lembrar que há leis desatualizadas no
conhecimento que informa e, não obstante, continuam a ser aplicadas por
juízes também desatualizados no seu saber.” (SOUTO, Claudio. Natureza,
mente e direito. Para além do usual acadêmico. Coleção Faculdade de
Direito do Recife. Recife: Faculdade de Direito do Recife, 2009, p.171).
1.Introdução
Passados 221 anos da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão (1789) e 62 anos da Declaração Universal
dos Direito Humanos (1948), continuamos a mantendo legitimado o
Estado de Direito. Este definido como a organização social pautada pela
representatividade política (voto e contrato social) e pela divisão de
poderes: 1. Executivo – administrador da vida em sociedade; 2. Legislativo
- a legislação contém a vontade do povo (as leis que regem uma sociedade,
protegendo-a, agora, dos riscos de recaída ao totalitarismo); 3. Judiciário
– poder do Estado com função de nos proteger da justiça com as próprias
mãos, da violência privada.
Ao Estado, cabe o monopólio da violência, porquanto os poderes
legislativo e judiciário respondem, com suas decisões, quais padrões de
comportamento devem ser considerados como guias à conduta dos seres
humanos. Com o estado de direito, legitimamos a ideia de a liberdade
de cada indivíduo e o poder serem, exclusivamente, disciplinados sob a
égide do Estado (WEBER, 1996, p. 34). Com isso, poder, portanto justiça,
é uma questão de capacidade para fazer o outro agir segundo o comando
anunciado (WEBER, 1996, p. 45). Se, historicamente, creditamos toda
confiança na possibilidade de serem resolvidos, por meio de legislação,
1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - Brasil.
2 Doutor em Direito pela UFPE, Prof. Associado da Faculdade de Direito do Recife (CCJ-UFPE), Pesquisador PQ2
do CNPq, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE.
3 Doutora em Letras pela USP/Université de Nanterre, Profa. Associada do Depto. de Letras (CAC-UFPE).
111
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
toda e qualquer questão e todo e qualquer problema da sociedade, hoje,
mesmo aqueles que desconfiam dessa confiança, ainda, legitimam o
monopólio estatal da violência.
Isso acontece porque estamos vivendo em uma sociedade em
que ao Estado cabe dizer o que devemos ser e fazer. Afinal, mesmo
quando desprovido de consciência, concordamos que sem polícia,
sem legislativo, sem executivo e sem judiciário a violência aumentaria.
Acatamos, portanto, a ideia de que somos incapazes de autogerir nosso
comportamento, autoestabelecer nossa ética. Precisamos, portanto, do
direito, da legislação, da decisão judicial para sabermos como podemos e
devemos nos comportar. Numa frase: o Estado detém a competência para
ditar e reger nossos padrões éticos.
Acontece que regimes totalitaristas propulsionam desconfianças na
capacidade de, por meio do estado de direito, vivenciarmos uma sociedade
menos violenta; portanto, com ética, e mais pacífica. Todavia, aprendemos
que, por legislação, é possível se propiciar mais violência, como nos
regimes totalitaristas, em ditaduras e nas democracias disfarçadas.
Nossas reflexões, aqui, giram em torno do exercício do poder de
decisão do judiciário como organização do direito da sociedade. O poder
do judiciário em ditar o direito em cada caso concreto. As questões são:
que direito resulta de decisões judiciais? Que visão de sociedade está
presente em cada decisão proferida pelo judiciário? Decisões proferidas
por juízes monocráticos, por exemplo, pautam que justiça, que paz social?
É suficiente um juiz tomar uma decisão para que os litigantes passem a
conviver pacificamente?
Ocorre que, na sociedade atual, complexa como é, o monopólio
estatal da violência (ou seja, a capacidade de o Estado administrar a vida
em sociedade estipulando suas normas), constantemente questionado,
criticado, é ainda legitimado. Se não, vejamos. Em relação ao Judiciário,
por exemplo, ainda que mantido como Poder competente para ditar
quem está com o direito num caso jurídico, não lhe faltam críticas. Críticas
estas voltadas a identificar falhas, problemas e apontar melhorias em
seu funcionamento. Não identificamos, na literatura atual, propostas de
supressão, eliminação, substituição do Judiciário por outra via de solução
dos conflitos.
É certo que cada vez mais se fala em conciliação. Mas, aqui, também
legitimamos o Judiciário como espaço social detentor do poder para ditar
quem está com o direito. A busca pela solução do problema da morosidade
tem dado lugar a várias propostas de mudanças de legislações materiais e
processuais, a publicação de novas normas jurídicas, bem como a criação
112
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
de institutos jurídicos novos. Ainda, exploraremos a justiça restaurativa
como alternativa paralela, concomitante à decisão judicial. Todavia,
não observamos a justiça restaurativa como supressão, eliminação,
substituição do Judiciário. Isso porque práticas de justiça restaurativa têm
tido lugar junto ao judiciário. Magistrados têm promovido essa prática,
bem como têm encaminhado casos para ONGs ou grupos da sociedade
que trabalham com justiça restaurativa para auxiliarem nas soluções de
conflitos sociais. Em todos os estados brasileiros não faltam casos de
práticas de justiça restaurativa. Basta uma vista rápida, porém cuidadosa,
na internet para se comprovar que essa afirmação é verdadeira.
Nosso objetivo, portanto, é contribuir para reflexões sobre o papel do
judiciário na produção do direito da sociedade, chamando a atenção para
que visão de sociedade está presente nas decisões judiciais. Ou seja, o
quanto uma decisão de um magistrado efetivamente tem servido para
promover paz social. Entendemos que decisões pautadas pelo poder
de decidir, sem que os envolvidos tenham noção da dimensão, ou uma
compreensão do que e do porquê essa decisão foi tomada, ou seja,
sem uma participação efetiva dos envolvidos no caso, a decisão judicial
tenderá a não funcionar como meio para solução do conflito. Esta pode,
inclusive, servir para ampliar a violência na sociedade. Não são raros os
casos em que o Judiciário é usado pelas partes como instrumento de
vingança, como meio para adiar e, com isso, acumular mais dinheiro, o
pagamento de dívidas etc. Se direito é o espaço social de construção da
justiça, que direito tem sido construído pela decisão jurídica pautada pelo
poder de decisão? Como não temos nenhuma perspectiva para mudar a
maneira como a sociedade atual vive seu direito, ou seja, sair do estado
social democrático de direito, dedicamo-nos a oferecer reflexões sobre
a viabilidade de uma democratização da decisão jurídica por meio de
aumento da participação das partes no processo decisório. Isso nos leva
a trabalhar com a hipótese de que se e o quanto a justiça restaurativa
envolve essa democratização ou se não passa de mais um instrumento de
poder do estado.
Iniciaremos nossas reflexões apresentando observações sobre os
institutos alternativos à decisão como resultado de exercício do poder,
como parecem querer ser a conciliação, a mediação, a arbitragem e a
justiça restaurativa. Evidente que esses institutos são distintos e, como
nosso foco é a justiça restaurativa, não nos ocuparemos em trabalhar
as outras quatro alternativas. Em seguida, lançaremos reflexões sobre
a ética do discurso como base teórica auxiliar a uma compreensão
da justiça restaurativa, seguindo pelas ideias presentes na pedagogia
freiriana, indispensável para uma compreensão da dimensão pedagógica
113
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
da decisão jurídica de pauta restaurativa. Por fim, lançaremos olhares da
visão sociológica substantiva de Cláudio Souto (1971, 2003, 2009) para
uma reflexão sobre a justiça restaurativa.
2.Conciliação e justiça restaurativa
Construídas alternativas sobre a maneira como o Judiciário vai agir,
a conciliação se apresenta como espaço para a realização de diálogo,
debates, conversas. Isso tudo voltado para se chegar a uma decisão
jurídica, ainda que, agora, com a atenção mais voltada para a participação
das partes e não a uma decisão de um juiz, de um “decididor” que conhece
o direito e sabe declarar com quem está o direito no caso.
Na justiça restaurativa, o Judiciário não é reduzido à função de poder
competente para ditar o direito. Antes, ele assume a função de compositor
da decisão. O judiciário atua com a responsabilidade de, junto com os
participantes processuais, produzir a solução, sem perder de vista a sua
função de disciplinador. Essa alternativa contém características de lógica do
poder do Judiciário semelhantes àquelas presentes na visão de educação
de Paulo Freire. Para esse teórico da educação, o educador intermedia
a construção do conhecimento no desenvolvimento da aprendizagem, o
que não retira sua responsabilidade no processo educacional. A partir das
discussões de Freire, entendemos que não é porque o educador deve se
ocupar em construir com os discentes o conhecimento que ele perde a
responsabilidade por conduzir ao melhor aprendizado. A ótica de poder
do educador deixa de ser a de dono do poder de educar e passa a ser a
do poder instruir e formar para ações autônomas dos educandos. Ou seja,
não se vê mais o educador como transmissor de conhecimento, mas sim
como facilitador, como responsável por, junto com os cursistas, promover
o aprendizado.
Ao pretender o monopólio da violência, o Estado se habilita a
resolver todos os conflitos sociais via legislação, competindo, única e
exclusivamente, ao Poder Judiciário ditar o direito. Ou seja, declarar
qual das razões em conflito é aquela que está com a Ratio Júris (Razão
Jurídica). Eliminada a admissibilidade da vingança privada, da justiça com
as próprias mãos, para um problema a ser resolvido, a alternativa racional
é recorrer ao Poder Judicial, o qual declarará quem está com a razão,
quem está protegido pelo direito, pela legislação.
Hoje, há críticas às ineficácias, às falhas do estado de direito, a exemplo
do diagnóstico das impossibilidades de pré-estabelecer decisões para
vivências futuras, ou seja, reconhecer que a legislação não é suficiente
para resolver os problemas sociais. Todavia, é o que temos de melhor para
114
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
a vida na sociedade contemporânea, pois é preferível ser julgado por um
juízo racional (aplicação de critérios estabelecidos por legislação) e não
arbitrariamente. Identificados paradoxos do modelo de Estado de Direito,
insiste-se em buscar qual dos lados do paradoxo é o certo: o da justiça.
A partir daí pensar em como estabelecer regras flexíveis para garantir a
justiça da decisão.
Acontece que o Judiciário como promotor da justiça, da paz social é
bastante questionado. Esse questionamento acontece, principalmente,
devido à pecha da morosidade, às dificuldades e mesmo à impossibilidade
de acesso à justiça para todos, ao uso do Judiciário como retardamento
à solução de um caso judicial, ou quando se recorre ao Judiciário para
arrastar um problema ao infinito etc. As críticas a esse diagnóstico se
glorificam por indicar melhorias, inclusão e reconhecimento de novos
direitos e deveres, como críticas à manutenção do Estado de Direito.
Em relação ao Judiciário, não deixamos de ver propostas de melhorias
que vão de mudanças legislativas, alterações de normas processuais até à
criação de institutos jurídicos, como mediação e arbitragem, conciliação,
penas alternativas e justiça restaurativa. Em relação à arbitragem, por
exemplo, a aposta e confiança nessa alternativa levaram a frases como:
a arbitragem, há décadas utilizadas nos países desenvolvidos, é
regulamentada no Brasil pela Lei 9.307/96, a chamada Lei da Arbitragem,
e vem sendo reconhecida como o método mais eficiente de resolução de
conflitos, contribuindo para o descongestionamento do Poder Judiciário.
Limitamos nossas reflexões à conciliação e à justiça restaurativa.
Quanto à conciliação, observamos que ela não se efetivará somente pela
alteração da legislação, mas sim quando produzida uma cultura jurídica
da conciliação. Ou seja, quando advogados, promotores, procuradores,
magistrados e a sociedade abandonarem a visão de direito como poder
de estabelecimento do quem somos e como devemos agir e assumirem
o direito como instância produtora da ética. Em outras palavras, quando
todos acatarem a possibilidade de assumir as consequências de suas
próprias ações, independentemente de um Judiciário impondo tais
consequências. Numa sociedade em que as pessoas vivem certas de
que não são capazes de assumir suas responsabilidades éticas, conciliar
não passará de um jogo de negociação de interesses, oportunidades e
espertezas.
Caso não se associe o Judiciário com o poder competente para ditar com
quem está o direito e o vinculemos ao espaço para propiciar diálogo sobre
que valores estão em debate, a conciliação se tornará instrumento de
115
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
pacificação social. Enquanto isso não ocorre, as audiências preliminares,
destinadas à conciliação, não passam de perda de tempo, de aumento
da morosidade processual. Não sendo, assim, alternativa à morosidade
e caminho para reformulação da função do Poder Judiciário em uma
sociedade (RAMOS e STAMFORD DA SILVA, 2003; STAMFORD DA SILVA e
outros, 2009).
Em relação à justiça restaurativa, estão funcionando em São Paulo,
Brasília e Rio Grande do Sul projetos de implementação da visão de justiça
restaurativa, resultado da implementação do programa “Casas de Justiça
e Cidadania”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Do relatório do CNJ
(2010) constam propostas típicas de cultura da paz, para o cotidiano do
Judiciário. A questão é o quanto a sociedade está preparada para vivenciar
uma concepção de direito e de Judiciário pautada pelo fim do “dialogar
com o outro sem escutar o que o outro tem a dizer” (RAJAGOPALAN,
2004, p. 171), mas sim de produção de sentido do direito da sociedade.
Nesta direção, o direito passa a ser produzido nos debates e discussões do
caso jurídico e não como pré-estabelecido exclusivamente por legislação
e jurisprudência.
3.Punir ou conciliar? Ética do discurso para pensar a justiça restaurativa
Defendemos, neste artigo, a ética do discurso, a teoria da ação
comunicativa de Jürgen Habermas, como alternativa para se pensar sobre
a forma de justiça pautada pela lógica da punição, na qual a legislação
contém o conteúdo do direito. Portanto, ao Judiciário cabe ditar quem
está com o direito, e a forma de justiça pautada pela lógica da conciliação,
como na justiça restaurativa.
Segundo Habermas (1975, pp. 310-311), uma ação é comunicativa
quando os participantes visam formar um entendimento sobre algo, visam,
a princípio, chegar a um consenso sem a interferência de jogos de poder.
É da capacidade de argumentação, portanto da racionalidade, que se dão
as construções de um entendimento. Habermas defende a “racionalidade
comunicativa”, que é a capacidade do ser humano compor um acordo sem
coação. Portanto, é a capacidade de gerar um entendimento espontâneo,
sem imposição de um poder, que não o poder de escolhas das próprias
partes envolvidas. Nessa racionalidade, a fala argumentativa supera a
subjetividade inicial dos pontos de vista dos participantes da comunicação,
em favor de uma comunidade de convicções racionalmente motivadas
(HABERMAS, 1988a, pp. 26-27). Considerando que a racionalidade
pode ser medida pelo êxito de intervenções dirigidas à obtenção de um
propósito ou pela capacidade de chegar a um entendimento, o autor
116
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
expõe: “um maior grau de racionalidade cognitivo-instrumental tem
por resultado uma maior independência em relação às restrições que o
entorno contingente opõe a autoafirmação dos sujeitos que atuam visando
realizar propósitos”; enquanto que “um grau mais alto de racionalidade
comunicativa amplia, dentro de uma comunidade de comunicação, as
possibilidades de coordenar as ações sem recorrer à coerção e de resolver
consensualmente os conflitos de ação (na medida em que estes se devem
à dissonância cognitiva em sentido estrito) (HABERMAS, 1988a, p. 33).
Com isso, para Habermas, alguém é racional não por suas manifestações,
mas por elas serem: a) avaliadas por boas razões, além de corretas ou
terem êxitos (dimensão cognitiva); b) confiáveis ou sábias (dimensão
prático-moral); c) inteligentes ou convincentes (dimensão valorativa);
d) sinceras ou autocríticas (dimensão expressiva); e) compreensivas
(dimensão hermenêutica) (HABERMAS, 1988a, p. 70).
Nesta perspectiva, o autor faz uma taxonomia da ação social. Nesta, ele
distingui a ação teleológica (ação instrumental e ação estratégica), da ação
regulada por normas; da ação dramatúrgica; e da ação comunicativa.
A atividade orientada para um fim torna os valores escolhidos em
estados no mundo, bem como leva à lógica causal. Pois, para se atingir
os fins basta aplicar os meios adequados, pouco importando, no plano
de ação, as interveniências dos meios julgados adequados, mas sim
a produção do resultado favorável (HABERMAS, 1990, p. 67-68). Já as
atividades orientadas para o entendimento apresentam três condições:
1. os fins ilocucionários não podem ser definidos independentemente dos
meios linguísticos do entendimento; 2. o falante não pode visar ao fim do
entendimento de modo causal, porque o sucesso ilocucionário depende
do assentimento racionalmente motivado do ouvinte (para que possa
haver acordo na coisa é preciso que o ouvinte acate-o voluntariamente,
por meio do reconhecimento de uma “pretensão de validez criticável”.
Por isso, se afirma que a cooperação é o único meio de atingir os fins
ilocucionários; 3. o processo de comunicação e o resultado a ser produzido
por ele não constituem, na perspectiva dos participantes, estados do
mundo objetivo. Os participantes que agem no nível dos fins assumem,
no mundo, a qualidade de entidades - não se veem isoladamente, mas
como integrantes de uma coletividade -, mesmo diante da liberdade de
escolha, um não pode atingir o outro, a não ser como objeto ou como
rival. Os falantes e ouvintes assumem um enfoque performativo, no
qual eles se defrontam reciprocamente como membros do mundo vital
de sua comunidade linguística compartilhada intersubjetivamente.
Enquanto tentam chegar a um entendimento mútuo sobre algo, os fins
ilocucionários visados situam-se como algo que não pertence ao mundo
117
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
(HABERMAS, 1990, p. 69).
Com isso, as características do modelo de ação comunicativa são: ser
bilateral; haver complexidade do ato de fala que expressa simultaneamente
um conteúdo proposicional, a oferta de uma relação interpessoal e uma
intenção do falante; o modo reflexivo, os falantes integram um sistema
que envolve os três conceitos de mundo; a linguagem funciona como meio
de entendimento. O que não elimina a possibilidade de a ação teleológica
ser mediada por atos de fala, mas, neste caso, estes atos são meios para
a obtenção dos fins desejados e pretendidos, não para a busca de um
entendimento na construção, conjunta, da solução ao problema. Isso
porque, na ação teleológica, os participantes são oponentes, há a influência
dos atos de um sobre os do outro, como forma de manipular as opiniões,
como forma de conduzir o outro a agir rumo aos propósitos do falante. Já
na ação de comunicação, há coordenação da ação através da semântica
intencional. Enquanto na ação comunicativa, os participantes constroem
um entendimento; na ação estratégica, um participante transforma o
outro em objeto a ser manipulado (dá-se a coisificação do outro), vive-se
uma trama de interesses, não uma busca por entendimento. Dessa forma,
enquanto na ação comunicativa “a linguagem tem que servir de meio de
coordenação da ação; na ação estratégica a linguagem pode servir de
meio de coordenação da ação”, pois na ação estratégica a linguagem é
um meio de influência mútuo (HABERMAS, 1994a, pp. 420-421). Na ação
comunicativa, os participantes agem intersubjetivamente manifestando
pretensões de validez, quando o que se enuncia se pretende que seja:
verdadeiro; correto ou normativo vigente; e que a intenção expressa pelo
falante coincide com seu pensamento. Como há a intenção de chegar a um
entendimento, a pretensão de validez do falante é suscetível de críticas
por parte do ouvinte, o qual também detém suas pretensões de validez
ao expor sua opinião (HABERMAS, 1988a, p.144). Por fim, “o conceito de
ação comunicativa pressupõe a linguagem como um meio dentro do qual
tem lugar um tipo de processo de entendimento em cujo transcurso os
participantes, ao relacionar-se com um mundo, apresentam-se uns frente
ao outros com pretensões de validez que podem ser reconhecidas ou
postas em questão” (HABERMAS, 1988a, p. 143).
O que, portanto, distingue as espécies de ação social, em Habermas, não
é a presença de um fim, de uma finalidade, mas, sim, as ações teleológicas,
cujo cálculo egocêntrico de utilidade e dos conflitos e cooperações
depende dos interesses em jogo na busca do êxito; as ações reguladas
por normas, nas quais o fim pretendido é uma convivência regulada
tradicional e socialmente por valores e normas; as ações dramatúrgicas,
cujo objetivo são as relações consensuais entre um público e os atores;
118
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
a ação comunicativa, cujo fim é atingir o entendimento no sentido de
processo cooperativo de interpretação (HABERMAS, 1988a, p. 144). Cabe
ainda considerar que a comunicação voltada ao entendimento não se
esgota pela interpretação, antes envolve interação coordenada entre os
participantes (HABERMAS, 1988a, p. 146).
A distinção entre ação estratégica e ação comunicativa promove
alteração na lógica do agir em sociedade, o que não implica ignorar a
presença de poder. Sobre o tema, lembramos que para Weber poder
é “a probabilidade de impor sua própria vontade, dentro de uma
relação social, ainda que contra toda resistência e qualquer que seja o
fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1996, p. 43). Assim, poder é
a posição de alguém “impor sua vontade numa determinada situação”;
dominação é a “probabilidade de encontrar obediência ao comando de
determinado conteúdo entre determinadas pessoas”, é a probabilidade
de ter seu comando obedecido (WEBER, 1996, p. 43). Essa visão de poder
tem que ser revisitada se a perspectiva for a de considerar mudança na
lógica de realização de justiça, ou seja, se se quer pensar alternativas à
justiça punitiva.
Diante disso, o desafio é revisitar a concepção de poder, como fez
Paulo Freire em relação à educação. Este educador propôs a educação
libertadora, democrática, em substituição à educação bancária. A nossa
proposta é, em relação ao direito, com a implementação da lógica
conciliativa experenciada a partir da criação dos Juizados Especiais Cíveis
e Criminais (Lei 9.099, de 26/09/95), analisar as reformas do Código de
Processo Civil pela Lei 8.952, de 14/12/94, estabelecendo as audiências
preliminares, a partir da Lei 9.099/95 que traz a transação penal; por fim,
discutir a ênfase que vem tendo a justiça restaurativa à luz da contribuição
freireana.
4. Paulo Freire e ação dialógica
A história da humanidade muitas vezes tende a ser tratada, vista,
pensada como um catálogo de conquistas. Conquistas de territórios,
conquistas de espaços, culturais. Catálogo de invasões, violências, guerras,
poder.
Quando o tema é educação, não é diferente, principalmente se a
referência central recair sobre os processos de colonização. As vivências
históricas da humanidade não podem deixar de considerar a questão
educacional. Colonialismo, catequização, as entradas e bandeiras, as
cruzadas são a evidência da postura imperialista do educador como
119
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
detentor do poder de transmitir conhecimento. Ao catequizador, o
poder de colonizar; ao catequizado, o poder de se convencer e perder
sua identidade cultural. É o que Paulo Freire chama de “teoria da ação
antidialógica” da educação (1970, p. 78 e ss.).
Dessas reflexões, tomamos o pensamento de Paulo Freire como
fundamental para um rechaçamento da visão do educador colonialista,
do catequizador (1970, p. 34 e ss.). A quebra da lógica do educar como
transmissão de conhecimento tem repercussões não só na educação, mas
na visão de mundo que está em vários outros domínios da vida social.
Essa mudança atinge diversos lugares, instituições sociais. Limitamos
nossas reflexões ao Judiciário, estabelecendo uma analogia entre a
proposta de Paulo Freire, de quebra da lógica educacional tradicional,
com a quebra da lógica do Judiciário como poder competente para ditar
o direito, como requer a conciliação e a justiça restaurativa. Para isso,
recorremos às seguintes ideias: “ensinar não é transferir conhecimento”
(FREIRE, 1996, p. 52); “a educação libertadora, problematizadora, já não
pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir
‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da
educação ‘bancária’” (FREIRE, 1970, p. 39); e “o mito de que a educação
é formar, deve ser desfeito” (BITTAR, 2007, p. 313-334). A educação
é diálogo e, para Freire (1990, p.14), “dialogar não é só dizer ‘Bom dia,
como vai?’ O diálogo pertence à natureza do ser humano enquanto ser de
comunicação. O diálogo sela o ato de aprender, que nunca é individual,
embora tenha uma dimensão individual”. É aqui que a aproximação entre
as ideias freireanas e a justiça restaurativa ganha corpo e precisa ser posta
com clareza para que não se confunda o diálogo com uma técnica ou uma
tática de abordagem de um problema. Para o conceito de “diálogo”, Freire
é muito contundente. Diz ele:
(...) o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria
natureza dos seres humanos. É parte de nosso progresso histórico do
caminho para nos tornarmos seres humanos. Está claro este pensamento?
Isto é, o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que
os seres humano se transformam cada vez mais em seres criticamente
comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram
para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem (1990, p.15).
Mas, quando compreendemos melhor a proposta de educação
dialógica como educação libertadora de Paulo Freire, percebemos que
sua contribuição pode ser transposta para outras áreas. Ao lermos nesse
autor que o processo de opressão, gerador de desumanização, para ser
revertido, necessita de uma pedagogia construída junto com o oprimido,
não de uma pedagogia daquele que sabe como reagir à opressão e,
120
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
por isso, vai ensinar a forma de reagir, entendemos o lugar da prática
do diálogo que extrapola a superficialidade da troca de turnos em uma
conversação e o modo pelo qual a justiça restaurativa pode materializar-se
no campo dos chamados direitos humanos. O processo de rechaçamento
à opressão, antes, requer, inclusive, a superação do “medo da liberdade”.
O que não se obtém com imposição de uma visão de mundo sobre
outra, mas por meio da construção de uma visão de mundo resultante
da relação educador-educando posta pelas novas práticas interativas
(FREIRE, 1970, p. 17-18). Trata-se aqui, portanto, da dialogicidade como
prática da liberdade (FREIRE, 1970, p. 44 e ss.). Tal perspectiva encontrase em sintonia com as modernas proposições do pensador russo Mikhail
Bakhtin, um dos principais expoentes da teoria diálogica do discurso, e
com a teoria do agir comunicativo de Harbermas, sobre a qual já falamos
na seção anterior.
A questão é que quando o educador se imagina detentor do
conhecimento, ele reifica o educando. Ao enxergar o outro como objeto,
como depositário de informação, elimina a possibilidade de construção
conjunta, de co-produção do saber, portanto, do diálogo educativo para
ambas as partes. Nesta perspectiva, não há educação libertária, mas
desumanização.
O que nos chama a atenção é que a educação dialógica não tem relação
com perda do poder de educar, da responsabilidade do educador na
condução do aprendizado. O que se reconhece é que: “não posso pensar
pelos outros nem para os outros, nem sem os outros” (FREIRE, 1970, p.
58), por isso “o educador não deve abrir mão do desenvolvimento de seu
trabalho”, bem como não faz sentido inventar o mito de que os educadores
estão sendo desvalorizados porque agora são dialógicos (ensinar inexiste
sem aprender) e não mais donos do saber a ser transmitido (FREIRE, 1996,
p. 4-5). O educador é um profissional que mantém uma relação clara,
afetiva e engajada com os demais participantes do processo. O educador
dialógico é democrático, produtor de liberdade, construtor junto como
discente de conhecimento; é uma espécie de instrumento auxiliar no
aprendizado, e isso não reduz a sua importância, a sua dignidade e a sua
responsabilidade junto ao educando (FREIRE, 1996). Afinal, o educador
não deixa de ser um “político militante” cuja tarefa requer “compromisso
e engajamento em favor da superação das injustiças sociais” (FREIRE,
1996, p. 54).
Conectando o tema ao direito, temos a ideia de que “educar exige
tomada consciente de decisão” (FREIRE, 1996, p. 68). Neste debate,
Freire chama a atenção para a presença de posturas autoritárias, tanto
121
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
nos defensores da postura autoritária quanto nos defensores da postura
dialógica. Romper essa tendência ao autoritarismo é um desafio ao próprio
educador. Ser democrático, disponível ao diálogo, não é abandonar as
responsabilidades de educador, ainda que seja abandonar a ideia de que
“nós sabemos o que os estudantes devem saber” (FREIRE, 1992, p. 60).
Atuar como construtor, permitindo-se partir da leitura do mundo dos
educandos (FREIRE, 1992, p. 67) possibilita a cooperação e o estímulo no
aprendizado.
Essa lógica no direito significa pensar o Judiciário, não como dono da
decisão, mas como construtor da decisão junto com os interessados. Isso
significa a colocar, no centro da questão, as diferentes visões de mundo e
a construir uma nova visão advinda das experiências interativas concretas.
Essa inclusão de uma nova forma de entender a resolução de conflitos
não implica retirar do Judiciário o poder de decisão, mas sim a “juizite”, a
utilização do poder de decisão de forma autoritária.
5. Visão substantiva do direito e justiça restaurativa
A dicotomia da justiça procedimental versos justiça substantiva é
trabalhada por Cláudio Souto e Solange Souto (2003), de maneira que
o procedimento da pesquisa empírica informa dados à visão substantiva
do direito. A pergunta sobre o que faz a vida em sociedade ser possível é
posta no debate considerando que o fenômeno social é fato exteriorizado
na comunicação entre seres humanos (SOUTO, 1971, p. 5-7). O sentido
social do ser humano perpassa pela padronização das regras produzidas
pelo processo de socialização (controle social), sem que com isso elimine
a personalidade do indivíduo, afinal “o indivíduo não é de todo passivo,
nem existe para a sociedade uma obediência absoluta de seus membros
... assim como existem na família resistências e tensões, existem elas
também na sociedade global. Em ambos os sistemas há um hiato na
comunicação de grupos” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 28-30).
Portanto, devido à continuidade nos comportamentos sociais,
produzimos controles sociais, do que resulta admitir que “o social
é sempre mudança, mesmo quando é controle”. Afinal, ainda que o
social não se confunda com as mentes individuais, “não se pode negar
que o social resulte de polos mentais em interação. Ora, assim sendo,
e desde que mentes individuais variam continuamente, toda interação
social implica mutação, mudança social, que pode ser mais ou menos
acentuada” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 37).
Uma vez estabelecida a relação entre o social e as mentes, Souto e
Souto afirmam que “o direito como fato social não se confunde com a
122
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
forma legal de controle social, formas estas cujos conteúdos poderão ser
ou não jurídicos” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 38). Para isso, os autores
apresentam a visão substantiva do direito, ou seja, a visão de que direito
detém um conteúdo social passível de identificação racional por pesquisa
empírica. A ideia do bem e do mal são verificáveis, bastando para tanto a
realização de pesquisa empírica voltada à verificação dos traços afetivo,
ideativo e volitivo da atividade biopsíquica dos seres humanos, ou seja, do
processo mental humano, a saber: os sentimentos, as ideias e as vontades
(composto SIV).
O social é, então, a padronização do composto SIV, o que se dá por meio
da convivência contínua (temporalidade) dentre os polos mentais. O traço
S (sentimento), do mental humano é identificado pela agradabilidade ou
desagradabilidade, pelo sentimento de dever ser e de não dever ser de
um comportamento. Assim, quanto mais agradabilidade maior será a
tendência à convivência pacífica. O traço I (ideia) é regido pelo conteúdo
ideacional, pelas ideias de semelhança e dessemelhança resultantes do
convívio em sociedade. O traço V (vontade) implica o querer e não querer
socialmente produzido. Assim, o interSIV é o objeto da sociologia do
direito, que se ocupa do controle social, do direito da sociedade. Esses
traços não são separáveis, esta separação é realizada por abstração. Cada
traço está plenamente ligado ao outro, o que leva os autores a afirmarem
que o controle social energiza socialmente a força mental e a força física
presentes na vida social (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 114).
A partir dos estudos desses traços, a sociologia seria a ciência dedicada
à pesquisa sobre o composto SIV que tem por fórmula: quanto maior
I de semelhança e S de agradabilidade, entre os polos SIV, menor a
distância exteriorizada (dada a conhecer). Quanto aos processos sociais
de aproximação (como a cooperação) e de afastamento (como o conflito),
os autores estabelecem os seguintes postulados:
1º) se prepondera a ideia de semelhança sobre a de dessemelhança,
o sistema de interação social está equilibrado;
2º) equilíbrio permanente do sistema de interação social resulta
num processo social associativo;
3º) quanto maior a semelhança preponderante entre os polos sóciointeragentes, maior o equilíbrio do sistema de interação social;
4º) quanto mais equilíbrio interSIV, maior controle social;
5º) quanto menor a distância interSIV, menos energia será necessária
para a receptividade da comunicação e para o controle social;
123
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
6º) quanto mais socialização, mais equilíbrio no sistema social;
7º) quanto maior a dessemelhança interSIV, maior a tendência ao
desequilíbrio do sistema social;
8º) quanto maior o padrão de I (ideias), maior equilíbrio interSIV.
Com esses pressupostos, Cláudio Souto e Solange Souto têm por direito
“a pauta de conduta social que esteja em consonância com o sentimento
humano universal de justiça – algo de intrinsecamente justo, pois - e com
dados de ciência empírica – algo necessariamente racional, portanto, e
de racionalidade comprovável” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 227). Com
isso, distinguem-se as regras morais das regras de equidade das regras
jurídicas. É que essas regras, mesmo que signifiquem pautas de conduta
em consonância com o sentimento humano do dever ser (sentimento de
justiça), diferem porque “as regras jurídicas são aquelas em consonância
com dados do conhecimento científico-empírico, as morais são as
em consonância com dados de conhecimento metacientífico (não
empiricamente comprovável), ao passo que a equidade seria a pauta de
conduta em consonância com dados de conhecimento positivo concreto
do caso singular ais são as em consonância com dados de conhecimento
metacientífico” (SOUTO, 2003, p. 221-222).
Souto e Souto não reduzem a ética ao dever ser, afinal o sentimento do
dever ser (sentimento de agradabilidade diante do que se acha que deve
ser) expressa o que é próprio a todo ser humano, abstraídas suas ideias. O
sentimento de dever ser não se confunde com a concepção individual de
dever ser. Com isso, um indivíduo pode considerar que determinada norma
jurídica não é um “dever ser” e agir contrário ao padrão (ao conteúdo
normativo de dever ser), afinal “todos têm liberdade humana de escolha
entre padrões e suas consequências” (SOUTO, 2003, p. 223). Com essa
diferenciação, Souto e Souto afirmam que o “uso linguístico particular dos
juristas que chamam direito tudo que for conteúdo normativo de formas
de coercibilidade estatal – desconhecendo eles como ‘direito positivo’
o que não for tal conteúdo – não é igual ao uso linguístico comum da
sociedade” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 225). Afinal, o sentimento de dever
ser diz respeito à normalidade do sentimento, isto é, ao sentimento do
dever ser que comumente se observa nos seres humanos (SOUTO, 2003,
p. 226; SOUTO, 2009, p. 32). Mas, é perfeitamente possível a alteração
desse sentimento no psiquismo doentio” (SOUTO, 2003, p. 227). Assim
é porque o sentimento de dever ser do ser humano normal contém o
impulso de conservação do indivíduo e da espécie, que é o postulado
ético básico.
124
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
A proposta de uma visão substantiva do direito corrobora uma
compreensão da justiça restaurativa na medida em que o direito deixa de
ser reduzido ao direito do estado, à legislação e às decisões judiciais. Há
um espaço para a visão de que legislação e decisão judicial podem não
ser direito substantivo. A questão de como essa visão colabora para uma
compreensão da justiça restaurativa é que quanto maior a participação
dos polos interSIV do estabelecimento da solução do conflito, maior será
a probabilidade de esses polos interSIV desenvolverem um convívio social
sem conflito, porquanto viabilizados o sentimento de agradabilidade, a
ideia de justiça e a vontade de agir em consonância com o outro interSIV.
Não há que se pensar uma modelo pré-estabelecido para a condução
dessas audiências. Mas, a teoria sociológica do direito de Cláudio Souto
e Solange Souto trazem contribuições à reflexão da justiça restaurativa
justamente por explorarem a dimensão SIV, a individualidade e a
sociabilidade do convívio social. A não redução do direito ao Estado, como
defendem os autores (SOUTO, 1971, p. 169; SOUTO e SOUTO e SOUTO,
2003, p. 73), é um elemento fundamental para a justiça restaurativa, pois
a abertura para o que será construído como “direito entre os envolvidos”
não se esgota nos “termos da lei”. Por mais que a legislação não possa vir
a ser plenamente ignorada no resultado dos círculos restaurativos. Se, por
hipótese os componentes do círculo decidirem matar um filho, ou vender
um órgão, hipóteses que se apresentam absurdas e não constituem
direito, pois não em consonância com o sentimento universal de dever ser
de qualquer grupo humano. Como propõe a teoria substantiva do direito.
6. Poder Judiciário, justiça restaurativa e decisão democrática: concluindo
Evidenciada a insuficiência da concepção de justiça imposta, resultante
da aplicação (interpretação e decisão) sobre quem está com o direito,
pautada pela legislação e pela jurisprudência, sem esquecer os relatos
fáticos e as provas constitutivas de processos judiciais, a conciliação
é apontada como lógica substitutiva, seja na forma de diálogo em
audiências, seja na forma de transação penal, de pena alternativa, de
justiça restaurativa.
A distinção entre a forma de fazer justiça punindo o infrator e a justiça
restaurativa é que:
a simples punição não considera os fatores emocionais e sociais, e que
é fundamental, para as pessoas afetadas pelo crime, restaurar o trauma
emocional - os sentimentos e relacionamentos positivos, o que pode
ser alcançado através da justiça restaurativa, que objetiva mais reduzir o
impacto dos crimes sobre os cidadãos do que diminuir a criminalidade.
125
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
Sustentam que justiça restaurativa é capaz de preencher essas necessidades
emocionais e de relacionamento e é o ponto chave para a obtenção e
manutenção de uma sociedade civil saudável (GOMES PINTO, 2005, p. 22).
Em seu texto, Renato Sócrates Gomes Pinto apresenta distinções de
ordem axiológica, procedimental e quanto ao resultado. Estas afirmações
feitas por Gomes Pinto segue os Princípios Básicos sobre Justiça
Restaurativa presentes na Resolução do Conselho Econômico e Social das
Nações Unidas, de 13 de Agosto de 2002 (GOMES PINTO, 2005, p. 24-27).
Para tratar da justiça restaurativa e sua consequência na lógica punitiva,
Renato Campos Pinto de Vitto (2005, p. 42-43) apresenta os seguintes
modelos de pena: o modelo dissuasório, voltado à “pretensão punitiva
do Estado”; o modelo ressocializador, que foca a função reabilitadora da
pena; e o modelo integrador, pautado pela ideia de conciliar interesses
e expectativas dos envolvidos, buscando a pacificação da relação social
que se tornou conflituosa. O modelo integrador é o que exigirá maior
desafio ao pensamento jurídico penal, principalmente porque a justiça
restaurativa, ao pretender intervir direta e positivamente em todos os
envolvidos no fenômeno criminal, toca “a origem e causa daquele conflito,
e a partir daí possibilita o amadurecimento pessoal do infrator, redução
dos danos aproveitados pela vítima e comunidade ... Porém, o êxito da
fórmula depende de seu correto aparelhamento” (DE VITTO, 2005, p. 49).
Já Eduardo Rezende Melo apresenta os desafios de se implementar a
justiça restaurativa, partindo da visão filosófica de Kant, contrapondo-a
à ideia de justiça retributiva, para a qual, a punição deve ser imposta
para que se tenha retribuída a condição de paz social. Essa visão de
justiça promove a cultura da vingança, o que impede a realização da
justiça restaurativa. Seguindo essa ideia, Rezende de Melo (2005, p.
57) escreve que “não apenas a justiça, o próprio direito haveria de ser
repensado” (REZENDE MELO, 2005, p. 57). O maior desafio está em que
a justiça não está lá, já pronta, à espera para ser usada, mas que requer
responsabilidade e comprometimento de todos os envolvidos. Sobre isso,
este autor, ainda, diz que “se em jogo está um outro modo de reflexão
da justiça, que passe da coerção ao juízo sobre suas práticas, deixando
de ser a afirmação de um tipo determinado de valores supostamente
transcendente à sociedade, a noção de justiça social não pode deixar
de estar presente a um modelo alternativo ao retributivo” (REZENDE
MELO, 2005, p. 57). Assim, a questão da justiça tem estreita ligação com
a educação, principalmente se a proposta é sair da lógica da “regressão à
violência física primária” (REZENDE MELO, 2005, p. 71).
126
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
Com a justiça restaurativa, o papel do Judiciário deixa de ser o de impor
sua decisão e passa a ser o de mediar os conflitos. Afasta-se da lógica do
“ditar o direito” e constrói-se a lógica do fazer junto. Evita-se a busca pela
justiça a ser imposta, pela justiça a ser posta, porque é construída pelas
partes.
Evidentemente, os críticos de leitura superficial já gritam: “é o fim do
Estado de Direito, vamos voltar à Idade Média”. Acontece que a justiça
restaurativa não substitui a justiça formal, tradicional, ela aparece como
complementar, é o que se pode ler já na apresentação do livro Justiça
Restaurativa, organizado e publicado pelo Ministério da Justiça e pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD:
é inegável que eles constituem um instrumento de enorme importância
para o fortalecimento e melhoria da distribuição de Justiça.
Complementando o papel das instituições do sistema formal de Justiça, os
programas e sistemas alternativos podem representar um efetivo ganho
qualitativo na solução e administração de conflitos, pelo que devem ser
objeto de criterioso monitoramento e acurada avaliação, a fim de que as
boas práticas sejam fomentadas e difundidas.
A aplicação de tal modalidade de intervenção no país ainda é, de uma
forma geral, incipiente, como atesta o relatório de pesquisa “Acesso à
Justiça por sistemas alternativos de administração de conflitos”. Notese, porém, que é no campo dos conflitos de natureza penal e infracional
que nos ressentimos sobremaneira da ausência de uma intervenção
diferenciada nos litígios (SLAKMON, Catherine; De VITOO, Renato Campos
Pinto e GOMES PINTO, Renato Sócrates. In: Justiça Restaurativa. Brasília:
Ministério da Justiça, 2005, p. 11. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.
br/Download/FDE/6%20-%20Textos%20Complementares/Livro%20
Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf).
A expectativa do espaço que a justiça restaurativa vem tendo aumenta
por constar no III Programa Nacional de Direitos Humanos, na parte
referente à Segurança Pública, a questão do acesso à Justiça e Combate à
Violência. Sobre isso, o referido documento diz:
também como diretriz, o programa propõe profunda reforma da Lei
de Execução Penal, que introduza garantias fundamentais e novos
regramentos para superar as práticas abusivas, hoje comuns. E trata
as penas privativas de liberdade como última alternativa, propondo a
redução da demanda por encarceramento e estimulando novas formas
de tratamento dos conflitos, como as sugeridas pelo mecanismo da
Justiça Restaurativa (Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH-3). Brasília: SEDH/PR, 2010, p. 105).
127
JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas
Um último dado relevante para a compreensão do tema é que o
relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o programa “casas
de justiça e cidadania” esclarece, logo na primeira frase, que:
o Programa “Casas de Justiça e Cidadania”, aprovado pelo Plenário do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), teve sua implantação recomendada a
todos os Tribunais do País pela Recomendação nº 26, de 16 de dezembro de
2009, para o desenvolvimento de ações destinadas à efetiva participação
do cidadão e de sua comunidade na solução de seus problemas e na sua
aproximação com o Poder Judiciário (RICHA, Morgana; TAMBURINI, Paulo
e HÉLIO, Jorge. Relatório Programa “Casas de Justiça e Cidadania. Brasília:
CNJ, 2010, p. 3).
Um processo de revisão do papel do Judiciário com “decididor” dos
conflitos sociais, atribuindo-lhe o lugar de restaurador do convívio
pacífico, ou mesmo mediador de conflitos contém a sensação de perda
de poder. Sensação semelhante a descrita por Paulo Freire quando fala
da relação de poder do professor em relação aos discentes. Isso, também,
pode ser observado em relação ao monopólio estatal da violência, quando
ao Estado, através da legislação e da decisão judicial, cabe o poder de
promover a paz social. Acontece que, assim como considerar o discente
como coautor do aprendizado não retira o poder (responsabilidade e
compromisso) do professor com sua atividade, com o curso ministrado
e seu aprendizado, assim também considerar a justiça restaurativa, e
demais formas de participação dos envolvidos na produção da decisão
do caso jurídico, tão pouco, retira do Estado a competência para impedir
a volta à vingança privada, à justiça com as próprias mãos. Incluir as
partes como construtoras da decisão judicial, não retira do Judiciário sua
responsabilidade e compromisso com a sociedade, com a decisão e as
consequências dela no cotidiano dos envolvidos, portanto da comunidade.
Nosso propósito foi apenas evidenciar que não faltam alternativas para
uma compreensão sociológica do direito da justiça restaurativa de maneira
que ela seja compreendida como espaço de amplificação da eficácia dos
direitos humanos. Ou seja, da dignidade humana, e da adoção de uma
perspectiva dialógica para a análise dos discursos que materializam as
relações humanas.
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
Referências
BITTAR, Eduardo (2007). Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura,
democracia, autonomia e ensino jurídico. In: Educação em direitos humanos: fundamentos
teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, pp. 313-334.
DE VITTO, Renato Campos Pinto (2005). Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos
Humanos. In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em:http://
www.tj.sp.gov.br/Download/FDE/6%20%20Textos%20Complementares/Livro%20
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130
Marcelo L. Pelizzoli
Círculos de Diálogo: base restaurativa para a Justiça e os
Direitos Humanos
Marcelo L. PELIZZOLI1
Introdução
Neste texto, discutimos fundamentos teóricos e orientações
pragmáticas dos Círculos de Diálogo como filosofia e como ferramenta
de realização da justiça e dos direitos humanos, tendo como foco os
seguintes conceitos interligados: Círculo, Encontro, Abertura, Diálogo
(Escuta/Atenção e Pergunta), Sistema, Interdependência (inter-humano),
Pertença (inclusão), Alteridade, Valores, Suporte, Justiça e Restauração.
Discutiremos, também, conceitos correlatos que circunscrevem os
significados principais desta temática. Nossa pesquisa é fruto da
relevância crescente da necessidade de estratégias psicossociais para a
resolutividade e efetividade da Justiça, tais como a mediação de conflitos
e o grande guarda-chuva chamado de Práticas Restaurativas.
Sobre o fundamento dos Círculos de Diálogo
Nós podemos liberar o potencial de nossa vontade coletiva para criar
o mundo que desejamos. Nós somos aqueles por quem estávamos
esperando.2
Os círculos de diálogo, ou os círculos restaurativos, que mencionaremos
aqui são modelados a partir da Justiça Restaurativa no foco de Pranis &
Boyes (2011) e de Zehr (2008), e a Real Justice de Connell & Wachtel
(1999), com os matizes que temos dado a partir das teorias e contextos
com os quais trabalhamos (Pelizzoli, 2008, 2010 e 2012). Cabe dizer que
os modelos vigentes em tais autores e seus respectivos países não foram
feitos para serem imitados à risca, mas precisam adaptar-se às culturas
e aos facilitadores, bem como ao contexto/tempo em que estão sendo
vividos. Os círculos têm regras básicas claras, contudo, têm alguma
flexibilidade; não se pode prever o que ocorrerá como tal no ambiente,
antes (pré-círculo), durante e depois do círculo (pós-círculo).
1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Professor nos mestrados PPG Direitos Humanos, PPG Saúde Coletiva, PPG
Filosofia, da UFPE. www.curadores.com.br. Contato: [email protected].
2 Anciãos Hopi, apud Boyes & Pranis, p. 26.
131
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
Há vários tipos de círculo, como podemos ver em Pranis (2011) e
Boyes & Pranis (2011), sendo que o termo mais conhecido no âmbito
crescente da Justiça Restaurativa é “Círculos Restaurativos”. Estes são
momentos em que ocorre o que alguns chamariam, precipitadamente, de
mediação judicial. Pranis & Boyes têm usado largamente o termo “Práticas
Circulares” para ampliar o alcance, visto que os círculos não são somente
para serem usados no âmbito de uma justiça restaurativa criminal, mas
como as mais diversas práticas restaurativas, tais como: reintegração,
perdas, questões de sexualidade, cura, conflitos escolares e outros. O
“Guia de Práticas Circulares” das autoras traz como subtítulo “o uso de
círculos na construção da paz para desenvolver a inteligência emocional”.
Muitas questões importantes e percepções profundas estão por trás
destas palavras, desde que se entenda paz como capacidade de lidar com
a vida, com a alteridade e os conflitos na pragmática da interação social
cotidiana, bem como, entenda-se emocional como dimensão profunda e
base para o “ser no mundo” do sujeito e, portanto, a qualidade de suas
relações e (des)encontros consigo, com os outros e com o ambiente. A
efetividade e vantagem da visão das autoras em relação às dimensões
convencionais (igualmente importantes) na questão da justiça (ou também
Justiça) é que incorporam mais tecnologias psicossociais e possibilidades
de uso circular haurindo a força sistêmica - as quais vêm primeiramente
de tradições indígenas. Mesmo os postulados de Howard Zehr (2008),
que encontram eco nas visões cristãs de comunhão, reparação, perdão e
outros, têm sua origem primeira no modelo de resolução de conflitos de
comunidades indígenas australianas.
Em nosso caso, usamos o termo Círculos de Diálogo, mas também
“práticas circulares ou sistêmicas”, para dar a entender a amplitude de
possibilidades sociais de tais práticas. Observe-se que elas NÃO podem
ser tomadas apenas como uma ferramenta ou um método, e uma moda
na área social e da Justiça. Igualmente, não se pode “entender” o que
ocorre nas práticas circulares sem alguma experiência delas, tendo
sentido o tipo de força/energia e restauração que ali circula - na forma
de sentimentos e motivações diversas, reconexões de sociabilidade,
encontro reequilibrante entre dor e afeto, potencial de cura de relações,
traumas, suporte humano e elementos afins.
É fundamental compreender que no momento em que um paradigma
novo está se instaurando, a tendência é moldá-lo nos escaninhos
conhecidos e familiares, os quais não contemplam ainda uma dialética
aberta ao novo3. Por conseguinte, a Justiça Restaurativa não deve ser
considerada como um novo ramo nos moldes da justiça convencional;
3 Cf. T. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 1979.
132
Marcelo L. Pelizzoli
por outro lado, não deve ser considerada como algo que está fora dos
ideais de justiça colocados nos cursos de Direito e no Sistema Legal usado
até o momento. Trata-se muito mais de abrir o leque de possibilidades,
mudando o foco com que se olham os danos e as reparações do mesmo,
saindo do engessamento em que o sistema legal e o direito positivo têm
colocado os operadores do direito e os sujeitos envolvidos no processo
(Pelizzoli, 2008 e 2012; Zehr, 2008). Do mesmo modo, isto vale para os
círculos restaurativos ou de diálogo, que não “inventam a roda”, mas
a fazem girar com uma capacidade de excelência bem maior do que o
sistema legal vem utilizando, institucionalmente enferrujado, maquínico
e que perdeu seu sentido maior e sua concretude. Quando se perde o
sentido e a excelência da justiça, da restauração inter-humana, é preciso
reinventá-la; o primeiro passo para tal é levantar os obstáculos sutis e
ocultos que limitam ou impedem a realização do escopo visado, a ideia
e a prática da justiça. Antes de adentrar na discussão sobre a justiça,
precisamos apontar aqui do que se trata, brevemente, com este novo
paradigma crescente e envolvente que são as práticas restaurativas, ou a
Justiça Restaurativa, na visão de seu mais conhecido nome, Howard Zehr4.
A lente restaurativa da justiça a partir de Zehr
Segundo Zehr (2008), a lente ou filosofia restaurativa tem cinco
princípios-chave ou ações:
1.focaliza o dano e as consequentes necessidades das vítimas, assim
como das comunidades e dos ofensores;
2.ocupa-se das obrigações que resultam desses danos (as obrigações
dos ofensores, assim como da comunidade e da sociedade);
3.usa processos inclusivos e colaborativos;
4.envolve aqueles com uma participação legítima na situação,
incluindo vítimas, ofensores, membros da comunidade e a sociedade;
5.busca reparar os erros.
Segundo ele, nós podemos diagramar a justiça restaurativa como uma
roda. No centro está o foco central da justiça restaurativa: buscar reparar
os erros e danos. Cada raio representa um dos quatro outros elementos
essenciais destacados acima: focalizar os danos e necessidades, ocuparse das obrigações, envolver os participantes (vítimas, ofensores, e
comunidades de cuidado), e, ao máximo possível, usar um processo
4 Os Círculos Restaurativos e, também, a sua nuance Círculos da Paz na versão de Pranis (2011) são usados
amplamente em países como Austrália, EUA, Canadá e começaram a ganhar o mundo nos últimos anos. No
Brasil, são usados no judiciário a partir dos anos 2000, sendo que a primeira Central de Práticas Restaurativas foi
oficializada apenas em 2009, pelo TJ do RS.
133
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
inclusivo e colaborativo. Isso precisa ser feito, obviamente, numa atitude
de respeito por todos os envolvidos (Zehr, 2008).
Para ele, a justiça restaurativa é um processo para envolver, ao máximo
possível, aqueles que têm um papel num evento ofensivo específico e para,
coletivamente, identificar e cuidar dos danos, necessidades e obrigações
decorrentes, de modo a curar e corrigir o mais possível o malfeito (idem).
No excelente manual Justiça Restaurativa: Uma visão para a cura e a
mudança, Susan Sharpe (apud Zehr, 2008) resumiu os objetivos e tarefas
de justiça restaurativa em três frases, apontando que os programas de
justiça restaurativa visam:
deixar as decisões chaves nas mãos daqueles mais afetados pelos
crimes;
tornar a justiça mais curativa e, idealmente, mais transformadora;
reduzir a probabilidade de futuras reincidências.
Não obstante, alcançar estas metas requer que:
as vítimas estejam envolvidas no processo e saiam satisfeitas;
os ofensores compreendam como suas ações afetaram outras
pessoas e assumam responsabilidade por essas ações;
os resultados ajudem a reparar os danos causados e considerem as
razões da ocorrência (projetos específicos foram desenhados para as
necessidades das vítimas e dos ofensores);
tanto a vítima quanto o ofensor ganham um senso de “pertencimento”
e ambos são reintegrados à comunidade.
Enfim, a justiça restaurativa sintetiza-se também como um conjunto de
questões que nós precisamos fazer quando um malfeito ou erro ocorre.
Essas perguntas-guia são como que a essência da justiça restaurativa
neste modelo. Quais sejam:
1.Quem foi afetado?
2.Quais são as suas necessidades?
3.Que obrigações foram geradas?
4.Quem tem participação nessa situação?
E, por fim,
5. qual é o processo apropriado para envolver os participantes num
esforço de reparação? (Zehr, 2008).
134
Marcelo L. Pelizzoli
Neste simples e resumido olhar sobre o paradigma restaurativo, ou de
justiça real, já podemos ver o quanto o sistema legal, que chamamos de
Justiça, está longe de realizar seu escopo último devido a vários fatores5.
Interessa-nos especificamente agora tocar em alguns destes pontos
dentro da ligação entre a ideia de justiça e a ação política.
Limites da Justiça e da Política
O desconhecimento das ferramentas psicossociais – tanto quanto de
valores humanos fundamentais - para a realização dos escopos últimos
da ideia de Justiça, e sua correlata, a de Direitos Humanos, traz grandes
prejuízos de ordem prática para os usuários destas áreas, bem como para
as instituições que aí atuam. E, em geral, a meta última dos operadores
de justiça – e de promulgadores e defensores de Direitos - é que os
casos de violência e injustiça sejam julgados, e aqueles que praticaram
atos deste tipo sejam condenados, dentro do modelo convencional:
retributivo, punitivo e vingativo. Neste modelo, o delito ou crime fere tout
court a Lei e o Estado, e trata-se de retribuir o malfeito/dano na forma
das penalidades legais convencionais, sendo o modelo prisional o grande
arauto pretensamente protetivo e corretivo. Sem dúvida que a realização
desta meta, chamada de Justiça institucionalizada, tem sido importante.
E em geral, numa sociedade que não é nivelada na dimensão pragmática
ou material e de condições de base, mas sim excludente, sabe-se que o
poder e o dinheiro, bem como o descaso e descompromisso ético, minam
constantemente a realização do ideal de Justiça, de dar (retribuir) a cada
um o que lhe cabe no âmbito da manutenção da Norma, da Ordem social,
do Estado de Direito, do corpus legal. No Brasil, temos exemplos amplos de
como a Justiça, frequentemente, é prostituída e pervertida por dinheiro,
poder, ou mais genericamente pelo ego (egoísmo). Portanto, a luta pela
realização da justiça em seus termos, colocados pela normatização legal,
é de fato uma luta de primeira grandeza, devido principalmente pelo
histórico de injustiças infligidas eminentemente contra as populações
vulneráveis, como se diz no âmbito da Bioética, ou dos excluídos. Grandes
nomes se destacaram mundialmente, e muitos deles como prêmios Nobel,
na luta pela realização de direitos básicos, contra a opressão, contra o
coronelismo, exploração de crianças, trabalho escravo ou semiescravo
e questões de ordem racial. Esta luta ainda está na ordem do dia e se
destaca surpreendentemente como a mais básica em tempos de evolução
tecnológica e econômica monstruosa.
5 “Os procedimentos disciplinares no Sistema de Justiça tradicional fornecem pouca ou nenhuma oportunidade
de reintegração para fazer correções, desculpar-se, reparar os danos ou libertar-se do rótulo de infrator. Eles
excluem do processo disciplinar àqueles mais afetados pela infæração: os infratores, as vítimas e respectivas
comunidades de apoio”. Ted Wachtel, Terry O´Connell, Ben Wachtel (2010).
135
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
Muitos militantes dos direitos humanos e operadores da justiça, ou
mesmo políticos em geral de esquerda, ou acadêmicos de uma tradição
mais crítica tal como as de influência marxista, colocam a realização do
escopo de direitos conectada diretamente a uma mudança social estrutural,
de viés eminentemente de disputa política e de poder (governo), com um
novo papel socializante do Estado. Trata-se de uma justa causa em meio
ao recrudescimento do capitalismo tardio, chamado em muitos casos de
“selvagem”, dilapidador, sendo que esta entidade chamada “capitalismo”
acaba sendo a causa/inimigo número um a ser atacado. Não obstante,
sabe-se que tal inimigo está incrustado inclusive no modo de vida dos que
lutam contra o mesmo, contradição necessária e normal a assumir em
busca de mudanças estruturais mais profundas. Por outro lado, quando
alguns militantes ou críticos de base social, marxista ou não, encontram
propostas que operam com ações psicossociais, tais como as que postulam
o nível do diálogo, humanização, resgate de intersubjetividade, mudanças
interpessoais e similares, tendem a encarar tais ações como menores, ou
ainda, como subjetivas, ou mesmo espirituais, ou “apenas psicológicas”.
Uma antiga oposição se anuncia nestas posturas, entre a que afirmaria
que a mudança deve começar no sujeito, e a outra que deve começar
em estruturas sociais econômicas e políticas. Muitas vezes, é em torno de
uma armadilha que se prendem tais oposições, entre o focar na pessoa
e o focar na estrutura. Uns pensam que se mudarmos as estruturas,
mudaremos tudo. Os exemplos são muitos a favor ou contra tais
concepções. O modelo de Cuba é um dos exemplos dos países que entra no
fogo cruzado destas contraposições. Enquanto Dalai Lama clama por uma
“revolução espiritual”, do amor universal, muitos partidos de esquerda
clamam por revolução política e econômica, ou seja, mudar radicalmente
o capitalismo, superá-lo inclusive. Um dos problemas aí está em saber
o que, como e onde se encontra concreta e presentemente o que se
chama por esta entidade, o capitalismo. É patente que uma modificação
econômica traz mudanças nas paisagens subjetivas ou mentais dos
indivíduos, e isso é importante. Não obstante, temos no mundo fartos
exemplos de mudanças políticas para a esquerda, reformas e revoluções
de várias ordens, populistas ou não, desenvolvimentistas, estruturais
ou não, que fracassaram em suas promessas paradisíacas. Por outro
lado, sabemos que comunidades/povos tradicionais ou organizados(as),
com visão de sustentabilidade, do seu papel social na vida, têm criado
perspectivas de vida exemplares, sejam elas com pequenos ou grandes
exemplos. A pergunta que cabe é: revolucionar, ou desenvolver, para qual
direção, com que conceito de humano, de sociabilidade, com que conceito
de sustentabilidade, de felicidade?
136
Marcelo L. Pelizzoli
Esta discussão é importante para o que tratamos, pois os círculos de
diálogo, ou círculos da Justiça Restaurativa, são uma ferramenta muito
poderosa e atuam no sentido primeiro da Justiça, que é de incluir os
sujeitos no sentido maior da sociabilidade, ou comunidade. Ao mesmo
tempo, eles têm um papel de trazer consciência social e afetiva, e também
política (polis – cidade) aos participantes. Isto ocorreu exemplarmente em
outros modelos sociais circulares, como os de Paulo Freire, ou nitidamente
psicossociais como o da Terapia Comunitária, criada no Ceará nos anos
90, em contexto de favela e necessidade de organização sociopolítica
(hoje a TC tem se estruturado amplamente pelo Brasil, como ferramenta
altamente recomendada nos âmbitos de saúde social). Igualmente, com
os modelos do Teatro do Oprimido, vindo de A. Boal, usados no âmbito da
educação popular, cultura e arte popular.
As ferramentas sociais ou psicossociais circulares, sistêmicas,
comunitárias, são instrumentos pedagógicos efetivos de cura, de
conscientização, de união de grupos, de formação para inciativas sociais,
de inclusão social. Por outro lado, políticas sociais governamentais, ou
mesmo de distribuição de renda ou implementação de um Estado de
“bem estar” social, ou mesmo um Estado tipo socialista, são de fato muito
importantes. No entanto, enfrentam fracassos constantes. Por quê?
As causas pontuais de cada caso nos fogem aqui. Contudo, não
podemos deixar de levantar algumas hipóteses em torno de um foco
central: fracassaram e vão fracassar toda vez que não conseguem
mobilizar os sujeitos desde valores fundamentais relativos às suas vidas
pessoais e comunitárias, relacionais e simbólicas. São estes valores os
visados nas dimensões e ações psicossociais. Sujeitos desconectados
de valores fundamentais - ou como dizem muitos mestres espirituais de
várias tradições de sabedoria - da compaixão ou solidariedade básica
da vida, desembocam em motivações individualistas, insustentáveis,
negativas ou conflitivas. A ética não funciona sem uma estética (aesthesis),
sem sensibilidade, sem dor e beleza humana, tanto quando a política
torna-se apenas a arte da guerra egológica e de guetos empoderados e
endinheirados, adoentados em suas paisagens mentais infladas, se não
atua carregando consigo o coração do humanus. O coração humano, por
base, aponta para uma comunidade de sentido, trocas e diálogo, inclusão.
Uma das verdades da luta política em torno das estruturas, tanto quanto
dos que alardeiam a promoção do desenvolvimento, do crescimento
econômico (palavra de ordem ainda hoje) em especial das classes
desfavorecidas, é a necessidade imperiosa de dar condições básicas de
alimentação, moradia, saneamento, escola, cultura, educação. Estes são
direitos básicos e que, infelizmente, temos que lutar ainda a todo tempo
137
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
por eles. Outro direito se junta a estes diretamente, o da sustentabilidade,
sem o que tudo aquilo começa a ir “por água abaixo”, cada vez mais em
alerta, apesar dos modelos urbanos vigentes serem ainda gritantemente
insustentáveis (basta conferir alguns dados graves no âmbito da saúde,
transporte e (i)mobilidade social, problemas nas periferias, perda de
paisagens, uso insustentável de energia e recursos naturais, produção
elevada de lixo, poluições de toda ordem).
O que muitos ignoram ou esquecem é que tais demandas ou ações
que vêm para elevar as condições de vida das populações não precisam
e não devem estar desvinculadas da questão do sentido da felicidade
humana buscada: que tipo de humano, ambiente e intersubjetividade
se visa quando se busca “incluir’ os sujeitos no sistema socioeconômico?
Ou seja, educa-se, propicia-se saúde, moradia, alimentação etc., tendo
em vista qual modelo de sustentabilidade, de sociabilidade e de sentido
do humano? Esta pergunta é uma chave, pois os sujeitos não são apenas
objetos a serem preenchidos com necessidades materiais e sobrevivenciais,
mas são sujeitos culturais, afetivos, relacionais, emocionais, mentais,
espirituais, fundamentalmente ambientais. Na Sociedade Industrial de
Consumo, que tem como palavras de ordem “progresso material a todo
custo”, velocidade, competição, exploração de recursos, lucros e perdas
numa guerra econômica e de poder, os sujeitos são incluídos apenas
como consumidores. Portanto, é preciso colocar em xeque a noção de
que “desenvolvimento humano” e mesmo “justiça social” é apenas prover
condições materiais básicas a potenciais consumidores.
De igual modo, o escopo de reformas sociais ou mesmo de pequenas
revoluções, precisa incluir sua motivação; qual concepção de sociabilidade/
intersubjetividade - valores humanos (afetividade, laços sociais,
participação), qual concepção de ambiente (integrado, fragmentado,
material, competitivo, cooperativo, sustentável etc.) - e qual concepção
simbólica (dimensão de cultura, espiritual, povo, bandeira de luta etc.) se
está promovendo?
Estas reflexões que trazemos até aqui são reflexões de base, pois
não se entenderá hoje Direitos Humanos e Justiça sem entender a base
crítica (e as cegueiras em tempos de crise) em que estão assentadas
tanto as demandas políticas de direitos quanto os limites da realização da
justiça. Poderíamos infindavelmente apontar os limites da justiça numa
sociedade altamente desnivelada e matizada pelo poder como dominação
e afirmação das classes burguesas e das corporações que praticamente
ditam a normatização político-econômica. Mas, o que queremos ressaltar
aqui vai em outra direção, a que aponta que não podemos apenas esperar
138
Marcelo L. Pelizzoli
por condições econômicas ideais às classes desfavorecidas, nem apenas
achar que tais condições nos tiraram da crise generalizada pela qual
passamos6.
Isto deve-se a alguns motivos básicos: primeiro, devido a que o ideal
de crescimento econômico e sua direção à universalização (condições
materiais para todos) hoje no mundo é absolutamente irrealizável, pois
os recursos naturais são escassos, e aumentam os problemas relativos
à água, energia, terras cultiváveis; de igual modo, a poluição produzida
pelos mesmos e o descarte de resíduos de toda ordem já ultrapassaram
os limites temporais e espaciais da linha da insustentabilidade. Isso
nos remete a afirmar que estamos vivendo o início do caos ecológico:
aumento de doenças frutos do consumo, alterações climáticas de várias
ordens além do efeito estufa, perda de florestas, perda de recursos
hídricos ou suas contaminações, agrotóxicos, resíduos químicos sistêmicos
persistentes, pragas, chuva ácida, acidez dos solos, perda de solos e muito
mais (Pelizzoli, 2011).
A constatação séria e científica de tais dados nos coloca diante da
percepção da hipocrisia autodestrutiva com a qual vivem as sociedades
modernas, países ou cidades que fecham os olhos para a realidade nua
e crua. Portanto, não se trata apenas de propiciar maior crescimento
econômico dentro deste modelo dilapidador e excludente, mas de
repensar os valores vigentes, que são na sua maioria destrutivos, como
citados: competitividade, exploração de recursos e mercados sem controle,
clima de egoísmo, individualismo, insensibilidade social, desânimo, perda
da dimensão simbólica e espiritual da vida, materialismo, gratificação
imediata, falso prazer.
Trata-se, sobretudo, de elevar os melhores valores comunitários e
pessoais, portanto, ambientais, para fazer seguir a caminhada evolutiva
do homo sapiens, a qual tem se mostrado violenta das mais diversas
formas. Não somos ainda seres humanos como tais, diriam grandes
mestres e educadores. Então, precisamos aprender a sê-lo; isto se faz
apenas com os outros e com espaços seguros para isto, com base no lidar
com as emoções, negatividades e positividades humanas. O diálogo é o
mais importante momento, fato, situação-base de vida para realizar isto,
não é apenas “uma conversa”.
O resultado de nossa destinação ocidental trágica dos sujeitos tomados
pelo modelo da “sociedade industrial de consumo e de massa” no
capitalismo (e também em muitos modelos chamados de comunistas)
é um grande processo de objetificação da Vida, das relações humanas
6 Vivemos uma crise integrada, em vários âmbitos e setores, crise de paradigma, de modelo civilizatório, o que
exige novas posturas, compreensões da vida e formas alternativas de viver. Cf. Pelizzoli, 2011.
139
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
essenciais (valores) e, portanto, uma grande perda do Diálogo, do Silêncio
(como abertura dentro do diálogo) e do Encontro real entre seres humanos
e com seus ambientes7.
O ser humano é capaz de aguentar muitas privações materiais, ou
levar sua vida com parcimônia e num vivere parvo; porém, quando seus
valores fundamentais – relativos em geral à essência humana e social
– são degradados, quando perde o ânimo (alma, o sentido maior para
viver), ligado ao que se chama “amar e ser amado”, ou cuidar e ser
cuidado, de algum modo ele não mais vive. Quando isto ocorre, ocorre o
desenraizamento de seu ego em relação ao seu si mesmo ou sentido mais
profundo, da adequação ao ambiente (cosmos) em que vive, do ar, água,
plantas, animais, alimentação, cultura; ele se desenraíza do social, ele
entra no âmbito da exclusão e pode começar a reagir de modo violento,
ou indiferente, ou sobrevivencial narcísico, materialístico, animal, ou
nem isto. Como bem mostrou Marx em Ideologia Alemã, não é apenas
o proletário que se desumaniza, se aliena de si e da natureza, mas o
próprio burguês, pois não vive a plenitude social da vida. Talvez a palavra
de ordem negativa mais presente hoje, em grande parte silenciosamente,
seja exclusão.
Sistema exclusão-inclusão no nível social
O ser humano é parte do todo por nós chamado de universo. Nós
vivenciamos a nós mesmos, pensamentos e sentimentos, separados
do resto – uma espécie de ilusão de ótica de nossa consciência. A nossa
tarefa deve ser nos libertarmos dessa prisão, ampliando nosso círculo
de compaixão, para abraçar as criaturas vivas e a natureza inteira (A.
Einstein).
Um dos pontos chave que consideramos na compreensão dos Círculos
de Diálogo é a percepções profunda do que rege o funcionamento do
social. Para isto, deveríamos ler autores como Marcel Moss (teoria da
dádiva e trocas sociais), os nomes ligados à Justiça Restaurativas aqui
citados, e ainda H-G. Gadamer, H. Maturana, J. Piaget, N. Luhmann (e
antes, G. Simmel) e B. Hellinger. Na base do humano está o ambiente,
neste o social ou sociabilidade, e nesta um sistema de inclusão e exclusão
em movimento.
No caso humano, sociedade é um sistema de trocas de variadas ordens
(material, afetiva, simbólica, de trabalho, partilhas, coletividades...)
7 Sobre o sujeito trágico e a odisseia autodestrutiva do mundo ocidental industrializado ver O herói de mil faces,
de J. Campbell, bem como Civilização em transição, de C.G. Jung. Objetificação é o grave processo de perda de visão
da espontaneidade, do saber viver, da sabedoria de vida, das interações com a natureza, da vida simples, simbólica,
afetiva e livre, devido à reificação das mentes e relações humanas.
140
Marcelo L. Pelizzoli
regida por equilíbrios dinâmicos, entre dar e receber, entre ação e
responsabilidades, entre ações de um indivíduo e o que isto significa
dentro de seu sistema familiar, grupos e do ambiente em geral. Justiça
é o pressuposto básico de manutenção de ordens estabelecidas para
o funcionamento dos animais humanos em seus grupos dinâmicos. Os
grupos, como bem mostrou Zehr (2008), desenvolveram seus modelos
de justiça (chamados hoje de tradicionais) para a administração da vida
relacional coletiva dentro de suas interações e conflitos sociais, simbólicas,
culturais.
Tais modelos, aos olhos de muitos, tinham visões arcaizantes ou mesmo
estranhas ao Direito e à Pax romana como conhecemos (e isto pode-se
afirmar apenas ex postum); e tinham modos surpreendentes de resolver
seus conflitos. Uma das concepções mais significativas por baixo destas
formas é a visão de que a simples e irresponsável e distante exclusão
de um membro traz desequilíbrios e instabilidade para todo o grupo ou
comunidade. Um malfeito pode reverberar por longo tempo, se não for
reequilibrado, se não for reparado, responsabilizado, “curado” de alguma
forma. O tecido social rompido precisa ser costurado constantemente.
Rasgar um pedaço do corpo e jogá-lo fora, na maioria das vezes, não
resolverá o problema de base. Em relação principalmente às comunidades
indígenas, pode-se resgatar um modelo reparativo de danos sempre em
referência aos familiares e à comunidade envolvida no ato. Eis a base
social sistêmica para a ideia de justiça, que é a própria manutenção do
equilíbrio dinâmico da sociedade como relação, dar e receber, atuar e
responder por.
Um dos métodos psicológicos que temos usado em dimensões sociais
e que hauriu o mais fundo desta visão de interdependência é a Terapia
Familiar Sistêmica, ou Constelações Familiares, na matriz de B. Hellinger.
Ela consegue acessar as faltas, as exclusões ocorridas num contexto familiar
e intergeracional que trazem obstáculos à vida presente do indivíduo e à
sua família ou ao seu grupo. De modo semelhante, os Círculos de Diálogo,
quando conduzidos nesta direção, podem abrir o espaço de interioridade
relacional e emocional em que se situam causas básicas dos malfeitos
e danos ao sistema, o qual tem como força de movimento e conexão o
que se chama de amor (o filósofo Heráclito diria, força de atração e de
repulsão), e que opera o tempo inteiro em meio a forças de repulsão,
exclusão. O sistema familiar é regido por forças maiores que os indivíduos,
tais como os sistemas sociais em geral, em diferentes graus de pertença
e intensidade8.
8 Sobre isto, veja as obras de Bert Hellinger.
141
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
Certamente, houve e há modelos de justiça que atuavam com base
no balanço do “olho por olho, dente por dente”, que também busca
reequilíbrios sociais. Mas, na percepção sistêmica e dos círculos de justiça
como os que inspiraram a Justiça Restaurativa no seu início - a tradição
indígena canadense, australiana e norte-americana – criou-se ao longo
do tempo uma forma altamente evoluída, otimizada, de manutenção
social ou justiça. Nesta, o indivíduo responde ao todo ao qual pertence
– e pertença é uma das palavras chave aí – no nível das obrigações e
responsabilidades inter-humanas em primeiro lugar, e não em termos
de referência à legalidade formal. Responde-se diante do clã dos mais
velhos, mas responde-se diante da família da vítima, bem como diante da
instabilidade de sua própria família e companheiros; responde-se de fato
pelo que foi feito e pelo que há de se fazer desde então. E por sua vez,
reconhece-se o mal feito como ferindo pessoas e sistemas - não algo frio
e impessoal, mas instaurado no nível dos compromissos (laços) afetivos
e de sentido social de vida das pessoas, que pertencem a um grupo de
convivência.
Tal como na natureza, os animais humanos estruturam-se
intrinsecamente com seus ambientes, fato bem compreendido quando
se tem consciência do que é um Ecossistema ou quando se tem a noção
intergeracional familiar. Na pragmática da Terapia Familiar Sistêmica, é
surpreendente e, ao mesmo tempo, misterioso para o leigo dar-se conta de
que uma exclusão (assassinato, perdas, abandono, suicídio, psicose etc.)
move uma causalidade não apenas na mesma geração, mas para a geração
seguinte e para a próxima também, sendo motivo de comportamentos
negativos e repetições de problemas emocionais vindos de antes, vindos
dos movimentos do Sistema-grupo. Há uma teia de interligações que
não se compreende apenas como uma teoria epistemológica, mas um
fato sentido e vivido como efeito de atos anteriores e que afetam um
sistema – grupo, família, ambiente. As crianças em especial são muito
sensíveis ao que aconteceu anteriormente num ambiente. A boa nova é
que há formas de lidar com tais impactos sistêmicos, de rede, focadas no
círculo familiar, tribal, terapêutico, dialogal, seja como for; pode-se ter
um acesso privilegiado ao que ocorre, o clima ou energia que move as
relações, desde que se acesse a força de interligação, exclusões dolorosas
e inclusões renovadoras que tendem a reequilibrar os danos, por meio de
encontro e diálogo circular, a partir de um Centro ou Sistema (Hellinger,
2007; Pelizzoli, 2010).
Os círculos, como ápice dos modelos de práticas restaurativas, têm
potencial mágico de chegar ao centro de equilíbrio do dar e receber, das
trocas sociais, mostrando-se como um espaço transparente em que se dá
142
Marcelo L. Pelizzoli
a Abertura, o resgate da Pertença, a Participação, e a Responsabilização,
sinônimos todos de inclusão. O círculo é também uma forma de dar
nascimento social a pessoas que parecem não ter existência propriamente
(e assim direitos e deveres), ou àqueles que foram afetados na identidade
social de suas existências. O movente fundamental para tal escopo se
chama diálogo.
O que é diálogo?
Diálogo não é uma coisa que ocorre facilmente, uma conversa, ou
encontro de pessoas trocando ideias. Ensinar não é em geral diálogo;
doutrinar, psicanalisar, julgar, determinar, controlar, dominar, ou ainda,
ficar indiferente, neutro, intocável, não é diálogo. Resumidamente,
diálogo, escuta autêntica, é algo raro; quando uma pessoa nos escuta
verdadeiramente e entra em diálogo, ocorre algo em nós; não somos
mais apenas indivíduos isolados; transforma-se algo em nós, como afirma
Gadamer, ou ainda Buber e Tagore9.
Os pilares do diálogo, sem os quais ele não ocorre de fato, são: por
um lado, a Escuta – e dentro desta a Presença, a Atenção e o Silêncio - e,
por outro lado, a Pergunta, motor do mesmo. A escuta, com o necessário
silêncio mais a atenção, disposição que caracteriza a Presença, é o ponto de
acesso ou Abertura para o acontecimento do encontro ou diálogo. O que
está em jogo é o atravessamento do logos, do sentido profundo e da palavra
que dá significado às vidas pessoais e sociais. Por sua vez, todo diálogo
tem por base perguntas, e no fundo a perguntabilidade fundamental
que somos nós mesmos enquanto seres abertos, finitos, incompletos,
vulneráveis e ao mesmo tempo extremamente interdependentes. Como
diz Sócrates e Gadamer (ano), é o não-saber que estimula a inclusão do
outro; preciso colocar-me nesta disposição, para assim “saber” o que de
fato outrem quer dizer, sente, pensa, expressa, ou mesmo não consegue
expressar. O diálogo vai muito além da objetividade das palavras, do léxico,
da gramática; o seu elã vital está numa motivação de encontro, abertura,
deixar ser e receber o que ocorre, com as “antenas bem ligadas”. Ele não
é apenas as palavras ditas, mas a energia que circula, que depende das
disposições e emoções em jogo.
O diálogo autêntico põe em causa a autoridade baseada no ter, saber
e poder, pois nele nivelam-se os indivíduos diante de um todo maior.
Ele remete a um Centro e a um Sistema maior e anterior, em que nos
movimentamos como seres vivos num ambiente interligado, complexo,
enredado. É por isto que muitos indivíduos controladores, sejam eles
9 De Gadamer, veja-se “A incapacidade para o diálogo”, em Verdade e Método II; de Buber, a obra Eu e Tu; de
Tagore, Poesia Mística.
143
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
professores, políticos, ocupantes de cargos importantes, ou então
pessoas algo neuróticas, egoístas, ensimesmadas e afins não conseguem
entrar em diálogo. Mesmo que pareçam estar ouvindo, não ouvem de
fato; e em geral, o outro, o interlocutor, sente isto, um bloqueio, mesmo
que inconscientemente. O diálogo restaurativo, ao mesmo tempo que
traz a inclusão, traz a responsabilização. A palavra responsabilidade
traz em si a disposição de responder, falar, dar contas, responder por. A
responsabilidade, para quem erra, não é apenas uma obrigação de pagar
algo, mas uma possibilidade de ser incluído novamente, ser trazido à cena
social. Quando me torno indisposto ou indiferente ao outro, potencializo
a exclusão. E, por outro lado, se apenas puno, vingo, não estarei agindo
no nível otimizado da responsabilidade, pois esta é sempre socializante,
inclusiva, comprometedora10.
O Diálogo coloca em xeque o sistema premiação-punição, quando
rotula e “mata” os sujeitos a partir de classificações, nosografias,
doenças, mostrando seus limites, obstáculos, autoritarismos; o diálogo
e o acompanhamento, o suporte humano, traz implícito possibilidades
inauditas de cura, de reinserção social, ressocialização, desde que ele não
seja uma simples e descompromissada conversa, ou apenas momento de
desculpas, explicações, lamentos, julgamentos e similares.
Círculos de Diálogo
O círculo é um processo para organizar a comunicação em grupo, a
construção de relacionamentos, tomada de decisões e resolução de
conflitos de forma eficiente. O processo cria um espaço à parte... incorpora
e nutre uma filosofia de relacionamento e interconectividade que pode nos
guiar em todas as circunstâncias – dentro do círculo e fora dele (Boyes &
Pranis, 2011).
Devemos primeiramente elencar algumas visões do que NÃO é um
Círculo de Diálogo real, autêntico, restaurativo.
Não é mediação ou resolução de conflitos convencional, pois o que tem
se entendido como mediação tem os seguintes limites: coloca muito peso
no papel resolutivo do mediador, como se ele tivesse poderes especiais, ou
tivesse uma capacidade técnica ou científica a qual é o ponto chave para
resolver as questões. As mediações comumente feitas não contemplam,
em geral, a participação de membros além dos envolvidos diretamente no
ato, deixando de constituir propriamente o círculo “mágico” sistêmico. Na
mediação judiciária ocorre (na maior parte das vezes) a negação das dores
e efeitos envolvidos no ato, bem como não há diálogo propriamente,
Marcelo L. Pelizzoli
mas uma disputa de melhores argumentos e aposta em versão de fatos;
na verdade não se desacelera o tempo utilitário em prol dos tempos de
recomposição de encontro e responsabilidades. Igualmente, o fato de
tentar negociar um conflito negativo apenas para chegar ao meio da
questão, resolvendo pela divisão das coisas, pode ser um fracasso para
o processo, principalmente para as vítimas que não conseguiram colocar
amplamente sua demanda e dores e perdas, bem como vê-las restauradas
de modo mais justo.
Negociações, Conciliações e Arbitragens podem abafar os problemas,
sendo que, muitas vezes, as pessoas cedem a algo neste nível por motivos
de força maior, pois apostar no caminho tradicional dos processos
judiciários é uma loteria, além do desgaste, tempo, exposição, abandono
e custos que tais calvários apresentam. Nitidamente, pode faltar Espaço,
Abertura, para que ocorra a circulação do Pathos (circulação das dores,
afetividades, raivas, emoções, palavra ampla, reclames, tomadas de
consciência, presença de espírito, acesso à alma familiar ou comunitária),
o qual se traduz no nível do Encontro e Diálogo. Deve ficar claro que o
mediador ou a instituição não devem ser o “dono” da mediação, mas o
grupo.
Não é julgamento moral das pessoas, nem correção ética. No viés moral
ou moralizante, o clima dos encontros ou julgamentos estão calcados numa
visão dicotômica encarnada na tradição ocidental e ligada às religiões que
separam completamente o bem do mal. Houve uma perda da dimensão
sistêmica de forma gritante no ocidente cristão e capitalista, que coincide
com o seu afastamento da Natureza ou de culturas mais próximas e ela.
Quando apoiamos este viés, perde-se a oportunidade de trazer à tona
a fragilidade humana, bem como a capacidade maior de reparação de
vítimas, que tem a ver com o encontro restaurativo e sistêmico com os
agressores, família, comunidade e também autoridades validadas.
Não é uma conversa livre com poucas regras. Há hoje procedimentos
muito interessantes com base em ações livres, tais como Brainstorms,
livre expressão, estalagens momentâneas, arte viva, diálogo criativo etc.
Porém, para os fins restaurativos e de conflitos, precisamos de fato de
tecnologias sociais, de diálogo e de recursos que sirvam de veículo ao
escopo desejado, o que não significa que a conversa e a alteridade do
diálogo e dos participantes, e do sistema que ali se forma no encontro, não
tenham prioridade sobre os objetivos e regras. Em todo caso, precisa-se
de regras claras, que acima de tudo garantam os valores fundamentais em
jogo, tais como o respeito, direito a falar e a ser ouvido, responsabilidade
pelos atos, compromisso, entre outros.
10 Cf. “Fundamentos para a restauração da Justiça”, in: Pelizzoli, 2008.
144
145
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
Não é algo que prescinda de um facilitador. Precisa de um facilitador,
o qual não pode adotar a atitude de sabedor, de professor. Não é ele que
resolverá, mas ele precisa estar preparado para saber acessar a capacidade
de Abertura de um espaço simbólico significativo, o potencial do encontro
e diálogo humano. Precisa acionar a força do Sistema e o respeito aos
valores básicos da sociabilidade humana.
Não se trata de perdoar o ofensor ou de consolar a vítima. Qualquer
encontro que venha a conter perdão e reconciliação são bem-vindos,
no entanto não são o escopo principal dos círculos de diálogo ou
restaurativos. Qualquer consolo que venha a ocorrer será bem-vindo
também, desde que não se negligencie os procedimentos de reparação
mais profundos, que têm a ver com a compreensão dos fatos/ocorrências
e seu peso pela vítima e pelo ofensor, e os envolvidos, a responsabilidade
e o compromisso de reparações possíveis para o caso, incluindo, se for
necessário, o aprisionamento como último recurso.
Não se trata de não ter acordos formais e legais. Muitos encontros
podem não resultar num acordo formal e de compromissos com base
legal. E mesmo assim, não deixam de ter importância e reverberação
para os participantes, que conseguem com os círculos reelaborarem
melhor os fatos, dores, e ter o suporte de grupo. No entanto, quando
se tratam de círculos restaurativos para danos, o acordo se torna um
veículo final concreto, que sela um acontecimento reparativo, e que põe
em compromisso os agressores, ou todos os responsáveis, tendo uma
base institucional garantidora, no caso, o judiciário. O acordo tem força
simbólica e legal, materializando o reequilíbrio necessário.
Não é um espaço comum com objetos comuns, mas um espaçocírculo que tem um centro e que remete para além da viseira das visões
idiossincráticas; remete ao uso respeitado da palavra, diálogo no sentido
pleno do termo. É um espaço de abertura e que motiva a pertença, a
responsabilidade, a interdependência dos participantes, e o caráter de
vulnerabilidade/fragilidade imensa e ao mesmo tempo preciosa da vida
humana.
Não é um espaço de correção psicológica dos indivíduos que cometeram
danos, os ofensores. Mesmo que isso possa ocorrer indiretamente nos
círculos, como se tem visto, não é este o escopo maior, pois tendo-se
este viés como base criamos uma artificial Laranja Mecânica, ou Matrix,
para corrigir mentalmente os “doentes” sociais. Quando se olha assim,
rompe-se o olhar de resgate nos melhores valores e nas capacidades de
responsabilidade, criatividade e mudança dos indivíduos, que não são
“bandidos, prostitutas, ladrões, menores, elementos, delinquentes”, mas
146
Marcelo L. Pelizzoli
pessoas com múltiplas capacidades e possibilidades dentro dos mundos/
ambientes (melhores) que se criarem para e com eles.
O Círculo de Diálogo é um encontro real; e é também uma metáfora
do mundo significativo em ordem dinâmica em que precisamos
constantemente nos reinserir, pois vivemos sob o signo da impermanência,
do tempo, dos acidentes e acontecimentos, em especial aqueles
chamados de violência. É por isto que, em geral, ele dispõe elementos
no seu centro, objetos simbólicos que representam valores culturais,
espirituais, relacionais, e em geral elementos da natureza, como água,
pedra, tecido, sementes, etc. Contém também um objeto da fala, com
o qual se aprimora a organização e o centramento da atenção em quem
está falando e no clima da fala. O objeto da fala mostra-se muito útil, pois
dá o tempo necessário ao sujeito que precisa expressar-se e, ao mesmo
tempo, ensina o silêncio, o respeito, o exercício da escuta e paciência.
Igualmente, ele contém um tipo de peso ou poder, o que faz com que
aquele que o detém, de algum modo, se dê conta de que pode estar
monopolizando e que o objeto não pertence a ninguém em particular.
O círculo é um espaço em que se (re)criam laços, onde se cria um lugar
seguro, onde se pode expressar dores, emoções de vários tipos, tristeza,
choro, raiva, lamentos e, ao mesmo tempo, ter um suporte. Não é fácil
dar suporte, pois exige a capacidade para o diálogo, para suportar a dor
do outro, o que remete a suportar a sua própria dor. Muitas vezes, alguém
não suporta o outro, a dor dele, a raiva, o medo, a fragilidade, porque
não suporta em si tais coisas, ou é tocado intimamente, demasiadamente
para ele. Se sou abalado pelo outro, posso tender a fugir, a protegerme. A vantagem do círculo é que contém uma força maior do que um ou
dois dialogantes, força esta que pode suportar o que o encontro traz de
pesado.
Como melhor exemplo institucional no Brasil, podemos citar a Central
de Práticas Restaurativas do Juizado Regional da Infância e da Juventude,
em Porto Alegre (que pratica a Justiça Restaurativa desde início dos
anos 2000), um espaço oficializado em 2009, que vem tendo ampla e
crescente aceitação, chegando a ter um grau de “muito satisfeito” por
parte de usuários em 80% dos casos atendidos. Lá se operam por círculos
restaurativos. Podemos trazer resumidamente um exemplo do resultado
deles:
“Em 2011, João, pai de Gabriela, foi chamado na escola para acompanhar
a adolescente, pois ela estava sofrendo ameaças de ser agredida, em
função de desentendimentos anteriores com seus colegas. Ao chegar lá,
percebeu que várias pessoas da comunidade estavam reunidas na praça
147
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
na frente da escola, aguardando a saída de Gabriela. Ocorreu discussão e,
logo em seguida, agressões físicas, envolvendo uma parte do grupo. João
acabou sendo agredido e, ao se defender, bateu em uma adolescente, o
que revoltou muito a comunidade escolar. Após o ocorrido, João registrou
ocorrência na Delegacia Especializada para Apuração do Ato Infracional.”
“Este caso ingressou no Sistema de Justiça e o Juiz suspendeu o processo,
encaminhando-o para que a equipe da CPR JIJ avaliasse a possibilidade de
realização de Procedimento Restaurativo. Como resultado da experiência
(do Círculo), pode-se relatar que: As mães pediram desculpas ao pai da
vítima, pois acreditavam que ele era uma pessoa violenta por ter agredido
a adolescente, pois compreenderam que ele agiu para se defender, ao ser
agredido pelo grupo maior. As adolescentes acordaram que construiriam
cartazes contando como aconteceu e como foi resolvido o conflito.
Uma das mães se comprometeu a organizar um espaço para realização
da tarefa. As mães e o pai de Gabriela ficaram responsáveis de verificar
sobre a possibilidade de afixação dos cartazes produzidos pelo grupo, na
escola. O Diretor da escola, que inicialmente não aceitou participar da
experiência, pois entendia que, como o fato ocorreu fora da escola não
era sua responsabilidade, concordou em realizar atividades envolvendo
a Cultura de Paz, com a participação das adolescentes e suas famílias. As
coordenadoras/facilitadoras do procedimento se comprometeram em
participar e filmar o cumprimento do acordo”11.
Este relato é um simulacro de um processo muito rico, carregado de
tensões, expectativas, emoções, em que se percebe a sensibilidade, a
vulnerabilidade e a complexidade/interconexão dos dilemas e dramas
humanos; em especial porque o método é feito para atuar no âmbito
criminal que, no entanto, não é o único de interesse das práticas circulares
ou restaurativas.
O Círculo tem as seguintes funções ou intenções, segundo Boyes &
Pranis (2011):
apoiar os participantes a apresentar seu verdadeiro eu – ajudá-los a
se conduzirem com base nos valores que representam quem eles são
quando estão no seu melhor momento;
fazer com que nossa ligação fique visível, mesmo e face de diferenças
muito significativas;
reconhecer e acessar os dons de cada pessoa;
evocar a sabedoria individual e coletiva;
engajar os participantes em todos os aspectos da experiência
Marcelo L. Pelizzoli
humana – mental, física, emocional e espiritual ou na construção de
significados;
praticar comportamentos baseados nos valores quando possa parecer
arriscado fazê-lo. Quanto mais as pessoas os praticam no círculo,
mais estes hábitos são fortalecidos para levar o comportamento para
outras partes de suas vidas (Boyes & Pranis, p. 35).
A magia ou força do Círculo encontra-se já antes mesmo de seu
acontecimento. Encontra-se latente na vontade das pessoas de se
entenderem com as outras, de terem voz, espaço, serem respeitadas, ou
mesmo de pedir responsabilidade como elã de justiça a algum malfeito. A
intenção inter-humana, de reparar, de sanar a dor que se apresenta como
mágoa, ressentimento, vergonha, ferimentos emocionais envolvendo
tristeza, raiva, medo e similares, é a mais forte disposição para que um
diálogo e uma restauração ocorram. Depois, é necessário contar com o
bom veículo de um facilitador, de um mediador, o qual facilita a tessitura
de um pequeno sistema – comunidade, pessoas que se reúnem, famílias,
grupo – ou rede que tende à reparação e cura de rupturas sofridas em
suas tramas.
Se a força da intenção de base dos envolvidos for grande, apresentase então a capacidade de romper com as barreiras do medo/raiva que
fecham o encontro, bem como romper com a vergonha ou a culpa, que
também podem bloquear; ou romper com a indiferença, ou romper,
ainda, com o tempo utilitário, o autocratismo judicial, o frio mecanismo
kafkiano que atropela as comunidades, as vítimas e mesmo os ofensores.
Neste sentido, o chamado pré-círculo é um espaço propedêutico que já
acessa as possibilidades dos envolvidos, no sentido da primeira abertura e
estabelecimento de confianças entre o mediador e as partes em separado.
O encontro de diálogo, ou restaurativo, mostra sua importância quando
se percebe que mesmo que não haja um acordo fechado, ou fiquem ainda
pontos de divergência em aberto, ou mesmo ainda restem dores ou algo
do “fazer justiça” na percepção de algum dos envolvidos, tal momento
traz possibilidades latentes e mesmo sementes futuras de uma nova visão
pedagógica para resolver conflitos. Por vezes, há sujeitos que de fato ainda
não estão preparados para isto, devido a vários fatores: psicossociais,
interesses econômicos, fixação no ego e no poder, perda de senso social
e outros. Por vezes, são necessárias novas rodadas de diálogos para que
o processo alcance algum grau maior de adequação e funcionamento. O
círculo é, além do mais, um momento/espaço altamente pedagógico e
que brota do seio dos saberes e desejos dos envolvidos, bem como queria
Paulo Freire com seus círculos educativos, de conscientização e educação
11 De Boni, in Pelizzoli, 2012.
148
149
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
política.
Sabemos da importância de tais ferramentas psicossociais quando
vemos os resultados de programas e práticas como o método da
Reconciliação e Perdão, na Colômbia; a Pacificação em ambientes
violentos; o Vipassana/meditação nas prisões; Segurança Comunitária;
Comunicação Não-violenta, e tantos outros projetos que trabalham com
inclusão social, mediação e diálogo pelo mundo afora.
Conclusões
Em termos de fundamentos filosóficos e sociais, o Círculo de Diálogo,
seja como encontro restaurativo ou fim próximo, responde a um modelo
sistêmico, integrativo, nos moldes epistemológicos contemporâneos que
apontam para a interdependência de fatores, o inextrincável da relação
sujeito-objeto, a visão de rede e a dimensão da abertura de espaços de
autogestão de conflitos. Neste sentido, compõe-se como uma das mais
poderosas ferramentas psicossociais para a realização do ideal de Justiça e
seu codependente, Direitos Humanos. Como disposição pragmática para
colocar em confronto, mediar, fazer emergir o conflito e as diferenças,
dentro de um espaço seguro e preparado, um espaço inter-humano vital,
é o veículo para a realização de anseios os mais profundos da sociabilidade
humana, traduzido como nossos melhores valores, no âmbito da agregação
social, do dar e receber, do responder por, da pertença, do suporte, enfim,
do viver e assumir a vida em conjunto.
Os Círculos de Diálogo, como ápice de Práticas Restaurativas, retomam
a força do diálogo como mote da justiça. Não há justiça sem direito
à palavra, sem expressão do ser, valores, dores, visões, palavra da
alteridade. Neste sentido, a Justiça é ou deveria ser instância pedagógica
em primeiro grau, pois ensina ou reintroduz aquele que fere ou exclui
às demandas da inclusão. Família e sociedade, grupos, compõem-se
como uma rede dinâmica que tende à inclusão, à reparação de danos, à
restauração contínua de relações e afetividades, à responsabilização justa
e humanizada pelos malfeitos, acidentes, ocorrências frutos do acaso,
ou do descuido, ou do erro, ou da intenção desviada que atinge como
violência. Sair do estado objetificador e estruturalmente violento que
atinge inclusive as estruturas do Judiciário, caminhando para o escopo
maior da sociabilidade humana consubstanciada como Bem, Justiça,
Direitos, Humanização, é hoje o grande desafio dos sujeitos e instituições,
em especial, ao transformar em atores sociais àqueles que têm sido
excluídos. O melhor e mais tradicional caminho, árduo, para isto, chamase diálogo, encontro das diferenças, restauração.
150
Marcelo L. Pelizzoli
Deste modo, correlaciona-se assim os conceitos introdutórios a
este texto, os quais apresentam-se claramente interligados: O Círculo
das diferenças, da Alteridade, como local do Encontro, em que se dá a
Abertura, consubstanciada como Diálogo (Escuta/ Atenção e Pergunta),
que remontam ao fundamento do Sistema, em que se percebe a
Interdependência radical do inter-humano, em outros termos chamada
de Pertença, local em que se confrontam e equilibram e recuperam os
Valores humanos, pois neste fulcro ocorre o Suporte social. Eis, portanto,
a realização da Justiça como Restauração.
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151
Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos
152
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: vencedores e
vencidos
Larissa RAMINA1
Moacir Iori JUNIOR2
Os conflitos oportunizados no século XX foram marcantes na história
da humanidade, não somente por suas barbáries, mas também pela
atuação dos vencedores que condenaram juridicamente - como se não
bastassem os danos militares sofridos - os vencidos, por meio de tribunais
de exceção, em uma grave marca de criminalização destes vencidos pela
guerra que ambos travaram.
O fim da Primeira Guerra Mundial apresentou os contornos da aplicação
de tribunais de exceção, pois pela primeira vez, o conceito de guerra foi
concebido como uma ação contrária ao direito, cabendo à comunidade
internacional coibir referidas práticas. A história mostrou que as cortes de
julgamento destinaram-se exclusivamente aos perdedores.
A adoção do Tratado de Versalhes trouxe consigo a conceituação de
que os atos de guerra são ilícitos penais e que responsabilizam, além dos
Estados perdedores, também os indivíduos que participaram do combate3
e4
.
1 Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Professora Substituta de Direito Internacional
da Universidade Federal do Paraná – UFPR e Professora do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e
Democracia da UniBrasil.
2 Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Cescarelli. Mestrando pelas Faculdades Integradas
do Brasil - UniBrasil. Professor Coordenador do Curso de Direito das Faculdades do Centro do Paraná.
3 ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p.93.
4 Os artigos 227 e 231 do Tratado de Versalhes demonstram claramente o entendimento esposado (grifos nosso):
ARTICLE 227: The Allied and Associated Powers publicly arraign William II of Hohenzollern, formerly German
Emperor, for a supreme offence against international morality and the sanctity of treaties.
A special tribunal will be constituted to try the accused, thereby assuring him the guarantees essential to the right
of defence. It will be composed of five judges, one appointed by each of the following Powers: namely, the United
States of America, Great Britain, France, Italy and Japan.
In its decision the tribunal will be guided by the highest motives of international policy, with a view to vindicating
the solemn obligations of international undertakings and the validity of international morality. It will be its duty to
fix the punishment which it considers should be imposed.
The Allied and Associated Powers will address a request to the Government of the Netherlands for the surrender to
them of the ex-Emperor in order that he may be put on trial.
ARTICLE 231: The Allied and Associated Governments affirm and Germany accepts the responsibility of Germany
and her allies for causing all the loss and damage to which the Allied and Associated Governments and their
nationals have been subjected as a consequence of the war imposed upon them by the aggression of Germany and
her allies. The Versailes Treaty. Yale Law School. The Avalon Project. Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/imt/
partviii.asp. Acessado em 20 out 2012.
153
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
O Tratado de Versalhes também foi responsável pela criação da Liga
das Nações, primeira organização internacional nos moldes atuais, que
tinha como objetivo a manutenção da paz. A eclosão da Segunda Guerra
Mundial mostra, todavia, que a finalidade da Liga das Nações não fora
cumprida, ocorrendo o mais grave conflito armado da história.
As Potências Aliadas - Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética –
firmaram, ainda no decorrer das hostilidades, na Conferência de Moscou,
em outubro de 1943, expressa declaração no sentido de que penalizariam
os “responsáveis pelas atrocidades, massacres e execuções, perseguindoos até os confins da terra para entregá-los aos seus acusadores”.5
O juiz Robert Jackson, da Suprema Corte dos Estados Unidos, ficou
responsável pelo estudo do caso, negociando com os aliados os atos
internacionais relativos ao julgamento dos perdedores. Na concepção de
Paulo Borba Casella,
[...] O encargo não era fácil, pois o Juiz deveria estudar os aspectos jurídicos
da matéria, evitando propor medidas que pudessem mais tarde colocar
no rol dos réus governantes ou comandantes militares aliados. Apenas os
derrotados, em suas pessoas físicas ou jurídicas, deveriam ser julgados,
nunca os vencedores. Assim, nunca se cogitou em submeter a julgamento
comandantes, militares e policiais soviéticos culpados de violências
sistemáticas contra os prisioneiros e as populações civis das potências
derrotadas, tampouco os responsáveis pela retenção por longos anos de
milhares de prisioneiros de guerra utilizados em trabalhos forçados.6
Os vencedores, após intensos debates, compeliram-se a julgar
seus derrotados por um Tribunal Militar Internacional, o Tribunal de
Nuremberg, que foi instituído no Ato Constitutivo aprovado pelos Aliados,
em 8 de agosto de 1945, na cidade de Londres7. Enquanto o Tratado
de Versalhes iniciou o entendimento de que os indivíduos poderiam
ser responsabilizados no âmbito penal, o Tribunal de Nuremberg foi
responsável em consolidar esse entendimento8.
Concluídos os combates que se desenrolaram durante a Segunda
Guerra Mundial, com a devastação de Hiroshima e Nagasaki por duas
bombas nucleares, “[...] surge a Carta das Nações Unidas, que define a
guerra como um flagelo (scourge) que a comunidade internacional deve
se empenhar em eliminar para sempre da história humana”9. Em seguida,
foram constituídos os Tribunais de Nuremberg e Tóquio.
5 CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.847.
6 Idem, p. 848.
7 Ibidem.
8 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70.
9 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianopolis:
Conceito Editorial, 2010, p. 93
154
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
O Tribunal de Tóquio aplicou o costume internacional para condenar
os crimes cometidos pelo nazismo nos termos do art. 6º do Estatuto do
Tribunal Militar Internacional referendado no Acordo de Londres de 1945.10
Conforme o Tratado, três crimes distintos seriam julgados: os crimes
contra a paz que consideravam os atos de preparação, desencadeamento
e continuidade da guerra; os crimes de guerra que eram as agressões
individuais, como maus tratos, trabalhos forçados e deportações; e os
crimes contra a humanidade, que englobavam ações desumanas como
perseguições políticas e raciais, escravidão e exterminações em massa.11
Uma das principais críticas dirigidas ao Tribunal de Nuremberg refere-se
a sua criação post factum, tipificando e julgando ações que anteriormente
não eram consideradas crimes. Além disso, o Tribunal aplicou penas
severas, como a sentença de morte ou a prisão perpétua. A essa crítica,
outras se acrescentam como as relativas ao alto grau de politicidade
daquele Tribunal, em que “vencedores” estariam julgando “vencidos” e
aplicando sanções pelos primeiros impostas, como a pena de morte.12
Em seguida, os países aliados criaram o Tribunal de Tóquio, que acolheu
os princípios de Nuremberg para julgar os criminosos de Guerra no
Extremo Oriente. Mais uma vez, a mão pesada dos vencedores foi sentida
pelos vencidos, sendo que “[...] dos vinte e oito acusados, sete foram
condenados à morte, dezesseis à prisão perpétua e os outros a penas
menores”13.
Os trabalhos do Tribunal de Nuremberg continuam por meio de uma
segunda série de julgamentos, que penalizam mais de duzentos dirigentes
10 O artigo sexto do estatuto assim estabelece a Competência do Tribunal de Nuremberg: Le Tribunal établi
par l’Accord mentionné à l’article 1er ci-dessus pour le jugement et le châtiment des grands criminels de guerre
des pays européens de l’Axe sera compétent pour juger et punir toutes personnes qui, agissant pour le compte
des pays européens de l’Axe, auront commis, individuellement ou à titre de membres d’organisations, l’un
quelconque des crimes suivants. Les actes suivants, ou l’un quelconque d’entre eux, sont des crimes soumis à
la juridiction du Tribunal et entraînent une responsabilité individuelle : (a) ‘ Les Crimes contre la Paix ‘: c’est-àdire la direction, la préparation, le déclenchement ou la poursuite d’une guerre d’agression, ou d’une guerre en
violation des traités, assurances ou accords internationaux, ou la participation à un plan concerté ou à un complot
pour l’accomplissement de l’un quelconque des actes qui précèdent; (b) ‘ Les Crimes de Guerre ‘: c’est-à-dire les
violations des lois et coutumes de la guerre. Ces violations comprennent, sans y être limitées, l’assassinat, les
mauvais traitements et la déportation pour des travaux forcés ou pour tout autre but, des populations civiles dans
les territoires occupés, l’assassinat ou les mauvais traitements des prisonniers de guerre ou des personnes en mer,
l’exécution des otages, le pillage des biens publics ou privés, la destruction sans motif des villes et des villages
ou la dévastation que ne justifient pas les exigences militaires; (c) ‘ Les Crimes contre l’Humanité ‘: c’est-à-dire
l’assassinat, l’extermination, la réduction en esclavage, la déportation, et tout autre acte inhumain commis contre
toutes populations civiles, avant ou pendant la guerre, ou bien les persécutions pour des motifs politiques, raciaux
ou religieux, lorsque ces actes ou persécutions, qu’ils aient constitué ou non une violation du droit interne du pays
où ils ont été perpétrés, ont été commis à la suite de tout crime rentrant dans la compétence du Tribunal, ou en
liaison avec ce crime. Les dirigeants, organisateurs, provocateurs ou complices qui ont pris part à l’élaboration ou à
l’exécution d’un plan concerté ou d’un complot pour commettre l’un quelconque des crimes ci-dessus définis sont
responsables de tous les actes accomplis par toutes personnes en exécution de ce plan. Texto integral do acordo
de Londres de 1945 dispoível em: http://www.icrc.org/dih.nsf/FULL/350?OpenDocument. Acesso em 17 nov 2012.
11 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012,
p.187-188.
12 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74.
13 CASELLA, Paulo Borba. Op. Cit., p. 850.
155
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
nazistas. A tentativa de aplicação da justiça dos vencedores sobre os
perdedores é tamanha que um dos criminosos é subtraído de dentro do
território argentino, sem o consentimento desse Estado, afrontando sua
soberania e jurisdição14.
Noam Chomski, em obra festejada, critica duramente as atitudes dos
Estados Unidos com os prisioneiros alemães da Segunda Guerra Mundial,
que eram tratados de forma brutal por intermédio de uma política de
reeducação, que buscava doutriná-los a aceitarem as crenças americanas.15
Aos militares dos EUA, que brutalmente agiram contra prisioneiros
de guerra, tipificando crimes previstos no próprio rol estipulado pelos
Aliados no Acordo de Londres instituidor do Tribunal de Nuremberg
(1945), nenhum julgamento ocorreu, tampouco lhes foi imposto alguma
sanção. A balança da justiça pendeu somente para os derrotados, que
fracamente podiam revidar.
Os Tribunais de Nuremberg e Tóquio foram Tribunais de exceção,
extintos logo após o julgamento dos crimes cometidos na Segunda
Guerra Mundial, sem prévia estipulação legal, com denúncias aleatórias
dos supostos criminosos de guerra, com o intuito máximo de manter a
hegemonia do poder às grandes potências. Conforme Noam Chomski,
Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos
rivais industriais, aos Estados Unidos ela propiciava enormes benefícios.
Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que
triplicou.
Mesmo antes da guerra, os Estados Unidos já eram de longe o principal
país industrial do mundo como o eram desde a virada do século.
Mas, nesse momento, possuíamos literalmente 50% da riqueza mundial
e controlávamos os dois lados dos dois oceanos. Nunca houve um período
na história em que uma nação tenha tido um controle e uma segurança do
mundo tão esmagadores16.
Os países vencedores do grande combate criaram, em 1945, a
Organização das Nações Unidas (ONU), que tinha por objetivo evitar
novos confrontos, garantir a segurança internacional, o progresso e o
desenvolvimento social, bem como a paz mundial. Fácil verificar, da
simples análise de sua estrutura orgânica, que a formação desse organismo
internacional buscava manter a hegemonia dos países vencedores da
Segunda Grande Guerra.
14 Ibidem, p. 851.
15 CHOMSKI, Noam. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 24.
16 Idem, p. 5.
156
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
Desde sua formação, entretanto, a ONU testemunhou mais de uma
centena de conflitos que causaram grandes destruições nas civilizações,
superando, em 2003, a exorbitante cifra dos vinte milhões de mortos17.
Dentre os órgãos que integram as Nações Unidas, o Conselho de
Segurança é o principal, pois que sua finalidade é manter a paz e a
segurança internacional. O Conselho é formado por cinco membros
permanentes e dez membros rotativos. As cinco potências permanentes
são os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a China e, desde 1992, a
Rússia18. Somente esses países possuem poder de veto sobre as decisões
do Conselho. Logo, podem, atendendo aos seus próprios interesses,
determinar quais ações serão tomadas sem que lhes acarretem prejuízos19.
A maior crítica ao sistema de veto do Conselho de Segurança está ligada
à flagrante desigualdade de direitos que têm os demais Estados-membros
da ONU, que ficam à mercê daquilo que for decidido por tão somente
cinco Estados (os com cadeira permanente no Conselho) numa situação
de conflito internacional, ou que envolva questões importantes para a
sociedade internacional como um todo.20
O Conselho, que conta com a assessoria da Comissão de Estado-Maior,
composta pelos chefes de Estado Maior dos membros permanentes, é
o único órgão da ONU que possui poder mandatário, sendo de caráter
obrigatório o cumprimento de suas decisões, que discutem questões de
caráter militar, inclusive quanto a autorização de investida bélica21.
Após os julgamentos ocorridos nos Tribunais de Nuremberg e Tóquio,
o mundo entra no colapso da Guerra Fria, onde duas potências militares
e nucleares se digladiam em territórios de países alheios. Como duas das
cinco potências detentores do veto no Conselho de Segurança da ONU se
encontravam em combate, o organismo permaneceu inerte em relação a
sua influência para frear os conflitos armados22.
17 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 862.
18 É importante frisar que a Rússia ingressa como membro permanente após o final da Guerra Fria (na qual
EUA e Rússia travaram conflitos na iminência de um combate nuclear em territórios distintos dos seus, por meio
do financiamento de pequenos países para que combatessem entre si). A aceitação de um país no Conselho de
Segurança, cinquenta anos depois, demonstra claramente que as quatro grandes potências não poderiam sofrer
a influência de um Estado que detinha conhecimentos nucleares. O melhor era torná-la aliada no jogo do poder.
19 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 624.
20 Idem, p. 625.
21 Ibidem, p. 627.
22 Trindade, Antonio Augusto Cançado (Op. Cit, p. 695) explica que “Ao longo da década de noventa, o Conselho
de Segurança tem atuado em uma diversidade de situações, que incluem os conflitos internos no Iraque (1991),
Iugoslávia (1991) e Somália (1992), os conflitos civis na Libéria e Angola (1992-1993), as violações generalizadas
do direito humanitário na Bósnia (1993), e as maciças crises humanitárias decorrentes dos conflitos em Ruanda,
Burundi, Zaire, Albânia, Kosovo, Timor Leste e Serra Leoa (1994-1999). O Conselho de Segurança, em mais de uma
ocasião, tem se deixado guiar por uma ampla visão do que possa constituir uma ameaça à paz, - o que contrasta
claramente com sua virtual paralisia durante o período da guerra fria.
157
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
No início da década de noventa, os Estados Unidos saíram-se vitoriosos
da Guerra Fria e novamente aplicam a justiça dos vencedores aos
perdedores. O panorama mundial apresenta uma substancial mudança
nos eixos econômicos e assim têm início conflitos armados que violam os
direitos humanos, constituindo-se novos tribunais de exceção para julgar
os vencidos23.
A Guerra dos Bálcãs começa em 1991, quando a Eslovênia e a Croácia
declararam guerra contra a Iugoslávia, sendo que o conflito armado tem
longa duração, incluindo combates na Bósnia-Herzegovina. O Conselho de
Segurança da ONU decidiu, em maio de 1993, por meio das resoluções
808 e 82724, a constituição de um Tribunal ad hoc para julgar os casos de
crimes cometidos durante aqueles conflitos armados.
O Tribunal Penal para julgar crimes cometidos na Ex-Iugoslávia,
suplantado pelas premissas de Nuremberg, foi criado exclusivamente
para julgar os acusados de assassinatos em massa, detenção sistemática
organizada, estupro de mulheres e prática da limpeza étnica ocorridos
naqueles conflitos.25 Alexis Augusto Couto de Brito afirma que
[...] A competência ratione materiae do Tribunal é para o processo das
violações às Convenções de Genebra de 1949, violação das leis ou
costumes de guerra, crimes de genocídio e crimes contra a humanidade,
ocorridos desde 1991.26
Conforme Flávia Piovesan, até o ano de 2011, o Tribunal Penal para
a Ex-Iugoslávia, com sede na cidade de Haia, nos Países Baixos, já
tinha indiciado 161 pessoas pela prática de violações graves ao Direito
Internacional Humanitário. Desses, 126 acusados já foram sentenciados
com 13 absolvições, 64 condenações e 13 encaminhamentos à jurisdição
nacional. Outros 36 tiveram sua acusação retirada ou morreram no
transcurso processual27.
Em julho de 1994, o Conselho de Segurança da ONU criou uma
Comissão de Investigação sobre as atrocidades ocorridas na guerra civil em
Ruanda28. Com base nos relatórios apresentados pela referida Comissão,
23 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais, ano 94, v. 840, out
2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 479.
24 O texto integral das resoluções pode ser obtido em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/
N93/098/21/IMG/N9309821.pdf?OpenElement e http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/306/28/
IMG/N9330628.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov 2012.
25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70.
26 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Op. Cit., p. 480.
27 PIOVESAN, Flávia. Op. Cit., p. 76.
28 Brito, Alexis Augusto Couto de. (Op. Cit., p. 480) explica como eclodiu o conflito civil em Ruanda: “Na
história de Ruanda, o grupo tribal Tutsi foi a elite minoritária e aristocrática que controlou cerca de 85% da
população de etnia Hutu. Após a independência da colônia, controlada pela Bélgica até 1962, os Hutus controlaram
as forças militares até 1994, quando a morte do presidente de Ruanda incitou os Hutus ao enfrentamento da
Frente Patriótica Ruandesa, formada pelos Tutsi, o que deu início a uma verdadeira carnificina. Em abril de 1994,
158
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
o órgão decide pela criação de mais um Tribunal ad hoc, o Tribunal Penal
Internacional para Ruanda inspirado no Estatuto do Tribunal para a ExIugoslávia, por meio da resolução no. 95529.
O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com sede em Arusha,
na Tanzânia, até maio de 2011, somente havia decidido 50 casos com 8
absolvidos. Desses, 8 acusados aguardam decisão em sede de apelação,
2 tiveram a acusação retirada, 3 morreram e 11 estavam foragidos.30 As
penas impostas se mostraram pesadas, com 18 casos de prisão perpétua,
11 penas maiores que 25 anos e 13 menores que 25 anos31.
Os dois Tribunais, para a Ex-Iugoslávia e para a Ruanda, foram criados
pelo Conselho de Segurança, órgão responsável pela manutenção da paz
e da segurança internacionais.
Nos três casos em que foram criados tribunais ad hoc (Nuremberg, ExIugoslávia e Ruanda) a criação destes órgãos jurisdicionais estava eivada
de poderosa margem política, com notória parcialidade, que vai desde a
escolha dos julgadores, sempre atrelada aos vencedores do combate, até
na aplicação de duras penas que contrariam direitos humanos, como o
caso da pena de morte.
Além desses casos, é importante destacar a criação de outros dois
Tribunais de exceção, a Corte Especial para Serra Leoa e as Câmaras
Extraordinárias nos Tribunais do Camboja. Ambos as cortes foram criadas
pelo Conselho de Segurança32, com condução conjunta entre o Governo
local e a ONU, devendo, no primeiro caso, julgar os acusados do conflito
ocorrido em Serra Leoa33, depois de novembro de 1996 e, no segundo
caso, os líderes do Khmer Vermelho pelo golpe de Estado, realizado entre
Habyarimana, presidente de Ruanda, juntamente com o presidente do Burundi, são mortos quando o avião em que
viajavam é derrubado ao sobrevoar Kigali. A Frente Patriótica de Ruanda lança uma ofensiva e a milícia extremista
Hutu, com a colaboração de integrantes do Exército ruandês, começa um massacre sistemático de Tutsis. Em cem
dias, cerca de 800 mil Tutsis e Hutus moderados são mortos. Milicianos Hutus fogem para o Zaire (depois batizado
de República Democrática do Congo). Cerca de dois milhões de refugiados Hutus também fogem com os milicianos.
29 Texto integral da Resolução disponível em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/140/97/
PDF/N9514097.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov. 2012.
30 O Tribunal de Ruanda foi seriamente criticado por sua pouca efetividade ante o alto custo empreendido pelas
Nações Unidas que, entre 2002 e 2003, destinou ao Tribunal quase 180 milhões de dólares. (BRITO, Alexis Augusto
Couto de. Op. Cit., p. 481)
31 PIOVESAN, Flavia. Op. Cit., p. 77.
32 A Corte Especial para Serra Leoa foi criada por meio da resolução n. 1315 de 2000. Disponível em ONU:
http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/605/32/PDF/N0060532.pdf?OpenElement. Acesso em: 17
nov 2012; e o
33 Os conflitos em Serra Leoa ocorreram pelo choque entre o Governo e a Frente Revolucionária Unida (FRU).
O movimento guerrilheiro desejava conduzir um Golpe de Estado, pois seus líderes estavam insatisfeitos com os
abusos de poder e corrupçãodo então presidente Joseph Momoh. O conflito foi conhecido pelo uso de crianças
como soldados e ainda pelo financiamento feito pelos “diamantes de sangue” (pedras preciosas que eram
mineradas por pessoas em condições análogas a de escravos). Disponível em: http://www.brasilescola.com/
geografia/serra-leoa.htm. Acesso em 17 nov. 2012.
159
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
1975 a 197934, com a execução de mais de 1 milhão e 700 mil pessoas35.
4º da Carta das Nações Unidas39.
Todos os Tribunais mencionados foram financiados pelas potências
hegemônicas, que anteriormente também financiaram os conflitos,
deixando os países de fraca posição política e econômica com rastro de
destruição e mazela. Conforme assinala Noam Chomski,
Na abertura da 16ª Cúpula dos Países Não Alinhados40, em Teerã,
na presença do Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, o
Presidente do Irã, Ali Khamenei, declarou que “O Conselho de Segurança
das Nações Unidas é uma estrutura irracional, injusta e totalmente
antidemocrática, que constitui uma ditadura”41. Essa declaração mostra
que, aos olhos de parte da comunidade internacional, as atividades do
Conselho de Segurança visam somente garantir a manutenção do poder
das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial42.
Para sangrar o Vietnã, nós apoiamos indiretamente o Khmer Vermelho por
intermédio de nossos aliados, China e Tailândia. Os cambojanos tiveram de
pagar com sangue até estarmos seguros de que não haveria recuperação
no Vietnã. Os vietnamitas foram punidos por terem enfrentado a violência
norte-americana36.
No Kosovo, situado no território da antiga Ex-Iugoslávia, a OTAN realizou
um ataque37 sem a autorização do Conselho de Segurança e sob nenhuma
base internacionalmente jurídica, mas não teve nenhum de seus líderes
ou militares julgados pelo Tribunal Penal Internacional para Ex-Iugoslávia.
Três denúncias formais foram apresentadas contra os vencedores, mas
em todos os casos o Tribunal decidiu arquivar as denúncias sem qualquer
investigação, por considerá-las manifestamente infundadas. Segundo
Danilo Zolo,
Las razones jurídicas aducidas por la fiscalía del tribunal para justificar el
archivo de estas gravíssimas acusaciones remiten a la general “conducta
responsable” de la OTAN, que jamás habría usado la fuerza para provocar
“directa o indirectamente victimas civiles”, a la ausencia de intencionalidad
dolosa y al caráter completamente accidental de algunos errores técnicos
o de algunas carencias en la informacion38.
A aplicação da justiça para os perdedores mostra que o cenário
internacional, por influência das potências vencedoras nos Tribunais ad
hoc, sancionou as violações ao jus in bello. Mas, deixou de condenar os
crimes da chamada “guerra de agressão”, que diz respeito ao artigo 2º, p.
34 Desde 1954, o Camboja era liderado pelo príncipe Norodom Sihanouk. Os conflitos no território cambojano
ocorreram com a instabilidade ocasionada pela Guerra no Vietnã (1959-1975), principalmente quando o Governo
Americano ordenou, em 1969, o bombardeio das fronteiras Cambojanas. O frágil regime de Sihanouk não resistiu
e, em 18 de março de 1970, sofreu um golpe de Estado liderado pelo General Lon Nol. O khmer vermelho surgiu
sob as bases do Partido Comunista do Camboja e passou a invadir e dominar territórios cambojanos. Em 17 de
abril de 1975, o Khmer, num golpe de estado, toma o poder do país e instala um regime de trabalho forçado,
com torturas, assassinatos e desaparecimento de pessoas. Conforme FRANKE, Bruno Scalco. Tribunais Híbridos:
O caso das câmaras extraordinárias nas cortes do Camboja. 2010. Disponível em: http://idejust.files.wordpress.
com/2010/04/ii-idejust-franke.pdf . Acesso em: 17 nov. 2012.
35 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais, ano 94, v. 840, out
2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 482.
36 CHOMSKI, Noam. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasília: Universidade de Brasilia, 1999, p. 36.
37 O ataque usou das mortíferas bombas cluster, que são proibidas por tratado internacional ratificado pelos
países da OTAN e de projéteis que dispersam urânio (material radioativo) que contamina o solo, a água e os
alimentos, causando, a longo prazo, tumores, leucemias, nascimento de fetos deformados etc. (ZOLO, Danilo. La
Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p. 46-47).
38 Idem, p. 46.
160
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
Na visão de Antonio Augusto Cançado Trindade, “O certo é que
o Conselho de Segurança ainda não se renovou institucionalmente,
continua apegado a uma estrutura de poder anacrônica e a um processo
decisório autocrático e visto pela imensa maioria dos países do mundo
como oligárquico e injusto”43.
Nas guerras do Golfo, na Somália, em Ruanda, no Haiti, na BósniaHerzegovia e no Kosovo, os Estados detentores de grande poder econômico
tiveram a anuência do Conselho de Segurança para conduzirem operações
militares de “paz forçada”. As operações, com poderes ilimitados, foram
autorizadas por aquele Conselho que, na verdade, abdicou de sua
principal função, qual seja, impedir e limitar o uso da força nos conflitos
internacionais44.
No ano de 1998, após árduo processo de negociação e a oposição
veemente dos Estados Unidos, foi adotado o Estatuto de Roma, dando
origem ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que, diferente de seus
antecessores, tem caráter permanente, respeitando os princípios da
legalidade e anterioridade penal45.
39 Carta da ONU, Artigo 2 - A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no
Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: [...] 4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações
internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer
Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. Texto completo da Carta está
disponível em PLANALTO: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm Acesso em: 5
nov. 2012.
40 O Movimento dos países não alinhados é uma associação que reúne 115 países, em geral nações em
desenvolvimento, com o objetivo de criar um caminho independente no campo das relações internacionais. Acerca
do NAM, visitar a homepage: http://www.nam.gov.za/background/history.htm. Acesso em 17 nov. 2012.
41 Disponível em AGÊNCIA BRASIL: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-08-30/lider-religioso-do-iracobra-reformas-no-conselho-de-seguranca-da-onu. Acesso em: 28 out. 2012.
42 CHOMSKI, Noam (Op. Cit., p. 35) aponta que “desde 1970, os Estados Unidos têm vetado muito mais
resoluções no Conselho de Segurança do que as outras nações (a Inglaterra em segundo lugar, a França em terceiro
e a URSS em quarto)” na tentativa de bloquear a atuação da ONU que busca de uma igualdade política.
43 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 699.
44 ZOLO, Danilo. Op. Cit.,.p. 34.
45 Referidos alicerces encontram-se encampados (grifos nosso) nos artigos 1°: “É criado, pelo presente
instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com
jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo
com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento
do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto”; 11: “1. O Tribunal só terá competência relativamente aos crimes
161
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
O Estatuto de Roma teve sua entrada em vigor no dia 1º de julho
de 200246, mas desde 1948 já se cogitava de sua criação. A década de
noventa, marcada pelos conflitos da Iugoslávia e de Ruanda, reascendeu
a discussão para sua criação, muito embora o projeto inicial tenha sido
rejeitado por não se preocupar com as aspirações político jurídicas dos
países hegemônicos47.
É notório identificar que até a propositura do TPI, quase todos os
processos por infrações ao Direito Internacional Humanitário correram
a cargo de Tribunais de exceção, criados e constituídos pela parte
vencedora do conflito beligerante, e possuíram caráter de transitoriedade,
parcialidade, além de forte carga política e militar48.
Uma importante diferença que o TPI traz refere-se ao seu caráter de
complementariedade, disposto no art. 1º do Estatuto de Roma49. Nesse
sentido, o Tribunal somente terá sua jurisdição mediante a incapacidade
ou inexistência de Poder Judiciário nacional capaz de exercer o julgamento.
A competência do Tribunal, por sua vez, está delineada nos artigos 5º
ao 9º do Estatuto de Roma, que previram: os “crimes de genocídio, como
qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um
grupo nacional, étnico, racial ou religioso; os crimes contra a humanidade,
definidos pelo Estatuto como todo ato cometido no quadro de um ataque,
generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil; os crimes de
guerra, que são aqueles cometidos como parte integrante de um plano ou
de uma política ou como parte de uma prática em larga escala e o crime
de agressão50.
cometidos após a entrada em vigor do presente Estatuto. 2. Se um Estado se tornar Parte no presente Estatuto
depois da sua entrada em vigor, o Tribunal só poderá exercer a sua competência em relação a crimes cometidos
depois da entrada em vigor do presente Estatuto relativamente a esse Estado, a menos que este tenha feito uma
declaração nos termos do parágrafo 3o do artigo 12” e 22: “1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente
responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver
lugar, um crime da competência do Tribunal. 2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e
não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de
inquérito, acusada ou condenada. 3. O disposto no presente artigo em nada afetará a tipificação de uma conduta
como crime nos termos do direito internacional, independentemente do presente Estatuto.” Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 30 out 2012.
46 O Brasil promulgou o Estatuto de Roma e, portanto, está sob a jurisdição do TPI, por meio do decreto n.
4.388 de 15 de setembro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.
html. Acesso em: 29 out 2012.
47 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. Cit., p. 941
48 SEGUCHI, Erika. Precedente Histórico da Criação do Tribunal Penal Internacional. Revista da Faculdade de
Direito de Machado, v. 1, n. 1, jul/dez. Machado: IMES/FUMESC, 2004. p. 84.
49 Artigo 1°: “É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será
uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com
alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A
competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto”. Obtido em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 30 out. 2012.
50 No artigo 5°, são definidos os crimes de competência do TPI, e nos artigos seguintes há a tipificação dos delitos
penais internacionais. Para maior aprofundamento do tema, ver o Estatuto na íntegra em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm
162
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
Salutar demonstrar que o crime de agressão, ainda que tenha sido
estipulado no rol de tipos penais sob jurisdição do TPI, é afastado da
competência do Tribunal, pelo artigo 5º do Estatuto de Roma, que requer
disposição posterior definindo o crime51.
Consoante ao artigo 16 do referido Estatuto, pode o Conselho de
Segurança solicitar que o inquérito ou procedimento crime seja adiado
por um período de 12 a 24 meses (no caso de renovação do pedido),
impedindo a investigação dos vencedores52.
Outra importante nota aplicável ao TPI refere-se a sua possibilidade
de estender a jurisdição a países não signatários do Estatuto de Roma.
O art. 13, b53 da norma estipula que o Conselho de Segurança poderá
encaminhar denúncia ao procurador nas situações que haja indícios do
cometimento de crimes internacionais.
Com todos os louvores recebidos54, a aprovação do TPI se deu graças
à ação conjunta dos países latino-americanos, de delegações africanas
e ainda de alguns países do leste europeu, que 120 votos favoráveis
aprovaram o projeto55.
Em contrapartida, as grandes potências permaneceram relutantes,
chegando a delegação dos Estados Unidos a declarar que o julgamento de
alguns de seus militares ou dirigentes seria inaceitável56. Como também
que a cooperação internacional somente ocorreria se acordos bilaterais
prévios garantissem a imunidade de seus soldados, conforme o artigo 9857
51 Artigo 5°: “1. [...];2. O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde
que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem
as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível
com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/2002/D4388.htm. Acessado em: 30 out. 2012.
52 O artigo 16 assim traduz a matéria:” Nenhum inquérito ou procedimento crime poderá ter início ou prosseguir
os seus termos, com base no presente Estatuto, por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho
de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das
Nações Unidas; o pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições”. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acessado em: 30 out 2012.
53 Reza o artigo; O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se
refere o artigo 5o, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se: [...] b) O Conselho de Segurança, agindo
nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja
indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes;” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em: 18 nov 2012.
54 PIOVESAN, Flavia. (Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 83) mais
otimista com a aplicação do TPI averba: “Consagra-se o princípio da universalidade, na medida em que o Estatuto
de Roma se aplica universalmente a todos os Estados-Partes, que são iguais perante o Tribunal Penal, afastando
a relação entre “vencedores” e “vencidos”. Com toda a vênia possível ousamos discordar da renomada Autora
conforme as linhas expostas no trabalho.
55 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Op. Cit., p. 947.
56 CASELLA, Paulo Borba. Op. Cit., p.855.
57 Artigo 98: “1. O Tribunal pode não dar seguimento a um pedido de entrega ou de auxílio por força do qual
o Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem à luz do direito
internacional em matéria de imunidade dos Estados ou de imunidade diplomática de pessoa ou de bens de um
Estado terceiro, a menos que obtenha, previamente a cooperação desse Estado terceiro com vista ao levantamento
da imunidade. 2. O Tribunal pode não dar seguimento à execução de um pedido de entrega por força do qual o
Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem em virtude de acordos
internacionais à luz dos quais o consentimento do Estado de envio é necessário para que uma pessoa pertencente a
163
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
do Estatuto de Roma58.
Fato é que os Estados Unidos jamais ratificaram o Estatuto de Roma e
atuam em guerras espalhadas pelo globo de forma a prejudicar o trabalho
do TPI, explorando a seu favor as regras impostas pelo referido Estatuto.
Dez anos após a instalação do TPI, suas ações parecem pender somente
para a investigação e acusação de países pequenos e com menores
influências políticas, deixando os vencedores sob o manto da proteção
supranormativa, alicerçado no poder político, econômico e global.
Em 2004, foram instauradas duas investigações na África, uma na
República da Uganda e outra na República Democrática do Congo, sendo
que em 2005 o TPI determinou seu primeiro mandado de prisão para o
Líder da Resistência Armada em Uganda, Joseph Kony. Em 2007, também
foram abertas investigações na República Centro Africana, com mandando
de prisão em face de Jean-Pierre Bemba Gombô, acusado de crimes de
guerra59.
Paralelamente, em 2005, o TPI instaurou investigações na região de
Darfur, no Sudão, que culminou na expedição, em 2007, de mandado
de prisão para Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman e Ahmad Muhammad
Harun, supostos líderes da milícia, e, em 2009, também para Omar AlBashir, presidente do Sudão60.
Por meio da resolução n. 1970/2011, o Conselho denunciou, sob
o suporte do art. 13, b, do Estatuto, os conflitos no Estado Libanês. As
investigações se mostraram nefastas: quatro investigadores do TPI foram
presos preventivamente por 45 dias e foram liberados após negociações
internacionais61.
Posteriormente, foram expedidos mandados de prisão contra o ditador
da Líbia, Muammar Gaddafi, de seu filho, Saif Al-Islam Gaddafi, e do
chefe de inteligência, Abdullah Al-Senussi. Os três suspeitos libaneses
e os líderes sudaneses não foram presos, pois nos dois casos o TPI não
possuía jurisdição para requerer a intervenção da polícia local, sendo
todos os denunciados considerados foragidos, mesmo ocupando cargos
no governo local62.
esse Estado seja entregue ao Tribunal, a menos que o Tribunal consiga, previamente, obter a cooperação do Estado
de envio para consentir na entrega.”
58 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da escola
de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005. p. 696.
59 A situação detalhada dos processos abertos pelo TPI, tais como procedimentos adotados, mandatos de prisão,
decisoes, etc., encontram-se amplamente divulgados no site oficial da Corte em: http://www.icc-cpi.int/Menus/
ICC/Situations+and+Cases/. Acesso: 17 nov 2012.
60 Idem.
61 Disponível em VEJA: http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/equipe-do-tpi-na-libia-em-prisaopreventiva-por-45-dias. Aceso em: 18 nov 2012.
62 Disponível em CONJUR: http://www.conjur.com.br/2011-jun-27/tribunal-penal-internacional-mandaprender-presidente-libia. Acesso em 18 nov 2012.
164
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
Por fim, em 2010 e 2011, o TPI apresentou processos de investigação
sobre supostos crimes internacionais ocorridos no Estado do Quênia entre
2007 e 2008, sobre a situação do Estado Libanês e sobre possíveis crimes
internacionais na Costa do Marfim63.
O fato de que os seis casos atualmente diante do TPI envolvem
africanos, conjugado aos esforços empreendidos pelos países ocidentais
para imunizar seus soldados que combatem em território estrangeiro,
e que cometem crimes enquadrados na jurisdição do Tribunal, provoca
grande desconfiança na África. Resta lembrar que passam longe do TPI os
crimes cometidos pela Rússia na Chechênia, pelos EUA e pela Inglaterra
no Iraque e no Afeganistão, e por Israel na Palestina e no Líbano64.
A pergunta posta pelo presidente da Comissão da União Africana ilustra
bem a desconfiança: “o Procurador do TPI só condena africanos, só julga
africanos... será que os problemas só existem na África?”. A questão é
legítima, principalmente quando lembramos que potências como EUA,
China e Rússia (sem falar de Israel) não são Estados-Partes do TPI, muito
embora pretendam impor sua jurisdição aos países africanos, ao mesmo
tempo em que recusam submissão a ele65.
A justiça internacional de medidas desiguais se faz também presente
no TPI. Enquanto as potências hegemônicas não aceitam sua jurisdição,
mantendo sob o manto da impunidade suas ações e dirigentes, essas
participam, por meio do Conselho de Segurança, de denúncias e
investigações nos países que lhe aprouverem. São países que detém a
força de determinar investigações e até mesmo intervenção militar sobre
outros países, sem sofrerem qualquer represália jurídica. Os casos da Líbia
e Sudão mostram claramente os dois pratos da justiça.
Por todo o transcurso da história, a justiça internacional dos crimes
humanitários foi aplicada por dois prismas diferentes: um na visão dos
vencedores, que se mantinham impunes de qualquer julgamento, pois
detinham a espada da justiça; e outro na visão dos vencidos, que se
obrigavam às mordaças, por vezes extremadas, de seus agressores. Mas,
será que aos novos conflitos a justiça internacional ainda reflete duas
medidas diferentes?
A nova ordem mundial não aceita que os países se mantenham na
neutralidade, mas antes requer sua participação em múltiplos acordos
entre os países e as instituições internacionais. Ocorre que, sob a égide
63 As decisões do Tribunal e de suas câmaras podem ser encontradas em: http://www.icc-cpi.int. Acesso em:
29 out 2012.
64 Disponível em CARTA MAIOR: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5522.
Acesso em 17 nov. 2012.
65 Idem.
165
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
de manutenção da segurança mundial, muitas alianças bélicas também
são realizadas.
O pensamento de José Maria Gómez parece consolidar os
acontecimentos que vivenciamos com a cultura da guerra global:
[...] o panorama da política mundial não é, sem dúvida, dos mais
animadores: unilateralismo belicoso de uma única superpotência
infringindo o direito internacional e as instituições e práticas multilaterais,
com perda de legitimidade hegemônica em vários lugares do planeta;
ascensão vertiginosa da questão da segurança nas agendas nacionais,
regionais e global; disseminação nas próprias democracias liberais
de políticas “contraterroristas” que suspendem o Estado de Direito e
reduzem certas pessoas a meros corpos sem direitos; expansão de redes
de terrorismo islamita desterritorializado, tecnologizado e absolutizado
em sua dimensão teológico-política; justificação da “guerra preventiva”
como instrumento indispensável para enfrentar situações de “conflito
assimétrico” e suprimir as ameaças de uso de armas de destruição em
massa por parte dos “inimigos da humanidade” – terroristas islâmicos e
Estados “párias”; deflagração de guerras de agressão entre Estados (em
especial, as dos EUA contra o Afeganistão e o Iraque) e existência de
conflitos armados e guerras civis em Estados fracos ou em colapso, com
suas sequelas de destruição, morte, ódio e desestabilização regional;
tentativas de reconfiguração espacial do direito internacional, reeditando
antigas dicotomias entre a força da lei para os civilizados e a força sem lei
para os “bárbaros.”66
Danilo Zolo chama os novos conflitos de “guerra global”. Alude o autor
que o processo de mudança da antiga guerra para a guerra global ocorreu
em quatro conflitos distintos: a guerra do Golfo de 1990, as guerras nos
Bálcãs, ocorridas no período de 1991 a 1999 e as guerras permanentes no
Afeganistão, iniciada em 2001, e no Iraque, que teve início em meados de
2003.67
Acrescenta ainda o referido autor que “Trata-se de eventos bélicos
que se desenvolveram todos sob o mesmo suporte político-econômico.
[...] A circunstância não pode ser considerada casual do ponto de vista
geopolítico e geoeconômico em uma área relativamente restrita do
planeta”, que representa uma das maiores reservas de recursos enérgicos
do planeta.68
A nova guerra, para Danilo Zolo, é compreendida sob quatro aspectos
primordiais, quais sejam, o geopolítico, o sistêmico, o normativo e o
66 GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização
e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago. 2008. Rio de
Janeiro: PUC, 2008, P. 282.
67 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianopolis:
Conceito Editorial, 2010, pp. 94-98.
68 Idem, p. 94.
166
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
ideológico.69 No sentido geopolítico, a guerra deixa de ser influenciada
pelos espaços do tempo e do território. As maiores potências econômicas
e militares realizam combates para manter uma ordem global que garanta
o acesso livre às fontes energéticas, bem como ao desenvolvimento
econômico e industrial. A nova guerra deseja controlar a hegemonia
mundial sem interferir nas dimensões territoriais.70
Quanto ao aspecto sistêmico, a nova guerra utiliza-se de vantagens
nucleares, de informática e inteligência para manutenção de um poder
hegemônico, ditando as regras do poder. Os países poderosos utilizam
do terror de armas nucleares, ao mesmo tempo em que impedem que
outros países tenham tais armas.71
O conflito ocorre em uma disparidade de tecnologias, em que grandes
poderios bélicos combatem pequenas forças militares, que são incapazes
de reação ou mesmo do vislumbre da vitória. No combate entre Israel e
as forças do Hamas, na faixa de Gaza, a Força Aérea Israelense possuía
mais de quatrocentas aeronaves de ataque, entre caças e helicópteros de
ataque, enquanto o grupo Hamas combatia através de pequenas milícias,
com armamento de pouca força bélica, normalmente armas individuais
ou de pouco alcance.72 Para Noam Chomski, o que as potências desejam
é manter uma linha de participantes de forma obediente, como meros
espectadores, uma comunidade de indivíduos que não conseguem unir
seus recursos para tornarem-se uma força capaz de desestruturar o poder
concentrado.73
No plano normativo, a guerra é aquela que se esquiva da proibição do
uso da força, estipulada nas normas internacionais. O conflito vai contra
regras estipuladas no plano internacional, ao arrepio de acordos, tratados
ou mesmo organismos, como por exemplo, a Organização das Nações
Unidas e seu Conselho de Segurança. A hegemonia deve ser mantida
através da aplicação de uma justiça que dá privilégios e garantias às
potências.74 Fábio Comparato denuncia que
O acesso dos Estados Unidos à condição de potência hegemônica mundial,
após o esfacelamento da União Soviética, constitui séria ameaça à
reorganização das relações internacionais num sentido comunitário. O
último tratado internacional de direitos humanos integralmente ratificado
pelos Estados Unidos foi o Pacto aprovado pelas Nações Unidas em 1966,
69 Ibidem, p. 90-92.
70 ZOLO, Danilo. Op. Cit., p. 95
71 Idem, p. 96.
72 HONORATO, Marcelo. O Direito de Matar e os Ataques Israelenses à Faixa de Gaza. 2009. Disponível em
JUS NAVIGANDI: http://jus.com.br/revista/texto/12209/o-direito-de-matar-e-os-ataques-israelenses-a-faixa-degaza/2#ixzz2Bdxeo1ZX. Acesso em 28 out. 2012.
73 CHOMSKI, Noam. Op. Cit., p. 33.
74 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010, p. 98.
167
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
sobre direitos civis e políticos. O Pacto gêmeo sobre direitos econômicos,
sociais e culturais teve sua ratificação rejeitada pelo congresso norteamericano. A partir de então, os Estados Unidos vêm se recusando,
sistematicamente, a se submeter às normas internacionais de proteção
aos direitos humanos, por considerarem que isto implica uma limitação
de sua soberania.75
Como último conceito de guerra global, tem-se o caráter ideológico em
que as grandes potências procuram promover guerras sustentadas pelo
ideal de inclusão de valores ditos universais. A cultura dos vencedores é
aplicada sobre seus vencidos como a melhor cultura, a máxima ideologia
libertária, o correto direito humano76.
As quatro formas de guerra global demonstram a permanência da
justiça aplicada pelos vencedores aos vencidos com fortes influências
econômicas e de manutenção do poder. As ingerências que ocorrem
atualmente no Irã demonstram fortemente uma futura guerra ante sua
relevância geopolítica e geoestratégica. Por conter uma das maiores
reservas de petróleo do planeta (o Golfo Pérsico), capazes de abalar
o comércio dessa energia, elevando o barril do petróleo a altíssimos
preços e maximizando o lucro das potências mundiais, notadamente dos
Estados Unidos, e ainda, por sua posição geoestratégica, que interliga
o subcontinente indiano ao Mar Mediterrâneo, “a ocorrência da guerra
parece demonstrar o único meio de resolver quem é o líder do mundo
islâmico”77.
O possível conflito no Irã reveste-se do combate global sistêmico, em
que as potências detentoras de tecnologia nuclear tentam impedir que
o país, que publicamente declarou estar realizando testes com energia
nuclear para fins pacíficos, adquira tal tecnologia. Somado a estes conflitos
vemos a marcha empreendida contra a “Guerra ao Terror”. A bandeira
levantada após os ataques de onze de setembro, incitou os Estados Unidos
a realizarem caçadas mundiais contra grupos terroristas que compunham
o chamado “Eixo do Mal”78. Consoante a isso, Danilo Zolo diz que
75 COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
543.
76 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da Escola
de Direito e Relações Internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004, p. 204-205.
77 Estas palavras foram proferidas pelo presidente do Instituto de Estudos sobre o Oriente Médio, Evguêni
Satanóvski. Disponível em DEFESANET: http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/7422/Tambores-deGuerra---Ameaca-de-conflito-no-Ira-e-real--diz-especialista-. Acessado em 30 out 2012.
78 “A expressão “Eixo do Mal” foi utilizada pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em seu discurso
anual no Congresso norte-americano em 2002, para se referir a três países (“Estados vilões”) que constituíam uma
grave ameaça ao mundo e à segurança dos Estados Unidos: Coréia do Norte, Irã e Iraque. Estes países, segundo
Bush, desenvolviam armas de destruição em massa ou patrocinavam o terrorismo regional e mundial, ou faziam
as duas coisas ao mesmo tempo. Mais tarde os Estados Unidos incluíram também Cuba, Líbia e Síria a este seleto
grupo de países. A expressão eixo do mal é uma dupla referência histórica: eixo lembra o eixo Berlim-Roma na
Segunda Guerra Mundial (nazifascismo) e mal retoma o termo império do mal, forma como o governo Reagan
se referia à União Soviética durante a Guerra Fria. Um eixo do mal mantém latente a ameaça exterior e justifica
a necessidade de manutenção de um expressivo orçamento, do governo Bush, na defesa.” MENDONÇA, Cláudio.
168
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
Hoy em dia la guerra global “preventiva”, teorizada y praticada por Estados
Unidos y sus aliados occidentales más afines, parece una prótesis necesaria
para el desarrollo de procesos de globalización que dividen cada vez más
al mundo em ricos y poderosos, por un lado, y pobres y débiles, por el
outro, mientras que el llamado global terrorism devino el contrapunto
igualmente sanguinário y nihilista del conflicto neocolonial que enfrenta
a Occidente con los países que se resisten a su pretension hegemónica
planetária79.
Enquanto as tropas americanas invadiam o Afeganistão, apoiados por
alianças que incluíam a OTAN, em seu combate ao terror, o Senado dos
Estados Unidos aprovava o Patriot Act, que suspendeu as restrições à
ação governamental com relação aos direitos civis. Também o governo
norte-americano emitiu, em novembro de 2001, ordem que autorizava
a detenção indefinida de estrangeiros, proibindo o acesso aos tribunais
existentes e, no caso de acusação, o Poder Executivo nomearia comissões
militares, como os antigos tribunais de exceção80.
Por outro lado, o governo estadudinense estabeleceu que os prisioneiros
talibãs ou membros da Al Qaeda (grupo combatido como célula terrorista)
não estavam amparados pelo artigo 3º, comum as Convenções de
Genebra81.Portanto, poderiam sofrer torturas, maus tratos, tratamentos
humilhantes e degradantes82.
Os Estados Unidos, juntamente com a OTAN, também invadiram o
Iraque, sem a aprovação do Conselho de Segurança, sob o pretexto de que
o país possuía armas biológicas de destruição em massa. Posteriormente,
o líder iraquiano, Saddam Hussein, foi perseguido, condenado à pena de
morte e enforcado, sob o ideal de implantação da democracia no Estado.
“Guerra contra o terrorismo e o eixo do mal”. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/
doutrina-bush-guerra-contra-o-terrorismo-e-o-eixo-do-mal.htm. Acesso em 2 nov. 2012.
79 ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p. 27.
80 GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização
e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago 2008. Rio de
Janeiro: PUC, 2008, p. 272-274.
81 O artigo 3°, comum as Convenções de Genebra, diz o seguinte: No caso de conflito armado que não apresente
um carácter internacional e que ocorra no território de uma das Altas Partes contratantes, cada uma das Partes no
conflito será obrigada aplicar, pelo menos, as seguintes disposições: 1) As pessoas que não tomem parte diretamente
nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham
sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as
circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor,
religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo. Para este efeito, são e manterse-ão proibidas, em qualquer ocasião e lugar, relativamente às pessoas acima mencionadas: a) As ofensas contra a
vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas
e suplícios; b) A tomada de reféns; c) As ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes
e degradantes; d) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem prévio julgamento, realizado por um
tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos
povos civilizados. 2) Os feridos e doentes serão recolhidos e tratados. Um organismo humanitário imparcial, como
a Comissão Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer os seus serviços às partes no conflito. As Partes no
conflito esforçar-se-ão também por pôr em vigor, por meio de acordos especiais, todas, ou parte, das restantes
disposições da presente Convenção. A aplicação das disposições precedentes não afetará o estatuto jurídico das
Partes no conflito. Disponível em: http://www.icrc.org/por/resources/documents/treaty/treaty-gc-0-art3-5tdlrm.
htm. Acesso em 3 out. 2012.
82 GOMEZ, José Maria. Op. Cit., p. 272.
169
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos
O final da invasão no Iraque, em junho de 2004, mostrou que as
supostas armas biológicas e químicas de destruição em massa jamais
foram encontradas, bem como as alegadas ligações de Saddam com
grupos terroristas islâmicos nunca foram comprovadas. Com isso, o
discurso norte americano passa a defender a intervenção no Iraque como
uma promoção para implantação da democracia e da paz, ante o governo
autoritário de Sadam Husseim83.
Sob todas estas ações, o governo norte-americano realizava
procedimentos para assegurar cobertura legal aos agentes, dando-lhes
amparo normativo para continuarem com os métodos alternativos de
investigação e tratamento aos presos84.Verifica-se que a bandeira de
combate ao terrorismo foi levantada pelos países dominantes, garantindo
a expansão de bases militares espalhadas pelo mundo, propiciando o
controle de pontos específicos e estratégicos, principalmente nas regiões
de riquezas e reservas de energia85.
Observe-se que a guerra contra o terrorismo também é utilizada por
China e Rússia, como arcabouço para acirrar o combate de seus adversários
políticos, generalizando conflitos civis, que criaram extremismos e
separações sociais.
A justiça de vencedores e vencidos, portanto, permanece no cenário
internacional, desde o início com a constituição do Tribunal de Nuremberg
e, até mesmo, após a criação do Tribunal Penal Internacional.
O sistema de segurança das Nações Unidas não pode se transformar
em meio de obtenção de carta de alforria para que as potências militares
realizem intervenções, com caráter político e hegemônico, em outros
países. Tampouco, organismos internacionais, como o caso da OTAN
na guerra do Kosovo, podem se aclamar porta-vozes da comunidade
internacional86.
A justiça desigual formada nos bancos dos Tribunais de exceção, desde
Nuremberg aos dias atuais, dá vivas mostras de privilégios aos vencedores
por seu poderio econômico, bélico e político.
A guerra global vem arraigada em ações manipuladas que, ao arrepio
das normas internacionais, sustentam as hegemonias no poder. Discursos
que defendem princípios humanos, criação de Estados democráticos,
83 Disponível em GLOBO: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL922333-5602,00-INVASAO+DO+IRAQ
UE+FOI+TAREFA+NECESSARIA+AFIRMA+BUSH+EM+VISITA+SURPRESA+AO+P.html e http://noticias.terra.com.br/
mundo/noticias/0,,OI698058-EI865,00-Bush+Deus+ordenou+invasao+do+Iraque+e+Afeganistao.html.
Acesso
em;18 nov. 2012.
84 Idem, p. 275.
85 Ibidem, p. 276.
86 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 697
170
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
combate a redes terroristas, mostram-se como meras fachadas para
ações dos vencedores na manutenção da condição de subordinação dos
vencidos. Ainda assim, a mudança é sentida na nova ordem mundial.
A necessidade cada vez maior de dependência e cooperação entre os
Estados, principalmente pelos países periféricos, confere os contornos
para o surgimento de uma nova justiça internacional. A criação de uma
jurisdição universal internacional mostra vivas esperanças de que a cultura
nascida sob a justiça dos vencedores acabe por ser banhada, no respeito
de uma ordem jurídica plasmada, em princípios superiores a vontades
políticas de mando e poder87.
A cooperação entre os Estados deve criar não somente alianças, que
mantenham a justiça de vencedores e vencidos, mas que aplique a justiça
com imparcialidade nos anseios de uma ordem cosmopolita.
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172
Ana Zaiczuk Raggio
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À
IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
Ana Zaiczuk RAGGIO1
Introdução
Este trabalho busca demonstrar que os interesses da população de
baixa renda se encontram fora do espectro de atuação dos representantes
políticos. Para tanto, irá se tratar da tardia implementação da Defensoria
Pública do Estado do Paraná. Isto pois se entende que a demora para
estruturação do órgão está a demonstrar um limite da representação
política, visto que é essencialmente destinado à referida população.
A iniciativa para a criação da Defensoria Pública, seja em âmbito
federal, como estadual, é privativa do chefe do poder executivo, conforme
expressão do artigo 61, § 1º, II, “d”, da Constituição de 1988 e, no caso
do Estado do Paraná, do artigo 66, III da Constituição estadual. Assim,
caberia ao Governador do Estado a proposição da Lei de regulamentação
do órgão.
O parágrafo único do artigo 1º da Constituição da República de
1988 prevê: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Os representantes políticos no Brasil são escolhidos em eleições livres
por meio do voto universal, direto e secreto. Ou seja, os representantes
são formalmente legitimados pelo povo. No entanto, sua atuação não
corresponde, acredita-se, aos anseios populares, não estando, se poderia
dizer, materialmente legitimados. As políticas públicas, o Direito em si,
não servem ao povo em toda a sua extensão.
A fim de aprofundar a presente proposição, realizaram-se 6 entrevistas2
com pessoas que de alguma forma estiveram ligadas ao processo de
implementação da Defensoria Pública do Paraná, com 5 perguntas
abertas, semi-estruturadas e qualitativas sobre a perspectiva política que
1 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba, Pós-Guaduanda em Direito Constitucional pela
Academia Brasileira de Direito Constitucional e em Gestão Pública com ênfase em: Sistema Único de Assistência
Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Residente Técnica do Departamento de Direitos Humanos e
Cidadania, da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos.
2 Foram entrevistadas a Professora e advogada criminalista, Priscilla Placha Sá; Miguel Gualano de Godoy,
Doutorando em Direito e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)
na UFPR; Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Professor; Tadeu Veneri, Deputado estadual; Carlos Enrique
Santana, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Londrina, coordenador estadual do Movimento Nacional
pelos Direitos Humanos e conselheiro do Conselho Municipal de Saúde de Londrina; Maria Tereza Uille Gomes,
Secretária de Estado da Justiça Cidadania e Direitos Humanos.
173
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
permeou o processo. Com as respostas, pretende-se complementar com
dados empíricos da realidade paranaense as teorias sobre representação
política.
Demandas como requisição de fornecimento de remédios para
tratamentos continuados ficam desprotegidas, não sendo levadas ao
conhecimento dos poderes constituídos, a título de exemplo.
A Constituição da República de 1988 criou no ordenamento jurídico
brasileiro a Defensoria Pública no artigo 134, in verbis:
Grande impacto se dá também quando da falta de defesa em processos
criminais. Enquanto a acusação é elaborada na maioria dos casos pela
forte estrutura do Ministério Público, a população de baixa renda lota
as cadeias e penitenciárias por não possuir quem alegue sua inocência e
acompanhe a progressão de regime.
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º,
LXXIV.
No III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil, do Ministério da Justiça
(2009), para fins de análise da situação das Defensorias no Brasil, utilizase como parâmetro para determinação do público-alvo do órgão a renda
mensal média de até três salários mínimos3.
O artigo 5º, LXXIV determina, por sua vez, que “o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita destinada aos que comprovarem
insuficiência de recursos”. Portanto, a implementação da Defensoria
Pública se mostra como expressão dos interesses das camadas menos
abastadas, tendo em vista sua função de fornecer amparo jurídico àqueles
que não possuem condições de contratar advogado.
Ainda que o limite remuneratório apontado não seja suficiente para
constatar a real situação de vulnerabilidade individual, ou mesmo familiar,
já abrange uma grande porcentagem da população brasileira, indicando
um enorme contingente de potenciais usuários da Defensoria Pública.
Das 161.990.266 pessoas de 10 anos ou mais de idade residentes em
todo o país, 52,6% possuem rendimento nominal mensal de até 3 salários
mínimos (IBGE, 2010).
A Defensoria Pública como Expressão dos Interesses Populares
Para levar uma demanda ao Poder Judiciário se faz necessário possuir
capacidade postulatória. Entretanto a legislação brasileira determina que
afora o Ministério Público e a Defensoria Pública, conforme artigos 127 e
134 da Constituição Federal, apenas o advogado possui esta capacidade
de levar os interesses de um cidadão a conhecimento do Judiciário, pelo
expresso no artigo 36 do Código de Processo Civil, que traz também
exceções pouco utilizadas.
Assim sendo, o cidadão só poderá pleitear em sua própria defesa nas
situações trazidas pelo artigo, ou ainda nas exceções legalmente previstas,
quais sejam na impetração de habeas corpus (artigo 654 do Código de
Processo Penal) e nas ações perante o Juizado Especial Cível (artigo 9º da
Lei nº 9.099/95) e na Justiça do Trabalho (artigo 791 da Consolidação das
Leis do Trabalho).
A inexistência de Defensoria Pública, dessa forma, impede o acesso à
Justiça daqueles que não possuem condições econômicas de contratar um
advogado. O que se mostra como flagrante violação do Estado Democrático
de Direito e dos Direitos Fundamentais de inafastabilidade do Poder
Judiciário, contraditório e ampla defesa e assistência jurídica gratuita,
positivados no artigo 5º, incisos XXXV, LV e LXXIV, respectivamente, da
Constituição de 1988.
174
Ana Zaiczuk Raggio
A Implementação da Defensoria Pública do Paraná
Apesar da previsão constitucional ser de 1988, apenas em 1994 foi
sancionada a LC 80/94 que organizou a Defensoria Pública da União,
Distrito Federal e Território e estabeleceu normas gerais para a organização
das Defensorias Estaduais, a qual determinou, em seu artigo 142, cento e
oitenta dias para que os Estados adaptassem a organização da Defensoria
Pública aos preceitos da Lei Complementar
No Estado do Paraná, o artigo 128 da Constituição Estadual, promulgada
em 5 de outubro de 1989, determina a organização do órgão por lei
complementar com observância a legislação federal sobre a matéria.
No entanto, mesmo com ausência da legislação federal em 1991, foi
sancionada a LC Estadual nº 55 que instituiu a Defensoria Pública do Estado
do Paraná. O artigo 6º da Lei também impunha o prazo de 180 (cento e
oitenta) dias para que o Executivo encaminhasse à Assembleia Legislativa
mensagem sobre a estruturação da carreira de Defensor Público e demais
disposições necessárias ao funcionamento do órgão.
3 Não existe determinação legal delimitando a renda máxima daquele que pode ser atendido pela Defensoria
Pública. No entanto, utiliza-se este parâmetro por possibilitar maior diálogo com os dados levantados pelo IBGE e
consequente facilidade de interlocução com outros estudos, conforme IPEA e ANADEP (2013).
175
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
Ainda assim, foi somente pouco antes das eleições de 2010 que o
Governo do Estado apresentou à Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP)
o Projeto de Lei (PL) n° 439/2010, a fim de estruturar a Defensoria Pública.
Porém, o PL não foi votado antes do fim das atividades legislativas daquele
ano e acaba por ser retirado de pauta no ano seguinte.
Com a retirada do PL n° 439/2010 da pauta de votação, aquecem-se
os ânimos dos movimentos sociais, que há muitos anos pleiteavam a
implementação do órgão. Neste cenário, nasce o movimento “Defensoria
Já!”, que congregava diversas entidades4 entorno de um único objeto:
uma Defensoria Pública paranaense livre, autônoma e independente.
Face à pressão social, a elaboração do Projeto de Lei foi conduzida pela
Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, de maneira democrática,
possibilitando a participação direta de representantes do movimento e
da sociedade como um todo em reuniões, audiências públicas e consultas
públicas online.
Em 19 de maio de 2011 a Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado
do Paraná (LC nº 136/11) é sancionada. Com 23 (vinte e três) anos de
atraso é organizada a Defensoria Pública do Paraná, sendo o penúltimo
Estado da Federação a ter Defensoria, antes apenas do Estado vizinho,
Santa Catarina. Os direitos da população de baixa renda de todo o Estado
foram reiteradamente violados e sua defesa improvisada.
Em 2010, 58% da população paranaense com 10 anos ou mais de
idade possuía classe de rendimento nominal mensal de até 3 salários
mínimo (IBGE, 2010). Dessa forma, nos termos colocados pelo Ministério
da Justiça, mais da metade dos cidadãos do Estado se mostravam como
potenciais usuários da Defensoria Pública. Ainda assim, os Governadores
do Estado, desde a promulgação da Constituição de 1988, limitaram-se
a proporcionar meios precários para garantir a representação judicial da
população paranaense de baixa renda.
4 O movimento contou com grande participação de estudantes e professores, tendo ao lado do Diretório
Acadêmico Clotário Portugal, entidade de representação dos acadêmicos de Direito do Centro Universitário Curitiba,
o Centro Acadêmico Hugo Simas, do curso de Direito da UFPR, assim como o Centro Acadêmico de Ciências Sociais
e os professores daquela Instituição e do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Estadual de Londrina.
Se fizeram presentes ainda organizações não governamentais do Paraná como a Terra de Direitos e o Instituto de
Defesa de Direitos Humanos (IDDEHA), e outras organizações da sociedade civil tais como a Comissão de Direitos
Humanos de Londrina, a APP – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, a Central Única dos
Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Sindicato dos Trabalhadores e Servidores
Públicos Estaduais dos Serviços de Saúde e Previdência do Paraná (SindSaúde), o Programa PróJovem da Vila Torres,
a Associação Nacional dos Defensores Públicos Estaduais (ANADEP), a Associação Nacional dos Defensores Públicos
Federais (ANADEF), a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná, dentre tantas outras que
subscreveram o abaixo-assinado e manifestos publicados.
176
Ana Zaiczuk Raggio
A Demora na Implementação da Defensoria Pública do Paraná como Limite de
Representação Política
Retomando a noção de contrato social de Rousseau (1999), tem-se
que: “cada um de nós põe sua pessoa e poder sobre uma suprema direção
da vontade geral e recebe ainda cada membro como parte indivisível do
todo”, produzindo um “corpo moral e coletivo” (ROUSSEAU, 1999, p. 36).
O autor traz assim a questão da “vontade geral” e a coloca como a única
que pode reger as ações do Estado (ROUSSEAU, 1999, p. 43).
O que fica é a dificuldade de determinar-se o conteúdo da “vontade
geral” em uma sociedade complexa como a contemporânea. O autor
limita-se a diferenciar vontade de todos, “soma das vontades particulares”,
de vontade geral, que “atende só ao interesse comum” (ROUSSEAU, 1999,
p. 46).
Para superar esta dificuldade, a Democracia representativa em sua
noção hegemônica liberal, predominante na Democracia brasileira,
traz normativas eleitorais que fixam procedimentos para a escolha de
representantes políticos encarregados de expressar a vontade do povo.
A Democracia, portanto, é tida predominantemente como instrumento
político-jurídico para a escolha de representantes políticos. Esse é o
conceito trazido por Bobbio:
Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo
quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as
formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um
conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem
está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.
(BOBBIO, 1986 apud PEREIRA, 2008, p. 50)
Junto a Bobbio está Joseph Schumpeter, que, segundo José Álvaro
Moisés acreditava
que o ‘método’ democrático serve, essencialmente, para ‘autorizar’
governos através de eleições livres, mas não acreditava que os eleitores,
ou seja, ‘as pessoas comuns’ fossem dotadas de suficiente autonomia e
de capacidade de discernimento, para atribuir ou retirar legitimidade de
qualquer regime político através de suas crenças. (MOISÉS, 1995, p. 192)
Como consequência, para o autor as “pessoas comuns” devem ter sua
participação política limitada ao voto: “uma vez tendo feito suas escolhas
sobre a quem cabe governá-los, elas cessam qualquer outra função
política e, até as próximas eleições, delegam as tarefas de produzir as
políticas públicas adequadas” (MOISÉS, 1995, p. 193).
177
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
Para ambos os autores, a Democracia deve se limitar a garantir eleições
periódicas livres, uma vez que a escolha do representante político
por esses meios é suficiente para legitimá-lo. Este, por sua vez, deverá
perseguir os interesses que entender cabíveis em cada momento.
Entretanto, entre os autores que se dedicam ao tema da Democracia na
atualidade tem se entendido pela insuficiência da eleição para concessão
de autorização ao representante político, bem como para controle de suas
ações. Os motivos dessa corrente são claramente expostos por Bonavides:
Vista pelo divórcio consumado entre a vontade governada – a vontade
passiva da cidadania – e a vontade governante, ou seja, a vontade da
elite hegemônica, a representação não só perdeu o sentido da identidade
(a ficção da paridade volitiva de governantes e governados), dantes
postulada de maneira abstrata, mas peremptória, como reconheceu e
instituiu de forma efetiva uma dualidade em que, unicamente, a sua
esfera de soberania (a vontade privilegiada do representante) se impõe
enquanto caudatária do egoísmo dos seus interesses, os quais logram,
assim, eficácia, em dano óbvio da cidadania preterida, enfraquecida,
menoscabada; a cidadania de que o representante é órgão.
Em face, pois, do malogro das formas representativas clássicas, o espírito
democrático de nossa época se inclina para a rejeição do formalismo
tradicional, em ordem a desterrar a supremacia liberal do poder, enquanto
elemento institucionalizador de privilégios e desequilíbrios de classe.
(BONAVIDES, 2008, p. 278 e 279)
Ou seja, para Bonavides a necessidade de se ir além do mero método
para concessão da autorização para exercício do poder, que se dá de
representado para representante, se justifica pelo flagrante abandono
dos interesses dos cidadãos por parte daqueles que estariam imbuídos
de persegui-los.
Com intuito de buscar motivos para a não institucionalização, por
meio de Lei Complementar, da Defensoria Pública no Estado do Paraná
durante longos 23 anos, questionou-se aos entrevistados as razões que
acreditavam ter determinado a promulgação da Lei apenas em 2011.
Destaca-se que o motivo mais citado entre os entrevistados foi “falta
de vontade política” (GODOY, 2013; SÁ, 2013; SANTANA, 2013; GOMES,
2013). Ou seja, para 4 dos 6 entrevistados a implementação da Defensoria
Pública do Paraná esbarrava no desinteresse dos representantes políticos
em conceder a população de baixa renda seu direito a Defensor Público
que lhe permitisse o acesso à Justiça.
Nessa esteira, Celso Fernandes Campilongo estuda os fatores que
influenciam nas decisões dos representantes políticos. No início de sua
178
Ana Zaiczuk Raggio
obra admite que não se pode falar em congruência entre as vontades de
governantes e governados, vez que “o processo representativo é farto em
exemplos de que, mais do que as atitudes ou expectativas dos eleitores,
outros fatores influem na conduta dos representantes. Dito de outro
modo: a relação de representação não se exaure no processo eleitoral”
(CAMPILONGO, 1988, p. 13).
Além da congruência, o autor se detém sobre as teorias acerca de
input e output of demand, elitistas e policies decisions, mas acaba por
concluir que nenhuma atitude ou interesse dos representados é capaz de
assegurar a persecução de seus interesses, para Campilongo “é certo que
elementos de outro nível – fundamentalmente de natureza econômica –
desempenham função preponderante na definição de políticas públicas”
(CAMPILONGO, 1988, p. 22).
Bernard Manin, Adam Przeworski e Susan C. Stokes, partindo do
pressuposto de que os governados poderiam contar apenas com as
eleições para controlar o desempenho de seus representantes, buscam
compreender o que leva os políticos a atuarem de determinadas maneiras.
Em primeiro lugar, admitem a possibilidade de um representante perseguir
apenas interesses próprios, mas ressaltam que sua busca sempre será por
recompensas. Assim, consideram que
Os políticos tem preferências sobre as políticas públicas se a recompensa
de manter-se no cargo ou a probabilidade de se reeleger depende das
políticas por eles adotadas. Pode-se pensar em recompensa de manterse no cargo em três formas: os políticos podem ter políticas favoritas e
derivar utilidade de executá-las, podem querer realizar seus interesses
pessoais, ou podem obter satisfação da honra de estar no cargo. (MANIN;
PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 106)
Ainda apontam a relevância da satisfação dos financiadores, uma vez
que para se eleger os políticos necessitam de verbas. Assim expõem que
“os políticos podem vender aos grupos de interesse políticas que infligem
um custo pequeno para cada eleitor – mas com benefícios concentrados
nesses grupos de interesse –, e gastar nas eleições os recursos arrecadados
em troca” (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 113).
Pode se perceber uma congruência entre todos os autores trazidos
no sentido de que determinados interesses são perseguidos pelos
representantes quando estes têm como consequência benefícios para
eles próprios ou para grupos com forte poder econômico, o que pode
esclarecer as motivações para não implementação da Defensoria, visto
que esta não se mostra como interesse de grupos de poder econômico.
Ao contrário, seria capaz de instrumentalizar a população pobre e, com
179
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
isso, afetar outros grupos com forte influência política, corroborando o
trazido nas entrevistas. Ademais, não se mostra como interesse próprio do
representante, pois, como indicado pelos entrevistados, instrumentalizaria
ações judiciais contra o próprio poder público.
Para além disto, se faz necessário apontar que a questão orçamentária,
trazida por um dos entrevistados, pode ser tida como um fator fora do
campo de análise dos eleitores que impediria a efetiva avaliação da
qualidade das ações dos representantes. Tal questão aparece na teoria
política como uma condicionante que barra a avaliação política condizente
com as possibilidades. É o que se observa na seguinte passagem: “os
eleitores não sabem tudo que precisariam saber, tanto para decidir
prospectivamente o que os políticos deveriam fazer, quanto para julgar
retrospectivamente se eles fizeram o que deveriam ter feito” (MANIN;
PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 106).
Dessa forma, a justificativa da falta de orçamento poderia ser a razão
preponderante para o atraso na criação da Defensoria Pública do Paraná
nos moldes constitucionais. Entretanto, como se passará a expor adiante,
entende-se que a própria decisão orçamentária apresenta interesses
conflitantes.
A segunda questão buscava compreender o papel da Defensoria
Pública para a construção de um Estado de Direito, com intuito de aferir
a relevância de sua institucionalização dentro do ordenamento jurídico.
Para 4 entrevistados a existência de Defensoria representa o Estado de
Direito devido funções atribuídas a ela pela Constituição de 1988, que
se traduz na persecução eminentemente jurídica de cada indivíduo
que procura assistência do órgão, seja buscando efetivação de direitos
individuais, seja garantia dos “direitos sociais de cidadania” para todos
(SANTANA, 2013), como destacou outro entrevistado.
Para outra entrevistada a relevância da Defensoria está na atuação pela
busca da justiça social, pela melhor distribuição dos recursos patrimoniais,
culturais e de poder, afim de caminhar no sentido da concretização do
Estado Democrático de Direito.
180
Ana Zaiczuk Raggio
Ambos acreditam que a Defensoria representa um Estado de Direito
na medida em que se dispõe a buscar a concretização dos valores
democráticos e da igualdade material. Há que se ressaltar que a atuação
em casos individuais também possibilita mudanças para a coletividade,
principalmente quando a Defensoria provoca o Supremo Tribunal Federal
em casos de repercussão geral. Ainda assim, admitindo que a Defensoria
tende a se limitar à tutela dos direitos individuais, defense-se aqui também
sua atuação em conjunto com movimentos sociais.
A terceira pergunta, por sua vez, tinha por intuito saber se os
entrevistados concordavam, e em qual medida, com a proposição exposta
neste trabalho de que a falta de Defensoria Pública no Paraná demonstrava
uma falha na representação política. Apenas um dos entrevistados afirmou
que não acreditava que a representação política poderia ser medida desta
forma. Pode-se compreender de seu posicionamento que a justificativa
de falta de orçamento suficiente, em sua opinião, é plausível: “Então a
estrutura da Defensoria Pública é uma estrutura tão cara quanto à do
Ministério Público e do Poder Judiciário […] E isso, no longo prazo, acaba
inviabilizando o Estado” (SOUZA FILHO, 2013). Ou seja, a ausência do órgão
pode parecer uma falha para aqueles que não enxergam determinantes
aparentes apenas para aqueles que conhecem o interior da administração
pública.
Com a devida licença, há que se contrapor a isto, posto que a destinação
de orçamento é também uma decisão política. O artigo 134, §2º da
Constituição da República determina que a Defensoria tem iniciativa de
sua proposta orçamentária. Esta proposta, conforme artigo 8º da Lei
Complementar Estadual 136/11, deverá passar tanto pelo Executivo,
quanto Legislativo para ser consolidada. Neste momento se expressa o
interesse político.
O III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil (Ministério da Justiça,
2009, p. 86) traz a média do orçamento destinado ao Poder Judiciário, ao
Ministério Público e à Defensoria em todo o Brasil:
Em contraposição, outro entrevistado destacou que, tendo em vista a
atuação predominante da Defensoria na defesa de direitos individuais,
sua implementação não simboliza o Estado de Direito, acreditando que
para se alcançar efetivamente tal ideal são necessárias reformas no Poder
Judiciário e no Ministério Público.
Com relação ao orçamento executado pelo Poder Judiciário, Ministério
Público e Defensoria Pública das unidades da Federação no que diz
respeito ao orçamento total do estado, observou-se que em média o
Poder Judiciário dos Estados absorve 5,34% dos gastos totais do estado,
enquanto que o orçamento do Ministério Público foi de 2,02% do
orçamento do Estado e o da Defensoria Pública foi em média de 0,40% do
total de gastos pelas unidades da Federação.
Há que se colocar que a posição defendida pelos dois últimos
entrevistados citados coincidem, apesar de parecerem contraditórias.
Mais uma vez se observa a pouca importância dada à defesa e
orientação jurídica às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.
181
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
Disto deriva a diferença de alcance destas instituições em todo o Brasil.
O Mapa da Defensoria Pública no Brasil, elaborado pela Associação
Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP, em parceria com o Instituto
de Pesquisa Econômica e Aplicada – IPEA, publicado em 13 de maio de
2013, se referindo a todas as Comarcas brasileiras, aponta que
131), retomando o conceito de Joseph Schumpeter. A competição entre
as elites seria satisfatória para a conquista da Democracia, uma vez
que elites autônomas entre si e perante o Estado podem competir pelo
poder político, evitando o despotismo. Ademais, em oposição ao que se
pretende defender neste trabalho, para esta corrente
Na maioria delas (72%), contudo, a população conta apenas com o estadojuiz, o estado-acusação/fiscal da lei, mas não conta com o estado-defensor,
que promove a defesa dos interesses jurídicos da grande maioria da
população, que não pode contratar um advogado particular. (IPEA; ANDEP,
2013)
a maior ameaça à democracia não vem das elites, mas, ao contrário, da
presença das massas na política. Há, entre os pluralistas, um grande temor
em relação ao que avaliam ser o caráter autoritário do homem “médio”.
Por essa razão, avaliam ser melhor para a continuidade da democracia
a existência de certa apatia da imensa maioria do que seu engajamento
direto na vida política. (PERISSINOTO, 2009, p. 129 e 130)
A prioridade, portanto, se mostra em acusar e julgar, mas não em
defender.
Os demais entrevistados concordam com a falta de representatividade
popular nas decisões políticas. O maior destaque se dá para o apontamento
feito por uma das entrevistadas que aponta que a ausência de Defensoria
se deve em razão da política elitista paranaense e do desinteresse dos
grupos dominantes em concretizar este direito (SÁ, 2013). Mostra-se
imprescindível neste ponto atenção às teorias elitistas e pluralistas que
analisam o fenômeno de participação política, bem como as críticas feitas
a elas.
Primeiramente, partindo do mesmo pressuposto de Robert Dahl,
entende-se “que uma característica-chave da democracia é a contínua
responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados
como politicamente iguais” (DAHL, 2012, p. 25). Assim, a Democracia
deve garantir que os interesses dos cidadãos estejam representados nas
decisões políticas.
Porém, quando Dahl evolui do dever ser da Democracia, para a análise
de seu real desenvolvimento, passa a considerar que apenas algumas
minorias exercitam efetivamente o poder político, garantindo a persecução
de seus interesses. O autor é adepto da teoria do elitismo democrático, ou
pluralismo elitista, a qual possui como traço essencial
a crença de que é possível aceitar a tese fundamental do elitismo clássico,
segundo a qual são as minorias que comandam a vida política, e conjugála com a defesa da democracia, desde que esse sistema político seja
entendido de uma maneira específica. (PERISSINOTO, 2009, p. 129)
Para o autor é possível defender a Democracia, admitindo a existência
de elites, desde que se compreenda que a Democracia se resume a “um
regime de eleições livres e competitivas, no qual diversas elites competem
entre si para conquistar o voto dos governados” (PERISSINOTO, 2009, p.
182
Ana Zaiczuk Raggio
Dentre as críticas a esta teoria, destaca-se o exposto por Campilongo:
esse realismo não se mostra interessado em avaliar as razões da apatia e
incapacidade dos eleitores diante das questões políticas nem examina por
que os sistemas partidários são de escassa representatividade.
O argumento da “apatia das massas” […] não verifica que um sistema político
que prima pelo disfarce das questões e pela ausência de responsabilidade
dos representantes para com os representados desestimula a participação
popular. A apatia dos eleitores chega a ser vista como benéfica à
estabilidade política, e, por isso, é discretamente estimulada pelo sistema.
Além disso, as demandas das classes socioeconômicas dotadas de maior
capacidade de agregação de interesses, organização e conflito são sempre
mais efetivas – o que deságua na apatia dos setores circunstancialmente
privados dessa capacidade. O “realismo” dessas posturas repousa na
hipótese inverificável de que as capacidades políticas de pessoa mediana
numa sociedade de mercado são um dado fixado, ou, pelo menos, com
pouca probabilidade de mudar em nossa época. (CAMPILONGO, 1988, p.
20 e 21)
À vista disso, pode se compreender que o autor assume a existência
de elites políticas que dominam os demais, impondo seus interesses. De
outra feita, questiona esta teoria como realidade intrínseca e imutável,
apontando sua falha em não levar em consideração a conjuntura que leva
à apatia das massas. Ou seja, Campilongo não apenas não acredita que as
massas devam ser deixadas de fora, mas percebe que seus interesses não
estão na pauta política e que isto desestimula sua participação. Considera
o autor, ademais, as consequências dessa “apatia” no ordenamento
jurídico, quando afirma que “sendo as instituições representativas os
mecanismos do sistema político mais vinculados à produção de lei, é
natural que a crise da representação tenha reflexos no ordenamento
jurídico” (CAMPILONGO, 1988, p. 55).
Ainda sobre as desigualdades de participação no processo democrático,
tem-se marcante construção do escrito argentino Atilio A. Boron que
afirma a desigualdade social como limitador da Democracia
183
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
quando os pobres se transformam em indigentes e os ricos em magnatas,
sucumbem a liberdade e a democracia. A primeira não pode sobreviver
ali onde uns estejam dispostos a vendê-la “por um prato de lentilhas” e
outros disponham da riqueza suficiente para comprá-la a seu bel-prazer.
(BORON, 2002, p. 13)
A quarta pergunta visa informações acerca de outra característica
da Democracia liberal. Em vistas da compreensão de Democracia como
procedimento eleitoral para autorização do governante, o acesso a foros
de representação (mandatos, coalizões, conselhos, espaços públicos
de manifestação) se mostra limitado. O que se pretendia era saber
quanto essas limitações afetam o exercício dos direitos fundamentais,
pressupondo a Defensoria como parte destes.
Neste ponto, todos os entrevistados concordam que o limite de acesso
prejudica o exercício de direitos fundamentais na medida que: limitam as
garantias constitucionais e trazem a impossibilidade de apresentação de
demandas por pessoas e movimentos sociais (VENERI, 2013); impedem
o acesso aos direitos sociais (GOMES, 2013); os direitos coletivos não
conseguem ser efetivamente tutelados pelo judiciário e dependem
da cobrança direta aos responsáveis e os movimentos sociais são
criminalizados quando na busca pelo reconhecimento de suas demandas
(SOUZA FILHO, 2013).
Ainda levantou-se fatores relativos aos Conselhos, como os vícios
de representatividade internos e nas disputas eleitorais, o não
reconhecimento de seu poder normativo, a estrutura, gestão e orçamento
a ele destinado, bem como o despreparo observado nos conselheiros e a
desorganização da sociedade civil, na afirmação de que
mesmo os conselhos às vezes não tem maturidade também para
compreender não apenas a importância dos Conselhos Estaduais, mas
dos Conselhos Municipais, da criação dos fundos, do manejo dos recursos
públicos, do controle do orçamento público, discussões de orçamento
participativo, como controlar a execução do orçamento. Todo esse
contexto de participação popular que se dá através dos conselhos e de
diversas outras formas, quando a sociedade não está bem organizada,
não se movimenta adequadamente no sentido da construção de políticas
públicas, então a gente percebe essa situação. (GOMES, 2013)
Portanto, mesmo a abertura existente no Executivo, muitas vezes se
mostra sem estrutura adequada da situação de modo a tornar aquela
instância capaz de agir em sua plenitude. Ressalta-se, por outro lado,
a total ausência de instâncias de participação popular no Legislativo
(GODOY, 2013).
184
Ana Zaiczuk Raggio
Uma das entrevistadas trouxe outra contribuição ressaltando que
“nós, infelizmente, vivemos em um país em que talvez nós não tenhamos
consciência das possibilidades de representação” (SÁ, 2013). De sua fala
retira-se a falta de conhecimento por parte da população de seus direitos
e dos espaços onde reivindicá-los.
A respeito disso é importante destacar a informação qualificada como
um dos pressupostos da Democracia. Apenas pelo conhecimento trazido
através da informação para todos é que se pode concretizar a igualdade
na participação política e, portanto, a existência de Democracia.
Entendimento este corroborado por Fernando Whitaker da Cunha no
seguinte trecho:
Temos eleição, mas não possuímos representação, pelo fato dessa última
não refletir, efetivamente, a consciência política do povo, pela fragilidade
do binômio votante-votado, num meio inculto e despreparado, para o
necessário diálogo entre cidadão e o candidato, que combata as oligarquias,
mas que estimule a criação de classes dirigentes desenvolvimentistas,
das “elites funcionais” (Hélio Jaguaribe), devidamente preparadas, no
povo politizado. “Educar é Governar” já observava o prodigioso Rodolfo
Rivarola. (CUNHA, 1981, p. 48)
Por fim, acerca da capacidade da Defensoria de garantir direitos
fundamentais apontaram os entrevistados que ela seria capaz tendo em
vista que defende os mais pobres dos pobres, esquecidos por juristas e
pelos poderes constituídos (VENERI, 2013); bem como por incluir os 98%
dos presos do Estado que não possuem condições de contratar advogados.
Em contrapartida, um dos entrevistados ressaltou que a Defensoria
sozinha não é capaz de alterar o quadro de desrespeito aos direitos
fundamentais, isto só será possível, em sua opinião, por meio de
mobilizações populares que busquem a qualificação da justiça e a
verdadeira democracia (SANTANA, 2013).
Outros dois entrevistados condicionam a superação dos limites no
exercício dos direitos fundamentais à compreensão pela Defensoria de
uma função específica. De acordo com um deles:
Eu vejo a Defensoria sempre como a grande articuladora dos direitos
individuais. Ela pode atuar nos direitos coletivos, ela tem competência
para fazer isso, mas depende muito da vontade estrutural do órgão; e,
mais ainda, do defensor. […] Então, no fundo a Defensoria acaba sendo
uma ponte de chegada da cidadania nas esferas judiciais. Sem garantir
que as esferas judiciais funcionem efetivamente – porque elas podem dar
decisões contrárias – e sem que esse acesso chegue em última instância a
resolver o problema. […] Então o sistema judicial brasileiro não comporta
muito bem, não é feito para resolver os problemas dos pobres. Ele é feito
185
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
para resolver os problemas dos ricos. Ele é estruturalmente para as classes
dominantes. Então a Defensoria é um paliativo, mas ainda não é uma
solução. A solução, a meu ver, passa além da criação de uma Defensoria,
da reestruturação do sistema judiciário como um todo, e a reestruturação
do Ministério Público, obviamente. (SOUZA FILHO, 2013)
Para este entrevistado, portanto, a Defensoria só será capaz de alterar a
realidade de coisas se o Judiciário e o Ministério Público forem repensados
para incluir também em suas atuações os interesses das camadas
socialmente excluídas, acima de tudo, se a Defensoria atuar na defesa
dos interesses coletivos. Seu posicionamento se baseia na interessante
compreensão de que as demandas que exigem reparação de violação
perpetrada pelo Estado e a exigência de respeito a direito individual
não produzem a alteração nas atividades reiteradas de desrespeito a
coletividade. Somente pela demanda coletiva, poderia a Defensoria ser
considerada como um avanço para o alcance do Estado Democrático.
Enfim, outro posicionamento parte do pressuposto de que a Defensoria
Pública compreende seu papel enquanto defensora dos direitos coletivos
em conjunto com movimentos sociais e que, dessa forma, sua atuação
evidenciará ainda mais a crise da representação política.
Mais do que isto, este entrevistado, que atuou intensamente nos
procedimentos participativos da elaboração do anteprojeto de lei, aponta
que a população pode participar das decisões políticas.
Então a Defensoria Pública é uma prova viva de que é possível você
estabelecer uma política pública de forma ampla, plural, democrática, com
participação popular, com participação daquele potencialmente afetados
por aquela política, que, no caso, era a criação da Defensoria.[...] Por isso,
cai por terra esse argumento elitista de que pessoas pobres, sem instrução
não podem participar da vida pública, da criação de políticas públicas, por
mais técnicas que elas sejam, como é criação, a estruturação de um órgão
como a Defensoria Pública. (GODOY, 2013)
Ou seja, para ele o próprio processo de criação da Lei Orgânica da
Defensoria demonstra que é possível se fazer política pública com
participação popular, inclusive daqueles potencialmente atingidos, vez
que todos tem condições de contribuir para a construção do Estado.
Relata a contribuição que diversas mulheres presentes em uma audiência
pública tiveram para a identificação de uma demanda reprimida, que se
apresentava como verdadeiro gargalo do sistema judiciário: a necessidade
de criação de um Núcleo para realização de investigação de paternidade.
186
Ana Zaiczuk Raggio
Conclusão
Apoiando-se nos teóricos políticos apresentados e nas entrevistas
realizadas, percebeu-se o consenso quanto a existência de falha de
representação dos interesses dos governados pelos governantes,
mormente dos interesses da população de baixa renda, confirmando a
afirmação primeira trazida no presente trabalho.
Nessa esteira, a demora na implementação da Defensoria Pública
do Paraná se deve, pelo que se pode extrair do exposto, à busca dos
representantes políticos em alcançar vantagens para eles próprios ou
aos grupos que os financiam. A ausência do órgão ainda se mostra como
interesse privado não apenas dos representantes políticos, como dos
demais órgãos envolvidos no sistema de justiça, conforme trazido em
uma das entrevistas que apontou a pouca intervenção por parte do Poder
Judiciário, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil
neste processo.
Ressalta-se a contribuição de um dos entrevistados no sentido de
que o desconhecimento por parte tanto de representantes, como de
representados da necessidade de criação da Defensoria Pública teria
influenciado tão longa espera. Uma das entrevistadas corrobora esta
afirmação colocando que a população, desconhecendo seus direitos, não
se mobiliza e, assim, não cobra daquele representante, eleito por meio
de seu voto, a institucionalização de tal órgão essencial ao exercício da
cidadania. Nessa mesma medida, investir na Defensoria não aparece
para o governante como possível fonte de capital político, prolongando o
descumprimento do mandamento constitucional.
Tem-se aqui a imprescindibilidade da informação e educação de
qualidade para a existência de uma Democracia real, como descrito por
Cunha e Dahl.
A questão mais relevante dentre todas, para esta análise, está na
compreensão exposta por Campilongo que, reconhecendo as noções
elitistas e pluralistas da política, enfatiza que a detenção do poder político
por uma minoria não pode ser entendida como fato imutável, mas como
decorrente da imensa desigualdade social e do reiterado atendimento
aos interesses daqueles com maior poder econômico, em detrimento do
restante da sociedade.
Campilongo aponta que as teorias pluralistas e elitistas se furtam à
análise das razões por detrás da apatia das massas. Estas teorias inclusive
exaltam a apatia como necessária para o melhor funcionamento do sistema
político. Entretanto, para o autor, é exatamente a falta de persecução dos
187
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
Ana Zaiczuk Raggio
interesses da população de baixa renda, em especial, que desestimula a
participação deste segmento nas decisões políticas. Afora isto, coloca que
a desigualdade de poder é característica das Democracias em sociedades
marcadas pela intensa desigualdade social.
IPEA. ANADEP. Mapa da Defensoria no Brasil. Brasília: 2013. Disponível em: <http://www.
ipea. gov.br/sites/mapadefensoria/defensoresnosestados> Acesso em: 30 mar. 2013.
Por fim, destaca-se que a dificuldade de acesso aos espaços de tomada
de decisão impede a cobrança por parte daqueles conscientes de seus
direitos. A Democracia predominantemente indireta deixa o cidadão à
mercê da vontade de seu representante político, não lhe sendo permitida
a intervenção direta nas construções de interesse coletivo.
MIOSÉS, José Álvaro. Os brasileiros e a democracia – bases sócio-políticas da legitimidade
democrática. São Paulo: Ática, 1995.
Conclui-se, portanto, pela necessidade de abertura da Democracia,
complementando-se a representação com a participação direta do povo,
consagrando o princípio basilar de todo o ordenamento jurídico criado
pela Constituição da República de 1988, qual seja a soberania popular.
Fica a missão de construir formas de compartilhar o poder normativo e
viabilizar maneiras para o exercício e fortalecimento do controle social de
mandatos políticos no Legislativo e Executivo.
Referências
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Nova, São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006.
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PERISSINOTO, Renato. As elites políticas: questões de teoria e método. Curitiba: Ibpex,
2009.
ROUSSEAU, Jena-Jacques. O Contrato Social: princípios de direito político. Tradução de
Antônio P. Machado. 19. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
SÁ, Priscilla Placha. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio. Curitiba, 20 mar. 2013.
SANTANA. Carlos Enrique. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio. Curitiba, 1 abr. 2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade.
10. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
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BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa (por um Direito
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BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Tradução de Emir
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CAMPILONGO, Celso Fernandes. Representação política. São Paulo: Ática, 1988.
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1. ed. 2. reimpr. São paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
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pdf.shtm> Acesso em: 13 mar. 2013.
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189
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ
190
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos
André GIAMBERARDINO1
Gustavo Trento CHRISTOFFOLI2
1. Premissas
Ao julgar o caso Coleman v. Schwarzenegger, em 2009, um tribunal local
na Califórnia reafirmou a necessidade de redução na população carcerária
do Estado, mesmo que para tanto fosse preciso a soltura de boa parte dos
presos do local. Isso para fazer viável a manutenção de condições mínimas
de saúde aos reclusos, nos termos exigidos constitucionalmente. Há,
evidentemente, um contexto maior e profundamente controverso: de um
lado, diversos juízes passaram efetivamente a expedir alvarás de soltura
diante da superlotação carcerária; de outro, o Congresso norte-americano
buscou limitar e restringir tal postura com a Prison Litigation Reform Act,
de 1995, lei elaborada com o objetivo explícito de evitar ordens de soltura
a não ser como “remedy of last resort” 3.
A questão central girava em torno da violação da Oitava Emenda
da Constituição norte-americana, que proíbe “cruel and unusual
punishments”. Também a Constituição da República Federativa do Brasil,
de 1988, veda “penas cruéis” (art. 5º, XLVII, “e”, CF), mas não se tem
conhecimento de um amplo e efetivo debate sobre a responsabilidade e o
papel de cada Poder – especialmente do Poder Judiciário – e da sociedade
civil em relação à questão carcerária, ao menos não nos termos claramente
colocados pelos norte-americanos: não configuraria a superlotação
carcerária, afinal de contas, constrangimento ilegal apto a fundamentar
juridicamente a soltura independentemente dos fundamentos da decisão
de decretação da prisão?
O objetivo do presente texto é levantar alguns aspectos sobre a relação
entre o discurso dos “direitos humanos” e a questão penitenciária. É
necessário, preliminarmente, situar o próprio tema em suas características
tipicamente modernas: mesmo já se tendo falado em direitos humanos
em contextos históricos mais distantes4, certamente não se o fez como
1 Defensor Público, Professor da UFPR e Universidade Positivo; Doutorando em Direito pela UFPR.
2 Graduado em Direito .
3 Coleman v. Schwarzenegger e também Plata v. Schwarzenegger; sobre, v. “Recent Cases” in Harvard Law
Review, vol. 123, 2010, p. 752-759.
4 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 13 e ss.
191
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
hoje, por ao menos duas razões: primeiramente, por conta da matriz
racionalista moderna toda construída em torno à noção de indivíduo e
sujeito. Em segundo lugar, considerando como o traço distintivo dos direitos
humanos contemporâneos – ao lado de seu caráter de essencialidade – a
sua positivação internacional5. Este, o reconhecimento internacional em
instrumentos que produzem obrigações jurídicas aos Estados-parte, é o
ponto de partida a ser situado ao lado da Constituição e acima da legislação
ordinária. A noção de direitos é considerada recente e fundante também
no processo de redemocratização brasileira, com diferentes significados,
especialmente através dos movimentos sociais populares dos anos 70 e
80, vinculando o conceito a reivindicações de natureza coletiva6. Falar em
direitos dos presos, de forma específica, remete a um discurso também
recente e pertencente àquela dimensão própria do pós-guerra, que não
apenas afirmava a liberdade ou a autonomia do sujeito, como vinha-se
fazendo desde o iluminismo, mas passava a reconhecer direitos sindicáveis
judicialmente em dimensões até então descritas e previstas como espaços
“livres” da intervenção do Poder Judiciário. A execução da pena privativa
de liberdade, em palavras mais claras, era tratada explicitamente como o
lugar do arbítrio e do poder absoluto da autoridade administrativa sobre o
recluso, inserto em uma especial relação de sujeição antipática à oposição
de direitos individuais.
Seja através das teorias da “supremacia especial” ou da versão
norte-americana das hands-off, a primeira consequência da adoção de
perspectivas como essa no âmbito da execução penal é a subtração da
administração penitenciária a qualquer tutela jurídica, “não se valorando”
as condições materiais de encarceramento e, principalmente, a produção
de normas administrativas internas segundo qualquer modalidade de
controle ou limite e, até mesmo, a garantias constitucionais.
Diante de tal quadro, e considerando a redemocratização do país
somente em meados do século XX, não é difícil compreender os passos
lentos no exercício do direito de acesso ao Judiciário e aos mecanismos
internacionais de proteção no que tange à questão penitenciária. Já é
hora, porém, de se acelerar os passos: não faltam ilegalidades e a cada
dia transparece com mais intensidade o desconforto de “tudo” se resolver
em “pedidos de providências” entre os Poderes com consequências
claramente insatisfatórias.
Por outro lado, para além do Estado, na própria sociedade civil, o
discurso dos direitos humanos – e sobremaneira quando se fala dos presos
5 WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 23-25.
6 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
Novos Estudos, p. 163.
192
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
– encontra imensos obstáculos. Teresa Caldeira se ocupou, como poucos,
da questão de como é que se chegou à massiva oposição popular à ideia
de “direitos humanos” enquanto associada a “direitos de bandidos”.
Segundo a autora, é preciso notar o processo de diferenciação do
debate entre os direitos dos presos políticos e os direitos dos presos
“comuns”. Caldeira observou descritivamente as principais distinções
entre ambos7, a saber: (a) no caso dos presos políticos, a reivindicação
sempre visava atingir a terceiros, afirmando identidades e obtendo
legitimação social com maior facilidade; (b) a atenção aos direitos dos
presos comuns se tornou pauta de políticas governamentais antes que
houvesse um movimento de reivindicação pelos próprios atingidos; (c) a
lógica tradicional da defesa de direitos dos presos comuns é aquela dos
direitos eminentemente individuais, e não sociais ou coletivos, como
em outros movimentos sociais. Este último ponto foi particularmente
manipulado pela “direita política”, fortemente presente nos setores
ligados à segurança pública e à administração penitenciária, no sentido
de associar o debate à ideia de “privilégios” ou “regalias”, que seriam
concedidos em detrimento da atenção às vítimas de crime:
O problema é que, além de a população não ver com maus olhos o uso
da força contra ‘bandidos’, os estereótipos disponíveis na sociedade
brasileira contra os criminosos consideram-nos no limite não só da
sociedade, como também da humanidade. E, na verdade, no processo de
contestação aos direitos humanos parece que esses estereótipos foram
cada vez se tornando mais radicais. A imagem dos criminosos foi mais do
que enfatizada. Eles foram pintados com as cores fortes do preconceito,
da discriminação social e do desvio como estando nas bordas tanto da
sociedade quanto da humanidade.8
Não há, obviamente, qualquer relação de prejudicialidade entre o
respeito a um ser humano enquanto ser humano – especialmente se
sob a custódia e dependência material do Estado – e as demais políticas
públicas voltadas a toda a coletividade. A natureza grosseira desse tipo
de argumentação não impede, porém, sua ampla difusão, justamente
porque, como nota Caldeira, trata-se de um processo de desumanização
potencializado pelo sistema formal de justiça criminal e que poderia ser
comparado ao processo de produção de indiferença moral perante o
sofrimento alheio a que fez referência Hanna Arendt, quando analisou o
julgamento de Eichmann e o holocausto nazista9.
7 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
Novos Estudos, p. 167-8.
8 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
Novos Estudos, p. 169.
9 Faz-se referência a texto anterior, publicado em novembro de 2007, cf. GIAMBERARDINO, André. “O medo
não nos absolverá: resenha do filme Tropa de Elite”. Correio da Cidadania, nov. 2007, disponível em:http://www.
correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1106&Itemid=79: “ (...). A produção
193
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
A judicialização desse tipo de política e o fortalecimento do acesso
aos mecanismos internacionais de proteção, reconhecendo seus limites,
constituem, nesse sentido, uma atitude contramajoritária – certamente
impopular – de se construir uma cultura de paz e humanização dos
conflitos.
2. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos
O Sistema Interamericano de Proteção é regido pela Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e composto pela Comissão
Interamericana e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
doravante simplesmente Comissão e Corte. Ele se insere no Sistema
Global, ao lado de outros sistemas regionais tais como o Africano e o
Europeu. Tem como referência os seguintes documentos10: Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (‘’Pacto de San José da Costa Rica”); Protocolo
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de San Salvador”);
Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente
à Abolição da Pena de Morte; Convenção Interamericana para Prevenir
e Punir a Tortura; Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento
Forçado de Pessoas; e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher.
194
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
4.463, de 8 de novembro de 2002, “sob reserva de reciprocidade e para
fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998” (Art. 1º)12.
O exercício do direito de petição individual não se dá diretamente
à Corte, mas sim à Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
diferentemente do modelo europeu13. Inobstante a recente modificação
no Regulamento da Corte, que passou a admitir que as vítimas ou
seus representantes – inclusive com Defensor Público14 – participem
diretamente na instrução do processo, é a Comissão que recebe denúncias
de violações aos direitos consagrados pelos instrumentos mencionados
(vide art. 27 do Regulamento da Comissão). Tais denúncias podem ser
apresentadas por qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não
governamental legalmente reconhecida em Estado-parte. Recebida
e processada a denúncia, caberá à Comissão, dentre outras medidas:
a) fazer recomendações ao Estado-parte, expressas em Relatórios
contendo medidas reputadas necessárias à cessação/reparação das
condutas violadoras; b) solicitar ao Estado informações relativas às
medidas adotadas, que visem efetivar as disposições dos instrumentos
e Convenções; e c) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral das
Organizações dos Estados Americanos15.
A Corte exerce funções contenciosa e consultiva. Nos termos do art.
62 e incisos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
as atribuições consultivas tratam da resolução de dúvidas quanto à
interpretação das disposições da Convenção Americana e/ou outros
diplomas normativos, e independem até mesmo de ratificação da mesma
pelos Estados-membros, podendo decorrer de pedidos formulados por
quaisquer Estados-parte ou órgãos da OEA11. Já a função contenciosa
resta condicionada ao reconhecimento expresso e formal da jurisdição
obrigatória da Corte, não bastando a simples ratificação. Note-se que o
Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte apenas com o Decreto
Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998, promulgado pelo Decreto n.
A referida petição, contendo a denúncia, somente será admitida pela
Comissão se cumprir certos requisitos (art. 46 da CADH; art. 31 a 33 do
Regulamento da Comissão), tais como: 1) esgotamento dos recursos
jurídicos internos disponíveis; 2) observação do prazo máximo de seis meses
a partir da notificação sobre o esgotamento dos mecanismos internos; e
3) inexistência de litispendência internacional. É importante frisar que as
disposições do primeiro e segundo requisitos não se aplicarão quando a
legislação interna do país envolvido não garantir o devido processo legal,
ou quando houver demora injustificada do julgamento. Este é o teor do
próprio art. 31.2 do Regulamento da Comissão e da Opinião Consultiva n.
11/90, de 10 de agosto de 1990, da Corte: se pessoa “indigente” tiver seus
direitos violados e não puder, por qualquer motivo, esgotar os recursos
jurídicos internos; quando houver, no sistema judiciário de certo país,
grande temor/comoção social em relação à algum caso (e.g., quando
advogados temem trabalhar em dada causa, com medo de represálias
social da indiferença, nos termos materializados há décadas na Alemanha nazista, não serve hoje como analogia
apenas aos agentes do Bope, mas a todos nós. Faz com que cidadãos modalidade ‘de bem’, porque trabalham,
amam sua família e têm medo da violência, aceitem o desprezo por todas as conquistas e garantias individuais de
outros “não pessoas”, bandidos, sem se darem conta, assim como Eichmann, de estarem sendo co-responsáveis
por um novo holocausto. (...). E não pensemos, quando a situação for definitivamente insuportável, com as balas
perdidas da guerra deles entrando no quarto de cada um de nós, que o medo, então, nos absolverá”.
10Art. 23, Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.cidh.
oas.org/basicos/portugues/u.Regulamento.CIDH.htm>. Acesso em: 09 de novembro de 2012.
11 Cf. WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 161; vide CADH, art. 62, §2º: “Todo Estado Parte
pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em
qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial,
a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.”
12 A data de 10 de dezembro de 1998 foi a data de depósito da aceitação da competência obrigatória da Corte
junto à Secretaria-geral da OEA.
13 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 384-385.
14 WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 159: “Em casos de supostas vítimas sem representação
legal devidamente credenciada, o Tribunal poderá designar de ofício um Defensor Interamericano que as represente
durante a tramitação do caso”, destacando o autor que desde 2010 vigora Acordo de Entendimento entre a Corte e
a AIDEF (Associação Interamericana de Defensores Públicos) prevendo que a AIDEF designará, nos casos de vítimas
hipossuficientes ou sem representação, um defensor público para atuar no caso. Sobre o tema, vale v. ainda o art.
8º, II, “e”, da CADH, um avanço em relação ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que prevê somente
um defensor ex officio e gratuito (art. 14, 3, “d”, PIDCP), tudo cf. WEIS, Carlos. Idem, p. 141.
15 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 96
195
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
contra sua vida e/ou de familiares), a pessoa ou grupo de pessoas não
precisará esgotar todos os recursos, sem prejuízo de o Estado garantir
condições mínimas para que a vítima possa manejá-los.
O caminho percorrido desde a apresentação da petição, até eventual
Relatório, pode ser descrito resumidamente da seguinte forma: aquele
(ou seu representante legal) que tenha seus direitos violados apresenta a
petição à Comissão; após, ter-se-á o juízo de admissibilidade, de acordo
com os requisitos dispostos no artigo 46 da Convenção Americana de
Direitos Humanos. Caso o reclamado prove a disponibilidade de recursos
internos para o exercício de direito protegido pela Convenção, o ônus da
prova é transferido ao reclamante que deverá, então, demonstrar se as
exceções são aplicáveis. Caso reconhecida a admissibilidade da petição,
estabelece-se o contraditório e a ampla defesa do Estado-parte16, tendo
sempre em vista a possibilidade de solução amistosa entre o denunciante
e o denunciado. Havendo solução amistosa, a Comissão elaborará
um informe contendo breve exposição dos fatos e do acordo a que se
chegou. Se não houver acordo, sobrevirá o Relatório (que é mandatório),
apresentando, também, os fatos, as alegações das partes, e as conclusões
pertinentes ao caso, bem como recomendações a serem cumpridas pelo
Estado-parte.
Posteriormente, se a Comissão considerar que as recomendações
não foram acatadas, irá submeter o caso à Corte Interamericana de
Direitos Humanos ou publicar o Relatório com o objetivo de produzir
censura enquanto produção de “vergonha” para o Estado-parte perante a
comunidade internacional. A Comissão tem, ainda, conforme o art. 25 de
seu Regulamento, o poder de solicitar ao Estado-parte que adote medidas
cautelares com o objetivo de evitar lesões irreparáveis aos direitos dos
peticionários. A iniciativa pode ser tanto do reclamante quanto da própria
Comissão, a depender da gravidade, urgência e contexto da situação17.
O destino final da lide, caso não haja solução no âmbito da Comissão,
é, enfim, a Corte Interamericana no exercício de sua função contenciosa.
Eventual condenação do Estado-parte pela Corte Interamericana,
reconhecendo a violação de direitos, e, possivelmente, uma indenização
compensatória, têm caráter vinculante e obrigatório: não se trata de
“sentença estrangeira”, não necessitando, assim, de homologação por
Tribunal Superior, podendo ser executada diretamente segundo as normas
vigentes no Estado-parte18.
16 Sobre o tema, v. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.
17 Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/reglamento.cfm>. Acesso em: 10 de novembro de 2012.
18 Sobre, v. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 104.
196
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
3. A questão penitenciária brasileira e exemplos de Relatórios da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos
Atualmente, se considerado o grau intenso de violação a direitos
fundamentais praticada no sistema penitenciário e, principalmente, nas
delegacias de polícia e cadeias públicas, no Brasil, pode-se considerar
ainda muito tímido o exercício do direito de petição perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos19. Não há condenações do Estado
brasileiro na Corte Interamericana relativas ao tema, mas sim quatro
medidas provisórias – estas sim, todas atinentes à questão penitenciária
ou à internação de adolescentes, abordadas adiante.
Já no âmbito da Comissão, há diversos Relatórios que tangenciam ou
tratam diretamente da questão penitenciária. Mencionam-se, aqui, dois
exemplos. Ovelário Tames20, primeiramente, cidadão de origem indígena,
foi detido por policiais civis do Estado de Roraima e encontrado morto, no
dia seguinte, dentro de sua cela, no município de Normandia, situado a
aproximadamente 200 km de Boa Vista. Consta que Ovelário permaneceu
durante grande parte da noite queixando-se fortemente de dores na
barriga, sem qualquer tipo de assistência por parte das autoridades, vindo
a falecer nas horas seguintes. O inquérito policial aberto para investigar
o caso mostra que o soldado que prendeu Ovelário o agrediu na região
do abdômen porque teria resistido à ordem de prisão. Além disso,
testemunhas confirmam que a vítima estava em condições deploráveis
quando adentrou a cela: “que estava agonizando (...)”, e, posteriormente
que “o cadáver apresentava sinais evidentes de violência no abdômen,
com manchas violentas (...)”21.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu, assim,
que o Estado Brasileiro foi responsável22 por uma série de violações a
direitos estabelecidos na Convenção Americana, fazendo as seguintes
recomendações: 1) realização de investigação séria, imparcial e eficaz
dos fatos e circunstâncias que levaram à morte de Ovelário Tames, com
a identificação dos responsáveis; 2) que tal investigação incluísse as
possíveis omissões, negligências e obstruções da Justiça, que tiveram como
consequência a inexistência de condenação definitiva dos responsáveis e,
inclusive, as possíveis negligências do Ministério Público e de juízes que
possam ter determinado a não aplicação ou redução da pena; 3) que se
tomassem as medidas necessárias para concluir os processos judiciais
19 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal, p. 175 e ss.
20 Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de nº 60/99, de 13 de abril de 1999.
21 Disponível em: <http://www.cidh.org/annualrep/98span/fondo/brasil%2011.516.htm>. Acesso em: 10 de
novembro de 2012
22 Sobre uma das ações tomadas pelo Estado Brasileiro referentes ao caso, ver: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/pfdc/
informacao-e-comunicacao/informativos-pfdc/edicoes-de-2006/fevereiro/anexo_inf-21-2006_1.pdf>. Acesso em:
10 de novembro de 2012.
197
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
e administrativos ainda em andamento referentes ao caso; 4) que o
Estado Brasileiro reparasse as consequências das violações aos direitos
dos familiares ou quem quer que seja que tenha(m) sofrido prejuízos em
decorrência dos fatos.
Outro caso também emblemático ficou conhecido como “Massacre do
Carandiru”, ocasião em que 111 presos (dos quais 84 processados, mas
ainda não definitivamente condenados) foram mortos, e os sobreviventes,
submetidos a lesões graves, durante desastrosa intervenção com o
objetivo de conter um motim de detentos. Até o presente momento, já
tendo o incidente completado vinte anos, nenhum dos agentes policiais
envolvidos foi responsabilizado. Acerca do episódio, a Comissão elaborou
o parecer de nº 34, de 13 de abril de 2000. As recomendações foram de
que o Estado Brasileiro: 1) realizasse uma investigação completa, imparcial
e efetiva a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários
responsáveis pelas violações dos direitos humanos; 2) adotasse as medidas
necessárias para que as vítimas dessas violações que foram identificadas
e suas famílias recebam adequada indenização pelas violações, assim
como para que sejam identificadas as demais vítimas; 3) desenvolvesse
políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das
casas de detenção, estabelecendo programas de reabilitação e reinserção
social de acordo com as normas nacionais e internacionais. A orientação,
bastante óbvia, foi pela adoção de políticas, estratégias e treinamento
especial orientados à negociação e à solução pacífica de conflitos, assim
como técnicas de reinstauração da ordem que permitissem a subjugação
de eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a integridade
pessoal dos internos e das forças policiais.
4. A questão penitenciária brasileira e as Medidas Provisórias
impostas pela Corte Interamericana
Observa-se, preliminarmente, que as decisões ou medidas cautelares
da Corte ou da Comissão Interamericana, meras recomendações, não se
confundem com as medidas provisórias impostas pela Corte.
São apenas quatro casos nos quais a Corte adotou Medida Provisória
em relação ao Brasil, sendo todos os quatro atinentes à questão
penitenciária: são aqueles do Presídio Urso Branco, em Rondônia; da
Unidade de Internação Socioeducativa, no Espírito Santo; da Penitenciária
Dr. Sebastião Martins Silveira, em São Paulo; e do Complexo do Tatuapé,
antiga FEBEM, também em São Paulo.
198
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
O Presídio Urso Branco (Casa de Detenção Dr. José Mário Alves)
é um grande estabelecimento prisional, que se tornou símbolo das
más condições carcerárias e da impossibilidade de falar, ou de cogitar
qualquer projeto que pretendesse ser minimamente “ressocializador” ou
socialmente inclusivo. Consta, por exemplo, que ao menos 37 detentos
foram assassinados, de forma sistemática, por outros detentos, entre
janeiro e julho do ano de 200223. Foram reunidos relatos de inúmeros
outros episódios carregados de extrema violência, tais como motins
seguidos de torturas e esquartejamentos24. Diante disso, desde o ano de
2002 até agosto de 2011, foram emitidas, no total, dez resoluções por
parte da Corte, documentos esses que contém as medidas provisórias
oponíveis ao Estado Brasileiro.
O trâmite referente a este caso se deu da seguinte maneira: a Comissão
Interamericana, constatando a situação de verdadeira calamidade que
acometia o presídio, submeteu à Corte uma solicitação de medidas
provisórias em favor dos reclusos. Dentre as medidas tomadas e tidas
como as mais relevantes estavam: 1) requerimento ao Estado para que
adotasse todas as medidas necessárias para proteger a vida e integridade
pessoal de todas as pessoas reclusas na Penitenciária Urso Branco; 2)
requerimento ao Estado para que investigasse os acontecimentos que
motivaram a adoção destas medidas provisórias, com o objetivo de
identificar os responsáveis e impor-lhes as sanções correspondentes;
3) requerimento para que o Estado informasse, de dois em dois meses,
sobre as medidas adotadas; e 4) indicasse o número e nome dos reclusos
que se encontravam cumprindo pena e dos detentos sem sentença
condenatória e que, ademais, informasse se os reclusos condenados e os
não condenados se encontravam localizados em diferentes seções.
Além dos diversos relatórios reiterando a adoção e cumprimento das
medidas acima citadas, audiências públicas foram convocadas para que
a Comissão, peticionários (ONG’s), e o Estado Brasileiro pudessem ser
ouvidos. Na data de 24 de agosto de 2011, o “Pacto para Melhoria do
Sistema Prisional do Estado de Rondônia e Levantamento das Medidas
Provisórias Outorgadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”
foi assinado, na esperança de redução das violações e da violência na
unidade.
O segundo caso, atualíssimo, envolve a Unidade de Internação
Socioeducativa (UIS), localizada em Cariacica, próximo a Vitória, Capital
do Espírito Santo, destinada a crianças e adolescentes. Um dos principais
23 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 18 de junho de 2002. Disponível em: <http://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_01_portugues.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2012.
24 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 22 de abril de 2004. Disponível em: <http://www.
corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_03_portugues.pdf>. Acesso em 17 de novembro de 2012.
199
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
problemas do local é a superlotação, já que a capacidade nominal era
de 110 menores, mas abrigava, à época, cerca de 290. As denúncias
tratavam, entre outros fatos, de adolescentes algemados que eram
mantidos no pátio da Unidade; ausência de separação entre os internos
por razão de idade, compleição física e gravidade da infração; e agressões
e tortura a adolescentes por parte de funcionários da UNIS e por outros
adolescentes do centro25. A Corte, então, baseada em solicitação da
Comissão (provocada, por sua vez, pelas ONG’s Centro de Defesa dos
Direitos Humanos da Serra do Estado do Espírito Santo e Justiça Global),
resolveu, dentre outras medidas, requerer ao Estado brasileiro que
adotasse de forma imediata todas as medidas que fossem necessárias para
proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as crianças
e adolescentes privados de liberdade; que tomasse as providências
adequadas para que as medidas de proteção à vida e à integridade
pessoal fossem planificadas e implementadas com a participação dos
representantes dos beneficiários e que os mantivessem informados sobre
o avanço de sua execução. Complementarmente, audiências públicas
também foram convocadas para que as partes envolvidas pudessem ser
ouvidas. O caso não se encerrou e permanece aberto. A quarta Resolução,
datada de novembro de 2012, reitera as medidas já emitidas e deve
vigorar até 31 de agosto de 2013, restando explícita a dificuldade e falha
do Estado brasileiro em acatar as determinações.
reparos, cuja capacidade era, pasmem, para apenas 160 pessoas. Consta,
ainda, que os agentes carcerários retiraram-se do local e soldaram a porta
de acesso, isolando todos em pátio aberto. Os detentos, portanto, não
dispunham de bens pessoais, de roupas adequadas, de colchões e de
energia elétrica, cortada pelo Estado para evitar a recarga de celulares. E
foi nessa condição que permaneceram por mais de 10 dias. Diante de tal
quadro, a Corte Interamericana resolveu requerer ao Estado que adotasse
as medidas necessárias, com estrito respeito aos direitos humanos das
pessoas privadas de liberdade, especialmente às suas vidas e integridade,
e cuidado para impedir atos de força indevidos por parte de seus agentes,
para que estes recuperassem o controle e a ordem na Penitenciária de
Araraquara que: ao recuperar o controle, conforme o ponto resolutivo
anterior, oferecesse-lhes o atendimento médico adequado; reduzisse
substancialmente a superpopulação na Penitenciária de Araraquara,
separasse as pessoas privadas de liberdade por categorias, conforme
os padrões internacionais sobre a matéria, e possibilitasse a visita
dos familiares. Audiências públicas também foram convocadas.
Posteriormente, com o intuito de reparar as instalações danificadas, os
detentos foram progressivamente transferidos a outras unidades. Por fim,
constatando a relativa melhora da situação no presídio, na data de 25 de
novembro de 2008, as medidas provisórias foram levantadas e o assunto,
arquivado.
O terceiro caso se refere à penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira,
localizada no Estado de São Paulo. Tal complexo penitenciário é composto
pelo Centro de Detenção Provisória (CDP) e pelos pavilhões tradicionais,
destinados aos presos já condenados definitivamente. Os fatos expostos
se relacionam à série de rebeliões deflagradas no Estado de São Paulo
durante o mês de maio de 2006.
O quarto e último caso envolve crianças e adolescentes privados de
liberdade no “complexo do Tatuapé”, da extinta FEBEM, cuja sigla significa,
ironicamente, Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor. Quando
as denúncias foram feitas, a situação do local se mostrava insustentável:
dia após dia novas mortes ocorriam, provocadas pelos próprios internos,
em motins, brigas e espancamentos, ou pela falta de assistência médica
necessária. Saliente-se que tais episódios ocorreram posteriormente a
medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Assim, tendo em vista a ineficácia das medidas acima citadas, a Corte
resolveu requerer ao Estado que adotasse de forma imediata as medidas
que fossem necessárias para proteger a vida e integridade pessoal de
todas as crianças e adolescentes residentes no Complexo do Tatuapé
da FEBEM. Para tanto, determinou que as medidas de proteção fossem
implementadas com a participação dos representantes dos beneficiários
das medidas; que o Estado investigasse os fatos que motivaram a adoção
das medidas provisórias, com o fim de identificar os responsáveis e imporlhes as sanções correspondentes. Por fim, no ano de 2008, três anos após
a emissão da primeira resolução sobre o caso, a Corte decidiu levantar as
medidas provisórias e arquivar o caso.
Mais uma vez, é a superlotação, fator comum à esmagadora maioria
de estabelecimentos prisionais brasileiros, que se faz presente: depois
de danos à estrutura do CDP, causados pelo motim, aproximadamente
600 reclusos foram transferidos aos pavilhões (que já se encontravam
superlotados), fazendo com que aproximadamente 1.600 pessoas
ficassem confinadas em um espaço destinado a 750 pessoas26. Como
agravante, os referidos pavilhões que tinham a missão de abrigar
os 600 novos presos provisórios foram alvo de uma nova rebelião,
impossibilitando, naquele local, a continuidade da estadia. Assim, os
mesmos 1.600 detentos foram transferidos a uma ala ainda carente de
25 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 25 de fevereiro de 2011. Disponível em: <http://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/socioeducativa_Se_01_portugues.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2012.
26 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 28 de julho de 2006. Disponível em: <http://www.
corteidh.or.cr/docs/medidas/araraquara_se_01_por.pdf >. Acesso em: 17 de novembro de 2012.
200
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
201
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
5. Percursos necessários e considerações finais
Cunhou-se denominar controle de convencionalidade a interpretação
que a Corte pode fazer da legislação doméstica de um dado Estado em
face dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos,
fixando a melhor interpretação para a efetivação das disposições destes
últimos. Já se defende que o controle de convencionalidade difuso e
concentrado também deve ser realizado em âmbito interno, pelos juízes e
tribunais locais, procedendo “ao exame de compatibilidade das leis com a
Convenção Americana, levando em conta não somente a Convenção, mas
também a interpretação que dela faz a Corte Interamericana”27. Toca-se
um dos temas mais importantes e delicados na matéria: aquele referente à
internalização dos tratados de direitos humanos. Para abalizada doutrina,
tratados de direitos humanos não aprovados nos termos do art. 5º, §3º,
da Constituição – se aprovado com o quórum e o trâmite ali previsto,
não há dúvidas de que será “equivalente a emenda constitucional” –
seriam materialmente constitucionais28. No entanto, posicionou-se o
Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria, no julgamento do
Recurso Extraordinário (RExt) 349.703/08, no sentido de que a Convenção
Americana de Direitos não teria status constitucional, mas supralegal
(acima da legislação ordinária), exercendo eficácia paralisante por sobre a
legislação concernente à prisão civil por dívida (STF – Súmula Vinculante
nº. 25).
Seja como for, vem do Sistema Global, e não do Sistema Interamericano,
a afirmativa contundente e fundamental de que os patamares mínimos
estabelecidos para as condições materiais das prisões devem ser
observados independentemente do desenvolvimento socioeconômico
do Estado. Referimo-nos ao caso Mukong v. Cameroon (Mukong contra
Camarões)29, levado ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas – importante órgão incumbido de garantir a proteção aos
direitos listados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.30
27 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, p. 84. Ver também
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 100.
28 Dentre os argumentos, nota-se aquele que aponta que a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro
de 2004, com o art. 5º, §3º, teria restringido direitos fundamentais em face do art. 5º, §1º, da Constituição, ao
condicionar o gozo de status constitucional dos tratados de direitos humanos à aprovação por 3/5 do Congresso
Nacional.
29 O caso se refere ao fato ocorrido em junho de 1988, quando Albert Womah Mukong, cidadão camaronês e
jornalista opositor ao governo, foi preso após manifestação em entrevista. Mukong alegou que teria permanecido
em distrito policial com condições indignas, tais como superlotação, falta de banheiro, falta de alimentação, por
dias, obrigação de dormir no concreto, dentre outras. Também alegou que havia proibição de visita de advogados,
familiares e amigos. Assim, os seguintes direitos teriam sido violados: proteção contra tortura (artigo 7º); direito à
liberdade e às proteções contra o arbítrio estatal (artigo 9º, § 1º a 5º); direito ao devido processo legal (artigo 14, §
1º e 3º); e direito à liberdade de expressão (artigo 19) do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
30 Vale observar que a Convenção Americana de Direitos Humanos é considerada o instrumento correspondente
ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, respectivamente no Sistema Americano e no Sistema Global.
Texto integral do Pacto disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>.
Acesso em: 15 de novembro de 2012. O Pacto foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
202
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
A relevância da decisão está, justamente, em colocar que certos
patamares mínimos, referentes às condições de detenção, precisam
ser observados independentemente do nível de desenvolvimento
socioeconômico do Estado. Isso inclui, de acordo com os artigos 10, 12,
17, 19 e 20 das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da ONU
(documento acolhido no Brasil pela Resolução nº 14 do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária, de 1994), espaço livre mínimo,
instalações sanitárias mínimas, roupagem, cama separada, e provisão de
alimentos com valor nutricional adequado31.
A assertiva, porém, pode constituir importante diretriz para que,
enfim, se judicializem, no Brasil, as políticas públicas atinentes à questão
prisional, com fulcro na vedação às penas cruéis como direito fundamental
garantido pelo art. 5º, XLVII, “e”, da Constituição e pelo art. 5.2 da CADH.
Parâmetros normativos não faltam: além das “Regras Mínimas” da ONU e
os dispositivos constitucionais, convencionais e legais mencionados, vide
também o art. 10.1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a
ratificação da Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanas ou Degradantes por meio do Decreto nº. 40, de 15 de
fevereiro de 1991.
Se o tema do controle judicial de políticas públicas é relativamente novo,
pouco ou nada se fala na observância dos referidos patamares mínimos
como verdadeiro direito transindividual, cuja violação exigiria o manejo
de instrumentos como ação civil pública, mandado de segurança coletivo
e, por que não, habeas corpus coletivo, tendo por objetivo, conforme
o caso, tanto a imediata cessação das violações – com a interdição do
estabelecimento e a substituição da custódia pela prisão domiciliar
ou medida similar, na ausência de vaga em unidade adequada – como
a responsabilização objetiva do Estado pelos danos materiais e morais
causados32.
No debate sobre o possível controle judicial desta desastrada e trágica
política pública que constitui a questão penitenciária, o tema da reserva
do possível certamente não terá guarida, como justificação pelo Estado,
se adotada a conclusão do caso Mukong. Ora, os mesmos fundamentos já
acolhidos pelos Tribunais Superiores para a concessão de prisão domiciliar
como forma de tutela da dignidade humana em casos de falta de vagas em
Legislativo n° 226, de 12 de dezembro de 1991.
31 Decisão, na íntegra, em inglês, disponível em: < http://www.bayefsky.com/pdf/100_cameroonvws458.pdf>.
Acesso em 15 de novembro de 2012.
32 No sentido da notícia recente, de 14 de maio de 2012: “Defensoria de Minas Gerais obtém condenação
do Estado por danos morais difusos”, referente a delegacias superlotadas em Contagem/MG. TJMG, processo:
1.0079.07.343322-3/001. Acórdão publicado em 16/03/2012. Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtk/
pagina/materia?id=14310.
203
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
estabelecimentos prisionais de regime semiaberto33, somados à vedação
constitucional de penas cruéis (art. 5º, XVII, e, CR) e dispositivos positivados
em tratados internacionais, são inteiramente aplicáveis às condições
estruturais do sistema penitenciário brasileiro. Exemplo nesse sentido
foi a polêmica decisão de um magistrado que determinou a soltura de
presos recolhidos em condições desumanas em duas delegacias da cidade
de Contagem/MG34. Tal reconhecimento não seria uma medida inédita:
o Tribunal Provincial de Hamm, na Alemanha, julgou, em 1967, que a
manutenção de três presos em uma cela pequena violava a dignidade
humana garantida pela Constituição alemã35. O respaldo jurídico estaria na
consideração das prisões como estabelecimentos numerus clausus, assim
como são escolas e hospitais, bastando a previsão de procedimentos como
“filas de espera” e a soltura de presos considerados “menos perigosos” ou
prestes a sair, abrindo vagas a recém-condenados.
Não obstante a via para a tutela coletiva nesse campo tenha sido aberta
com a Lei 12.313/10, que inseriu, na Lei de Execução Penal, “a defesa dos
necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva”
(art. 81-A) como função da Defensoria Pública, o que certamente inclui
a atuação desta também junto aos órgãos internacionais de proteção
aos direitos humanos36, parece necessária uma profunda transformação
dos demais órgãos ainda imersos na visão tradicional que, tantas vezes,
legitima a ilegalidade em nome de abstrações arbitrárias – a velha “defesa
da sociedade” – e eticamente inadmissíveis.
Afinal, se a oposição popular à extensão de direitos mínimos individuais
a presos remete a um discurso que demarca um limite de pertencimento
que desumaniza e exclui, por um lado, e abre as portas ao isolamento
social, ao abandono dos espaços públicos e à privatização da segurança,
por outro, o que se vê é que os discursos em disputa acabam por demarcar
a (im)possibilidade de consolidação de uma sociedade verdadeira e
materialmente democrática no Brasil37, o que, pelo que se constata das
“falas do crime” no cotidiano e a sua correspondente atuação estatal,
ainda não aconteceu.
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
Referências
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Democratização Brasileira”. Novos Estudos, 30, CEBRAP, julho 1991, p. 162-174.
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Processos Coletivos: Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 291-302.
WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
33 Dentre muitos outros precedentes recentes, v. STF, HC 96.169/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 25/08/2009; STF,
HC 95.334/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. 03/03/2009; STJ, HC 48.629/MG, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, p.
04/04/2006.
34 Mais uma vez em Contagem/MG: decisão do juiz Livingston José Machado, da Vara de Execuções Penais de
Contagem/MG. Consta que em uma das delegacias, haviam 113 pessoas presas em uma cela projetada para 16
indivíduos. Todavia, o Poder Judiciário mineiro abriu procedimento administrativo para apurar suposta infração do
magistrado. Sobre, v. “Editorial em defesa da legalidade na execução penal: apoio do IBCCRIM ao magistrado de
Contagem/MG”. Boletim do IBCCRIM, v. 158, janeiro 2006, p. 1.
35 Sobre este e outros exemplos, v. FRAGOSO, Heleno Cláudio. “Perda da liberdade (os direitos dos presos)”.
Anais da VIII Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Manaus, 1980, p. 19.
36 Sobre o tema, v. RIBEIRO, Roberta Solis. “Sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e
Defensoria Pública”. SOUSA, José Augusto Garcia de (org.). A Defensoria Pública e os Processos Coletivos:
Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 291-302.
37 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
Novos Estudos, p. 173.
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205
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
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Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
NAS FRONTEIRAS DA JUSTIÇA
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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
Rosita MILESI1
Marcia Anita SPRANDEL2
Introdução
O enfrentamento ao tráfico de pessoas, particularmente para fins de
exploração sexual e trabalho escravo, é considerado uma prioridade na
pauta de numerosos governos, organismos internacionais e organizações
não-governamentais. Tem todo o sentido, pois é inadmissível que, no
mundo contemporâneo, continue, e até aumente, esta prática hedionda
de mercantilização de seres humanos.
O Brasil ratificou, em 2004, o protocolo adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial
Mulheres e Crianças (conhecido como Protocolo de Palermo)3, do qual
era signatário desde 2000. Em 2006, foi criada a Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.4 De 2008 a 2010, vigorou o I Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP)5 e, em 2013, foi
lançado o II PNETP.
O presente artigo contextualiza o momento de aprovação do Protocolo
de Palermo e sua incorporação pelo Governo Brasileiro, para em seguida
fazer uma reflexão ética sobre o tema. Com isso, objetiva qualificar o
debate sobre pauta tão importante para a contemporaneidade e que será
tema da Campanha da Fraternidade de 2014.
1 - O Protocolo de Palermo: contextualização, críticas e tensões
Conforme SPRANDEL e DIAS (2012), o Protocolo de Palermo surge no
contexto contemporâneo de globalização, diante da preocupação de
alguns países com a ampliação da mobilidade humana e sua vinculação
à questão da “criminalidade” internacional. Ou seja, em um contexto
1 Advogada, Religiosa da Congregação Scalabriniana, Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH)
e membro observador do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE).
2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB).
3 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional tem mais dois Protocolos Adicionais,
referentes ao combate ao tráfico de armas e ao combate ao contrabando de migrantes.
4 Disponível em http://www.reporterbrasil.com.br/documentos/cartilha_trafico_pessoas.pdf.
5 Disponível em http://portal.mj.gov.br/data/Pages/htm.
208
209
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
marcado pelo processo de aproximação da questão migratória a
problemas de segurança e crime, especialmente nos Estados-membros
da União Europeia e nos Estados Unidos.
Chama a atenção que, no final da década de 1990 e início de 2000,
as migrações internacionais tenham figurado nos relatórios oficiais da
ONU como um “desafio” prioritário de intervenção e debate (conforme
relatório final da Global Commission on International Migration6, de 2005),
a ser tratado na área de defesa dos direitos, tanto de Estados-soberanos
quanto dos próprios migrantes. Com o Protocolo de Palermo, o arcabouço
institucional das Nações Unidas que vinha tratando de criminalidade
internacional passa também a discutir e propor soluções para questões
relacionadas à temática migratória.
O fato do tráfico de pessoas e do contrabando de migrantes terem sido
problematizados no âmbito de uma Convenção da ONU de repressão
à criminalidade e não em uma Convenção de Direitos Humanos não é
aleatório, sinaliza para uma aproximação conceitual da mobilidade
humana a questões de caráter criminal e de segurança. Coerentemente
com este entendimento, a agência das Nações Unidas, responsável por
coordenar o processo de elaboração do Protocolo de Palermo, foi a United
Nations Office on Drugs and Crimes (UNODC), responsável, justamente,
pelo enfrentamento ao crime organizado transnacional.
Ao aderir ao Protocolo de Palermo, os países membros se comprometem
a realizar mudanças na legislação e a construir políticas públicas. O
cumprimento destes compromissos é avaliado por agências internacionais
– como o próprio UNODC, no caso da ONU – e por instituições nacionais
que lidam com política externa, como o Departamento de Estado dos EUA,
que publica anualmente a série de Relatórios TIP (Trafficking in Persons),
avaliando as respectivas ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas
desenvolvidas em diferentes países do mundo. Estes e outros organismos
internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e
Organização Internacional para as Migrações (OIM), também promovem
campanhas, capacitações e atividades diversificadas que concorrem para
a formação de opinião e difusão de informações junto à sociedade civil.
O texto do Protocolo de Palermo está longe de ser uma unanimidade,
afirmam SPRANDEL e DIAS (2012). Ao incluir em um mesmo conceito (e
tipo penal, se pensarmos que a tipificação penal é um dos objetivos da
adesão ao texto) a exploração da prostituição ou outra forma de exploração
sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares
à escravatura, a servidão e a remoção de órgãos, o Protocolo coloca
6 Ver o relatório final da Global Comission em http://www.iom.int/jahia/webdav/site/myjahiasite/shared/
shared/mainsite/policy_and_research/gci/GCIM_Report_Complete.pdf.
210
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
desafios e dificuldades a governantes, operadores do direito e defensores
de direitos de trabalhadores imigrantes. Subjacente a esta tensão está a
dicotomia entre crime e direito, que perpassa as categorias apresentadas
na definição de tráfico do Protocolo de Palermo. A leitura da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) sobre o tráfico de pessoas, por exemplo,
o considera uma das agressões à dignidade humana e uma das graves
violações aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no trabalho.
A OIT vê o tráfico de pessoas como a antítese do trabalho em liberdade.
Coerentemente a esta visão, a maior difusão internacional de casos de
trabalho escravo ou trabalho forçado estaria ligada a elementos estruturais
da globalização, como a terceirização desregrada de partes do processo
produtivo e a perda de valor do trabalho. Ou seja, a perspectiva da OIT
traz o debate, sobre o tráfico de pessoas, para o mundo do trabalho e da
defesa dos direitos dos trabalhadores migrantes.
No entanto, apenas o trabalho escravo ou forçado não caracteriza o
tráfico de pessoas, uma vez que é fundamental que haja o deslocamento
territorial. É aí que a temática das migrações, afeta anteriormente, pelo
menos no contexto brasileiro, ao mundo do trabalho ou da administração
pública, passa a interagir com a pauta criminal.
A Convenção de Palermo diferencia as noções de “tráfico de pessoas”
e “tráfico ou contrabando de migrantes”, tratando-as, inclusive, em
Protocolos distintos.
O “Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas,
especialmente de mulheres e crianças”, traz a conceituação abrangente
de tráfico de pessoas, nos termos do artigo 3º, ‘a’:
o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o
acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos
ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá,
no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
Por outro lado, o “Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de
Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea”, no artigo 3º, incisos ‘a’ e
‘b’, o tráfico ilícito (ou contrabando) de migrantes é definido como:
a facilitação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado Parte do qual
esta pessoa não seja nacional ou residente permanente com o fim de
211
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício
de ordem material”. Por entrada ilegal entende-se “a transposição de
fronteiras sem o preenchimento das condições necessárias para a entrada
legal no Estado receptor.
Organizações de defesa dos direitos de trabalhadores migrantes
denunciam que os Protocolos adicionais da Convenção de Palermo,
referentes ao tráfico de pessoas e de migrantes, têm servido, na prática,
para criminalizar e coibir a migração indocumentada. Defendem, para se
contrapor a esta leitura criminalizadora das migrações, que se tráfico de
pessoas é um crime, migrar é um direito.
Outra intersecção complexifica sobremaneira o debate, ao acrescer
às ideias de trabalho forçado e migração o universo do trabalho sexual.
A partir de Palermo, o turismo sexual e a migração internacional para
trabalhar na prostituição passaram a ser cada vez mais frequentemente
relacionados com o tráfico internacional de pessoas com fins de exploração
sexual. No debate público, por exemplo, o turismo sexual aparece quase
sempre vinculado à prostituição e à exploração sexual de crianças por
estrangeiros.
Conforme SPRANDEL e DIAS (2012), tal fusão é contestada em diversos
estudos. Em termos analíticos, o turismo sexual (que não é crime)
envolve um universo amplo e diversificado que está longe de reduzirse à exploração sexual de crianças e à prostituição. Embora, em certos
contextos, possa ter vinculações com a prostituição e o tráfico de pessoas,
são problemáticas diferentes. Entretanto, no debate, esses temas são
repetidamente lidos numa ótica que, ao fundi-los, faz com que as pessoas
envolvidas, sobretudo mulheres e crianças, tendam a ser percebidas como
seres necessariamente sujeitos à violência. Tal posicionamento, embora
tenha fundamentos sólidos no campo da defesa de direitos, não permite
uma real compreensão destes fenômenos. Ao contrário, contribui para
que um discurso enviesado sobre tráfico de pessoas se sobreponha às
realidades localizadas, esvaziando-as de sentido.
Para compreender esta tensão específica entre as pautas referentes ao
tráfico de pessoas e as pautas das trabalhadoras sexuais, é importante ter
consciência do peso que tiveram os lobbys de grupos feministas durante
a elaboração do Protocolo de Palermo. Tais grupos, embora coincidissem
no interesse em promover o bem-estar das mulheres, se dividiram no que
se refere à concepção da prostituição e da relação entre prostituição e
tráfico de pessoas.
A chamada abordagem abolicionista, organizada em torno da CATW/
Coalition Against the Trafficking in Women, defendia (e segue defendendo)
212
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
que a prostituição reduz as mulheres a objetos comercializáveis e que,
portanto, é sempre e necessariamente degradante e danosa para as
mulheres. Não reconhece distinções entre prostituição forçada e por livre
escolha. Sustenta que tolerando, regulando ou legalizando a prostituição,
os Estados permitem a violação dos direitos humanos. As medidas para
erradicar a prostituição são consideradas medidas antitráfico e vice-versa.
Por sua vez, a abordagem pró-direitos dos trabalhadores sexuais,
organizada em torno do GAATW/Human Rights Cáucus, considera a
prostituição como uma forma de trabalho e traça distinções entre a
prostituição voluntária exercida por adultos, a prostituição forçada e a
exploração infantil. Defende que a exploração - inclusive, o tráfico - não se
vincula de maneira automática à indústria do sexo, mas é favorecida pela
falta de proteção aos/às trabalhadores/as. Entende que os traficantes
se beneficiam da ilegalidade da migração e da ilegalidade do trabalho
sexual comercial.
Esta tensão entre grupos feministas é reatualizada constantemente.
Um exemplo é o posicionamento em relação aos grandes eventos
esportivos internacionais, como Copa do Mundo, Olimpíadas, Copa das
Confederações etc. A GAATW lançou recentemente o relatório What’s
the Cost of a Rumour? A guide to sorting out the myths and the facts
about sporting events and trafficking7, preocupada com a quantidade
de referências na mídia e em documentos oficiais sobre uma suposta
ligação entre grandes eventos esportivos e o tráfico de pessoas. Segundo
estudiosos do tema, esta relação não se confirma.
Segundo a ONG, a despeito da ausência de evidências, o alarde em
torno do tráfico continua a ter grande apelo para grupos abolicionistas,
grupos anti-imigração, políticos e jornalistas, em função de sua eficácia em
chamar a atenção da mídia e da população – já que é uma forma rápida
e fácil de ser visto “fazendo algo” contra o tráfico –, por sua utilidade
como estratégia para financiamento de projetos e por ser um pretexto
mais socialmente aceitável para pautar agendas antiprostituição e antiimigração.
Enquanto isso, um dos aspectos mais presentes no cotidiano de muitos
países, que é o tráfico de pessoas para fins de trabalho doméstico, tem
sido pouco estudado e, consequentemente, pouco enfrentado. No
entanto, o trabalho doméstico, muitas vezes, pode resultar do tráfico
de pessoas, sobretudo quando envolve crianças e adolescentes levadas
para trabalhar em “casas de família” em idade inferior àquela permitida
pela legislação (18 anos, no Brasil) ou sem nenhum direito trabalhista
7 Acesso em http://www.gaatw.org/publications/WhatstheCostofaRumour.11.15.2011.pdf.
213
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
respeitado. Estamos tratando, neste caso, de situações de trabalho
doméstico forçado, que, espera-se, sejam mais enfaticamente enfrentadas
com a aprovação da Convenção 189 sobre trabalho doméstico, na 100ª
Conferência Internacional do Trabalho, realizada em junho de 2011.
A discussão da temática do tráfico de pessoas também não deve
ser deslocada do contexto mais abrangente das políticas no âmbito
internacional. Se, para muitos países em desenvolvimento, o tráfico de
seres humanos não aparece (ou melhor, não aparecia) como um tema
prioritário em suas agendas, alguns países desenvolvidos costumam
endossar a construção do problema, vinculando-o a um “outro”
(estrangeiro) potencialmente bárbaro e criminoso, que surge como uma
constante ameaça a ser defendida e evitada. Assim, o tema do tráfico
de pessoas acabaria se traduzindo em mais um aparato conceitual que
aproxima a conduta de estrangeiros de práticas criminosas, reforçando
visões xenófobas e reatualizando representações coloniais e neocoloniais
com relação aos imigrantes.
Além disso, estudiosos, como Pardis Mahdavi, professora associada do
Departamento de Antropologia do Promona College, têm demonstrado
que o tema do tráfico de pessoas tem servido, não raras vezes, como objeto
de barganha em discussões de política internacional. Um exemplo disso
seria a avaliação do desempenho dos distintos países no cumprimento de
medidas de combate ao tráfico de pessoas produzida anualmente pelo
Departamento de Estado dos EUA e publicizada por meio dos Relatórios
TIP.
O Relatório TIP 20118, por exemplo, elenca 180 países em três grupos
(sendo o Grupo 1 o melhor e o Grupo 3 o pior) de acordo com as iniciativas
e desafios levados a cabo pelos governos nacionais no enfrentamento ao
TSH. Em 2011, o número de países classificados no Grupo 3 (que podem
ser objeto de sanções não-humanitárias) cresceu de 13 para 23. Para
muitos analistas, tal ranking representaria, na verdade, os interesses da
política externa dos Estados Unidos. Nesse caso, Coréia do Norte, Irã,
Cuba, Venezuela, Iêmen, Argélia, Birmânia e Líbia, entre outros, ficaram
no Grupo 3, enquanto Canadá, Alemanha, Dinamarca, Coréia do Sul,
Austrália e, é claro, EUA, no Grupo 1.
As considerações de política externa dos EUA estariam influenciando
as designações dos integrantes dos Grupos, o que comprometeria a
integridade destes relatórios, que são fontes importantes de avaliação
das políticas antitráfico no mundo. Segundo Mahdavi, a linguagem das
narrativas dos países em todo o relatório está repleta de nepotismo
8 Disponível em http://www.state.gov/j/tip/rls/tiprpt/2011/.
214
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
norte-americano. A Colômbia, por exemplo, é descrita como sendo capaz
de realizar esforços “continuados e robustos de prevenção”, o que inclui
uma condenação por trabalho forçado. A Venezuela, por outro lado, é
penalizada no Grupo 3, quando “o governo prendeu pelo menos doze
pessoas por crimes de tráfico durante o período do relatório”.
Independentemente deste contexto de política externa, evidenciase que a agenda do tráfico humano tem servido para que os países
hegemônicos deixem de enfrentar de forma mais consistente a pauta dos
direitos dos trabalhadores migrantes e suas famílias, que segue sendo
colocada em segundo plano em suas políticas públicas. Ao contrário, os
aspectos repressivos e criminais da pauta antitráfico acabam reforçando
estereótipos de um estrangeiro potencialmente bárbaro e criminoso, o
que se distancia de forma vigorosa de uma discussão mais bem informada
sobre a realidade social de migrantes em diferentes contextos nacionais.
2 - O Protocolo de Palermo no Brasil
Em 2004, quando o governo brasileiro ratificou a Convenção de
Palermo, a pauta do tráfico de pessoas praticamente inexistia no país.
Há décadas, no entanto, a sociedade civil e as associações de migrantes
vinham cobrando, dos sucessivos governos, políticas públicas para sua
proteção e uma nova Lei de Estrangeiros, que superasse o caráter de
segurança nacional da lei em vigor, fruto que foi de um governo ditatorial
(Lei 6.815, de 1980).
Outras demandas da sociedade estavam em fase de atendimento, por
meio da execução dos Planos Nacionais de Enfrentamento à Exploração
Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (2000), de Erradicação do
Trabalho Escravo (2003) e de Erradicação do Trabalho Infantil (2004).
Ou seja, no começo dos anos dois mil, as demandas da sociedade civil
brasileira se referiam à proteção de migrantes, crianças e adolescentes
vítimas de exploração sexual comercial, crianças e adolescentes em
situação de trabalho infantil e trabalhadores adultos em situação de
trabalho escravo.
A pauta antitráfico acabou interferindo ou mesmo se sobrepondo a
todas estas questões e criando, em nosso ponto de vista, uma “demanda
artificial”, que acabou gerando novos problemas e desviando a atenção,
bem como recursos humanos e orçamentários, da área de defesa dos
direitos dos migrantes. “Demanda artificial” não porque o crime do tráfico
de pessoas inexista e não necessite ser enfrentado pelas autoridades
competentes, mas porque a abrangência do enfoque e a maneira como
as discussões foram inicialmente pautadas fizeram crer que ele estaria
215
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
amplamente difundido na sociedade brasileira e que precisaria ser
priorizado, em detrimento de outras temáticas.
Como bem analisam SPRANDEL e DIAS (2012), no universo relativamente
pequeno de militantes e defensores dos direitos dos migrantes, acabou
por criar clivagens, envolvendo, sobretudo, a tentativa de subsumir a
questão do trabalho escravo no conceito guarda-chuva de tráfico de
pessoas e em função da criminalização do trabalho sexual, que continua a
provocar polêmicas e discordâncias.
A pauta antitráfico, além disso, foi extremamente eficaz em termos da
construção de convencimentos, por meio de capacitações e campanhas.
De fato, parece que o objetivo de ver o tráfico de pessoas sendo discutido
por nossa sociedade civil organizada - através de workshops e capacitações
– foi alcançado. Trata-se, agora, de participar ativamente deste debate,
sempre levando em consideração a contextualização apresentada acima,
tendo como parâmetro ético a riqueza de reflexões que a Sagrada Escritura
nos fornece.
3 - Tráfico de Pessoas – Uma reflexão Ética9
O Tráfico de Pessoas é um problema ético antigo. O povo de Israel
sentiu em sua própria carne o que era trabalhar e viver desterrado (Gn 12,
1-10; 26,1-6). A proibição do rapto e comércio de pessoas está legislado
na Lei de Moisés. Na Torá, o mandamento Não roubar (Ex 20,15) proíbe
apoderar-se de pessoas para reduzi-las à escravidão. Desse modo, visa
toda e qualquer alienação da liberdade de outrem. Semelhante legislação
aparece no catálogo de normas apresentadas por Javé a Moisés (Ex 2123): “Quem cometer um rapto – quer o homem tenha sido vendido ou
ainda se encontre prisioneiro em suas mãos – será morto” (Ex 21,16).
Dt 24,7 é mais incisivo: todo aquele que raptar uma pessoa para tirar
proveito é réu de morte.
José, filho de Jacó, aparece na Bíblia como primeira vítima do tráfico
de pessoas da história (Gn 37,13-28)10. Foi salvo da morte por Rubem,
seu irmão mais velho, pois José “é nosso irmão, nossa carne”. Era mais
vantajoso vendê-lo do que matá-lo e ocultar seu sangue para abafar a
justiça. Abandonado em uma cisterna, encontrado por comerciantes
madianitas que logo o venderam por vinte ciclos e levado ao Egito para
trabalhar como escravo. Quando o irmão mais velho volta à cisterna, “José
9 A presente reflexão ética é uma breve contribuição de Élio Estanislau Gazda, s.j., professor de Ética e Teologia
na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte), Doutor em Teologia pela Universidade Pontifícia de
Madrid.
10 WÉNIN, André. José, ou a invenção da fraternidade. Leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37-50. São
Paulo: Loyola, 2010.
216
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
não estava mais lá. Rasgou suas vestes e voltou para seus irmãos dizendo:
o menino não está mais lá! E eu, para onde irei?” (Gn 37, 30). Rubem
fracassou em sua tentativa de salvar o irmão. Indigna-se ante a indiferença
dos demais irmãos diante do desaparecimento do caçula. Mais tarde, os
irmãos assumem sua culpa pelo ato e sua insensibilidade diante dos gritos
desesperados do irmão clamando por não ser abandonado (cf. Gn 42, 2122). A vítima tem a força de desmascarar a mentira. Ao fazê-lo, reverte os
rumos da história.
Este relato bíblico revela que, na fé cristã, a partir do momento em que
junto ao “eu” (Rubem) aparece um “tu” (José), dá-se a irrupção da ética. O
rosto do outro, como diz Lévinas, solicita, interpela o “eu” ensimesmado.
Quando o eu exclama: “quero que tua liberdade e autonomia sejam”, está
descendo a gigantesca escadaria do seu castelo de vaidades.
Para um eu ético, a preciosa fragilidade da pessoa confere sentido ao
ser humano e rompe a barreira do vazio e da indiferença. O outro passa
a ser a condição de possibilidade para que o eu mereça respeito de si
mesmo. Deus, através da fragilidade do outro abre os olhos: salvai o
mísero e o indigente, arrancai-o das mãos dos iníquos... pois a injustiça
abala todos os fundamentos da terra (Sl 82,4-5).
O desejo fundamental de todo ser humano é o desejo de reconhecimento
da sua liberdade. O direito absoluto é o direito de ter direitos (Hegel).
O reconhecimento é a exigência ética mais profunda. Sou ser humano
na medida em que consigo sair do meu eu para me tornar humano na
acolhida do outro. Por isso, os direitos do homem são originariamente os
direitos do outro humano (Paul Ricoeur).
A busca de Rubem pelo irmão-vítima é uma partida sem retorno,
como a de Abraão, que sai de sua terra rumo ao desconhecido. Gritos de
pessoas de carne e osso originam uma resposta ética da responsabilidade
por toda a humanidade “carne da nossa carne”. Para Rubem, o rosto de
José transtornado pelos seus gritos pedindo misericórdia expõe toda
sua vulnerabilidade humana. Ao deixar-se afetar, Rubem quebrou sua
indiferença e vaidade. José tornou-se um interlocutor que o transcendeu.
O grito de José é o grito de um irmão. Carne de sua carne, por isso
inviolável. A única maneira de não reconhecer alguém como a carne de
sua carne é o assassinato. Rubem expressa o primeiro conteúdo de todo
discurso ético: não o matemos!
Se Rubem tivesse se omitido, José teria sido assassinado. A acolhida do
ser humano que aparece no rosto e no grito da vítima pede sua resposta
ética, afeta, inquieta, desinstala. Ao responder a José, Rubem afirmouse como humano e embarcou na viagem da procura da verdade de José:
217
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
É carne da minha carne. O outro é prova maior da existência divina.
Entretanto, nesta peregrinação da verdade, o eu deve abdicar de ser o
centro, precisa se retirar do centro para centrar-se no outro. Ao colocar
o outro no centro, descubro quem sou eu verdadeiramente. A verdade
está além de Rubem, está em José. A identidade de Rubem foi revelada
em José.
modo a integrar iniciativas mais eficazes no enfrentamento ao tráfico
humano e suas degradantes expressões.
José se apresenta a Rubem sem nenhuma mediação e espera apenas
uma resposta, nada mais. José rompe com as verdades dos irmãos. Este
ato, face a face entre os irmãos, irrompe o sentido do humano. Quando
isso ocorre, o eu toma consciência de sua responsabilidade. Rubem não
espera reciprocidade, tem o coração tomado de gratuidade. Diante da
miséria, da nudez do outro, a liberdade do eu se sente culpada, perde
sentido. O egoísmo perde seus fundamentos: e eu, para onde irei? (Gn
37, 30).
Apoiar e fortalecer a implantação em todos os Estados do Brasil dos
Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e redes de organizações
da sociedade civil, com vistas ao monitoramento, denúncia e articulação
de processos que reduzam ou eliminem o tráfico de pessoas, bem como
os que visam a punição e responsabilização dos culpados por este crime.
A responsabilidade pelo outro devolve a liberdade perdida pelas
artimanhas da vaidade narcisista. O outro se impõe acima de qualquer
retórica. Assim se forma o segundo conteúdo do discurso da ética: “Sou
responsável pela preciosa fragilidade do outro”. O eu entrega sua liberdade
e autonomia na luta pela justiça: devolver a dignidade, a liberdade e a
autonomia que lhe foi usurpada.
Esta responsabilidade pelo outro deve se traduzir em ações. No caso do
tráfico de pessoas, trataremos desta práxis no próximo item.
4 - Propostas de Ação
O tráfico de pessoas é hoje um dos mais urgentes apelos históricos para
os governos, organizações governamentais e não governamentais, igrejas,
enfim, de todas as forças vivas da sociedade, pois a responsabilidade
na defesa da dignidade de cada ser humano é missão de todos.
Cuidar, proteger, defender e promover a vida ameaçada é imperativo
antropológico.
Em seminários, encontros, jornadas e fóruns, colhemos algumas
sugestões e propostas de ação que poderão servir como ponto de partida
para debater e implementar iniciativas contra este mal do tráfico de
pessoas que tanto fere a ética, corrói a própria sociedade e vilipendia a
dignidade do ser humano.
Fortalecer e/ou contribuir na articulação nacional de uma rede de
entidades e organizações da sociedade civil que atuam ou venham a
atuar na prevenção ao tráfico de pessoas, na assistência às vítimas e na
repressão ao crime, bem como na incidência por políticas públicas, de
218
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
Exigir do Estado efetividade das políticas públicas (saúde, educação,
desenvolvimento social, moradia) e dos planos de ação, nas diversas
esferas do poder público, partindo da premissa de que o tráfico humano
se expande quando existe vulnerabilidade social.
Nas campanhas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, promovidas
pelo Estado - âmbito federal, estadual e municipal -, desenvolver atividades
voltadas à difusão e debate dos temas propostos e a prevenção ao tráfico,
valendo-se, para tanto, também de datas significativas, tais como: 28 de
janeiro – Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo; 8 de março – Dia
Internacional da Mulher; 1º de maio – Dia do Trabalhador/a; 18 de maio –
Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes; 23 de setembro - Dia Internacional contra a Exploração
Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças.
Desenvolver ações conjuntas e articuladas entre Igrejas e organizações
éticas e de fé, de modo a contribuir para uma constante formação da
mentalidade e das consciências e, assim, colaborar na construção de
medidas eficazes para a erradicação do tráfico humano e pela sensibilização
e realização de ações na proteção e atenção às vítimas.
Organizar ou aprimorar o sistema de “coleta de dados sobre o Tráfico de
Pessoas”11, para maior conhecimento do alcance dessa violação de direitos
e construção de mecanismos e ações que fortaleçam o enfrentamento a
esta prática criminosa.
Monitorar as ações do Estado brasileiro na efetivação do que está
proposto no III Plano Nacional de Direitos Humanos: “Estruturar, a partir
de serviços existentes, sistema nacional de atendimento às vítimas do
tráfico de pessoas, de reintegração e diminuição da vulnerabilidade,
especialmente de crianças, adolescentes, mulheres, transexuais e
travestis”12.
Promover e monitorar junto ao governo - em suas esferas municipal,
estadual e federal - a efetivação do II Plano de Enfrentamento ao
11 Relatório final da CPI do Senado Federal sobre o Tráfico de Pessoas (2012).
12 Brasil – Secretaria Nacional de Direitos Humanos. III Programa Nacional de Direitos Humanos, Brasília, 2010,
p. 149.
219
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
Tráfico de Pessoas, garantindo recursos econômicos suficientes para
implementar estruturas adequadas para a repressão ao crime, e para o
devido acolhimento, proteção e atendimento às vítimas13.
Somar forças e agir em parceria, governo e sociedade civil, na luta
pelo aprimoramento do marco legal referente ao Tráfico de Pessoas e o
Trabalho Escravo, de modo a pôr fim aos limites atuais no que tange à
responsabilização por estes crimes14.
Intervir, enquanto sociedade civil, na incidência de políticas
que enfrentem efetivamente as causas estruturais que produzem
vulnerabilidade social – situações de exclusão, tais como desemprego ou
subemprego, práticas discriminatórias por razões étnicas e de gênero, a
pobreza, a miséria, entre outras.
Instar os órgãos governamentais, no que tange a medidas e ações
efetivas no combate ao tráfico humano, a aprimorar seus mecanismos de
investigação e responsabilização dos ‘agentes operacionais’ desse crime
contra os direitos da pessoa humana.
Adequar a legislação interna de modo que a lei penal brasileira inclua
o crime de tráfico de pessoas nos termos da Convenção de Palermo, das
Nações Unidas, contra o crime organizado transnacional, pois uma das
falhas da legislação vigente é vincular o tráfico de pessoas exclusivamente
à exploração sexual, deixando de lado, por exemplo, os casos ligados à
remoção de órgãos ou ao trabalho escravo15.
Analisar e, se for o caso, solicitar ao estado que retome investigações
sobre pessoas desaparecidas, seja em território nacional ou no estrangeiro,
levando em consideração a possibilidade de ter ocorrido tráfico humano.
Reforçar ações ou ampliar a atuação do estado brasileiro no que tange às
adoções ilegais, sejam elas efetivadas no próprio país ou no exterior, pois
nestas circunstâncias configura-se tráfico de pessoas16. É necessário maior
controle sobre formas veladas de adoção, encobertas por parentesco ou
por suposta ajuda dada aos pais, e que resultam na retirada da criança do
convívio familiar, mas que não tem nenhum amparo legal.
Atuar decididamente no debate, conteúdo e aprovação pelo Congresso
Nacional de uma nova lei de migrações, centrada no princípio dos direitos
humanos, que contemple devidamente a questão do tráfico de pessoas e
proteção às vítimas.
13 MILESI, Rosita e SPRANDEL, Márcia, II Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Trabalho
Escravo, in Tráfico de pessoas e trabalho escravo – II Seminário Nacional. Brasília, CNBB, 2012, p. 158).
14 Idem, p. 157.
15 Recomendações da CPI do Senado Federal (2012).
16 O Relatório final da CPI do Senado afirma claramente a necessidade de aprimoramento no Cadastro Nacional
de Adoções.
220
Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel
Combater as redes de tráfico de pessoas e de contrabando de migrantes,
evitando rigorosamente que o migrante seja criminalizado em função
desta migração irregular enganosa e a que é submetido.
Conclusão
A temática do tráfico de pessoas, por mais complexa que seja, é um dos
maiores desafios da contemporaneidade, em termos de políticas públicas
e de ação pastoral. Isto porque, independentemente do nome que dermos
ao fenômeno, ele se refere a situações de muita superação de pessoas que
saem de seus locais de origem procurando trabalho e que, muitas vezes,
tornam-se vulneráveis a situações de imobilização de mão de obra e de
superexploração. Todas estas pessoas, independentemente da atividade
que exerçam ou estejam sendo obrigadas a exercer, são merecedoras
de apoio por parte das autoridades, do consolo e estímulo por parte de
religiosos, religiosas e instituições confessionais, e da atenção específica
e especializada de profissionais de diversas áreas e serviços públicos e
comunitários. A interdisciplinaridade é fator importante e fundamental
no trato da questão do tráfico de pessoas e da devida atenção ao ser
humano que venha a ser submetido a esta abominável prática de violação
de direitos e de negação da dignidade humana.
Como bem afirma a Senadora Lídice da Mata, relatora da CPI do Tráfico
de Pessoas do Senado Federal, “o tráfico de pessoas, que não haja ilusões,
existe e atenta contra os direitos de toda a sociedade brasileira. Como
se vê, além de vitimar mulheres e homens que vivem em situação de
vulnerabilidade dada às condições peculiares das atividades profissionais
que desempenham, relacionadas à indústria do sexo, o tráfico de pessoas
também entra nas casas, rouba crianças, empobrece o futuro de meninas
e meninos e instala a desesperança e a revolta no seio de famílias que já
enfrentam a necessidade de conviver com privações sociais, políticas e
civis inaceitáveis na era moderna”.
Referências
DIAS, Guilherme. SPRANDEL, Marcia. A CPI do Tráfico de Pessoas no contexto do
enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. In: ACNUR e IMDH. Caderno de Debates 7.
Refúgio, Migrações e Cidadania. 2012. p. 21.
GASDA, Élio Estanislau. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: lugar teológico, exigência
ética, missão da Igreja. In: In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo. Brasília: Edições
CNBB, 2012, p. 15 e ss.
GORENSTEIN, Fabiana. Da concepção menorista à proteção integral: oscilações de discurso
na CPMI da exploração sexual de crianças e adolescentes. Dissertação de Mestrado
221
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
defendida na Faculdade de Direito/UnB. Brasília, 2009.
LOWENKRON, Laura. O Monstro Contemporâneo - a construção social da pedofilia em
múltiplos planos. Tese de Doutorado defendida no PPGAS/Museu Nacional. Rio de Janeiro,
2012.
MAHDAVI, Pardis “Just the ‘TIP’ of the iceberg: the 2011 Trafficking in Persons Report
(TIP) falls short of expectations”. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/pardismahdavi/just-the-tip-of-the-icebe_1_b_888618.html
MILESI, Rosita. SPRANDEL, Marcia. II Seminário Nacional de enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Trabalho Escravo (Relatório). In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo.
Brasília: Edições CNBB, 2012, p. 145 e ss.
WÉNIN, André. José, ou a invenção da fraternidade. Leitura narrativa e antropológica de
Gênesis 37-50. São Paulo: Loyola, 2010.
222
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
O Projeto de Lei do Senado no 236/2012 e o retorno do
Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes
relativos a estrangeiros1
Gabriel Gualano de GODOY2
Raquel TRABAZO3
Introdução
Os artigos 452, 453, 454 e 456, do Projeto de Lei do Senado (PLS) n.
236, de 2012, tipificam novos delitos que somente podem ser cometidos
por estrangeiros ou por pessoas que auxiliam estrangeiros em situação
irregular no país. Esses dispositivos almejam consolidar no Brasil uma
reprochável política de criminalização dos movimentos migratórios, em
franca oposição à postura assumida pelo Estado brasileiro nos foros
internacionais, aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados
pelo Brasil e ao objetivo de promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, solidificado no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
As condutas tipificadas nos dispositivos acima já estão devidamente
abarcadas pelo artigo 265 do PLS 236/2012, que equivale ao artigo 299 do
Código Penal em vigor, ambos relativos ao crime de falsidade ideológica.
A repetição configura um excesso legislativo, na medida em que condutas
idênticas já estão criminalizadas em outros dispositivos distintos, o que
pode, inclusive, vir a gerar um censurável bis in idem.
O legislador já havia considerado aquelas condutas lesivas em razão
da preservação da fé pública, não havendo justificativa plausível para
a especialidade da criminalização de condutas já tipificadas. Ademais,
constata-se que somente será possível identificar o bem jurídico violado
a partir das características pessoais do agente da conduta. Ou seja, se um
brasileiro comete algum daqueles crimes, viola-se o bem jurídico da fé
pública. Contudo, se um estrangeiro comete o mesmo crime, viola-se o
bem da segurança nacional, o que abre a possibilidade de permitir que
o status do autor altere o bem jurídico tutelado, sem nenhum elemento
1 As opiniões dos autores não refletem, necessariamente, a opinião do Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR).
2 Doutorando em Teoria do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Direito
e Antropologia pela London School of Economics and Political Science (LSE), Mestre e Bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR); atualmente exerce o cargo de Oficial de Proteção do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
3 Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), Especialista em Relações
Internacionais pela Unb, Bacharel em Direito pela Universidade Salvador (Unifacs); atualmente trabalha como
Assistente de Proteção no escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil.
223
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
adicional que torne a conduta em si efetivamente mais grave.
Além disso, os artigos acima não levam em consideração as
peculiaridades inerentes ao deslocamento e à proteção dos solicitantes de
refúgio e refugiados no mundo. Tratam-se de pessoas que deixam seu país
de origem em razão de um fundado temor de perseguição por motivos de
raça, religião, nacionalidade, opinião política imputada ou pertencimento
a grupo social, sendo a sua fuga caracterizada pela urgência, o que
inviabiliza a espera pela documentação adequada que permita o acesso
regular ao país onde podem buscar asilo. Não raro o refugiado viaja sem
qualquer documento de identidade, assim como pode ver-se obrigado
a valer-se de documentação adulterada justamente para conseguir sair
do país onde a perseguição é perpetrada. Justamente em razão disso,
a Lei 9.474/1997 instituiu em seu artigo 8º que o ingresso irregular no
território nacional não constitui impedimento para que o estrangeiro
solicite refúgio às autoridades competentes, sendo que o artigo 10º
ainda define que, feita a solicitação de refúgio, serão suspensos todos os
procedimentos administrativos e criminais que tenham por fundamento
a entrada irregular.
Os argumentos expendidos serão desenvolvidos, em detalhes, a
seguir para melhor ilustrar os fundamentos da disposição do Estado
e da sociedade brasileira em tratar a imigração através de uma lente
humanitária, o que não se coaduna com a proposta de repulsão e
criminalização de estrangeiros em situação irregular contida nos artigos
452, 453, 454 e 456 do PLS 236/2012.
1. PLS 236: incoerências do Título XV
Em 1961, ao promulgar o Decreto 50.215, o Brasil internalizou a
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, sendo que
em 22 de julho de 1997 foi promulgada a Lei Brasileira de Refúgio n.
9.474, confirmando o compromisso assumido perante a comunidade
internacional no sentido de oferecer proteção plena aos solicitantes de
refúgio e refugiados que se encontrem em território nacional.
A Lei Brasileira de Refúgio 9.474/97 acolhe a definição estabelecida
na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e considera
como refugiado todo indivíduo que foge do seu país de origem devido
a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas imputadas, e que não
possa ou não queria acolher-se à proteção de tal país. Ademais, o inciso
III do artigo 1º da Lei 9.474/97 foi além e estendeu aquele conceito para
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
abarcar a hipótese trazida na Declaração de Cartagena de 1984 e também
reconhecer como refugiado a pessoa que deixa seu país de origem devido
a uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos.
Diante da situação de vulnerabilidade característica da população de
refugiados e solicitantes de refúgio, e tendo em vista o ordenamento
jurídico brasileiro, o presente estudo tem por objeto o Anteprojeto de
Código Penal, que tramita sob a rubrica PLS 236/2012 na Comissão
Especial Externa do Senado Federal, denominada “Comissão de Juristas
com a Finalidade de Elaborar Anteprojeto de Código Penal – CJECP” e
presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Langaro
Dipp.
A referida comissão foi incumbida de propor uma ampla modernização
do Código Penal, tendo norteado os seus trabalhos com o objetivo de
unificar a legislação esparsa, compatibilizar os tipos penais existentes
com a Constituição Federal de 1988, tornar proporcionais as penas dos
diversos crimes e valorizar as penas alternativas, não prisionais, conforme
apontado em seu relatório final4, apresentado ao Presidente do Senado
em junho de 2012.
No Título XV do PLS 236/2012, que trata especificamente dos “Crimes
Relativos a Estrangeiros”, são tipificadas condutas relacionadas à imigração
e entrada irregular no território brasileiro, bem como delitos relativos ao
acesso ao mecanismo do refúgio e aos procedimentos de reconhecimento
da condição de refugiado.
Sendo assim, o Título XV reflete a tendência retrógrada de criminalização
dos movimentos migratórios e punição dos imigrantes, dos solicitantes
de refúgio e dos indivíduos e organizações solidários à vulnerabilidade
dessa população, o que não se coaduna com a postura brasileira reiterada
nos foros internacionais, a Constituição Federal de 1988, a Lei Brasileira
de Refúgio e o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Ressalte-se que o Título XV do PLS 236/2012 engloba os artigos 452 a
457 do Anteprojeto de Código Penal, onde são tipificados novos delitos
que somente podem ser cometidos por estrangeiros ou por pessoas que
auxiliam estrangeiros em situação irregular no país.
2. Sobre a criminalização do ingresso irregular no território nacional
Os artigos 452, 453 e 454 dizem respeito a crimes que envolvem
solicitantes de refúgio e o acesso ao mecanismo de refúgio no Brasil,
tendo sido propostos nos seguintes termos:
4 Disponível no website do Senado: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=110444&tp=1.
224
225
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
Artigos 452. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território
nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou
qualquer documento falso: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Parágrafo
único. Nas mesmas penas incorre o estrangeiro que omite informação, usa
documentos falsos ou faz declaração falsa com o fim de ter reconhecida a
condição de refugiado no território nacional.
Artigo 453. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não
ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território
nacional ou para assegurar-lhe a condição de refugiado: Pena - prisão, de
dois a cinco anos.
Artigo 454. Introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino
ou irregular: Pena - prisão, de dois a cinco anos.
Esses tipos penais revelam-se preocupantes, em primeiro lugar, porque
não levam em consideração as peculiaridades inerentes ao deslocamento
e à proteção dos solicitantes de refúgio e refugiados no mundo.
Considerando-se que a perseguição sofrida no país de origem impõe
uma grave ameaça à vida, liberdade ou integridade física dos refugiados,
a fuga caracteriza-se pela urgência, o que inviabiliza a espera pela
documentação adequada que permita o acesso regular ao país onde
podem buscar asilo. Assim, não raro o refugiado é obrigado a valer-se de
documentação adulterada justamente para conseguir sair do país onde a
perseguição é perpetrada.
Além disso, também em razão da urgência na saída do país, é comum
que os refugiados viajem sem qualquer documento de identidade, o que
exige que os países de recepção tenham a sensibilidade e capacidade
técnica adequada à identificação dos estrangeiros que possuem um
fundado temor de perseguição e que não podem ser criminalizados em
decorrência dos meios utilizados para salvar sua própria vida.
O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), em documento
que oferece orientação sobre a detenção de solicitantes de asilo,
prescreve como diretriz primária a compreensão de que os solicitantes
de asilo “podem, por exemplo, estar impossibilitados de obter a
documentação necessária antes da sua fuga em razão de um fundado
temor de perseguição e/ou em razão da urgência da sua partida. Esses
fatores, aliados ao fato de que os solicitantes de asilo frequentemente
experimentam eventos traumáticos, devem ser levados em consideração
no momento de se determinar quaisquer restrições à sua liberdade de
movimento com base na entrada ou estadia irregular”5.
5 Disponível no website do ACNUR, em:http://www.unhcr.org/refworld/docid/503489533b8.html.
226
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
Com isso em mente, a Lei 9.474/976 instituiu em seu artigo 8º que
o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento
para que o estrangeiro solicite refúgio às autoridades competentes.
Além disso, o artigo 10º ainda define que, feita a solicitação de refúgio,
serão suspensos todos os procedimentos administrativos e criminais que
tenham por fundamento a entrada irregular.
Aqueles artigos da Lei 9.474/97 foram inspirados no artigo 31 da
Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados7, que dispõem que
os Estados não aplicarão sanções aos refugiados em virtude da entrada ou
permanência irregulares.
O ex-presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) no
Brasil, Luiz Paulo Barreto, ratificou a importância de permitir livre acesso
ao mecanismo do refúgio, independentemente da situação do estrangeiro
no país:
O artigo 8º contém dispositivo importantíssimo para uma efetiva proteção
internacional ao desconsiderar eventual ingresso imigratório irregular
como situação restritiva ao direito de solicitar refúgio. O disposto na lei
se aplica ao estrangeiro irregular ou clandestino. Ainda que chegue de
navio, sem visto, passaporte ou qualquer outro documento ou ainda que
tenha um visto vencido, deverá ser permitido o acesso ao procedimento
de refúgio. [...] Não raro um solicitante de refúgio porta documento de
viagem parcial ou totalmente falsificado ou com dados de identificação
inverídicos. Em um regime de exceção, se o indivíduo tentasse sair do seu
país com um passaporte autêntico seria de imediato preso. Por isso, o
exposto no artigo 8º é fundamental para outorgar à pessoa o livre acesso
ao pedido de refúgio.”8
Na mesma linha, o ex-coordenador geral do CONARE, Renato Zerbini,
assevera que o princípio de que o ingresso irregular no território nacional
não constitui impedimento para a solicitação de refúgio por parte de um
estrangeiro não poderia estar mais explícito na legislação brasileira: “O
artigo 8º da Lei é cristalino com relação à garantia deste princípio”9.
A posição refletida pelo ex-presidente do CONARE é elucidativa no que
tange à exclusão da culpabilidade do estrangeiro que, por motivos de
força maior e em estado de necessidade, busca subterfúgios para deixar o
local de perseguição e refugiar-se em um ambiente seguro. Ao comentar
o artigo 10 da Lei 9.474/07, Luiz Paulo Barreto afirma:
6 Disponível no site do Planalto, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm.
7 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/humanitarian/Genebra.pdf.
8 BARRETO, Luiz Paulo Ferreira Teles. “Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas
Américas”. Brasília: ACNUR, 2010, p. 165.
9 LEAO, Renato Zerbini Ribeiro. “Reconhecimento dos Refugiados pelo Brasil: decisões comentadas pelo
CONARE”. Brasília: ACNUR, 2007.
227
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
Na área criminal, um exemplo seria a falsificação de um passaporte ou
a falsificação de um visto. Eventuais procedimentos instaurados para
apuração desses crimes também ficam suspensos quando a solicitação de
refúgio é apresentada. Tudo isso porque esses procedimentos criminais
podem ser considerados como “estado de necessidade”, figura prevista
no Direito Penal brasileiro, que exclui a culpabilidade do agente pelo fato
praticado, quando não se tem como exigir dele uma conduta diversa da
praticada. Seria esse o exato caso de uma pessoa que sofre perseguições
no exterior e foge para o Brasil a fim de preservar sua vida, sua liberdade
ou integridade física que se encontram em risco em razão de perseguições
políticas, étnicas ou de gênero, por exemplo. Muitas vezes, a única
maneira de sair do país de origem, principalmente quando desestruturado
por conflitos, é com nome diferente, com passaporte ou com um visto
falsificado. Os bens jurídicos são distintos, sendo razoável a conduta do
agente ao promover uma falsificação a fim de preservar-se de perseguição
injusta. O artigo, assim, contém lógica irreparável e constitui-se norma
avançada da lei brasileira, em perfeita consonância com a Convenção
de 1951 e com os demais instrumentos internacionais de proteção aos
refugiados.”10
Ademais, o único órgão competente para apreciar o pedido de
reconhecimento da condição de refugiado é o CONARE. Ele o faz após um
procedimento específico que inclui a realização de uma entrevista pessoal
com um oficial de elegibilidade capacitado para tanto, sendo incabível
delegar a qualquer outra autoridade a competência para determinar o
caráter abusivo ou não do pedido de refúgio.
Esta interpretação está de acordo, inclusive, com a Recomendação n.
30 (XXXIV)11 do Comitê Executivo do ACNUR:
(i) tal como em todos os pedidos para a determinação do estatuto de
refugiado ou de concessão de asilo, deve conceder-se ao requerente uma
entrevista pessoal e completa por um funcionário devidamente qualificado
e, sempre que possível, por um funcionário da autoridade competente
para a determinação daquele estatuto;
(ii) o caráter manifestamente infundado ou abusivo de um pedido deve
ser estabelecido pela autoridade normalmente competente para a
determinação do estatuto de refugiado;
(iii) um requerente, cujo pedido tenha sido recusado, deve ter a possibilidade
de requerer a revisão da decisão negativa antes da rejeição na fronteira ou
do seu afastamento forçado do território. Onde não existam disposições
para essa revisão, os Governos devem considerar favoravelmente o seu
estabelecimento. Esta possibilidade de revisão pode ser mais simplificada,
do que a existente, para os casos de pedidos recusados que não são
considerados manifestamente infundados ou abusivos.”
10 BARRETO, Luiz Paulo Ferreira Teles. “Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas
Américas”. Brasília: ACNUR, 2010, p. 166.
11 Disponível em: http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/unhcr/excom/xconc/excom30.html.
228
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
No entanto, este não é o único aspecto problemático no PLS 236/2012,
uma vez que o que está na base das tipificações penais propostas no
Título XV não são apenas condutas, mas também elementos que servem
à caracterização de um autor específico que pertence a uma categoria de
pessoas consideradas perigosas ao Estado.
3. Bis in idem
O fato de que muitas das condutas tipificadas como novos crimes no
PLS 236/2012 já se encontravam abrangidas por tipos penais em vigor
é um primeiro indicativo desta tentativa de criação de uma categoria
de inimigos do Estado. A título exemplificativo, vejam-se os tipos abaixo
transcritos:
Artigos 452. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território
nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou
qualquer documento falso: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Parágrafo
único. Nas mesmas penas incorre o estrangeiro que omite informação, usa
documentos falsos ou faz declaração falsa com o fim de ter reconhecida a
condição de refugiado no território nacional.
Artigo 453. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não
ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território
nacional ou para assegurar-lhe a condição de refugiado: Pena - prisão, de
dois a cinco anos.
Artigo 456. Fazer declaração falsa em processo de transformação de visto,
de registro, de alteração de assentamentos, de naturalização, ou para a
obtenção de passaporte para estrangeiro ou documento de viagem laissezpasser: Pena - prisão, de dois a cincos.”
Nota-se que todas as condutas tipificadas nos dispositivos acima já
estão devidamente abarcadas pelo artigo 265 do PLS 236/2012, que
equivale ao artigo 299 do Código Penal em vigor, ambos relativos ao crime
de falsidade ideológica.
A princípio, constata-se que essa repetição configura um excesso
legislativo, na medida em que condutas idênticas já estão criminalizadas
em outros dispositivos distintos, o que pode, inclusive, vir a gerar um
censurável bis in idem.
No entanto, uma análise mais acurada leva a uma conclusão ainda mais
preocupante. O crime de falsidade ideológica volta-se à proteção de um
bem jurídico específico, a fé pública. Logo, o legislador de 1940 e também
os proponentes do PLS 236/2012 consideraram relevante criminalizar a
conduta daquele que omite uma declaração verdadeira ou faz constar
229
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
uma informação falsa com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou
alterar a verdade de fato juridicamente relevante.
Ocorre que as condutas tipificadas nos artigos 452, 453 e 456
criminalizam precisamente a omissão quanto a fato relevante e a
prestação de declarações falsas: usar nome, qualificação ou declaração de
origem não verdadeiros ou qualquer documento falso (art. 452); atribuir
qualificação ou informação que sabe não ser verdadeira (art. 453); fazer
declaração falsa (art. 456).
Ora, o legislador já havia considerado aquelas condutas lesivas em
razão da preservação da fé pública, não havendo justificativa plausível
para a especialidade da criminalização de condutas já tipificadas.
Entretanto, segundo a exposição de motivos constante no relatório
final da comissão, a criminalização de novas condutas e o aumento de
penas justifica-se pela tutela ao bem jurídico da segurança nacional.
4. Crimes contra a segurança nacional
Digno de nota que a Lei 7.170/1983 define especificamente os crimes
que atentam contra a segurança nacional, sendo o único indicativo
concreto no ordenamento brasileiro do que se consideram atos lesivos à
segurança nacional.
Em linhas gerais, aquele diploma legal considera que crimes contra
a segurança nacional são as condutas que tem por objetivo iniciar
uma guerra contra o Brasil; submeter o país ao domínio estrangeiro;
oferecer a outros governos informações confidenciais do país; introduzir
armamentos proibidos; sabotar instalações militares; tentar promover,
por meio do uso da violência, a mudança do regime vigente; e formar
organizações com fins combativos.
Sendo assim, resta claro que não há qualquer correspondência entre
as condutas ali discriminadas e os artigos constantes no Título XV do PLS
236/2012, que tratam da entrada irregular no país para fins estritamente
migratórios ou do apoio humanitário às pessoas que assim agem.
5. Retorno do Direito Penal do Autor
Eminentes doutrinadores de Direito Penal no Brasil já começaram a
se pronunciar sobre o PLS 236/2012, e duras críticas têm sido tecidas
sobretudo ao fato de que o novo código estaria criando bens jurídicos
“irreais”.
230
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
Segundo Luis Greco, “boa parte do catálogo de bens jurídicos coletivos
imaginários da legislação extravagante, notório misto de tipificações
desnecessárias ou duvidosas e de cominações desproporcionais, foi
acolhido no Projeto”. Para o jurista, proclama-se a adesão à ofensividade,
ao mesmo tempo em que se confere reconhecimento a bens coletivos da
mais duvidosa estirpe12.
No que tange à repetição do artigo 125, já existente na Lei 6.815/1980
no artigo 454 do PLS 236/2012, que se diferencia apenas pelo substancial
aumento de pena cominada, importa trazer a irreparável crítica também
formulada por Luis Greco:
A solução do Projeto, contudo, é de uma simplicidade salomônica: no
geral, ele se limita a inserir as leis esparsas no próprio Código. Contudo,
permaneceram, em grande parte, irresolvidos os dois problemas
fundamentais dessas leis, quais sejam, o problema das incriminações
aleatórias, repetitivas ou injustificadas e o problema das cominações
desproporcionais. Além disso, o que é ainda mais grave, conferiu-se a essas
leis de ocasião uma dignidade que elas em absoluto merecem. Será muito
mais difícil extirpar do ordenamento o conteúdo dessas leis irrefletidas se
ele passar a fazer parte do venerável corpo do Código Penal.”13
Todos estes pontos apenas reforçam a percepção de que o anteprojeto
almeja implementar no Brasil um Direito Penal do Autor. O Direito Penal
do Autor é a teoria segundo a qual se elege uma determinada categoria
de pessoas que compartilham uma característica pessoal comum e
assinalam-nas “como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é
negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites
do direito penal”14.
É preocupante, portanto, a constatação de que somente será possível
identificar o bem jurídico violado a partir das características pessoais do
agente da conduta. Ou seja, se um brasileiro comete algum dos crimes
previstos nos artigos 452, 453 e 456 do PLS 236/2009, viola-se o bem
jurídico da fé pública. Se um estrangeiro comete o mesmo crime, viola-se
o bem da segurança nacional.
Logo, no Título XV do PLS 236/2012, propõe-se que o status do autor
altere o bem jurídico tutelado, sem nenhum elemento adicional que torne
a conduta em si efetivamente mais grave.
O jurista e Ministro da Suprema Corte da Argentina, Eugenio Raúl
Zaffaroni, explica que o tratamento diferenciado de determinados seres
12 GRECO, Luis. “Princípios fundamentais e tipo no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei236/2012 do
Senado Federal).” Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/upload/noticias/pdf/revista_especial.pdf.
13 Idem nota anterior.
14 ZAFFARONI, Eugenio Raul. “O Inimigo no Direito Penal”. Rio de Janeiro: Revam, 2007. p.11.
231
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
humanos pelo Direito Penal é típico do Estado absoluto, que não conhece
limites jurídicos e está autorizado a valer-se do seu poder punitivo para
tratar seres humanos não como pessoas, mas como entes perigosos15.
Neste sentido, o Estado não está se valendo do seu poder punitivo para
enviar uma mensagem aos seus cidadãos e atuar preventivamente, mas
para enviar uma ameaça direta ao grupo de pessoas que considera serem
entes perigosos.
Mais do que isso, o PLS 236/2012 identifica também o acolhimento
e assistência ao imigrante em situação irregular como uma ameaça
penalmente relevante, negando as garantias mínimas do direito
internacional dos direitos humanos a uma população que, dada a
sua condição migratória, encontra-se em uma posição de extrema
vulnerabilidade e risco de ser vítima de toda forma de violência.
Neste ponto, ao analisar o artigo 318 do Código Penal Espanhol, que
trata do crime de “imigração clandestina”, o jurista espanhol Manuel
Cancio Meliá faz uma irretocável ponderação sobre a categoria de normas
que, assim como aquelas do Título XV do PLS 236/2012, criminalizam o
imigrante em situação irregular e as pessoas que lhes prestam assistência:
No caso do delito do artigo 318 bis. 1 CP, é possível afirmar que a
dificuldade existente na hora de se identificar o risco concreto que se
pretende evitar quando se castiga quem favorece o descumprimento das
normas reguladoras da imigração leva à conclusão de que o interesse
não se volta a uma determinada forma de imigração, mas ao próprio
fenômeno migratório em geral. [...] Desse modo, gera-se a impressão de
que, além do controle da imigração, o que se produz com a tipificação
de condutas que favorecem a imigração irregular é a marginalização e
exclusão dos imigrantes que entram no nosso país sem respeitar as normas
estabelecidas, castigando severamente aqueles que se identificam com os
imigrantes e lhes prestam algum tipo de ajuda. Ao considerar a chegada
ou permanência do imigrante como uma ameaça penalmente relevante, é
o próprio imigrante quem acaba sendo visto não como um “cidadão”, mas
como uma fonte de conflitos, como um “inimigo”.16
Com efeito, por analogia, nota-se que o que está na base das tipificações
penais propostas no Título XV não são apenas condutas, mas elementos
que servem à caracterização de um autor específico que pertence à
categoria de pessoas que Zaffaroni e Cancio Meliá classificam como
“inimigos do Estado”, uma formulação típica do Direito Penal do Inimigo.
Sendo assim, o Título XV não se dispõe a combater crimes, mas perigos
abstratos ou presumidos e supostamente impostos por uma determinada
15 Idem nota anterior.
16 MELIA, Manuel Cancio; GOMEZ, Mario Maraver. “El Derecho Penal Español Ante La Inmigración: Un Estudio
Político-Criminal”. In: Revista Cenipec, 2006, p. 108.
232
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
classe de seres humanos – a dos imigrantes indocumentados ou em
situação irregular.
Para Zaffaroni, é inadmissível que um Estado democrático e
constitucional de Direito crie uma categoria jurídica de inimigos no direito
ordinário penal – ou em qualquer outro ramo – quando esta categorização
só é admitida no estado de guerra e desde que respeite as limitações
impostas pelo Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos,
sendo que nem mesmo a caracterização como inimigo bélico retira a
condição de pessoa do indivíduo17.
6. Princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da
culpabilidade
Ademais, cabe ressaltar que o Título XV fere os princípios da intervenção
mínima, da fragmentariedade e da culpabilidade, por diversos motivos.
Primeiro porque somente se deve recorrer ao Direito Penal quando todos
os demais meios de controle estatal revelarem-se insuficientes, haja vista
a qualidade de ultima ratio deste ramo do Direito. Não é este o caso do
tema das migrações, que deve permanecer sendo regulamentado na área
administrativa. Ainda, não é objetivo do Direito Penal proteger todos os
bens jurídicos contra violações, mas sim intervir apenas nos casos de
maior gravidade, protegendo um fragmento dos inúmeros interesses
jurídicos envolvidos.
Dessa forma, é censurável uma proposta que, em lugar de trazer penas
alternativas, promove o encarceramento por ainda mais tempo, olvidandose das estratégias do Governo e do Ministério da Justiça e de que a prisão
deve ser vista como última alternativa. Igualmente, é inadmissível que em
um período de transição, de consolidação da verdade e de fortalecimento
das instituições democráticas busque-se resgatar a mesma lógica vigente
no período ditatorial instaurado após o golpe de 1964.
O respeito ao princípio da culpabilidade, por fim, pode ser questionado
na medida em que o Título XV não reflete uma censura fundada na
experiência de vida cotidiana da sociedade brasileira, sobretudo levandose em conta que ela mesma foi construída com base em prolongados
fluxos migratórios. Além disso, o princípio da culpabilidade também exige
que o agente saiba que tem a opção de agir de outro modo conforme ao
direito, mas ainda assim prefira atuar violando-o.
Neste ponto, cabe tratar da essência da Lei de Estrangeiros (6.815/1980)
a fim de averiguar os limites dessa escolha do estrangeiro em agir em
17 Idem nota 8, p. 12.
233
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
conformidade ao direito. Esta Lei foi elaborada em um contexto de temor
das influências externas sobre o regime ditatorial inaugurado em 1964,
de modo que a segurança nacional era tida como um valor fundamental à
preservação da ordem no Estado.
Os Delegados de Polícia Federal Luciano Pestana Barbosa e José
Roberto Sagrado da Hora compartilham o entendimento de que, após a
transição democrática, “a filosofia da legislação brasileira sobre a entrada
e permanência de estrangeiro no Brasil mantém-se obsoleta e inspirada
no atendimento à segurança nacional, à organização institucional e nos
interesses políticos, socioeconômicose culturais do Brasil, bem como na
defesa do trabalhador nacional (Lei nº 6815/80, art. 2º), sendo que o
ingresso no País configura-se mera expectativa de direito”18.
Importa notar que aquele posicionamento não reflete uma posição
isolada, mas o entendimento da própria Academia Nacional de Polícia,
que considera o seguinte:
Esta Lei reflete uma política imigratória restritiva e de caráter seletivo,
ultrapassada, portanto. A promulgação da Constituição Federal de 1988
consolidou os direitos civis e fundamentais do imigrante, seguida pela
edição do Decreto Legislativo nº 27/92, em que o Brasil subscreveu a
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica). É a melhor indicação de que a atual política de imigração mudou
o foco para os direitos humanos”19.
O Presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Paulo Sérgio
de Almeida, por sua vez, há muito defende a urgente modificação da
Lei 6.815/1980, entendendo que “a lei é de 1980, o contexto migratório
naquela época era outro e a lei é muito restritiva e burocrática, tratando
os estrangeiros no Brasil tão somente como uma questão segurança
pública”20.
Diante dessas considerações, a vigência de uma Lei de Estrangeiros
(6.815/1980), orientada pela ótica da segurança nacional e avaliada
pelas autoridades brasileiras como restritiva, coloca para o estrangeiro
que deseja imigrar ao Brasil barreiras muitas vezes intransponíveis para
acessar as vias de imigração regular. Somando a isso fatores de ordem
econômica e humanitária, fica questionável a afirmação de que o imigrante
sempre tem a opção de agir em conformidade ao direito, sendo possível
argumentar que o princípio da culpabilidade estaria sendo violado pelo
Título XV do PLS 236/2012.
18 BARBOSA, Luciano Pestana; HORA, José Roberto Sagrado. “A Polícia Federal e a Proteção Internacional dos
Refugiados”. Brasília: ACNUR, 2007, p. 57.
19 Idem nota anterior, p.58.
20 Disponível em: http://www.fetecsp.org.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=38922.
234
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
Por todo exposto, resta claro que os artigos do Título XV do PLS 236/2012
ferem as garantias asseguradas aos solicitantes de refúgio e refugiados no
Brasil e destoam da ponderação de valores feita pelo legislador pátrio, que
optou por preservar o bem jurídico da vida, integridade física e liberdade
do solicitante de refúgio, considerados infinitamente mais importantes do
que a instauração de procedimentos contra o uso de passaportes falsos
ou pela ausência de documentação.
Ainda, conforme será demonstrado nos itens a seguir, o tratamento
penal diferenciado que o anteprojeto de Código Penal almeja dar aos
estrangeiros em geral não se coaduna com os princípios basilares da
igualdade e não discriminação previstos na Constituição Federal de 1988,
e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, e tampouco reflete
as políticas migratórias que têm sido adotadas pelo Estado brasileiro nos
últimos anos.
7. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e os migrantes
indocumentados
O artigo inaugural da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe
que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade21.
Ao longo dos anos, os tribunais e a doutrina de Direito Internacional
elevaram o princípio da igualdade e não discriminação à qualidade de
jus cogens, uma vez que são princípios inderrogáveis e de aplicação
imperativa nas relações entre Estados e indivíduos.
Com base neste princípio, a Assembleia Geral das Nações Unidas editou
a Resolução 54/166 em 24 de fevereiro de 200022, chamando a atenção
para a situação de vulnerabilidade em que se encontram os imigrantes
sem documentação ou em situação irregular e externalizou a preocupação
com as manifestações de violência, racismo, xenofobia e outras formas
de discriminação e tratamento degradante contra imigrantes. Feito isso,
a Assembleia Geral reiterou a necessidade de os Estados protegerem os
direitos humanos universalmente reconhecidos dos imigrantes e tratá-los
com humanidade, independentemente da sua situação jurídica.
No âmbito regional, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
tampouco silenciou a respeito do tratamento deferido aos migrantes
indocumentados. Na Opinião Consultiva n. 18/0323, a Corte Interamericana
21 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm
22 Disponível em: http://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/mainsite/policy_and_research/un/54/A_
RES_54_166_en.pdf.
23 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf.
235
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
de Direitos Humanos ressaltou que estar em situação regular não é
condição necessária para que um Estado respeite e garanta o princípio
da igualdade e não discriminação, dado o caráter fundamental daquele
princípio e a obrigatoriedade de os Estados aplicarem-no, indistintamente,
aos seus cidadãos e aos estrangeiros que se encontram em seu território.
Conforme exposto no item anterior, o PLS 236/2012 propõe a punição
de indivíduos exclusivamente em razão de sua origem, fazendo da
nacionalidade um elemento do tipo penal, já que a conduta seria atípica
se os mesmos indivíduos fossem nacionais do Brasil.
Neste sentido, no que tange à imposição de medidas privativas de
liberdade de caráter punitivo e com o escopo de controlar os fluxos
migratórios, sobretudo aqueles de caráter irregular, os organismos
internacionais também se manifestaram, em inúmeras ocasiões, de
maneira contrária à penalização da imigração e dos imigrantes.
Inicialmente, importa mencionar os resultados obtidos pelo Grupo de
Trabalho sobre a Detenção Arbitrária da Comissão de Direitos Humanos
das Nações Unidas, que construiu, ao longo dos seus relatórios, uma
posição contrária à detenção dos imigrantes.
Em 12 de dezembro de 2005, o Grupo de Trabalho publicou um
relatório24, no qual denunciava a aplicação excessiva da pena de prisão, o
que não seria compatível com o princípio de que todos os indivíduos têm
direito à liberdade, consagrado em diversos tratados regionais e globais.
Em cumprimento à Resolução 1997/50, da Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas, o Grupo de Trabalho analisou, em 10 de
janeiro de 200825, a situação dos imigrantes e solicitantes de asilo que
eram objeto de detenção sem que houvessem cometido qualquer delito.
Diversas facetas da detenção daquela população específica foram
analisadas, tendo o Grupo de Trabalho concluído que “tipificar como
delito a entrada ilegal no território de um Estado transcende o interesse
legítimo dos Estados de controlar e regular a imigração ilegal e dá lugar a
detenções desnecessárias”.
No mesmo sentido, concluiu a Relatora Especial das Nações Unidas,
Gabriela Rodríguez Pizarro, convocada pela Comissão de Direitos
Humanos por meio da Resolução 2002/62, que dispôs que “a detenção
dos imigrantes em razão de sua situação irregular não deveria, em
24 Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G05/166/51/PDF/G0516651.
pdf?OpenElement.
25 Disponível em:http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G08/100/94/PDF/G0810094.
pdf?OpenElement.
236
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
hipótese alguma, ter um caráter punitivo”26.
O Estado do Panamá, inclusive, chegou a ser condenado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em razão dos fatos que se
seguiram à prisão do imigrante equatoriano, Jesús Tranquilino Vélez Loor,
após a constatação de que ele não portava a documentação necessária
para permanecer no Panamá27.
Preliminarmente, a CIDH recordou que os Estados têm a faculdade de
fixar políticas migratórias e mecanismos de controle do ingresso e saída
de pessoas que não sejam seus nacionais, mas que essa capacidade
deve ser compatível com as normas de proteção dos direitos humanos
estabelecidas na Convenção Americana.
A CIDH chamou a atenção, ainda, para a situação de vulnerabilidade
na qual se encontram os migrantes indocumentados ou em situação
irregular, reconhecendo que eles estão mais expostos a potenciais e reais
violações aos seus direitos humanos e que sofrem um elevado nível de
desproteção em decorrência da sua situação.
Feitas essas considerações iniciais, a CIDH passou a debruçar-se sobre
a possibilidade de os Estados estabelecerem sanções penais, de caráter
punitivo, em razão do descumprimento de leis migratórias.
A sentença começa a análise daquela questão a partir da interpretação
do Artigo 7.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que cristaliza
o princípio da tipicidade e obriga os Estados a estabelecerem de antemão
as causas e condições da privação da liberdade física; e do Artigo 7.3 do
mesmo diploma, que estabelece que ninguém será submetido a detenção
ou prisão arbitrária.
A análise de compatibilidade das medidas privativas de liberdade
com aqueles artigos da Convenção Americana conclui, em síntese, que
somente são admissíveis as prisões que a) sejam idôneas a cumprir o
fim perseguido; b) sejam absolutamente indispensáveis ao alcance do
fim desejado e que não exista nenhuma outra medida menos gravosa
capaz de alcançar o mesmo objetivo; c) que a privação da liberdade seja
absolutamente proporcional, de modo que não imponha um sacrifício
excessivo.
Diante disso, a Corte conclui que a imposição de medidas penais ao
imigrante que ingressa no país de maneira irregular não é um fim legítimo
de acordo com a Convenção, quedispõe que “a detenção de pessoas por
descumprimento de leis migratórias nunca deve ter um fim punitivo.
26 Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G02/162/58/PDF/G0216258.
pdf?OpenElemvtent.
27 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_218_esp2.pdf.
237
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
[...] Serão arbitrárias as políticas migratórias cujo foco central seja a
detenção obrigatória dos imigrantes irregulares, sem que as autoridades
competentes verifiquem em cada caso particular, e mediante avaliação
individualizada, a possibilidade de utilizar medidas menos restritivas que
sejam efetivas a alcançar aqueles fins.”
humanos, revelam-se inconstitucionais e ilegais diante do ordenamento
jurídico brasileiro e vulneram os direitos dos migrantes, de suas famílias
e dos atores da sociedade civil e defensores de direitos humanos que
prestam assistência aos imigrantes e refugiados.
Este entendimento está de acordo com o Manual do ACNUR sobre
detenções de solicitantes de asilo, que considera que “a entrada ou estadia
ilegal de solicitantes de refúgio não dá ao Estado um poder automático de
prendê-lo ou restringir sua liberdade de movimento. [...] Além disso, a
detenção não é permitida como medida punitiva – por exemplo, criminal
– ou como sanção disciplinar pela entrada ou presença irregular no país”28.
8. Compromissos brasileiros nos foros internacionais e ações concretas no
plano interno
Cabe recordar que o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos
Humanos, pelo Decreto 678, de 02 de novembro de 199229, e, mediante
o Decreto 4.463/200230, reconheceu como obrigatória, de pleno direito
e por prazo indeterminado, a competência da CIDH em todos os casos
relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
Isso significa que o Brasil está obrigado pelo direito internacional e
interno a observar não apenas as decisões que lhe forem diretamente
aplicáveis, mas também a jurisprudência geral da CIDH, uma vez que,
segundo o artigo 62, item 3, da Convenção Americana, a Corte é o órgão
competente para interpretar e aplicar as disposições da Convenção,
sempre que um caso for submetido à sua apreciação.
O Supremo Tribunal Federal, inclusive, firmou posicionamento no
Recurso Extraordinário 466.343-1/SP31, no sentido de que os tratados
internacionais sobre direitos humanos ratificados antes da promulgação da
Emenda Constitucional n. 45/2004, tem status de supralegalidade. Diante
disso, aqueles tratados internacionais são hierarquicamente superiores à
legislação ordinária, em que se inclui o código penal, tendo uma eficácia
paralisante sobre a legislação infraconstitucional e eivando de ilegalidade
qualquer disposição contrária ao tratado contida na lei comum.
Resta evidente, portanto, que o Brasil estará ferindo frontalmente
a Convenção Americana de Direitos Humanos; contrariando o
posicionamento da Corte, cuja jurisdição reconheceu como obrigatória
e se submetendo a uma possível condenação futura caso o Congresso
venha a aprovar os artigos constantes no Título XV do PLS 236/2012,
que destoam das convenções internacionais e regionais sobre direitos
28 Idem nota 2.
29 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm.
30 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm.
31 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444.
238
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
A proposta do Título XV do PLS 236/2012 também está em desarmonia
com os pronunciamentos emitidos pelo Brasil à comunidade internacional,
assim como dissente dos compromissos formalmente assumidos em
fóruns regionais.
Com efeito, em Nota à Imprensa emitida em 03 de maio de 201032,
o Ministério das Relações Exteriores condenou veementemente a Lei
Anti-imigratória do Arizona (Estados Unidos da América) que, tal como
o PLS 236/2012, criminalizava a estadia irregular e autorizava a prisão de
imigrantes naquela situação.
Naquela comunicação, o Governo brasileiro externalizou sua censura
à legislação norte-americana, afirmando que “o Governo brasileiro temse pronunciado firme e reiteradamente, em negociações bilaterais e
nos foros internacionais, contra a associação indevida entre migração
irregular e criminalidade”, considerando ainda “que conceder o mesmo
tratamento a indocumentados e criminosos subverte noções elementares
de humanidade e justiça”.
Por fim, a nota afirmou expressamente que “o Governo brasileiro se
une às manifestações contrárias à lei anti-imigratória do Arizona” e que
“espera que tal legislação seja revista, de modo a evitar a violação de
direitos de milhões de estrangeiros que vivem e trabalham pacificamente
nos Estados Unidos”.
Outro exemplo concreto de uma postura brasileira diametralmente
oposta à substância do Título XV do PLS 236/2012 deu-se por ocasião da
XI Conferência Sul-Americana sobre Migrações, realizada em outubro de
2011, quando doze países sul-americanos, dentre eles o Brasil, firmaram a
“Declaração de Brasília: Rumo à Cidadania Sul-Americana”33.
Naquela declaração, os países signatários reconheceram expressamente
“a significativa contribuição dos migrantes para o desenvolvimento social,
econômico, cultural e educacional nos países de destino, bem como os
efeitos positivos que a dinâmica migratória produz para o bem-estar e o
32 Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/lei-anti-imigratoria-doarizona/print-nota.
33 Disponível em: http://www.csm-2011.com/index.php/xi-conferencia/103-declaracao-de-brasilia.
239
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
desenvolvimento dos países de origem”.
Ademais, consignaram que “não são aceitáveis políticas ou iniciativas
que tipifiquem a irregularidade migratória como crime, equiparando,
desse modo, as pessoas indocumentadas aos criminosos”34.
Feitas as considerações iniciais, os países, finalmente, decidiram
“repudiar as políticas governamentais que tratam de forma indiferenciada
migrantes indocumentados ou em situação irregular e criminosos”
e condenar conjuntamente “leis estaduais aprovadas recentemente
nos Estados Unidos da América, que tipificam como delito a condição
migratória irregular, o transporte e a oferta de emprego a imigrantes
indocumentados.”
9. Posição do Conselho Nacional de Imigração
Nos termos do artigo 1º do Decreto n. 840/199335, o Conselho Nacional
de Imigração (CNIg), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego,
é o organismo responsável, no país, pela formulação de políticas de
imigração, coordenação e orientação de atividades de imigração e solução
dos casos omissos no que diz respeito a imigrantes.
Sendo assim, as características da posição brasileira com relação à
imigração podem ser extraídas a partir da análise das ações e decisões do
CNIg, mesmo na ausência de um plano nacional de políticas migratórias.
Inicialmente, cumpre salientar que o Presidente do CNIg, Paulo Sérgio
de Almeida definiu a política daquele conselho como voltada à situação
dos migrantes indocumentados, e norteada pela busca da regularização
migratória, como se infere dos seus comentários abaixo transcritos:
Nos últimos anos, o CNIg avançou na perspectiva de tornar mais acolhedora
a legislação brasileira, especialmente em relação aos imigrantes oriundos
dos países da América do Sul, que integram um dos principais fluxos
migratórios ao Brasil, e em relação aos quais temos compromissos de
integração. [...] O CNIg tem apoiado políticas de regularização migratória
dos imigrantes indocumentados.”36
A solução adotada diante do intenso fluxo de haitianos para o Brasil,
iniciado após o terremoto que assolou o Haiti em 2010, é emblemática
34 Essa perspectiva de não-criminalização da parte mais vulnerável nesta relação pode ser associada à orientação
basilar do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo
à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, do qual o æBrasil
é signatário, que prescreve que a vítima não pode ser criminalizada, devendo ser protegida e tratada com
humanidade.
35 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0840.htm.
36 ALMEIDA, Paulo Sérgio de. “Conselho Nacional de Imigração (CNIg): Políticas de Imigração e Proteção ao
Trabalhador Migrante ou Refugiado”. In: Caderno de Debates, v. 4. Brasília: ACNUR, 2009, p. 13.
240
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
da política brasileira que se orientou no sentido de acolhê-los nas
fronteiras, regularizar a situação daqueles que se já encontravam no
território nacional em situação irregular (mediante a Resolução 97/2012
do CNIg)37 e viabilizar meios de acesso à migração regular para o Brasil
através do plano de concessão de 1.200 vistos anuais a haitianos a partir
da Embaixada Brasileira em Porto Príncipe.
O CNIg, aliás, em voto aprovado em março de 201138, firmou o
entendimento de que as suas políticas migratórias “se pautam pelo
respeito aos direitos humanos e sociais dos migrantes, de forma que sejam
tratados com dignidade e em igualdade de condições com os brasileiros”.
Esta política encontra fundamento na própria Constituição Federal de
1988, que dispõe, em seu artigo 3º, que um dos objetivos da República
Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de discriminação. Adicionese a isso a fundamental previsão do artigo 5º, que cristaliza a igualdade
de brasileiros e estrangeiros perante a lei, sem distinções de qualquer
natureza.
Exemplo concreto de que as ações do CNIg estão calcadas na primazia
dos direitos humanos reside na Resolução n. 2739 de 25 de novembro
de 1998 do conselho. Aquela normativa disciplina a avaliação de casos
especiais e omissos que, embora não se enquadrem nos regimes de vistos
disponíveis para estrangeiros, merecem a atenção do CNIg em razão da
vulnerabilidade do migrante.
No mesmo voto do CNIg, ao qual se fez referência linhas atrás, restou
consignado que “na aplicação da RN n. 27/98 o CNIg tem considerado
as políticas migratórias estabelecidas para considerar como ‘especiais’ os
casos que sejam ‘humanitários’, isto é, aqueles em que a saída compulsória
do migrante do território nacional possa implicar claros prejuízos à
proteção de seus direitos humanos e sociais fundamentais”.
Outro exemplo interno que deve ser recordado é o fato de que, desde
1980, o Brasil promoveu até então quatro grandes anistias (em 198040,
198841, 199842 e em 200943) de estrangeiros que se encontravam em
37
Disponível
em:
http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC8820135687F345B412D/
RESOLU%C3%87%C3%83O%20NORMATIVA%20N%C2%BA%2097.pdf.
38
Disponível
em:
http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D308E21660130D7CE9FAD1DD9/ata_
cnig_20110316.pdf.
39 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_estrang/resolucao-normativa-n-27-de-25-11-1998.htm.
40 Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.
htm#art13v.
41 Lei 7.685, de 02 de dezembro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7685.
htm#art1.
42 Lei 9.675, de 29 de junho de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9675.htm#art1.
43 Lei nº 11.961, de 2 de julho de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11961.htm.
241
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
situação irregular no país. As anistias são, irrefutavelmente, fruto de
uma evidente e atual inclinação brasileira em promover a inserção social
dos estrangeiros que, por muito tempo, se encontravam marginalizados
devido à sua condição migratória no país.
Ademais, o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes
do Mercosul, firmado, em 2002, pelo Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai,
Bolívia e Chile, é outro exemplo da abertura do Brasil à integração de
estrangeiros na sociedade.
O referido acordo estipula que os nacionais de qualquer Estado-parte
poderão obter residência temporária, válida por dois anos, em qualquer
outro Estado-parte do acordo. Findos os dois anos iniciais de residência
provisória, é facultado requerer a conversão em residência permanente.
Em 28 de junho de 2011, o Peru e o Equador passaram a integrar aquele
acordo, sendo que em 29 de junho de 2012 a Colômbia também aderiu.
Finalmente, a prática favorável do Estado brasileiro em adotar uma
política migratória protetiva dos direitos humanos dos imigrantes também
tem se refletido em dois projetos de lei em tramitação no Congresso
Nacional.
O PL n. 5.655/2009 (Anteprojeto de Estatuto do Estrangeiro)44 é um
exemplo concreto da intenção do Brasil em tratar a imigração sob o
prisma humanitário, positivando o que já acontece na prática. A exposição
de motivos daquele projeto de lei comprova essa intenção, na medida
em que dispõe que o Governo brasileiro reconhece a migração como um
direito do homem e considera a regularização migratória como o caminho
mais viável para a inserção do imigrante na sociedade.
A MSC n. 696/2010, por sua vez, submete à apreciação do Congresso
Nacional o texto da Convenção Internacional sobre a Proteção dos
Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas
Famílias, adotada em 18 de dezembro de 1990, na Assembleia Geral das
Nações Unidas. A exposição de motivos da Mensagem enviada pelo então
Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, dispunha que:
O instrumento visa a proteger os direitos de todos os trabalhadores
migrantes e membros de suas famílias, independentemente de sua
situação migratória. Os migrantes indocumentados constituem parte
significativa da totalidade dos migrantes e têm sido sujeitos a diversas
violações a seus direitos humanos em países de trânsito e de destino. Suas
condições de vida e de trabalho são frequentemente degradantes, devido
à fragilidade advinda de seu “status” precário nos países para os quais se
44 Disponível em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=443102.
242
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
dirigem. A proteção de direitos dos chamados migrantes indocumentados
visa a evitar esta exclusão social e as violações reiteradas a direitos
inerentes à condição de pessoa humana”45.
Assim, o Brasil tem adotado uma prática favorável em matéria de
imigração e, em lugar de simplesmente desconstituir o grau de efetivação
dos princípios constitucionais já alcançado em relação aos estrangeiros
através das políticas acima apontadas, deveria buscar alinhar sua
legislação com os melhores exemplos dados por outros países da região.
A Lei 25.871, de 21 de janeiro de 2004, Lei de Migrações da Argentina46,
por exemplo, reconhece expressamente que o direito à imigração é
essencial e inalienável à pessoa, e que a República Argentina assegura
esse direito com base nos princípios da igualdade e universalidade. Este
é, sem dúvidas, um modelo a ser adotado como inspiração pelo legislador
brasileiro, na medida em que, ao contrário do PLS 236/2012, mantém a
coerência com a práxis brasileira.
Diante do exposto, resta evidente que a proposta do Título XV do
PLS 236.2012 decorre de uma absoluta incompreensão não apenas da
legislação brasileira e do Direito Internacional relativos ao refúgio, direitos
humanos e migrações, mas também à própria política estatal de correção
de vulnerabilidades e regularização de estrangeiros no país.
A menos que todo aquele título seja excluído, impor-se-á ao Direito
brasileiro um flagrante retrocesso social, sobretudo levando-se em
consideração que nem mesmo a Lei 6.815/1980, formulada sob a ótica
da segurança nacional em um período de ditadura militar, criminaliza a
entrada, permanência e assistência a estrangeiros em situação irregular
da maneira que o PLS 236/2012 o faz.
Conclusão
Os argumentos expostos ilustram nada mais que a disposição do Estado
e da sociedade brasileira em abrir espaços para os imigrantes, tratando
a migração através de uma lente humanitária que não se coaduna com
a proposta de repulsão e criminalização de estrangeiros em situação
irregular proposta pelo PLS 236/2012.
Nosso histórico impõe que o debate acerca da migração no Brasil não
deva ocorrer na seara penal, mas sim no âmbito administrativo, por meio
da elaboração de uma Política Nacional de Imigração.
45 Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=489652.
46 Disponível em: http://www.gema.com.ar/ley25871.html.
243
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
Assim, considera-se que a incongruência do Título XV do PLS 236/2012,
diante da postura do Estado brasileiro, somente pode ser sanada pela
supressão de todos os dispositivos legais constantes naquele título, motivo
pelo qual espera-se ao menos uma emenda supressiva do Título XV do
PLS 236/2012, que pelos fundamentos descritos propõe a positivação de
graves retrocessos. Esses poucos artigos, de modo muito similar a outros
tantos dispositivos do PLS mostram exemplos de atecnia perpetrada pelo
legislador ao longo de todo o Projeto, que, infelizmente, apostou na pena
privativa de liberdade como solução para os mais distintos problemas.
Referências
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ZAFFARONI, E. R. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revam, 2007, p.11.
244
MSc. Efraín Peña
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como
garantizarlos? ¿Es posible?
MSc. Efraín PEÑA1
Resumen
A medida que el clima mundial cambie, millones de personas quedarán
desarraigadas debido a la subida del nivel del mar, acontecimientos
climáticos extremos, sequías y la escasez de agua. Si bien muchos
actores - que van desde los consultores en desarrollo a los expertos en
seguridad - han ido incluyendo este hecho en su discurso, la comunidad
internacional, hasta ahora, ha hecho muy poco por proteger los derechos
de los “refugiados climáticos”. Cuando se trata de la migración ocasionada
por el cambio climático. Para incluir los derechos de estas poblaciones
vulnerables en la agenda de la comunidad internacional es necesario
enlazar el mundo académico, las organizaciones de la sociedad civil, los
gobiernos que trabajan en la cuestión del cambio climático para así darles
el status que se requiere para la correcta protección de sus derechos.
Encontrar las palabras adecuadas para describir a aquellas personas
que se verán forzadas a dejar sus países a causa del empeoramiento de
las condiciones climáticas, es la primera dificultad que entraña el camino
hacia el reconocimiento de su protección por el derecho internacional. La
terminología de las Naciones Unidas establece sutiles distinciones entre
migrantes, refugiados y desplazados internos en función de cómo y por
qué se ha producido su desplazamiento: ¿Cruzaron fronteras nacionales o
internacionales? ¿Fueron objeto de persecución? ¿En qué medida existía
una amenaza contra sus vidas y sus derechos humanos? Se les llama
refugiados climáticos, porque buscan refugio? Es esa la correcta acepción?
Dado que las personas afectadas comparten una serie de características
que las sitúan aparte de las categorías de refugiados políticos y migrantes
económicos elaboradas en el pasado, los refugiados climáticos no
pueden volver a su lugar anterior de residencia tras un asilo temporal. Es
probable que migren en grandes cantidades, colectivamente y de forma
relativamente predecible. Y, más importante aún, tienen una gran exigencia
legal frente a la comunidad internacional, puesto que las naciones más ricas
del mundo son las principales causantes de sus problemas que causaron
1 Abogado, Master en Gestión Ambiental, Especialista en Derecho Minero y Energético; y Doctorando en Derecho
Ambiental y de Sostenibilidad. Consultor Internacional.
245
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
dicho fenómeno. Por este motivo, se considera que es necesario crear
un nuevo instrumento legal especialmente adaptado a las necesidades
de los refugiados climáticos, así como un mecanismo de financiación
separado, tal como un protocolo a la Convención Marco de las Naciones
Unidas sobre el Cambio Climático (CMNUCC). Así las cosas, se precisa
necesario un régimen específico para los desarraigados por el cambio
climático, pero la supranacionalidad ha probado fallarle a la humanidad,
entonces estaremos en presencia de la reivindicación del ente local, como
implementador de dicho régimen?
Introducción
Como lo ha sostenido el Panel Intergubernamental de Cambio Climático
(IPCC), entre las diversas consecuencias que han provocado los efectos
del cambio climático a raíz del calentamiento global, está la aceleración
de la degradación de los ecosistemas, propensos a la deforestación, a
la salinización, a la erosión de la tierra y a la desertificación, así como
el incremento del riesgo tanto del ser humano, como de los niveles de
producción al ser cada vez más extremos y catastróficos los fenómenos
ambientales2.
Como una consecuencia importante de lo anteriormente descrito, se
resalta la migración de miles de personas en diversas partes del mundo,
que al resultar insostenible continuar viviendo en el lugar donde residen
optan por desplazarse a lugares donde puedan continuar su vida. Uno
de los casos más evidentes es África, en donde siendo la cuarta reserva
más grande de agua dulce, el lago Chad se ha secado casi totalmente.
Asimismo, los casi veintidós millones de personas viven en la cuenca del
lago ven amenazada su supervivencia, haciendo evidente que no es solo la
pérdida de un ecosistema el problema del calentamiento global, sino que
hay una dimensión humana por considerar. Nigeria por ejemplo, ya no
tiene acceso al lago, por lo que la sequía, el hambre y epidemias afectan
no sólo al citado país sino también a Mauritania, Mali, Chad y Somalia.
Esto ha provocado el constante desplazamiento de personas a cientos de
kilómetros de distancia3, dentro y fuera de las fronteras de donde son
nacionales.
2 Citado en International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Ninety
Fourth Sesion, MC/INF/288, 1 November 2007, disponible en: http://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/
mainsite/about_iom/en/council/94/MC_INF_288.pdf
3 Cfr. Norman Myers, “Environmental Refugees: A Growing Phenomenon of the 21st Century,” Philosophical
Transactions of the Royal Society of London B 357, no. 1420 (2002): 609-13.
246
MSc. Efraín Peña
El informe Stern4, afirmó que la clave para resolver la crisis climática, es
lograr que los países más contaminantes, como China y Estados Unidos,
reduzcan sus emisiones por medio de medidas tributarias y cuotas de
emisión de monóxido de carbono. En él se realizan advertencias muy
preocupantes acerca del impacto económico que tendrá el cambio
climático en el mundo de continuar incumpliendo el Protocolo de Kioto y
sus compromisos de reducción de emisión de gases de efecto invernadero.
Hoy, más seis años después de la presentación del mencionado informe,
vemos que sus predicciones son aún más graves de lo dicho.
Resulta aun más preocupante y agrava dicha situación es el hecho que
investigaciones de la NASA aseguran que aún cuando se eliminaran las
emisiones de gases invernadero, la temperatura del planeta continuaría
aumentando hasta 0,6°C debido a las grande cantidades ya emitidas de
dichos gases5, lo cual implica que el calentamiento del planeta continuará
incrementándose sobre todo considerando que aun se han adoptado
medidas reales para mitigar el cambio climático a través de mecanismos
reales de reducción de la emisión de gases de efecto invernadero. Por lo que
resulta inminente que continuaran incrementándose el acontecimiento de
distintos fenómenos ambientales y con ello el desplazamiento de millones
de personas. Ahora bien, están los marcos jurídicos en posibilidad de
abordar este fenómeno y garantizar los derechos fundamentales?
Vemos que desde 1990, el Grupo Intergubernamental de Expertos
sobre Cambio Climático observó que la migración humana podría ser
la consecuencia más grave del cambio climático. Asimismo, el Panel
Intergubernamental de Cambio Climático (IPCC) predijo que habrá
150 millones de desplazados ambientales en el año 2050 –cantidad
equivalente al 1.5% de 2050’s de la población mundial que se predice será
de 10 billones aproximadamente6. Por su parte el mencionado Informe
Stern señala que podrá haber 200 millones de desplazados en el 20507.
Una predicción más dramática es la de Christian Aid quien considera que
un billón de personas podrían permanecer desplazadas en el 2050, 250
millones por fenómenos relacionados con el cambio climático y otras 645
4 Stern, es el nombre de un informe sobre cambio climático (Stern Review on the Economics of Climate Change)
presentado en Octubre 2006 por el Gobierno del Reino Unido y encargado al antiguo vicepresidente del Banco
Mundial, Nicholas Stern. En él se realizan advertencias muy preocupantes acerca del impacto económico que
tendrá el cambio climático en el mundo de continuar incumpliendo el Protocolo de Kioto y sus compromisos de
reducción de emisión de gases de efecto invernadero. Estas advertencias incluyen previsiones de pérdidas de hasta
el 20% del Producto interior bruto mundial (PIB), lo que provocaría una crisis a gran escala. Se afirma entonces que
con una inversión del 1% anual del PIB mundial, se podría paliar el aumento de temperatura, el deshielo, y todas las
demás consecuencias del cambio climático. Cfr. Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change,
www.hm-treasury.gov.uk/independent_reviews/stern_review_economics_climate_change/ stern_review_report.
cfm
5 Cfr. NASA. NASA News, 2005 Warmest Year in Over a Century, USA, 2006, disponible en: http://www.nasa.gov/
centers/goddard/news/topstory/2006/2005_warmest.html.
6 Milan, S. Eco-Refugees Seek Asylum, en www.alternet.org/environment/19179
7 Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change, Op. Cit.
247
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
millón a consecuencia de otros proyectos ambientales8. Es decir que aun
en el escenario más optimista, esta realidad es no solo preocupante, sino
inminente.
Es aquí donde, independientemente de las medidas que tomen las
distintas naciones para reducir la emisión de gases invernadero a corto
plazo, es un hecho inevitable que se incrementará el desplazamiento
humano. En este sentido, aún cuando para algunos Estados, la migración
por cuestiones climáticas constituye ya una problemática, actualmente
no existe ningún tipo de ordenamiento que regule la situación jurídica
de estas personas que se ven obligadas a abandonar sus hogares por
resultarles imposible permanecer ahí.
Si bien existe algunos ordenamientos internacionales que regulan
la migración de personas de un país a otro por cuestiones políticas o
humanitarias como es el caso de los refugiados y desplazados, éstos no le
pueden ser aplicables analógicamente a este nuevo fenómeno al tratarse
de figuras de distinta naturaleza y ni si quiera los migrantes por cuestiones
climáticas cuentan con una terminología que los identifique, o bien, con
un ordenamiento (nacional o internacional) que los regule su tratamiento,
así como una institución que vele por su protección y ayuda financiera,
alimentaria y sanitaria.
Así las cosas, resulta preocupante el destino que tendrá la vida de
millones de personas que se vean forzadas a migrar a otros territorios
e incluso a otros Estados, pues los países desarrollados han tenido
una respuesta muy negativa a la migración de personas extranjeras,
militarizando sus fronteras aunado a la promulgación de leyes racistas y
xenofóbicas. Pero aun, estas conductas se están también presentando en
el interior de los Estados, y en un futuro veremos más leyes como la de
Arizona, en contra de los migrantes internos.
El presente artículo, buscará por un lado dilucidar las precisiones
terminológicas desde la doctrina para identificar esta nueva categoría de
persona desplazada, quien sufre el desarraigo de su lugar de habitación
por cuestiones climáticas y así definirá desde el punto de vista jurídico
y desde la óptica del derecho interno y el internacional, la categoría
adecuada para referirse a estas personas y por ende darles el tratamiento
jurídico idóneo ante esta nueva realidad.
8 Christian Aid (2007) Human Tide: the Real Migration Crisis, www.christianaid.org.uk/Images/human_tide3__
tcm15-23335.pdf
248
MSc. Efraín Peña
Concepto para identificar a las personas que sufren desplazamiento por
cuestiones climáticas
El primer punto que es necesario abordar para crear la instrumentación
que protegerá a aquellas personas que se ven compelidas a dejar sus
hogares por el acontecimiento de fenómenos naturales derivados del
cambio climático, es establecer el concepto que los defina de manera
más apegada conforme al propósito del presente artículo, para lo cual
se analizarán las acepciones que ha creado la doctrina para definirlos. En
este sentido, se puede advertir que sin bien la doctrina ha creado diversas
acepciones tales como refugiados ambientales, refugiados climáticos,
desplazados ambiéntales, personas ecológicamente desplazadas, ecorefugiados, migrantes ambientales, migrantes forzados ambientales; sin
embargo, estas categorizaciones no resultan idóneas para describirlos
toda vez que hacen referencias a instituciones que no son aplicables para
el caso de las personas que han sido desplazadas por cuestiones climáticas.
Algunos autores sostienen que no es importante la definición que se
elija para definir a las personas que han sido desplazadas por fenómenos
ambientales, al considerar que no son importantes las causas que motiven
su protección nacional o internacional, pues al final lo único que se busca
es brindarle dicha protección; no obstante, en el caso concreto (el de los
climáticos) se considera indispensable hacer dicha diferenciación, pues de
ello dependerá la instrumentación que será aplicable, el organismo que
velara por su protección, la duración de la misma y quienes asumirán la
responsabilidad nacional e internacional de dichos individuos.
En este sentido, a continuación se esgrimirán cual es la acepción
que resulta idónea para brindarle una adecuada protección a las
personas desplazadas a causa de fenómenos ambientales atribuibles al
cambio climático, así como los demás razonamientos que sustentan la
inaplicabilidad de las otras acepciones.
Diferencias entre Migrante Ambiental y Climático
En principio resulta necesario hacer la diferenciación entre el concepto
de “ambiental” y “climático”, toda vez que en el presente artículo
únicamente se enfocara a proponer el desarrollo de la instrumentación
para la protección de aquellas personas que son desplazados por las
consecuencias de fenómenos ambientales derivados del cambio climático
y no de cualquier daño ambiental.
En efecto, las afectaciones ambientales pueden ser originadas por
distintas causas como por ejemplo las diversas acciones u omisiones que
249
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
afecta al medio ambiente, así como por el acontecimiento de diversos
fenómenos ambientales; sin embargo, como ha sido demostrado, el
cambio climático provocado por el calentamiento global derivado de la
emisión de gases de efecto invernadero, ha generado el incremento e
intensificación de los fenómenos naturales, por lo cual los Estados que
se consideran más contribuyen con la emisión de los gases de efecto
invernadero con base en el Protocolo de Kyoto, han asumido la obligación
de reducir sus emisiones. Por tanto, se considera que en el caso de las
personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio
climático, solo dichos Estados quienes tendrán que responden por
tales afectaciones. Pero qué pasa si los desplazamientos se presentan
internamente? Más adelante abordaremos este punto.
En este orden de ideas, no se puede tratar de la misma manera el
desplazamiento de un grupo de personas como consecuencia de un daño
ambiental producto de la falta de prevención o por la acción y omisión
de determinado Estado respecto a su obligación de proteger el medio
ambiente que se encuentra dentro de su territorio, pues en dichos casos
es el propio Estado quien tiene que responder ante aquellos daños y
asumir la responsabilidad; en caso de necesitar del apoyo o auxilio de
otros Estados este se deberá realizar a través de convenios y con base
en la buena voluntad de los Estados, pero en el caso de los migrantes
climáticos se deben hacer responsables, de estos desastres naturales, a
todos los Estados que contribuyan a la emisión de los gases de efecto
invernadero y con ello al incremento del cambio climático, conforme a sus
respectivos niveles de contaminación.
Refugiados ambientales, sus características y diferencias con el climático
Respecto del término “refugiado ambiental” no existe ningún
instrumento internacional que como tal lo prevea; no obstante, ésta
ha sido usada por diversos doctrinarios. Lester Brown del World Watch
Institute fue quien la utilizó por primera vez en 19709. Posteriormente,
Esam El-Hinnawi desarrollo dicho concepto en el Informe presentado
ante el Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente
titulado Refugiados Ambientales (UNEP), en el desarrollo las diversas
repercusiones de los desplazados por las catástrofes nucleares de Bophal
en India y la de Chernobyl, definiendo como refugiados ambientales a
“aquellas que se ven forzadas a dejar su hábitat tradicional, temporal
o permanentemente, debido a marcadas disrupciones ambientales
9 Cfr. Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages
between environmental change, livelihoods and forced migration, Refugee Studies Centre Policy Brief No.1 (RSC:
Oxford), pg. 7.
250
MSc. Efraín Peña
(naturales o antropomórficas) que ponen en riesgo su existencia y/o
afectan seriamente su vida”10.
Al mismo tiempo las Naciones Unidas, aun cuando no han determinado
algún concepto concreto que defina a estas personas, su División de
Estadística, en un glosario de términos ambientales, ha definido a los
refugiados ambientales como “aquellas personas que se desplazan
debido a causas ambientales por la pérdida de su tierra y a la degradación
o desastre natural”11.
Por otro lado, el ambientalista británico Norman Meyers definió a los
refugiados ambientales como “aquellas personas que no pueden ganarse
la vida en el país en que residen a causa de las sequías, erosión del suelo,
desertificación, la deforestación y otros problemas ambientales, aunado
a los problemas asociados al aumento de población y de la pobreza
extrema”12.
Conforme a las anteriores definiciones, se considera que la acepción
de “refugiado ambiental” es un término que por su naturaleza no es
adecuado para definir la situación que enfrenta una persona desplazada
por cuestiones climáticas, toda vez que del análisis que se haga al propio
concepto de “refugiado” se puede advertir que está conlleva una naturaleza
inminentemente bélica y la protección internacionalidad que se le brinda
al refugiado es por ser sujeto de amenazas o agresiones derivadas de sus
características personales, creencias o convicciones personales como la
raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u
opiniones políticas.
Se considera que no debe usarse dicho termino, porque podría crear
confusiones con conceptos que ha adoptado el propio Alto Comisionado,
pues aun cuando el término de refugiado ambiental o climático no
está regulado en ninguno de los instrumentos de protección a los
refugiados, el Estatuto de los Refugiados ha sido aplicado por el ACNUR
en circunstancias excepcionales, en los que los servicios ambientales han
sido destruidos por un Estado como forma de persecución en contra de
un grupo determinado13.
En la Convención de Ginebra de 1951 sobre el Estatuto de los Refugiados
establece como refugiado a “toda persona que como resultado de los
acontecimientos ocurridos en Europa antes del primero de enero de
10 Essam El-Hinnawi, “U.N. environmental program, environmental refugees” (1985), Nairobi: UNEP, citado en
Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between
environmental change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.6.
11 Stadisticas de las Naciones Unidas en unstats.un.org/unsd/environmentgl/gesform.asp?getitem=473, citado
en Ibidem, pg. 7.
12 Myers, N. (2005) Environmental Refugees: An Emergent Security Issue, Organisation for, citado en Idem.
Security and Cooperation in Europe, www.osce.org/documents/eea/2005/05/14488_en.pdf., citado en Idem
13 Cfr. International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Op. Cit., pg. 2.
251
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
1951 y debido a fundados temores de ser perseguida por motivos de
raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u
opiniones políticas, se encuentra fuera del país de su nacionalidad y no
pueda o, a causa de dichos temores, no quiera acogerse a la protección
de tal país”14.
Dicha definición fue superada a través del Proyecto del Comité Ad
Hoc, compuesto por trece gobiernos con el fin de redactar el texto de
una convención para los refugiados, únicamente se borró la referencia
a Europa, lo que hacía aplicable el término de “refugiado” a cualquier
acontecimiento ocurrido en el mundo y no solo en Europa. No es hasta
1967 con el Protocolo de 1967 cuando se intenta superar dicha limitación
temporal con el artículo 1 del Protocolo de 1967 en el cual de manera literal
será aplicado por los Estados partes sin ninguna limitación geográfica15.
Posteriormente, la Convención de la Organización de la Unión Africana,
quien tras los diversos flujos masivos que conllevaron a distintos conflictos
en África, aportó la consideración de que se entienda por desplazado
a toda persona que a causa de una agresión exterior, una ocupación o
una denominación extranjera o acontecimientos que perturben el orden
público en un parte o en la totalidad de su país de origen o del país de
su nacionalidad, están obligados a abandonar su residencia habitual para
buscar en otro lugar fuera de su país de origen o del país de su nacionalidad.
No obstante, dichas modificaciones no cambiaron la naturaleza del
refugiado así como tampoco anexaron dentro de dicha definición el
concepto de “refugiado ambiental”, lo cual en cierta medida resulta
lógico toda vez que con base en las definiciones antes esgrimidas un
refugiado ambiental es aquella persona que se ve forzada a dejar su
lugar de residencia u origen por el acontecimiento de diversos daños
ambientales que hicieron insostenible su permanencia en dicho lugar,
por lo cual dichas personas huyen por motivos ajenos a las características
de su propia persona sino por motivos externos, en cambio el refugiado
tiene que huir para repeler agresiones motivadas por su propio origen,
creencias o convicciones.
Aunado lo anterior también se considera que no resulta aplicable la
estructura edificada por las Naciones Unidas para la protección y asistencia
de los refugiados, consistente en la responsabilidad de los Estados y la otra
atinente a la acción del Alto Comisionado de las Naciones Unidas, toda
vez que por un lado el ACNUR tiene como objeto el proteger a personas
14 Convención de Ginebra de 1951 sobre el Estatuto de los Refugiados, artículo 1, A, 2.
15 Pero aquellos países que habían firmado la Convención de 1951 con “limitación geográfica “podrían
válidamente mantenerla al adherirse al Protocolo. Cfr. Galindo Vélez, Francisco, El derecho de los refugiados,
Jurídica 30, México, 2000, pg. 221, citado por Loreta Ortiz Ahlf et. el., De los migrantes. Los derechos humanos de
los refugiados / La igualdad en ciernes. La prohibición de discriminar,, Editorial Porrúa, México D. F., 2004, pg.29.
252
MSc. Efraín Peña
que han tenido que huir por el rechazo de las características personales
o ideologías, y cuya temporalidad se definirá con base en el tiempo que
perduré dicho sistema de gobierno represor; asimismo, está regulado
para proteger a determinadas personas o grupos de personas que por sus
propias características personales o ideológicas están huyendo de cierta
agresión, en cambio en el caso del migrante climático la temporalidad
de dicha protección se determinara con base en la propia capacidad
ambiental para soportar nuevamente a ese grupo de personas, asimismo
generalmente las afectaciones climáticas y no siempre ambientales, se
producen de manera masiva y en muchos casos resulta imposible regresar
al lugar de origen, como en el caso de las islas archipiélagos del Pacífico
Sur, en donde uno de los Estados llamado Tuvalú, a causa del incremento
del nivel del mar en su territorio, está desapareciendo. Desde el 2001
se firmó por arte del mencionado pequeño estado insular un acuerdo
con Nueva Zelanda para aceptar cierta cantidad de personas por año
(migración controlada).
Finalmente, como ya fue señalado respecto a la responsabilidad de los
Estados en el caso de las personas desplazadas por cuestiones climáticas,
a diferencia de los refugiados, dicha responsabilidad no debe ser
asumida por los Estados únicamente por acuerdos bilaterales, sino dicha
responsabilidad debe derivar de las propias obligaciones establecidas en
el Protocolo de Kyoto con base en la cantidad de emisión de gases de
efecto invernadero que emita cada Estado, y considerando los Estados
a los que le resulta vinculante dicho instrumento. Sin embargo ahí no
termina el deber de protección, ya que desde lo local, es muy importante
se preparen las municipalidades para recibir flujos de migrantes que por
causas climáticas lleguen a competir y ejercer presión sobre los recursos
propios de una comunidad con la que se comparte nacionalidad.
Desplazado ambiental y/o desplazado climático?
El ACNUR ha definido, aunque de manera cautelosa, como desplazado
ambiental “a quien es desplazado o quien se siente forzado a dejar su lugar
de usual de residencia porque su vida, su sustento y bienestar, ha sido
ubicado en una situación de riesgo, como resultado de una adversidad
ambiental, ecológica o un proceso o evento climático”16.
Otras voces señalan que se les denomine “desplazados climáticos”
amparados en los Principios rectores aplicados a los desplazamientos
16 Cfr. Gorlick, B. (2007) Environmentally-Displaced Persons: a UNHCR Perspective, www.ony.unu.edu/
seminars/2007/16May2007/presentation_gorlick.ppt., citado en Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008).
Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and
forced migration, Op. Cit., pg.7.
253
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
internos, elaborados por Francis Deng, que reconoce como desplazados
a las “personas o grupos de personas que han sido forzados u obligados
a huir de sus hogares o lugares de residencia habitual, o a abandonarlos,
en particular a causa de un conflicto armado, de situaciones de violencia
generalizada, de violaciones de los derechos humanos o desastres
naturales o causados por el hombre, y que aún no han cruzado una
frontera reconocida internacionalmente entre Estados o que lo hacen a
fin de evitar los efectos de todo ello”17.
Respecto a los conceptos aportados anteriormente se considera que
tampoco son aplicables al caso de las personas desplazadas por fenómenos
atribuibles al cambio climático, pues el término de “desplazados” a pesar
de ya no se refiere al desplazamiento por ser perseguido por ciertas
características personales o ideológicas, éste tiene una connotación
bélica y local. En efecto, el término de “desplazados” fue acuñada de
manera indirecta por la Convención de la Organización de la unión
Africana como una ampliación del término de refugiado al señalar que
“el término de refugiado se aplicará también a toda persona que, a causa
de una agresión exterior, una ocupación o una dominación extranjera, o
de acontecimientos que perturben gravemente el orden público en una
parte o en la totalidad de su país de origen, o del país de su nacionalidad,
está obligada a abandonar su residencia habitual en otro lugar fuera de su
país de origen o del país de su nacionalidad”.
Asimismo, como consecuencia de que los problemas de violencia se
intensificaron en América Central en los años 70´s se produjeron enormes
flujos masivos, por lo cual se vieron en la necesidad de ampliar el concepto
clásico de refugiado en el Coloquio de 1981 sobre “Asilo y la Protección
Internacional de Refugiados en América Latina”18. Fue hasta en 1984 en el
Coloquio sobre Refugiados en la que se adoptó una definición ampliada a
través de la Declaración de Cartagena, en la que en su conclusión tercera
señala “que en vista de la experiencia recogida con motivo de la afluencia
masiva de refugiados en el área de Centroamérica, se hace necesario
encarar la extensión del concepto de refugiado, teniendo en cuenta, en
lo pertinente, y dentro de las características de la situación existente de
la región el precedente de la Convención de la OUA (Artículo 1, párrafo
2) y la doctrina utilizada en los informes de la Comisión Interamericana
de Derechos Humanos. De este modo, la definición de refugiado
recomendable para su utilización en la región es aquella que además de
contener los elementos de la convención de 1951 y el Protocolo de 1967,
considere también como refugiados a las personas que han huido de sus
17 Principios Rectores del Desplazamiento Interno en http://www.law.georgetown.edu/idp/spanish/gp.html
18 Protección y asistencia de refugiados en América Latina – Documentos Regionales 1981-1999, ACNUR, 2000,
pg. 353.
254
MSc. Efraín Peña
países porque su vida, seguridad o libertad han sido amenazadas por la
violencia generalizada, la agresión extranjera, los conflictos internos, la
violación masiva de derechos humanos u otras circunstancias que hayan
perturbado gravemente el orden público”19.
Posteriormente, se amplió el término de refugiado bajo la denominación
de desplazados en el documento “Principios y Criterios de 1989” producto
de la Conferencia Internacional sobre refugiados centroamericanos y
teniendo como antecedentes diversos coloquios sobre refugiados para
tratar la nueva problemática del refugiado presentado en América Latina,
tras diversos conflictos y donde se plantea la necesidad de encerrar la
extensión de refugiado. Además se alude a los desplazados y los define
“como las personas que han sido obligadas a abandonar sus hogares
sus hogares o actividades económicas habituales debido a que sus vidas,
seguridad o libertad han sido amenazadas por la violencia generalizada o
el conflicto prevaleciente”20.
Conforme a lo anterior, es claro que aun cuando el término de desplazado
supera la limitante de otorgar la protección internacional o nacional,
únicamente por la agresión o amenaza hacia una persona o grupos de
personas por tener ciertas características físicas o ideológicas y extiende
la protección de manera generalizada a un grupo de personas cuya
amenaza se debe a una situación externa como un conflicto armado, una
violencia generalizada o circunstancia que haya perturbado gravemente
el orden público; no obstante, si bien podría ser aplicable en el caso de las
personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio
climático, al aplicarse de manera generalizada a un grupo de personas
que sufren un mismo contexto que pone en peligro la integridad de sus
derechos fundamentales, lo cierto es que la naturaleza dicho contexto es
distinto al de los migrantes climáticos, pues dicha protección se establece
en circunstancias eminente bélicas y en cuya regulación entra reglas de
derecho humanitario que no son aplicables al caso concreto.
Asimismo, debe señalarse que tampoco resultaría aplicable utilizar los
conceptos refugiado y desplazado como sinónimos, pues en el contexto
europeo, por ejemplo, se diferencian los desplazados de los refugiados
tanto por las causas que justifican dichas figuras como por sus efectos,
en este sentido, en el refugio se otorga una protección de carácter
permanente, en cambio en el caso de los desplazados es temporal21, por
lo tanto, para el caso de los migrantes climáticos, no resultaría aplicable ya
que existen diversos fenómenos naturales que han afectado el territorio
19 Ibidem, pg. 348.
20 Ibidem, pg. 199.
21 Cfr. Loreta Ortiz Ahlf et. el., De los migrantes. Los derechos humanos de los refugiados / La igualdad en ciernes.
La prohibición de discriminar, pg 40.
255
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
de las personas desplazadas de manera permanente, como en el caso de
la desaparición de las islas por el aumento del nivel del mar.
Incluso, el gerente de proyecto de EACH-FOR22 considera que existen
tres tipos de migrantes climáticos a consecuencia del cambio climático,
aquellos que sufren desplazamientos temporales por terremotos,
ciclones o posibles inundaciones, los que migran porque los procesos de
degradación ambiental ponen en riesgo su salud y destruyen las bases
de su sustento económico y los que se desplazan porque hay cambios
permanentes en su hábitat tradicional.
De la misma manera, la Organización Internacional de Migración ha
definido cuatro escenarios de migración por cambios ambientales: 1) la
migración en un grado menor por cambios ambientales graduales; 2) la
migración en un grado avanzado de cambios ambientales graduales; 3)
la migración debido a eventos ambientales extremos y; 4) la migración
debido a una larga escala de desarrollo y conservación de la tierra.
Por otro lado, en el caso de los desplazados la recepción de los mismos
es distribuida entre los Estados miembros de la Unión Europea mediante
un reparto de cargas y la estancia con carácter temporal; sin embargo, en
el caso de los migrantes ambientales quienes se considera deben asumir
dicha repartición de cargas son los propios Estados que más contribuyen
con la emisión de gases de efecto invernadero.
Al final, vemos como no hay consenso entre los distintos entes
internacionales que tratan la materia y en muchas ocasiones se utilizan
incluso como sinónimos para referirse al fenómeno del desplazamiento
ambiental y el climático. Si ello es así y el concepto mismo ofrece
problemas, que podremos decir de los derechos humanos de aquellas
personas que se encuentren en esta categoría?
Migrante Ambiental y Migrante Ambiental Forzado
Respecto la acepción de migrantes ambientales, el Instituto Universitario
de Medio Ambiente y Seguridad Humana en las Naciones Unidas definió
como migrante forzado ambiental “a alguien quien tiene que dejar su
lugar habitual donde reside por una afectación ambiental, a diferencia de
un migrante ambiental que es una persona que puede decidir si se mueve
como consecuencia de una afectación ambiental”23.
22 Cfr. International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Op. Cit., pgs. 2 y 3.
23 Cfr. Renaud, F., Bogardi, J.J., Dun, O. and Warner, K. (2007) “Control, Adapt or Flee: How to Face Environmental
Migration”, InterSecTions, UNU-EHS, no. 5/2007, www.ehs.unu.edu/file.php?id=259, citado en Boano, C., Zetter,
R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental
change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.6.
256
MSc. Efraín Peña
Asimismo, la Organización Internacional de Migración propuso como
correcto el término de migrantes ambiéntales, haciendo referencia “a
aquellas personas o grupos de personas que de manera inevitable por
cambios repentinos o progresivos del ambiente afectan de manera adversa
sus vidas o condiciones de vida son forzados a dejar su vivienda habitual,
o a elegir a hacerlo de manera temporal o permanente, y quienes tienen
que moverse dentro de su país o al exterior”24.
La Asociación Internacional para el Estudio de las Migraciones Forzadas
(IASFM por sus siglas en ingles) describe la migración forzada como:
Un término generalizado que refiere a los movimientos de refugiados y
personas internamente desplazadas (por conflictos); al igual que aquellos
desplazados por desastres naturales o ambientales, desastres químicos o
nucleares; hambruna y proyectos de desarrollo25.
De las distintas acepciones que se han analizado en el presente artículo,
el término de migrantes se considera el más idóneo para describir a las
personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio
climático, toda vez que dicho concepto está libre de acepciones que
conllevan ciertos parámetros ya establecidos previamente y permite definir
nuevos parámetros con base en la propia naturaleza de los conceptos;
asimismo, al no estar contemplado en ningún instrumento internacional
no es necesario tratar de forzar la concepción a un determinado concepto
ya establecido para obtener la protección internacional, sino al contrario
permite crear un instrumento y un organismos autónomo que esté acorde
con las características de dichas circunstancias.
De esta manera, se considera acertado el termino de forzado, pues
justamente la mayoría de los migrantes, por las características extremas
que han caracterizado los fenómenos ambiéntales derivado del cambio
climático no tienen la opción de elegir respecto a la posibilidad de
quedarse en el lugar donde residen y repeler las afectaciones ambientales
de alguna manera, asimismo una de las características que se considera
que distingue entre los migrantes ambientales y los migrantes climáticos es
que dada la gravedad de las consecuencias de los fenómenos ambientales
causados como consecuencia del cambio climático, resulta necesario el
responsabilizar a los demás estados para enfrentar dichas catástrofes
y evitar en un fututo terribles conflictos derivados de la migración
exacerbada de personas.
En este sentido, toda vez que se considera que al hacer el distingo entre
los migrantes climáticos de los ambientales, por la intensidad de dichos
fenómenos resulta ocioso el utilizar el término de forzados, pues dicha
24 Organización Internacional de Migración, Nota de Discusión: Migación y Ambiente, Op. Cit., pg 1 y 2.
25 International Association for the Study of Forced Migration [IASFM], 2008,
257
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
acepción lo implica. No obstante, no se debe confundir respecto a que la
diferencia de esas dos acepciones únicamente se refieren a dicha cuestión,
pues como ya se esgrimió antes, entre otras diferencias que conlleva los
migrantes ambientales y los migrantes climáticos es la causa de dicho
afectación ambiental, pues en el caso de las afectaciones climáticas éstas
únicamente son producidas como consecuencia del calentamiento global
provocado por el aumenta de las emisión de gases invernadero que ha
provocado, dejando a un lado aquellas afectaciones ambientales que
hayan sido generadas por la acción u omisión de una persona que derive
en un daño ambiental.
adecuado el no adoptar las acepciones de refugiado y desplazado,
otorgadas a ciertas personas para brindarles la protección internacional,
entonces resultaría necesario el crear un instrumento y un organismo a
fin de velar por la protección de las personas desplazadas por los efectos
del cambio climático.
Asimismo, otra diferencia que se considera como fundamental entre
los migrantes forzados climáticos y los refugiados y desplazados, es
que los migrantes climáticos deben ser protegidos por otros Estados no
solo por simples convenios entre los Estados con base con su capacidad
económica y como un acto humanitario, sino dicha protección se deberá
asumir como una obligación de los Estados que más contribuyen con la
emisión de los gases de efecto invernadero y que se encuentran obligados
conforme al Protocolo de Kyoto.
Se considera idóneo que a efecto de proteger a los migrantes
climáticos no solo se cree un instrumento para su regulación y en éste
se establezca la constitución de un organismo que tenga relación directa
con dichas personas desplazadas así como sus facultades, como sucede
con los refugiados que son supervisados a través del ACNUR y no quede
únicamente supeditada a la voluntad de los Estados para cumplir con las
obligaciones derivadas de un instrumentos adoptado entre los mismos.
De esta forma, la Organización Mundial de Migración al igual que con
otros migrantes podría coadyuvar con la protección de los derechos de
los migrantes ambientales, trabajando con los gobiernos y la sociedad civil
para promover la comprensión sobre las cuestiones migratorias, alentar el
desarrollo socioeconómico a través de la migración y velar por la dignidad
humana y el bienestar de los migrantes.
Finalmente, se considera que los migrantes climáticos podrían dárseles
una protección temporal o bien una protección permanente dependiendo
la situación en la que se encuentren, ya que si los fenómenos ambientales
son temporales y existe la posibilidad de que se les restituya la situación
para poder vivir adecuadamente en su lugar de origen, como en el caso
de las inundaciones, una sequía, la protección es temporal, pero tendrá
que ser permanente, cuando exista la imposibilidad de regresar a su lugar
de origen, como en el caso de las Islas Tuvalú o las demás Islas las cuales
están desapareciendo en el que el incremento del nivel del mar.
En este punto es dado resaltar que ya existen y de manera aislada,
ejemplos donde algunos regímenes internacionales han protegido los
derechos de las personas que migran por razones del clima, a saber la
Unión Europea, a través de la Directiva de Protección Temporal, que
establece en su Artículo 2 que la protección temporal podrá ser otorgada
a migrantes que hayan tenido que abandonar sus hogares en zonas de
conflicto armado o violencia endémica, así como aquellas que estén bajo
el alto riesgo, o que hayan sido víctimas, de violaciones sistemáticas o
generalizadas en Derechos Humanos26.
Problema Jurídico
¿Teniendo en cuenta la categoría de Migrantes Forzados Climáticos,
cual es la Institución Jurídica que puede garantizar la protección de los
derechos fundamentales de estas personas?
Como hemos visto a lo largo de la lectura de este artículo, es imposible
a hoy proteger desde la supranacionalidad los derechos fundamentales
de las personas que migran por razones del cambio climático y bajo el
evidente vacío legal existente, que versa desde la definición misma y la
categorización de estas personas, no podemos afirmar que exista siquiera
una protección siquiera insipiente. Toda vez que se ha considerado
258
MSc. Efraín Peña
Bien lo señalan Espósito y Camprubí,27 Finlandia propuso introducir en
este directiva una referencia explícita a los ‘refugiados climáticos’ dentro
de la categoría de ‘violaciones sistemáticas o generalizadas de Derechos
Humanos’. La propuesta finlandesa no fue finalmente acogida en el
articulado de la Directiva por oposición expresa de España y de Bélgica.
No obstante, cada país de la Unión Europea queda libre de incluir a los
‘refugiados medioambientales’ o ‘refugiados climáticos’ en el ámbito
de aplicación de la norma de derecho interno mediante la cual sean
26 Directiva del Consejo 2001/55, relativa a las normas mínimas para la concesión de protección temporal en
caso de afluencia masiva de personas desplazadas y a medidas de fomento de un esfuerzo equitativo entre los
Estados miembros para acoger a dichas personas y asumir las consecuencias de su acogida, DO L 212, de 7 de
Agosto de 2001. Véaseasimismo Kolmannskog, Vikram y Myrstad, Finn, “Environmental Displacement in European
Asylum Law”, en: European Journal of Migration and Law,Vol. 11, La Haya, Boston, Kluwer Law International, 2009,
pp. 313-326.
27 Espósito C y Camprubí A, Cambio y Derechos Humanos: El desafío de los “Nuevos Refugiados”, en Revista de
Derecho Ambiental de la Universidad de Palermo | ISSN 2250-8120, pp. 7-32 Año I, No. 1, Mayo de 2012.
259
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
traspuestos los objetivos de la Directiva.
Dos países nórdicos (Suecia y Dinamarca) ya han seguido esta vía,
habiendo incorporado esta interpretación extensiva en su legislación
nacional, y un comunicado del Foreign Office del Reino Unido parece
igualmente inclinarse positivamente en esta dirección28. De la misma
manera, el Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Refugiados
(ACNUR) se expresó en recomendación de 2008, a favor del otorgamiento
de la Protección Temporal a ‘los afectados por el cambio climático, los
desastres naturales y otras formas de ‘acute distress’29.
Igualmente se considera necesario para la creación de un fondo para
enfrentar los desastres naturales, para los Estados que no cuentan con los
recursos económicos suficientes para enfrentar las catástrofes ambientales,
así como para sostener al organismo que velará por la protección de los
migrantes climáticos, el cual deberá ser financiados por los Estados partes
del Protocolo de Kyoto, para lo cual igualmente se considera menester el
establecer dentro de las obligaciones de los Estados que se encuentran
contemplados dentro del Anexo I del Protocolo de Kyoto, no solo el reducir
la emisión de gases efecto invernadero sino el hacerse responsable de
las poblaciones que se vean forzadas a migrar de su país de origen por
el acontecimiento de fenómenos ambientales consecuencia del cambio
climático y aportar a un fondo correlativa a la emisión de contaminantes,
como el pago de la deuda climática30 toda vez que los países pobres son
los que más sufren las consecuencias del cambio climático y son los que
menos han contribuido a este nivel de contaminación.
Ahora bien, esto aún es algo etéreo y ante la pregunta del título
mismo del presente artículo, se considera que el volumen de migraciones
internas versus las externas es muy superior y que por ende es importante
fortalecer a la unidad local o municipal para afrontar este fenómeno
social y ambiental, con el fin de proteger los derechos fundamentales
de aquellas personas que se ven inmersas en el desplazamiento de
su lugar de residencia por razones del clima. Así las cosas, es de vital
importancia empezar a trabajar con las unidades locales para fortalecer
desde el municipio la prevención (reducción vulnerabilidad) la adaptación
y la resiliencia31 del conglomerado dentro de su jurisdicción, asi como
28 The Finnish Aliens Act(301/2004, Enmiendas hasta 973/2007 incluidas), Section 109(1); y Swedish Aliens Act
(2005, 716).
29 Ibídem
30 Contrastando con el concepto de deuda financiera, existe una nueva corriente de pensamiento que analiza
también el intercambio desigual entre Norte y Sur, pero en términos medioambientales y de sostenibilidad
planetaria asociados al actual modelo de producción industrial, consumismo, residuos y emisión de gases de efecto
invernadero por parte del Norte. Este ideario habla de la necesidad moral y económica de que el Norte repare
las consecuencias nefastas que dicho modelo tiene sobre las poblaciones del Sur. Es decir, que asuma la deuda
ecológica con estos países.
31 Definida por la Real Academia Española como Capacidad humana de asumir con flexibilidad situaciones límite
260
MSc. Efraín Peña
la reacción frente al hecho de recibir y garantizar los derechos de las
personas provenientes de otros lugares del país a su localidad.
Conclusiones
En resumen y para concluir, el termino acertado que ha de acuñarse
para referirse a las personas que has sido sacadas forzosamente de su
lugar de habitación por fenómenos asociados al Cambio Climático es la
de Migrante Climático, y hemos de empezar a reconocer una serie de
derechos y deberes de estos por parte de los Estados (y hacia el interior
de los mismos) más de aquellos que contribuyen en mayor medida al
fenómeno del calentamiento global.
Igualmente y teniendo en cuenta el aspecto de Responsabilidad Común
pero Diferenciada, no es posible que esta categoría de Migrante Climático
sea asociada como un sinónimo a la de Migrante Ambiental, ya que no es
lo mismo endilgar responsabilidad directa a un Estado determinado o un
Privado por un daño ambiental sufrido, que a una comunidad de Estados
industrializados, que por sus altos niveles de emisiones de CO2 contribuyen
al acelerado calentamiento global, conllevando ello afectaciones serias a
países vulnerables que a su vez repercuten en su población, forzándola a
migrar dentro o fuera de sus fronteras.
Se considera entonces imperiosa la necesidad de contar con un nuevo
sistema de protección a migrantes climáticos exclusivamente y este debe
ser creado en el contexto de las Partes signatarias de la Convención Marco
de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático, en el que se otorgue
una partida del Fondo para la Adaptación, creado por la COP7 (Marrakesh,
2001) para financiar proyectos y programas concretos de adaptación en
países en desarrollo que son Partes de la Convención y del Protocolo de
Kyoto y aquel que le sobrevenga.
Sin embargo y mientras eso se da, es importante reconocer que
los temas migratorios en la actualidad permanecen eminentemente
regulados a nivel nacional, presumiblemente por la estrecha vinculación
entre la soberanía estatal y el establecimiento de políticas migratorias,32
por lo que es necesario también abordar este problema desde lo local
y desarrollar dentro del marco jurídico nacional las herramientas que
permitan garantizar los derechos fundamentales de los migrantes
climáticos locales o internos.
y sobreponerse a ellas.
32 Marchi, Sergio, “Global Governance: Migration’s Next Frontier”, Global Governance, Vol. 16, Boulder, Lynne
Rienner Publishers, 2010, p. 323.
261
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
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report.cfm
262
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do
possível
Rosa MOURA1
Nelson Ari CARDOSO2
Introdução
Este artigo sintetiza a primeira etapa de pesquisa que objetiva avaliar os
impactos decorrentes do processo de integração regional do MERCOSUL
sobre as regiões de fronteira, de modo a contribuir com a formulação de
políticas públicas de integração e articulação destes espaços. A pesquisa
volta-se também a observar a qualidade das políticas públicas a eles
direcionadas, apontando possibilidades para seu aperfeiçoamento.
Para efeitos deste artigo, privilegia-se o enfoque sobre a mobilidade
transfronteiriça, pautando-se em análises empíricas a partir de dados
referentes à migração internacional e aos deslocamentos pendulares dos
brasileiros em direção ao exterior, para trabalho e/ou estudo em município
que não o de residência, disponibilizados pelo IBGE; e de entrevistas a
pesquisadores e lideranças regionais com atuação precípua relativa ao
MERCOSUL e fronteiras.
O recorte analítico é a faixa de fronteira, que corresponde a
aproximadamente 27% do território nacional, com 15.719 km de extensão,
cerca de 10 milhões de habitantes de 11 estados brasileiros e faz limite
com 10 países da América do Sul (BRASIL, 2005). Agrega 98 municípios da
Região Norte, 403 da Sul e 69 da Centro-Oeste, totalizando 570 municípios,
lindeiros e não-lindeiros. A principal legislação inerente à faixa de fronteira
é de 1979 (Lei nº 6.634), atribuindo destacada importância a esse espaço
territorial como região estratégica, em harmonia com os ideais de justiça
e desenvolvimento.
Os municípios lindeiros – situados na linha de fronteira –, em muitos
casos configuram aglomerações transfronteiriças, também chamadas
cidades gêmeas, cidades-pares, ciudad binacional, entre outras. São 19
cidades que se estendem de um ao outro lado da fronteira (BRASIL, 2005).
1 Doutora em Geografia pela UFPR, pesquisadora do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e
Social (IPARDES) e do Observatório das Metrópoles – INCT/CNPq. E-mail: [email protected]
2 Sociólogo, pesquisador do IPARDES e coordenador estadual do projeto Mercosul e Regiões de Fronteira,
PROREDES/IPEA/IPARDES. E-mail: [email protected]
263
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
Em relação a elas, não se observa “apenas um entrelaçamento entre os
traçados urbanos de duas cidades; há, sobretudo, uma imbricação da
história e da vida das pessoas nestas cidades” (OLIVEIRA, 2010), que
desenvolvem interações sociais e culturais, valores materiais e imateriais.
Peculiarizam-se pela mescla de povos por relações familiares, de trabalho
ou consumo, constituindo-se, paradoxalmente, em “zonas de incerteza
identitária.” (FERRARI, 2012).
Conforme Oliveira (2009, p.3), aglomerações desse tipo têm modulado
a paisagem nas regiões de fronteira nas Américas:
Frágeis lugarejos têm se fortalecido como cidade; a infraestrutura
(ainda que lenta e mal cuidada) tem avançado em direção às divisas; as
relações de interatividades econômicas (formais, funcionais e ilícitas)
estabelecem redes de intercâmbios de tipos variados; aproveitando
de legislações diferentes (trabalhistas e ambientais), e diferenciais de
monetários, os trabalhadores, os empresários e a população, em geral,
criam economias de arbitragens (MACHADO, 1996)3 para obterem
diferenciais de lucros. Todas estas relações tecem interações intensas,
cada vez mais permanentes e fecundas, subvertendo as formas de
controle. Como efeito, todo esse movimento conspira contra qualquer
tentativa de uniformização do território.
Marco referencial
O trabalho desenvolvido pelo Ministério da Integração Nacional
(BRASIL, 2005), orientou a demarcação do recorte da pesquisa e subsidiou
a abordagem de alguns conceitos e noções pertinentes ao espaço
fronteiriço. Destacam-se, entre eles, o entendimento sobre fronteira,
integração, interação e identidade. A fronteira estabelece uma relação
entre Estados Nacionais, separados por limites físicos ou abstratos, e
as conexões cotidianas de convivência decorrentes da expansão do
povoamento e da dinâmica econômica. É uma linha material ou imaginária,
historicamente institucionalizada, que se esmaece diante da interação na
produção/construção real do espaço.
Embora em muitos casos ostensivamente cercadas pelos mais diversos
aparatos de controle, as fronteiras e limites refletem e propiciam
interdependências e dinâmicas inter-relacionais que extrapolam a
formalidade, em ações capazes de suplantar, de forma legal ou não,
as barreiras de sua existência. Os limites e o controle fronteiriço são
acionados segundo conjunturas. Resgatando expressão de Raffestin
3 MACHADO, L.O. (1996). O comércio ilícito de drogas e a geografia da integração financeira. In: CASTRO, I. et al.
(Org). Brasil: Questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, apud Oliveira (2009).
264
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
(1986),4 a fronteira age à maneira de um comutador, que se acende ou se
apaga, permite ou proíbe (COURLET, 1996). Para Machado (1998, p.1), “o
limite jurídico do território é uma abstração, gerada e sustentada pela ação
institucional no sentido de controle efetivo do Estado territorial, portanto,
um instrumento de separação entre unidades políticas soberanas; a
fronteira é lugar de comunicação e troca”.
Rochefort (2002, p.12) sublinha que fronteira significa separação,
demarcação e até obstáculo; poucas vezes encontro, reunião,
enriquecimento mútuo e amizade. “El término frontera se refiere a
la existencia de límites, bordes o confines, pero el ser de estos bordes
fronterizos dibuja también, además de separación o delimitación total, la
aparición de identidades culturales tanto disímiles cuanto recurrentes.”
Sob perspectiva global, a fronteira não seria um obstáculo a um
ajustamento otimizador das atividades econômicas, pela sua função à
expansão do capitalismo, mas um instrumento para administrar situações
interativas, com fundamental importância na gestão em nível local; uma
zona de contato, um local de concorrência e de complementaridades
(COURLET, 1996). Paradoxalmente, sua importância como objeto de
estudo não se dá apenas pelo viés político, mas por outra perspectiva: “a
de constituir uma região de interações privilegiadas que não reconhece as
relações entre seus povos” (FERRARI, 2012).
Segundo Oliveira (2009, p.4), a “condição de fronteira impõe
mobilidade aos indivíduos de qualquer classe social, com diferentes graus
de intensidades legitimando os mecanismos de complementaridades”.
Assim, as áreas fronteiriças podem funcionar como impulsionadoras do
desenvolvimento, áreas de transição, contato, articulação, “com especial
vivacidade e dinamismo próprio”. As cidades contíguas que se estendem
entre países e exercem, muitas vezes, atividades econômicas similares
e funções urbanas complementares, poderiam dar origem a estruturas
bi/trinacionais com articulação produtiva e transformação territorial
(CICCOLELLA, 1997; OLIVEIRA et al., 1999). Entretanto, contrapondose ao espaço único de ocupação, prevalecem ainda tensões históricas
fronteiriças e, mais que tudo, assimetria entre as partes, levando a quadros
de expressiva desigualdade. Isso reforça a importância da presença
do Estado na formulação e implementação de políticas integradoras,
consideradas as particularidades da mobilidade econômica e populacional
desses espaços.
Para viabilizar relações econômicas globais, blocos de países e políticas
de integração postulam-se como alternativas ao desenvolvimento.
4 RAFFESTIN, C. (1986). Eléments pour une théorie de Ia frontière. Diogene, 13-14 avr./juin., apud Courlet (1996).
265
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
Salienta-se que integração regional é uma formulação de Estado, com
potencial transformador das relações interestatais, que passam a se
orientar pelo cooperativismo e complementaridade, possibilitando a
reorganização dos estados fronteiriços em termos de competências
internas e alterando as relações jurídicas locais e extraterritoriais
(CARNEIRO, 2007). Deve ser instituída, regulada e consolidada pelo Direito
de Integração, e responder por meio de regulações conjuntas a questões
como migração de trabalhadores; gestão ambiental e de recursos naturais
essenciais e estratégicos; combate à contravenção e à pobreza, entre
outras demandas insuscetíveis de serem reguladas unilateralmente pelos
estados, pois são problemas não isolados, não localizados. Oliveros (2005)
agrega que integração fronteiriça é “el proceso orgánico, convenido por
dos Estados en sus espacios fronterizos colindantes, que tiene por objeto
propiciar su desarrollo sobre la base del aprovechamiento complementario
de sus potencialidades y recursos, y de costos y beneficios compartidos,
proceso que al mismo tiempo contribuye al fortalecimiento de los vínculos
bilaterales.”
Enquanto tratados internacionais ensaiam políticas de integração, a
interação viabiliza o cotidiano e une os povos das fronteiras, sem garantir
convergência econômica ou cultural entre eles. Alegria (2009) adiciona
que a interação é propulsada pelas diferenças entre os países e pode ser
considerada cíclica, aumentando na medida em que se intensificam as
diferenças. Perante contínua interação, questiona se a convivência entre
povos, culturas, religiões em sua vivência cotidiana, complexificada pela
intensa mobilidade das pessoas, cria uma nova cultura, uma possibilidade
de cidadania transfronteiriça, ou se simplesmente aproxima diferenças,
compondo um mosaico diverso, ao qual se sobrepõe uma camada à parte,
que não é resultado da interação, menos ainda da integração, mas que em
si mescla traços da diversidade presente, como decorrência das relações
estabelecidas na busca de alternativas de superação dos entraves para a
sobrevivência presente.
Alegria (2009, p.358) pondera que há influências físicas urbanas
e urbanísticas entre os lados da fronteira, assim como em valores e
identidades. “La interacción porta la influencia para que un lado de la
frontera se parezca al otro, y para que identidades regionales en el espacio
transfronterizo florezcan.” No entanto, essas influências e identidades não
estão atadas nem são exclusivas a um lugar, mas aparecem em outras
cidades e lugares.
Hiernaux-Nicolas (2006, p.164) questiona se a mobilidade, neste
momento de céleres mudanças espaço-temporais, altera a forma como
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
se constroem as identidades. Em seu entendimento, poderíamos estar
evoluindo para que ocorra, em um extremo, a “transformación de las
identidades tradicionales en identidades móviles”, e em outro extremo,
“las identidades estarían en vía de desaparición ejercida por la movilidad”.
Tomando como referência a mobilidade para o trabalho, o autor aponta
que o imaginário ligado ao lugar de origem e a um possível retorno,
que permeou estudos sobre migrações, perde o sentido ao se admitir
a crescente penetração do uso de tecnologias de comunicação na vida
transnacional dos migrantes, reforçando seus vínculos de origem mesmo
à distância, ao mesmo tempo transformando o migrante, no lugar de
origem, em um “turista”, com atitude “nostálgica con relación a lo que
dejó”. Retoma-se, assim, a questão chave: ¿“se trata realmente de la
construcción de unas identidades móviles o una movilidad sin identidad
(y la búsqueda de la misma)?”
Para o projeto referência deste trabalho (BRASIL, 2005, p.33-34):
Por mais que, no senso comum, se tenha uma concepção muito
clara e bem definida de identidade, como se ela pudesse até mesmo
ser considerada “natural” a um determinado grupo, devemos partir
sempre do pressuposto de que a identidade cultural é uma construção
social-histórica – e, no nosso caso, também, geográfica. Centralizada
sobre a dimensão simbólica da realidade, ela está sempre aberta a novas
formulações e, para retomar o termo de Hobsbawm e Ranger, é possível
de ser sempre “reinventada”.
Mobilidade na fronteira: o que dizem os números
Movimentos migratórios internacionais
Para efeitos desta análise, foram utilizadas informações sobre
emigrações internacionais do universo do Censo Demográfico 2010;
e sobre imigração internacional, informações de data fixa, ou seja, que
respondem à pergunta sobre onde a pessoa estava em 31/07/20055.
Com relação à emigração internacional, o Censo Demográfico 2010
considerou um universo de 5.156 municípios, nos quais foram registrados
491.645 emigrantes internacionais, em 193 países do mundo. A maioria
dos emigrantes era composta por mulheres (53,8%) e a faixa etária que
mais contribuiu foi a entre 20 e 34 anos de idade (60%).
No caso das imigrações, para o IBGE, a crise financeira internacional e o
desempenho positivo da economia do Brasil foram os grandes atrativos à
imigração de estrangeiros ao país e influenciaram o retorno de brasileiros
5 Análise destas informações em maior detalhe pode ser encontrada em Cardoso; Moura; Cintra (2012).
266
267
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
que moravam no exterior. Em 2010, 268,3 mil imigrantes internacionais
que tinham passado os últimos cinco anos fora do país estavam de
volta ao Brasil. Entre eles, os brasileiros correspondem a 65,7% (176,2
mil pessoas); 29% eram estrangeiros e 5,4% naturalizados brasileiros.
Sua distribuição entre os municípios correspondia a 12,5% na faixa de
fronteira; 21,2% entre municípios fora da faixa, mas em UFs fronteiriças; e
66,3% nos demais municípios do país.
Nas aglomerações transfronteiriças, predominam os estrangeiros
(50,5%) sobre o total dos imigrantes (Tabela 1). Entre os demais municípios
da faixa e da linha de fronteira, a distribuição se aproxima da proporção
total do país, ou seja, mais de 60% são brasileiros natos.
TABELA 1 - IMIGRANTES POR LOCALIZAÇÃO E CONDIÇÃO DE NATURALIDADE - BRASIL – 2010
IMIGRANTES
BRASILEIRO NATO
NATURALIZADO
BRASILEIRO
ESTRANGEIRO
Aglomeração transfronteiriça
40,47
9,05
50,48
Linha de fronteira
61,87
9,81
28,32
Faixa de fronteira
68,51
8,24
23,25
Outros mun. UFs fronteiriças
74,40
5,20
20,40
Outros em UFs não fronteiriças
64,50
4,77
30,73
FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados data fixa: residência na origem em 31 de julho de 2005).
Elaboração: IPARDES
Com a intenção de observar o comportamento dos municípios
brasileiros, analisou-se a participação do município no total dos emigrantes
e imigrantes internacionais. No caso dos emigrantes, apenas 12 municípios
participam com mais de 1% desse total, somando uma participação de
29,5%, correspondente a 144.949 emigrantes. Dos demais, observase que muitos municípios na faixa de fronteira participam com mais de
0,010% do total dos emigrantes (Figura 1).
268
Como no caso da emigração, poucos municípios receberam os maiores
volumes de imigrantes. Apenas 11 municípios têm participação superior a
1%, registrando 34,5% do total de imigrantes em 2010. Foz do Iguaçu é o
único município fronteiriço nesta classe de participação. Grande parte dos
municípios que compõem aglomerações transfronteiriças se encontra na
classe de participação entre 0,100% e 1% (ver Figura 1).
Foz do Iguaçu é também o único município de aglomerações
transfronteiriças com participação superior a 0,5% do total de imigrantes
estrangeiros. Outros integrantes de aglomerações transfronteiriças
participam no total de estrangeiros com mais de 0,100%, e esses perfazem
mais de 50% do total de imigrantes recebidos, casos de Tabatinga (93,9%),
Chuí (87,5%), Sant’Ana do Livramento (71,9%) e Ponta Porã (60,5%),
juntamente com Manaus (70,4%), Lauro de Freitas – BA (78,3%) e Itaí – SP
(100%).
O conjunto dos municípios com participação na emigração superior
a 0,100% foi considerado o de maior relevância pelos volumes que
movimenta. Sobre ele foram analisados e mapeados os principais destinos,
destacando-se, nesta análise, os sul-americanos. Do total de emigrantes,
51,4% destinam-se a países da Europa, 26,4% aos da América do Norte,
8,9% aos da África e 7,9% aos da América do Sul. Na América do Sul,
os principais destinos são Argentina (22,2%), Bolívia (20,4%) e Paraguai
(12,7%) – Tabela 2.
269
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
TABELA 2 - DESTINO DOS EMIGRANTES E ORIGEM DOS IMIGRANTES EM RELAÇÃO AOS
PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL E PARTICIPAÇÃO - BRASIL - 2010
DESTINOS
EMIGRANTES
% TOTAL
EMIGRANTES
IMIGRANTES
% TOTAL
IMIGRANTES
Argentina
8.631
22,19
8.084
11,93
Bolívia
7.919
20,36
15.651
23,09
Paraguai
4.926
12,67
24.610
36,31
Guiana Francesa
3.822
9,83
1.072
1,58
3.255
4,80
572
0,84
Colômbia
Suriname
3.416
8,78
Chile
2.533
6,51
2.674
3,95
Venezuela
2.297
5,91
1.892
2,79
Uruguai
1.703
4,38
4.326
6,38
4.224
6,23
Peru
Outros países
América do Sul
AMÉRICA DO SUL
3.643
9,37
1.415
2,08
38.890
100
67.775
100
FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados data fixa: residência na origem em 31 de julho de 2005).
Elaboração: IPARDES
As emigrações para a América do Sul apontam para um perfil que, em
termos de volumes, origina-se em centros de maior porte. Poucos são os
municípios fronteiriços que concentram volumes elevados de emigrantes,
entre eles se destacam Foz do Iguaçu, além de capitais dos estados do
Norte, como Boa Vista, Rio Branco e Macapá. Nas UFs fronteiriças os
destinos principais são os países limítrofes, o que sugere uma emigração
de contato, de transposição, e que se supõe nem sempre ser realizada por
brasileiros, podendo corresponder a estrangeiros em retorno.
No âmbito do município, 239 têm na emigração para países sulamericanos mais de 75% do total dos emigrantes, e desse conjunto partem
11,7% do total dos emigrantes com destino a países desse continente.
São municípios majoritariamente de menor porte, em UFs fronteiriças
(ver Figura 1) e se caracterizam por fluxos com pequenos volumes (em
159, não atinge 10 emigrantes). Os maiores volumes deixam municípios
do Norte, com destaque a Boa Vista (972 pessoas, 82,5% destinadas a
países da América do Sul).
No caso das imigrações, as principais origens dos imigrantes para o Brasil
foram Europa (29,7%) e América Latina (aqui consideradas as Américas do
Sul e Central e o México), com a participação de 27,1%. Porém, entre os
270
países contribuintes, predominam os Estados Unidos (52,1 mil imigrantes,
ou 19,4% do total) e Japão (41 mil ou 15,3%), assim como Paraguai (24,6
mil ou 9,2%), Portugal (21,6 mil ou 8,1%) e Bolívia (15,6 mil ou 5,8%) –
apenas esses com participação superior a 5% do total. Segundo o IBGE,
na década anterior, o Paraguai e o Japão apareciam antes dos norteamericanos, seguidos pela Argentina e pela Bolívia.
Na América do Sul, Paraguai e Bolívia lideram os países originários de
imigrantes, totalizando 59,4% dos movimentos sul americanos (ver Tabela
2). A Argentina contribui com 11,9%. Entre os demais países, o Chile,
embora não limítrofe, destaca-se com uma participação de 4%. O mapa
dos fluxos principais, considerados os municípios com participação em
mais de 0,100% do total dos imigrantes, reproduz o comportamento da
emigração, com nítida mobilidade entre países limítrofes.
Os 925 municípios com imigrantes oriundos da América do Sul
totalizam fluxos de 67.775 pessoas, das quais 36% em municípios cuja
representatividade dos sul-americanos sobre o total de imigrantes
ultrapassa 75%. Da mesma forma que ocorre com os emigrantes
internacionais, os imigrantes sul-americanos também compõem a maior
proporção do total dos imigrantes dos municípios da faixa de fronteira.
Movimentos pendulares
O Censo Demográfico de 2010 oferece uma importante base de dados
para análise do movimento das pessoas para trabalho e/ou estudo em
outro município que não o de residência. Entendidos como deslocamentos
pendulares, tais movimentos não são considerados migratórios, pois não
implicam em mudança de domicílio. Também não se restringem a fluxos
diários, mas incluem aqueles com maior duração entre partida e retorno.
O Censo registra fluxos de entrada e saída dos municípios. No caso dos
fluxos para o estrangeiro é possível registrar apenas os de saída dos
municípios brasileiros.
As informações apontam que 14.803.149 pessoas realizam movimento
pendular para trabalho e/ou estudo entre municípios brasileiros, das
quais apenas 0,4% dos que trabalham e 0,6% dos que estudam o fazem
no estrangeiro. Considerando o total de fluxos, 34.975 pessoas deixam
municípios brasileiros em fluxos pendulares para trabalhar no exterior;
34.335, para estudar no estrangeiro; 741 realizam ambas as atividades no
exterior; e há um número de pessoas que saem para estudar em município
brasileiro mas realizam atividade de trabalho no estrangeiro (Tabela 3).
Somando todas as saídas para o estrangeiro tem-se 72.302 pessoas em
movimento.
271
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
TABELA 3 - MOVIMENTO PENDULAR DA POPULAÇÃO - FLUXOS DE SAÍDA - BRASIL - 2010
CONDIÇÃO
PESSOAS
% TOTAL
DE PESSOAS
Saída para trabalho em outro município
9.527.748
64,36
Trabalho estrangeiro
34.975
0,24
Trabalho vários municípios
883.890
5,97
Estudo em outro município
3.652.488
24,67
Estudo estrangeiro
34.335
0,23
Estudo e Trabalho em outro município
647.687
4,38
Estudo em outro município e Trabalho estrangeiro
269
0,00
Estudo e Trabalho estrangeiro
741
0,01
Estudo estrangeiro e trabalho em outro município
1.719
0,01
Estudo em outro município e Trabalho vários municípios
19.034
0,13
Estudo estrangeiro e Trabalho vários municípios
264
0,00
TOTAL estuda e/ou trabalha em outro município
14.803.149
100,00
FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados da amostra).
Elaboração: IPARDES.
Das 72.302 pessoas que realizam deslocamentos pendulares para o
estrangeiro, a concentração de fluxos tem origem nos grandes centros
urbanos. De São Paulo saem 14,85% desse total, e apenas outros
dez municípios têm participação superior a 1% do total. Entre eles
encontram-se os municípios fronteiriços Foz do Iguaçu (9,10%), Sant’Ana
do Livramento (3,84%), Ponta Porã (2,910%), Chuí (1,75%) e Tabatinga
(1,3%), demonstrando um mesmo padrão de mobilidade em municípios
integrantes de aglomerações transfronteiriças (Figura 2). Sumarizando,
esses 11 municípios respondem por 45% dos deslocamentos, sendo 18,9
pontos percentuais correspondentes aos municípios fronteiriços.
272
Ao se analisar a proporção das pessoas que se deslocam para o
estrangeiro sobre o total de pessoas em movimentos pendulares
observa-se que em apenas 24 municípios supera os 20% do total de
saídas, envolvendo 19.517 pessoas. A grande maioria dos municípios que
realizam movimentos pendulares para o estrangeiro tem neles menos de
5% do total dos fluxos de saída.
Os municípios onde essa participação é elevada estão inseridos na
faixa de fronteira, porém são os da linha de fronteira (aglomerações
transfronteiriças) que apresentam os mais elevados percentuais.
Da mesma forma que observado na análise dos movimentos migratórios,
os deslocamentos pendulares apontam fluxos importantes na extensão
da faixa de fronteira, seja pelo volume de pessoas seja pela proporção
que representam sobre o total dos fluxos. Lembra-se que não se dispõem
de dados similares dos países vizinhos. Se computadas as entradas para
trabalho e/ou estudo no Brasil, o volume de pessoas em trânsito seria
consideravelmente superior. Particularmente nas aglomerações urbanas,
esses fluxos, entre outros, representam a interação de pessoas no
território para a realização de atividades essenciais e exigem a definição
de políticas de mobilidade, assim como outras medidas que garantam o
livre trânsito dessas pessoas. É o que constata Oliveira (2010):
273
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
estas fronteiras têm proporcionado ações compartilhadas entre
brasileiros, bolivianos e paraguaios: incentivado a utilização de mão-deobra em ambos os lados, intensificado a prestação de serviços, aumento da
arrecadação municipal (fato constatado em todas as prefeituras, alcadias
e intendência); incentivo à criação de centros universitários de graduação
e pós-graduação, dilatando, ainda mais, o raio de atuação regional das
cidades, tanto para dentro do Brasil como para dentro do Paraguai e da
Bolívia; além de tudo, têm forçado a aproximação entre as administrações
municipais, com intuito de solucionar problemas que afetam ambas as
cidades, possibilitando expandir, desta feita, a integração formal.
Mobilidade e integração: o que dizem pesquisadores e lideranças
Com vistas a uma análise preliminar das políticas existentes, problemas
e desafios a serem enfrentados para se implementar uma política de
integração para as áreas de fronteira, com ênfase na mobilidade, foram
entrevistados pesquisadores e lideranças regionais do Paraná e de Santa
Catarina6, selecionadas devido à atuação precípua relativa à temática,
como etapa preparatória à pesquisa de campo prevista.
Foi percebida consonância na posição dos entrevistados, seja quanto
aos problemas ou aos desafios. De modo geral, os grandes problemas
residem no conflito de escalas e na atomização dos planos projetos e
ações federativas na faixa de fronteira, assim como na ambígua função da
fronteira, como espaço alfandegário, porta de entrada e saída de migrantes,
espaço transitório, lugar “perigoso”, permissivo ao tráfico de drogas, de
pessoas e ao contrabando. A ausência de políticas públicas migratórias,
particularmente que considerem as especificidades dos grupos culturais e
as precárias condições de renda, deixa a população a mercê de uma rede
não oficial de agenciamento de trabalho, do medo, do silêncio, do temor
pela represália. São inadiáveis medidas que combatam a precarização
do trabalho e assumam a difícil tarefa de inserir o indocumentado e o
apátrida7.
Foi evidenciado que é ainda inconsistente o diálogo entre países, agentes
e responsáveis por políticas e práticas de integração, particularmente
com a sociedade civil. Neste caso, são realizados apenas contatos com
6 Dr. Rosinha, parlamentar, ex-presidente do Parlamento do Mercosul, integrante da Comissão de Representantes
do Brasil no MERCOSUL; José Antônio Peres Gediel, Coordenador dos Direitos do Cidadão da Secretaria de
Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Paraná; Nadia Floriani, Assessora da Comissão Parlamentar do
MERCOSUL e Assuntos Internacionais na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná; Josemar Ganho, Coordenador
do Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira do Paraná (NFPR); Gislene dos
Santos, docente no Departamento de Geografia da UFPR; Maristela Ferrari, docente na Universidade Federal de
Santa Catarina; Elizete Sant Anna de Oliveira, atuante na Sociedade dos Missionários de São Carlos – Pastoral do
Migrante - Centro de Atendimento aos Migrantes; Gladys Renée de Souza Sánchez, presidente da ONG Casa LatinoAmericana (CASLA), em Curitiba.
7 Caso daquelas pessoas que nascem e têm negado o direito a registro no país migrante, como ocorre entre
guaranis.
274
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
associações de migrantes, porém, em diálogo informal, religioso. A
inconsistência constatada decorre da história de cultura política distinta
entre os países, da existência ou não de uma política exterior e sua
prática. A falta de cultura política para relações internacionais cria sérias
dificuldades de inovação nas relações entre os países fora das estruturas
burocráticas estabelecidas. Como exemplo, a maioria dos parlamentares
membros da Comissão do Mercosul não demonstra interesse algum pelo
tema, como adverte um dos entrevistados. Ademais, é notória a assimetria
entre os países, com diferentes características e interesses.
Também se evidenciou a centralização nacional, a falta de autonomia
para o diálogo e a tomada de decisões, e a desconsideração das
necessidades e especificidades da zona fronteiriça, de seus povos e de
suas aglomerações. A maior parte das ações compete à esfera nacional,
todavia, os problemas recaem nos níveis do Estado e do Município; em
muitos casos, é grande a dificuldade de aprovação das resoluções junto
ao Congresso Nacional, dados os diferentes tempos político-eleitorais dos
países e suas disputas políticas.
Os entrevistados apontam importantes desafios. O principal diz respeito
à cidadania, pois não existe um cidadão do MERCOSUL, mas um cidadão
de um país que quer tirar vantagens para seu país, e assim fomenta a
desintegração e não a integração. É imprescindível redefinir conceitos:
a fronteira tem de ser vista como área que requer gestão/intervenção
conjunta dos Estados, não como área limite de atuação da soberania, o que
limita a construção da cidadania para além da nacionalidade. Os conceitos
jurídicos de Nação e Soberania não dão conta das relações fronteiriças,
portanto há que se construir o conceito de cidadania ampliada da situação
fática das pessoas, de sua existência nos lugares.
Outro desafio premente é colocar dignidade na discussão sobre
o migrante transfronteiriço, o qual está em um contexto social com
pouca representatividade, pouco poder. É fundamental implementar
a identificação única de pessoas e veículos nas regiões da fronteira (há
um acordo aprovado, mas não praticado), o que ajudaria a dignificar o
migrante ou as pessoas que realizam comutação diária. Outro desafio é o
diálogo interescalar, respeitando a participação de moradores fronteiriços,
e a partir dele dar sentido a instituições supranacionais (MERCOSUL,
UNASUL), aprofundando a integração com os países limítrofes e abrindo a
possibilidade de uma agenda compartilhada para a solução de problemas
comuns na faixa de fronteira. Para tanto, há que se reduzir o peso sobre
o aspecto econômico e efetivar a integração das sociedades do bloco,
considerando uma agenda social, cultural, tecnológica, acadêmica
etc. Isso requer que a estrutura do Estado compreenda os problemas
275
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
apontados, assimile-os conceitualmente e em ações transformadas em
políticas públicas, com vigor para que efetivamente sejam implementadas
(orçamento, estrutura, possibilidades de articulações etc.).
que considerem sua condição de lugares de passagem e proporcionem
assentamentos solidários a refugiados.
Do ponto de vista acadêmico, há o desafio intelectual de entender que
a fronteira é uma nova categoria teórica – nem limite, nem contato, nem
interação –; o desafio empírico, pois a fronteira exige dados compatíveis e
comparáveis entre os países, e metodologia diferente da escala do Estado
Nacional; e o desafio da pesquisa, posto que trabalhos de campo são
de difícil operacionalização, por incidir sobre lugares com fluxos e redes
distintas que exigem cuidados especiais.
Considerações finais
Nesse cenário de problemas e desafios, as responsabilidades se diluem e
os povos das fronteiras se veem privados dos direitos essenciais, ao mesmo
tempo em que construções simbólicas emergem a partir justaposição
“diversidade e conflito”. A fronteira tripla Brasil/Paraguai/Argentina
constitui-se em exemplo. Para Montenegro e Béliveau (2006), essa região
se converteu em uma metáfora das zonas cinzentas e dos espaços sob a
ameaça imprevisível do “terrorismo global”, particularmente após 2001,
tornando-se alvo de notícias na imprensa nacional e internacional, sob
um discurso jornalístico que a relaciona a um espaço transnacional que
escapa aos controles estatais.
Tais privações, imposições no imaginário e construções estratégicas
explicam as palavras finais dos entrevistados, instigados a sintetizar “a
quem pertence a fronteira”. Quase que unanimemente a resposta foi:
aos povos que ali residem e que devem discutir os aspectos centrais de
suas identidades, tendo em conta a interculturalidade, e enfrentar os
conflitos escalares da tomada de decisões, normalmente de acordo com
interesses distantes da escala local, do cotidiano vivido pelos moradores
destas regiões. Mas, é preciso “borrar” a fronteira; apagar a linha divisória
sobre cursos dos rios ou vias urbanas e tornar o espaço único. Então, a
fronteira pertencerá aos povos que ali vivem. Pertence também a quem
faz uso dela, o que implica em uma política, não de vigilância, mas que
capte e seja adequada às suas peculiaridades. Apontou-se que existe uma
dialética de fronteira, ou seja, a fronteira é uma síntese de existência e
inexistência, é o fim como também é o início, é o legal e o ilegal manifesto
em um mesmo espaço onde existe e inexiste o pertencimento.
Sob a compreensão dos aspectos jurídicos, a noção de fronteira deve
ser transposta, pois é uma noção pouco hospitaleira, que reforça o papel
dominante da nação. Há que se considerar reflexões de Jacques Derrida8 e
propor que nas fronteiras existam cidades acolhedoras, territórios livres,
8 DERRIDA, J. (2001). A solidariedade dos seres vivos. Entrevista a Evandro Nascimento. Folha de S. Paulo, Mais!
27/5/2001.
276
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
As informações analisadas confirmam que há entre o Brasil e os demais
países da América do Sul uma dimensão de mobilidade transfronteiriça, por
movimentos migratórios e por deslocamentos pendulares para trabalho
e/ou estudo. Tal dimensão requer que sejam concebidas e implementadas
políticas adequadas às especificidades da região, particularmente no que
se refere a migrações, mobilidade, trabalho, educação, cultura, entre
outras.
Os movimentos migratórios registrados na faixa de fronteira envolvem
um grande número de pessoas e municípios e correspondem a uma
busca preferencial pelos países limítrofes, o que sugere um exercício
de interação entre os povos. A mobilidade pendular repete intensos
fluxos na faixa de fronteira, particularmente nas aglomerações urbanas
transfronteiriças (cidades gêmeas, cidades pares, cidades binacionais),
confirmando relações de interação. Tais movimentos (migratórios e
pendulares) decorrem fundamentalmente de relações para trabalho,
estudo, consumo, demanda e acesso a funções urbanas, e implicam
trocas culturais, de hábitos e de padrões. No extremo, sugerem a busca
pela realização de direitos que se confundem entre os lados da fronteira,
muitas vezes dificultados pelos obstáculos de políticas de controle
inadequadas.
Resta investigar o perfil desses migrantes e os motivos dos
deslocamentos. Tais informações evidenciariam os tipos de atividades
comuns e complementares entre os países (econômicas, funcionais,
sociais), as redes sociais existentes, as principais rotas da mobilidade e, com
isso, orientariam a formulação de políticas adequadas às peculiaridades
da região transfronteiriça. Ressalta-se que qualquer informação sobre
movimento migratório pode corresponder a um número subestimado,
em face a omissões por parte de pessoas e familiares temerosos diante de
situações de irregularidade – fato que também remete à necessidade de
políticas públicas de acolhimento, documentação, inserção social e que
neutralizem o preconceito.
A fronteira é ainda uma linha imaginária que dificulta o cotidiano dos
que nela vivem e para muitos se transforma em uma “zona de incerteza
identitária”. Sua constante transposição por migrantes ou pela comutação
frequente legitima que se questione se conformam identidades dissimiles
ou recorrentes; identidades móveis ou que se desaparecem por uma
277
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
mobilidade sem identidade; ou identidades que se reinventam. Talvez,
nem integração, nem interação, mas uma camada à parte que mescla
os traços da diversidade. Em qualquer condição, é imprescindível que
seja ampliada a cidadania para além do conceito da nacionalidade, e
que se garanta dignidade a segmentos com pouca representatividade
social, presos ao medo, à vulnerabilidade, ao espectro do “irregular” que
acompanha muitos desses movimentos nessas porções do território.
É nítida, portanto, a necessidade de políticas públicas efetivamente
integradoras que reforcem a importância da presença do Estado, efetiva
e estratégica, de modo a desconstruir a noção de um mosaico de pedaços
de países independentes que se avizinham. Políticas que enfrentem
as restrições à mobilidade das pessoas – políticas de mobilidade e
de assistência ao trabalho, entre outras que garantam livre trânsito
e desempenho profissional – e as dificuldades imposta por barreiras e
controles à concretização de um espaço social e econômico peculiar.
Romper fronteiras, limites, e assumir a diversidade, a multiculturalidade
presente nessas regiões significa abertura para fluxos que não só
aproximam pessoas e lugares como garantem sua inserção numa mesma
dinâmica, acesso a direitos incontestáveis e o exercício de uma cidadania
ampliada.
Inúmeras são as questões remanescentes na discussão sobre espaço e
mobilidade transfronteiriça, particularmente em sua principal expressão
territorial, as aglomerações urbanas. Entre elas, permanecem latentes
questões afetas ao (des)equilíbrio entre a legalidade e a ilegalidade
nas práticas que se materializam nessas localizações – fato que pode
ser associado não só a uma recorrente compreensão cultural do que
é entendido por violação de direitos, mas também à distância física e
ao relativo isolamento destas porções dos territórios nacionais –, e a
recomposição da imagem manchada por negatividades, como o tráfico, o
contrabando, a impunidade, a clandestinidade. Carentes de reflexão essa
profusão de territorialidades particulares formata e dinamiza a existência
de múltiplas fronteiras internas, dada a quantidade de atores, interesses,
pactos formais e informais, que fazem com que, por se tratar de um
espaço de todos, pareça não pertencer a ninguém.
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
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278
279
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
280
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORÂNEO DAS
MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS1
Gislene SANTOS2
Caio da Silveira FERNANDES3
Introdução
Para o sociólogo Abdelmalek Sayad (1998), a migração se define na
polaridade: emigração-imigração. O migrante é aquele, homem ou
mulher, cujo cotidiano é atravessado por uma dúbia situação espacial:
para a sociedade de origem, é um emigrante, aquele que parte; do
outro lado, para onde chega, um imigrante, presente na sociedade de
destino. Carregaria assim, o migrante, simultaneamente, duas dimensões
espaciais: um e/imigrante. Presente e ausente, entre dois lugares - o de
partida e o de origem. A palavra migração é sobretudo espacial. Migrante é
aquele para quem o espaço é fonte valorosa de recursos. Assim, depende,
o ato de migrar, necessariamente de lugares. Não há ação migratória
sem o substrato de um território. Para este artigo, apesar da amplitude
semântica da migração, priorizamos como espaço de análise, o local de
destino. Trataremos aqui de apresentar quem são os novos imigrantes
internacionais no Paraná. Para apresentar a singularidade do estado neste
período contemporâneo, o artigo estrutura-se em 2 seções: 1) através da
organização dos dados censitários (2010), apresentamos e descrevemos
a particularidade do Paraná no cenário dos afluxos de estrangeiros no
Brasil que, destaca-se, no quadro regional sulino, como um dos estados
receptores de migrantes provindos dos países do cone sul; 2) guardamos
atenção para a inserção de um grupo de migrantes, provindos da América
do Sul, na cidade de Curitiba, capital do estado. O objetivo aqui é darmos
visibilidade para algumas de suas manifestações nos espaços públicos da
cidade. Registra-se ainda uma descrição e análise sobre suas táticas de
inserção no espaço público urbano.
1 O presente artigo é parte do Projeto de Pesquisa, financiado pelo CNPq: “A migração feminina do Paraguai para
o Brasil: o papel das Redes Sociais Migratórias”.
2 Gislene Aparecida dos Santos - Professora Adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da UFPR. Coordena o Núcleo de Estudos em População e Território (NuPoTe), UFPR. Pesquisadora do
CNPq. Email: [email protected]
3 Caio da Silveira Fernandes - Acadêmico do 3º Ano do Curso de Geografia da UFPR, bolsista de Iniciação
Científica/TN/UFPR do Projeto “A migração estrangeira em Curitiba (1990-2000): uma análise entre a economia
espacial e políticas migratórias”. Email: [email protected]
281
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
QUADRO1 - Países de origem dos imigrantes no Paraná - 2010
2. Migrantes Internacionais no Paraná
O território do Paraná é historicamente configurado por fluxos
migratórios internacionais. Na segunda metade do século XIX, migrantes
provindos sobretudo do continente europeu, estabeleceram-se no estado
e, em 1960, o Paraná contava com 100.955 pessoas estrangeiras (IBGE,
1986). No decorrer dos anos este fluxo reduz-se, e para o período mais
recente, 2010, aproximadamente 50.000 migrantes residem no Paraná, ou
seja, cerca de 0,5% da população estadual compostos por estrangeiros4. Na
região sul, o Paraná é o estado que mais sedia uma população estrangeira,
visto que Santa Catarina e Rio Grande do Sul acolheram cerca de 17.623 e
34.244 pessoas respectivamente (Censo Demográfico, 2010).
Mas quem são estes novos migrantes? Qual a sua procedência?
Para uma apresentação da localização e distribuição dos estrangeiros
contemporâneos no estado do Paraná, utilizamos os dados censitários do
ano de 2010. Entretanto, alertamos, trata-se aqui de uma aproximação.
Os dados da migração estrangeira são, por sua natureza, difíceis de serem
contabilizados. No Brasil, as normatizações para a regularização de um
estrangeiro no território nacional são rigorosas5. É comum que, aqueles
migrantes na condição de irregulares prefiram não fornecer informações
aos órgãos censitários, dada a precariedade jurídica de sua estada no
país. Entretanto, ainda que o levantamento censitário apresente lacunas,
este é um dos poucos registros empíricos da imigração estrangeira que o
Governo Federal disponibiliza à sociedade brasileira. E, vale advertir, os
dados censitários são utilizados como parâmetros para as políticas públicas
em suas diferentes escalas, daí a importância de sua divulgação para a
sociedade civil, sobretudo se pensarmos em projetos democráticos de
planejamento territorial que levem em conta a mobilidade da população
no território nacional.
Assim esclarecido, os migrantes estrangeiros no Paraná, em 2010, são
provindos de 144 nacionalidades. 91% desta população localiza-se em
áreas urbanas e 54% são homens; cerca de 46% são idosos, com idade
acima de 70 anos e 41% jovens (entre 15 a 29 anos). Verifica-se assim
um equilíbrio etário na composição da população, e os dados indicam a
necessidade de políticas públicas para atender as demandas específicas
de cada grupo etário. Elencamos abaixo os 13 países mais representativos
de origem dos migrantes no Paraná.
4 Para migrantes internacionais, considera-se aqui os estrangeiros e aqueles naturalizados brasileiros.
5 Para informações da legislação brasileira e os procedimentos jurídicos obrigatórios para a regularização do
estrangeiro, consultar COELHO (2011). E, para o entendimento dos acordos que regulam o trânsito dos migrantes
entre os países do Mercosul, consultar o informe do CDHIC(2011).
282
Nacionalidade
Estrangeiro
Naturalizado
Total
Paraguai
7518
8352
15870
Japão
3194
3041
6235
Argentina
2309
904
3213
Líbano
1897
859
2756
Alemanha
945
827
1772
China
1203
558
1761
Espanha
1161
567
1728
Itália
1065
556
1621
Estados Unidos
847
426
1273
Chile
802
141
943
Peru
404
305
709
Polônia
248
422
670
Fonte: IBGE - Censo Demográfico, 2010. Arquivo Microdados.
Adaptado pelos autores.
A primeira vista, chama atenção a relevância dos migrantes provindos
do Paraguai. Na sequência, a predominância dos japoneses, segundo
grupo mais representado, cuja origem migratória remonta, no Paraná, ao
início do século XX. Destacam-se também a manutenção dos migrantes
europeus e a emergência daqueles provindos do Líbano e da China.
Para entender o Paraná contemporâneo como receptor de migrantes
estrangeiros é necessário apontar que este estado apresentou-se, em
relação às demais unidades da Federação (UFs), um acelerado grau de
urbanização estadual. Se em 1970, apresentava 36% de urbanização,
em 1990 salta para 78%; já em 2010, cerca de 85% da população total
do estado residiam em áreas urbanas. Os municípios de Curitiba, Foz
do Iguaçu, Londrina e Maringá, destino dos maiores fluxos de migrantes
estrangeiros (Quadro 2), apresentavam, em 2010, a taxa média de
97,5% de urbanização, acima da regional. São cidades que, no Paraná,
além de serem as mais populosas, representam espaços privilegiados de
oportunidades, com disponibilidade de variados bens e serviços, recursos
espaciais valorosos tanto para a população local quanto para aqueles que
chegam. Destacam-se também entre as maiores economias municipais
do estado. Para ilustrar, em 2009, 24,09% do PIB estadual concentravase em Curitiba, Londrina 4,68%, Maringá 3,83% e Foz do Iguaçu 3,53%
(IPARDES,2010). São cidades que, no contexto regional, apresentam-se
atrativas para os migrantes à procura de trabalho.
283
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
QUADRO 2. Localização dos Imigrantes no Paraná - 2010
Municípios
População estrangeira
Curitiba
Foz do Iguaçu
Londrina
Maringá
Cascavel
São J.dos Pinhais
Ponta Grossa
Santa Helena
Guaíra
Toledo
Fonte: IBGE - Censo demográfico 2010. Arquivo Microdados.
Adaptado pelos autores.
13.108
8.744
2.875
2.291
1.466
889
759
714
709
641
Foz do Iguaçu é a cidade que sedia o maior número de paraguaios, 2685
pessoas, e, na sequência os provindos do Líbano, 1534 pessoas. A migração
dos libaneses para Foz do Iguaçu, iniciou-se nos anos 1950 e incrementouse nos anos 1970 e 1990. Das 16 instituições árabes na região da tríplice
fronteira, 12 estão localizadas em Foz do Iguaçu (Cardozo, 2012).
A centralidade de Foz do Iguaçu na imigração dos paraguaios pode ser
explicada pela singularidade desta cidade no contexto nacional e regional:
desde os anos 1970, quando da efetivação da Usina Binacional de Itaipu,
Foz do Iguaçu tornou-se um dos pontos de destino da migração interna
brasileira, e, justaposto a este movimento, o afluxo de migrantes paraguaios.
Para os anos 1990 e 2000, Matos el al (2008) demonstram a intensidade
do fluxo da população paraguaia para o estado do Paraná, concentrados
nesta porção fronteiriça. Cascavel também sedia grande parte número de
migrantes paraguaios, 441 pessoas. Se acrescentarmos Guairá 3% e Toledo
5%, localizados na porção oeste do Paraná, verificamos que esta região
fronteiriça acolhe cerca de 81% do fluxo. Assim, no quadro explicativo
da migração dos paraguaios para o Brasil é imperante reconhecermos
o efeito que a região oeste do Paraná, lindeira ao Paraguai, exerce no
arranjo de um fluxo transfronteiriço. No ano de 2007, Foz do Iguaçu
possuía 325.137 habitantes, com uma das mais altas taxas de urbanização
estadual (99,21%) e crescimento geométrico da população em torno de
3,5%, acima da tendência regional e nacional. Sua paisagem urbana é
também marcada por intensas relações internacionais fronteiriças “e se
manifesta como uma espacialidade complexa, desenvolvendo estreitas
relações com as cidades vizinhas de Puerto Iguazu, na Argentina, e Ciudad
del Este, no Paraguai”. (IPARDES 2006, p. 49). Tais interações se expressam
sobretudo pelo fluxo de população para o trabalho entre as duas cidades
- Foz do Iguaçu e Ciudad del Este - e, pela circulação de mercadorias do
Paraguai para o Brasil. No ano de 2007, cerca de 1.178.268 passageiros
284
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
foram transportados nos ônibus interurbanos entre Foz do Iguaçu e
Ciudad del Este, conforme Cury (2010, p. 200). Moura e Cardoso (2010)
reconhecem que a cidade de Foz do Iguaçu está atualmente muito mais
integrada à dinâmica urbana fronteiriça do que à rede urbana paranaense.
Segundo a UNICEF (2005), ocorre nesta área fronteiriça intensa circulação
de pessoas à procura de trabalho e serviços. Ou seja, uma dinâmica de
migração laboral entre áreas urbanas fronteiriças.
Os japoneses, segundo grupo representativo no Paraná, concentramse principalmente em Londrina, 1234 pessoas e, na sequência, Maringá,
675. Em Curitiba, a terceira capital nacional de destino de migrantesestrangeiros6, o principal grupo de estrangeiros está representado
pelos argentinos, 832 pessoas, seguido pelos japoneses, 799. Ainda,
uma particularidade em Curitiba: a presença de 511 portugueses e 453
paraguaios que obtiveram a naturalização brasileira.
Se focarmos a atenção para aqueles migrantes provindos da América
do Sul (Quadro 3), percebe-se que, para 2000 e 2010, os dados nos trazem
algo novo: no Paraná, em 2010, a presença modesta de um contingente de
equatorianos, cerca de 46 pessoas e o ligeiro aumento dos uruguaios: de
75 pessoas em 2000 salta para 116 migrantes em 2010. Ainda, destaca-se a
manutenção em ascendência de um fluxo provindo do Peru, da Venezuela
e do Chile. Por sua vez, uma redução de 54% daqueles provindos da
Bolívia. E, mesmo o Paraguai, apesar de apresentar uma das mais altas
concentrações de migrantes estrangeiros no estado, apresentou também,
em 2010, uma significativa redução em seu contingente migratório.
QUADRO 3. País de origem dos migrantes provindos da América do Sul
no Paraná - 2000 e 2010.
Origem
2000
2010
Argentina
Bolívia
Chile
Colômbia
Equador
Paraguai
Peru
Uruguai
1103
310
167
58
43
20815
33
75
911
142
183
37
46
13498
65
116
Venezuela
32
Fonte: Censo demográfico, 2000 e 2010. Arquivo Microdados.
58
Adaptado pelos autores
6 No Brasil, São Paulo, segundo o Censo 2010, foi a capital que mais recebeu estrangeiros, cerca de 119.727
pessoas. Rio de Janeiro, na sequência, com 55.521. E, Curitiba, em terceiro lugar, com 8.871. Belo Horizonte, e Porto
Alegre, receberam 6.088 e 501 pessoas estrangeiros, respectivamente.
285
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
Interessante verificarmos que, apesar do Paraná ser um dos destinos
privilegiados do fluxo de migrantes provindos do Paraguai, não sejam
eles, os paraguaios, o grupo mais representativo no recebimento dos
vistos para o trabalho. Para exemplificar: das autorizações concedidas
para migrantes a trabalho no Paraná, provindos dos países do Mercosul,
o Paraguai se destaca como o país que obteve as menores concessões.
Entre 2009 a 2012, os argentinos são aqueles que obtiveram as maiores
autorizações concedidas, 76 ao total, enquanto que, o Paraguai, durante
este mesmo período, registrou 7 concessões (Ministério do Trabalho
e Emprego). Não temos aqui a pretensão de desvendar as relações de
trabalho dos migrantes no Brasil, entretanto, vale mencionar que, mesmo
dentro dos países do Mercosul, ocorre diferenças assimétricas na inserção
dos migrantes no mercado de trabalho brasileiro (Sala, 2010).
Antes de terminar esta seção, citamos a presença recente dos haitianos
no Paraná. Se, no Brasil, em 2010, 15 vistos de trabalho foram expedidos
para os haitianos, no primeiro semestre de 2012 já se atingia 2.311 vistos.
Estudos da Pastoral dos Migrantes, registram que, em 2012, cerca de 376
haitianos foram direcionados do Amazonas para o Paraná. De Manaus
(AM), dirigiram-se para Pato Branco, Londrina, Maringá e Campo Largo
(Costa, 2012). Este fluxo migratório desencadeou-se após o violento
terremoto, ocorrido no Haiti, em janeiro de 2010.
Outro grupo de migrantes-estrangeiros presentes no Paraná são os
procedentes do sudeste asiático. Em 2000, cerca de 647 chineses e 721
taiwaneses se encontravam distribuídos entre as cidades de Foz do Iguaçu,
Curitiba, Londrina e Maringá. Foz do Iguaçu concentrava o maior número,
com 415 chineses e 159 taiwanses (Censo Demográfico, 2000). Este curso
migratório em Curitiba, apesar de discreto, apresenta particularidades:
laboralmente dedicam-se ao setor do serviço de alimentos, como
empregadores ou empregados em restaurantes ou lanchonetes na área
central da cidade. Esta migração se organiza ancorada sobretudo nos
laços das redes sociais parentais.
Em síntese, até aqui tratamos de uma visão estatística panorâmica,
evidenciando os mais expressivos numericamente nos dados censitários.
Para a próxima seção, guardamos atenção para a dimensão política da
migração.
2. Os migrantes latinos em Curitiba
Os migrantes internacionais, no contexto atual, têm sido considerados
elementos emblemáticos que subvertem a lógica homogênea do Estado
286
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
nacional e, são, por vezes, nomeados “habitantes transnacionais”. Vários
autores, entre eles Canales et al (2005), utilizam o fluxo migratório
internacional para ilustrar experiências “transnacionais” contemporâneas.
Consideram o fato de que, relações sociais mantidas e sustentadas em
trânsitos migratórios, associadas às facilidades de comunicação, são
elementos formadores de comunidades transnacionais. Por conseguinte,
as relações sociais são capazes de influenciar e alterar tanto a comunidade
de origem quanto a de destino. Mudanças principalmente no campo
social, cultural e econômica.
Em outra vertente, Fitzgerald e Waldinger (2004); Stefoni (2005); Herrera
(2008), menos entusiastas do transnacionalismo migratório, advertem
acerca dos limites do que realmente pode e/ou deve ser considerado uma
comunidade transnacional. Segundo os autores, as políticas migratórias
restritivas, o contexto da interação social entre os migrantes e a presença
ou não dos acordos bilaterais entre os países envolvidos no fluxo (origem
e destino) devem ser levados em consideração no argumento conceitual
do transnacionalismo. Chamam a atenção também para as relações
históricas entre os países envolvidos e, especificamente urgentes no
contexto contemporâneo, a necessidade de uma análise política acerca
da estreita relação entre nacionalidade e cidadania. Apesar da relevância
empírica das redes sociais no curso migratório, muitas vezes desafiando
a soberania dos Estados Nacionais, o grupo dos autores acima citados
argumentam que, as políticas nacionais têm um papel chave para que
uma comunidade migrante se configure como fato social, econômico
e político.transnacional. Herrera (2008), ao analisar o fluxo migratório
feminino do Equador em direção aos Estados Unidos, destacou o papel
das políticas migratórias estadunidenses como agente modelador da rede
migratória. Em suas palavras:
Me interesa analizar como los y las migrantes responden, resisten,
adaptan y/o contornean las leyes, reglas, procedimientos que emanan
de determinadas políticas migratorias y como a su vez estas políticas son
marcos estructurantes de su acionar (p. 71).
Menos adepta da ideologia da livre circulação de migrantes no espaço
internacional, a autora dedica-se a entender os limites e restrições das
legislações migratórias às práticas transnacionais. Ou seja, nos países de
destino, os migrantes, em sua experiência diária, convivem com limites
jurídicos e culturais institucionalizados cerceadores de espaços de convívio
comum e plural. Em síntese, esta discussão coloca em evidência o quanto
a migração é um fenômeno complexo. O migrante, em sua trajetória,
estabelece laços sociais no país de destino, laços que podem ser fortes
ou frágeis; mantêm e/ou rompem com os seus vínculos de origem e,
287
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
no cotidiano mantido entre as duas nações, convivem com legislações
nacionais distintas.
Para esta seção, o objetivo é apresentar uma das faces desta
complexidade e, sobretudo, colocar em evidência algumas experiências
e ações de um grupo de migrantes, provindos de países da América do
Sul no espaço urbano de Curitiba. Como ponto de partida é importante
salientar que a inserção e visibilidade dos migrantes da América do Sul
é ainda precária nos espaços públicos da cidade, o que aponta uma
fraca integração e trânsito intercultural7. Ainda que a área de curso dos
migrantes estrangeiros estenda-se minimamente entre dois países, as
relações sociais são muito restritas aos espaços próximos de circulação
dos migrantes. Assim, os laços contatados são, sobretudo, aqueles de
utilidade assistencial, formados, principalmente, com as organizações
não-governamentais que os auxiliam, principalmente, no campo social e
jurídico. Apesar de, em 2009, ter sido celebrado o Acordo Mercosul8, que
normatiza o trânsito da população migrante entre os países membros e
associados9, há um conjunto de procedimentos normativos que dependem
de esclarecimentos e informações para a liberação do visto temporário
e permanente. Somente para ilustrar, são necessários um conjunto de
documentos como: certidão de nascimento, carteira de trabalho ou outro
registro de vínculo empregatício para se regularizar no Brasil. Documentos
esses que, nem sempre, um migrante com parcos recursos carrega em seu
mudança e deslocamento. E, ainda que o Acordo Mercosul torne mais
viável o deslocamento dos migrantes, as dificuldades para se orientar em
meio a tantas exigências burocráticas e normativas são significativas. O
processo de regularização do estrangeiro no território nacional é uma
ação efetivada diretamente pela Polícia Federal. É deste órgão que são
liberados e renovados os passaportes, e, para o habitante fronteiriço, o
“Documento Fronteiriço”. As práticas de regularização seguem a lógica do
Estatuto do Estrangeiro dos anos 1980, quando o estrangeiro era tratado
como assunto de segurança nacional. Desde 1990, tramita no Congresso
Brasileiro o Projeto de Lei 5.6555 para alterar o Estatuto do Estrangeiro,
entretanto, os avanços e as alianças não se apresentam favoráveis à sua
aprovação.
7 Metodologicamente, temos participado em Curitiba de várias atividades políticas com os migrantes e
organizações não-governamentais que atendem aos migrantes estrangeiros. Junto a isto, realização de longas
entrevistas com os migrantes, representantes de organizações não governamentais, advogados que prestam
assistência jurídica, assistentes sociais e educadores. Também temos realizado atividades com representantes
da sociedade civil sobre a questão migratória. A consideração da frágil integração dos migrantes estrangeiros,
sobretudo aqueles provindos da América do Sul, em Curitiba, nos é percebida pela convivência junto aos migrantes.
8 Consultar informe do CDHIC (2011).
9 Países Membros: Argentina, Brasil, Paraguai (suspenso em junho de 2012), Uruguai e Venezuela. Associados:
Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru.
288
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
Reforçamos que o Acordo Mercosul faculta a entrada e saída dos
migrantes entre os países acordados, mas ainda trata-se de uma política
que atende somente as chegadas e as partidas. Pouco tem se dedicado a
delinear políticas públicas que atendam às necessidades dos migrantes
em seu cotidiano. Aqui, pensamos em acordos culturais, educativos,
políticas de saúde, habitacionais e outras, recursos fundamentais na vida
de qualquer pessoa, em trânsito ou não. Curitiba, apesar de sua posição
no Brasil, uma das principais cidades que sedia o maior contingente de
estrangeiros, não conta, até o momento, com postos de atendimento ao
migrante, tampouco serviços de informação e hospedagem. Os migrantes
estrangeiros têm emergências em sua chegada, instalação e fixação, mas
a satisfação destas apresenta-se condicionada pela sua situação jurídica e
econômica.
Assim, apesar do variado grupo de migrantes de 144 nacionalidades no
Paraná, temos a ausência de políticas públicas multilaterais favoráveis que
facultem a experiência transnacional dos migrantes no estado. A ausência
destas faz com que os migrantes tenham que criar inúmeras alternativas,
geralmente articuladas em redes sociais não formais, para conseguir o
que não está em pauta na esfera de uma política pública.
Neste contexto, a Pastoral dos Migrantes, entidade católica, tem se
apresentado como ator fundamental no atendimento às demandas dos
migrantes no Paraná. Segundo informações da coordenação, a partir
dos anos 1980, as ações da Pastoral se voltaram para um atendimento
ao migrante latino, visto que, nesse período, o número de assistência
dada aos migrantes provindos do Paraguai, Bolívia, Equador e Argentina
tornaram-se mais recorrentes. Se, até então, eram os migrantes internos
que solicitavam auxílio, no final dos anos 1980 a demanda de atendimento
é solicitada pelos novos estrangeiros. A questão da irregularidade
juntamente com a busca por emprego apresenta-se como o problema
central para um grupo significativo dos migrantes.
Em Curitiba, a Pastoral do Migrante, busca, através de várias ações,
construir espaços de visibilidade aos migrantes latinos. Há 10 anos
consecutivos, na cidade de Curitiba, se celebra A Festa Latina, criada
e organizada pela Pastoral do Migrante. Em outubro de 2012, foi
comemorado a 10ª Festa, reunindo no Parque São Cristóvão, migrantes
provindos do Paraguai, Chile, Uruguai, Colômbia, Peru, México, Bolívia,
Equador e do Haiti. Junto com o comércio de produtos típicos, tendas
gastronômicas e apresentação de danças folclóricas. Este espaço de
congregação torna-se também, pelos realizadores, uma expressão de
acesso ao espaço público urbano, e, sobretudo, a festa representa um
possível canal de diálogo entre nacionais e estrangeiros. Expressa também
289
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
atos reivindicativos para regularização do migrante e sua participação no
espaço social da cidade.
9ª. Festa Latina, Curitiba, 2011.
Acervo NuPoTe (Núcleo de Estudos de População e Território) -UFPR.
Outras manifestações de visibilidade têm ocorrido. Em julho de 2012, na
abertura do “III Congresso de Educação e Integração da América Latina”,
organizado pela Casa Latino-Americana – CASLA, vários grupos compostos
por migrantes de diferentes países da América Latina desfilaram no
centro da cidade de Curitiba. O que é marcante, é que ao longo de 25
anos de um curso migratório para o Paraná, os migrantes latinos, pela
primeira vez, ocuparam festivamente as ruas centrais da cidade. Grupo de
bolivianos, paraguaios, equatorianos, mexicanos, peruanos, adornaramse de vestimentas tradicionais dos seus locais de origem, e, publicamente,
apresentaram-se atores no cenário urbano, exibindo os seus aportes
culturais.
290
Abertura do III CEPIAL, Curitiba, 2012.
Gislene Santos. Acervo NuPoTe - UFPR
O uso das vestimentas, não deve ser aqui entendido como nostalgia
ou anseio ao retorno de uma sociedade rural ancestral. Buscam, nestas
ações, formas de se inserir no novo país. Assim, taticamente valoram e
utilizam-se do seu capital cultural, transpostos do país de origem, para se
legitimarem enquanto atores políticos e, não somente como migrantestrabalhadores na sociedade de destino.
Em A Condição Urbana, Costa Gomes argumenta que, para a fundação
da cidadania são necessárias duas condições: 1) o acesso ao espaço
público; 2) a efetiva participação do Estado na normatização destes
espaços, regulamentando seu uso e as possibilidades de manifestação
cultural, social e política. Compreendemos que estas duas condições
são fundamentais para o exercício da cidadania transnacional. São elas
o pressuposto que fundam um espaço público plural, onde nacionais e
estrangeiros possam se manifestar em igualdade de condições.
291
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
Entretanto, o Paraná, apesar de se constituir como um estado que
historicamente sediou várias correntes migratórias, tanto migrantes
internos quanto estrangeiros, não possui, até o momento, um registro
de sólidas políticas públicas para a integração do migrante à sociedade
regional. O que se observa são políticas assistencialistas ou outras de
cunho social. Neste contexto, na ausência de políticas estatais, em Curitiba,
as ações da Pastoral do Migrante, da Casla e de outras organizações nãogovernamentais podem ser concebidas como aquelas que, no contexto
contemporâneo, politicamente tem construído práticas espaciais de
inserção dos migrantes nos espaços públicos. Entretanto, apesar destas
ações, é importante registrar que a migração dos latinos ainda não se
materializou como um elemento visível na paisagem paranaense. Muitos
migrantes estão ainda submersos nos espaços da informalidade do
trabalho e ausentes de uma participação no cenário da vida pública.
A possibilidade de uma cidadania transnacional, somente pode ser
realizada através de laços de pertencimento à sociedade de destino e à
de origem. E pertencer implica apropriação e uso dos espaços públicos;
discutir e propor, em condições de igualdade, a efetiva construção de
políticas públicas multilaterais. Estas são as condições necessárias e
fundamentais para uma coexistência solidária, menos folclorizada e mais
política fundando assim, de fato, uma sociedade plural.
Considerações Finais
No contexto contemporâneo temos presenciado uma sorte de palavras
e noções que, à primeira vista, podem nos levar à falsa ideia que vivemos
num mundo de intensas relações. Capitais circulam de um país a outro,
os meios de comunicação virtuais se expandem geograficamente, e,
numa causalidade simplista, a população é vista em constantes fluxos
internacionais. Os serviços técnicos e meios de transporte facilitam a
circulação de diferentes fluxos, entretanto, em relação aos migrantes, o
seu deslocamento está condicionado por fatores políticos e econômicos. E,
ainda, é preciso alertar que, no contexto do Paraná, apesar de sua posição
na região sulina, o estado que mais recebe migrantes internacionais, este
fluxo é modesto numericamente. O que chama a atenção é a variedade
das nacionalidades presentes e a emergência de um fluxo provindo dos
países lindeiros ao Paraná. Assim, a descrição e análises feitas ao longo
do artigo, buscou apresentar o panorama paranaense em relação aos
fluxos migratórios contemporâneos, e, ao mesmo tempo, o território
estadual como aquele que, ao longo de sua história, sediou várias
correntes migratórias. Entre os diversos fluxos mais consolidados, o da
292
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
migração europeia e japonesa do século XIX, e recentemente a entrada
dos migrantes provindos da América do Sul, tema da seção 1. Entretanto,
a presença deste coletivo ainda é invisível nos espaços públicos da cidade
de Curitiba, local comum urbano, que possibilita a construção de uma
convivência plural. Mas, observamos também, que ações de resistência,
como as de organizações não governamentais tornam-se importantes elos
de mediação dos migrantes com a sociedade de destino e sua inserção no
país.
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294
Eduardo J. Vior
Por que o Estado do Paraná precisa da livre
circulação das pessoas
Eduardo J. VIOR1
O Estado do Paraná tem uma longa divisa com a Argentina e o Paraguai:
501 km no total. Atualmente, vivem cerca de meio milhão de habitantes
na região lindeira que inclui 139 munícipios, definida pelo Ministério da
Integração Nacional como “Faixa de Fronteira” (NFPR-2012). A área tem
150 quilômetros de largura e 16 mil quilômetros de extensão. 35% dos
municípios paranaenses estão nessa faixa de fronteira, onde vive 23% da
população estadual.2
Contrariando o imaginário predominante, que vê a fronteira como uma
linha no mapa, os territórios fronteiriços são regiões de forte intercâmbio:
pessoas, mercadorias, e serviços atravessam as fronteiras todos os dias
em ambas as direções. Os mais de 200 mil “brasiguaios” que moram no
Leste do Paraguai têm parentes, amigos, negócios e bens imobiliários
deste lado da fronteira. Os que retornaram, porque não acharam trabalho
ou terra lá, deixaram parentes e amigos.
Em Foz do Iguaçu moram muitos trabalhadores e comerciantes
que dependem das lojas de Cidade do Leste para se sustentar. Muitos
trabalhadores paraguaios atravessam a fronteira de semana em semana
para trabalhar no serviço doméstico ou na construção civil no Brasil, ou
procuram do lado brasileiro os serviços de saúde. Além disso, os criminosos
de alta ou baixa periculosidade, que aproveitam dos arcabouços jurídicos,
legais, políticos e sociais da fronteira trinacional, fazem parte da realidade
estadual. Os índios M’bya Guarani sempre circularam pelas suas terras
ancestrais, sem se preocupar com as divisas. Em outros pontos relevantes
da fronteira, como Barracão no extremo oriental, cidade gêmea com
Dionísio Cerqueira (Sta. Catarina) e Bernardo de Irigoyen (Misiones, AR),
ou Guaíra no extremo norte, gêmea com Guayrá (PY), os intercâmbios
também são permanentes.
1 Eduardo J. Vior, Dr. em Ciencias Sociales (Facultad de Filosofia y Letras – Univesidad de Buenos Aires), Dr. em
Ciências Sociais (Univ. de Giessen, Alemanha, 1991), Dr. em Sociologia (UFPR, 2011), Professor do quadro efetivo de
Ciência Política na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu.
2 Os dados provêm do Decreto de criação do Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de
Fronteira do Paraná, estabelecido pelo Governo Federal em novembro de 2011. O Núcleo, instalado pelo Ministério
da Integração Nacional, integra as três esferas governamentais no planejamento e execução de ações voltadas para
o desenvolvimento da região. Integram o núcleo do Paraná mais de 20 secretarias e autarquias do estado, Itaipu,
Polícia Federal, Receita Federal, e o Parque Nacional do Iguaçu, além das associações de municípios da região, Fiep,
Faep, Faciap, Fecomércio, Ocepar. O Núcleo está sediado no Parque Tecnológico Itaipu, em Foz do Iguaçu.
295
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
Perante essa realidade existem duas alternativas: a) mais policiamento
e intervenções periódicas do Exército Brasileiro para fechar a fronteira,
maior controle da Policia Militar, e mais armamento das Guardas
Municipais, com as consabidas consequências para a circulação das
pessoas, as relações com os países vizinhos, o comércio e a cultura: travas,
perda de lucros, temor, desalento de todo tipo de iniciativas, perda de
direitos, desconfiança ante a atividade do Estado, incitação à ilegalidade,
e aumento da violência nas respostas dos criminosos; ou b) expansão
da cidadania, ampliação dos direitos, maior compatibilidade legal e
administrativa com as autoridades argentinas, garantias e segurança para
a livre circulação das pessoas, bens e serviços em todas as direções, e
uma crescente pressão sobre as autoridades paraguaias, para obrigá-las a
aplicar normas do Estado de Direito.
No presente ensaio, fundamenta-se a segunda alternativa desde três
pontos de vista:
1.Como opção lógica, tendente a aumentar a coerência sistémica
do Estado de Direito no Brasil e no Paraná, decorrente do
desenvolvimento dos direitos humanos e dos acordos que garantem
a livre circulação das pessoas no MERCOSUL.
2.Como alternativa realista, para se adaptar positivamente à realidade
da crescente miscigenação das culturas na faixa de fronteira, assim
como à crescente e irrefreável circulação de pessoas através das
fronteiras.
3.Como alternativa utilitária, para aproveitar essa miscigenação em
prol do desenvolvimento econômico, social, cultural e político do
Estado do Paraná.
Como o ponto nodal da problemática das fronteiras internacionais
do Estado se dá na zona das Três Fronteiras3, a exposição se concentra
nela, mas sem esquecer aspetos pontuais das outras zonas fronteiriças.
A argumentação começa com uma breve descrição da realidade
migratória na região das Três Fronteiras, e do plexo jurídico e político
criado pelas sucessivas medidas multi-, bi- e nacionais adotadas pelos
países fundadores do MERCOSUL para garantir a livre circulação das
pessoas; continua com as obrigações de coerência e congruência que os
acordos internacionais e regionais de direitos humanos geram ao Brasil
– considerando especialmente os custos acarretados pela resistência do
Estado brasileiro a implementa-los-, e acaba salientando a necessidade e
a conveniência da sua implementação para o Estado do Paraná.
Eduardo J. Vior
1.A situação das comunidades de origem imigrante nas regiões fronteiriças do
Paraná e as políticas públicas que as afetam
Calcula-se que na grande região das Três Fronteiras circulam cerca de
70 etnias (P. A. Gonçalves, 2008: 64). Somando as três cidades principais
(Puerto Iguazú, na Argentina, Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad del Este,
no Paraguai) e as cidades e povoados menores, nessa região moram por
volta de 700.000 habitantes. Embora Foz do Iguaçu seja ainda a cidade
mais povoada, com 256.000 habitantes, as tendências demográficas dos
últimos censos de povoação na Argentina e no Brasil (ambos de 2010)
demonstram um decrescimento da povoação no lado brasileiro e um
crescimento nas regiões argentina e paraguaia confrontantes.
Como não existem estudos recentes sobre os fluxos de população
entre as três partes da região, no presente ensaio utiliza-se como base um
estudo realizado em 2005 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) (Sprandel, 2008). Muitas pessoas atravessam a divisa todos os
dias para trabalhar do outro lado da fronteira. São inúmeras as situações
identificadas de brasileiros que vivem na Argentina ou no Paraguai e que
matriculam seus filhos em escolas brasileiras, ou que procuram no Brasil
serviços gratuitos de saúde. Todos esses dados apontam para uma grande
circulação de pessoas entre os três países.
Nos municípios argentinos e paraguaios há um predomínio de
população vivendo na área rural, mais de 50%. Esse quadro se inverte
nos municípios brasileiros, onde já há cerca de 80% da população vivendo
em área urbana. Na região, vivem aproximadamente 13 mil indígenas
(Sprandel, 2008). A população Guarani não deve ser considerada
migrante, já que ela sempre foi nômade e se movimenta através das linhas
geopolíticas do Mato Grosso, Paraguai e da Bolívia. Em termos da situação
socioeconômica, nas atividades produtivas da região predominam
a agricultura e a agroindústria. Nas áreas de serviço, obviamente se
destacam Foz do Iguaçu, Puerto Iguazú e Ciudad del Este. Há a silvicultura,
na qual se destacam a celulose em Misiones, a avicultura, a suinocultura e
a pecuária, e há grandes centros de comércio e de turismo. É uma região
de imensa diversidade e mobilização étnica e cultural. Todos estes fatores
devem ser considerados ao pesquisar as políticas públicas.
Percebe-se que faz parte da estratégia das famílias a utilização de várias
línguas, o uso de três moedas, o entrecruzamento de traços culturais, a
possibilidade de crianças e adolescentes matricularem-se na escola em
um país e buscarem serviços de saúde em outro e até a dupla ou tripla
documentação (Sprandel, 2008). A mão de obra itinerante a procura dos
locais de safra que existem na região é muito grande.
3 Se rejeita aqui o termo “Tríplice Fronteira” pelas suas conotações ideológicas (Rabossi, 2010).
296
297
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
Tanto pelo número quanto pelas caraterísticas especiais do grupo e da
sua situação, a comunidade de origem árabe de Foz do Iguaçu e Ciudad
del Este merece uma consideração especial:
Cabe acrescentar que a atividade laboral desses imigrantes está quase
exclusivamente vinculada ao comércio e, na dinâmica da interação entre as
duas cidades, muitos dos imigrantes estabeleceram seus locais comerciais
em Ciudad del Este, embora muitos deles tenham fixado sua residência em
Foz do Iguaçu, onde retornam uma vez finalizado o horário comercial. Não
obstante, não são poucos os que residem e trabalham em uma mesma
cidade. (Hillu/Montenegro, 2010: 5).
Segundo dados recentes (A Gazeta, 23-10-12), só em Foz do Iguaçu
moram 4.077 libaneses. Tendo em conta a crescente quantidade de
membros dessa comunidade que têm adotado a cidadania brasileira ou
paraguaia, e seus filhos, que para as leis de ambos os países são nacionais,
a cifra mencionada aparece como muito pequena. A comunidade
muçulmana na região cresceu em ondas sucessivas entre os anos 70 e 90,
em parte pelas crises políticas no Meio Oriente, ou pelas possibilidades de
negócios comerciais nas Três Fronteiras. Ainda que dividida entre sunitas
e xiitas, é uma comunidade numerosa e rica. As contínuas campanhas de
assédio da mídia e as denúncias norte-americanas de cumplicidade com
o “terrorismo islâmico” obrigam à comunidade a evitar a cena pública e
a atuar sigilosamente. Não obstante, a comunidade muçulmana intervém
fortemente na política local e regional. Esta semiclandestinidade de uma
comunidade de origem imigrante rica e potencialmente poderosa distorce
a construção de cidadania e desvia a alocação de recursos municipais para
negociações privadas. As redes que ela estabelece com os mandatários
municipais em ambas as cidades devem ser caracterizadas como típicas
“redes fechadas”. Comunidades menores, mas também poderosas, são a
chinesa e a coreana.
No contexto das Três Fronteiras é também importante considerar as
“ilusões” de fluidez. Ou seja, em um âmbito onde se encontram grupos
de imigrantes recentes que, em alguns casos, nem sequer se comunicam
entre si através de uma língua franca, existe também a construção
imaginária de “nichos étnicos” que se fortalecem com emblemas mais ou
menos definidos. A população das Três Fronteiras se define, então, por
uma ambiguidade: pela sua dinâmica migratória através das fronteiras e
a hibridez das suas referências aos estados nacionais. Pode ser tratada
como unidade; pelas suas construções identitárias e a falta de uma cena
pública unificadora, essa população deve ser tratada como um sistema de
nichos culturais, profissionais, corporativos e religiosos que somente se
comunicam através das suas elites.
298
Eduardo J. Vior
Para compreender a situação dos imigrantes em Foz do Iguaçu em
particular, deve-se, finalmente, considerar a evolução negativa da
população da cidade no período intercenso 2000-10. Nesse lapso, a cidade
perdeu quase 60.000 habitantes. É a única zona urbana do Estado do Paraná
que não aumentou a sua população. Existem várias interpretações não
conclusivas para esse fenômeno. A mais plausível explica o decrescimento
pelos maiores controles fronteiriços sobre o contrabando e sobre o
trânsito dos chamados “sacoleiros”, a partir de 2005, o que teria forçado
muitas famílias a sair da cidade para procurar trabalho em Maringá e em
outros centros do Oeste e Centro-Sul do Paraná. Neste contexto, aumenta
o peso relativo dos imigrantes, já que estes – ocupados em outros setores
- não emigram.
Longe do grande eixo de circulação BR-277/PY-VII, na outra “tríplice
fronteira” entre Paraná, Santa Catarina e a Província Argentina de Misiones,
no sudoeste do Estado, Barracão (5.000 habitantes) não tem uma grande
população estrangeira, mas tem outras dificuldades decorrentes da
sua estreita convivência com Dionísio Cerqueira (SC) e com a argentina
Bernardo de Yrigoyen:
Viver em um país e trabalhar em outro é situação comum no triângulo
Barracão-Dionísio Cerqueira-Bernardo de Irigoyen. Uma parte desses
trabalhadores, contudo, exerce suas funções na ilegalidade. Segundo
o secretário municipal de Assistência e Promoção Social de Barracão,
Emerson Duarte, estimativas dão conta de que 40% dos argentinos que
vivem na cidade estão em situação irregular. Do lado argentino, calcula-se
que essa proporção chegue a 30%. ‘Nós precisamos deles [argentinos] e
eles precisam da gente. Esse intercâmbio é positivo e bom para a nossa
economia. Porém, existem muitos que não têm interesse em regularizar
sua situação’, afirma Duarte. (Gazeta do Povo, 9-12-11).
Essa falta de interesse decorre em parte do complicado procedimento de
solicitação do visto – ainda que para argentinos a outorga seja automática
-, e em parte da opção sempre aberta para os argentinos de retornar
na sua pátria. Nessas condições recomendar-se-ia, especialmente, um
documento binacional que permitisse o controle das autoridades, não
importa onde o trabalhador morasse.
No outro extremo da fronteira paranaense, em Guaíra (30.800
habitantes), a situação resulta mais confusa, já que, localizada na fronteira
com Paraguai (cidade de Salto del Guairá, 40.000 habitantes) e com Mato
Grosso do Sul (cidade de Mundo Novo), tem maiores dificuldades de
controle do tráfego fronteiriço por causa da facilidade para se deslocar
através da margem norte do Lago de Itaipu. Assim, numa matéria recente
o jornal O Paraná (27-10-12) informava o seguinte:
299
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
Já na jurisdição da Polícia Federal de Guaíra, o controle é um pouco
mais complexo. Há relatos de que muitos paraguaios entram no Brasil
clandestinamente, sem buscar a regularização da presença no País.
Essa situação é atribuída à facilidade de travessia pelo rio Paraná, por
intermédio de balsas. Ao todo são 1.006 estrangeiros em Guaíra. Do total,
256 são japoneses e 202 portugueses. Os paraguaios somam 131.
Assim expostas, pode-se afirmar que as problemáticas da imigração e
dos intercâmbios com os países vizinhos afetam toda a faixa fronteiriça do
Paraná. Não obstante, a maior concentração se dá em Foz do Iguaçu. A
imigração não é per se um problema, mas como resultado da ocorrência
entre a diminuição da população brasileira na região e a progressiva maior
duração da residência dos estrangeiros, precisa-se de políticas específicas.
Não é que cheguem mais estrangeiros (de fato o censo 2010 demostra
que a população estrangeira não aumentou sensivelmente nos dez
anos anteriores). Sim, faltam estudos quantitativos sobre a duração da
residência dos estrangeiros na região, sobre a sua pirâmide etária, e sobre
a sua contribuição ao Produto Interno Bruto (PIB) regional. Assim como
qualitativos sobre o grau de adesão dos filhos de estrangeiros nascidos
na região às comunidades de origem. Só com esses dados seria possível
dimensionar o peso real das comunidades de origem imigrante na faixa
fronteiriça do Paraná.
Ao mesmo tempo, é conhecida a intensa mobilidade transfronteiriça.
Porém, não temos dados quantitativos sobre essa mobilidade e a sua
significação para a economia regional nos três países envolvidos; nem
qualitativos sobre as referências identitárias desses grupos: se se sentem
argentinos, brasileiros ou paraguaios? Onde e como apresentam as suas
demandas por direitos insatisfeitos? Com quais autoridades preferem
negociar seus interesses e por quê?
Nos últimos anos, os três estados envolvidos (sobre tudo a Argentina e o
Brasil) estão realizando grandes esforços para harmonizar as suas políticas
para a livre circulação das pessoas, e para facilitar o assentamento a ambos
os lados da fronteira paranaense. Porém, esses esforços chocam com
limites estruturais dos países e nas relações entre eles, assim como com
preconceitos ideológicos ancorados profundamente nas mentalidades de
políticos e gerenciadores, que são brevemente apresentados no apartado
seguinte.
300
Eduardo J. Vior
seguinte modo:
a)Políticas decorrentes das decisões do MERCOSUL.
b)Políticas decorrentes de acordos entre os três e/ou entre dois dos
países limítrofes na região.
c)Políticas nacionais, regionais ou municipais.
1.2.1.Os acordos do MERCOSUL
O principal instrumento que regula a livre mobilidade da população
através das fronteiras é o Acordo de Residência para Nacionais do
MERCOSUL e países associados, assinado em 2002 e que entrou em
vigência em 2009, depois que o Congresso do Paraguai o ratificou.
A esse acordo, somaram-se, nos últimos anos, vários documentos
tendentes a facilitar a circulação das pessoas através das fronteiras:
o “Acuerdo para la creación de la Red de Especialistas en Seguridad
Documental Migratoria del MERCOSUR y Estados Asociados” (em
espanhol no original, http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4392/1/
secretaria/2012).
Ao estabelecer o Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), em 2011; o
Conselho dos Ministros do MERCOSUL adotou a Diretriz 4: “Garantizar
que la libre circulación en el MERCOSUR sea acompañada del pleno goce
de los derechos humanos”.
Seu objetivo prioritário é: “Articular e implementar políticas públicas
destinadas a promover el respeto de los derechos humanos y la plena
integración de los migrantes y la protección de los refugiados”. (Decissão
Nro. 12/11, CMC/MERCOSUL, em espanhol no original: http://www.
mercosur.int/innovaportal/v/2923/1/secretaria/decisiones_2011).
1.2.As políticas públicas
No âmbito da integração fronteiriça, caberia mencionar o
estabelecimento de Comitês de Fronteira entre cidades lindeiras. Já
existem os Comitês de Ciudad del Este/Foz de Iguaçu, Salto del GuairáGuaíra (PR)/Mundo Novo (MS), e Pedro Juan Caballero/Ponta Porã (Lessa,
2008: 74). Ainda para revitalizar a cooperação fronteiriça bilateral, foi
criada a Reunião dos Prefeitos dos Municípios Brasileiros e Paraguaios
Lindeiros ao Lago de Itaipu com o objetivo de aprofundar a integração
fronteiriça nas áreas de turismo, educação e saúde, entre outras (Lessa
2008:75).
As políticas públicas que afetam as comunidades de origem imigrante
na faixa fronteiriça do Estado de Paraná podem ser classificadas do
Identificou-se que os municípios da região fronteiriça, em todos os
três países, têm indicadores de desenvolvimento humano baixos e que
301
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
existe, em função disso, a presença de programas dos governos argentino
e brasileiro de combate à pobreza. No Paraguai, entretanto, entre 2008
e 2012, se organizaram redes de proteção social e se aplicou o Programa
Nacional de Assistência Alimentar e Nutricional, mas não chegaram a se
desenvolver muito e seu universo de abrangência é pequeno.
1.2.2.Os acordos bilaterais
Estas políticas também atraem população. Por exemplo, agricultores
brasileiros emigrados para o Paraguai vão pedir a sua aposentadoria
no sistema brasileiro como trabalhadores rurais, ou a sua incorporação
aos vários programas de atendimento ao idoso que o governo brasileiro
oferece, ou procuram os centros de assistência social. Os funcionários
brasileiros, que se deslocam para o Paraguai (em geral para lojas de Ciudad
del Este) apresentam um problema especial: continuam trabalhando para
o mesmo empregador, mas em uma outra empresa, depois de vários anos,
ao voltar para o Brasil, acham que não têm contribuições na Previdência4
brasileira.
Nesse sentido, no plano bilateral, a execução do acordo de regularização
migratória Brasil-Paraguai, assinado em novembro de 2009, é uma
prioridade do governo brasileiro, ante o grande número de brasileiros em
situação irregular naquele país. Nos anos 70 e 80, muitos camponeses
passaram a divisa com o Paraguai sem documento nenhum, obtiveram
terras no Leste do país vizinho, fundaram famílias, e criaram seus filhos
sem documentos ou, às vezes, registraram seus filhos com nomes e
documentos diferentes tanto no Brasil quanto no Paraguai. Essa situação
gera hoje inúmeros problemas que o Ministério das Relações Exteriores
procura resolver através de seus consulados no Paraguai, mediante
operativos de documentação5.
1.2.3.As políticas estaduais e municipais
Não existem políticas municipais específicas visando às comunidades
de origem imigrante; e o já assinalado caráter segmentado da cena
pública em Foz do Iguaçu deixa pouca margem para a articulação política
democrática das demandas por direitos dessas comunidades. As suas
lideranças procuram impor os seus interesses por meio de acordos
privados. Particularmente a poderosa comunidade muçulmana vive sob
4 Várias entrevistas do autor com a Juíza do Trabalho A. NogaraSlomp, em Foz do Iguaçu entre fevereiro e julho
de 2012.
5 Sucessivas entrevistas do autor com o Consul brasileiro em Ciudad del Este, Embaixador J. Bonsalini, entre
setembro de 2011 e abril de 2012.
302
Eduardo J. Vior
o permanente temor de ser incriminada por cumplicidade com atividades
de apoio ao “terrorismo islâmico”. Esse temor gera uma atitude muito
reservada e uma tendência a operar sigilosamente. Nesse contexto, os
mais vulneráveis são as mulheres e os paraguaios que trabalham na
construção ou no emprego doméstico. Embora a legislação brasileira
reconheça a esses trabalhadores direitos trabalhistas e previdências,
a falta de informação e a manipulação dos intermediários fazem com
que a grande maioria não esteja documentada e seja vítima de grandes
injustiças.
Embora faltem políticas municipais específicas visando às comunidades
de origem imigrante, existem políticas setoriais (educação, saúde,
planejamento urbano, transportes, e segurança) que as afetam
diretamente. Sobre estas políticas se concentrará a pesquisa no futuro.
2.As obrigações de coerência e congruência que os acordos internacionais e
regionais geram ao Brasil
Ainda que a política seja uma prática profundamente humana,
caracterizada pelas lutas de poder e os efeitos públicos delas, o conjunto
de atores, práticas e instituições políticas estabelecem entre si relações
regulares e repetitivas com características sistémicas, isto é, lógicas, interrelacionadas, estáveis, flexíveis e em continua adaptação às condições
circundantes.
Quando dois ou mais países estabelecem relações duradouras
de cooperação, intercâmbio, ações e iniciativas comuns no plano
internacional e dentro do próprio acordo, paulatinamente essas relações
adquirem também um carácter sistémico e obrigatório para os estadospartes. No MERCOSUL, isso aconteceu com o comum rejeito ao ALCA em
2005, a cláusula democrática ajuntada ao Tratado de Assunção em 2008,
e com a entrada em vigência do Acordo de Residência para Nacionais
do MERCOSUL e Países Associados, em 2009. Através desses três
instrumentos, o MERCOSUL se transformou num sistema regional que,
embora sem supranacionalidade, tem uma lógica constringente para os
estados membros e as suas unidades subnacionais.
Ao mesmo tempo, os sistemas políticos da região estão submetidos
a uma forte pressão adaptativa. As sociedades estão mudando
aceleradamente: envelhecimento crescente, acesso de milhões de
pessoas ao mercado de trabalho e de consumo, deslocamentos massivos
dentro dos países e através das fronteiras, crescente individualização e
massificação, surgimento de múltiplas demandas por direitos vulnerados.
Os sistemas políticos precisam ampliar a esfera cidadã se pretendem
303
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
manter a sua legitimidade. Se não o fazem, ou o fazem inadequadamente,
perderão representatividade e poder normativo. A corrupção e a difusão
da violência são as dois consequências mais estendidas desses déficits
(Vior, 2012a; 2012b).
Nas regiões fronteiriças, essas carências viram escandalosas. No
contexto do processo integracionista do MERCOSUL, a tendência lógica
conduz à extensão da cidadania além das fronteiras, dado o caráter
subjetivo do direito à cidadania desde a perspectiva intercultural dos
direitos humanos aplicada nesse ensaio. Essa extensão fortaleceria a
legitimidade dos estados em contato. Assim, indivíduos e grupos de
nacionalidades vizinhas que traspassam a fronteira não somente teriam
o direito de colocar demandas perante os estados vizinhos, mas também
deveriam assumir responsabilidades dentro das respetivas ordens legais e
políticas (Borja 2001, Goyhenespe 2005).
Não obstante, essa tendência lógica choca com a forma nacional dos
estados que impõe requisitos materiais, mas sobretudo simbólicos ao
reconhecimento dos direitos cidadãos. Teoricamente, a solução para este
dilema seria o estabelecimento da cidadania MERCOSUL, mas ela supõe
acordos legais e, principalmente, normativos e simbólicos, que hoje estão
longe de ser atingidos (Vior, 2012b; Segato 2007).
Porém, a tendência nesse sentido é inelutável, dados os
constrangimentos que os tratados e pactos internacionais, assim
como a prática política e diplomática impõem. O Brasil tem assinado e
incorporado a seu sistema legal os principais pactos internacionais de
direitos humanos. Embora ainda subsista uma indefinição sobre o status
constitucional deles e sobre as faculdades soberanas da Justiça brasileira,
para determinar a sua aplicabilidade dentro do Direito positivo, a situação
mudou radicalmente com o estabelecimento do sistema integracionista
do MERCOSUL.
Em efeito, como a Argentina (2004) e o Uruguai (2008) estabeleceram
nas suas respectivas leis migratórias o Direito Humano à Migração, como
parte de seus sistemas legais, acordo internacional nenhum que esses
países assinem pode frear ou limitar a livre circulação das pessoas. Como
ademais, os membros do MERCOSUL estão obrigados à livre circulação das
pessoas pelo Acordo sobre Residência, e todos os membros da UNASUL
têm assinado entre si acordos bilaterais, facilitando a circulação através
das fronteiras, o plexo legal dos acordos internacionais adquiriu força
política mediante as instituições e práticas da integração (Asa/Ceriani
2005).
304
Eduardo J. Vior
O estabelecimento legal do Direito Humano à Migração tem mais duas
consequências políticas:
1.Como os direitos humanos são por definição “universais, inatos,
inseparáveis, inalienáveis e sistémicos” (Fornet-Betancourt 2000;
Fornet-Betancourt/Sandkühler 2001; Fritzsche 2004), reconhecer o
direito humano à migração de uma pessoa e/ou de um grupo implica
também que o fazem na plena vigência de todos os seus direitos
humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
2.Em consequência, os estados nacionais perdem a faculdade de
determinar as condições de acesso à cidadania. Esta é parte do
direito subjetivo dos indivíduos e grupos a determinar onde querem
exercer seus direitos políticos.
O Brasil deve tomar conta dessa nova situação, mudando a sua
legislação de migrações, mas também as condições do acesso à e do
exercício da cidadania. No regime legal brasileiro existe uma contradição
insuperável entre o Estatuto da Migração, instituído em 1980 pela ditadura
sob o princípio da “segurança nacional”, e a Constituição Federal de 1988,
baseada em direitos subjetivos inalienáveis (Milesi 2005; 2008; MTE 2010).
O reconhecimento dessa contradição conduziu a outorgar aos servidores
públicos e às instituições responsáveis pela aplicação da política migratória
um enorme poder discricional que dá lugar ao surgimento de práticas
corruptas. Como o sistema político está inter-relacionado, essas práticas
não se limitam às relações com as comunidades de origem imigrante,
mas se difundem dentro do Estado todo, generalizando a corrupção e
o clientelismo. Além dos danos que sofrem os diretamente atingidos,
aumenta a ineficácia do Estado e a conseguinte perda de governabilidade.
3.Consequências do aumento dos intercâmbios demográficos e econômicos
através da fronteira para as políticas de livre circulação
Considerando a caracterização feita acima sobre a região fronteiriça
do Estado - em particular, da sub-região de Foz do Iguaçu - como uma
região altamente interdependente e vinculada com os países vizinhos
através das divisas internacionais, mas, ao mesmo tempo, profundamente
segmentada, assim como o crescimento dos fluxos transfronteiriços de
mercadorias, serviços, turistas, trabalhadores e empreiteiros, ainda
que também nas redes criminais, impõe-se para a região uma política
combinada de livre circulação e articulação política, econômica, social, e
cultural.
305
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
Neste contexto, é preciso aclarar que livre circulação não implica
perda de controles estatais. Todo o contrário: precisamente a outorga
aos habitantes e aos veículos da região fronteiriça de uma identificação
comum, a unificação dos controles migratórios, a interconexão dos
registros de dados pessoais, impositivos, educacionais, trabalhistas,
previdenciários e de saúde – para citar só alguns exemplos – não somente
facilitariam o acesso das pessoas aos seus direitos, mas também dariam
aos estados eficientes instrumentos de controle contra fraudes e ações
ilegais.
Também a organização de organismos regionais transfronteiriços para
gerir o tráfego, o transporte de pessoas e de mercadorias, o tratamento
de esgotos e do lixo, cuidar das águas, do ar, da flora e da fauna, assim
como avançar em prol da integração energética acelerariam a unificação
da região, e reduziriam os custos desses serviços para o Estado do Paraná.
De igual modo, a forte segmentação étnica e cultural, já descrita,
representa um grande desafio para as políticas regionais de integração.
Tanto a nível estadual quanto municipal seria necessário encaminhar
políticas de educação, capacitação profissional, trabalhistas,
previdenciárias, para as mulheres e crianças, de hábitat e de segurança
tendentes a promover a participação das comunidades de origem
imigrantes na gestão pública, e a intensificar o diálogo entre as autoridades
e essas comunidades6.
Em suma, pode ver-se que, assim como a inter-relação da região
fronteiriça com os países vizinhos e a sua segmentação interna
representam um grande desafio para as políticas públicas do Estado
do Paraná, elas também implicam chances para o desenvolvimento do
Estado.
4. Vantagens comparativas que a região fronteiriça dá
ao Estado do Paraná
Na América antiga, a região do Estado do Paraná estava atravessada pelo
Peabiru, a rede de caminhos que uniam o Cusco com o litoral atlântico.
O Rio Paraná servia como eixo de comunicação e transporte Norte-Sul,
que permitiu aos guaranis, na época imediatamente anterior à Conquista,
chegar até o delta do Rio Paraná, perto da atual Buenos Aires.
Durante o período colonial, a região foi segmentada, primeiro pela
concentração da população indígena nas missões dos jesuítas e, depois,
6 Estas propostas estão influídas pela experiência do autor com a política migratória alemã, especialmente
durante a coordenação do projeto de pesquisa “Bestandsaufnahme demokratischer Initiativen in der politischen
Bildungsarbeit mit muslimischen Jugendlichen” (2004).
306
Eduardo J. Vior
pelas guerras entre espanhóis e portugueses. Já no século XIX, a destruição
do Paraguai na guerra de 1864-70 implicou a supressão do centro do
subcontinente sul-americano e a sua exclusiva orientação na direção do
Oceano Atlântico. Nessa época, surgiram as fronteiras que fragmentaram
o território regional. No século XX, a necessidade de consolidar os
estados nacionais, as rivalidades entre o Brasil e a Argentina, e os mitos
da “segurança nacional” dificultaram ainda mais a livre circulação e o
desenvolvimento regional.
O fortalecimento do MERCOSUL e a construção da UNASUL podem
devolver às regiões fronteiriças do Estado do Paraná seu lugar no centro
do subcontinente. Em particular, a região das Três Fronteiras, entre a
Argentina, o Brasil e o Paraguai, poderia tornar-se um centro de transporte
e logística, dado o cruzamento das vias Norte-Sul com as vias que vão do
Leste ao Oeste do continente.
Por isso, o fomento e a promoção da livre circulação das pessoas através
das fronteiras paranaenses podem se constituir em um importante fator de
desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Trata-se somente
de uma mudança de perspectiva: deixar de ver a fronteira como margem
do território nacional, para começar a trata-lá como centro continental.
5. Conclusões
Neste ensaio, procurou-se mostrar desde uma perspectiva, ao mesmo
tempo sistêmica e empírica, como os acordos internacionais e regionais
sobre direitos humanos e sobre a livre circulação das pessoas, assim
como a adoção do Direito Humano à Migração nas legislações argentina
e uruguaia, geram dentro do MERCOSUL constrangimentos dos quais o
Brasil não pode fugir, se pretende continuar pelo caminho da integração.
Ao mesmo tempo, as incoerências e incongruências que a ambiguidade
na matéria produz no sistema político e legal brasileiro ameaçam a sua
legitimidade e governabilidade. Assim, resulta evidente a necessidade
do Estado brasileiro de se adaptar às mudanças em sua composição
demográfica e em seu entorno regional, assim como ao aprofundamento
do processo integracionista, incorporando a sua legislação e sistema
político o princípio da livre circulação das pessoas.
Todavia a incorporação da livre circulação das pessoas não é somente
uma obrigação constrangente que decorre do processo integracionista,
mas também da realidade demográfica, econômica e social da região
fronteiriça do Paraná. Não há formas de frear intercâmbios que de todos
os modos vão ocorrer. Pelo contrário, para o Brasil e o Estado do Paraná é
307
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
uma opção realista se adaptar às trocas já existentes e procurar governálas junto com os países vizinhos.
Finalmente, da situação geográfica da região fronteiriça do Paraná,
mas também das novas oportunidades abertas pelo aprofundamento
do processo integracionista, surgem magníficas perspectivas de
desenvolvimento regional como centro de uma América do Sul integrada.
Assim, pode se verificar a eficiência da aproximação intercultural aos
direitos humanos aplicada neste ensaio como perspectiva epistemológica,
para a análise de processos complexos de desenvolvimento político, e a
proposta de políticas públicas de direitos humanos que simultaneamente
contribuam ao desenvolvimento regional.
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308
309
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
310
Maria Berenice Dias
IDENTIDADE, DIFERENÇA E CIDADANIA
311
Um Estatuto para a diversidade sexual
Maria Berenice Dias
Um Estatuto para a diversidade sexual
Maria Berenice DIAS1
O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE, em 2010, revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por
pessoas do mesmo sexo. Às claras que esse número não quantifica as
pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros,
identificadas pela sigla LGBT. Em face do enorme preconceito de que são
alvo, da perseguição que sofrem, da violência de que são vítimas, não
há como pretender que revelassem ao recenseador a natureza de seus
vínculos afetivos. Ao depois, sequer foi questionada a identidade sexual
dos residentes no imóvel.
Ainda que imensurável, é impossível condenar parcela da população
à invisibilidade, deixando-a a margem da tutela jurídica. Desta realidade
tomou consciência a Justiça quando, há mais de uma década, passou
a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar. De tão
reiteradas algumas decisões, direitos passaram a ser deferidos em sede
administrativa, como a concessão pelo INSS de pensão por morte e
auxílio reclusão; o pagamento do seguro DPVAT; e a expedição de visto de
permanência ao parceiro estrangeiro. Também a inclusão do companheiro
como dependente no imposto de renda e a soma do rendimento do casal
para a concessão de financiamento imobiliário foi regulamentada.
Como os avanços começaram, no âmbito da Justiça surgiu a necessidade
de qualificar os profissionais para atender à crescente demanda deste
segmento na busca de direitos. Isso levou a Ordem dos Advogados a criar
Comissões da Diversidade Sexual em todos os cantos do Brasil.
De outro lado, em face da falta de um sistema integrado de divulgação
da jurisprudência, sempre houve enorme dificuldade de acesso às decisões
de juízes e tribunais. Por isso, as Comissões assumiram o compromisso
de amealhar os julgados de todas as justiças e graus de jurisdição. O
resultado foi surpreendente, o que ensejou a construção de um portal2,
que permitiu quantificar as quase duas mil decisões que garantem direitos
no âmbito do direito das famílias, do direito sucessório e previdenciário.
1 Advogada , Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB, Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM – www.
mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br
2 www.direitohomoafetivo.com.br
312
313
Um Estatuto para a diversidade sexual
Lá também são noticiados os avanços na esfera da administração pública
e no âmbito federal, estadual e municipal e também iniciativa privada.
em vias de instalação. Além disso, foram ouvidos os movimentos sociais,
que encaminharam cerca de duas centenas de propostas e sugestões.
Este levantamento em muito contribuiu no julgamento do Supremo
Tribunal Federal que, ao apreciar duas ações constitucionais3, reconheceu
as uniões homoafetivas como entidade familiar. A decisão, além de ter
efeito vinculante e eficácia perante todos, desafiou o legislador a inserir a
população LGBT no sistema jurídico. Isso porque, nunca nenhum projeto
de lei ou proposta de emenda constitucional logrou ser votado – e muito
menos aprovado – por qualquer das casas legislativas. Sempre prevaleceu
o medo escudado em alegações de ordem religiosa, o preconceito
disfarçado em proteção à sociedade.
Em 23 de agosto de 2011, o Anteprojeto foi formalmente entregue ao
Presidente do Conselho Federal da OAB, que o encaminhou à apreciação
do Conselho Federal, sob a relatoria do Conselheiro Federal Carlos
Roberto Siqueira Castro. O Relator levou-o a julgamento no dia 19 de
setembro, apresentando minucioso parecer pela sua aprovação. Conclui
o voto: apoiar a proposta de Emenda Constitucional e o Anteprojeto do
Estatuto da Diversidade Sexual elaborado pela ilustrada Comissão Especial
de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, significa contribuir em
nosso País para uma histórica sublimação na disciplina jurídica aplicável às
igualdades e à rejeição dos preconceitos e discriminações que infelicitam
o espírito humano. Por estar convencido da oportunidade, da necessidade
e da excelência do trabalho apresentado, com as mínimas ponderações de
início aduzidas, voto no sentido da sua aprovação, a fim de que o mesmo,
por iniciativa de nossa augusta Casa dos Advogados, possa seguir o curso
da aprovação que considero justo e desejável mediante a tramitação
devida junto ao Congresso Nacional.
No entanto, era chegada a hora de dar um basta à hipocrisia e alguém
precisava tomar a iniciativa. Ninguém mais poderia aceitar este grande
desafio do que os advogados deste país. Afinal, foram os precursores
de todos os avanços, provando que são mesmos indispensáveis à
administração da Justiça, como reconhece a Constituição Federal.
Foram eles que ousaram bater às portas do Poder Judiciário, buscando o
reconhecimento de direitos inexistentes a um segmento invisível e alvo de
severa discriminação.
Comprometido com a construção de uma sociedade livre, igualitária
e democrática, a Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
assumiu a missão quase impossível de elaborar um projeto legislativo
e promover uma ampla revisão da legislação infraconstitucional. Isso
pretendia assegurar os direitos que já vinham sendo reconhecidos pela
jurisprudência e na esfera administrativa.
Em audiência pública, realizada dia 22 de março de 2011, foi aprovada
a criação da Comissão Especial da Diversidade Sexual4, integrada por
profissionais que, pelas suas trajetórias de vida, gozam do respeito e do
reconhecimento da comunidade científica. A eles foi delegada a difícil
tarefa de consolidar um conjunto de normas e regras que servissem
para aperfeiçoar o sistema legal, de modo a acolher parcela significativa
da população que, injustificavelmente, se encontra alijada dos mais
elementares direitos de cidadania.
O Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual foi elaborado a muitas
mãos. Contou com a efetiva participação das mais de 50 Comissões da
Diversidade Sexual das Seccionais e Subseções da OAB, já instaladas, ou
3 ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05.05.2011.
4 Portaria 16/2011, de 15 de abril de 2001 Composição: Maria Berenice Dias (RS) – Presidenta. Integrantes:
Adriana Galvão Moura Abílio (SP); Jorge Marcos Freitas (DF); Marcos Vinicius Torres Pereira (RJ) e Paulo Tavares
Mariante (SP). Consultores: Daniel Sarmento (RJ); Luis Roberto Barroso (RJ); Rodrigo da Cunha Pereira (MG) e
Tereza Rodrigues Vieira (SP).
314
Maria Berenice Dias
Concedido prazo para emendas, foram apresentados quatro destaques,
nenhum deles contrário à sua aprovação. Assim, tão logo votado,
deverá ser encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa do Senado Federal, pois o Conselho Federal da OAB dispõe
de legitimação ativa universal, dispensada comprovação da pertinência
temática5.
Deste modo, a Ordem dos Advogados do Brasil, ao elaborar o Estatuto
da Diversidade Sexual – o mais arrojado anteprojeto deste século, quer
pela sua abrangência, quer pelo seu significado e alcance –, mais uma
vez assume o destacado compromisso que desempenhou no processo de
democratização do país e em todas as demais lutas que enfrentou em
defesa do Estado e do direito dos cidadãos.
Emendas Constitucionais
Uma vez que a Constituição prioriza o respeito à dignidade e consagra
a liberdade e a igualdade como princípios fundantes de um Estado
Democrático de Direito, é indispensável que, modo expresso, se vete a
discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero; que se
assegure os direitos decorrentes da homoparentalidade e reconheça a
família homoafetiva como entidade familiar.
5 Parágrafo único do art. 5º e § 2º do art. 7º do Ato nº 1/2006, que regulamenta o art. 102-E do Regimento
Interno do Senado Federal, alterado pela Resolução n.º1 de 2005.
315
Um Estatuto para a diversidade sexual
Como o Conselho Federal da Ordem dos Advogados não tem
legitimidade para propor emendas constitucionais, em 23 de agosto de
2011, a Comissão Especial da Diversidade Sexual entregou à Senadora
Marta Suplicy a proposta de alteração de sete dispositivos da Constituição
Federal.
Em 19 de setembro, o Conselho Federal da OAB, acolheu o voto
do Relator, Conselheiro Carlos Roberto Siqueira Castro, ratificando e
ampliando a proposição original de emendar a Constituição.
O projeto deu origem a três Propostas de Emenda Constitucional. Uma
proíbe discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero,
inclusive nas relações de trabalho. Outra substitui a licença-maternidade
e a licença-paternidade pela licença-natalidade, a ser concedida
indistintamente a qualquer dos pais. Ambas já se encontram na Comissão
de Constituição e Justiça do Congresso Nacional6. A terceira proposta,
que explicita a possibilidade do casamento e o reconhecimento da união
estável aos vínculos homoafetivos, aguarda a colheita de assinaturas pelo,
então, Deputado Federal Jean Willys.
Esses são direitos que precisam constar na Carta Constitucional, sob
pena de se comprometer a própria estrutura do Estado, que tem por
finalidade a proteção de seus cidadãos. De todos eles.
Afinal, ninguém duvida que todos são iguais perante a lei.
Discriminação
A Constituição Federal é cuidadosa em vetar qualquer forma de
discriminação, referência que se encontra inclusive no seu preâmbulo, ao
garantir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Ao identificar os objetivos fundamentais da República, a chamada
Lei Maior assume o compromisso de promover o bem de todos sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma
de discriminação. No entanto, olvidou-se o constituinte de proibir,
modo expresso, discriminação em decorrência da orientação sexual
ou identidade de gênero. Esta omissão gera um sistema de exclusão
incompatível com os princípios democráticos de um estado igualitário,
deixando número significativo de cidadãos fora do âmbito da tutela
jurídica. Diante deste imperdoável silêncio, homossexuais, lésbicas,
bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais são reféns
de toda a sorte de violência. Como não estão ao abrigo da legislação que
criminaliza a discriminação, as perseguições de que são vítimas restam
6 PECs 110 e 111, de 8/11/2011.
316
Maria Berenice Dias
impunes. Esta é a causa maior e a pior consequência da homofobia.
Daí a indispensabilidade de inserir as expressões “orientação sexual
ou identidade de gênero” no art. 3º, inc. IV7 e no art. 5º, inc. XLI8 da
Constituição Federal, para deixar explícito que a população LGBT precisa
ter sua identidade respeitada, bem como a necessidade de criminalizar os
delitos fruto da intolerância homofóbica.
A vedação de discriminação também precisa chegar ao ambiente
de trabalho, como forma de dar efetividade ao princípio isonômico nas
relações laborais. Assim, é necessária a alteração do inc. XXX do art. 7º
da Constituição Federal9, proibindo diferenças salariais e a adoção de
critérios diferenciados para a admissão e o exercício de funções laborais,
em razão da identidade de gênero ou orientação sexual.
Licença-natalidade
Duas ordens de motivação ensejaram a proposta de acabar com
o tratamento diferenciado a mães e pais. Cada vez mais se valoriza a
paternidade responsável, assegurando a ambos os genitores os mesmos
direitos e impondo aos dois os deveres inerentes ao poder familiar. Deste
modo, é indispensável consagrar a igual responsabilidade parental. Nada
justifica a concessão da licença de quatro meses para a mãe e, ao genitor,
somente escassos cinco dias. Essa é a justificativa para se adotar a licençanatalidade.
A exemplo da legislação de muitos países, a proposta é eliminar tanto a
licença-maternidade como a licença-paternidade, assegurando, de forma
indistinta, licença-natalidade, com prazo de duração de seis meses. Este
é período já reconhecido para assegurar o melhor desenvolvimento da
criança, que terá direito à presença de um de seus pais, da maneira que
lhes seja mais conveniente. Por isso, a proposta de alteração dos incisos
XVIII e XIX do art. 7ª da CF10, para assegurar licença-natalidade a qualquer
7 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, orientação sexual ou identidade de
gênero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais com base em raça,
sexo, cor, origem, idade, orientação sexual ou identidade de gênero;
9 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social:
(...)
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,
orientação sexual, identidade de gênero, idade, cor ou estado civil;
10 CF, art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social:
(...)
317
Um Estatuto para a diversidade sexual
dos pais, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento
e oitenta dias.
Durante os 15 primeiros dias após o nascimento, a adoção ou a
concessão da guarda para fins de adoção, a licença-natalidade é usufruída
por ambos os pais. No período subsequente, por qualquer deles, de forma
não cumulativa, segundo deliberação do casal.
Como o benefício independe do sexo do genitor, eliminam-se os
inúmeros questionamentos que surgem frente a homoparentalidade,
quando o beneficiado é um homem, ou é um casal masculino ou feminino.
Cessam as dúvidas sobre a quem conceder a licença e por quanto tempo,
nas hipóteses de adoção ou reconhecimento da dupla parentalidade
por casais homoafetivos. A igualdade de oportunidade a ambos vem em
benefício da própria família, pois se estende a todos, independentemente
da orientação sexual dos pais.
Outro ganho significativo é reduzir a discriminação contra as mulheres
no mercado de trabalho, pois, a possibilidade da gravidez muitas vezes
dificulta a inserção profissional.
Casamento e união estável
Por dever de justiça há que se louvar a corajosa e sensível decisão do
Supremo Tribunal Federal que, em 5 de maio de 2011, à unanimidade,
reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar. O histórico
julgamento garantiu aos parceiros homossexuais os mesmos direitos
e deveres dos companheiros das uniões estáveis. Deu ao art. 1.723 do
Código Civil11 interpretação conforme a Constituição Federal, excluindo
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade
familiar”, entendida como sinônimo perfeito de “família”12.
Em face do efeito vinculante e eficácia erga omnes do julgado13,
XVIII – licença-natalidade, concedida a qualquer dos pais, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração
de cento e oitenta dias;
XIX – durante os 15 dias após o nascimento, a adoção ou a concessão da guarda para fins de adoção, a licença
é assegurada a ambos os pais. O período subsequente será gozado por qualquer deles, de forma não cumulada.
11 CC, art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada
na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
12 Ofício 81/P-MC, datado de 09.05.2011, expedido pelo Presidente Ministro Cezar Peluso, aos Presidentes de
todos os Tribunais: Comunico a Vossa Excelência que o Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária realizada em 5
de maio de 2011, por unanimidade, reconheceu a arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como
ação direta de inconstitucionalidade. Também por votação unânime julgou procedente a ação, com eficácia erga
omnes e efeito vinculante, para dar ao art. 1723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas
do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento
que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.
13 CF, art. 102, § 2º: As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações
diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos
318
Maria Berenice Dias
inúmeros juízes e tribunais passaram a admitir a conversão das uniões
homoafetivas em casamento, até que o STJ14, em decisão não menos
louvável e corajosa, garantiu acesso ao casamento, mediante habilitação
direta perante o Registro Civil. A partir desses antecedentes, vários
Tribunais estão normatizando os procedimentos – quer para o casamento
direto, quer por conversão – a serem adotados pelos registros públicos,
sendo dispensada a via judicial.
Essas mudanças precisam ser inseridas na Constituição Federal,
dando-se nova redação ao parágrafo 1º do art. 22615 , para explicitar a
possibilidade do casamento civil entre duas pessoas, independente
da orientação sexual16. Também é necessário substituir a equivocada
referência a “homem e mulher”, constante do § 3º do mesmo art. 22617
.Assim, acabaria-se com a resistência de alguns em admitir a união estável
entre duas pessoas como entidade familiar18.
Somente reconhecendo a união estável e garantindo acesso ao
casamento aos vínculos homoafetivos estará assegurada a extensão de
todos os direitos e garantias fundamentais à população LGBT.
Estatuto da diversidade sexual
Para uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos, nada,
absolutamente nada, justifica a omissão do sistema jurídico frente à
população formada por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,
transgêneros e intersexuais. Assim, urge a aprovação de uma lei que
assegure a essa significativa parcela de cidadãos o direito à vida; à
integridade física e psíquica e à inclusão social. Também é indispensável
o reconhecimento legal de seus vínculos afetivos o que, nada mais é do
que a garantia do direito à felicidade. Um direito fundamental de todos,
independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero.
A construção de um microssistema
A técnica mais moderna de inclusão de segmentos alvo da
vulnerabilidade social no âmbito da tutela jurídica é por meio da
construção de microssistemas: lei temática que enfeixa princípios, normas
e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta,
nas esferas federal, estadual e municipal.
14 STJ, REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011.
15 CF, art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º: O casamento é civil e gratuita a celebração.
16 CF, art. 226, § 1º: É admitido o casamento civil entre duas pessoas, independente da orientação sexual.
17 CF, art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
18 CF, art. 226, § 3º: É reconhecida a união estável entre duas pessoas como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento.
319
Um Estatuto para a diversidade sexual
de conteúdo material e processual, além de dispositivos de natureza civil e
penal. Essa é a estrutura do Estatuto da Diversidade Sexual, que consagra
uma série de prerrogativas e direitos a homossexuais, lésbicas, bissexuais,
transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais.
É assegurado o reconhecimento das uniões homoafetivas no âmbito
do Direito das Famílias, Sucessório, Previdenciário e Trabalhista. Além de
criminalizar a homofobia, são apontadas políticas públicas de inclusão na
tentativa de reverter tão perverso quadro de omissões e exclusões sociais.
Em anexo são identificados os dispositivos da legislação infraconstitucional
que precisam ser alterados, acrescentados ou suprimidos, única forma a
harmonizar todo o sistema legal.
Os direitos previstos no Estatuto não excluem outros que tenham sido
ou venham a ser adotados no âmbito federal, estadual ou municipal e
nem os decorrentes das normas constitucionais e legais vigentes no país
ou oriundos dos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil
seja signatário.
Nomes e nomenclaturas
A primeira controvérsia que surgiu quando da elaboração do Anteprojeto
do Estatuto foi a respeito do seu nome. As sugestões de chamá-lo de
“Estatuto da Diversidade” ou “Estatuto da Igualdade” foram descartadas
por não gizar que se trata da tutela de parcela específica da população.
Existiram focos de resistência ao uso do vocábulo “diversidade”, que,
por ressaltar o aspecto de diferença, poderia ter conotação pejorativa.
No entanto, como a expressão também significa diverso, de outro jeito,
conceito sem viés preconceituoso, foi a opinião que prevaleceu.
Outra decisão alvo de enormes debates foi a de não definir o que seja
sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e nem os sujeitos
aos qual o Estatuto se destina: homossexuais, lésbicas, bissexuais,
transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais. Além de a lei não ser o
espaço adequado para trazer definições ou conceitos, estas são expressões
que não dispõem de significado unívoco.
Ainda assim, houve a preocupação de referir o maior número de
segmentos, da forma mais explícita possível. Optou-se por falar em
“homossexuais” ao invés de “gays”, estrangeirismo que, em sua origem,
não identifica a orientação homossexual. Apesar de a expressão
“homossexual” não dizer exclusivamente com a população masculina, a
inclusão do termo “lésbicas” atendeu a antiga reivindicação para que seja
assegurada mais visibilidade ao gênero feminino. Mas, como se trata de
320
Maria Berenice Dias
expressão contida no termo generalizante, foi inserida em segundo lugar
e não como figura na sigla LGBT.
O vocábulo transgênero – originalmente utilizado para englobar
transexuais e travestis – sempre ensejou muita polêmica, por serem
inconfundíveis as características de duas modalidades de identidades
de gênero. Apesar disso, o termo foi mantido no Estatuto por definir
as pessoas que mudam transitoriamente de identidade, sendo assim
identificados “drags queens e crossdressers”.
A referência aos intersexuais – que antes recebiam o nome de
hermafroditas – justifica-se por inexistir qualquer regulamentação ou
regra protetiva a quem nasce com características sexuais indefinidas.
Objeto e objetivos
No seu primeiro dispositivo o Estatuto diz a que vem: promover a
inclusão de todos, combater a discriminação por orientação sexual ou
identidade de gênero e criminalizar a homofobia. Também identifica a
quem visa proteger, para que lhes seja assegurado igual dignidade jurídica:
heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis,
transgêneros e intersexuais.
A referência à heterossexualidade, no entanto, não significa que o
Estatuto abriga todas as condutas sexuais e as mais diversas expressões
da sexualidade, amplitude que não se comporta em uma lei que tem por
justificativa a proteção da identidade homossexual e seus relacionamentos
afetivos.
Princípios
Como toda legislação que se destina a tutelar segmento determinado
exposto a alguma espécie de vulnerabilidade, exclusão ou discriminação,
também neste Estatuto é indispensável a identificação dos princípios que
a regem.
Daí a consagração, como princípios fundamentais na interpretação
e aplicação do Estatuto da Diversidade Sexual, a dignidade da pessoa
humana, a igualdade e o respeito à diferença. Também são erigidos
como princípios: a livre orientação sexual; o respeito à intimidade; a
privacidade; a autodeterminação; e o reconhecimento da personalidade
de acordo com a identidade de gênero. No âmbito das relações vivenciais
são consagrados como princípios, o direito à convivência comunitária e
familiar, à liberdade de constituição de família e de vínculos parentais.
321
Um Estatuto para a diversidade sexual
Mas, talvez o mais significativo princípio seja o que diz respeito ao
direito fundamental à felicidade. Este merece estar previsto na própria
Constituição Federal, como princípio fundante do Estado, pois se
trata de direito que deve ser garantido a todos os cidadãos. Além de
incorporadas as normas constitucionais consagradoras de princípios,
garantias e direitos fundamentais, são invocadas as normas constantes de
tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil seja signatário.
Expressamente é imposto respeito aos Princípios de Yogyakarta.
Direito à livre orientação sexual
Consagrado o direito à livre orientação sexual e identidade de gênero
como direitos fundamentais, é assegurado a todos o direito de viver a
plenitude de suas relações afetivas e sexuais.
Em face da inviolabilidade de consciência e de crença, são proibidas
práticas que obriguem alguém a revelar, renunciar, negar ou modificar sua
identidade sexual. Cada um pode conduzir sua vida privada, sem pressões
de qualquer ordem, garantia que alcança não só a própria pessoa, mas
qualquer membro da sua família ou comunidade.
Também é vedada a incitação ao ódio ou comportamentos que
preguem a segregação em razão da orientação sexual ou identidade de
gênero, condutas que, inclusive, são criminalizadas.
Direito à igualdade e a não discriminação
O princípio da igualdade compreende o direito à diferença e a proibição
à discriminação. Por isso, a necessidade da expressa referência à vedação
de atitudes constrangedoras, intimidativas ou vexatórias que tenham por
objetivo anular ou limitar direitos e prerrogativas da população LGBT.
De forma exemplificativa, são identificadas como discriminatórias
algumas posturas: proibir o ingresso ou a permanência em
estabelecimento público ou estabelecimento privado aberto ao público;
prestar atendimento seletivo ou diferenciado não previsto em lei; preterir,
onerar ou impedir hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares;
dificultar ou impedir locação, compra, arrendamento ou empréstimo
de bens móveis ou imóveis; proibir expressões de afetividade em locais
públicos, sendo as mesmas manifestações permitidas aos demais
cidadãos.
O impedimento de tais práticas, além de configurarem crime de
homofobia, geram responsabilidade por danos materiais e morais.
322
Maria Berenice Dias
Direito à convivência familiar
Afirmado o direito à constituição da família, independente da orientação
sexual ou identidade de gênero de seus membros, de forma expressa, a
família homoafetiva goza da especial proteção do Estado. Como entidade
familiar, faz jus, no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, a todos
os direitos assegurados à união heteroafetiva,.
Além de o companheiro estrangeiro ter direito à concessão de visto de
permanência, é admitido o reconhecimento do casamento, da união civil
e da união estável formalizados em países estrangeiros.
O direito à constituição de família alcança também os vínculos
homoparentais, quer individualmente, quer pelo casal homoafetivo,
frente aos filhos biológicos, adotados ou socioafetivos.
Como os pares, com a mesma identidade sexual, não dispõem de
capacidade procriativa, é garantido acesso às técnicas de reprodução
assistida por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, de forma individual
ou conjunta. É expressamente admitido o uso de material genético do
casal para práticas reprodutivas.
Repita-se, também é assegurada a guarda, a adoção, a habilitação
individual ou conjunta à adoção de crianças e adolescentes, fazendo
qualquer dos pais jus à licença-natalidade, com duração de cento e oitenta
dias. A licença é usufruída durante os 15 primeiros dias por ambos os pais
e, no período subsequente, por qualquer deles de forma não cumulada.
Quando ocorre a separação do casal, o exercício do poder familiar
é garantido a ambos os genitores. Deve-se estabelecer a obrigação
alimentar e assegurar o direito de convivência, com preferência pela
guarda compartilhada.
A proibição de os pais expulsarem de casa ou discriminarem o filho, em
face de sua orientação sexual ou identidade de gênero, gera obrigação
indenizatória, além da responsabilidade por abandono material quando,
o filho for menor de idade.
Direito à identidade de gênero
A livre expressão da identidade de gênero é reconhecida a transexuais,
travestis, transgêneros e intersexuais, que têm direito ao uso do nome
social. O uso independe da realização da cirurgia de redesignação sexual
ou da alteração do nome registral. Além disso, o direito à retificação do
nome e da identidade sexual no Registro Civil também independe da
realização da cirurgia de transgenitalização. Ainda, para a adequação do
323
Um Estatuto para a diversidade sexual
sexo morfológico à identidade de gênero, é garantida a realização dos
procedimentos de hormonoterapia e transgenitalização pelo Sistema
Único de Saúde – SUS.
Havendo indicação terapêutica de equipe médica e multidisciplinar,
procedimentos complementares não cirúrgicos de adequação à identidade
de gênero podem iniciar a partir dos 14 anos de idade, mas a cirurgia de
redesignação sexual somente pode ser realizada a partir dos 18 anos. É
vedada a realização de qualquer intervenção médico-cirúrgica de caráter
irreversível para a determinação de gênero em recém-nascidos e crianças
diagnosticadas como intersexuais.
Em todos os espaços públicos e abertos ao público é assegurado o uso
das dependências e instalações correspondentes à identidade social.
O uso do nome social é garantido nos estabelecimentos de ensino,
devendo constar em todos os registros acadêmicos. Igual garantia é
assegurada nas relações de trabalho, devendo o nome social ser inserido
na Carteira de Trabalho e nos assentamentos funcionais.
Direito à saúde
Faz-se necessário a capacitação de médicos, psicólogos e demais
profissionais da área de saúde para atender a população LGBT. Essa ação
visa impedir a utilização de instrumentos e técnicas para criar, manter ou
reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou ações que favoreçam
a patologização de comportamentos ou práticas homossexuais. Ainda,
nesse sentido, são proibidas, de forma expressa, promessas de cura ou
de reversão da identidade sexual, bem como ações coercitivas para que
alguém se submeta a tratamentos não solicitados.
A orientação sexual ou a identidade de gênero não podem ser usadas
como critério para seleção de doadores de sangue, sendo proibido
questionar a orientação sexual de quem se apresenta voluntariamente
como doador.
Maria Berenice Dias
Direito à educação
É proibido o uso de materiais didáticos e metodologias que reforcem
a homofobia, o preconceito e a discriminação. Ainda, nessa direção, os
estabelecimentos de ensino devem coibir, no ambiente escolar, a prática
de bullying por orientação sexual ou identidade de gênero do aluno, ou
pelo fato de pertencer a uma família homoafetiva.
As atividades escolares referentes a datas comemorativas precisam
atentar à multiplicidade de formações familiares, de modo a evitar
qualquer constrangimento aos alunos filhos de famílias homoafetivas.
Assim, os professores devem ser capacitados para uma educação inclusiva,
com o objetivo de elevar a escolaridade em face da identidade sexual dos
alunos ou de seus pais, com o fim de reduzir a evasão escolar.
Direito ao trabalho
O acesso ao mercado de trabalho é assegurado a todos, sendo vedado
inibir o ingresso, proibir a admissão ou a promoção no serviço público ou
privado, em função da identidade sexual do servidor. Como também é
proibido demitir ou estabelecer diferenças salariais entre empregados ou
servidores que ocupem o mesmo cargo e desempenhem iguais funções,
em decorrência da orientação sexual ou identidade de gênero.
A administração pública e a iniciativa privada devem adotar programas
de formação profissional, de emprego e de geração de renda, além de
promover campanhas com o objetivo de elevar a qualificação profissional
dos servidores e empregados travestis, transexuais, transgêneros e
intersexuais.
Em respeito ao princípio da proporcionalidade, e visando assegurar
igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, é adotado o sistema
de cotas a travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, para ingresso
no serviço público. Empresas e organizações privadas serão incentivadas a
adotar medidas similares.
Direito à moradia
Direitos previdenciários
São garantidos direitos previdenciários de forma universal. Às
instituições de seguro ou previdência públicas ou privadas é vedado negar
qualquer espécie de benefício em face da orientação sexual ou identidade
de gênero do beneficiário. Do mesmo modo, os planos de saúde não
podem impedir ou restringir a inscrição como dependente do cônjuge ou
do companheiro homoafetivo do beneficiário.
324
Como o direito à moradia tem assento constitucional, é proibida
qualquer restrição à aquisição ou à locação de imóvel em decorrência
da identidade sexual do adquirente ou locatário. Também é assegurada
a conjugação de rendas do casal para a concessão de financiamento
habitacional na aquisição da casa própria.
É afirmada a responsabilidade por dano moral da administração do
imóvel ou condomínio que for omisso em inibir condutas que configurem
325
Um Estatuto para a diversidade sexual
prática discriminatória nas áreas de uso comum.
Acesso à justiça e à segurança
As demandas, que tenham por objeto a exigibilidade dos direitos
previstos no Estatuto, devem tramitar em segredo de justiça, sendo
obrigatória, para fins estatísticos, a identificação da natureza das ações.
As ações não criminais são de competência das Varas de Família e os
recursos devem ser apreciados pelas Câmaras Especializadas de Família
dos Tribunais de Justiça, onde houver.
Devem ser criadas delegacias especializadas para o atendimento de
denúncias por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de
gênero. Às vítimas de discriminação é garantida assistência, acolhimento,
orientação e apoio, quando da apuração de práticas delitivas.
O encarceramento no sistema prisional deve atender à identidade
sexual do preso, ao qual é assegurada cela separada se houver risco à
sua integridade física ou psíquica. É, também, garantida visita íntima sem
qualquer diferenciação quanto à identidade sexual ou de gênero do preso.
Dos meios de comunicação
Os meios de comunicação de massa, como rádio, televisão, internet e
redes sociais, bem como peças publicitárias, devem assegurar respeito
à diversidade sexual. Não podem fazer qualquer referência de caráter
preconceituoso ou discriminatório em face da população LGBT. Publicar,
exibir a público, qualquer aviso, sinal, símbolo ou emblema que incite a
intolerância se constitui em prática discriminatória.
Maria Berenice Dias
Dos delitos e das penas
Ainda que significativos tenham sido os avanços no âmbito do Poder
Judiciário na concessão de direitos, é indispensável previsão legal para
que a homofobia seja punida criminalmente. É mais do que conhecido
o princípio de que ninguém pode ser condenado pela prática de um ato
sem que haja lei anterior que o defina como crime. Então, desde 2006,
um projeto de lei – ora sob o nº PLC 122 – tenta criminalizar a homofobia.
Apesar de ter sido aprovado na Câmara Federal, no Senado não avança.
Foram apresentadas tantas alterações e emendas que o projeto restou
desconfigurado.
Com pena de reclusão de 2 a 5 anos, são punidas condutas
discriminatórias. Como também toda manifestação que incite o ódio ou
pregue a inferioridade de alguém em razão de sua orientação sexual ou
identidade de gênero.
No âmbito das relações de trabalho, gera responsabilidade criminal
deixar de contratar alguém, dificultar a contratação ou negar ascensão
profissional a cargo ou função, motivado por preconceito de sexo. Está
sujeito à mesma apenação o responsável pelo estabelecimento comercial
que recusar, impedir acesso ou negar atendimento a alguém em face
de sua orientação sexual ou identidade de gênero. O Estatuto cria uma
agravante genérica, elevando em um terço a pena de quem praticar
delitos nos quais ficar evidenciada motivação homofóbica.
Além da criminalização da homofobia, é proposta a alteração de cinco
dispositivos da Lei do Racismo (Lei 7.716/89), incluindo em todos os tipos
penais as expressões: gênero, sexo, orientação sexual e identidade de
gênero.
Relações de consumo
Políticas públicas
São práticas discriminatórias, sujeitas as sanções penais, impedir
acesso a estabelecimento público ou aberto ao público, assim como
impor restrições no fornecimento de bens ou prestação de serviços ao
consumidor, em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de
gênero.
Não basta a lei prever direitos. Para garantir a participação em
condição de igualdade e de oportunidade na vida econômica, social,
política e cultural do país, é indispensável conscientizar a sociedade da
igual dignidade de heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais,
transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais. Daí, então, a
necessidade de adoção de uma série de políticas públicas no âmbito da
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal, destinadas a conscientizar a sociedade da igual dignidade de
todos, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero.
Os serviços públicos e privados têm o dever de capacitar seus
funcionários e empregados para evitar manifestações discriminatórias.
Por isso, a imposição de 34 medidas que promovam a igualdade de
oportunidades no acesso à saúde, educação, emprego e moradia, as quais
326
327
Um Estatuto para a diversidade sexual
devem constar, inclusive, nos Planos Plurianuais e dos Orçamentos Anuais
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Como é garantido acesso ao Sistema Único de Saúde – SUS, é
indispensável o investimento em recursos humanos dos profissionais da
área de saúde para acolherem a população LGBT em suas necessidades e
especificidades.
É imposto aos profissionais da educação o dever de abordar as questões
de gênero e sexualidade sob a ótica da diversidade sexual, cabendo ao
poder público promover a capacitação dos professores para uma educação
inclusiva.
Em face da significativa evasão escolar, se fazem necessárias ações com
o objetivo de elevar a escolaridade de homossexuais, lésbicas,bissexuais,
transexuais, travestis, transexuais e intersexuais. Para assegurar a igualdade
de oportunidades na inserção no mercado de trabalho, é indispensável a
adoção de programas de formação profissional, de emprego e geração de
renda voltadas à população LGBT.
Também é necessária a promoção de campanhas com o objetivo de
promover a qualificação profissional de travestis, transexuais, transgêneros
e intersexuais. É imposta à administração pública e incentivada a iniciativa
privada a adotar sistema de cotas a travestis e transexuais, transgêneros
e intersexuais.
Os entes federados devem estimular e facilitar a participação de
organizações e movimentos sociais na composição dos conselhos
constituídos para fins de aplicação do Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social – FNHIS. Também, devem ser implementadas ações de
ressocialização e proteção da juventude em conflito com a lei que esteja
exposta a experiências de exclusão social em face de sua orientação sexual
ou identidade de gênero.
Os serviços públicos e privados devem capacitar seus funcionários para
aprimorar a atenção e o acolhimento das pessoas, evitando qualquer
manifestação de preconceito e discriminação sexual.
Para garantir a integridade física, psíquica, social e jurídica da população
LGBT em situação de violência, várias medidas são impostas, como: a
criação de centros de referência contra a discriminação e de atendimento
especializado na estrutura nas Secretarias de Segurança Pública; a
capacitação e qualificação dos policiais civis e militares e dos agentes
penitenciários.
328
Maria Berenice Dias
Legislação infraconstitucional
A discriminação que existe na sociedade sempre contagiou o legislador,
o qual, além de negar-se a aprovar leis que assegurem direitos, não
perde a oportunidade de carimbar a legislação com o seu preconceito.
Isso se mostra nos usos das expressões “homem e mulher”, “pai e mãe”,
quando trata da família. Assim, além da alteração da Constituição Federal
e a consolidação dos direitos em uma única lei, são identificados os
dispositivos da legislação infraconstitucional que precisam ser adequados
ao novo sistema normativo.
Deste modo, é proposta alteração das seguintes leis: Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.656/1942); Código Civil;
Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973); Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/1990; Lei 8.560/1992; Consolidação das Leis do
Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943; legislação previdenciária (Lei 8.213/199
e Decreto 3.048/1999); estatutária (Lei 8.112/1990) e tributária (Decreto
3.000/1999. Também, do Código Penal; Código de Processo Penal e Lei das
Execuções Penais; Lei do Racismo (Lei 7.716/1989); Código Penal Militar
e o Estatuto dos Militares. As Leis 6.815/1980; 8.560/1992 e 9.029/1995
precisam ser alteradas e a Lei 11.770/1978, revogada.
Referências
BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 110 de novembro
de 2001. Altera a redação do artigo 208 da Constituição Federal. Autor: Deputado Romero
Rodrigues. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarinte
gra;jsessionid=0EB725FD4A0CA58B54617B3403CB2F3E.proposicoesWeb1?codteor=9381
24&filename=PEC+110/2011.
BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 111 de novembro
de 2001. Altera a redação do artigo 31 da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de
1988, e dá outras providências. Autora: Deputada Dalva Figueiredo. Disponível em: http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=940079&filename=
PEC+111/2011.
BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277.
Relator Ministro Ayres Brito. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/
consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=11872.
BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Descumprimento de Preceito Federal nº
132. Relator Ministro Ayres Brito. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/geral/
verPdfPaginado.asp?id=433816&tipo=TP&descricao=ADPF%2F132.
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis
Felipe Salomão, j. 25.10.2011. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/
portal/Civel_Geral/Registros_Publicos/Jurisprudencia_registros/STJ-%20REsp%20
1183378-casamento%20homoafetivo.pdf.
329
Um Estatuto para a diversidade sexual
BRASÍLIA. Regimento Interno Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.
br/legislacao/regsf/RegInternoSF_Vol1.pdf e http://www.senado.gov.br/legislacao/regsf/
RegInternoSF_Vol2.pdf
330
Regina Bergamaschi Bley
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS
MULHERES
Regina Bergamaschi BLEY1
1. Introdução
Pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana é o fundamento
último do Estado Brasileiro. Ou seja, cabe ao Estado garantir e promover
as condições assecuratórias da dignidade de todas as pessoas.
Construir, portanto, uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o
desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização,
reduzir as desigualdades sociais e promover o bem estar de todos, sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do Estado
Brasileiro, conforme destaca Bley e Josviak (2007p.204).
O século XX constitui-se em época marcada pela ampliação de direitos,
de oportunidades e de mudanças, tanto na qualidade de vida das mulheres
quanto no imaginário coletivo. Devido a isso, Pinsky (2012, p.) refere-se a
este período como sendo “o século das mulheres”. E diz isso em razão das
transformações aceleradas que propiciou à experiência feminina.
No Brasil, a partir de 1975, o movimento feminista toma impulso com
grande influência do feminismo chamado de “Segunda Onda”, cujo início
se deu nos anos 60, e com as ideias e debates provocados pelas mulheres
exiladas políticas na Europa, que retornam ao Brasil com o processo de
redemocratização.
Destaca-se, na perspectiva acima mencionada, o surgimento, na França,
na década de 70, de dois grupos de mulheres que, por conta de seus
países estarem vivendo sob regime de ditadura, haviam sido obrigadas a
deixá-los: o grupo de latino-americanas chamado de Nosotras e o Círculo
de Mulheres Brasileiras em Paris, só para citar alguns.
O movimento de mulheres, assim como outros, contribuiu para a
aprovação da Carta Constitucional de 1988 a qual representa, sem dúvida,
um marco na defesa dos direitos das mulheres no Brasil.
1 Bióloga, professora, mestre e doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; é
Diretora do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Justiça Cidadania e Direitos Humanos
do Paraná, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e Gestora do Pacto Nacional de Enfrentamento
à Violência contra a Mulher, no Estado do Paraná.
331
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
Em comemoração aos 25 anos da sua promulgação, em 5 de outubro
de 2013, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Secretaria de
Políticas para as Mulheres da Presidência da República publicaram nota
na qual explicitam a importância da participação dos movimentos de
mulheres para o processo de democratização do Brasil:
encontravam impregnados na mentalidade popular portuguesa – e mesmo
europeia -, cabendo à igreja metropolitana adaptar valores conhecidos
das populações femininas, para um discurso com conteúdos e objetivos
específicos.(...) Adestrar a mulher fazia parte do processo civilizatório, e,
no Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização.
(...) O outro instrumento utilizado para a domesticação da mulher foi o
discurso normativo médico. (DEL PRIORE, 2009, p.23-24).
No processo de luta pela restauração da democracia, o movimento de
mulheres teve uma participação marcante, ao visibilizar um conjunto
de reivindicações relativas ao seu processo de exclusão, assim como ao
lutar pela inclusão dos direitos humanos para as mulheres.Seu marco foi a
apresentação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes (1988),
que indicava as demandas do movimento feminista e de mulheres. A Carta
Magna de 1988 incorporou no Artigo 5°, I: “Homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. E no Artigo
226, Parágrafo 5°: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal
são exercidos pelo homem e pela mulher”. Esses dois artigos garantiram
a condição de equidade de gênero, bem como a proteçãodos direitos
humanos das mulheres pela primeira vez na República Brasileira. (PORTAL
BRASIL, 2013).
A autora destaca a contribuição dada pelo discurso normativo
médico, ou “phisico”, sobre o funcionamento do corpo feminino, como
instrumento utilizado para a domesticação da mulher, na medida em que
este referendava o discurso religioso por asseverar cientificamente que
a função natural da mulher era a procriação. Nesse sentido, é possível
pensar, então, corroborando a ideia da autora, que a medicina aliou-se
à Igreja na luta pela constituição de famílias sacramentadas, já que o
médico, assim como o padre, tinha acesso à intimidade das residências,
das famílias e das mulheres. Cabia à medicina dar caução à igreja, a fim
de disciplinar as mulheres para o ato de procriação, reforçando a ideia de
que o corpo feminino só se mostraria dentro da normalidade pretendida
pela medicina quando desprovido de prazeres físicos, se revelando, dessa
forma, “eficiente, útil e fecundo”. “Apenas como mãe, a mulher revelaria
um corpo e uma alma saudáveis, sendo sua missão atender ao projeto
fisiológico-moral dos médicos e à perspectiva sacramental da Igreja”:
Isso pode nos levar a pensar que o tempo em que a identidade feminina
formava-se e era formada a partir da maternidade, a exemplo do que
acontecia no período colonial ou que a condição de filha, esposa, mãe,
“como sendo as únicas identificações valorizadas da mulher na sociedade
patriarcal e escravista”, conforme coloca Scott (2012 p.17), encontra-se
muito distante. Entretanto, a despeito de todos os avanços apresentados,
é fato que ainda há muito por se fazer no que diz respeito à construção
de políticas públicas que garantam a condição de equidade de gênero,
pressuposto básico para a justiça social.
Nesse sentido, o Estado, como entidade política, tem a responsabilidade
precípua de organizar, fomentar e implementar, a partir das demandas
da sociedade civil, as políticas públicas que tenham esse fim.Del Priore
(2009, p. 26), em sua análise a respeito do papel social da mulher no Brasil
Colônia, descreve o longo processo de “domesticação” pela qual a mulher
passou, com o objetivo de torná-la responsável pela casa, família, pelo
casamento e pela procriação, na figura da “santa-mãezinha”. A construção
dessa maternidade idealizada como um dos instrumentos de adequação
da mulher à vida matrimonial, de acordo com a autora, foi um projeto
desenvolvido pela igreja, como eco da Reforma Trentina, e pelo Estado:
O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais foi
acionado por meio de dois musculosos instrumentos de ação. O primeiro,
um discurso sobre padrões ideais de comportamento, importado da
Metrópole, teve nos moralistas, pregadores e confessores os seus mais
eloquentes porta-vozes. Elementos para esse discurso normatizador já se
332
Regina Bergamaschi Bley
Enquanto o segundo cuidava das almas, o “doutor” ocupava-se dos
corpos, sobretudo no momento de partos dificultosos e doenças graves.
Ao penetrar o mundo fechado de pudores, mistérios e usos tradicionais
dessa espécie de terra desconhecida que era o corpo feminino, o médico
interrogava a sexualidade da mulher e era também por ela interrogado. Os
ciclos menstruais, a gestação, os “males da madre” eram criteriosamente
cadastrados para que se sublinhassem as diferenças sexuais. O saber
médico insuflava aos percursos temporais femininos uma verdadeira
dramaturgia, na qual desvios, doenças e acidentes vinham sancionar os
defeitos, os excessos ou a normalidade de suas fisiologias” (DEL PRIORE,
2009, p. 26).
Não é por acaso que Simone de Beauvoir, em o Segundo Sexo, na
tentativa clara de desconstruir os mitos criados ao longo do tempo sobre
a suposta natureza perversa da mulher, o mito do amor materno e a ideia
da “mulher santa” construída pela Igreja Católica, aponta para a ideia
de “ser mulher” como algo construído histórica e socialmente. A sua
intenção era desconstruir a tese do “instinto biológico feminino”, o que
considera não um pressuposto natural imutável, mas sim uma condição
culturalmente construída.
333
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
Foucault, em A História da Sexualidade: a vontade de saber, faz
referência ao início do século XVII, quando, segundo ele, ainda havia
uma “certa franqueza” e uma tolerante familiaridade com o ilícito. Nesse
período, ainda de acordo com o autor, em meio a gestos diretos, discursos
sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente
misturadas, os corpos “pavoneavam”. Se até então os corpos se exprimiam
sem pudores nas falas, gestos, no período vitoriano a sexualidade é
encerrada, “muda-se para dentro de casa”, sendo confiscada pela família
conjugal, que a absorve, integralmente, na função de reproduzir:
Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõese como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito
de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no
coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas
utilitário e fecundo: o quarto dos pais.Ao que sobra só resta encobrir-se; o
decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os
discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal:
receberá este status e deverá pagar as sanções. (FOUCAULT,1988,p.10).
Foucault fala, ainda, do processo de histerização da mulhercomo forma
de repressão sexual, representando uma das mais importantes formas de
poder da sociedade burguesa desde o século XVIII e destaca que - como
consequência dessa patologização de seu corpo e a apropriação, pela
medicina, dos seus processos reprodutivos -, se outorga aos “homens
da ciência” o poder de dar a palavra final sobre a normalidade ou
não da mulher, podendo, inclusive, decidir por recolher aos asilos as
que porventura não se enquadrassem nos padrões de feminilidade
considerados “normais”.
Por outro lado, como forma de resistência ao discurso religioso,
moralista e ao discurso normativo médico, os quais definiam a casa, a
maternidade e a família como sendo os lugares destinados às mulheres
no Brasil Colônia, “estas aproveitavam para viver a maternidade como
uma revanche contra a sociedade androcêntrica e desigual nas relações
entre sexos”, conforme coloca Del Priore (2006, p. 15). Na medida em que,
no espaço privado da casa, a mulher se magnificada pela gravidez, parto
e cuidados com os filhos, por trás da imagem da mulher ideal, unia-se
aos seus filhos para resistir à solidão, à dor, e, tantas vezes, ao abandono.
Além do respaldo afetivo e material, a prole permitia à mulher exercer,
dentro do seu lar, um poder e uma autoridade dos quais ela raramente
dispunha no mais da vida social. Identificada com um papel que lhe era
culturalmente atribuído, ela valorizava-se socialmente por uma prática
doméstica, quando era marginalizada por qualquer atividade na esfera
pública (DEL PRIORE, 2009, p.16).
334
Regina Bergamaschi Bley
Corroborando as ideias de Del Priore, Boff e Muraro (2002, p. 13),
analisando a relação histórica entre o feminino e o masculino, descrevem
que nas sociedades de caça iniciam-se as relações de força e o masculino,
que passa a ser o gênero predominante, vem a se tornar hegemônico
no período histórico – há oito mil anos -, quando destina a si o domínio
público e à mulher, o privado. A relação homem-mulher passa a ser de
dominação e violência, tornando-se estas a base das relações entre
os grupos e entre a espécie humana e a natureza. “Então é o princípio
masculino que governa o mundo sozinho”.
No fim do século XX, ainda de acordo com os autores, com a segunda
revolução industrial, a mulher entra para o domínio público porque o
sistema competitivo “faz mais máquinas do que machos”:
No início do século XXI as mulheres são praticamente 50% da força de
trabalho mundial, ou seja, para cada homem que trabalha, uma mulher
também trabalha.Isso, ao menos teoricamente, está fechando o ciclo da
história: o ciclo patriarcal. Esta abriu-se no período histórico junto com a
sociedade escravista, quando as mulheres foram reduzidas à sua função
procriadora (BOFF e MURARO, 2002, p. 13).
Em sua análise, Boff e Muraro, (2002, p.14) destacam que hoje
as mulheres trazem para o sistema produtivo e para o Estado algo
radicalmente novo. “Foi apenas o homem que se tornou competitivo,
porque se destinou ao domínio público. É ela quem traz os novos/arcaicos
valores simbólicos de solidariedade da família para o sistema produtivo
e para o Estado. Desta forma, a entrada da mulher no domínio público
masculino é condição essencial para reverter o processo de destruição”.
Nessa seara, merecem destaque as diversas críticas que o movimento
feminista tem feito ao patriarcado, entendendo ser este o sistema
masculino de opressão das mulheres. Coerentemente, pregam a
necessidade de sua eliminação para que a desigualdade entre homens e
mulheres seja reduzida, e se possa criar uma sociedade mais igualitária,
menos discriminatória, e, por conseguinte, mais justa.
2. O Estado e as Politicas de igualdade de gênero
É fato que a sociedade brasileira, historicamente, vem lutando pela
construção de uma verdadeira democracia. Isso pressupõe a igualdade de
todos perante a lei, conforme garantido no texto constitucional, e justiça
social. Também é fato que houve no Brasil, nos últimos anos, uma evolução
no que diz respeito à conquista dos direitos e dos instrumentos de defesa
das mulheres, conforme já referenciado. Exemplo disso é a Lei 11.340/06
– Lei Maria da Penha, que se constitui em importante instrumento jurídico
335
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
de defesa das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Os avanços obtidos, todavia, não descaracterizam a gravidade do
problema social no qual a violência contra a mulher se constitui, tanto no
Brasil quanto no mundo. Muito pelo contrário, o problema se traduz ainda
hoje como uma das principais formas de violação dos direitos humanos da
população feminina. A Organização Mundial da Saúde – OMS, já em 2011,
declarou que a violência contra a mulher se alicerça em uma prioridade
urgente de saúde pública.
Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), ação criada
pela Organização das Nações Unidas, em 2000, para reduzir os maiores
problemas mundiais até o ano de 2015, estabelece como Meta de Número
3, promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher. Quanto
a esta Meta, o Governo Federal destaca alguns dados, conforme seguem2:
No que diz respeito ao acesso à educação, o Brasil já alcançou as
metas previstas: meninas e mulheres já são maioria em todos os níveis
de ensino. Entretanto, mesmo tendo havido melhorias nos indicadores,
a desigualdade das mulheres em relação aos homens ainda persiste no
mercado de trabalho, nos rendimentos e na política. A violência doméstica
é outro fator de preocupação, na medida em que continua atingindo
milhares de mulheres brasileiras. Entre 2003 e 2011, a População Economicamente Ativa (PEA) feminina
cresceu 17,3%, enquanto a PEA masculina aumentou 9,7%. A participação
das mulheres na PEA passou de 44,4%, em 2003, para 46,1%, em 2011. No
mesmo período, as mulheres aumentaram sua participação na população
ocupada, passando de 43,0% para 45,4%.
Diminuíram as diferenças entre os rendimentos do trabalho. Entre
2003 e 2011, o rendimento real médio das mulheres cresceu 24,9%,
variação superior à observada entre os homens. A remuneração média
das mulheres passou a corresponder a 72,3% da masculina, em 2011,
situação menos desigual que em 2003, quando esta proporção equivalia
a 70,8%.
No Paraná, a iniciativa dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio
integra o Movimento Nós Podemos Paraná, coordenado pelo Sistema FIEP
– Federação das Indústrias do Paraná, que, no que diz respeito à Meta 3,
apresenta o seguinte panorama3:
As mulheres, hoje, no Paraná, já são a maioria nas escolas e
universidades e, entre os jovens, já possuem maior escolaridade.
2 Disponível em http://www.portalodm.com.br
3 Disponível em htpp://www.fiepr.org.br
336
Regina Bergamaschi Bley
Entretanto, as disparidades ainda são grandes no mercado de trabalho. No
emprego formal, o salário da mulher é apenas 78% do salário do homem.
Entre as pessoas com 12 anos ou mais de estudo, os homens ganham,
por hora, 70% a mais que as mulheres. A participação da mulher nos
processos políticos também é baixa: o número de candidatas a vereadora
é pouco mais do que o estabelecido por lei (20%), das quais apenas 11%
se elegeram no último pleito. Em apenas 6% dos municípios paranaenses
foram eleitas mulheres como Prefeitas.
Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto
do conjunto das desigualdades sócio-históricas e culturais herdadas,
pressupõe-se que o Estado evidencie a disposição e a capacidade para
redistribuir riqueza, assim como poder entre mulheres e homens, classes,
raças, etnias e gerações. Para tanto, “é necessário compreender que
as políticas públicas com recorte de gênero são as que reconhecem a
diferença de gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam
ações diferenciadas dirigidas às mulheres” (SPM, 2012). Esta configuração
faz com que a mobilização, para dar maior visibilidade a este problema,
passe a se tornar um compromisso social que os governos devem,
necessariamente, assumir, tomando para si a responsabilidade de
enfrentar a desigualdades de gênero em suas mais diversas formas de
manifestação.
Para isso, é imprescindível que se discuta o papel do Estado na definição
e estruturação das políticas públicas em geral, e, em particular, as de
igualdade de gênero, objeto do presente artigo, com vistas a contribuir
para a justiça social.
Referimo-nos aqui ao Estado, na perspectiva de Boneti (2011, p. 17),
como sendo uma instituição não neutra. Ou seja, perpassada por valores
ideológicos, éticos e culturais que apresenta, organiza, institucionaliza um
conjunto de regras, normas e leis de interesse social.
Entende-se, também, na perspectiva do mesmo autor, as políticas
públicas como sendo as ações derivadas de um processo de construção
social. Ou seja, as ações “resultantes da dinâmica do jogo de forças que
se estabelece no âmbito das relações de poder, constituídas pelos grupos
econômicos e políticos, classes sociais e organizações da sociedade civil”. Essas relações vão determinar um conjunto de ações que serão atribuídas
ao Estado. O que provoca o direcionamento ou redirecionamento de
investimentos e de intervenção administrativa na realidade social (BONETI,
2011, p.18).
Partindo-se dessa perspectiva, pode-se dizer, portanto, que o papel do
Estado, diante das políticas públicas, é, não única, mas, precipuamente, o
337
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
de agente de organização e de institucionalização de decisões surgidas a
partir do debate público, conforme bem lembra Boneti.
Essa concepção de Estado e de políticas públicas compatibiliza-se com
o momento histórico e a nova configuração social, perpassada não só
por interesse de classes, mas também pelos interesses de vários outros
segmentos constituintes da sociedade civil. Ou seja, essa concepção
desconstrói a ideia funcionalista das políticas públicas pensadas
exclusivamente a partir do ordenamento jurídico e/ou administrativo.
Além disso, ela leva em conta a participação dos integrantes da sociedade
civil como sendo agentes definidores das políticas públicas.
Tomando de empréstimo as palavras de Boneti (2011, p. 17), na
perspectiva acima apresentada, “é impossível se pensar como comumente
se faz, o Estado e a sociedade civil como duas instituições separadas”. Se
assim fosse, “as políticas se apresentariam como se se constituíssem de
outorgas de direitos atribuídas à sociedade civil pela instituição estatal. Os
direitos sociais e as políticas públicas, porém, se constituem, na verdade,
de construções coletivas e sociais”.
Como resultado de causas estruturais e historicamente construídas ao
longo da vida em sociedade, a complexidade das questões que envolvem
mulheres, em especial as que se encontram em situação de violência
e, as causas que desencadeiam essa própria violência, assim como seu
resultado, devem ser objeto de debates. Mas e principalmente de ações
concretas que devem ser coletivamente pensadas e implementadas.
Entendendo a violência de gênero como sinônimo de violação dos
direitos humanos e com vistas a contribuir de forma mais efetiva para
o respeito à dignidade da pessoa humana e, nesta perspectiva, também
no enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres em suas
mais diversas formas de manifestação, o Estado tem a responsabilidade
de propor um repertório de ações concretas e efetivas. Para que as ações
da política pública para as mulheres sejam estruturadas e implementadas,
é imprescindível o esforço conjunto dos governos federal, estadual e
municipais. É, da mesma forma, fundamental que a sociedade civil, em
especial o movimento de mulheres e os Conselhos Estaduais e Municipais
dos Direitos da Mulher, proponham, conheçam e acompanhem a execução
das ações propostas.
3. A participação social na garantia dos Direitos das Mulheres
A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 passa a
considerar como cidadãos não somente aqueles detentores dos direitos
338
Regina Bergamaschi Bley
civis e políticos, mas todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de
um Estado. E deste Estado recebem uma carga de direitos (civis e políticos;
sociais, econômicos e culturais) e também deveres.
A Constituição Federal institui o Estado Democrático de Direito
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fundada na harmonia
social. Estabelece em seu primeiro artigo, o fortalecimento da Federação,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, declara seus princípios fundamentais e afirma a soberania
popular, além de instituir o princípio da democracia participativa. Com
isso, a sociedade assume um papel de co-responsabilidade na definição
de leis e políticas garantidoras dos seus direitos.
A Carta Magna traz um capítulo específico que trata dos direitos do
homem (Direitos e Garantias Fundamentais) reunidos em 5 grupos:
individuais; coletivos; sociais; de nacionalidade; políticos.Ela passou a
comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com a
concepção contemporânea de cidadania.
Na concepção de Hannah Arendt, a essência dos direitos humanos “é
o direito a ter direitos”, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres
humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que
requer o acesso a um espaço público comum. Nessa perspectiva, “ser
cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante
a lei, é participar no destino da sociedade, votar, ser votado, participar da
riqueza socialmente produzida, ter direito à educação, à saúde, à uma
velhice tranquila” (Hannah Arendt, 2007).
A participação, na visão de Gohn, passou nos anos 1990, a ser vista
sob o prisma de um novo paradigma – a “participação cidadã”, baseada
na universalização dos direitos sociais, na ampliação do conceito de
cidadania e numa nova compreensão sobre o papel e o caráter do Estado.
A partir disso, na análise da autora, a participação passa a ser concebida
como intervenção social periódica e planejada, ao longo de todo o circuito
de formulação e implementação nas estratégias de desenvolvimento,
transformação e mudança social.
Essa participação cidadã, na concepção da autora, funda-se numa
concepção democrática radical que objetiva fortalecer a sociedade civil
no sentido de construir ou apontar caminhos para uma nova realidade
social - sem desigualdades, exclusões de qualquer natureza. Busca-se a
igualdade, mas reconhece-se a diversidade cultural. Há um novo projeto
emancipatório e civilizatório por detrás dessa concepção que tem como
339
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
horizonte a construção de uma sociedade democrática e sem injustiças
sociais.
Nessa perspectiva, com vistas a efetivação da participação social, é
imprescindível que sejam garantidos os espaços de diálogo entre o Estado
e a sociedade civil, tais como os conselhos, as conferências, os comitês, os
canais de denúncias, dentre outros.
Ao fazer referência aos conselhos, Gohn (2002, p. 103) diz que eles
são importantes, pois são fruto de demandas populares e pressões pela
redemocratização do país. Estão inscritos na Constituição de 1988 na
qualidade de “conselhos gestores”, suas estruturas inserem-se em esferas
públicas e, por força de lei, integram-se com órgãos públicos vinculados
ao Poder Executivo. De acordo com a autora, eles diferem dos conselhos
comunitários, populares ou de fóruns civis não-governamentais, porque
estes últimos são compostos exclusivamente de representantes da
sociedade civil, cujo poder reside na força da mobilização e da pressão e
não possuem assento institucional no poder público.
Embora reconheça a incontestável importância dos conselhos no
processo de construção e de efetivação da democracia participativa no
Brasil, conforme já exposto, Gohn (2002,p.25) aponta, em seus estudos, o
que ela chama de “necessidades e lacunas” e destaca os seguintes pontos:
(1) falta uma definição mais precisa das competências e atribuições dos
conselhos gestores; (2) deve-se cuidar da elaboração de instrumentos
jurídicos de apoio às suas deliberações; (3) deve haver uma definição mais
precisa do que é participação.
Para que tenham efetividade é necessário, ainda, na visão da autora, o
aumento efetivo de recursos públicos nos orçamentos; devem ser paritários
não apenas numericamente, mas também nas condições de acesso e
de exercício da participação; deve-se criar algum tipo de pré-requisito
mínimo para que um cidadão se torne conselheiro, principalmente no que
diz respeito ao entendimento do espaço que ele vai atuar, dentre outros
(GOHN, 2002, p. 107).
A autora complementa dizendo que “não se trata, em absoluto, de
integrá-los, incorporá-los à teia burocrática. Elas têm o direito de conhecer
esta teia para poderem intervir de forma a exercitarem uma cidadania
ativa e não regulada, outorgada, passiva”.
3.1. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CEDM
Criado pela Lei 17.504/20134, o Conselho Estadual dos Direitos da
4 Com a publicação desta Lei, foram revogados os Decretos: n° 6.617/1985; n° 700/1995 (nos arts. 9° ao 12°
340
Regina Bergamaschi Bley
Mulher integra a estrutura da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos do Paraná. Tem por finalidade possibilitar a participação
popular, propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção
dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas
de igualdade de gênero, assim como exercer a orientação normativa e
consultiva sobre os direitos das mulheres no Estado do Paraná.
3.1.1. Breve histórico da criação do Conselho Estadual da Mulher no Estado do
Paraná5
O Conselho Estadual da Mulher foi criado por meio do Decreto n°
6617/1985, originalmente com a denominação de Conselho Estadual da
Condição Feminina. Sua finalidade é a de “assegurar melhores condições
à mulher, visando o exercício pleno de seus direitos, sua participação e
integração no desenvolvimento econômico, social, político e cultural”.
Assumiu, por meio do Decreto n° 3.030/1997, a denominação de
Conselho Estadual da Mulher do Paraná vinculado à Secretaria de Estado
da Justiça e da Cidadania – SEJU, passando, porém, a integrar a estrutura
organizacional da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania - nível de
Direção Superior - somente em novembro de 2003, por meio do Decreto
n°. 2.085.
A forma de composição do Conselho e do mandato das Conselheiras,
inicialmente regulamentado no art. 32 do Decreto n° 2085/2003, foi
alterada por meio do Decreto n° 2631/2004, de maneira a permitir uma
recondução desta composição e nomeando efetivamente as componentes
do Conselho Estadual da Mulher do Paraná com mandato de dois (02)
anos.
Em 2010, dois novos Decretos foram instituídos: o de n° 7626/2010,
que atualizou a composição do Conselho e propôs novos requisitos para
a suplência, agora com a participação da sociedade civil, bem como o
mandato do Conselho; e o de n° 8940/2010, que nomeou a presidente do
Conselho Estadual da Mulher.
Conforme observado no documento do Ministério Público, a criação e
regulamentação do Conselho foram sempre fundamentadas em Decretos.
Isso contraria o texto da Constituição do Estado Paraná que, em seu
Capítulo VII, artigo 219, define o então Conselho Estadual da Condição
Feminina como órgão governamental instituído por lei com o objetivo de
do Anexo); n° 3.030/1997; n° 604/1999; o n° 7.626/2010; e os arts. 39° ao 46° do Anexo do Decreto 5.558/2012.
5 Extraído do Documento “Análise da Legislação referente à Instituição do Conselho dos Direitos da Mulher do
Paraná, elaborado pelo Ministério Público do Paraná, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias
de Justiça dos Direitos Constitucionais e apresentado como parte da programação da Conferência Temática, dentro
do painel “CEMP/PR: história, desafios e perspectivas para sua organização e regulamentação”.
341
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
zelar pelos direitos da mulher propondo estudos, projetos, programas
e iniciativas contra a discriminação da mulher, em integração com os
demais órgãos do Governo, com estrutura administrativa e dotação
orçamentária.
Somente em 2013, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher foi,
portanto, regularizado mediante a aprovação da Lei 17.504/13, conforme
já mencionado.
3.1.2. Composição do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher
Compõem o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDM 26
(vinte e seis) membros e respectivos suplentes, dos quais 50% (cinquenta
por cento) são representantes do Poder Público e 50% (cinquenta por
cento) são representantes da sociedade civil organizada. A Presidência do
Conselho tem alternância em sua gestão, sendo um mandato presidido por
uma representante do Poder Público e o outro por uma representante da
sociedade civil organizada.A Presidente, a Vice-Presidente e a SecretáriaGeral do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDM são eleitas
pela maioria qualificada do Conselho.
3.1.3. A 3ª Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres
Com o tema “Mulher, Poder e Autonomia Econômica”, foi realizada
em novembro de 2011 a 3ª Conferência Estadual de Políticas para as
Mulheres do Paraná. Deste evento, participaram aproximadamente
500 pessoas, destas 171 eram delegadas governamentais e 235 eram
delegadas representantes da sociedade civil, além de autoridades,
convidados e observadores. Dos 399 municípios do Estado do Paraná, 250
(63%) estiveram representados na 3a Conferência6.
Na oportunidade foram aprovadas 142 propostas7, divididas em
cinco eixos temáticos: (1) autonomia econômica e igualdade no mundo
do trabalho com inclusão social: direito à terra; direito à moradia;
desenvolvimento sustentável no meio rural, na floresta e na cidade;
6 SECRETARIA DE JUSTIÇA CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Final da 3a Conferência Estadual de
Políticas para as Mulheres. Curitiba:2011
7 Do total de propostas aprovadas na 3ª Conferência, 39 delas são relativas à busca de “autonomia econômica e
igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social: direito à terra, à moradia e ao desenvolvimento sustentável”;
17 são referentes à “educação inclusiva, não sexista, não homofóbica e não lesbofóbica”; 24 propostas referemse à “saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e enfrentamento das diferenças geracionais, sociais e
étnicas/raciais”; 22 propostas tratam da “participação das mulheres e espaços de poder e decisão, considerando
disputa de cargos eletivos e organização de espaços de definição de políticas para as mulheres”; e 40 propostas
referem-se ao “enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo a discriminação de
gênero, etnia/raça, orientação sexual promovida pelo veículos de comunicação e de disseminação da cultura” (
SECRETARIA DE JUSTIÇA CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Final da 3a Conferência Estadual de Políticas
para as Mulheres. Curitiba:2011)
342
Regina Bergamaschi Bley
(2) educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica e não
lesbofóbica; (3) saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos
e enfrentamento das diferenças geracionais, sociais e étnicas/raciais; (4)
participação das mulheres em espaços de poder e decisão, considerando
a disputa de cargos eletivos, organização de espaços de definição de
políticas para as mulheres; (5) enfrentamento de todas as formas de
violência contra as mulheres, incluindo a discriminação de gênero, etnia/
raça, orientação sexual promovida pelos veículos de comunicação e de
disseminação da cultura.
Ao final da Conferência foram eleitas 113 representantes paranaenses,
sendo: 68 representantes da sociedade civil organizada, 34 dos governos
municipais e 11 do governo estadual, que, na condição de delegadas,
participaram da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
realizada em Brasília, em dezembro de 2011.
4. A violência contra as mulheres e as politicas públicas de enfrentamento
A violência contra a mulher constitui-se em um grave problema social
de grandes proporções tanto no Brasil quanto no mundo. Isso se traduz
como uma das principais formas de violação dos direitos humanos da
população feminina, conforme anteriormente apontado.
Esta configuração faz com que a mobilização para dar maior visibilidade
a este problema venha se tornando um compromisso social que os
governos devem, necessariamente, assumir. Para isso, devem tomar
para si a responsabilidade de enfrentar e prevenir a violência contra as
mulheres em suas mais diversas formas de manifestação, razão porque
dedico parte do presente Artigo à esta temática.
No Brasil, o conceito de violência contra a mulher, recepcionado pela
Política Nacional, é aquele estabelecido na Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher8 – realizada
em 1994 na cidade de Belém/PA. Seu teor enfatiza que a violência
contra a mulher deve ser compreendida como “qualquer ato ou conduta
baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
Dentro deste amplo conceito que envolve, inclusive, a diversidade de
situações associadas às variadas formas de violência praticadas contra
as mulheres, a Política Nacional pode ser considerada um importante
avanço, pois, hoje, as ações de enfrentamento a este tipo de violência não
8 Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos estados Americanos, em 06 de junho de 1994, e ratificada
pelo Brasil, em 27 de novembro de 1995. Ver mais em http://www.pge.sp.gov.br/centrodedestudos/biblioteca/
instrumentos/belem.htm
343
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
ficam restritas às áreas de segurança e assistência social, mas abarcam os
diversos setores do Estado que, em ações articuladas, podem combater
com maior rigor a tradicional concepção de desigualdade e discriminação
de gênero e os arcaicos padrões sexistas/machistas que ainda encontram
eco na sociedade brasileira, propagando a violência contra a mulher.
Além da Convenção de Belém do Pará, o Brasil é, também, signatário
de outras convenções e tratados internacionais, tais como: a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/
ONU,1981) e a Convenção Internacional contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas (Convenção de Palermo, 2000).
Na seara da Justiça este compromisso se traduz com a criação de
mecanismos legais que se concretizam em ações de enfrentamento
à violência contra a mulher. Um exemplo disso foi a criação da Lei nº.
11340/2006 – Lei Maria da Penha –, principal instrumento legal de
enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres no Brasil, cujo
objetivo é o de coibir a violência doméstica e familiar e punir o agressor
na forma da lei.
Dada a importância da temática, a Política Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres está contemplada em um capítulo específico
dentro do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Este foi elaborado
a partir das propostas deliberadas na I Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, realizada no ano de 2004.
Para se ter uma ideia da magnitude do problema, o Caderno
Complementar 1: Homicídios de mulheres no Brasil, do Mapa da Violência,
publicado em 20129, - resultado de uma pesquisa que trata da vitimização
feminina por homicídios no Brasil, com base no Sistema de Informações de
Mortalidade – SIM, do Ministério da Saúde -, aponta que, no período de
1980 a 2010, 91.932 mulheres foram vítimas de homicídio. Só no período
de 2000 a 2010, 43.486 mulheres foram assassinadas. Esse estudo aponta
ainda que 40% dos incidentes que originaram as lesões que levaram à
morte da vítima, ocorreram dentro da residência.
No Paraná, a situação não é diferente. O mesmo estudo indica uma
elevada taxa de homicídios, o que o coloca na terceira posição dentre
os 27 estados brasileiros analisados, conforme demonstrado na tabela
abaixo.
Regina Bergamaschi Bley
Taxas de homicídios femininos (em 100 mil mulheres) por UF. Brasil, 2010*
UF
N
Taxa
pos.
UF
n
Taxa
pos.
Espírito Santo
171
9,4
1º
Amapá
16
4,8
15º
Alagoas
134
8,3
2º
Acre
17
4,7
16º
Paraná
338
6,3
3º
Sergipe
45
4,2
17º
Paraíba
117
6,0
4º
Rio Grande Sul
226
4,1
18º
Mato Grosso Sul
74
6,0
5º
Minas Gerais
393
3,9
19º
Pará
225
6,0
6º
Rio Grande Norte
62
3,8
20º
Distrito Federal
78
5,8
7º
Ceará
165
3,7
21º
Bahia
399
5,6
8º
Amazonas
65
3,7
22º
Mato Grosso
81
5,5
9º
Santa Catarina
112
3,6
23º
Pernambuco
249
5,4
10º
Maranhão
114
3,4
24º
Tocantins
35
5,1
11º
Rio de Janeiro
272
3,2
25º
Goiás
157
5,1
12º
São Paulo
663
3,1
26º
Roraima
11
5,0
13º
Piauí
41
2,6
27º
Rondônia
37
4,8
14º
Tabela 1 - Fonte: SIM/SVS/MS * 2010: dados preliminares
O Mapa da Violência também analisou a taxa de homicídios femininos
(em 100 mil mulheres) em municípios com mais de 26 mil mulheres e
identificou que 7 municípios paranaenses estão entre os 60 primeiros
municípios que mais homicídios. São eles: Piraquara, Araucária, Fazenda
Rio Grande, Telêmaco Borba, União da Vitória, Foz do Iguaçu e Curitiba.
4.1. O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher
O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, lançado
em 2007, constituiu-se em uma estratégia de gestão, prevendo, a partir
de ações coordenadas e pactuadas entre os Governos Federal, Estadual
e Municipal, o enfrentamento à violência contra as mulheres, no sentido
de garantir a prevenção e o combate à violência, a assistência e a garantia
de direitos às mulheres. Inicialmente, este Pacto foi estruturado com
base em quatro eixos; em 2011, essa estrutura foi ampliada, passandose a adotar como eixos estruturantes: (1) garantia e aplicabilidade da Lei
Maria da Penha; (2) ampliação e fortalecimento da rede de serviços para
mulheres em situação de violência; (3) garantia da segurança cidadã e
acesso à justiça, com foco na mulher encarcerada; (4) garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos, enfrentamento à exploração sexual e ao tráfico
de mulheres; (5) garantia da autonomia das mulheres em situação de
violência e ampliação de seus direitos.
9 WAISELFISZ, J.Jacobo.Mapa da Violência, Caderno Complementar 1: Homicídio de Mulheres no
Brasil, São Paulo:Instituto Sangari, 2012
344
345
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
O referido Pacto parte do entendimento de que a violência constitui um
fenômeno de caráter multidimensional que requer a implementação de
políticas públicas amplas e articuladas nas mais diferentes esferas da vida
social. Entre elas a educação, o mundo do trabalho, a saúde, a segurança
pública, a assistência social, a justiça. Destaca-se que, no Paraná, esta
articulação tem sido feita entre o Governo do Estado, o Tribunal de Justiça,
por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência
Doméstica e Familiar– CEVID, o Ministério Público, a Defensoria Pública e
os Municípios do Estado, além de representação da sociedade civil, por
meio do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher.
Esta conjunção de esforços deve resultar em ações que, simultaneamente,
desconstruam as desigualdades e combatam as discriminações de gênero,
interfiram nos padrões sexistas/machistas ainda presentes na sociedade
brasileira e promovam o empoderamento das mulheres. O Pacto em tela
compreende, assim, não apenas a dimensão do combate aos efeitos da
violência contra as mulheres, mas também as dimensões da prevenção,
assistência, proteção e garantia dos direitos daquelas em situação de
violência, bem como o combate à impunidade dos agressores.
As ações nele propostas fundamentam-se em três premissas:
(1) a transversalidade de gênero, que visa garantir que as questões de
violência contra a mulher perpassem as diferentes políticas públicas
setoriais;
(2) a intersetorialidade, que compreende duas dimensões: a primeira,
envolvendo o estabelecimento de parcerias entre organismos
setoriais e atores em cada esfera de governo (ministérios, secretarias,
coordenadorias etc.); e a segunda, que requer uma articulação mais
ampla entre políticas nacionais e locais nas diferentes áreas (saúde,
justiça, educação, trabalho, segurança pública etc.);
(3) a capilaridade, que conduz a uma proposta de execução de uma
política nacional de enfrentamento à violência contra a mulher até
os níveis de governo.
O Estado do Paraná assinou, em novembro de 2010, o Termo de
Acordo e Cooperação Federativa para implementação do Pacto Nacional
de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Esse Acordo, publicado
no Diário Oficial da União No 233, Seção 3, de 7 de dezembrode 2010, e
com prazo de vigência de 04 (quatro) anos, tem por objetivo manifestar a
intenção dos partícipes de estabelecer um regime de colaboração mútua
para execução de ações cooperadas e solidárias visando à implementação
do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres.
346
Regina Bergamaschi Bley
Em 26/07/2013, o Governo do Estado do Paraná reiterou o compromisso
de implementar políticas efetivas de enfrentamento à violência contra
as mulheres ao repactuar, por meio de Termo de Adesão, o Acordo de
Cooperação para Implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento
à Violência contra as Mulheres.
Alinhando aspectos técnicos, sociais, culturais, políticos e conceituais
sobre o assunto, orientando procedimentos, construindo protocolos,
normas e fluxos capazes de institucionalizar e garantir a legitimidade aos
serviços prestados e às políticas implementadas, o Acordo se propôs a
organizar as ações no enfrentamento à violência contra mulheres a partir
de quatro áreas de atuação, a saber:
a) consolidação da Política Nacional de Enfrentamento da Violência
contra as Mulheres e Implementação da Lei Maria da Penha;
b) proteção dos direitos sexuais e reprodutivos e implementação do
Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da AIDS;
c) combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; e
d) promoção dos direitos humanos das mulheres em situação de
prisão.
Para isso, criou, por meio do Decreto n° 7554/2013, a Câmara Técnica
Estadual de Gestão e Monitoramento do Pacto, a qualconstitui-se em
espaço de planejamento e execução das ações, dos avanços e dos
desafios para a implementação do Pacto Nacional no âmbito estadual e de
avaliação política do processo. No sentido de dar conta da complexidade
do fenômeno da violência contra a mulher, a Câmara Técnica é marcada
pela intersetorialidade, tanto no que se refere à representação de
diferentes setores, como à definição de ações que incluam os diferentes
atores sociais envolvidos no enfrentamento do problema. Uma das
competências fundamentais desta Câmara é a constituição, fortalecimento
e monitoramento da rede estadual de atendimento às mulheres em
situação de violência.
Em que pese os inegáveis avanços alcançados com a Lei Maria da
Penha, ainda, assim, de acordo com dados da Secretaria de Políticas
para as Mulheres da Presidência da República, o Brasil apresenta,
hoje, 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que o coloca
em 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime. Isso sem contar
os impactos e os custos da violência contra as mulheres em termos de
resultados intangíveis,tais como: a saúde reprodutiva, a vida profissional
e o bem-estar de seus filhos, conforme Estudo divulgado pelo Banco
347
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
Interamericano de Desenvolvimento (BID)10.
Isso nos dá a dimensão do problema e demonstra a necessidade
imediata de ações públicas que contemplem as dimensões da prevenção,
da assistência e do combate à violência praticada contra as mulheres.
5. Considerações finais
O Estado deve ser instrumento a serviço da dignidade humana e não
o contrário. Falamos aqui a partir das análises e do entendimento das
políticas públicas como sendo as ações que nascem do contexto social,
mas que passam pela esfera estatal como uma decisão de intervenção
pública numa determinada realidade social, baseados na análise de
Boneti, conforme já exposto, cabendo ao Estado, portanto, gerenciar as
demandas e os interesses dos diversos agentes.
Por essas razões, o princípio da dignidade da pessoa humana exige
o compromisso do Poder Público e o firme repúdio a toda forma de
tratamento degradante do ser humano, tais como a escravidão, a tortura,
a perseguição ou o mau trato por razões de gênero, etnia, religião,
orientação sexual ou qualquer outra.
Quando observa-se os dados que apontam que somente na última
década foram assassinadas no Brasil mais de 40 mil mulheres; o resultado
do balanço de 2013, da Central de Atendimento à Mulher – Disque
180, serviço prestado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República (SPM-PR)11 -, aponta que os autores das
agressões relatadas são, em 81% dos casos, pessoas que têm ou tiveram
vínculo afetivo com as vítimas; que em 2011, o Sistema de Informações
de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, registrou
que: 37.717 mulheres, entre 20 e 59 anos, foram vítimas de algum tipo
de violência no Brasil; a maioria das agressões ocorre dentro da própria
residência (60,4%); o Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude
no Brasil, revela que mulheres com idade entre 15 e 24 anos foram as
principais vítimas de homicídio na última década, pode-se ter a ideia da
gravidade do problemae os desafios para o seu enfrentamento.
Regina Bergamaschi Bley
Esses desafios devem ser traduzidos em ações, tais como: avanços
legislativos que permitam alterar as relações de trabalho entre homens
e mulheres, já que a dupla jornada de trabalho das mulheres é, sem
dúvida, uma das principais responsáveis pelas condições desiguais
entre mulheres e homens no mundo do trabalho; estabelecimento de
estratégias que objetivem a autonomia das mulheres; a ampliação dos
seus direitos; o acesso à educação, à cultura, à saúde, à segurança e à
justiça; a participação política.
Para finalizar, lembro que Samora Machel, primeiro presidente de
Moçambique Independente e ex-presidente da Frente de Liberdade de
Moçambique, ao falar sobre a necessidade da emancipação da mulher,
durante a realização da Conferência das Mulheres Moçambicanas, em
1973, destacou que “ a emancipação da mulher não é um ato de caridade,
não resulta de uma posição humanitária ou de compaixão. A libertação da
mulher é uma necessidade fundamental da revolução, uma garantia da
sua continuidade, uma condição de seu triunfo”. Destacou, ainda, que “a
revolução tem por objetivo essencial a destruição do sistema de exploração,
a construção de uma nova sociedade libertadora das potencialidades do
ser humano e que o reconcilia com o trabalho, com a natureza”. E que “é
dentro desse contexto que surge a questão da emancipação da mulher”.
Machel era casado com Josina Muthemba, uma guerrilheira do
Destacamento Feminino, criado por ele para envolver as mulheres
moçambicanas na luta pela libertação.
Por óbvio que o presidente Machel se referia, materialmente, à luta
pela independência de Moçambique do domínio português, mas também,
e fundamentalmente, falava da opressão, da exploração, do poder, da
resistência.
Onde há poder, há resistência, por certo diria Foucault. Passados 41
anos e com todas as inegáveis conquistas no que diz respeito à ampliação
dos direitos, tão bravamente, alcançado pelos movimentos feministas,
pelos movimentos de mulheres; pelo reconhecido avanço em direção à
ampliação dos direitos das mulheres consagrados e garantidos na e pela
Constituição Federal de 1988, não se pode deixar de perceber o quanto
o discurso feito por Machel, durante aquela Conferência, ainda é atual.
10 O estudo mostra a violência doméstica afetando importantes resultados na saúde das crianças cujas mães
sofreram violência. Também apresenta evidências que apontam que a educação e a idade das mulheres podem
reduzir o efeito negativo da violência doméstica nos resultados de saúde dos seus filhos, dentre outras coisas.
Demonstra que as próprias vítimas da violência apresentam níveis mais baixos de hemoglobina e uma maior
incidência de anemia. Disponível em inglês no site do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID http://
www.iadb.org/ ou em pdf: Causal Estimates of Intangible Costs of violence against women in Latin America and the
Caribbean, por Jorge M. Agüero (BID, 2013).
11 Disponível em www.spm.gov.br.
348
349
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
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350
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
Giovanna Bonilha MILANO1
José Antônio Peres GEDIEL2
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em
05 de outubro de 1988, encerra o ciclo ditatorial iniciado em 1964
e contém princípios que visam à superação de problemas há muitos
vividos pela sociedade brasileira. Entre eles, pode-se citar, o racismo e a
discriminação racial, principalmente em relação aos negros descendentes
de trabalhadores africanos submetidos ao regime de escravidão.
Esse propósito constitucional se traduz em regras que dão prioridade
aos direitos fundamentais de cunho individual e social previstos nos
incisos do artigo 5º, dispostos no Título II dessa Constituição, todos de
observância obrigatória pelo Estado, pela sociedade e suas instituições, e
pelos indivíduos.
Nessa perspectiva, a Constituição busca enfrentar, com instrumentos
normativos, questões sociais que resultam em opressões específicas e
desigualdades estruturais e que dificultam a efetivação da igualdade
material e a plena fruição dos direitos fundamentais. Assim, a proibição
e a busca de superação de qualquer forma de preconceito - seja ele de
origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação encontra-se entre os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil (art. 3º, IV), e o racismo é previsto como crime inafiançável (art. 5º,
XLII).
A Constituição de 1988 provoca, nessa matéria, uma verdadeira ruptura
com as Constituições anteriores ao expressar com clareza a existência
dessas questões, ao combater o racismo e a discriminação e ao articular
a igualdade racial com os demais objetivos da República com os direitos
fundamentais individuais e coletivos, econômicos sociais e culturais.
O caráter compromissório da Constituição já se fazia antever nas
propostas retiradas dos movimentos sociais, no que toca à igualdade
racial, elaboradas pelos movimentos negros, conforme registros da
1 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Professora de Direito Civil da Universidade
Positivo.
2 Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná.
351
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
Assembleia Constituinte:
1-Insere, onde couber, no Capítulo I (Dos Direitos Individuais), do Título II
(Dos Direitos e Liberdades Fundamentais), os seguintes dispositivos:
Art. Todos, homens e mulheres são iguais perante a lei que punirá
como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos
humanos estabelecidos nesta Constituição.
Parágrafo Único — É considerado forma de discriminação subestimar,
estereotipar ou degradar grupos étnicos raciais ou de cor, ou pessoas a
eles pertencentes por palavras, imagens e representações através de
qualquer meio de comunicação.
2- Acrescente, onde couber, no Título X (Disposições Transitórias), o
seguinte artigo:
Art. Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas
comunidades negras remanescentes de Quilombos, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem como
documentos referentes à história dos Quilombos no Brasil.3
Para a Constituição de 1988, a concretização da igualdade racial tem
como ponto de partida a proibição de todas as formas de preconceito
e discriminação, mas exige o compromisso de, por parte do Estado e da
sociedade, ampliar as políticas públicas e as estratégias,para permitir
o acesso diferenciado dos negros à cidadania plena e aos direitos
fundamentais, como saúde, educação, trabalho, moradia e terra.
Em virtude da indissociabilidade e interpenetração dos conteúdos de
todas as dimensões dos direitos fundamentais, a efetivação da igualdade
racial requer, também, o acesso a bens de cunho imaterial e material. Isso
se traduz, no caso dos quilombolas -portadores de uma identidade não
somente cultural mas também econômica e socioambiental - no direito
ao acesso e manutenção da terra e de seus modos de vida.
Débora Duprat afirma o caráter diferenciado da Constituição brasileira
sobre esse tema:
A Constituição brasileira, na linha do direito internacional, rompe a
presunção positivista de um mundo preexistente e fixo, assumindo que
fazer, criar e viver se dão de formas diferentes em cada cultura, e que a
compreensão do mundo depende da linguagem do grupo. Nesse cenário,
a Constituição reconhece, expressamente, direitos específicos a índios e
quilombolas, em especial seus territórios, mas não só a eles. Também são
destinatários de direitos específicos os demais grupos que tenham formas
próprias de expressão de viver, criar e fazer.4
Nessa mesma linha de entendimento, situa-se a reflexão de Flávia
Piovesan, ao explicitar a mudança operada na Constituição Federal de
3 BRASIL: Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 1987. Disponível em www.senado.gov.br. p. 2865.
4 DUPRAT, Deborah. O Direito sob o Marco da Plurietnicidade/Multiculturalidade. In: RAMOS, Alcida Rita (org.)
Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 232-233.
352
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
1988, com relação aos direitos fundamentais e aos diferentes sujeitos
destinatários desses direitos, na sociedade contemporânea:
Com efeito, torna-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica,
geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito,
que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica,
determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos,
exigem uma resposta específica e diferenciada. Os povos indígenas, as
mulheres, as crianças, as populações afrodescendentes, os migrantes,
as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem
ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao
lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental,
o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e a à diversidade, o
que lhes assegura um tratamento especial. [...] À luz de uma interpretação
evolutiva e dinâmica, a Corte tem reconhecido aos povos indígenas e
às comunidades integradas por descendentes de escravos negros (em
tudo similares aos remanescentes de quilombo brasileiros) o direito à
propriedade coletiva da terra, como uma tradição comunitária e como um
direito fundamental à sua cultura, à sua vida espiritual, à sua integridade e
à sua sobrevivência econômica. Tem ainda realçado que para estes povos a
relação com a terra não é somente uma questão de possessão e produção,
mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente,
inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações
futuras.5
Sem essa compreensão do caráter compromissório e finalístíco
da Constituição, a igualdade racial, a identidade cultural dos sujeitos
discriminados e o direito de acesso aos bens socialmente produzidos,
ficam reduzidos ou são ineficazes. No que se refere especificamente às
terras quilombolas, o texto sofreu inúmeras modificações e foi aprovado
com um conteúdo que dificulta sua conexão com os direitos fundamentais
e sugere interpretações de cunho meramente histórico ou patrimonial,
como se lê no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos6.
Além desse dispositivo, os aspectos culturais das comunidades
quilombolas são tratados no artigo 216, § 5º, Seção II, Capítulo III, Título
VIII, que se refere ao tombamento dos documentos referentes à história
5 BRASIL. Procuradoria Geral da República. Do Parecer na ADI nº 3.239 da lavra do Procurador Regional da República
Daniel Sarmento e da Professora Flávia Piovesan, no intuito de contribuir para o julgamento do tema veiculado na
mencionada ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/
consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2227157.
6 Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. BRASIL, Constituição da República
Federativa de 1988 — Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 68. É possível citar alguns outros países
nos quais também houve o reconhecimento de direitos territoriais a estes sujeitos, com destaque para a Colômbia
(Constituição Política de 1991, Art. 55); Nicarágua (Lei n.º445/2002) e Equador (Constituição Política de 1998, Art.
83).
353
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
dos quilombos no Brasil7.
Conforme apontado anteriormente,o tratamento da matéria referente
às terras quilombolas destoa do tratamento adotado em relação aos
fundamentos da República e aos direitos fundamentais, como expõe Ilka
Boaventura Leite,ao criticar a expressão “remanescentes das comunidades
de quilombos”.Segundo a autora,esta terminologia reduz o alcance de
aplicação do texto constitucional, tornando-o restritivo e impedindo-o de
servir para reparar o processo de cidadania incompleto, que incluiria uma
diversidade de situações relacionadas aos negros, para restringir-se a uma
concepção de cultura imobilizada, estanque e excessivamente vinculada a
um fenômeno pretérito8.
A superação da visão imobilista, falsamente comprometida com a
recuperação do caráter histórico das comunidades quilombolas, requer
a compreensão da permanência dessas comunidades e sua inserção
na sociedade brasileira como destinatárias dos direitos fundamentais e
humanos, tal qual aponta Alfredo Wagner:
O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento
da ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações
e práticas dos próprios agentes sociais que viveram e construíram tais
situações em meio a antagonismos e violências extremas. A meu ver, o
ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios
agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas com
os grupos sociais e as agências com que interagem. Esse dado de como
os grupos sociais chamados ‘remanescentes’ se definem é elementar,
porquanto foi por essa via que se construiu e afirmou a identidade coletiva.9
Além das controvérsias e ambiguidades intrínsecas ao processo de
elaboração constituinte que marcaram a aprovação do artigo 68 do ADCT,
o texto final imprimiu caráter normativo a um conjunto de demandas e
tem enfrentado várias espécies de dificuldades em sua implementação:
7 Art 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira nos quais se incluem:
I- as formas de expressão; II- modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV — as obras, objetos,documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico
e científico. (...)
§5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos. (...) BRASIL, Constituição da República Federativa de 1988 —Art. 216.
8 LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. p. Artigo publicado no sítio
eletrônico do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas — NUER/UFSC. Disponível no endereço
http://www.nuer.ufsc.br/artigos/osquilombos.htm, Acesso em 07/10/2010.
9 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.).
Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 67-68.
354
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
Mesmo levando em consideração que esse poder está efetivamente
expresso em uma forma legal, ou nessa linguagem de poder, existem
enormes dificuldades na implementação de arranjos legais dessa ordem,
especialmente nas sociedades autoritárias e naquelas que se fundam
no colonialismo e no escravismo, como é o caso do Brasil. Nos últimos
quinze anos, desde a promulgação da Constituição Federal, ações isoladas
e relativamente dispersas prevaleceram, com foco em fatores étnicos,
mas sob a égide de outras políticas governamentais, tais como as políticas
agrárias e as políticas de educação, saúde, moradia e segurança alimentar.10
Alfredo Wagner também indica outros obstáculos ao reconhecimento
da titularidade das terras aos quilombolas e a outros povos e comunidades,
como a fragmentação e inadequação, ou o caráter muito recente das
estruturas administrativas, obstáculos que aproximam, em certa medida,
a situação pós Constituição de 1988 com o período anterior, no que diz
respeito à titulação de terras tradicionalmente ocupadas, especialmente
as terras indígenas.
Além de todos esses empecilhos à aplicação do artigo 68 do ADCT,
somente em 1995 foi aprovado o primeiro ato administrativo normativo
destinado ao tratamento da questão territorial quilombola: a Portaria
n.º25 editada pela Fundação Cultural Palmares11, que contém normas
procedimentais para demarcação e titulação das áreas de terras ocupadas
por comunidades quilombolas12.
Nesse mesmo ano, a Portaria n. º307/9513 foi editada pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA -, estabelecendo os
procedimentos de medição, demarcação e titulação das comunidades
quilombolas localizadas em áreas públicas federais, além dispor sobre a
criação do Projeto Especial Quilombola. Essa Portaria foi revogada pela
décima primeira edição da Medida Provisória n.º 1911/99,que delegou
ao Ministério da Cultura a competência para realizar as titulações dos
quilombos.
Essas alterações de atribuição de competência administrativa nessa
matéria comprovam as observações de Alfredo Wagner, no que tange
a atuação do Estado brasileiro no reconhecimento e regularização das
10. Even taking into account that power is effectively expressed under a legal form or that language of power
is the law, there are enormous difficulties in the implementation of legal arrangements of this order, especially in
authoritarian societies and those with colonial and slaveholding foundations, such as in the case of Brazil. Over the
past fifteen year, since the promulgation of the Federal Constitution, isolated and relatively dispersed actions have
prevailed, which focus on ethnic factors but under the aegis of other government policies, such as agrarian policies
and the policies of education, health, housing, and food security. Texto traduzido pelos autores. P. 34.
11 Refere-se à Portaria n.º 25, datada de 15 de agosto de 1995 e editada pela Fundação Cultural Palmares
vinculada ao Ministério da Cultura.
12 Para o aprofundamento sobre o processo de consolidação do marco jurídico de reconhecimento dos territórios
quilombolas, consultar: MILANO, Giovanna Bonilha. Território, Cultura e Propriedade Privada: direitos territoriais
quilombolas no Brasil. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná,
2011.
13 Corresponde à Portaria n.º307 de 22 de novembro de 1995, editada pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária — INCRA.
355
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
terras quilombolas.
Em 2000, doze anos após a promulgação da Constituição Federal, a
Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, realizou
inúmeras titulações de territórios quilombolas,mas apenas em áreas não
tituladas classificadas como terras devolutas da União ou dos Estados.
Sem, contudo, realizar qualquer desapropriação de áreas privadas,
anulação de títulos, ou desocupação nas áreas afetadas. Conforme
avaliação apresentada pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, o resultado
dessas medidas foi o acirramento dos conflitos em quase todas as
comunidades “beneficiadas”, ensejando posterior intervenção do INCRA
para o cumprimento das desapropriações e assentamentos devidos14.
Com a edição do Decreto Federal n.º 3.912/2001, foi ratificada a
competência da Fundação Cultural Palmares para atuar em todo o
processo administrativo de identificação e titulação dos remanescentes
das comunidades de quilombos, e se estabeleceram restrições às hipóteses
de aplicação do artigo constitucional.Segundo o artigo 1º, Parágrafo
único, do referido Decreto “só pode ser reconhecida a propriedade sobre
as terras que: I — eram ocupadas por quilombos em 1888, e II — estavam
ocupadas por remanescentes de comunidades dos quilombos em 5 de
outubro de 1988”15.
Manifestamente inconstitucional, o marco regulatório proposto pelo
Governo Federal acabava por impor às comunidades remanescentes de
quilombos critérios de temporalidade absolutamente incongruentes com
as dinâmicas de ocupação territorial experimentadas, historicamente,
por estes sujeitos. Isto porque adotou, como exigências normativas para
comprovação da ocupação, duas datas arbitrárias, correspondentes
a mudanças jurídicas do Estado brasileiro, a abolição da escravidão e a
promulgação constitucional.
Esse mesmo argumento, absolutamente inconstitucional, que não
encontra qualquer ponto de referência no artigo 68 do ADCT/CF, foi
estranhamente retomado no voto do Ministro Antonio Cezar Peluso do
Supremo Tribunal Federal16.
14 Os dados disponíveis no sítio eletrônico da Comissão Pró-Índio de São Paulo informam que dez das doze
comunidades “beneficiadas” nesse “pacote” de titulações, realizado pela Fundação Cultural Palmares, no ano
2000, ainda sofrem com conflitos de terras e não têm acesso livre aos recursos naturais dos territórios que ocupam.
Disponível em http://www.cpisp.org.br/htm/leis/legislacao_federal.aspx?LinkID=54 Acesso em 25/10/2010.
15 BRASIL. Decreto n.º3.921, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta as disposições relativas ao processo
administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas.
16 BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239. Relator Ministro Cezar
Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&pro
cesso=3239.
356
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
Em sentido contrário, Marcelo Beckhausen argumenta que a expressão
“estejam ocupando”, utilizada pelo artigo 68 do ADCT/CF, não excluiu, sob
nenhuma interpretação, àquelas comunidades que foram submetidas a
um processo de espoliação de suas terras e compulsoriamente tiveram
de efetuar a desocupação desses espaços, porque tal direito quilombola
diz respeito justamente a processos de ocupação territorial constituídos
a partir da resistência coletiva e da construção identitária moldada nos
conflitos travados historicamente e que encontram na luta pela terra um
fator relevante de disputa17. Assim, a comprovação de permanência nas
terras se mostra inconstitucional ao restringir direitos constitucionalmente
assegurados.
Walter Claudius Rothenburg ataca o conteúdo do Decreto, nos seguintes
termos:
O equívoco no decreto aqui é evidente e não consegue salvar-se nem com
a melhor das boas vontades. Do ponto de vista histórico, sustenta-se a
formação de quilombos ainda após a abolição formal da escravatura, por
(agora) ex-escravos (e talvez não apenas por estes) que não tinham para
onde ir ou não desejavam ir para outro lugar. Então as terras em questão
podem ter sido ocupadas por quilombolas depois de 1888.
Ademais, várias razões poderiam levar a que terras de quilombos se
encontrassem, em 1888, ocasionalmente desocupadas. Imagine-se um
quilombo anterior a 1888 que, por violência de latifundiários da região,
houvesse sido desocupado temporariamente em 1888 mas voltasse a
ser ocupada logo em seguida (digamos, em 1889), quando a violência
cessasse. Então as terras em questão podem não ter estado ocupadas
por quilombolas em 188818.
Como consequência do tratamento jurídico restritivo dispensado
aos territórios quilombolas, por meio do Decreto 3.912/2001, deu-se a
estagnação completa no processo de regularização fundiária das áreas,
fato perceptível pela ausência absoluta de titulações no período de
vigência do instrumento. Tal situação prolongou-se até o ano de 2003,
com a inauguração de um novo marco jurídico, o Decreto Federal n.º
4.887/03.
Destaque-se que a eliminação das exigências temporais para ocupação
das terras e, sobretudo, a conceituação dos sujeitos quilombolas,
destinatários da norma, em consonância com as advertências
17 BECKHAUSEN, Marcelo A inconstitucionalidade do Decreto 3912, de 10 de setembro de 2001. p.22-23 In
DUPRAT, Deborah. (Org.) Pareceres Jurídicos — Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais. Manaus: UEA,
2007.
18 ROTHENBURG, Walter Claudius. O processo administrativo relativo às terras de quilombos: análise do Decreto
n° 3.912, de 10 de setembro de 2001. In Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão pró
Índio de São Paulo, 2001. p. 18-19.
357
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
antropológicas, com os critérios dispostos na Convenção n. º169 da
OIT, alinha o marco normativo brasileiro e com a dinâmica da realidade
concreta, que sustenta a aplicação do artigo constitucional.
Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos,
para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios
de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes
das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição
da própria comunidade19.
As questões dos sujeitos beneficiários das políticas públicas de
afirmação de direitos territoriais são reflexo e se refletem sobre a
sociedade e as instituições estatais. Mas podem ser superadas se o Estado
brasileiro, em especial o Poder Judiciário, levar a sério as disposições
contidas tanto no Decreto 4.887/2003, quanto na Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho - OIT20 - aprovada, em 1989, que
trata de diversos aspectos dos direitos dos povos, como ressalta Alfredo
Wagner:
O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma
ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios
sujeitos se autor-representam e quais os critérios políticos organizativos
que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa
identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles
construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não
necessariamente aqueles que são produtos de classificações externas,
muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da atividade
coletiva e das categorias sobre as quais ela se apoia.”21
Destaque-se que essa Convenção foi incorporada ao ordenamento
jurídico brasileiro no ano de 2004 e deslocou o eixo da discussão, ao utilizar
a autoidentidade dos povos como critério fundamental na delimitação da
19 BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
20 Em que pese a inquestionável relevância desse dispositivo internacional para o tratamento jurídico relativo
aos povos indígenas e tribais, não é possível deixar de pontuar o fato da iniciativa de sua edição estar vinculada à
um organismo internacional que se ocupa originalmente com as relações de trabalho na sociedade industrial.Criada
em 1919, a Organização Internacional do Trabalho corresponde a uma Agência do Sistema das Nações Unidas e
possui como objetivos estratégicos: “formular normas internacionais do trabalho; promover o desenvolvimento e
a interação das organizações de empregadores e de trabalhadores e prestar cooperação técnica principalmente
nas áreas de formação e reabilitação profissional; políticas e programas de emprego e empreendedorismo;
administração do trabalho; direito e relações do trabalho; condições de trabalho; desenvolvimento empresarial;
cooperativas; previdência social; estatísticas e segurança e saúde ocupacional”.Cf. dados do sítio oficial da OIT no
Brasil. Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/inst/fund/mandato/index.php Acesso em 22/10/2010.
21 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.).
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358
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
inclusão ou exclusão dos grupos, em relação à determinada classificação
para fins de políticas públicas que favoreçam a efetivação de direitos
fundamentais. Isso significa, em outras palavras, que “nenhum estado ou
grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou
tribal que como tal ele próprio se reconheça”22.
A validade jurídica atribuída ao autorreconhecimento, pela Convenção
169 da OIT, altera o norte não só do direito de acesso à terra de povos,
comunidades e grupos sociais, mas toda a condução das políticas de
igualdade racial e de afirmação de pluralismo.
Dalmo Dallari aponta a necessidade de se integrar, efetivamente,
a Convenção nº 169 da OIT ao direito brasileiro e indica elementos
doutrinários para sua integração:
Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva
brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos “cujas
condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores
da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos. [...] Além
dessa base legal para o decreto regulamentador, o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra a legislação
brasileira desde 1992, determina que os Estados signatários, entre os
quais o Brasil, adotem todas as providências necessárias para a eficácia
daqueles direitos. Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem
jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos
dos povos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de
outros setores da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos. E
foi justamente para a garantia efetiva dos direitos individuais e sociais dos
quilombolas que o governo federal editou o decreto n 4887, de 2003, que
deve ter aplicação imediata, garantindo-se a supremacia e a eficácia da
Constituição.23
Apesar da fragmentação e imobilismo administrativo assinalados por
Alfredo Wagner, o Governo Federal altera o quadro normativo com a
edição do Decreto 4.887, em 2003, antevendo a ratificação da Convenção
nº 169 da OIT em 2004, e estabelecendo o retorno da competência para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras de remanescentes de comunidades de quilombos ao Ministério
do Desenvolvimento Agrário — por meio do INCRA. Caberá ao Ministério
da Cultura e à Fundação Cultural Palmares acompanhar os processos e
22 Convenção n.º169 sobre os povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à OIT
sobre povos indígenas e tribais. 2ª ed. Brasília: OIT, 2005. p. 11. A Convenção refere-se explicitamente ao critério do
autorreconhecimento em seu artigo 1º: “2. A autoidentificação como indígenas ou tribais deverá ser considerada
como critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.”
23 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Orgs); LEITE, Eliane Cantarino O ‘Dwuer. Territórios quilombolas e
conflitos. Cadernos de debates Nova Cartografia Social, vol. 01, nº 02. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia / UEA Edições, 2010. p. 313-314.
359
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
intervir, nos casos em que houver contestação ao procedimento, por meio
de subsídio técnico, resultou em um avanço favorável aos direitos das
comunidades quilombolas24.
No que diz respeito à conceituação das terras que devem ser tituladas,
abrangeu-se, corretamente, não apenas o local de moradia dos membros
da comunidade, mas todo o espaço utilizado para a “garantia de sua
reprodução física, social, econômica e cultural”, determinando-se a
demarcação, a partir dos critérios de territorialidade indicados pelos
próprios sujeitos quilombolas25.
Em relação a forma de titulação da terra em favor dessas comunidades,
determina-se a emissão de títulos coletivos, pró-indivisos, gravados das
cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, em
nome das comunidades que deverão estar devidamente representadas
por uma associação.
Diante da possibilidade da alteração de uma interpretação favorável às
comunidades quilombolas, interpretação essa baseada nos instrumentos
normativos recém reeditados e aprovados, novas investidas foram
feitas para desconstruir qualquer avanço nessa matéria. Sendo a mais
representativa, o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade
nº 3.239, pelo Partido da Frente Liberal (PFL)26, no dia 25 de agosto de
2004, em face do decreto nº 4.887/03, com pedido de concessão de
medida cautelar para suspensão imediata da eficácia do instrumento, sob
a alegação de existência de risco de dano iminente à segurança jurídica.
Dentre os argumentos apresentados pelo autor, merecem destaque,
neste contexto, àqueles que ilustram mais significativamente o
campo de disputas e interesses que orbitam em torno da categoria
política “quilombo”, quais sejam: a impossibilidade de realização de
desapropriações de terras particulares pelo INCRA; a ausência de
legitimidade na utilização do critério de autoatribuição para definição
dos sujeitos destinatários da norma; o descabimento da caracterização
das terras quilombolas de forma demasiadamente ampla; a inidoneidade
24 Art. 3º: Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (...) Art. 5º: Compete ao Ministério da Cultura, por meio da
Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações
de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades
dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de
identificação e reconhecimento previsto neste Decreto. BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003.
25 Art. 2º, §3º: Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à
comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. BRASIL. Decreto
nº4887, de 20 de novembro de 2003.
26 No ano de 2007, o Partido da Frente Liberal (PFL) alterou a denominação de sua legenda para Democratas
(DEM).
360
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
da adoção dos parâmetros de territorialidade a serem definidos pelos
próprios quilombolas27.
As alegações do Partido da Frente Liberal atacam os dois pilares centrais
que fundamentam constitucionalmente a garantia dos direitos territoriais
das comunidades quilombolas, os quais se referem ao reconhecimento
dos sujeitos destinatários da norma, pela autoidentificação e à garantia
da propriedade do território que ocupam, como condição sine qua non de
sobrevivência de toda a comunidade.
Essa argumentação do autor, além de sugerir que os sujeitos de
direito legitimados constitucionalmente corresponderiam apenas aos
“remanescentes” e não aos “descendentes” de quilombos, sustenta que o
objeto da titulação deve ser “a área cuja propriedade deve ser reconhecida
constitui apenas e tão-somente o território em que, comprovadamente,
durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formaram”28.
A partir de 2007, outras ações contestatórias promovidas por setores
conservadores tornaram-se ainda mais acirradas, diversificando seus
fundamentos, ao apontar a titulação dos territórios quilombolas como
ameaça à salvaguarda da segurança jurídica e ao direito de propriedade.
Ressalte-se que, no Estado do Paraná, a Ação Ordinária nº
2008.70.00.000158-3, promovida em 07/01/2008, volta-se contra o
processo de desapropriação da área conhecida como Invernada Paiol
de Telha ou Imóvel Fundão, situado no município de Reserva do Iguaçu,
comarca de Pinhão, hoje destinado à agricultura pela Cooperativa Agrária
Agroindustrial29.
Parte desse imóvel foi objeto de doação a ex-escravos libertos, pela Sra.
Balbina Ferreira de Siqueira, no ano de 1860. A partilha em que constava
essa doação não foi regularizada pelos donatários nos moldes exigidos
pela Lei de Terras de 1850. Em 1875, Pedro Lustosa Siqueira incorpora,
27 Além destes pontos estruturais, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239-9 questiona também a
legitimidade do Decreto n.º4.887/2003, na medida em que tal matéria constitucional só poderia ser regulamentada
por instrumento legislativo e não por decreto presidencial. Diz o texto da ADIN: “(...) O texto constitucional dá
aos decretos e regulamentos, segundo o disposto no art. 84, IV, da Constituição a função de fiel executar as leis,
conferindo-lhe, portanto, natureza de instrumento normativo secundário, que tem sua validade dependente da
lei formal. Ao dispensar a mediação do instrumento legislativo e dispor ex novo, o ato normativo editado pelo
Presidente da República invade esfera reservada à lei, incorrendo em manifesta inconstitucionalidade.” Disponível
em
http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&processo=3239.
Acesso em 28/10/2010. Não assiste razão a tais alegações, todavia, uma vez que o artigo 68 do ADCT versa
sobre direitos fundamentais e consequentemente é dotado de autoaplicabilidade, inexistindo a necessidade de
mediação legislativa para sua aplicação. O Decreto n.º4.887/2003 cumpre, nessa perspectiva, apenas a função de
operacionalizar e estabelecer as regras e procedimentos para sua concretização pelo Poder Público.
28 Cf. Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239-9, ajuizada em 25 de agosto de 2004.
p. 11 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&proc
esso=3239 Acesso em 20/10/2009. Tal ADIN permanece em trâmite junto ao Supremo Tribunal Federal – STF –
aguardando data para julgamento.
29 ITCG. Instituto de Terras, Cartografia e Geociências. Terra e Cidadania: Terras e territórios quilombolas. Grupo
de trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005-2008. Curitiba: ITCG, 2008. p.92-93.
361
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
a título de usucapião, 5.712 hectares, dos 8.700 hectares originais, mas
essa titulação foi contestada judicialmente, na década de 1940, pelos
herdeiros dos donatários que remanesceram na área. Na década de 1960,
esses remanescentes começaram a ser expulsos por grileiros, jagunços e
pistoleiros, com aval de autoridades locais.
Na década de 1970, alguns moradores ainda resistiam na área, mas
o Estado do Paraná desapropriou 10 (dez) mil hectares de terra para a
instalação de uma colônia de imigrantes, que se organizou sob forma
da atual Cooperativa Agrária Agroindustrial, acirrando o conflito. Nesse
mesmo período, ocorreram novas expulsões e violências contra os
descendentes dos donatários.
Na década de 1990, alguns dos membros da comunidade Paiol
de Telha, que se encontravam acampados próximo ao imóvel, foram
deslocadas para o assentamento Vila Socorro. Outra parte permaneceu
acampada próximo ao imóvel, e os dois outros grupos pertencentes a essa
comunidade se estabeleceram nas periferias das cidades de Guarapuava
e Pinhão.
A imprecisão dos dados da área objeto da doação e da ocupação das
famílias descendentes dos donatários gerou, ao longo do século XIX,
conflitos fundiários entre descendentes da família da doadora e dos
donatários. No início do século XX, esse conflito aumentou pela pretensão
de fazendeiros ocuparem parte da área. E, finalmente, na segunda
metade do século XX, o conflito incluiu a presença do Estado com projetos
de colonização e desenvolvimento, que não levaram em consideração
a ocupação das famílias descendentes dos ex-escravos libertos que lá
viviam.
No Paraná, os autores da Ação Ordinária 2008.70.00.00158-3
também promoveram a arguição de inconstitucionalidade nº 500506752.2013.404.0000/TRF 4ª Região, em 14/03/2013, com caráter prejudicial
de mérito, questionando a constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003.
Em 28/11/2013, foram realizados os julgamentos da presente arguição,
conduzidos pela Relatora Des. Federal Marga Inge Barth Tessler, havendo
pedido de vista. O julgamento retomado em 19/12/2013 resultou na
rejeição da presente arguição, por maioria de votos.
Esse resultado parcial favorável à constitucionalidade do Decreto
não afetou o curso da ação direta de inconstitucionalidade, perante o
Supremo Tribunal Federal, que permanece aguardando o prosseguimento
do julgamento.
362
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
A baixa prioridade das titulações quilombolas na agenda governamental
também pode ser atestada na avaliação da execução orçamentária para
esta questão. Segundo dados apresentados pelo Instituto de Estudos
Socioeconômicos — INESC —, o maior programa destinado a esse setor
da população corresponde ao “Programa Brasil Quilombola” (Decreto
n.º 6.261/2007), que prevê a Agenda Social Quilombola (ASQ) e envolve
uma série de atores institucionais para sua execução, como a Casa Civil
da Presidência da República (CC/PR); o Ministério da Cultura (MinC);
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); o
Ministério de Minas e Energia (MME); o Ministério da Integração Nacional
(MIN); o Ministério dos Transportes (MT); e Ministério das Cidades (MCID).
A fragmentação administrativa e o desconhecimento da matéria pelos
órgãos da Administração Pública, antes apontada por Alfredo Wagner,
é potencializada baixa realização orçamentária na implementação de
políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas, previstas no
Programa Brasil Quilombola.Nos anos de 2008 e 2009, o valor líquido
utilizado não ultrapassou a marca dos 24% em relação ao orçamento
autorizado30. Tendência que permeia o conjunto do orçamento de políticas
para Igualdade Racial e combate ao racismo, previstos para o quadriênio
2008-201131.
Essa discrepância entre o recurso disponível para realização das
políticas e sua utilização real torna-se mais alarmante na avaliação dos
resultados obtidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
que lograram aplicar apenas 13,26% do recurso autorizado, em 2008, e
15,02%, no ano de 200932.
Nesse quadro de mau aproveitamento orçamentário, o fator de
maior peso tem sido a não utilização adequada da rubrica destinada
à “indenização aos ocupantes de terras demarcadas e tituladas aos
remanescentes de quilombos”, integralmente devolvida ao Tesouro
Nacional no ano de 2008, totalizando R$ 33, 672 milhões, e aproveitada
em 6,52% de sua disponibilidade, em 2009. Também os gastos destinados
ao “reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de remanescentes
de quilombos” obtiveram índices de aproveitamento de 55,73%, em 2008
30 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento
Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/
publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010.
31 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º179. Novembro de 2010. “O
orçamento das políticas federais de promoção da igualdade racial e combate ao racismo: baixa prioridade e
execução ”. p. 4-5. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20
-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 08/06/2014.
32 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento
Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/
publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010.
363
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
— de um montante de R$ 7,4 milhões e 33,46% dos R$10, 287 milhões
aprovados para o exercício de 200933.
Por certo, esses números apresentados não correspondem à ausência
de demandas para titulação de áreas quilombolas, as quais totalizam
inúmeros processos administrativos em trâmite nas Superintendências
Regionais do INCRA de todo o país34. No período compreendido entre
janeiro de 2008 e junho de 2010, registraram-se 24 titulações de territórios
quilombolas, compreendendo 40.815,7673 hectares e abrangendo
um total de 1.591 famílias beneficiadas. Nesse conjunto de titulações,
todavia, apenas duas contaram com a expedição dos títulos pelo INCRA,
sendo as vinte e duas titulações restantes realizadas pelos institutos de
terras estaduais35.
A sistematização dessas informações nos permite constatar que,
desde o início, as titulações quilombolas estão circunscritas a opções
políticas do Governo Federal, que privilegiam a regularização de áreas
compreendidas em “terras devolutas”; “públicas estaduais” e “terras sem
grande dificuldade de aquisição”, não enfrentando, com isso, a reação dos
proprietários rurais e do agronegócio, tornando pouco a pouco ineficaz o
instrumento da desapropriação.
Essas constatações são comprovadas no exame do caso da comunidade
Paiol de Telha, no Estado do Paraná, no qual seria necessário realizar
desapropriação por se tratar de terra titulada pelo próprio Estado. Além
disso, nenhuma outra área foi desapropriada no Estado do Paraná, a
despeito da presença expressiva dessas comunidades em quase todas as
regiões do Estado, com maior concentração na região do Vale do Ribeira e
Centro-Sul, como se vê no quadro abaixo:
COMUNIDADES TRADICIONAIS NEGRAS E REMANESCENTES QUILOMBOLAS NO PARANÁ
*CRQ´s e CNT´s
Cidade
Comarca
**R/U
Famílias
Habit.
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
15
66
CRQ SETE BARRAS
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
18
73
CRQ CÓRREGO DAS MOÇAS:
Sede
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
14
49
CRQ CÓRREGO DAS MOÇAS:
Córrego Malaquias
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
6
19
CRQ SÃO JOÃO Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
17
62
CRQ CÓRREGO DO FRANCO
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
70
124
CRQ ESTREITINHO
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
12
33
CRQ TRÊS CANAIS
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
4
13
CNT DO BAIRRO DOS ROQUE
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
8
40
CNT DE TATUPEVA
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
6
23
CRQ DO VARZEÃO
Doutor Ulysses
Cerro Azul
R
8
30
CNT DE QUEIMADINHOS
Doutor Ulysses
Cerro Azul
R
5
25
CRQ DE AREIA BRANCA
Bocaiuva do Sul Bocaiuva Sul
R
16
30
CRQ PALMITAL DOS PRETOS
Campo Largo
Campo Largo
R
27
108
CNT SETE SALTOS
Campo Largo
Campo Largo
R
10
53
CRQ DA RESTINGA
Lapa
Lapa
R
37
271
CRQ DO FEIXO:
Vila dos Pedroso
Lapa
Lapa
R
50
203
CRQ DO FEIXO:
Maria Antonia
Lapa
Lapa
R
32
127
CRQ DA VILA ESPERANÇA
Lapa
Lapa
R
7
74
CRQ RIO VERDE
Quaraqueçaba
Antonina
R
22
80
CRQ DE BATUVA
Quaraqueçaba
Antonina
R
24
94
CRQ DA SERRA DO APON:
Faxinal do São João
Castro
Castro
R
10
31
CRQ DA SERRA DO APON:
Lagoa dos Alves
Castro
Castro
R
6
17
CRQ DA SERRA DO APON:
Serra do Apon
Castro
Castro
R
20
84
CRQ JOÃO SURÁ: Sede
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
24
88
CRQ JOÃO SURÁ:
Poço Grande
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
5
26
CRQ DA SERRA DO APON:
Paiol do Meio
Castro
Castro
R
3
12
CRQ JOÃO SURÁ: Guaracuí
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
12
35
Castro
Castro
R
7
23
CRQ PRAIA DO PEIXE
Adrianópolis
Bocaiuva Sul
R
6
26
CRQ DA SERRA DO APON:
Santa Quitéria
CRQ DA SERRA DO APON:
Castro
Acordo
Castro
R
3
9
CRQ DA SERRA DO APON:
Castro
Lagoão de Dentro
Castro
R
10
31
CRQ DE MAMÃS – Núcleo
Castro
Castro: Imbuial
Castro
R
8
27
33 Idem. p. 4-5
34 Em 24 de março de 2009, contabilizaram-se 831 processos administrativos para titulações de áreas quilombolas,
em trâmite nas diversas Superintendências Regionais do INCRA, excetuando-se Roraima, Acre e Marabá.
35 Estas 24 titulações localizam-se majoritariamente no Estado do Pará (16); Maranhão (04); Piauí (02) e Rio
Grande do Sul (02). Cf. INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de
2010. “Orçamento Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 5. Disponível em http://www.inesc.
org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em
31/10/2010.
364
CRQ PORTO VELHO
365
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
CNT PAVÃOZINHO
Agudos do Sul
Fazenda
Grande
CNT LAGOA DAS ALMAS
Contenda
CNT SERRINHA
CRQ DE MAMÃS – Núcleo
Cerro Azul
Cerro Azul: Ribeirão do Meio
Cerro Azul
R
7
22
CRQ DE MAMÃS – Núcleo
Cerro Azul
Cerro Azul: Pinhalzinho
Cerro Azul
R
3
13
CRQ DE MAMÃS – Núcleo
Cerro Azul
Cerro Azul: Pinhal Grande
Cerro Azul
R
1
3
CRQ DO LIMITÃO
Castro
Castro
R
30
106
CRQ DO TRONCO
Castro
Castro
R
15
62
CRQ DO SUTIL
Ponta Grossa
Ponta Grossa
R
41
144
CNT
COMUNIDADE
BARREIRO
CRQ DE SANTA CRUZ
Ponta Grossa
Ponta Grossa
R
11
39
TOTAL
CRQ DESPRAIADO
Candói
Guarapuava
R
42
210
CRQ VILA TOMÉ
Candói
Guarapuava
R
21
110
CRQ CAVERNOSO 1
Candói
Guarapuava
R
12
86
CRQ INVERNADA PAIOL DE
Guarapuava
TELHAS: Assentamento
Guarapuava
R
66
230
CRQ INVERNADA PAIOL DE
TELHAS: Periferia da cidade Guarapuava
(trabalho a ser efetuado)
Guarapuava
U
CRQ INVERNADA PAIOL DE
TELHAS: (trabalho a ser Pinhão
efetuado)
Guarapuava
U
CRQ INVERNADA PAIOL DE
Guarapuava
TELHAS: Barranco
Guarapuava
R
19
95
CRQ ADELAIDE MARIA DA
Palmas
TRINDADE BATISTA
Palmas
R
88
391
CRQ CASTORINA MARIA DA
Palmas
CONCEIÇÃO – (FORTUNATO)
Palmas
R
20
74
***CNT TOBIAS FERREIRA –
Palmas
(LAGOÃO)
Palmas
R
19
98
CRQ
CAMPINA
MORENOS
Turvo
Guarapuava
R
10
66
CRQ SÃO ROQUE
Ivaí/Imbituva
Imbituva
R
51
203
CRQ RIO DO MEIO
Ivaí/Imbituva
Imbituva
R
22
84
Guaíra
R
7
42
CRQ QUILOMBOLA APEPÚ
São Miguel do São Miguel do
R
Iguaçu
Iguaçú
6
44
CRQ ÁGUA MORNA
Curiúva
Comarca
Curiúva
R
19
61
CRQ GUAJUVIRA
Curiúva
Comarca
Curiúva
R
38
132
CNT BARROCA
Antonina
Antonina
R
4
21
CNT FARTURA
Antonina
Antonina
R
16
60
DOS
CRQ MANOEL CIRIACO DOS
Guaíra
SANTOS
366
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
Rio
R
5
24
Lapa
R
24
118
Contenda
Lapa
R
8
46
CNT POÇO DOS CRUZ
Contenda
Lapa
R
10
40
CNT ÁGUA CLARA
Jaguariaíva
Jaguariaíva
R
3
12
Palmeira
Palmas
R
12
39
Tijucas do Sul
São José dos
R
Pinhais
8
20
138
619
CNT CERRADO
DO
*CRQ – Comunidade Remanescente Quilombola
CNT – Comunidade Negra Tradicional
** Rural/Urbano
***Não consta no mapa da ITCG
A análise da elaboração normativa e jurisprudencial e a não efetivação
dos direitos territoriais quilombolas no Brasil contemporâneo demonstra,
com clareza, as limitações que o Estado e a sociedade brasileira
enfrentam para a construção da democracia baseada na igualdade, no
reconhecimento da alteridade,no pluralismo jurídico e na superação de
suas origens aristocráticas fundiárias e escravagistas.
A superação dos entraves existentes para a efetiva aplicação do artigo 68
do ADCT deve enfrentar, por um lado, a necessidade do reconhecimento
do dever do Estado, em relação a setores da população que ainda
sofrem com um processo de cidadania inacabado, herdado da ausência
de políticas para igualdade pós-abolição e, de outro, a indispensável
realização da redistribuição e desconcentração das terras no país.
Referências
ALFONSIN. Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos
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IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS
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Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos,
mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões
afro-brasileiras1
Thiago de Azevedo Pinheiro HOSHINO2
“Atravessei o mar a nado,
por cima de dois barril...
Eu vinha ver a juremeira
e os caboclos do Brasil.”3
Nas margens do Atlântico negro, tantas histórias há a margem da
narrativa oficial. As revoltas, as insurreições, a insurgência e a rebeldia,
por vezes, fetichizam-se no papel, marcos emudecidos numa linha
crivada de datas, mas emergem cotidianamente, revisitadas e revividas
no imaginário político de seus sujeitos, seus efetivos autores. Através da
mediação da cultura, a uma só vez, ponto de partida e de chegada do círculo
hermenêutico das trajetórias negras na América Latina, a denúncia contra
sociedades que, embora complexas, recusam-se a assumir sua pluralidade
constitutiva, articula-se em diversos níveis de formação discursiva: político,
mítico, científico, simbólico. Destacados ou superpostos, cada um deles
descortina uma epistéme própria, uma paisagem social cujo enunciado –
e, mais do que isso, cuja via de enunciação específica – revela, sobretudo,
o lugar ocupado pelos enunciadores num amplo mosaico de resistência
negra no Novo Mundo. Um lugar de descolonização.
As múltiplas tradições implicadas na religiosidade afro-brasileira4, como
o candomblé5 e a umbanda6, também participam dessa teia cultural. Nelas,
1 O presente artigo é um resumo da Monografia de Graduação em Direito intitulada Òrìsá Láarè: por uma
iconografia jurídico afro-brasileira, defendida na Universidade Federal do Paraná, no ano de 2010.
2 Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do INCT Observatório das
Metrópoles – Núcleo Curitiba. Membro do Instituto Brasileiro de História do Direito e do Fórum Paranaense das
Religiões de Matriz Africana.
3 “Zuela” de caboclo recolhida no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, Zona Sul da cidade de São Paulo, em 2009.
4 Não faltam estudos buscando retraçar as origens africanas das culturas negras na América, levando em conta
mesmo as permanências existentes em cada tradição religiosa. Exemplo dessa perspectiva, que, embora útil,
consideramos insuficiente é o estudo de Pollak-Eltz (POLLAK-ELTZ, 1970).
5 O termo seria uma corruptela de candonbe, espécie de tambor utilizado pelos negros de Angola. Outrossim,
Moura fala de um emprego jurídico mais técnico da palavra: “nome pelo qual era conhecida, judicialmente, a
“tralha” e os pertences, de um feiticeiro africano” (MOURA, 2004, p. 81). Ou então, como afirmam outros, um
derivado do verbo “rezar; louvar” em quimbundo (-ndonbe), indicando o local do culto.
6 “A umbanda é a religião de maior expressão no Rio de Janeiro, de onde se irradiou para os estados de Minas
Gerais e São Paulo, bem como para a região Sul do país. Por ser de origem banta, apresenta muitas similaridades
com outras matrizes religiosas africanas, apesar de algumas variações na forma de culto aos ancestrais e da
incorporação de influências de outras origens, como a do espiritismo da linha de Allan Kardec. (...) no culto da
umbanda, os pretos-velhos e caboclos se manifestam ou incorporam por meio das sacerdotisas e dos sacerdotes.
371
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
nada foi automático e nada está definitivamente resolvido. No avesso
do determinismo, o signo se torce e se retorce à sombra da casa-grande,
nas casas de farinha dos quilombos, nas casas de santo7 na periferia das
metrópoles. Nelas, África não se recorda tão somente, África se inventa.
Da travessia dos negros escravizados sobre o infinito de Kalunga, deusoceano banto, lembrança e esquecimento nadam contra a maré da história
ocidental. O “mar salgado” de Fernando Pessoa desconsidera o quanto
do seu sal não são lágrimas de Angola, Congo, Daomé, Ketu e Oyó. Se
tudo valeu a pena não é um juízo que nos cabe ousar. Desejamos aqui tão
somente oferecer algumas contribuições para o fortalecimento de uma
leitura política das experiências religiosas de matriz africana no Brasil, a
partir da análise de seu discurso, sua prática e sua iconografia8; de suas
continuidades, rupturas, intercâmbios e deslocamentos, cujo foco deve
ser a natureza das tensões atualmente vigentes entre elas o imaginário
social hegemônico.
1. Replantar o Irôko: a matriz africana como reordenação
sócio-simbólica na diáspora
Quando se funda um novo terreiro, uma nova comunidade religiosa,
diz-se que se “plantou o seu axé”. Esse axé, conceito central de todo o
pensamento mítico afro-brasileiro, refere-se à força vital presente em
todas as coisas, mas que anima também a tradição cultural. Um axé,
nesse sentido, é uma determinada linhagem espiritual que remete até aos
fundadores africanos do culto no Brasil, uma cadeia simbólica que, como
uma árvore, ramifica-se e deve ser alimentada constantemente para dar
continuidade à matriz ancestral de civilização. A refundação dessa matriz
(ou, para usar uma expressão consagrada por R. Bastide, dessa “estrutura
de civilização”)9 nos desvãos da diáspora colonial negra segue o mesmo
padrão imagético. Se a metáfora da árvore é poderosa – as raízes estão
cravadas na África, mas suas ramificações roçam o Novo Mundo – Bastide
(...) Para Marco Aurélio Luz existem dois tipos de umbanda: a umbanda de morro e a umbanda de asfalto. Suas
diferenças se caracterizam pelos diversos discursos ideológicos de seus integrantes. (...) No entanto, apesar dessas
divergências ideológicas, tanto a linguagem como a estrutura simbólica e ritual africanas caracterizam a umbanda.”
(THEODORO, 2008, p. 79-80). Analisaremos conjuntamente discursos advindos da umbanda (com enfoque
na “umbanda de morro”) e do candomblé, pois, a despeito de idiossincrasias litúrgicas, no plano das alianças
e interações sociais, seus membros compõe um mesmo “povo-de-santo”, de modo que os conceitos circulam
culturalmente entre templos de ambos os cultos, muitos deles mantendo mesmo ambas as práticas. Para uma
releitura histórica da umbanda desde o sec. XIX, consultar: BARBOSA, 2008.
7 Casa-de-santo, casa-de-orixá, Ilê Axé, Abassá, barracão de candmblé ou terreiro são alguns dos nomes dados à
totalidade (física e simbólica) do local/espaço/território das comunidades religiosas afro-brasileiras.
8 O material de cunho etnográfico apresentado é resultado de trabalho de campo empreendido entre os anos
de 2008 e 2010 em terreiros de umbanda e candomblé (nações ketu, angola e candomblé de caboclo) nas cidades
de São Paulo e na Região Metropolitana de Curitiba, além daquele derivado da própria inserção religiosa do autor.
9 Novamente encontramos esse ponto de vista, objeto atual de uma série de críticas e debates, em Bastide : “On
risque, en effet, si on examine le monde des candomblés uniquement à travers lês candomblés, de laisser échapper
ce qui, pour nous, est l’essentiel: la structure de la civilisation africaine” (BASTIDE, 2000, p. 87).
372
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
demonstra que ela é mais que uma alegoria:
Encontrei mesmo num terreiro o mito simbólico de uma árvore, cujas raízes
atravessariam o Oceano para religar os dois mundos [África e Brasil]; seria
ao longo dessas raízes que os Orixás viriam, assim que fossem chamados.
(BASTIDE, 2000, p. 90)
Esta árvore é o Irôko, a sagrada gameleira branca (Ficus Gomelleira)
do candomblé brasileiro, cuja fixação no solo do terreiro é um dos seus
primeiros atos de consagração e estruturação litúrgica. Irôko igualmente
é o nome do orixá que nela habita, insinuando que não são somente os
corpos objeto de iniciação: a terra (espaço profano), depois de iniciada
como uma noviça, transmuta-se em território (espaço sagrado). Por
força das polarizações envolvidas nesse jogo de sentidos, o que ocorre
é um processo de “africanização da pátria do exílio, ou se preferirmos,
o candomblé como um pedaço da África” (BASTIDE, 2000, p. 91). Frente
a esse fragmento, o sentido original do termo religião ganha nova
dimensão: não se trata mais de apenas “re-ligar” o mundo dos homens
ao dos deuses, mas sobretudo de tornar próximos novamente o território
presente (Brasil) e o território dos ancestrais (Ilú Ayê, a “terra da vida”, a
África). Por isso mesmo é que todo ritual se inicia com uma invocação a
Exu, o mensageiro, que deve ser “despachado”, isto é, enviado para buscar
seus irmãos do outro lado do Atlântico: “agô, agô l’onan” – nos dê licença
nos caminhos, abra os caminhos para que os deuses possam retornar a
nós. Da mesma forma, por empreender a travessia de entre-mundos é que
esse elemento de conexão aparece amiúde associado ao mar (chamado
“Kalunga grande”, na umbanda, em comparação ao cemitério, a “Kalunga
pequena”)10:
Verekête da colônia
Ele é rei do mar
Verekête da colônia
Ele é rei do mar11
O sentido “colonial” – o encobrimento, e não o descobrimento, do
Outro (DUSSEL, 1993) – da relação de poder estabelecida no comércio
triangular (Europa-África-América)12 transatlântico não deixa de
10 O termo é encontrado em inúmeras etnografias de grupos bantos. Citamos exemplificativamente o interessante
estudo (de cunho igualmente mítico-político) de Melo entre os hambas de Angola: “Crendo na existência de vida
após a morte, entendem que o espírito do indivíduo deve libertar-se do corpo, despedir-se e, só assim, afastar-se da
família para repousar e participar, com os outros, no outro mundo, do kokalunga.” (MELO, 2008, p. 185).
11 Cântico de invocação a Averekête, vodun da tradição jêje no Brasil, cultuado também como jovem divindade
de conexão. Recolhido em cerimônia de tambor-de-mina, em Marajó (2009) e também citado por Bastide (BASTIDE,
2000, p. 235).
12 Para uma análise detida da conjuntura político-econômica do tráfico escravista, vide: LUZ, Marco Aurélio.
Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Edufba, 2000, pp. 148-167.
373
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
transparecer nos enunciados da mitologia afro-brasileira, de modo que os
polos Brasil-África, subitamente, transbordam dos seus limites geográficos
para se projetarem na ordem simbólica da geopolítica do imaginário,
acarretando dicotomias como escravidão/liberdade, morte/vida13,
negação/afirmação, branco/negro etc. Se, para o escravizado, branco era
o ayê14, negro o òrún15. Negro também esse Atlântico de modernidade
e anti-modernidade, colonialidade e resistência, espaço de contraste. O
modelo interpretativo do “Atlântico negro”, desenvolvido por P. Gilroy a
partir do mote da travessia do mar, presente na memória coletiva de todas
as comunidades afro-americanas, reposiciona inúmeras “ecologias do
pertencimento” produzidas em suas narrativas sobre o passado, presente
e futuro da tradição (matriz africana), de modo que
(...) as culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolidação através
da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contraestéticas e uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente
separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer.
(GILROY, 2001, p. 13)
Nesses termos, insistimos na necessidade de se manter no horizonte de
análise que, diferentemente dos povos indígenas16, grupos autóctones da
América Latina, quando nos referimos à tradição religiosa afro-brasileira
vislumbramos não uma chamada “cultura originária”, mas uma semântica
existencial diaspórica, isto é, um conjunto de práticas, representações e
sentidos não meramente perpetuados no tempo, mas reconstruídos por
sujeitos forçosamente postos no exílio. A ressignificação, já não resta
dúvida, é fenômeno patente em qualquer tradição (não há neste campo
fixidez nem pureza), porém, no caso específico dos conteúdos da matriz
africana, isso traz uma série de desdobramentos e exige outro tanto de
vigilância do observador, porquanto as formas culturais do candomblé e
da umbanda ganham sentido apenas em perspectiva, ou seja, como uma
espécie de reorganização sócio-política de comunidades e territórios em
espaço alheio17. É o que Dussel conceituará como a transterritoriedade
13 Bastide, entre outros autores, recolheram material suficiente para comprovar a presença de uma
representação entre o povo-de-santo que afirma que, embora se viva no Brasil, retorna-se à África depois da morte
(BASTIDE, 2000, p. 90).
14 O mundo físico, material o mundo dos homens e dos acontecimentos históricos.
15 O mundo dos orixás e dos egúns, os ancestrais mortos. A relação política entre o mito e o espaço, ou, em
outros termos, a territorialização do mito, torna-se evidente, por exemplo, na utilização, pelos umbandistas, do
termo Aruanda (corruptela de Aluanda/Luanda, localidade no Reino de Angola e hoje capital do país), para designar
a “cidade”, a “vila” ou a “aldeia” dos ancestrais entre os bantos e, atualmente, dos “guias”, entidades e espíritos. Aí
temos a passagem, portanto, da geografia à geopolítica e desta a uma cartografia do imaginário.
16 Obviamente, não se deve desprezar igualmente o caráter móvel de parcela dos povos indígenas originários na
América Latina. Sabe-se que também nas trajetórias de muitos deles estão presentes fluxos migratórios e dispersões
populacionais, narradas mesmo em sua riquíssima cosmologia. Parte importante dos conflitos fundiários hoje
experimentados pelos povos guarani, por exemplo, encontra-se atrelado ao seu nomadismo ritualístico-profético,
que integra uma determinada cosmovisão sobre as relações territoriais.
17 Por um lado, como transparece do imaginário mítico afro-brasileiro, são os povos indígenas os considerados
374
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
afro-latino-americana dos escravizados:
O “tráfico” imolará ao novo deus do Sexto Sol, o capital, cerca de treze
milhões de africanos. Não é este o segundo “holocausto” da Modernidade?
(...) A resistência dos escravos foi contínua. Muitos deles alcançaram a
liberdade pela luta. Testemunho disso são os “quilombos” no Brasil (...) as
“costas do Pacífico” na América Central (...) Esses escravos “trans-terrados”
que no Caribe, quando nascia uma criança, guardavam seu cordão
umbilical numa caixinha e o enterravam na terra, criaram sincreticamente
nova cultura. Na América Latina, desde o Vodu haitiano até o candomblé
ou a Macumba brasileira, são expressões religiosas afro-latino-americanas
dessa trans-territoriedade dos escravos. (DUSSEL, 1993, p. 162-164)
Trata-se, já em si, de um movimento não apenas diacrônico, mas,
sobretudo, diatópico, uma vez que a dinâmica da escravidão americana
trouxe para o Novo Mundo habitantes das mais variadas partes da África,
aportando consigo culturas, hábitos, idiomas, crenças, formas de ser
distintas. Impreterível que façamos aqui um aparte: é urgente destruir a
imagem de uma África una e culturalmente indistinta. Para que tenhamos
uma noção geral da escala de diversidade que representou a convivência
intercultural na sociedade escravocrata, recordemos que L. Viana Filho
(VIANA FILHO, 2008, p. 59-66) identifica, no Brasil, uma sucessão de quatro
ciclos históricos do tráfico negreiro, os quais, de 1540 a 1851, abarcariam
o aporte desde grupos sudaneses a bantos (Ciclo da Guiné, no sec. XVI;
Ciclo de Angola, no sec. XVII; Ciclo da Costa da Mina e Golfo do Benin,
no sec. XVIII e até 1815; e uma “fase de ilegalidade” de parcos dados
sobre procedência geográfica, mas provavelmente com predominância
sudanesa)18. Quantitativamente, isso nos assinala uma cifra estimada
de 3.902.000 africanos entre 1500 e 1867 (40,6% do total de escravos
vendidos para as Américas), fazendo do Brasil o que é hoje: o segundo
país mais negro do mundo.
Assim, seguindo a proposição de Mintz e Price, uma discussão
antropológica de caráter menos restrito/descritivo (etnográfico) da
herança afro-americana e mais ambicioso deveria dar maior atenção aos
“princípios gramaticais” dessa linguagem (uma linguagem ritual e mítica),
que a cada uma de suas mínimas variações locais:
Uma herança cultural africana (...) terá de ser definida em termos
menos concretos, concentrando-se mais nos valores e menos nas
formas socioculturais, e até tentando identificar princípios “gramaticais”
“donos da terra”, seus originais habitantes, enquanto, pela força, o espaço produtivo/tecnológico é entendido
como lugar de tortura e sofrimento (o “engenho”), como espaço branco, embora essa propriedade absolutizada
seja sempre apontada como ilegítima e injusta, numa crítica, portanto, ao patriarcalismo brasileiro.
18 Para novas perspectivas sobre o tráfico escravista dos sec. XVIII e XIX, vide: FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre Vieira e SILVA, Daniel Domingues da. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos
XVIII e XIX). In: Revista Afro-Ásia, n. 31 (2004), pp. 83-126.
375
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
inconscientes que pudessem estar subjacentes à reposta comportamental
e fossem capazes de moldá-la. Para começar, pleitearíamos um exame
do que Foster chamou “orientações cognitivas”, por um lado, como
pressupostos básicos sobre as relações sociais (...) e, por outro, os
pressupostos e expectativas básicos sobre o modo de funcionamento
fenomenológico do mundo (...) (MINTZ e PRICE, 2003, p. 27-28)
Conforme não só a antropologia afro-americana, como também
a historiografia da diáspora negra têm indicado, esses modos de
compreensão culturais de nível profundo operam como estruturantes
da cosmovisão africana no Novo Mundo e “podem ter servido de
catalisadores nos processos pelos quais indivíduos de diversas sociedades
forjaram novas instituições” (MINTZ e PRICE, 2003, p. 33). Colocar em
evidência essas institucionalidades (re)inventadas revela o próprio caráter
móvel, histórico (e, logo, político) das tradições:
As tradições na realidade são sempre discriminatórias. Tendem a constituir
um sistema de referências que estabelece distinções entre o que é
tradicional e o que não é. Inscrever-se numa tradição significa, portanto,
marcar uma diferença, sendo preciso interrogar as funções políticas das
tradições: elas não são simples sistemas de ideias ou de conceitos, e sim
verdadeiros modelos de interação social. (CAPONE, 2004, p. 29)
No que tange à religiosidade afro-brasileira, marcar essa diferença
implica operar um “sistema de referências” que toma a África como
metáfora, como norte simbólico para configurar o que P. S. Pinho
classifica de “identidades afro-referenciadas” (PINHO, 2004, p. 78-84).
É sobre esse suporte imagético que se constrói a tradicionalidade da
umbanda e, particularmente, do candomblé no Brasil, na medida em que
instauram efetivamente espaços diferenciais no seio de uma sociedade
supostamente homogênea, não como produtos de preservação, mas de
resistência, interação e de inovação cultural. Essas institucionalidades
negras criativas ensejaram formas de organização social encarnadas em
territórios muito próprios, que apenas agora a historiografia, a geografia e
a antropologia começam a tomar por objeto. É o caso não só das religiões
de matriz africana, mas também de experiências como a do Quilombo
de Palmares. Conforme identifica Cerqueira, “o Estado de Palmares se
constituía num momento especial na história do pluralismo jurídico no
Brasil, pluralismo este de caráter progressista e, mais que isso, libertador”
(CERQUEIRA, 1998, p. 214).
A ênfase na diferença, aliás, é o que permite a esse imaginário
mitológico de justiça fundamentar uma contracultura negra na diáspora
ou um discurso político contra-hegemônico e descolonial, que Gilroy
chamou de “contracultura da Modernidade” (GILROY, 2001, p. 33). Ela
376
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
coloca-se como alternativa e em oposição à tradição ética da civilização
ocidental, a qual perdeu sua legitimidade filosófica “pela cumplicidade
óbvia que tanto a escravidão da plantation como os regimes coloniais
revelaram existir entre a racionalidade e a prática do terror racial”
(GILROY, 2001, p. 98). O papel das teorias racialistas e racistas (fazemos
distinção entre os termos) na cristalização da dominação ocidental está
escancarado (SILVEIRA, 1999). Por isso mesmo, a unidade que prevalece
na epistéme negra entre ética e estética é uma forma de negação dessas
grandes rupturas epistemológicas da modernidade:
Sua ética bastante fundamentada oferece, entre outras coisas, um
comentário contínuo sobre as relações sistemáticas e generalizadas
de dominação que condicionam sua existência. Sua estética, também
bastante fundamentada, nunca se isola num domínio autônomo onde as
regras políticas familiares não possam ser aplicadas (...) (GILROY, 2001, p.
98).
Uma negação, porém, longe da crítica niilista ou de qualquer temido
fanatismo “tribalista”. Ao contrário, ela se construiu historicamente em
diálogo com os próprios questionamentos ocidentais e pressupostos do
establishment, como reapropriação e síntese desde a perspectiva dos
outsiders. Ela vem acompanhada de um projeto civilizacional calcado na
experiência da escravidão e da opressão racial, fundantes da subjetividade
diaspórica:
A memória da escravidão, ativamente preservada como recurso intelectual
vivo em sua cultura política expressiva, ajudou-os a gerar um novo
conjunto de respostas para essa indagação. Eles [os negros na América]
tiveram de lutar – muitas vezes por meio de sua espiritualidade – para
manterem a unidade entre ética e política, dicotomizadas pela insistência
da modernidade em afirmar que o verdadeiro, o bom e o belo possuíam
origens distintas e pertenciam a domínios diferentes do conhecimento.
Primeira a escravidão em si mesmo e, depois, sua memória induziram
muitos deles a indagarem sobre as bases da fundação da filosofia e do
pensamento social modernos, quer viessem eles dos teóricos dos direitos
naturais que procuravam distinguir entre as esferas da moralidade e da
legalidade, dos idealistas que desejavam emancipar a política da moral
de sorte que aquela se tornaria uma esfera de ação estratégica, ou dos
economistas políticos da burguesia que primeiro formularam a separação
da atividade econômica tanto da ética como da política. Os excessos
brutais da plantation escravista forneciam um conjunto de respostas
morais e políticas para cada uma dessas tentativas. (GILROY, 2001, p. 99)
Assim, no espaço hermenêutico do terreiro – comunidade de axé: ética
e estética – poiésis, poética e política se conjugam de formas insuspeitas.
Ser e dever-ser articulam-se ritual, mítica e pragmaticamente no cotidiano
do povo-de-santo, em processos de produção e reprodução da vida
377
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
coletiva: “a razão é assim reunificada com a felicidade e a liberdade dos
indivíduos e o reino da justiça no âmbito da coletividade” (GILROY, 2001,
p. 99).
2. “Eu nasci no Brasil, brasileiro sou eu”: resistência cultural e
negociação da identidade
Estamos diante, portanto, de um discurso político minoritário e de uma
cultura de resistência negra à dominação avalizada pelo Estado brasileiro
(entre outros países da América escravocrata), uma forma de contestação
das suas instituições “monoétnicas”:
El proyecto fundacional del Estado con hegemonía monoétnica excluyó
definitivamente a los pueblos indios [os americanos como os africanos].
El desarrollo del capitalismo por la via oligárquica era compatible con el
etnocidio practicado en las guerras de exterminio. (ROSENMANN, 2007,
p. 200)
Contudo, ao processo contínuo de vitimação produzido pelo regime
escravista, as comunidades de vítimas19, organizadas como comunidades
religiosas, puderam responder das mais variadas maneiras, fomentando
desde revoltas memoráveis, como foi a dos Malês na Bahia (1835)20, até
diagramas de negociação intercultural e interétnica. Mas, no “instante de
perigo” benjaminiano em que a controvérsia sobre a validade dos feriados
e das datas celebratórias da memória negra se acha instalada em algumas
localidades21, é imprescindível alinhavar os conflitos do presente com
leituras argutas do passado, como a de Reis:
Zumbi, Mãe-Preta e Pai-João, são apenas ênfases historiográficas.
Concretamente, na história real, cada cativo, segundo um destino que
muito raramente podia controlar (...) teria sua porção de ambos, maior
ou menor, segundo cada caso, cada oportunidade. Na história, Pai-João
não foi a ausência de luta, mas uma estratégia de luta sob condições
extremamente desfavoráveis. (REIS, 1989, p. 78).
A essência política dessa resistência negociada e dessa resposta cultural,
gestada e maturada na espiritualidade (e na sociabilidade) marginalizada
da tradição mística afro-brasileira22, ainda que não possa ser considerada
19 “A consensualidade crítica das vítimas promove o desenvolvimento da vida humana. (...) A partir da
exterioridade das vítimas a totalidade é subsumida (negada e assumida) e transformada.” (DUSSEL, 2002, p. 415-6).
20 Negros de religião muçulmana, bastante organizados e combatentes na Bahia do século XIX (REIS, 2003).
21 No momento de produção deste artigo, tramitava perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a Ação
Direta de Inconstitucionalidade n. 1.011.923-6, de autoria da Associação Comercial do Paraná, impugnando a Lei
Municipal nº 14.224/2013 de Curitiba, que instituiu o Dia da Consciência Negra como feriado local.
22 J. J. Carvalho emprega a expressão “tradição mística afro-brasileira” para destacar um corpus de práticas e
discursos (liturgia e textualidade) que circulam socialmente entre os membros de cultos afro-brasileiros a partir de
suas experiências místicas individuais. No entanto, o autor em questão avança para além da dimensão ideológica de
análise desses materiais (“tudo o que eles indicam sobre a natureza das relações sociais, raciais, políticas, sexuais
378
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
uma experiência de enfrentamento messiânico, irradia-se como “religião
dos oprimidos”, congregando elementos que se repetem igualmente
em inúmeros movimentos de libertação presentes nas sociedades póscoloniais:
Na realidade, na raiz de toda a revolta política e militar de povos
indígenas encontram-se outros movimentos premonitórios de renovação
religiosa, os cultos proféticos de libertação. (...) Aliás, a própria natureza
dos movimentos de renovação que nos interessam aqui denuncia uma
característica própria das culturas nativas: elas, por uma tradição cultural
amadurecida em experiências de todo tipo de miséria e sujeição, são
levadas a reagir contra a opressão, a inquietação, a frustração, muito mais
no terreno religioso que no organizacional-político. (...) O mal reside no
choque – com os seus múltiplos aspectos – entre uma minoria hegemônica,
opressora, depredadora e hipócrita e a população nativa oprimida: na sua
raiz está a subtração da terra aos nativos. (LANTERNARI, 1974, p. 15-17).
Embora Lanternari faça referência expressa aos movimentos nativistas
na África, princípios gerais de sua análise cabem em parte às tradições
da diáspora. Neste caso, não foi a terra subtraída aos nativos, mas os
nativos à sua terra. Se originariamente “estrangeira”, todavia, a cultura
de matriz africana veio a tornar-se também afro-brasileira, derivando
daí as dificuldades referentes ao duplo vínculo (tensão nacionalidadeidentificação) formulado por DuBois. De fato, vale repisar que “o problema
de ponderar as afirmações de identidade nacional contra as variedades
contrastantes de subjetividade e identificação ocupa um lugar especial
na história intelectual dos negros no Ocidente”23. Ser, a um só tempo,
brasileiro e afrodescendente, isto é, ser afro-brasileiro, exige ocupar um
espaço “inacabado” de identidade, como demonstraremos a seguir. Uma
questão de lente, de foco, de escala, de grau.
A partir dessa primeira reflexão, entendemos com Brumana que duas
têm sido as perspectivas centrais até hoje adotadas no estudo desse tipo
de religiosidade: enquanto uma enfatiza sua africanidade, outra procura
dar conta da brasilianidade de um campo religioso reconhecidamente
subalterno (ou seja, politicamente minoritário). Durante esta breve
empreitada, colocamo-nos ao lado da segunda, de modo que sobressaia
mais a originalidade criativa das culturas negras do que um suposto
continuísmo de conteúdos originais, embora não se possa afastar a
etc., que envolvem a vida dos membros”) e enfrenta uma dimensão místico/religiosa do tema, em perspectiva
comparada com outras grandes tradições religiosas (CARVALHO, 1998).
23 “Esforçar-se por ser ao mesmo tempo europeu e negro requer algumas formas específicas de dupla
consciência. Ao dizer isto não pretendo sugerir que assumir uma ou ambas identidades inacabadas esvazie
necessariamente os recursos subjetivos de um determinado indivíduo. Entretanto, onde os discursos racista,
nacionalista ou etnicamente absolutista orquestram relações políticas de modo que essas identidades pareçam
ser mutuamente exclusivas, ocupar o espaço entre elas ou tentar demonstrar sua continuidade tem sido encarado
como um ato provocador e mesmo opositor de insubordinação política.” (GILROY, 2001, p. 33-34).
379
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
relevância do afro-centrismo que desponta em outras paragens24.
Disso decorre um esvaziamento, ou, para sermos menos enfáticos,
uma relativização instrumental, da própria noção de etnicidade para a
compreensão da realidade dos cultos afro-brasileiros. Efetivamente, não
é a regra, ainda que se verifiquem casos singulares, a existência de uma
continuidade biológica da comunidade-terreiro. O que ocorre, em vez
disso, é a perpetuação simbólica da linhagem de cada casa de santo, de
modo que se operam sucessões constantes nos cargos deixados vagos
pela morte ou outro tipo de afastamento de seus ocupantes anteriores.
Segundo explicitam Poutignat e Streiff-Fenart, essa conversão de uma
fronteira étnica em fronteira cultural implica no recurso à etnicidade
como parentesco fictício:
Quando a filiação de membros não-nativos torna-se um traço permanente
e um método sistemático de recrutamento de um grupo que representa
a si mesmo como uma comunidade étnica, este se dota geralmente de
mecanismos culturais que permitem traçar um parentesco fictício entre
os nativos e os assimilados. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 2011, p. 161)
A filiação mítica de qualquer indivíduo (isto é, de um indivíduo de
qualquer origem étnica) a um orixá, ao lado da sua filiação iniciática a
um sacerdote, através das chamadas obrigações-de-santo (com inclusão
necessária numa linhagem mística e numa comunidade ritual – o terreiro)
é o mecanismo que permite a absorção (“recrutamento”) de sujeitos
externos, aliás numerosos, no candomblé e na umbanda. É o que a “teoria
nativa” (o discurso mítico) afro-brasileira abarca sob a expressão famíliade-santo, entendida por Bastide como uma “sociedade de assistência
pecuniária e moral, (...) de seguro mútuo, de união fraternal, que mantém
o espírito comunitário africano” (BASTIDE, 2000, p. 80). Devemos, nesse
contexto, secundar R. L. Segato ao afirmar a raça como signo, antes num
sentido político que genético. Desde esse marco identitário aberto ou
“disponível”, o candomblé caracterizara
(...) uma tradição africana que atraiu e incluiu eficientemente a população
branca em suas fileiras, constituiu uma estratégia decisiva de suas
lideranças históricas para garantir sua sobrevivência – crescer a expensas
do Branco significou sobreviver (...). Se, por um lado, as diferentes religiões
de matriz africana oferecem o que chamei de códice africano no Brasil como
conjunto de premissas estáveis de uma filosofia, construção de gênero
e formas de organização e sociabilidade diferenciadas dentro da nação,
esse códice é mantido pelos seus especialistas como um códice aberto, no
sentido de disponível (enquanto códice de matriz afro-brasileira) para toda
24 “Nos Estados Unidos (e também em outros países), o rótulo agora se aplica tanto a aspectos da cultura
popular quanto a posições assumidas individualmente por professores e outros intelectuais, ou coletivamente (no
caso norte-americano) por alguns departamentos universitários.” (FARIAS, 2003, p. 319).
380
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
a população e qualquer visitante que pretenda fazer uso das orientações
que ele contém. Nesse sentido, não pode se dizer que exista propriamente
um povo afro-brasileiro dentro da nação (exceto no caso restrito dos
quilombolas), mas uma etnicidade afro-brasileira disponível, que se doa,
ao povo brasileiro. (SEGATO, 2005, p. 3-4)
Qualquer conceito minimamente convincente de “afro-brasilidade”,
portanto, deve levar em conta a dimensão mais simbólica da etnicidade
afro do que propriamente étnica, em acepção racialista. Parece sensato
adotar, secundando Viana em seu estudo sobre as mestiças “irmandades
de pretos e pardos” da Colônia, a categoria de identidade socioreligiosa
(VIANA, 2007, p. 42), como alternativa às peculiaridades analíticas das
relações étnico-raciais. “Afro-brasileiro” e “afrodescendente”, longe de
serem sinônimos, são expressão desencontradas, não necessariamente
sobrepostas ou caminhando lado a lado na estrada tortuosa pela cidadania
negra. Não à toa destaca Capone o fato de que
Até os cultos que se consideram depositários de uma tradição africana,
como o candomblé nagô, não são mais, e isso há muito tempo, o apanágio
dos descendentes de africanos. Na verdade, mesmo nos terreiros mais
tradicionais da Bahia encontramos iniciados brancos e até nisseis. A
identidade “africana” está, portanto, completamente dissociada de toda
origem étnica real: é possível ser branco, louro de olhos azuis e dizer-se
“africano”, por ter sido iniciado em um terreiro tido como tradicional.
(CAPONE, 2004, p. 48)
Essa “disponibilidade” cultural pode ser entendida como reflexo da
natureza fundamentalmente contrastiva da etnicidade, na medida em que
“esta se exprime como um sistema de oposições ou contrastes” (PINHO,
2004, p. 72) nunca estanque, mas sempre relacional. A identidade não
é um diagrama absoluto, mas um jogo relativo, pressupondo polos de
atração, repulsão e interlocução que são sua conditio sine qua non. Tão
constrastiva é que desemboca em situações inusitadas, qual a da “etnia”
dos “brasileiros” (descendentes de ex-escravos negros que retornaram à
África no século XIX) no Togo, em Gana, no Benim25.
Assim, embora tenhamos nos referido anteriormente à ideia de
uma “matriz africana”, o fato é que subsistem inúmeras africanidades
dentro do território do Estado-nação brasileiro. Não se trata apenas de
reconhecer a diversidade das origens e cosmovisões que compuseram
25 Nesse período, de 3.000 a 8.000 afro-brasileiros retornaram à África. “De fato, o que fizeram foi estabelecer
uma colonização informal que criou enclaves de comunidades afro-brasileiras na costa da África Ocidental, em
territórios que hoje são chamados de Benin, Togo, Nigéria e Gana. Algumas destas comunidades que floresceram
no século XIX existem ainda hoje naqueles países. Celebrações de festas brasileiras, nas quais a bandeira brasileira
é exibida com orgulho, ainda têm lugar no Benin. Comidas brasileiras tais como feijoada, kosidou (corruptela de
cozido) e concada (corruptela de cocada) são ainda consumidas com satisfação em áreas francófonas da África
Ocidental por pessoas que se proclamam “brésiliens”. (AMOS e AYESU, 2005). É o caso, também, dos agudá no
Benin (GURAN, 2002).
381
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
o contingente populacional e o paradigma epistêmico de genealogia
negra, mas principalmente de identificar as variações e possibilidades
inscritas no corpo da própria tradição. Essas marcas e fronteiras tornamse evidentes desde a categoria nativa da “nação” (LIMA, 1976). De acordo
com a fala do povo-de-santo, existiriam diversas nações de candomblé no
Brasil, cada qual com suas especificidades em relação à liturgia, à língua
ritual, ao panteão e aos mitos (nação xambá do culto xangô do Recife,
nação angola, nação congo, nação jêje ou jêje-nagô, nação kétu, etc.). O
emprego sincrético do termo, de plano, uma releitura eloquente, já que
tais “nacionalidades africanas” têm um sentido marcadamente colonial:
O uso inicial do termo “nação” pelos ingleses, franceses, holandeses e
portugueses, no contexto da África ocidental, estava determinado pelo
senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monárquicos
europeus dessa época [sec. XVII e XVIII] (...) esses estados soberanos
europeus encontraram um forte e paralelo sentido de identidade coletiva
nas sociedades da África ocidental. (PARÉS, 2007, p. 23)
Esse tipo de designação “metaétnica”, contudo, é significativo de um
espaço de mobilidade e hibridismo, sendo a própria “nação”, nesses
termos, um artefato cultural26. O discurso remete não apenas a uma
diferenciação interna ao campo de interação dos cultos afros, mas a um
recorte dentro da nação entendida como sociedade global, a “nação
brasileira” como lugar de exercício da soberania do Estado. Sob essa ótica,
o uso do termo “nação”, que sugeriria, a priori, a internalização de uma
relação de colonialidade, apresenta-se como uma apropriação ativa, um
contra-uso descolonial da figura para recortar uma diferença em relação
ao status quo. Somos levados, assim, a resgatar a análise de Ramos sobre
o emprego político do conceito nas lutas e táticas dos povos indígenas:
“Nação” é uma palavra que entrou de contrabando, clandestina, como
diz Bourdieu (1989), na retórica indigenista brasileira. Nos Estados Unidos
o uso de “nações indígenas” serviu como uma espécie de senha para a
tomada de territórios pelo nascente Estado norte-americano através de
declarações de guerra e assinaturas de tratados, ainda que fantoches, com
os donos desses territórios. Já no Brasil, o termo “nações indígenas” é
recente e surgiu da consciência de que nunca se reconheceu nas culturasetnias indígenas um mínimo de vulto que merecesse crédito político.
(RAMOS, 1993, p. 5)
As mesmas considerações nos servem para propor uma analogia
com as nações de candomblé. Tema hoje razoavelmente explorado
26 “Havia naturalmente, entre os negros, as diferenças étnicas, a diversidade das “nações” na diáspora. Isto se
entrevia especialmente na esfera do trabalho de “ganho” (ferraria, sapataria, barbearia, carpintaria), em que os
negros, forros ou não, se organizavam etnicamente através de pontos de trabalho, conhecidos como “cantos”,
espalhados pela Cidade de Salvador e existentes até os primeiros tempos do século vinte.” (SODRÉ, 1988, p. 54)
382
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
pela historiografia brasileira27, permanece, contudo, um terreno de
disputas e desacordos intermitentes28. Aqui, a nosso ver, é preciso
combinar à metáfora da fronteira, a metáfora da origem (PINHO, 2004,
p. 73). Diferenças contextuais integram esse panorama, é claro, porém
estamos, de qualquer maneira, diante de idiomas políticos sincréticos,
que incorporam conceitos advindos do histórico contato interétnico para
fortalecer a própria contraposição do negro no plano simbólico-político.
Num mesmo golpe, é necessário afastar o olhar ideologizado de
parte do campo de pesquisa atual sobre o assunto, que insiste em
sobredimensionar o lugar da “pureza” na tradição, arbitrariamente
identificando-a aos terreiros de rito nagô-ketu. Essa interferência de uma
elite intelectual do candomblé, em associação a atores da academia, vem
sendo destacada como processo de consolidação duma “nagocracia” ou
“quetocracia” no Brasil29:
A ideia de pureza religiosa como vemos é um mito que alguns adeptos
procuram vivenciar no candomblé e que estudiosos procuraram
evidenciar. Este ideal de pureza é de fato mais um mito que influencia a
realidade religiosa. No passado, foi acentuado por intelectuais, e apesar
das críticas que recebe, retorna hoje no processo de reafricanização ou
dessincretização. (FERRETI, 1995, p. 71)
Mas, se é fato que o mito goza de materialidade e veracidade para
as ciências sociais, devemos seguir o rastro da tradição já não em busca
de uma pureza irredutível, mas da “pureza” enquanto categoria nativa,
ou seja, como veículo de poder, na medida em que subsidia dispositivos
discursivos e argumentos de legitimação entre diferentes nações,
tradições e “modos de fazer” no campo religioso afro-brasileiro. O
paradoxo do tradicional, no entanto, implora para ser resolvido, já que
“a crítica à pureza não pode ignorar a tradição preservada em muitos
grupos” (FERRETI, 1995, p. 71). Invocamos, em nosso auxílio, o conceito
de sincretismo, para testá-lo. Até que pondo ele nos será de alguma valia?
Concordamos com Sodré no que tange ao caráter inclusivo do candomblé
27 Depois dos trabalhos vanguardistas de R. Bastide (BASTIDE, 1974) e J. Thorton (THORNTON, 2004), em ensaio
de fôlego, R. Silveira apresenta o “estado da arte” nesse campo: J. Lorand Matory, “Jeje: repensando nações e
transnacionalismos”, Mana, vol. 5, nº 1, (1999), pp. 57-80; Mary Karasch, “‘Minha nação’: identidades escravas no
fim do Brasil colonial”, in Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), Brasil: colonização e escravidão (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2000); Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil colonial 1500-1808, (Rio de Janeiro, Editora Objetiva,
2000); Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000; Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista:
história da festa de coroação de Rei Congo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002; Juliana Barreto Farias, Carlos
Eugênio Líbano Soares & Flávio dos Santos Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de
Janeiro, século XIX, (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005); Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história
e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas, Editora da Unicamp, 2006 (SILVEIRA, 2008, p. 246).
28 Revisitando R. Vainfas, Silveira propõe, entre outras coisas, que “nação era uma palavra que exprimia a
diferença” (SILVEIRA, 2008, p. 282), mais do que a identidade, o que nos pode servir de alerta contra a uniformização
republicana.
29 Uma revisão dos autores que tem trabalho a problemática encontra-se em: FERRETI, 1995, p. 64-71.
383
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
brasileiro, que, em sua formação – estruturado de maneira relativamente
estável somente em meados do sec. XIX – teve de incorporar múltiplas
tradições numa estrutura suficientemente plástica, que o autor defende
ser o padrão jêje-nagô (SODRÉ, 1988, p. 53). Assim, ao levar em conta
culturas advindas de inúmeras localidades na África, além dos outros
parceiros no xadrez colonial (brancos, índios, mestiços, etc.), o próprio
candomblé seria por natureza um “acordo” (SODRÉ, 1988, p. 53) cultural,
testemunha da diversidade e produto de transações diatópicas:
No Brasil, esse “grupo zelador de orixá” não é já-dado ou natural, mas
construído. (...) A construção do grupo “negro de terreiro” no Brasil
obedeceu, como já se observou, a uma reterritorialização condensadora.
(...) Aqui, portanto, reelaboravam-se ou redefiniram-se as regras originais
com o objetivo de preservar uma matriz fundadora. (...) [Pois] a posição
litúrgico-existencial do elemento negro foi sempre a de trocar com as
diferenças, de entrar no jogo da sedução simbólica e do encantamento
festivo, desde que pudesse, a partir daí, assegurar alguma identidade
étnico-cultural e expandir-se. Não vige aí o princípio lógico do terceiro
excluído, da contradição: os contrários atraem-se, banto também é nagô,
sem deixar de ser banto. (SODRÉ, 1988, p. 53)
Nesse sentido, apenas, é possível falar de sincretismo, como acordo,
como apropriação ativa (e não imposição passiva) de elementos de
alteridade na lógica simbólica estruturalmente “imexida”, jamais como
uma mistura sumária e sem coerência no balaio da história. Africanos e
seus descentes nas Américas tiveram contato com um universo religioso
culturalmente distinto do seu, embora o catolicismo barroco (com seus
múltiplos santos e devoções), não fosse de todo ilegível segundo os
próprios padrões africanos. Não podemos excluir o impacto daqueles
(especialmente negros libertos) que, dentre eles,
(...) se tivessem abrasileirarado e escolhido experimentar uma dupla
inserção religiosa, uma vez que sua religião de origem não exigia
exclusivismo devocional. Seu catolicismo, porém, povoado desses
interesses celestes, era tipicamente popular, gravitava em torno de uma
“economia religiosa do toma-lá-dá-cá” entre devoto e devoção, como
a caracterizou Laura de Mello e Souza. Um catolicismo, enfim, que se
aproximava da lógica do candomblé. (REIS, 2008, p. 281)
Em grande medida, portanto, foi o catolicismo popular que se
africanizou durante o Brasil colonial, e não somente o oposto. Enegreceuse o cristianismo barroco e consubstanciou-se em mais um ato
performativo de politização30. Apesar disso, da parte do povo-de-santo,
30 É o que identifica, ainda hoje, Rubens Alves da Silva identifica, por exemplo, nas práticas ritualístico-festivas do
Congado mineiro: “Em suma, através do “mito de origem” do Congado os sujeitos desse ritual falam das relações
raciais no espaço onde vivem e, pelo que se percebe, sem estarem iludidos quanto ao racismo e à discriminação
que sofrem quotidianamente por serem – nos dizeres poéticos – “pretos ou quase pretos”. Se estou correto, devo
384
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
esses dois registros são claramente diferenciados, de modo que se tem
bastante lucidez sobre qual o santo a ser cultuado em cada contexto, com
cada sistema de signos.
A hibridização, é verdade, é sempre um processo de mão-dupla,
gostem ou não os puristas, ainda que por vezes ela ocorra em assimetria
de condições/posições. Isso não se expressa apenas na interface entre o
cristianismo e as religiões de matriz africana. De fato, existiram relações
mais horizontais em nossa história. A figura do “caboclo” – tradução mítica
do elemento indígena – no candomblé e na umbanda pode exemplificar
nossa visão. A solidariedade histórica e as trocas políticas entre negros
e índios são rememoradas nos cultos afro-brasileiros na forma de uma
“posição comum de respeito e homenagem aos donos originais da terra,
aos ancestrais do território” (SODRÉ, 1988, p. 60). Seja nas cerimônias
chamadas de toré, seja nas “mesas de jurema” famosas especialmente
nas regiões Norte e Nordeste, seja ainda nos “candomblés de caboclo” da
Bahia e ramificações, ou cotidianamente nas giras de umbanda, a verdade
é que “a participação dos Caboclos enquanto entidades que se incorporam
nas cerimônias de transe dos cultos afro-brasileiros é comum em todo o
país”31. Recuperando o início desta discussão, a presença dos caboclos,
os quais se afirmam e são afirmados como os autênticos brasileiros
(em detrimento, inclusive, do elemento branco, também considerado
estrangeiro, invasor de terras alheias e seu ilegítimo possuidor – e
por este motivo, cantigas como a que abre este texto enfatizam que o
verdadeiro sentido do encontro entre povos se deu entre autóctones
americanos e africanos no Novo Mundo, estes vindo conhecer a sagrada
juremeira daqueles), atesta a tensão duboisiana entre subjetividade e
nacionalidade. Nesse sentido, espanta o patriotismo ligado à figuração do
“caboclo”, palco de intercâmbios e negociações implicadas na identidade
afro-brasileira:
Tudo o que eu tive
foi Deus quem me deu.
Eu nasci no Brasil,
brasileiro sou eu.32
acrescentar que, através da prática do ritual em pauta, eles fazem a sua crítica, expressam o seu desejo, a sua
aspiração e esperança de um dia ainda viverem numa sociedade sem tantos sofrimentos, discriminações e exclusão
social. Por certo, esta é a imagem ou forma de representação que projetam deste nosso Brasil.” (SILVA, 2010, p.
180).
31 Na Bahia, eles podem “baixar” até mesmo em candomblés de Eguns, cujo ritual, altamente rígido, segue a
tradição africana do culto aos ancestrais mortos. “No terreiro de Babá Aboulá, um Egum caboclo, Baba Iaô, quase
sempre encerra a festa. Nessa ocasião toda a assistência, já do lado de fora do barracão, canta em língua brasileira
em homenagem a um dos mais festejados Eguns daquele terreiro.” (GANDON, 1997, p. 150).
32 “Chula” recolhida durante cerimônia de candomblé-de-caboclo realizada no Abassá de Xangô e Caboclo
Sultão, em 2010. Sobre este tipo de cântico, afirma C. Ribeiro: “É comum ouvir-se, nos candomblés-de-caboclo,
cantigas mencionando nos seus versos uma certa exaltação ao lugar de nascimento dos índios. Por exemplo: “Sou
brasileiro/Sou brasileiro, imperador/Sou brasileiro, o que é que eu sou?”. Outra: “Minha mãe é brasileira/o meu pai
385
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
O caboclo surge como o protótipo do brasileiro nato, tanto quanto
brasileiros natos o próprio candomblé e a umbanda. Serve de espelho,
ainda, à conversão político-territorial do africano ladinizado sob a vergasta
da escravidão, sem outra opção senão reinventar-se:
Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade
ou como herança histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no
mundo branco. E logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se
e parecer brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem ser católicos.
Podiam preservar suas crenças no estrito limite dos grupos familiares,
muitas vezes reproduzindo simbolicamente a família e os laços familiares
através da congregação religiosa, daí a origem dos terreiros e das famíliasde-santo. (PRANDI, 1996, p. 56)
Conjunto de práticas e de discursos de resistência e de mediação,
a religiosidade afro-brasileira baliza a leitura de uma das três ditas
“vertentes civilizadoras” do Brasil sobre o choque intercultural americano
(considerando o teor também ficcional do próprio “mito das três raças”).
Tendo de partilhar um mesmo território com europeus e povos indígenas,
os africanos foram autores notáveis de uma narrativa sobre suas relações
com estes Outros:
Três pedras, três pedras,
três pedras dentro desta aldeia,
uma maior, outra menor
a mais pequena é que nos alumeia33
A interpretação de Ribeiro sobre o cântico vai justamente nesse sentido:
Sentimos neste verso a citação das três raças: a negra, a branca e a
indígena, sendo que essa última está mencionada na derradeira estrofe “a
mais pequena é que nos alumeia”, em relação à minoria em que ficaram
reduzidos mas, no entanto, na condição de donos da terra, consideram-se
a pedra mais luminosa. (RIBEIRO, 1983, p. 78)
A mais luminosa de todas, entretanto, é a pedra da memória. Flexível
pedra, que recebe inscrições e superposições quase sem espanto. É na
interseção da memória individual com a memória coletiva que podemos
deslindar o nó no fio de Ariadne da tradição e da mudança. Pois o
narrador conjura e esconjura reminiscências seletivamente, conforme um
imperador/ Eu sou brasileiro. Brasileiro o que é que eu sou?”. Mais uma: “Brasileiro é sinal que Deus me deu/nasci
no Brasil/Brasileiro sou eu”. Existe uma saudação à Bandeira do Brasil, à moda do índio. Eis: “O verde é esperança/
O Amarelo é desespero/ O Azul é a liberdade dos caboclos brasileiros.” (RIBEIRO, 1983, p. 78)
33 Cantiga recolhida no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, exatamente nos mesmos termos em que encontrada
por Carmem Ribeiro na década de 1980, em Salvador. Isso pode ser explicado pelo fato de ser baiano o babalorixá
responsável pela referida casa, demonstrando que à dispersão migratória corresponde uma dispersão de padrões
rituais que desembocam, eles mesmos, num modelo de negociação com os estabelecidos da metrópole paulistana
no período, isto é, as casas e terreiros de umbanda, então em ascensão.
386
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
olhar significador do presente. Por outro lado, ele é também ator quando
a arkhé encarna-se na história vivida, ao passo que esta enriquece e
expande a fronteira da mitologia: “os mitos constroem em seus discursos
as diretrizes cognitivas e comportamentais dos indivíduos em sociedade”
(TRINDADE, 2000, p. 165). Esse processo dialético de recombinações
se opera segundo uma lógica de bricolagem (TRINDADE, 2000, p. 160),
porém não aleatoriamente. É preciso encontrar homologias e metáforas
para a passagem da história ao mito e vice-versa:
O mesmo ocorre no momento de lembrar essas experiências do passado
nos esquemas da memória, quando as dimensões mítica e histórica se
interpenetram, passando do nível mítico para o histórico: ao evocar as
situações passadas, o tempo cronológico e os espaços social e geográfico
descritos coexistem no tempo e espaço mítico de evocação. (TRINDADE,
2000, p. 155-156)
O trabalho de L. Trindade sobre a memória da escravidão ressalta o
lugar do preto-velho34, por exemplo, no imaginário de descendentes
de africanos, constatando que a perspectiva “sincrética”, ou, analógica,
explicita-se numa determinada forma de recordar (“recortar”) o mundo e
de “ser-no-mundo”: “os indivíduos delegam às divindades a ação histórica
e, mediante rituais, eles atuam como divindades” (TRINDADE, 2000, p.
165). À semelhança da protonarrativa de teor mitológico, recuperada
por C. Ford sobre os traumas sociais do povo bacongo (SÃO BERNARDO,
2006, p. 66), tanto o caboclo como o preto-velho são elementos míticos
articulados para contar uma história não sobre a África distante, mas
sobre o Brasil, seus traumas, desencontros e desigualdades. De um lado,
a constância das divindades entre os homens e, de outro, a transformação
dos homens em divindades esgarçam o limiar entre mito e histórica, mas
reforçam a fronteira entre o Ocidente e seus enclaves de diferença, a
cidade e o terreiro, levando uma ebômi35 a afirmar sobre si mesma: “Meu
nome é Maria da Silva da parte de lá, Oyá Ladè da parte de cá”36 (FREITAS,
1995, p. 80).
3. “Pequenas Áfricas”: o terreiro contra a cidade
Na fala de Maria da Silva, qual é a linha divisória entre “a parte
de lá” e “a parte de cá”? O portão (ou a porteira, como preferem os
membros do culto) e os muros do terreiro. Segundo a leitura de Bastide,
34 Eles mesmos, figuras cujo lastro histórico remete ao período pós-1885, ano de edição da Lei dos Sexagenários.
Abandonados por seus senhores, em grande medida dispensados das obrigações de sustento dos cativos idosos,
muitos libertos e libertas encontraram na comercialização de saberes mágicos, fitoterápicos e medicinais a única
fonte de renda para sobreviver numa sociedade que desestimulava as redes de sociabilidade negra.
35 Adepta de alta hierarquia, com mais de sete anos de santo, isto é, de iniciação.
36 Ressalte-se que Oyá Ladè seria a denominação (o dito “nome de santo”, orukó ou djina) que recebeu aquela
iniciada depois de cumpridos os ritos de incorporação à comunidade religiosa, chamados raspagem ou feitura.
387
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
o terreiro, espaço sagrado, é uma espécie de “África em miniatura”, de
“microcosmo da terra ancestral”37 (BASTIDE, 2000, p. 93). Tendo em vista
que o candomblé, da forma como hoje se encontra estruturado, é um
fenômeno eminentemente urbano, vale a pena findar nosso interlúdio
com um rápido sightseeing pelos marcos da territorialidade negra gravada
a sangue e suor no coração da cidade desigual.
3.1. O negro no egbé negro
O território do terreiro é um espaço concorrente com o território da
nação. Este o primeiro ponto que queremos visitar. São dois momentos:
afirmar o espaço do terreiro como território e afirmar esse território como
espaço diferencial no seio da sociedade envolvente. Não se olvide que,
entre os iorubás, a instituição da família ampliada (linhagem) era central:
O ebi (família, linhagem) constituía a organização social básica, geralmente
sob a forma de linhagem agnatícia ou patrilinear. Ao ebi – e não ao
indivíduo-membro – pertenciam os bens de produção e até mesmo os
títulos de nobreza. Seus membros viviam juntos no agbô-ilê (conjunto de
casas, grande comunidade). A cidade ou a vila (ilu) era formada por vários
agbô-ilê (SODRÉ, 1988, p. 49).
Pela impossibilidade de manutenção da forma social clânica no Brasil é
que se pode afirmar o terreiro, o egbé (comunidade litúrgica organizada),
como unidade substitutiva, responsável pela transferência e salvaguarda
de grande parte do patrimônio cultural negro-africano, que aqui firmouse como “território político-mítico-religioso” (SODRÉ, 1988, p. 50).
Nem é por outra razão que existem (qual pudemos comprovar a campo
diversas vezes) de dois principais espaços dentro da comunidade com
características funcionais distintas: um é urbano, de uso público e privado
do culto, outro virgem, compreendendo árvores, fontes, nascentes e
“mato” em geral. Contudo, o egbé não coincide com os limites físicos do
terreiro:
O “terreiro” ultrapassa os limites materiais (por assim dizer polo de
irradiação) para se projetar e permear a sociedade global. Os membros
do egbé circulam, deslocam-se, trabalham, têm vínculos com a sociedade
global, mas constituem uma comunidade “flutuante”, que concentra e
expressa sua própria estrutura nos “terreiros” (SANTOS, 2008, p. 33)
Como espaço partilhado de vida (vida sempre, mesmo além e a despeito
da morte física), o terreiro é organizado como um polo diferencial, regulado
pela lei da arkhé (o princípio da tradição) no meio da sociedade capitalista,
37 “L’espace sacré, c’est donc l’espace clos entre les murs ou les limites du terreiro” [O espaço sagrado é, portanto,
o espaço cerrado entre os muros ou os limites do terreiro] (BASTIDE, 2000, p. 99).
388
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
regulada pela lei do mercado. Se o espaço do terreiro não é apenas terra,
mas território político, é porque se entende como extensão, um postoavançado da África no além-mar, depois de ritualmente demarcado:
Inscrito no corpo da terra, o terreiro é o espaço-lugar de uma potência
sagrada, mas, também, marco tópico de uma diferença. É um espaço
diferente do espaço da classe-etnia dominante. Um lugar que se fez imantar
por outros signos. Que, por isso mesmo, possui uma identidade distinta da
dos lugares comuns da cidade e de sua periferia. Ali está o ponto onde o
escravo já não é escravo, mas filho de um deus ou de uma deusa, de uma
entidade sagrada africana, de um orixá. (RISÉRIO, 2007, p. 174)
É por isso que se convocam os deuses a habitarem naquele espaço,
todo disposto e pensado segundo a cosmologia dos orixás. O santo, não
por mero acaso, deve ser “assentado”, fixado em sua nova morada no
exílio. Isso é possível pela capacidade do axé (força, tradição e força da
tradição) de “gerar espaços” (SODRÉ, 1988, p. 96), de instituir ordens.
“Pouco importa a pequenez (quantitativa) do espaço topográfico do
terreiro, porque ali se organiza, por intensidades, a simbologia de um
Cosmos” (SODRÉ, 1988, p. 52). O lugar é crua paisagem, na ausência da
cultura, mas apropriado a serviço de uma lógica humana, o espaço ganha
um uso político, fazendo dele território. O mesmo território torna-se
contra-hegemônico na medida em que fortalece a lógica do lugar próprio
(o local) em detrimento da lógica dos não-lugares ou dos lugares impostos
(o global). Para Milton Santos,
Há um conflito que se agrava entre o espaço local, espaço vivido por todos
os vizinhos, e um espaço global, habitado por um processo racionalizador
e um conteúdo ideológico de origem distante e que chegam a cada lugar
com os objetos e as normas estabelecidos para servi-los. (SANTOS, 1996,
p. 18)
A dicotomia entre o “dentro” e o “fora” da comunidade (a “parte
de cá” e a “parte de lá” do terreiro), o lugar (centro de diversidade
humana) e o mundo (centro de homogeneidade cultural). É verdade,
não cabe enclausurar a análise tão somente na fricção pertinente, porém
contextualizada, do local x global, mesmo porque foi, em grande medida, a
manutenção de relações transnacionais entre Bahia e Costa da África que
permitiu o fortalecimento do culto ancestral no Novo Mundo (VERGER,
2002). Tal tensão, embora não permanente, é produto candente de nossa
temporalidade angustiada sob um projeto de colonialismo geográfico.
Todo ordenamento, inclusive o jurídico, começa por ordenar o espaço da
vida. Assim, como expressão amadurecida do Lebenswelt (o “mundo da
vida” na ética habermasiana), a organização (o éthos ou Ettlichkeit) do
terreiro responde a uma composição alternativa:
389
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
É uma solidariedade para além das dimensões do individualismo burguês,
com raízes na divindade (princípios cósmicos) e na ancestralidade
(princípios éticos). Por meio da aglutinação grupal, acumulam-se de
preferência homens, seres-forças, ao invés de bens regulados pelo valor
de troca. (SODRÉ, 1988, p. 108)
A casa de santo, o ilê axé (“casa da força”), o terreiro de candomblé
instauram heterotopias38, espaços de convergência de muitos espaços e
de lógicas contra-hegemônicas (da sociabilidade popular), a partir de uma
inscrição solidária/solitária na territorialidade alheia, sendo, ainda hoje,
um dos epicentros da cultura negra no mundo dos brancos.
3.2. O negro na urbs branca
Contrariamente ao espaço transcultural do terreiro, o espaço da cidade
ocidental, subjugado à normalização do Estado-nação moderno - que dele
se apoderou ao longo de verdadeiras “guerras espaciais” pelo monopólio
do direito de cartografar39 - atende a uma dinâmica em que imperam,
mormente, as verticalidades40 e não as horizontalidades:
A especificidade do relacionamento entre espaço e força tem consequências
sobre a natureza do poder exercido. Assim, o poder da Polis – assentado
em forças cosmológicas, em deuses – difere do poder romano da Urbs, que
associa espaço de poder político com espaço fundiário. Subjaz ao poder
romano a ideia do moderno Estado-nação, que busca a unificação à base
de denominadores comuns redutores das diferenças, avessos à pluralidade
étnico-cultural. (SODRÉ, 1988, p. 91)
Prova disso foram todas as tentativas, ao longo do tempo, de “limpeza
étnica” ou de “desafricanização” (FERREIRA FILHO, 1998-1999) das ruas,
das praças, dos portos, com o álibi do regramento oficial. É patente nos
governos e na legislação do sec. XIX a preocupação em, ao lado das elites
brancas, projetar o Brasil como nação desenvolvida. Médicos higienistas,
seguidores da literatura francesa, darão início a verdadeira cruzada contra
38 O conceito, originalmente apresentado por Michel Foucault na conferência “Utopia e heterotopias”, é assim
assumido por Joaquim Herrera-Flores na esfera da Teoria Crítica dos Direitos Humanos: “A heterotopia, à diferença
do impulso utópico, não se baseia na esperança de um novo começo histórico situado no futuro. A densidade
conceitual da heterotopia reside, ao contrário, no impulso de situar-nos em meio à história, aos processos e desde
aí considerar todo o existente como algo em devenir e transformação constante. Quer dizer, a heterotopia, como
outro lugar a partir do qual se construirá o radicalmente novo, não supõe situar-nos mais além da história, do fluir
dos processos, das mutações da realidade, mas, ao contrário, reapropriar-nos desse fluir e dessa possibilidade de
mutação para conseguir condições que nos permitam devenir outra coisa, devenir algo novo no marco da realidade
e da época histórica na qual vivemos.” (HERRERA FLORES, 2009, p. 35)
39 “A modernização dos arranjos sociais promovidos pelas práticas dos poderes modernos [pelo Estado] visava
ao estabelecimento e perpetuação do controle assim entendido. Um aspecto decisivo do processo modernizador
foi portanto a prolongada guerra travada em nome da reorganização do espaço. O que estava em jogo na principal
batalha dessa guerra era o direito de controlar o ofício de cartógrafo.” (BAUMAN, 1999, p. 37).
40 “Na democracia de mercado, o território é o suporte de redes que transportam regras e normas utilitárias,
parciais, parcializadas, egoísticas (do ponto de vista dos atores hegemônicos), as verticalidades; enquanto as
horizontalidades, hoje enfraquecidas, são obrigadas, com suas forças limitadas, a levar em conta a totalidade dos
atores.” (SANTOS, 2008, p. 143).
390
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
as formas populares de usufruto da cidade, um risco, acreditavam, para
a “saúde pública”. A racionalização do espaço público através de políticas
sanitaristas e ordenadoras, impondo limites à formas de ser, de estar e de
morar negras (SANTOS, Y. 2010), esteve presente com ênfase nos Códigos
de Posturas Municipais do período e posteriores. A política do “botaabaixo” no Rio de Janeiro do início do sec. XX desabrigou cirurgicamente
os negros cariocas:
Com as reformas urbanas, o prefeito Pereira Passos pretendia combater as
doenças endêmicas que infestavam os lares e ruas, remodelar e arejar a
cidade com grandes avenidas e dar fim aos cortiços. A população migrantenegra-baiana que ocupava essas habitações populares passou a residir no
espaço registrado na história cultural da cidade como “Pequena África”,
que consta nos mapas como Cidade Nova. (DINIZ, 2008, p. 39-40)
Mas não apenas sobre a antiga Corte o “embranquecimento” lançou
seu olhar. O desmonte do Centro Velho em São Paulo exemplifica o mesmo
tipo de estratégia biopolítica:
(...) a legalidade urbana foi construída a partir de um padrão único e
supostamente universal, que genericamente correspondia ao modo de
vida das elites paulistanas no momento em que os instrumentos legais
foram propostos. A análise detalhada desses territórios revela como
o direito urbanístico, enquanto discurso e processo, funciona como
mecanismo de criação de um espaço (ainda que imaginário) definidor de
limites, domínios e hierarquias, condenando singularidades divergentes.
(ROLNIK, 1997, p. 61)
Saltam dessa análise a minúcia e o rigor com que se buscava assegurar
cada vez mais a “tranquilidade” e “salubridade” nos centros urbanos
em expansão, reflexos de todo um discurso “civilizatório” que permeia
as políticas oitocentistas. Como recursos retóricos insistentes, vemos
o apelo à ordem e saúde públicas empregados na batalha ferrenha
contra a mais enraizada cultura popular. No imaginário europeizado e
“embranquecedor” das elites brasileiras não cabiam folguedos pagãos,
exóticos tambores, procissões mulatas, nem grandes funerais de reis
negros, como tantas vezes retratou Debret em suas obras. Para colocar no
seu lugar os calundus e candomblés, para sanear a cidade, numa palavra,
para nos modernizar é que estavam aí tanto as leis como os fiscais, a pena
dos doutores e o peia dos feitores.
Em nossos dias, o impasse da segregação sócio-espacial permanece:
favelas, periferias, vilas, aldeias e quilombos são mais objeto de
criminalização que de atenção propositiva dos poderes públicos. O
programa de branqueamento pactuado entre as elites, ao lançar os
391
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
marcos inaugurais da nação brasileira, foi recepcionado no ideário das
instituições estatais, traduzindo-se em ação repressiva ou omissão
expressiva (SKIDMORE, 1976). E sob o influxo da urbanização e da
industrialização, na segunda metade do século XX, chegou-se mesmo ao
ponto de se decretar a “morte branca do feiticeiro negro”, supostamente
sepultado pelo processo de racionalização interna experimentado por
uma parcelada do campo religioso afro-brasileiro, como a umbanda
(ORTIZ, 1999). Tentemos vencer essa miragem.
3.3. O negro na polis multicromática
De um modo geral, as religiões de matriz africana, sem reinventarem-se,
estariam há muito condenadas na cidade que lhes é inóspita. A ampliação
da democracia, na perspectiva desses grupos, não tem propriamente a
ver com a laicização do espaço público, mas com a possibilidade de seu
reencantamento por meio do acesso plural aos seus (des)vãos. Porque,
ainda que o espaço físico seja o mesmo, não é a mesma avenida aquela
em que passa o cortejo militar e aquela em cuja esquina se deposita
uma oferenda. Se a casa e a rua já foram lidas pela antropologia cultural
na chave de uma dicotomia estruturante das relações sociais no Brasil
(DAMATTA, 1997), para o candomblé elas surgem sem solução de
continuidade, conquanto atendendo a funcionalidades cosmológicas
distintas. Aqui caberia uma investigação de semiótica, de “poética” do
espaço (BACHELARD, 1988), pela qual não nos agora toca incursionar. O
que podemos é evidenciar a maneira como cada código de práticas sociais
determina uma singular (e, não raro, conflituosa) apropriação dos lugares
comuns:
As religiões afro-brasileiras têm enfrentado oposição em várias cidades
brasileiras também sobre onde depositar os “despachos”, ou oferendas
aos deuses. Em nome da proteção ambiental e da consciência ecológica,
os locais tradicionalmente utilizados para depósito dos sacrifícios - lagoas,
rios, cachoeiras, matas - têm sido protegidos, ou pelo menos negociados
em sua utilização com outras entidades do estado ou da sociedade civil. De
qualquer maneira, há um avanço político aqui: até trinta anos atrás, jogar
despachos na rua, nas esquinas ou mesmo em terreno baldio era visto
como um ato de poluição simbólica por parte dos adeptos do catolicismo
que se sentiam soberanos em representar a sociedade brasileira como
um todo. E era também um “símbolo do atraso” em termos do relógio
da modernidade: provocava vergonha para aqueles que olham o laicismo
como um sinal de “evolução” e “desenvolvimento social”. Agora a discussão
pode superar o preconceito e transformar-se numa negociação entre
iguais em torno de um bem comum, qual seja, a área pública. (CARVALHO,
1999, p. 15-16)
392
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
A diferenciação tangenciada discursivamente se realiza espacialmente:
a nação, ao imprimir a tradição e a cultura sobre uma determinada
fração de terra, institui um território (Onilé41), considerado ele mesmo
em descompasso com território nacional. Há e não há integração entre
o terreiro e a cidade. Num primeiro momento analítico, ele representa
um recorte diferencial em termos civilizacionais. Não obstante, logo
em seguida, podemos distinguir na nebulosa quase homogênea da
metrópole, sinais e marcas no tecido da polis que revelam a presença do
mítico no âmago daquilo que deveria ser a expressão mais bem-acabada
de racionalidade ocidental, de modernização, de secularização. Conforme
buscamos demonstrar, o ritual politiza o espaço da cidade à medida que
dele se apropria. A paisagem urbana se conforma na produção conflituosa
do espaço, como se dá na Festa do Bonfim42.
A seu modo, a etnografia de Silva sobre os usos místicos do urbano pelas
religiões afro-brasileiras traz mais aportes para sustentar a tese de que
a superação do modelo político-urbanístico da urbs monocromática por
uma verdadeira polis pluriétnica e multicultural passa pela ressignificação
da cidade e de seus exclusivismos, ora quando a tradição religiosa
recompõe os espaços naturais indispensáveis à realização do culto, ora
quando reconhece nos nichos do artifício humano (esquinas, cemitérios,
etc.) o domínio de seus deuses:
A presença do terreiro na cidade é, pois, o resultado dessa dinâmica
relacional entre o dentro e o fora da religião construída através do diálogo
entre os dois universos. E nesse diálogo entre o candomblé e a cidade, a
incorporação de um universo pelo outro permite que os deuses (e os seus
ritos) se transformem para habitar a cidade (como espaço físico e social)
e que esta se faça cada vez mais apropriada para recebê-los e protegê-los
como parte de seu amplo mercado de bens simbólicos. (SILVA, 2000, p.
122)
Não se deve desprezar a força política dessa reterritorialização,
a intensidade mística e insurgente da simbolização como manifesto
reivindicativo de direitos e isonomias. Toda essa escrita do imaginário
fundamenta-se numa determinada concepção marginal de justiça, de
cidadania e de dignidade humana, objetos de disputa e de permuta entre
Thémis e Xangô.
41 Ou seja, a própria terra, o solo, que deve ser periodicamente alimentado e consagrado ritualmente.
42 “(...) estudando as manifestações festivas e religiosas que ocorriam na península de Itapagipe, pudemos
observar a dinâmica da longa e multifacetária história da Bahia. Uma história de luta, que envolveu questões
relacionadas com religião, a política, a moralidade, continuidades e rupturas da tradição, valores do catolicismo,
religiosidade africana e a realidade do amplo processo de miscigenação cultural (...) Embora fugaz, pois se realiza
apenas uma vez por ano, a festa do Bonfim confere à cidade um significado particular, apresentando uma linguagem
própria” (SANTANA, 2009, p. 227).
393
O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
4. Quando Thémis encontra Xangô: encruzilhadas
da justiça e dos direitos
Logo ali, na encruzilhada onde Thémis – síntese da herança grecoromana do direito ocidental – esbarra com Xangô – ícone da justiça de
dinastia nagô-iorubá – Ogum, divindade de (van)guarda, busca abrir o
caminho estreito rumo a uma cidadania negra, ainda hoje mais margeado
de mocambos que de sobrados. Antigos são os dilemas, contemporâneos
os debates que os pretendem enfrentar. Velhos são os deuses, novos são
os mundos que passaram a habitar. Todavia, conforme discorre Kwame
Appiah, não são irredutivelmente inconciliáveis, nem no plano cognitivoepistemológico, nem no plano ético-político, aquilo que, na falta de termos
mais adequados, poderíamos caracterizar como “tradicionalidade” e
“modernidade” (APPIAH, 1997, p. 191-192). Enquanto a intolerância, a
estigmatização e a expectativa dos direitos instituídos, porém negados43,
fustigam o povo-de-santo brasileiro, em Gana, um pássaro encara o
próprio rabo. Este não é um koan chinês, mas um ideograma adinkra. O
pássaro, por sua vez, é Sankofa, imagem que lembra: “Se wo were fi na wo
sankofa a yenkyi”, noutras palavras, “nunca é tarde para voltar e apanhar
o que ficou atrás”:
O ideograma Sankofa remete à missão e ao momento de recuperar a
dignidade humana desses povos. Espalhados pelo mundo, africanos e seus
descendentes se reconhecem herdeiros de uma civilização que engendrou
a escrita, a astronomia, a matemática, a engenharia, a medicina, a filosofia
e o teatro. O conhecimento e o desenvolvimento permeiam a história da
África, em sistemas de escrita,, avanços tecnológicos, estados políticos
organizados, tradições epistemológicas. (...) Nele, o princípio Sankofa
significa conhecer o passado para melhorar o presente e construir o
futuro. (NASCIMENTO e GÁ, 2009, p. 22)
Numerosas são, neste viés, as convergências entre o repertório jusepistêmico afro-brasileiro e os desafios atuais para a confirmação de
uma perspectiva não mais universalista, mas multicultural, dos direitos
humanos, com destaque para as sociedades cindidas por heranças
coloniais de desigual distribuição de oportunidades e de acesso a bens
jurídicos e a capital simbólico/cultural. A contribuição proporcionada
pelo imaginário da justiça afro-brasileira para enriquecer o estatuto
da democracia contemporânea diz respeito à introjeção, na equação
da teoria clássica do direito, de vetores de descolonização, haja vista a
43 Como exemplos de direitos cuja defasagem de implementação avulta para os religiosos de matriz africana,
em relação a outras devoções, são a previdência social para seus sacerdotes (ALVAREZ e SANTOS, 2006) e a
imunidade tributária dos respectivos templos e locais de culto relativa ao Imposto sobre a Propriedade Predial e
Territorial Urbana (IPTU). Sobre este último ponto, remetemos ao parecer elaborado pela Associação de Advogados
de Trabalhadores Rurais da Bahia, entregue ao Município de Salvador para pleitear, com sucesso, o benefício
constitucional em favor do Ylê Axé Oxumarê, importante casa de santo da cidade (in: Revista da AATR, 2004).
394
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
simbiose não abolida entre a matriz judaico-cristã de pensamento e as
fabulações do direito moderno:
La referencia a Dios es sin duda uno de los rasgos más arcaicos, pero
también más recurrentes, del pensamiento jurídico, aun cuando la
secularización progresiva de nuestros derechos occidentales y la
“emancipación” al menos parcial del derecho “humano” en relación al
derecho “divino” redujo aparentemente la actualidad de este fenómeno
(...) Kelsen lo afirma con nitidez: entre Dios y el Estado no se establece
sólo un paralelo lógico; existen relaciones reales que los aproximan (OST e
KERCHOVE, 1991, p. 73-76)
Além da imbricação estrutural entre teologia cristã, teoria do Estado
e filosofia política que se revela ainda (oni)presente (no fundamento
transcendental da autoridade do ordenamento jurídico, na sua
organização piramidal hierarquizada, na sistemática de “absolutidão” e
ausência de anomia etc.), indícios menos monumentais, mas nem por
isso menos sintomáticos, assomam nos símbolos religiosos em exposição
nas repartições públicas, nas casas de leis, nas salas de justiça. Uma
permanência justificada, a despeito dos imperativos angustiados da
laicidade, como traço cultural do povo brasileiro.
Cultura que, a propósito, salvaguardada nos artigos 215 e 216 da
Constituição Federal de 1988, deixa, pouco a pouco, de ser patrimônio de
contemplação narcísica, para tornar-se instrumento de empoderamento
dos povos e comunidades tradicionais, categoria esta que abarca também
o povo de terreiro, por expressa disposição do Decreto n. 6.040/2007. Na
contramão das imanências naturalizadas, novas metodologias e projetos
eclodem por todas as latitudes: fala-se em jurisdições indígenas e negras
em diversos países da América Latina, fala-se em autogoverno. No Brasil,
o Estatuto da Igualdade Racial (Lei Federal n. 12.288/2010), entre outras
matérias de relevo, dedicou à liberdade de crença especial atenção:
Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício
dos cultos religiosos de matriz africana compreende:
I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade
e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados
para tais fins;
II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das
respectivas religiões;
III - a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições
beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;
IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais
religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva
religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;
V - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à
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O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
difusão das religiões de matriz africana;
VI - a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de
natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das
respectivas religiões;
VII - o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das
respectivas religiões;
VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal
em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de
comunicação e em quaisquer outros locais.
Art. 25. É assegurada a assistência religiosa aos praticantes de religiões
de matrizes africanas internados em hospitais ou em outras instituições
de internação coletiva, inclusive àqueles submetidos a pena privativa de
liberdade.
Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate
à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de
seus seguidores, especialmente com o objetivo de:
I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de
proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao
ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes
africanas;
II - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens
de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios
arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas;
III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões
de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em
comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas
ao poder público.
Ao tempo em que comunidades-terreiro começam a sair da invisibilidade
através da replicação, em escala nacional e com expressivo êxito, de
procedimentos de mapeamento participativo como os adotados pelo
projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais
do Brasil, pais e mães-de-santo, mediadores por natureza entre mundos,
compõem cotidianamente conflitos, demandam perante os tribunais,
constroem alianças, integram-se ao planejamento e à execução de políticas
públicas e dialogam com o establishment cada vez mais intensamente. O
povo-de-santo não passa em branco. Veem e fazem-se vistos, encarnando
o dizer dos antigos: “quem não é visto não é lembrado”. E o fazem desde
seu olhar sobre a justiça, da sensibilidade jurídica44 que lhes é peculiar.
Nada obstante, impende reconhecer: mais do que ao encontro, Thémis
e Xangô estão habituados ao embate pelos sentidos da legalidade. E não
44 Na arquitetura teórica de Clifford Geertz, a sensibilidade jurídica de cada grupo social seria “o primeiro
fator que merece atenção daqueles, cujo objetivo é falar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do
direito. Pois essas sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os
processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir (...) e, profundamente, nos meios que utilizam –
nos símbolos que empregam, nas estórias que contam, nas distinções que estabelecem – para apresentar eventos
judicialmente.” (GEERTZ, 1997, p. 261-262).
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Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
é preciso ir longe para verificar a tensão que subsiste entre os valores de
dignidade assumidos pelo Estado Democrático de Direito, alicerçado em
uma ficcional laicidade, e a prática segregacionista de suas instituições.
Permanecem vigentes em nosso ordenamento tipos como o do
anacrônico artigo 284 do Código Penal (embora haja alentos de mudança
em seu atual processo de revisão), a ensejar constante criminalização da
umbanda, do candomblé, do batuque, do tambor de mina, do xangô e de
seus congêneres. Em tese, ao menos, e interpretado sem o necessário giro
de constitucionalização, o dispositivo inviabilizaria qualquer espécie de
manipulação litúrgica ou fitoterápica prescrita pela medicina tradicional
afro-brasileira. Venhamos ao pé da letra:
Art. 284 - Exercer o curandeirismo:
I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer
substância;
II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III - fazendo diagnósticos:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente
fica também sujeito à multa
Nítido é o resquício de disciplinarização, de “ortopedia moral” – na
expressão foucaultiana – que reside na forma como se encontra dada a
redação do artigo. Trata-se de autoritária reminiscência que não merece
sobreviver, uma vez que remete sintomaticamente a
(...) um confuso conjunto de todos os comportamentos que não
correspondiam à vertical disciplina policial da sociedade industrial,
traduzível na livre punição do mero portador dos signos do estereótipo.
Esse foi o fundamento do estado perigoso sem delito, por meio do qual
se pretendia apenar os desocupados, mendigos, ébrios, consumidores de
drogas, prostitutas, homossexuais, jogadores, rufiões, gigolôs, adivinhos,
magos, curandeiros, religiosos não-convencionais, etc., sem que
cometessem qualquer delito, em função de sua pretensa periculosidade
pré-delitual. (ZAFFARONI, 2003, p. 577)
A partir da análise do material jurisprudencial compilado por A. L. P.
Schritzmeyer, abrangendo quase um século de pesquisa (1900-1990),
é-nos lícito concluir, desde logo, que, ao contrário da opinião corrente nos
meios jurídicos, o crime de curandeirismo segue dando azo à persecução
penal, ainda quando absorvida pela Lei n. 9.099/1995, diante de seu
menor potencial ofensivo. Continuam tendo lugar, portanto, os episódios,
amiúde burlescos, que contrapõem ditos “curandeiros”, seus acusadores e
os magistrados nos palcos dos tribunais, mobilizando sentidos, no mais das
vezes, antagônicos. Esses espaços, por isso mesmo, constituem profícuos
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O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
“observatórios” sociológicos, refletindo, por extensão, vicissitudes das
relações de poder dramatizadas cotidianamente na sociedade brasileira
como um todo. Identifica-se, nos casos em que são parte adeptos de
religiões afro-brasileiras, a incidência frequente das chamadas metaregras, isto é, vetores hermenêuticos derivados de um código oficioso, nãoescrito (second code) mas operante no processo concreto de imputação
da culpa (BARATTA, 2002). Trocando em miúdos, os juízos formulados
sobre a conduta descrita no art. 284 valem-se, via de regra, de conceitos
hermeneuticamente vagos, deixando transparecer pré-concepções e
preconceitos de um viés colonizado. Assim, curas empreendidas por
confissões judaico-cristãs são socialmente classificadas como “milagres”.
Já curas empreendidas por tradições outras são judicialmente travestidas
como “crimes”:
Não havia, por tudo isso, em relação à liberdade de culto, possibilidade
de garantir espaço oficial para crenças e religiões que fossem,
simultaneamente, doutrinárias e práticas, ou seja, tivessem ao mesmo
tempo um pé na modernidade teórico-científica e na busca de princípios
e pressupostos lógicos (causas e efeitos comprováveis) e outro pé
no empirismo de tradições legitimadas por reiteradas atribuições
de significado a acontecimentos cartesianamente desconectados.
(SCHRITZMEYER, 2004, p. 138-139)
Mas a prática da repressão consegue inovar sempre, mostrando-se
ainda mais perversa. No Município de Registro (SP), em 2003, durante os
procedimentos de iniciação de uma criança, administrados por motivos
de saúde, cinco fiéis do candomblé foram presos em flagrante, acusados
de “cárcere privado”. A ironia do caso é que fora o sacerdote à frente
do terreiro quem, que, de inteira boa-fé, pedira à mãe biológica que
comunicasse o Conselho Tutelar sobre a autorização concedida para
o tratamento religioso, no intuito de agir da forma mais transparente
possível com as autoridades locais. Sua postura, porém, não evitou que
mais de 150 pessoas presentes à festa de saída da nova yawô fossem
conduzidas à delegacia para prestar esclarecimentos, num quadro
persecutório inegável (JÚNIOR, 2008, p. 184).
Não à toa, se os juristas invocam argumentos de ordem legal, o povode-santo invoca a ordem sobrenatural, invoca “babá tenù no mo ré” (“o
pai que aplica o direito”), entoando:
Justiça, meu pai, justiça
Justiça para os filhos teus
Justiça, meu pai, justiça
Ganhou justiça quem mereceu45
45 Cantiga de Xangô recolhida, em 2008, no Terreiro de Umbanda Reino de Aruanda, então situado em Curitiba.
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Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Seus ecos ainda muito terão de se ouvir. Pois, se, nas últimas décadas, o
candomblé pôde fortalecer-se na aproximação com as esquerdas políticopartidárias e com os movimentos sociais, retroalimentando um conjunto
de leituras e demandas reivindicativas destes últimos (HOFBAUER, 2006),
os anos 1990 testemunharam um “rearranjo global do campo religioso
no Brasil” (MONTES, 2012, p. 12), trazendo à baila novos atores e novas
correlações de força entre as esferas privada e pública do sagrado. A
proliferação dos cultos neopentecostais marcaram uma inflexão de
escalante belicosidade contra as religiões afro-brasileiras, reformulando
o projeto de embranquecimento em sua modalidade cultural46,
africanofóbica:
A demonização das religiosidades afro-brasileiras que se produz nesse
contexto assume características de verdadeiro etnocídio, porque se
estende, para além do universo religioso, à totalidade de um patrimônio
cultural negro, preservado ou recriado ao longo de século de história no
Brasil, e que sempre constituiu um universo de significados partilhados,
permitindo a construção positiva de uma identidade de contraste. Diante
de uma religião que se apropria em negativo de todo o conjunto de símbolos
que conformam o etos e a visão de mundo próprios às religiosidades afrobrasileiras, na situação limite em que a violência se transforma em terror,
o que é grave é que não sobra às pessoas nenhuma opção, sejam elas
brancas ou negras. Ou se serve aos desígnios do Maligno, ao se manter
qualquer contato com esse universo cultural demonizado, ou se está do
lado de Deus, que agora só tem uma única face. (MONTES, 2012, p. 87)
Enquanto, pragmaticamente, o reencantamento do mundo praticado
pelos religiosos afro-brasileiros sem esteio numa reflexão explicitamente
política presta-se a disputar o cotidiano do espaço público, em sua feição
mais concreta, como as matas e os logradouros de uso comum, o povo de
santo começa a esboçar um discurso articulado em termos propriamente
constitucionais, reivindicando do Estado a laicidade formalmente
positivada, mas nunca efetivada na vida das instituições públicas
brasileiras. Esse movimento dá-se, em grande medida, como reação ao
imbricamento conservador entre público e privado, em curso na guerra
santa de posições empreendida por setores protestantes mais radicais:
A mídia garante visibilidade à igreja e aos candidatos e a filantropia
estabelece um vínculo clientelista, pois as figuras que aparecem como
gerentes da redistribuição de benefícios são também os candidatos a cargos
públicos. A ação política institucional não se resume somente à disputa por
mandatos políticos, mas estende-se a outras posições institucionais que
estão sendo alvo dos quadros da Igreja Universal [do Reino de Deus], com
a disputa mais recente em vários Estados por mandatos nos Conselhos
46 A despeito disso, não se pode descartar a possibilidade de acomodação de outro espectro de questões
identitárias ligadas à raça no seio do protestantismo neopentecostal, como sublinham certos estudos (BURDICK,
2001).
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O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afro-brasileiras
Tutelares, com a finalidade de garantir um enraizamento maior nas
instituições públicas. (ALMEIDA, 2007, p. 176)
concepção jurídica de patrimônio, há também uma incorporação dessa
noção à sua cosmologia. (BITAR, 2010, p. 173)
Tal “plano de poder”, assim definido pelas próprias lideranças da Igreja
Universal do Reino de Deus (MACEDO e OLIVEIRA, 2008), tem promovido
deslocamentos nos modelos de interação social e nas estratégias de
sobrevivência razoavelmente consolidados e exitosos das religiões
afro-brasileiras, passando a ameaçar sua manutenção e expansão,
destacadamente nas principais metrópoles do país. Num cenário
em que as cadeiras Poder Legislativo são progressiva e difusamente
ocupadas por parlamentares oriundos das vertentes neopentecostais,
descontinuamente organizados sob as bandeiras de uma “bancada
evangélica”, os Poderes Executivo e Judiciário têm sido chamados a
estabelecer alianças contramajoritárias com as religiões de matriz africana,
haja vista a emergência contemporânea de uma espécie de “jurisdição
dos conflitos religiosos como mais uma faceta das transformações que
tendem ao pluralismo religioso utilizando-se cada vez mais da regulação
externa ao campo religioso” (ALMEIDA, 2007, p. 184).
Além de fortalecer o acesso do povo-de-santo aos espaços públicos para
fins de trabalho, o registro do acarajé agregou prestígio ao alimento em
sua versão tradicionalmente litúrgica, num contexto de acirramento das
tensões entre os cultos afro-brasileiros e as igrejas neopentecostais, que
se apropriaram da comida votiva rebatizando-a como “Bolinho de Jesus”.
É fato que as trocas e entrechoques do candomblé com as classes políticas
não são, a rigor, uma novidade, fazendo parte de sua história desde e os
primórdios, com indisfarçável aprofundamento a partir da década de 1930
(SANTOS, 2005). Todavia, o debate atual sobre os usos e abusos do acarajé
ganhou amplitude nacional e reinseriu na agenda pública a urgência de se
refletir sobre os modelos de interação e de regulação do campo religioso,
tendo como carros-chefes as pautas da “autoria”, da autenticidade e da
tradicionalidade da cultura.
Quanto ao estreitamento de laços com o Poder Executivo, à parte o
direcionamento de políticas com recorte étnico-racial no marco das ações
afirmativas promovidas pelo governo, destacadamente na esfera federal
e na última década (GUIMARÃES, 2008), interessantes possibilidades
foram entreabertas do reconhecimento oficial de práticas religiosas
afro-brasileiras como patrimônio cultural. Se a dimensão material
dos candomblés vinha recebendo atenção do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional desde a década de 1980 – sendo o ano de
1986 o divisor de águas nessa aproximação, com o tombamento da Casa
Branca do Engenho Velho –, não foi desprezível o avanço da conjuntura
recente com relação ao patrimônio imaterial. Prova disso é o conjunto de
processos de inventariamento de terreiros em curso em diversos estados,
como no Distrito Federal (BRASIL, 2009), ao lado do registro do ofício
das baianas de acarajé, levado a cabo em 2004, no Livro dos Saberes. Os
efeitos desse expediente não são meramente simbólicos, com a adoção
formal por toda a nação brasileira de um elemento tipicamente associado
ao culto de Iansã/Oyá, mas repercutem nas lutas cotidianas dos que fazem
do acarajé um meio de subsistência:
O registro do “ofício” aparece, para as baianas, como um instrumento
de legitimação do seu trabalho, diferenciando-as primeiramente dos
“ambulantes”. Mas, em outras ocasiões, essas baianas questionam: “para
que serve o registro?”. Há uma preocupação das baianas de acarajé pela
“utilidade” do registro. Na maioria dos casos, ele é acionado para a vencer
dificuldades de legalização do ponto. Não obstante, para além de uma
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No que toca ao exercício da jurisdição, há que se mencionar duas
decisões emblemáticas, a primeira de cunho cível, do Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia e a segunda do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul, assentando, em disputado julgamento, a inconstitucionalidade da
proibição dos sacrifícios rituais de animais nos cultos afro-brasileiros.
A Ação de Indenização nº 8.215.479/01, da 17ª Vara Cível e Comercial
de Salvador, foi movida pelo espólio da yalorixá Gildásia dos Santos,
mãe espiritual do Ilê Axé Abassá de Ogum. A sacerdotisa foi ameaçada
e moralmente agredida depois que a Folha Universal, veículo da Igreja
Universal do Reino de Deus, publicou matéria altamente ofensiva aos
cultos de matriz africana, utilizando sem qualquer autorização imagem
sua. A sentença de primeiro grau, datada de janeiro de 2004, condenou a
requerida ao pagamento de mais de um milhão de reais. Embora o

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