Direitos Humanos e Políticas Públicas
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Direitos Humanos e Políticas Públicas
DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS Editora Universidade Positivo Curitiba | Paraná | Brasil 2014 Carlos Alberto Richa ORGANIZADORES GOVERNADOR Eduardo Faria Silva José Antônio Peres Gediel Silvia Cristina Trauczynski Flávio Arns VICE-GOVERNADOR Revisão: Claudiomiro Vieira-Silva Maria Tereza Uille Gomes SECRETÁRIA DE ESTADO DA JUSTIÇA, Assistente de Pesquisa e Organização: CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS Kellyana Bezerra de Lima Veloso Capa: Leonildo de Souza Grota Ana Carolina Gomes DIRETOR GERAL DA SEJU Fotos: Denis Ferreira Netto Regina Bergamaschi Bley DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE Diagramação e Editoração: DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA Agência Experimental Practice | Letícia Corona e Ricardo Macedo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da Universidade Positivo - Curitiba - PR José Pio Martins REITOR DA UNIVERSIDADE POSITIVO Arno Antonio Gnoatto PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO Márcia Sebastiani D598 Direitos humanos e políticas públicas / organizadores, Eduardo Faria Silva, José Antônio Peres Gediel, Silvia Cristina Trauczynski. Curitiba : Universidade Positivo, 2014. 432 p. : il. ISBN 978-85-8486-037-1 PRÓ-REITORA ACADÊMICA Roberto Di Benedetto COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO DA UNIVERSIDADE POSITIVO 1. Direitos humanos. 2. Políticas públicas. 3. Sociedade I. Silva, Eduardo Faria. II. Gediel, José Antônio Peres. III. Trauczynski, Silvia Cristina. IV. Título. CDU 342.7 Sumário Apresentação - Maria Tereza Uille Gomes NAS FRONTEIRAS DA JUSTIÇA FUNDAMENTOS, UNIVERSALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO 11 Direitos Humanos: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig 207 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel 37 A Fragmentação da proteção contemporânea dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção Melina Girardi Fachin 223 O Projeto de Lei do Senado N° 236/2012 e o Retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo 51 Direitos Humanos e Arte: diálogos possíveis para uma Episteme Leandro Franklin Gorsdorf 245 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? Efraín Peña Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico Eduardo C. B. Bittar 263 67 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso 281 O Lugar do Paraná no Fluxo Contemporâneo das Migrações Internacionais Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes 295 Porque o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas Eduardo J. Vior 85 Educação em Direitos Humanos Thiago Assunção HORIZONTES DA DEMOCRACIA E DA JUSTIÇA IDENTIDADE, DIFERENÇA E CIDADANIA 99 A justiça de transição e o Brasil: breve relato Vera Karam de Chueiri 311 111 Justiça Restaurativa como Direitos Humanos: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias 331 Estado, Sociedade e as Políticas Públicas para as Mulheres Regina Bergamaschi Bley 131 Círculos de Diálogo: base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli 351 Igualdade racial e territórios tradicionalmente ocupados por quilombolas Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel 153 Os Dois Pratos da Justiça Internacional: vencedores e Vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior 371 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afrobrasileiras Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino 173 Breve Análise da Representação Política Face à Implementação da Defensoria Pública do Paraná Ana Zaiczuk Raggio 413 Políticas Públicas, Direitos Humanos e Cidadania em Relação à Água: o caso do Programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich 191 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli Apresentação O livro que ora apresentamos resulta do conjunto de atividades desenvolvidas pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos - SEJU, com a finalidade de aprofundar o debate e fomentar a implementação de políticas públicas de Direitos Humanos e Cidadania, no Estado do Paraná. Para a execução dessas atividades esta Secretaria teve sua estrutura alterada, por meio do Decreto 5.558/2012 e, posteriormente, pelo Decreto 10.714/2014, que definem o campo de atuação desta Pasta e afirmam que a política deve estar focada no respeito à dignidade humana. No plano institucional foi criado o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania - DEDIHC, substituindo a Coordenadoria de Direitos da Cidadania (CODIC), anteriormente responsável pela consecução dessa política. Essa alteração não é banal, pois além de ampliar e reforçar a estrutura administrativa destinada a formular e tornar efetivos os direitos humanos e os direitos de cidadania, na esfera estatal, retira da invisibilidade essas questões e as coloca em pé de igualdade com as demais atribuições a cargo da SEJU, quais sejam: a gestão do sistema penitenciário, a defesa do consumidor e a execução de políticas públicas sobre drogas. Essa estrutura de políticas públicas específicas articula-se internamente, pois o sistema penitenciário requer uma atenção especial no tratamento dos direitos humanos dos apenados e dos servidores públicos responsáveis pelo seu funcionamento, do mesmo modo que, a defesa do consumidor se constitui hoje em um dos aspectos mais relevantes dos direitos do cidadão. Para além das atribuições inerentes à SEJU, o DEDIHC tem o encargo de incentivar, promover, apoiar e organizar a formulação das políticas públicas de direitos humanos e cidadania, por meio de um diálogo permanente com a sociedade civil e suas instâncias de participação democrática organizadas sob as formas de conselhos, comitês, comissões e grupos de trabalho. Cabe, ainda, ao DEDIHC organizar e promover as Conferências Estaduais de Direitos referentes às várias políticas setoriais, e assegurar a participação dos representantes da sociedade civil e do Estado do Paraná, nas Conferências Nacionais. A formulação de Planos Estaduais, que detalham e atribuem responsabilidades aos órgãos estatais, pelas políticas setoriais, também fica a cargo desse Departamento. A par disso, o DEDIHC é responsável e compartilha a responsabilidade com outras instituições e entidades da sociedade civil pelo funcionamento de Centros de Referência de Direitos. Cabe destacar a participação do DEDIHC para a implementação de ferramentas de gestão de políticas públicas, como a que vem sendo desenvolvida por esta Secretaria denominado Business Intelligence (BI), que consiste no processo de coleta, organização, análise, compartilhamento e monitoramento de informações que oferece suporte à gestão de políticas públicas e permite a interação com a sociedade. A natureza das atribuições do DEDIHC requer, assim, um diálogo atento com as formulações teóricas, que orientam a elaboração de políticas, planos, propostas, relatórios e outros documentos oficiais de caráter informativo e prescritivo. É nesse contexto que o livro ora apresentado, “Direitos Humanos e Políticas Públicas”, vem servir de instrumento de reflexão aprofundada sobre esses temas e expor as questões mais candentes e as políticas em curso, no Estado do Paraná. O livro é produto de um esforço comum de todos os servidores do DEDIHC, que em seus afazeres específicos contribuem para dar corpo às políticas públicas, sem descuidar do diálogo com a sociedade civil. A obra resulta, também, da relação permanente com as universidades e seus pesquisadores, em especial, com a Universidade Federal do Paraná e com a Universidade Positivo, que firmaram Termos de Cooperação Técnica com esta Secretaria, para permitir a aproximação e participação de professores e estudantes, nos espaços de formulação de políticas públicas, conferências e comitês, e o exercício da cidadania entre seus estudantes, possibilitando-lhes acompanhar detidamente a formulação de instrumentos de defesa de direitos. A Universidade Positivo é partícipe, de maneira especial, com o esforço intelectual e organizativo dos professores Roberto Di Benedetto, Coordenador do Curso de Direito, e Eduardo Faria Silva, professor titular da disciplina de Política, Estado e Constituição, esforço esse que se amplia com a participação de outros professores que se agregam a este projeto de cooperação interinstitucional. O apoio da Universidade Positivo encontra na figura do seu Magnífico Reitor, José Pio Martins, o entusiasmo e o dinamismo que tornaram possíveis a edição e impressão da presente obra. Curitiba, 2014. Maria Tereza Uille Gomes Secretária de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos Celso Luiz Ludwig FUNDAMENTOS, UNIVERSALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO 11 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz LUDWIG1 Os Direitos Humanos, em especial no aspecto da fundamentação, ocupam lugar de algum destaque na reflexão filosófica latino-americana, entre tantos outros temas importantes. A seguir apresento possível enfoque do tema. Antes de mais nada, no entanto, cabe perguntar se é possível uma fundamentação nessa época de perplexidade, de pluralismo e de fragmentação? Ou então, em tempos de afirmação do multiculturalismo e da pluralidade das tradições, ou até mesmo de ceticismo mais extremo, faz sentido investigar a possibilidade e também a necessidade de uma fundamentação última e pós-metafísica? 1.A delimitação filosófica O tema será apresentado no contexto teórico da disputa de alguns dos principais modos do pensamento filosófico atual. A estratégia argumentativa situa o tema no amplo contexto dos grandes paradigmas da filosofia ocidental e, também, com as chamadas grandes condições ou projetos de mundo, para a partir daí enfrentar a questão da fundamentação dos Direitos Humanos. A proposta arquitetônica do tema será apenas indicativa porque um tratamento mais analítico ultrapassaria o objetivo e o limite deste texto. 1.1. Assim, o primeiro critério de demarcação teórica situa o tema no contexto da análise paradigmática. A classificação vem de Habermas que menciona o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e linguagem”2. Providencial e justo reclamo provém da Filosofia da Libertação, no sentido da inclusão de um quarto paradigma, denominado por Dussel de paradigma da vida concreta de cada sujeito como modo de realidade – ou paradigma da vida concreta, ou ainda, simplesmente paradigma da vida. Com essa inclusão, a divisão das épocas históricas da filosofia ficaria sugerida com o auxílio de ser, 12 1 Professor de Filosofia do Direito da UFPR e da Uninter. Procurador do Estado do Paraná. 2 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 21-22.p. citO 13 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna consciência, linguagem e vida concreta. Metodologicamente, é prudente ter em conta que tal mudança paradigmática deve, no entanto, ser entendida no sentido da suprassunção (Aufhebung) hegeliana3, e não na ótica de um processo natural de simples extinção das teorias precedentes substituídas pelas novas. Nesse quadro da filosofia, a demarcação teórica do nosso tema da fundamentação dos Direitos Humanos indica uma argumentação que será paradigmática, e a escolha recai sobre o paradigma da vida concreta de cada sujeito como modo de realidade. Ou seja, a reflexão se dará no contexto dos argumentos e categorias do paradigma da vida. 1.2. Por fim, o segundo critério de demarcação teórica leva em conta a condição ou o projeto de mundo que está em jogo. Com isso, queremos significar que ao atual debate, ainda centrado nas fronteiras que delimitam a modernidade e a pós-modernidade, são necessárias também orientações que provêm tanto de um projeto pré-moderno (são as inúmeras tentativas filosóficas, por exemplo, que tentam reconstruir o sistema-mundo desde as premissas da filosofia do ser, inclusive no campo do Direito), quanto orientações no sentido de um projeto transmoderno – particularmente proposto pelo pensamento contra-hegemônico e pelas filosofias de libertação4. Portanto, no largo contexto invocado, situa-se a questão no âmbito do também chamado pensamento do giro descolonial, nas diferentes expressões da filosofia da libertação, da filosofia latinoamericana, da filosofia da exterioridade, da filosofia analética, da filosofia da alteridade e, também, da, já anunciada, filosofia transmoderna. Enfim, nosso tema será construído tendo em vista o paradigma da vida concreta e o horizonte da condição transmoderna. 2. Em busca de uma fundamentação pós-metafísica pragmática 2.1. Fenomenologia de uso dos termos. O uso das palavras fundamento e fundamentação ocorre no dia a dia das pessoas, nas mais diversas 3 APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica. Dialética e liberdade. Petrópolis : Vozes, 1993, p. 320. 4 Refiro-me aos grandes projetos da modernidade, da pós-modernidade e datransmodernidade, e mais recentemente da hipermodernidade. Em geral, a polêmica fica reduzida ao projeto da modernidade – que com seu caráter emancipatório aposta nas grandes utopias e promessas de igualdade, liberdade e paz, e a contrapartida da pós-modernidade, descrente das grandes narrativas, e que Boaventura de Sousa SANTOS (2000, p. 29 e 37) designa por pós-modernidade reconfortante – por não lançar utopias sugere que se aceite e celebre o existente; posição que contrasta com a pós-modernidade inquietante ou de oposição, esta sim representativa de uma teoria crítica, ainda que pós-moderna porque não subsume sequer o caráter emancipatório da modernidade. Enquanto isso, o projeto da hipermodernidade, na linha de Gilles Lipovetsky, defende a tese da inexistência da condição pósmoderna, uma vez que os pilares da modernidade – indivíduo, mercado e tecno-ciência – não teriam desaparecido em tempos atuais, tendo apenas assumido a forma exacerbada de lógicas do hiper-indivíduo, do hiper-mercado e da hiper-tecno-ciência. O projeto transmoderno tem como ponto de partida as utopias factíveis criativamente formuladas pelos dissensos legitimamente obtidos pelas diversas e heterogêneas comunidades das vítimas, e, ao mesmo tempo, subsume o caráter emancipatório do projeto da modernidade, rejeitando, todavia, seu conteúdo negativo e mítico de justificação de uma práxis irracional e violenta. 14 Celso Luiz Ludwig situações. Portanto, trata-se de uma noção de senso comum, cujo uso é frequente, até mesmo nas situações mais corriqueiras. Não é diferente na produção do saber acadêmico ou científico, em especial para mencionar os fundamentos da ciência, das premissas, dos postulados dessa ou daquela tese. Ocorre o mesmo quando o assunto está no campo da filosofia. Essa palavra, noção, categoria ou conceito acompanha, para afirmá-la ou refutála, de algum modo a história da filosofia desde seu início, com os présocráticos até nossos dias. Os significados desse uso são os mais diversos; impossível seria inventariá-los, o que seria de todo modo inútil, talvez. No entanto, de maneira geral, com as virtudes e vícios epistemológicos que daí decorrem, os significados mais recorrentes de fundamento e de fundamentação podem ser mapeados paradigmaticamente. A finalidade seria a de reunir argumentos que possam indicar o estado da arte nesse particular em tempos atuais, e a partir dessa moldura pensar o sentido do tema, ou então sua falta de sentido, na sugestão dos tempos, que talvez não sejam mais tão modernos assim. Acredito que o procedimento metodológico que segui é um caminho possível - como se vê adiante -, sem prejuízo de outros tantos. Creio que esse seja um dos aspectos que o tema apresenta. 2.2. Fundamentação e fundamentalismo. Antes de enfrentar tal questão, cabe mencionar outro aspecto de relevo que, se não considerado, pode gerar equívocos conceituais importantes, bem como compreensões distorcidas. Pois, antes de mais nada, o tema da fundamentação em nossa epocalidade niilista está também relacionado inevitavelmente ao tema do fundamentalismo. É prudente fazer as distinções conceituais para evitar que a ideia de fundamentação reste colada a algum tipo de fundamentalismo ou aos fundamentalismos de modo geral. A exigência da fundamentação não pode ser confundida com a atitude fundamentalista, seja esta religiosa, política, econômica, jurídica, ou até mesmo intelectual. O fundamentalismo na condição de tema contemporâneo ganhou fase nova no mundo da globalização, esta com seus problemas, riscos e até mesmo com o terrorismo. Os acontecimentos terroristas mais marcantes - em especial os do século XXI, e em particular a chocante terça-feira de 11 de setembro de 2001, na qual foram destruídos os ícones do império norte-americano - ainda buscam no fundamentalismo uma das chaves explicativas dos fenômenos de terror, de parte a parte, ou seja, tanto do ocidente quanto do oriente. Porém, embora como atitude e como tendência o fundamentalismo possa estar presente em todas as religiões e práticas espirituais, bem como possa ser encontrado em todos os sistemas, tanto na cultura, na ciência, na política, no direito, na economia, nem por isso a busca de fundamentos necessariamente significa uma 15 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna atitude fundamentalista. Há que se distinguir o que é distinguível. A atitude fundamentalista se apresenta em qualquer sistema na medida em que alguém ou uma ação se arvora a condição de portador exclusivo da verdade ou da solução única para os problemas. Nesse caso, estamos diante de atitudes fundamentalistas. Pois, em geral, podemos dizer que o fundamentalismo não é uma doutrina, mas a forma de conceber uma doutrina, a forma de compreendê-la, de interpretá-la e principalmente a forma de vivê-la, como verdade única, absoluta, fechada e imutável. Significa assumir a doutrina e suas normas na letra fria com descuido total da história dinâmica na qual se insere, e que exige sua contínua atualização semântica, diacrônica e diatópica. Ora, não é disso necessariamente que trata o tema da fundamentação. Leonardo Boff, em palestra proferida no Planetário do Rio de Janeiro, em novembro de 2001, intitulada Fundamentalismo – a Globalização e o Futuro da Humanidade, ajuda a compreender a diferença que aqui buscamos: Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Não é uma doutrina, mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, que obriga a contínua interpretação e atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial. Portanto, o problema do fundamento não pode ser confundido com o tema do fundamentalismo, como se observa. Diante disso, que sentido tem a questão da fundamentação, ou como poderia ela ser sugerida, hoje, sem cair nas armadilhas fundamentalistas com todas as suas consequências? Reflexões para essa questão serão examinadas na sequência das discussões aqui propostas. 2.3. Fundamentação e niilismo. Outro aspecto a considerar, portanto, e preliminarmente, se refere à própria situação em que se encontra a questão do fundamento ou da fundamentação em tempos de ceticismo, niilismo, relativismo, subjetivismo, provisoriedade, tempos de pensamento fraco, enfim, tempos de pensamento na era pós-moderna, pós-metafísica, pós-filosófica, como se propaga. Tempos em que a incerteza parece ser a única certeza possível. Portanto, a atitude ou a pretensão de se buscar os fundamentos de algo, ainda mais os fundamentos últimos – inultrapassáveis – da vida humana e de toda a realidade, seus primeiros ou últimos fundamentos parece tarefa inútil, pretensiosa, temerária, quando não insana. É um tempo de quebra de paradigmas, incluídos aí também os paradigmas filosóficos. Como compreender o tema da fundamentação na crise dos paradigmas? Creio que cabe, primeiramente, compreender o sentido no interior de cada paradigma. Para depois, 16 Celso Luiz Ludwig e é o que mais interessa, compreender o sentido da fundamentação na crise peculiar dos tempos atuais. Seria isso? Ou então, a questão da fundamentação deve ser abandonada de vez? E se tanto, não seria este o tempo mais adequado para isso? O desafio do tema se apresenta nesse vazio da liquidez filosófica que acompanha o derretimento de certezas, principalmente as hegemonicamente construídas. Assim, as reflexões deste texto pretendem investigar, ainda que indicativamente, a possibilidade ou não (critério de factibilidade) de, no campo da filosofia, tendo em vista o estado da arte neste momento, encontrar uma fundamentação para os Direitos Humanos na perspectiva transmoderna e, enfim, verificar como seriam esses fundamentos, e qual seria o sentido dessa fundamentação hoje. 2.4. Breve compreensão paradigmática5 da fundamentação. O que se pretende mostrar nesse instante está relacionado diretamente ao núcleo de cada um dos paradigmas filosóficos com a exclusiva finalidade de caracterizar o movimento que se realiza no processo de fundamentação, além de evidenciar o elemento que confere base à fundamentação, ou propriamente revelar seu fundamento. Segue resumida caracterização da questão em cada paradigma: 5 A noção de paradigma, amplamente utilizada nas mais diferentes áreas do saber, tornou-se usual também na Teoria e Filosofia do Direito. Seu uso, no entanto, não é unívoco. Acepções diferentes surgiram no debate jusfilosófico atual. Parece, entretanto, poder destacar dois sentidos recorrente: um primeiro sentido tem caráter epistêmico, exaustivamente explorado; um segundo, nem tão desenvolvido, diz respeito aos paradigmas societais. Empresto tal tipologia de Boaventura de Souza Santos (1977). Enquanto os paradigmas epistêmicos estão ligados à transição entre saberes filosóficos, entre uma ciência e outra e entre um paradigma jurídico e outro, os paradigmas societais referem-se a diferentes formas básicas de organização e vida em sociedade. Apresento alguns esclarecimentos nesta nota sobre o uso da noção de paradigma neste trabalho em conexão com a noção de perspectiva também útil na análise do tema da fundamentação que tenho como pano de fundo permanente na reflexão em desenvolvimento. A noção de paradigma, foi recepcionada pela filosofia, ao ponto de Habermas (1990 p. 21-22) fazer alusão ao costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e linguagem”. A noção de paradigma, conceitualmente construída por Thomas S. Kuhn (1992), objetiva explicar a transformação do conhecimento científico através de saltos qualitativos e não de modo cumulativo e contínuo. Afirma que “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (1992, p. 219). Assim, a ciência apresenta duas fases: a fase da ciência normal e a fase da ciência revolucionária. Kuhn chama de ciência normal a que se processa enquanto o paradigma é aceito pela comunidade científica, e, de ciência revolucionária àquela que se processa quando da mudança de paradigma, com base e nos limites deste novo paradigma. Pode-se dizer que um paradigma consiste num modelo de racionalidade, num padrão teórico, hegemônico em determinados momentos da história e aceito pela comunidade que o utiliza como fundamento do saber na busca de compreensões e soluções. A aplicação de tal conceito possibilita dizer que a filosofia desde a Grécia antiga até a atualidade desenvolveu, segundo sugestão de Habermas, os paradigmas do ser, da consciência e da linguagem. O primeiro critério de demarcação anunciado – a questão paradigmática da filosofia – levou Habermas (1990, p. 21-22) a mostrar o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e linguagem”. A Filosofia da Libertação acrescenta um quarto paradigma à essa classificação. Portanto, são quatro paradigmas. Esse quarto paradigma pode ser denominado de paradigma da vida concreta de cada sujeito como modo de realidade – ou paradigma da vida concreta. Ou simplesmente paradigma da vida. Ou seja, a divisão das épocas históricas da filosofia ficaria desenhada com o auxílio de ser, consciência, linguagem e vida. A utilização dessa noção permite uma reconstrução teórica da compreensão filosófica, especialmente no que tange ao tema da fundamentação. É nesse contexto que o termo será empregado. 17 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna (a) Paradigma do ser – a fundamentação ontológica A ideia de fundamentação, em especial de fundamentação do conhecimento pode ser encontrada em Parmênides. Exame de seu poema6 revela indícios sobre a necessidade de um conhecimento qualificado, ao anunciar: “deves saber tudo”, da “verdade bem redonda” e de “opinião de mortais”. Também indica os caminhos (métodos): quanto aos caminhos de investigação possíveis, há um que conduz à verdade: “diz que o ser é e que o não-ser não é”7. O outro, indicado no mesmo Fragmento, “que não é e portanto que é preciso não ser”. Do mesmo modo, apresenta os tipos de conhecimento (o epistêmico e o dóxico): a deusa diz que este caminho não gera certezas, apenas opiniões. Além disso, uma fundamentação metafísica do conhecimento, critério último para avaliar determinado conhecimento, se é verdadeiro ou falso. Há uma fundamentação metafísica que encontra respaldo no Fragmento 3 do Poema: “Pensar e ser é o mesmo”. Ao negar a multiplicidade e o movimento, o filósofo instaura uma forma de compreensão que mede a experiência pela lógica dos conceitos e não pela lógica dos fatos. Ao descobrir o conceito de ser, identifica pensar e ser. Portanto, o conhecimento que gera certezas é fruto de uma operação que é própria da razão, instaurando um conhecimento racional. E quanto ao fundamento, também será identificado como sendo o Ser, porém não na sua faticidade, mas enquanto Ideia do Ser. Dessa maneira, Parmênides instaura o começo da filosofia como ontologia: “O ser é, o não-ser não é”. O ser é tido como o fundamento dos entes. O fundamento do mundo. O que não é ser, não é. É o nada. O ser não é pensado ou compreendido como um fundamento distante e isolado do mundo. Ao contrário, o ser como fundamento significa que o mundo, os entes, as coisas (tà onta), os úteis (tà prágmata) são vistos, porque iluminados por ele. Ser e mundo coincidem. A partir de Parmênides descobriu-se explicitamente a fundamentação ontológica: a compreensão do sentido e da forma dos entes desde o horizonte do ser. O mundo (as coisas-sentido) é concebido nos limites do ser. O caminho que conduz ao conhecimento verdadeiro conduz ao ser lugar epistêmico originário. 6 O poema de Parmênides divide-se em três partes: o prólogo, o caminho da verdade e o caminho da opinião. O método do conhecimento verdadeiro estende-se do fragmento 2 ao fragmento 8; o caminho do conhecimento dóxico inicia-se a partir do penúltimo parágrafo do frag. 8. Ver BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. 3a. ed. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 53-63. 7 Fragmento n. 2 do Poema SOBRE A NATUREZA. 18 Celso Luiz Ludwig É essa a dinâmica do processo de fundamentação neste paradigma, e que tem como fundamento o próprio ser. Tendo em vista os limites e a finalidade deste estudo, o tema não será apresentado em outros filósofos nele classificados, em geral dependentes da fonte parmenídica. Essa tese central torna os filósofos da tradição grega, em geral, dependentes da fonte parmenídica indicada, o que permite Habermas (1990, p. 22) afirmar, sempre na lógica do ser, que: Apesar de todas as diferenças entre Platão e Aristóteles, a totalidade do pensamento metafísico obedece a Parmênides e toma como ponto de partida a questão do ser do ente – o que o torna ontológico. Tendo em vista a finalidade deste texto, a conclusão de Habermas serve como conclusão para caracterizar o fundamento e o movimento do processo de fundamentação no paradigma do ser. (b) Paradigma da consciência - a fundamentação subjetiva Sob o ponto de vista filosófico, a modernidade se inaugura pela atitude crítica de desconstrução do primado do ser sobre o pensamento. Não está em crise a necessidade de fundamentação, nem seu sentido, ou então, sua finalidade. Apenas expressa o desagrado com a fundamentação até então elaborada segundo a lógica do paradigma do ser. Portanto, a crise relaciona-se à natureza intrínseca da fundamentação até então formulada: a fundamentação ontológica. No novo procedimento, desde o ponta pé inicial dado por Descartes ao idealismo alemão, o jogo da fundamentação do pensar tem nova e definida direção: encaminha-se para a consciência do sujeito, ou para o sujeito consciente. Primeiro como razão pura, em Descartes; depois como eu penso em geral, em Kant, para avançar como interioridade absoluta do eu, em Fichte e alcançar a condição de eu absoluto plenamente acabado, em Schelling; para finalizar como Ideia absoluta do processo de totalidade, em Hegel. Nos pensadores centrais do período, a direção do movimento é sempre a mesma: não mais em direção ao ser, mas em direção à consciência (LUDWIG, 2006, p. 53-54) A menção às concepções de Descartes e Kant, creio, exemplificam teoricamente a mudança de fundamento e, ao mesmo tempo, revelam a persistência e a nova dinâmica da temática. Algumas características e breves argumentos mostram o procedimento cartesiano e o kantiano em torno do assunto. Efetivamente como é sabido, a reflexão cartesiana parte da facticidade e caminha na direção do pensamento. O movimento rechaça a faticidade, mostrando sua precariedade, no intuito de instituir o pensamento na condição de fundamento: penso, logo existo. Dussel 19 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna (1976, p. 38-39) sugere que é nesse momento que a modernidade jogou seu destino definitivo, uma vez que o caminho empreendido já não irá para o ser que se im-põe, mas para a consciência que põe o ser. Em outas palavras, a modernidade joga seu destino definitivo em virtude da nova fundamentação lançada. A nova racionalidade concebida tem em sua base o cogito, que por definição, é ponto de partida e de chegada de tudo. Dessa maneira, a subjetividade se define como fundamento, ponta pé inicial para novas formas de fundamentação nos limites do novo paradigma, que passou a ser, desde então, hegemônico. Kant amplia o horizonte da questão ao envolver o mundo das coisas que são e das que devem ser. Em nova epistemologia, nega a possibilidade de identificar o fundamento último como sendo um conhecimento objetivo e das essências, decidindo pelas “condições de possibilidade” como o a priori que viabiliza todo conhecimento objetivo. Para ele, o aparato instrumental cognitivo, seja nas formas a priori da sensibilidade, seja nas categorias a priori do entendimento, é transcendental. Nos respaldamos nas palavras de Kant (2003, p. 58) diz que: “Denomino transcendental a todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori”.. Assim, a conhecida “revolução copernicana do conhecimento” consiste em reflexivamente encontrar o eu cognoscente como uma estrutura de condições de possibilidade de todo o conhecimento. A transcendentalidade desses componentes estruturais funda um conhecimento numa regra que reside no sujeito. No campo da moral, ao refutar toda fundamentação heterônoma não coloca em questão a possibilidade ou a necessidade de um fundamento. Sustenta, entretanto, uma nova ordem: a fundamentação autônoma da moral. A autonomia consiste no fato de o sujeito dar a si próprio a lei da conduta. Ao afastar a fundamentação heterônoma, fundou-a na vontade, na boa vontade. Kant (2004b, p. 21), assim, afirma: Nem neste mundo nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade. Portanto, tanto no campo da razão pura, quanto na esfera da razão prática, estabelece novo fundamento, seja para o conhecer, seja para o agir. 20 Celso Luiz Ludwig (c) Paradigma da linguagem - a fundamentação intersubjetiva Desde as últimas décadas do século XX, a temática da fundamentação volta a ter papel de destaque. Primeiro, a partir da desconstrução. Exemplo de rejeição do fundamentalismo filosófico foi realizada pelo racionalismo crítico (Popper, Albert), como é conhecido. A crítica popperiana à metafísica racionalista mostra que toda pretensão de fundamentação última cai inevitavelmente no trilema münchausiano. Tal ocorre porque ela leva a um regresso ao infinito; ou conduz ao chamado círculo lógico; ou então, o procedimento de fundamentação terá que interromper dogmaticamente o regresso fundacional. Embora concorde com a crítica popperiana nos aspetos indicados, a Teoria do Discurso, em especial nas formulações de Apel e Habermas, enfrenta o ceticismo como tal. No entanto, esse debate está marcado pela necessidade da mudança paradigmática. É o momento da construção. A exigência da elaboração de novo paradigma filosófico no contexto da chamada crise da modernidade e da filosofia da consciência reacendeu a discussão em torno da necessidade e da possibilidade da fundamentação, e até mesmo da fundamentação última na atividade da razão. Esta é uma questão que considero crucial na discussão filosófica acerca dos Direitos Humanos. Embora o paradigma em pauta não se esgote nisso, será dado maior destaque a fundamentação intersubjetiva, tendo em vista sua importância e atualidade. Primeiro, alguns aspectos gerais, e depois em especial os argumentos de Karl-Otto Apel sobre o assunto. Alguns aspectos gerais auxiliam na caracterização desse novo enfoque. Grosso modo, o discurso argumentativo se constitui em mediação necessária, em lugar intranscendível e em núcleo pragmático, instância última de fundamentação. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que toda a fundamentação, seja ela de ordem filosófica ou científica, ou de qualquer outra natureza, deve sempre passar pela mediação do discurso. E por que o discurso desempenharia essa função de meio ou mediação necessária? Porque mesmo em toda crítica cética que tem por objeto a impossibilidade de fundamentação existem pressupostas condições de validade inarredáveis. Pois, aquele que formula um juízo (por exemplo, em que objetiva mostrar que não existe possibilidade de fundamentação) tem a pretensão de que seu discurso seja válido, de que faça sentido, de que possa ser compreendido e que indique uma verdade. Se assim não fosse, o juízo formulado não atingiria sua finalidade, que é a de realizar uma crítica a toda tentativa de fundamentação definitiva. A não aceitação disso, teria como consequência inevitável a descaracterização da crítica como uma 21 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna crítica. Portanto, aquele que formula um juízo pressupõe, pelo menos implicitamente, que há pretensões. Pretensões quanto ao sentido, quanto à validade, quanto à compreensão, e quanto à verdade. Assim, por exemplo, as proposições semânticas podem ser qualificadas como válidas ou inválidas, verdadeiras ou falsas, porque pressupomos a existência de pretensões de validade em toda linguagem. Essa é a razão pela qual o discurso desempenha a função de meio ou mediação de toda pretensão levantada, inclusive aquelas pretensões que objetivam a rejeição de toda e qualquer possibilidade de fundamentação. Agora, por que o discurso seria o lugar intranscendível? Porque as condições necessárias para a validade de toda pretensão discursiva não podem ser ultrapassadas, sob pena de incorrer em autocontradição performativa. Toda e qualquer tentativa que implica em negar uma ou todas as pretensões de validade entra em contradição, pois para se realizar necessita da presença das próprias pretensões que tenta refutar. Dessa forma, o discurso não pode ser transcendido, pois nele residem as condições irrefutáveis, sempre pressupostas na efetivação de qualquer enunciado. E enfim, o que no discurso é intranscendível? A resposta já está encaminhada nos itens anteriores. Cumpre, no entanto, sublinhar o papel dos pressupostos transcendentais do discurso argumentativo, no processo de fundamentação. O fundamento não está e não se efetiva na presença empírica do discurso, já que este pode ser válido ou inválido, com ou sem sentido, verdadeiro ou falso, justo ou injusto. Essas condições só podem, em geral, ser avaliadas em situações concretas. No entanto, os pressupostos que tornam possíveis tais discursos, esses são transcendentais, reconstruídos ou reconstruíveis por estrita autorreflexão, e com tal representam o critério último, enfim, a fundamentação última. A autorreflexão mostra a relação necessária entre a fundamentação e o fundamentado. Portanto, no discurso, o intranscendível, porque ineliminável, diz respeito não ao discurso em si, mas às condições que o tornam possível. E as referidas condições não são de natureza metafisica, mas pragmática. As condições transcendentais são da ordem pragmática e não mais metafísica. Karl-Otto Apel está convencido da possibilidade e da necessidade desse novo fundamento, a partir de uma nova concepção de fundamentação, posição que confronta a opinião filosófica hoje dominante. O tema consiste em enfrentar o desafio da possibilidade ou não de uma fundamentação última não-metafísica, no contexto da filosofia atual. Sabemos que o pensamento da fundamentação última e, assim também, 22 Celso Luiz Ludwig o conceito tradicional da metafísica devem ser abandonados. Apel o faz e desde o início enfrenta o desafio a partir da própria questão: justamente por se tratar de fundamentação última existe a necessidade de uma filosofia pós-metafísica (APEL, 1993, p. 306). A crítica desferida pelos popperianos à estrutura da fundamentação na linha da metafísica tradicional revelou a impossibilidade de qualquer tipo de fundamentação última. Os popperianos, com base nessa impossibilidade, abandonam a ideia de fundamentação última. Na contramão, Apel sustenta não só a possibilidade, mas também a necessidade da fundamentação em tempos atuais. Nem mesmo abandona a ideia da fundamentação última. Critica a concepção tradicional da metafísica ontológica. E conclui pela possibilidade e necessidade de uma filosofia pós-metafísica de fundamentação última, com a exigência de uma nova filosofia. Apel mostra a necessidade8 e, até mesmo urgência, de uma fundamentação filosófica específica em nosso tempo, tanto como tarefa teórica quanto como tarefa prática. Ilustra a questão com a seguinte situação problema: Que faria um jovem que, na assim chamada crise da adolescência, chegou ao ponto de problematizar, por exemplo, como Nietzsche todas as tradições morais convencionais e que nesta situação levanta a questão: “Por que em absoluto terei que agir moralmente?” Com uma resposta que não fornece uma fundamentação última, mas que de antemão se relativiza como condicionada ou passível de revisão? (APEL, 1993, p. 309) Portanto, o que é possível e necessário é uma fundamentação última não-metafísica - a pragmática transcendental. As condições da pragmática transcendental estão contidas na pretensão de verdade e nas regras do discurso. Quanto à fundamentação última, Apel parte da premissa de que faz todo o sentido a exigência de que todos reconheçam a existência de algo como pretensão de verdade, como vimos anteriormente. Exigência inafastável no campo da comunicação, sob penas de torná-la impossível ou, então, configurar a contradição performativa. As regras, inscritas na linguagem, passam a ser condições normativas da possibilidade da discussão acerca das proposições com pretensão de verdade. Pois, enfim, (1o.) todos os participantes do discurso em princípio são iguais (e, portanto, não devem ser excluídos quaisquer argumentos); e (2o.) a obrigação de todos em argumentar sem violência (aberta ou oculta – como por exemplo, ofertas de negociação e/ou ameaças). 8 A preocupação em testar os argumentos tem o sentido de prevenir ataques contrários, seja dos céticos, seja dos cínicos. Por isso, encontramos a postura em Apel, em Habermas e em Dussel, entre muitos outros. O cuidado metodológico, portanto, se justifica ante tal possibilidade, motivo que leva a considerar alguns pensamentos nessa linha, como é o caso dos defensores do princípio do falibilismo sem limites, que não apenas consideram uma fundamentação filosófica última de princípios de conhecimento impossível, mas também desnecessária. (APEL, 1993, p. 310). 23 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Ainda assim, esse novo quadro exige redefinição da concepção de fundamentação até então utilizada. Sem tal medida, o processo de fundamentação seguirá inevitavelmente o caminho que leva ao trilema de Münchhausen (Hans Albert). Pois, o tradicional conceito de fundamentação se define como “dedução de um algo de outro algo”. Ora, este conceito não pode ser subsumido pela fundamentação pragmático transcendental. A formulação de Apel (1993, p. 317) consiste no recurso reflexivo sobre as condições de validade da argumentação, e em consequência, a fundamentação não se define como derivação de algo de alguma coisa diferente e, com isso, não retrocede em seu proceder ao infinito. Pois, a fundamentação requer apenas a certificação das pressuposições que não podem ser refutadas, sob pena de autocontradição performativa. Dessa maneira, Apel (1993, p. 322) reconhece pela reflexão a existência de pretensões universais de validade que fazem parte do argumentar e, ao mesmo tempo, são condições irretrocedíveis (nichthintergehbaren), e nesta medida, não-contingentes do conhecimento válido do contingente, o que implica na guinada linguística da filosofia, ou filosofia da comunicação. O sentido de uma fundamentação pragmática nos interessa sobremodo para o tema que estamos enfrentando, qual seja o da fundamentação dos Direitos Humanos, que será posteriormente retomado. (d) Paradigma da vida - a fundamentação na alteridade negada Agora a pretensão é apresentar um pequeno esboço de fundamentação no contexto da razão situada para além da lógica da totalidade, no sentido de estar para além da fundamentação ontológica, subjetiva e intersubjetiva. Trata-se de uma superação paradigmática no sentido filosófico. Como mencionamos em outro texto9, não se trata de lógica maniqueísta na relação entre totalidade e exterioridade, entre centro e periferia, entre inclusão e exclusão e assim por diante. Pretendese, pressupostas as idiossincrasias das sociedades e culturas situadas além do horizonte dos centros dominantes, esboçar o sentido de uma fundamentação na perspectiva da libertação, na dinâmica do horizonte da racionalidade negada, ou no sentido do paradigma da vida, evidenciando a dimensão da vida negada. A partir e para além do paradigma da linguagem é preciso anunciar, no entanto, o principiuim exclusionis (DUSSEL, 1995, p. 113). Tal princípio tem sua referência na vida real, empírica, enfim, concreta das comunidades, em especial as latino-americanas e caribenhas (e analogicamente, africanas e asiáticas). Metodologicamente, a reflexão parte de uma faticidade 9 Ver LUDWIG (2006). 24 Celso Luiz Ludwig histórica e social, assim como fazem Hegel, Heidegger, Gadamer e todos os filósofos comunitaristas. Em outras palavras, o princípio está enraizado na faticidade. Portanto, não se origina no ideal ou no transcendental, como na razão comunicativa de Habermas e de Apel, ou na proposta na linha da tradição liberal de um Rawls. De outra parte, ainda metodologicamente, nessa dialética não se permanece imerso na tradição como o fazem os comunitaristas. A sistemática negação da exterioridade é o ponto de partida. Dessa maneira, sem abandonar o real concreto (a injustiça da exclusão do mundo da vida, sentida na corporalidade), a razão histórica enquanto exterioridade constrói categorias pragmáticas com pretensão de universalidade, que se projetam bem além de qualquer télos históricoconcreto (DUSSEL, 1995, p. 97). É na e pela categoria da exterioridade que se manifesta o princípio da exclusão como fonte originária instranscendível da possibilidade e necessidade de afirmação da negação perpetrada pela lógica da totalidade. Ou então, a afirmação do outro enquanto outro, isto é, em sua exterioridade e não na semântica da totalidade, é a origem da possibilidade da negação da negação dialética: afirmação analética da exterioridade. Essa exterioridade analética10 como afirmação (afirmação de sua dignidade, de sua liberdade, de sua cultura, de seus direitos, de seu trabalho - trabalho vivo, primeiro, e fonte de todo valor) é condição de possiblidade de mudança. Para exemplificar, pode-se dizer que além da totalidade jurídica vigente não haveria direito, a não ser o já admitido pela lógica do próprio sistema, o que em última análise implica em renovação possível apenas segundo critérios autopoiéticos do sistema dominante. No caso da fundamentação analética não. Portanto, a questão da fundamentação dos Direitos Humanos não se encontra esgotada. Outro exemplo teórico da ideia básica de fundamentação do direito na racionalidade do outro (na concepção filosófica da exterioridade) pode ser visto na seguinte moldura: o outro enquanto exterioridade irrompe como de uma espécie de nada (sem as determinações semânticas da lógica da totalidade dominante), - do infinito, como quer Levinas – o de outro modo que ser. O princípio básico é o da libertação da exclusão; libertação da miséria e da opressão das lógicas de dominação no plano concreto: este é o fundamento - razão do outro enquanto exterioridade. É a vida como modo de realidade de cada sujeito em comunidade. Positivamente, vida afirmada. Negativamente, vida negada. Não é o momento de explicitar cada um dos necessários fundamentos para preservar a condição da vida afirmada, e desenvolver cada um dos 10 “El pueblo, como colectivo histórico, orgânico - não sólo como suma o multitud, sino como sujeto histórico con memoria e identidad, con estructuras proprias - es igualmente la totalidad de los oprimidos como oprimidos en un sistema dado (...), pero al mismo tiempo como exterioridad”. DUSSEL (1985, p. 411) 25 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna necessários fundamentos para transformar a condição da vida negada. No entanto, em forma de anúncio, a arquitetônica do tema fica apenas sugerida. Primeiro, como ideia central o problema da fundamentação é visto desde uma atitude multifundamental. A complexidade da vida requer vários e distintos fundamentos em seu desdobramento e sempre estar aberta para novos fundamentos. Segundo, a fundamentação é concebida nos diferentes campos a partir de fundamentos que são os pressupostos, condições intrínsecas – porque operam implicitamente - constitutivas da existência originária dos demais campos ou mesmo sistemas (como por exemplo, o ético, o político e o jurídico). Tais princípios orientam a ação em geral, servem como referência. São necessários com a finalidade de estabelecer marcos estritos, firmes, bem sólidos para a atividade prática, tanto no que se refere aos fins a alcançar como aos meios de luta utilizados, e, por derradeiro, aos modos de luta (Luxemburgo 1990, p.118). Trata-se de uma fundamentação principiológica, não-metafísica, com fundamentos múltiplos e com níveis de abstração distintos. Terceiro, a multifundamentação tem na vida concreta seu critériofonte. Esse critério fonte serve como referência de todo ato, norma, estrutura, sistema, subsistema, instituição etc. Trata-se da vida humana em comunidade. É o modo de realidade do sujeito – individual e coletivo - nas situações concretas do mundo, na idade da globalização e da exclusão. Mais concretamente, o que importa é a produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito. Nessas três determinações centrais, o sujeito humano em comunidade precisa ter objetivamente satisfeitas certas condições que servem de mediações adequadas para viabilizar sua vida. Condições essas que, se não forem levadas em conta, acarretam negações a aspectos da vida e, no limite, fatalmente levam à morte (negação do critério fonte e da condição de possibilidade). Trata-se da originária e genuína vulnerabilidade da vida do sujeito. O critério assim desdobrado conduz ao princípio geral e crítico: o princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito em comunidade. Quarto, a atitude multifundamental desde o critério-fonte anunciado, passando pelo princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida, chega positivamente ao fundamento material, ao fundamento formal e ao fundamento do factível (possível). E chega negativamente à crítica do fundamento material, à crítica do fundamento formal e à crítica do fundamento do possível - o princípio libertação. Cada um desses 26 Celso Luiz Ludwig fundamentos é um momento necessário para a afirmação (preservação) da vida, sempre (tempo) e onde (espaço) há vida afirmada, e também um momento necessário para a negação (transformação) da negação da vida, sempre (tempo) e onde (espaço) há vida negada. Nessa dinâmica, haverá, portanto, a necessidade de uma fundamentação positiva e também uma fundamentação negativa, no que diz respeito ao princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito em comunidade. E de igual modo, haverá a possibilidade e necessidade de uma fundamentação positiva e também uma fundamentação negativa do Direitos Humanos. 3. A fundamentação do Direitos Humanos O que ocorre com os Direitos Humanos? A atenção a um recorte particular desta pergunta implica em dizer que ocorre aos direitos humanos – consideradas as épocas históricas específicas – a lógica da totalidade própria de cada paradigma em jogo, seja ele filosófico (recorte da presente análise), seja ele societal, no atual processo de globalização e exclusão. Vale dizer que ocorre aos direitos humanos o que ocorre aos seres humanos submetidos ao impacto das lógicas reais produzidas pelo processo que hoje tem a assinatura da globalização e da exclusão. Assim, falar de direitos humanos significa falar da vida concreta dos sujeitos em comunidade como modo de realidade. Enquanto vida afirmada,tem o sentido do respeito e da efetividade dos direitos humanos. Enquanto vida negada, tem o sentido do desrespeito e da inefetividade dos direitos humanos. Significa falar da dignidade humana violada ou ameaçada por um sistema mundo que se impõe com sua lógica e suas leis próprias, numa espécie de autopoiese, que mundialmente passa por sobre grande parte dos seres humanos, produzindo vítimas, em sua maioria talvez nãointencionais. Mesmo assim, vítimas – vida negada. A existência maciça de vítimas exige, em especial para o mundo sul, em relação aos direitos humanos, uma filosofia crítica que ultrapasse o horizonte da totalidade dos paradigmas filosóficos de centro, bem como a autopoiese fechada da totalidade do debate entre modernidade e pós-modernidade ou, no máximo, admitido da hipermodernidade. Portanto, uma filosófica crítica transmoderna ou descolonial dos direitos humanos. 3.1. A possiblidade e a necessidade de fundamentação transmoderna dos direitos humanos É conhecida a tese de Bobbio – que enuncio aqui livremente - de que o problema dos direitos humanos não estaria mais na ordem da 27 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna fundamentação, mas na esfera da aplicação. Ou então, não mais na necessidade de sua justificação, mas, precisamente, na urgência de sua efetivação. Cabe protegê-los, afirma. Enfim, a questão central sobre os direitos humanos não estaria na esfera da filosofia, mas na esfera política. Não seria uma questão teórica, mas prática. Embora se deva reconhecer que existem sérios problemas relacionados à proteção dos direitos humanos em suas mais diversas dimensões, a questão filosófica de longe se encontra esgotada. No caso do terceiro mundo, dos países periféricos e semiperiférico, em especial da América Latina e Caribe, a centralidade da questão – bem como sua problematicidade mais dramática – pode ser conduzida pela reflexão na tríplice orientação dos direitos humanos: (a) desde onde se consideram; (b) para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam. Ellacuria (1990, p. 590), em suas reflexões sobre o tema, adverte que o desde onde, o para quem e o para que devem estar muito claros e explícitos no processo de fundamentação dos direitos humanos. Em outros termos, estamos diante da questão do sujeito ou dos sujeitos da reflexão filosófica. Pelo visto até agora, a perspectiva da reflexão permite dizer que estamos diante do sujeito ou dos sujeitos da fundamentação filosófica transmoderna. Quem são esses sujeitos? Porém, antes de investigar a determinação específica desse ponto de partida, cabe estabelecer o seguinte juízo de “fato” com pretensão de verdade: vivemos uma violação massiva e radical da condição humana. Enfim, experimentamos uma violação dos direitos humanos, seja na ordem nacional, regional ou na ordem internacional nunca antes vista, e essa violação está atualmente na esfera da não satisfação das necessidades básicas da maior parte da população mundial, particularmente do mundo periférico e semiperiférico. Há muitos e variados estudos estatísticos que indicam o quadro mencionado. Apresento um deles para ilustrar um possível enfoque da situação no sentido geral e global: Aos 500 anos do começo da Europa Moderna, lemos no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 1992 (UNDP, 1992: 35) das Nações Unidas que os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a Europa Ocidental, os Estdos Unidos e o Japão) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os 60% mais pobres ( a “periferia” história do “Sistema-Mundial”) consome 5,8% desses bens. Uma concentração jamais observada na história da humanidade! Celso Luiz Ludwig Portanto, para acentuar, estamos diante de uma realidade global, na qual, enquanto 20% mais abastados da humanidade consome 82% dos bens, os 60% mais pobres consomem 5,8% desses bens. Ou ainda, nessa lógica global do mundo, as vítimas, na idade da globalização e da exclusão, alcançam quadros que impressionam (POCHMANN, 2004, p. 56): O mundo moderno está longe de ser um lugar onde a pobreza e a exclusão social estejam sendo vencidas. Na verdade, as antigas regiões pobres situadas entre os trópicos são as mesmas que hoje apresentam os piores indicadores de exclusão social. Aliás, entre os 40 países com os piores destes valores, 82,0% deles estão na África, 7,5% na América, 7,5% na Oceania e 2,5% na Ásia. Os 40 países com os melhores valores no IES11, estão distribuídos desigualmente pelos cinco continentes (70,0% deles na Europa, 17,5% na Ásia, 5% na América, 5,0% na Oceania e apenas 2,5% na África). Entre os dois extremos, há 95 países que se encontram em posições intermediárias, com um IES variando de 0,855 a 0,509. Neste bloco, aliás, localiza-se a maioria dos países da América Latina, como por exemplo, Argentina (57ª. posição), Uruguai (58ª. posição), Chile (68ª. posição), Costa Rica (69ª. posição), Peru (81ª. posição), Brasil (109ª. posição) e Colômbia (111ª. posição). Enfim, observando o IES, o que se percebe é a existência de “ilhas” de inclusão em meio a um “oceano” de exclusão em todo o planeta. Ou, mais propriamente, nas regiões em torno ou abaixo do Trópico de Câncer. Isso se repete, também, no estudo da maioria dos índices parciais que compõem o IES. Ou ainda o mesmo autor diz que: Dois bilhões e setecentos milhões, cerca de 50,0% da população mundial. Esse é o número aproximado de pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia, consideras aqui miseráveis e pobres. Dos 40 países com os piores valores no Índice de Pobreza, ou seja, com maior número relativo de miseráveis e pobres, 27 encontram-se na África, 8 na Ásia, 3 na Oceania e 2 na América. Nesses países, mais de 80 em cada 100 habitantes vivem com até 2 dólares por dia. Zâmbia (175a. posição), Nigéria (174a. posição) e Mali (173a. posição) lideram o ranking dos piores valores no Índice de Pobreza. Nesses países, especificamente, 90 em cada 100 pessoas vivem com até dois dólares dia. 11 Índice de Exclusão Social (IES) 28 29 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Entre os países do ranking situados em posições intermediarias, encontrase a maioria dos países da América Latina. É lá que está o Brasil, ocupando a 71ª. Posição. De cada 100 brasileiros, cerca de 24 vivem com até 2 dólares dia, ou seja, são miseráveis ou pobres. Outros países latinoamericanos, como Cuba (44ª. posição), Bahamas (46ª. posição), Argentina (48ª. posição), República Dominicana (57ª. posição), Chile (60ª. posição), México (73ª. posição), Panamá (74ª. posição) e Jamaica (76ª. posição) também se situam no bloco intermediário da pobreza. Finalmente, dentre os 40 países com os melhores valores no Índice de Pobreza, 24 estão localizados na Europa, 8 na Ásia, 4 na América e 2 na África. Aliás, entre as primeiras posições no ranking, só há países europeus: Bélgica (1a. posição), Dinamarca (2a. posição), Finlândia (3a. posição), França (4a. posição), Alemanha (5a. posição), Luxemburgo (6a. posição), Holanda (7a. posição), Noruega (8a. posição), Suécia (9a. posição), Suíça (10a. posição). Nesses países, de cada 100 habitantes, apenas 1 vive com até dois dólares por dia. (POCHMANN, 2004, p. 58) Ou, considerando o critério da desigualdade existente no mundo, temos (POCHMANN, 2004, p. 62): A população total residente nos 40 países com os piores valores no Índice de Desigualdade soma 841 milhões de pessoas. Essa soma corresponde a quase 14% da população do planeta. Ou seja, de cada 100 pessoas, 14 moram em algum dos 40 países mais desiguais do mundo. Distribuídos por quatro dos cinco continentes (24 na África, 2 na Ásia, 1 na Oceania e 13 na América), tais paises são liderados pela Namíbia (175a. Posição do ranking), seguida por Lesoto, Honduras, Paraguai, Serra Leoa, Botsuana, Nicarágua, República Centro Africana, Brasil, África do Sul e Guiné-Equatorial, respectivamente entre as 174a. e 165a. posições. É esse o retrato a partir de apenas alguns dados estatísticos. No entanto, eles já são suficientes para ilustrar a tese acima mencionada. Dois aspectos de extrema importância para a ordem de ideias em consideração merecem ser destacados. Primeiro, é imperioso dizer que estamos diante de uma crise de realidade. Não se trata de um problema que se coloca na ordem da eficácia ou ineficácia de determinado campo de atuação, seja ele político ou normativo. Para exemplificar, a dramaticidade do problema não diz respeito apenas, nem sequer em seu cerne, a eventuais ou reais deficiências de políticas públicas relacionadas à proteção dos direitos humanos - isso também existe -, ou a eventuais ou reais defasagens ou injustiças na ordem da positivação no campo do direito. O que o ocorre é que a civilização do capital - para outros a civilização moderna - é que 30 Celso Luiz Ludwig produz em sua lógica e em sua práxis relações sociais e sistêmicas de massiva violação dos direitos humanos. Produz relações de negação da mais elementar condição humana. E nas perspectivas das causas, a fonte maior dessas violações, ou seja, aquela que supõe a violação mais grave e está na raiz das demais violações, é a violência estrutural: a violência da civilização do capital (quiçá moderna) que coloca a imensa maioria da humanidade em condições biológicas, econômicas, sociais, políticas, culturais e jurídicas em rigorosa precariedade, em condições desumanas. É essa a violência estrutural fundamental e é dela que decorre uma exigência crítica de denúncia constante. Decorre uma exigência ética de responsabilidade pelos efeitos negativos gerados pela lógica do capital. Decorre dela uma exigência político-jurídica pela violação estrutural dos direitos humanos. Segundo, mais recentemente, embora já se trate de um processo que se alonga no tempo, o mundo periférico e semiperiférico, e aqui também cabe a referência especial à América Latina e ao Caribe, experimenta os efeitos da estratégia da globalização de forma extrema e radical. O chamado terceiro mundo é por excelência o lugar da violação dos direitos humanos. Em nenhuma parte há tantas vítimas como no terceiro mundo, embora toda a retórica de exaltação dos direitos humanos. Essa é, sem dúvida, uma das estratégias mais visíveis da globalização. Afinal, tudo é feito em nome dos direitos humanos, e da proteção da natureza. No entanto, o que o processo de globalização mantém e até mesmo acelera e intensifica, é a mencionada violência estrutural fundamental, de onde emanam as violações relacionadas à dignidade humana. Na América Latina em especial, a estratégia da globalização consistiu nos chamados ajustes estruturais relacionados a três dimensões da sociedade (Hinkelammert, 1999, p. 239 e segs). Estas relacionadas com a abertura tendencialmente ilimitada ao capital financeiro e às mercadorias, à reestruturação do Estado e imposição da lógica das privatizações, que resultam em nova fonte de acumulação originária, e a flexibilização da força de trabalho, com as consequências que daí decorrem na ótica da violação de direitos e da fragilização da organização coletiva das forças sindicais dos trabalhadores. Essa imposição dos ajustes estruturais vem acompanhada da propagação da ideologia da competitividade e da eficiência. Instaura-se uma guerra econômica. A questão toda está centrada na estratégia da vitória. É isso que interessa. Vence quem consegue eliminar as distorções do mercado. Essa é a razão porque a questão das distorções do mercado assume uma importância central: a lógica real do processo de globalização se expressa mais nitidamente em termos de eliminação das distorções do mercado (HINKELAMMERT, 1999, p. 240). As distorções são fricções que 31 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna devem ser eliminadas. Quanto menos fricções, melhor o funcionamento da máquina, que autopoieticamente vai se aperfeiçoando. Quanto menos fricções, mais perfeito o sistema. As distorções são muitas e há, entre elas, as que dizem respeitos aos direitos humanos. Na estratégia da globalização, os direitos humanos, em sua totalidade, são vistos como distorções do mercado. E, como tal, o aperfeiçoamento da máquina, ou seja, a engrenagem do mercado no processo de globalização vai também eliminando as fricções que causam a violação dos direitos humanos. No entanto, enquanto isso não acontece, ocorre um choque entre os direitos humanos e a lógica do processo de globalização. O choque é evidente. E isso acontece exatamente na sociedade de um mundo globalizado que fala dos direitos humanos numa intensidade jamais vista anteriormente. Afinal, todos estão preocupados com os direitos humanos. Vencedores e vencidos. No entanto, a concepção que as pessoas têm dos direitos humanos certamente não é a mesma. Há uma compreensão, um uso e uma práxis ambígua nesse terreno. Tanto vencedores quanto perdedores nesse processo de globalização falam de direitos humanos. Falam, no entanto, de perspectivas distintas. A atual estratégia de globalização compreende os direitos humanos como direitos do proprietário. Direitos humanos que têm sua raiz num mundo pensado como mercado e, agora, como mercado globalizado. Direitos formulados desde onde? Desde o mercado. Direitos formulados para quem? Para o proprietário. Direito formulados para quê? Para a relação mercantil, econômica. Ou seja, para o mercado. O âmbito da liberdade é o mercado. Ocorre uma extremada redução dos direitos humanos ao direito de propriedade. Assim, direitos humanos e direitos de mercado acabam identificados por inteiro. Não se pensam direitos humanos para além do mercado. Ou então, menos ainda, direitos humanos contra o mercado. A formulação dos direitos humanos desde e nos limites do mercado, para os sujeitos do mercado, e com a finalidade da permanente produção, reprodução e desenvolvimento autopoiético do mercado, exclui de sua lógica a possibilidade e necessidade de uma concepção e fundamentação diferente dos direitos humanos. Talvez, por essa razão, a dramaticidade do problema dos direitos humanos esteja reduzida à dimensão política da necessidade de sua proteção. Feitas as rápidas observações nesses dois aspectos, é hora de voltar para a questão do tríplice aspecto da fundamentação na perspectiva que aqui interessa. Afinal, em nosso caso, como responder ao problema da fundamentação dos direitos humanos: (a) desde onde se consideram; (b) para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam, numa perspectiva que não seja a da lógica do mercado na estratégia de globalização atual? 32 Celso Luiz Ludwig A resposta não pode ser outra senão a que se orienta para o sujeito ou os sujeitos da fundamentação dos direitos humanos ou, propriamente, para os sujeitos dos direitos humanos, que são todos os oprimidos e excluídos; os que têm a sua condição de sujeitos autônomos e livres negada na e pela estratégia da globalização. A questão dos direitos humanos, ao lado de todos os importantes debates e posições teóricas, desde o universalismo abstrato, passando pelo comunitarismo, à posições da razão discursiva habermasiana, aos enfoques dos multiculturalismos, - todos com valiosas contribuições -, é possível e necessário ir ao cerne do problema, ir à sua raiz, e demarcá-lo no contexto da vida negada - que de algum modo é contexto de morte - das maiorias excluídas e oprimidas, e das minorias discriminadas e perseguidas. Esses são os sujeitos do filosofar transmoderno ou descolonial. Esses são os sujeitos dos direitos humanos na perspectiva da filosofia transmoderna e descolonial. Direitos humanos que se definem desde tais sujeitos, para tais sujeitos, e para que a vida negada desses sujeitos tenha a esperança de se tornar vida afirmada. É esse o ponto de partida da afirmação histórica dos direitos humanos na ordem da práxis libertadora frente a práxis de opressão e exclusão, na estratégia capitalista de globalização. As negatividades (tais como fome, miséria, pobreza, dor, doenças, analfabetismo, desnutrição, discriminação cultural, social e sexista, étnica, opressão política e ideológica), ou então, toda negatividade é o desde onde – lugar de fundamentação e legitimidade da exigência dos direitos humanos -, é o para quem – subjetividades com a vida negada pelo mercado globalizado, fonte legitima da exigência dos direitos humanos -, e é para quê - necessidade de negação da negatividade, exigência de afirmação dos sujeitos, esses sim, fonte dos direitos humanos, antes, depois e mesmo contra o mercado. É tal contexto que exige a ampliação da questão concernente aos direitos humanos. Não se pode entendê-la nos estreitos limites da esfera da aplicação, ou a um problema de ordem prática, porque alguma coisa está desajeitada, desajustada, inadequada; ou mesmo reduzi-la à esfera da proteção. Tudo está definido em termos de direitos humanos, só não estão sendo protegidos como deveriam, havendo atritos intrassistêmicos. Portanto, retomando a ideia aqui defendida, a dramaticidade do problema dos direitos humanos está na ordem da fundamentação e nesta, especificamente, no momento da factibilidade. 33 DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna 4. Conclusão A violação massiva dos direitos humanos ocorre porque não são factíveis no mundo do capitalismo, especialmente, agora, com a globalização e sua específica estratégia. A factibilidade situada na ordem da fundamentação permite examinar criticamente se a aplicação ou a proteção dos direitos humanos é negligenciada em razão de desajustes, distorções, fricções intrassistêmicas, ou se a violação é inevitável, porque na totalidade do capital globalizado sua proteção não é possível. Pois, como já vimos, a concepção e fundamentação dos direitos humanos, no sentido hegemônico, têm sua origem no mercado e seu destino é o da preservação do mercado. Resulta daí sua impossibilidade. Na concepção e fundamentação crítica contra-hegemônica têm sua origem na vida negada, e seu destino é a vida dos sujeitos antes, depois e mesmo contra o mercado. Portanto, desde onde, para quem e para que os direitos humanos devem existir. 34 Celso Luiz Ludwig Franz Hinkelammert (1999, p. 248) o que podemos, no entanto, afirmar é que uma ação alternativa só pode consistir de uma ação coletiva. Nesse caso, a exigência de uma ação coletiva contra-hegemônica é a condição de possibilidade necessária para enfrentar aquelas forças que, por sua vez, resultam da supressão da ação coletiva. Tal processo envolve, como pondera nosso pensador, a ação solidária. E esta ação coletiva, no entanto, na estratégia hoje dominante, desemboca também nas dimensões globais, sem as quais não pode ser efetiva. É o paradoxo a ser enfrentado. Referências ALBERT, Hans. Tratado da razão critica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. APEL, Karl-Otto e outros. Fundamentación de la ética y filosofia de la liberación. México: Siglo Veintiuno, 1992. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 2 v. Nessa ótica, o modelo dos direitos humanos na concepção da civilização ocidental, ou seja, como núcleo de legitimidade do ideal prático da civilização do capital, agora globalizado, tem elementos de falsidade que deslocam a problematicidade dos direitos humanos apenas para a dimensão de sua proteção. Assim, o contexto exige a crítica material com o objetivo de reivindicar conteúdos com pretensão de verdade contrahegemônica, em especial os das necessidades básicas, sem a satisfação das quais a vida, nesse seu momento, estará sujeita a negação absoluta. É necessária a crítica formal, porque há elementos indicativos de uma injustiça estrutural como nunca antes visto e, portanto, de perda da legitimidade, agora caracterizada como invalidade dos procedimentos hegemônicos. E por fim, impõe-se o princípio da factibilidade crítica, eis que se o existente não permite estruturalmente a proteção dos direitos humanos, porque concebido e fundado na lógica do mercado globalizado, o novo factível requer nova concepção e nova fundamentação, que permita a efetividade dos direitos humanos. APEL, Karl-Otto y DUSSEL, Enrique. Ética del discurso y ética de la liberación. Madrid:Trotta, 2004. Cumpre, aqui, esclarecer que se é certo que não se pode cair na ilusão filosófica ingênua de que a fundamentação leva espontaneamente à realização, também é certo que o exercício filosófico crítico pode mostrar a falsidade, a ilegitimidade e a impraticabilidade de um projeto que, equivocadamente, pretende se afirmar em nome dos direitos humanos, quando a rigor opera a lógica de sua impossibilidade. DUSSEL, Enrique D. Hacia uma filosofia política crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001. Há que pensar alternativas a partir dessa situação. Com a crise das utopias modernas, e certa descrença pós-moderna nas metanarrativas, não sabemos ao certo quais poderiam ser tais alternativas. Segundo HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica? In: STEIN, Ernildo e boni, Luis A. de (org.). Dialética e liberdade. Petrópolis: Vozes, 1993, 305-326. ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. DESCATES, René. Discurso sobre o método. Rio de Janeiro: Forense, 1968. DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1984. DUSSEL, Enrique D. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1976. 292. DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, 1977. DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da libertação latino-americana. São Paulo: Loyola, s.d. 5 v. 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Bilbao: Desclée, 1998. 36 Melina Girardi Fachin A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção Melina Girardi FACHIN1 Introdução A singela reflexão que ora se erige tem como objetivo analisar as políticas públicas voltadas aos direitos econômicos sociais e culturais. Esta análise está sob o foco da concepção contemporânea dos direitos humanos e com enfoque especial ao cenário estadual paranaense de proteção. A premissa da qual o presente artigo parte é de que os direitos econômicos, sociais e culturais são direitos humanos dotados do mesmo grau de importância e merecedores de igual tutela jurídica e política que os direitos civis e políticos. Há entre as diferentes categorias de direitos relação de interdependência e complementaridade em prol da maior e melhor proteção da dignidade humana. O discurso clássico protetivo dos direitos humanos não foi, todavia, apto para tratar essas diferentes categorias de direitos de modo equânime. Tradicionalmente, os direitos civis e políticos, ditos de primeira geração ou dimensão, gozaram de maior proeminência, ao menos no que toca a sua aplicabilidade, que os direitos econômicos e sociais. A justificativa para esta discriminação na tutela jurídica repousa nos supostos custos e padrão de comportamento estatal na aplicação desta categoria dos cognominados direitos de segunda geração ou dimensão2. Essa ambivalência impacta, mormente, no papel das políticas públicas voltadas 1 Doutoranda em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/BR (2010-andamento), sob a orientação da Prof. Dra. Flávia Piovesan. Visiting researcher da Harvard Law School (Cambridge/USA, janeiro a março de 2011). Mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/BR (2008), sob a orientação da Prof. Dra. Flávia Piovesan, tendo defendido dissertação acerca dos fundamentos dos direitos humanos (obra publicada pela ed. Renovar, 2009). Possui aperfeiçoamento em Direitos Humanos pelo Institut international des droits de lhomme (Strasbourg/FR, 2005) e graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná/BR (2005). É professora assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professora assistente voluntária de direitos humanos na Pós-Graduação Stricto Sensu da PUC/PR e professora convidada no curso de especialização em direito constitucional do IDCC (Londrina/PR). Autora de diversas obras e artigos na seara do Direito Constitucional Internacional e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Advogada sócia da banca Fachin Advogados Associados (Curitiba/PR, 2006). Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PR. 2 O presente trabalho não compartilha da classificação geracional ou dimensional – a mudança de signo apazigua, mas não afasta a noção linear e evolutiva da história dos direitos fundamentais que se pretende repassar com a análise. Em que pese bastante didática, a classificação reduz complexidades importantes e não espelha a realidade dos direitos e de sua construção histórica. Os direitos humanos e os direitos fundamentais são processos de luta, fruto dos muitos avanços e recuos da história. No dizer de Hannah Arendt, “os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”. In: ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989. 37 A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção à aplicação dos direitos e da postura estatal comprometida com a sua realização. Novos nichos se abrem em prol da efetivação material desses direitos, sobretudo, no campo judicial, por conta das lacunas derivadas da inércia dos demais poderes constituídos. É esta a reflexão, à luz do cenário contemporâneo de direitos humanos, com maior enfoque no cenário judicial paranaense, que segue. 2. A Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência enunciadas A concepção contemporânea dos direitos humanos, inaugurada no âmbito internacional no pós-segunda guerra, erige-se como consequência do sofrimento humano em decorrência das atrocidades perpetradas. Este momento, em oposição ao ocorrido antes e durante conflito, reconstrução e reafirmação dos direitos humanos, no âmbito nacional e internacional. As atrocidades perpetradas necessitavam de uma resposta da comunidade internacional, como explica Flávia Piovesan: “Se a segunda guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução”3. Sob as cicatrizes indeléveis da barbárie, tal marco protetivo internacional da pessoa humana traz consigo, espelhadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), as insígnias da universalidade e da integralidade. De um lado, a universalidade que pugna a condição humana como único fundamento para um conjunto inderrogável de direitos que deveriam ser garantidos a todos os indivíduos no globo. De outro lado, a integralidade que significa uma visão holística dos direitos humanos, apta a congregar direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais para melhor proteção da pessoa humana. Rompeu-se com o discurso apartado que ainda dominava o constitucionalismo estatal ao aliar as tradições protetivas do Estado de Direito Liberal e do Estado de Direito Social em um único documento, submetendo-os ao mesmo regime jurídico. Essa alteração refletiu nos planos constitucionais internos e resultou na estruturação contemporânea complexa do Estado Democrático de Direito – ou Estado Constitucional, como quer Canotilho4 – plasmado no nosso plano local na Carta de 1988. 3 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 117. 4 Na lição do autor: “O Estado constitucional carece da legitimidade do poder político e da legitimação desse mesmo poder. O elemento democrático não foi apenas introduzido para «travar» o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder. Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (I) uma é a legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no Estado de direito; (2) outra é a legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político no Estado democrático. O Estado «impoIítico» do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular, segundo o qual «todo o poder vem do povo», assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de «charneira» entre o «Estado de direito» e o «Estado 38 Melina Girardi Fachin Assim, consoante nos ensina Flávia Piovesan5, tal como há um direito pré e pós 48 no âmbito internacional de proteção dos direitos humanos, há um direito pré e pós 88 no campo protetivo constitucional pátrio e ambos os movimentos sofrem influências recíprocas. A concepção contemporânea de direitos humanos cedeu, todavia, espaço a uma visão parcial de direitos, pautada na dicotomia de categorias jurídicas – de um lado, direitos civis e políticos, e de outro, direitos econômicos, sociais e culturais – tratadas de modo díspar e ambivalente. Essa desarmonia teve como um primeiro reflexo a adoção, no plano global, de dois Pactos – o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – que instauraram regimes jurídicos profundamente diversos às duas espécies de direitos. Aos direitos civis e políticos conferiu-se tutela reforçada com a obrigação de respeito e realização imediata por parte dos Estados, posto que supostamente reclamam postura abstêmia do ente estatal sem necessidade de empregar recursos financeiros na sua realização. A par dessas obrigações, erigiu-se um aparato forte de controle na realização desses direitos. Aos direitos sociais, por outro lado, conferiu-se a tutela fraca da realização progressiva, sendo os Estados responsáveis pela sua implementação, ao longo do tempo, na medida dos recursos disponíveis, tendo em vista que tais direitos reclamam políticas e ações públicas com impactos orçamentários. E coerente com a enunciação normativa, há um sistema parco de monitoramento – hodiernamente em consolidação – em relação a esses direitos. Esse padrão fragmentário e ambíguo prevaleceu e, ainda hoje, prevalece tanto nos demais sistemas de proteção aos direitos humanos6. No âmbito interno, a interpretação constitucional que se seguiu acerca da eficácia das normas7 também relegou os direitos econômicos, sociais e culturais democrático», possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático”. In: CANOTLHO, José Joaquim Gomes. O Estado de Direito. Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 31. 5 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012. 6 Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos – que se erigem ao lado e em somatório dos demais aparatos existentes – possuem sua tônica na defesa dos direitos civis e políticos, relegando os direitos econômicos, sociais e culturais a um segundo plano. Isto porque, nos sistemas europeu e interamericano, a possibilidade de justicialização apenas pode versar, de modo direito e em larga medida, sobre as liberdades negativas. Somente o sistema regional africano de proteção dos direitos humanos se afasta desse paradigma, congregando normativamente as duas categorias de direitos e fixando-as como interdependentes e inter-relacionadas. Todavia, neste último caso, ainda há de se traçar a ponte da enunciação normativa à vivência fática desses direitos. 7 Nesse aspecto, referência deve ser feita à obra de José Afonso da Silva acerca da tripartição das normas constitucionais consoante sua eficácia em normas constitucionais de eficácia plena, de eficácia contida e de eficácia limitada. Em que pese a importância histórica da classificação faz-se mister – no que tange aos direitos fundamentais – lê-la em conjunto com a determinação constitucional do art. 5º, parágrafo 1º, de aplicabilidade imediata dessas normas. Para mais, ver: SILVA, José Afonso da. Eficácia das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros. Em revisão à luz da teoria dos direitos fundamentais, anota Virgílio Afonso da Silva a inadequação da aplicabilidade da teoria porque “todos os direitos fundamentais são restringíveis e todos os direitos fundamentais são regulamentáveis”. Para mais, ver: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado. São Paulo, vol. 4, p. 23-51, 2006. Citação à página 47. 39 A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção ao segundo plano. Destarte, o projeto da universalidade e integralidade dos direitos humanos não resistiu a esse processo de normatização e aprofundamento dos padrões mínimos protetivos fixados na arquitetura internacional que se seguiu. 3. A Fragmentação da Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência negadas A concepção contemporânea de direitos humanos cedeu espaço a uma visão parcial de direitos, pautada na dicotomia de categorias jurídicas – de um lado, direitos civis e políticos, e de outro, direitos econômicos, sociais e culturais – tratadas de modo díspar e ambivalente. Nada obstante, esse norte dicotômico ter prevalecido, desnudou-se a falácia desta abordagem partida entre direitos positivos e negativos que, por questões ideológicas, levaram à discrepância na tratativa dos direitos; a partir dessa predisposição de ambivalência; formaram-se, consoante acima demonstrado, argumentos que se espraiam – sobretudo pelos campos econômico, político e jurídico – que, todavia, não se sustentam8. Não há como negar que esse divórcio possui conexões e também consequências políticas. Os direitos econômicos, sociais e culturais, como direitos subjetivos à participação do bem-estar social, exigem prestações sociais e vinculam-se, sem dúvida, a uma melhor distribuição de recursos financeiros e fiscais dentro de uma sociedade. Isso contribui para o desenvolvimento humano na busca de condições mínimas de uma vida digna9. Obviamente, os direitos humanos são categoria diversa e complexa que, por vezes, necessitam de arquétipos diferenciados para sua realização. Todavia, sua plena realização apenas será alcançada se abraçada a heterogeneidade que reside no seu âmbito. A diferenciação 8 “Sob essa perspectiva, os direitos civis e políticos se distinguem dos direitos econômicos, sociais e culturais mais em uma questão de grau do que em aspectos substanciais. Pode-se reconhecer que a faceta mais visível dos direitos econômicos, sociais e culturais sejam as obrigações de fazer e, é por isso, que às vezes são denominados “direitos-prestação”. Contudo, não é difícil descobrir, quando se observa a estrutura desses direitos, a existência concomitante de obrigações de não fazer: o direito à saúde compreende a obrigação estatal de não prejudicar a saúde; o direito à educação pressupõe a obrigação de não piorar a educação; o direito à preservação do patrimônio cultural implica a obrigação de não destruir esse patrimônio.” In: ABRAMOVICH, Victor. Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais: instrumentos e aliados. In: Sur Revista Internacional de Direitos Humanos. 2005, vol.2, no.2, p. 189-223. p. 194. 9 Nessa direção, colhe-se de Rosas e Eide as seguintes afirmações: “Taking economic, social and cultural rights seriously implies at the same time a commitment to social integration, solidarity and equality, including tackling the question of income distribution. Economic, social and cultural rights include a major concern with the protection of vulnerable groups, such as the poor, the handicapped and indigenous peoples.” In: EIDE, Asbjorn; ROSAS, Alan. Economic, Social and Cultural Rights: a universal challenge. In: EIDE, Asbjorn; KRAUSE, Catarina; ROSAS, Alan (Editors). Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 2001. p. 5. 40 Melina Girardi Fachin deve ser razão da promoção de direitos, tomados em sua relação integral de complementaridade, e não de divisão, subjugação e hierarquização de determinadas categorias em face de outras. O legado da Declaração Universal de Direitos Humanos ainda, concretamente, não se realizou, sendo a concepção de integralidade, interdependência, indivisibilidade e universalidade do conteúdo dos direitos humanos promessa a cumprir, nos planos global, regional e local. A ruptura com a interconexão entre esses direitos espelha-se na ênfase exacerbada nos direitos civis e políticos em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nas palavras de Cançado Trindade: “Urge despojar esse tema de toda a retórica e passar a tratar os direitos econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos que o são”10. A fissura provocada na visão integral e inter-relacionada de direitos acaba por gerar uma universalidade, paradoxalmente, relativa, no que tange à proteção e à promoção desses direitos. O discurso universalista assume a desigualdade e a separação operadas, o que, por sua vez, gera preponderância dos direitos civis e políticos em prejuízo dos direitos econômicos, sociais e culturais. O discurso hegemônico claudica ao refletir a compreensão dividida dos direitos, com foco nos direitos civis e políticos, tolerando a não realização dos direitos econômicos, sociais e culturais sob a frágil justificativa da progressividade e dos recursos disponíveis à sua realização. Esse projeto de proteção mostrou-se parcial e relativo e acabou por consentir com o crescimento das desigualdades e da exclusão social no mundo. 4. O Regaste da Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência resgatadas Mesmo de modo insuficiente e insatisfatório, pois ainda há um longo caminho a singrar, a comunidade internacional tem se aberto à proteção e consecução desses direitos. Tendo em vista a partição normativa e a ambivalência de regimes jurídicos, experiências jurisdicionais, em maior ou menor medida, tem desmitificado e ressignificado a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, colocando-os em patamar de igualdade com aqueles civis e políticos. Eleva-se, portanto, o Poder Judiciário, nacional e internacional, à condição de importante espaço de realização dos direitos, sobretudo, dos direitos econômicos, sociais e culturais que ficaram alijados de sua 10 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Legado da Declaração Universal e o Futuro da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: AMARAL JUNIOR, Alberto; PERRONE-MOISÉS, Claudia (orgs). O Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1998. p. 13-51. p. 40. 41 A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção universalidade de fato em consequência de seu menor reforço normativo. A propósito, mencione-se tout court, que há forte contraposição à justicialização nacional e internacional dos direitos de participação do bem-estar social. Tradicionalmente, essas críticas refletem as frágeis justificativas, acima já expostas e combatidas de realização dos direitos sociais. As contraposições focam-se, sobretudo, no princípio da soberania estatal, no princípio da separação dos poderes, na ausência de legitimidade democrática do poder judiciário para consecução e políticas públicas e manejo do orçamento11, dentre outras que se conectam a esse core. Emerge, destarte, a necessidade de se revisitar as teorias tradicionais do princípio da separação dos poderes e a teoria democrática, a fim de preencher de novos significados tais significantes e de adequar a teoria do estado à realidade e suas exigências, bem como à atuação do Poder Judiciário das demandas que batem às portas da lei. A clássica separação de funções de cada um dos poderes do Estado12 não encontra conexão com a realidade hodierna, pois nasce ligada a um momento histórico em que se pretende a minimização dos poderes do Estado por influência do pensamento liberal. Além disso, a importância da teoria da divisão dos poderes conecta-se à defesa dos direitos individuais como garantia destes frente ao poder absoluto. Hoje, não há lugar para um rigoroso princípio da separação, se é que houve mesmo, historicamente, tal secção13, uma vez que as mudanças sociais e a crescente necessidade de intervenção estatal na sociedade tornaram necessária a reestruturação dos fundamentos do próprio Estado, incluso a teoria da separação dos poderes14. Exige-se, assim, 11 David Bilchitz traz dúvida com relação a este argumento, dizendo que: “It is not in fact true that significant budgetary implications will invariably follow from orders involving socio-economic rights: the enforcement of negative duties associated with socio-economic rights—for instance, preventing the state from demolishing houses or evicting persons—will not necessarily attract major budgetary consequences. In relation to positive duties, the exact nature of the budgetary consequences will depend on the order that is made and the context: the extension of an existing feeding scheme, for instance, may cost less than the creation of a new feeding program. Moreover, it is not clear that there is necessarily a significant difference in all societies between the amount spent on the positive obligations imposed by civil and political rights as opposed to those imposed by socio-economic rights.” In: BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p.129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009, doi:10.1093/acprof:oso/9780199552160.001.0001. 12 Diversos autores são destacados como antecessores e contributos desta divisão funcional do Estado, mas foi Montesquieu em sua obra L´Esprit des Lois (1748) que fez emergir a noção de tripartição das funções típicas de Estado (executivo, legislativo e judiciário) como “poderes” independentes entre si. Para mais, ver: SALDANHA, Nelson. O estado moderno e a separação dos poderes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010. p. 78-85. 13 Bonavides destaca que James Madison, nos papeis federalistas, já sublinhava que: “o mais leve vislumbre da Constituição Inglesa demonstra que nenhum dos departamentos jurídico, executivo e judiciário estava totalmente separado ou distinto entre si”. In: Sobre a temática ver: BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 148. 14 “... enquanto os direitos clássicos do Liberalismo eram direitos à proteção e à limitação jurídica do poder, os direitos sociais são direitos à promoção, direitos que apontam à organização da solidariedade. Se no Estado liberal buscava-se fazer valer direitos contra o Poder Público, no Estado Social insurgiram-se direitos ante o Poder Público”. In: PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2. ed. rev. atual. amp. São Paulo: RT, 2003. p. 36. 42 Melina Girardi Fachin uma nova separação dos poderes que, em colaboração, atuem para o desenvolvimento constitucional sob as balizas democráticas, técnicas e de proteção dos direitos fundamentais. Outrossim, diante da importância conferida aos direitos fundamentais, deu-se a potencialização da atividade do Judiciário, que recebeu a competência para salvaguardar e garantir a aplicação desses direitos. A carência de legitimidade democrática é outro argumento que não merece prosperar, visto que todos os Poderes retiram sua legitimidade para atuação do texto constitucional, no qual a dignidade da pessoa é fim e fundamento. O processo de alargamento da democracia na sociedade contemporânea não ocorre apenas por intermédio do aperfeiçoamento dos modelos de participação democrática, mas também e, sobretudo, por meio da extensão da democratização da arena política à arena econômica e social, visto que a democracia real apenas exsurge com a efetiva garantia (e respectiva realização) de direitos. A democracia, nessa visão, não dialoga exclusivamente com o princípio majoritário e ganha outros contornos15. É necessário, portanto, a adoção de medidas – o que se faz por meio de qualquer dos Poderes instituídos para a defesa da ordem dos direitos fundamentais, sobretudo das minorias16 – que minimizem o arbítrio do Estado e das maiorias ocasionais que estejam nos postos decisórios das instituições políticas. Sobre a necessidade da revisão dessa ordem de ideias, explicita Jurgen Habermas que “o esquema clássico da separação e da interdependência entre os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal”17. 15 Destaque-se, aqui, a lição de Roberto Gargarella que afirma: “O controle judicial pode ser um instrumento crucial para enriquecer a deliberação pública a respeito dos direitos sociais. Ademais, o ativismo judicial na área dos direitos sociais pode ser especialmente relevante, dada a íntima relação que existe entre direitos sociais e a participação política”. In: GARGARELLA, Roberto. Democracia Deliberativa e o Papel dos Juízes Diante dos Direitos Sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.(coord.) Direitos Sociais: fundamentos, justicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 207-227. p. 219. 16 Acerca dessa importante função do Poder Judiciário em relação às minorias anota David Bilchitz: “Representative institutions take decisions on the basis of a majority vote. As a result, they are well set up to reflect the opinions of the majority of citizens. However, there is a clear institutional inclination towards deciding matters on the basis of the interests of a majority. In relation to matters of fundamental rights, there is often a delicate balance to be struck between the interests of different individuals. The interests of perpetual minorities may simply be ignored by majoritarian institutions, and, even if they are taken into account, they may be misconstrued through the prejudices of those in the majority. Discrimination and ethnic factors may further contribute to distorting the judgment of the majority. The sidelining of minorities may not necessarily take place through deliberate discrimination by majorities; rather, it may be that the interests of minorities are simply not taken into account adequately by the democratic process. Consider most modern democracies in the developed world. Political parties generally appeal to the middle class to be elected, and thus the concerns of the middle class are dominant. Homeless people may also be voters, but their numbers may be insufficient to have an impact on party policies or to warrant serious concern by political parties. Thus, their interests are sidelined and not placed firmly on the political agenda. Scant attention can be paid to the homeless as there is little.” In: BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p. 124. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009, doi:10.1093/acprof: os o/9780199552160.001.0001. 17 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Editora 43 A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção Alçar também o Poder Judiciário, seja no âmbito interno ou subsidiariamente na seara internacional, à realização dos direitos humanos, sobretudo aqueles sociais mais básicos, não é apenas razoável como imperativo. Todo o aparelho de Estado é responsável e deve se somar na realização da dignidade da pessoa humana e é deste princípio que decorre o mandato das instâncias judiciárias para atuar em relação aos direitos humanos18. Na conjuntura pátria torna-se ainda mais importante a participação ativa e corresponsável das instâncias judiciais como forma de atuar em relação à profunda desigualdade social. O Judiciário não pode quedar passivo diante dessa realidade, sendo a participação da jurisdição na realização dos direitos um importante mecanismo de democratização e fruição da verdadeira cidadania. Refutar a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais pela via judicial atende a padrões ideológicos e não técnicos. As garantias judiciais são um importante mecanismo para romper com a dicotomia e ambivalência instauradas de que a categoria dos direitos civis e políticos merece acatamento e plena realização enquanto os direitos sociais ficam à mercê da boa-vontade e caridade estatal. A propósito, eis a precisa lição de David Bilchitz: (…) judicial duties in relation to socio-economic rights will not differ greatly from those they perform in relation to civil and political rights. Courts are not criticized for ordering the provision of legal representation to the unrepresented, or for ordering that all are provided with the vote in a society: why then should they be criticized for ordering a state to ensure that people are provided with enough food to avoid malnutrition? The rationale for this distinction seems to lie in the fact that the critics regard socio-economic rights as in some way inferior to civil and political rights and as not warranting equal protection.19 Fluem nesse intuito de levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério e, por via de consequência, promover visão holística e universal dos direitos humanos as experiências jurisprudenciais. Analisar-se-ão, portanto, sem o intuito de esgotamento, mas a título de ilustração, alguns casos que demonstram o esforço da jurisdição paranaense em, alçando os Tempo Brasileiro, 2003. p. 326. 18 “Num Estado Social, modelo adotado pela Carta Brasileira de 1988, o Poder Judiciário é exigido a estabelecer o sentido ou a completar o significado da legislação constitucional e ordinária que já nasce com motivações distintas às da certeza jurídica, o que lhe dá o papel de “legislador implícito”. Dessa maneira, a agenda da igualdade redefine a relação entre os três Poderes, adjudicando ao Poder Judiciário funções de controle dos poderes políticos.” In: KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 98. 19 BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p. 129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009, doi:10.1093/acprof:os o/9780199552160.001.0001. 44 Melina Girardi Fachin direitos sociais à categoria de verdadeiros direitos, intentar traçar a ponte da universalização parcial à integralidade da proteção de direitos. Como recorte metodológico, a análise ater-se-á aos julgados produzidos no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná porque intérprete privilegiado de nossa realidade local. Em consonância com os frutos colhidos na jurisprudência da Corte Suprema Pátria20, o Poder Judiciário do Estado do Paraná tem tido papel de proeminência na fixação dos standards para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Sob o pálio dos efeitos irradiadores do entendimento do STF, de um modo geral, os entendimentos jurisprudenciais seguem os parâmetros da efetivação da proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais. Entretanto, pontue-se que há vozes21, ainda fixadas na postura liberal clássica de ofensa à separação dos poderes posto que não caberia ao Poder Judiciário a análise da conveniência e oportunidade da alocação dos recursos públicos, com base no argumento da reserva orçamentária. Cada vez mais, o Poder Judiciário tem assumido seu papel de garante, sobretudo dos direitos sociais. A jurisprudência da Corte de Justiça estadual reafirma a legitimidade judiciária de intervir em casos de omissão dos demais poderes na consecução de políticas públicas para efetivação dos direitos sociais previstos no texto constitucional, afastando, assim, o frágil argumento da separação dos poderes. Ilustra o exposto voto recente da lavra da 4ª Câmara Cível acerca da prestação do direito social à saúde pela via judicial. Nas palavras contidas no acórdão: 20 A saber: “(...) Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. [...] Precedentes.” Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125. 21 Sobre esta postura anota Krell: “Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos.” In: KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 23. 45 A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA LIMINAR PROFERIDA NOS AUTOS DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM QUE FOI DETERMINADO O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO DO PARANÁ A PORTADORA DE FIBROMIALGIA. PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO EM VIRTUDE DE TER SIDO CONCEDIDA SEM A OITIVA DO REPRESENTANTE DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO (ART. 2º DA LEI 8.437/92). POSSIBILIDADE. HIPÓTESE EXCEPCIONAL. NATUREZA E ESSENCIALIDADE DO DIREITO EM QUESTÃO QUE AUTORIZAM A MITIGAÇÃO DA CITADA REGRA. PRELIMINAR AFASTADA. MEDICAMENTO NÃO CONSTANTE NOS PROTOCOLOS CLÍNICOS PARA O TRATAMENTO DA DOENÇA. IRRELEVÂNCIA. DIREITOS À SAÚDE E À VIDA PROTEGIDOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ELEVADOS À CATEGORIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. DEVER DO ESTADO EM PROVÊ-LO CONFORME PRECEITUA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 5º, II, 6º E 196). PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE DEVE PREVALECER ACIMA DE QUALQUER REGRA BUROCRÁTICA DE FORNECIMENTO. ATENDIMENTO AOS DITAMES DA RECOMENDAÇÃO EDITADA PELO COMITÊ EXECUTIVO DO FÓRUM NACIONAL DO JUDICIÁRIO PARA MONITORAMENTO E RESOLUÇÃO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE VEZ QUE OS PRESENTES AUTOS EVIDENCIAM QUE OS MEDICAMENTOS PRETENDIDOS SÃO ESSENCIAIS PARA O TRATAMENTO DA PACIENTE. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NEGADO PROVIMENTO.22 A jurisprudência do TJ/PR é unânime em sobrepor a realização das garantias constitucionais em face de discussões burocrático-formalistas. A saber: AÇÃO ORDINÁRIA. PEDIDO DE FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO. TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA EM PRIMEIRO GRAU. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. INOCORRÊNCIA. NEGATIVA DE FORNECIMENTO CONFIGURADA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO. PRELIMINARES REJEITADAS. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE. REFLEXOS NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. DEVER DO ESTADO. MEDICAMENTO PRESCRITO POR PROFISSIONAL MÉDICO À PESSOA IDOSA PORTADORA DE GRAVE DOENÇA (OSTEOPOROSE GRAVE). AUTORA DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS PARA ARCAR COM O ALTO CUSTO DO FÁRMACO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.23 Por igual modo, os argumentos acerca da limitação dos recursos disponíveis são recebidos com granus salis pelo Tribunal. Segundo a jurisprudência dominante, a reserva orçamentária não pode contrapor-se à implementação mínima desses direitos, porque são imprescindíveis à existência digna. Obviamente, não se devem ignorar os laços financeiros que a concretização dos direitos sociais exigem. No entanto, estes aspectos econômico-financeiros não podem ser manejados de modo 22 TJPR - 4ª C.Cível - AI 917988-8 - Umuarama - Rel.: Wellington Emanuel C de Moura - Unânime - J. 23.10.2012. Grifo nossos. 23 TJPR - 4ª C.Cível - AI 839700-6 - Ponta Grossa - Rel.: Guido Döbeli - Unânime - J. 13.03.2012. 46 Melina Girardi Fachin a negar a própria autoridade do texto constitucional. Reforçando esse mesmo posicionamento fixa julgado recente: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR DEFERIDO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA CONDENAR O MUNICÍPIO DE PITANGA AO FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO TEMODAL (TERMOZOLOMIDA) AO SR. LAURIDES CARLOS BOSCHETO, PORTADOR DE TUMOR CEREBRAL. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO DE PITANGA. NÃO ACOLHIMENTO. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO NO CUSTEIO E GERENCIAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. A AÇÃO PODE SER PROPOSTA CONTRA QUALQUER DOS ENTES RESPONSAVELMENTE SOLIDÁRIOS. EXISTÊNCIA DE CACON CENTRO DE ALTA COMPLEXIDADE EM ONCOLOGIA QUE NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. TRATAMENTO NÃO REGISTRADO NA TABELA DE PROCEDIMENTOS DO SUS. IRRELEVÂNCIA. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. NECESSIDADE DO TRATAMENTO DEVIDAMENTE DEMONSTRADA NOS AUTOS. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL QUE NÃO PODE SERVIR DE OBSTÁCULO À CONCRETIZAÇÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL. LIMITE NA GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO DEVIDA PELO ESTADO INDEPENDENTEMENTE DE MEDIAÇÃO LEGISLATIVA OU PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA POR ESTAR INTIMAMENTE LIGADA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E AO DIREITO À VIDA. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA QUE AUTORIZAM A CONCESSÃO DA LIMINAR NOS TERMOS DA DECISÃO AGRAVADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.24 Ainda, dialogando com a jurisprudência do STF25, o TJ/PR também abriga a vedação do retrocesso social como parâmetro para realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, como baliza à limitação de recursos. Leia-se, a propósito, no voto da 7ª Câmara Cível que “o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”. E prossegue o voto: “A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado [...] traduz [...] obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser 24 TJPR - 4ª C.Cível - AI 788605-5 - Pitanga - Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - J. 26.06.2012. Grifos nossos. 25 “A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados”. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125. 47 Melina Girardi Fachin A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado”26. Diversos poderiam ser os julgados aqui colacionados27, porém o objetivo é somente demonstrar o sentido da proteção aos direitos econômicos, sociais e culturais em nosso poder judiciário estadual. Nota-se que o TJ/PR tem atuado para tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, na tentativa de, ao menos em seu núcleo mínimo, equipará-los ao tratamento jurídico que recebem àqueles civis e políticos. A análise, todavia, nos demonstra que ainda há um longo caminho a seguir. Em primeiro plano, as jurisdições são provocadas pela ausência ou inércia dos demais poderes constituídos que ainda não operam em tônica próxima dos direitos humanos. Ainda, a jurisdição, em face das inúmeras violações existentes, é pouco provocada à realização desses direitos e, quando o é, o foco ainda é a litigância individual que privilegia alguns direitos, como a saúde e a educação, deixando os outros direitos econômicos, sociais e culturais à mercê da efetiva universalização. Isso corrobora a ambivalência na realização das diferentes classes de direitos. Sobre esta distância a percorrer, anota Flávia Piovesan: É necessário, contudo, avançar em estratégias de litigância que otimizem a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos sociais, como verdadeiros direitos públicos subjetivos, por meio do empowerment da sociedade civil e de seu ativo e criativo protagonismo. Há de se reinventar a relação com o Poder Judiciário, ampliando seus interlocutores e alargando o universo de demandas, para converter este poder em um locus de afirmação de direitos. Há que se fortalecer a perspectiva integral dos direitos humanos, que tem nos direitos sociais uma dimensão vital e inalienável, aprimorando os mecanismos de sua proteção e justiciabilidade, dignificando, assim, a racionalidade emancipatória dos direitos sociais como direitos humanos, nacional e internacionalmente garantidos.28 5. Conclusão Em que pese os esforços jurisdicionais acima narrados, a realização universal dos direitos tornou-se, ao menos para grande parte da população mundial, vivendo na fome e na miséria, um mito em um mundo divorciado de direitos. Ainda é necessário dar um passo adiante em direção a concepção integral dos direitos humanos, alçando, não apenas 26 TJPR - 7ª C.Cível - AC 874812-3 - Foro Regional de Araucária da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Luiz Antônio Barry - Unânime - J. 12.06.2012. 27 A título de exemplo: TJPR, AI 840.235-1, 4ª Câmara Cível, rel. Des. Guido Dobeli, 15/06/2012; TJPR, Acórdão 864103-6, 4ª Câmara Cível, rel. Maria Aparecida Blanco de Lima, j. 08/05/2012; TJPR, Acórdão 864103-6, 4ª Câmara Cível, rel. Des. Maria Aparecido Blanco de Lima, j. 08/05/2012; TJPR, Acórdão 869235-3, 4ª Câmara Cível, rel. Des. Abraham Lincoln Calixto, j. 24/07/2012; TJPR- 691.697-6, 3ª CC, rel. Juiz Convocado Fernando Antonio Prazeres, jul 09/11/2010; Apelação Cível nº 748195-2 - 2ª Câmara Cível - Rel. Dra. Josely Dittrich Ribas. 28 PIOVESAN, Flávia. Proteção e Justiciabilidade dos Direitos nos Planos Global, Regional e Local. In: Revista da Escola da Magistratura do TRT de São Paulo-SP, 2ª Região. Ano 3, nº 3, setembro de 2008. p. 139-182. p. 182. 48 pela porta jurisdicional, a realização desses direitos como verdadeiros direitos humanos. Apenas com a garantia real dos direitos sociais é que a proteção de direitos alçará os anseios inaugurados com a concepção contemporânea, em 1948 e com a Constituição Federal, em 1988. Sem levar os direitos sociais a sério, a própria proteção dos direitos civis e políticos perde seu sentido estrutural, convertendo-se em garantia meramente formal posto que a participação política depende de uma adequada situação e inclusão econômica e social dos indivíduos. Referências ABRAMOVICH, Victor. Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais: instrumentos e aliados. In: Sur RevistaInternacional de DireitosHumanos. vol.2, nº.2, 2005. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989. BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p. 129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Estado de Direito. Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva, 1999. EIDE, Asbjorn; ROSAS, Alan. Economic, Social and Cultural Rights: a universal challenge. In: EIDE, Asbjorn; KRAUSE, Catarina; ROSAS, Alan (Editors). Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2ndrevisededition. Dordrecht: Martinus NijhoffPublishers, 2001. GARGARELLA, Roberto. Democracia Deliberativa e o Papel dos Juízes Diante dos Direitos Sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.(coord.) Direitos Sociais: fundamentos, justicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2003. KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 917988-8 - Umuarama 49 A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção - Rel.: Wellington Emanuel C de Moura - Unânime - J. 23.10.2012. Grifo nossos. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 839700-6 - Ponta Grossa - Rel.: Guido Döbeli - Unânime - J. 13.03.2012. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 788605-5 - Pitanga - Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - J. 26.06.2012. Grifos nossos. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 7ª C.Cível - AC 874812-3 - Foro Regional de Araucária da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Luiz Antônio Barry Unânime - J. 12.06.2012. PIOVESAN, Flávia. Proteção e Justiciabilidade dos Direitos nos Planos Global, Regional e Local. In: Revista da Escola da Magistratura do TRT de São Paulo-SP, 2ª Região. 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São Paulo: Edusp, 1998. 50 Leandro Franklin Gorsdorf DIREITOS HUMANOS E ARTE: dialógos possíveis para uma episteme Leandro Franklin GORSDORF1 Introdução A sociedade encontra-se em tempos de questionamentos, tempos de busca por novas perguntas e respostas, tempos de pensar em uma nova forma de se dizer e fazer os Direitos Humanos. Atualmente, a sensação que se tem sobre o futuro dos Direitos Humanos é incerta frente aos índices violência, da desigualdade social, dos atos de intolerância, das posições de governantes, dos discursos dos “especialistas” e da desmobilização da sociedade civil. Outros campos de luta pelos direitos humanos devem ser construídos, reconstruídos e destruídos (pois, enfim, a morte tem seu potencial criador), abrindo a novas concepções, novas relações, novos saberes. A mudança deve ser feita no âmbito teórico, prático e simbólico, que permita o fortalecimento dos sujeitos na ação política e jurídica direcionada aos direitos humanos. Este artigo tenta traçar alguns caminhos que podem ser percorridos ao entrelaçar Direito, Política e Arte na construção de um novo saber de Direitos Humanos, para que se torne menos aprisionado pelo discurso jurídico travestido de “ciência” e mais liberto para um pensamento livre e plural, de experimentação e sentimento. O itinerário proposto para este artigo perpassa pela identificação da colonização dos direitos humanos pelo conhecimento jurídico cientifico e a possibilidade de passagem para a dimensão política. Porém, a política vista aqui, sob o olhar da relação entre política e arte. 2. Direitos Humanos e “Ciência Jurídica”: a operação reducionista da Modernidade Ao se perguntar sobre o que são os direitos humanos? Pode-se deparar com a resposta que está indicada na própria pergunta, são direitos. Incorre 1 Professor de Direitos Humanos do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal do Paraná, doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná, membro do Observatório de Direitos Humanos, membro do Grupo de Pesquisa “Direito e Literatura”. Relator Nacional do Direito a Cidade da Plataforma Dhesca Brasil(2012-2014) e conselheiro da entidade Terra de Direitos. 51 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME que ao se apegar a esta resposta, pode-se reafirmar o reducionismo dos Direitos Humanos ao mundo jurídico, como se bastasse o direito a ter direitos para consecução do fim dos direitos humanos, as necessidades dos sujeitos. A teoria dos Direitos Humanos, construída pela doutrina e pelos teóricos, se referencia em tratados, convenções, leis, decretos, portarias e decisões judiciais para construir as bases da exigibilidade. Por outro lado, estas discussões se descolam da realidade, pois partem do “resultado” para identificar o que são os direitos humanos. Inscrevem os direitos humanos no campo jurídico e, tão somente, apartando-os de outras racionalidades ou saberes. Se os direitos humanos se inserem na seara do conhecimento jurídico para construção de suas bases teóricas, tem-se o entendimento de que as concepções e ideias do que vem a ser o Direito permeiam e exercem influência nas delimitações dos debates e práticas sobre direitos humanos. O Direito, desde o século XIX, se entende como ciência, em razão do “discurso do saber científico que vem organizado a partir de uma episteme lógico demonstrativo e que seja empiricamente verificável.” (COSTA, 2012). Esta forma de conhecimento jurídico, assentado na ideia de ciência, “se fortalece com a instituição do Estado de Direitos no século XIX e que ainda permanece nos tempos de hoje. Momento em que a política deve obedecer aos processos jurídicos, os campos jurídicos e políticos aparecem largamente sobrepostos, como lugar em que se desenrolam as lutas simbólicas pela apropriação da competência de constituir direito.” (HESPANHA, 2008, p.180). O Direito, e, por conseguinte, os direitos humanos, que vem sendo construídos posteriormente, o são sob a égide deste racionalismo científico jurídico. O conhecimento jurídico, entendido como ciência, se apartou da política, impingindo consequências para as diversas áreas do Direito, inclusive dos Direitos Humanos. Com o Direito sendo compreendido como ciência, a formação do conhecimento jurídico sofre algumas implicações, como explicita BITTAR: Para o racionalismo, não se pode crer naquilo que a ciência moderna não tenha comprovado e, por isso, a fonte de todo saber é sempre fundada na plataforma de pesquisa do próprio racionalismo. Se alimentando de si mesmo, e negando valor a toda pratica de sabedoria que divirja de seus cânones, a ciência moderna, racionalista e ocidental, se define a si mesma, a se auto arroga a condição de saber único (...)(BITTAR, 2008, p.64) 52 Leandro Franklin Gorsdorf Neste sentido, o racionalismo propugnou um culto a razão. Ou seja, uma deformação da interpretação do valor da razão, onde “rigor, cientificidade, lógica, epistemologia e método são termos suficientemente estéreis para já significarem a falta de porosidade a tudo que pode ser visto como deslocado destas práticas do racionalismo.” (BITTAR, 2008, p.63). A concepção de direitos humanos que se alicerça sobre esta ótica, busca os, ao mesmo tempo em que é refém dos, fins da ciência moderna, que é a certeza e segurança. O conhecimento jurídico rigoroso se torna, então, refém: do Estado, do capital, da universidade, de um sistema de peritos, de um conhecimento profissionalizado, relativamente separado das aspirações, dos anseios e das necessidades do cidadão comum. Aprisionado por elites dominantes, por classes que tiveram a capacidade de dominar e de controlar esse poder saber. A pretensa objetividade e neutralidade epistêmica foram determinantes para tornar-se estéril, inexpugnável, impassível de ser contaminada pela dimensão interativa, espontânea e natural humana. (BITTAR, 2008, p.62). A investida dos juristas pelo processo de depuramento do Direito e, por conseguinte, da constituição da ciência exata do direito, se deve pela busca de um método e de um sistema. (HESPANHA, 2008, 151). Para o jurista, o que é central no saber jurídico é o direito que realmente é, e não que o direito não é porque ainda não é, isto é, das pretensões, das expectativas, previsões, do futuro. (COSTA, 2012). O positivismo jurídico, aplicado aos direitos humanos, reforçou o senso comum de que a “ciência jurídica seria, acima de tudo, uma ciência lógica da interpretação cartesiana de textos racionais e objetivos, em que não haveria lugar para as incertezas semânticas, a emocionalidade e até certa irracionalidade da arte e da estética.” (FRANCO FILHO, 2011, p.18). Desta forma, os direitos humanos são capturados por esta lógica de pensamento dogmático e científico, instaurando um “juridicismo” que é “um grande caldeirão de sonoridades que determinam condições alienadas de passividade: uma overdose de crenças, verdades reveladas, valores banalizados, sentidos de posse que destroem os esforços de instauração de uma sociedade autônoma.” (WARAT, 1997, p.49). Os Direitos Humanos como apreendido pela dogmática tradicional se referem a uma realidade conquistada, já alcançada e não um ideal a se conquistar. Isto é, são algo que já temos pelo fato de sermos seres humanos, corroborando ideia jusnaturalista e positivista do Direito. Estes juristas entendem que “os direitos ‘são os direitos’; quer dizer os direitos humanos se satisfazem tendo direitos.” (HERRERA, 2009,33). 53 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME Novamente esta ideia se traduz numa generalização dos direitos, abstratos e conceituais. Reforça a ideia de um a priori dos direitos humanos. Como se a luta pelos direitos humanos fosse tão somente uma luta em termos jurídicos, de direito a ter direitos. Para esclarecer, podemos resumir em três falácias que este tipo de pensamento de conhecimento jurídico aliado aos direitos humanos pode resultar: 1.Independentizar as condições de produção do conhecimento do contexto que a tornam impossíveis. 2.Invisibilizar as consequências reais que dito conhecimento tem sobre a própria realidade que se pretende conhecer; 3.Trabalhar teoricamente os direitos humanos deixando de lado a função social do conhecimento2. A dimensão de transformação do Direito, em especial dos Direitos Humanos deve optar pelo caminho das mudanças das concepções jurídicas, do mundo e da vida, isto é, no campo da episteme. (GAMA, 2009). Para contrapor o aprisionamento que o racionalismo jurídico impõe aos direitos humanos, deve-se entender que os direitos humanos, além de serem direitos “propriamente ditos”, são processos. Processos políticos, que podem ser amparados por lutas no campo jurídico, mas que, em última instância, são dinâmicas sociais que tendem a construir condições materiais e imateriais necessárias para garantir o acesso a bens. (HERRERA, 2009, p.35). A mudança de perspectiva dos direitos humanos visa a garantir que se situe a realização dos direitos a partir de um lugar político na sociedade. Urgente, é a recuperação do político, no qual se romperia com a “posição naturalista que concebem os direitos como uma esfera separada e prévia à ação política democrática.” (HERRERA, 2009, p.78). A realidade é resultado, produto cultural, visto sempre como categoria impura, contaminada de contexto e submetida as relações fáticas de poder. (HERRERA, 2009, p.79). O caminho para uma teoria/prática de direitos humanos é o enfrentamento das purezas e as idealizações de um corpo jurídico imune as incertezas. 2 São três as condições mínimas para estabelecer a função social do conhecimento dos direitos humanos: a) não se pode haver conhecimento critico, se não começarmos pela própria crítica do conhecimento;b)superação das abstrações, reconhecendo os sujeitos nos seu fazer e não somente no seu pensar; c) nossa ideia de mundo não pode recair no déficit de sentido(coisificação do humano) nem no excesso de sentido(idealização do humanos). (HERRERA,2009, p.109-110) 54 Leandro Franklin Gorsdorf A construção dos direitos humanos não pode se assentar na ideia de puro, pois este somente “se alcança por via negativa, ou seja, despojandose o pretendido objeto de conhecimento de todas as suas impurezas e negando-lhes sucessivamente os atributos de uma existência em si e por si” (HERRERA, 2009, p.86). Como expõe OST, o direito deve ser abalado em suas certezas dogmáticas e reconduzido a interrogações essenciais. (OST, 2005, p.09). Para avançar os limites impostos a esta racionalidade se propõe trazer para o campo jurídico, as incertezas da política, da realidade, do mundo vivido prenhe de suas contradições e paradoxos. Para um novo tempo dos direitos humanos é imprescindível engendrar novas práticas sociais e novos direitos. Tal empreendimento deve ser levado a última instância, desde que considere os direitos humanos nas suas facetas, a do político e a de um jurídico não mais mediado pela racionalidade científica da modernidade. Os direitos humanos devem ser entendidos como resultado de lutas impulsionadas tanto por categorias teóricas como por categorias práticas, isto é, por elementos conceituais ou materiais. No campo conceitual, podemos falar em teorias, posição, espaço, valores, narração, instituições. No campo material, forças produtivas, disposição, desenvolvimento, práticas sociais, historicidade e relações sociais. (HERRERA, 2009, 122). Essas categorias teóricas e prática devem ser revistas para a construção de um novo conhecimento acerca dos direitos humanos. A Arte por ter sido a racionalidade menos colonizada pela modernidade, em grande medida por ter sido marginalizada é a opção para a transformação epistemológica dos direitos humanos. Em oposição se encontra a ciência moderna e a arte, pois aquela é negação desta, a certeza em detrimento da incerteza. Por essa razão, ao estreitar laços com a Arte, o saber jurídico positivista “tende a perder o revestimento “cientificista” que o caracterizava, renuncia a pretensão de representar hegemonicamente a totalidade do campo jurídico, converte em problema a ideia da própria capacidade de descrever e a de sua objetividade.” (COSTA, 2012). Por outro lado, no campo da política, “a arte propicia contundentes indícios para se apreenderem os limites e os paradoxos da política, suas razões e insuficiências esperançam de construção do espaço público e frustração com os resultados alcançados” (CHAIA, 2007, p.13). A Política e o Direito, dos direitos humanos devem ser repensados nos seus limites a partir da Arte, lhes garantindo uma nova refundação. 55 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME A arte pode contribuir para a elaboração de uma teoria/prática de direitos humanos, quando estiver compromissada com três objetivos: “1. Desenterrar contínua e permanentemente aquilo que fica esquecido/ oculto; 2. estabelecer, de um modo constante, relações e vínculos que foram negados; e 3. apontar recorrentemente cursos alternativos de ação social e de reflexão intelectual.” (HERRERA, 2009, p.111). Os próximos passos são identificar os possíveis diálogos entre a política e arte e o direito e arte, e como resultante destas inter-relações um novo horizonte para os Direitos Humanos. 3. Política e Arte: interações para autonomia dos Direitos Humanos A arte garante um estranhamento frente ao mundo, capaz de indagar sobre o estado das suas convenções e dos lugares comuns. (GAMA, 2009). E por isso a força criativa dos questionamentos dados pela arte, do poder estabelecido e das normas impostas, seja pelo Estado ou pela sociedade civil. Dois campos teóricos têm desenvolvido discussões sobre a relação entre arte e política, trazendo fundamentações filosóficas específicas sobre as múltiplas interações entre estas duas áreas do conhecimento. Dentre aqueles que entendem que “a arte está relacionada às condições externas a ela, ou seja, a obra e o artista encontram-se ligados as condições sociais”, temos como origem, Karl Marx, e na mesma esteira, Theodor Adorno, Guy Debord e Frederic Jameson. (CHAIA, 2007, p.15). Outra corrente compreende “a arte num movimento interno em direção ao sujeito, seja ele artista ou usufruidor.” Dentre os pensadores, se destacam Friedrich Nietzsche, Antonin Artaud, Maurice Blanchot e outros pensadores franceses. As bases como essa relação pode ser construída é exemplificada por quatro situações, que podem num determinado momento histórico incorrer simultaneamente, se considerarmos as ações e produções dos artistas, o desenrolar dos movimentos artísticos e as estratégias adotadas por instituições políticas. a) A situação da arte crítica, estabelecida pela consciência crítica do artista, que propicia a um indivíduo ou a um grupo criar obras baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços e pesquisas para o avanço ou a revolução da linguagem. Aparece como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a 56 Leandro Franklin Gorsdorf realidade, representando em certos aspectos a condição humana, os mecanismos de poder e da economia, ou a estrutura social no qual o artista esta envolvido. (CHAIA, 2007, p. 22). b) A situação da politização da arte, que trata-se do artista assumidamente engajado que critica, protesta e age publicamente, carregado de componentes ideológicos, de influências partidárias e da circulação de ideias brotadas de manifestos de vanguarda. Existe uma fusão de interesses individuais e institucionais, e por isso mesmo em alguns casos resultando em propagação difusa de um projeto político. (CHAIA, 2007, p.24) A partir desta concepção podemos entender que “o artista politiza a sua arte ao privilegiar seu papel de militante, trazendo para sua obra parâmetros externos a sua subjetividade, dados por programas políticos partidários e estatais que possam justificar ou alimentar a sua ação criativa.” (CHAIA, 2007, p.25) c) Situação da estetização da política, expressão cunhada por Walter Benjamin, quando analisa o nazismo e o fascismo, e a atuação do Estado ou de associações partidárias, constituindo-se como fonte de ingerência externa sobre a produção da arte e tornando-a parte de um projeto reformador da sociedade. A centralização política, massificação, propaganda e tecnologia soam-se a arte para a transformação totalitária da sociedade, eliminando-se a possibilidade da discussão estética como esfera autônoma. (CHAIA, 2007,26-27) Ainda para reforçar esta ideia, esta situação não permite que ela se politize sem perder sua autonomia, pois influencia a ação cidadã de modo autoritário, já que é, de certo modo, está presente uma intencionalidade explícita. (BLOTA, 2008) E por último, situação da “presença política da obra”, na qual independentemente ou não da vontade do sujeito e do projeto do artista, uma obra de arte pode tornar-se um símbolo político que evoca um conjunto de ideias ou condições sociais, não representando um fato histórico, mas sendo um fato. (CHAIA, 2007, p.28) A transformação social, que está no cerne da discussão dos direitos humanos, pode ser realizada: por meio de atitudes contestatórias e ações autônomas – que se desenvolvem num espaço democrático, aberto, heterogêneo e segmentado. Neste processo, importa a presença do artista para transgredir e resistir, seja ele visionário, rebelde ou revolucionário, na luta contra a sujeição cultural, utilizando-se do esforço individual ou da cooperação coletiva, 57 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME dos meios eletrônicos ou do correio, do conceito ou da materialidade, dos suportes tradicionais ou de novas tecnologias. (CHAIA, 2007, p. 38-39) É importante frisar que as situações que se apresentaram, representam como o artista e sua obra de arte, podem externalizar e aprimorar os espaços existentes na nossa democracia, alterando os modos e formas tradicionais do debate público, incitando pensar a democracia para além dos espaços institucionais. A possibilidade da arte e política se aproximarem para repensar os direitos humanos, pressupõe a autonomia desta arte em relação ao poder instituído e frente ao capitalismo, propiciando a reflexão em direção a autenticidade e originalidade. Privilegia-se “a dimensão simbólica dos direitos humanos como parte constitutiva de um espaço público, que aglutina focos de autonomia dos desejos, experimenta novas relações como saber, a lei e o poder, para assegurar, sem garantias, o valor emancipatório da criatividade.” (WARAT, 1997, p.53). A arte elaborada como lugar de resistência e de mudança na sociedade, prima pelo fortalecimento do debate, do espaço público, da cidadania, em confronto com o processo de transformação da arte em produto de fruição individual, produto de consumo de massa. (ADORNO;HORKHEIMER,1985, p. 113-156). Recuperar os direitos humanos na sua concepção crítica, pela arte, permite questionar a dominação das ideias e da ação no campo político, da univocidade das discussões, suspendendo as decisões e deliberações políticas que se tornam a regra na sociedade, por isso que temos que a existência da regra na sociedade e implica na dificuldade da expressão poética, pois é da regra querer a morte da exceção, onde a arte é exceção. (CHAIA, 2007, p.39). As relações entre Direitos Humanos e Arte podem engendrar novas estéticas, práticas sociais e novos direitos. Direito e Arte: entre a obra de arte e a experiência artística em Direitos Humanos O senso comum jurídico dos juristas3 está impregnado pelo dogma cientificista do direito e é tarefa estabelecer um diálogo com outras formas de conhecimento, para além do científico, para incorporar outras racionalidades e formas de pensar e sentir os direitos humanos. Leandro Franklin Gorsdorf A forma como se articula o conhecimento científico do Direito e a arte são distintos, pois a razão científica se apresenta como objetiva racional e universal, relegando a arte ao subjetivo, o emocional/passional e o particular, isto é, não generalizável além do pano de fundo cultural sobre o qual é realizado. Ao contrário a razão científica, sempre potencialmente aplicável a qualquer contexto e qualquer forma cultural. A imagem do científico é a flecha; enquanto que a do artístico é a espiral, ascendente e descendente, horizontal e vertical (...) (HERRERA FLORES, 2000,248) (tradução do autor). Ainda neste sentido, expondo traços comparativos: A arte duvida até de si mesma. A ciência analisa, rompe o real para conhecer as partes. A arte realiza, nos relaciona com nós mesmos e com o mundo, sempre em função da presença real do outro. A ciência estabelece uma autoridade, um meta-nível que potencializa a aparição dos mediadores, de representantes da verdade. A arte permite o múltiplo comentário, a dúctil e plural interpretação, a variedade de leituras e recepções. A verdade científica pretende afirmar quatro princípios: a de independência com respeito a existência humana (somente podemos atuar para encontra-la); o da correspondência com a realidade; o de bivalência, cada enunciado é verdadeiro ou falso; e o de singularidade, já que somente há uma completa e verdadeira descrição da realidade. Enquanto a arte, são da imediatez, o de compromisso pessoal e da responsabilidade. A ciência avança eliminando o que considera erro. Ao contrário, a arte atua como memória do humano. (HERRERA FLORES, 2000, p.249) (tradução autor) Como manifestações culturais que são-mostrando o homem na relação com aquilo que o rodeia, arte e direito sempre mantiveram uma grande proximidade ao longo da história.” (FRANCO FILHO, 2011, p.18). Esta relação entre arte e direito, é complementar ou conflituosa, porém sempre estabelecendo uma reflexão ao direito instituído, dado, em contraponto ao direito construído. Uma vez que “arte e estética- por conta do seu não-dogmatismo, da sua dinâmica complexidade, da sua refinada compreensão do mundo, da sua abertura e da sua criatividade – tem sempre muito a dizer do direito, mesmo não se valendo da palavra.” (FRANCO FILHO, 2011, p.22). Apesar de se referenciar na literatura, muitas das afirmações de OST, pode ser trazida para o âmbito da arte de forma mais ampla, principalmente quando diz que “a literatura (leia-se arte) libera os possíveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma rede de qualificações convencionadas, a encerra num sistema de obrigações e interdições.” (OST, 2005, p.13). 3 De acordo com WARAT, entende-se por um complexo articulado do imaginário social e cientifico, composto pela ideologia que surge de um saber acumulado da experiência histórica que não é resultado de uma “atividade cognoscitiva deliberada”.(WARAT,1995,p.35-36) 58 59 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME A indisciplina da arte interpela o jurídico, fragilizando os pretensos saberes positivos sobre os quais o direito tenta apoiar sua própria positividade. A arte pode engendrar novos olhares, novas realidades, inverter os pontos de vistas, criando surpresa, perturbando a paz do sepulcro dos ditamos da cientificidade do direito. (OST, 2005, p.15). Enquanto o direito se rege pelo seu objeto, a lei, abstrata e genérica, a arte se relaciona com o concreto e particular. A função da arte é por em desordem estas convenções, suspender nossas certezas, liberar os possíveis – desobstruir o espaço ou liberar o tempo das utopias criadoras. A abordagem do Direito e Arte, pode se apresentar sob dois formatos, um construído teoricamente por juristas que entendem que a arte e direito, são forjados e constituídos pela e como linguagem. Estamos diante de movimentos como Direito e Literatura, Direito e Cinema, Direito e Iconografia; nos quais todos estabelecem a mediação entre estas formas de expressão artística, a partir do conceito de obra de arte e sua relação com o Direito e conhecimento jurídico. Por se tratar de linguagem, a discussão versa sobre significado e significações, e o reflexo seja na arte ou no direito da produção de sentidos e de discursos. Sob três óticas é possível construir esta articulação: Direito na Arte (como o direito é representado nas obras de arte); Direito da Arte (responsável por estabelecer as normas sobre direito autoral entre outros temas) e Direito como Arte (onde o Direito é interpretado como uma narrativa). Outra forma de abordar a relação entre Direito e Arte, é buscar a compreensão de como o fazer artístico/experiência artística pode trazer sensações, sentidos, sentimentos e outras percepções sobre o Direito, de forma a liberar criativamente pensamentos, mas também ajudar a constituir as subjetividades das pessoas envolvidas com o Direito, neste caso, os direitos humanos. Nesta seara, muito se produziu a partir do pensamento de WARAT, e por isso ele é ponto de partida para avançar sobre a própria discussão sobre a epistemologia da arte e de como pode refletir no Direito, e numa forma de prática em Direitos Humanos, mais humana, no sentido de se pensar na totalidade do homem, para além da razão. Nos próximos tópicos abordaremos estas duas correntes de forma a explorar as potencialidades para a (re) construção dos Direitos Humanos. 60 Leandro Franklin Gorsdorf 4.1. Direito e Obra de arte: linguagem e imaginário No texto de PESSOA, pode-se iniciar a reflexão: Toda arte é uma forma de literatura, porque toda arte é dizer qualquer coisa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que se procurar em toda arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama. (PESSOA apud FRANCA FILHO, 2011, p.13) Pela arte ser traduzível e/ou expressada em literatura/texto, podemos considerar que toda obra de arte é uma forma de linguagem, a qual é aberta a interpretações. Dessa forma, “arte é texto e, justamente por ser texto, pode dar lugar a uma leitura do discurso pictórico, a uma hermenêutica do texto plástico ou mesmo a uma retórica da imagem artística.” (FRANCA FILHO, 2011, p.15). A obra de arte que se relaciona com o Direito, é constituída por “conjunto de sinais, através dos quais alguém ou algo diz alguma coisa a alguém.” (COUTINHO, 2003, p.59). Por se constituir por códigos, a obra de arte pode expressar uma determinada compreensão do mundo, da vida, inclusive, do Direito e dos direitos humanos. Por diversas vezes, determinadas obras de arte contribuíram para a reflexão dos Direitos Humanos, na maioria dos casos, de violações de direitos humanos, sendo testemunho de um determinado contexto histórico e revelador do exercício de um poder e de um Direito. Apenas para citar um caso: Guernica, painel elaborado por Pablo Picasso, sobre os horrores da 2ª Guerra Mundial. A crítica trazida pela obra de arte neste caso, mais contundente, do que qualquer discurso político ou decisão judicial, se refere a um “magma de significações: um conjunto de significações imaginárias sociais que conferem um sentido específico aos dados da experiência, além de serem literalmente constitutivas das realidades que elas fazem advir ao nomeálas.” (OST, 2005, p.28). A obra de arte nos diz algo ao contexto de tudo aquilo que temos que compreender. Ao contrário, apesar de dizer muito, pode em muitas situações a obra de arte, ser “caracterizada por ser enigma, onde suspende nossas evidências, desfazendo as certezas, por criar um efeitos de deslocamento que permite o descerrar do olhar.” (OST, 2005, p.32) É neste ponto a fortaleza da arte para os direitos humanos, multiplicar infinitamente as verdades, refutando a “verdade”. (APUD OST, 2005, p.35). 61 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME A obra de arte é carregada de significação, de um sentido que adquire forma, sendo expressão da liberdade em ato. Como OST propõe, existe ainda a faceta de contracriação: “um desafio ai mundo herdado, à natureza circundante, à herança cultural, e a aposta de que ainda está por ser dito algo de essencial que irá remodelar toda essa massa para fazer sair dela, enfim um mundo novo.” (STEINER apud OST, 2005, p.32). Na relação da obra de arte com o jurista, a primeira relação a qual podemos identificar é a com formação do imaginário jurídico, o qual “alimenta um infra direito, gerador das mais diversas formas de costumes, hábitos, práticas e discursos que não cessam de agir, de dentro sobre os modelos oficiais do direito instituído.” (OST, 2009, p.20). Este entrecruzamento é possível no “complexo momento da compreensão/interpretação: como objetos culturais, que são, arte e direito reinventam, recriam, reveem e reinterpretam o mundo constantemente e só fazem algum sentido se são interpretados/compreendidos por seus destinatários.” (FRANCO FILHO, 2011, p.83). A contribuição desta corrente de pensamento é estipular a importância do destinatário neste processo hermenêutico, na mesma linha HERRERA afirma que A obra artística é um exemplo de que faz falta duas liberdades para construir um conhecimento adequado da realidade. A razão cientifica somente reconhece uma liberdade: a do grupo de especialistas que manejam os instrumentos cognitivos e materiais necessários para chegar ao resultado da investigação. A arte sempre tem que contar com duas liberdades: a do autor e do leitor, e ambos não podem se separar do contexto geral sobre qual se situa a obra. (HERRERA FLORES, 2000, p.248)(tradução do autor) Obra de arte com seu papel de mediação, sob os auspícios do imaginário entre o substrato da ação histórica e das produções jurídicas, contribui para estabelecer uma nova ordem de valores, teorias sobre as necessidades humanas, resignificando as lutas pelos direitos humanos. A obra de arte para os direitos humanos inclui os destinatários na produção do Direito, convidando-os a partilhar o processo hermenêutico e criador. Abre-se o caminho para formação de novos direitos, a partir da relação passado/presente, instaurando interpretações sobre as práticas instituintes de direitos. Enfim, as práticas políticas dos direitos humanos não podem fugir das tarefas de libertação da linguagem como prática de libertação dos desejos. (WARAT, 1997, p.16). E para esta libertação é preciso pensar o Direito, e os direitos humanos que ultrapasse a fronteira do racional e da racionalidade instrumental e utilitarista. 62 Leandro Franklin Gorsdorf 4.2. Direito e Arte: a experiência artística e a percepção dos Direitos Humanos A imanência dos efeitos da racionalidade jurídica construída sob os auspícios da Modernidade provocou uma cisão entre teoria e prática, entre razão e emoção, retirando dos direitos humanos, a essencialidade dos sujeitos de direito, a sua integralidade como ser humano, marginalizando o corpo e sentimento. A negação dos “aspectos densos, imagéticos, simbólicos, sensíveis, passionais, místicos, da experiência vivida foram deixados de lado em detrimento dos aspectos intelectuais, racionais e científicos.” (GAMA, 2009). Infere-se que a existência humana é complexa, polissêmica e plural, numa “constante participação mística, sensível, estética, uma correspondência sem fim, na qual o exterior e o interior, o visível e o invisível, o material e o imaterial se manifestam e se relacionam na vida humana.” (WARAT apud GAMA, 2009). A subjetividade desaparece com a ciência moderna, sendo entendida “como um roupão que se usa apenas em casa, o qual pode, e deve, ser retirado assim que se vestem os trajes solenes e públicos da ciência.” (COSTA, 2012). A arte é uma alternativa a esta racionalidade, porque revela amor, sofrimento, inquietude, desejos, ilusões, afirmando integralmente a vida, porque “o homem não é sempre, nem necessariamente, racional nesse sentido, mas que busca também satisfações simbólicas porque adere a ‘significações imaginárias instituintes” (OST, 2005, p.45). Por isso, “as práticas políticas de direitos humanos precisam inaugurar lutas, na ordem do simbólico, transgredindo os efeitos da produção institucional de um homem negado pelas significações que pretendem ser a racionalidade geral desta época.’ (WARAT, 1997, p.47). Reafirmando esta mudança de atitude diante dos direitos humanos, WARAT, reforça que estes precisam “gerar práticas e discursos de preservação do amor, discursos que precisem falar de instâncias libertatórias, que permitam ao homem reencontrar seus vínculos perdidos com a vida.” (WARAT, 1997, p.11). A proposta de novas práticas em direitos humanos vem alicerçada na ideia que os juristas, operadores do direito, sujeitos de direitos devem estar aptos para se permitir a experimentar, experienciar e vivenciar a arte. 63 DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME Retomar na experiência artística, a realidade sensorial, o corpo e de como esse corpo se relaciona com os outros corpos de indivíduos com necessidades reais. (BITTAR, 2008, p.64). A proposta não é se tornar artista, nem realizar obras de arte, mas permitir se abrir para a transformação de sentidos e de se conhecer. empreendido por meio da ação cultural, que com a sua fonte, seu campo e seus instrumentos na produção simbólica de um grupo e as formas imaginárias que a constituem, transforma o estado das coisas, questiona o que existe e o coloca em movimento na direção do não conhecido. (COELHO, 1989, p.33). A criação e a investigação em arte pode facilitar aos indivíduos conhecer os direitos humanos, por meio de sua percepção, que vem a ser o significado que atribuímos a alguma informação, quando esta é recebida através dos sentidos, isto é, na integralidade da sua existência. (WOLFE apud PEREIRA, 2011, p.91). Dessa forma nossos sentimentos se tornam tão concretos, que se torna difícil de encontrar uma linguagem verbal que os traduza. Repensar o direito lhe adjudicando um novo território de sentido, onde se permite o múltiplo e interdita o unívoco, por estar intimamente ligado a uma concepção de direitos humanos que inculcada numa sociedade incerta, heterogênea e conflitiva. A ação deve garantir a autonomia e a criatividade no processo, criando condições para a descoberta de novas práticas e direitos. Nesta seara, o que importa não é somente o produto cultural ou artístico, isto é, a obra de arte, mas os componentes do processo cultural artístico, os elementos do pensamento e do corpo que se entregam a uma prática cultural artística. (COELHO, 1989,56). Considerações Finais Transmudar a nossa prática em direitos humanos na potencialidade da capacidade expressiva, informativa e lúdica que precisam ter as leituras do mundo e de nós mesmos. (WARAT, 1997, p.54). Deve ser operada a “experimentação da arte em nossos corpos, investigar os nossos sentidos, sensações, e perceber que essa experimentação poderia produzir repercussões no campo da compreensão da relação entre Direito e Arte.” (GAMA, 2009). Amplia-se, contudo “espaços de compartilhamento, de trocas, espaços de alteridade, zonas onde circulam afetos.” (GAMA, 2009). Ao entrelaçar Arte e direitos humanos privilegia o humano que habita em cada um, o sensível, o imagético, o mágico, pois ocorre “o deslocamento para uma racionalidade mais ampla, flexível, inventiva, que exige uma audácia de pensamento e, sobretudo que possui o sentimento que é precário, aleatória, submissa ao instante.” (GAMA, 2009). Esta operação deve ser apenas acionada por algo ou alguém de fora, visando garantir a autonomia e a criatividade no processo para a descoberta de novas práticas e direitos. A busca é para que os indivíduos recuperem a subjetividade perdida, “que se apossem de si mesmas e criem condições para a totalização, de um novo tipo de vida derivado do enfrentamento aberto às tensões e conflitos surgidos na prática social concreta”. (COELHO, 1989, p.42). O processo da experimentação artística para os direitos humanos, não deve escolher um caminho seguro, pois o seguro segura e tolhe. Deve ser 64 Leandro Franklin Gorsdorf Qualquer que seja a aposta, pela obra de arte ou pela experimentação artística, para refutar a domesticação dos direitos humanos pela ciência jurídica moderna e sua verdade unívoca, avançará pelo terreno da teoria crítica que almeja novas possibilidades para se pensar o Direito, desde que voltado aqueles que tem suas necessidades negadas cotidianamente. Os direitos humanos entremeados pela arte, prestam-se “para aumentar nossa potência e nossa capacidade de atuar no mundo”. (HERRERA, 2009, p.81). A arte rompe com os ditames do Direito reificado ao apelar para os elementos do mundo da paixão, da valoração, da imaginação, devolvendo aos direitos humanos, a humanidade que havia perdido. O novo conhecimento em direitos humanos, constituído pela Arte não é um novo produto, é um novo processo. Referências BITTAR, Eduardo C.B..Razão e afeto, justiça e direitos humanos: dois paralelos cruzados para a mudança paradigmática. 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Educação: entre treinamento e formação A polêmica em torno da educação é de fundamental importância para a constituição de um arsenal de conceitos para basearem o desenvolvimento das concepções em torno de uma cultura democrática, aberta, pluralista e voltada para os direitos humanos. O debate sobre o próprio conceito de educação evoca, portanto, a necessidade de uma devida atenção ao problema da racionalidade, tendo em vista que é sobre ela que se estruturam as práticas educativas visando à socialização. Este debate sobre a razão não se faz sem um recurso direto ao tema da razão herdada da modernidade3, o que implica na avaliação, através do pensamento da Escola de Frankfurt, na necessidade de se pensar que parâmetros e práticas definem o encaminhamento de uma ponderada proposta de ensino focado em práticas de educação para os direitos humanos. Desde logo, deve ser desmistificada aquela ideia tradicional de que tudo o que tem a ver com educação e racionalização tem a ver com progresso, desenvolvimento e melhoria. O mito de que educar é formar deve ser desfeito. A educação como Ausbildung (treinamento) deve 1 Este artigo foi produzido para atender a convite da Professora Dra. Rosa Maria Godoy Silveira, e publicado no livro intitulado “Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos”, organizado por Rosa Maria Godoy Silveira, Adelaide Alves Dias, Lúcia de Fátima Guerra Ferreira, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa, Maria de Nazaré Tavares Zenaide (SEDH, UFPB, MEC) publicado pela Editora da UFPB, João Pessoa, ps. 313-334, 2007. É por entender que a educação em e para os direitos humanos deve ser debatida, aprofundada e refletida é que o texto é compartilhado em escala ampliada na web, licenciado pelo CreativeCommons (Este trabalho está licenciado sob a Licença Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported da CreativeCommons. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou envie uma carta para CreativeCommons, 444 Castro Street, Suite 900, Mountain View, California, 94041, USA.)e através da presente publicação pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – PR-Curitiba, a pedido do Professor Doutor José Antônio Peres Gediel, Diretor do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania. 2 Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (DFD - USP). Foi Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (www.andhep. org.br) no período 2008-2010. É Professor do UniFIEO e Pesquisador N-2 do CNPq. 3 Esta crítica do legado moderno do Iluminismo é compartilhada pelos principais autores que inspiram as teorias educacionais contemporâneas, entre os quais se encontra Michel Foucault. Aliás, sobre esta proximidade entre Escola Crítica e Foucault, leia-se: “A questão da emergência e do desenvolvimento das formas de racionalidade na cultura ocidental e seus efeitos constituem um dos temas cardeais tanto nas pesquisas de Weber, quanto nas dos frankfurtianos e nas de Foucault. Quando, em uma das teses mais polêmicas de Vigiar e Punir, assevera que as mesmas Luzes que descobriram as liberdades inventaram as disciplinas, situa-se no mesmo campo de crítica e reprovação dos autores da primeira geração da Escola de Frankfurt, afinal eles “(...) começaram a expor o que chamaram de ‘a dialética do Iluminismo’ – o lado sombrio do Iluminismo que fomenta sua própria destruição” (BERNSTEIN, 1993, p.35-36). Tanto Weber como Adorno e Horkheimer são, ao mesmo tempo, herdeiros do Iluminismo e seus críticos.” (Margareth Rago; Luiz B. Lacerda Orlandi; Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 73-74). 67 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico ser diferenciada da educação como Bildung (formação). Desta forma, o que se percebe é que educar pode significar também a preparação que direciona o desenvolvimento destas ou daquelas qualidades, habilidades e competências, podendo atrofiar dados importantes da personalidade humana, significando apenas treinamento. Se todo projeto educacional induz certos valores, e não há educação isenta, desvios podem ocorrer, por exemplo, aqueles que induzam ao fortalecimento de uma ideia de coletivo que sufoca a autonomia individual, ou ainda, aqueles que priorizam a formação técnico-operacional e reificadora da consciência, quando se nega, ao mesmo tempo, a formação ampla, crítica e humanística. Se a educação pode ser responsável por forjar consciências e moldálas conforme conveniências políticas, também a educação passa a ser responsável politicamente pelos resultados que se tem na articulação da vida social. Aqui se torna, ainda uma vez, de fundamental importância distinguir educação como formação e educação como treinamento. Por isso, pela leitura de “Educação após Auschwitz” de Theodor W. Adorno, se percebe que Himmler não somente não era um indivíduo deseducado, mas também que a educação pode ser opressiva e forjadora da consciência opressora, bastando que seja vista como treinamento4. Daí, o problema herdado pela filosofia da educação de pensar como lidar com estes problemas, já que se tornou complexo pensar filosoficamente após Auschwitz ignorando Auschwitz, e ignorando a responsabilidade histórica do educador. Uma cultura para a democracia é antes de tudo uma cultura preparada para o não-retorno do totalitarismo. Neste sentido, o esforço de compreensão de como a razão pôde conduzir aos eventos que marcaram Aushwitz é de fundamental importância, e o segundo mito a se desfazer é exatamente aquele que prega que razão é sinônimo de cultura, de progresso, de evolução. No entanto, um exame mais detido do tema faz perceber que a racionalidade está profundamente impregnada pelo gérmen de sua própria contradição, de sua própria destruição. Quanto mais especialista, mais ignorante! Quanto mais racional, menos sentimental! Formação e de-formação podem estar andando lado a lado! Estas forças contraditórias são capazes de produzir horrores históricos, morais, políticos, ideológicos, o que motiva por si só que se repense que sentido possuem as práticas científicas, as pedagogias 4 “Por um lado, eles representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização” (Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 127). E também este outro trecho: “A educação contra a barbárie”: “Por outro lado, que existam elementos de barbárie, momentos repressivos, e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que – e isto é Freud puro – justamente esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura” (Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 157). 68 Eduardo C. B. Bittar educacionais e o que engendram a partir de si mesmas5. Mas, se a intenção for a de pesquisar a mais apropriada concepção de educação para os direitos humanos, deve-se desde logo dizer que educar só tem sentido enquanto preparação para o desafiar. Uma educação que não seja desafiadora, que não se proponha a formar iniciativas, que não prepare para a mobilização, que não instrumente a mudança, que não seja emancipatória, é mera fábrica de repetição das formas de ação já conhecidas. Educação é, por essência, incitação à formulação de experiência, em prol da diferenciação, da recriação, do colorido da diversidade criativa. A partir da educação deve-se ser capaz de ousar. Em “Educação – para quê?”, Adorno se recorda de Goethe para grifar este aspecto: “Lembro apenas de que há uma frase de Goethe, referindo-se a um artista de quem era amigo, em que diz que – ele se educou para a originalidade´. Creio que o mesmo vale para o problema do indivíduo”6. 2. Educação, autonomia e emancipação: a formação da cultura democrática Vale a pena que, preliminarmente, o conceito de educação seja apresentado, dentro do pensamento adorniano, em “Educação após Auschwitz”, nas seguintes palavras: “A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica”7. É certo que, a partir daí, o que se percebe é que a educação é um processo que se afirma na microscopia de ações que valorizam dinâmicas muito singulares de afirmação de valores e desinculcação de desvalores. Somente assim se é capaz de operar verdadeiras revoluções. Um projeto de direitos humanos deve, acima de tudo, ser capaz de sensibilizar e humanizar, por sua própria metodologia, muito mais que pelo conteúdo daquilo que se aborda através das disciplinas que possam formar o caleidoscópio de referenciais de estudo e que organizam a abordagem de temas os mais variados que convergem para a finalidade última do estudo: o ser humano. Sensibilizar e humanizar importam em desconfirmar a presença da opressão permanentemente transmitida pela própria cultura, esta mesma que constrói um indivíduo consumido pela consciência reificada (verdinglichtesBewustsein). Por isso, Paulo Freire afirma: “Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir 5 Esta leitura da educação vem inspirada do crédito dado pela Escola de Frankfurt à teoria freudiana, segundo a qual Eros (impulso de vida) e Tanatos (impulso de morte) caminham lado a lado na história. Leia-se: “Entre as intuições de Freud que realmente também alcançam o domínio da cultura e da sociologia, uma das mais profundas, a meu ver, é a de que a civilização engendra por si mesma o anticivilizatório e o reforça progressivamente. As suas obras O mal-estar na civilização e Psicologia de grupo e a análise do ego mereceriam a maior difusão, precisamente em relação a Auschwitz. Se a barbárie está no próprio princípio da civilização, então a luta contra esta tem algo de desesperador” (Adorno, Palavras e Sinais, 1995, p. 105). 6 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 153. 7 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 121. 69 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico desta dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inclusão, os inscrevem num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada”8. O modelo de educação que se tem, e as vocações que é capaz de despertar estão intrinsecamente associados aos modos pelos quais se pratica poder em sociedade. Ademais, a crise da educação, como reflexão de uma crise política maior, é capaz de ser sentida como um desarranjo social, cujas demonstrações práticas se dão efetivamente através das marcas da própria violência9. Por isso, uma educação voltada para a disseminação de uma cultura de direitos humanos tem de ser capaz, acima de tudo, de propugnar a construção de uma sociedade preparada para o exercício da autonomia, condição fundamental para o exercício da cidadania. Em “Educação – para quê?”, Adorno traduz esta ideia de que a tarefa da educação para a democracia é a de conceder capacidade de expansão da autonomia individual. Educação e emancipação estão conceitual e umbilicalmente comprometidas: “A seguir, e assumido o risco, gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isso seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado”10. A educação que prepara para a emancipação deve ser sobretudo uma educação que não simplesmente formula, ao nível abstrato, problemas, mas 8 Freire, Pedagogia do oprimido, 1987, p. 30. 9 “Tanto a crise da educação, quanto o crescimento da violência no país – e esta á a hipótese deste texto – têm uma relação específica, ambas as crises retroalimentam-se mutuamente e tornando suas respectivas soluções mais problemáticas” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 63). 10 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 142. 70 Eduardo C. B. Bittar aquela que conscientiza do passado histórico, tornando-o presente, para a análise da responsabilidade individual ante os destinos coletivos futuros. Por isso, a necessidade de que a educação para os direitos humanos, se emancipatória, vise, acima de tudo, a produção do enraizamento, porque se trata de um modelo compromissório. Com Paulo Freire: “Parecia-nos, deste modo, que, das mais enfáticas preocupações de uma educação para o desenvolvimento e para a democracia, entre nós, haveria de ser a que oferecesse ao educando instrumentos com que resistisse aos poderes do “desenraizamento”, de que a civilização industrial a que nos filiamos está amplamente armada. Mesmo que armada igualmente esteja ela de meios com os quais vem crescentemente ampliando as condições de existência do homem”11. A subjetividade fragilizada da sociedade pós-moderna, a subjetividade que se tem, está profundamente ameaçada em sua capacidade de emergir do anonimato, da inconsciência e da reificação de sua condição pelo consumo, e se acovarda crescentemente ante à própria autonomia. Muito longe da autonomia e do esclarecimento, como abandono da menoridade, na leitura de Kant, a subjetividade que se tem se vê acossada por um forte influxo de heteronomias estrangeiras a si e que determinam como a subjetividade deve ser desde fora. Está-se em uma era da heteronomia e não da autonomia. Ora, a perda da razão emancipatória, ideada pelo Iluminismo, significa um vácuo na construção de uma parte do ideário moderno que se perdeu, porque cogitado dentro da reflexão kantiana e anestesiado pelas formas e táticas de atuação do poder. Uma sociedade mecanizada e amplamente colonizada, na esfera do mundo da vida, na leitura de Habermas, pela lógica da razão instrumental é exatamente o que consente que tudo se desvirtue em ser simplesmente produto; o ser humano é produto, a educação é produto, o raciocínio é produto12t. Ora, a razão instrumental deve existir e persistir, mas manterse, como racionalidade do cálculo e da decisão tendo em vista fins pragmáticos, restrita à dimensão do agir estratégico, especialmente o econômico. Por isso, a redefinição do cenário de valores que se tem deve vir instrumentado por uma forte concepção de resgate da identidade da vida comum pelo simbólico na esfera pública, pela limitação da colonização sobre ela produzida pela razão instrumental. Daí o papel da emancipação, da construção da autonomia, o que só é possível de ser operada pela educação. 11 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p. 97. 12 “As patologias da modernidade, segundo Habermas, resultam da não-percepção dessas esferas distintas de racionalidade ou de ingerências indevidas em domínios alheios. Não se trata de uma simples contraposição de racionalidades, muito menos de uma exclusão recíproca. A racionalidade instrumental deve ficar restrita ao âmbito da integração sistémica. Já a racionalidade comunicativa, que se encontra encarnada nos processos de reprodução simbólica do mundo da vida, deve prevalecer no âmbito da integração social.” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 16). 71 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico Contra este cenário de apatia, deve-se recobrar o sentido das práticas educacionais, especialmente quando o tema é o da preparação para uma cultura centrada no convívio plural e na aceitação da diversidade, no respeito à dignidade da pessoa humana e na preocupação com a justiça social, e quando se quer acentuar a luta pela conquista de direitos humanos, mergulhados que estão na maré da indiferença estatal e da ineficácia da legislação. A busca de autonomia, necessária para a cultura democrática, demanda também um forte esforço de recuperação da subjetividade. Historicamente, foi o caso da sociedade alemã pós-holocausto, que demandava também uma forte reflexão por parte da filosofia da educação. Adorno, em “A educação contra a barbárie” afirma que: “Eu começaria dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade”13. No contexto presente e na realidade brasileira, a construção da subjetividade crítica depende sobretudo de um fortalecimento da autonomia do indivíduo, plenamente tragado para dentro das exigências da sociedade de controle, da sociedade pós-moderna. No lugar de promover a adaptação, a reação somente pode vir das mentes capazes de veicularem a resistência14. Por isso, se deve repetir o que se lê em “Educação – para quê?”: “Eu diria que hoje o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da resistência”15. Aqui está o gérmen da mudança, somente possível se fundada numa perspectiva semelhante à incentivada por Michel Foucault, em seus últimos escritos sobre ética, de criação de uma ética da resistência como forma de enfrentamento da microfísica do poder. 3. Educação, conscientização e humanização “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”16. Esta frase abre a reflexão do célebre escrito de Adorno intitulado “Educação após Auschwitz”. O que é Auschwitz para nós hoje? Será que a barbárie desapareceu no ventilador da história, ou a poeira foi empurrada para baixo do tapete? Ainda aqui, e mais uma vez, a consciência da história (presente e passada) deve ser trabalhada com afinco nos meios acadêmicos, como modo de fomentar a criação de 13 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 156. 14 Esta reflexão aparece em “Educação – para quê?”, onde se lê: “A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação.” (Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 144). 15 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 154. 16 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 119. 72 Eduardo C. B. Bittar um enraizamento entre conceitos abstratos, aprendidos em disciplinas isoladas, e tempo histórico-aplicativo. E, quando se trata de enfrentar a necessidade de formação de uma juventude, que carece observar na história a realidade que a cerca, como única forma de reação, deve-se também considerar o quanto a memória não possui um papel pedagógico fundamental, porque formativo para o direcionamento futuro. Paulo Freire, em Educação como prática da liberdade, valoriza esta ideia: “É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é”17. A descolorida apatia política, a invisibilidade dos problemas sociais, a indiferença social, a insatisfação sublimada no consumo e a inércia mobilizadora precisam ser superadas através de um movimento pedagógico que aja na contramão deste processo. Por isso, e por outros motivos mais, Auschwitz não pode ser esquecida18. Não se trata de um problema do povo alemão, se trata de um problema da humanidade, especialmente de uma humanidade que está mergulhada na barbárie do tempo presente, aquela apresentada por Zygmunt Bauman: “E o grau de polarização (e, portanto, também da privação relativa) quebrou, nessas três décadas, todos os recordes registrados e lembrados. A quinta parte socialmente mais alta da população mundial era, em 1960, trinta vezes mais rica do que o quinto mais baixo; em 1991, já era sessenta e uma vezes mais rica. Nada aponta para a probabilidade, no futuro previsível, de que essa ampliação da diferença seja reduzida ou detida, quanto mais revertida. O quinto mais alto do mundo desfrutava, em 1991, de 84,7% do produto mundial bruto, 84,2% do comércio global e 85% do investimento interno, contra respectivamente 1,4%, 0,9% e 0,9% que era o quinhão do quinto mais baixo. O quinto mais elevado consumia 70% da energia mundial, 75% dos metais e 85% da madeira. Por outro lado, o débito dos países economicamente fracos do “terceiro mundo” estava, em 1970, mais ou menos estável em torno de 200 bilhões de dólares. Desde então, ele cresceu dez vezes e está hoje, rapidamente se aproximando da atordoante cifra de 2.000 bilhões de dólares (ver Programa para o Desenvolvimento, das Nações Unidas, edição de 1994)”19. 17 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p. 47. 18 “A exigência de que Auschwitz não se repita é primordial em educação. Ela precede tanto a qualquer outra, que acredito não deve nem precise justificá-la. Não consigo entender por que se tem tratado tão pouco disso até hoje. Justificá-la teria algo de monstruoso ante a monstruosidade do que ocorreu” (Adorno, Palavras e Sinais, 1995, p. 104). 19 Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 76. 73 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico Os educadores devem se perguntar, não importa com qual disciplina estejam trabalhando, o que é Auschwitz para um jovem hoje20? Será que um jovem de hoje conhece o que foi a realidade dos dias de Auschwitz? Por isso, Auschwitz não pode ser esquecida, e junto dela: Treblinka, Ditadura Militar, Impeachment do Collor, Ruanda, 11 de setembro, Kosovo, Invasão do Iraque etc. A consciência histórica é aquela que aponta que o passado retorna, e que sem consciência do passado se torna impossível agir no presente com vistas à mudança no futuro. A racionalidade técnica não colabora para a melhoria das condições de análise de nosso tempo. O conhecimento instrutivo e técnico, preparatório para exames simplistas e operatórios (Concursos públicos, Provas semestrais mono-disciplinares...), é alienante, se desacompanhado de uma ampliação crescente da capacidade de leitura da realidade histórico-social. A tradição inscreveu nas práticas nacionais de ensino, do fundamental ao superior, inclusive e principalmente o ensino jurídico, formas de conhecimento que estão completamente descoladas da dinâmica da vida social21. O ensino fundado em raciocínios técnicooperativos não consente a formação de habilidades libertadoras, mas, muito pelo contrário, fornece instrumentos para operar dentro do contexto de uma sociedade exacerbadamente competitiva, consumista, individualista e capitalista selvagem. Quem vive sob este modelo de educação não “recebe educação”, verdadeiramente, “padece educação”. A massificação que castra, que anula, que empobrece, que iguala o desigual cultural e criativamente falando, em verdade, comete o mais terrível dos erros: “E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticando e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto. Coisifica-se”22. Em poucas palavras, ela é a linguagem da própria dominação, e não condição para sua libertação23. No caso do ensino superior, em especial do ensino jurídico, um bacharel treinado em Direito, altamente especializado em direito processual civil, geralmente, é insuficientemente preparado para a análise de quadros de conjuntura social, política e econômica, ou mesmo para pensar a responsabilidade do exercício de sua função dentro do sistema. Nada impede que um bom operador do direito hoje, formado em uma boa e bem 20 “O exercício da cidadania democrática torna-se dessa forma problemático, pois onde o exercício da liberdade, é feito sem o concurso da razão, acaba sendo feito através da violência” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 70). 21 “A influência positivista entronizou a técnica como o principal objetivo do processo educacional quaisquer vestígios de análise sobre a natureza moral da educação” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 66). 22 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, ps. 51 e 52. 23 “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma” (Horkheimer/Adorno, Dialética do esclarecimento, 1985, p. 114). 74 Eduardo C. B. Bittar conceituada IES brasileira, seja autor de atitudes serenamente guiadas pelos mesmos princípios que levaram Rudolf Hess, Hermann Goering, Rudolf Hoess, Joseph Goebbels, Wilhelm Keitel, Himmler e Eichmann a cometerem as atrocidades que cometeram à frente da máquina nazista. A visão de gabinete, a compreensão de mundo autocentrada, a ideia de responsabilidade restrita à dinâmica da responsabilidade do código de ética da categoria, a noção de mundo fixada pela orientação da ordem legal, a ação no cumprimento do ‘estrito’ dever legal... são rumos e nortes do agir do profissional bacharelado pelas escolas de direito que conhecemos. A evitação da barbárie depende claramente do modelo de educação que se possa habilitar através de projetos conscientes de desenvolvimento de habilidades e competências, aliadas a sensibilidades históricas, sociais e políticas. Por isso, as práticas educacionais para devem preparar para a autonomia, que, na leitura de Adorno, seria o único elemento que poderia se antepor à Auschwitz24. Autonomia é, fundamentalmente, em seu traçado interior, liberdade. Significa a posse de um estado de independência com relação a tudo o que define a personalidade heteronomamente. Isto importa na capacidade de analisar e distinguir, para o que é necessária a crítica, pois somente ela divisa o errado no aparentemente certo, o injusto no aparentemente justo. 4. Práticas pedagógicas e autonomia Parece ser vital, para o processo pedagógico, neste contexto de amorfismo, de apatia diante do real, de perda da consciência de ego sobre alter, de crescimento do individualismo materialista, de indiferença perante tudo e todos, que o colorido do real seja retomado. Por isso, a educação desafiada deve, sobretudo, sensibilizar, agindo de modo a ser mais que instrutiva (somatória de informações acumuladas), enfatizandose o seu aspecto formativo (geradora da autonomia do pensar). O que quer dizer isto, senão que pretende tocar o espírito humano, quanto às suas aflições, ambiguidades, torpezas, vilezas, virtudes, capacidades, no jogo da condição humana? E, para isto, o recurso à história, aos fatos, a contextos, a casos, a julgamentos, a episódios morais, a conflitos parecem favorecer a recuperação da memória e da consciência. O abandono de certas práticas pedagógicas corriqueiras é fundamental como método de recuperação do espaço perdido pela educação para a dinâmica sedutora da sociedade de consumo. Mas, o que é que se encontra 24 “A única força verdadeira contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, se me for permitido empregar a expressão Kantiana; a força para a reflexão, para a autodeterminação, para o não deixar-se levar”(Adorno, Palavras e Sinais, 1995, p. 110). 75 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico na educação, por parte dos professores, senão: a pressuposição de que o aluno está consciente da importância da disciplina em sua formação (o aluno precisa ser convencido); a erudição vazia do discurso (da qual o aluno se sente simplesmente alijado); o distanciamento da realidade entre ser e dever-ser (o aluno não percebe a conexão entre realidade ideada e realidade vivida); o apelo excessivamente teórico (aluno não constrói a ponte com a prática); o amor pela obscuridade da linguagem técnico-especializada (com a qual o aluno não se identifica). Por isso, as técnicas pedagógicas devem se orientar no sentido de uma geral recuperação da capacidade de sentir e de pensar. Isto implica uma prática pedagógica capaz de penetrar pelos sentidos e que, portanto, deve espelhar a capacidade de tocar os sentidos nas dimensões do ver (uso do filme, da imagem, da foto na prática pedagógica), do fazer (tornar o aluno produtor, capaz de reagir na prática pedagógica), do sentir (vivenciar situações em que se imagina o protagonista ou a vítima da história), do falar (interação que aproxima a importância de sua opinião), do ouvir (palavras, músicas, sons, ruídos, efeitos sonoros, que repercutem na ênfase de uma informação, de uma análise, de um momento, de uma situação). Este arcabouço de formas de fomentar a aproximação do sentir e do pensar crítico se dá pelo fato de penetrar pelos poros, gerando angústia, medo, dúvida, revolta, mobilização, reflexão, interação, opiniões exaltadas, espanto, descoberta, curiosidade, anseios, esperanças... Quando isto está em movimento, a sala de aula foi tornada um laboratório de experiências significativas, do ponto de vista pedagógico. O educando precisa, sobretudo, sentir-se tocado em diversas dimensões e de diversas formas, assim como ter despertados os próprios sentidos à percepção do real, o que permite recuperar a possibilidade de aproximação da prática educativa, numa correção de rumos, em direção à reconquista da subjetividade autônoma. Para isto, práticas pedagógicas sincréticas podem colaborar acerbamente para a produção de resultados, humanidades, ou seja, explorando-se poesia, literatura, pintura, cinema, teatro, aproveitando-se o potencial criativo para tornar a sala de aula um laboratório de ideias. Esta experiência ético-estética reabilita o potencial transformador da educação, e, portanto, do ensino jurídico. A técnicas pedagógicas podem aliar: leitura; fichamento; interações grupais; seminários; grupos de estudo; seminários de pesquisa; projetos de responsabilidade social; construção de casos; discussões de pesquisas; interação social; desenvolvimento de inserções comunitárias; leitura de textos; discussões; seminários; filmes; debates plurais; produção do conhecimento orientada; representações; discussões; cases; simulações; teatralizações; pesquisa em websites. 76 Eduardo C. B. Bittar A educação que se quer, bem como, o ensino jurídico de que se carece, deve sensibilizar, tocar, atrair, fomentar, descortinar horizontes, estimular o pensamento. É desta criatividade que se nutre a autonomia. Por isso, os educadores podem encontrar à sua disposição instrumentos para agir na berlinda de suas atuais e desafiadas práticas pedagógicas. Se tudo fala contra a formação da consciência crítica (a televisão, o consumo, a internet, o individualismo, a estética...), a consciência histórica deve reaparecer como centro das preocupações pedagógicas hodiernas. Pois, fundamentalmente, a subjetividade pós-moderna é a de um indivíduo deslocado, sem lugar próprio, e, exatamente por isso, incapaz de independência e autonomia. Uma pedagogia histórica trabalha sobretudo o resgate, e com quais instrumentos, senão com aqueles que se tornaram linguagem corrente da sociedade de informação? Cinema, internet, notícias de jornais, imagens, fotojornalismo internacional, literatura animada, imagens, marketing instrutivo... que apropriadas pelo discurso pedagógico se tornam ferramentas de grande valor para o resgate da ‘consciência situada’, já que o enraizar significa o fincar bases, instituir um solo-base, como modo de se evitar o ser-levado-pela-força-da-maré. Por vezes, a enxurrada conduz o indivíduo a valas profundas, as quais abeiram a própria banalidade do mal. 5. Por uma pedagogia da ação comunicativa A pedagogia da ação comunicativa, para que seja aceita e praticada num modelo de educação para os direitos humanos já é reveladora de seu próprio objetivo: conscientizar e humanizar pelos métodos de ensino. Tratase de opor à tradição da autoridade, a tradição do exercício da liberdade pelo diálogo25. Somente o exercício da liberdade permite que se construa a liberdade, por isso, a liberdade deve ser valorizada como um requisito fundamental para a criação de uma cultura do exercício democrático do convívio. Preparar para o exercício democrático significa, acima de tudo, preparar para o desenvolvimento de habilidades que giram em torno da capacidade de convívio, de socialização, de responsabilização na relação ego-alter. Se as instituições de ensino não estimularem o exercício de uma cultura democrática, ela não nasce espontaneamente, e mesmo tende a acrisolar-se, conforme constatam os estudos de Kohlberg26. 25 “O diálogo – a sociedade dialogal de Habermas – base da sociedade democrática terminou substituído pelo diktät autoritário, em sua forma política e pedagógica” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 65). 26 “Dada la importancia de las actuales experiencias de participación en una comunidad política por qué nos apoyamos en la escuela secundaria para que ésta las provea?, por qué no se las delega a experiencias espontáneas una vez terminada la escuela secundaria? La respuesta es que, a no ser que una persona deje la escuela secundaria en un 4º. estádio, con sus intereses y motivaciones correspondientes, es muy improbable que él o ella lleguen 77 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico A ausência do desenvolvimento de habilidades relacionadas ao político, e o excesso de adestramento nas especialidades, faz da cultura do ensino um ambiente infenso ao desenvolvimento de qualquer tipo de identidade política de grupo27. A identidade política somente pode ser cultivada onde há estímulo à participação, ao diálogo e à formação da consciência sobre questões e problemas comunitários; educar para uma sociedade mais justa significa acima de tudo desafiar para o convívio social, o que implica uma pedagogia crítico-comunicativa28. Para isto, carece de que se vençam múltiplos empecilhos que gravitam no universo da aura do modelo que se aceita comumente como linguagem comum do ensino transmitido para estudantes, a saber: tradições, valores, cultura, práticas ancestrais, concepções e visões de mundo29. A escola é também um ambinete pleno de regulamentações, regras, procedimentos, burocracias e reproduz a escala de exigências de uma sociedade na formação do indivíduo. A ênfase na abordagem formativa, e não meramente adestradora, implica na identificação de um projeto pedagógico cujas distinções façam com que a instituição se distinga por valorizar aspectos específicos do projeto pedagógico a favor de uma cultura dos direitos humanos para a formação de uma sociedade mais justa a partir da transformação da consciência dos indivíduos sobre sua inserção no grupo. Esta leitura se constrói sobre a ideia-base do pensamento habermasiano, e encontra amparo também nos estudos kohlbergianos, de que se deve abandonar o paradigma da consciência solipsista para buscar na pluralidade da interação de sujeitos a construção linguística da verdade30. O agir no más tarde a tener la capacidad y la motivación necesarias como para alcanzar posiciones de participación y responsabilidad pública. Ellos, como nuestros estudiantes evitarán esas situaciones o no las buscarán” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 27). 27 “He traducido los argumentos socráticos para la democracia escolar en términos de experiencias participativas para el desarrollo del 4º. estadio con orientación hacia los roles de ciudadano, así como también para desarollar alguna aproximación a nuestro estadio 5 de los principios de la democracia constitucional. El obstáculo que debemos enfrentar es que el gobierno burocrático y autoritario de la escuela secundaria, actualmente enseña la alienación e ignorancia acerca de la sociedad democratica” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 29). 28 “Nuestra conclusión es que una educación cívica para una participación cívica idealmente debería incluir dos experiencias: una democracia directa en una pequeña escuela de la comunidad fundada en una escuela alternativa, para el desarrollo de los conceptos y las actitudes hacia la comunidad del 4º. estadio; y la experiencia de participación en una comunidad más amplia gobernada por la democracia participativa y reglementada por la burocracia, para transferir dichas actitudes a una actitud participativa en una sociedad más grande” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 31). 29 “Consequentemente,entendemos por “pedagogia da ação comunicativa” aquela que, da parte de seus proponentes ou participantes, vem marcada por uma atitude fundamental voltada ao entendimento. Com isso a clarificação conceituai da categoria de ação comunicativa adquire uma importância significativa para a reflexividade crítica da prática educativa, mormente para os professores” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 85). 30 Cf. Bolzan, Habermas: razão e racionalização, 2005, p. 81. Em Kohlberg, a cultura do diálogo parece ser fundamental: “La mejor forma de concebir a la educación moral es como un proceso natural de diálogo entre pares, más que como un proceso de instrucción didáctica o de exposición. La mejor forma de concebir al docente y el currículo es como facilitadores de este diálogo a través de la presentación de desafiantes dilemas o situaciones de exploración de las razones de los estudiantes y de la atención a estas razones y la presentación de un razonamiento 78 Eduardo C. B. Bittar mundo, segundo esta consciência do educando formado para pensar em agir sem o outro, apesar do outro, sobre o outro, deve ser substituída por uma consciência de que agir no mundo é sobretudo inter-agir com o outro, a partir da consideração do outro31. A condição dialogal da educação é um pressuposto para que o outro seja visto já em sala de aula, já nas práticas educativas, já na inserção do estudo aplicado, já nas formas pelas quais as dinâmicas pedagógicas privilegiem a interação e o diálogo voltados para o entendimento32. A razão comunicativa é pressuposto para uma lógica diversa daquela que se cultiva e se pratica no conjunto das atividades formativas e preparatórias do indivíduo, seja para a vida, seja para o mercado de trabalho, seja para o exercício de uma profissão, seja para a compreensão do mundo. Como a produção do consenso não é simples, e não é muito menos automática na dialética das relações, exige-se, para sua prática, o reconhecimento da correção, da autenticidade e da veracidade dos discursos em interação33. Por isso, só pode ocorrer se incentivada para que indivíduos sejam habilitados ao desenvolvimento de habilidades dialogais respeitosas e competências que se afinizem com esta dinâmica da interação humana, que cobra elevado compromisso intelectual e moral. Recuperar a consciência do outro, numa racionalidade alterizada, e numa alteridade racionalizada, em tempos em que o individualismo se tornou uma marca histórica, é tarefa suficientemente deafiadora para as práticas pedagógicas vigentes. A pedagogia da ação comunicativa reclama uma aproximação da dinâmica da vida para dentro das salas de aula, a superação da distância entre docente e aluno, o desenvolvimento docente de uma identidade socrática, ou seja, estimuladora do diálogo, a criação de procedimentos e formas de interação que superem a insinceridade do protocolo, a busca da interação criativa com relação ao modelo da intocabilidade da autoridade-docente, entre outros fatores. A cultura do antidiálogo deve ser substituída pela do diálogo: “O antidiálogo que implica numa relação vertical de A sobre B, é o oposto a tudo isso. É desamoroso. É acrítico e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é humilde. É desesperançoso. Arrogante. Autossuficiente. No antidiálogo quebra-se aquela relação de “simpatia” entre seus polos, que caracteriza o diálogo. de un estadio superior” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 56). 31 Cf. Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 26. 32 “Torna-se, entretanto, necessário distinguir entre a revolta (o homem revoltado de Albert Camus) e a violência; a primeira, é a seiva da cultura e a segunda, a sua morte, principalmente porque nega o instrumento básico da comunicação cultural, que é o diálogo. Vê-se, então, como a porta de entrada da violência na cultura e, em conseqüência na educação, foi a negação do diálogo como fonte de conhecimento e entendimento entre os homens” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 68). 33 Cf. Bolzan, Habermas: razão e racionalização,2005, p. 100. 79 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados”34. E o diálogo somente pode ser estimulado se o modo perguntador for desenvolvido como mecanismo de instrumentação da metodologia de ensino, ou seja, o modo socrático de desenvolver problemas morais35. Para o ensino superior voltado para a cultura dos direitos, para o ensino jurídico, esta questão é especialmente importante, tendo em vista que cultiva modos e métodos, práticas pedagógicas e opções metodológicas, que intensificam o modelo solipsista e auto-didata. Mas, como é possível construir uma visão de sociedade baseada no isolamento atômico dos atores do próprio conhecimento? Ora, como é possível uma metodologia de ensino construir valores na base de conceitualizações abstratas que prescindem de trabalhar sobre evidências extraídas do mundo da vida, num verdadeiro desperdício da experiência36? Ainda, como é possível falar em construção da justiça, já que a justiça é um bem alótrio, segundo Aristóteles, que se dá não de si para si, mas de si para o outro, se a consciência da interação é atrofiada no modus pedagogicus do modelo subjetivista37? Está-se acostumado demais a conviver com um modelo subjetivista e que descarta de imediato a presença do outro como incômoda. É neste estranhamento do outro que se curtem os azedumes sociais que acabam por se tornar o empecilho fundamentral para a vida social interativa e produtiva. Trata-se, portanto, de pensar em meios e métodos capazes de valorizarem a condição de aceitação da liberdade como forma irrestrita de contato intersubjetivo38. Onde se acusa esse modelo de ideal, deve-se dizer que ele se baseia fundamentalmente em práticas concretas, de linguagem e baseadas no quotidiano das interações da vida que pressupõem como 34 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p.116. 35 “Pienso que resulta claro que la sicología que se deduce de las prácticas del efecto Blatt es la sicología de Piaget, por su énfasis en que el diálogo entre estudiantes es lo que suscita un conflicto cognitivo y permite superar el egocentrismo del pensamiento a través de la necesidad de argumentos intersubjetivos y a través de la exposición a un estadio próximo superior. Llamo a este neosocrático, no sólo porque los profesores tienen el rol de cuestionador socrático, sino también porque el profesor como Sócrates asume ser un filósofo moral animado por un interés por una forma de bien y de justicia” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 57). “Implícita en la fé de Sócrates por el libre diálogo acerca de la justicia, está su fé en la democracia ateniense. Aún cuando la democracia ateniense condenó a Sócrates a la muerte por enseñar la justicia, Sócrates mantuvo su fé en ella y permitió que se ejecutara para el mantenimiento del contrato social” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 58). 36 Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 44/ 45. 37 Baseio esta minha reflexão na preciosa consideração a seguir, de Boufleuer: “Não fica difícil perceber que uma concepção de educação baseada no paradigma da consciência, centrada no sujeito, não consegue oferecer uma solução adequada para as questões relativas à convivência das pessoas, mormente para as que envolvem noções de dever e de justiça. Só o conceito de uma racionalidade comunicativa, centrada na intersubjetividade, pode dar conta das múltiplas dimensões que fazem parte dos processos educativos” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 33). 38 “A partir da teoria da ação comunicativa a relação professor-aluno aparece sob o horizonte da autoconstituição da humanidade enquanto humanidade solidária e que implica o reconhecimento mútuo de sujeitos. A liberdade solidária dos comunicantes requer a superação de toda e qualquer forma de opressão que negue o homem.” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 86). 80 Eduardo C. B. Bittar consenso de fundo a ideia de mundo da vida39. Que ética se pensa estar desenvolvendo quando a interação é desprivilegiada para dar lugar a conceitos abstratos? Que capacidade de solução de litígios se está desenvolvendo quando se propugna a litigância processual como único mecanismo de encaminhamento de controvérsias? Que tipo de cultura é essa em que a educação privilegia os objetivos pessoais e marginaliza o outro na própria interação escolar? Que tipo de relação entre responsabilidade profissional e responsabilidade social, quando se concebe uma forma de aprendizagem que estimula o aluno ao desenvolvimento de parcas formas de interação e de egocentrismo do sucesso profissional como autor-realizador? A reação carece de ser instrumentada, portanto, pontuando-se alguns fatores fundamentais a serem combatidos dentro da lógica de funcionamento do próprio sistema atual de ensino e dentro destas específicas práticas de cultura. Uma cultura democrática carece de incentivos para se desenvolver, enquanto prática da liberdade assumida no encontro intersbjetivo de alto nível. Uma cultura acadêmica para os direitos humanos implica na formação de uma consciência alargada sobre as questões comunitárias e sociais que cercam o indivíduo em fase de formação40. 6. Propostas conclusivas Qual o método e qual a finalidade da educação e da pesquisa em direitos humanos? Qual seria, senão a humanização? Por isso, se torna extremamente conveniente pensar com e através de Heidegger, quando afirma, em sua ÜberdenHumanismus: Briefan Jean Beaufret: “Que outra coisa significa isto, a não ser que o homem (homo) se torne humano (humanus)? Deste modo então, contudo, a humanistas permanece a preocupação de um tal pensar; pois humanismo é isto: meditar, e cuidar para que o homem seja humano e não des-humano, inumano, isto é situado fora de sua essência”41. Uma cultura democrática é aquela que é capaz de incentivar que indivíduos que estão em processo de formação educacional sejam incentivados a pensarem por si mesmos, o que não se faz sem incentivos 39 “A idealidade, assim definida, constitui uma exigência da vida coletiva e deve ser entendida como a alternativa que se coloca em oposição à desconfiança total e à mentira ininterrupta. É claro que cada um de nós pode resolver enganar ou manipular outros em determinada situação. Mas é impossível que todos ajam continuamente desse modo. Facilmente podemos imaginar as dificuldades que um único indivíduo enfrentaria a partir do momento em que ninguém mais pudesse acreditar nele. E se ninguém mais pudesse acreditar em ninguém, a vida social simplesmente seria inviável.” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 53). 40 “El objetivo de la educación social es desarrollar una persona con capacidad para realizar una sociedad democrática con la habilidad y la motivación como para hacer una sociedad más justa y más comunitaria de lo que es ahora” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 39). 41 Heidegger, Sobre o humanismo: carta a Jean Beaufret, 1973, p. 350. 81 EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino jurídico claros à autonomia, ao desenvolvimento humano e ao esclarecimento. Pensar a si significa também tomar consciência de si, este que parece ser o primeiro passo para se responsabilizar pelo outro, na medida em que ego e alter são inseparáveis na constituição dos processos sociais. A prática da liberdade se exerce com incentivos claros ao desenvolvimento de habilidades e competências capazes de forjar a consciência crítica, participativa, tolerante, o que não se faz sem uma consciência sobre a importância das práticas comunicativas e dialogais. Nas palavras de Häberle: “A educação para o respeito da dignidade humana constitui um destacado objetivo pedagógico do Estado constitucional: dignidade humana, para cada um, bem como para o próximo, no sentido dos ´outros´ (como tolerância, solidariedade)”42. O papel de uma educação pautada por estes critérios é a inclusão e não a exclusão. Ademais, a educação para os direitos humanos depende de compromisso social, sensibilidade humana e desenvolvimento de conhecimentos através das fronteiras da pesquisa. O desenvolvimento e valorização da pesquisa, com vistas ao desenvolvimento da consciência crítica e enraizadora, deve ser capaz de, acima de tudo: aprofundar a consciência sobre a importância dos direitos humanos e de sua universalização; provocar a abertura criativa de horizontes para a auto compreensão; incentivar a reinvenção criativa permanente das próprias técnicas; habilitar à criticidade; desenvolver o reconhecimento histórico dos problemas sociais; incentivar o conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar sobre a condição humana; habilitar a uma compreensão segundo a qual a conquista de direitos depende da luta pelos direitos; valorizar a sensibilidade em torno do que é humano; aprofundar a conscientização sobre questões de justiça social; recuperar a memória e a consciência de si no tempo e no espaço; habilitar para a ação e para a interação conjunta e coordenada de esforços; desenvolver o indivíduo como um todo, como forma de humanização e de sensibilização; capacitar para o diálogo e a interação social construtiva, plural e democrática. Finalizando, é possível alcançar uma síntese propositiva que, de certa forma, pode também funcionar como uma espécie de conjunto de indicadores. Esta síntese deve, necessariamente, externar as seguintes ideias: repensar o condicionamento da razão pela razão frenética, surgida como fruto contextual pós-moderno; propugnar a superação da razão instrumental, tornada objeto da organização curricular e da formação uni-centrada das antigas disciplinas monolíticas; postular a superação da clausura especializada que determina a autopoiese dos 42 Häberle, A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, in Dimensões da dignidade (SARLET, Ingo Wolfgang, org.), Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, 2005, p. 136. 82 Eduardo C. B. Bittar conhecimentos especializados e encerrados sobre si mesmos; incentivar o desenvolvimento de habilidades e competências interativas; estimular o desenvolvimento do agir comunicativo fundador da cidadania, na relação solidária entre escola e sociedade; convocar os educadores e docentes do ensino jurídico a uma rebelião contra o pensamento compartimentado, fragmentário, unilateral; desincentivar o modelo de ensino poucoprovocativo ou negador da intersubjetividade dialogal; propugnar a formação humana integral, como retomada da consciência da prática de uma razão emancipatória; superar o modelo de educação tecnicizante e produtor de subjetividades rasas, na medida em que se define o que se é pelo que o mercado exige que seja tornado o indivíduo. Referências ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3. ed. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ________. Palavras e Sinais. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995. 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Pode-se dizer, em linhas gerais, que os Direitos Humanos seriam direitos inerentes a todos os seres humanos, independente de nacionalidade, sexo, origem, cor, religião, língua ou qualquer outra condição. Não se pode perder ou renunciar a esses direitos, na mesma medida que não podemos deixar de sermos seres humanos. Nem o Estado pode negá-los ou alterá-los, pois eles são hoje cláusulas pétreas, portanto intocáveis, da nossa Constituição. Os Direitos Humanos foram considerados indivisíveis (ONU, 1993): não se pode negar um direito em detrimento de outro, por considerálo “menos importante” ou “não essencial”. Eles seriam também interdependentes e inter-relacionados: fazem todos parte de um quadro integrado e complementar. Um direito muitas vezes não faz sentido sem a garantia de outros direitos. Finalmente, todos os direitos humanos se relacionam com o fim máximo da dignidade da pessoa humana. Defender os Direitos Humanos é exigir que a dignidade humana de todos seja respeitada incondicionalmente. Por outro lado, os Direitos da Pessoa Humana são tanto princípios quanto normas de aplicação prática. Tais princípios foram construídos ao longo da história, baseando-se na visão de um mundo cada vez mais justo e pacífico, e constituem um conjunto de normas mínimas sobre como os indivíduos e as instituições de todo o planeta devem tratar as pessoas. São exemplos de Direitos Humanos: o direito à vida, dignidade, liberdade (de ir e vir, de expressão, de crença, etc.), igualdade, diferença, privacidade, educação, saúde, moradia, alimentação, a um meio ambiente limpo e saudável, a votar e ser votado, entre outros. 1 Mestre em Educação para a Paz: Direitos Humanos, Cooperação Internacional e Políticas da União Europeia pela Universidade de Roma III. Professor de Direitos Humanos do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. E-mail: [email protected] 85 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Mas até que surgissem normas escritas para garantir a aplicação de regras basilares de convivência entre os seres humanos, passaram-se milênios. Segundo COMPARATO (2011), já no período axial da história, entre 600 e 480 a.C, pensadores de distintas regiões do globo “enunciaram os grandes princípios e se estabeleceram as diretrizes fundamentais de vida, em vigor até hoje”. Entre esses pensadores, figuram Buda, Lao-Tsé, Confúcio, Pitágoras, além de outros. Entre lutas sangrentas e revoluções gloriosas, a odisseia humana produziu conquistas históricas inegáveis, sempre em nome da emancipação do indivíduo, no seu anseio por equidade e justiça. É o caso da Revolução Francesa (1789), que operou inovações radicais nos costumes e na cultura da civilização ocidental, com seu lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, e que deixou como fruto e marco histórico a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Falamos da Revolução Francesa apenas para usar um exemplo marcante, já que uma infinidade de fatos cotidianos e de homens comuns, mas muitas vezes grandiosos, fizeram da presença humana na Terra uma luta constante por patamares civilizatórios mais elevados, dando origem ao que hoje chamamos de Direitos Humanos. Portanto, tratam-se claramente de direitos históricos, ou seja, “nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 2004). De qualquer modo, é principalmente no século XX que os direitos do homem ganham contornos mais nítidos. Como precedentes históricos (PIOVESAN, 2010), temos o surgimento, em 1863, da Cruz Vermelha, preocupada com as vítimas dos conflitos armados e de onde emerge o estabelecimento do Direito Humanitário. Já após a primeira grande guerra mundial, aparece a tentativa de se criar uma organização para manter a paz entre os povos. Era a Liga das Nações (1919), a qual deu origem, mais tarde (1945), a atual Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1919 constitui-se a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a qual promove padrões mínimos de tratamento dos trabalhadores em nível global. A OIT influenciou a criação posterior de outras agências internacionais, especializadas na promoção de temas fundamentais, como a UNESCO (educação), UNICEF (direitos da criança), OMS (saúde), FAO (alimentação), ACNUR (refugiados), etc. A expansão e aceitação dos Direitos Humanos ganha impulso definitivo a partir da Segunda Guerra Mundial. Com mais de 60 milhões de mortos, o conflito é um divisor de águas, tanto em termos históricos, como para o próprio direito, que viu nascer um conjunto de normas de caráter 86 Thiago Assunção internacional, em resposta às atrocidades e horrores do nazismo, e que eram destinadas a evitar que a catástrofe da guerra se repetisse. Era o novo direito internacional dos Direitos Humanos, cujo marco inaugural é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Finalmente a humanidade chegava a um consenso sobre quais seriam, afinal, os direitos considerados essencialmente indispensáveis, em qualquer canto do planeta. A partir da Declaração Universal, surgiram inúmeros tratados internacionais para tutelar os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Normas internacionais que, não raras vezes, servem de referência para a adoção de instrumentos internos de proteção dos direitos da mulher, da infância, das pessoas com deficiência, dos idosos, da população LGBT, entre outros grupos vulneráveis, bem como para proteger os cidadãos contra a discriminação, a tortura, o flagelo da pobreza extrema, a degradação ambiental etc. Neste processo, é inquestionável a atuação de indivíduos e organizações não-governamentais, na estruturação de um verdadeiro movimento global pelos Direitos Humanos. Desde Mahatma Gandhi que lutou através da não-violência pela independência da Índia, a Martin Luther King, em sua cruzada pela igualdade racial, passando por Nelson Mandela, que liberou a África do Sul do apartheid, além de organizações como a Anistia Internacional, que reúne voluntários no mundo todo na luta por esses direitos. Mas, para além de ídolos, sabemos que existem em toda a parte cidadãos e cidadãs anônimos, que lutam com humildade e firmeza, cotidianamente, para a consecução dos objetivos que possibilitem a realização dos Direitos Humanos. Cabe citar, ainda, a criação de sistemas normativos e institucionais de proteção dos Direitos Humanos, contra a sua violação pelo próprio Estado. É o caso do Sistema Global ancorado nas Nações Unidas, bem como os sistemas continentais ou regionais: o Sistema Europeu, Interamericano e Africano. No continente americano, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi estruturado com dois órgãos distintos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual está apta a julgar os Estados quando estes falharem na garantia dos direitos assegurados pelo Pacto de San José da Costa Rica, assinado e ratificado pelo Brasil. No âmbito jurídico brasileiro, os Direitos Humanos contam com uma proteção irrestrita. A Constituição Federal trata de maneira específica (Título II, arts. 5° a 17) dos direitos e garantias fundamentais. 87 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção o conjunto de atividades de capacitação e de difusão de informação, orientadas para criar uma cultura universal na esfera dos direitos humanos, mediante a transmissão de conhecimentos, o ensino de técnicas e a formação de atitudes, com a finalidade de: (a) fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; (b) desenvolver plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade do ser humano; (c) promover a compreensão, a tolerância, a igualdade entre os sexos e a amizade entre todas as nações, os povos indígenas e os grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos; (d) facilitar a participação efetiva de todas as pessoas em uma sociedade livre e democrática, na qual impere o Estado de Direito; (e) fomentar e manter a paz; (f) promover um modelo de desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça social. (UNESCO, 2012, p. 4). Ademais, leis como o Estatuto do Índio (1973); Código de Defesa do Consumidor (1990); Estatuto da Criança e do Adolescente (1990); Estatuto dos Refugiados (1997); Lei que define os Crimes de Tortura (1997); Lei de Crimes Ambientais (1998); Estatuto do Idoso (2003); Lei Maria da Penha (2006); Estatuto da Igualdade Racial (2010) são apenas exemplos da legislação infraconstitucional que busca a proteção dos Direitos Humanos no Brasil. Isso sem contar os diversos tratados internacionais sobre o tema, assinados e ratificados pelo Brasil e que integram o nosso ordenamento jurídico, de acordo com a própria Constituição (art. 5°, §§ 2° e 3°). De qualquer forma, como ressalta Bobbio (2004, p. 9), uma coisa é proclamar direitos, outra é desfrutá-los efetivamente. E, a implementação das políticas públicas para efetivação dos direitos, representam o papel fundamental da atuação do Estado em concretizar ações, programas, projetos e planos que de alguma de alguma maneira sejam de alcance dos cidadãos Como afirmou com propriedade a Secretária de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Maria Tereza Uille Gomes (2011): Políticas Públicas constituem-se em um processo cíclico que se materializa em sucessivas etapas, através de discussão dialética entre os atores que integram o corpo político, em busca de soluções para os problemas sociais, que deem efetividade plena aos Direitos Humanos em busca de melhores condições de vida digna para todos. Conceituando Educação em Direitos Humanos Mas o que seria “Educação em Direitos Humanos?” Educar para os Direitos Humanos significa reunir esforços, conhecimentos, recursos e atividades, por meio de iniciativas de todo gênero e através da cooperação entre os mais diversos atores e instituições do Estado e da sociedade, com o objetivo de disseminar uma cultura de paz, trabalhando para a melhoria da vida em sociedade e em última análise, buscando a garantia de uma vida digna a todo ser humano. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, “a educação em direitos humanos é um processo ao longo da vida que constrói conhecimentos e habilidades, assim como atitudes e comportamentos para promover e apoiar os direitos humanos” (UNESCO, 2012, p. 2). Segundo o conjunto de instrumentos internacionais (declarações e tratados) que se referem à educação em direitos humanos, ela pode ser definida como: 88 A questão central, quando pensamos numa educação voltada para os Direitos Humanos, é que ela possua o objetivo premente de trabalhar para reverter a indiferença que toma conta das mentes e corações, em relação aos graves problemas que enfrenta a humanidade, estimulando cada cidadão a buscar incessantemente soluções e alternativas, dentro do seu possível, para reverter o quadro de miséria, intolerância, violência e poluição que assola a sua comunidade e o planeta como um todo. Por outro lado, quando falamos em se estabelecer uma cultura da paz, nos referimos à formação de uma cultura de respeito aos direitos humanos, “tomando como referência o próprio inacabamento do homem, eterno aprendiz, sujeito de sua própria cultura que se constitui humano pela própria experiência humana.” (GORCZEVSKI, 2008, p. 71). Na História Em plena ditadura militar, os ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica instituíram, por meio do Decreto-Lei n° 869/1969, a disciplina Educação Moral e Cívica nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no país. Este mesmo Decreto instituiu, ainda, no ensino médio a disciplina Organização Social e Política Brasileira (OSPB). A Educação Moral e Cívica, como entendida pelas autoridades militares no comando do país, apoiava-se nas “tradições nacionais”, e tinha como finalidade “a projeção dos valôres [sic] espirituais e éticos da nacionalidade (...); o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições (...); o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade” (BRASIL, 1969). Denota-se, pelo próprio conteúdo que reveste as diretrizes curriculares desta disciplina, um forte caráter conservador e nacionalista. De fato, o ensino da EMC servia ao projeto de poder da ditadura militar, já que 89 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS “buscava-se interferir nas formas de pensar e de agir dos indivíduos, de modo a garantir a legitimidade da ditadura” (NUNES e REZENDE, 2008). A EMC e a OSPB foram extintas pela Lei nº 8.663 de 1993, a qual determina, quanto ao conteúdo dessas matérias, que “seu objetivo formador de cidadania e de conhecimento da realidade brasileira (...) sejam incorporados às demais disciplinas de ciências humanas e sociais” (BRASIL, 1993). Ocorre que desde então, não se criou praticamente nada para o ensino, nas escolas, de noções de direito, cidadania, sustentabilidade e democracia. Nota-se que o brasileiro está crescendo com uma carga elevada de conhecimentos, muitas vezes, estéreis para a sua vida cotidiana e deixando de aprender, de modo claro e estruturado, o seu papel enquanto membro da sociedade: o que é a Constituição Federal, para que serve o Estado, por que pagamos impostos, o que acontece se violamos a lei, ou o que devemos fazer para mudá-la etc. Não se trata, por óbvio, de reanimar algo nos moldes da Educação Moral e Cívica, que ficou para trás em um contexto histórico obtuso e que nada tem em comum com o que ser quer hoje. Mas, com a ascensão do discurso universal da proteção dos Direitos Humanos, começou-se a debater a necessidade da criação de uma alternativa que fosse capaz de instrumentalizar processos educativos que trabalhassem de alguma forma, conteúdos como: a ética nas relações humanas, noções de direitos e deveres do cidadão, a imperatividade da sustentabilidade ambiental, a valorização da diversidade cultural, além da importância do respeito para com a diferença, entre outros valores, princípios e conhecimentos a que chamamos de modo amplo de educação em direitos humanos. Categorias e saberes que, nos parece evidente, se tornaram indispensáveis para a construção de uma sociedade inclusiva, mais justa, solidária e sustentável. Estágio atual Nota-se a existência de um número crescente de iniciativas, seja no âmbito global, nacional e regional, que vão no sentido de inserir a Educação em Direitos Humanos (EDH) em todos os níveis da educação. Os estabelecimentos de ensino, principalmente a escola, são espaços privilegiados de formação humana, por eles passam ou deveriam passar, obrigatoriamente2, cada um dos pequenos cidadãos que irão compor a sociedade em que viveremos amanhã. 2 O ensino fundamental é obrigatório no Brasil, de acordo com a Constituição Federal, art. 205, e a Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), art. 4, inciso I. 90 Thiago Assunção Em relação a essas iniciativas, vamos analisar, ainda que brevemente, os últimos e mais importantes instrumentos adotados em relação ao tema que deram, recentemente, um impulso decisivo para a implantação gradativa da Educação em Direitos Humanos (EDH) no Brasil. No âmbito internacional, a EDH está avançando como nunca. É compreensível que o tema receba cada vez mais atenção por parte da comunidade internacional, já que este tipo de educação trabalha nas raízes que levam à pobreza, aos conflitos, à discriminação, à intolerância, e à degradação ambiental, entre outras mazelas que são os objetos de atuação de um sem número de organizações internacionais. Talvez por este motivo, tenha sido adotado pela Organização das Nações Unidas e pela UNESCO, em 2005, o Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos. A ênfase da primeira fase do Programa Mundial (20052009) foi no sistema educacional (educação básica e ensino médio). A segunda fase (2010-2014) busca se concentrar nos níveis seguintes da educação, como no ensino superior (graduação e pós-graduação), bem como nas instituições que formam “aqueles que possuem grande responsabilidade pelo respeito, proteção e cumprimento dos direitos dos cidadãos – desde servidores públicos e forças de segurança até mulheres e homens do serviço militar” (UNESCO, 2012, p. 3). Ademais, de grande inovação e importância foi a adoção, por unanimidade em 16 de fevereiro de 2012, pela Assembleia Geral da ONU, da “Declaração das Nações Unidas sobre Formação e Educação em Direitos Humanos” (ONU, 2012). A Declaração é um marco no reconhecimento da essencialidade da EDH, considerando que ela é fruto de um longo debate mundial, que remonta à Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena (1993). Nesta ocasião, a EDH foi considerada essencial para a promoção e respeito dos direitos fundamentais conquistados historicamente pela humanidade (ONU, 1993), já que apenas o conhecimento e adequada informação a respeito desses direitos, possibilita sua exigência incondicional e imediata. Portanto, estes dois instrumentos (o Programa e a Declaração), fundamentam o consenso internacional em torno do tema, e pavimentam o caminho para a adoção da EDH como prioridade a nível global. Já em âmbito nacional, o Estado brasileiro adotou em 1996 o seu primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). A segunda versão foi publicada em 2002, e a terceira e última versão até o momento, foi aprovada pelo Decreto n° 7.037 de 2009, alterado pelo Decreto n° 7.177 de 2010. O PNDH 3 resultou de intenso debate nacional, com diversos atores sociais envolvidos. O fato é que um dos seis eixos orientadores do 91 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS PNDH 3, trata justamente da “Educação e Cultura em Direitos Humanos”. O capítulo traz uma série de diretrizes para se trabalhar a temática, seja no âmbito da educação formal (básica e superior), quanto na educação não-formal, bem como na promoção da EDH no serviço público e, ainda, se refere à garantia do acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos. Assim, o PNDH 3 traz como objetivo estratégico a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH). Instrumentos de efetivação da Educação em Direitos Humanos A propósito, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), publicado em 2007, é fruto de uma parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério da Educação, Ministério da Justiça e UNESCO. O PNEDH foi elaborado pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, com a participação da sociedade civil em diversos encontros estaduais ao longo de 2004-2005, sendo atualmente o documento chave no que diz respeito às concepções, princípios, objetivos, diretrizes e linhas de ação para a construção das políticas públicas de educação e cultura em Direitos Humanos. Ele possui cinco grandes eixos de atuação: Educação Básica; Educação Superior; Educação Não-Formal; Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança Pública e Educação e Mídia (PNEDH, 2007). É lastimável, no entanto, que o PNEDH seja ainda pouco conhecido, promovido e utilizado pelos diversos atores envolvidos com a educação no Brasil. Além do mais, os educadores podem contar hoje com “Conteúdos Referenciais para a Educação em Direitos Humanos”, publicados em 2010 pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, os quais podem servir como ponto de partida para o trabalho em sala de aula. Enfim, o fato é que a Declaração da ONU sobre Formação e Educação em Direitos Humanos, de 2012, renovou o debate que já vinha ocorrendo no Brasil3, onde se pensava como incluir as temáticas concernentes aos Direitos Humanos na educação, em seus diversos níveis. O tema foi, então, objeto de estudo pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que, em conjunto com diversos órgãos do governo, universidades e instituições da sociedade civil, publicou um parecer sugerindo “Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos”, as quais foram aprovadas e adotadas através da Resolução n° 1 de 2012. 3 Um dos primeiros artigos que apareceram no Brasil, especificamente, sobre a EDH foi da Professora da Faculdade de Educação da USP, Dra. Maria Victoria Benevides, intitulado “Educação em direitos humanos: de que se trata?” (2001). 92 Thiago Assunção Agora, com diretrizes nacionais válidas para todos os níveis e sistemas de ensino, passa a ser imperativo que as instituições públicas, sejam elas federais, estaduais ou municipais, bem como toda e qualquer instituição de ensino privada, reconheça e incorpore de modo transversal e multidimensional os conteúdos de Direitos Humanos nas mais variadas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Interessante notar como a maior parte das dúvidas que pairava sobre o ensino das temáticas que se inserem no grande espectro dos Direitos Humanos, na educação básica, era em relação a se seria preciso ou não criar uma nova disciplina com este conteúdo específico. Conforme explicitado na Resolução n° 1/2012 do CNE, optou-se por não criar disciplina autônoma de Educação em Direitos Humanos, mas se sugere que os conhecimentos a que se referem os Direitos Humanos sejam trabalhados de modo interdisciplinar, tanto de modo transversal entre as disciplinas existentes, quanto de um modo que insiram conceitos, noções e exemplos da temática no conteúdo específico de cada disciplina, como história, geografia, matemática etc4. Por fim, a resolução do CNE dispõe que a EDH “deverá orientar a formação inicial e continuada de todos(as) os(as) profissionais da educação, sendo componente curricular obrigatório nos cursos destinados a esses profissionais” (MEC, 2012). Ou seja, componente curricular obrigatório nos cursos de pedagogia e licenciaturas. Essa norma também amplia o ensino da EDH para todas as áreas do conhecimento, explicitando que a temática dos Direitos Humanos deve ser trabalhada amplamente, na formação inicial e continuada “das diferentes áreas do conhecimento”. Ainda, ressalta que deve haver um esforço dos sistemas de ensino e instituições de pesquisa para fomentar e divulgar estudos e experiências bem sucedidas na área dos Direitos Humanos, bem como a criação de políticas de produção de materiais didáticos e paradidáticos relacionados ao tema. Finalmente, a norma estimula as Instituições de Ensino Superior a promover ações de extensão voltadas para a proteção dos direitos humanos, com diálogo e alcance aos mais diversos segmentos sociais, principalmente aqueles em situação de exclusão social, bem como movimentos sociais e órgãos da administração pública (MEC, 2012). 4 Um exemplo seria o estudo, por diversas disciplinas ao mesmo tempo, de uma problemática social localizada no tempo e no espaço. Tomemos uma enchente em um bairro pobre da periferia de São Paulo, no ano de 2012. A situação poderia ser estudada do ponto de vista de quando ocorreu a ocupação da área, pela história; quais são as características topográficas e geológicas do terreno pela geografia; quais as estatísticas de chuvas e ocorrências de enchente pela matemática e assim por diante. 93 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS O Paraná e a Educação em Direitos Humanos No Estado do Paraná, há, do mesmo modo, uma intensa movimentação para a implantação de ações voltadas à Educação em Direitos Humanos. Já em 2007, foi criado o FOPEDH - Fórum Permanente de Educação em Direitos Humanos do Paraná, uma articulação que busca fomentar o debate, a formação e a elaboração de propostas relacionadas à educação em Direitos Humanos, enfatizando o seu papel no fortalecimento do Estado Democrático de Direito e na construção de uma sociedade mais justa e democrática. O Fórum é composto por entidades, órgãos públicos, movimentos sociais, pesquisadores e estudantes, sendo aberto à sociedade como um todo (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2011). Mas, foi principalmente a partir de 2011 que a temática começou a avançar no Estado. Primeiramente, a Secretaria da Justiça e Cidadania teve seu nome alterado para Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. A partir daí, a pasta começou a promover diversas ações e estabelecer projetos para o respeito e garantia dos direitos da pessoa humana por parte do poder público. A Escola Penitenciária do Paraná (ESPEN) foi transformada em Escola de Educação em Direitos Humanos (ESEDH), passando a formar os servidores do sistema penal já no paradigma contemporâneo da defesa irrestrita dos direitos fundamentais. Foi criado, em 2012, o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania (DEDIHC), que desempenha inúmeras ações de proteção e defesa dos Direitos Humanos e promoção da cidadania. O DEDIHC se coloca como um órgão há muito necessário na estrutura do Estado e vem atuando de forma cada vez mais efetiva e integrada para lidar com questões de Direitos Humanos no Paraná. Este órgão público deve ser, portanto, cada vez mais divulgado e conhecido pela população, que nele encontra mecanismos de controle social e espaços para participar ativamente, como por exemplo, os Conselhos de Direitos, em que são debatidas e construídas, de forma paritária, as políticas públicas setoriais. Por outro lado, um espaço como este não pode deixar de ser, na medida do possível, ampliado e fortalecido, para que possa atender de modo adequado à demanda crescente por cidadania, participação popular e efetivação dos Direitos Humanos no Estado. Desafios Como se sabe, não é de hoje que sistemáticas violações dos Direitos Humanos no Brasil acontecem no âmbito do seu sistema penitenciário5. E 5 Não entendemos com isso, apenas violações perpetradas por agentes públicos em face dos apenados, apesar 94 Thiago Assunção o caso do Paraná não é diferente6. A partir de 2011, no entanto, nota-se uma atuação da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, no sentido de promover uma profunda mudança e reestruturação do sistema penitenciário do Estado. Além de medidas específicas no âmbito da execução penal, como a construção de novas penitenciárias e a transferência de presos provisórios das delegacias para lugares apropriados, o Plano Diretor do Sistema Penal do Estado do Paraná (2011-2014) prevê um “Programa de Educação em Direitos Humanos”, visando instaurar uma cultura de paz nos espaços prisionais. Esta nova cultura surgiria, principalmente, para transformar as penitenciárias em escolas de capacitação profissional, garantindo que 100% dos presos possam trabalhar e/ou estudar. A mesma preocupação é evidenciada ainda pelo Plano para o Desenvolvimento Integrado – PDI-Cidadania, que prevê a oferta de educação pública para a alfabetização, ensino básico e superior aos apenados; a realização de cursos, eventos e palestras relacionadas aos Direitos Humanos, destinados aos servidores do Departamento de Execução Penal; a melhoria do atendimento à saúde nas unidades penais e, ainda, projetos de capacitação profissional em parceria com outras instituições públicas e privadas, os quais permitem que o preso passe a ter oportunidades efetivas de ressocialização. Este tipo de ação deve ser de fato louvada, pois além de caminhar ao encontro do que exigem os tratados internacionais, assinados e ratificados pelo Brasil, bem como o que manda a Constituição Federal e a Lei de Execuções Penais, trata-se de “remédio” efetivo para a urgente mudança de mentalidade, necessária em relação aos próprios objetivos da pena privativa de liberdade no Brasil7. de ser inegável que estes fatos, infelizmente, ainda ocorram (vide sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil por violações do Pacto de San José da Costa Rica, no presídio Urso Branco, em Rondônia). Mas, toda a estrutura carcerária brasileira é alvo de críticas por parte de organizações e especialistas nacionais e estrangeiros, que denunciam a superlotação, o tratamento muitas vezes desumano, degradante e cruel, a insalubridade nos locais de encarceramento, a alimentação totalmente inadequada e o atendimento precário à saúde, a corrupção e falta de controle que permite que grupos criminosos comandem atividades criminosas de dentro dos presídios. Essas e outras sérias questões assolam inclusive o servidor público, principalmente o agente penitenciário que se vê obrigado a trabalhar em condições difíceis, tendo que suportar todo o stress e pressão decorrente desta situação. 6 Os relatórios preparados periodicamente pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR, que visita os estabelecimentos prisionais de todo o Estado, dão conta da situação caótica em que se encontram algumas unidades. Mas, o relatório não apenas critica como também contribui, relatando casos de “boas práticas”. Ou seja, reconhecendo as unidades exemplares e divulgando a sua experiência para que as alternativas que funcionam nestes locais sejam conhecidas e replicadas em outros. 7 Neste ponto, poderíamos evocar estudos criminológicos mais críticos, que colocam em cheque toda a pretensão preventiva e eficácia punitiva da pena privativa de liberdade, o que, no entanto, fugiria do escopo deste trabalho. Fato é que no Brasil, hoje, o índice de reincidência no crime é altíssimo; e isso se dá em grande medida pelas condições da cadeia, que ao invés de ressocializar e oferecer oportunidades de arrependimento e recomeço ao indivíduo, serve de verdadeira “escola do crime”, já que mistura criminosos perigosos com quem cometeu crimes de menor potencial ofensivo e, por vezes, permite que seres humanos sejam tratados pior do que animais. A psicologia demonstra que quem deste modo for tratado, não aprenderá outra coisa senão a fazer o mesmo com os demais. Mesmo assim, em conversas com o cidadão comum, nota-se uma visão totalmente diferente, distorcida e 95 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Por último, é de se notar a criação, também pela Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Paraná, dos Comitês de Educação em Direitos Humanos8, com caráter interdisciplinar e descentralizados em diversas regiões do Estado, que buscam agregar esforços de agentes penitenciários, psicólogos, assistentes sociais, professores, pedagogos, entre outros servidores atuantes no sistema penal do Estado, além de setores da sociedade civil organizada, como OAB, Conselhos Tutelares, Associações de Moradores, para uma efetiva ressocialização dos presos e a promoção de uma cultura de paz e não-violência em torno desta comunidade. Trata-se de uma aposta promissora, pois é justamente o que quer a Educação em Direitos Humanos, ou seja, a prevenção de conflitos, de modo a trabalhar com o indivíduo em nível de mentalidade, para que ele reflita e se avalie antes de agir, tomando consciência do impacto e consequências dos seus atos, para si mesmo e em relação ao seu entorno. Conclusão Frente a existência de um variado arcabouço legal e dada a necessidade premente de uma educação transformadora, que ajude o indivíduo a perceber o seu papel no mundo, faz-se necessário que os diversos órgãos e instituições responsáveis, direta ou indiretamente, pela Educação em Direitos Humanos, se integrem, e que as diferentes iniciativas existentes em âmbito federal, estadual e municipal se articulem, buscando uma maior efetividade na aplicação das políticas públicas de Direitos Humanos, na educação formal e não-formal, em todas as etapas de ensino. Assim, é de interesse vital para sociedade investir na Educação em Direitos Humanos não como a única, mas como uma importantíssima ferramenta para se perseguir o bem comum, através do desenvolvimento sustentável e socialmente responsável, de uma sociedade pluralista e democrática, e da busca de uma maior qualidade de vida para todos. inculcada pelos meios de comunicação, em que a regra é um suposto clamor emotivo por “justiça”, mas que mais se aproxima, muitas vezes, de um desejo irrefletido de vingança. Daí mais uma vez, a necessidade de se educar a população para que ela perceba que o respeito aos direitos humanos é para todos, inclusive o detento que perdeu sua liberdade temporariamente, como punição pelo cometimento de um crime, mas que nem por isso deixou de ser um ser humano. Aliás, sim, os direitos humanos existem também para proteger as vítimas, que se socorrem do Estado para buscar justiça, a qual se materializa justamente por meio do processo penal, pelo julgamento e eventual condenação dos culpados. Que o aparato de investigação policial e o sistema judicial precisam ser mais céleres e eficientes, o que estamos de acordo, já é outra história. Por último, imperioso se faz reconhecer, para evitar mal-entendidos, que os direitos humanos se aplicam integralmente também aos funcionários do sistema penal, que muitas vezes tem seus direitos violados, seja pelos próprios presos, seja pelas condições de trabalho que frequentemente estão muito longe do ideal. 8 Fundamentados no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007) e no Plano Diretor do Sistema Penal do Estado do Paraná (2011-2014). Maiores informações sobre os Comitês de Educação em Direitos Humanos do Paraná, disponíveis em <http://www.comiteedheculturadapazpr.pro.br> 96 Thiago Assunção Referências ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, Declaração das Nações Unidas sobre Formação e Educação em Direitos Humanos. Resolução 66/137. 16 fev. 2012. Disponível em: <http://www. un.org/Docs/asp/ws.asp?m=A/RES/66/137> Acesso em 25 jan. 2013. BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em direitos humanos: de que se trata? Convenit Internacional (USP), v. 6, p. 43-50, 2001. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004. BRASIL, Lei nº 8.663, de 14 de junho de 1993.Diário Oficial da União. Brasília, DF, 15 jun. 1993. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1989_1994/L8663. htm>. Acesso em: 25 jan. 2013. BRASIL. Decreto-Lei Nº 869, de 12 de setembro de 1969. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 15 set. 1969. 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Lo que se deriva de uno y otro objetivo es interrumpir la lógica política que ha producido esas injusticias y esos daños. En la medida en que esa lógica siga vigente estamos abocados o a ser victimas o a ser verdugos. Reyes Mate (in Fundamentos de una filosofía de la memoria, p. 35) What, if any, general lessons can be gleaned about the strategic advisability of human rights trials in periods of democratic consolidation? Will these trials hurt democracy or help it? Initially, it may seem that the most general lesson is that there is no general lesson. Much depends on the specific nature of the transition. Carlos Santiago Nino (in Radical Evil on Trial, p. 127) O Conselho de Segurança da ONU aprovou um relatório em setembro de 2003, no qual se traçou as linhas da chamada Justiça de Transição ou Justiça Transicional. Tal iniciativa respondia às demandas dos Estados, interna e externamente, relativas à consolidação da paz e da democracia após períodos mais ou menos longos de conflitos. Neste sentido, os Estados vitimados por tais conflitos, invariavelmente marcados por violações de direitos humanos, reclamavam sua reestruturação e reconstrução através da criação de instituições legítimas e, também, de uma administração legítima da justiça. Desta forma, o documento das Nações Unidas define Justiça de Transição como o conjunto de processos e mecanismos associados à tentativa de uma sociedade lidar com o legado de abusos em larga escala ocorridos no passado, buscando assegurar accountability, justiça e reconciliação. A Justiça de Transição consiste em processos e mecanismos judiciais e não judiciais, incluindo julgamentos individuais, acesso à verdade, reparações, reformas institucionais e expurgos no serviço público. Seja qual for a combinação escolhida esta deve estar em conformidade com os padrões jurídicos internacionais e as obrigações (tradução livre)2. Vale 1 Professora associada de direito constitucional dos programas de graduação e pós-graduação em direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD/UFPR. Membro da Comissões de Verdade do Estado do Paraná, da UFPR e da OAB/PR. 2 For the UN system, transitional justice is the full range of processes and mechanisms associated with a society’s 100 101 A justiça de transição e o Brasil: breve relato dizer, o documento da ONU se baseia, normativamente, na Carta das Nações Unidas, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, no Direito Penal Internacional e no Direito Internacional dos Refugiados, ou seja, nos padrões normativos internacionais de direitos humanos. Dentre os mecanismos judiciais de efetivação da Justiça de Transição tem-se os julgamentos criminais. Estes são importantes na medida em que submetem os violadores a um processo de responsabilização pelos crimes cometidos e tal processo não só respeita os padrões jurídicos internacionais, mas demonstra que as instituições dos Estados democráticos de direito também se aplicam aos violadores de direitos humanos. Ainda, há um sentido de justiça reivindicado pelas vítimas das violências que se deflui da persecução penal. Neste caso, as vítimas identificam no processo de responsabilização criminal dos seus algozes a possibilidade de recuperação da sua dignidade. Para tanto, o sistema de justiça dos Estados deve ser legítimo, eficiente e justo, pois, do contrário, tem-se que recorrer aos tribunais internacionais que podem assumir esta responsabilidade complementar. Ainda em relação aos julgamentos, a forma da justiça de transição remonta ao que sucedeu após a Segunda Grande Guerra relativamente à Alemanha e aos demais Estados envolvidos no conflito. Instalou-se o Tribunal de Nuremberg, o qual foi responsável pelo julgamento de vinte e dois oficiais nazistas. Os chamados Estados aliados - Estados Unidos, Inglaterra e França – condenaram, no total, cinco mil e seis alemães por crimes de guerra, aplicando, pelo menos, setecentos e noventa e quatro penas de morte. Após Nuremberg, a própria Alemanha seguiu processando aqueles que cometeram crimes contra a humanidade durante a Segunda Guerra, o que resultou, até 1996, em seis mil, quatrocentos e noventa e quatro condenações transitadas em julgado. Para além da responsabilização criminal, institui-se um sistema legislativo de compensações financeiras. Vários dos países envolvidos no conflito de 1939-1945 passaram por processos semelhantes de transição, como o Japão, com o Tribunal Militar Internacional de Tóquio e o Tribunal de Yokohama. O fato é que tais tribunais tinham procedimentos muito específicos em razão do ineditismo da situação, ou como bem disse Hannah Arendt, em um texto de 1953, chamado Humanidade e Terror (2008, p. 325): entre as grandes dificuldades de entender essa mais nova forma de dominação – attempt to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice and achieve reconciliation. It consists of both judicial and non-judicial processes and mechanisms, including prosecution initiatives, facilitating initiatives in respect of the right to truth, delivering reparations, institutional reform and national consultations. Whatever combination ischosen must be in conformity with international legal standards and obligations. http://www.unrol.org/files/TJ_Guidance_Note_March_2010FINAL.pdf 102 Vera Karam de Chueiri dificuldades que, ao mesmo tempo, provam que estamos diante de algo novo, e não de uma simples variação da tirania - está o fato de que todos os nossos conceitos e definições políticas são insuficientes para uma compreensão dos fenômenos totalitários, e além disso todas as nossas categorias de pensamento e critérios de julgamento parecem explodir em nossas mãos no momento em que tentamos aplicá-los a eles. Ou seja, os tribunais criados após a experiência do totalitarismo para julgar os crimes contra a humanidade e os sistemas de proteção dos direitos humanos erigidos a partir dali redefiniram processos e conteúdos com base em um novo padrão de moralidade. Retomo Hannah Arendt (1994, p. 739) e sua afirmação de que o horror do totalitarismo transcendeu todas as categorias morais e explodiu todos os padrões jurídicos, isto é, foi algo que os homens não poderiam punir adequadamente nem perdoar. Outro caso emblemático de Justiça de Transição e com reflexos muito recentes foi o que ocorreu na Espanha após o franquismo. Houve uma lei de anistia de “mão dupla”, a qual permitiu, de um lado, a liberação de diversos acusados pelo regime franquista que ainda estavam presos sob a acusação de “crimes de sangue” e, de outro, a paralisação de todos os processos contra os envolvidos com o regime. Os arquivos da polícia secreta foram lacrados e não queimados e se determinou uma espécie de política do esquecimento. Neste sentido, é de se destacar o trabalho do ex-Juiz Baltazar Garzón que, em 2008, declarou que os atos de repressão cometidos sob o comando de Franco foram crimes contra a humanidade. Os casos sulamericanos forneceram à Justiça de Transição novos elementos. O caso argentino enfatizou a responsabilização penal. Durante o Governo Alfonsín, logo após o final da ditadura militar, foram elaboradas duas leis: a do “Ponto Final” e a da “Obediência Devida”. Tais leis impediram a responsabilização daqueles que serviram ou colaboraram com o regime militar argentino exercendo todo tipo de crueldade contra o seu povo. Isto, pois, a lei do ponto final (23.492 de 24/12/86) determinou a paralisação dos processos judiciais contra os agentes que realizaram detenções ilegais, torturas e assassinatos, ou seja, determinou a impunidade dos responsáveis pelo desaparecimento de milhares de pessoas na Argentina. A lei a obediência devida (23.521 de 04/06/87) estabeleceu que os atos cometidos pelos militares durante a ditadura (a que eles chamaram de Guerra Suja e Processo de Reorganização Nacional) não eram puníveis por terem aqueles agido em virtude de obediência devida e, tal fato, não admitiria prova em contrário. Apesar disso, tais leis não constituíram obstáculo para o funcionamento da Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, a CONADEP, que produziu uma vasta documentação informando o desaparecimento 103 A justiça de transição e o Brasil: breve relato forçado de cerca de nove mil pessoas, número este que subiria para vinte mil com o decorrer dos anos e o surgimento de novos documentos. Entretanto, tais leis foram declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema em 2005, que reiterou a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. É importante dizer que a incorporação do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969) pela reforma constitucional argentina em 1994 foi um grande passo em direção à Justiça de Transição. No Chile, o ditador Augusto Pinochet, através do decreto lei 2191 de 1978, outorgou a anistia (em realidade autoanistia) a todos os responsáveis pelos crimes cometidos em nome do Estado durante a ditadura. O referido decreto foi julgado constitucional pela Suprema Corte, porém as investigações sobre os fatos ocorridos seguiram acontecendo em atenção à determinação do governo Aylwin, tão logo assumiu a transição. Desta forma, as investigações dos fatos relacionados às violações de direitos humanos foram realizadas, mas sem possibilidade de responsabilização penal, em razão da anistia. Houve, portanto, duas comissões: a da Verdade, no governo Aylwin e a “Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura”, no governo Ricardo Lagos, a qual colheu o depoimento de mais ou menos trinta e cinco mil pessoas. Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu o caso Almonacid Arellano y otros vs Chile, no qual declarou a impossibilidade de concessão de anistia a crimes contra a humanidade, como também a imprescritibilidade destes. Ainda, reforçou a ideia de crime continuado nos casos de desaparecimento forçado e fez com o que o Poder Judiciário chileno revisse sua posição acerca destes. Por fim, o decreto lei 2191 (da anistia) acabou sendo revogado. O que percebemos é que nos casos argentino e chileno, o direito interno foi revisto à luz do direito externo, vale dizer, toda legislação de (auto) anistia que alcançou os violadores de direitos humanos que agiram em nome ou em colaboração com os Estados ditatoriais foi reinterpretada a partir do Pacto de San José, isto é, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Há outros exemplos de Justiça de Transição relevantes como o da África do Sul e de países do leste europeu. Entretanto, seguirei minha análise, a partir das experiências sul-americanas, em especial, o caso brasileiro. No Brasil, os procedimentos de Justiça de Transição foram mais tardios em comparação ao Chile e à Argentina. Isso se deve ao próprio processo de transição e a interpretação de que se tratou de um grande acordo do regime militar com a sociedade civil brasileira. Neste sentido, o próprio 104 Vera Karam de Chueiri judiciário restou tímido e muito vinculado às instituições e legislações da época do regime militar de forma que, mesmo com a promulgação da Constituição de 1988 e a reconstrução da democracia brasileira, os procedimentos de Justiça de Transição foram implementados (e têm sido ainda) a conta gotas e num movimento de avanços e recuos. Ainda que as democracias constitucionais sejam significadas pelas demandas por direitos e sua efetivação e, ainda que isso se dê de maneira conflituosa, no que diz respeito à Justiça de Transição e seus mecanismos, não é admissível que em um tal regime (democrático e constitucional) seja tolerável a composição, o acordo, o pacto. Isto é, quando se trata de um passado de atrocidades, criminoso, cruel o único acordo possível é o estabelecimento de mecanismos (de justiça) que reparem, perdoem, responsabilizem e impeçam, de todas as formas, que o futuro repita o passado. O relatório Brasil Nunca Mais3, organizado pela Arquidiocese de São Paulo e publicado em 1985, foi fundamental em relação à memória e verdade relativamente aos fatos ocorridos no período da ditadura militar. Na minha opinião, foi o primeiro documento fruto de extensa e cuidadosa pesquisa que levantou a questão das torturas, das mortes, dos agentes que as cometeram, das vítimas, enfim, da racionalidade do regime autoritário. Em 1991, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Externa para acompanhar as buscas na vala comum do Cemitério de Perus, em São Paulo, dos possíveis desaparecidos pela ditadura militar brasileira. A partir de 1992, familiares de vítimas começam a ter acesso aos documentos das DEOPS (Delegacias de Ordem Política e Social) de diversos estados da federação, entretanto, havia processos com páginas faltando, outros desparecidos, ou seja, a documentação e as respectivas informações restavam incompletas e não totalmente acessíveis. No Governo Fernando Henrique Cardoso, através da Lei 9140/1995, se reconheceu oficialmente como mortos, para todos os efeitos legais, os desaparecidos políticos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, assim como, se instalou, no âmbito do Ministério da Justiça, a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (posteriormente, o caput do art. 1o da Lei 9140/1995 foi alterado pela Lei 10.536/2002 estendendo o período até 05 de outubro de 1988). Esta primeira Comissão governamental investigou e concedeu indenizações em casos de desaparecimento de pessoas envolvidas com atividades políticas, bem como, produziu um primeiro documento relatando cento e cinquenta casos de desaparecidos políticos em um exercício do direito à memória e à verdade. 3 Arns, Paulo Evaristo. Brasil nunca mais. São Paulo: Vozes, 1985. 105 A justiça de transição e o Brasil: breve relato A questão documental tem sido um nó no processo de Justiça de Transição no Brasil desde 1985. Vários documentos relativos ao período militar foram transferidos da Agência Brasileira de Inteligência para o Arquivo Nacional, sob o comando da Casa Civil da Presidência da República. Entretanto, em 2010, noticiou-se que o arquivo vinha sendo gerenciado pela Associação Cultural do Arquivo Nacional, formada também por militares da época do regime. Neste sentido, a presidente Dilma Rousseff, por meio do Decreto 7.430/2011, transferiu o Arquivo Nacional ao Ministério da Justiça. Há, ainda, as informações disponibilizadas através do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, referentes ao antigo Conselho de Segurança Nacional, à Comissão Geral de Investigações e ao Serviço Nacional de Informações. Em 2002, o Congresso Nacional regulamentou o art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, através da lei 10.559 e, com ela, foi criada a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. É notável o trabalho da Comissão, especialmente a partir de 2007, relativamente aos pedidos de anistia política, como também de reparação moral e econômica. Milhares de requerimentos solicitando o reconhecimento da condição de perseguido político com ou sem reparação econômica foram apreciados: tanto dos que foram perseguidos e tiveram suas liberdades básicas e sua integridade física e mental violadas, como também dos que foram demitidos de seus empregos durante o regime autoritário (e por causa dele). Pois bem, neste passo, chegou o Estado brasileiro e sua Justiça de Transição à necessidade de uma comissão da verdade. Neste sentido, foi enviado ao Congresso Nacional, no Governo Lula, o Projeto de Lei 7.376/2010, demanda esta estabelecida no Plano Nacional de Direitos Humanos, o qual foi sancionado pela Presidente Dilma Rousseff, transformando-se na Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011. A Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV) foi criada no âmbito da Casa Civil da Presidência da República e tem como objetivo examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos ocorridas no período entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. Ela busca efetivar o direito à memória e à verdade. Entretanto, desde o seu surgimento e da sua composição, a CNV está enredada em uma teia de tensões externas e internas. As tensões externas, como era de se esperar, dizem respeito aos que integraram, colaboraram e serviram aos regimes ditatoriais no Brasil, notadamente, ao último, que se estabeleceu com o golpe militar de 1964. 106 Vera Karam de Chueiri Ou seja, setores militares e civis que apoiaram e serviram ao golpe, desde a feitura da lei, pressionam o Estado brasileiro em relação aos deslindes da CNV. “Ditabranda”, amplo acordo, reconciliação nacional etc. são alguns dos eufemismos utilizados por tais setores. As tensões internas, visíveis no governo desde a discussão sobre a revisão da lei de anistia na ADPF 153, entre o ministério da defesa e o ministério da justiça e a secretaria especial de direitos humanos - além de outras -, dizem respeito a setores do governo e a membros da própria CNV relativamente ao que se entende (e se quer) por justiça, transição, memória e verdade, finalmente, por Justiça de Transição. Outra questão relevante é o período abrangido (1946-1988), o qual se mostrou muito extenso para o pouco ou nada extenso período de trabalho da CNV (a lei 12.528/11, em seu art. 11, fixava como prazo de funcionamento da CNV o interstício de apenas dois anos, a partir da sua instalação em 16/05/2012). No entanto, a presidente Dilma Roussef prorrogou o período de trabalho da CNV até dezembro de 2014. A CNV é composta por sete membros escolhidos pela Presidente da República, dentre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com o respeito à democracia, à Constituição e aos direitos humanos (Lei 12.528/11, art. 2o, caput). A questão difícil, ao meu ver, é que os sete membros nomeados, embora profundamente identificados com a democracia, a constituição e os direitos humanos, divergem sobre o sentido e a instrumentalização destes para a realização da Justiça de Transição4. O art. 3o da Lei 12.528/2011 fixa os objetivos da CNV. São eles: a) esclarecer as circunstâncias de graves violações de direitos humanos; b) promover o esclarecimento de crimes graves contra os direitos humanos (desaparecimento forçado, tortura, mortes e ocultação de cadáveres), mesmo que ocorridos no exterior e com nomeação dos autores; c) identificar e tornar públicas as estruturas, locais, instituições e circunstâncias vinculadas à prática daqueles crimes; d) encaminhar aos órgãos públicos informações que possam auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais; e) auxiliar outros órgãos do poder público na apuração da violação de direitos humanos; f) recomendar ações que possam prevenir novas violações de direitos humanos, bem como evitar repetições e assegurar reconciliação; g) promover a reconstrução histórica das violações de direitos humanos. 4 Em 10 de maio de 2012, a Presidente Dilma Roussef nomeou os sete membros da Comissão Nacional da Verdade, quais sejam: José Carlos Dias, Gilson Dipp, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Maria Rita Kehl, Cláudio Fonteles, José Paulo Cavalcanti Filho e Paulo Sérgio Pinheiro. O comissário Cláudio Fonteles foi substituído, em setembro de 2013, por Pedro Dallari. 107 A justiça de transição e o Brasil: breve relato Ainda que se trate, semanticamente, de uma comissão da verdade, não há como divorciá-la da busca da justiça. Neste sentido, os trabalhos da CNV, para cumprimento dos seus objetivos, podem colaborar com a responsabilização judicial daqueles que violaram os direitos humanos cometendo crimes de lesa humanidade. De toda maneira, no parágrafo 4o do art. 4o da Lei 12.528/11 determinase que os atos da CNV não terão caráter jurisdicional ou persecutório. Daí que os poderes da CNV, nos termos do referido art. 4o, são os seguintes: receber testemunhos e depoimentos, inclusive podendo assegurar o sigilo da identidade do depoente; requerer informações e documentos de órgãos públicos, inclusive os que estejam classificados sob sigilo; convocar pessoas que possam ter relações com as violações; realizar de perícias e diligências; realizar audiências públicas; requerer a proteção de depoentes; instituir parcerias com órgãos públicos e privados, nacionais e internacionais, para o intercâmbio de informações; requerer auxílio de órgãos públicos. A prerrogativa de recorrer ao judiciário foi prevista para o caso de uma determinada informação estar acobertada pela chamada cláusula de reserva de jurisdição. O art. 5o da referida lei institui a publicidade dos atos da CNV e o art. 6o dispõe que observadas as disposições da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), a CNV poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos. Por fim, o art. 11 exige que a CNV elabore relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, fatos examinados, conclusões e recomendações, que deverão ser remetidos ao Arquivo Nacional para integrar o projeto Memórias Reveladas. A Comissão Nacional da Verdade, como também as Comissões de Anistia e Mortos e Desaparecidos, integram as instituições públicas que vem realizando a Justiça de Transição no Brasil. Há outras instituições, governamentais e não governamentais, das várias esferas da federação brasileira como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, o Ministério Público Federal, as Universidades, a Ordem dos Advogados do Brasil, Sindicatos, entre outras, que colaboram neste árduo e necessário trabalho. Há comissões de verdade estaduais, como também comissões de verdade institucionais (das universidades, da OAB, da CUT etc.) que trabalham para auxiliar a CNV, atentas às suas especificidades. Entre as instituições não governamentais, nacionais e internacionais, que há muito militam em prol da justiça, memória e verdade no Brasil, há os comitês para anistia criados desde o final da década de setenta, os grupos “tortura Vera Karam de Chueiri nunca mais”, entre tantos outros. Se a Justiça de Transição exige reparação às vítimas e definição das formas de reparação, ela igualmente exige definição de critérios para a acusação dos perpetradores, como também das formas de punição sejam através de sanções penais ou políticas. Em relação à primeira exigência, o Estado brasileiro tem respondido favoravelmente. Já em relação à segunda exigência, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, que julgou constitucional o parágrafo 1o, do art. 1o da Lei de Anistia, antecipou um futuro desolador. De toda forma, a decisão da Corte Interamericana no caso da guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund x Estado brasileiro)5 trouxe-nos um sopro de esperança. A questão agora é agir politicamente para exigir do Estado brasileiro o respeito à decisão da CIDH que o condenou pela grave violação de direitos humanos (vida, integridade e liberdade) ocorrida na região do Araguaia, entre 1972 e 1975; pelos desaparecimentos forçados; pela violação ao direito às garantias judiciais; pelo descumprimento da obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana de Direitos Humanos. Neste sentido, a CIDH determinou que o Brasil deve conduzir, de maneira eficaz, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos e aplicar as sanções previstas em lei, como também determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas, identificar seus restos mortais e entregá-los às famílias. Ainda, o Estado brasileiro deve dar publicidade interna e externa sobre sua responsabilização no caso, envidar ações que capacitem seus efetivos das Forças Armadas em matéria de direitos humanos e, por fim, prestar contas à esta Corte Interamericana, a partir da sua notificação, acerca das medidas adotadas em relação ao cumprimento da sentença que o condenou. O Brasil vem enfrentando o desafio de implementar os mecanismos de Justiça de Transição. Como disse anteriormente, desafio que alcança discordâncias morais, políticas e jurídicas no âmbito dos próprios governos democráticos pós-1988 e, por isso mesmo, o cumprimento da sentença da CIDH no caso Gomes Lund pode significar mais do que isso, ou seja, uma nova e decisiva rodada na consolidação da nossa democracia e do nosso constitucionalismo. 5 http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf acessado em 29/09/2013 108 109 A justiça de transição e o Brasil: breve relato Referências A Anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin America Center, 2011. Assy, Bethania, Melo, Carloina de C., Dornelles, João Ricardo, Gómez, José Maria. Direitos Humanos. Justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. Arendt, Hannah. Compreendrer. Formação, exílio e totalitarismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia. Das Letras, 2008. ________. 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Este definido como a organização social pautada pela representatividade política (voto e contrato social) e pela divisão de poderes: 1. Executivo – administrador da vida em sociedade; 2. Legislativo - a legislação contém a vontade do povo (as leis que regem uma sociedade, protegendo-a, agora, dos riscos de recaída ao totalitarismo); 3. Judiciário – poder do Estado com função de nos proteger da justiça com as próprias mãos, da violência privada. Ao Estado, cabe o monopólio da violência, porquanto os poderes legislativo e judiciário respondem, com suas decisões, quais padrões de comportamento devem ser considerados como guias à conduta dos seres humanos. Com o estado de direito, legitimamos a ideia de a liberdade de cada indivíduo e o poder serem, exclusivamente, disciplinados sob a égide do Estado (WEBER, 1996, p. 34). Com isso, poder, portanto justiça, é uma questão de capacidade para fazer o outro agir segundo o comando anunciado (WEBER, 1996, p. 45). Se, historicamente, creditamos toda confiança na possibilidade de serem resolvidos, por meio de legislação, 1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. 2 Doutor em Direito pela UFPE, Prof. Associado da Faculdade de Direito do Recife (CCJ-UFPE), Pesquisador PQ2 do CNPq, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE. 3 Doutora em Letras pela USP/Université de Nanterre, Profa. Associada do Depto. de Letras (CAC-UFPE). 111 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas toda e qualquer questão e todo e qualquer problema da sociedade, hoje, mesmo aqueles que desconfiam dessa confiança, ainda, legitimam o monopólio estatal da violência. Isso acontece porque estamos vivendo em uma sociedade em que ao Estado cabe dizer o que devemos ser e fazer. Afinal, mesmo quando desprovido de consciência, concordamos que sem polícia, sem legislativo, sem executivo e sem judiciário a violência aumentaria. Acatamos, portanto, a ideia de que somos incapazes de autogerir nosso comportamento, autoestabelecer nossa ética. Precisamos, portanto, do direito, da legislação, da decisão judicial para sabermos como podemos e devemos nos comportar. Numa frase: o Estado detém a competência para ditar e reger nossos padrões éticos. Acontece que regimes totalitaristas propulsionam desconfianças na capacidade de, por meio do estado de direito, vivenciarmos uma sociedade menos violenta; portanto, com ética, e mais pacífica. Todavia, aprendemos que, por legislação, é possível se propiciar mais violência, como nos regimes totalitaristas, em ditaduras e nas democracias disfarçadas. Nossas reflexões, aqui, giram em torno do exercício do poder de decisão do judiciário como organização do direito da sociedade. O poder do judiciário em ditar o direito em cada caso concreto. As questões são: que direito resulta de decisões judiciais? Que visão de sociedade está presente em cada decisão proferida pelo judiciário? Decisões proferidas por juízes monocráticos, por exemplo, pautam que justiça, que paz social? É suficiente um juiz tomar uma decisão para que os litigantes passem a conviver pacificamente? Ocorre que, na sociedade atual, complexa como é, o monopólio estatal da violência (ou seja, a capacidade de o Estado administrar a vida em sociedade estipulando suas normas), constantemente questionado, criticado, é ainda legitimado. Se não, vejamos. Em relação ao Judiciário, por exemplo, ainda que mantido como Poder competente para ditar quem está com o direito num caso jurídico, não lhe faltam críticas. Críticas estas voltadas a identificar falhas, problemas e apontar melhorias em seu funcionamento. Não identificamos, na literatura atual, propostas de supressão, eliminação, substituição do Judiciário por outra via de solução dos conflitos. É certo que cada vez mais se fala em conciliação. Mas, aqui, também legitimamos o Judiciário como espaço social detentor do poder para ditar quem está com o direito. A busca pela solução do problema da morosidade tem dado lugar a várias propostas de mudanças de legislações materiais e processuais, a publicação de novas normas jurídicas, bem como a criação 112 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal de institutos jurídicos novos. Ainda, exploraremos a justiça restaurativa como alternativa paralela, concomitante à decisão judicial. Todavia, não observamos a justiça restaurativa como supressão, eliminação, substituição do Judiciário. Isso porque práticas de justiça restaurativa têm tido lugar junto ao judiciário. Magistrados têm promovido essa prática, bem como têm encaminhado casos para ONGs ou grupos da sociedade que trabalham com justiça restaurativa para auxiliarem nas soluções de conflitos sociais. Em todos os estados brasileiros não faltam casos de práticas de justiça restaurativa. Basta uma vista rápida, porém cuidadosa, na internet para se comprovar que essa afirmação é verdadeira. Nosso objetivo, portanto, é contribuir para reflexões sobre o papel do judiciário na produção do direito da sociedade, chamando a atenção para que visão de sociedade está presente nas decisões judiciais. Ou seja, o quanto uma decisão de um magistrado efetivamente tem servido para promover paz social. Entendemos que decisões pautadas pelo poder de decidir, sem que os envolvidos tenham noção da dimensão, ou uma compreensão do que e do porquê essa decisão foi tomada, ou seja, sem uma participação efetiva dos envolvidos no caso, a decisão judicial tenderá a não funcionar como meio para solução do conflito. Esta pode, inclusive, servir para ampliar a violência na sociedade. Não são raros os casos em que o Judiciário é usado pelas partes como instrumento de vingança, como meio para adiar e, com isso, acumular mais dinheiro, o pagamento de dívidas etc. Se direito é o espaço social de construção da justiça, que direito tem sido construído pela decisão jurídica pautada pelo poder de decisão? Como não temos nenhuma perspectiva para mudar a maneira como a sociedade atual vive seu direito, ou seja, sair do estado social democrático de direito, dedicamo-nos a oferecer reflexões sobre a viabilidade de uma democratização da decisão jurídica por meio de aumento da participação das partes no processo decisório. Isso nos leva a trabalhar com a hipótese de que se e o quanto a justiça restaurativa envolve essa democratização ou se não passa de mais um instrumento de poder do estado. Iniciaremos nossas reflexões apresentando observações sobre os institutos alternativos à decisão como resultado de exercício do poder, como parecem querer ser a conciliação, a mediação, a arbitragem e a justiça restaurativa. Evidente que esses institutos são distintos e, como nosso foco é a justiça restaurativa, não nos ocuparemos em trabalhar as outras quatro alternativas. Em seguida, lançaremos reflexões sobre a ética do discurso como base teórica auxiliar a uma compreensão da justiça restaurativa, seguindo pelas ideias presentes na pedagogia freiriana, indispensável para uma compreensão da dimensão pedagógica 113 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas da decisão jurídica de pauta restaurativa. Por fim, lançaremos olhares da visão sociológica substantiva de Cláudio Souto (1971, 2003, 2009) para uma reflexão sobre a justiça restaurativa. 2.Conciliação e justiça restaurativa Construídas alternativas sobre a maneira como o Judiciário vai agir, a conciliação se apresenta como espaço para a realização de diálogo, debates, conversas. Isso tudo voltado para se chegar a uma decisão jurídica, ainda que, agora, com a atenção mais voltada para a participação das partes e não a uma decisão de um juiz, de um “decididor” que conhece o direito e sabe declarar com quem está o direito no caso. Na justiça restaurativa, o Judiciário não é reduzido à função de poder competente para ditar o direito. Antes, ele assume a função de compositor da decisão. O judiciário atua com a responsabilidade de, junto com os participantes processuais, produzir a solução, sem perder de vista a sua função de disciplinador. Essa alternativa contém características de lógica do poder do Judiciário semelhantes àquelas presentes na visão de educação de Paulo Freire. Para esse teórico da educação, o educador intermedia a construção do conhecimento no desenvolvimento da aprendizagem, o que não retira sua responsabilidade no processo educacional. A partir das discussões de Freire, entendemos que não é porque o educador deve se ocupar em construir com os discentes o conhecimento que ele perde a responsabilidade por conduzir ao melhor aprendizado. A ótica de poder do educador deixa de ser a de dono do poder de educar e passa a ser a do poder instruir e formar para ações autônomas dos educandos. Ou seja, não se vê mais o educador como transmissor de conhecimento, mas sim como facilitador, como responsável por, junto com os cursistas, promover o aprendizado. Ao pretender o monopólio da violência, o Estado se habilita a resolver todos os conflitos sociais via legislação, competindo, única e exclusivamente, ao Poder Judiciário ditar o direito. Ou seja, declarar qual das razões em conflito é aquela que está com a Ratio Júris (Razão Jurídica). Eliminada a admissibilidade da vingança privada, da justiça com as próprias mãos, para um problema a ser resolvido, a alternativa racional é recorrer ao Poder Judicial, o qual declarará quem está com a razão, quem está protegido pelo direito, pela legislação. Hoje, há críticas às ineficácias, às falhas do estado de direito, a exemplo do diagnóstico das impossibilidades de pré-estabelecer decisões para vivências futuras, ou seja, reconhecer que a legislação não é suficiente para resolver os problemas sociais. Todavia, é o que temos de melhor para 114 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal a vida na sociedade contemporânea, pois é preferível ser julgado por um juízo racional (aplicação de critérios estabelecidos por legislação) e não arbitrariamente. Identificados paradoxos do modelo de Estado de Direito, insiste-se em buscar qual dos lados do paradoxo é o certo: o da justiça. A partir daí pensar em como estabelecer regras flexíveis para garantir a justiça da decisão. Acontece que o Judiciário como promotor da justiça, da paz social é bastante questionado. Esse questionamento acontece, principalmente, devido à pecha da morosidade, às dificuldades e mesmo à impossibilidade de acesso à justiça para todos, ao uso do Judiciário como retardamento à solução de um caso judicial, ou quando se recorre ao Judiciário para arrastar um problema ao infinito etc. As críticas a esse diagnóstico se glorificam por indicar melhorias, inclusão e reconhecimento de novos direitos e deveres, como críticas à manutenção do Estado de Direito. Em relação ao Judiciário, não deixamos de ver propostas de melhorias que vão de mudanças legislativas, alterações de normas processuais até à criação de institutos jurídicos, como mediação e arbitragem, conciliação, penas alternativas e justiça restaurativa. Em relação à arbitragem, por exemplo, a aposta e confiança nessa alternativa levaram a frases como: a arbitragem, há décadas utilizadas nos países desenvolvidos, é regulamentada no Brasil pela Lei 9.307/96, a chamada Lei da Arbitragem, e vem sendo reconhecida como o método mais eficiente de resolução de conflitos, contribuindo para o descongestionamento do Poder Judiciário. Limitamos nossas reflexões à conciliação e à justiça restaurativa. Quanto à conciliação, observamos que ela não se efetivará somente pela alteração da legislação, mas sim quando produzida uma cultura jurídica da conciliação. Ou seja, quando advogados, promotores, procuradores, magistrados e a sociedade abandonarem a visão de direito como poder de estabelecimento do quem somos e como devemos agir e assumirem o direito como instância produtora da ética. Em outras palavras, quando todos acatarem a possibilidade de assumir as consequências de suas próprias ações, independentemente de um Judiciário impondo tais consequências. Numa sociedade em que as pessoas vivem certas de que não são capazes de assumir suas responsabilidades éticas, conciliar não passará de um jogo de negociação de interesses, oportunidades e espertezas. Caso não se associe o Judiciário com o poder competente para ditar com quem está o direito e o vinculemos ao espaço para propiciar diálogo sobre que valores estão em debate, a conciliação se tornará instrumento de 115 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas pacificação social. Enquanto isso não ocorre, as audiências preliminares, destinadas à conciliação, não passam de perda de tempo, de aumento da morosidade processual. Não sendo, assim, alternativa à morosidade e caminho para reformulação da função do Poder Judiciário em uma sociedade (RAMOS e STAMFORD DA SILVA, 2003; STAMFORD DA SILVA e outros, 2009). Em relação à justiça restaurativa, estão funcionando em São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul projetos de implementação da visão de justiça restaurativa, resultado da implementação do programa “Casas de Justiça e Cidadania”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Do relatório do CNJ (2010) constam propostas típicas de cultura da paz, para o cotidiano do Judiciário. A questão é o quanto a sociedade está preparada para vivenciar uma concepção de direito e de Judiciário pautada pelo fim do “dialogar com o outro sem escutar o que o outro tem a dizer” (RAJAGOPALAN, 2004, p. 171), mas sim de produção de sentido do direito da sociedade. Nesta direção, o direito passa a ser produzido nos debates e discussões do caso jurídico e não como pré-estabelecido exclusivamente por legislação e jurisprudência. 3.Punir ou conciliar? Ética do discurso para pensar a justiça restaurativa Defendemos, neste artigo, a ética do discurso, a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, como alternativa para se pensar sobre a forma de justiça pautada pela lógica da punição, na qual a legislação contém o conteúdo do direito. Portanto, ao Judiciário cabe ditar quem está com o direito, e a forma de justiça pautada pela lógica da conciliação, como na justiça restaurativa. Segundo Habermas (1975, pp. 310-311), uma ação é comunicativa quando os participantes visam formar um entendimento sobre algo, visam, a princípio, chegar a um consenso sem a interferência de jogos de poder. É da capacidade de argumentação, portanto da racionalidade, que se dão as construções de um entendimento. Habermas defende a “racionalidade comunicativa”, que é a capacidade do ser humano compor um acordo sem coação. Portanto, é a capacidade de gerar um entendimento espontâneo, sem imposição de um poder, que não o poder de escolhas das próprias partes envolvidas. Nessa racionalidade, a fala argumentativa supera a subjetividade inicial dos pontos de vista dos participantes da comunicação, em favor de uma comunidade de convicções racionalmente motivadas (HABERMAS, 1988a, pp. 26-27). Considerando que a racionalidade pode ser medida pelo êxito de intervenções dirigidas à obtenção de um propósito ou pela capacidade de chegar a um entendimento, o autor 116 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal expõe: “um maior grau de racionalidade cognitivo-instrumental tem por resultado uma maior independência em relação às restrições que o entorno contingente opõe a autoafirmação dos sujeitos que atuam visando realizar propósitos”; enquanto que “um grau mais alto de racionalidade comunicativa amplia, dentro de uma comunidade de comunicação, as possibilidades de coordenar as ações sem recorrer à coerção e de resolver consensualmente os conflitos de ação (na medida em que estes se devem à dissonância cognitiva em sentido estrito) (HABERMAS, 1988a, p. 33). Com isso, para Habermas, alguém é racional não por suas manifestações, mas por elas serem: a) avaliadas por boas razões, além de corretas ou terem êxitos (dimensão cognitiva); b) confiáveis ou sábias (dimensão prático-moral); c) inteligentes ou convincentes (dimensão valorativa); d) sinceras ou autocríticas (dimensão expressiva); e) compreensivas (dimensão hermenêutica) (HABERMAS, 1988a, p. 70). Nesta perspectiva, o autor faz uma taxonomia da ação social. Nesta, ele distingui a ação teleológica (ação instrumental e ação estratégica), da ação regulada por normas; da ação dramatúrgica; e da ação comunicativa. A atividade orientada para um fim torna os valores escolhidos em estados no mundo, bem como leva à lógica causal. Pois, para se atingir os fins basta aplicar os meios adequados, pouco importando, no plano de ação, as interveniências dos meios julgados adequados, mas sim a produção do resultado favorável (HABERMAS, 1990, p. 67-68). Já as atividades orientadas para o entendimento apresentam três condições: 1. os fins ilocucionários não podem ser definidos independentemente dos meios linguísticos do entendimento; 2. o falante não pode visar ao fim do entendimento de modo causal, porque o sucesso ilocucionário depende do assentimento racionalmente motivado do ouvinte (para que possa haver acordo na coisa é preciso que o ouvinte acate-o voluntariamente, por meio do reconhecimento de uma “pretensão de validez criticável”. Por isso, se afirma que a cooperação é o único meio de atingir os fins ilocucionários; 3. o processo de comunicação e o resultado a ser produzido por ele não constituem, na perspectiva dos participantes, estados do mundo objetivo. Os participantes que agem no nível dos fins assumem, no mundo, a qualidade de entidades - não se veem isoladamente, mas como integrantes de uma coletividade -, mesmo diante da liberdade de escolha, um não pode atingir o outro, a não ser como objeto ou como rival. Os falantes e ouvintes assumem um enfoque performativo, no qual eles se defrontam reciprocamente como membros do mundo vital de sua comunidade linguística compartilhada intersubjetivamente. Enquanto tentam chegar a um entendimento mútuo sobre algo, os fins ilocucionários visados situam-se como algo que não pertence ao mundo 117 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas (HABERMAS, 1990, p. 69). Com isso, as características do modelo de ação comunicativa são: ser bilateral; haver complexidade do ato de fala que expressa simultaneamente um conteúdo proposicional, a oferta de uma relação interpessoal e uma intenção do falante; o modo reflexivo, os falantes integram um sistema que envolve os três conceitos de mundo; a linguagem funciona como meio de entendimento. O que não elimina a possibilidade de a ação teleológica ser mediada por atos de fala, mas, neste caso, estes atos são meios para a obtenção dos fins desejados e pretendidos, não para a busca de um entendimento na construção, conjunta, da solução ao problema. Isso porque, na ação teleológica, os participantes são oponentes, há a influência dos atos de um sobre os do outro, como forma de manipular as opiniões, como forma de conduzir o outro a agir rumo aos propósitos do falante. Já na ação de comunicação, há coordenação da ação através da semântica intencional. Enquanto na ação comunicativa, os participantes constroem um entendimento; na ação estratégica, um participante transforma o outro em objeto a ser manipulado (dá-se a coisificação do outro), vive-se uma trama de interesses, não uma busca por entendimento. Dessa forma, enquanto na ação comunicativa “a linguagem tem que servir de meio de coordenação da ação; na ação estratégica a linguagem pode servir de meio de coordenação da ação”, pois na ação estratégica a linguagem é um meio de influência mútuo (HABERMAS, 1994a, pp. 420-421). Na ação comunicativa, os participantes agem intersubjetivamente manifestando pretensões de validez, quando o que se enuncia se pretende que seja: verdadeiro; correto ou normativo vigente; e que a intenção expressa pelo falante coincide com seu pensamento. Como há a intenção de chegar a um entendimento, a pretensão de validez do falante é suscetível de críticas por parte do ouvinte, o qual também detém suas pretensões de validez ao expor sua opinião (HABERMAS, 1988a, p.144). Por fim, “o conceito de ação comunicativa pressupõe a linguagem como um meio dentro do qual tem lugar um tipo de processo de entendimento em cujo transcurso os participantes, ao relacionar-se com um mundo, apresentam-se uns frente ao outros com pretensões de validez que podem ser reconhecidas ou postas em questão” (HABERMAS, 1988a, p. 143). O que, portanto, distingue as espécies de ação social, em Habermas, não é a presença de um fim, de uma finalidade, mas, sim, as ações teleológicas, cujo cálculo egocêntrico de utilidade e dos conflitos e cooperações depende dos interesses em jogo na busca do êxito; as ações reguladas por normas, nas quais o fim pretendido é uma convivência regulada tradicional e socialmente por valores e normas; as ações dramatúrgicas, cujo objetivo são as relações consensuais entre um público e os atores; 118 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal a ação comunicativa, cujo fim é atingir o entendimento no sentido de processo cooperativo de interpretação (HABERMAS, 1988a, p. 144). Cabe ainda considerar que a comunicação voltada ao entendimento não se esgota pela interpretação, antes envolve interação coordenada entre os participantes (HABERMAS, 1988a, p. 146). A distinção entre ação estratégica e ação comunicativa promove alteração na lógica do agir em sociedade, o que não implica ignorar a presença de poder. Sobre o tema, lembramos que para Weber poder é “a probabilidade de impor sua própria vontade, dentro de uma relação social, ainda que contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1996, p. 43). Assim, poder é a posição de alguém “impor sua vontade numa determinada situação”; dominação é a “probabilidade de encontrar obediência ao comando de determinado conteúdo entre determinadas pessoas”, é a probabilidade de ter seu comando obedecido (WEBER, 1996, p. 43). Essa visão de poder tem que ser revisitada se a perspectiva for a de considerar mudança na lógica de realização de justiça, ou seja, se se quer pensar alternativas à justiça punitiva. Diante disso, o desafio é revisitar a concepção de poder, como fez Paulo Freire em relação à educação. Este educador propôs a educação libertadora, democrática, em substituição à educação bancária. A nossa proposta é, em relação ao direito, com a implementação da lógica conciliativa experenciada a partir da criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099, de 26/09/95), analisar as reformas do Código de Processo Civil pela Lei 8.952, de 14/12/94, estabelecendo as audiências preliminares, a partir da Lei 9.099/95 que traz a transação penal; por fim, discutir a ênfase que vem tendo a justiça restaurativa à luz da contribuição freireana. 4. Paulo Freire e ação dialógica A história da humanidade muitas vezes tende a ser tratada, vista, pensada como um catálogo de conquistas. Conquistas de territórios, conquistas de espaços, culturais. Catálogo de invasões, violências, guerras, poder. Quando o tema é educação, não é diferente, principalmente se a referência central recair sobre os processos de colonização. As vivências históricas da humanidade não podem deixar de considerar a questão educacional. Colonialismo, catequização, as entradas e bandeiras, as cruzadas são a evidência da postura imperialista do educador como 119 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas detentor do poder de transmitir conhecimento. Ao catequizador, o poder de colonizar; ao catequizado, o poder de se convencer e perder sua identidade cultural. É o que Paulo Freire chama de “teoria da ação antidialógica” da educação (1970, p. 78 e ss.). Dessas reflexões, tomamos o pensamento de Paulo Freire como fundamental para um rechaçamento da visão do educador colonialista, do catequizador (1970, p. 34 e ss.). A quebra da lógica do educar como transmissão de conhecimento tem repercussões não só na educação, mas na visão de mundo que está em vários outros domínios da vida social. Essa mudança atinge diversos lugares, instituições sociais. Limitamos nossas reflexões ao Judiciário, estabelecendo uma analogia entre a proposta de Paulo Freire, de quebra da lógica educacional tradicional, com a quebra da lógica do Judiciário como poder competente para ditar o direito, como requer a conciliação e a justiça restaurativa. Para isso, recorremos às seguintes ideias: “ensinar não é transferir conhecimento” (FREIRE, 1996, p. 52); “a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação ‘bancária’” (FREIRE, 1970, p. 39); e “o mito de que a educação é formar, deve ser desfeito” (BITTAR, 2007, p. 313-334). A educação é diálogo e, para Freire (1990, p.14), “dialogar não é só dizer ‘Bom dia, como vai?’ O diálogo pertence à natureza do ser humano enquanto ser de comunicação. O diálogo sela o ato de aprender, que nunca é individual, embora tenha uma dimensão individual”. É aqui que a aproximação entre as ideias freireanas e a justiça restaurativa ganha corpo e precisa ser posta com clareza para que não se confunda o diálogo com uma técnica ou uma tática de abordagem de um problema. Para o conceito de “diálogo”, Freire é muito contundente. Diz ele: (...) o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza dos seres humanos. É parte de nosso progresso histórico do caminho para nos tornarmos seres humanos. Está claro este pensamento? Isto é, o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humano se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem (1990, p.15). Mas, quando compreendemos melhor a proposta de educação dialógica como educação libertadora de Paulo Freire, percebemos que sua contribuição pode ser transposta para outras áreas. Ao lermos nesse autor que o processo de opressão, gerador de desumanização, para ser revertido, necessita de uma pedagogia construída junto com o oprimido, não de uma pedagogia daquele que sabe como reagir à opressão e, 120 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal por isso, vai ensinar a forma de reagir, entendemos o lugar da prática do diálogo que extrapola a superficialidade da troca de turnos em uma conversação e o modo pelo qual a justiça restaurativa pode materializar-se no campo dos chamados direitos humanos. O processo de rechaçamento à opressão, antes, requer, inclusive, a superação do “medo da liberdade”. O que não se obtém com imposição de uma visão de mundo sobre outra, mas por meio da construção de uma visão de mundo resultante da relação educador-educando posta pelas novas práticas interativas (FREIRE, 1970, p. 17-18). Trata-se aqui, portanto, da dialogicidade como prática da liberdade (FREIRE, 1970, p. 44 e ss.). Tal perspectiva encontrase em sintonia com as modernas proposições do pensador russo Mikhail Bakhtin, um dos principais expoentes da teoria diálogica do discurso, e com a teoria do agir comunicativo de Harbermas, sobre a qual já falamos na seção anterior. A questão é que quando o educador se imagina detentor do conhecimento, ele reifica o educando. Ao enxergar o outro como objeto, como depositário de informação, elimina a possibilidade de construção conjunta, de co-produção do saber, portanto, do diálogo educativo para ambas as partes. Nesta perspectiva, não há educação libertária, mas desumanização. O que nos chama a atenção é que a educação dialógica não tem relação com perda do poder de educar, da responsabilidade do educador na condução do aprendizado. O que se reconhece é que: “não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros” (FREIRE, 1970, p. 58), por isso “o educador não deve abrir mão do desenvolvimento de seu trabalho”, bem como não faz sentido inventar o mito de que os educadores estão sendo desvalorizados porque agora são dialógicos (ensinar inexiste sem aprender) e não mais donos do saber a ser transmitido (FREIRE, 1996, p. 4-5). O educador é um profissional que mantém uma relação clara, afetiva e engajada com os demais participantes do processo. O educador dialógico é democrático, produtor de liberdade, construtor junto como discente de conhecimento; é uma espécie de instrumento auxiliar no aprendizado, e isso não reduz a sua importância, a sua dignidade e a sua responsabilidade junto ao educando (FREIRE, 1996). Afinal, o educador não deixa de ser um “político militante” cuja tarefa requer “compromisso e engajamento em favor da superação das injustiças sociais” (FREIRE, 1996, p. 54). Conectando o tema ao direito, temos a ideia de que “educar exige tomada consciente de decisão” (FREIRE, 1996, p. 68). Neste debate, Freire chama a atenção para a presença de posturas autoritárias, tanto 121 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas nos defensores da postura autoritária quanto nos defensores da postura dialógica. Romper essa tendência ao autoritarismo é um desafio ao próprio educador. Ser democrático, disponível ao diálogo, não é abandonar as responsabilidades de educador, ainda que seja abandonar a ideia de que “nós sabemos o que os estudantes devem saber” (FREIRE, 1992, p. 60). Atuar como construtor, permitindo-se partir da leitura do mundo dos educandos (FREIRE, 1992, p. 67) possibilita a cooperação e o estímulo no aprendizado. Essa lógica no direito significa pensar o Judiciário, não como dono da decisão, mas como construtor da decisão junto com os interessados. Isso significa a colocar, no centro da questão, as diferentes visões de mundo e a construir uma nova visão advinda das experiências interativas concretas. Essa inclusão de uma nova forma de entender a resolução de conflitos não implica retirar do Judiciário o poder de decisão, mas sim a “juizite”, a utilização do poder de decisão de forma autoritária. 5. Visão substantiva do direito e justiça restaurativa A dicotomia da justiça procedimental versos justiça substantiva é trabalhada por Cláudio Souto e Solange Souto (2003), de maneira que o procedimento da pesquisa empírica informa dados à visão substantiva do direito. A pergunta sobre o que faz a vida em sociedade ser possível é posta no debate considerando que o fenômeno social é fato exteriorizado na comunicação entre seres humanos (SOUTO, 1971, p. 5-7). O sentido social do ser humano perpassa pela padronização das regras produzidas pelo processo de socialização (controle social), sem que com isso elimine a personalidade do indivíduo, afinal “o indivíduo não é de todo passivo, nem existe para a sociedade uma obediência absoluta de seus membros ... assim como existem na família resistências e tensões, existem elas também na sociedade global. Em ambos os sistemas há um hiato na comunicação de grupos” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 28-30). Portanto, devido à continuidade nos comportamentos sociais, produzimos controles sociais, do que resulta admitir que “o social é sempre mudança, mesmo quando é controle”. Afinal, ainda que o social não se confunda com as mentes individuais, “não se pode negar que o social resulte de polos mentais em interação. Ora, assim sendo, e desde que mentes individuais variam continuamente, toda interação social implica mutação, mudança social, que pode ser mais ou menos acentuada” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 37). Uma vez estabelecida a relação entre o social e as mentes, Souto e Souto afirmam que “o direito como fato social não se confunde com a 122 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal forma legal de controle social, formas estas cujos conteúdos poderão ser ou não jurídicos” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 38). Para isso, os autores apresentam a visão substantiva do direito, ou seja, a visão de que direito detém um conteúdo social passível de identificação racional por pesquisa empírica. A ideia do bem e do mal são verificáveis, bastando para tanto a realização de pesquisa empírica voltada à verificação dos traços afetivo, ideativo e volitivo da atividade biopsíquica dos seres humanos, ou seja, do processo mental humano, a saber: os sentimentos, as ideias e as vontades (composto SIV). O social é, então, a padronização do composto SIV, o que se dá por meio da convivência contínua (temporalidade) dentre os polos mentais. O traço S (sentimento), do mental humano é identificado pela agradabilidade ou desagradabilidade, pelo sentimento de dever ser e de não dever ser de um comportamento. Assim, quanto mais agradabilidade maior será a tendência à convivência pacífica. O traço I (ideia) é regido pelo conteúdo ideacional, pelas ideias de semelhança e dessemelhança resultantes do convívio em sociedade. O traço V (vontade) implica o querer e não querer socialmente produzido. Assim, o interSIV é o objeto da sociologia do direito, que se ocupa do controle social, do direito da sociedade. Esses traços não são separáveis, esta separação é realizada por abstração. Cada traço está plenamente ligado ao outro, o que leva os autores a afirmarem que o controle social energiza socialmente a força mental e a força física presentes na vida social (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 114). A partir dos estudos desses traços, a sociologia seria a ciência dedicada à pesquisa sobre o composto SIV que tem por fórmula: quanto maior I de semelhança e S de agradabilidade, entre os polos SIV, menor a distância exteriorizada (dada a conhecer). Quanto aos processos sociais de aproximação (como a cooperação) e de afastamento (como o conflito), os autores estabelecem os seguintes postulados: 1º) se prepondera a ideia de semelhança sobre a de dessemelhança, o sistema de interação social está equilibrado; 2º) equilíbrio permanente do sistema de interação social resulta num processo social associativo; 3º) quanto maior a semelhança preponderante entre os polos sóciointeragentes, maior o equilíbrio do sistema de interação social; 4º) quanto mais equilíbrio interSIV, maior controle social; 5º) quanto menor a distância interSIV, menos energia será necessária para a receptividade da comunicação e para o controle social; 123 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas 6º) quanto mais socialização, mais equilíbrio no sistema social; 7º) quanto maior a dessemelhança interSIV, maior a tendência ao desequilíbrio do sistema social; 8º) quanto maior o padrão de I (ideias), maior equilíbrio interSIV. Com esses pressupostos, Cláudio Souto e Solange Souto têm por direito “a pauta de conduta social que esteja em consonância com o sentimento humano universal de justiça – algo de intrinsecamente justo, pois - e com dados de ciência empírica – algo necessariamente racional, portanto, e de racionalidade comprovável” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 227). Com isso, distinguem-se as regras morais das regras de equidade das regras jurídicas. É que essas regras, mesmo que signifiquem pautas de conduta em consonância com o sentimento humano do dever ser (sentimento de justiça), diferem porque “as regras jurídicas são aquelas em consonância com dados do conhecimento científico-empírico, as morais são as em consonância com dados de conhecimento metacientífico (não empiricamente comprovável), ao passo que a equidade seria a pauta de conduta em consonância com dados de conhecimento positivo concreto do caso singular ais são as em consonância com dados de conhecimento metacientífico” (SOUTO, 2003, p. 221-222). Souto e Souto não reduzem a ética ao dever ser, afinal o sentimento do dever ser (sentimento de agradabilidade diante do que se acha que deve ser) expressa o que é próprio a todo ser humano, abstraídas suas ideias. O sentimento de dever ser não se confunde com a concepção individual de dever ser. Com isso, um indivíduo pode considerar que determinada norma jurídica não é um “dever ser” e agir contrário ao padrão (ao conteúdo normativo de dever ser), afinal “todos têm liberdade humana de escolha entre padrões e suas consequências” (SOUTO, 2003, p. 223). Com essa diferenciação, Souto e Souto afirmam que o “uso linguístico particular dos juristas que chamam direito tudo que for conteúdo normativo de formas de coercibilidade estatal – desconhecendo eles como ‘direito positivo’ o que não for tal conteúdo – não é igual ao uso linguístico comum da sociedade” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 225). Afinal, o sentimento de dever ser diz respeito à normalidade do sentimento, isto é, ao sentimento do dever ser que comumente se observa nos seres humanos (SOUTO, 2003, p. 226; SOUTO, 2009, p. 32). Mas, é perfeitamente possível a alteração desse sentimento no psiquismo doentio” (SOUTO, 2003, p. 227). Assim é porque o sentimento de dever ser do ser humano normal contém o impulso de conservação do indivíduo e da espécie, que é o postulado ético básico. 124 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal A proposta de uma visão substantiva do direito corrobora uma compreensão da justiça restaurativa na medida em que o direito deixa de ser reduzido ao direito do estado, à legislação e às decisões judiciais. Há um espaço para a visão de que legislação e decisão judicial podem não ser direito substantivo. A questão de como essa visão colabora para uma compreensão da justiça restaurativa é que quanto maior a participação dos polos interSIV do estabelecimento da solução do conflito, maior será a probabilidade de esses polos interSIV desenvolverem um convívio social sem conflito, porquanto viabilizados o sentimento de agradabilidade, a ideia de justiça e a vontade de agir em consonância com o outro interSIV. Não há que se pensar uma modelo pré-estabelecido para a condução dessas audiências. Mas, a teoria sociológica do direito de Cláudio Souto e Solange Souto trazem contribuições à reflexão da justiça restaurativa justamente por explorarem a dimensão SIV, a individualidade e a sociabilidade do convívio social. A não redução do direito ao Estado, como defendem os autores (SOUTO, 1971, p. 169; SOUTO e SOUTO e SOUTO, 2003, p. 73), é um elemento fundamental para a justiça restaurativa, pois a abertura para o que será construído como “direito entre os envolvidos” não se esgota nos “termos da lei”. Por mais que a legislação não possa vir a ser plenamente ignorada no resultado dos círculos restaurativos. Se, por hipótese os componentes do círculo decidirem matar um filho, ou vender um órgão, hipóteses que se apresentam absurdas e não constituem direito, pois não em consonância com o sentimento universal de dever ser de qualquer grupo humano. Como propõe a teoria substantiva do direito. 6. Poder Judiciário, justiça restaurativa e decisão democrática: concluindo Evidenciada a insuficiência da concepção de justiça imposta, resultante da aplicação (interpretação e decisão) sobre quem está com o direito, pautada pela legislação e pela jurisprudência, sem esquecer os relatos fáticos e as provas constitutivas de processos judiciais, a conciliação é apontada como lógica substitutiva, seja na forma de diálogo em audiências, seja na forma de transação penal, de pena alternativa, de justiça restaurativa. A distinção entre a forma de fazer justiça punindo o infrator e a justiça restaurativa é que: a simples punição não considera os fatores emocionais e sociais, e que é fundamental, para as pessoas afetadas pelo crime, restaurar o trauma emocional - os sentimentos e relacionamentos positivos, o que pode ser alcançado através da justiça restaurativa, que objetiva mais reduzir o impacto dos crimes sobre os cidadãos do que diminuir a criminalidade. 125 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas Sustentam que justiça restaurativa é capaz de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento e é o ponto chave para a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável (GOMES PINTO, 2005, p. 22). Em seu texto, Renato Sócrates Gomes Pinto apresenta distinções de ordem axiológica, procedimental e quanto ao resultado. Estas afirmações feitas por Gomes Pinto segue os Princípios Básicos sobre Justiça Restaurativa presentes na Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 13 de Agosto de 2002 (GOMES PINTO, 2005, p. 24-27). Para tratar da justiça restaurativa e sua consequência na lógica punitiva, Renato Campos Pinto de Vitto (2005, p. 42-43) apresenta os seguintes modelos de pena: o modelo dissuasório, voltado à “pretensão punitiva do Estado”; o modelo ressocializador, que foca a função reabilitadora da pena; e o modelo integrador, pautado pela ideia de conciliar interesses e expectativas dos envolvidos, buscando a pacificação da relação social que se tornou conflituosa. O modelo integrador é o que exigirá maior desafio ao pensamento jurídico penal, principalmente porque a justiça restaurativa, ao pretender intervir direta e positivamente em todos os envolvidos no fenômeno criminal, toca “a origem e causa daquele conflito, e a partir daí possibilita o amadurecimento pessoal do infrator, redução dos danos aproveitados pela vítima e comunidade ... Porém, o êxito da fórmula depende de seu correto aparelhamento” (DE VITTO, 2005, p. 49). Já Eduardo Rezende Melo apresenta os desafios de se implementar a justiça restaurativa, partindo da visão filosófica de Kant, contrapondo-a à ideia de justiça retributiva, para a qual, a punição deve ser imposta para que se tenha retribuída a condição de paz social. Essa visão de justiça promove a cultura da vingança, o que impede a realização da justiça restaurativa. Seguindo essa ideia, Rezende de Melo (2005, p. 57) escreve que “não apenas a justiça, o próprio direito haveria de ser repensado” (REZENDE MELO, 2005, p. 57). O maior desafio está em que a justiça não está lá, já pronta, à espera para ser usada, mas que requer responsabilidade e comprometimento de todos os envolvidos. Sobre isso, este autor, ainda, diz que “se em jogo está um outro modo de reflexão da justiça, que passe da coerção ao juízo sobre suas práticas, deixando de ser a afirmação de um tipo determinado de valores supostamente transcendente à sociedade, a noção de justiça social não pode deixar de estar presente a um modelo alternativo ao retributivo” (REZENDE MELO, 2005, p. 57). Assim, a questão da justiça tem estreita ligação com a educação, principalmente se a proposta é sair da lógica da “regressão à violência física primária” (REZENDE MELO, 2005, p. 71). 126 Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal Com a justiça restaurativa, o papel do Judiciário deixa de ser o de impor sua decisão e passa a ser o de mediar os conflitos. Afasta-se da lógica do “ditar o direito” e constrói-se a lógica do fazer junto. Evita-se a busca pela justiça a ser imposta, pela justiça a ser posta, porque é construída pelas partes. Evidentemente, os críticos de leitura superficial já gritam: “é o fim do Estado de Direito, vamos voltar à Idade Média”. Acontece que a justiça restaurativa não substitui a justiça formal, tradicional, ela aparece como complementar, é o que se pode ler já na apresentação do livro Justiça Restaurativa, organizado e publicado pelo Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD: é inegável que eles constituem um instrumento de enorme importância para o fortalecimento e melhoria da distribuição de Justiça. Complementando o papel das instituições do sistema formal de Justiça, os programas e sistemas alternativos podem representar um efetivo ganho qualitativo na solução e administração de conflitos, pelo que devem ser objeto de criterioso monitoramento e acurada avaliação, a fim de que as boas práticas sejam fomentadas e difundidas. A aplicação de tal modalidade de intervenção no país ainda é, de uma forma geral, incipiente, como atesta o relatório de pesquisa “Acesso à Justiça por sistemas alternativos de administração de conflitos”. Notese, porém, que é no campo dos conflitos de natureza penal e infracional que nos ressentimos sobremaneira da ausência de uma intervenção diferenciada nos litígios (SLAKMON, Catherine; De VITOO, Renato Campos Pinto e GOMES PINTO, Renato Sócrates. In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, 2005, p. 11. Disponível em: http://www.tj.sp.gov. br/Download/FDE/6%20-%20Textos%20Complementares/Livro%20 Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf). A expectativa do espaço que a justiça restaurativa vem tendo aumenta por constar no III Programa Nacional de Direitos Humanos, na parte referente à Segurança Pública, a questão do acesso à Justiça e Combate à Violência. Sobre isso, o referido documento diz: também como diretriz, o programa propõe profunda reforma da Lei de Execução Penal, que introduza garantias fundamentais e novos regramentos para superar as práticas abusivas, hoje comuns. E trata as penas privativas de liberdade como última alternativa, propondo a redução da demanda por encarceramento e estimulando novas formas de tratamento dos conflitos, como as sugeridas pelo mecanismo da Justiça Restaurativa (Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: SEDH/PR, 2010, p. 105). 127 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas Um último dado relevante para a compreensão do tema é que o relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o programa “casas de justiça e cidadania” esclarece, logo na primeira frase, que: o Programa “Casas de Justiça e Cidadania”, aprovado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), teve sua implantação recomendada a todos os Tribunais do País pela Recomendação nº 26, de 16 de dezembro de 2009, para o desenvolvimento de ações destinadas à efetiva participação do cidadão e de sua comunidade na solução de seus problemas e na sua aproximação com o Poder Judiciário (RICHA, Morgana; TAMBURINI, Paulo e HÉLIO, Jorge. Relatório Programa “Casas de Justiça e Cidadania. Brasília: CNJ, 2010, p. 3). Um processo de revisão do papel do Judiciário com “decididor” dos conflitos sociais, atribuindo-lhe o lugar de restaurador do convívio pacífico, ou mesmo mediador de conflitos contém a sensação de perda de poder. Sensação semelhante a descrita por Paulo Freire quando fala da relação de poder do professor em relação aos discentes. Isso, também, pode ser observado em relação ao monopólio estatal da violência, quando ao Estado, através da legislação e da decisão judicial, cabe o poder de promover a paz social. Acontece que, assim como considerar o discente como coautor do aprendizado não retira o poder (responsabilidade e compromisso) do professor com sua atividade, com o curso ministrado e seu aprendizado, assim também considerar a justiça restaurativa, e demais formas de participação dos envolvidos na produção da decisão do caso jurídico, tão pouco, retira do Estado a competência para impedir a volta à vingança privada, à justiça com as próprias mãos. Incluir as partes como construtoras da decisão judicial, não retira do Judiciário sua responsabilidade e compromisso com a sociedade, com a decisão e as consequências dela no cotidiano dos envolvidos, portanto da comunidade. Nosso propósito foi apenas evidenciar que não faltam alternativas para uma compreensão sociológica do direito da justiça restaurativa de maneira que ela seja compreendida como espaço de amplificação da eficácia dos direitos humanos. Ou seja, da dignidade humana, e da adoção de uma perspectiva dialógica para a análise dos discursos que materializam as relações humanas. Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal Referências BITTAR, Eduardo (2007). Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura, democracia, autonomia e ensino jurídico. In: Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, pp. 313-334. DE VITTO, Renato Campos Pinto (2005). Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos. In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em:http:// www.tj.sp.gov.br/Download/FDE/6%20%20Textos%20Complementares/Livro%20 Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf) – está faltando a indicação da data em que o endereço eletrônico foi visitado. FREIRE, Paulo (1970). Pedagogia do oprimido. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FREIRE, Paulo & SHOR, Ira (1990). Medo e ousadia – o cotidiano do professor. Rio da Janeiro: Paz e Terra. FREIRE, Paulo (1992). Pedagogia da esperança. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FREIRE, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FREIRE, Paulo (1997). Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho dágua. GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/ Download/FDE/6%20-%20Textos%20Complementares/Livro%20Justi%C3%A7a%20 Restaurativa.pdf) – está faltando a indicação da data em que o endereço eletrônico foi visitado. HABERMAS, Jürgen (1988a). Teoria de la acción comunicativa: racionalidad dela acción y racionalización social. Tomo I (Trad. Manuel Jimánez Redondo). Madri: Taurus. HABERMAS, Jürgen (1988b). Teoria de la acción Comunicativa: crítica de la razón funcionalista. Tomo II. (Trad. Manuel Jimánez Redondo). Madri: Taurus. HABERMAS, Jürgen (1989). Consciência moral e agir comunicativo (Trad. Guido A. de Almeida). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. HABERMAS, Jürgen (1990). Pensamento pós-metafísico, estudos filosóficos. (Trad. Flávio Beno Siebeneichler). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. MORIN, Edgar (2009). Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS, Francisco Menezes e SILVA, Juremir Machado da (org.). Para navegar no século XXI, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000. Disponível em: http://www.ouviroevento.pro.br/leiturassugeridas/EM_ Da_necessidade.htm. RAJAGOPALAN, Kanavillil (2004). A linguística que nos faz falhar. Investigação crítica. São Paulo: Parábolas. REZENDE MELO, Eduardo (2005). Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais. Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/Download/FDE/6%20-%20Textos%20 Complementares/Livro%20Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf) 128 129 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas SOUTO, Cláudio. Introdução ao direito como ciência social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do direito. Uma visão substantiva. Porto Alegre: SAFE, 2003. SOUTO, Claudio. Natureza, mente e direito. Para além do usual acadêmico. Coleção Faculdade de Direito do Recife. Recife: Faculdade de Direito do Recife, 2009 STAMFORD DA SILVA, Artur e RAMOS, Chiara (2003). Conciliação judicial e ação comunicativa: acordo judicial como negociação versus consenso. Anuário da PósGraduação em Direito. Recife: PPGD-UFPE, no. 13, p. 75-109. STAMFORD DA SILVA, Artur, RAMOS, Chiara, BRUM, Lilian e (2009). Conciliação judicial em teoria e na prática. Pesquisa etnometodológica. Advocatus, Recife: OAB-PE, N° 2, p. 64-70, Jul. WEBER, Max (1996). Economia y sociedade. México: Fondo de Cultura Económica. 130 Marcelo L. Pelizzoli Círculos de Diálogo: base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. PELIZZOLI1 Introdução Neste texto, discutimos fundamentos teóricos e orientações pragmáticas dos Círculos de Diálogo como filosofia e como ferramenta de realização da justiça e dos direitos humanos, tendo como foco os seguintes conceitos interligados: Círculo, Encontro, Abertura, Diálogo (Escuta/Atenção e Pergunta), Sistema, Interdependência (inter-humano), Pertença (inclusão), Alteridade, Valores, Suporte, Justiça e Restauração. Discutiremos, também, conceitos correlatos que circunscrevem os significados principais desta temática. Nossa pesquisa é fruto da relevância crescente da necessidade de estratégias psicossociais para a resolutividade e efetividade da Justiça, tais como a mediação de conflitos e o grande guarda-chuva chamado de Práticas Restaurativas. Sobre o fundamento dos Círculos de Diálogo Nós podemos liberar o potencial de nossa vontade coletiva para criar o mundo que desejamos. Nós somos aqueles por quem estávamos esperando.2 Os círculos de diálogo, ou os círculos restaurativos, que mencionaremos aqui são modelados a partir da Justiça Restaurativa no foco de Pranis & Boyes (2011) e de Zehr (2008), e a Real Justice de Connell & Wachtel (1999), com os matizes que temos dado a partir das teorias e contextos com os quais trabalhamos (Pelizzoli, 2008, 2010 e 2012). Cabe dizer que os modelos vigentes em tais autores e seus respectivos países não foram feitos para serem imitados à risca, mas precisam adaptar-se às culturas e aos facilitadores, bem como ao contexto/tempo em que estão sendo vividos. Os círculos têm regras básicas claras, contudo, têm alguma flexibilidade; não se pode prever o que ocorrerá como tal no ambiente, antes (pré-círculo), durante e depois do círculo (pós-círculo). 1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Professor nos mestrados PPG Direitos Humanos, PPG Saúde Coletiva, PPG Filosofia, da UFPE. www.curadores.com.br. Contato: [email protected]. 2 Anciãos Hopi, apud Boyes & Pranis, p. 26. 131 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Há vários tipos de círculo, como podemos ver em Pranis (2011) e Boyes & Pranis (2011), sendo que o termo mais conhecido no âmbito crescente da Justiça Restaurativa é “Círculos Restaurativos”. Estes são momentos em que ocorre o que alguns chamariam, precipitadamente, de mediação judicial. Pranis & Boyes têm usado largamente o termo “Práticas Circulares” para ampliar o alcance, visto que os círculos não são somente para serem usados no âmbito de uma justiça restaurativa criminal, mas como as mais diversas práticas restaurativas, tais como: reintegração, perdas, questões de sexualidade, cura, conflitos escolares e outros. O “Guia de Práticas Circulares” das autoras traz como subtítulo “o uso de círculos na construção da paz para desenvolver a inteligência emocional”. Muitas questões importantes e percepções profundas estão por trás destas palavras, desde que se entenda paz como capacidade de lidar com a vida, com a alteridade e os conflitos na pragmática da interação social cotidiana, bem como, entenda-se emocional como dimensão profunda e base para o “ser no mundo” do sujeito e, portanto, a qualidade de suas relações e (des)encontros consigo, com os outros e com o ambiente. A efetividade e vantagem da visão das autoras em relação às dimensões convencionais (igualmente importantes) na questão da justiça (ou também Justiça) é que incorporam mais tecnologias psicossociais e possibilidades de uso circular haurindo a força sistêmica - as quais vêm primeiramente de tradições indígenas. Mesmo os postulados de Howard Zehr (2008), que encontram eco nas visões cristãs de comunhão, reparação, perdão e outros, têm sua origem primeira no modelo de resolução de conflitos de comunidades indígenas australianas. Em nosso caso, usamos o termo Círculos de Diálogo, mas também “práticas circulares ou sistêmicas”, para dar a entender a amplitude de possibilidades sociais de tais práticas. Observe-se que elas NÃO podem ser tomadas apenas como uma ferramenta ou um método, e uma moda na área social e da Justiça. Igualmente, não se pode “entender” o que ocorre nas práticas circulares sem alguma experiência delas, tendo sentido o tipo de força/energia e restauração que ali circula - na forma de sentimentos e motivações diversas, reconexões de sociabilidade, encontro reequilibrante entre dor e afeto, potencial de cura de relações, traumas, suporte humano e elementos afins. É fundamental compreender que no momento em que um paradigma novo está se instaurando, a tendência é moldá-lo nos escaninhos conhecidos e familiares, os quais não contemplam ainda uma dialética aberta ao novo3. Por conseguinte, a Justiça Restaurativa não deve ser considerada como um novo ramo nos moldes da justiça convencional; 3 Cf. T. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 1979. 132 Marcelo L. Pelizzoli por outro lado, não deve ser considerada como algo que está fora dos ideais de justiça colocados nos cursos de Direito e no Sistema Legal usado até o momento. Trata-se muito mais de abrir o leque de possibilidades, mudando o foco com que se olham os danos e as reparações do mesmo, saindo do engessamento em que o sistema legal e o direito positivo têm colocado os operadores do direito e os sujeitos envolvidos no processo (Pelizzoli, 2008 e 2012; Zehr, 2008). Do mesmo modo, isto vale para os círculos restaurativos ou de diálogo, que não “inventam a roda”, mas a fazem girar com uma capacidade de excelência bem maior do que o sistema legal vem utilizando, institucionalmente enferrujado, maquínico e que perdeu seu sentido maior e sua concretude. Quando se perde o sentido e a excelência da justiça, da restauração inter-humana, é preciso reinventá-la; o primeiro passo para tal é levantar os obstáculos sutis e ocultos que limitam ou impedem a realização do escopo visado, a ideia e a prática da justiça. Antes de adentrar na discussão sobre a justiça, precisamos apontar aqui do que se trata, brevemente, com este novo paradigma crescente e envolvente que são as práticas restaurativas, ou a Justiça Restaurativa, na visão de seu mais conhecido nome, Howard Zehr4. A lente restaurativa da justiça a partir de Zehr Segundo Zehr (2008), a lente ou filosofia restaurativa tem cinco princípios-chave ou ações: 1.focaliza o dano e as consequentes necessidades das vítimas, assim como das comunidades e dos ofensores; 2.ocupa-se das obrigações que resultam desses danos (as obrigações dos ofensores, assim como da comunidade e da sociedade); 3.usa processos inclusivos e colaborativos; 4.envolve aqueles com uma participação legítima na situação, incluindo vítimas, ofensores, membros da comunidade e a sociedade; 5.busca reparar os erros. Segundo ele, nós podemos diagramar a justiça restaurativa como uma roda. No centro está o foco central da justiça restaurativa: buscar reparar os erros e danos. Cada raio representa um dos quatro outros elementos essenciais destacados acima: focalizar os danos e necessidades, ocuparse das obrigações, envolver os participantes (vítimas, ofensores, e comunidades de cuidado), e, ao máximo possível, usar um processo 4 Os Círculos Restaurativos e, também, a sua nuance Círculos da Paz na versão de Pranis (2011) são usados amplamente em países como Austrália, EUA, Canadá e começaram a ganhar o mundo nos últimos anos. No Brasil, são usados no judiciário a partir dos anos 2000, sendo que a primeira Central de Práticas Restaurativas foi oficializada apenas em 2009, pelo TJ do RS. 133 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos inclusivo e colaborativo. Isso precisa ser feito, obviamente, numa atitude de respeito por todos os envolvidos (Zehr, 2008). Para ele, a justiça restaurativa é um processo para envolver, ao máximo possível, aqueles que têm um papel num evento ofensivo específico e para, coletivamente, identificar e cuidar dos danos, necessidades e obrigações decorrentes, de modo a curar e corrigir o mais possível o malfeito (idem). No excelente manual Justiça Restaurativa: Uma visão para a cura e a mudança, Susan Sharpe (apud Zehr, 2008) resumiu os objetivos e tarefas de justiça restaurativa em três frases, apontando que os programas de justiça restaurativa visam: deixar as decisões chaves nas mãos daqueles mais afetados pelos crimes; tornar a justiça mais curativa e, idealmente, mais transformadora; reduzir a probabilidade de futuras reincidências. Não obstante, alcançar estas metas requer que: as vítimas estejam envolvidas no processo e saiam satisfeitas; os ofensores compreendam como suas ações afetaram outras pessoas e assumam responsabilidade por essas ações; os resultados ajudem a reparar os danos causados e considerem as razões da ocorrência (projetos específicos foram desenhados para as necessidades das vítimas e dos ofensores); tanto a vítima quanto o ofensor ganham um senso de “pertencimento” e ambos são reintegrados à comunidade. Enfim, a justiça restaurativa sintetiza-se também como um conjunto de questões que nós precisamos fazer quando um malfeito ou erro ocorre. Essas perguntas-guia são como que a essência da justiça restaurativa neste modelo. Quais sejam: 1.Quem foi afetado? 2.Quais são as suas necessidades? 3.Que obrigações foram geradas? 4.Quem tem participação nessa situação? E, por fim, 5. qual é o processo apropriado para envolver os participantes num esforço de reparação? (Zehr, 2008). 134 Marcelo L. Pelizzoli Neste simples e resumido olhar sobre o paradigma restaurativo, ou de justiça real, já podemos ver o quanto o sistema legal, que chamamos de Justiça, está longe de realizar seu escopo último devido a vários fatores5. Interessa-nos especificamente agora tocar em alguns destes pontos dentro da ligação entre a ideia de justiça e a ação política. Limites da Justiça e da Política O desconhecimento das ferramentas psicossociais – tanto quanto de valores humanos fundamentais - para a realização dos escopos últimos da ideia de Justiça, e sua correlata, a de Direitos Humanos, traz grandes prejuízos de ordem prática para os usuários destas áreas, bem como para as instituições que aí atuam. E, em geral, a meta última dos operadores de justiça – e de promulgadores e defensores de Direitos - é que os casos de violência e injustiça sejam julgados, e aqueles que praticaram atos deste tipo sejam condenados, dentro do modelo convencional: retributivo, punitivo e vingativo. Neste modelo, o delito ou crime fere tout court a Lei e o Estado, e trata-se de retribuir o malfeito/dano na forma das penalidades legais convencionais, sendo o modelo prisional o grande arauto pretensamente protetivo e corretivo. Sem dúvida que a realização desta meta, chamada de Justiça institucionalizada, tem sido importante. E em geral, numa sociedade que não é nivelada na dimensão pragmática ou material e de condições de base, mas sim excludente, sabe-se que o poder e o dinheiro, bem como o descaso e descompromisso ético, minam constantemente a realização do ideal de Justiça, de dar (retribuir) a cada um o que lhe cabe no âmbito da manutenção da Norma, da Ordem social, do Estado de Direito, do corpus legal. No Brasil, temos exemplos amplos de como a Justiça, frequentemente, é prostituída e pervertida por dinheiro, poder, ou mais genericamente pelo ego (egoísmo). Portanto, a luta pela realização da justiça em seus termos, colocados pela normatização legal, é de fato uma luta de primeira grandeza, devido principalmente pelo histórico de injustiças infligidas eminentemente contra as populações vulneráveis, como se diz no âmbito da Bioética, ou dos excluídos. Grandes nomes se destacaram mundialmente, e muitos deles como prêmios Nobel, na luta pela realização de direitos básicos, contra a opressão, contra o coronelismo, exploração de crianças, trabalho escravo ou semiescravo e questões de ordem racial. Esta luta ainda está na ordem do dia e se destaca surpreendentemente como a mais básica em tempos de evolução tecnológica e econômica monstruosa. 5 “Os procedimentos disciplinares no Sistema de Justiça tradicional fornecem pouca ou nenhuma oportunidade de reintegração para fazer correções, desculpar-se, reparar os danos ou libertar-se do rótulo de infrator. Eles excluem do processo disciplinar àqueles mais afetados pela infæração: os infratores, as vítimas e respectivas comunidades de apoio”. Ted Wachtel, Terry O´Connell, Ben Wachtel (2010). 135 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Muitos militantes dos direitos humanos e operadores da justiça, ou mesmo políticos em geral de esquerda, ou acadêmicos de uma tradição mais crítica tal como as de influência marxista, colocam a realização do escopo de direitos conectada diretamente a uma mudança social estrutural, de viés eminentemente de disputa política e de poder (governo), com um novo papel socializante do Estado. Trata-se de uma justa causa em meio ao recrudescimento do capitalismo tardio, chamado em muitos casos de “selvagem”, dilapidador, sendo que esta entidade chamada “capitalismo” acaba sendo a causa/inimigo número um a ser atacado. Não obstante, sabe-se que tal inimigo está incrustado inclusive no modo de vida dos que lutam contra o mesmo, contradição necessária e normal a assumir em busca de mudanças estruturais mais profundas. Por outro lado, quando alguns militantes ou críticos de base social, marxista ou não, encontram propostas que operam com ações psicossociais, tais como as que postulam o nível do diálogo, humanização, resgate de intersubjetividade, mudanças interpessoais e similares, tendem a encarar tais ações como menores, ou ainda, como subjetivas, ou mesmo espirituais, ou “apenas psicológicas”. Uma antiga oposição se anuncia nestas posturas, entre a que afirmaria que a mudança deve começar no sujeito, e a outra que deve começar em estruturas sociais econômicas e políticas. Muitas vezes, é em torno de uma armadilha que se prendem tais oposições, entre o focar na pessoa e o focar na estrutura. Uns pensam que se mudarmos as estruturas, mudaremos tudo. Os exemplos são muitos a favor ou contra tais concepções. O modelo de Cuba é um dos exemplos dos países que entra no fogo cruzado destas contraposições. Enquanto Dalai Lama clama por uma “revolução espiritual”, do amor universal, muitos partidos de esquerda clamam por revolução política e econômica, ou seja, mudar radicalmente o capitalismo, superá-lo inclusive. Um dos problemas aí está em saber o que, como e onde se encontra concreta e presentemente o que se chama por esta entidade, o capitalismo. É patente que uma modificação econômica traz mudanças nas paisagens subjetivas ou mentais dos indivíduos, e isso é importante. Não obstante, temos no mundo fartos exemplos de mudanças políticas para a esquerda, reformas e revoluções de várias ordens, populistas ou não, desenvolvimentistas, estruturais ou não, que fracassaram em suas promessas paradisíacas. Por outro lado, sabemos que comunidades/povos tradicionais ou organizados(as), com visão de sustentabilidade, do seu papel social na vida, têm criado perspectivas de vida exemplares, sejam elas com pequenos ou grandes exemplos. A pergunta que cabe é: revolucionar, ou desenvolver, para qual direção, com que conceito de humano, de sociabilidade, com que conceito de sustentabilidade, de felicidade? 136 Marcelo L. Pelizzoli Esta discussão é importante para o que tratamos, pois os círculos de diálogo, ou círculos da Justiça Restaurativa, são uma ferramenta muito poderosa e atuam no sentido primeiro da Justiça, que é de incluir os sujeitos no sentido maior da sociabilidade, ou comunidade. Ao mesmo tempo, eles têm um papel de trazer consciência social e afetiva, e também política (polis – cidade) aos participantes. Isto ocorreu exemplarmente em outros modelos sociais circulares, como os de Paulo Freire, ou nitidamente psicossociais como o da Terapia Comunitária, criada no Ceará nos anos 90, em contexto de favela e necessidade de organização sociopolítica (hoje a TC tem se estruturado amplamente pelo Brasil, como ferramenta altamente recomendada nos âmbitos de saúde social). Igualmente, com os modelos do Teatro do Oprimido, vindo de A. Boal, usados no âmbito da educação popular, cultura e arte popular. As ferramentas sociais ou psicossociais circulares, sistêmicas, comunitárias, são instrumentos pedagógicos efetivos de cura, de conscientização, de união de grupos, de formação para inciativas sociais, de inclusão social. Por outro lado, políticas sociais governamentais, ou mesmo de distribuição de renda ou implementação de um Estado de “bem estar” social, ou mesmo um Estado tipo socialista, são de fato muito importantes. No entanto, enfrentam fracassos constantes. Por quê? As causas pontuais de cada caso nos fogem aqui. Contudo, não podemos deixar de levantar algumas hipóteses em torno de um foco central: fracassaram e vão fracassar toda vez que não conseguem mobilizar os sujeitos desde valores fundamentais relativos às suas vidas pessoais e comunitárias, relacionais e simbólicas. São estes valores os visados nas dimensões e ações psicossociais. Sujeitos desconectados de valores fundamentais - ou como dizem muitos mestres espirituais de várias tradições de sabedoria - da compaixão ou solidariedade básica da vida, desembocam em motivações individualistas, insustentáveis, negativas ou conflitivas. A ética não funciona sem uma estética (aesthesis), sem sensibilidade, sem dor e beleza humana, tanto quando a política torna-se apenas a arte da guerra egológica e de guetos empoderados e endinheirados, adoentados em suas paisagens mentais infladas, se não atua carregando consigo o coração do humanus. O coração humano, por base, aponta para uma comunidade de sentido, trocas e diálogo, inclusão. Uma das verdades da luta política em torno das estruturas, tanto quanto dos que alardeiam a promoção do desenvolvimento, do crescimento econômico (palavra de ordem ainda hoje) em especial das classes desfavorecidas, é a necessidade imperiosa de dar condições básicas de alimentação, moradia, saneamento, escola, cultura, educação. Estes são direitos básicos e que, infelizmente, temos que lutar ainda a todo tempo 137 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos por eles. Outro direito se junta a estes diretamente, o da sustentabilidade, sem o que tudo aquilo começa a ir “por água abaixo”, cada vez mais em alerta, apesar dos modelos urbanos vigentes serem ainda gritantemente insustentáveis (basta conferir alguns dados graves no âmbito da saúde, transporte e (i)mobilidade social, problemas nas periferias, perda de paisagens, uso insustentável de energia e recursos naturais, produção elevada de lixo, poluições de toda ordem). O que muitos ignoram ou esquecem é que tais demandas ou ações que vêm para elevar as condições de vida das populações não precisam e não devem estar desvinculadas da questão do sentido da felicidade humana buscada: que tipo de humano, ambiente e intersubjetividade se visa quando se busca “incluir’ os sujeitos no sistema socioeconômico? Ou seja, educa-se, propicia-se saúde, moradia, alimentação etc., tendo em vista qual modelo de sustentabilidade, de sociabilidade e de sentido do humano? Esta pergunta é uma chave, pois os sujeitos não são apenas objetos a serem preenchidos com necessidades materiais e sobrevivenciais, mas são sujeitos culturais, afetivos, relacionais, emocionais, mentais, espirituais, fundamentalmente ambientais. Na Sociedade Industrial de Consumo, que tem como palavras de ordem “progresso material a todo custo”, velocidade, competição, exploração de recursos, lucros e perdas numa guerra econômica e de poder, os sujeitos são incluídos apenas como consumidores. Portanto, é preciso colocar em xeque a noção de que “desenvolvimento humano” e mesmo “justiça social” é apenas prover condições materiais básicas a potenciais consumidores. De igual modo, o escopo de reformas sociais ou mesmo de pequenas revoluções, precisa incluir sua motivação; qual concepção de sociabilidade/ intersubjetividade - valores humanos (afetividade, laços sociais, participação), qual concepção de ambiente (integrado, fragmentado, material, competitivo, cooperativo, sustentável etc.) - e qual concepção simbólica (dimensão de cultura, espiritual, povo, bandeira de luta etc.) se está promovendo? Estas reflexões que trazemos até aqui são reflexões de base, pois não se entenderá hoje Direitos Humanos e Justiça sem entender a base crítica (e as cegueiras em tempos de crise) em que estão assentadas tanto as demandas políticas de direitos quanto os limites da realização da justiça. Poderíamos infindavelmente apontar os limites da justiça numa sociedade altamente desnivelada e matizada pelo poder como dominação e afirmação das classes burguesas e das corporações que praticamente ditam a normatização político-econômica. Mas, o que queremos ressaltar aqui vai em outra direção, a que aponta que não podemos apenas esperar 138 Marcelo L. Pelizzoli por condições econômicas ideais às classes desfavorecidas, nem apenas achar que tais condições nos tiraram da crise generalizada pela qual passamos6. Isto deve-se a alguns motivos básicos: primeiro, devido a que o ideal de crescimento econômico e sua direção à universalização (condições materiais para todos) hoje no mundo é absolutamente irrealizável, pois os recursos naturais são escassos, e aumentam os problemas relativos à água, energia, terras cultiváveis; de igual modo, a poluição produzida pelos mesmos e o descarte de resíduos de toda ordem já ultrapassaram os limites temporais e espaciais da linha da insustentabilidade. Isso nos remete a afirmar que estamos vivendo o início do caos ecológico: aumento de doenças frutos do consumo, alterações climáticas de várias ordens além do efeito estufa, perda de florestas, perda de recursos hídricos ou suas contaminações, agrotóxicos, resíduos químicos sistêmicos persistentes, pragas, chuva ácida, acidez dos solos, perda de solos e muito mais (Pelizzoli, 2011). A constatação séria e científica de tais dados nos coloca diante da percepção da hipocrisia autodestrutiva com a qual vivem as sociedades modernas, países ou cidades que fecham os olhos para a realidade nua e crua. Portanto, não se trata apenas de propiciar maior crescimento econômico dentro deste modelo dilapidador e excludente, mas de repensar os valores vigentes, que são na sua maioria destrutivos, como citados: competitividade, exploração de recursos e mercados sem controle, clima de egoísmo, individualismo, insensibilidade social, desânimo, perda da dimensão simbólica e espiritual da vida, materialismo, gratificação imediata, falso prazer. Trata-se, sobretudo, de elevar os melhores valores comunitários e pessoais, portanto, ambientais, para fazer seguir a caminhada evolutiva do homo sapiens, a qual tem se mostrado violenta das mais diversas formas. Não somos ainda seres humanos como tais, diriam grandes mestres e educadores. Então, precisamos aprender a sê-lo; isto se faz apenas com os outros e com espaços seguros para isto, com base no lidar com as emoções, negatividades e positividades humanas. O diálogo é o mais importante momento, fato, situação-base de vida para realizar isto, não é apenas “uma conversa”. O resultado de nossa destinação ocidental trágica dos sujeitos tomados pelo modelo da “sociedade industrial de consumo e de massa” no capitalismo (e também em muitos modelos chamados de comunistas) é um grande processo de objetificação da Vida, das relações humanas 6 Vivemos uma crise integrada, em vários âmbitos e setores, crise de paradigma, de modelo civilizatório, o que exige novas posturas, compreensões da vida e formas alternativas de viver. Cf. Pelizzoli, 2011. 139 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos essenciais (valores) e, portanto, uma grande perda do Diálogo, do Silêncio (como abertura dentro do diálogo) e do Encontro real entre seres humanos e com seus ambientes7. O ser humano é capaz de aguentar muitas privações materiais, ou levar sua vida com parcimônia e num vivere parvo; porém, quando seus valores fundamentais – relativos em geral à essência humana e social – são degradados, quando perde o ânimo (alma, o sentido maior para viver), ligado ao que se chama “amar e ser amado”, ou cuidar e ser cuidado, de algum modo ele não mais vive. Quando isto ocorre, ocorre o desenraizamento de seu ego em relação ao seu si mesmo ou sentido mais profundo, da adequação ao ambiente (cosmos) em que vive, do ar, água, plantas, animais, alimentação, cultura; ele se desenraíza do social, ele entra no âmbito da exclusão e pode começar a reagir de modo violento, ou indiferente, ou sobrevivencial narcísico, materialístico, animal, ou nem isto. Como bem mostrou Marx em Ideologia Alemã, não é apenas o proletário que se desumaniza, se aliena de si e da natureza, mas o próprio burguês, pois não vive a plenitude social da vida. Talvez a palavra de ordem negativa mais presente hoje, em grande parte silenciosamente, seja exclusão. Sistema exclusão-inclusão no nível social O ser humano é parte do todo por nós chamado de universo. Nós vivenciamos a nós mesmos, pensamentos e sentimentos, separados do resto – uma espécie de ilusão de ótica de nossa consciência. A nossa tarefa deve ser nos libertarmos dessa prisão, ampliando nosso círculo de compaixão, para abraçar as criaturas vivas e a natureza inteira (A. Einstein). Um dos pontos chave que consideramos na compreensão dos Círculos de Diálogo é a percepções profunda do que rege o funcionamento do social. Para isto, deveríamos ler autores como Marcel Moss (teoria da dádiva e trocas sociais), os nomes ligados à Justiça Restaurativas aqui citados, e ainda H-G. Gadamer, H. Maturana, J. Piaget, N. Luhmann (e antes, G. Simmel) e B. Hellinger. Na base do humano está o ambiente, neste o social ou sociabilidade, e nesta um sistema de inclusão e exclusão em movimento. No caso humano, sociedade é um sistema de trocas de variadas ordens (material, afetiva, simbólica, de trabalho, partilhas, coletividades...) 7 Sobre o sujeito trágico e a odisseia autodestrutiva do mundo ocidental industrializado ver O herói de mil faces, de J. Campbell, bem como Civilização em transição, de C.G. Jung. Objetificação é o grave processo de perda de visão da espontaneidade, do saber viver, da sabedoria de vida, das interações com a natureza, da vida simples, simbólica, afetiva e livre, devido à reificação das mentes e relações humanas. 140 Marcelo L. Pelizzoli regida por equilíbrios dinâmicos, entre dar e receber, entre ação e responsabilidades, entre ações de um indivíduo e o que isto significa dentro de seu sistema familiar, grupos e do ambiente em geral. Justiça é o pressuposto básico de manutenção de ordens estabelecidas para o funcionamento dos animais humanos em seus grupos dinâmicos. Os grupos, como bem mostrou Zehr (2008), desenvolveram seus modelos de justiça (chamados hoje de tradicionais) para a administração da vida relacional coletiva dentro de suas interações e conflitos sociais, simbólicas, culturais. Tais modelos, aos olhos de muitos, tinham visões arcaizantes ou mesmo estranhas ao Direito e à Pax romana como conhecemos (e isto pode-se afirmar apenas ex postum); e tinham modos surpreendentes de resolver seus conflitos. Uma das concepções mais significativas por baixo destas formas é a visão de que a simples e irresponsável e distante exclusão de um membro traz desequilíbrios e instabilidade para todo o grupo ou comunidade. Um malfeito pode reverberar por longo tempo, se não for reequilibrado, se não for reparado, responsabilizado, “curado” de alguma forma. O tecido social rompido precisa ser costurado constantemente. Rasgar um pedaço do corpo e jogá-lo fora, na maioria das vezes, não resolverá o problema de base. Em relação principalmente às comunidades indígenas, pode-se resgatar um modelo reparativo de danos sempre em referência aos familiares e à comunidade envolvida no ato. Eis a base social sistêmica para a ideia de justiça, que é a própria manutenção do equilíbrio dinâmico da sociedade como relação, dar e receber, atuar e responder por. Um dos métodos psicológicos que temos usado em dimensões sociais e que hauriu o mais fundo desta visão de interdependência é a Terapia Familiar Sistêmica, ou Constelações Familiares, na matriz de B. Hellinger. Ela consegue acessar as faltas, as exclusões ocorridas num contexto familiar e intergeracional que trazem obstáculos à vida presente do indivíduo e à sua família ou ao seu grupo. De modo semelhante, os Círculos de Diálogo, quando conduzidos nesta direção, podem abrir o espaço de interioridade relacional e emocional em que se situam causas básicas dos malfeitos e danos ao sistema, o qual tem como força de movimento e conexão o que se chama de amor (o filósofo Heráclito diria, força de atração e de repulsão), e que opera o tempo inteiro em meio a forças de repulsão, exclusão. O sistema familiar é regido por forças maiores que os indivíduos, tais como os sistemas sociais em geral, em diferentes graus de pertença e intensidade8. 8 Sobre isto, veja as obras de Bert Hellinger. 141 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Certamente, houve e há modelos de justiça que atuavam com base no balanço do “olho por olho, dente por dente”, que também busca reequilíbrios sociais. Mas, na percepção sistêmica e dos círculos de justiça como os que inspiraram a Justiça Restaurativa no seu início - a tradição indígena canadense, australiana e norte-americana – criou-se ao longo do tempo uma forma altamente evoluída, otimizada, de manutenção social ou justiça. Nesta, o indivíduo responde ao todo ao qual pertence – e pertença é uma das palavras chave aí – no nível das obrigações e responsabilidades inter-humanas em primeiro lugar, e não em termos de referência à legalidade formal. Responde-se diante do clã dos mais velhos, mas responde-se diante da família da vítima, bem como diante da instabilidade de sua própria família e companheiros; responde-se de fato pelo que foi feito e pelo que há de se fazer desde então. E por sua vez, reconhece-se o mal feito como ferindo pessoas e sistemas - não algo frio e impessoal, mas instaurado no nível dos compromissos (laços) afetivos e de sentido social de vida das pessoas, que pertencem a um grupo de convivência. Tal como na natureza, os animais humanos estruturam-se intrinsecamente com seus ambientes, fato bem compreendido quando se tem consciência do que é um Ecossistema ou quando se tem a noção intergeracional familiar. Na pragmática da Terapia Familiar Sistêmica, é surpreendente e, ao mesmo tempo, misterioso para o leigo dar-se conta de que uma exclusão (assassinato, perdas, abandono, suicídio, psicose etc.) move uma causalidade não apenas na mesma geração, mas para a geração seguinte e para a próxima também, sendo motivo de comportamentos negativos e repetições de problemas emocionais vindos de antes, vindos dos movimentos do Sistema-grupo. Há uma teia de interligações que não se compreende apenas como uma teoria epistemológica, mas um fato sentido e vivido como efeito de atos anteriores e que afetam um sistema – grupo, família, ambiente. As crianças em especial são muito sensíveis ao que aconteceu anteriormente num ambiente. A boa nova é que há formas de lidar com tais impactos sistêmicos, de rede, focadas no círculo familiar, tribal, terapêutico, dialogal, seja como for; pode-se ter um acesso privilegiado ao que ocorre, o clima ou energia que move as relações, desde que se acesse a força de interligação, exclusões dolorosas e inclusões renovadoras que tendem a reequilibrar os danos, por meio de encontro e diálogo circular, a partir de um Centro ou Sistema (Hellinger, 2007; Pelizzoli, 2010). Os círculos, como ápice dos modelos de práticas restaurativas, têm potencial mágico de chegar ao centro de equilíbrio do dar e receber, das trocas sociais, mostrando-se como um espaço transparente em que se dá 142 Marcelo L. Pelizzoli a Abertura, o resgate da Pertença, a Participação, e a Responsabilização, sinônimos todos de inclusão. O círculo é também uma forma de dar nascimento social a pessoas que parecem não ter existência propriamente (e assim direitos e deveres), ou àqueles que foram afetados na identidade social de suas existências. O movente fundamental para tal escopo se chama diálogo. O que é diálogo? Diálogo não é uma coisa que ocorre facilmente, uma conversa, ou encontro de pessoas trocando ideias. Ensinar não é em geral diálogo; doutrinar, psicanalisar, julgar, determinar, controlar, dominar, ou ainda, ficar indiferente, neutro, intocável, não é diálogo. Resumidamente, diálogo, escuta autêntica, é algo raro; quando uma pessoa nos escuta verdadeiramente e entra em diálogo, ocorre algo em nós; não somos mais apenas indivíduos isolados; transforma-se algo em nós, como afirma Gadamer, ou ainda Buber e Tagore9. Os pilares do diálogo, sem os quais ele não ocorre de fato, são: por um lado, a Escuta – e dentro desta a Presença, a Atenção e o Silêncio - e, por outro lado, a Pergunta, motor do mesmo. A escuta, com o necessário silêncio mais a atenção, disposição que caracteriza a Presença, é o ponto de acesso ou Abertura para o acontecimento do encontro ou diálogo. O que está em jogo é o atravessamento do logos, do sentido profundo e da palavra que dá significado às vidas pessoais e sociais. Por sua vez, todo diálogo tem por base perguntas, e no fundo a perguntabilidade fundamental que somos nós mesmos enquanto seres abertos, finitos, incompletos, vulneráveis e ao mesmo tempo extremamente interdependentes. Como diz Sócrates e Gadamer (ano), é o não-saber que estimula a inclusão do outro; preciso colocar-me nesta disposição, para assim “saber” o que de fato outrem quer dizer, sente, pensa, expressa, ou mesmo não consegue expressar. O diálogo vai muito além da objetividade das palavras, do léxico, da gramática; o seu elã vital está numa motivação de encontro, abertura, deixar ser e receber o que ocorre, com as “antenas bem ligadas”. Ele não é apenas as palavras ditas, mas a energia que circula, que depende das disposições e emoções em jogo. O diálogo autêntico põe em causa a autoridade baseada no ter, saber e poder, pois nele nivelam-se os indivíduos diante de um todo maior. Ele remete a um Centro e a um Sistema maior e anterior, em que nos movimentamos como seres vivos num ambiente interligado, complexo, enredado. É por isto que muitos indivíduos controladores, sejam eles 9 De Gadamer, veja-se “A incapacidade para o diálogo”, em Verdade e Método II; de Buber, a obra Eu e Tu; de Tagore, Poesia Mística. 143 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos professores, políticos, ocupantes de cargos importantes, ou então pessoas algo neuróticas, egoístas, ensimesmadas e afins não conseguem entrar em diálogo. Mesmo que pareçam estar ouvindo, não ouvem de fato; e em geral, o outro, o interlocutor, sente isto, um bloqueio, mesmo que inconscientemente. O diálogo restaurativo, ao mesmo tempo que traz a inclusão, traz a responsabilização. A palavra responsabilidade traz em si a disposição de responder, falar, dar contas, responder por. A responsabilidade, para quem erra, não é apenas uma obrigação de pagar algo, mas uma possibilidade de ser incluído novamente, ser trazido à cena social. Quando me torno indisposto ou indiferente ao outro, potencializo a exclusão. E, por outro lado, se apenas puno, vingo, não estarei agindo no nível otimizado da responsabilidade, pois esta é sempre socializante, inclusiva, comprometedora10. O Diálogo coloca em xeque o sistema premiação-punição, quando rotula e “mata” os sujeitos a partir de classificações, nosografias, doenças, mostrando seus limites, obstáculos, autoritarismos; o diálogo e o acompanhamento, o suporte humano, traz implícito possibilidades inauditas de cura, de reinserção social, ressocialização, desde que ele não seja uma simples e descompromissada conversa, ou apenas momento de desculpas, explicações, lamentos, julgamentos e similares. Círculos de Diálogo O círculo é um processo para organizar a comunicação em grupo, a construção de relacionamentos, tomada de decisões e resolução de conflitos de forma eficiente. O processo cria um espaço à parte... incorpora e nutre uma filosofia de relacionamento e interconectividade que pode nos guiar em todas as circunstâncias – dentro do círculo e fora dele (Boyes & Pranis, 2011). Devemos primeiramente elencar algumas visões do que NÃO é um Círculo de Diálogo real, autêntico, restaurativo. Não é mediação ou resolução de conflitos convencional, pois o que tem se entendido como mediação tem os seguintes limites: coloca muito peso no papel resolutivo do mediador, como se ele tivesse poderes especiais, ou tivesse uma capacidade técnica ou científica a qual é o ponto chave para resolver as questões. As mediações comumente feitas não contemplam, em geral, a participação de membros além dos envolvidos diretamente no ato, deixando de constituir propriamente o círculo “mágico” sistêmico. Na mediação judiciária ocorre (na maior parte das vezes) a negação das dores e efeitos envolvidos no ato, bem como não há diálogo propriamente, Marcelo L. Pelizzoli mas uma disputa de melhores argumentos e aposta em versão de fatos; na verdade não se desacelera o tempo utilitário em prol dos tempos de recomposição de encontro e responsabilidades. Igualmente, o fato de tentar negociar um conflito negativo apenas para chegar ao meio da questão, resolvendo pela divisão das coisas, pode ser um fracasso para o processo, principalmente para as vítimas que não conseguiram colocar amplamente sua demanda e dores e perdas, bem como vê-las restauradas de modo mais justo. Negociações, Conciliações e Arbitragens podem abafar os problemas, sendo que, muitas vezes, as pessoas cedem a algo neste nível por motivos de força maior, pois apostar no caminho tradicional dos processos judiciários é uma loteria, além do desgaste, tempo, exposição, abandono e custos que tais calvários apresentam. Nitidamente, pode faltar Espaço, Abertura, para que ocorra a circulação do Pathos (circulação das dores, afetividades, raivas, emoções, palavra ampla, reclames, tomadas de consciência, presença de espírito, acesso à alma familiar ou comunitária), o qual se traduz no nível do Encontro e Diálogo. Deve ficar claro que o mediador ou a instituição não devem ser o “dono” da mediação, mas o grupo. Não é julgamento moral das pessoas, nem correção ética. No viés moral ou moralizante, o clima dos encontros ou julgamentos estão calcados numa visão dicotômica encarnada na tradição ocidental e ligada às religiões que separam completamente o bem do mal. Houve uma perda da dimensão sistêmica de forma gritante no ocidente cristão e capitalista, que coincide com o seu afastamento da Natureza ou de culturas mais próximas e ela. Quando apoiamos este viés, perde-se a oportunidade de trazer à tona a fragilidade humana, bem como a capacidade maior de reparação de vítimas, que tem a ver com o encontro restaurativo e sistêmico com os agressores, família, comunidade e também autoridades validadas. Não é uma conversa livre com poucas regras. Há hoje procedimentos muito interessantes com base em ações livres, tais como Brainstorms, livre expressão, estalagens momentâneas, arte viva, diálogo criativo etc. Porém, para os fins restaurativos e de conflitos, precisamos de fato de tecnologias sociais, de diálogo e de recursos que sirvam de veículo ao escopo desejado, o que não significa que a conversa e a alteridade do diálogo e dos participantes, e do sistema que ali se forma no encontro, não tenham prioridade sobre os objetivos e regras. Em todo caso, precisa-se de regras claras, que acima de tudo garantam os valores fundamentais em jogo, tais como o respeito, direito a falar e a ser ouvido, responsabilidade pelos atos, compromisso, entre outros. 10 Cf. “Fundamentos para a restauração da Justiça”, in: Pelizzoli, 2008. 144 145 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Não é algo que prescinda de um facilitador. Precisa de um facilitador, o qual não pode adotar a atitude de sabedor, de professor. Não é ele que resolverá, mas ele precisa estar preparado para saber acessar a capacidade de Abertura de um espaço simbólico significativo, o potencial do encontro e diálogo humano. Precisa acionar a força do Sistema e o respeito aos valores básicos da sociabilidade humana. Não se trata de perdoar o ofensor ou de consolar a vítima. Qualquer encontro que venha a conter perdão e reconciliação são bem-vindos, no entanto não são o escopo principal dos círculos de diálogo ou restaurativos. Qualquer consolo que venha a ocorrer será bem-vindo também, desde que não se negligencie os procedimentos de reparação mais profundos, que têm a ver com a compreensão dos fatos/ocorrências e seu peso pela vítima e pelo ofensor, e os envolvidos, a responsabilidade e o compromisso de reparações possíveis para o caso, incluindo, se for necessário, o aprisionamento como último recurso. Não se trata de não ter acordos formais e legais. Muitos encontros podem não resultar num acordo formal e de compromissos com base legal. E mesmo assim, não deixam de ter importância e reverberação para os participantes, que conseguem com os círculos reelaborarem melhor os fatos, dores, e ter o suporte de grupo. No entanto, quando se tratam de círculos restaurativos para danos, o acordo se torna um veículo final concreto, que sela um acontecimento reparativo, e que põe em compromisso os agressores, ou todos os responsáveis, tendo uma base institucional garantidora, no caso, o judiciário. O acordo tem força simbólica e legal, materializando o reequilíbrio necessário. Não é um espaço comum com objetos comuns, mas um espaçocírculo que tem um centro e que remete para além da viseira das visões idiossincráticas; remete ao uso respeitado da palavra, diálogo no sentido pleno do termo. É um espaço de abertura e que motiva a pertença, a responsabilidade, a interdependência dos participantes, e o caráter de vulnerabilidade/fragilidade imensa e ao mesmo tempo preciosa da vida humana. Não é um espaço de correção psicológica dos indivíduos que cometeram danos, os ofensores. Mesmo que isso possa ocorrer indiretamente nos círculos, como se tem visto, não é este o escopo maior, pois tendo-se este viés como base criamos uma artificial Laranja Mecânica, ou Matrix, para corrigir mentalmente os “doentes” sociais. Quando se olha assim, rompe-se o olhar de resgate nos melhores valores e nas capacidades de responsabilidade, criatividade e mudança dos indivíduos, que não são “bandidos, prostitutas, ladrões, menores, elementos, delinquentes”, mas 146 Marcelo L. Pelizzoli pessoas com múltiplas capacidades e possibilidades dentro dos mundos/ ambientes (melhores) que se criarem para e com eles. O Círculo de Diálogo é um encontro real; e é também uma metáfora do mundo significativo em ordem dinâmica em que precisamos constantemente nos reinserir, pois vivemos sob o signo da impermanência, do tempo, dos acidentes e acontecimentos, em especial aqueles chamados de violência. É por isto que, em geral, ele dispõe elementos no seu centro, objetos simbólicos que representam valores culturais, espirituais, relacionais, e em geral elementos da natureza, como água, pedra, tecido, sementes, etc. Contém também um objeto da fala, com o qual se aprimora a organização e o centramento da atenção em quem está falando e no clima da fala. O objeto da fala mostra-se muito útil, pois dá o tempo necessário ao sujeito que precisa expressar-se e, ao mesmo tempo, ensina o silêncio, o respeito, o exercício da escuta e paciência. Igualmente, ele contém um tipo de peso ou poder, o que faz com que aquele que o detém, de algum modo, se dê conta de que pode estar monopolizando e que o objeto não pertence a ninguém em particular. O círculo é um espaço em que se (re)criam laços, onde se cria um lugar seguro, onde se pode expressar dores, emoções de vários tipos, tristeza, choro, raiva, lamentos e, ao mesmo tempo, ter um suporte. Não é fácil dar suporte, pois exige a capacidade para o diálogo, para suportar a dor do outro, o que remete a suportar a sua própria dor. Muitas vezes, alguém não suporta o outro, a dor dele, a raiva, o medo, a fragilidade, porque não suporta em si tais coisas, ou é tocado intimamente, demasiadamente para ele. Se sou abalado pelo outro, posso tender a fugir, a protegerme. A vantagem do círculo é que contém uma força maior do que um ou dois dialogantes, força esta que pode suportar o que o encontro traz de pesado. Como melhor exemplo institucional no Brasil, podemos citar a Central de Práticas Restaurativas do Juizado Regional da Infância e da Juventude, em Porto Alegre (que pratica a Justiça Restaurativa desde início dos anos 2000), um espaço oficializado em 2009, que vem tendo ampla e crescente aceitação, chegando a ter um grau de “muito satisfeito” por parte de usuários em 80% dos casos atendidos. Lá se operam por círculos restaurativos. Podemos trazer resumidamente um exemplo do resultado deles: “Em 2011, João, pai de Gabriela, foi chamado na escola para acompanhar a adolescente, pois ela estava sofrendo ameaças de ser agredida, em função de desentendimentos anteriores com seus colegas. Ao chegar lá, percebeu que várias pessoas da comunidade estavam reunidas na praça 147 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos na frente da escola, aguardando a saída de Gabriela. Ocorreu discussão e, logo em seguida, agressões físicas, envolvendo uma parte do grupo. João acabou sendo agredido e, ao se defender, bateu em uma adolescente, o que revoltou muito a comunidade escolar. Após o ocorrido, João registrou ocorrência na Delegacia Especializada para Apuração do Ato Infracional.” “Este caso ingressou no Sistema de Justiça e o Juiz suspendeu o processo, encaminhando-o para que a equipe da CPR JIJ avaliasse a possibilidade de realização de Procedimento Restaurativo. Como resultado da experiência (do Círculo), pode-se relatar que: As mães pediram desculpas ao pai da vítima, pois acreditavam que ele era uma pessoa violenta por ter agredido a adolescente, pois compreenderam que ele agiu para se defender, ao ser agredido pelo grupo maior. As adolescentes acordaram que construiriam cartazes contando como aconteceu e como foi resolvido o conflito. Uma das mães se comprometeu a organizar um espaço para realização da tarefa. As mães e o pai de Gabriela ficaram responsáveis de verificar sobre a possibilidade de afixação dos cartazes produzidos pelo grupo, na escola. O Diretor da escola, que inicialmente não aceitou participar da experiência, pois entendia que, como o fato ocorreu fora da escola não era sua responsabilidade, concordou em realizar atividades envolvendo a Cultura de Paz, com a participação das adolescentes e suas famílias. As coordenadoras/facilitadoras do procedimento se comprometeram em participar e filmar o cumprimento do acordo”11. Este relato é um simulacro de um processo muito rico, carregado de tensões, expectativas, emoções, em que se percebe a sensibilidade, a vulnerabilidade e a complexidade/interconexão dos dilemas e dramas humanos; em especial porque o método é feito para atuar no âmbito criminal que, no entanto, não é o único de interesse das práticas circulares ou restaurativas. O Círculo tem as seguintes funções ou intenções, segundo Boyes & Pranis (2011): apoiar os participantes a apresentar seu verdadeiro eu – ajudá-los a se conduzirem com base nos valores que representam quem eles são quando estão no seu melhor momento; fazer com que nossa ligação fique visível, mesmo e face de diferenças muito significativas; reconhecer e acessar os dons de cada pessoa; evocar a sabedoria individual e coletiva; engajar os participantes em todos os aspectos da experiência Marcelo L. Pelizzoli humana – mental, física, emocional e espiritual ou na construção de significados; praticar comportamentos baseados nos valores quando possa parecer arriscado fazê-lo. Quanto mais as pessoas os praticam no círculo, mais estes hábitos são fortalecidos para levar o comportamento para outras partes de suas vidas (Boyes & Pranis, p. 35). A magia ou força do Círculo encontra-se já antes mesmo de seu acontecimento. Encontra-se latente na vontade das pessoas de se entenderem com as outras, de terem voz, espaço, serem respeitadas, ou mesmo de pedir responsabilidade como elã de justiça a algum malfeito. A intenção inter-humana, de reparar, de sanar a dor que se apresenta como mágoa, ressentimento, vergonha, ferimentos emocionais envolvendo tristeza, raiva, medo e similares, é a mais forte disposição para que um diálogo e uma restauração ocorram. Depois, é necessário contar com o bom veículo de um facilitador, de um mediador, o qual facilita a tessitura de um pequeno sistema – comunidade, pessoas que se reúnem, famílias, grupo – ou rede que tende à reparação e cura de rupturas sofridas em suas tramas. Se a força da intenção de base dos envolvidos for grande, apresentase então a capacidade de romper com as barreiras do medo/raiva que fecham o encontro, bem como romper com a vergonha ou a culpa, que também podem bloquear; ou romper com a indiferença, ou romper, ainda, com o tempo utilitário, o autocratismo judicial, o frio mecanismo kafkiano que atropela as comunidades, as vítimas e mesmo os ofensores. Neste sentido, o chamado pré-círculo é um espaço propedêutico que já acessa as possibilidades dos envolvidos, no sentido da primeira abertura e estabelecimento de confianças entre o mediador e as partes em separado. O encontro de diálogo, ou restaurativo, mostra sua importância quando se percebe que mesmo que não haja um acordo fechado, ou fiquem ainda pontos de divergência em aberto, ou mesmo ainda restem dores ou algo do “fazer justiça” na percepção de algum dos envolvidos, tal momento traz possibilidades latentes e mesmo sementes futuras de uma nova visão pedagógica para resolver conflitos. Por vezes, há sujeitos que de fato ainda não estão preparados para isto, devido a vários fatores: psicossociais, interesses econômicos, fixação no ego e no poder, perda de senso social e outros. Por vezes, são necessárias novas rodadas de diálogos para que o processo alcance algum grau maior de adequação e funcionamento. O círculo é, além do mais, um momento/espaço altamente pedagógico e que brota do seio dos saberes e desejos dos envolvidos, bem como queria Paulo Freire com seus círculos educativos, de conscientização e educação 11 De Boni, in Pelizzoli, 2012. 148 149 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos política. Sabemos da importância de tais ferramentas psicossociais quando vemos os resultados de programas e práticas como o método da Reconciliação e Perdão, na Colômbia; a Pacificação em ambientes violentos; o Vipassana/meditação nas prisões; Segurança Comunitária; Comunicação Não-violenta, e tantos outros projetos que trabalham com inclusão social, mediação e diálogo pelo mundo afora. Conclusões Em termos de fundamentos filosóficos e sociais, o Círculo de Diálogo, seja como encontro restaurativo ou fim próximo, responde a um modelo sistêmico, integrativo, nos moldes epistemológicos contemporâneos que apontam para a interdependência de fatores, o inextrincável da relação sujeito-objeto, a visão de rede e a dimensão da abertura de espaços de autogestão de conflitos. Neste sentido, compõe-se como uma das mais poderosas ferramentas psicossociais para a realização do ideal de Justiça e seu codependente, Direitos Humanos. Como disposição pragmática para colocar em confronto, mediar, fazer emergir o conflito e as diferenças, dentro de um espaço seguro e preparado, um espaço inter-humano vital, é o veículo para a realização de anseios os mais profundos da sociabilidade humana, traduzido como nossos melhores valores, no âmbito da agregação social, do dar e receber, do responder por, da pertença, do suporte, enfim, do viver e assumir a vida em conjunto. Os Círculos de Diálogo, como ápice de Práticas Restaurativas, retomam a força do diálogo como mote da justiça. Não há justiça sem direito à palavra, sem expressão do ser, valores, dores, visões, palavra da alteridade. Neste sentido, a Justiça é ou deveria ser instância pedagógica em primeiro grau, pois ensina ou reintroduz aquele que fere ou exclui às demandas da inclusão. Família e sociedade, grupos, compõem-se como uma rede dinâmica que tende à inclusão, à reparação de danos, à restauração contínua de relações e afetividades, à responsabilização justa e humanizada pelos malfeitos, acidentes, ocorrências frutos do acaso, ou do descuido, ou do erro, ou da intenção desviada que atinge como violência. Sair do estado objetificador e estruturalmente violento que atinge inclusive as estruturas do Judiciário, caminhando para o escopo maior da sociabilidade humana consubstanciada como Bem, Justiça, Direitos, Humanização, é hoje o grande desafio dos sujeitos e instituições, em especial, ao transformar em atores sociais àqueles que têm sido excluídos. O melhor e mais tradicional caminho, árduo, para isto, chamase diálogo, encontro das diferenças, restauração. 150 Marcelo L. Pelizzoli Deste modo, correlaciona-se assim os conceitos introdutórios a este texto, os quais apresentam-se claramente interligados: O Círculo das diferenças, da Alteridade, como local do Encontro, em que se dá a Abertura, consubstanciada como Diálogo (Escuta/ Atenção e Pergunta), que remontam ao fundamento do Sistema, em que se percebe a Interdependência radical do inter-humano, em outros termos chamada de Pertença, local em que se confrontam e equilibram e recuperam os Valores humanos, pois neste fulcro ocorre o Suporte social. Eis, portanto, a realização da Justiça como Restauração. Referências BOYES-WATSON, C. & PRANIS, Kay. No coração da esperança – guia de práticas circulares. Porto Alegre: TJ do Estado do Rio Grande do Sul, 2011. GOLEMAN, D. & Dalai Lama. Como lidar com emoções destrutivas. SP: Ediouro, 2002 HELLINGER, Bert. Conflito e Paz. SP: Cultrix, 2007. O´CONNELL T. & WACHTEL, Ted. Conferencing handbook: the new Real Justice training manual. Pennsylvania: The Piper´s Press, 1999. PELIZZOLI, Marcelo L. (org.) Diálogo, conflito e práticas restaurativas. EDUFPE, 2012. PELIZZOLI, Marcelo L. (org.). Cultura de paz – educação do novo tempo. Recife: EDUFPE, 2008. PELIZZOLI, Marcelo L. (org.) Cultura de paz – alteridade em jogo. Recife: EDUFPE, 2009. PELIZZOLI, Marcelo L. (org.) Cultura de Paz – restauração e direitos. Recife: EDUFPE, 2010. PELIZZOLI, Marcelo L. Homo ecologicus – ética, educação e práticas vitais. Caxias do Sul: UCS, 2011. PRANIS, Kay. Processos circulares. SP: Palas Athena, 2011. ROSENBERG, Marshall. Comunicação não-violenta. SP: Ágora, 2006. SAYÃO, S. & PELIZZOLI, M. L. Fragmentos Filosóficos – direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011. ZEHR, H. Trocando as lentes – novo foco sobre o crime e a justiça. SP: Palas Athena, 2008. ZEHR, H. The little book of Restorative Justice. Pennsylvania: Good Books, 2002. WACHTEL, Ted; O´CONNELL, Terry; WACHTEL, Bem. Reuniões de Justiça Restaurativa. Real Justice (Justiça verdadeira) e Guia de Reuniões Restaurativas. International Institute for Restorative Practice. Bethlehem, Pennsylvania: The Piper´s Press, 2010. 151 Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos 152 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: vencedores e vencidos Larissa RAMINA1 Moacir Iori JUNIOR2 Os conflitos oportunizados no século XX foram marcantes na história da humanidade, não somente por suas barbáries, mas também pela atuação dos vencedores que condenaram juridicamente - como se não bastassem os danos militares sofridos - os vencidos, por meio de tribunais de exceção, em uma grave marca de criminalização destes vencidos pela guerra que ambos travaram. O fim da Primeira Guerra Mundial apresentou os contornos da aplicação de tribunais de exceção, pois pela primeira vez, o conceito de guerra foi concebido como uma ação contrária ao direito, cabendo à comunidade internacional coibir referidas práticas. A história mostrou que as cortes de julgamento destinaram-se exclusivamente aos perdedores. A adoção do Tratado de Versalhes trouxe consigo a conceituação de que os atos de guerra são ilícitos penais e que responsabilizam, além dos Estados perdedores, também os indivíduos que participaram do combate3 e4 . 1 Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Professora Substituta de Direito Internacional da Universidade Federal do Paraná – UFPR e Professora do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da UniBrasil. 2 Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Cescarelli. Mestrando pelas Faculdades Integradas do Brasil - UniBrasil. Professor Coordenador do Curso de Direito das Faculdades do Centro do Paraná. 3 ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p.93. 4 Os artigos 227 e 231 do Tratado de Versalhes demonstram claramente o entendimento esposado (grifos nosso): ARTICLE 227: The Allied and Associated Powers publicly arraign William II of Hohenzollern, formerly German Emperor, for a supreme offence against international morality and the sanctity of treaties. A special tribunal will be constituted to try the accused, thereby assuring him the guarantees essential to the right of defence. It will be composed of five judges, one appointed by each of the following Powers: namely, the United States of America, Great Britain, France, Italy and Japan. In its decision the tribunal will be guided by the highest motives of international policy, with a view to vindicating the solemn obligations of international undertakings and the validity of international morality. It will be its duty to fix the punishment which it considers should be imposed. The Allied and Associated Powers will address a request to the Government of the Netherlands for the surrender to them of the ex-Emperor in order that he may be put on trial. ARTICLE 231: The Allied and Associated Governments affirm and Germany accepts the responsibility of Germany and her allies for causing all the loss and damage to which the Allied and Associated Governments and their nationals have been subjected as a consequence of the war imposed upon them by the aggression of Germany and her allies. The Versailes Treaty. Yale Law School. The Avalon Project. Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/imt/ partviii.asp. Acessado em 20 out 2012. 153 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos O Tratado de Versalhes também foi responsável pela criação da Liga das Nações, primeira organização internacional nos moldes atuais, que tinha como objetivo a manutenção da paz. A eclosão da Segunda Guerra Mundial mostra, todavia, que a finalidade da Liga das Nações não fora cumprida, ocorrendo o mais grave conflito armado da história. As Potências Aliadas - Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética – firmaram, ainda no decorrer das hostilidades, na Conferência de Moscou, em outubro de 1943, expressa declaração no sentido de que penalizariam os “responsáveis pelas atrocidades, massacres e execuções, perseguindoos até os confins da terra para entregá-los aos seus acusadores”.5 O juiz Robert Jackson, da Suprema Corte dos Estados Unidos, ficou responsável pelo estudo do caso, negociando com os aliados os atos internacionais relativos ao julgamento dos perdedores. Na concepção de Paulo Borba Casella, [...] O encargo não era fácil, pois o Juiz deveria estudar os aspectos jurídicos da matéria, evitando propor medidas que pudessem mais tarde colocar no rol dos réus governantes ou comandantes militares aliados. Apenas os derrotados, em suas pessoas físicas ou jurídicas, deveriam ser julgados, nunca os vencedores. Assim, nunca se cogitou em submeter a julgamento comandantes, militares e policiais soviéticos culpados de violências sistemáticas contra os prisioneiros e as populações civis das potências derrotadas, tampouco os responsáveis pela retenção por longos anos de milhares de prisioneiros de guerra utilizados em trabalhos forçados.6 Os vencedores, após intensos debates, compeliram-se a julgar seus derrotados por um Tribunal Militar Internacional, o Tribunal de Nuremberg, que foi instituído no Ato Constitutivo aprovado pelos Aliados, em 8 de agosto de 1945, na cidade de Londres7. Enquanto o Tratado de Versalhes iniciou o entendimento de que os indivíduos poderiam ser responsabilizados no âmbito penal, o Tribunal de Nuremberg foi responsável em consolidar esse entendimento8. Concluídos os combates que se desenrolaram durante a Segunda Guerra Mundial, com a devastação de Hiroshima e Nagasaki por duas bombas nucleares, “[...] surge a Carta das Nações Unidas, que define a guerra como um flagelo (scourge) que a comunidade internacional deve se empenhar em eliminar para sempre da história humana”9. Em seguida, foram constituídos os Tribunais de Nuremberg e Tóquio. 5 CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.847. 6 Idem, p. 848. 7 Ibidem. 8 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70. 9 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianopolis: Conceito Editorial, 2010, p. 93 154 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior O Tribunal de Tóquio aplicou o costume internacional para condenar os crimes cometidos pelo nazismo nos termos do art. 6º do Estatuto do Tribunal Militar Internacional referendado no Acordo de Londres de 1945.10 Conforme o Tratado, três crimes distintos seriam julgados: os crimes contra a paz que consideravam os atos de preparação, desencadeamento e continuidade da guerra; os crimes de guerra que eram as agressões individuais, como maus tratos, trabalhos forçados e deportações; e os crimes contra a humanidade, que englobavam ações desumanas como perseguições políticas e raciais, escravidão e exterminações em massa.11 Uma das principais críticas dirigidas ao Tribunal de Nuremberg refere-se a sua criação post factum, tipificando e julgando ações que anteriormente não eram consideradas crimes. Além disso, o Tribunal aplicou penas severas, como a sentença de morte ou a prisão perpétua. A essa crítica, outras se acrescentam como as relativas ao alto grau de politicidade daquele Tribunal, em que “vencedores” estariam julgando “vencidos” e aplicando sanções pelos primeiros impostas, como a pena de morte.12 Em seguida, os países aliados criaram o Tribunal de Tóquio, que acolheu os princípios de Nuremberg para julgar os criminosos de Guerra no Extremo Oriente. Mais uma vez, a mão pesada dos vencedores foi sentida pelos vencidos, sendo que “[...] dos vinte e oito acusados, sete foram condenados à morte, dezesseis à prisão perpétua e os outros a penas menores”13. Os trabalhos do Tribunal de Nuremberg continuam por meio de uma segunda série de julgamentos, que penalizam mais de duzentos dirigentes 10 O artigo sexto do estatuto assim estabelece a Competência do Tribunal de Nuremberg: Le Tribunal établi par l’Accord mentionné à l’article 1er ci-dessus pour le jugement et le châtiment des grands criminels de guerre des pays européens de l’Axe sera compétent pour juger et punir toutes personnes qui, agissant pour le compte des pays européens de l’Axe, auront commis, individuellement ou à titre de membres d’organisations, l’un quelconque des crimes suivants. Les actes suivants, ou l’un quelconque d’entre eux, sont des crimes soumis à la juridiction du Tribunal et entraînent une responsabilité individuelle : (a) ‘ Les Crimes contre la Paix ‘: c’est-àdire la direction, la préparation, le déclenchement ou la poursuite d’une guerre d’agression, ou d’une guerre en violation des traités, assurances ou accords internationaux, ou la participation à un plan concerté ou à un complot pour l’accomplissement de l’un quelconque des actes qui précèdent; (b) ‘ Les Crimes de Guerre ‘: c’est-à-dire les violations des lois et coutumes de la guerre. Ces violations comprennent, sans y être limitées, l’assassinat, les mauvais traitements et la déportation pour des travaux forcés ou pour tout autre but, des populations civiles dans les territoires occupés, l’assassinat ou les mauvais traitements des prisonniers de guerre ou des personnes en mer, l’exécution des otages, le pillage des biens publics ou privés, la destruction sans motif des villes et des villages ou la dévastation que ne justifient pas les exigences militaires; (c) ‘ Les Crimes contre l’Humanité ‘: c’est-à-dire l’assassinat, l’extermination, la réduction en esclavage, la déportation, et tout autre acte inhumain commis contre toutes populations civiles, avant ou pendant la guerre, ou bien les persécutions pour des motifs politiques, raciaux ou religieux, lorsque ces actes ou persécutions, qu’ils aient constitué ou non une violation du droit interne du pays où ils ont été perpétrés, ont été commis à la suite de tout crime rentrant dans la compétence du Tribunal, ou en liaison avec ce crime. Les dirigeants, organisateurs, provocateurs ou complices qui ont pris part à l’élaboration ou à l’exécution d’un plan concerté ou d’un complot pour commettre l’un quelconque des crimes ci-dessus définis sont responsables de tous les actes accomplis par toutes personnes en exécution de ce plan. Texto integral do acordo de Londres de 1945 dispoível em: http://www.icrc.org/dih.nsf/FULL/350?OpenDocument. Acesso em 17 nov 2012. 11 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.187-188. 12 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74. 13 CASELLA, Paulo Borba. Op. Cit., p. 850. 155 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos nazistas. A tentativa de aplicação da justiça dos vencedores sobre os perdedores é tamanha que um dos criminosos é subtraído de dentro do território argentino, sem o consentimento desse Estado, afrontando sua soberania e jurisdição14. Noam Chomski, em obra festejada, critica duramente as atitudes dos Estados Unidos com os prisioneiros alemães da Segunda Guerra Mundial, que eram tratados de forma brutal por intermédio de uma política de reeducação, que buscava doutriná-los a aceitarem as crenças americanas.15 Aos militares dos EUA, que brutalmente agiram contra prisioneiros de guerra, tipificando crimes previstos no próprio rol estipulado pelos Aliados no Acordo de Londres instituidor do Tribunal de Nuremberg (1945), nenhum julgamento ocorreu, tampouco lhes foi imposto alguma sanção. A balança da justiça pendeu somente para os derrotados, que fracamente podiam revidar. Os Tribunais de Nuremberg e Tóquio foram Tribunais de exceção, extintos logo após o julgamento dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, sem prévia estipulação legal, com denúncias aleatórias dos supostos criminosos de guerra, com o intuito máximo de manter a hegemonia do poder às grandes potências. Conforme Noam Chomski, Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos rivais industriais, aos Estados Unidos ela propiciava enormes benefícios. Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que triplicou. Mesmo antes da guerra, os Estados Unidos já eram de longe o principal país industrial do mundo como o eram desde a virada do século. Mas, nesse momento, possuíamos literalmente 50% da riqueza mundial e controlávamos os dois lados dos dois oceanos. Nunca houve um período na história em que uma nação tenha tido um controle e uma segurança do mundo tão esmagadores16. Os países vencedores do grande combate criaram, em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU), que tinha por objetivo evitar novos confrontos, garantir a segurança internacional, o progresso e o desenvolvimento social, bem como a paz mundial. Fácil verificar, da simples análise de sua estrutura orgânica, que a formação desse organismo internacional buscava manter a hegemonia dos países vencedores da Segunda Grande Guerra. 14 Ibidem, p. 851. 15 CHOMSKI, Noam. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 24. 16 Idem, p. 5. 156 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior Desde sua formação, entretanto, a ONU testemunhou mais de uma centena de conflitos que causaram grandes destruições nas civilizações, superando, em 2003, a exorbitante cifra dos vinte milhões de mortos17. Dentre os órgãos que integram as Nações Unidas, o Conselho de Segurança é o principal, pois que sua finalidade é manter a paz e a segurança internacional. O Conselho é formado por cinco membros permanentes e dez membros rotativos. As cinco potências permanentes são os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a China e, desde 1992, a Rússia18. Somente esses países possuem poder de veto sobre as decisões do Conselho. Logo, podem, atendendo aos seus próprios interesses, determinar quais ações serão tomadas sem que lhes acarretem prejuízos19. A maior crítica ao sistema de veto do Conselho de Segurança está ligada à flagrante desigualdade de direitos que têm os demais Estados-membros da ONU, que ficam à mercê daquilo que for decidido por tão somente cinco Estados (os com cadeira permanente no Conselho) numa situação de conflito internacional, ou que envolva questões importantes para a sociedade internacional como um todo.20 O Conselho, que conta com a assessoria da Comissão de Estado-Maior, composta pelos chefes de Estado Maior dos membros permanentes, é o único órgão da ONU que possui poder mandatário, sendo de caráter obrigatório o cumprimento de suas decisões, que discutem questões de caráter militar, inclusive quanto a autorização de investida bélica21. Após os julgamentos ocorridos nos Tribunais de Nuremberg e Tóquio, o mundo entra no colapso da Guerra Fria, onde duas potências militares e nucleares se digladiam em territórios de países alheios. Como duas das cinco potências detentores do veto no Conselho de Segurança da ONU se encontravam em combate, o organismo permaneceu inerte em relação a sua influência para frear os conflitos armados22. 17 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 862. 18 É importante frisar que a Rússia ingressa como membro permanente após o final da Guerra Fria (na qual EUA e Rússia travaram conflitos na iminência de um combate nuclear em territórios distintos dos seus, por meio do financiamento de pequenos países para que combatessem entre si). A aceitação de um país no Conselho de Segurança, cinquenta anos depois, demonstra claramente que as quatro grandes potências não poderiam sofrer a influência de um Estado que detinha conhecimentos nucleares. O melhor era torná-la aliada no jogo do poder. 19 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 624. 20 Idem, p. 625. 21 Ibidem, p. 627. 22 Trindade, Antonio Augusto Cançado (Op. Cit, p. 695) explica que “Ao longo da década de noventa, o Conselho de Segurança tem atuado em uma diversidade de situações, que incluem os conflitos internos no Iraque (1991), Iugoslávia (1991) e Somália (1992), os conflitos civis na Libéria e Angola (1992-1993), as violações generalizadas do direito humanitário na Bósnia (1993), e as maciças crises humanitárias decorrentes dos conflitos em Ruanda, Burundi, Zaire, Albânia, Kosovo, Timor Leste e Serra Leoa (1994-1999). O Conselho de Segurança, em mais de uma ocasião, tem se deixado guiar por uma ampla visão do que possa constituir uma ameaça à paz, - o que contrasta claramente com sua virtual paralisia durante o período da guerra fria. 157 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos No início da década de noventa, os Estados Unidos saíram-se vitoriosos da Guerra Fria e novamente aplicam a justiça dos vencedores aos perdedores. O panorama mundial apresenta uma substancial mudança nos eixos econômicos e assim têm início conflitos armados que violam os direitos humanos, constituindo-se novos tribunais de exceção para julgar os vencidos23. A Guerra dos Bálcãs começa em 1991, quando a Eslovênia e a Croácia declararam guerra contra a Iugoslávia, sendo que o conflito armado tem longa duração, incluindo combates na Bósnia-Herzegovina. O Conselho de Segurança da ONU decidiu, em maio de 1993, por meio das resoluções 808 e 82724, a constituição de um Tribunal ad hoc para julgar os casos de crimes cometidos durante aqueles conflitos armados. O Tribunal Penal para julgar crimes cometidos na Ex-Iugoslávia, suplantado pelas premissas de Nuremberg, foi criado exclusivamente para julgar os acusados de assassinatos em massa, detenção sistemática organizada, estupro de mulheres e prática da limpeza étnica ocorridos naqueles conflitos.25 Alexis Augusto Couto de Brito afirma que [...] A competência ratione materiae do Tribunal é para o processo das violações às Convenções de Genebra de 1949, violação das leis ou costumes de guerra, crimes de genocídio e crimes contra a humanidade, ocorridos desde 1991.26 Conforme Flávia Piovesan, até o ano de 2011, o Tribunal Penal para a Ex-Iugoslávia, com sede na cidade de Haia, nos Países Baixos, já tinha indiciado 161 pessoas pela prática de violações graves ao Direito Internacional Humanitário. Desses, 126 acusados já foram sentenciados com 13 absolvições, 64 condenações e 13 encaminhamentos à jurisdição nacional. Outros 36 tiveram sua acusação retirada ou morreram no transcurso processual27. Em julho de 1994, o Conselho de Segurança da ONU criou uma Comissão de Investigação sobre as atrocidades ocorridas na guerra civil em Ruanda28. Com base nos relatórios apresentados pela referida Comissão, 23 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais, ano 94, v. 840, out 2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 479. 24 O texto integral das resoluções pode ser obtido em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/ N93/098/21/IMG/N9309821.pdf?OpenElement e http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/306/28/ IMG/N9330628.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov 2012. 25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70. 26 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Op. Cit., p. 480. 27 PIOVESAN, Flávia. Op. Cit., p. 76. 28 Brito, Alexis Augusto Couto de. (Op. Cit., p. 480) explica como eclodiu o conflito civil em Ruanda: “Na história de Ruanda, o grupo tribal Tutsi foi a elite minoritária e aristocrática que controlou cerca de 85% da população de etnia Hutu. Após a independência da colônia, controlada pela Bélgica até 1962, os Hutus controlaram as forças militares até 1994, quando a morte do presidente de Ruanda incitou os Hutus ao enfrentamento da Frente Patriótica Ruandesa, formada pelos Tutsi, o que deu início a uma verdadeira carnificina. Em abril de 1994, 158 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior o órgão decide pela criação de mais um Tribunal ad hoc, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda inspirado no Estatuto do Tribunal para a ExIugoslávia, por meio da resolução no. 95529. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com sede em Arusha, na Tanzânia, até maio de 2011, somente havia decidido 50 casos com 8 absolvidos. Desses, 8 acusados aguardam decisão em sede de apelação, 2 tiveram a acusação retirada, 3 morreram e 11 estavam foragidos.30 As penas impostas se mostraram pesadas, com 18 casos de prisão perpétua, 11 penas maiores que 25 anos e 13 menores que 25 anos31. Os dois Tribunais, para a Ex-Iugoslávia e para a Ruanda, foram criados pelo Conselho de Segurança, órgão responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais. Nos três casos em que foram criados tribunais ad hoc (Nuremberg, ExIugoslávia e Ruanda) a criação destes órgãos jurisdicionais estava eivada de poderosa margem política, com notória parcialidade, que vai desde a escolha dos julgadores, sempre atrelada aos vencedores do combate, até na aplicação de duras penas que contrariam direitos humanos, como o caso da pena de morte. Além desses casos, é importante destacar a criação de outros dois Tribunais de exceção, a Corte Especial para Serra Leoa e as Câmaras Extraordinárias nos Tribunais do Camboja. Ambos as cortes foram criadas pelo Conselho de Segurança32, com condução conjunta entre o Governo local e a ONU, devendo, no primeiro caso, julgar os acusados do conflito ocorrido em Serra Leoa33, depois de novembro de 1996 e, no segundo caso, os líderes do Khmer Vermelho pelo golpe de Estado, realizado entre Habyarimana, presidente de Ruanda, juntamente com o presidente do Burundi, são mortos quando o avião em que viajavam é derrubado ao sobrevoar Kigali. A Frente Patriótica de Ruanda lança uma ofensiva e a milícia extremista Hutu, com a colaboração de integrantes do Exército ruandês, começa um massacre sistemático de Tutsis. Em cem dias, cerca de 800 mil Tutsis e Hutus moderados são mortos. Milicianos Hutus fogem para o Zaire (depois batizado de República Democrática do Congo). Cerca de dois milhões de refugiados Hutus também fogem com os milicianos. 29 Texto integral da Resolução disponível em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/140/97/ PDF/N9514097.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov. 2012. 30 O Tribunal de Ruanda foi seriamente criticado por sua pouca efetividade ante o alto custo empreendido pelas Nações Unidas que, entre 2002 e 2003, destinou ao Tribunal quase 180 milhões de dólares. (BRITO, Alexis Augusto Couto de. Op. Cit., p. 481) 31 PIOVESAN, Flavia. Op. Cit., p. 77. 32 A Corte Especial para Serra Leoa foi criada por meio da resolução n. 1315 de 2000. Disponível em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/605/32/PDF/N0060532.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov 2012; e o 33 Os conflitos em Serra Leoa ocorreram pelo choque entre o Governo e a Frente Revolucionária Unida (FRU). O movimento guerrilheiro desejava conduzir um Golpe de Estado, pois seus líderes estavam insatisfeitos com os abusos de poder e corrupçãodo então presidente Joseph Momoh. O conflito foi conhecido pelo uso de crianças como soldados e ainda pelo financiamento feito pelos “diamantes de sangue” (pedras preciosas que eram mineradas por pessoas em condições análogas a de escravos). Disponível em: http://www.brasilescola.com/ geografia/serra-leoa.htm. Acesso em 17 nov. 2012. 159 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos 1975 a 197934, com a execução de mais de 1 milhão e 700 mil pessoas35. 4º da Carta das Nações Unidas39. Todos os Tribunais mencionados foram financiados pelas potências hegemônicas, que anteriormente também financiaram os conflitos, deixando os países de fraca posição política e econômica com rastro de destruição e mazela. Conforme assinala Noam Chomski, Na abertura da 16ª Cúpula dos Países Não Alinhados40, em Teerã, na presença do Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, o Presidente do Irã, Ali Khamenei, declarou que “O Conselho de Segurança das Nações Unidas é uma estrutura irracional, injusta e totalmente antidemocrática, que constitui uma ditadura”41. Essa declaração mostra que, aos olhos de parte da comunidade internacional, as atividades do Conselho de Segurança visam somente garantir a manutenção do poder das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial42. Para sangrar o Vietnã, nós apoiamos indiretamente o Khmer Vermelho por intermédio de nossos aliados, China e Tailândia. Os cambojanos tiveram de pagar com sangue até estarmos seguros de que não haveria recuperação no Vietnã. Os vietnamitas foram punidos por terem enfrentado a violência norte-americana36. No Kosovo, situado no território da antiga Ex-Iugoslávia, a OTAN realizou um ataque37 sem a autorização do Conselho de Segurança e sob nenhuma base internacionalmente jurídica, mas não teve nenhum de seus líderes ou militares julgados pelo Tribunal Penal Internacional para Ex-Iugoslávia. Três denúncias formais foram apresentadas contra os vencedores, mas em todos os casos o Tribunal decidiu arquivar as denúncias sem qualquer investigação, por considerá-las manifestamente infundadas. Segundo Danilo Zolo, Las razones jurídicas aducidas por la fiscalía del tribunal para justificar el archivo de estas gravíssimas acusaciones remiten a la general “conducta responsable” de la OTAN, que jamás habría usado la fuerza para provocar “directa o indirectamente victimas civiles”, a la ausencia de intencionalidad dolosa y al caráter completamente accidental de algunos errores técnicos o de algunas carencias en la informacion38. A aplicação da justiça para os perdedores mostra que o cenário internacional, por influência das potências vencedoras nos Tribunais ad hoc, sancionou as violações ao jus in bello. Mas, deixou de condenar os crimes da chamada “guerra de agressão”, que diz respeito ao artigo 2º, p. 34 Desde 1954, o Camboja era liderado pelo príncipe Norodom Sihanouk. Os conflitos no território cambojano ocorreram com a instabilidade ocasionada pela Guerra no Vietnã (1959-1975), principalmente quando o Governo Americano ordenou, em 1969, o bombardeio das fronteiras Cambojanas. O frágil regime de Sihanouk não resistiu e, em 18 de março de 1970, sofreu um golpe de Estado liderado pelo General Lon Nol. O khmer vermelho surgiu sob as bases do Partido Comunista do Camboja e passou a invadir e dominar territórios cambojanos. Em 17 de abril de 1975, o Khmer, num golpe de estado, toma o poder do país e instala um regime de trabalho forçado, com torturas, assassinatos e desaparecimento de pessoas. Conforme FRANKE, Bruno Scalco. Tribunais Híbridos: O caso das câmaras extraordinárias nas cortes do Camboja. 2010. Disponível em: http://idejust.files.wordpress. com/2010/04/ii-idejust-franke.pdf . Acesso em: 17 nov. 2012. 35 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais, ano 94, v. 840, out 2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 482. 36 CHOMSKI, Noam. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasília: Universidade de Brasilia, 1999, p. 36. 37 O ataque usou das mortíferas bombas cluster, que são proibidas por tratado internacional ratificado pelos países da OTAN e de projéteis que dispersam urânio (material radioativo) que contamina o solo, a água e os alimentos, causando, a longo prazo, tumores, leucemias, nascimento de fetos deformados etc. (ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p. 46-47). 38 Idem, p. 46. 160 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior Na visão de Antonio Augusto Cançado Trindade, “O certo é que o Conselho de Segurança ainda não se renovou institucionalmente, continua apegado a uma estrutura de poder anacrônica e a um processo decisório autocrático e visto pela imensa maioria dos países do mundo como oligárquico e injusto”43. Nas guerras do Golfo, na Somália, em Ruanda, no Haiti, na BósniaHerzegovia e no Kosovo, os Estados detentores de grande poder econômico tiveram a anuência do Conselho de Segurança para conduzirem operações militares de “paz forçada”. As operações, com poderes ilimitados, foram autorizadas por aquele Conselho que, na verdade, abdicou de sua principal função, qual seja, impedir e limitar o uso da força nos conflitos internacionais44. No ano de 1998, após árduo processo de negociação e a oposição veemente dos Estados Unidos, foi adotado o Estatuto de Roma, dando origem ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que, diferente de seus antecessores, tem caráter permanente, respeitando os princípios da legalidade e anterioridade penal45. 39 Carta da ONU, Artigo 2 - A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: [...] 4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. Texto completo da Carta está disponível em PLANALTO: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm Acesso em: 5 nov. 2012. 40 O Movimento dos países não alinhados é uma associação que reúne 115 países, em geral nações em desenvolvimento, com o objetivo de criar um caminho independente no campo das relações internacionais. Acerca do NAM, visitar a homepage: http://www.nam.gov.za/background/history.htm. Acesso em 17 nov. 2012. 41 Disponível em AGÊNCIA BRASIL: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-08-30/lider-religioso-do-iracobra-reformas-no-conselho-de-seguranca-da-onu. Acesso em: 28 out. 2012. 42 CHOMSKI, Noam (Op. Cit., p. 35) aponta que “desde 1970, os Estados Unidos têm vetado muito mais resoluções no Conselho de Segurança do que as outras nações (a Inglaterra em segundo lugar, a França em terceiro e a URSS em quarto)” na tentativa de bloquear a atuação da ONU que busca de uma igualdade política. 43 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 699. 44 ZOLO, Danilo. Op. Cit.,.p. 34. 45 Referidos alicerces encontram-se encampados (grifos nosso) nos artigos 1°: “É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto”; 11: “1. O Tribunal só terá competência relativamente aos crimes 161 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos O Estatuto de Roma teve sua entrada em vigor no dia 1º de julho de 200246, mas desde 1948 já se cogitava de sua criação. A década de noventa, marcada pelos conflitos da Iugoslávia e de Ruanda, reascendeu a discussão para sua criação, muito embora o projeto inicial tenha sido rejeitado por não se preocupar com as aspirações político jurídicas dos países hegemônicos47. É notório identificar que até a propositura do TPI, quase todos os processos por infrações ao Direito Internacional Humanitário correram a cargo de Tribunais de exceção, criados e constituídos pela parte vencedora do conflito beligerante, e possuíram caráter de transitoriedade, parcialidade, além de forte carga política e militar48. Uma importante diferença que o TPI traz refere-se ao seu caráter de complementariedade, disposto no art. 1º do Estatuto de Roma49. Nesse sentido, o Tribunal somente terá sua jurisdição mediante a incapacidade ou inexistência de Poder Judiciário nacional capaz de exercer o julgamento. A competência do Tribunal, por sua vez, está delineada nos artigos 5º ao 9º do Estatuto de Roma, que previram: os “crimes de genocídio, como qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso; os crimes contra a humanidade, definidos pelo Estatuto como todo ato cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil; os crimes de guerra, que são aqueles cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala e o crime de agressão50. cometidos após a entrada em vigor do presente Estatuto. 2. Se um Estado se tornar Parte no presente Estatuto depois da sua entrada em vigor, o Tribunal só poderá exercer a sua competência em relação a crimes cometidos depois da entrada em vigor do presente Estatuto relativamente a esse Estado, a menos que este tenha feito uma declaração nos termos do parágrafo 3o do artigo 12” e 22: “1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver lugar, um crime da competência do Tribunal. 2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada. 3. O disposto no presente artigo em nada afetará a tipificação de uma conduta como crime nos termos do direito internacional, independentemente do presente Estatuto.” Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 30 out 2012. 46 O Brasil promulgou o Estatuto de Roma e, portanto, está sob a jurisdição do TPI, por meio do decreto n. 4.388 de 15 de setembro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388. html. Acesso em: 29 out 2012. 47 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. Cit., p. 941 48 SEGUCHI, Erika. Precedente Histórico da Criação do Tribunal Penal Internacional. Revista da Faculdade de Direito de Machado, v. 1, n. 1, jul/dez. Machado: IMES/FUMESC, 2004. p. 84. 49 Artigo 1°: “É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto”. Obtido em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 30 out. 2012. 50 No artigo 5°, são definidos os crimes de competência do TPI, e nos artigos seguintes há a tipificação dos delitos penais internacionais. Para maior aprofundamento do tema, ver o Estatuto na íntegra em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm 162 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior Salutar demonstrar que o crime de agressão, ainda que tenha sido estipulado no rol de tipos penais sob jurisdição do TPI, é afastado da competência do Tribunal, pelo artigo 5º do Estatuto de Roma, que requer disposição posterior definindo o crime51. Consoante ao artigo 16 do referido Estatuto, pode o Conselho de Segurança solicitar que o inquérito ou procedimento crime seja adiado por um período de 12 a 24 meses (no caso de renovação do pedido), impedindo a investigação dos vencedores52. Outra importante nota aplicável ao TPI refere-se a sua possibilidade de estender a jurisdição a países não signatários do Estatuto de Roma. O art. 13, b53 da norma estipula que o Conselho de Segurança poderá encaminhar denúncia ao procurador nas situações que haja indícios do cometimento de crimes internacionais. Com todos os louvores recebidos54, a aprovação do TPI se deu graças à ação conjunta dos países latino-americanos, de delegações africanas e ainda de alguns países do leste europeu, que 120 votos favoráveis aprovaram o projeto55. Em contrapartida, as grandes potências permaneceram relutantes, chegando a delegação dos Estados Unidos a declarar que o julgamento de alguns de seus militares ou dirigentes seria inaceitável56. Como também que a cooperação internacional somente ocorreria se acordos bilaterais prévios garantissem a imunidade de seus soldados, conforme o artigo 9857 51 Artigo 5°: “1. [...];2. O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/2002/D4388.htm. Acessado em: 30 out. 2012. 52 O artigo 16 assim traduz a matéria:” Nenhum inquérito ou procedimento crime poderá ter início ou prosseguir os seus termos, com base no presente Estatuto, por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; o pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acessado em: 30 out 2012. 53 Reza o artigo; O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se refere o artigo 5o, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se: [...] b) O Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes;” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em: 18 nov 2012. 54 PIOVESAN, Flavia. (Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 83) mais otimista com a aplicação do TPI averba: “Consagra-se o princípio da universalidade, na medida em que o Estatuto de Roma se aplica universalmente a todos os Estados-Partes, que são iguais perante o Tribunal Penal, afastando a relação entre “vencedores” e “vencidos”. Com toda a vênia possível ousamos discordar da renomada Autora conforme as linhas expostas no trabalho. 55 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Op. Cit., p. 947. 56 CASELLA, Paulo Borba. Op. Cit., p.855. 57 Artigo 98: “1. O Tribunal pode não dar seguimento a um pedido de entrega ou de auxílio por força do qual o Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem à luz do direito internacional em matéria de imunidade dos Estados ou de imunidade diplomática de pessoa ou de bens de um Estado terceiro, a menos que obtenha, previamente a cooperação desse Estado terceiro com vista ao levantamento da imunidade. 2. O Tribunal pode não dar seguimento à execução de um pedido de entrega por força do qual o Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem em virtude de acordos internacionais à luz dos quais o consentimento do Estado de envio é necessário para que uma pessoa pertencente a 163 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos do Estatuto de Roma58. Fato é que os Estados Unidos jamais ratificaram o Estatuto de Roma e atuam em guerras espalhadas pelo globo de forma a prejudicar o trabalho do TPI, explorando a seu favor as regras impostas pelo referido Estatuto. Dez anos após a instalação do TPI, suas ações parecem pender somente para a investigação e acusação de países pequenos e com menores influências políticas, deixando os vencedores sob o manto da proteção supranormativa, alicerçado no poder político, econômico e global. Em 2004, foram instauradas duas investigações na África, uma na República da Uganda e outra na República Democrática do Congo, sendo que em 2005 o TPI determinou seu primeiro mandado de prisão para o Líder da Resistência Armada em Uganda, Joseph Kony. Em 2007, também foram abertas investigações na República Centro Africana, com mandando de prisão em face de Jean-Pierre Bemba Gombô, acusado de crimes de guerra59. Paralelamente, em 2005, o TPI instaurou investigações na região de Darfur, no Sudão, que culminou na expedição, em 2007, de mandado de prisão para Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman e Ahmad Muhammad Harun, supostos líderes da milícia, e, em 2009, também para Omar AlBashir, presidente do Sudão60. Por meio da resolução n. 1970/2011, o Conselho denunciou, sob o suporte do art. 13, b, do Estatuto, os conflitos no Estado Libanês. As investigações se mostraram nefastas: quatro investigadores do TPI foram presos preventivamente por 45 dias e foram liberados após negociações internacionais61. Posteriormente, foram expedidos mandados de prisão contra o ditador da Líbia, Muammar Gaddafi, de seu filho, Saif Al-Islam Gaddafi, e do chefe de inteligência, Abdullah Al-Senussi. Os três suspeitos libaneses e os líderes sudaneses não foram presos, pois nos dois casos o TPI não possuía jurisdição para requerer a intervenção da polícia local, sendo todos os denunciados considerados foragidos, mesmo ocupando cargos no governo local62. esse Estado seja entregue ao Tribunal, a menos que o Tribunal consiga, previamente, obter a cooperação do Estado de envio para consentir na entrega.” 58 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da escola de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005. p. 696. 59 A situação detalhada dos processos abertos pelo TPI, tais como procedimentos adotados, mandatos de prisão, decisoes, etc., encontram-se amplamente divulgados no site oficial da Corte em: http://www.icc-cpi.int/Menus/ ICC/Situations+and+Cases/. Acesso: 17 nov 2012. 60 Idem. 61 Disponível em VEJA: http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/equipe-do-tpi-na-libia-em-prisaopreventiva-por-45-dias. Aceso em: 18 nov 2012. 62 Disponível em CONJUR: http://www.conjur.com.br/2011-jun-27/tribunal-penal-internacional-mandaprender-presidente-libia. Acesso em 18 nov 2012. 164 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior Por fim, em 2010 e 2011, o TPI apresentou processos de investigação sobre supostos crimes internacionais ocorridos no Estado do Quênia entre 2007 e 2008, sobre a situação do Estado Libanês e sobre possíveis crimes internacionais na Costa do Marfim63. O fato de que os seis casos atualmente diante do TPI envolvem africanos, conjugado aos esforços empreendidos pelos países ocidentais para imunizar seus soldados que combatem em território estrangeiro, e que cometem crimes enquadrados na jurisdição do Tribunal, provoca grande desconfiança na África. Resta lembrar que passam longe do TPI os crimes cometidos pela Rússia na Chechênia, pelos EUA e pela Inglaterra no Iraque e no Afeganistão, e por Israel na Palestina e no Líbano64. A pergunta posta pelo presidente da Comissão da União Africana ilustra bem a desconfiança: “o Procurador do TPI só condena africanos, só julga africanos... será que os problemas só existem na África?”. A questão é legítima, principalmente quando lembramos que potências como EUA, China e Rússia (sem falar de Israel) não são Estados-Partes do TPI, muito embora pretendam impor sua jurisdição aos países africanos, ao mesmo tempo em que recusam submissão a ele65. A justiça internacional de medidas desiguais se faz também presente no TPI. Enquanto as potências hegemônicas não aceitam sua jurisdição, mantendo sob o manto da impunidade suas ações e dirigentes, essas participam, por meio do Conselho de Segurança, de denúncias e investigações nos países que lhe aprouverem. São países que detém a força de determinar investigações e até mesmo intervenção militar sobre outros países, sem sofrerem qualquer represália jurídica. Os casos da Líbia e Sudão mostram claramente os dois pratos da justiça. Por todo o transcurso da história, a justiça internacional dos crimes humanitários foi aplicada por dois prismas diferentes: um na visão dos vencedores, que se mantinham impunes de qualquer julgamento, pois detinham a espada da justiça; e outro na visão dos vencidos, que se obrigavam às mordaças, por vezes extremadas, de seus agressores. Mas, será que aos novos conflitos a justiça internacional ainda reflete duas medidas diferentes? A nova ordem mundial não aceita que os países se mantenham na neutralidade, mas antes requer sua participação em múltiplos acordos entre os países e as instituições internacionais. Ocorre que, sob a égide 63 As decisões do Tribunal e de suas câmaras podem ser encontradas em: http://www.icc-cpi.int. Acesso em: 29 out 2012. 64 Disponível em CARTA MAIOR: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5522. Acesso em 17 nov. 2012. 65 Idem. 165 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos de manutenção da segurança mundial, muitas alianças bélicas também são realizadas. O pensamento de José Maria Gómez parece consolidar os acontecimentos que vivenciamos com a cultura da guerra global: [...] o panorama da política mundial não é, sem dúvida, dos mais animadores: unilateralismo belicoso de uma única superpotência infringindo o direito internacional e as instituições e práticas multilaterais, com perda de legitimidade hegemônica em vários lugares do planeta; ascensão vertiginosa da questão da segurança nas agendas nacionais, regionais e global; disseminação nas próprias democracias liberais de políticas “contraterroristas” que suspendem o Estado de Direito e reduzem certas pessoas a meros corpos sem direitos; expansão de redes de terrorismo islamita desterritorializado, tecnologizado e absolutizado em sua dimensão teológico-política; justificação da “guerra preventiva” como instrumento indispensável para enfrentar situações de “conflito assimétrico” e suprimir as ameaças de uso de armas de destruição em massa por parte dos “inimigos da humanidade” – terroristas islâmicos e Estados “párias”; deflagração de guerras de agressão entre Estados (em especial, as dos EUA contra o Afeganistão e o Iraque) e existência de conflitos armados e guerras civis em Estados fracos ou em colapso, com suas sequelas de destruição, morte, ódio e desestabilização regional; tentativas de reconfiguração espacial do direito internacional, reeditando antigas dicotomias entre a força da lei para os civilizados e a força sem lei para os “bárbaros.”66 Danilo Zolo chama os novos conflitos de “guerra global”. Alude o autor que o processo de mudança da antiga guerra para a guerra global ocorreu em quatro conflitos distintos: a guerra do Golfo de 1990, as guerras nos Bálcãs, ocorridas no período de 1991 a 1999 e as guerras permanentes no Afeganistão, iniciada em 2001, e no Iraque, que teve início em meados de 2003.67 Acrescenta ainda o referido autor que “Trata-se de eventos bélicos que se desenvolveram todos sob o mesmo suporte político-econômico. [...] A circunstância não pode ser considerada casual do ponto de vista geopolítico e geoeconômico em uma área relativamente restrita do planeta”, que representa uma das maiores reservas de recursos enérgicos do planeta.68 A nova guerra, para Danilo Zolo, é compreendida sob quatro aspectos primordiais, quais sejam, o geopolítico, o sistêmico, o normativo e o 66 GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago. 2008. Rio de Janeiro: PUC, 2008, P. 282. 67 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianopolis: Conceito Editorial, 2010, pp. 94-98. 68 Idem, p. 94. 166 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior ideológico.69 No sentido geopolítico, a guerra deixa de ser influenciada pelos espaços do tempo e do território. As maiores potências econômicas e militares realizam combates para manter uma ordem global que garanta o acesso livre às fontes energéticas, bem como ao desenvolvimento econômico e industrial. A nova guerra deseja controlar a hegemonia mundial sem interferir nas dimensões territoriais.70 Quanto ao aspecto sistêmico, a nova guerra utiliza-se de vantagens nucleares, de informática e inteligência para manutenção de um poder hegemônico, ditando as regras do poder. Os países poderosos utilizam do terror de armas nucleares, ao mesmo tempo em que impedem que outros países tenham tais armas.71 O conflito ocorre em uma disparidade de tecnologias, em que grandes poderios bélicos combatem pequenas forças militares, que são incapazes de reação ou mesmo do vislumbre da vitória. No combate entre Israel e as forças do Hamas, na faixa de Gaza, a Força Aérea Israelense possuía mais de quatrocentas aeronaves de ataque, entre caças e helicópteros de ataque, enquanto o grupo Hamas combatia através de pequenas milícias, com armamento de pouca força bélica, normalmente armas individuais ou de pouco alcance.72 Para Noam Chomski, o que as potências desejam é manter uma linha de participantes de forma obediente, como meros espectadores, uma comunidade de indivíduos que não conseguem unir seus recursos para tornarem-se uma força capaz de desestruturar o poder concentrado.73 No plano normativo, a guerra é aquela que se esquiva da proibição do uso da força, estipulada nas normas internacionais. O conflito vai contra regras estipuladas no plano internacional, ao arrepio de acordos, tratados ou mesmo organismos, como por exemplo, a Organização das Nações Unidas e seu Conselho de Segurança. A hegemonia deve ser mantida através da aplicação de uma justiça que dá privilégios e garantias às potências.74 Fábio Comparato denuncia que O acesso dos Estados Unidos à condição de potência hegemônica mundial, após o esfacelamento da União Soviética, constitui séria ameaça à reorganização das relações internacionais num sentido comunitário. O último tratado internacional de direitos humanos integralmente ratificado pelos Estados Unidos foi o Pacto aprovado pelas Nações Unidas em 1966, 69 Ibidem, p. 90-92. 70 ZOLO, Danilo. Op. Cit., p. 95 71 Idem, p. 96. 72 HONORATO, Marcelo. O Direito de Matar e os Ataques Israelenses à Faixa de Gaza. 2009. Disponível em JUS NAVIGANDI: http://jus.com.br/revista/texto/12209/o-direito-de-matar-e-os-ataques-israelenses-a-faixa-degaza/2#ixzz2Bdxeo1ZX. Acesso em 28 out. 2012. 73 CHOMSKI, Noam. Op. Cit., p. 33. 74 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 98. 167 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos sobre direitos civis e políticos. O Pacto gêmeo sobre direitos econômicos, sociais e culturais teve sua ratificação rejeitada pelo congresso norteamericano. A partir de então, os Estados Unidos vêm se recusando, sistematicamente, a se submeter às normas internacionais de proteção aos direitos humanos, por considerarem que isto implica uma limitação de sua soberania.75 Como último conceito de guerra global, tem-se o caráter ideológico em que as grandes potências procuram promover guerras sustentadas pelo ideal de inclusão de valores ditos universais. A cultura dos vencedores é aplicada sobre seus vencidos como a melhor cultura, a máxima ideologia libertária, o correto direito humano76. As quatro formas de guerra global demonstram a permanência da justiça aplicada pelos vencedores aos vencidos com fortes influências econômicas e de manutenção do poder. As ingerências que ocorrem atualmente no Irã demonstram fortemente uma futura guerra ante sua relevância geopolítica e geoestratégica. Por conter uma das maiores reservas de petróleo do planeta (o Golfo Pérsico), capazes de abalar o comércio dessa energia, elevando o barril do petróleo a altíssimos preços e maximizando o lucro das potências mundiais, notadamente dos Estados Unidos, e ainda, por sua posição geoestratégica, que interliga o subcontinente indiano ao Mar Mediterrâneo, “a ocorrência da guerra parece demonstrar o único meio de resolver quem é o líder do mundo islâmico”77. O possível conflito no Irã reveste-se do combate global sistêmico, em que as potências detentoras de tecnologia nuclear tentam impedir que o país, que publicamente declarou estar realizando testes com energia nuclear para fins pacíficos, adquira tal tecnologia. Somado a estes conflitos vemos a marcha empreendida contra a “Guerra ao Terror”. A bandeira levantada após os ataques de onze de setembro, incitou os Estados Unidos a realizarem caçadas mundiais contra grupos terroristas que compunham o chamado “Eixo do Mal”78. Consoante a isso, Danilo Zolo diz que 75 COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 543. 76 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004, p. 204-205. 77 Estas palavras foram proferidas pelo presidente do Instituto de Estudos sobre o Oriente Médio, Evguêni Satanóvski. Disponível em DEFESANET: http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/7422/Tambores-deGuerra---Ameaca-de-conflito-no-Ira-e-real--diz-especialista-. Acessado em 30 out 2012. 78 “A expressão “Eixo do Mal” foi utilizada pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em seu discurso anual no Congresso norte-americano em 2002, para se referir a três países (“Estados vilões”) que constituíam uma grave ameaça ao mundo e à segurança dos Estados Unidos: Coréia do Norte, Irã e Iraque. Estes países, segundo Bush, desenvolviam armas de destruição em massa ou patrocinavam o terrorismo regional e mundial, ou faziam as duas coisas ao mesmo tempo. Mais tarde os Estados Unidos incluíram também Cuba, Líbia e Síria a este seleto grupo de países. A expressão eixo do mal é uma dupla referência histórica: eixo lembra o eixo Berlim-Roma na Segunda Guerra Mundial (nazifascismo) e mal retoma o termo império do mal, forma como o governo Reagan se referia à União Soviética durante a Guerra Fria. Um eixo do mal mantém latente a ameaça exterior e justifica a necessidade de manutenção de um expressivo orçamento, do governo Bush, na defesa.” MENDONÇA, Cláudio. 168 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior Hoy em dia la guerra global “preventiva”, teorizada y praticada por Estados Unidos y sus aliados occidentales más afines, parece una prótesis necesaria para el desarrollo de procesos de globalización que dividen cada vez más al mundo em ricos y poderosos, por un lado, y pobres y débiles, por el outro, mientras que el llamado global terrorism devino el contrapunto igualmente sanguinário y nihilista del conflicto neocolonial que enfrenta a Occidente con los países que se resisten a su pretension hegemónica planetária79. Enquanto as tropas americanas invadiam o Afeganistão, apoiados por alianças que incluíam a OTAN, em seu combate ao terror, o Senado dos Estados Unidos aprovava o Patriot Act, que suspendeu as restrições à ação governamental com relação aos direitos civis. Também o governo norte-americano emitiu, em novembro de 2001, ordem que autorizava a detenção indefinida de estrangeiros, proibindo o acesso aos tribunais existentes e, no caso de acusação, o Poder Executivo nomearia comissões militares, como os antigos tribunais de exceção80. Por outro lado, o governo estadudinense estabeleceu que os prisioneiros talibãs ou membros da Al Qaeda (grupo combatido como célula terrorista) não estavam amparados pelo artigo 3º, comum as Convenções de Genebra81.Portanto, poderiam sofrer torturas, maus tratos, tratamentos humilhantes e degradantes82. Os Estados Unidos, juntamente com a OTAN, também invadiram o Iraque, sem a aprovação do Conselho de Segurança, sob o pretexto de que o país possuía armas biológicas de destruição em massa. Posteriormente, o líder iraquiano, Saddam Hussein, foi perseguido, condenado à pena de morte e enforcado, sob o ideal de implantação da democracia no Estado. “Guerra contra o terrorismo e o eixo do mal”. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/ doutrina-bush-guerra-contra-o-terrorismo-e-o-eixo-do-mal.htm. Acesso em 2 nov. 2012. 79 ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p. 27. 80 GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago 2008. Rio de Janeiro: PUC, 2008, p. 272-274. 81 O artigo 3°, comum as Convenções de Genebra, diz o seguinte: No caso de conflito armado que não apresente um carácter internacional e que ocorra no território de uma das Altas Partes contratantes, cada uma das Partes no conflito será obrigada aplicar, pelo menos, as seguintes disposições: 1) As pessoas que não tomem parte diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo. Para este efeito, são e manterse-ão proibidas, em qualquer ocasião e lugar, relativamente às pessoas acima mencionadas: a) As ofensas contra a vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios; b) A tomada de reféns; c) As ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes; d) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem prévio julgamento, realizado por um tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados. 2) Os feridos e doentes serão recolhidos e tratados. Um organismo humanitário imparcial, como a Comissão Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer os seus serviços às partes no conflito. As Partes no conflito esforçar-se-ão também por pôr em vigor, por meio de acordos especiais, todas, ou parte, das restantes disposições da presente Convenção. A aplicação das disposições precedentes não afetará o estatuto jurídico das Partes no conflito. Disponível em: http://www.icrc.org/por/resources/documents/treaty/treaty-gc-0-art3-5tdlrm. htm. Acesso em 3 out. 2012. 82 GOMEZ, José Maria. Op. Cit., p. 272. 169 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos O final da invasão no Iraque, em junho de 2004, mostrou que as supostas armas biológicas e químicas de destruição em massa jamais foram encontradas, bem como as alegadas ligações de Saddam com grupos terroristas islâmicos nunca foram comprovadas. Com isso, o discurso norte americano passa a defender a intervenção no Iraque como uma promoção para implantação da democracia e da paz, ante o governo autoritário de Sadam Husseim83. Sob todas estas ações, o governo norte-americano realizava procedimentos para assegurar cobertura legal aos agentes, dando-lhes amparo normativo para continuarem com os métodos alternativos de investigação e tratamento aos presos84.Verifica-se que a bandeira de combate ao terrorismo foi levantada pelos países dominantes, garantindo a expansão de bases militares espalhadas pelo mundo, propiciando o controle de pontos específicos e estratégicos, principalmente nas regiões de riquezas e reservas de energia85. Observe-se que a guerra contra o terrorismo também é utilizada por China e Rússia, como arcabouço para acirrar o combate de seus adversários políticos, generalizando conflitos civis, que criaram extremismos e separações sociais. A justiça de vencedores e vencidos, portanto, permanece no cenário internacional, desde o início com a constituição do Tribunal de Nuremberg e, até mesmo, após a criação do Tribunal Penal Internacional. O sistema de segurança das Nações Unidas não pode se transformar em meio de obtenção de carta de alforria para que as potências militares realizem intervenções, com caráter político e hegemônico, em outros países. Tampouco, organismos internacionais, como o caso da OTAN na guerra do Kosovo, podem se aclamar porta-vozes da comunidade internacional86. A justiça desigual formada nos bancos dos Tribunais de exceção, desde Nuremberg aos dias atuais, dá vivas mostras de privilégios aos vencedores por seu poderio econômico, bélico e político. A guerra global vem arraigada em ações manipuladas que, ao arrepio das normas internacionais, sustentam as hegemonias no poder. Discursos que defendem princípios humanos, criação de Estados democráticos, 83 Disponível em GLOBO: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL922333-5602,00-INVASAO+DO+IRAQ UE+FOI+TAREFA+NECESSARIA+AFIRMA+BUSH+EM+VISITA+SURPRESA+AO+P.html e http://noticias.terra.com.br/ mundo/noticias/0,,OI698058-EI865,00-Bush+Deus+ordenou+invasao+do+Iraque+e+Afeganistao.html. Acesso em;18 nov. 2012. 84 Idem, p. 275. 85 Ibidem, p. 276. 86 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 697 170 Larissa Ramina e Moacir Iori Junior combate a redes terroristas, mostram-se como meras fachadas para ações dos vencedores na manutenção da condição de subordinação dos vencidos. Ainda assim, a mudança é sentida na nova ordem mundial. A necessidade cada vez maior de dependência e cooperação entre os Estados, principalmente pelos países periféricos, confere os contornos para o surgimento de uma nova justiça internacional. A criação de uma jurisdição universal internacional mostra vivas esperanças de que a cultura nascida sob a justiça dos vencedores acabe por ser banhada, no respeito de uma ordem jurídica plasmada, em princípios superiores a vontades políticas de mando e poder87. A cooperação entre os Estados deve criar não somente alianças, que mantenham a justiça de vencedores e vencidos, mas que aplique a justiça com imparcialidade nos anseios de uma ordem cosmopolita. Referências AGÊNCIA BRASIL: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-08-30/lider-religioso-doira-cobra-reformas-no-conselho-de-seguranca-da-onu. ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da escola de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Tradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. BRITO, Alexis Augusto Couto de. 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O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da escola de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005, p. 193. 171 OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos do Camboja. 2010. Disponível em: http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejustfranke.pdf. Acesso em: 17 nov. 2012. GLOBO: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL922333-5602,00-INVASAO+DO+IRA QUE+FOI+TAREFA+NECESSARIA+AFIRMA+BUSH+EM+VISITA+SURPRESA+AO+P.html GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago 2008. Rio de Janeiro: PUC, 2008. HELD, David; MCGREW, Anthony. Prós e Contras da Globalização. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. HOBSBAWN, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo. Tradução José Viegas. 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Isto pois se entende que a demora para estruturação do órgão está a demonstrar um limite da representação política, visto que é essencialmente destinado à referida população. A iniciativa para a criação da Defensoria Pública, seja em âmbito federal, como estadual, é privativa do chefe do poder executivo, conforme expressão do artigo 61, § 1º, II, “d”, da Constituição de 1988 e, no caso do Estado do Paraná, do artigo 66, III da Constituição estadual. Assim, caberia ao Governador do Estado a proposição da Lei de regulamentação do órgão. O parágrafo único do artigo 1º da Constituição da República de 1988 prevê: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Os representantes políticos no Brasil são escolhidos em eleições livres por meio do voto universal, direto e secreto. Ou seja, os representantes são formalmente legitimados pelo povo. No entanto, sua atuação não corresponde, acredita-se, aos anseios populares, não estando, se poderia dizer, materialmente legitimados. As políticas públicas, o Direito em si, não servem ao povo em toda a sua extensão. A fim de aprofundar a presente proposição, realizaram-se 6 entrevistas2 com pessoas que de alguma forma estiveram ligadas ao processo de implementação da Defensoria Pública do Paraná, com 5 perguntas abertas, semi-estruturadas e qualitativas sobre a perspectiva política que 1 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba, Pós-Guaduanda em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e em Gestão Pública com ênfase em: Sistema Único de Assistência Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Residente Técnica do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania, da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. 2 Foram entrevistadas a Professora e advogada criminalista, Priscilla Placha Sá; Miguel Gualano de Godoy, Doutorando em Direito e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) na UFPR; Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Professor; Tadeu Veneri, Deputado estadual; Carlos Enrique Santana, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Londrina, coordenador estadual do Movimento Nacional pelos Direitos Humanos e conselheiro do Conselho Municipal de Saúde de Londrina; Maria Tereza Uille Gomes, Secretária de Estado da Justiça Cidadania e Direitos Humanos. 173 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ permeou o processo. Com as respostas, pretende-se complementar com dados empíricos da realidade paranaense as teorias sobre representação política. Demandas como requisição de fornecimento de remédios para tratamentos continuados ficam desprotegidas, não sendo levadas ao conhecimento dos poderes constituídos, a título de exemplo. A Constituição da República de 1988 criou no ordenamento jurídico brasileiro a Defensoria Pública no artigo 134, in verbis: Grande impacto se dá também quando da falta de defesa em processos criminais. Enquanto a acusação é elaborada na maioria dos casos pela forte estrutura do Ministério Público, a população de baixa renda lota as cadeias e penitenciárias por não possuir quem alegue sua inocência e acompanhe a progressão de regime. Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. No III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil, do Ministério da Justiça (2009), para fins de análise da situação das Defensorias no Brasil, utilizase como parâmetro para determinação do público-alvo do órgão a renda mensal média de até três salários mínimos3. O artigo 5º, LXXIV determina, por sua vez, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita destinada aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Portanto, a implementação da Defensoria Pública se mostra como expressão dos interesses das camadas menos abastadas, tendo em vista sua função de fornecer amparo jurídico àqueles que não possuem condições de contratar advogado. Ainda que o limite remuneratório apontado não seja suficiente para constatar a real situação de vulnerabilidade individual, ou mesmo familiar, já abrange uma grande porcentagem da população brasileira, indicando um enorme contingente de potenciais usuários da Defensoria Pública. Das 161.990.266 pessoas de 10 anos ou mais de idade residentes em todo o país, 52,6% possuem rendimento nominal mensal de até 3 salários mínimos (IBGE, 2010). A Defensoria Pública como Expressão dos Interesses Populares Para levar uma demanda ao Poder Judiciário se faz necessário possuir capacidade postulatória. Entretanto a legislação brasileira determina que afora o Ministério Público e a Defensoria Pública, conforme artigos 127 e 134 da Constituição Federal, apenas o advogado possui esta capacidade de levar os interesses de um cidadão a conhecimento do Judiciário, pelo expresso no artigo 36 do Código de Processo Civil, que traz também exceções pouco utilizadas. Assim sendo, o cidadão só poderá pleitear em sua própria defesa nas situações trazidas pelo artigo, ou ainda nas exceções legalmente previstas, quais sejam na impetração de habeas corpus (artigo 654 do Código de Processo Penal) e nas ações perante o Juizado Especial Cível (artigo 9º da Lei nº 9.099/95) e na Justiça do Trabalho (artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho). A inexistência de Defensoria Pública, dessa forma, impede o acesso à Justiça daqueles que não possuem condições econômicas de contratar um advogado. O que se mostra como flagrante violação do Estado Democrático de Direito e dos Direitos Fundamentais de inafastabilidade do Poder Judiciário, contraditório e ampla defesa e assistência jurídica gratuita, positivados no artigo 5º, incisos XXXV, LV e LXXIV, respectivamente, da Constituição de 1988. 174 Ana Zaiczuk Raggio A Implementação da Defensoria Pública do Paraná Apesar da previsão constitucional ser de 1988, apenas em 1994 foi sancionada a LC 80/94 que organizou a Defensoria Pública da União, Distrito Federal e Território e estabeleceu normas gerais para a organização das Defensorias Estaduais, a qual determinou, em seu artigo 142, cento e oitenta dias para que os Estados adaptassem a organização da Defensoria Pública aos preceitos da Lei Complementar No Estado do Paraná, o artigo 128 da Constituição Estadual, promulgada em 5 de outubro de 1989, determina a organização do órgão por lei complementar com observância a legislação federal sobre a matéria. No entanto, mesmo com ausência da legislação federal em 1991, foi sancionada a LC Estadual nº 55 que instituiu a Defensoria Pública do Estado do Paraná. O artigo 6º da Lei também impunha o prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que o Executivo encaminhasse à Assembleia Legislativa mensagem sobre a estruturação da carreira de Defensor Público e demais disposições necessárias ao funcionamento do órgão. 3 Não existe determinação legal delimitando a renda máxima daquele que pode ser atendido pela Defensoria Pública. No entanto, utiliza-se este parâmetro por possibilitar maior diálogo com os dados levantados pelo IBGE e consequente facilidade de interlocução com outros estudos, conforme IPEA e ANADEP (2013). 175 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ Ainda assim, foi somente pouco antes das eleições de 2010 que o Governo do Estado apresentou à Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) o Projeto de Lei (PL) n° 439/2010, a fim de estruturar a Defensoria Pública. Porém, o PL não foi votado antes do fim das atividades legislativas daquele ano e acaba por ser retirado de pauta no ano seguinte. Com a retirada do PL n° 439/2010 da pauta de votação, aquecem-se os ânimos dos movimentos sociais, que há muitos anos pleiteavam a implementação do órgão. Neste cenário, nasce o movimento “Defensoria Já!”, que congregava diversas entidades4 entorno de um único objeto: uma Defensoria Pública paranaense livre, autônoma e independente. Face à pressão social, a elaboração do Projeto de Lei foi conduzida pela Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, de maneira democrática, possibilitando a participação direta de representantes do movimento e da sociedade como um todo em reuniões, audiências públicas e consultas públicas online. Em 19 de maio de 2011 a Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado do Paraná (LC nº 136/11) é sancionada. Com 23 (vinte e três) anos de atraso é organizada a Defensoria Pública do Paraná, sendo o penúltimo Estado da Federação a ter Defensoria, antes apenas do Estado vizinho, Santa Catarina. Os direitos da população de baixa renda de todo o Estado foram reiteradamente violados e sua defesa improvisada. Em 2010, 58% da população paranaense com 10 anos ou mais de idade possuía classe de rendimento nominal mensal de até 3 salários mínimo (IBGE, 2010). Dessa forma, nos termos colocados pelo Ministério da Justiça, mais da metade dos cidadãos do Estado se mostravam como potenciais usuários da Defensoria Pública. Ainda assim, os Governadores do Estado, desde a promulgação da Constituição de 1988, limitaram-se a proporcionar meios precários para garantir a representação judicial da população paranaense de baixa renda. 4 O movimento contou com grande participação de estudantes e professores, tendo ao lado do Diretório Acadêmico Clotário Portugal, entidade de representação dos acadêmicos de Direito do Centro Universitário Curitiba, o Centro Acadêmico Hugo Simas, do curso de Direito da UFPR, assim como o Centro Acadêmico de Ciências Sociais e os professores daquela Instituição e do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Estadual de Londrina. Se fizeram presentes ainda organizações não governamentais do Paraná como a Terra de Direitos e o Instituto de Defesa de Direitos Humanos (IDDEHA), e outras organizações da sociedade civil tais como a Comissão de Direitos Humanos de Londrina, a APP – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Sindicato dos Trabalhadores e Servidores Públicos Estaduais dos Serviços de Saúde e Previdência do Paraná (SindSaúde), o Programa PróJovem da Vila Torres, a Associação Nacional dos Defensores Públicos Estaduais (ANADEP), a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná, dentre tantas outras que subscreveram o abaixo-assinado e manifestos publicados. 176 Ana Zaiczuk Raggio A Demora na Implementação da Defensoria Pública do Paraná como Limite de Representação Política Retomando a noção de contrato social de Rousseau (1999), tem-se que: “cada um de nós põe sua pessoa e poder sobre uma suprema direção da vontade geral e recebe ainda cada membro como parte indivisível do todo”, produzindo um “corpo moral e coletivo” (ROUSSEAU, 1999, p. 36). O autor traz assim a questão da “vontade geral” e a coloca como a única que pode reger as ações do Estado (ROUSSEAU, 1999, p. 43). O que fica é a dificuldade de determinar-se o conteúdo da “vontade geral” em uma sociedade complexa como a contemporânea. O autor limita-se a diferenciar vontade de todos, “soma das vontades particulares”, de vontade geral, que “atende só ao interesse comum” (ROUSSEAU, 1999, p. 46). Para superar esta dificuldade, a Democracia representativa em sua noção hegemônica liberal, predominante na Democracia brasileira, traz normativas eleitorais que fixam procedimentos para a escolha de representantes políticos encarregados de expressar a vontade do povo. A Democracia, portanto, é tida predominantemente como instrumento político-jurídico para a escolha de representantes políticos. Esse é o conceito trazido por Bobbio: Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos. (BOBBIO, 1986 apud PEREIRA, 2008, p. 50) Junto a Bobbio está Joseph Schumpeter, que, segundo José Álvaro Moisés acreditava que o ‘método’ democrático serve, essencialmente, para ‘autorizar’ governos através de eleições livres, mas não acreditava que os eleitores, ou seja, ‘as pessoas comuns’ fossem dotadas de suficiente autonomia e de capacidade de discernimento, para atribuir ou retirar legitimidade de qualquer regime político através de suas crenças. (MOISÉS, 1995, p. 192) Como consequência, para o autor as “pessoas comuns” devem ter sua participação política limitada ao voto: “uma vez tendo feito suas escolhas sobre a quem cabe governá-los, elas cessam qualquer outra função política e, até as próximas eleições, delegam as tarefas de produzir as políticas públicas adequadas” (MOISÉS, 1995, p. 193). 177 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ Para ambos os autores, a Democracia deve se limitar a garantir eleições periódicas livres, uma vez que a escolha do representante político por esses meios é suficiente para legitimá-lo. Este, por sua vez, deverá perseguir os interesses que entender cabíveis em cada momento. Entretanto, entre os autores que se dedicam ao tema da Democracia na atualidade tem se entendido pela insuficiência da eleição para concessão de autorização ao representante político, bem como para controle de suas ações. Os motivos dessa corrente são claramente expostos por Bonavides: Vista pelo divórcio consumado entre a vontade governada – a vontade passiva da cidadania – e a vontade governante, ou seja, a vontade da elite hegemônica, a representação não só perdeu o sentido da identidade (a ficção da paridade volitiva de governantes e governados), dantes postulada de maneira abstrata, mas peremptória, como reconheceu e instituiu de forma efetiva uma dualidade em que, unicamente, a sua esfera de soberania (a vontade privilegiada do representante) se impõe enquanto caudatária do egoísmo dos seus interesses, os quais logram, assim, eficácia, em dano óbvio da cidadania preterida, enfraquecida, menoscabada; a cidadania de que o representante é órgão. Em face, pois, do malogro das formas representativas clássicas, o espírito democrático de nossa época se inclina para a rejeição do formalismo tradicional, em ordem a desterrar a supremacia liberal do poder, enquanto elemento institucionalizador de privilégios e desequilíbrios de classe. (BONAVIDES, 2008, p. 278 e 279) Ou seja, para Bonavides a necessidade de se ir além do mero método para concessão da autorização para exercício do poder, que se dá de representado para representante, se justifica pelo flagrante abandono dos interesses dos cidadãos por parte daqueles que estariam imbuídos de persegui-los. Com intuito de buscar motivos para a não institucionalização, por meio de Lei Complementar, da Defensoria Pública no Estado do Paraná durante longos 23 anos, questionou-se aos entrevistados as razões que acreditavam ter determinado a promulgação da Lei apenas em 2011. Destaca-se que o motivo mais citado entre os entrevistados foi “falta de vontade política” (GODOY, 2013; SÁ, 2013; SANTANA, 2013; GOMES, 2013). Ou seja, para 4 dos 6 entrevistados a implementação da Defensoria Pública do Paraná esbarrava no desinteresse dos representantes políticos em conceder a população de baixa renda seu direito a Defensor Público que lhe permitisse o acesso à Justiça. Nessa esteira, Celso Fernandes Campilongo estuda os fatores que influenciam nas decisões dos representantes políticos. No início de sua 178 Ana Zaiczuk Raggio obra admite que não se pode falar em congruência entre as vontades de governantes e governados, vez que “o processo representativo é farto em exemplos de que, mais do que as atitudes ou expectativas dos eleitores, outros fatores influem na conduta dos representantes. Dito de outro modo: a relação de representação não se exaure no processo eleitoral” (CAMPILONGO, 1988, p. 13). Além da congruência, o autor se detém sobre as teorias acerca de input e output of demand, elitistas e policies decisions, mas acaba por concluir que nenhuma atitude ou interesse dos representados é capaz de assegurar a persecução de seus interesses, para Campilongo “é certo que elementos de outro nível – fundamentalmente de natureza econômica – desempenham função preponderante na definição de políticas públicas” (CAMPILONGO, 1988, p. 22). Bernard Manin, Adam Przeworski e Susan C. Stokes, partindo do pressuposto de que os governados poderiam contar apenas com as eleições para controlar o desempenho de seus representantes, buscam compreender o que leva os políticos a atuarem de determinadas maneiras. Em primeiro lugar, admitem a possibilidade de um representante perseguir apenas interesses próprios, mas ressaltam que sua busca sempre será por recompensas. Assim, consideram que Os políticos tem preferências sobre as políticas públicas se a recompensa de manter-se no cargo ou a probabilidade de se reeleger depende das políticas por eles adotadas. Pode-se pensar em recompensa de manterse no cargo em três formas: os políticos podem ter políticas favoritas e derivar utilidade de executá-las, podem querer realizar seus interesses pessoais, ou podem obter satisfação da honra de estar no cargo. (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 106) Ainda apontam a relevância da satisfação dos financiadores, uma vez que para se eleger os políticos necessitam de verbas. Assim expõem que “os políticos podem vender aos grupos de interesse políticas que infligem um custo pequeno para cada eleitor – mas com benefícios concentrados nesses grupos de interesse –, e gastar nas eleições os recursos arrecadados em troca” (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 113). Pode se perceber uma congruência entre todos os autores trazidos no sentido de que determinados interesses são perseguidos pelos representantes quando estes têm como consequência benefícios para eles próprios ou para grupos com forte poder econômico, o que pode esclarecer as motivações para não implementação da Defensoria, visto que esta não se mostra como interesse de grupos de poder econômico. Ao contrário, seria capaz de instrumentalizar a população pobre e, com 179 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ isso, afetar outros grupos com forte influência política, corroborando o trazido nas entrevistas. Ademais, não se mostra como interesse próprio do representante, pois, como indicado pelos entrevistados, instrumentalizaria ações judiciais contra o próprio poder público. Para além disto, se faz necessário apontar que a questão orçamentária, trazida por um dos entrevistados, pode ser tida como um fator fora do campo de análise dos eleitores que impediria a efetiva avaliação da qualidade das ações dos representantes. Tal questão aparece na teoria política como uma condicionante que barra a avaliação política condizente com as possibilidades. É o que se observa na seguinte passagem: “os eleitores não sabem tudo que precisariam saber, tanto para decidir prospectivamente o que os políticos deveriam fazer, quanto para julgar retrospectivamente se eles fizeram o que deveriam ter feito” (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 106). Dessa forma, a justificativa da falta de orçamento poderia ser a razão preponderante para o atraso na criação da Defensoria Pública do Paraná nos moldes constitucionais. Entretanto, como se passará a expor adiante, entende-se que a própria decisão orçamentária apresenta interesses conflitantes. A segunda questão buscava compreender o papel da Defensoria Pública para a construção de um Estado de Direito, com intuito de aferir a relevância de sua institucionalização dentro do ordenamento jurídico. Para 4 entrevistados a existência de Defensoria representa o Estado de Direito devido funções atribuídas a ela pela Constituição de 1988, que se traduz na persecução eminentemente jurídica de cada indivíduo que procura assistência do órgão, seja buscando efetivação de direitos individuais, seja garantia dos “direitos sociais de cidadania” para todos (SANTANA, 2013), como destacou outro entrevistado. Para outra entrevistada a relevância da Defensoria está na atuação pela busca da justiça social, pela melhor distribuição dos recursos patrimoniais, culturais e de poder, afim de caminhar no sentido da concretização do Estado Democrático de Direito. 180 Ana Zaiczuk Raggio Ambos acreditam que a Defensoria representa um Estado de Direito na medida em que se dispõe a buscar a concretização dos valores democráticos e da igualdade material. Há que se ressaltar que a atuação em casos individuais também possibilita mudanças para a coletividade, principalmente quando a Defensoria provoca o Supremo Tribunal Federal em casos de repercussão geral. Ainda assim, admitindo que a Defensoria tende a se limitar à tutela dos direitos individuais, defense-se aqui também sua atuação em conjunto com movimentos sociais. A terceira pergunta, por sua vez, tinha por intuito saber se os entrevistados concordavam, e em qual medida, com a proposição exposta neste trabalho de que a falta de Defensoria Pública no Paraná demonstrava uma falha na representação política. Apenas um dos entrevistados afirmou que não acreditava que a representação política poderia ser medida desta forma. Pode-se compreender de seu posicionamento que a justificativa de falta de orçamento suficiente, em sua opinião, é plausível: “Então a estrutura da Defensoria Pública é uma estrutura tão cara quanto à do Ministério Público e do Poder Judiciário […] E isso, no longo prazo, acaba inviabilizando o Estado” (SOUZA FILHO, 2013). Ou seja, a ausência do órgão pode parecer uma falha para aqueles que não enxergam determinantes aparentes apenas para aqueles que conhecem o interior da administração pública. Com a devida licença, há que se contrapor a isto, posto que a destinação de orçamento é também uma decisão política. O artigo 134, §2º da Constituição da República determina que a Defensoria tem iniciativa de sua proposta orçamentária. Esta proposta, conforme artigo 8º da Lei Complementar Estadual 136/11, deverá passar tanto pelo Executivo, quanto Legislativo para ser consolidada. Neste momento se expressa o interesse político. O III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil (Ministério da Justiça, 2009, p. 86) traz a média do orçamento destinado ao Poder Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria em todo o Brasil: Em contraposição, outro entrevistado destacou que, tendo em vista a atuação predominante da Defensoria na defesa de direitos individuais, sua implementação não simboliza o Estado de Direito, acreditando que para se alcançar efetivamente tal ideal são necessárias reformas no Poder Judiciário e no Ministério Público. Com relação ao orçamento executado pelo Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública das unidades da Federação no que diz respeito ao orçamento total do estado, observou-se que em média o Poder Judiciário dos Estados absorve 5,34% dos gastos totais do estado, enquanto que o orçamento do Ministério Público foi de 2,02% do orçamento do Estado e o da Defensoria Pública foi em média de 0,40% do total de gastos pelas unidades da Federação. Há que se colocar que a posição defendida pelos dois últimos entrevistados citados coincidem, apesar de parecerem contraditórias. Mais uma vez se observa a pouca importância dada à defesa e orientação jurídica às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. 181 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ Disto deriva a diferença de alcance destas instituições em todo o Brasil. O Mapa da Defensoria Pública no Brasil, elaborado pela Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada – IPEA, publicado em 13 de maio de 2013, se referindo a todas as Comarcas brasileiras, aponta que 131), retomando o conceito de Joseph Schumpeter. A competição entre as elites seria satisfatória para a conquista da Democracia, uma vez que elites autônomas entre si e perante o Estado podem competir pelo poder político, evitando o despotismo. Ademais, em oposição ao que se pretende defender neste trabalho, para esta corrente Na maioria delas (72%), contudo, a população conta apenas com o estadojuiz, o estado-acusação/fiscal da lei, mas não conta com o estado-defensor, que promove a defesa dos interesses jurídicos da grande maioria da população, que não pode contratar um advogado particular. (IPEA; ANDEP, 2013) a maior ameaça à democracia não vem das elites, mas, ao contrário, da presença das massas na política. Há, entre os pluralistas, um grande temor em relação ao que avaliam ser o caráter autoritário do homem “médio”. Por essa razão, avaliam ser melhor para a continuidade da democracia a existência de certa apatia da imensa maioria do que seu engajamento direto na vida política. (PERISSINOTO, 2009, p. 129 e 130) A prioridade, portanto, se mostra em acusar e julgar, mas não em defender. Os demais entrevistados concordam com a falta de representatividade popular nas decisões políticas. O maior destaque se dá para o apontamento feito por uma das entrevistadas que aponta que a ausência de Defensoria se deve em razão da política elitista paranaense e do desinteresse dos grupos dominantes em concretizar este direito (SÁ, 2013). Mostra-se imprescindível neste ponto atenção às teorias elitistas e pluralistas que analisam o fenômeno de participação política, bem como as críticas feitas a elas. Primeiramente, partindo do mesmo pressuposto de Robert Dahl, entende-se “que uma característica-chave da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais” (DAHL, 2012, p. 25). Assim, a Democracia deve garantir que os interesses dos cidadãos estejam representados nas decisões políticas. Porém, quando Dahl evolui do dever ser da Democracia, para a análise de seu real desenvolvimento, passa a considerar que apenas algumas minorias exercitam efetivamente o poder político, garantindo a persecução de seus interesses. O autor é adepto da teoria do elitismo democrático, ou pluralismo elitista, a qual possui como traço essencial a crença de que é possível aceitar a tese fundamental do elitismo clássico, segundo a qual são as minorias que comandam a vida política, e conjugála com a defesa da democracia, desde que esse sistema político seja entendido de uma maneira específica. (PERISSINOTO, 2009, p. 129) Para o autor é possível defender a Democracia, admitindo a existência de elites, desde que se compreenda que a Democracia se resume a “um regime de eleições livres e competitivas, no qual diversas elites competem entre si para conquistar o voto dos governados” (PERISSINOTO, 2009, p. 182 Ana Zaiczuk Raggio Dentre as críticas a esta teoria, destaca-se o exposto por Campilongo: esse realismo não se mostra interessado em avaliar as razões da apatia e incapacidade dos eleitores diante das questões políticas nem examina por que os sistemas partidários são de escassa representatividade. O argumento da “apatia das massas” […] não verifica que um sistema político que prima pelo disfarce das questões e pela ausência de responsabilidade dos representantes para com os representados desestimula a participação popular. A apatia dos eleitores chega a ser vista como benéfica à estabilidade política, e, por isso, é discretamente estimulada pelo sistema. Além disso, as demandas das classes socioeconômicas dotadas de maior capacidade de agregação de interesses, organização e conflito são sempre mais efetivas – o que deságua na apatia dos setores circunstancialmente privados dessa capacidade. O “realismo” dessas posturas repousa na hipótese inverificável de que as capacidades políticas de pessoa mediana numa sociedade de mercado são um dado fixado, ou, pelo menos, com pouca probabilidade de mudar em nossa época. (CAMPILONGO, 1988, p. 20 e 21) À vista disso, pode se compreender que o autor assume a existência de elites políticas que dominam os demais, impondo seus interesses. De outra feita, questiona esta teoria como realidade intrínseca e imutável, apontando sua falha em não levar em consideração a conjuntura que leva à apatia das massas. Ou seja, Campilongo não apenas não acredita que as massas devam ser deixadas de fora, mas percebe que seus interesses não estão na pauta política e que isto desestimula sua participação. Considera o autor, ademais, as consequências dessa “apatia” no ordenamento jurídico, quando afirma que “sendo as instituições representativas os mecanismos do sistema político mais vinculados à produção de lei, é natural que a crise da representação tenha reflexos no ordenamento jurídico” (CAMPILONGO, 1988, p. 55). Ainda sobre as desigualdades de participação no processo democrático, tem-se marcante construção do escrito argentino Atilio A. Boron que afirma a desigualdade social como limitador da Democracia 183 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ quando os pobres se transformam em indigentes e os ricos em magnatas, sucumbem a liberdade e a democracia. A primeira não pode sobreviver ali onde uns estejam dispostos a vendê-la “por um prato de lentilhas” e outros disponham da riqueza suficiente para comprá-la a seu bel-prazer. (BORON, 2002, p. 13) A quarta pergunta visa informações acerca de outra característica da Democracia liberal. Em vistas da compreensão de Democracia como procedimento eleitoral para autorização do governante, o acesso a foros de representação (mandatos, coalizões, conselhos, espaços públicos de manifestação) se mostra limitado. O que se pretendia era saber quanto essas limitações afetam o exercício dos direitos fundamentais, pressupondo a Defensoria como parte destes. Neste ponto, todos os entrevistados concordam que o limite de acesso prejudica o exercício de direitos fundamentais na medida que: limitam as garantias constitucionais e trazem a impossibilidade de apresentação de demandas por pessoas e movimentos sociais (VENERI, 2013); impedem o acesso aos direitos sociais (GOMES, 2013); os direitos coletivos não conseguem ser efetivamente tutelados pelo judiciário e dependem da cobrança direta aos responsáveis e os movimentos sociais são criminalizados quando na busca pelo reconhecimento de suas demandas (SOUZA FILHO, 2013). Ainda levantou-se fatores relativos aos Conselhos, como os vícios de representatividade internos e nas disputas eleitorais, o não reconhecimento de seu poder normativo, a estrutura, gestão e orçamento a ele destinado, bem como o despreparo observado nos conselheiros e a desorganização da sociedade civil, na afirmação de que mesmo os conselhos às vezes não tem maturidade também para compreender não apenas a importância dos Conselhos Estaduais, mas dos Conselhos Municipais, da criação dos fundos, do manejo dos recursos públicos, do controle do orçamento público, discussões de orçamento participativo, como controlar a execução do orçamento. Todo esse contexto de participação popular que se dá através dos conselhos e de diversas outras formas, quando a sociedade não está bem organizada, não se movimenta adequadamente no sentido da construção de políticas públicas, então a gente percebe essa situação. (GOMES, 2013) Portanto, mesmo a abertura existente no Executivo, muitas vezes se mostra sem estrutura adequada da situação de modo a tornar aquela instância capaz de agir em sua plenitude. Ressalta-se, por outro lado, a total ausência de instâncias de participação popular no Legislativo (GODOY, 2013). 184 Ana Zaiczuk Raggio Uma das entrevistadas trouxe outra contribuição ressaltando que “nós, infelizmente, vivemos em um país em que talvez nós não tenhamos consciência das possibilidades de representação” (SÁ, 2013). De sua fala retira-se a falta de conhecimento por parte da população de seus direitos e dos espaços onde reivindicá-los. A respeito disso é importante destacar a informação qualificada como um dos pressupostos da Democracia. Apenas pelo conhecimento trazido através da informação para todos é que se pode concretizar a igualdade na participação política e, portanto, a existência de Democracia. Entendimento este corroborado por Fernando Whitaker da Cunha no seguinte trecho: Temos eleição, mas não possuímos representação, pelo fato dessa última não refletir, efetivamente, a consciência política do povo, pela fragilidade do binômio votante-votado, num meio inculto e despreparado, para o necessário diálogo entre cidadão e o candidato, que combata as oligarquias, mas que estimule a criação de classes dirigentes desenvolvimentistas, das “elites funcionais” (Hélio Jaguaribe), devidamente preparadas, no povo politizado. “Educar é Governar” já observava o prodigioso Rodolfo Rivarola. (CUNHA, 1981, p. 48) Por fim, acerca da capacidade da Defensoria de garantir direitos fundamentais apontaram os entrevistados que ela seria capaz tendo em vista que defende os mais pobres dos pobres, esquecidos por juristas e pelos poderes constituídos (VENERI, 2013); bem como por incluir os 98% dos presos do Estado que não possuem condições de contratar advogados. Em contrapartida, um dos entrevistados ressaltou que a Defensoria sozinha não é capaz de alterar o quadro de desrespeito aos direitos fundamentais, isto só será possível, em sua opinião, por meio de mobilizações populares que busquem a qualificação da justiça e a verdadeira democracia (SANTANA, 2013). Outros dois entrevistados condicionam a superação dos limites no exercício dos direitos fundamentais à compreensão pela Defensoria de uma função específica. De acordo com um deles: Eu vejo a Defensoria sempre como a grande articuladora dos direitos individuais. Ela pode atuar nos direitos coletivos, ela tem competência para fazer isso, mas depende muito da vontade estrutural do órgão; e, mais ainda, do defensor. […] Então, no fundo a Defensoria acaba sendo uma ponte de chegada da cidadania nas esferas judiciais. Sem garantir que as esferas judiciais funcionem efetivamente – porque elas podem dar decisões contrárias – e sem que esse acesso chegue em última instância a resolver o problema. […] Então o sistema judicial brasileiro não comporta muito bem, não é feito para resolver os problemas dos pobres. Ele é feito 185 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ para resolver os problemas dos ricos. Ele é estruturalmente para as classes dominantes. Então a Defensoria é um paliativo, mas ainda não é uma solução. A solução, a meu ver, passa além da criação de uma Defensoria, da reestruturação do sistema judiciário como um todo, e a reestruturação do Ministério Público, obviamente. (SOUZA FILHO, 2013) Para este entrevistado, portanto, a Defensoria só será capaz de alterar a realidade de coisas se o Judiciário e o Ministério Público forem repensados para incluir também em suas atuações os interesses das camadas socialmente excluídas, acima de tudo, se a Defensoria atuar na defesa dos interesses coletivos. Seu posicionamento se baseia na interessante compreensão de que as demandas que exigem reparação de violação perpetrada pelo Estado e a exigência de respeito a direito individual não produzem a alteração nas atividades reiteradas de desrespeito a coletividade. Somente pela demanda coletiva, poderia a Defensoria ser considerada como um avanço para o alcance do Estado Democrático. Enfim, outro posicionamento parte do pressuposto de que a Defensoria Pública compreende seu papel enquanto defensora dos direitos coletivos em conjunto com movimentos sociais e que, dessa forma, sua atuação evidenciará ainda mais a crise da representação política. Mais do que isto, este entrevistado, que atuou intensamente nos procedimentos participativos da elaboração do anteprojeto de lei, aponta que a população pode participar das decisões políticas. Então a Defensoria Pública é uma prova viva de que é possível você estabelecer uma política pública de forma ampla, plural, democrática, com participação popular, com participação daquele potencialmente afetados por aquela política, que, no caso, era a criação da Defensoria.[...] Por isso, cai por terra esse argumento elitista de que pessoas pobres, sem instrução não podem participar da vida pública, da criação de políticas públicas, por mais técnicas que elas sejam, como é criação, a estruturação de um órgão como a Defensoria Pública. (GODOY, 2013) Ou seja, para ele o próprio processo de criação da Lei Orgânica da Defensoria demonstra que é possível se fazer política pública com participação popular, inclusive daqueles potencialmente atingidos, vez que todos tem condições de contribuir para a construção do Estado. Relata a contribuição que diversas mulheres presentes em uma audiência pública tiveram para a identificação de uma demanda reprimida, que se apresentava como verdadeiro gargalo do sistema judiciário: a necessidade de criação de um Núcleo para realização de investigação de paternidade. 186 Ana Zaiczuk Raggio Conclusão Apoiando-se nos teóricos políticos apresentados e nas entrevistas realizadas, percebeu-se o consenso quanto a existência de falha de representação dos interesses dos governados pelos governantes, mormente dos interesses da população de baixa renda, confirmando a afirmação primeira trazida no presente trabalho. Nessa esteira, a demora na implementação da Defensoria Pública do Paraná se deve, pelo que se pode extrair do exposto, à busca dos representantes políticos em alcançar vantagens para eles próprios ou aos grupos que os financiam. A ausência do órgão ainda se mostra como interesse privado não apenas dos representantes políticos, como dos demais órgãos envolvidos no sistema de justiça, conforme trazido em uma das entrevistas que apontou a pouca intervenção por parte do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil neste processo. Ressalta-se a contribuição de um dos entrevistados no sentido de que o desconhecimento por parte tanto de representantes, como de representados da necessidade de criação da Defensoria Pública teria influenciado tão longa espera. Uma das entrevistadas corrobora esta afirmação colocando que a população, desconhecendo seus direitos, não se mobiliza e, assim, não cobra daquele representante, eleito por meio de seu voto, a institucionalização de tal órgão essencial ao exercício da cidadania. Nessa mesma medida, investir na Defensoria não aparece para o governante como possível fonte de capital político, prolongando o descumprimento do mandamento constitucional. Tem-se aqui a imprescindibilidade da informação e educação de qualidade para a existência de uma Democracia real, como descrito por Cunha e Dahl. A questão mais relevante dentre todas, para esta análise, está na compreensão exposta por Campilongo que, reconhecendo as noções elitistas e pluralistas da política, enfatiza que a detenção do poder político por uma minoria não pode ser entendida como fato imutável, mas como decorrente da imensa desigualdade social e do reiterado atendimento aos interesses daqueles com maior poder econômico, em detrimento do restante da sociedade. Campilongo aponta que as teorias pluralistas e elitistas se furtam à análise das razões por detrás da apatia das massas. Estas teorias inclusive exaltam a apatia como necessária para o melhor funcionamento do sistema político. Entretanto, para o autor, é exatamente a falta de persecução dos 187 BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ Ana Zaiczuk Raggio interesses da população de baixa renda, em especial, que desestimula a participação deste segmento nas decisões políticas. Afora isto, coloca que a desigualdade de poder é característica das Democracias em sociedades marcadas pela intensa desigualdade social. IPEA. ANADEP. Mapa da Defensoria no Brasil. Brasília: 2013. Disponível em: <http://www. ipea. gov.br/sites/mapadefensoria/defensoresnosestados> Acesso em: 30 mar. 2013. Por fim, destaca-se que a dificuldade de acesso aos espaços de tomada de decisão impede a cobrança por parte daqueles conscientes de seus direitos. A Democracia predominantemente indireta deixa o cidadão à mercê da vontade de seu representante político, não lhe sendo permitida a intervenção direta nas construções de interesse coletivo. MIOSÉS, José Álvaro. Os brasileiros e a democracia – bases sócio-políticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática, 1995. Conclui-se, portanto, pela necessidade de abertura da Democracia, complementando-se a representação com a participação direta do povo, consagrando o princípio basilar de todo o ordenamento jurídico criado pela Constituição da República de 1988, qual seja a soberania popular. Fica a missão de construir formas de compartilhar o poder normativo e viabilizar maneiras para o exercício e fortalecimento do controle social de mandatos políticos no Legislativo e Executivo. Referências MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C. Eleições e representação. Lua Nova, São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006. PEREIRA, Marcus Abílio; CARVALHO, Ernani. Boaventura de Sousa Santos: por uma nova gramática do político e do social. Lua Nova, São Paulo, n 73, p. 45-58, 2008. PERISSINOTO, Renato. As elites políticas: questões de teoria e método. Curitiba: Ibpex, 2009. ROUSSEAU, Jena-Jacques. 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Há, evidentemente, um contexto maior e profundamente controverso: de um lado, diversos juízes passaram efetivamente a expedir alvarás de soltura diante da superlotação carcerária; de outro, o Congresso norte-americano buscou limitar e restringir tal postura com a Prison Litigation Reform Act, de 1995, lei elaborada com o objetivo explícito de evitar ordens de soltura a não ser como “remedy of last resort” 3. A questão central girava em torno da violação da Oitava Emenda da Constituição norte-americana, que proíbe “cruel and unusual punishments”. Também a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, veda “penas cruéis” (art. 5º, XLVII, “e”, CF), mas não se tem conhecimento de um amplo e efetivo debate sobre a responsabilidade e o papel de cada Poder – especialmente do Poder Judiciário – e da sociedade civil em relação à questão carcerária, ao menos não nos termos claramente colocados pelos norte-americanos: não configuraria a superlotação carcerária, afinal de contas, constrangimento ilegal apto a fundamentar juridicamente a soltura independentemente dos fundamentos da decisão de decretação da prisão? O objetivo do presente texto é levantar alguns aspectos sobre a relação entre o discurso dos “direitos humanos” e a questão penitenciária. É necessário, preliminarmente, situar o próprio tema em suas características tipicamente modernas: mesmo já se tendo falado em direitos humanos em contextos históricos mais distantes4, certamente não se o fez como 1 Defensor Público, Professor da UFPR e Universidade Positivo; Doutorando em Direito pela UFPR. 2 Graduado em Direito . 3 Coleman v. Schwarzenegger e também Plata v. Schwarzenegger; sobre, v. “Recent Cases” in Harvard Law Review, vol. 123, 2010, p. 752-759. 4 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 13 e ss. 191 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos hoje, por ao menos duas razões: primeiramente, por conta da matriz racionalista moderna toda construída em torno à noção de indivíduo e sujeito. Em segundo lugar, considerando como o traço distintivo dos direitos humanos contemporâneos – ao lado de seu caráter de essencialidade – a sua positivação internacional5. Este, o reconhecimento internacional em instrumentos que produzem obrigações jurídicas aos Estados-parte, é o ponto de partida a ser situado ao lado da Constituição e acima da legislação ordinária. A noção de direitos é considerada recente e fundante também no processo de redemocratização brasileira, com diferentes significados, especialmente através dos movimentos sociais populares dos anos 70 e 80, vinculando o conceito a reivindicações de natureza coletiva6. Falar em direitos dos presos, de forma específica, remete a um discurso também recente e pertencente àquela dimensão própria do pós-guerra, que não apenas afirmava a liberdade ou a autonomia do sujeito, como vinha-se fazendo desde o iluminismo, mas passava a reconhecer direitos sindicáveis judicialmente em dimensões até então descritas e previstas como espaços “livres” da intervenção do Poder Judiciário. A execução da pena privativa de liberdade, em palavras mais claras, era tratada explicitamente como o lugar do arbítrio e do poder absoluto da autoridade administrativa sobre o recluso, inserto em uma especial relação de sujeição antipática à oposição de direitos individuais. Seja através das teorias da “supremacia especial” ou da versão norte-americana das hands-off, a primeira consequência da adoção de perspectivas como essa no âmbito da execução penal é a subtração da administração penitenciária a qualquer tutela jurídica, “não se valorando” as condições materiais de encarceramento e, principalmente, a produção de normas administrativas internas segundo qualquer modalidade de controle ou limite e, até mesmo, a garantias constitucionais. Diante de tal quadro, e considerando a redemocratização do país somente em meados do século XX, não é difícil compreender os passos lentos no exercício do direito de acesso ao Judiciário e aos mecanismos internacionais de proteção no que tange à questão penitenciária. Já é hora, porém, de se acelerar os passos: não faltam ilegalidades e a cada dia transparece com mais intensidade o desconforto de “tudo” se resolver em “pedidos de providências” entre os Poderes com consequências claramente insatisfatórias. Por outro lado, para além do Estado, na própria sociedade civil, o discurso dos direitos humanos – e sobremaneira quando se fala dos presos 5 WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 23-25. 6 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”. Novos Estudos, p. 163. 192 André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli – encontra imensos obstáculos. Teresa Caldeira se ocupou, como poucos, da questão de como é que se chegou à massiva oposição popular à ideia de “direitos humanos” enquanto associada a “direitos de bandidos”. Segundo a autora, é preciso notar o processo de diferenciação do debate entre os direitos dos presos políticos e os direitos dos presos “comuns”. Caldeira observou descritivamente as principais distinções entre ambos7, a saber: (a) no caso dos presos políticos, a reivindicação sempre visava atingir a terceiros, afirmando identidades e obtendo legitimação social com maior facilidade; (b) a atenção aos direitos dos presos comuns se tornou pauta de políticas governamentais antes que houvesse um movimento de reivindicação pelos próprios atingidos; (c) a lógica tradicional da defesa de direitos dos presos comuns é aquela dos direitos eminentemente individuais, e não sociais ou coletivos, como em outros movimentos sociais. Este último ponto foi particularmente manipulado pela “direita política”, fortemente presente nos setores ligados à segurança pública e à administração penitenciária, no sentido de associar o debate à ideia de “privilégios” ou “regalias”, que seriam concedidos em detrimento da atenção às vítimas de crime: O problema é que, além de a população não ver com maus olhos o uso da força contra ‘bandidos’, os estereótipos disponíveis na sociedade brasileira contra os criminosos consideram-nos no limite não só da sociedade, como também da humanidade. E, na verdade, no processo de contestação aos direitos humanos parece que esses estereótipos foram cada vez se tornando mais radicais. A imagem dos criminosos foi mais do que enfatizada. Eles foram pintados com as cores fortes do preconceito, da discriminação social e do desvio como estando nas bordas tanto da sociedade quanto da humanidade.8 Não há, obviamente, qualquer relação de prejudicialidade entre o respeito a um ser humano enquanto ser humano – especialmente se sob a custódia e dependência material do Estado – e as demais políticas públicas voltadas a toda a coletividade. A natureza grosseira desse tipo de argumentação não impede, porém, sua ampla difusão, justamente porque, como nota Caldeira, trata-se de um processo de desumanização potencializado pelo sistema formal de justiça criminal e que poderia ser comparado ao processo de produção de indiferença moral perante o sofrimento alheio a que fez referência Hanna Arendt, quando analisou o julgamento de Eichmann e o holocausto nazista9. 7 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”. Novos Estudos, p. 167-8. 8 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”. Novos Estudos, p. 169. 9 Faz-se referência a texto anterior, publicado em novembro de 2007, cf. GIAMBERARDINO, André. “O medo não nos absolverá: resenha do filme Tropa de Elite”. Correio da Cidadania, nov. 2007, disponível em:http://www. correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1106&Itemid=79: “ (...). A produção 193 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos A judicialização desse tipo de política e o fortalecimento do acesso aos mecanismos internacionais de proteção, reconhecendo seus limites, constituem, nesse sentido, uma atitude contramajoritária – certamente impopular – de se construir uma cultura de paz e humanização dos conflitos. 2. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos O Sistema Interamericano de Proteção é regido pela Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) e composto pela Comissão Interamericana e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante simplesmente Comissão e Corte. Ele se insere no Sistema Global, ao lado de outros sistemas regionais tais como o Africano e o Europeu. Tem como referência os seguintes documentos10: Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Convenção Americana sobre Direitos Humanos (‘’Pacto de San José da Costa Rica”); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de San Salvador”); Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte; Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas; e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. 194 André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli 4.463, de 8 de novembro de 2002, “sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998” (Art. 1º)12. O exercício do direito de petição individual não se dá diretamente à Corte, mas sim à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, diferentemente do modelo europeu13. Inobstante a recente modificação no Regulamento da Corte, que passou a admitir que as vítimas ou seus representantes – inclusive com Defensor Público14 – participem diretamente na instrução do processo, é a Comissão que recebe denúncias de violações aos direitos consagrados pelos instrumentos mencionados (vide art. 27 do Regulamento da Comissão). Tais denúncias podem ser apresentadas por qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não governamental legalmente reconhecida em Estado-parte. Recebida e processada a denúncia, caberá à Comissão, dentre outras medidas: a) fazer recomendações ao Estado-parte, expressas em Relatórios contendo medidas reputadas necessárias à cessação/reparação das condutas violadoras; b) solicitar ao Estado informações relativas às medidas adotadas, que visem efetivar as disposições dos instrumentos e Convenções; e c) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral das Organizações dos Estados Americanos15. A Corte exerce funções contenciosa e consultiva. Nos termos do art. 62 e incisos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), as atribuições consultivas tratam da resolução de dúvidas quanto à interpretação das disposições da Convenção Americana e/ou outros diplomas normativos, e independem até mesmo de ratificação da mesma pelos Estados-membros, podendo decorrer de pedidos formulados por quaisquer Estados-parte ou órgãos da OEA11. Já a função contenciosa resta condicionada ao reconhecimento expresso e formal da jurisdição obrigatória da Corte, não bastando a simples ratificação. Note-se que o Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte apenas com o Decreto Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998, promulgado pelo Decreto n. A referida petição, contendo a denúncia, somente será admitida pela Comissão se cumprir certos requisitos (art. 46 da CADH; art. 31 a 33 do Regulamento da Comissão), tais como: 1) esgotamento dos recursos jurídicos internos disponíveis; 2) observação do prazo máximo de seis meses a partir da notificação sobre o esgotamento dos mecanismos internos; e 3) inexistência de litispendência internacional. É importante frisar que as disposições do primeiro e segundo requisitos não se aplicarão quando a legislação interna do país envolvido não garantir o devido processo legal, ou quando houver demora injustificada do julgamento. Este é o teor do próprio art. 31.2 do Regulamento da Comissão e da Opinião Consultiva n. 11/90, de 10 de agosto de 1990, da Corte: se pessoa “indigente” tiver seus direitos violados e não puder, por qualquer motivo, esgotar os recursos jurídicos internos; quando houver, no sistema judiciário de certo país, grande temor/comoção social em relação à algum caso (e.g., quando advogados temem trabalhar em dada causa, com medo de represálias social da indiferença, nos termos materializados há décadas na Alemanha nazista, não serve hoje como analogia apenas aos agentes do Bope, mas a todos nós. Faz com que cidadãos modalidade ‘de bem’, porque trabalham, amam sua família e têm medo da violência, aceitem o desprezo por todas as conquistas e garantias individuais de outros “não pessoas”, bandidos, sem se darem conta, assim como Eichmann, de estarem sendo co-responsáveis por um novo holocausto. (...). E não pensemos, quando a situação for definitivamente insuportável, com as balas perdidas da guerra deles entrando no quarto de cada um de nós, que o medo, então, nos absolverá”. 10Art. 23, Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.cidh. oas.org/basicos/portugues/u.Regulamento.CIDH.htm>. Acesso em: 09 de novembro de 2012. 11 Cf. WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 161; vide CADH, art. 62, §2º: “Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.” 12 A data de 10 de dezembro de 1998 foi a data de depósito da aceitação da competência obrigatória da Corte junto à Secretaria-geral da OEA. 13 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 384-385. 14 WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 159: “Em casos de supostas vítimas sem representação legal devidamente credenciada, o Tribunal poderá designar de ofício um Defensor Interamericano que as represente durante a tramitação do caso”, destacando o autor que desde 2010 vigora Acordo de Entendimento entre a Corte e a AIDEF (Associação Interamericana de Defensores Públicos) prevendo que a AIDEF designará, nos casos de vítimas hipossuficientes ou sem representação, um defensor público para atuar no caso. Sobre o tema, vale v. ainda o art. 8º, II, “e”, da CADH, um avanço em relação ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que prevê somente um defensor ex officio e gratuito (art. 14, 3, “d”, PIDCP), tudo cf. WEIS, Carlos. Idem, p. 141. 15 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 96 195 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos contra sua vida e/ou de familiares), a pessoa ou grupo de pessoas não precisará esgotar todos os recursos, sem prejuízo de o Estado garantir condições mínimas para que a vítima possa manejá-los. O caminho percorrido desde a apresentação da petição, até eventual Relatório, pode ser descrito resumidamente da seguinte forma: aquele (ou seu representante legal) que tenha seus direitos violados apresenta a petição à Comissão; após, ter-se-á o juízo de admissibilidade, de acordo com os requisitos dispostos no artigo 46 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Caso o reclamado prove a disponibilidade de recursos internos para o exercício de direito protegido pela Convenção, o ônus da prova é transferido ao reclamante que deverá, então, demonstrar se as exceções são aplicáveis. Caso reconhecida a admissibilidade da petição, estabelece-se o contraditório e a ampla defesa do Estado-parte16, tendo sempre em vista a possibilidade de solução amistosa entre o denunciante e o denunciado. Havendo solução amistosa, a Comissão elaborará um informe contendo breve exposição dos fatos e do acordo a que se chegou. Se não houver acordo, sobrevirá o Relatório (que é mandatório), apresentando, também, os fatos, as alegações das partes, e as conclusões pertinentes ao caso, bem como recomendações a serem cumpridas pelo Estado-parte. Posteriormente, se a Comissão considerar que as recomendações não foram acatadas, irá submeter o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos ou publicar o Relatório com o objetivo de produzir censura enquanto produção de “vergonha” para o Estado-parte perante a comunidade internacional. A Comissão tem, ainda, conforme o art. 25 de seu Regulamento, o poder de solicitar ao Estado-parte que adote medidas cautelares com o objetivo de evitar lesões irreparáveis aos direitos dos peticionários. A iniciativa pode ser tanto do reclamante quanto da própria Comissão, a depender da gravidade, urgência e contexto da situação17. O destino final da lide, caso não haja solução no âmbito da Comissão, é, enfim, a Corte Interamericana no exercício de sua função contenciosa. Eventual condenação do Estado-parte pela Corte Interamericana, reconhecendo a violação de direitos, e, possivelmente, uma indenização compensatória, têm caráter vinculante e obrigatório: não se trata de “sentença estrangeira”, não necessitando, assim, de homologação por Tribunal Superior, podendo ser executada diretamente segundo as normas vigentes no Estado-parte18. 16 Sobre o tema, v. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 17 Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/reglamento.cfm>. Acesso em: 10 de novembro de 2012. 18 Sobre, v. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 104. 196 André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli 3. A questão penitenciária brasileira e exemplos de Relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos Atualmente, se considerado o grau intenso de violação a direitos fundamentais praticada no sistema penitenciário e, principalmente, nas delegacias de polícia e cadeias públicas, no Brasil, pode-se considerar ainda muito tímido o exercício do direito de petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos19. Não há condenações do Estado brasileiro na Corte Interamericana relativas ao tema, mas sim quatro medidas provisórias – estas sim, todas atinentes à questão penitenciária ou à internação de adolescentes, abordadas adiante. Já no âmbito da Comissão, há diversos Relatórios que tangenciam ou tratam diretamente da questão penitenciária. Mencionam-se, aqui, dois exemplos. Ovelário Tames20, primeiramente, cidadão de origem indígena, foi detido por policiais civis do Estado de Roraima e encontrado morto, no dia seguinte, dentro de sua cela, no município de Normandia, situado a aproximadamente 200 km de Boa Vista. Consta que Ovelário permaneceu durante grande parte da noite queixando-se fortemente de dores na barriga, sem qualquer tipo de assistência por parte das autoridades, vindo a falecer nas horas seguintes. O inquérito policial aberto para investigar o caso mostra que o soldado que prendeu Ovelário o agrediu na região do abdômen porque teria resistido à ordem de prisão. Além disso, testemunhas confirmam que a vítima estava em condições deploráveis quando adentrou a cela: “que estava agonizando (...)”, e, posteriormente que “o cadáver apresentava sinais evidentes de violência no abdômen, com manchas violentas (...)”21. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu, assim, que o Estado Brasileiro foi responsável22 por uma série de violações a direitos estabelecidos na Convenção Americana, fazendo as seguintes recomendações: 1) realização de investigação séria, imparcial e eficaz dos fatos e circunstâncias que levaram à morte de Ovelário Tames, com a identificação dos responsáveis; 2) que tal investigação incluísse as possíveis omissões, negligências e obstruções da Justiça, que tiveram como consequência a inexistência de condenação definitiva dos responsáveis e, inclusive, as possíveis negligências do Ministério Público e de juízes que possam ter determinado a não aplicação ou redução da pena; 3) que se tomassem as medidas necessárias para concluir os processos judiciais 19 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal, p. 175 e ss. 20 Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de nº 60/99, de 13 de abril de 1999. 21 Disponível em: <http://www.cidh.org/annualrep/98span/fondo/brasil%2011.516.htm>. Acesso em: 10 de novembro de 2012 22 Sobre uma das ações tomadas pelo Estado Brasileiro referentes ao caso, ver: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/pfdc/ informacao-e-comunicacao/informativos-pfdc/edicoes-de-2006/fevereiro/anexo_inf-21-2006_1.pdf>. Acesso em: 10 de novembro de 2012. 197 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e administrativos ainda em andamento referentes ao caso; 4) que o Estado Brasileiro reparasse as consequências das violações aos direitos dos familiares ou quem quer que seja que tenha(m) sofrido prejuízos em decorrência dos fatos. Outro caso também emblemático ficou conhecido como “Massacre do Carandiru”, ocasião em que 111 presos (dos quais 84 processados, mas ainda não definitivamente condenados) foram mortos, e os sobreviventes, submetidos a lesões graves, durante desastrosa intervenção com o objetivo de conter um motim de detentos. Até o presente momento, já tendo o incidente completado vinte anos, nenhum dos agentes policiais envolvidos foi responsabilizado. Acerca do episódio, a Comissão elaborou o parecer de nº 34, de 13 de abril de 2000. As recomendações foram de que o Estado Brasileiro: 1) realizasse uma investigação completa, imparcial e efetiva a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários responsáveis pelas violações dos direitos humanos; 2) adotasse as medidas necessárias para que as vítimas dessas violações que foram identificadas e suas famílias recebam adequada indenização pelas violações, assim como para que sejam identificadas as demais vítimas; 3) desenvolvesse políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção, estabelecendo programas de reabilitação e reinserção social de acordo com as normas nacionais e internacionais. A orientação, bastante óbvia, foi pela adoção de políticas, estratégias e treinamento especial orientados à negociação e à solução pacífica de conflitos, assim como técnicas de reinstauração da ordem que permitissem a subjugação de eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a integridade pessoal dos internos e das forças policiais. 4. A questão penitenciária brasileira e as Medidas Provisórias impostas pela Corte Interamericana Observa-se, preliminarmente, que as decisões ou medidas cautelares da Corte ou da Comissão Interamericana, meras recomendações, não se confundem com as medidas provisórias impostas pela Corte. São apenas quatro casos nos quais a Corte adotou Medida Provisória em relação ao Brasil, sendo todos os quatro atinentes à questão penitenciária: são aqueles do Presídio Urso Branco, em Rondônia; da Unidade de Internação Socioeducativa, no Espírito Santo; da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, em São Paulo; e do Complexo do Tatuapé, antiga FEBEM, também em São Paulo. 198 André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli O Presídio Urso Branco (Casa de Detenção Dr. José Mário Alves) é um grande estabelecimento prisional, que se tornou símbolo das más condições carcerárias e da impossibilidade de falar, ou de cogitar qualquer projeto que pretendesse ser minimamente “ressocializador” ou socialmente inclusivo. Consta, por exemplo, que ao menos 37 detentos foram assassinados, de forma sistemática, por outros detentos, entre janeiro e julho do ano de 200223. Foram reunidos relatos de inúmeros outros episódios carregados de extrema violência, tais como motins seguidos de torturas e esquartejamentos24. Diante disso, desde o ano de 2002 até agosto de 2011, foram emitidas, no total, dez resoluções por parte da Corte, documentos esses que contém as medidas provisórias oponíveis ao Estado Brasileiro. O trâmite referente a este caso se deu da seguinte maneira: a Comissão Interamericana, constatando a situação de verdadeira calamidade que acometia o presídio, submeteu à Corte uma solicitação de medidas provisórias em favor dos reclusos. Dentre as medidas tomadas e tidas como as mais relevantes estavam: 1) requerimento ao Estado para que adotasse todas as medidas necessárias para proteger a vida e integridade pessoal de todas as pessoas reclusas na Penitenciária Urso Branco; 2) requerimento ao Estado para que investigasse os acontecimentos que motivaram a adoção destas medidas provisórias, com o objetivo de identificar os responsáveis e impor-lhes as sanções correspondentes; 3) requerimento para que o Estado informasse, de dois em dois meses, sobre as medidas adotadas; e 4) indicasse o número e nome dos reclusos que se encontravam cumprindo pena e dos detentos sem sentença condenatória e que, ademais, informasse se os reclusos condenados e os não condenados se encontravam localizados em diferentes seções. Além dos diversos relatórios reiterando a adoção e cumprimento das medidas acima citadas, audiências públicas foram convocadas para que a Comissão, peticionários (ONG’s), e o Estado Brasileiro pudessem ser ouvidos. Na data de 24 de agosto de 2011, o “Pacto para Melhoria do Sistema Prisional do Estado de Rondônia e Levantamento das Medidas Provisórias Outorgadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos” foi assinado, na esperança de redução das violações e da violência na unidade. O segundo caso, atualíssimo, envolve a Unidade de Internação Socioeducativa (UIS), localizada em Cariacica, próximo a Vitória, Capital do Espírito Santo, destinada a crianças e adolescentes. Um dos principais 23 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 18 de junho de 2002. Disponível em: <http:// www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_01_portugues.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2012. 24 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 22 de abril de 2004. Disponível em: <http://www. corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_03_portugues.pdf>. Acesso em 17 de novembro de 2012. 199 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos problemas do local é a superlotação, já que a capacidade nominal era de 110 menores, mas abrigava, à época, cerca de 290. As denúncias tratavam, entre outros fatos, de adolescentes algemados que eram mantidos no pátio da Unidade; ausência de separação entre os internos por razão de idade, compleição física e gravidade da infração; e agressões e tortura a adolescentes por parte de funcionários da UNIS e por outros adolescentes do centro25. A Corte, então, baseada em solicitação da Comissão (provocada, por sua vez, pelas ONG’s Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra do Estado do Espírito Santo e Justiça Global), resolveu, dentre outras medidas, requerer ao Estado brasileiro que adotasse de forma imediata todas as medidas que fossem necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as crianças e adolescentes privados de liberdade; que tomasse as providências adequadas para que as medidas de proteção à vida e à integridade pessoal fossem planificadas e implementadas com a participação dos representantes dos beneficiários e que os mantivessem informados sobre o avanço de sua execução. Complementarmente, audiências públicas também foram convocadas para que as partes envolvidas pudessem ser ouvidas. O caso não se encerrou e permanece aberto. A quarta Resolução, datada de novembro de 2012, reitera as medidas já emitidas e deve vigorar até 31 de agosto de 2013, restando explícita a dificuldade e falha do Estado brasileiro em acatar as determinações. reparos, cuja capacidade era, pasmem, para apenas 160 pessoas. Consta, ainda, que os agentes carcerários retiraram-se do local e soldaram a porta de acesso, isolando todos em pátio aberto. Os detentos, portanto, não dispunham de bens pessoais, de roupas adequadas, de colchões e de energia elétrica, cortada pelo Estado para evitar a recarga de celulares. E foi nessa condição que permaneceram por mais de 10 dias. Diante de tal quadro, a Corte Interamericana resolveu requerer ao Estado que adotasse as medidas necessárias, com estrito respeito aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, especialmente às suas vidas e integridade, e cuidado para impedir atos de força indevidos por parte de seus agentes, para que estes recuperassem o controle e a ordem na Penitenciária de Araraquara que: ao recuperar o controle, conforme o ponto resolutivo anterior, oferecesse-lhes o atendimento médico adequado; reduzisse substancialmente a superpopulação na Penitenciária de Araraquara, separasse as pessoas privadas de liberdade por categorias, conforme os padrões internacionais sobre a matéria, e possibilitasse a visita dos familiares. Audiências públicas também foram convocadas. Posteriormente, com o intuito de reparar as instalações danificadas, os detentos foram progressivamente transferidos a outras unidades. Por fim, constatando a relativa melhora da situação no presídio, na data de 25 de novembro de 2008, as medidas provisórias foram levantadas e o assunto, arquivado. O terceiro caso se refere à penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, localizada no Estado de São Paulo. Tal complexo penitenciário é composto pelo Centro de Detenção Provisória (CDP) e pelos pavilhões tradicionais, destinados aos presos já condenados definitivamente. Os fatos expostos se relacionam à série de rebeliões deflagradas no Estado de São Paulo durante o mês de maio de 2006. O quarto e último caso envolve crianças e adolescentes privados de liberdade no “complexo do Tatuapé”, da extinta FEBEM, cuja sigla significa, ironicamente, Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor. Quando as denúncias foram feitas, a situação do local se mostrava insustentável: dia após dia novas mortes ocorriam, provocadas pelos próprios internos, em motins, brigas e espancamentos, ou pela falta de assistência médica necessária. Saliente-se que tais episódios ocorreram posteriormente a medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Assim, tendo em vista a ineficácia das medidas acima citadas, a Corte resolveu requerer ao Estado que adotasse de forma imediata as medidas que fossem necessárias para proteger a vida e integridade pessoal de todas as crianças e adolescentes residentes no Complexo do Tatuapé da FEBEM. Para tanto, determinou que as medidas de proteção fossem implementadas com a participação dos representantes dos beneficiários das medidas; que o Estado investigasse os fatos que motivaram a adoção das medidas provisórias, com o fim de identificar os responsáveis e imporlhes as sanções correspondentes. Por fim, no ano de 2008, três anos após a emissão da primeira resolução sobre o caso, a Corte decidiu levantar as medidas provisórias e arquivar o caso. Mais uma vez, é a superlotação, fator comum à esmagadora maioria de estabelecimentos prisionais brasileiros, que se faz presente: depois de danos à estrutura do CDP, causados pelo motim, aproximadamente 600 reclusos foram transferidos aos pavilhões (que já se encontravam superlotados), fazendo com que aproximadamente 1.600 pessoas ficassem confinadas em um espaço destinado a 750 pessoas26. Como agravante, os referidos pavilhões que tinham a missão de abrigar os 600 novos presos provisórios foram alvo de uma nova rebelião, impossibilitando, naquele local, a continuidade da estadia. Assim, os mesmos 1.600 detentos foram transferidos a uma ala ainda carente de 25 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 25 de fevereiro de 2011. Disponível em: <http:// www.corteidh.or.cr/docs/medidas/socioeducativa_Se_01_portugues.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2012. 26 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 28 de julho de 2006. Disponível em: <http://www. corteidh.or.cr/docs/medidas/araraquara_se_01_por.pdf >. Acesso em: 17 de novembro de 2012. 200 André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli 201 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos 5. Percursos necessários e considerações finais Cunhou-se denominar controle de convencionalidade a interpretação que a Corte pode fazer da legislação doméstica de um dado Estado em face dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, fixando a melhor interpretação para a efetivação das disposições destes últimos. Já se defende que o controle de convencionalidade difuso e concentrado também deve ser realizado em âmbito interno, pelos juízes e tribunais locais, procedendo “ao exame de compatibilidade das leis com a Convenção Americana, levando em conta não somente a Convenção, mas também a interpretação que dela faz a Corte Interamericana”27. Toca-se um dos temas mais importantes e delicados na matéria: aquele referente à internalização dos tratados de direitos humanos. Para abalizada doutrina, tratados de direitos humanos não aprovados nos termos do art. 5º, §3º, da Constituição – se aprovado com o quórum e o trâmite ali previsto, não há dúvidas de que será “equivalente a emenda constitucional” – seriam materialmente constitucionais28. No entanto, posicionou-se o Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria, no julgamento do Recurso Extraordinário (RExt) 349.703/08, no sentido de que a Convenção Americana de Direitos não teria status constitucional, mas supralegal (acima da legislação ordinária), exercendo eficácia paralisante por sobre a legislação concernente à prisão civil por dívida (STF – Súmula Vinculante nº. 25). Seja como for, vem do Sistema Global, e não do Sistema Interamericano, a afirmativa contundente e fundamental de que os patamares mínimos estabelecidos para as condições materiais das prisões devem ser observados independentemente do desenvolvimento socioeconômico do Estado. Referimo-nos ao caso Mukong v. Cameroon (Mukong contra Camarões)29, levado ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – importante órgão incumbido de garantir a proteção aos direitos listados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.30 27 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, p. 84. Ver também PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 100. 28 Dentre os argumentos, nota-se aquele que aponta que a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, com o art. 5º, §3º, teria restringido direitos fundamentais em face do art. 5º, §1º, da Constituição, ao condicionar o gozo de status constitucional dos tratados de direitos humanos à aprovação por 3/5 do Congresso Nacional. 29 O caso se refere ao fato ocorrido em junho de 1988, quando Albert Womah Mukong, cidadão camaronês e jornalista opositor ao governo, foi preso após manifestação em entrevista. Mukong alegou que teria permanecido em distrito policial com condições indignas, tais como superlotação, falta de banheiro, falta de alimentação, por dias, obrigação de dormir no concreto, dentre outras. Também alegou que havia proibição de visita de advogados, familiares e amigos. Assim, os seguintes direitos teriam sido violados: proteção contra tortura (artigo 7º); direito à liberdade e às proteções contra o arbítrio estatal (artigo 9º, § 1º a 5º); direito ao devido processo legal (artigo 14, § 1º e 3º); e direito à liberdade de expressão (artigo 19) do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 30 Vale observar que a Convenção Americana de Direitos Humanos é considerada o instrumento correspondente ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, respectivamente no Sistema Americano e no Sistema Global. Texto integral do Pacto disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. Acesso em: 15 de novembro de 2012. O Pacto foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto 202 André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli A relevância da decisão está, justamente, em colocar que certos patamares mínimos, referentes às condições de detenção, precisam ser observados independentemente do nível de desenvolvimento socioeconômico do Estado. Isso inclui, de acordo com os artigos 10, 12, 17, 19 e 20 das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da ONU (documento acolhido no Brasil pela Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 1994), espaço livre mínimo, instalações sanitárias mínimas, roupagem, cama separada, e provisão de alimentos com valor nutricional adequado31. A assertiva, porém, pode constituir importante diretriz para que, enfim, se judicializem, no Brasil, as políticas públicas atinentes à questão prisional, com fulcro na vedação às penas cruéis como direito fundamental garantido pelo art. 5º, XLVII, “e”, da Constituição e pelo art. 5.2 da CADH. Parâmetros normativos não faltam: além das “Regras Mínimas” da ONU e os dispositivos constitucionais, convencionais e legais mencionados, vide também o art. 10.1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a ratificação da Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes por meio do Decreto nº. 40, de 15 de fevereiro de 1991. Se o tema do controle judicial de políticas públicas é relativamente novo, pouco ou nada se fala na observância dos referidos patamares mínimos como verdadeiro direito transindividual, cuja violação exigiria o manejo de instrumentos como ação civil pública, mandado de segurança coletivo e, por que não, habeas corpus coletivo, tendo por objetivo, conforme o caso, tanto a imediata cessação das violações – com a interdição do estabelecimento e a substituição da custódia pela prisão domiciliar ou medida similar, na ausência de vaga em unidade adequada – como a responsabilização objetiva do Estado pelos danos materiais e morais causados32. No debate sobre o possível controle judicial desta desastrada e trágica política pública que constitui a questão penitenciária, o tema da reserva do possível certamente não terá guarida, como justificação pelo Estado, se adotada a conclusão do caso Mukong. Ora, os mesmos fundamentos já acolhidos pelos Tribunais Superiores para a concessão de prisão domiciliar como forma de tutela da dignidade humana em casos de falta de vagas em Legislativo n° 226, de 12 de dezembro de 1991. 31 Decisão, na íntegra, em inglês, disponível em: < http://www.bayefsky.com/pdf/100_cameroonvws458.pdf>. Acesso em 15 de novembro de 2012. 32 No sentido da notícia recente, de 14 de maio de 2012: “Defensoria de Minas Gerais obtém condenação do Estado por danos morais difusos”, referente a delegacias superlotadas em Contagem/MG. TJMG, processo: 1.0079.07.343322-3/001. Acórdão publicado em 16/03/2012. Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtk/ pagina/materia?id=14310. 203 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos estabelecimentos prisionais de regime semiaberto33, somados à vedação constitucional de penas cruéis (art. 5º, XVII, e, CR) e dispositivos positivados em tratados internacionais, são inteiramente aplicáveis às condições estruturais do sistema penitenciário brasileiro. Exemplo nesse sentido foi a polêmica decisão de um magistrado que determinou a soltura de presos recolhidos em condições desumanas em duas delegacias da cidade de Contagem/MG34. Tal reconhecimento não seria uma medida inédita: o Tribunal Provincial de Hamm, na Alemanha, julgou, em 1967, que a manutenção de três presos em uma cela pequena violava a dignidade humana garantida pela Constituição alemã35. O respaldo jurídico estaria na consideração das prisões como estabelecimentos numerus clausus, assim como são escolas e hospitais, bastando a previsão de procedimentos como “filas de espera” e a soltura de presos considerados “menos perigosos” ou prestes a sair, abrindo vagas a recém-condenados. Não obstante a via para a tutela coletiva nesse campo tenha sido aberta com a Lei 12.313/10, que inseriu, na Lei de Execução Penal, “a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva” (art. 81-A) como função da Defensoria Pública, o que certamente inclui a atuação desta também junto aos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos36, parece necessária uma profunda transformação dos demais órgãos ainda imersos na visão tradicional que, tantas vezes, legitima a ilegalidade em nome de abstrações arbitrárias – a velha “defesa da sociedade” – e eticamente inadmissíveis. Afinal, se a oposição popular à extensão de direitos mínimos individuais a presos remete a um discurso que demarca um limite de pertencimento que desumaniza e exclui, por um lado, e abre as portas ao isolamento social, ao abandono dos espaços públicos e à privatização da segurança, por outro, o que se vê é que os discursos em disputa acabam por demarcar a (im)possibilidade de consolidação de uma sociedade verdadeira e materialmente democrática no Brasil37, o que, pelo que se constata das “falas do crime” no cotidiano e a sua correspondente atuação estatal, ainda não aconteceu. André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli Referências CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”. Novos Estudos, 30, CEBRAP, julho 1991, p. 162-174. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. CONSTITUTIONAL LAW. 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Sobre, v. “Editorial em defesa da legalidade na execução penal: apoio do IBCCRIM ao magistrado de Contagem/MG”. Boletim do IBCCRIM, v. 158, janeiro 2006, p. 1. 35 Sobre este e outros exemplos, v. FRAGOSO, Heleno Cláudio. “Perda da liberdade (os direitos dos presos)”. Anais da VIII Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Manaus, 1980, p. 19. 36 Sobre o tema, v. RIBEIRO, Roberta Solis. “Sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e Defensoria Pública”. SOUSA, José Augusto Garcia de (org.). A Defensoria Pública e os Processos Coletivos: Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 291-302. 37 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”. Novos Estudos, p. 173. 204 205 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos 206 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel NAS FRONTEIRAS DA JUSTIÇA 207 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita MILESI1 Marcia Anita SPRANDEL2 Introdução O enfrentamento ao tráfico de pessoas, particularmente para fins de exploração sexual e trabalho escravo, é considerado uma prioridade na pauta de numerosos governos, organismos internacionais e organizações não-governamentais. Tem todo o sentido, pois é inadmissível que, no mundo contemporâneo, continue, e até aumente, esta prática hedionda de mercantilização de seres humanos. O Brasil ratificou, em 2004, o protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (conhecido como Protocolo de Palermo)3, do qual era signatário desde 2000. Em 2006, foi criada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.4 De 2008 a 2010, vigorou o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP)5 e, em 2013, foi lançado o II PNETP. O presente artigo contextualiza o momento de aprovação do Protocolo de Palermo e sua incorporação pelo Governo Brasileiro, para em seguida fazer uma reflexão ética sobre o tema. Com isso, objetiva qualificar o debate sobre pauta tão importante para a contemporaneidade e que será tema da Campanha da Fraternidade de 2014. 1 - O Protocolo de Palermo: contextualização, críticas e tensões Conforme SPRANDEL e DIAS (2012), o Protocolo de Palermo surge no contexto contemporâneo de globalização, diante da preocupação de alguns países com a ampliação da mobilidade humana e sua vinculação à questão da “criminalidade” internacional. Ou seja, em um contexto 1 Advogada, Religiosa da Congregação Scalabriniana, Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e membro observador do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). 2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). 3 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional tem mais dois Protocolos Adicionais, referentes ao combate ao tráfico de armas e ao combate ao contrabando de migrantes. 4 Disponível em http://www.reporterbrasil.com.br/documentos/cartilha_trafico_pessoas.pdf. 5 Disponível em http://portal.mj.gov.br/data/Pages/htm. 208 209 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana marcado pelo processo de aproximação da questão migratória a problemas de segurança e crime, especialmente nos Estados-membros da União Europeia e nos Estados Unidos. Chama a atenção que, no final da década de 1990 e início de 2000, as migrações internacionais tenham figurado nos relatórios oficiais da ONU como um “desafio” prioritário de intervenção e debate (conforme relatório final da Global Commission on International Migration6, de 2005), a ser tratado na área de defesa dos direitos, tanto de Estados-soberanos quanto dos próprios migrantes. Com o Protocolo de Palermo, o arcabouço institucional das Nações Unidas que vinha tratando de criminalidade internacional passa também a discutir e propor soluções para questões relacionadas à temática migratória. O fato do tráfico de pessoas e do contrabando de migrantes terem sido problematizados no âmbito de uma Convenção da ONU de repressão à criminalidade e não em uma Convenção de Direitos Humanos não é aleatório, sinaliza para uma aproximação conceitual da mobilidade humana a questões de caráter criminal e de segurança. Coerentemente com este entendimento, a agência das Nações Unidas, responsável por coordenar o processo de elaboração do Protocolo de Palermo, foi a United Nations Office on Drugs and Crimes (UNODC), responsável, justamente, pelo enfrentamento ao crime organizado transnacional. Ao aderir ao Protocolo de Palermo, os países membros se comprometem a realizar mudanças na legislação e a construir políticas públicas. O cumprimento destes compromissos é avaliado por agências internacionais – como o próprio UNODC, no caso da ONU – e por instituições nacionais que lidam com política externa, como o Departamento de Estado dos EUA, que publica anualmente a série de Relatórios TIP (Trafficking in Persons), avaliando as respectivas ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas desenvolvidas em diferentes países do mundo. Estes e outros organismos internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização Internacional para as Migrações (OIM), também promovem campanhas, capacitações e atividades diversificadas que concorrem para a formação de opinião e difusão de informações junto à sociedade civil. O texto do Protocolo de Palermo está longe de ser uma unanimidade, afirmam SPRANDEL e DIAS (2012). Ao incluir em um mesmo conceito (e tipo penal, se pensarmos que a tipificação penal é um dos objetivos da adesão ao texto) a exploração da prostituição ou outra forma de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão e a remoção de órgãos, o Protocolo coloca 6 Ver o relatório final da Global Comission em http://www.iom.int/jahia/webdav/site/myjahiasite/shared/ shared/mainsite/policy_and_research/gci/GCIM_Report_Complete.pdf. 210 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel desafios e dificuldades a governantes, operadores do direito e defensores de direitos de trabalhadores imigrantes. Subjacente a esta tensão está a dicotomia entre crime e direito, que perpassa as categorias apresentadas na definição de tráfico do Protocolo de Palermo. A leitura da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o tráfico de pessoas, por exemplo, o considera uma das agressões à dignidade humana e uma das graves violações aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no trabalho. A OIT vê o tráfico de pessoas como a antítese do trabalho em liberdade. Coerentemente a esta visão, a maior difusão internacional de casos de trabalho escravo ou trabalho forçado estaria ligada a elementos estruturais da globalização, como a terceirização desregrada de partes do processo produtivo e a perda de valor do trabalho. Ou seja, a perspectiva da OIT traz o debate, sobre o tráfico de pessoas, para o mundo do trabalho e da defesa dos direitos dos trabalhadores migrantes. No entanto, apenas o trabalho escravo ou forçado não caracteriza o tráfico de pessoas, uma vez que é fundamental que haja o deslocamento territorial. É aí que a temática das migrações, afeta anteriormente, pelo menos no contexto brasileiro, ao mundo do trabalho ou da administração pública, passa a interagir com a pauta criminal. A Convenção de Palermo diferencia as noções de “tráfico de pessoas” e “tráfico ou contrabando de migrantes”, tratando-as, inclusive, em Protocolos distintos. O “Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças”, traz a conceituação abrangente de tráfico de pessoas, nos termos do artigo 3º, ‘a’: o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. Por outro lado, o “Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea”, no artigo 3º, incisos ‘a’ e ‘b’, o tráfico ilícito (ou contrabando) de migrantes é definido como: a facilitação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado Parte do qual esta pessoa não seja nacional ou residente permanente com o fim de 211 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício de ordem material”. Por entrada ilegal entende-se “a transposição de fronteiras sem o preenchimento das condições necessárias para a entrada legal no Estado receptor. Organizações de defesa dos direitos de trabalhadores migrantes denunciam que os Protocolos adicionais da Convenção de Palermo, referentes ao tráfico de pessoas e de migrantes, têm servido, na prática, para criminalizar e coibir a migração indocumentada. Defendem, para se contrapor a esta leitura criminalizadora das migrações, que se tráfico de pessoas é um crime, migrar é um direito. Outra intersecção complexifica sobremaneira o debate, ao acrescer às ideias de trabalho forçado e migração o universo do trabalho sexual. A partir de Palermo, o turismo sexual e a migração internacional para trabalhar na prostituição passaram a ser cada vez mais frequentemente relacionados com o tráfico internacional de pessoas com fins de exploração sexual. No debate público, por exemplo, o turismo sexual aparece quase sempre vinculado à prostituição e à exploração sexual de crianças por estrangeiros. Conforme SPRANDEL e DIAS (2012), tal fusão é contestada em diversos estudos. Em termos analíticos, o turismo sexual (que não é crime) envolve um universo amplo e diversificado que está longe de reduzirse à exploração sexual de crianças e à prostituição. Embora, em certos contextos, possa ter vinculações com a prostituição e o tráfico de pessoas, são problemáticas diferentes. Entretanto, no debate, esses temas são repetidamente lidos numa ótica que, ao fundi-los, faz com que as pessoas envolvidas, sobretudo mulheres e crianças, tendam a ser percebidas como seres necessariamente sujeitos à violência. Tal posicionamento, embora tenha fundamentos sólidos no campo da defesa de direitos, não permite uma real compreensão destes fenômenos. Ao contrário, contribui para que um discurso enviesado sobre tráfico de pessoas se sobreponha às realidades localizadas, esvaziando-as de sentido. Para compreender esta tensão específica entre as pautas referentes ao tráfico de pessoas e as pautas das trabalhadoras sexuais, é importante ter consciência do peso que tiveram os lobbys de grupos feministas durante a elaboração do Protocolo de Palermo. Tais grupos, embora coincidissem no interesse em promover o bem-estar das mulheres, se dividiram no que se refere à concepção da prostituição e da relação entre prostituição e tráfico de pessoas. A chamada abordagem abolicionista, organizada em torno da CATW/ Coalition Against the Trafficking in Women, defendia (e segue defendendo) 212 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel que a prostituição reduz as mulheres a objetos comercializáveis e que, portanto, é sempre e necessariamente degradante e danosa para as mulheres. Não reconhece distinções entre prostituição forçada e por livre escolha. Sustenta que tolerando, regulando ou legalizando a prostituição, os Estados permitem a violação dos direitos humanos. As medidas para erradicar a prostituição são consideradas medidas antitráfico e vice-versa. Por sua vez, a abordagem pró-direitos dos trabalhadores sexuais, organizada em torno do GAATW/Human Rights Cáucus, considera a prostituição como uma forma de trabalho e traça distinções entre a prostituição voluntária exercida por adultos, a prostituição forçada e a exploração infantil. Defende que a exploração - inclusive, o tráfico - não se vincula de maneira automática à indústria do sexo, mas é favorecida pela falta de proteção aos/às trabalhadores/as. Entende que os traficantes se beneficiam da ilegalidade da migração e da ilegalidade do trabalho sexual comercial. Esta tensão entre grupos feministas é reatualizada constantemente. Um exemplo é o posicionamento em relação aos grandes eventos esportivos internacionais, como Copa do Mundo, Olimpíadas, Copa das Confederações etc. A GAATW lançou recentemente o relatório What’s the Cost of a Rumour? A guide to sorting out the myths and the facts about sporting events and trafficking7, preocupada com a quantidade de referências na mídia e em documentos oficiais sobre uma suposta ligação entre grandes eventos esportivos e o tráfico de pessoas. Segundo estudiosos do tema, esta relação não se confirma. Segundo a ONG, a despeito da ausência de evidências, o alarde em torno do tráfico continua a ter grande apelo para grupos abolicionistas, grupos anti-imigração, políticos e jornalistas, em função de sua eficácia em chamar a atenção da mídia e da população – já que é uma forma rápida e fácil de ser visto “fazendo algo” contra o tráfico –, por sua utilidade como estratégia para financiamento de projetos e por ser um pretexto mais socialmente aceitável para pautar agendas antiprostituição e antiimigração. Enquanto isso, um dos aspectos mais presentes no cotidiano de muitos países, que é o tráfico de pessoas para fins de trabalho doméstico, tem sido pouco estudado e, consequentemente, pouco enfrentado. No entanto, o trabalho doméstico, muitas vezes, pode resultar do tráfico de pessoas, sobretudo quando envolve crianças e adolescentes levadas para trabalhar em “casas de família” em idade inferior àquela permitida pela legislação (18 anos, no Brasil) ou sem nenhum direito trabalhista 7 Acesso em http://www.gaatw.org/publications/WhatstheCostofaRumour.11.15.2011.pdf. 213 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana respeitado. Estamos tratando, neste caso, de situações de trabalho doméstico forçado, que, espera-se, sejam mais enfaticamente enfrentadas com a aprovação da Convenção 189 sobre trabalho doméstico, na 100ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em junho de 2011. A discussão da temática do tráfico de pessoas também não deve ser deslocada do contexto mais abrangente das políticas no âmbito internacional. Se, para muitos países em desenvolvimento, o tráfico de seres humanos não aparece (ou melhor, não aparecia) como um tema prioritário em suas agendas, alguns países desenvolvidos costumam endossar a construção do problema, vinculando-o a um “outro” (estrangeiro) potencialmente bárbaro e criminoso, que surge como uma constante ameaça a ser defendida e evitada. Assim, o tema do tráfico de pessoas acabaria se traduzindo em mais um aparato conceitual que aproxima a conduta de estrangeiros de práticas criminosas, reforçando visões xenófobas e reatualizando representações coloniais e neocoloniais com relação aos imigrantes. Além disso, estudiosos, como Pardis Mahdavi, professora associada do Departamento de Antropologia do Promona College, têm demonstrado que o tema do tráfico de pessoas tem servido, não raras vezes, como objeto de barganha em discussões de política internacional. Um exemplo disso seria a avaliação do desempenho dos distintos países no cumprimento de medidas de combate ao tráfico de pessoas produzida anualmente pelo Departamento de Estado dos EUA e publicizada por meio dos Relatórios TIP. O Relatório TIP 20118, por exemplo, elenca 180 países em três grupos (sendo o Grupo 1 o melhor e o Grupo 3 o pior) de acordo com as iniciativas e desafios levados a cabo pelos governos nacionais no enfrentamento ao TSH. Em 2011, o número de países classificados no Grupo 3 (que podem ser objeto de sanções não-humanitárias) cresceu de 13 para 23. Para muitos analistas, tal ranking representaria, na verdade, os interesses da política externa dos Estados Unidos. Nesse caso, Coréia do Norte, Irã, Cuba, Venezuela, Iêmen, Argélia, Birmânia e Líbia, entre outros, ficaram no Grupo 3, enquanto Canadá, Alemanha, Dinamarca, Coréia do Sul, Austrália e, é claro, EUA, no Grupo 1. As considerações de política externa dos EUA estariam influenciando as designações dos integrantes dos Grupos, o que comprometeria a integridade destes relatórios, que são fontes importantes de avaliação das políticas antitráfico no mundo. Segundo Mahdavi, a linguagem das narrativas dos países em todo o relatório está repleta de nepotismo 8 Disponível em http://www.state.gov/j/tip/rls/tiprpt/2011/. 214 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel norte-americano. A Colômbia, por exemplo, é descrita como sendo capaz de realizar esforços “continuados e robustos de prevenção”, o que inclui uma condenação por trabalho forçado. A Venezuela, por outro lado, é penalizada no Grupo 3, quando “o governo prendeu pelo menos doze pessoas por crimes de tráfico durante o período do relatório”. Independentemente deste contexto de política externa, evidenciase que a agenda do tráfico humano tem servido para que os países hegemônicos deixem de enfrentar de forma mais consistente a pauta dos direitos dos trabalhadores migrantes e suas famílias, que segue sendo colocada em segundo plano em suas políticas públicas. Ao contrário, os aspectos repressivos e criminais da pauta antitráfico acabam reforçando estereótipos de um estrangeiro potencialmente bárbaro e criminoso, o que se distancia de forma vigorosa de uma discussão mais bem informada sobre a realidade social de migrantes em diferentes contextos nacionais. 2 - O Protocolo de Palermo no Brasil Em 2004, quando o governo brasileiro ratificou a Convenção de Palermo, a pauta do tráfico de pessoas praticamente inexistia no país. Há décadas, no entanto, a sociedade civil e as associações de migrantes vinham cobrando, dos sucessivos governos, políticas públicas para sua proteção e uma nova Lei de Estrangeiros, que superasse o caráter de segurança nacional da lei em vigor, fruto que foi de um governo ditatorial (Lei 6.815, de 1980). Outras demandas da sociedade estavam em fase de atendimento, por meio da execução dos Planos Nacionais de Enfrentamento à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (2000), de Erradicação do Trabalho Escravo (2003) e de Erradicação do Trabalho Infantil (2004). Ou seja, no começo dos anos dois mil, as demandas da sociedade civil brasileira se referiam à proteção de migrantes, crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual comercial, crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil e trabalhadores adultos em situação de trabalho escravo. A pauta antitráfico acabou interferindo ou mesmo se sobrepondo a todas estas questões e criando, em nosso ponto de vista, uma “demanda artificial”, que acabou gerando novos problemas e desviando a atenção, bem como recursos humanos e orçamentários, da área de defesa dos direitos dos migrantes. “Demanda artificial” não porque o crime do tráfico de pessoas inexista e não necessite ser enfrentado pelas autoridades competentes, mas porque a abrangência do enfoque e a maneira como as discussões foram inicialmente pautadas fizeram crer que ele estaria 215 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana amplamente difundido na sociedade brasileira e que precisaria ser priorizado, em detrimento de outras temáticas. Como bem analisam SPRANDEL e DIAS (2012), no universo relativamente pequeno de militantes e defensores dos direitos dos migrantes, acabou por criar clivagens, envolvendo, sobretudo, a tentativa de subsumir a questão do trabalho escravo no conceito guarda-chuva de tráfico de pessoas e em função da criminalização do trabalho sexual, que continua a provocar polêmicas e discordâncias. A pauta antitráfico, além disso, foi extremamente eficaz em termos da construção de convencimentos, por meio de capacitações e campanhas. De fato, parece que o objetivo de ver o tráfico de pessoas sendo discutido por nossa sociedade civil organizada - através de workshops e capacitações – foi alcançado. Trata-se, agora, de participar ativamente deste debate, sempre levando em consideração a contextualização apresentada acima, tendo como parâmetro ético a riqueza de reflexões que a Sagrada Escritura nos fornece. 3 - Tráfico de Pessoas – Uma reflexão Ética9 O Tráfico de Pessoas é um problema ético antigo. O povo de Israel sentiu em sua própria carne o que era trabalhar e viver desterrado (Gn 12, 1-10; 26,1-6). A proibição do rapto e comércio de pessoas está legislado na Lei de Moisés. Na Torá, o mandamento Não roubar (Ex 20,15) proíbe apoderar-se de pessoas para reduzi-las à escravidão. Desse modo, visa toda e qualquer alienação da liberdade de outrem. Semelhante legislação aparece no catálogo de normas apresentadas por Javé a Moisés (Ex 2123): “Quem cometer um rapto – quer o homem tenha sido vendido ou ainda se encontre prisioneiro em suas mãos – será morto” (Ex 21,16). Dt 24,7 é mais incisivo: todo aquele que raptar uma pessoa para tirar proveito é réu de morte. José, filho de Jacó, aparece na Bíblia como primeira vítima do tráfico de pessoas da história (Gn 37,13-28)10. Foi salvo da morte por Rubem, seu irmão mais velho, pois José “é nosso irmão, nossa carne”. Era mais vantajoso vendê-lo do que matá-lo e ocultar seu sangue para abafar a justiça. Abandonado em uma cisterna, encontrado por comerciantes madianitas que logo o venderam por vinte ciclos e levado ao Egito para trabalhar como escravo. Quando o irmão mais velho volta à cisterna, “José 9 A presente reflexão ética é uma breve contribuição de Élio Estanislau Gazda, s.j., professor de Ética e Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte), Doutor em Teologia pela Universidade Pontifícia de Madrid. 10 WÉNIN, André. José, ou a invenção da fraternidade. Leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37-50. São Paulo: Loyola, 2010. 216 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel não estava mais lá. Rasgou suas vestes e voltou para seus irmãos dizendo: o menino não está mais lá! E eu, para onde irei?” (Gn 37, 30). Rubem fracassou em sua tentativa de salvar o irmão. Indigna-se ante a indiferença dos demais irmãos diante do desaparecimento do caçula. Mais tarde, os irmãos assumem sua culpa pelo ato e sua insensibilidade diante dos gritos desesperados do irmão clamando por não ser abandonado (cf. Gn 42, 2122). A vítima tem a força de desmascarar a mentira. Ao fazê-lo, reverte os rumos da história. Este relato bíblico revela que, na fé cristã, a partir do momento em que junto ao “eu” (Rubem) aparece um “tu” (José), dá-se a irrupção da ética. O rosto do outro, como diz Lévinas, solicita, interpela o “eu” ensimesmado. Quando o eu exclama: “quero que tua liberdade e autonomia sejam”, está descendo a gigantesca escadaria do seu castelo de vaidades. Para um eu ético, a preciosa fragilidade da pessoa confere sentido ao ser humano e rompe a barreira do vazio e da indiferença. O outro passa a ser a condição de possibilidade para que o eu mereça respeito de si mesmo. Deus, através da fragilidade do outro abre os olhos: salvai o mísero e o indigente, arrancai-o das mãos dos iníquos... pois a injustiça abala todos os fundamentos da terra (Sl 82,4-5). O desejo fundamental de todo ser humano é o desejo de reconhecimento da sua liberdade. O direito absoluto é o direito de ter direitos (Hegel). O reconhecimento é a exigência ética mais profunda. Sou ser humano na medida em que consigo sair do meu eu para me tornar humano na acolhida do outro. Por isso, os direitos do homem são originariamente os direitos do outro humano (Paul Ricoeur). A busca de Rubem pelo irmão-vítima é uma partida sem retorno, como a de Abraão, que sai de sua terra rumo ao desconhecido. Gritos de pessoas de carne e osso originam uma resposta ética da responsabilidade por toda a humanidade “carne da nossa carne”. Para Rubem, o rosto de José transtornado pelos seus gritos pedindo misericórdia expõe toda sua vulnerabilidade humana. Ao deixar-se afetar, Rubem quebrou sua indiferença e vaidade. José tornou-se um interlocutor que o transcendeu. O grito de José é o grito de um irmão. Carne de sua carne, por isso inviolável. A única maneira de não reconhecer alguém como a carne de sua carne é o assassinato. Rubem expressa o primeiro conteúdo de todo discurso ético: não o matemos! Se Rubem tivesse se omitido, José teria sido assassinado. A acolhida do ser humano que aparece no rosto e no grito da vítima pede sua resposta ética, afeta, inquieta, desinstala. Ao responder a José, Rubem afirmouse como humano e embarcou na viagem da procura da verdade de José: 217 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana É carne da minha carne. O outro é prova maior da existência divina. Entretanto, nesta peregrinação da verdade, o eu deve abdicar de ser o centro, precisa se retirar do centro para centrar-se no outro. Ao colocar o outro no centro, descubro quem sou eu verdadeiramente. A verdade está além de Rubem, está em José. A identidade de Rubem foi revelada em José. modo a integrar iniciativas mais eficazes no enfrentamento ao tráfico humano e suas degradantes expressões. José se apresenta a Rubem sem nenhuma mediação e espera apenas uma resposta, nada mais. José rompe com as verdades dos irmãos. Este ato, face a face entre os irmãos, irrompe o sentido do humano. Quando isso ocorre, o eu toma consciência de sua responsabilidade. Rubem não espera reciprocidade, tem o coração tomado de gratuidade. Diante da miséria, da nudez do outro, a liberdade do eu se sente culpada, perde sentido. O egoísmo perde seus fundamentos: e eu, para onde irei? (Gn 37, 30). Apoiar e fortalecer a implantação em todos os Estados do Brasil dos Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e redes de organizações da sociedade civil, com vistas ao monitoramento, denúncia e articulação de processos que reduzam ou eliminem o tráfico de pessoas, bem como os que visam a punição e responsabilização dos culpados por este crime. A responsabilidade pelo outro devolve a liberdade perdida pelas artimanhas da vaidade narcisista. O outro se impõe acima de qualquer retórica. Assim se forma o segundo conteúdo do discurso da ética: “Sou responsável pela preciosa fragilidade do outro”. O eu entrega sua liberdade e autonomia na luta pela justiça: devolver a dignidade, a liberdade e a autonomia que lhe foi usurpada. Esta responsabilidade pelo outro deve se traduzir em ações. No caso do tráfico de pessoas, trataremos desta práxis no próximo item. 4 - Propostas de Ação O tráfico de pessoas é hoje um dos mais urgentes apelos históricos para os governos, organizações governamentais e não governamentais, igrejas, enfim, de todas as forças vivas da sociedade, pois a responsabilidade na defesa da dignidade de cada ser humano é missão de todos. Cuidar, proteger, defender e promover a vida ameaçada é imperativo antropológico. Em seminários, encontros, jornadas e fóruns, colhemos algumas sugestões e propostas de ação que poderão servir como ponto de partida para debater e implementar iniciativas contra este mal do tráfico de pessoas que tanto fere a ética, corrói a própria sociedade e vilipendia a dignidade do ser humano. Fortalecer e/ou contribuir na articulação nacional de uma rede de entidades e organizações da sociedade civil que atuam ou venham a atuar na prevenção ao tráfico de pessoas, na assistência às vítimas e na repressão ao crime, bem como na incidência por políticas públicas, de 218 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel Exigir do Estado efetividade das políticas públicas (saúde, educação, desenvolvimento social, moradia) e dos planos de ação, nas diversas esferas do poder público, partindo da premissa de que o tráfico humano se expande quando existe vulnerabilidade social. Nas campanhas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, promovidas pelo Estado - âmbito federal, estadual e municipal -, desenvolver atividades voltadas à difusão e debate dos temas propostos e a prevenção ao tráfico, valendo-se, para tanto, também de datas significativas, tais como: 28 de janeiro – Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo; 8 de março – Dia Internacional da Mulher; 1º de maio – Dia do Trabalhador/a; 18 de maio – Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes; 23 de setembro - Dia Internacional contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças. Desenvolver ações conjuntas e articuladas entre Igrejas e organizações éticas e de fé, de modo a contribuir para uma constante formação da mentalidade e das consciências e, assim, colaborar na construção de medidas eficazes para a erradicação do tráfico humano e pela sensibilização e realização de ações na proteção e atenção às vítimas. Organizar ou aprimorar o sistema de “coleta de dados sobre o Tráfico de Pessoas”11, para maior conhecimento do alcance dessa violação de direitos e construção de mecanismos e ações que fortaleçam o enfrentamento a esta prática criminosa. Monitorar as ações do Estado brasileiro na efetivação do que está proposto no III Plano Nacional de Direitos Humanos: “Estruturar, a partir de serviços existentes, sistema nacional de atendimento às vítimas do tráfico de pessoas, de reintegração e diminuição da vulnerabilidade, especialmente de crianças, adolescentes, mulheres, transexuais e travestis”12. Promover e monitorar junto ao governo - em suas esferas municipal, estadual e federal - a efetivação do II Plano de Enfrentamento ao 11 Relatório final da CPI do Senado Federal sobre o Tráfico de Pessoas (2012). 12 Brasil – Secretaria Nacional de Direitos Humanos. III Programa Nacional de Direitos Humanos, Brasília, 2010, p. 149. 219 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Tráfico de Pessoas, garantindo recursos econômicos suficientes para implementar estruturas adequadas para a repressão ao crime, e para o devido acolhimento, proteção e atendimento às vítimas13. Somar forças e agir em parceria, governo e sociedade civil, na luta pelo aprimoramento do marco legal referente ao Tráfico de Pessoas e o Trabalho Escravo, de modo a pôr fim aos limites atuais no que tange à responsabilização por estes crimes14. Intervir, enquanto sociedade civil, na incidência de políticas que enfrentem efetivamente as causas estruturais que produzem vulnerabilidade social – situações de exclusão, tais como desemprego ou subemprego, práticas discriminatórias por razões étnicas e de gênero, a pobreza, a miséria, entre outras. Instar os órgãos governamentais, no que tange a medidas e ações efetivas no combate ao tráfico humano, a aprimorar seus mecanismos de investigação e responsabilização dos ‘agentes operacionais’ desse crime contra os direitos da pessoa humana. Adequar a legislação interna de modo que a lei penal brasileira inclua o crime de tráfico de pessoas nos termos da Convenção de Palermo, das Nações Unidas, contra o crime organizado transnacional, pois uma das falhas da legislação vigente é vincular o tráfico de pessoas exclusivamente à exploração sexual, deixando de lado, por exemplo, os casos ligados à remoção de órgãos ou ao trabalho escravo15. Analisar e, se for o caso, solicitar ao estado que retome investigações sobre pessoas desaparecidas, seja em território nacional ou no estrangeiro, levando em consideração a possibilidade de ter ocorrido tráfico humano. Reforçar ações ou ampliar a atuação do estado brasileiro no que tange às adoções ilegais, sejam elas efetivadas no próprio país ou no exterior, pois nestas circunstâncias configura-se tráfico de pessoas16. É necessário maior controle sobre formas veladas de adoção, encobertas por parentesco ou por suposta ajuda dada aos pais, e que resultam na retirada da criança do convívio familiar, mas que não tem nenhum amparo legal. Atuar decididamente no debate, conteúdo e aprovação pelo Congresso Nacional de uma nova lei de migrações, centrada no princípio dos direitos humanos, que contemple devidamente a questão do tráfico de pessoas e proteção às vítimas. 13 MILESI, Rosita e SPRANDEL, Márcia, II Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo, in Tráfico de pessoas e trabalho escravo – II Seminário Nacional. Brasília, CNBB, 2012, p. 158). 14 Idem, p. 157. 15 Recomendações da CPI do Senado Federal (2012). 16 O Relatório final da CPI do Senado afirma claramente a necessidade de aprimoramento no Cadastro Nacional de Adoções. 220 Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel Combater as redes de tráfico de pessoas e de contrabando de migrantes, evitando rigorosamente que o migrante seja criminalizado em função desta migração irregular enganosa e a que é submetido. Conclusão A temática do tráfico de pessoas, por mais complexa que seja, é um dos maiores desafios da contemporaneidade, em termos de políticas públicas e de ação pastoral. Isto porque, independentemente do nome que dermos ao fenômeno, ele se refere a situações de muita superação de pessoas que saem de seus locais de origem procurando trabalho e que, muitas vezes, tornam-se vulneráveis a situações de imobilização de mão de obra e de superexploração. Todas estas pessoas, independentemente da atividade que exerçam ou estejam sendo obrigadas a exercer, são merecedoras de apoio por parte das autoridades, do consolo e estímulo por parte de religiosos, religiosas e instituições confessionais, e da atenção específica e especializada de profissionais de diversas áreas e serviços públicos e comunitários. A interdisciplinaridade é fator importante e fundamental no trato da questão do tráfico de pessoas e da devida atenção ao ser humano que venha a ser submetido a esta abominável prática de violação de direitos e de negação da dignidade humana. Como bem afirma a Senadora Lídice da Mata, relatora da CPI do Tráfico de Pessoas do Senado Federal, “o tráfico de pessoas, que não haja ilusões, existe e atenta contra os direitos de toda a sociedade brasileira. Como se vê, além de vitimar mulheres e homens que vivem em situação de vulnerabilidade dada às condições peculiares das atividades profissionais que desempenham, relacionadas à indústria do sexo, o tráfico de pessoas também entra nas casas, rouba crianças, empobrece o futuro de meninas e meninos e instala a desesperança e a revolta no seio de famílias que já enfrentam a necessidade de conviver com privações sociais, políticas e civis inaceitáveis na era moderna”. Referências DIAS, Guilherme. SPRANDEL, Marcia. A CPI do Tráfico de Pessoas no contexto do enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. In: ACNUR e IMDH. Caderno de Debates 7. Refúgio, Migrações e Cidadania. 2012. p. 21. GASDA, Élio Estanislau. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: lugar teológico, exigência ética, missão da Igreja. In: In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo. Brasília: Edições CNBB, 2012, p. 15 e ss. GORENSTEIN, Fabiana. Da concepção menorista à proteção integral: oscilações de discurso na CPMI da exploração sexual de crianças e adolescentes. Dissertação de Mestrado 221 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana defendida na Faculdade de Direito/UnB. Brasília, 2009. LOWENKRON, Laura. O Monstro Contemporâneo - a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Tese de Doutorado defendida no PPGAS/Museu Nacional. Rio de Janeiro, 2012. MAHDAVI, Pardis “Just the ‘TIP’ of the iceberg: the 2011 Trafficking in Persons Report (TIP) falls short of expectations”. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/pardismahdavi/just-the-tip-of-the-icebe_1_b_888618.html MILESI, Rosita. SPRANDEL, Marcia. II Seminário Nacional de enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo (Relatório). In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo. Brasília: Edições CNBB, 2012, p. 145 e ss. WÉNIN, André. José, ou a invenção da fraternidade. Leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37-50. São Paulo: Loyola, 2010. 222 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo O Projeto de Lei do Senado no 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros1 Gabriel Gualano de GODOY2 Raquel TRABAZO3 Introdução Os artigos 452, 453, 454 e 456, do Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 236, de 2012, tipificam novos delitos que somente podem ser cometidos por estrangeiros ou por pessoas que auxiliam estrangeiros em situação irregular no país. Esses dispositivos almejam consolidar no Brasil uma reprochável política de criminalização dos movimentos migratórios, em franca oposição à postura assumida pelo Estado brasileiro nos foros internacionais, aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e ao objetivo de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, solidificado no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. As condutas tipificadas nos dispositivos acima já estão devidamente abarcadas pelo artigo 265 do PLS 236/2012, que equivale ao artigo 299 do Código Penal em vigor, ambos relativos ao crime de falsidade ideológica. A repetição configura um excesso legislativo, na medida em que condutas idênticas já estão criminalizadas em outros dispositivos distintos, o que pode, inclusive, vir a gerar um censurável bis in idem. O legislador já havia considerado aquelas condutas lesivas em razão da preservação da fé pública, não havendo justificativa plausível para a especialidade da criminalização de condutas já tipificadas. Ademais, constata-se que somente será possível identificar o bem jurídico violado a partir das características pessoais do agente da conduta. Ou seja, se um brasileiro comete algum daqueles crimes, viola-se o bem jurídico da fé pública. Contudo, se um estrangeiro comete o mesmo crime, viola-se o bem da segurança nacional, o que abre a possibilidade de permitir que o status do autor altere o bem jurídico tutelado, sem nenhum elemento 1 As opiniões dos autores não refletem, necessariamente, a opinião do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). 2 Doutorando em Teoria do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Direito e Antropologia pela London School of Economics and Political Science (LSE), Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); atualmente exerce o cargo de Oficial de Proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). 3 Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), Especialista em Relações Internacionais pela Unb, Bacharel em Direito pela Universidade Salvador (Unifacs); atualmente trabalha como Assistente de Proteção no escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil. 223 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros adicional que torne a conduta em si efetivamente mais grave. Além disso, os artigos acima não levam em consideração as peculiaridades inerentes ao deslocamento e à proteção dos solicitantes de refúgio e refugiados no mundo. Tratam-se de pessoas que deixam seu país de origem em razão de um fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política imputada ou pertencimento a grupo social, sendo a sua fuga caracterizada pela urgência, o que inviabiliza a espera pela documentação adequada que permita o acesso regular ao país onde podem buscar asilo. Não raro o refugiado viaja sem qualquer documento de identidade, assim como pode ver-se obrigado a valer-se de documentação adulterada justamente para conseguir sair do país onde a perseguição é perpetrada. Justamente em razão disso, a Lei 9.474/1997 instituiu em seu artigo 8º que o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para que o estrangeiro solicite refúgio às autoridades competentes, sendo que o artigo 10º ainda define que, feita a solicitação de refúgio, serão suspensos todos os procedimentos administrativos e criminais que tenham por fundamento a entrada irregular. Os argumentos expendidos serão desenvolvidos, em detalhes, a seguir para melhor ilustrar os fundamentos da disposição do Estado e da sociedade brasileira em tratar a imigração através de uma lente humanitária, o que não se coaduna com a proposta de repulsão e criminalização de estrangeiros em situação irregular contida nos artigos 452, 453, 454 e 456 do PLS 236/2012. 1. PLS 236: incoerências do Título XV Em 1961, ao promulgar o Decreto 50.215, o Brasil internalizou a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, sendo que em 22 de julho de 1997 foi promulgada a Lei Brasileira de Refúgio n. 9.474, confirmando o compromisso assumido perante a comunidade internacional no sentido de oferecer proteção plena aos solicitantes de refúgio e refugiados que se encontrem em território nacional. A Lei Brasileira de Refúgio 9.474/97 acolhe a definição estabelecida na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e considera como refugiado todo indivíduo que foge do seu país de origem devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas imputadas, e que não possa ou não queria acolher-se à proteção de tal país. Ademais, o inciso III do artigo 1º da Lei 9.474/97 foi além e estendeu aquele conceito para Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo abarcar a hipótese trazida na Declaração de Cartagena de 1984 e também reconhecer como refugiado a pessoa que deixa seu país de origem devido a uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos. Diante da situação de vulnerabilidade característica da população de refugiados e solicitantes de refúgio, e tendo em vista o ordenamento jurídico brasileiro, o presente estudo tem por objeto o Anteprojeto de Código Penal, que tramita sob a rubrica PLS 236/2012 na Comissão Especial Externa do Senado Federal, denominada “Comissão de Juristas com a Finalidade de Elaborar Anteprojeto de Código Penal – CJECP” e presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Langaro Dipp. A referida comissão foi incumbida de propor uma ampla modernização do Código Penal, tendo norteado os seus trabalhos com o objetivo de unificar a legislação esparsa, compatibilizar os tipos penais existentes com a Constituição Federal de 1988, tornar proporcionais as penas dos diversos crimes e valorizar as penas alternativas, não prisionais, conforme apontado em seu relatório final4, apresentado ao Presidente do Senado em junho de 2012. No Título XV do PLS 236/2012, que trata especificamente dos “Crimes Relativos a Estrangeiros”, são tipificadas condutas relacionadas à imigração e entrada irregular no território brasileiro, bem como delitos relativos ao acesso ao mecanismo do refúgio e aos procedimentos de reconhecimento da condição de refugiado. Sendo assim, o Título XV reflete a tendência retrógrada de criminalização dos movimentos migratórios e punição dos imigrantes, dos solicitantes de refúgio e dos indivíduos e organizações solidários à vulnerabilidade dessa população, o que não se coaduna com a postura brasileira reiterada nos foros internacionais, a Constituição Federal de 1988, a Lei Brasileira de Refúgio e o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ressalte-se que o Título XV do PLS 236/2012 engloba os artigos 452 a 457 do Anteprojeto de Código Penal, onde são tipificados novos delitos que somente podem ser cometidos por estrangeiros ou por pessoas que auxiliam estrangeiros em situação irregular no país. 2. Sobre a criminalização do ingresso irregular no território nacional Os artigos 452, 453 e 454 dizem respeito a crimes que envolvem solicitantes de refúgio e o acesso ao mecanismo de refúgio no Brasil, tendo sido propostos nos seguintes termos: 4 Disponível no website do Senado: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=110444&tp=1. 224 225 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros Artigos 452. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou qualquer documento falso: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o estrangeiro que omite informação, usa documentos falsos ou faz declaração falsa com o fim de ter reconhecida a condição de refugiado no território nacional. Artigo 453. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território nacional ou para assegurar-lhe a condição de refugiado: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Artigo 454. Introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino ou irregular: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Esses tipos penais revelam-se preocupantes, em primeiro lugar, porque não levam em consideração as peculiaridades inerentes ao deslocamento e à proteção dos solicitantes de refúgio e refugiados no mundo. Considerando-se que a perseguição sofrida no país de origem impõe uma grave ameaça à vida, liberdade ou integridade física dos refugiados, a fuga caracteriza-se pela urgência, o que inviabiliza a espera pela documentação adequada que permita o acesso regular ao país onde podem buscar asilo. Assim, não raro o refugiado é obrigado a valer-se de documentação adulterada justamente para conseguir sair do país onde a perseguição é perpetrada. Além disso, também em razão da urgência na saída do país, é comum que os refugiados viajem sem qualquer documento de identidade, o que exige que os países de recepção tenham a sensibilidade e capacidade técnica adequada à identificação dos estrangeiros que possuem um fundado temor de perseguição e que não podem ser criminalizados em decorrência dos meios utilizados para salvar sua própria vida. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), em documento que oferece orientação sobre a detenção de solicitantes de asilo, prescreve como diretriz primária a compreensão de que os solicitantes de asilo “podem, por exemplo, estar impossibilitados de obter a documentação necessária antes da sua fuga em razão de um fundado temor de perseguição e/ou em razão da urgência da sua partida. Esses fatores, aliados ao fato de que os solicitantes de asilo frequentemente experimentam eventos traumáticos, devem ser levados em consideração no momento de se determinar quaisquer restrições à sua liberdade de movimento com base na entrada ou estadia irregular”5. 5 Disponível no website do ACNUR, em:http://www.unhcr.org/refworld/docid/503489533b8.html. 226 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo Com isso em mente, a Lei 9.474/976 instituiu em seu artigo 8º que o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para que o estrangeiro solicite refúgio às autoridades competentes. Além disso, o artigo 10º ainda define que, feita a solicitação de refúgio, serão suspensos todos os procedimentos administrativos e criminais que tenham por fundamento a entrada irregular. Aqueles artigos da Lei 9.474/97 foram inspirados no artigo 31 da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados7, que dispõem que os Estados não aplicarão sanções aos refugiados em virtude da entrada ou permanência irregulares. O ex-presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) no Brasil, Luiz Paulo Barreto, ratificou a importância de permitir livre acesso ao mecanismo do refúgio, independentemente da situação do estrangeiro no país: O artigo 8º contém dispositivo importantíssimo para uma efetiva proteção internacional ao desconsiderar eventual ingresso imigratório irregular como situação restritiva ao direito de solicitar refúgio. O disposto na lei se aplica ao estrangeiro irregular ou clandestino. Ainda que chegue de navio, sem visto, passaporte ou qualquer outro documento ou ainda que tenha um visto vencido, deverá ser permitido o acesso ao procedimento de refúgio. [...] Não raro um solicitante de refúgio porta documento de viagem parcial ou totalmente falsificado ou com dados de identificação inverídicos. Em um regime de exceção, se o indivíduo tentasse sair do seu país com um passaporte autêntico seria de imediato preso. Por isso, o exposto no artigo 8º é fundamental para outorgar à pessoa o livre acesso ao pedido de refúgio.”8 Na mesma linha, o ex-coordenador geral do CONARE, Renato Zerbini, assevera que o princípio de que o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para a solicitação de refúgio por parte de um estrangeiro não poderia estar mais explícito na legislação brasileira: “O artigo 8º da Lei é cristalino com relação à garantia deste princípio”9. A posição refletida pelo ex-presidente do CONARE é elucidativa no que tange à exclusão da culpabilidade do estrangeiro que, por motivos de força maior e em estado de necessidade, busca subterfúgios para deixar o local de perseguição e refugiar-se em um ambiente seguro. Ao comentar o artigo 10 da Lei 9.474/07, Luiz Paulo Barreto afirma: 6 Disponível no site do Planalto, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm. 7 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/humanitarian/Genebra.pdf. 8 BARRETO, Luiz Paulo Ferreira Teles. “Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas”. Brasília: ACNUR, 2010, p. 165. 9 LEAO, Renato Zerbini Ribeiro. “Reconhecimento dos Refugiados pelo Brasil: decisões comentadas pelo CONARE”. Brasília: ACNUR, 2007. 227 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros Na área criminal, um exemplo seria a falsificação de um passaporte ou a falsificação de um visto. Eventuais procedimentos instaurados para apuração desses crimes também ficam suspensos quando a solicitação de refúgio é apresentada. Tudo isso porque esses procedimentos criminais podem ser considerados como “estado de necessidade”, figura prevista no Direito Penal brasileiro, que exclui a culpabilidade do agente pelo fato praticado, quando não se tem como exigir dele uma conduta diversa da praticada. Seria esse o exato caso de uma pessoa que sofre perseguições no exterior e foge para o Brasil a fim de preservar sua vida, sua liberdade ou integridade física que se encontram em risco em razão de perseguições políticas, étnicas ou de gênero, por exemplo. Muitas vezes, a única maneira de sair do país de origem, principalmente quando desestruturado por conflitos, é com nome diferente, com passaporte ou com um visto falsificado. Os bens jurídicos são distintos, sendo razoável a conduta do agente ao promover uma falsificação a fim de preservar-se de perseguição injusta. O artigo, assim, contém lógica irreparável e constitui-se norma avançada da lei brasileira, em perfeita consonância com a Convenção de 1951 e com os demais instrumentos internacionais de proteção aos refugiados.”10 Ademais, o único órgão competente para apreciar o pedido de reconhecimento da condição de refugiado é o CONARE. Ele o faz após um procedimento específico que inclui a realização de uma entrevista pessoal com um oficial de elegibilidade capacitado para tanto, sendo incabível delegar a qualquer outra autoridade a competência para determinar o caráter abusivo ou não do pedido de refúgio. Esta interpretação está de acordo, inclusive, com a Recomendação n. 30 (XXXIV)11 do Comitê Executivo do ACNUR: (i) tal como em todos os pedidos para a determinação do estatuto de refugiado ou de concessão de asilo, deve conceder-se ao requerente uma entrevista pessoal e completa por um funcionário devidamente qualificado e, sempre que possível, por um funcionário da autoridade competente para a determinação daquele estatuto; (ii) o caráter manifestamente infundado ou abusivo de um pedido deve ser estabelecido pela autoridade normalmente competente para a determinação do estatuto de refugiado; (iii) um requerente, cujo pedido tenha sido recusado, deve ter a possibilidade de requerer a revisão da decisão negativa antes da rejeição na fronteira ou do seu afastamento forçado do território. Onde não existam disposições para essa revisão, os Governos devem considerar favoravelmente o seu estabelecimento. Esta possibilidade de revisão pode ser mais simplificada, do que a existente, para os casos de pedidos recusados que não são considerados manifestamente infundados ou abusivos.” 10 BARRETO, Luiz Paulo Ferreira Teles. “Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas”. Brasília: ACNUR, 2010, p. 166. 11 Disponível em: http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/unhcr/excom/xconc/excom30.html. 228 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo No entanto, este não é o único aspecto problemático no PLS 236/2012, uma vez que o que está na base das tipificações penais propostas no Título XV não são apenas condutas, mas também elementos que servem à caracterização de um autor específico que pertence a uma categoria de pessoas consideradas perigosas ao Estado. 3. Bis in idem O fato de que muitas das condutas tipificadas como novos crimes no PLS 236/2012 já se encontravam abrangidas por tipos penais em vigor é um primeiro indicativo desta tentativa de criação de uma categoria de inimigos do Estado. A título exemplificativo, vejam-se os tipos abaixo transcritos: Artigos 452. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou qualquer documento falso: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o estrangeiro que omite informação, usa documentos falsos ou faz declaração falsa com o fim de ter reconhecida a condição de refugiado no território nacional. Artigo 453. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território nacional ou para assegurar-lhe a condição de refugiado: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Artigo 456. Fazer declaração falsa em processo de transformação de visto, de registro, de alteração de assentamentos, de naturalização, ou para a obtenção de passaporte para estrangeiro ou documento de viagem laissezpasser: Pena - prisão, de dois a cincos.” Nota-se que todas as condutas tipificadas nos dispositivos acima já estão devidamente abarcadas pelo artigo 265 do PLS 236/2012, que equivale ao artigo 299 do Código Penal em vigor, ambos relativos ao crime de falsidade ideológica. A princípio, constata-se que essa repetição configura um excesso legislativo, na medida em que condutas idênticas já estão criminalizadas em outros dispositivos distintos, o que pode, inclusive, vir a gerar um censurável bis in idem. No entanto, uma análise mais acurada leva a uma conclusão ainda mais preocupante. O crime de falsidade ideológica volta-se à proteção de um bem jurídico específico, a fé pública. Logo, o legislador de 1940 e também os proponentes do PLS 236/2012 consideraram relevante criminalizar a conduta daquele que omite uma declaração verdadeira ou faz constar 229 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros uma informação falsa com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade de fato juridicamente relevante. Ocorre que as condutas tipificadas nos artigos 452, 453 e 456 criminalizam precisamente a omissão quanto a fato relevante e a prestação de declarações falsas: usar nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou qualquer documento falso (art. 452); atribuir qualificação ou informação que sabe não ser verdadeira (art. 453); fazer declaração falsa (art. 456). Ora, o legislador já havia considerado aquelas condutas lesivas em razão da preservação da fé pública, não havendo justificativa plausível para a especialidade da criminalização de condutas já tipificadas. Entretanto, segundo a exposição de motivos constante no relatório final da comissão, a criminalização de novas condutas e o aumento de penas justifica-se pela tutela ao bem jurídico da segurança nacional. 4. Crimes contra a segurança nacional Digno de nota que a Lei 7.170/1983 define especificamente os crimes que atentam contra a segurança nacional, sendo o único indicativo concreto no ordenamento brasileiro do que se consideram atos lesivos à segurança nacional. Em linhas gerais, aquele diploma legal considera que crimes contra a segurança nacional são as condutas que tem por objetivo iniciar uma guerra contra o Brasil; submeter o país ao domínio estrangeiro; oferecer a outros governos informações confidenciais do país; introduzir armamentos proibidos; sabotar instalações militares; tentar promover, por meio do uso da violência, a mudança do regime vigente; e formar organizações com fins combativos. Sendo assim, resta claro que não há qualquer correspondência entre as condutas ali discriminadas e os artigos constantes no Título XV do PLS 236/2012, que tratam da entrada irregular no país para fins estritamente migratórios ou do apoio humanitário às pessoas que assim agem. 5. Retorno do Direito Penal do Autor Eminentes doutrinadores de Direito Penal no Brasil já começaram a se pronunciar sobre o PLS 236/2012, e duras críticas têm sido tecidas sobretudo ao fato de que o novo código estaria criando bens jurídicos “irreais”. 230 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo Segundo Luis Greco, “boa parte do catálogo de bens jurídicos coletivos imaginários da legislação extravagante, notório misto de tipificações desnecessárias ou duvidosas e de cominações desproporcionais, foi acolhido no Projeto”. Para o jurista, proclama-se a adesão à ofensividade, ao mesmo tempo em que se confere reconhecimento a bens coletivos da mais duvidosa estirpe12. No que tange à repetição do artigo 125, já existente na Lei 6.815/1980 no artigo 454 do PLS 236/2012, que se diferencia apenas pelo substancial aumento de pena cominada, importa trazer a irreparável crítica também formulada por Luis Greco: A solução do Projeto, contudo, é de uma simplicidade salomônica: no geral, ele se limita a inserir as leis esparsas no próprio Código. Contudo, permaneceram, em grande parte, irresolvidos os dois problemas fundamentais dessas leis, quais sejam, o problema das incriminações aleatórias, repetitivas ou injustificadas e o problema das cominações desproporcionais. Além disso, o que é ainda mais grave, conferiu-se a essas leis de ocasião uma dignidade que elas em absoluto merecem. Será muito mais difícil extirpar do ordenamento o conteúdo dessas leis irrefletidas se ele passar a fazer parte do venerável corpo do Código Penal.”13 Todos estes pontos apenas reforçam a percepção de que o anteprojeto almeja implementar no Brasil um Direito Penal do Autor. O Direito Penal do Autor é a teoria segundo a qual se elege uma determinada categoria de pessoas que compartilham uma característica pessoal comum e assinalam-nas “como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal”14. É preocupante, portanto, a constatação de que somente será possível identificar o bem jurídico violado a partir das características pessoais do agente da conduta. Ou seja, se um brasileiro comete algum dos crimes previstos nos artigos 452, 453 e 456 do PLS 236/2009, viola-se o bem jurídico da fé pública. Se um estrangeiro comete o mesmo crime, viola-se o bem da segurança nacional. Logo, no Título XV do PLS 236/2012, propõe-se que o status do autor altere o bem jurídico tutelado, sem nenhum elemento adicional que torne a conduta em si efetivamente mais grave. O jurista e Ministro da Suprema Corte da Argentina, Eugenio Raúl Zaffaroni, explica que o tratamento diferenciado de determinados seres 12 GRECO, Luis. “Princípios fundamentais e tipo no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei236/2012 do Senado Federal).” Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/upload/noticias/pdf/revista_especial.pdf. 13 Idem nota anterior. 14 ZAFFARONI, Eugenio Raul. “O Inimigo no Direito Penal”. Rio de Janeiro: Revam, 2007. p.11. 231 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros humanos pelo Direito Penal é típico do Estado absoluto, que não conhece limites jurídicos e está autorizado a valer-se do seu poder punitivo para tratar seres humanos não como pessoas, mas como entes perigosos15. Neste sentido, o Estado não está se valendo do seu poder punitivo para enviar uma mensagem aos seus cidadãos e atuar preventivamente, mas para enviar uma ameaça direta ao grupo de pessoas que considera serem entes perigosos. Mais do que isso, o PLS 236/2012 identifica também o acolhimento e assistência ao imigrante em situação irregular como uma ameaça penalmente relevante, negando as garantias mínimas do direito internacional dos direitos humanos a uma população que, dada a sua condição migratória, encontra-se em uma posição de extrema vulnerabilidade e risco de ser vítima de toda forma de violência. Neste ponto, ao analisar o artigo 318 do Código Penal Espanhol, que trata do crime de “imigração clandestina”, o jurista espanhol Manuel Cancio Meliá faz uma irretocável ponderação sobre a categoria de normas que, assim como aquelas do Título XV do PLS 236/2012, criminalizam o imigrante em situação irregular e as pessoas que lhes prestam assistência: No caso do delito do artigo 318 bis. 1 CP, é possível afirmar que a dificuldade existente na hora de se identificar o risco concreto que se pretende evitar quando se castiga quem favorece o descumprimento das normas reguladoras da imigração leva à conclusão de que o interesse não se volta a uma determinada forma de imigração, mas ao próprio fenômeno migratório em geral. [...] Desse modo, gera-se a impressão de que, além do controle da imigração, o que se produz com a tipificação de condutas que favorecem a imigração irregular é a marginalização e exclusão dos imigrantes que entram no nosso país sem respeitar as normas estabelecidas, castigando severamente aqueles que se identificam com os imigrantes e lhes prestam algum tipo de ajuda. Ao considerar a chegada ou permanência do imigrante como uma ameaça penalmente relevante, é o próprio imigrante quem acaba sendo visto não como um “cidadão”, mas como uma fonte de conflitos, como um “inimigo”.16 Com efeito, por analogia, nota-se que o que está na base das tipificações penais propostas no Título XV não são apenas condutas, mas elementos que servem à caracterização de um autor específico que pertence à categoria de pessoas que Zaffaroni e Cancio Meliá classificam como “inimigos do Estado”, uma formulação típica do Direito Penal do Inimigo. Sendo assim, o Título XV não se dispõe a combater crimes, mas perigos abstratos ou presumidos e supostamente impostos por uma determinada 15 Idem nota anterior. 16 MELIA, Manuel Cancio; GOMEZ, Mario Maraver. “El Derecho Penal Español Ante La Inmigración: Un Estudio Político-Criminal”. In: Revista Cenipec, 2006, p. 108. 232 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo classe de seres humanos – a dos imigrantes indocumentados ou em situação irregular. Para Zaffaroni, é inadmissível que um Estado democrático e constitucional de Direito crie uma categoria jurídica de inimigos no direito ordinário penal – ou em qualquer outro ramo – quando esta categorização só é admitida no estado de guerra e desde que respeite as limitações impostas pelo Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos, sendo que nem mesmo a caracterização como inimigo bélico retira a condição de pessoa do indivíduo17. 6. Princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da culpabilidade Ademais, cabe ressaltar que o Título XV fere os princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da culpabilidade, por diversos motivos. Primeiro porque somente se deve recorrer ao Direito Penal quando todos os demais meios de controle estatal revelarem-se insuficientes, haja vista a qualidade de ultima ratio deste ramo do Direito. Não é este o caso do tema das migrações, que deve permanecer sendo regulamentado na área administrativa. Ainda, não é objetivo do Direito Penal proteger todos os bens jurídicos contra violações, mas sim intervir apenas nos casos de maior gravidade, protegendo um fragmento dos inúmeros interesses jurídicos envolvidos. Dessa forma, é censurável uma proposta que, em lugar de trazer penas alternativas, promove o encarceramento por ainda mais tempo, olvidandose das estratégias do Governo e do Ministério da Justiça e de que a prisão deve ser vista como última alternativa. Igualmente, é inadmissível que em um período de transição, de consolidação da verdade e de fortalecimento das instituições democráticas busque-se resgatar a mesma lógica vigente no período ditatorial instaurado após o golpe de 1964. O respeito ao princípio da culpabilidade, por fim, pode ser questionado na medida em que o Título XV não reflete uma censura fundada na experiência de vida cotidiana da sociedade brasileira, sobretudo levandose em conta que ela mesma foi construída com base em prolongados fluxos migratórios. Além disso, o princípio da culpabilidade também exige que o agente saiba que tem a opção de agir de outro modo conforme ao direito, mas ainda assim prefira atuar violando-o. Neste ponto, cabe tratar da essência da Lei de Estrangeiros (6.815/1980) a fim de averiguar os limites dessa escolha do estrangeiro em agir em 17 Idem nota 8, p. 12. 233 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros conformidade ao direito. Esta Lei foi elaborada em um contexto de temor das influências externas sobre o regime ditatorial inaugurado em 1964, de modo que a segurança nacional era tida como um valor fundamental à preservação da ordem no Estado. Os Delegados de Polícia Federal Luciano Pestana Barbosa e José Roberto Sagrado da Hora compartilham o entendimento de que, após a transição democrática, “a filosofia da legislação brasileira sobre a entrada e permanência de estrangeiro no Brasil mantém-se obsoleta e inspirada no atendimento à segurança nacional, à organização institucional e nos interesses políticos, socioeconômicose culturais do Brasil, bem como na defesa do trabalhador nacional (Lei nº 6815/80, art. 2º), sendo que o ingresso no País configura-se mera expectativa de direito”18. Importa notar que aquele posicionamento não reflete uma posição isolada, mas o entendimento da própria Academia Nacional de Polícia, que considera o seguinte: Esta Lei reflete uma política imigratória restritiva e de caráter seletivo, ultrapassada, portanto. A promulgação da Constituição Federal de 1988 consolidou os direitos civis e fundamentais do imigrante, seguida pela edição do Decreto Legislativo nº 27/92, em que o Brasil subscreveu a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). É a melhor indicação de que a atual política de imigração mudou o foco para os direitos humanos”19. O Presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Paulo Sérgio de Almeida, por sua vez, há muito defende a urgente modificação da Lei 6.815/1980, entendendo que “a lei é de 1980, o contexto migratório naquela época era outro e a lei é muito restritiva e burocrática, tratando os estrangeiros no Brasil tão somente como uma questão segurança pública”20. Diante dessas considerações, a vigência de uma Lei de Estrangeiros (6.815/1980), orientada pela ótica da segurança nacional e avaliada pelas autoridades brasileiras como restritiva, coloca para o estrangeiro que deseja imigrar ao Brasil barreiras muitas vezes intransponíveis para acessar as vias de imigração regular. Somando a isso fatores de ordem econômica e humanitária, fica questionável a afirmação de que o imigrante sempre tem a opção de agir em conformidade ao direito, sendo possível argumentar que o princípio da culpabilidade estaria sendo violado pelo Título XV do PLS 236/2012. 18 BARBOSA, Luciano Pestana; HORA, José Roberto Sagrado. “A Polícia Federal e a Proteção Internacional dos Refugiados”. Brasília: ACNUR, 2007, p. 57. 19 Idem nota anterior, p.58. 20 Disponível em: http://www.fetecsp.org.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=38922. 234 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo Por todo exposto, resta claro que os artigos do Título XV do PLS 236/2012 ferem as garantias asseguradas aos solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil e destoam da ponderação de valores feita pelo legislador pátrio, que optou por preservar o bem jurídico da vida, integridade física e liberdade do solicitante de refúgio, considerados infinitamente mais importantes do que a instauração de procedimentos contra o uso de passaportes falsos ou pela ausência de documentação. Ainda, conforme será demonstrado nos itens a seguir, o tratamento penal diferenciado que o anteprojeto de Código Penal almeja dar aos estrangeiros em geral não se coaduna com os princípios basilares da igualdade e não discriminação previstos na Constituição Federal de 1988, e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, e tampouco reflete as políticas migratórias que têm sido adotadas pelo Estado brasileiro nos últimos anos. 7. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e os migrantes indocumentados O artigo inaugural da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade21. Ao longo dos anos, os tribunais e a doutrina de Direito Internacional elevaram o princípio da igualdade e não discriminação à qualidade de jus cogens, uma vez que são princípios inderrogáveis e de aplicação imperativa nas relações entre Estados e indivíduos. Com base neste princípio, a Assembleia Geral das Nações Unidas editou a Resolução 54/166 em 24 de fevereiro de 200022, chamando a atenção para a situação de vulnerabilidade em que se encontram os imigrantes sem documentação ou em situação irregular e externalizou a preocupação com as manifestações de violência, racismo, xenofobia e outras formas de discriminação e tratamento degradante contra imigrantes. Feito isso, a Assembleia Geral reiterou a necessidade de os Estados protegerem os direitos humanos universalmente reconhecidos dos imigrantes e tratá-los com humanidade, independentemente da sua situação jurídica. No âmbito regional, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tampouco silenciou a respeito do tratamento deferido aos migrantes indocumentados. Na Opinião Consultiva n. 18/0323, a Corte Interamericana 21 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm 22 Disponível em: http://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/mainsite/policy_and_research/un/54/A_ RES_54_166_en.pdf. 23 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. 235 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros de Direitos Humanos ressaltou que estar em situação regular não é condição necessária para que um Estado respeite e garanta o princípio da igualdade e não discriminação, dado o caráter fundamental daquele princípio e a obrigatoriedade de os Estados aplicarem-no, indistintamente, aos seus cidadãos e aos estrangeiros que se encontram em seu território. Conforme exposto no item anterior, o PLS 236/2012 propõe a punição de indivíduos exclusivamente em razão de sua origem, fazendo da nacionalidade um elemento do tipo penal, já que a conduta seria atípica se os mesmos indivíduos fossem nacionais do Brasil. Neste sentido, no que tange à imposição de medidas privativas de liberdade de caráter punitivo e com o escopo de controlar os fluxos migratórios, sobretudo aqueles de caráter irregular, os organismos internacionais também se manifestaram, em inúmeras ocasiões, de maneira contrária à penalização da imigração e dos imigrantes. Inicialmente, importa mencionar os resultados obtidos pelo Grupo de Trabalho sobre a Detenção Arbitrária da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, que construiu, ao longo dos seus relatórios, uma posição contrária à detenção dos imigrantes. Em 12 de dezembro de 2005, o Grupo de Trabalho publicou um relatório24, no qual denunciava a aplicação excessiva da pena de prisão, o que não seria compatível com o princípio de que todos os indivíduos têm direito à liberdade, consagrado em diversos tratados regionais e globais. Em cumprimento à Resolução 1997/50, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, o Grupo de Trabalho analisou, em 10 de janeiro de 200825, a situação dos imigrantes e solicitantes de asilo que eram objeto de detenção sem que houvessem cometido qualquer delito. Diversas facetas da detenção daquela população específica foram analisadas, tendo o Grupo de Trabalho concluído que “tipificar como delito a entrada ilegal no território de um Estado transcende o interesse legítimo dos Estados de controlar e regular a imigração ilegal e dá lugar a detenções desnecessárias”. No mesmo sentido, concluiu a Relatora Especial das Nações Unidas, Gabriela Rodríguez Pizarro, convocada pela Comissão de Direitos Humanos por meio da Resolução 2002/62, que dispôs que “a detenção dos imigrantes em razão de sua situação irregular não deveria, em 24 Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G05/166/51/PDF/G0516651. pdf?OpenElement. 25 Disponível em:http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G08/100/94/PDF/G0810094. pdf?OpenElement. 236 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo hipótese alguma, ter um caráter punitivo”26. O Estado do Panamá, inclusive, chegou a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em razão dos fatos que se seguiram à prisão do imigrante equatoriano, Jesús Tranquilino Vélez Loor, após a constatação de que ele não portava a documentação necessária para permanecer no Panamá27. Preliminarmente, a CIDH recordou que os Estados têm a faculdade de fixar políticas migratórias e mecanismos de controle do ingresso e saída de pessoas que não sejam seus nacionais, mas que essa capacidade deve ser compatível com as normas de proteção dos direitos humanos estabelecidas na Convenção Americana. A CIDH chamou a atenção, ainda, para a situação de vulnerabilidade na qual se encontram os migrantes indocumentados ou em situação irregular, reconhecendo que eles estão mais expostos a potenciais e reais violações aos seus direitos humanos e que sofrem um elevado nível de desproteção em decorrência da sua situação. Feitas essas considerações iniciais, a CIDH passou a debruçar-se sobre a possibilidade de os Estados estabelecerem sanções penais, de caráter punitivo, em razão do descumprimento de leis migratórias. A sentença começa a análise daquela questão a partir da interpretação do Artigo 7.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que cristaliza o princípio da tipicidade e obriga os Estados a estabelecerem de antemão as causas e condições da privação da liberdade física; e do Artigo 7.3 do mesmo diploma, que estabelece que ninguém será submetido a detenção ou prisão arbitrária. A análise de compatibilidade das medidas privativas de liberdade com aqueles artigos da Convenção Americana conclui, em síntese, que somente são admissíveis as prisões que a) sejam idôneas a cumprir o fim perseguido; b) sejam absolutamente indispensáveis ao alcance do fim desejado e que não exista nenhuma outra medida menos gravosa capaz de alcançar o mesmo objetivo; c) que a privação da liberdade seja absolutamente proporcional, de modo que não imponha um sacrifício excessivo. Diante disso, a Corte conclui que a imposição de medidas penais ao imigrante que ingressa no país de maneira irregular não é um fim legítimo de acordo com a Convenção, quedispõe que “a detenção de pessoas por descumprimento de leis migratórias nunca deve ter um fim punitivo. 26 Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G02/162/58/PDF/G0216258. pdf?OpenElemvtent. 27 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_218_esp2.pdf. 237 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros [...] Serão arbitrárias as políticas migratórias cujo foco central seja a detenção obrigatória dos imigrantes irregulares, sem que as autoridades competentes verifiquem em cada caso particular, e mediante avaliação individualizada, a possibilidade de utilizar medidas menos restritivas que sejam efetivas a alcançar aqueles fins.” humanos, revelam-se inconstitucionais e ilegais diante do ordenamento jurídico brasileiro e vulneram os direitos dos migrantes, de suas famílias e dos atores da sociedade civil e defensores de direitos humanos que prestam assistência aos imigrantes e refugiados. Este entendimento está de acordo com o Manual do ACNUR sobre detenções de solicitantes de asilo, que considera que “a entrada ou estadia ilegal de solicitantes de refúgio não dá ao Estado um poder automático de prendê-lo ou restringir sua liberdade de movimento. [...] Além disso, a detenção não é permitida como medida punitiva – por exemplo, criminal – ou como sanção disciplinar pela entrada ou presença irregular no país”28. 8. Compromissos brasileiros nos foros internacionais e ações concretas no plano interno Cabe recordar que o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, pelo Decreto 678, de 02 de novembro de 199229, e, mediante o Decreto 4.463/200230, reconheceu como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da CIDH em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Isso significa que o Brasil está obrigado pelo direito internacional e interno a observar não apenas as decisões que lhe forem diretamente aplicáveis, mas também a jurisprudência geral da CIDH, uma vez que, segundo o artigo 62, item 3, da Convenção Americana, a Corte é o órgão competente para interpretar e aplicar as disposições da Convenção, sempre que um caso for submetido à sua apreciação. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, firmou posicionamento no Recurso Extraordinário 466.343-1/SP31, no sentido de que os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados antes da promulgação da Emenda Constitucional n. 45/2004, tem status de supralegalidade. Diante disso, aqueles tratados internacionais são hierarquicamente superiores à legislação ordinária, em que se inclui o código penal, tendo uma eficácia paralisante sobre a legislação infraconstitucional e eivando de ilegalidade qualquer disposição contrária ao tratado contida na lei comum. Resta evidente, portanto, que o Brasil estará ferindo frontalmente a Convenção Americana de Direitos Humanos; contrariando o posicionamento da Corte, cuja jurisdição reconheceu como obrigatória e se submetendo a uma possível condenação futura caso o Congresso venha a aprovar os artigos constantes no Título XV do PLS 236/2012, que destoam das convenções internacionais e regionais sobre direitos 28 Idem nota 2. 29 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. 30 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm. 31 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444. 238 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo A proposta do Título XV do PLS 236/2012 também está em desarmonia com os pronunciamentos emitidos pelo Brasil à comunidade internacional, assim como dissente dos compromissos formalmente assumidos em fóruns regionais. Com efeito, em Nota à Imprensa emitida em 03 de maio de 201032, o Ministério das Relações Exteriores condenou veementemente a Lei Anti-imigratória do Arizona (Estados Unidos da América) que, tal como o PLS 236/2012, criminalizava a estadia irregular e autorizava a prisão de imigrantes naquela situação. Naquela comunicação, o Governo brasileiro externalizou sua censura à legislação norte-americana, afirmando que “o Governo brasileiro temse pronunciado firme e reiteradamente, em negociações bilaterais e nos foros internacionais, contra a associação indevida entre migração irregular e criminalidade”, considerando ainda “que conceder o mesmo tratamento a indocumentados e criminosos subverte noções elementares de humanidade e justiça”. Por fim, a nota afirmou expressamente que “o Governo brasileiro se une às manifestações contrárias à lei anti-imigratória do Arizona” e que “espera que tal legislação seja revista, de modo a evitar a violação de direitos de milhões de estrangeiros que vivem e trabalham pacificamente nos Estados Unidos”. Outro exemplo concreto de uma postura brasileira diametralmente oposta à substância do Título XV do PLS 236/2012 deu-se por ocasião da XI Conferência Sul-Americana sobre Migrações, realizada em outubro de 2011, quando doze países sul-americanos, dentre eles o Brasil, firmaram a “Declaração de Brasília: Rumo à Cidadania Sul-Americana”33. Naquela declaração, os países signatários reconheceram expressamente “a significativa contribuição dos migrantes para o desenvolvimento social, econômico, cultural e educacional nos países de destino, bem como os efeitos positivos que a dinâmica migratória produz para o bem-estar e o 32 Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/lei-anti-imigratoria-doarizona/print-nota. 33 Disponível em: http://www.csm-2011.com/index.php/xi-conferencia/103-declaracao-de-brasilia. 239 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros desenvolvimento dos países de origem”. Ademais, consignaram que “não são aceitáveis políticas ou iniciativas que tipifiquem a irregularidade migratória como crime, equiparando, desse modo, as pessoas indocumentadas aos criminosos”34. Feitas as considerações iniciais, os países, finalmente, decidiram “repudiar as políticas governamentais que tratam de forma indiferenciada migrantes indocumentados ou em situação irregular e criminosos” e condenar conjuntamente “leis estaduais aprovadas recentemente nos Estados Unidos da América, que tipificam como delito a condição migratória irregular, o transporte e a oferta de emprego a imigrantes indocumentados.” 9. Posição do Conselho Nacional de Imigração Nos termos do artigo 1º do Decreto n. 840/199335, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, é o organismo responsável, no país, pela formulação de políticas de imigração, coordenação e orientação de atividades de imigração e solução dos casos omissos no que diz respeito a imigrantes. Sendo assim, as características da posição brasileira com relação à imigração podem ser extraídas a partir da análise das ações e decisões do CNIg, mesmo na ausência de um plano nacional de políticas migratórias. Inicialmente, cumpre salientar que o Presidente do CNIg, Paulo Sérgio de Almeida definiu a política daquele conselho como voltada à situação dos migrantes indocumentados, e norteada pela busca da regularização migratória, como se infere dos seus comentários abaixo transcritos: Nos últimos anos, o CNIg avançou na perspectiva de tornar mais acolhedora a legislação brasileira, especialmente em relação aos imigrantes oriundos dos países da América do Sul, que integram um dos principais fluxos migratórios ao Brasil, e em relação aos quais temos compromissos de integração. [...] O CNIg tem apoiado políticas de regularização migratória dos imigrantes indocumentados.”36 A solução adotada diante do intenso fluxo de haitianos para o Brasil, iniciado após o terremoto que assolou o Haiti em 2010, é emblemática 34 Essa perspectiva de não-criminalização da parte mais vulnerável nesta relação pode ser associada à orientação basilar do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, do qual o æBrasil é signatário, que prescreve que a vítima não pode ser criminalizada, devendo ser protegida e tratada com humanidade. 35 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0840.htm. 36 ALMEIDA, Paulo Sérgio de. “Conselho Nacional de Imigração (CNIg): Políticas de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante ou Refugiado”. In: Caderno de Debates, v. 4. Brasília: ACNUR, 2009, p. 13. 240 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo da política brasileira que se orientou no sentido de acolhê-los nas fronteiras, regularizar a situação daqueles que se já encontravam no território nacional em situação irregular (mediante a Resolução 97/2012 do CNIg)37 e viabilizar meios de acesso à migração regular para o Brasil através do plano de concessão de 1.200 vistos anuais a haitianos a partir da Embaixada Brasileira em Porto Príncipe. O CNIg, aliás, em voto aprovado em março de 201138, firmou o entendimento de que as suas políticas migratórias “se pautam pelo respeito aos direitos humanos e sociais dos migrantes, de forma que sejam tratados com dignidade e em igualdade de condições com os brasileiros”. Esta política encontra fundamento na própria Constituição Federal de 1988, que dispõe, em seu artigo 3º, que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de discriminação. Adicionese a isso a fundamental previsão do artigo 5º, que cristaliza a igualdade de brasileiros e estrangeiros perante a lei, sem distinções de qualquer natureza. Exemplo concreto de que as ações do CNIg estão calcadas na primazia dos direitos humanos reside na Resolução n. 2739 de 25 de novembro de 1998 do conselho. Aquela normativa disciplina a avaliação de casos especiais e omissos que, embora não se enquadrem nos regimes de vistos disponíveis para estrangeiros, merecem a atenção do CNIg em razão da vulnerabilidade do migrante. No mesmo voto do CNIg, ao qual se fez referência linhas atrás, restou consignado que “na aplicação da RN n. 27/98 o CNIg tem considerado as políticas migratórias estabelecidas para considerar como ‘especiais’ os casos que sejam ‘humanitários’, isto é, aqueles em que a saída compulsória do migrante do território nacional possa implicar claros prejuízos à proteção de seus direitos humanos e sociais fundamentais”. Outro exemplo interno que deve ser recordado é o fato de que, desde 1980, o Brasil promoveu até então quatro grandes anistias (em 198040, 198841, 199842 e em 200943) de estrangeiros que se encontravam em 37 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC8820135687F345B412D/ RESOLU%C3%87%C3%83O%20NORMATIVA%20N%C2%BA%2097.pdf. 38 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D308E21660130D7CE9FAD1DD9/ata_ cnig_20110316.pdf. 39 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_estrang/resolucao-normativa-n-27-de-25-11-1998.htm. 40 Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815. htm#art13v. 41 Lei 7.685, de 02 de dezembro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7685. htm#art1. 42 Lei 9.675, de 29 de junho de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9675.htm#art1. 43 Lei nº 11.961, de 2 de julho de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11961.htm. 241 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros situação irregular no país. As anistias são, irrefutavelmente, fruto de uma evidente e atual inclinação brasileira em promover a inserção social dos estrangeiros que, por muito tempo, se encontravam marginalizados devido à sua condição migratória no país. Ademais, o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, firmado, em 2002, pelo Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, é outro exemplo da abertura do Brasil à integração de estrangeiros na sociedade. O referido acordo estipula que os nacionais de qualquer Estado-parte poderão obter residência temporária, válida por dois anos, em qualquer outro Estado-parte do acordo. Findos os dois anos iniciais de residência provisória, é facultado requerer a conversão em residência permanente. Em 28 de junho de 2011, o Peru e o Equador passaram a integrar aquele acordo, sendo que em 29 de junho de 2012 a Colômbia também aderiu. Finalmente, a prática favorável do Estado brasileiro em adotar uma política migratória protetiva dos direitos humanos dos imigrantes também tem se refletido em dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. O PL n. 5.655/2009 (Anteprojeto de Estatuto do Estrangeiro)44 é um exemplo concreto da intenção do Brasil em tratar a imigração sob o prisma humanitário, positivando o que já acontece na prática. A exposição de motivos daquele projeto de lei comprova essa intenção, na medida em que dispõe que o Governo brasileiro reconhece a migração como um direito do homem e considera a regularização migratória como o caminho mais viável para a inserção do imigrante na sociedade. A MSC n. 696/2010, por sua vez, submete à apreciação do Congresso Nacional o texto da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, adotada em 18 de dezembro de 1990, na Assembleia Geral das Nações Unidas. A exposição de motivos da Mensagem enviada pelo então Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, dispunha que: O instrumento visa a proteger os direitos de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias, independentemente de sua situação migratória. Os migrantes indocumentados constituem parte significativa da totalidade dos migrantes e têm sido sujeitos a diversas violações a seus direitos humanos em países de trânsito e de destino. Suas condições de vida e de trabalho são frequentemente degradantes, devido à fragilidade advinda de seu “status” precário nos países para os quais se 44 Disponível em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=443102. 242 Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo dirigem. A proteção de direitos dos chamados migrantes indocumentados visa a evitar esta exclusão social e as violações reiteradas a direitos inerentes à condição de pessoa humana”45. Assim, o Brasil tem adotado uma prática favorável em matéria de imigração e, em lugar de simplesmente desconstituir o grau de efetivação dos princípios constitucionais já alcançado em relação aos estrangeiros através das políticas acima apontadas, deveria buscar alinhar sua legislação com os melhores exemplos dados por outros países da região. A Lei 25.871, de 21 de janeiro de 2004, Lei de Migrações da Argentina46, por exemplo, reconhece expressamente que o direito à imigração é essencial e inalienável à pessoa, e que a República Argentina assegura esse direito com base nos princípios da igualdade e universalidade. Este é, sem dúvidas, um modelo a ser adotado como inspiração pelo legislador brasileiro, na medida em que, ao contrário do PLS 236/2012, mantém a coerência com a práxis brasileira. Diante do exposto, resta evidente que a proposta do Título XV do PLS 236.2012 decorre de uma absoluta incompreensão não apenas da legislação brasileira e do Direito Internacional relativos ao refúgio, direitos humanos e migrações, mas também à própria política estatal de correção de vulnerabilidades e regularização de estrangeiros no país. A menos que todo aquele título seja excluído, impor-se-á ao Direito brasileiro um flagrante retrocesso social, sobretudo levando-se em consideração que nem mesmo a Lei 6.815/1980, formulada sob a ótica da segurança nacional em um período de ditadura militar, criminaliza a entrada, permanência e assistência a estrangeiros em situação irregular da maneira que o PLS 236/2012 o faz. Conclusão Os argumentos expostos ilustram nada mais que a disposição do Estado e da sociedade brasileira em abrir espaços para os imigrantes, tratando a migração através de uma lente humanitária que não se coaduna com a proposta de repulsão e criminalização de estrangeiros em situação irregular proposta pelo PLS 236/2012. Nosso histórico impõe que o debate acerca da migração no Brasil não deva ocorrer na seara penal, mas sim no âmbito administrativo, por meio da elaboração de uma Política Nacional de Imigração. 45 Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=489652. 46 Disponível em: http://www.gema.com.ar/ley25871.html. 243 O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros Assim, considera-se que a incongruência do Título XV do PLS 236/2012, diante da postura do Estado brasileiro, somente pode ser sanada pela supressão de todos os dispositivos legais constantes naquele título, motivo pelo qual espera-se ao menos uma emenda supressiva do Título XV do PLS 236/2012, que pelos fundamentos descritos propõe a positivação de graves retrocessos. Esses poucos artigos, de modo muito similar a outros tantos dispositivos do PLS mostram exemplos de atecnia perpetrada pelo legislador ao longo de todo o Projeto, que, infelizmente, apostou na pena privativa de liberdade como solução para os mais distintos problemas. Referências BARBOSA, L. P.; HORA, J. R. S. A Polícia Federal e a Proteção Internacional dos Refugiados. Brasília: ACNUR, 2007. BARRETO, L. P. F. T. Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas. Brasília: ACNUR, 2010. BATISTA, N. Introdução crítica do direito penal, Rio de Janeiro: Revan, 2003. GRECO, L. Princípios fundamentais e tipo no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/2012 do Senado Federal). 2012. LEAO, R. Z. Reconhecimento dos Refugiados pelo Brasil: decisões comentadas pelo CONARE. Brasília: ACNUR, 2007. MELIA, C.; GOMEZ, M. M. El Derecho Penal Español Ante La Inmigración: Un Estudio Político-Criminal. Revista Cenipec. 25, 2006, p. 108. ROXIN, C. Tratado de derecho penal, parte general, tomo I , tradução de Diego-Manuel de Lúzon Peña, Miguel Dias y Garcia Colledo e Javier de Vicente Remesal, Madri: Editora Civitas, 1997. SANTOS, J. C. A moderna teoria do fato punível, 4ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. TAVARES, J. Teoria do injusto penal, 3ª edição, Belo Horizonte: Delrey, 2003. ZAFFARONI, E. R. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revam, 2007, p.11. 244 MSc. Efraín Peña Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín PEÑA1 Resumen A medida que el clima mundial cambie, millones de personas quedarán desarraigadas debido a la subida del nivel del mar, acontecimientos climáticos extremos, sequías y la escasez de agua. Si bien muchos actores - que van desde los consultores en desarrollo a los expertos en seguridad - han ido incluyendo este hecho en su discurso, la comunidad internacional, hasta ahora, ha hecho muy poco por proteger los derechos de los “refugiados climáticos”. Cuando se trata de la migración ocasionada por el cambio climático. Para incluir los derechos de estas poblaciones vulnerables en la agenda de la comunidad internacional es necesario enlazar el mundo académico, las organizaciones de la sociedad civil, los gobiernos que trabajan en la cuestión del cambio climático para así darles el status que se requiere para la correcta protección de sus derechos. Encontrar las palabras adecuadas para describir a aquellas personas que se verán forzadas a dejar sus países a causa del empeoramiento de las condiciones climáticas, es la primera dificultad que entraña el camino hacia el reconocimiento de su protección por el derecho internacional. La terminología de las Naciones Unidas establece sutiles distinciones entre migrantes, refugiados y desplazados internos en función de cómo y por qué se ha producido su desplazamiento: ¿Cruzaron fronteras nacionales o internacionales? ¿Fueron objeto de persecución? ¿En qué medida existía una amenaza contra sus vidas y sus derechos humanos? Se les llama refugiados climáticos, porque buscan refugio? Es esa la correcta acepción? Dado que las personas afectadas comparten una serie de características que las sitúan aparte de las categorías de refugiados políticos y migrantes económicos elaboradas en el pasado, los refugiados climáticos no pueden volver a su lugar anterior de residencia tras un asilo temporal. Es probable que migren en grandes cantidades, colectivamente y de forma relativamente predecible. Y, más importante aún, tienen una gran exigencia legal frente a la comunidad internacional, puesto que las naciones más ricas del mundo son las principales causantes de sus problemas que causaron 1 Abogado, Master en Gestión Ambiental, Especialista en Derecho Minero y Energético; y Doctorando en Derecho Ambiental y de Sostenibilidad. Consultor Internacional. 245 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? dicho fenómeno. Por este motivo, se considera que es necesario crear un nuevo instrumento legal especialmente adaptado a las necesidades de los refugiados climáticos, así como un mecanismo de financiación separado, tal como un protocolo a la Convención Marco de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático (CMNUCC). Así las cosas, se precisa necesario un régimen específico para los desarraigados por el cambio climático, pero la supranacionalidad ha probado fallarle a la humanidad, entonces estaremos en presencia de la reivindicación del ente local, como implementador de dicho régimen? Introducción Como lo ha sostenido el Panel Intergubernamental de Cambio Climático (IPCC), entre las diversas consecuencias que han provocado los efectos del cambio climático a raíz del calentamiento global, está la aceleración de la degradación de los ecosistemas, propensos a la deforestación, a la salinización, a la erosión de la tierra y a la desertificación, así como el incremento del riesgo tanto del ser humano, como de los niveles de producción al ser cada vez más extremos y catastróficos los fenómenos ambientales2. Como una consecuencia importante de lo anteriormente descrito, se resalta la migración de miles de personas en diversas partes del mundo, que al resultar insostenible continuar viviendo en el lugar donde residen optan por desplazarse a lugares donde puedan continuar su vida. Uno de los casos más evidentes es África, en donde siendo la cuarta reserva más grande de agua dulce, el lago Chad se ha secado casi totalmente. Asimismo, los casi veintidós millones de personas viven en la cuenca del lago ven amenazada su supervivencia, haciendo evidente que no es solo la pérdida de un ecosistema el problema del calentamiento global, sino que hay una dimensión humana por considerar. Nigeria por ejemplo, ya no tiene acceso al lago, por lo que la sequía, el hambre y epidemias afectan no sólo al citado país sino también a Mauritania, Mali, Chad y Somalia. Esto ha provocado el constante desplazamiento de personas a cientos de kilómetros de distancia3, dentro y fuera de las fronteras de donde son nacionales. 2 Citado en International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Ninety Fourth Sesion, MC/INF/288, 1 November 2007, disponible en: http://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/ mainsite/about_iom/en/council/94/MC_INF_288.pdf 3 Cfr. Norman Myers, “Environmental Refugees: A Growing Phenomenon of the 21st Century,” Philosophical Transactions of the Royal Society of London B 357, no. 1420 (2002): 609-13. 246 MSc. Efraín Peña El informe Stern4, afirmó que la clave para resolver la crisis climática, es lograr que los países más contaminantes, como China y Estados Unidos, reduzcan sus emisiones por medio de medidas tributarias y cuotas de emisión de monóxido de carbono. En él se realizan advertencias muy preocupantes acerca del impacto económico que tendrá el cambio climático en el mundo de continuar incumpliendo el Protocolo de Kioto y sus compromisos de reducción de emisión de gases de efecto invernadero. Hoy, más seis años después de la presentación del mencionado informe, vemos que sus predicciones son aún más graves de lo dicho. Resulta aun más preocupante y agrava dicha situación es el hecho que investigaciones de la NASA aseguran que aún cuando se eliminaran las emisiones de gases invernadero, la temperatura del planeta continuaría aumentando hasta 0,6°C debido a las grande cantidades ya emitidas de dichos gases5, lo cual implica que el calentamiento del planeta continuará incrementándose sobre todo considerando que aun se han adoptado medidas reales para mitigar el cambio climático a través de mecanismos reales de reducción de la emisión de gases de efecto invernadero. Por lo que resulta inminente que continuaran incrementándose el acontecimiento de distintos fenómenos ambientales y con ello el desplazamiento de millones de personas. Ahora bien, están los marcos jurídicos en posibilidad de abordar este fenómeno y garantizar los derechos fundamentales? Vemos que desde 1990, el Grupo Intergubernamental de Expertos sobre Cambio Climático observó que la migración humana podría ser la consecuencia más grave del cambio climático. Asimismo, el Panel Intergubernamental de Cambio Climático (IPCC) predijo que habrá 150 millones de desplazados ambientales en el año 2050 –cantidad equivalente al 1.5% de 2050’s de la población mundial que se predice será de 10 billones aproximadamente6. Por su parte el mencionado Informe Stern señala que podrá haber 200 millones de desplazados en el 20507. Una predicción más dramática es la de Christian Aid quien considera que un billón de personas podrían permanecer desplazadas en el 2050, 250 millones por fenómenos relacionados con el cambio climático y otras 645 4 Stern, es el nombre de un informe sobre cambio climático (Stern Review on the Economics of Climate Change) presentado en Octubre 2006 por el Gobierno del Reino Unido y encargado al antiguo vicepresidente del Banco Mundial, Nicholas Stern. En él se realizan advertencias muy preocupantes acerca del impacto económico que tendrá el cambio climático en el mundo de continuar incumpliendo el Protocolo de Kioto y sus compromisos de reducción de emisión de gases de efecto invernadero. Estas advertencias incluyen previsiones de pérdidas de hasta el 20% del Producto interior bruto mundial (PIB), lo que provocaría una crisis a gran escala. Se afirma entonces que con una inversión del 1% anual del PIB mundial, se podría paliar el aumento de temperatura, el deshielo, y todas las demás consecuencias del cambio climático. Cfr. Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change, www.hm-treasury.gov.uk/independent_reviews/stern_review_economics_climate_change/ stern_review_report. cfm 5 Cfr. NASA. NASA News, 2005 Warmest Year in Over a Century, USA, 2006, disponible en: http://www.nasa.gov/ centers/goddard/news/topstory/2006/2005_warmest.html. 6 Milan, S. Eco-Refugees Seek Asylum, en www.alternet.org/environment/19179 7 Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change, Op. Cit. 247 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? millón a consecuencia de otros proyectos ambientales8. Es decir que aun en el escenario más optimista, esta realidad es no solo preocupante, sino inminente. Es aquí donde, independientemente de las medidas que tomen las distintas naciones para reducir la emisión de gases invernadero a corto plazo, es un hecho inevitable que se incrementará el desplazamiento humano. En este sentido, aún cuando para algunos Estados, la migración por cuestiones climáticas constituye ya una problemática, actualmente no existe ningún tipo de ordenamiento que regule la situación jurídica de estas personas que se ven obligadas a abandonar sus hogares por resultarles imposible permanecer ahí. Si bien existe algunos ordenamientos internacionales que regulan la migración de personas de un país a otro por cuestiones políticas o humanitarias como es el caso de los refugiados y desplazados, éstos no le pueden ser aplicables analógicamente a este nuevo fenómeno al tratarse de figuras de distinta naturaleza y ni si quiera los migrantes por cuestiones climáticas cuentan con una terminología que los identifique, o bien, con un ordenamiento (nacional o internacional) que los regule su tratamiento, así como una institución que vele por su protección y ayuda financiera, alimentaria y sanitaria. Así las cosas, resulta preocupante el destino que tendrá la vida de millones de personas que se vean forzadas a migrar a otros territorios e incluso a otros Estados, pues los países desarrollados han tenido una respuesta muy negativa a la migración de personas extranjeras, militarizando sus fronteras aunado a la promulgación de leyes racistas y xenofóbicas. Pero aun, estas conductas se están también presentando en el interior de los Estados, y en un futuro veremos más leyes como la de Arizona, en contra de los migrantes internos. El presente artículo, buscará por un lado dilucidar las precisiones terminológicas desde la doctrina para identificar esta nueva categoría de persona desplazada, quien sufre el desarraigo de su lugar de habitación por cuestiones climáticas y así definirá desde el punto de vista jurídico y desde la óptica del derecho interno y el internacional, la categoría adecuada para referirse a estas personas y por ende darles el tratamiento jurídico idóneo ante esta nueva realidad. 8 Christian Aid (2007) Human Tide: the Real Migration Crisis, www.christianaid.org.uk/Images/human_tide3__ tcm15-23335.pdf 248 MSc. Efraín Peña Concepto para identificar a las personas que sufren desplazamiento por cuestiones climáticas El primer punto que es necesario abordar para crear la instrumentación que protegerá a aquellas personas que se ven compelidas a dejar sus hogares por el acontecimiento de fenómenos naturales derivados del cambio climático, es establecer el concepto que los defina de manera más apegada conforme al propósito del presente artículo, para lo cual se analizarán las acepciones que ha creado la doctrina para definirlos. En este sentido, se puede advertir que sin bien la doctrina ha creado diversas acepciones tales como refugiados ambientales, refugiados climáticos, desplazados ambiéntales, personas ecológicamente desplazadas, ecorefugiados, migrantes ambientales, migrantes forzados ambientales; sin embargo, estas categorizaciones no resultan idóneas para describirlos toda vez que hacen referencias a instituciones que no son aplicables para el caso de las personas que han sido desplazadas por cuestiones climáticas. Algunos autores sostienen que no es importante la definición que se elija para definir a las personas que han sido desplazadas por fenómenos ambientales, al considerar que no son importantes las causas que motiven su protección nacional o internacional, pues al final lo único que se busca es brindarle dicha protección; no obstante, en el caso concreto (el de los climáticos) se considera indispensable hacer dicha diferenciación, pues de ello dependerá la instrumentación que será aplicable, el organismo que velara por su protección, la duración de la misma y quienes asumirán la responsabilidad nacional e internacional de dichos individuos. En este sentido, a continuación se esgrimirán cual es la acepción que resulta idónea para brindarle una adecuada protección a las personas desplazadas a causa de fenómenos ambientales atribuibles al cambio climático, así como los demás razonamientos que sustentan la inaplicabilidad de las otras acepciones. Diferencias entre Migrante Ambiental y Climático En principio resulta necesario hacer la diferenciación entre el concepto de “ambiental” y “climático”, toda vez que en el presente artículo únicamente se enfocara a proponer el desarrollo de la instrumentación para la protección de aquellas personas que son desplazados por las consecuencias de fenómenos ambientales derivados del cambio climático y no de cualquier daño ambiental. En efecto, las afectaciones ambientales pueden ser originadas por distintas causas como por ejemplo las diversas acciones u omisiones que 249 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? afecta al medio ambiente, así como por el acontecimiento de diversos fenómenos ambientales; sin embargo, como ha sido demostrado, el cambio climático provocado por el calentamiento global derivado de la emisión de gases de efecto invernadero, ha generado el incremento e intensificación de los fenómenos naturales, por lo cual los Estados que se consideran más contribuyen con la emisión de los gases de efecto invernadero con base en el Protocolo de Kyoto, han asumido la obligación de reducir sus emisiones. Por tanto, se considera que en el caso de las personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio climático, solo dichos Estados quienes tendrán que responden por tales afectaciones. Pero qué pasa si los desplazamientos se presentan internamente? Más adelante abordaremos este punto. En este orden de ideas, no se puede tratar de la misma manera el desplazamiento de un grupo de personas como consecuencia de un daño ambiental producto de la falta de prevención o por la acción y omisión de determinado Estado respecto a su obligación de proteger el medio ambiente que se encuentra dentro de su territorio, pues en dichos casos es el propio Estado quien tiene que responder ante aquellos daños y asumir la responsabilidad; en caso de necesitar del apoyo o auxilio de otros Estados este se deberá realizar a través de convenios y con base en la buena voluntad de los Estados, pero en el caso de los migrantes climáticos se deben hacer responsables, de estos desastres naturales, a todos los Estados que contribuyan a la emisión de los gases de efecto invernadero y con ello al incremento del cambio climático, conforme a sus respectivos niveles de contaminación. Refugiados ambientales, sus características y diferencias con el climático Respecto del término “refugiado ambiental” no existe ningún instrumento internacional que como tal lo prevea; no obstante, ésta ha sido usada por diversos doctrinarios. Lester Brown del World Watch Institute fue quien la utilizó por primera vez en 19709. Posteriormente, Esam El-Hinnawi desarrollo dicho concepto en el Informe presentado ante el Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente titulado Refugiados Ambientales (UNEP), en el desarrollo las diversas repercusiones de los desplazados por las catástrofes nucleares de Bophal en India y la de Chernobyl, definiendo como refugiados ambientales a “aquellas que se ven forzadas a dejar su hábitat tradicional, temporal o permanentemente, debido a marcadas disrupciones ambientales 9 Cfr. Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and forced migration, Refugee Studies Centre Policy Brief No.1 (RSC: Oxford), pg. 7. 250 MSc. Efraín Peña (naturales o antropomórficas) que ponen en riesgo su existencia y/o afectan seriamente su vida”10. Al mismo tiempo las Naciones Unidas, aun cuando no han determinado algún concepto concreto que defina a estas personas, su División de Estadística, en un glosario de términos ambientales, ha definido a los refugiados ambientales como “aquellas personas que se desplazan debido a causas ambientales por la pérdida de su tierra y a la degradación o desastre natural”11. Por otro lado, el ambientalista británico Norman Meyers definió a los refugiados ambientales como “aquellas personas que no pueden ganarse la vida en el país en que residen a causa de las sequías, erosión del suelo, desertificación, la deforestación y otros problemas ambientales, aunado a los problemas asociados al aumento de población y de la pobreza extrema”12. Conforme a las anteriores definiciones, se considera que la acepción de “refugiado ambiental” es un término que por su naturaleza no es adecuado para definir la situación que enfrenta una persona desplazada por cuestiones climáticas, toda vez que del análisis que se haga al propio concepto de “refugiado” se puede advertir que está conlleva una naturaleza inminentemente bélica y la protección internacionalidad que se le brinda al refugiado es por ser sujeto de amenazas o agresiones derivadas de sus características personales, creencias o convicciones personales como la raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u opiniones políticas. Se considera que no debe usarse dicho termino, porque podría crear confusiones con conceptos que ha adoptado el propio Alto Comisionado, pues aun cuando el término de refugiado ambiental o climático no está regulado en ninguno de los instrumentos de protección a los refugiados, el Estatuto de los Refugiados ha sido aplicado por el ACNUR en circunstancias excepcionales, en los que los servicios ambientales han sido destruidos por un Estado como forma de persecución en contra de un grupo determinado13. En la Convención de Ginebra de 1951 sobre el Estatuto de los Refugiados establece como refugiado a “toda persona que como resultado de los acontecimientos ocurridos en Europa antes del primero de enero de 10 Essam El-Hinnawi, “U.N. environmental program, environmental refugees” (1985), Nairobi: UNEP, citado en Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.6. 11 Stadisticas de las Naciones Unidas en unstats.un.org/unsd/environmentgl/gesform.asp?getitem=473, citado en Ibidem, pg. 7. 12 Myers, N. (2005) Environmental Refugees: An Emergent Security Issue, Organisation for, citado en Idem. Security and Cooperation in Europe, www.osce.org/documents/eea/2005/05/14488_en.pdf., citado en Idem 13 Cfr. International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Op. Cit., pg. 2. 251 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? 1951 y debido a fundados temores de ser perseguida por motivos de raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u opiniones políticas, se encuentra fuera del país de su nacionalidad y no pueda o, a causa de dichos temores, no quiera acogerse a la protección de tal país”14. Dicha definición fue superada a través del Proyecto del Comité Ad Hoc, compuesto por trece gobiernos con el fin de redactar el texto de una convención para los refugiados, únicamente se borró la referencia a Europa, lo que hacía aplicable el término de “refugiado” a cualquier acontecimiento ocurrido en el mundo y no solo en Europa. No es hasta 1967 con el Protocolo de 1967 cuando se intenta superar dicha limitación temporal con el artículo 1 del Protocolo de 1967 en el cual de manera literal será aplicado por los Estados partes sin ninguna limitación geográfica15. Posteriormente, la Convención de la Organización de la Unión Africana, quien tras los diversos flujos masivos que conllevaron a distintos conflictos en África, aportó la consideración de que se entienda por desplazado a toda persona que a causa de una agresión exterior, una ocupación o una denominación extranjera o acontecimientos que perturben el orden público en un parte o en la totalidad de su país de origen o del país de su nacionalidad, están obligados a abandonar su residencia habitual para buscar en otro lugar fuera de su país de origen o del país de su nacionalidad. No obstante, dichas modificaciones no cambiaron la naturaleza del refugiado así como tampoco anexaron dentro de dicha definición el concepto de “refugiado ambiental”, lo cual en cierta medida resulta lógico toda vez que con base en las definiciones antes esgrimidas un refugiado ambiental es aquella persona que se ve forzada a dejar su lugar de residencia u origen por el acontecimiento de diversos daños ambientales que hicieron insostenible su permanencia en dicho lugar, por lo cual dichas personas huyen por motivos ajenos a las características de su propia persona sino por motivos externos, en cambio el refugiado tiene que huir para repeler agresiones motivadas por su propio origen, creencias o convicciones. Aunado lo anterior también se considera que no resulta aplicable la estructura edificada por las Naciones Unidas para la protección y asistencia de los refugiados, consistente en la responsabilidad de los Estados y la otra atinente a la acción del Alto Comisionado de las Naciones Unidas, toda vez que por un lado el ACNUR tiene como objeto el proteger a personas 14 Convención de Ginebra de 1951 sobre el Estatuto de los Refugiados, artículo 1, A, 2. 15 Pero aquellos países que habían firmado la Convención de 1951 con “limitación geográfica “podrían válidamente mantenerla al adherirse al Protocolo. Cfr. Galindo Vélez, Francisco, El derecho de los refugiados, Jurídica 30, México, 2000, pg. 221, citado por Loreta Ortiz Ahlf et. el., De los migrantes. Los derechos humanos de los refugiados / La igualdad en ciernes. La prohibición de discriminar,, Editorial Porrúa, México D. F., 2004, pg.29. 252 MSc. Efraín Peña que han tenido que huir por el rechazo de las características personales o ideologías, y cuya temporalidad se definirá con base en el tiempo que perduré dicho sistema de gobierno represor; asimismo, está regulado para proteger a determinadas personas o grupos de personas que por sus propias características personales o ideológicas están huyendo de cierta agresión, en cambio en el caso del migrante climático la temporalidad de dicha protección se determinara con base en la propia capacidad ambiental para soportar nuevamente a ese grupo de personas, asimismo generalmente las afectaciones climáticas y no siempre ambientales, se producen de manera masiva y en muchos casos resulta imposible regresar al lugar de origen, como en el caso de las islas archipiélagos del Pacífico Sur, en donde uno de los Estados llamado Tuvalú, a causa del incremento del nivel del mar en su territorio, está desapareciendo. Desde el 2001 se firmó por arte del mencionado pequeño estado insular un acuerdo con Nueva Zelanda para aceptar cierta cantidad de personas por año (migración controlada). Finalmente, como ya fue señalado respecto a la responsabilidad de los Estados en el caso de las personas desplazadas por cuestiones climáticas, a diferencia de los refugiados, dicha responsabilidad no debe ser asumida por los Estados únicamente por acuerdos bilaterales, sino dicha responsabilidad debe derivar de las propias obligaciones establecidas en el Protocolo de Kyoto con base en la cantidad de emisión de gases de efecto invernadero que emita cada Estado, y considerando los Estados a los que le resulta vinculante dicho instrumento. Sin embargo ahí no termina el deber de protección, ya que desde lo local, es muy importante se preparen las municipalidades para recibir flujos de migrantes que por causas climáticas lleguen a competir y ejercer presión sobre los recursos propios de una comunidad con la que se comparte nacionalidad. Desplazado ambiental y/o desplazado climático? El ACNUR ha definido, aunque de manera cautelosa, como desplazado ambiental “a quien es desplazado o quien se siente forzado a dejar su lugar de usual de residencia porque su vida, su sustento y bienestar, ha sido ubicado en una situación de riesgo, como resultado de una adversidad ambiental, ecológica o un proceso o evento climático”16. Otras voces señalan que se les denomine “desplazados climáticos” amparados en los Principios rectores aplicados a los desplazamientos 16 Cfr. Gorlick, B. (2007) Environmentally-Displaced Persons: a UNHCR Perspective, www.ony.unu.edu/ seminars/2007/16May2007/presentation_gorlick.ppt., citado en Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.7. 253 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? internos, elaborados por Francis Deng, que reconoce como desplazados a las “personas o grupos de personas que han sido forzados u obligados a huir de sus hogares o lugares de residencia habitual, o a abandonarlos, en particular a causa de un conflicto armado, de situaciones de violencia generalizada, de violaciones de los derechos humanos o desastres naturales o causados por el hombre, y que aún no han cruzado una frontera reconocida internacionalmente entre Estados o que lo hacen a fin de evitar los efectos de todo ello”17. Respecto a los conceptos aportados anteriormente se considera que tampoco son aplicables al caso de las personas desplazadas por fenómenos atribuibles al cambio climático, pues el término de “desplazados” a pesar de ya no se refiere al desplazamiento por ser perseguido por ciertas características personales o ideológicas, éste tiene una connotación bélica y local. En efecto, el término de “desplazados” fue acuñada de manera indirecta por la Convención de la Organización de la unión Africana como una ampliación del término de refugiado al señalar que “el término de refugiado se aplicará también a toda persona que, a causa de una agresión exterior, una ocupación o una dominación extranjera, o de acontecimientos que perturben gravemente el orden público en una parte o en la totalidad de su país de origen, o del país de su nacionalidad, está obligada a abandonar su residencia habitual en otro lugar fuera de su país de origen o del país de su nacionalidad”. Asimismo, como consecuencia de que los problemas de violencia se intensificaron en América Central en los años 70´s se produjeron enormes flujos masivos, por lo cual se vieron en la necesidad de ampliar el concepto clásico de refugiado en el Coloquio de 1981 sobre “Asilo y la Protección Internacional de Refugiados en América Latina”18. Fue hasta en 1984 en el Coloquio sobre Refugiados en la que se adoptó una definición ampliada a través de la Declaración de Cartagena, en la que en su conclusión tercera señala “que en vista de la experiencia recogida con motivo de la afluencia masiva de refugiados en el área de Centroamérica, se hace necesario encarar la extensión del concepto de refugiado, teniendo en cuenta, en lo pertinente, y dentro de las características de la situación existente de la región el precedente de la Convención de la OUA (Artículo 1, párrafo 2) y la doctrina utilizada en los informes de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. De este modo, la definición de refugiado recomendable para su utilización en la región es aquella que además de contener los elementos de la convención de 1951 y el Protocolo de 1967, considere también como refugiados a las personas que han huido de sus 17 Principios Rectores del Desplazamiento Interno en http://www.law.georgetown.edu/idp/spanish/gp.html 18 Protección y asistencia de refugiados en América Latina – Documentos Regionales 1981-1999, ACNUR, 2000, pg. 353. 254 MSc. Efraín Peña países porque su vida, seguridad o libertad han sido amenazadas por la violencia generalizada, la agresión extranjera, los conflictos internos, la violación masiva de derechos humanos u otras circunstancias que hayan perturbado gravemente el orden público”19. Posteriormente, se amplió el término de refugiado bajo la denominación de desplazados en el documento “Principios y Criterios de 1989” producto de la Conferencia Internacional sobre refugiados centroamericanos y teniendo como antecedentes diversos coloquios sobre refugiados para tratar la nueva problemática del refugiado presentado en América Latina, tras diversos conflictos y donde se plantea la necesidad de encerrar la extensión de refugiado. Además se alude a los desplazados y los define “como las personas que han sido obligadas a abandonar sus hogares sus hogares o actividades económicas habituales debido a que sus vidas, seguridad o libertad han sido amenazadas por la violencia generalizada o el conflicto prevaleciente”20. Conforme a lo anterior, es claro que aun cuando el término de desplazado supera la limitante de otorgar la protección internacional o nacional, únicamente por la agresión o amenaza hacia una persona o grupos de personas por tener ciertas características físicas o ideológicas y extiende la protección de manera generalizada a un grupo de personas cuya amenaza se debe a una situación externa como un conflicto armado, una violencia generalizada o circunstancia que haya perturbado gravemente el orden público; no obstante, si bien podría ser aplicable en el caso de las personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio climático, al aplicarse de manera generalizada a un grupo de personas que sufren un mismo contexto que pone en peligro la integridad de sus derechos fundamentales, lo cierto es que la naturaleza dicho contexto es distinto al de los migrantes climáticos, pues dicha protección se establece en circunstancias eminente bélicas y en cuya regulación entra reglas de derecho humanitario que no son aplicables al caso concreto. Asimismo, debe señalarse que tampoco resultaría aplicable utilizar los conceptos refugiado y desplazado como sinónimos, pues en el contexto europeo, por ejemplo, se diferencian los desplazados de los refugiados tanto por las causas que justifican dichas figuras como por sus efectos, en este sentido, en el refugio se otorga una protección de carácter permanente, en cambio en el caso de los desplazados es temporal21, por lo tanto, para el caso de los migrantes climáticos, no resultaría aplicable ya que existen diversos fenómenos naturales que han afectado el territorio 19 Ibidem, pg. 348. 20 Ibidem, pg. 199. 21 Cfr. Loreta Ortiz Ahlf et. el., De los migrantes. Los derechos humanos de los refugiados / La igualdad en ciernes. La prohibición de discriminar, pg 40. 255 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? de las personas desplazadas de manera permanente, como en el caso de la desaparición de las islas por el aumento del nivel del mar. Incluso, el gerente de proyecto de EACH-FOR22 considera que existen tres tipos de migrantes climáticos a consecuencia del cambio climático, aquellos que sufren desplazamientos temporales por terremotos, ciclones o posibles inundaciones, los que migran porque los procesos de degradación ambiental ponen en riesgo su salud y destruyen las bases de su sustento económico y los que se desplazan porque hay cambios permanentes en su hábitat tradicional. De la misma manera, la Organización Internacional de Migración ha definido cuatro escenarios de migración por cambios ambientales: 1) la migración en un grado menor por cambios ambientales graduales; 2) la migración en un grado avanzado de cambios ambientales graduales; 3) la migración debido a eventos ambientales extremos y; 4) la migración debido a una larga escala de desarrollo y conservación de la tierra. Por otro lado, en el caso de los desplazados la recepción de los mismos es distribuida entre los Estados miembros de la Unión Europea mediante un reparto de cargas y la estancia con carácter temporal; sin embargo, en el caso de los migrantes ambientales quienes se considera deben asumir dicha repartición de cargas son los propios Estados que más contribuyen con la emisión de gases de efecto invernadero. Al final, vemos como no hay consenso entre los distintos entes internacionales que tratan la materia y en muchas ocasiones se utilizan incluso como sinónimos para referirse al fenómeno del desplazamiento ambiental y el climático. Si ello es así y el concepto mismo ofrece problemas, que podremos decir de los derechos humanos de aquellas personas que se encuentren en esta categoría? Migrante Ambiental y Migrante Ambiental Forzado Respecto la acepción de migrantes ambientales, el Instituto Universitario de Medio Ambiente y Seguridad Humana en las Naciones Unidas definió como migrante forzado ambiental “a alguien quien tiene que dejar su lugar habitual donde reside por una afectación ambiental, a diferencia de un migrante ambiental que es una persona que puede decidir si se mueve como consecuencia de una afectación ambiental”23. 22 Cfr. International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Op. Cit., pgs. 2 y 3. 23 Cfr. Renaud, F., Bogardi, J.J., Dun, O. and Warner, K. (2007) “Control, Adapt or Flee: How to Face Environmental Migration”, InterSecTions, UNU-EHS, no. 5/2007, www.ehs.unu.edu/file.php?id=259, citado en Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.6. 256 MSc. Efraín Peña Asimismo, la Organización Internacional de Migración propuso como correcto el término de migrantes ambiéntales, haciendo referencia “a aquellas personas o grupos de personas que de manera inevitable por cambios repentinos o progresivos del ambiente afectan de manera adversa sus vidas o condiciones de vida son forzados a dejar su vivienda habitual, o a elegir a hacerlo de manera temporal o permanente, y quienes tienen que moverse dentro de su país o al exterior”24. La Asociación Internacional para el Estudio de las Migraciones Forzadas (IASFM por sus siglas en ingles) describe la migración forzada como: Un término generalizado que refiere a los movimientos de refugiados y personas internamente desplazadas (por conflictos); al igual que aquellos desplazados por desastres naturales o ambientales, desastres químicos o nucleares; hambruna y proyectos de desarrollo25. De las distintas acepciones que se han analizado en el presente artículo, el término de migrantes se considera el más idóneo para describir a las personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio climático, toda vez que dicho concepto está libre de acepciones que conllevan ciertos parámetros ya establecidos previamente y permite definir nuevos parámetros con base en la propia naturaleza de los conceptos; asimismo, al no estar contemplado en ningún instrumento internacional no es necesario tratar de forzar la concepción a un determinado concepto ya establecido para obtener la protección internacional, sino al contrario permite crear un instrumento y un organismos autónomo que esté acorde con las características de dichas circunstancias. De esta manera, se considera acertado el termino de forzado, pues justamente la mayoría de los migrantes, por las características extremas que han caracterizado los fenómenos ambiéntales derivado del cambio climático no tienen la opción de elegir respecto a la posibilidad de quedarse en el lugar donde residen y repeler las afectaciones ambientales de alguna manera, asimismo una de las características que se considera que distingue entre los migrantes ambientales y los migrantes climáticos es que dada la gravedad de las consecuencias de los fenómenos ambientales causados como consecuencia del cambio climático, resulta necesario el responsabilizar a los demás estados para enfrentar dichas catástrofes y evitar en un fututo terribles conflictos derivados de la migración exacerbada de personas. En este sentido, toda vez que se considera que al hacer el distingo entre los migrantes climáticos de los ambientales, por la intensidad de dichos fenómenos resulta ocioso el utilizar el término de forzados, pues dicha 24 Organización Internacional de Migración, Nota de Discusión: Migación y Ambiente, Op. Cit., pg 1 y 2. 25 International Association for the Study of Forced Migration [IASFM], 2008, 257 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? acepción lo implica. No obstante, no se debe confundir respecto a que la diferencia de esas dos acepciones únicamente se refieren a dicha cuestión, pues como ya se esgrimió antes, entre otras diferencias que conlleva los migrantes ambientales y los migrantes climáticos es la causa de dicho afectación ambiental, pues en el caso de las afectaciones climáticas éstas únicamente son producidas como consecuencia del calentamiento global provocado por el aumenta de las emisión de gases invernadero que ha provocado, dejando a un lado aquellas afectaciones ambientales que hayan sido generadas por la acción u omisión de una persona que derive en un daño ambiental. adecuado el no adoptar las acepciones de refugiado y desplazado, otorgadas a ciertas personas para brindarles la protección internacional, entonces resultaría necesario el crear un instrumento y un organismo a fin de velar por la protección de las personas desplazadas por los efectos del cambio climático. Asimismo, otra diferencia que se considera como fundamental entre los migrantes forzados climáticos y los refugiados y desplazados, es que los migrantes climáticos deben ser protegidos por otros Estados no solo por simples convenios entre los Estados con base con su capacidad económica y como un acto humanitario, sino dicha protección se deberá asumir como una obligación de los Estados que más contribuyen con la emisión de los gases de efecto invernadero y que se encuentran obligados conforme al Protocolo de Kyoto. Se considera idóneo que a efecto de proteger a los migrantes climáticos no solo se cree un instrumento para su regulación y en éste se establezca la constitución de un organismo que tenga relación directa con dichas personas desplazadas así como sus facultades, como sucede con los refugiados que son supervisados a través del ACNUR y no quede únicamente supeditada a la voluntad de los Estados para cumplir con las obligaciones derivadas de un instrumentos adoptado entre los mismos. De esta forma, la Organización Mundial de Migración al igual que con otros migrantes podría coadyuvar con la protección de los derechos de los migrantes ambientales, trabajando con los gobiernos y la sociedad civil para promover la comprensión sobre las cuestiones migratorias, alentar el desarrollo socioeconómico a través de la migración y velar por la dignidad humana y el bienestar de los migrantes. Finalmente, se considera que los migrantes climáticos podrían dárseles una protección temporal o bien una protección permanente dependiendo la situación en la que se encuentren, ya que si los fenómenos ambientales son temporales y existe la posibilidad de que se les restituya la situación para poder vivir adecuadamente en su lugar de origen, como en el caso de las inundaciones, una sequía, la protección es temporal, pero tendrá que ser permanente, cuando exista la imposibilidad de regresar a su lugar de origen, como en el caso de las Islas Tuvalú o las demás Islas las cuales están desapareciendo en el que el incremento del nivel del mar. En este punto es dado resaltar que ya existen y de manera aislada, ejemplos donde algunos regímenes internacionales han protegido los derechos de las personas que migran por razones del clima, a saber la Unión Europea, a través de la Directiva de Protección Temporal, que establece en su Artículo 2 que la protección temporal podrá ser otorgada a migrantes que hayan tenido que abandonar sus hogares en zonas de conflicto armado o violencia endémica, así como aquellas que estén bajo el alto riesgo, o que hayan sido víctimas, de violaciones sistemáticas o generalizadas en Derechos Humanos26. Problema Jurídico ¿Teniendo en cuenta la categoría de Migrantes Forzados Climáticos, cual es la Institución Jurídica que puede garantizar la protección de los derechos fundamentales de estas personas? Como hemos visto a lo largo de la lectura de este artículo, es imposible a hoy proteger desde la supranacionalidad los derechos fundamentales de las personas que migran por razones del cambio climático y bajo el evidente vacío legal existente, que versa desde la definición misma y la categorización de estas personas, no podemos afirmar que exista siquiera una protección siquiera insipiente. Toda vez que se ha considerado 258 MSc. Efraín Peña Bien lo señalan Espósito y Camprubí,27 Finlandia propuso introducir en este directiva una referencia explícita a los ‘refugiados climáticos’ dentro de la categoría de ‘violaciones sistemáticas o generalizadas de Derechos Humanos’. La propuesta finlandesa no fue finalmente acogida en el articulado de la Directiva por oposición expresa de España y de Bélgica. No obstante, cada país de la Unión Europea queda libre de incluir a los ‘refugiados medioambientales’ o ‘refugiados climáticos’ en el ámbito de aplicación de la norma de derecho interno mediante la cual sean 26 Directiva del Consejo 2001/55, relativa a las normas mínimas para la concesión de protección temporal en caso de afluencia masiva de personas desplazadas y a medidas de fomento de un esfuerzo equitativo entre los Estados miembros para acoger a dichas personas y asumir las consecuencias de su acogida, DO L 212, de 7 de Agosto de 2001. Véaseasimismo Kolmannskog, Vikram y Myrstad, Finn, “Environmental Displacement in European Asylum Law”, en: European Journal of Migration and Law,Vol. 11, La Haya, Boston, Kluwer Law International, 2009, pp. 313-326. 27 Espósito C y Camprubí A, Cambio y Derechos Humanos: El desafío de los “Nuevos Refugiados”, en Revista de Derecho Ambiental de la Universidad de Palermo | ISSN 2250-8120, pp. 7-32 Año I, No. 1, Mayo de 2012. 259 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? traspuestos los objetivos de la Directiva. Dos países nórdicos (Suecia y Dinamarca) ya han seguido esta vía, habiendo incorporado esta interpretación extensiva en su legislación nacional, y un comunicado del Foreign Office del Reino Unido parece igualmente inclinarse positivamente en esta dirección28. De la misma manera, el Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Refugiados (ACNUR) se expresó en recomendación de 2008, a favor del otorgamiento de la Protección Temporal a ‘los afectados por el cambio climático, los desastres naturales y otras formas de ‘acute distress’29. Igualmente se considera necesario para la creación de un fondo para enfrentar los desastres naturales, para los Estados que no cuentan con los recursos económicos suficientes para enfrentar las catástrofes ambientales, así como para sostener al organismo que velará por la protección de los migrantes climáticos, el cual deberá ser financiados por los Estados partes del Protocolo de Kyoto, para lo cual igualmente se considera menester el establecer dentro de las obligaciones de los Estados que se encuentran contemplados dentro del Anexo I del Protocolo de Kyoto, no solo el reducir la emisión de gases efecto invernadero sino el hacerse responsable de las poblaciones que se vean forzadas a migrar de su país de origen por el acontecimiento de fenómenos ambientales consecuencia del cambio climático y aportar a un fondo correlativa a la emisión de contaminantes, como el pago de la deuda climática30 toda vez que los países pobres son los que más sufren las consecuencias del cambio climático y son los que menos han contribuido a este nivel de contaminación. Ahora bien, esto aún es algo etéreo y ante la pregunta del título mismo del presente artículo, se considera que el volumen de migraciones internas versus las externas es muy superior y que por ende es importante fortalecer a la unidad local o municipal para afrontar este fenómeno social y ambiental, con el fin de proteger los derechos fundamentales de aquellas personas que se ven inmersas en el desplazamiento de su lugar de residencia por razones del clima. Así las cosas, es de vital importancia empezar a trabajar con las unidades locales para fortalecer desde el municipio la prevención (reducción vulnerabilidad) la adaptación y la resiliencia31 del conglomerado dentro de su jurisdicción, asi como 28 The Finnish Aliens Act(301/2004, Enmiendas hasta 973/2007 incluidas), Section 109(1); y Swedish Aliens Act (2005, 716). 29 Ibídem 30 Contrastando con el concepto de deuda financiera, existe una nueva corriente de pensamiento que analiza también el intercambio desigual entre Norte y Sur, pero en términos medioambientales y de sostenibilidad planetaria asociados al actual modelo de producción industrial, consumismo, residuos y emisión de gases de efecto invernadero por parte del Norte. Este ideario habla de la necesidad moral y económica de que el Norte repare las consecuencias nefastas que dicho modelo tiene sobre las poblaciones del Sur. Es decir, que asuma la deuda ecológica con estos países. 31 Definida por la Real Academia Española como Capacidad humana de asumir con flexibilidad situaciones límite 260 MSc. Efraín Peña la reacción frente al hecho de recibir y garantizar los derechos de las personas provenientes de otros lugares del país a su localidad. Conclusiones En resumen y para concluir, el termino acertado que ha de acuñarse para referirse a las personas que has sido sacadas forzosamente de su lugar de habitación por fenómenos asociados al Cambio Climático es la de Migrante Climático, y hemos de empezar a reconocer una serie de derechos y deberes de estos por parte de los Estados (y hacia el interior de los mismos) más de aquellos que contribuyen en mayor medida al fenómeno del calentamiento global. Igualmente y teniendo en cuenta el aspecto de Responsabilidad Común pero Diferenciada, no es posible que esta categoría de Migrante Climático sea asociada como un sinónimo a la de Migrante Ambiental, ya que no es lo mismo endilgar responsabilidad directa a un Estado determinado o un Privado por un daño ambiental sufrido, que a una comunidad de Estados industrializados, que por sus altos niveles de emisiones de CO2 contribuyen al acelerado calentamiento global, conllevando ello afectaciones serias a países vulnerables que a su vez repercuten en su población, forzándola a migrar dentro o fuera de sus fronteras. Se considera entonces imperiosa la necesidad de contar con un nuevo sistema de protección a migrantes climáticos exclusivamente y este debe ser creado en el contexto de las Partes signatarias de la Convención Marco de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático, en el que se otorgue una partida del Fondo para la Adaptación, creado por la COP7 (Marrakesh, 2001) para financiar proyectos y programas concretos de adaptación en países en desarrollo que son Partes de la Convención y del Protocolo de Kyoto y aquel que le sobrevenga. Sin embargo y mientras eso se da, es importante reconocer que los temas migratorios en la actualidad permanecen eminentemente regulados a nivel nacional, presumiblemente por la estrecha vinculación entre la soberanía estatal y el establecimiento de políticas migratorias,32 por lo que es necesario también abordar este problema desde lo local y desarrollar dentro del marco jurídico nacional las herramientas que permitan garantizar los derechos fundamentales de los migrantes climáticos locales o internos. y sobreponerse a ellas. 32 Marchi, Sergio, “Global Governance: Migration’s Next Frontier”, Global Governance, Vol. 16, Boulder, Lynne Rienner Publishers, 2010, p. 323. 261 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? REFERêNCIAS Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and forced migration, Refugee Studies Centre Policy Brief No.1 (RSC: Oxford). 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NASA News, 2005 Warmest Year in Over a Century, USA, 2006, disponible en: http:// www.nasa.gov/centers/goddard/news/topstory/2006/2005_warmest.html. ACNUR. Protección y asistencia de refugiados en América Latina – Documentos Regionales 1981-1999, ACNUR, 2000. Renaud, F., Bogardi, J.J., Dun, O. and Warner, K. (2007) “Control, Adapt or Flee: How to Face Environmental Migration”, InterSecTions, UNU-EHS, no. 5/2007. Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change, www.hm-treasury. gov.uk/independent_reviews/stern_review_economics_climate_change/stern_review_ report.cfm 262 Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa MOURA1 Nelson Ari CARDOSO2 Introdução Este artigo sintetiza a primeira etapa de pesquisa que objetiva avaliar os impactos decorrentes do processo de integração regional do MERCOSUL sobre as regiões de fronteira, de modo a contribuir com a formulação de políticas públicas de integração e articulação destes espaços. A pesquisa volta-se também a observar a qualidade das políticas públicas a eles direcionadas, apontando possibilidades para seu aperfeiçoamento. Para efeitos deste artigo, privilegia-se o enfoque sobre a mobilidade transfronteiriça, pautando-se em análises empíricas a partir de dados referentes à migração internacional e aos deslocamentos pendulares dos brasileiros em direção ao exterior, para trabalho e/ou estudo em município que não o de residência, disponibilizados pelo IBGE; e de entrevistas a pesquisadores e lideranças regionais com atuação precípua relativa ao MERCOSUL e fronteiras. O recorte analítico é a faixa de fronteira, que corresponde a aproximadamente 27% do território nacional, com 15.719 km de extensão, cerca de 10 milhões de habitantes de 11 estados brasileiros e faz limite com 10 países da América do Sul (BRASIL, 2005). Agrega 98 municípios da Região Norte, 403 da Sul e 69 da Centro-Oeste, totalizando 570 municípios, lindeiros e não-lindeiros. A principal legislação inerente à faixa de fronteira é de 1979 (Lei nº 6.634), atribuindo destacada importância a esse espaço territorial como região estratégica, em harmonia com os ideais de justiça e desenvolvimento. Os municípios lindeiros – situados na linha de fronteira –, em muitos casos configuram aglomerações transfronteiriças, também chamadas cidades gêmeas, cidades-pares, ciudad binacional, entre outras. São 19 cidades que se estendem de um ao outro lado da fronteira (BRASIL, 2005). 1 Doutora em Geografia pela UFPR, pesquisadora do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) e do Observatório das Metrópoles – INCT/CNPq. E-mail: [email protected] 2 Sociólogo, pesquisador do IPARDES e coordenador estadual do projeto Mercosul e Regiões de Fronteira, PROREDES/IPEA/IPARDES. E-mail: [email protected] 263 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Em relação a elas, não se observa “apenas um entrelaçamento entre os traçados urbanos de duas cidades; há, sobretudo, uma imbricação da história e da vida das pessoas nestas cidades” (OLIVEIRA, 2010), que desenvolvem interações sociais e culturais, valores materiais e imateriais. Peculiarizam-se pela mescla de povos por relações familiares, de trabalho ou consumo, constituindo-se, paradoxalmente, em “zonas de incerteza identitária.” (FERRARI, 2012). Conforme Oliveira (2009, p.3), aglomerações desse tipo têm modulado a paisagem nas regiões de fronteira nas Américas: Frágeis lugarejos têm se fortalecido como cidade; a infraestrutura (ainda que lenta e mal cuidada) tem avançado em direção às divisas; as relações de interatividades econômicas (formais, funcionais e ilícitas) estabelecem redes de intercâmbios de tipos variados; aproveitando de legislações diferentes (trabalhistas e ambientais), e diferenciais de monetários, os trabalhadores, os empresários e a população, em geral, criam economias de arbitragens (MACHADO, 1996)3 para obterem diferenciais de lucros. Todas estas relações tecem interações intensas, cada vez mais permanentes e fecundas, subvertendo as formas de controle. Como efeito, todo esse movimento conspira contra qualquer tentativa de uniformização do território. Marco referencial O trabalho desenvolvido pelo Ministério da Integração Nacional (BRASIL, 2005), orientou a demarcação do recorte da pesquisa e subsidiou a abordagem de alguns conceitos e noções pertinentes ao espaço fronteiriço. Destacam-se, entre eles, o entendimento sobre fronteira, integração, interação e identidade. A fronteira estabelece uma relação entre Estados Nacionais, separados por limites físicos ou abstratos, e as conexões cotidianas de convivência decorrentes da expansão do povoamento e da dinâmica econômica. É uma linha material ou imaginária, historicamente institucionalizada, que se esmaece diante da interação na produção/construção real do espaço. Embora em muitos casos ostensivamente cercadas pelos mais diversos aparatos de controle, as fronteiras e limites refletem e propiciam interdependências e dinâmicas inter-relacionais que extrapolam a formalidade, em ações capazes de suplantar, de forma legal ou não, as barreiras de sua existência. Os limites e o controle fronteiriço são acionados segundo conjunturas. Resgatando expressão de Raffestin 3 MACHADO, L.O. (1996). O comércio ilícito de drogas e a geografia da integração financeira. In: CASTRO, I. et al. (Org). Brasil: Questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, apud Oliveira (2009). 264 Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso (1986),4 a fronteira age à maneira de um comutador, que se acende ou se apaga, permite ou proíbe (COURLET, 1996). Para Machado (1998, p.1), “o limite jurídico do território é uma abstração, gerada e sustentada pela ação institucional no sentido de controle efetivo do Estado territorial, portanto, um instrumento de separação entre unidades políticas soberanas; a fronteira é lugar de comunicação e troca”. Rochefort (2002, p.12) sublinha que fronteira significa separação, demarcação e até obstáculo; poucas vezes encontro, reunião, enriquecimento mútuo e amizade. “El término frontera se refiere a la existencia de límites, bordes o confines, pero el ser de estos bordes fronterizos dibuja también, además de separación o delimitación total, la aparición de identidades culturales tanto disímiles cuanto recurrentes.” Sob perspectiva global, a fronteira não seria um obstáculo a um ajustamento otimizador das atividades econômicas, pela sua função à expansão do capitalismo, mas um instrumento para administrar situações interativas, com fundamental importância na gestão em nível local; uma zona de contato, um local de concorrência e de complementaridades (COURLET, 1996). Paradoxalmente, sua importância como objeto de estudo não se dá apenas pelo viés político, mas por outra perspectiva: “a de constituir uma região de interações privilegiadas que não reconhece as relações entre seus povos” (FERRARI, 2012). Segundo Oliveira (2009, p.4), a “condição de fronteira impõe mobilidade aos indivíduos de qualquer classe social, com diferentes graus de intensidades legitimando os mecanismos de complementaridades”. Assim, as áreas fronteiriças podem funcionar como impulsionadoras do desenvolvimento, áreas de transição, contato, articulação, “com especial vivacidade e dinamismo próprio”. As cidades contíguas que se estendem entre países e exercem, muitas vezes, atividades econômicas similares e funções urbanas complementares, poderiam dar origem a estruturas bi/trinacionais com articulação produtiva e transformação territorial (CICCOLELLA, 1997; OLIVEIRA et al., 1999). Entretanto, contrapondose ao espaço único de ocupação, prevalecem ainda tensões históricas fronteiriças e, mais que tudo, assimetria entre as partes, levando a quadros de expressiva desigualdade. Isso reforça a importância da presença do Estado na formulação e implementação de políticas integradoras, consideradas as particularidades da mobilidade econômica e populacional desses espaços. Para viabilizar relações econômicas globais, blocos de países e políticas de integração postulam-se como alternativas ao desenvolvimento. 4 RAFFESTIN, C. (1986). Eléments pour une théorie de Ia frontière. Diogene, 13-14 avr./juin., apud Courlet (1996). 265 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Salienta-se que integração regional é uma formulação de Estado, com potencial transformador das relações interestatais, que passam a se orientar pelo cooperativismo e complementaridade, possibilitando a reorganização dos estados fronteiriços em termos de competências internas e alterando as relações jurídicas locais e extraterritoriais (CARNEIRO, 2007). Deve ser instituída, regulada e consolidada pelo Direito de Integração, e responder por meio de regulações conjuntas a questões como migração de trabalhadores; gestão ambiental e de recursos naturais essenciais e estratégicos; combate à contravenção e à pobreza, entre outras demandas insuscetíveis de serem reguladas unilateralmente pelos estados, pois são problemas não isolados, não localizados. Oliveros (2005) agrega que integração fronteiriça é “el proceso orgánico, convenido por dos Estados en sus espacios fronterizos colindantes, que tiene por objeto propiciar su desarrollo sobre la base del aprovechamiento complementario de sus potencialidades y recursos, y de costos y beneficios compartidos, proceso que al mismo tiempo contribuye al fortalecimiento de los vínculos bilaterales.” Enquanto tratados internacionais ensaiam políticas de integração, a interação viabiliza o cotidiano e une os povos das fronteiras, sem garantir convergência econômica ou cultural entre eles. Alegria (2009) adiciona que a interação é propulsada pelas diferenças entre os países e pode ser considerada cíclica, aumentando na medida em que se intensificam as diferenças. Perante contínua interação, questiona se a convivência entre povos, culturas, religiões em sua vivência cotidiana, complexificada pela intensa mobilidade das pessoas, cria uma nova cultura, uma possibilidade de cidadania transfronteiriça, ou se simplesmente aproxima diferenças, compondo um mosaico diverso, ao qual se sobrepõe uma camada à parte, que não é resultado da interação, menos ainda da integração, mas que em si mescla traços da diversidade presente, como decorrência das relações estabelecidas na busca de alternativas de superação dos entraves para a sobrevivência presente. Alegria (2009, p.358) pondera que há influências físicas urbanas e urbanísticas entre os lados da fronteira, assim como em valores e identidades. “La interacción porta la influencia para que un lado de la frontera se parezca al otro, y para que identidades regionales en el espacio transfronterizo florezcan.” No entanto, essas influências e identidades não estão atadas nem são exclusivas a um lugar, mas aparecem em outras cidades e lugares. Hiernaux-Nicolas (2006, p.164) questiona se a mobilidade, neste momento de céleres mudanças espaço-temporais, altera a forma como Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso se constroem as identidades. Em seu entendimento, poderíamos estar evoluindo para que ocorra, em um extremo, a “transformación de las identidades tradicionales en identidades móviles”, e em outro extremo, “las identidades estarían en vía de desaparición ejercida por la movilidad”. Tomando como referência a mobilidade para o trabalho, o autor aponta que o imaginário ligado ao lugar de origem e a um possível retorno, que permeou estudos sobre migrações, perde o sentido ao se admitir a crescente penetração do uso de tecnologias de comunicação na vida transnacional dos migrantes, reforçando seus vínculos de origem mesmo à distância, ao mesmo tempo transformando o migrante, no lugar de origem, em um “turista”, com atitude “nostálgica con relación a lo que dejó”. Retoma-se, assim, a questão chave: ¿“se trata realmente de la construcción de unas identidades móviles o una movilidad sin identidad (y la búsqueda de la misma)?” Para o projeto referência deste trabalho (BRASIL, 2005, p.33-34): Por mais que, no senso comum, se tenha uma concepção muito clara e bem definida de identidade, como se ela pudesse até mesmo ser considerada “natural” a um determinado grupo, devemos partir sempre do pressuposto de que a identidade cultural é uma construção social-histórica – e, no nosso caso, também, geográfica. Centralizada sobre a dimensão simbólica da realidade, ela está sempre aberta a novas formulações e, para retomar o termo de Hobsbawm e Ranger, é possível de ser sempre “reinventada”. Mobilidade na fronteira: o que dizem os números Movimentos migratórios internacionais Para efeitos desta análise, foram utilizadas informações sobre emigrações internacionais do universo do Censo Demográfico 2010; e sobre imigração internacional, informações de data fixa, ou seja, que respondem à pergunta sobre onde a pessoa estava em 31/07/20055. Com relação à emigração internacional, o Censo Demográfico 2010 considerou um universo de 5.156 municípios, nos quais foram registrados 491.645 emigrantes internacionais, em 193 países do mundo. A maioria dos emigrantes era composta por mulheres (53,8%) e a faixa etária que mais contribuiu foi a entre 20 e 34 anos de idade (60%). No caso das imigrações, para o IBGE, a crise financeira internacional e o desempenho positivo da economia do Brasil foram os grandes atrativos à imigração de estrangeiros ao país e influenciaram o retorno de brasileiros 5 Análise destas informações em maior detalhe pode ser encontrada em Cardoso; Moura; Cintra (2012). 266 267 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso que moravam no exterior. Em 2010, 268,3 mil imigrantes internacionais que tinham passado os últimos cinco anos fora do país estavam de volta ao Brasil. Entre eles, os brasileiros correspondem a 65,7% (176,2 mil pessoas); 29% eram estrangeiros e 5,4% naturalizados brasileiros. Sua distribuição entre os municípios correspondia a 12,5% na faixa de fronteira; 21,2% entre municípios fora da faixa, mas em UFs fronteiriças; e 66,3% nos demais municípios do país. Nas aglomerações transfronteiriças, predominam os estrangeiros (50,5%) sobre o total dos imigrantes (Tabela 1). Entre os demais municípios da faixa e da linha de fronteira, a distribuição se aproxima da proporção total do país, ou seja, mais de 60% são brasileiros natos. TABELA 1 - IMIGRANTES POR LOCALIZAÇÃO E CONDIÇÃO DE NATURALIDADE - BRASIL – 2010 IMIGRANTES BRASILEIRO NATO NATURALIZADO BRASILEIRO ESTRANGEIRO Aglomeração transfronteiriça 40,47 9,05 50,48 Linha de fronteira 61,87 9,81 28,32 Faixa de fronteira 68,51 8,24 23,25 Outros mun. UFs fronteiriças 74,40 5,20 20,40 Outros em UFs não fronteiriças 64,50 4,77 30,73 FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados data fixa: residência na origem em 31 de julho de 2005). Elaboração: IPARDES Com a intenção de observar o comportamento dos municípios brasileiros, analisou-se a participação do município no total dos emigrantes e imigrantes internacionais. No caso dos emigrantes, apenas 12 municípios participam com mais de 1% desse total, somando uma participação de 29,5%, correspondente a 144.949 emigrantes. Dos demais, observase que muitos municípios na faixa de fronteira participam com mais de 0,010% do total dos emigrantes (Figura 1). 268 Como no caso da emigração, poucos municípios receberam os maiores volumes de imigrantes. Apenas 11 municípios têm participação superior a 1%, registrando 34,5% do total de imigrantes em 2010. Foz do Iguaçu é o único município fronteiriço nesta classe de participação. Grande parte dos municípios que compõem aglomerações transfronteiriças se encontra na classe de participação entre 0,100% e 1% (ver Figura 1). Foz do Iguaçu é também o único município de aglomerações transfronteiriças com participação superior a 0,5% do total de imigrantes estrangeiros. Outros integrantes de aglomerações transfronteiriças participam no total de estrangeiros com mais de 0,100%, e esses perfazem mais de 50% do total de imigrantes recebidos, casos de Tabatinga (93,9%), Chuí (87,5%), Sant’Ana do Livramento (71,9%) e Ponta Porã (60,5%), juntamente com Manaus (70,4%), Lauro de Freitas – BA (78,3%) e Itaí – SP (100%). O conjunto dos municípios com participação na emigração superior a 0,100% foi considerado o de maior relevância pelos volumes que movimenta. Sobre ele foram analisados e mapeados os principais destinos, destacando-se, nesta análise, os sul-americanos. Do total de emigrantes, 51,4% destinam-se a países da Europa, 26,4% aos da América do Norte, 8,9% aos da África e 7,9% aos da América do Sul. Na América do Sul, os principais destinos são Argentina (22,2%), Bolívia (20,4%) e Paraguai (12,7%) – Tabela 2. 269 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso TABELA 2 - DESTINO DOS EMIGRANTES E ORIGEM DOS IMIGRANTES EM RELAÇÃO AOS PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL E PARTICIPAÇÃO - BRASIL - 2010 DESTINOS EMIGRANTES % TOTAL EMIGRANTES IMIGRANTES % TOTAL IMIGRANTES Argentina 8.631 22,19 8.084 11,93 Bolívia 7.919 20,36 15.651 23,09 Paraguai 4.926 12,67 24.610 36,31 Guiana Francesa 3.822 9,83 1.072 1,58 3.255 4,80 572 0,84 Colômbia Suriname 3.416 8,78 Chile 2.533 6,51 2.674 3,95 Venezuela 2.297 5,91 1.892 2,79 Uruguai 1.703 4,38 4.326 6,38 4.224 6,23 Peru Outros países América do Sul AMÉRICA DO SUL 3.643 9,37 1.415 2,08 38.890 100 67.775 100 FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados data fixa: residência na origem em 31 de julho de 2005). Elaboração: IPARDES As emigrações para a América do Sul apontam para um perfil que, em termos de volumes, origina-se em centros de maior porte. Poucos são os municípios fronteiriços que concentram volumes elevados de emigrantes, entre eles se destacam Foz do Iguaçu, além de capitais dos estados do Norte, como Boa Vista, Rio Branco e Macapá. Nas UFs fronteiriças os destinos principais são os países limítrofes, o que sugere uma emigração de contato, de transposição, e que se supõe nem sempre ser realizada por brasileiros, podendo corresponder a estrangeiros em retorno. No âmbito do município, 239 têm na emigração para países sulamericanos mais de 75% do total dos emigrantes, e desse conjunto partem 11,7% do total dos emigrantes com destino a países desse continente. São municípios majoritariamente de menor porte, em UFs fronteiriças (ver Figura 1) e se caracterizam por fluxos com pequenos volumes (em 159, não atinge 10 emigrantes). Os maiores volumes deixam municípios do Norte, com destaque a Boa Vista (972 pessoas, 82,5% destinadas a países da América do Sul). No caso das imigrações, as principais origens dos imigrantes para o Brasil foram Europa (29,7%) e América Latina (aqui consideradas as Américas do Sul e Central e o México), com a participação de 27,1%. Porém, entre os 270 países contribuintes, predominam os Estados Unidos (52,1 mil imigrantes, ou 19,4% do total) e Japão (41 mil ou 15,3%), assim como Paraguai (24,6 mil ou 9,2%), Portugal (21,6 mil ou 8,1%) e Bolívia (15,6 mil ou 5,8%) – apenas esses com participação superior a 5% do total. Segundo o IBGE, na década anterior, o Paraguai e o Japão apareciam antes dos norteamericanos, seguidos pela Argentina e pela Bolívia. Na América do Sul, Paraguai e Bolívia lideram os países originários de imigrantes, totalizando 59,4% dos movimentos sul americanos (ver Tabela 2). A Argentina contribui com 11,9%. Entre os demais países, o Chile, embora não limítrofe, destaca-se com uma participação de 4%. O mapa dos fluxos principais, considerados os municípios com participação em mais de 0,100% do total dos imigrantes, reproduz o comportamento da emigração, com nítida mobilidade entre países limítrofes. Os 925 municípios com imigrantes oriundos da América do Sul totalizam fluxos de 67.775 pessoas, das quais 36% em municípios cuja representatividade dos sul-americanos sobre o total de imigrantes ultrapassa 75%. Da mesma forma que ocorre com os emigrantes internacionais, os imigrantes sul-americanos também compõem a maior proporção do total dos imigrantes dos municípios da faixa de fronteira. Movimentos pendulares O Censo Demográfico de 2010 oferece uma importante base de dados para análise do movimento das pessoas para trabalho e/ou estudo em outro município que não o de residência. Entendidos como deslocamentos pendulares, tais movimentos não são considerados migratórios, pois não implicam em mudança de domicílio. Também não se restringem a fluxos diários, mas incluem aqueles com maior duração entre partida e retorno. O Censo registra fluxos de entrada e saída dos municípios. No caso dos fluxos para o estrangeiro é possível registrar apenas os de saída dos municípios brasileiros. As informações apontam que 14.803.149 pessoas realizam movimento pendular para trabalho e/ou estudo entre municípios brasileiros, das quais apenas 0,4% dos que trabalham e 0,6% dos que estudam o fazem no estrangeiro. Considerando o total de fluxos, 34.975 pessoas deixam municípios brasileiros em fluxos pendulares para trabalhar no exterior; 34.335, para estudar no estrangeiro; 741 realizam ambas as atividades no exterior; e há um número de pessoas que saem para estudar em município brasileiro mas realizam atividade de trabalho no estrangeiro (Tabela 3). Somando todas as saídas para o estrangeiro tem-se 72.302 pessoas em movimento. 271 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso TABELA 3 - MOVIMENTO PENDULAR DA POPULAÇÃO - FLUXOS DE SAÍDA - BRASIL - 2010 CONDIÇÃO PESSOAS % TOTAL DE PESSOAS Saída para trabalho em outro município 9.527.748 64,36 Trabalho estrangeiro 34.975 0,24 Trabalho vários municípios 883.890 5,97 Estudo em outro município 3.652.488 24,67 Estudo estrangeiro 34.335 0,23 Estudo e Trabalho em outro município 647.687 4,38 Estudo em outro município e Trabalho estrangeiro 269 0,00 Estudo e Trabalho estrangeiro 741 0,01 Estudo estrangeiro e trabalho em outro município 1.719 0,01 Estudo em outro município e Trabalho vários municípios 19.034 0,13 Estudo estrangeiro e Trabalho vários municípios 264 0,00 TOTAL estuda e/ou trabalha em outro município 14.803.149 100,00 FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados da amostra). Elaboração: IPARDES. Das 72.302 pessoas que realizam deslocamentos pendulares para o estrangeiro, a concentração de fluxos tem origem nos grandes centros urbanos. De São Paulo saem 14,85% desse total, e apenas outros dez municípios têm participação superior a 1% do total. Entre eles encontram-se os municípios fronteiriços Foz do Iguaçu (9,10%), Sant’Ana do Livramento (3,84%), Ponta Porã (2,910%), Chuí (1,75%) e Tabatinga (1,3%), demonstrando um mesmo padrão de mobilidade em municípios integrantes de aglomerações transfronteiriças (Figura 2). Sumarizando, esses 11 municípios respondem por 45% dos deslocamentos, sendo 18,9 pontos percentuais correspondentes aos municípios fronteiriços. 272 Ao se analisar a proporção das pessoas que se deslocam para o estrangeiro sobre o total de pessoas em movimentos pendulares observa-se que em apenas 24 municípios supera os 20% do total de saídas, envolvendo 19.517 pessoas. A grande maioria dos municípios que realizam movimentos pendulares para o estrangeiro tem neles menos de 5% do total dos fluxos de saída. Os municípios onde essa participação é elevada estão inseridos na faixa de fronteira, porém são os da linha de fronteira (aglomerações transfronteiriças) que apresentam os mais elevados percentuais. Da mesma forma que observado na análise dos movimentos migratórios, os deslocamentos pendulares apontam fluxos importantes na extensão da faixa de fronteira, seja pelo volume de pessoas seja pela proporção que representam sobre o total dos fluxos. Lembra-se que não se dispõem de dados similares dos países vizinhos. Se computadas as entradas para trabalho e/ou estudo no Brasil, o volume de pessoas em trânsito seria consideravelmente superior. Particularmente nas aglomerações urbanas, esses fluxos, entre outros, representam a interação de pessoas no território para a realização de atividades essenciais e exigem a definição de políticas de mobilidade, assim como outras medidas que garantam o livre trânsito dessas pessoas. É o que constata Oliveira (2010): 273 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível estas fronteiras têm proporcionado ações compartilhadas entre brasileiros, bolivianos e paraguaios: incentivado a utilização de mão-deobra em ambos os lados, intensificado a prestação de serviços, aumento da arrecadação municipal (fato constatado em todas as prefeituras, alcadias e intendência); incentivo à criação de centros universitários de graduação e pós-graduação, dilatando, ainda mais, o raio de atuação regional das cidades, tanto para dentro do Brasil como para dentro do Paraguai e da Bolívia; além de tudo, têm forçado a aproximação entre as administrações municipais, com intuito de solucionar problemas que afetam ambas as cidades, possibilitando expandir, desta feita, a integração formal. Mobilidade e integração: o que dizem pesquisadores e lideranças Com vistas a uma análise preliminar das políticas existentes, problemas e desafios a serem enfrentados para se implementar uma política de integração para as áreas de fronteira, com ênfase na mobilidade, foram entrevistados pesquisadores e lideranças regionais do Paraná e de Santa Catarina6, selecionadas devido à atuação precípua relativa à temática, como etapa preparatória à pesquisa de campo prevista. Foi percebida consonância na posição dos entrevistados, seja quanto aos problemas ou aos desafios. De modo geral, os grandes problemas residem no conflito de escalas e na atomização dos planos projetos e ações federativas na faixa de fronteira, assim como na ambígua função da fronteira, como espaço alfandegário, porta de entrada e saída de migrantes, espaço transitório, lugar “perigoso”, permissivo ao tráfico de drogas, de pessoas e ao contrabando. A ausência de políticas públicas migratórias, particularmente que considerem as especificidades dos grupos culturais e as precárias condições de renda, deixa a população a mercê de uma rede não oficial de agenciamento de trabalho, do medo, do silêncio, do temor pela represália. São inadiáveis medidas que combatam a precarização do trabalho e assumam a difícil tarefa de inserir o indocumentado e o apátrida7. Foi evidenciado que é ainda inconsistente o diálogo entre países, agentes e responsáveis por políticas e práticas de integração, particularmente com a sociedade civil. Neste caso, são realizados apenas contatos com 6 Dr. Rosinha, parlamentar, ex-presidente do Parlamento do Mercosul, integrante da Comissão de Representantes do Brasil no MERCOSUL; José Antônio Peres Gediel, Coordenador dos Direitos do Cidadão da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Paraná; Nadia Floriani, Assessora da Comissão Parlamentar do MERCOSUL e Assuntos Internacionais na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná; Josemar Ganho, Coordenador do Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira do Paraná (NFPR); Gislene dos Santos, docente no Departamento de Geografia da UFPR; Maristela Ferrari, docente na Universidade Federal de Santa Catarina; Elizete Sant Anna de Oliveira, atuante na Sociedade dos Missionários de São Carlos – Pastoral do Migrante - Centro de Atendimento aos Migrantes; Gladys Renée de Souza Sánchez, presidente da ONG Casa LatinoAmericana (CASLA), em Curitiba. 7 Caso daquelas pessoas que nascem e têm negado o direito a registro no país migrante, como ocorre entre guaranis. 274 Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso associações de migrantes, porém, em diálogo informal, religioso. A inconsistência constatada decorre da história de cultura política distinta entre os países, da existência ou não de uma política exterior e sua prática. A falta de cultura política para relações internacionais cria sérias dificuldades de inovação nas relações entre os países fora das estruturas burocráticas estabelecidas. Como exemplo, a maioria dos parlamentares membros da Comissão do Mercosul não demonstra interesse algum pelo tema, como adverte um dos entrevistados. Ademais, é notória a assimetria entre os países, com diferentes características e interesses. Também se evidenciou a centralização nacional, a falta de autonomia para o diálogo e a tomada de decisões, e a desconsideração das necessidades e especificidades da zona fronteiriça, de seus povos e de suas aglomerações. A maior parte das ações compete à esfera nacional, todavia, os problemas recaem nos níveis do Estado e do Município; em muitos casos, é grande a dificuldade de aprovação das resoluções junto ao Congresso Nacional, dados os diferentes tempos político-eleitorais dos países e suas disputas políticas. Os entrevistados apontam importantes desafios. O principal diz respeito à cidadania, pois não existe um cidadão do MERCOSUL, mas um cidadão de um país que quer tirar vantagens para seu país, e assim fomenta a desintegração e não a integração. É imprescindível redefinir conceitos: a fronteira tem de ser vista como área que requer gestão/intervenção conjunta dos Estados, não como área limite de atuação da soberania, o que limita a construção da cidadania para além da nacionalidade. Os conceitos jurídicos de Nação e Soberania não dão conta das relações fronteiriças, portanto há que se construir o conceito de cidadania ampliada da situação fática das pessoas, de sua existência nos lugares. Outro desafio premente é colocar dignidade na discussão sobre o migrante transfronteiriço, o qual está em um contexto social com pouca representatividade, pouco poder. É fundamental implementar a identificação única de pessoas e veículos nas regiões da fronteira (há um acordo aprovado, mas não praticado), o que ajudaria a dignificar o migrante ou as pessoas que realizam comutação diária. Outro desafio é o diálogo interescalar, respeitando a participação de moradores fronteiriços, e a partir dele dar sentido a instituições supranacionais (MERCOSUL, UNASUL), aprofundando a integração com os países limítrofes e abrindo a possibilidade de uma agenda compartilhada para a solução de problemas comuns na faixa de fronteira. Para tanto, há que se reduzir o peso sobre o aspecto econômico e efetivar a integração das sociedades do bloco, considerando uma agenda social, cultural, tecnológica, acadêmica etc. Isso requer que a estrutura do Estado compreenda os problemas 275 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível apontados, assimile-os conceitualmente e em ações transformadas em políticas públicas, com vigor para que efetivamente sejam implementadas (orçamento, estrutura, possibilidades de articulações etc.). que considerem sua condição de lugares de passagem e proporcionem assentamentos solidários a refugiados. Do ponto de vista acadêmico, há o desafio intelectual de entender que a fronteira é uma nova categoria teórica – nem limite, nem contato, nem interação –; o desafio empírico, pois a fronteira exige dados compatíveis e comparáveis entre os países, e metodologia diferente da escala do Estado Nacional; e o desafio da pesquisa, posto que trabalhos de campo são de difícil operacionalização, por incidir sobre lugares com fluxos e redes distintas que exigem cuidados especiais. Considerações finais Nesse cenário de problemas e desafios, as responsabilidades se diluem e os povos das fronteiras se veem privados dos direitos essenciais, ao mesmo tempo em que construções simbólicas emergem a partir justaposição “diversidade e conflito”. A fronteira tripla Brasil/Paraguai/Argentina constitui-se em exemplo. Para Montenegro e Béliveau (2006), essa região se converteu em uma metáfora das zonas cinzentas e dos espaços sob a ameaça imprevisível do “terrorismo global”, particularmente após 2001, tornando-se alvo de notícias na imprensa nacional e internacional, sob um discurso jornalístico que a relaciona a um espaço transnacional que escapa aos controles estatais. Tais privações, imposições no imaginário e construções estratégicas explicam as palavras finais dos entrevistados, instigados a sintetizar “a quem pertence a fronteira”. Quase que unanimemente a resposta foi: aos povos que ali residem e que devem discutir os aspectos centrais de suas identidades, tendo em conta a interculturalidade, e enfrentar os conflitos escalares da tomada de decisões, normalmente de acordo com interesses distantes da escala local, do cotidiano vivido pelos moradores destas regiões. Mas, é preciso “borrar” a fronteira; apagar a linha divisória sobre cursos dos rios ou vias urbanas e tornar o espaço único. Então, a fronteira pertencerá aos povos que ali vivem. Pertence também a quem faz uso dela, o que implica em uma política, não de vigilância, mas que capte e seja adequada às suas peculiaridades. Apontou-se que existe uma dialética de fronteira, ou seja, a fronteira é uma síntese de existência e inexistência, é o fim como também é o início, é o legal e o ilegal manifesto em um mesmo espaço onde existe e inexiste o pertencimento. Sob a compreensão dos aspectos jurídicos, a noção de fronteira deve ser transposta, pois é uma noção pouco hospitaleira, que reforça o papel dominante da nação. Há que se considerar reflexões de Jacques Derrida8 e propor que nas fronteiras existam cidades acolhedoras, territórios livres, 8 DERRIDA, J. (2001). A solidariedade dos seres vivos. Entrevista a Evandro Nascimento. Folha de S. Paulo, Mais! 27/5/2001. 276 Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso As informações analisadas confirmam que há entre o Brasil e os demais países da América do Sul uma dimensão de mobilidade transfronteiriça, por movimentos migratórios e por deslocamentos pendulares para trabalho e/ou estudo. Tal dimensão requer que sejam concebidas e implementadas políticas adequadas às especificidades da região, particularmente no que se refere a migrações, mobilidade, trabalho, educação, cultura, entre outras. Os movimentos migratórios registrados na faixa de fronteira envolvem um grande número de pessoas e municípios e correspondem a uma busca preferencial pelos países limítrofes, o que sugere um exercício de interação entre os povos. A mobilidade pendular repete intensos fluxos na faixa de fronteira, particularmente nas aglomerações urbanas transfronteiriças (cidades gêmeas, cidades pares, cidades binacionais), confirmando relações de interação. Tais movimentos (migratórios e pendulares) decorrem fundamentalmente de relações para trabalho, estudo, consumo, demanda e acesso a funções urbanas, e implicam trocas culturais, de hábitos e de padrões. No extremo, sugerem a busca pela realização de direitos que se confundem entre os lados da fronteira, muitas vezes dificultados pelos obstáculos de políticas de controle inadequadas. Resta investigar o perfil desses migrantes e os motivos dos deslocamentos. Tais informações evidenciariam os tipos de atividades comuns e complementares entre os países (econômicas, funcionais, sociais), as redes sociais existentes, as principais rotas da mobilidade e, com isso, orientariam a formulação de políticas adequadas às peculiaridades da região transfronteiriça. Ressalta-se que qualquer informação sobre movimento migratório pode corresponder a um número subestimado, em face a omissões por parte de pessoas e familiares temerosos diante de situações de irregularidade – fato que também remete à necessidade de políticas públicas de acolhimento, documentação, inserção social e que neutralizem o preconceito. A fronteira é ainda uma linha imaginária que dificulta o cotidiano dos que nela vivem e para muitos se transforma em uma “zona de incerteza identitária”. Sua constante transposição por migrantes ou pela comutação frequente legitima que se questione se conformam identidades dissimiles ou recorrentes; identidades móveis ou que se desaparecem por uma 277 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível mobilidade sem identidade; ou identidades que se reinventam. Talvez, nem integração, nem interação, mas uma camada à parte que mescla os traços da diversidade. Em qualquer condição, é imprescindível que seja ampliada a cidadania para além do conceito da nacionalidade, e que se garanta dignidade a segmentos com pouca representatividade social, presos ao medo, à vulnerabilidade, ao espectro do “irregular” que acompanha muitos desses movimentos nessas porções do território. É nítida, portanto, a necessidade de políticas públicas efetivamente integradoras que reforcem a importância da presença do Estado, efetiva e estratégica, de modo a desconstruir a noção de um mosaico de pedaços de países independentes que se avizinham. Políticas que enfrentem as restrições à mobilidade das pessoas – políticas de mobilidade e de assistência ao trabalho, entre outras que garantam livre trânsito e desempenho profissional – e as dificuldades imposta por barreiras e controles à concretização de um espaço social e econômico peculiar. Romper fronteiras, limites, e assumir a diversidade, a multiculturalidade presente nessas regiões significa abertura para fluxos que não só aproximam pessoas e lugares como garantem sua inserção numa mesma dinâmica, acesso a direitos incontestáveis e o exercício de uma cidadania ampliada. Inúmeras são as questões remanescentes na discussão sobre espaço e mobilidade transfronteiriça, particularmente em sua principal expressão territorial, as aglomerações urbanas. Entre elas, permanecem latentes questões afetas ao (des)equilíbrio entre a legalidade e a ilegalidade nas práticas que se materializam nessas localizações – fato que pode ser associado não só a uma recorrente compreensão cultural do que é entendido por violação de direitos, mas também à distância física e ao relativo isolamento destas porções dos territórios nacionais –, e a recomposição da imagem manchada por negatividades, como o tráfico, o contrabando, a impunidade, a clandestinidade. Carentes de reflexão essa profusão de territorialidades particulares formata e dinamiza a existência de múltiplas fronteiras internas, dada a quantidade de atores, interesses, pactos formais e informais, que fazem com que, por se tratar de um espaço de todos, pareça não pertencer a ninguém. Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso Brasília: Ministério da Integração Nacional. CARDOSO, N.; MOURA, R.; CINTRA, A. (2012). Mobilidade transfronteiriça. Caderno Ipardes – Estudos e Pesquisas, v., n.2, jul./dez. Disponível em: http://www.ipardes.pr.gov. br/ojs/index.php/cadernoipardes CARNEIRO, C.S. (2007). O direito da integração regional. Coleção Para Entender. Belo Horizonte: Del Rey. CICCOLELLA, P.J. (1997). Redefinición de fronteras, territorios y mercados en el marco del capitalismo de bloques. In: CASTELLO, I.R. et al. (Org.) Fronteiras na América Latina. Espaços em transformação. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/FEE. COURLET, C. (1996). Globalização e fronteira. 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A palavra migração é sobretudo espacial. Migrante é aquele para quem o espaço é fonte valorosa de recursos. Assim, depende, o ato de migrar, necessariamente de lugares. Não há ação migratória sem o substrato de um território. Para este artigo, apesar da amplitude semântica da migração, priorizamos como espaço de análise, o local de destino. Trataremos aqui de apresentar quem são os novos imigrantes internacionais no Paraná. Para apresentar a singularidade do estado neste período contemporâneo, o artigo estrutura-se em 2 seções: 1) através da organização dos dados censitários (2010), apresentamos e descrevemos a particularidade do Paraná no cenário dos afluxos de estrangeiros no Brasil que, destaca-se, no quadro regional sulino, como um dos estados receptores de migrantes provindos dos países do cone sul; 2) guardamos atenção para a inserção de um grupo de migrantes, provindos da América do Sul, na cidade de Curitiba, capital do estado. O objetivo aqui é darmos visibilidade para algumas de suas manifestações nos espaços públicos da cidade. Registra-se ainda uma descrição e análise sobre suas táticas de inserção no espaço público urbano. 1 O presente artigo é parte do Projeto de Pesquisa, financiado pelo CNPq: “A migração feminina do Paraguai para o Brasil: o papel das Redes Sociais Migratórias”. 2 Gislene Aparecida dos Santos - Professora Adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPR. Coordena o Núcleo de Estudos em População e Território (NuPoTe), UFPR. Pesquisadora do CNPq. Email: [email protected] 3 Caio da Silveira Fernandes - Acadêmico do 3º Ano do Curso de Geografia da UFPR, bolsista de Iniciação Científica/TN/UFPR do Projeto “A migração estrangeira em Curitiba (1990-2000): uma análise entre a economia espacial e políticas migratórias”. Email: [email protected] 281 O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes QUADRO1 - Países de origem dos imigrantes no Paraná - 2010 2. Migrantes Internacionais no Paraná O território do Paraná é historicamente configurado por fluxos migratórios internacionais. Na segunda metade do século XIX, migrantes provindos sobretudo do continente europeu, estabeleceram-se no estado e, em 1960, o Paraná contava com 100.955 pessoas estrangeiras (IBGE, 1986). No decorrer dos anos este fluxo reduz-se, e para o período mais recente, 2010, aproximadamente 50.000 migrantes residem no Paraná, ou seja, cerca de 0,5% da população estadual compostos por estrangeiros4. Na região sul, o Paraná é o estado que mais sedia uma população estrangeira, visto que Santa Catarina e Rio Grande do Sul acolheram cerca de 17.623 e 34.244 pessoas respectivamente (Censo Demográfico, 2010). Mas quem são estes novos migrantes? Qual a sua procedência? Para uma apresentação da localização e distribuição dos estrangeiros contemporâneos no estado do Paraná, utilizamos os dados censitários do ano de 2010. Entretanto, alertamos, trata-se aqui de uma aproximação. Os dados da migração estrangeira são, por sua natureza, difíceis de serem contabilizados. No Brasil, as normatizações para a regularização de um estrangeiro no território nacional são rigorosas5. É comum que, aqueles migrantes na condição de irregulares prefiram não fornecer informações aos órgãos censitários, dada a precariedade jurídica de sua estada no país. Entretanto, ainda que o levantamento censitário apresente lacunas, este é um dos poucos registros empíricos da imigração estrangeira que o Governo Federal disponibiliza à sociedade brasileira. E, vale advertir, os dados censitários são utilizados como parâmetros para as políticas públicas em suas diferentes escalas, daí a importância de sua divulgação para a sociedade civil, sobretudo se pensarmos em projetos democráticos de planejamento territorial que levem em conta a mobilidade da população no território nacional. Assim esclarecido, os migrantes estrangeiros no Paraná, em 2010, são provindos de 144 nacionalidades. 91% desta população localiza-se em áreas urbanas e 54% são homens; cerca de 46% são idosos, com idade acima de 70 anos e 41% jovens (entre 15 a 29 anos). Verifica-se assim um equilíbrio etário na composição da população, e os dados indicam a necessidade de políticas públicas para atender as demandas específicas de cada grupo etário. Elencamos abaixo os 13 países mais representativos de origem dos migrantes no Paraná. 4 Para migrantes internacionais, considera-se aqui os estrangeiros e aqueles naturalizados brasileiros. 5 Para informações da legislação brasileira e os procedimentos jurídicos obrigatórios para a regularização do estrangeiro, consultar COELHO (2011). E, para o entendimento dos acordos que regulam o trânsito dos migrantes entre os países do Mercosul, consultar o informe do CDHIC(2011). 282 Nacionalidade Estrangeiro Naturalizado Total Paraguai 7518 8352 15870 Japão 3194 3041 6235 Argentina 2309 904 3213 Líbano 1897 859 2756 Alemanha 945 827 1772 China 1203 558 1761 Espanha 1161 567 1728 Itália 1065 556 1621 Estados Unidos 847 426 1273 Chile 802 141 943 Peru 404 305 709 Polônia 248 422 670 Fonte: IBGE - Censo Demográfico, 2010. Arquivo Microdados. Adaptado pelos autores. A primeira vista, chama atenção a relevância dos migrantes provindos do Paraguai. Na sequência, a predominância dos japoneses, segundo grupo mais representado, cuja origem migratória remonta, no Paraná, ao início do século XX. Destacam-se também a manutenção dos migrantes europeus e a emergência daqueles provindos do Líbano e da China. Para entender o Paraná contemporâneo como receptor de migrantes estrangeiros é necessário apontar que este estado apresentou-se, em relação às demais unidades da Federação (UFs), um acelerado grau de urbanização estadual. Se em 1970, apresentava 36% de urbanização, em 1990 salta para 78%; já em 2010, cerca de 85% da população total do estado residiam em áreas urbanas. Os municípios de Curitiba, Foz do Iguaçu, Londrina e Maringá, destino dos maiores fluxos de migrantes estrangeiros (Quadro 2), apresentavam, em 2010, a taxa média de 97,5% de urbanização, acima da regional. São cidades que, no Paraná, além de serem as mais populosas, representam espaços privilegiados de oportunidades, com disponibilidade de variados bens e serviços, recursos espaciais valorosos tanto para a população local quanto para aqueles que chegam. Destacam-se também entre as maiores economias municipais do estado. Para ilustrar, em 2009, 24,09% do PIB estadual concentravase em Curitiba, Londrina 4,68%, Maringá 3,83% e Foz do Iguaçu 3,53% (IPARDES,2010). São cidades que, no contexto regional, apresentam-se atrativas para os migrantes à procura de trabalho. 283 O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS QUADRO 2. Localização dos Imigrantes no Paraná - 2010 Municípios População estrangeira Curitiba Foz do Iguaçu Londrina Maringá Cascavel São J.dos Pinhais Ponta Grossa Santa Helena Guaíra Toledo Fonte: IBGE - Censo demográfico 2010. Arquivo Microdados. Adaptado pelos autores. 13.108 8.744 2.875 2.291 1.466 889 759 714 709 641 Foz do Iguaçu é a cidade que sedia o maior número de paraguaios, 2685 pessoas, e, na sequência os provindos do Líbano, 1534 pessoas. A migração dos libaneses para Foz do Iguaçu, iniciou-se nos anos 1950 e incrementouse nos anos 1970 e 1990. Das 16 instituições árabes na região da tríplice fronteira, 12 estão localizadas em Foz do Iguaçu (Cardozo, 2012). A centralidade de Foz do Iguaçu na imigração dos paraguaios pode ser explicada pela singularidade desta cidade no contexto nacional e regional: desde os anos 1970, quando da efetivação da Usina Binacional de Itaipu, Foz do Iguaçu tornou-se um dos pontos de destino da migração interna brasileira, e, justaposto a este movimento, o afluxo de migrantes paraguaios. Para os anos 1990 e 2000, Matos el al (2008) demonstram a intensidade do fluxo da população paraguaia para o estado do Paraná, concentrados nesta porção fronteiriça. Cascavel também sedia grande parte número de migrantes paraguaios, 441 pessoas. Se acrescentarmos Guairá 3% e Toledo 5%, localizados na porção oeste do Paraná, verificamos que esta região fronteiriça acolhe cerca de 81% do fluxo. Assim, no quadro explicativo da migração dos paraguaios para o Brasil é imperante reconhecermos o efeito que a região oeste do Paraná, lindeira ao Paraguai, exerce no arranjo de um fluxo transfronteiriço. No ano de 2007, Foz do Iguaçu possuía 325.137 habitantes, com uma das mais altas taxas de urbanização estadual (99,21%) e crescimento geométrico da população em torno de 3,5%, acima da tendência regional e nacional. Sua paisagem urbana é também marcada por intensas relações internacionais fronteiriças “e se manifesta como uma espacialidade complexa, desenvolvendo estreitas relações com as cidades vizinhas de Puerto Iguazu, na Argentina, e Ciudad del Este, no Paraguai”. (IPARDES 2006, p. 49). Tais interações se expressam sobretudo pelo fluxo de população para o trabalho entre as duas cidades - Foz do Iguaçu e Ciudad del Este - e, pela circulação de mercadorias do Paraguai para o Brasil. No ano de 2007, cerca de 1.178.268 passageiros 284 Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes foram transportados nos ônibus interurbanos entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, conforme Cury (2010, p. 200). Moura e Cardoso (2010) reconhecem que a cidade de Foz do Iguaçu está atualmente muito mais integrada à dinâmica urbana fronteiriça do que à rede urbana paranaense. Segundo a UNICEF (2005), ocorre nesta área fronteiriça intensa circulação de pessoas à procura de trabalho e serviços. Ou seja, uma dinâmica de migração laboral entre áreas urbanas fronteiriças. Os japoneses, segundo grupo representativo no Paraná, concentramse principalmente em Londrina, 1234 pessoas e, na sequência, Maringá, 675. Em Curitiba, a terceira capital nacional de destino de migrantesestrangeiros6, o principal grupo de estrangeiros está representado pelos argentinos, 832 pessoas, seguido pelos japoneses, 799. Ainda, uma particularidade em Curitiba: a presença de 511 portugueses e 453 paraguaios que obtiveram a naturalização brasileira. Se focarmos a atenção para aqueles migrantes provindos da América do Sul (Quadro 3), percebe-se que, para 2000 e 2010, os dados nos trazem algo novo: no Paraná, em 2010, a presença modesta de um contingente de equatorianos, cerca de 46 pessoas e o ligeiro aumento dos uruguaios: de 75 pessoas em 2000 salta para 116 migrantes em 2010. Ainda, destaca-se a manutenção em ascendência de um fluxo provindo do Peru, da Venezuela e do Chile. Por sua vez, uma redução de 54% daqueles provindos da Bolívia. E, mesmo o Paraguai, apesar de apresentar uma das mais altas concentrações de migrantes estrangeiros no estado, apresentou também, em 2010, uma significativa redução em seu contingente migratório. QUADRO 3. País de origem dos migrantes provindos da América do Sul no Paraná - 2000 e 2010. Origem 2000 2010 Argentina Bolívia Chile Colômbia Equador Paraguai Peru Uruguai 1103 310 167 58 43 20815 33 75 911 142 183 37 46 13498 65 116 Venezuela 32 Fonte: Censo demográfico, 2000 e 2010. Arquivo Microdados. 58 Adaptado pelos autores 6 No Brasil, São Paulo, segundo o Censo 2010, foi a capital que mais recebeu estrangeiros, cerca de 119.727 pessoas. Rio de Janeiro, na sequência, com 55.521. E, Curitiba, em terceiro lugar, com 8.871. Belo Horizonte, e Porto Alegre, receberam 6.088 e 501 pessoas estrangeiros, respectivamente. 285 O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS Interessante verificarmos que, apesar do Paraná ser um dos destinos privilegiados do fluxo de migrantes provindos do Paraguai, não sejam eles, os paraguaios, o grupo mais representativo no recebimento dos vistos para o trabalho. Para exemplificar: das autorizações concedidas para migrantes a trabalho no Paraná, provindos dos países do Mercosul, o Paraguai se destaca como o país que obteve as menores concessões. Entre 2009 a 2012, os argentinos são aqueles que obtiveram as maiores autorizações concedidas, 76 ao total, enquanto que, o Paraguai, durante este mesmo período, registrou 7 concessões (Ministério do Trabalho e Emprego). Não temos aqui a pretensão de desvendar as relações de trabalho dos migrantes no Brasil, entretanto, vale mencionar que, mesmo dentro dos países do Mercosul, ocorre diferenças assimétricas na inserção dos migrantes no mercado de trabalho brasileiro (Sala, 2010). Antes de terminar esta seção, citamos a presença recente dos haitianos no Paraná. Se, no Brasil, em 2010, 15 vistos de trabalho foram expedidos para os haitianos, no primeiro semestre de 2012 já se atingia 2.311 vistos. Estudos da Pastoral dos Migrantes, registram que, em 2012, cerca de 376 haitianos foram direcionados do Amazonas para o Paraná. De Manaus (AM), dirigiram-se para Pato Branco, Londrina, Maringá e Campo Largo (Costa, 2012). Este fluxo migratório desencadeou-se após o violento terremoto, ocorrido no Haiti, em janeiro de 2010. Outro grupo de migrantes-estrangeiros presentes no Paraná são os procedentes do sudeste asiático. Em 2000, cerca de 647 chineses e 721 taiwaneses se encontravam distribuídos entre as cidades de Foz do Iguaçu, Curitiba, Londrina e Maringá. Foz do Iguaçu concentrava o maior número, com 415 chineses e 159 taiwanses (Censo Demográfico, 2000). Este curso migratório em Curitiba, apesar de discreto, apresenta particularidades: laboralmente dedicam-se ao setor do serviço de alimentos, como empregadores ou empregados em restaurantes ou lanchonetes na área central da cidade. Esta migração se organiza ancorada sobretudo nos laços das redes sociais parentais. Em síntese, até aqui tratamos de uma visão estatística panorâmica, evidenciando os mais expressivos numericamente nos dados censitários. Para a próxima seção, guardamos atenção para a dimensão política da migração. 2. Os migrantes latinos em Curitiba Os migrantes internacionais, no contexto atual, têm sido considerados elementos emblemáticos que subvertem a lógica homogênea do Estado 286 Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes nacional e, são, por vezes, nomeados “habitantes transnacionais”. Vários autores, entre eles Canales et al (2005), utilizam o fluxo migratório internacional para ilustrar experiências “transnacionais” contemporâneas. Consideram o fato de que, relações sociais mantidas e sustentadas em trânsitos migratórios, associadas às facilidades de comunicação, são elementos formadores de comunidades transnacionais. Por conseguinte, as relações sociais são capazes de influenciar e alterar tanto a comunidade de origem quanto a de destino. Mudanças principalmente no campo social, cultural e econômica. Em outra vertente, Fitzgerald e Waldinger (2004); Stefoni (2005); Herrera (2008), menos entusiastas do transnacionalismo migratório, advertem acerca dos limites do que realmente pode e/ou deve ser considerado uma comunidade transnacional. Segundo os autores, as políticas migratórias restritivas, o contexto da interação social entre os migrantes e a presença ou não dos acordos bilaterais entre os países envolvidos no fluxo (origem e destino) devem ser levados em consideração no argumento conceitual do transnacionalismo. Chamam a atenção também para as relações históricas entre os países envolvidos e, especificamente urgentes no contexto contemporâneo, a necessidade de uma análise política acerca da estreita relação entre nacionalidade e cidadania. Apesar da relevância empírica das redes sociais no curso migratório, muitas vezes desafiando a soberania dos Estados Nacionais, o grupo dos autores acima citados argumentam que, as políticas nacionais têm um papel chave para que uma comunidade migrante se configure como fato social, econômico e político.transnacional. Herrera (2008), ao analisar o fluxo migratório feminino do Equador em direção aos Estados Unidos, destacou o papel das políticas migratórias estadunidenses como agente modelador da rede migratória. Em suas palavras: Me interesa analizar como los y las migrantes responden, resisten, adaptan y/o contornean las leyes, reglas, procedimientos que emanan de determinadas políticas migratorias y como a su vez estas políticas son marcos estructurantes de su acionar (p. 71). Menos adepta da ideologia da livre circulação de migrantes no espaço internacional, a autora dedica-se a entender os limites e restrições das legislações migratórias às práticas transnacionais. Ou seja, nos países de destino, os migrantes, em sua experiência diária, convivem com limites jurídicos e culturais institucionalizados cerceadores de espaços de convívio comum e plural. Em síntese, esta discussão coloca em evidência o quanto a migração é um fenômeno complexo. O migrante, em sua trajetória, estabelece laços sociais no país de destino, laços que podem ser fortes ou frágeis; mantêm e/ou rompem com os seus vínculos de origem e, 287 O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS no cotidiano mantido entre as duas nações, convivem com legislações nacionais distintas. Para esta seção, o objetivo é apresentar uma das faces desta complexidade e, sobretudo, colocar em evidência algumas experiências e ações de um grupo de migrantes, provindos de países da América do Sul no espaço urbano de Curitiba. Como ponto de partida é importante salientar que a inserção e visibilidade dos migrantes da América do Sul é ainda precária nos espaços públicos da cidade, o que aponta uma fraca integração e trânsito intercultural7. Ainda que a área de curso dos migrantes estrangeiros estenda-se minimamente entre dois países, as relações sociais são muito restritas aos espaços próximos de circulação dos migrantes. Assim, os laços contatados são, sobretudo, aqueles de utilidade assistencial, formados, principalmente, com as organizações não-governamentais que os auxiliam, principalmente, no campo social e jurídico. Apesar de, em 2009, ter sido celebrado o Acordo Mercosul8, que normatiza o trânsito da população migrante entre os países membros e associados9, há um conjunto de procedimentos normativos que dependem de esclarecimentos e informações para a liberação do visto temporário e permanente. Somente para ilustrar, são necessários um conjunto de documentos como: certidão de nascimento, carteira de trabalho ou outro registro de vínculo empregatício para se regularizar no Brasil. Documentos esses que, nem sempre, um migrante com parcos recursos carrega em seu mudança e deslocamento. E, ainda que o Acordo Mercosul torne mais viável o deslocamento dos migrantes, as dificuldades para se orientar em meio a tantas exigências burocráticas e normativas são significativas. O processo de regularização do estrangeiro no território nacional é uma ação efetivada diretamente pela Polícia Federal. É deste órgão que são liberados e renovados os passaportes, e, para o habitante fronteiriço, o “Documento Fronteiriço”. As práticas de regularização seguem a lógica do Estatuto do Estrangeiro dos anos 1980, quando o estrangeiro era tratado como assunto de segurança nacional. Desde 1990, tramita no Congresso Brasileiro o Projeto de Lei 5.6555 para alterar o Estatuto do Estrangeiro, entretanto, os avanços e as alianças não se apresentam favoráveis à sua aprovação. 7 Metodologicamente, temos participado em Curitiba de várias atividades políticas com os migrantes e organizações não-governamentais que atendem aos migrantes estrangeiros. Junto a isto, realização de longas entrevistas com os migrantes, representantes de organizações não governamentais, advogados que prestam assistência jurídica, assistentes sociais e educadores. Também temos realizado atividades com representantes da sociedade civil sobre a questão migratória. A consideração da frágil integração dos migrantes estrangeiros, sobretudo aqueles provindos da América do Sul, em Curitiba, nos é percebida pela convivência junto aos migrantes. 8 Consultar informe do CDHIC (2011). 9 Países Membros: Argentina, Brasil, Paraguai (suspenso em junho de 2012), Uruguai e Venezuela. Associados: Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. 288 Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes Reforçamos que o Acordo Mercosul faculta a entrada e saída dos migrantes entre os países acordados, mas ainda trata-se de uma política que atende somente as chegadas e as partidas. Pouco tem se dedicado a delinear políticas públicas que atendam às necessidades dos migrantes em seu cotidiano. Aqui, pensamos em acordos culturais, educativos, políticas de saúde, habitacionais e outras, recursos fundamentais na vida de qualquer pessoa, em trânsito ou não. Curitiba, apesar de sua posição no Brasil, uma das principais cidades que sedia o maior contingente de estrangeiros, não conta, até o momento, com postos de atendimento ao migrante, tampouco serviços de informação e hospedagem. Os migrantes estrangeiros têm emergências em sua chegada, instalação e fixação, mas a satisfação destas apresenta-se condicionada pela sua situação jurídica e econômica. Assim, apesar do variado grupo de migrantes de 144 nacionalidades no Paraná, temos a ausência de políticas públicas multilaterais favoráveis que facultem a experiência transnacional dos migrantes no estado. A ausência destas faz com que os migrantes tenham que criar inúmeras alternativas, geralmente articuladas em redes sociais não formais, para conseguir o que não está em pauta na esfera de uma política pública. Neste contexto, a Pastoral dos Migrantes, entidade católica, tem se apresentado como ator fundamental no atendimento às demandas dos migrantes no Paraná. Segundo informações da coordenação, a partir dos anos 1980, as ações da Pastoral se voltaram para um atendimento ao migrante latino, visto que, nesse período, o número de assistência dada aos migrantes provindos do Paraguai, Bolívia, Equador e Argentina tornaram-se mais recorrentes. Se, até então, eram os migrantes internos que solicitavam auxílio, no final dos anos 1980 a demanda de atendimento é solicitada pelos novos estrangeiros. A questão da irregularidade juntamente com a busca por emprego apresenta-se como o problema central para um grupo significativo dos migrantes. Em Curitiba, a Pastoral do Migrante, busca, através de várias ações, construir espaços de visibilidade aos migrantes latinos. Há 10 anos consecutivos, na cidade de Curitiba, se celebra A Festa Latina, criada e organizada pela Pastoral do Migrante. Em outubro de 2012, foi comemorado a 10ª Festa, reunindo no Parque São Cristóvão, migrantes provindos do Paraguai, Chile, Uruguai, Colômbia, Peru, México, Bolívia, Equador e do Haiti. Junto com o comércio de produtos típicos, tendas gastronômicas e apresentação de danças folclóricas. Este espaço de congregação torna-se também, pelos realizadores, uma expressão de acesso ao espaço público urbano, e, sobretudo, a festa representa um possível canal de diálogo entre nacionais e estrangeiros. Expressa também 289 O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes atos reivindicativos para regularização do migrante e sua participação no espaço social da cidade. 9ª. Festa Latina, Curitiba, 2011. Acervo NuPoTe (Núcleo de Estudos de População e Território) -UFPR. Outras manifestações de visibilidade têm ocorrido. Em julho de 2012, na abertura do “III Congresso de Educação e Integração da América Latina”, organizado pela Casa Latino-Americana – CASLA, vários grupos compostos por migrantes de diferentes países da América Latina desfilaram no centro da cidade de Curitiba. O que é marcante, é que ao longo de 25 anos de um curso migratório para o Paraná, os migrantes latinos, pela primeira vez, ocuparam festivamente as ruas centrais da cidade. Grupo de bolivianos, paraguaios, equatorianos, mexicanos, peruanos, adornaramse de vestimentas tradicionais dos seus locais de origem, e, publicamente, apresentaram-se atores no cenário urbano, exibindo os seus aportes culturais. 290 Abertura do III CEPIAL, Curitiba, 2012. Gislene Santos. Acervo NuPoTe - UFPR O uso das vestimentas, não deve ser aqui entendido como nostalgia ou anseio ao retorno de uma sociedade rural ancestral. Buscam, nestas ações, formas de se inserir no novo país. Assim, taticamente valoram e utilizam-se do seu capital cultural, transpostos do país de origem, para se legitimarem enquanto atores políticos e, não somente como migrantestrabalhadores na sociedade de destino. Em A Condição Urbana, Costa Gomes argumenta que, para a fundação da cidadania são necessárias duas condições: 1) o acesso ao espaço público; 2) a efetiva participação do Estado na normatização destes espaços, regulamentando seu uso e as possibilidades de manifestação cultural, social e política. Compreendemos que estas duas condições são fundamentais para o exercício da cidadania transnacional. São elas o pressuposto que fundam um espaço público plural, onde nacionais e estrangeiros possam se manifestar em igualdade de condições. 291 O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS Entretanto, o Paraná, apesar de se constituir como um estado que historicamente sediou várias correntes migratórias, tanto migrantes internos quanto estrangeiros, não possui, até o momento, um registro de sólidas políticas públicas para a integração do migrante à sociedade regional. O que se observa são políticas assistencialistas ou outras de cunho social. Neste contexto, na ausência de políticas estatais, em Curitiba, as ações da Pastoral do Migrante, da Casla e de outras organizações nãogovernamentais podem ser concebidas como aquelas que, no contexto contemporâneo, politicamente tem construído práticas espaciais de inserção dos migrantes nos espaços públicos. Entretanto, apesar destas ações, é importante registrar que a migração dos latinos ainda não se materializou como um elemento visível na paisagem paranaense. Muitos migrantes estão ainda submersos nos espaços da informalidade do trabalho e ausentes de uma participação no cenário da vida pública. A possibilidade de uma cidadania transnacional, somente pode ser realizada através de laços de pertencimento à sociedade de destino e à de origem. E pertencer implica apropriação e uso dos espaços públicos; discutir e propor, em condições de igualdade, a efetiva construção de políticas públicas multilaterais. Estas são as condições necessárias e fundamentais para uma coexistência solidária, menos folclorizada e mais política fundando assim, de fato, uma sociedade plural. Considerações Finais No contexto contemporâneo temos presenciado uma sorte de palavras e noções que, à primeira vista, podem nos levar à falsa ideia que vivemos num mundo de intensas relações. Capitais circulam de um país a outro, os meios de comunicação virtuais se expandem geograficamente, e, numa causalidade simplista, a população é vista em constantes fluxos internacionais. Os serviços técnicos e meios de transporte facilitam a circulação de diferentes fluxos, entretanto, em relação aos migrantes, o seu deslocamento está condicionado por fatores políticos e econômicos. E, ainda, é preciso alertar que, no contexto do Paraná, apesar de sua posição na região sulina, o estado que mais recebe migrantes internacionais, este fluxo é modesto numericamente. O que chama a atenção é a variedade das nacionalidades presentes e a emergência de um fluxo provindo dos países lindeiros ao Paraná. Assim, a descrição e análises feitas ao longo do artigo, buscou apresentar o panorama paranaense em relação aos fluxos migratórios contemporâneos, e, ao mesmo tempo, o território estadual como aquele que, ao longo de sua história, sediou várias correntes migratórias. Entre os diversos fluxos mais consolidados, o da 292 Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes migração europeia e japonesa do século XIX, e recentemente a entrada dos migrantes provindos da América do Sul, tema da seção 1. Entretanto, a presença deste coletivo ainda é invisível nos espaços públicos da cidade de Curitiba, local comum urbano, que possibilita a construção de uma convivência plural. Mas, observamos também, que ações de resistência, como as de organizações não governamentais tornam-se importantes elos de mediação dos migrantes com a sociedade de destino e sua inserção no país. 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A área tem 150 quilômetros de largura e 16 mil quilômetros de extensão. 35% dos municípios paranaenses estão nessa faixa de fronteira, onde vive 23% da população estadual.2 Contrariando o imaginário predominante, que vê a fronteira como uma linha no mapa, os territórios fronteiriços são regiões de forte intercâmbio: pessoas, mercadorias, e serviços atravessam as fronteiras todos os dias em ambas as direções. Os mais de 200 mil “brasiguaios” que moram no Leste do Paraguai têm parentes, amigos, negócios e bens imobiliários deste lado da fronteira. Os que retornaram, porque não acharam trabalho ou terra lá, deixaram parentes e amigos. Em Foz do Iguaçu moram muitos trabalhadores e comerciantes que dependem das lojas de Cidade do Leste para se sustentar. Muitos trabalhadores paraguaios atravessam a fronteira de semana em semana para trabalhar no serviço doméstico ou na construção civil no Brasil, ou procuram do lado brasileiro os serviços de saúde. Além disso, os criminosos de alta ou baixa periculosidade, que aproveitam dos arcabouços jurídicos, legais, políticos e sociais da fronteira trinacional, fazem parte da realidade estadual. Os índios M’bya Guarani sempre circularam pelas suas terras ancestrais, sem se preocupar com as divisas. Em outros pontos relevantes da fronteira, como Barracão no extremo oriental, cidade gêmea com Dionísio Cerqueira (Sta. Catarina) e Bernardo de Irigoyen (Misiones, AR), ou Guaíra no extremo norte, gêmea com Guayrá (PY), os intercâmbios também são permanentes. 1 Eduardo J. Vior, Dr. em Ciencias Sociales (Facultad de Filosofia y Letras – Univesidad de Buenos Aires), Dr. em Ciências Sociais (Univ. de Giessen, Alemanha, 1991), Dr. em Sociologia (UFPR, 2011), Professor do quadro efetivo de Ciência Política na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu. 2 Os dados provêm do Decreto de criação do Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira do Paraná, estabelecido pelo Governo Federal em novembro de 2011. O Núcleo, instalado pelo Ministério da Integração Nacional, integra as três esferas governamentais no planejamento e execução de ações voltadas para o desenvolvimento da região. Integram o núcleo do Paraná mais de 20 secretarias e autarquias do estado, Itaipu, Polícia Federal, Receita Federal, e o Parque Nacional do Iguaçu, além das associações de municípios da região, Fiep, Faep, Faciap, Fecomércio, Ocepar. O Núcleo está sediado no Parque Tecnológico Itaipu, em Foz do Iguaçu. 295 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas Perante essa realidade existem duas alternativas: a) mais policiamento e intervenções periódicas do Exército Brasileiro para fechar a fronteira, maior controle da Policia Militar, e mais armamento das Guardas Municipais, com as consabidas consequências para a circulação das pessoas, as relações com os países vizinhos, o comércio e a cultura: travas, perda de lucros, temor, desalento de todo tipo de iniciativas, perda de direitos, desconfiança ante a atividade do Estado, incitação à ilegalidade, e aumento da violência nas respostas dos criminosos; ou b) expansão da cidadania, ampliação dos direitos, maior compatibilidade legal e administrativa com as autoridades argentinas, garantias e segurança para a livre circulação das pessoas, bens e serviços em todas as direções, e uma crescente pressão sobre as autoridades paraguaias, para obrigá-las a aplicar normas do Estado de Direito. No presente ensaio, fundamenta-se a segunda alternativa desde três pontos de vista: 1.Como opção lógica, tendente a aumentar a coerência sistémica do Estado de Direito no Brasil e no Paraná, decorrente do desenvolvimento dos direitos humanos e dos acordos que garantem a livre circulação das pessoas no MERCOSUL. 2.Como alternativa realista, para se adaptar positivamente à realidade da crescente miscigenação das culturas na faixa de fronteira, assim como à crescente e irrefreável circulação de pessoas através das fronteiras. 3.Como alternativa utilitária, para aproveitar essa miscigenação em prol do desenvolvimento econômico, social, cultural e político do Estado do Paraná. Como o ponto nodal da problemática das fronteiras internacionais do Estado se dá na zona das Três Fronteiras3, a exposição se concentra nela, mas sem esquecer aspetos pontuais das outras zonas fronteiriças. A argumentação começa com uma breve descrição da realidade migratória na região das Três Fronteiras, e do plexo jurídico e político criado pelas sucessivas medidas multi-, bi- e nacionais adotadas pelos países fundadores do MERCOSUL para garantir a livre circulação das pessoas; continua com as obrigações de coerência e congruência que os acordos internacionais e regionais de direitos humanos geram ao Brasil – considerando especialmente os custos acarretados pela resistência do Estado brasileiro a implementa-los-, e acaba salientando a necessidade e a conveniência da sua implementação para o Estado do Paraná. Eduardo J. Vior 1.A situação das comunidades de origem imigrante nas regiões fronteiriças do Paraná e as políticas públicas que as afetam Calcula-se que na grande região das Três Fronteiras circulam cerca de 70 etnias (P. A. Gonçalves, 2008: 64). Somando as três cidades principais (Puerto Iguazú, na Argentina, Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad del Este, no Paraguai) e as cidades e povoados menores, nessa região moram por volta de 700.000 habitantes. Embora Foz do Iguaçu seja ainda a cidade mais povoada, com 256.000 habitantes, as tendências demográficas dos últimos censos de povoação na Argentina e no Brasil (ambos de 2010) demonstram um decrescimento da povoação no lado brasileiro e um crescimento nas regiões argentina e paraguaia confrontantes. Como não existem estudos recentes sobre os fluxos de população entre as três partes da região, no presente ensaio utiliza-se como base um estudo realizado em 2005 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) (Sprandel, 2008). Muitas pessoas atravessam a divisa todos os dias para trabalhar do outro lado da fronteira. São inúmeras as situações identificadas de brasileiros que vivem na Argentina ou no Paraguai e que matriculam seus filhos em escolas brasileiras, ou que procuram no Brasil serviços gratuitos de saúde. Todos esses dados apontam para uma grande circulação de pessoas entre os três países. Nos municípios argentinos e paraguaios há um predomínio de população vivendo na área rural, mais de 50%. Esse quadro se inverte nos municípios brasileiros, onde já há cerca de 80% da população vivendo em área urbana. Na região, vivem aproximadamente 13 mil indígenas (Sprandel, 2008). A população Guarani não deve ser considerada migrante, já que ela sempre foi nômade e se movimenta através das linhas geopolíticas do Mato Grosso, Paraguai e da Bolívia. Em termos da situação socioeconômica, nas atividades produtivas da região predominam a agricultura e a agroindústria. Nas áreas de serviço, obviamente se destacam Foz do Iguaçu, Puerto Iguazú e Ciudad del Este. Há a silvicultura, na qual se destacam a celulose em Misiones, a avicultura, a suinocultura e a pecuária, e há grandes centros de comércio e de turismo. É uma região de imensa diversidade e mobilização étnica e cultural. Todos estes fatores devem ser considerados ao pesquisar as políticas públicas. Percebe-se que faz parte da estratégia das famílias a utilização de várias línguas, o uso de três moedas, o entrecruzamento de traços culturais, a possibilidade de crianças e adolescentes matricularem-se na escola em um país e buscarem serviços de saúde em outro e até a dupla ou tripla documentação (Sprandel, 2008). A mão de obra itinerante a procura dos locais de safra que existem na região é muito grande. 3 Se rejeita aqui o termo “Tríplice Fronteira” pelas suas conotações ideológicas (Rabossi, 2010). 296 297 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas Tanto pelo número quanto pelas caraterísticas especiais do grupo e da sua situação, a comunidade de origem árabe de Foz do Iguaçu e Ciudad del Este merece uma consideração especial: Cabe acrescentar que a atividade laboral desses imigrantes está quase exclusivamente vinculada ao comércio e, na dinâmica da interação entre as duas cidades, muitos dos imigrantes estabeleceram seus locais comerciais em Ciudad del Este, embora muitos deles tenham fixado sua residência em Foz do Iguaçu, onde retornam uma vez finalizado o horário comercial. Não obstante, não são poucos os que residem e trabalham em uma mesma cidade. (Hillu/Montenegro, 2010: 5). Segundo dados recentes (A Gazeta, 23-10-12), só em Foz do Iguaçu moram 4.077 libaneses. Tendo em conta a crescente quantidade de membros dessa comunidade que têm adotado a cidadania brasileira ou paraguaia, e seus filhos, que para as leis de ambos os países são nacionais, a cifra mencionada aparece como muito pequena. A comunidade muçulmana na região cresceu em ondas sucessivas entre os anos 70 e 90, em parte pelas crises políticas no Meio Oriente, ou pelas possibilidades de negócios comerciais nas Três Fronteiras. Ainda que dividida entre sunitas e xiitas, é uma comunidade numerosa e rica. As contínuas campanhas de assédio da mídia e as denúncias norte-americanas de cumplicidade com o “terrorismo islâmico” obrigam à comunidade a evitar a cena pública e a atuar sigilosamente. Não obstante, a comunidade muçulmana intervém fortemente na política local e regional. Esta semiclandestinidade de uma comunidade de origem imigrante rica e potencialmente poderosa distorce a construção de cidadania e desvia a alocação de recursos municipais para negociações privadas. As redes que ela estabelece com os mandatários municipais em ambas as cidades devem ser caracterizadas como típicas “redes fechadas”. Comunidades menores, mas também poderosas, são a chinesa e a coreana. No contexto das Três Fronteiras é também importante considerar as “ilusões” de fluidez. Ou seja, em um âmbito onde se encontram grupos de imigrantes recentes que, em alguns casos, nem sequer se comunicam entre si através de uma língua franca, existe também a construção imaginária de “nichos étnicos” que se fortalecem com emblemas mais ou menos definidos. A população das Três Fronteiras se define, então, por uma ambiguidade: pela sua dinâmica migratória através das fronteiras e a hibridez das suas referências aos estados nacionais. Pode ser tratada como unidade; pelas suas construções identitárias e a falta de uma cena pública unificadora, essa população deve ser tratada como um sistema de nichos culturais, profissionais, corporativos e religiosos que somente se comunicam através das suas elites. 298 Eduardo J. Vior Para compreender a situação dos imigrantes em Foz do Iguaçu em particular, deve-se, finalmente, considerar a evolução negativa da população da cidade no período intercenso 2000-10. Nesse lapso, a cidade perdeu quase 60.000 habitantes. É a única zona urbana do Estado do Paraná que não aumentou a sua população. Existem várias interpretações não conclusivas para esse fenômeno. A mais plausível explica o decrescimento pelos maiores controles fronteiriços sobre o contrabando e sobre o trânsito dos chamados “sacoleiros”, a partir de 2005, o que teria forçado muitas famílias a sair da cidade para procurar trabalho em Maringá e em outros centros do Oeste e Centro-Sul do Paraná. Neste contexto, aumenta o peso relativo dos imigrantes, já que estes – ocupados em outros setores - não emigram. Longe do grande eixo de circulação BR-277/PY-VII, na outra “tríplice fronteira” entre Paraná, Santa Catarina e a Província Argentina de Misiones, no sudoeste do Estado, Barracão (5.000 habitantes) não tem uma grande população estrangeira, mas tem outras dificuldades decorrentes da sua estreita convivência com Dionísio Cerqueira (SC) e com a argentina Bernardo de Yrigoyen: Viver em um país e trabalhar em outro é situação comum no triângulo Barracão-Dionísio Cerqueira-Bernardo de Irigoyen. Uma parte desses trabalhadores, contudo, exerce suas funções na ilegalidade. Segundo o secretário municipal de Assistência e Promoção Social de Barracão, Emerson Duarte, estimativas dão conta de que 40% dos argentinos que vivem na cidade estão em situação irregular. Do lado argentino, calcula-se que essa proporção chegue a 30%. ‘Nós precisamos deles [argentinos] e eles precisam da gente. Esse intercâmbio é positivo e bom para a nossa economia. Porém, existem muitos que não têm interesse em regularizar sua situação’, afirma Duarte. (Gazeta do Povo, 9-12-11). Essa falta de interesse decorre em parte do complicado procedimento de solicitação do visto – ainda que para argentinos a outorga seja automática -, e em parte da opção sempre aberta para os argentinos de retornar na sua pátria. Nessas condições recomendar-se-ia, especialmente, um documento binacional que permitisse o controle das autoridades, não importa onde o trabalhador morasse. No outro extremo da fronteira paranaense, em Guaíra (30.800 habitantes), a situação resulta mais confusa, já que, localizada na fronteira com Paraguai (cidade de Salto del Guairá, 40.000 habitantes) e com Mato Grosso do Sul (cidade de Mundo Novo), tem maiores dificuldades de controle do tráfego fronteiriço por causa da facilidade para se deslocar através da margem norte do Lago de Itaipu. Assim, numa matéria recente o jornal O Paraná (27-10-12) informava o seguinte: 299 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas Já na jurisdição da Polícia Federal de Guaíra, o controle é um pouco mais complexo. Há relatos de que muitos paraguaios entram no Brasil clandestinamente, sem buscar a regularização da presença no País. Essa situação é atribuída à facilidade de travessia pelo rio Paraná, por intermédio de balsas. Ao todo são 1.006 estrangeiros em Guaíra. Do total, 256 são japoneses e 202 portugueses. Os paraguaios somam 131. Assim expostas, pode-se afirmar que as problemáticas da imigração e dos intercâmbios com os países vizinhos afetam toda a faixa fronteiriça do Paraná. Não obstante, a maior concentração se dá em Foz do Iguaçu. A imigração não é per se um problema, mas como resultado da ocorrência entre a diminuição da população brasileira na região e a progressiva maior duração da residência dos estrangeiros, precisa-se de políticas específicas. Não é que cheguem mais estrangeiros (de fato o censo 2010 demostra que a população estrangeira não aumentou sensivelmente nos dez anos anteriores). Sim, faltam estudos quantitativos sobre a duração da residência dos estrangeiros na região, sobre a sua pirâmide etária, e sobre a sua contribuição ao Produto Interno Bruto (PIB) regional. Assim como qualitativos sobre o grau de adesão dos filhos de estrangeiros nascidos na região às comunidades de origem. Só com esses dados seria possível dimensionar o peso real das comunidades de origem imigrante na faixa fronteiriça do Paraná. Ao mesmo tempo, é conhecida a intensa mobilidade transfronteiriça. Porém, não temos dados quantitativos sobre essa mobilidade e a sua significação para a economia regional nos três países envolvidos; nem qualitativos sobre as referências identitárias desses grupos: se se sentem argentinos, brasileiros ou paraguaios? Onde e como apresentam as suas demandas por direitos insatisfeitos? Com quais autoridades preferem negociar seus interesses e por quê? Nos últimos anos, os três estados envolvidos (sobre tudo a Argentina e o Brasil) estão realizando grandes esforços para harmonizar as suas políticas para a livre circulação das pessoas, e para facilitar o assentamento a ambos os lados da fronteira paranaense. Porém, esses esforços chocam com limites estruturais dos países e nas relações entre eles, assim como com preconceitos ideológicos ancorados profundamente nas mentalidades de políticos e gerenciadores, que são brevemente apresentados no apartado seguinte. 300 Eduardo J. Vior seguinte modo: a)Políticas decorrentes das decisões do MERCOSUL. b)Políticas decorrentes de acordos entre os três e/ou entre dois dos países limítrofes na região. c)Políticas nacionais, regionais ou municipais. 1.2.1.Os acordos do MERCOSUL O principal instrumento que regula a livre mobilidade da população através das fronteiras é o Acordo de Residência para Nacionais do MERCOSUL e países associados, assinado em 2002 e que entrou em vigência em 2009, depois que o Congresso do Paraguai o ratificou. A esse acordo, somaram-se, nos últimos anos, vários documentos tendentes a facilitar a circulação das pessoas através das fronteiras: o “Acuerdo para la creación de la Red de Especialistas en Seguridad Documental Migratoria del MERCOSUR y Estados Asociados” (em espanhol no original, http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4392/1/ secretaria/2012). Ao estabelecer o Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), em 2011; o Conselho dos Ministros do MERCOSUL adotou a Diretriz 4: “Garantizar que la libre circulación en el MERCOSUR sea acompañada del pleno goce de los derechos humanos”. Seu objetivo prioritário é: “Articular e implementar políticas públicas destinadas a promover el respeto de los derechos humanos y la plena integración de los migrantes y la protección de los refugiados”. (Decissão Nro. 12/11, CMC/MERCOSUL, em espanhol no original: http://www. mercosur.int/innovaportal/v/2923/1/secretaria/decisiones_2011). 1.2.As políticas públicas No âmbito da integração fronteiriça, caberia mencionar o estabelecimento de Comitês de Fronteira entre cidades lindeiras. Já existem os Comitês de Ciudad del Este/Foz de Iguaçu, Salto del GuairáGuaíra (PR)/Mundo Novo (MS), e Pedro Juan Caballero/Ponta Porã (Lessa, 2008: 74). Ainda para revitalizar a cooperação fronteiriça bilateral, foi criada a Reunião dos Prefeitos dos Municípios Brasileiros e Paraguaios Lindeiros ao Lago de Itaipu com o objetivo de aprofundar a integração fronteiriça nas áreas de turismo, educação e saúde, entre outras (Lessa 2008:75). As políticas públicas que afetam as comunidades de origem imigrante na faixa fronteiriça do Estado de Paraná podem ser classificadas do Identificou-se que os municípios da região fronteiriça, em todos os três países, têm indicadores de desenvolvimento humano baixos e que 301 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas existe, em função disso, a presença de programas dos governos argentino e brasileiro de combate à pobreza. No Paraguai, entretanto, entre 2008 e 2012, se organizaram redes de proteção social e se aplicou o Programa Nacional de Assistência Alimentar e Nutricional, mas não chegaram a se desenvolver muito e seu universo de abrangência é pequeno. 1.2.2.Os acordos bilaterais Estas políticas também atraem população. Por exemplo, agricultores brasileiros emigrados para o Paraguai vão pedir a sua aposentadoria no sistema brasileiro como trabalhadores rurais, ou a sua incorporação aos vários programas de atendimento ao idoso que o governo brasileiro oferece, ou procuram os centros de assistência social. Os funcionários brasileiros, que se deslocam para o Paraguai (em geral para lojas de Ciudad del Este) apresentam um problema especial: continuam trabalhando para o mesmo empregador, mas em uma outra empresa, depois de vários anos, ao voltar para o Brasil, acham que não têm contribuições na Previdência4 brasileira. Nesse sentido, no plano bilateral, a execução do acordo de regularização migratória Brasil-Paraguai, assinado em novembro de 2009, é uma prioridade do governo brasileiro, ante o grande número de brasileiros em situação irregular naquele país. Nos anos 70 e 80, muitos camponeses passaram a divisa com o Paraguai sem documento nenhum, obtiveram terras no Leste do país vizinho, fundaram famílias, e criaram seus filhos sem documentos ou, às vezes, registraram seus filhos com nomes e documentos diferentes tanto no Brasil quanto no Paraguai. Essa situação gera hoje inúmeros problemas que o Ministério das Relações Exteriores procura resolver através de seus consulados no Paraguai, mediante operativos de documentação5. 1.2.3.As políticas estaduais e municipais Não existem políticas municipais específicas visando às comunidades de origem imigrante; e o já assinalado caráter segmentado da cena pública em Foz do Iguaçu deixa pouca margem para a articulação política democrática das demandas por direitos dessas comunidades. As suas lideranças procuram impor os seus interesses por meio de acordos privados. Particularmente a poderosa comunidade muçulmana vive sob 4 Várias entrevistas do autor com a Juíza do Trabalho A. NogaraSlomp, em Foz do Iguaçu entre fevereiro e julho de 2012. 5 Sucessivas entrevistas do autor com o Consul brasileiro em Ciudad del Este, Embaixador J. Bonsalini, entre setembro de 2011 e abril de 2012. 302 Eduardo J. Vior o permanente temor de ser incriminada por cumplicidade com atividades de apoio ao “terrorismo islâmico”. Esse temor gera uma atitude muito reservada e uma tendência a operar sigilosamente. Nesse contexto, os mais vulneráveis são as mulheres e os paraguaios que trabalham na construção ou no emprego doméstico. Embora a legislação brasileira reconheça a esses trabalhadores direitos trabalhistas e previdências, a falta de informação e a manipulação dos intermediários fazem com que a grande maioria não esteja documentada e seja vítima de grandes injustiças. Embora faltem políticas municipais específicas visando às comunidades de origem imigrante, existem políticas setoriais (educação, saúde, planejamento urbano, transportes, e segurança) que as afetam diretamente. Sobre estas políticas se concentrará a pesquisa no futuro. 2.As obrigações de coerência e congruência que os acordos internacionais e regionais geram ao Brasil Ainda que a política seja uma prática profundamente humana, caracterizada pelas lutas de poder e os efeitos públicos delas, o conjunto de atores, práticas e instituições políticas estabelecem entre si relações regulares e repetitivas com características sistémicas, isto é, lógicas, interrelacionadas, estáveis, flexíveis e em continua adaptação às condições circundantes. Quando dois ou mais países estabelecem relações duradouras de cooperação, intercâmbio, ações e iniciativas comuns no plano internacional e dentro do próprio acordo, paulatinamente essas relações adquirem também um carácter sistémico e obrigatório para os estadospartes. No MERCOSUL, isso aconteceu com o comum rejeito ao ALCA em 2005, a cláusula democrática ajuntada ao Tratado de Assunção em 2008, e com a entrada em vigência do Acordo de Residência para Nacionais do MERCOSUL e Países Associados, em 2009. Através desses três instrumentos, o MERCOSUL se transformou num sistema regional que, embora sem supranacionalidade, tem uma lógica constringente para os estados membros e as suas unidades subnacionais. Ao mesmo tempo, os sistemas políticos da região estão submetidos a uma forte pressão adaptativa. As sociedades estão mudando aceleradamente: envelhecimento crescente, acesso de milhões de pessoas ao mercado de trabalho e de consumo, deslocamentos massivos dentro dos países e através das fronteiras, crescente individualização e massificação, surgimento de múltiplas demandas por direitos vulnerados. Os sistemas políticos precisam ampliar a esfera cidadã se pretendem 303 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas manter a sua legitimidade. Se não o fazem, ou o fazem inadequadamente, perderão representatividade e poder normativo. A corrupção e a difusão da violência são as dois consequências mais estendidas desses déficits (Vior, 2012a; 2012b). Nas regiões fronteiriças, essas carências viram escandalosas. No contexto do processo integracionista do MERCOSUL, a tendência lógica conduz à extensão da cidadania além das fronteiras, dado o caráter subjetivo do direito à cidadania desde a perspectiva intercultural dos direitos humanos aplicada nesse ensaio. Essa extensão fortaleceria a legitimidade dos estados em contato. Assim, indivíduos e grupos de nacionalidades vizinhas que traspassam a fronteira não somente teriam o direito de colocar demandas perante os estados vizinhos, mas também deveriam assumir responsabilidades dentro das respetivas ordens legais e políticas (Borja 2001, Goyhenespe 2005). Não obstante, essa tendência lógica choca com a forma nacional dos estados que impõe requisitos materiais, mas sobretudo simbólicos ao reconhecimento dos direitos cidadãos. Teoricamente, a solução para este dilema seria o estabelecimento da cidadania MERCOSUL, mas ela supõe acordos legais e, principalmente, normativos e simbólicos, que hoje estão longe de ser atingidos (Vior, 2012b; Segato 2007). Porém, a tendência nesse sentido é inelutável, dados os constrangimentos que os tratados e pactos internacionais, assim como a prática política e diplomática impõem. O Brasil tem assinado e incorporado a seu sistema legal os principais pactos internacionais de direitos humanos. Embora ainda subsista uma indefinição sobre o status constitucional deles e sobre as faculdades soberanas da Justiça brasileira, para determinar a sua aplicabilidade dentro do Direito positivo, a situação mudou radicalmente com o estabelecimento do sistema integracionista do MERCOSUL. Em efeito, como a Argentina (2004) e o Uruguai (2008) estabeleceram nas suas respectivas leis migratórias o Direito Humano à Migração, como parte de seus sistemas legais, acordo internacional nenhum que esses países assinem pode frear ou limitar a livre circulação das pessoas. Como ademais, os membros do MERCOSUL estão obrigados à livre circulação das pessoas pelo Acordo sobre Residência, e todos os membros da UNASUL têm assinado entre si acordos bilaterais, facilitando a circulação através das fronteiras, o plexo legal dos acordos internacionais adquiriu força política mediante as instituições e práticas da integração (Asa/Ceriani 2005). 304 Eduardo J. Vior O estabelecimento legal do Direito Humano à Migração tem mais duas consequências políticas: 1.Como os direitos humanos são por definição “universais, inatos, inseparáveis, inalienáveis e sistémicos” (Fornet-Betancourt 2000; Fornet-Betancourt/Sandkühler 2001; Fritzsche 2004), reconhecer o direito humano à migração de uma pessoa e/ou de um grupo implica também que o fazem na plena vigência de todos os seus direitos humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. 2.Em consequência, os estados nacionais perdem a faculdade de determinar as condições de acesso à cidadania. Esta é parte do direito subjetivo dos indivíduos e grupos a determinar onde querem exercer seus direitos políticos. O Brasil deve tomar conta dessa nova situação, mudando a sua legislação de migrações, mas também as condições do acesso à e do exercício da cidadania. No regime legal brasileiro existe uma contradição insuperável entre o Estatuto da Migração, instituído em 1980 pela ditadura sob o princípio da “segurança nacional”, e a Constituição Federal de 1988, baseada em direitos subjetivos inalienáveis (Milesi 2005; 2008; MTE 2010). O reconhecimento dessa contradição conduziu a outorgar aos servidores públicos e às instituições responsáveis pela aplicação da política migratória um enorme poder discricional que dá lugar ao surgimento de práticas corruptas. Como o sistema político está inter-relacionado, essas práticas não se limitam às relações com as comunidades de origem imigrante, mas se difundem dentro do Estado todo, generalizando a corrupção e o clientelismo. Além dos danos que sofrem os diretamente atingidos, aumenta a ineficácia do Estado e a conseguinte perda de governabilidade. 3.Consequências do aumento dos intercâmbios demográficos e econômicos através da fronteira para as políticas de livre circulação Considerando a caracterização feita acima sobre a região fronteiriça do Estado - em particular, da sub-região de Foz do Iguaçu - como uma região altamente interdependente e vinculada com os países vizinhos através das divisas internacionais, mas, ao mesmo tempo, profundamente segmentada, assim como o crescimento dos fluxos transfronteiriços de mercadorias, serviços, turistas, trabalhadores e empreiteiros, ainda que também nas redes criminais, impõe-se para a região uma política combinada de livre circulação e articulação política, econômica, social, e cultural. 305 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas Neste contexto, é preciso aclarar que livre circulação não implica perda de controles estatais. Todo o contrário: precisamente a outorga aos habitantes e aos veículos da região fronteiriça de uma identificação comum, a unificação dos controles migratórios, a interconexão dos registros de dados pessoais, impositivos, educacionais, trabalhistas, previdenciários e de saúde – para citar só alguns exemplos – não somente facilitariam o acesso das pessoas aos seus direitos, mas também dariam aos estados eficientes instrumentos de controle contra fraudes e ações ilegais. Também a organização de organismos regionais transfronteiriços para gerir o tráfego, o transporte de pessoas e de mercadorias, o tratamento de esgotos e do lixo, cuidar das águas, do ar, da flora e da fauna, assim como avançar em prol da integração energética acelerariam a unificação da região, e reduziriam os custos desses serviços para o Estado do Paraná. De igual modo, a forte segmentação étnica e cultural, já descrita, representa um grande desafio para as políticas regionais de integração. Tanto a nível estadual quanto municipal seria necessário encaminhar políticas de educação, capacitação profissional, trabalhistas, previdenciárias, para as mulheres e crianças, de hábitat e de segurança tendentes a promover a participação das comunidades de origem imigrantes na gestão pública, e a intensificar o diálogo entre as autoridades e essas comunidades6. Em suma, pode ver-se que, assim como a inter-relação da região fronteiriça com os países vizinhos e a sua segmentação interna representam um grande desafio para as políticas públicas do Estado do Paraná, elas também implicam chances para o desenvolvimento do Estado. 4. Vantagens comparativas que a região fronteiriça dá ao Estado do Paraná Na América antiga, a região do Estado do Paraná estava atravessada pelo Peabiru, a rede de caminhos que uniam o Cusco com o litoral atlântico. O Rio Paraná servia como eixo de comunicação e transporte Norte-Sul, que permitiu aos guaranis, na época imediatamente anterior à Conquista, chegar até o delta do Rio Paraná, perto da atual Buenos Aires. Durante o período colonial, a região foi segmentada, primeiro pela concentração da população indígena nas missões dos jesuítas e, depois, 6 Estas propostas estão influídas pela experiência do autor com a política migratória alemã, especialmente durante a coordenação do projeto de pesquisa “Bestandsaufnahme demokratischer Initiativen in der politischen Bildungsarbeit mit muslimischen Jugendlichen” (2004). 306 Eduardo J. Vior pelas guerras entre espanhóis e portugueses. Já no século XIX, a destruição do Paraguai na guerra de 1864-70 implicou a supressão do centro do subcontinente sul-americano e a sua exclusiva orientação na direção do Oceano Atlântico. Nessa época, surgiram as fronteiras que fragmentaram o território regional. No século XX, a necessidade de consolidar os estados nacionais, as rivalidades entre o Brasil e a Argentina, e os mitos da “segurança nacional” dificultaram ainda mais a livre circulação e o desenvolvimento regional. O fortalecimento do MERCOSUL e a construção da UNASUL podem devolver às regiões fronteiriças do Estado do Paraná seu lugar no centro do subcontinente. Em particular, a região das Três Fronteiras, entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai, poderia tornar-se um centro de transporte e logística, dado o cruzamento das vias Norte-Sul com as vias que vão do Leste ao Oeste do continente. Por isso, o fomento e a promoção da livre circulação das pessoas através das fronteiras paranaenses podem se constituir em um importante fator de desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Trata-se somente de uma mudança de perspectiva: deixar de ver a fronteira como margem do território nacional, para começar a trata-lá como centro continental. 5. Conclusões Neste ensaio, procurou-se mostrar desde uma perspectiva, ao mesmo tempo sistêmica e empírica, como os acordos internacionais e regionais sobre direitos humanos e sobre a livre circulação das pessoas, assim como a adoção do Direito Humano à Migração nas legislações argentina e uruguaia, geram dentro do MERCOSUL constrangimentos dos quais o Brasil não pode fugir, se pretende continuar pelo caminho da integração. Ao mesmo tempo, as incoerências e incongruências que a ambiguidade na matéria produz no sistema político e legal brasileiro ameaçam a sua legitimidade e governabilidade. Assim, resulta evidente a necessidade do Estado brasileiro de se adaptar às mudanças em sua composição demográfica e em seu entorno regional, assim como ao aprofundamento do processo integracionista, incorporando a sua legislação e sistema político o princípio da livre circulação das pessoas. Todavia a incorporação da livre circulação das pessoas não é somente uma obrigação constrangente que decorre do processo integracionista, mas também da realidade demográfica, econômica e social da região fronteiriça do Paraná. Não há formas de frear intercâmbios que de todos os modos vão ocorrer. Pelo contrário, para o Brasil e o Estado do Paraná é 307 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas uma opção realista se adaptar às trocas já existentes e procurar governálas junto com os países vizinhos. Finalmente, da situação geográfica da região fronteiriça do Paraná, mas também das novas oportunidades abertas pelo aprofundamento do processo integracionista, surgem magníficas perspectivas de desenvolvimento regional como centro de uma América do Sul integrada. Assim, pode se verificar a eficiência da aproximação intercultural aos direitos humanos aplicada neste ensaio como perspectiva epistemológica, para a análise de processos complexos de desenvolvimento político, e a proposta de políticas públicas de direitos humanos que simultaneamente contribuam ao desenvolvimento regional. Referências Asa, P. & Ceriani Cernadas, P. “Política migratoria en el Cono Sur: los acuerdos del MERCOSUR y la nueva ley de migraciones en Argentina”. Em: Revista beyond law, Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos (ILSA), Bogotá, p. 10-35. Borja, J. 2001. “Ciudadanía y espacio público”, en: Revista Foro Nº 40, Eds. Foro Nacional por Colombia, Bogotá, enero, p. 67-80. Fornet-Betancourt, R. (ed.) 2000. Menschenrechte im Streit zwischen Kulturpluralismus und Universalität, Frankfurt a.M. / London: IKO-Verlag für Interkulturelle Kommunikation, p. 11-22. Fornet-Betancourt, R. & Sandkühler, H.-J. 2001. 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Ministério de Trabalho e Emprego (MTE, 2010) – Conselho Nacional de Imigração. “Política Nacional de Imigração e Proteção ao(à) Trabalhador(a) Migrante”. Disponível em: http://www.mte.gov.br/politicamigrante/imigracao_proposta.pdf, 2010. NFPR. Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira do Paraná – NFPR 2012. Reunião intersecretarial. Faisal Saleh, coordenador NFPR, Foz do Iguaçu. Rabossi, F. 2010. “Unidades, Interações e Representações Fronteiriças: Notas a Partir da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina”. In: Edgar Aparecido da Costaet al. (org.). Estudos Fronteiriços. Campo Grande: Editora UFMS, p. 113-144. Segato, R. 2007. La Nación y sus otros: Raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de diversidad, Buenos Aires: Prometeo. Sprandel, M.A. 2008.Palestra em “2. 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Montenegro 2010. “As Comunidades Muçulmanas na Tríplice Fronteira: Identidades Religiosas, Contextos Locais e Fluxos Transnacionais”, Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de 2010, Porto Seguro, Bahia, disponível em: www.abant.org.br/conteudo/ ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/foruns_de_pesquisa/trabalhos/FP%2002/FP02%20As%20 308 309 Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas 310 Maria Berenice Dias IDENTIDADE, DIFERENÇA E CIDADANIA 311 Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice DIAS1 O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2010, revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. Às claras que esse número não quantifica as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, identificadas pela sigla LGBT. Em face do enorme preconceito de que são alvo, da perseguição que sofrem, da violência de que são vítimas, não há como pretender que revelassem ao recenseador a natureza de seus vínculos afetivos. Ao depois, sequer foi questionada a identidade sexual dos residentes no imóvel. Ainda que imensurável, é impossível condenar parcela da população à invisibilidade, deixando-a a margem da tutela jurídica. Desta realidade tomou consciência a Justiça quando, há mais de uma década, passou a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar. De tão reiteradas algumas decisões, direitos passaram a ser deferidos em sede administrativa, como a concessão pelo INSS de pensão por morte e auxílio reclusão; o pagamento do seguro DPVAT; e a expedição de visto de permanência ao parceiro estrangeiro. Também a inclusão do companheiro como dependente no imposto de renda e a soma do rendimento do casal para a concessão de financiamento imobiliário foi regulamentada. Como os avanços começaram, no âmbito da Justiça surgiu a necessidade de qualificar os profissionais para atender à crescente demanda deste segmento na busca de direitos. Isso levou a Ordem dos Advogados a criar Comissões da Diversidade Sexual em todos os cantos do Brasil. De outro lado, em face da falta de um sistema integrado de divulgação da jurisprudência, sempre houve enorme dificuldade de acesso às decisões de juízes e tribunais. Por isso, as Comissões assumiram o compromisso de amealhar os julgados de todas as justiças e graus de jurisdição. O resultado foi surpreendente, o que ensejou a construção de um portal2, que permitiu quantificar as quase duas mil decisões que garantem direitos no âmbito do direito das famílias, do direito sucessório e previdenciário. 1 Advogada , Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB, Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM – www. mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br 2 www.direitohomoafetivo.com.br 312 313 Um Estatuto para a diversidade sexual Lá também são noticiados os avanços na esfera da administração pública e no âmbito federal, estadual e municipal e também iniciativa privada. em vias de instalação. Além disso, foram ouvidos os movimentos sociais, que encaminharam cerca de duas centenas de propostas e sugestões. Este levantamento em muito contribuiu no julgamento do Supremo Tribunal Federal que, ao apreciar duas ações constitucionais3, reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar. A decisão, além de ter efeito vinculante e eficácia perante todos, desafiou o legislador a inserir a população LGBT no sistema jurídico. Isso porque, nunca nenhum projeto de lei ou proposta de emenda constitucional logrou ser votado – e muito menos aprovado – por qualquer das casas legislativas. Sempre prevaleceu o medo escudado em alegações de ordem religiosa, o preconceito disfarçado em proteção à sociedade. Em 23 de agosto de 2011, o Anteprojeto foi formalmente entregue ao Presidente do Conselho Federal da OAB, que o encaminhou à apreciação do Conselho Federal, sob a relatoria do Conselheiro Federal Carlos Roberto Siqueira Castro. O Relator levou-o a julgamento no dia 19 de setembro, apresentando minucioso parecer pela sua aprovação. Conclui o voto: apoiar a proposta de Emenda Constitucional e o Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual elaborado pela ilustrada Comissão Especial de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, significa contribuir em nosso País para uma histórica sublimação na disciplina jurídica aplicável às igualdades e à rejeição dos preconceitos e discriminações que infelicitam o espírito humano. Por estar convencido da oportunidade, da necessidade e da excelência do trabalho apresentado, com as mínimas ponderações de início aduzidas, voto no sentido da sua aprovação, a fim de que o mesmo, por iniciativa de nossa augusta Casa dos Advogados, possa seguir o curso da aprovação que considero justo e desejável mediante a tramitação devida junto ao Congresso Nacional. No entanto, era chegada a hora de dar um basta à hipocrisia e alguém precisava tomar a iniciativa. Ninguém mais poderia aceitar este grande desafio do que os advogados deste país. Afinal, foram os precursores de todos os avanços, provando que são mesmos indispensáveis à administração da Justiça, como reconhece a Constituição Federal. Foram eles que ousaram bater às portas do Poder Judiciário, buscando o reconhecimento de direitos inexistentes a um segmento invisível e alvo de severa discriminação. Comprometido com a construção de uma sociedade livre, igualitária e democrática, a Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil assumiu a missão quase impossível de elaborar um projeto legislativo e promover uma ampla revisão da legislação infraconstitucional. Isso pretendia assegurar os direitos que já vinham sendo reconhecidos pela jurisprudência e na esfera administrativa. Em audiência pública, realizada dia 22 de março de 2011, foi aprovada a criação da Comissão Especial da Diversidade Sexual4, integrada por profissionais que, pelas suas trajetórias de vida, gozam do respeito e do reconhecimento da comunidade científica. A eles foi delegada a difícil tarefa de consolidar um conjunto de normas e regras que servissem para aperfeiçoar o sistema legal, de modo a acolher parcela significativa da população que, injustificavelmente, se encontra alijada dos mais elementares direitos de cidadania. O Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual foi elaborado a muitas mãos. Contou com a efetiva participação das mais de 50 Comissões da Diversidade Sexual das Seccionais e Subseções da OAB, já instaladas, ou 3 ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05.05.2011. 4 Portaria 16/2011, de 15 de abril de 2001 Composição: Maria Berenice Dias (RS) – Presidenta. Integrantes: Adriana Galvão Moura Abílio (SP); Jorge Marcos Freitas (DF); Marcos Vinicius Torres Pereira (RJ) e Paulo Tavares Mariante (SP). Consultores: Daniel Sarmento (RJ); Luis Roberto Barroso (RJ); Rodrigo da Cunha Pereira (MG) e Tereza Rodrigues Vieira (SP). 314 Maria Berenice Dias Concedido prazo para emendas, foram apresentados quatro destaques, nenhum deles contrário à sua aprovação. Assim, tão logo votado, deverá ser encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, pois o Conselho Federal da OAB dispõe de legitimação ativa universal, dispensada comprovação da pertinência temática5. Deste modo, a Ordem dos Advogados do Brasil, ao elaborar o Estatuto da Diversidade Sexual – o mais arrojado anteprojeto deste século, quer pela sua abrangência, quer pelo seu significado e alcance –, mais uma vez assume o destacado compromisso que desempenhou no processo de democratização do país e em todas as demais lutas que enfrentou em defesa do Estado e do direito dos cidadãos. Emendas Constitucionais Uma vez que a Constituição prioriza o respeito à dignidade e consagra a liberdade e a igualdade como princípios fundantes de um Estado Democrático de Direito, é indispensável que, modo expresso, se vete a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero; que se assegure os direitos decorrentes da homoparentalidade e reconheça a família homoafetiva como entidade familiar. 5 Parágrafo único do art. 5º e § 2º do art. 7º do Ato nº 1/2006, que regulamenta o art. 102-E do Regimento Interno do Senado Federal, alterado pela Resolução n.º1 de 2005. 315 Um Estatuto para a diversidade sexual Como o Conselho Federal da Ordem dos Advogados não tem legitimidade para propor emendas constitucionais, em 23 de agosto de 2011, a Comissão Especial da Diversidade Sexual entregou à Senadora Marta Suplicy a proposta de alteração de sete dispositivos da Constituição Federal. Em 19 de setembro, o Conselho Federal da OAB, acolheu o voto do Relator, Conselheiro Carlos Roberto Siqueira Castro, ratificando e ampliando a proposição original de emendar a Constituição. O projeto deu origem a três Propostas de Emenda Constitucional. Uma proíbe discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive nas relações de trabalho. Outra substitui a licença-maternidade e a licença-paternidade pela licença-natalidade, a ser concedida indistintamente a qualquer dos pais. Ambas já se encontram na Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional6. A terceira proposta, que explicita a possibilidade do casamento e o reconhecimento da união estável aos vínculos homoafetivos, aguarda a colheita de assinaturas pelo, então, Deputado Federal Jean Willys. Esses são direitos que precisam constar na Carta Constitucional, sob pena de se comprometer a própria estrutura do Estado, que tem por finalidade a proteção de seus cidadãos. De todos eles. Afinal, ninguém duvida que todos são iguais perante a lei. Discriminação A Constituição Federal é cuidadosa em vetar qualquer forma de discriminação, referência que se encontra inclusive no seu preâmbulo, ao garantir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Ao identificar os objetivos fundamentais da República, a chamada Lei Maior assume o compromisso de promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. No entanto, olvidou-se o constituinte de proibir, modo expresso, discriminação em decorrência da orientação sexual ou identidade de gênero. Esta omissão gera um sistema de exclusão incompatível com os princípios democráticos de um estado igualitário, deixando número significativo de cidadãos fora do âmbito da tutela jurídica. Diante deste imperdoável silêncio, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais são reféns de toda a sorte de violência. Como não estão ao abrigo da legislação que criminaliza a discriminação, as perseguições de que são vítimas restam 6 PECs 110 e 111, de 8/11/2011. 316 Maria Berenice Dias impunes. Esta é a causa maior e a pior consequência da homofobia. Daí a indispensabilidade de inserir as expressões “orientação sexual ou identidade de gênero” no art. 3º, inc. IV7 e no art. 5º, inc. XLI8 da Constituição Federal, para deixar explícito que a população LGBT precisa ter sua identidade respeitada, bem como a necessidade de criminalizar os delitos fruto da intolerância homofóbica. A vedação de discriminação também precisa chegar ao ambiente de trabalho, como forma de dar efetividade ao princípio isonômico nas relações laborais. Assim, é necessária a alteração do inc. XXX do art. 7º da Constituição Federal9, proibindo diferenças salariais e a adoção de critérios diferenciados para a admissão e o exercício de funções laborais, em razão da identidade de gênero ou orientação sexual. Licença-natalidade Duas ordens de motivação ensejaram a proposta de acabar com o tratamento diferenciado a mães e pais. Cada vez mais se valoriza a paternidade responsável, assegurando a ambos os genitores os mesmos direitos e impondo aos dois os deveres inerentes ao poder familiar. Deste modo, é indispensável consagrar a igual responsabilidade parental. Nada justifica a concessão da licença de quatro meses para a mãe e, ao genitor, somente escassos cinco dias. Essa é a justificativa para se adotar a licençanatalidade. A exemplo da legislação de muitos países, a proposta é eliminar tanto a licença-maternidade como a licença-paternidade, assegurando, de forma indistinta, licença-natalidade, com prazo de duração de seis meses. Este é período já reconhecido para assegurar o melhor desenvolvimento da criança, que terá direito à presença de um de seus pais, da maneira que lhes seja mais conveniente. Por isso, a proposta de alteração dos incisos XVIII e XIX do art. 7ª da CF10, para assegurar licença-natalidade a qualquer 7 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais com base em raça, sexo, cor, origem, idade, orientação sexual ou identidade de gênero; 9 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação sexual, identidade de gênero, idade, cor ou estado civil; 10 CF, art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) 317 Um Estatuto para a diversidade sexual dos pais, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e oitenta dias. Durante os 15 primeiros dias após o nascimento, a adoção ou a concessão da guarda para fins de adoção, a licença-natalidade é usufruída por ambos os pais. No período subsequente, por qualquer deles, de forma não cumulativa, segundo deliberação do casal. Como o benefício independe do sexo do genitor, eliminam-se os inúmeros questionamentos que surgem frente a homoparentalidade, quando o beneficiado é um homem, ou é um casal masculino ou feminino. Cessam as dúvidas sobre a quem conceder a licença e por quanto tempo, nas hipóteses de adoção ou reconhecimento da dupla parentalidade por casais homoafetivos. A igualdade de oportunidade a ambos vem em benefício da própria família, pois se estende a todos, independentemente da orientação sexual dos pais. Outro ganho significativo é reduzir a discriminação contra as mulheres no mercado de trabalho, pois, a possibilidade da gravidez muitas vezes dificulta a inserção profissional. Casamento e união estável Por dever de justiça há que se louvar a corajosa e sensível decisão do Supremo Tribunal Federal que, em 5 de maio de 2011, à unanimidade, reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar. O histórico julgamento garantiu aos parceiros homossexuais os mesmos direitos e deveres dos companheiros das uniões estáveis. Deu ao art. 1.723 do Código Civil11 interpretação conforme a Constituição Federal, excluindo qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida como sinônimo perfeito de “família”12. Em face do efeito vinculante e eficácia erga omnes do julgado13, XVIII – licença-natalidade, concedida a qualquer dos pais, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e oitenta dias; XIX – durante os 15 dias após o nascimento, a adoção ou a concessão da guarda para fins de adoção, a licença é assegurada a ambos os pais. O período subsequente será gozado por qualquer deles, de forma não cumulada. 11 CC, art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 12 Ofício 81/P-MC, datado de 09.05.2011, expedido pelo Presidente Ministro Cezar Peluso, aos Presidentes de todos os Tribunais: Comunico a Vossa Excelência que o Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária realizada em 5 de maio de 2011, por unanimidade, reconheceu a arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como ação direta de inconstitucionalidade. Também por votação unânime julgou procedente a ação, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para dar ao art. 1723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. 13 CF, art. 102, § 2º: As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos 318 Maria Berenice Dias inúmeros juízes e tribunais passaram a admitir a conversão das uniões homoafetivas em casamento, até que o STJ14, em decisão não menos louvável e corajosa, garantiu acesso ao casamento, mediante habilitação direta perante o Registro Civil. A partir desses antecedentes, vários Tribunais estão normatizando os procedimentos – quer para o casamento direto, quer por conversão – a serem adotados pelos registros públicos, sendo dispensada a via judicial. Essas mudanças precisam ser inseridas na Constituição Federal, dando-se nova redação ao parágrafo 1º do art. 22615 , para explicitar a possibilidade do casamento civil entre duas pessoas, independente da orientação sexual16. Também é necessário substituir a equivocada referência a “homem e mulher”, constante do § 3º do mesmo art. 22617 .Assim, acabaria-se com a resistência de alguns em admitir a união estável entre duas pessoas como entidade familiar18. Somente reconhecendo a união estável e garantindo acesso ao casamento aos vínculos homoafetivos estará assegurada a extensão de todos os direitos e garantias fundamentais à população LGBT. Estatuto da diversidade sexual Para uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos, nada, absolutamente nada, justifica a omissão do sistema jurídico frente à população formada por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais. Assim, urge a aprovação de uma lei que assegure a essa significativa parcela de cidadãos o direito à vida; à integridade física e psíquica e à inclusão social. Também é indispensável o reconhecimento legal de seus vínculos afetivos o que, nada mais é do que a garantia do direito à felicidade. Um direito fundamental de todos, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero. A construção de um microssistema A técnica mais moderna de inclusão de segmentos alvo da vulnerabilidade social no âmbito da tutela jurídica é por meio da construção de microssistemas: lei temática que enfeixa princípios, normas e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. 14 STJ, REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011. 15 CF, art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º: O casamento é civil e gratuita a celebração. 16 CF, art. 226, § 1º: É admitido o casamento civil entre duas pessoas, independente da orientação sexual. 17 CF, art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 18 CF, art. 226, § 3º: É reconhecida a união estável entre duas pessoas como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 319 Um Estatuto para a diversidade sexual de conteúdo material e processual, além de dispositivos de natureza civil e penal. Essa é a estrutura do Estatuto da Diversidade Sexual, que consagra uma série de prerrogativas e direitos a homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais. É assegurado o reconhecimento das uniões homoafetivas no âmbito do Direito das Famílias, Sucessório, Previdenciário e Trabalhista. Além de criminalizar a homofobia, são apontadas políticas públicas de inclusão na tentativa de reverter tão perverso quadro de omissões e exclusões sociais. Em anexo são identificados os dispositivos da legislação infraconstitucional que precisam ser alterados, acrescentados ou suprimidos, única forma a harmonizar todo o sistema legal. Os direitos previstos no Estatuto não excluem outros que tenham sido ou venham a ser adotados no âmbito federal, estadual ou municipal e nem os decorrentes das normas constitucionais e legais vigentes no país ou oriundos dos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário. Nomes e nomenclaturas A primeira controvérsia que surgiu quando da elaboração do Anteprojeto do Estatuto foi a respeito do seu nome. As sugestões de chamá-lo de “Estatuto da Diversidade” ou “Estatuto da Igualdade” foram descartadas por não gizar que se trata da tutela de parcela específica da população. Existiram focos de resistência ao uso do vocábulo “diversidade”, que, por ressaltar o aspecto de diferença, poderia ter conotação pejorativa. No entanto, como a expressão também significa diverso, de outro jeito, conceito sem viés preconceituoso, foi a opinião que prevaleceu. Outra decisão alvo de enormes debates foi a de não definir o que seja sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e nem os sujeitos aos qual o Estatuto se destina: homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais. Além de a lei não ser o espaço adequado para trazer definições ou conceitos, estas são expressões que não dispõem de significado unívoco. Ainda assim, houve a preocupação de referir o maior número de segmentos, da forma mais explícita possível. Optou-se por falar em “homossexuais” ao invés de “gays”, estrangeirismo que, em sua origem, não identifica a orientação homossexual. Apesar de a expressão “homossexual” não dizer exclusivamente com a população masculina, a inclusão do termo “lésbicas” atendeu a antiga reivindicação para que seja assegurada mais visibilidade ao gênero feminino. Mas, como se trata de 320 Maria Berenice Dias expressão contida no termo generalizante, foi inserida em segundo lugar e não como figura na sigla LGBT. O vocábulo transgênero – originalmente utilizado para englobar transexuais e travestis – sempre ensejou muita polêmica, por serem inconfundíveis as características de duas modalidades de identidades de gênero. Apesar disso, o termo foi mantido no Estatuto por definir as pessoas que mudam transitoriamente de identidade, sendo assim identificados “drags queens e crossdressers”. A referência aos intersexuais – que antes recebiam o nome de hermafroditas – justifica-se por inexistir qualquer regulamentação ou regra protetiva a quem nasce com características sexuais indefinidas. Objeto e objetivos No seu primeiro dispositivo o Estatuto diz a que vem: promover a inclusão de todos, combater a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero e criminalizar a homofobia. Também identifica a quem visa proteger, para que lhes seja assegurado igual dignidade jurídica: heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais. A referência à heterossexualidade, no entanto, não significa que o Estatuto abriga todas as condutas sexuais e as mais diversas expressões da sexualidade, amplitude que não se comporta em uma lei que tem por justificativa a proteção da identidade homossexual e seus relacionamentos afetivos. Princípios Como toda legislação que se destina a tutelar segmento determinado exposto a alguma espécie de vulnerabilidade, exclusão ou discriminação, também neste Estatuto é indispensável a identificação dos princípios que a regem. Daí a consagração, como princípios fundamentais na interpretação e aplicação do Estatuto da Diversidade Sexual, a dignidade da pessoa humana, a igualdade e o respeito à diferença. Também são erigidos como princípios: a livre orientação sexual; o respeito à intimidade; a privacidade; a autodeterminação; e o reconhecimento da personalidade de acordo com a identidade de gênero. No âmbito das relações vivenciais são consagrados como princípios, o direito à convivência comunitária e familiar, à liberdade de constituição de família e de vínculos parentais. 321 Um Estatuto para a diversidade sexual Mas, talvez o mais significativo princípio seja o que diz respeito ao direito fundamental à felicidade. Este merece estar previsto na própria Constituição Federal, como princípio fundante do Estado, pois se trata de direito que deve ser garantido a todos os cidadãos. Além de incorporadas as normas constitucionais consagradoras de princípios, garantias e direitos fundamentais, são invocadas as normas constantes de tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil seja signatário. Expressamente é imposto respeito aos Princípios de Yogyakarta. Direito à livre orientação sexual Consagrado o direito à livre orientação sexual e identidade de gênero como direitos fundamentais, é assegurado a todos o direito de viver a plenitude de suas relações afetivas e sexuais. Em face da inviolabilidade de consciência e de crença, são proibidas práticas que obriguem alguém a revelar, renunciar, negar ou modificar sua identidade sexual. Cada um pode conduzir sua vida privada, sem pressões de qualquer ordem, garantia que alcança não só a própria pessoa, mas qualquer membro da sua família ou comunidade. Também é vedada a incitação ao ódio ou comportamentos que preguem a segregação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero, condutas que, inclusive, são criminalizadas. Direito à igualdade e a não discriminação O princípio da igualdade compreende o direito à diferença e a proibição à discriminação. Por isso, a necessidade da expressa referência à vedação de atitudes constrangedoras, intimidativas ou vexatórias que tenham por objetivo anular ou limitar direitos e prerrogativas da população LGBT. De forma exemplificativa, são identificadas como discriminatórias algumas posturas: proibir o ingresso ou a permanência em estabelecimento público ou estabelecimento privado aberto ao público; prestar atendimento seletivo ou diferenciado não previsto em lei; preterir, onerar ou impedir hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares; dificultar ou impedir locação, compra, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis; proibir expressões de afetividade em locais públicos, sendo as mesmas manifestações permitidas aos demais cidadãos. O impedimento de tais práticas, além de configurarem crime de homofobia, geram responsabilidade por danos materiais e morais. 322 Maria Berenice Dias Direito à convivência familiar Afirmado o direito à constituição da família, independente da orientação sexual ou identidade de gênero de seus membros, de forma expressa, a família homoafetiva goza da especial proteção do Estado. Como entidade familiar, faz jus, no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, a todos os direitos assegurados à união heteroafetiva,. Além de o companheiro estrangeiro ter direito à concessão de visto de permanência, é admitido o reconhecimento do casamento, da união civil e da união estável formalizados em países estrangeiros. O direito à constituição de família alcança também os vínculos homoparentais, quer individualmente, quer pelo casal homoafetivo, frente aos filhos biológicos, adotados ou socioafetivos. Como os pares, com a mesma identidade sexual, não dispõem de capacidade procriativa, é garantido acesso às técnicas de reprodução assistida por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, de forma individual ou conjunta. É expressamente admitido o uso de material genético do casal para práticas reprodutivas. Repita-se, também é assegurada a guarda, a adoção, a habilitação individual ou conjunta à adoção de crianças e adolescentes, fazendo qualquer dos pais jus à licença-natalidade, com duração de cento e oitenta dias. A licença é usufruída durante os 15 primeiros dias por ambos os pais e, no período subsequente, por qualquer deles de forma não cumulada. Quando ocorre a separação do casal, o exercício do poder familiar é garantido a ambos os genitores. Deve-se estabelecer a obrigação alimentar e assegurar o direito de convivência, com preferência pela guarda compartilhada. A proibição de os pais expulsarem de casa ou discriminarem o filho, em face de sua orientação sexual ou identidade de gênero, gera obrigação indenizatória, além da responsabilidade por abandono material quando, o filho for menor de idade. Direito à identidade de gênero A livre expressão da identidade de gênero é reconhecida a transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, que têm direito ao uso do nome social. O uso independe da realização da cirurgia de redesignação sexual ou da alteração do nome registral. Além disso, o direito à retificação do nome e da identidade sexual no Registro Civil também independe da realização da cirurgia de transgenitalização. Ainda, para a adequação do 323 Um Estatuto para a diversidade sexual sexo morfológico à identidade de gênero, é garantida a realização dos procedimentos de hormonoterapia e transgenitalização pelo Sistema Único de Saúde – SUS. Havendo indicação terapêutica de equipe médica e multidisciplinar, procedimentos complementares não cirúrgicos de adequação à identidade de gênero podem iniciar a partir dos 14 anos de idade, mas a cirurgia de redesignação sexual somente pode ser realizada a partir dos 18 anos. É vedada a realização de qualquer intervenção médico-cirúrgica de caráter irreversível para a determinação de gênero em recém-nascidos e crianças diagnosticadas como intersexuais. Em todos os espaços públicos e abertos ao público é assegurado o uso das dependências e instalações correspondentes à identidade social. O uso do nome social é garantido nos estabelecimentos de ensino, devendo constar em todos os registros acadêmicos. Igual garantia é assegurada nas relações de trabalho, devendo o nome social ser inserido na Carteira de Trabalho e nos assentamentos funcionais. Direito à saúde Faz-se necessário a capacitação de médicos, psicólogos e demais profissionais da área de saúde para atender a população LGBT. Essa ação visa impedir a utilização de instrumentos e técnicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou ações que favoreçam a patologização de comportamentos ou práticas homossexuais. Ainda, nesse sentido, são proibidas, de forma expressa, promessas de cura ou de reversão da identidade sexual, bem como ações coercitivas para que alguém se submeta a tratamentos não solicitados. A orientação sexual ou a identidade de gênero não podem ser usadas como critério para seleção de doadores de sangue, sendo proibido questionar a orientação sexual de quem se apresenta voluntariamente como doador. Maria Berenice Dias Direito à educação É proibido o uso de materiais didáticos e metodologias que reforcem a homofobia, o preconceito e a discriminação. Ainda, nessa direção, os estabelecimentos de ensino devem coibir, no ambiente escolar, a prática de bullying por orientação sexual ou identidade de gênero do aluno, ou pelo fato de pertencer a uma família homoafetiva. As atividades escolares referentes a datas comemorativas precisam atentar à multiplicidade de formações familiares, de modo a evitar qualquer constrangimento aos alunos filhos de famílias homoafetivas. Assim, os professores devem ser capacitados para uma educação inclusiva, com o objetivo de elevar a escolaridade em face da identidade sexual dos alunos ou de seus pais, com o fim de reduzir a evasão escolar. Direito ao trabalho O acesso ao mercado de trabalho é assegurado a todos, sendo vedado inibir o ingresso, proibir a admissão ou a promoção no serviço público ou privado, em função da identidade sexual do servidor. Como também é proibido demitir ou estabelecer diferenças salariais entre empregados ou servidores que ocupem o mesmo cargo e desempenhem iguais funções, em decorrência da orientação sexual ou identidade de gênero. A administração pública e a iniciativa privada devem adotar programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda, além de promover campanhas com o objetivo de elevar a qualificação profissional dos servidores e empregados travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais. Em respeito ao princípio da proporcionalidade, e visando assegurar igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, é adotado o sistema de cotas a travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, para ingresso no serviço público. Empresas e organizações privadas serão incentivadas a adotar medidas similares. Direito à moradia Direitos previdenciários São garantidos direitos previdenciários de forma universal. Às instituições de seguro ou previdência públicas ou privadas é vedado negar qualquer espécie de benefício em face da orientação sexual ou identidade de gênero do beneficiário. Do mesmo modo, os planos de saúde não podem impedir ou restringir a inscrição como dependente do cônjuge ou do companheiro homoafetivo do beneficiário. 324 Como o direito à moradia tem assento constitucional, é proibida qualquer restrição à aquisição ou à locação de imóvel em decorrência da identidade sexual do adquirente ou locatário. Também é assegurada a conjugação de rendas do casal para a concessão de financiamento habitacional na aquisição da casa própria. É afirmada a responsabilidade por dano moral da administração do imóvel ou condomínio que for omisso em inibir condutas que configurem 325 Um Estatuto para a diversidade sexual prática discriminatória nas áreas de uso comum. Acesso à justiça e à segurança As demandas, que tenham por objeto a exigibilidade dos direitos previstos no Estatuto, devem tramitar em segredo de justiça, sendo obrigatória, para fins estatísticos, a identificação da natureza das ações. As ações não criminais são de competência das Varas de Família e os recursos devem ser apreciados pelas Câmaras Especializadas de Família dos Tribunais de Justiça, onde houver. Devem ser criadas delegacias especializadas para o atendimento de denúncias por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Às vítimas de discriminação é garantida assistência, acolhimento, orientação e apoio, quando da apuração de práticas delitivas. O encarceramento no sistema prisional deve atender à identidade sexual do preso, ao qual é assegurada cela separada se houver risco à sua integridade física ou psíquica. É, também, garantida visita íntima sem qualquer diferenciação quanto à identidade sexual ou de gênero do preso. Dos meios de comunicação Os meios de comunicação de massa, como rádio, televisão, internet e redes sociais, bem como peças publicitárias, devem assegurar respeito à diversidade sexual. Não podem fazer qualquer referência de caráter preconceituoso ou discriminatório em face da população LGBT. Publicar, exibir a público, qualquer aviso, sinal, símbolo ou emblema que incite a intolerância se constitui em prática discriminatória. Maria Berenice Dias Dos delitos e das penas Ainda que significativos tenham sido os avanços no âmbito do Poder Judiciário na concessão de direitos, é indispensável previsão legal para que a homofobia seja punida criminalmente. É mais do que conhecido o princípio de que ninguém pode ser condenado pela prática de um ato sem que haja lei anterior que o defina como crime. Então, desde 2006, um projeto de lei – ora sob o nº PLC 122 – tenta criminalizar a homofobia. Apesar de ter sido aprovado na Câmara Federal, no Senado não avança. Foram apresentadas tantas alterações e emendas que o projeto restou desconfigurado. Com pena de reclusão de 2 a 5 anos, são punidas condutas discriminatórias. Como também toda manifestação que incite o ódio ou pregue a inferioridade de alguém em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. No âmbito das relações de trabalho, gera responsabilidade criminal deixar de contratar alguém, dificultar a contratação ou negar ascensão profissional a cargo ou função, motivado por preconceito de sexo. Está sujeito à mesma apenação o responsável pelo estabelecimento comercial que recusar, impedir acesso ou negar atendimento a alguém em face de sua orientação sexual ou identidade de gênero. O Estatuto cria uma agravante genérica, elevando em um terço a pena de quem praticar delitos nos quais ficar evidenciada motivação homofóbica. Além da criminalização da homofobia, é proposta a alteração de cinco dispositivos da Lei do Racismo (Lei 7.716/89), incluindo em todos os tipos penais as expressões: gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Relações de consumo Políticas públicas São práticas discriminatórias, sujeitas as sanções penais, impedir acesso a estabelecimento público ou aberto ao público, assim como impor restrições no fornecimento de bens ou prestação de serviços ao consumidor, em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Não basta a lei prever direitos. Para garantir a participação em condição de igualdade e de oportunidade na vida econômica, social, política e cultural do país, é indispensável conscientizar a sociedade da igual dignidade de heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais. Daí, então, a necessidade de adoção de uma série de políticas públicas no âmbito da administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, destinadas a conscientizar a sociedade da igual dignidade de todos, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero. Os serviços públicos e privados têm o dever de capacitar seus funcionários e empregados para evitar manifestações discriminatórias. Por isso, a imposição de 34 medidas que promovam a igualdade de oportunidades no acesso à saúde, educação, emprego e moradia, as quais 326 327 Um Estatuto para a diversidade sexual devem constar, inclusive, nos Planos Plurianuais e dos Orçamentos Anuais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Como é garantido acesso ao Sistema Único de Saúde – SUS, é indispensável o investimento em recursos humanos dos profissionais da área de saúde para acolherem a população LGBT em suas necessidades e especificidades. É imposto aos profissionais da educação o dever de abordar as questões de gênero e sexualidade sob a ótica da diversidade sexual, cabendo ao poder público promover a capacitação dos professores para uma educação inclusiva. Em face da significativa evasão escolar, se fazem necessárias ações com o objetivo de elevar a escolaridade de homossexuais, lésbicas,bissexuais, transexuais, travestis, transexuais e intersexuais. Para assegurar a igualdade de oportunidades na inserção no mercado de trabalho, é indispensável a adoção de programas de formação profissional, de emprego e geração de renda voltadas à população LGBT. Também é necessária a promoção de campanhas com o objetivo de promover a qualificação profissional de travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais. É imposta à administração pública e incentivada a iniciativa privada a adotar sistema de cotas a travestis e transexuais, transgêneros e intersexuais. Os entes federados devem estimular e facilitar a participação de organizações e movimentos sociais na composição dos conselhos constituídos para fins de aplicação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS. Também, devem ser implementadas ações de ressocialização e proteção da juventude em conflito com a lei que esteja exposta a experiências de exclusão social em face de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Os serviços públicos e privados devem capacitar seus funcionários para aprimorar a atenção e o acolhimento das pessoas, evitando qualquer manifestação de preconceito e discriminação sexual. Para garantir a integridade física, psíquica, social e jurídica da população LGBT em situação de violência, várias medidas são impostas, como: a criação de centros de referência contra a discriminação e de atendimento especializado na estrutura nas Secretarias de Segurança Pública; a capacitação e qualificação dos policiais civis e militares e dos agentes penitenciários. 328 Maria Berenice Dias Legislação infraconstitucional A discriminação que existe na sociedade sempre contagiou o legislador, o qual, além de negar-se a aprovar leis que assegurem direitos, não perde a oportunidade de carimbar a legislação com o seu preconceito. Isso se mostra nos usos das expressões “homem e mulher”, “pai e mãe”, quando trata da família. Assim, além da alteração da Constituição Federal e a consolidação dos direitos em uma única lei, são identificados os dispositivos da legislação infraconstitucional que precisam ser adequados ao novo sistema normativo. Deste modo, é proposta alteração das seguintes leis: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.656/1942); Código Civil; Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973); Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990; Lei 8.560/1992; Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943; legislação previdenciária (Lei 8.213/199 e Decreto 3.048/1999); estatutária (Lei 8.112/1990) e tributária (Decreto 3.000/1999. Também, do Código Penal; Código de Processo Penal e Lei das Execuções Penais; Lei do Racismo (Lei 7.716/1989); Código Penal Militar e o Estatuto dos Militares. As Leis 6.815/1980; 8.560/1992 e 9.029/1995 precisam ser alteradas e a Lei 11.770/1978, revogada. Referências BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 110 de novembro de 2001. Altera a redação do artigo 208 da Constituição Federal. Autor: Deputado Romero Rodrigues. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarinte gra;jsessionid=0EB725FD4A0CA58B54617B3403CB2F3E.proposicoesWeb1?codteor=9381 24&filename=PEC+110/2011. BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 111 de novembro de 2001. Altera a redação do artigo 31 da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1988, e dá outras providências. Autora: Deputada Dalva Figueiredo. Disponível em: http:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=940079&filename= PEC+111/2011. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277. Relator Ministro Ayres Brito. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=11872. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Descumprimento de Preceito Federal nº 132. Relator Ministro Ayres Brito. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/geral/ verPdfPaginado.asp?id=433816&tipo=TP&descricao=ADPF%2F132. BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/ portal/Civel_Geral/Registros_Publicos/Jurisprudencia_registros/STJ-%20REsp%20 1183378-casamento%20homoafetivo.pdf. 329 Um Estatuto para a diversidade sexual BRASÍLIA. Regimento Interno Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov. br/legislacao/regsf/RegInternoSF_Vol1.pdf e http://www.senado.gov.br/legislacao/regsf/ RegInternoSF_Vol2.pdf 330 Regina Bergamaschi Bley ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Regina Bergamaschi BLEY1 1. Introdução Pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana é o fundamento último do Estado Brasileiro. Ou seja, cabe ao Estado garantir e promover as condições assecuratórias da dignidade de todas as pessoas. Construir, portanto, uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, conforme destaca Bley e Josviak (2007p.204). O século XX constitui-se em época marcada pela ampliação de direitos, de oportunidades e de mudanças, tanto na qualidade de vida das mulheres quanto no imaginário coletivo. Devido a isso, Pinsky (2012, p.) refere-se a este período como sendo “o século das mulheres”. E diz isso em razão das transformações aceleradas que propiciou à experiência feminina. No Brasil, a partir de 1975, o movimento feminista toma impulso com grande influência do feminismo chamado de “Segunda Onda”, cujo início se deu nos anos 60, e com as ideias e debates provocados pelas mulheres exiladas políticas na Europa, que retornam ao Brasil com o processo de redemocratização. Destaca-se, na perspectiva acima mencionada, o surgimento, na França, na década de 70, de dois grupos de mulheres que, por conta de seus países estarem vivendo sob regime de ditadura, haviam sido obrigadas a deixá-los: o grupo de latino-americanas chamado de Nosotras e o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, só para citar alguns. O movimento de mulheres, assim como outros, contribuiu para a aprovação da Carta Constitucional de 1988 a qual representa, sem dúvida, um marco na defesa dos direitos das mulheres no Brasil. 1 Bióloga, professora, mestre e doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; é Diretora do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Justiça Cidadania e Direitos Humanos do Paraná, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e Gestora do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, no Estado do Paraná. 331 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Em comemoração aos 25 anos da sua promulgação, em 5 de outubro de 2013, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República publicaram nota na qual explicitam a importância da participação dos movimentos de mulheres para o processo de democratização do Brasil: encontravam impregnados na mentalidade popular portuguesa – e mesmo europeia -, cabendo à igreja metropolitana adaptar valores conhecidos das populações femininas, para um discurso com conteúdos e objetivos específicos.(...) Adestrar a mulher fazia parte do processo civilizatório, e, no Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização. (...) O outro instrumento utilizado para a domesticação da mulher foi o discurso normativo médico. (DEL PRIORE, 2009, p.23-24). No processo de luta pela restauração da democracia, o movimento de mulheres teve uma participação marcante, ao visibilizar um conjunto de reivindicações relativas ao seu processo de exclusão, assim como ao lutar pela inclusão dos direitos humanos para as mulheres.Seu marco foi a apresentação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes (1988), que indicava as demandas do movimento feminista e de mulheres. A Carta Magna de 1988 incorporou no Artigo 5°, I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. E no Artigo 226, Parágrafo 5°: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos pelo homem e pela mulher”. Esses dois artigos garantiram a condição de equidade de gênero, bem como a proteçãodos direitos humanos das mulheres pela primeira vez na República Brasileira. (PORTAL BRASIL, 2013). A autora destaca a contribuição dada pelo discurso normativo médico, ou “phisico”, sobre o funcionamento do corpo feminino, como instrumento utilizado para a domesticação da mulher, na medida em que este referendava o discurso religioso por asseverar cientificamente que a função natural da mulher era a procriação. Nesse sentido, é possível pensar, então, corroborando a ideia da autora, que a medicina aliou-se à Igreja na luta pela constituição de famílias sacramentadas, já que o médico, assim como o padre, tinha acesso à intimidade das residências, das famílias e das mulheres. Cabia à medicina dar caução à igreja, a fim de disciplinar as mulheres para o ato de procriação, reforçando a ideia de que o corpo feminino só se mostraria dentro da normalidade pretendida pela medicina quando desprovido de prazeres físicos, se revelando, dessa forma, “eficiente, útil e fecundo”. “Apenas como mãe, a mulher revelaria um corpo e uma alma saudáveis, sendo sua missão atender ao projeto fisiológico-moral dos médicos e à perspectiva sacramental da Igreja”: Isso pode nos levar a pensar que o tempo em que a identidade feminina formava-se e era formada a partir da maternidade, a exemplo do que acontecia no período colonial ou que a condição de filha, esposa, mãe, “como sendo as únicas identificações valorizadas da mulher na sociedade patriarcal e escravista”, conforme coloca Scott (2012 p.17), encontra-se muito distante. Entretanto, a despeito de todos os avanços apresentados, é fato que ainda há muito por se fazer no que diz respeito à construção de políticas públicas que garantam a condição de equidade de gênero, pressuposto básico para a justiça social. Nesse sentido, o Estado, como entidade política, tem a responsabilidade precípua de organizar, fomentar e implementar, a partir das demandas da sociedade civil, as políticas públicas que tenham esse fim.Del Priore (2009, p. 26), em sua análise a respeito do papel social da mulher no Brasil Colônia, descreve o longo processo de “domesticação” pela qual a mulher passou, com o objetivo de torná-la responsável pela casa, família, pelo casamento e pela procriação, na figura da “santa-mãezinha”. A construção dessa maternidade idealizada como um dos instrumentos de adequação da mulher à vida matrimonial, de acordo com a autora, foi um projeto desenvolvido pela igreja, como eco da Reforma Trentina, e pelo Estado: O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais foi acionado por meio de dois musculosos instrumentos de ação. O primeiro, um discurso sobre padrões ideais de comportamento, importado da Metrópole, teve nos moralistas, pregadores e confessores os seus mais eloquentes porta-vozes. Elementos para esse discurso normatizador já se 332 Regina Bergamaschi Bley Enquanto o segundo cuidava das almas, o “doutor” ocupava-se dos corpos, sobretudo no momento de partos dificultosos e doenças graves. Ao penetrar o mundo fechado de pudores, mistérios e usos tradicionais dessa espécie de terra desconhecida que era o corpo feminino, o médico interrogava a sexualidade da mulher e era também por ela interrogado. Os ciclos menstruais, a gestação, os “males da madre” eram criteriosamente cadastrados para que se sublinhassem as diferenças sexuais. O saber médico insuflava aos percursos temporais femininos uma verdadeira dramaturgia, na qual desvios, doenças e acidentes vinham sancionar os defeitos, os excessos ou a normalidade de suas fisiologias” (DEL PRIORE, 2009, p. 26). Não é por acaso que Simone de Beauvoir, em o Segundo Sexo, na tentativa clara de desconstruir os mitos criados ao longo do tempo sobre a suposta natureza perversa da mulher, o mito do amor materno e a ideia da “mulher santa” construída pela Igreja Católica, aponta para a ideia de “ser mulher” como algo construído histórica e socialmente. A sua intenção era desconstruir a tese do “instinto biológico feminino”, o que considera não um pressuposto natural imutável, mas sim uma condição culturalmente construída. 333 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Foucault, em A História da Sexualidade: a vontade de saber, faz referência ao início do século XVII, quando, segundo ele, ainda havia uma “certa franqueza” e uma tolerante familiaridade com o ilícito. Nesse período, ainda de acordo com o autor, em meio a gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, os corpos “pavoneavam”. Se até então os corpos se exprimiam sem pudores nas falas, gestos, no período vitoriano a sexualidade é encerrada, “muda-se para dentro de casa”, sendo confiscada pela família conjugal, que a absorve, integralmente, na função de reproduzir: Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõese como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais.Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (FOUCAULT,1988,p.10). Foucault fala, ainda, do processo de histerização da mulhercomo forma de repressão sexual, representando uma das mais importantes formas de poder da sociedade burguesa desde o século XVIII e destaca que - como consequência dessa patologização de seu corpo e a apropriação, pela medicina, dos seus processos reprodutivos -, se outorga aos “homens da ciência” o poder de dar a palavra final sobre a normalidade ou não da mulher, podendo, inclusive, decidir por recolher aos asilos as que porventura não se enquadrassem nos padrões de feminilidade considerados “normais”. Por outro lado, como forma de resistência ao discurso religioso, moralista e ao discurso normativo médico, os quais definiam a casa, a maternidade e a família como sendo os lugares destinados às mulheres no Brasil Colônia, “estas aproveitavam para viver a maternidade como uma revanche contra a sociedade androcêntrica e desigual nas relações entre sexos”, conforme coloca Del Priore (2006, p. 15). Na medida em que, no espaço privado da casa, a mulher se magnificada pela gravidez, parto e cuidados com os filhos, por trás da imagem da mulher ideal, unia-se aos seus filhos para resistir à solidão, à dor, e, tantas vezes, ao abandono. Além do respaldo afetivo e material, a prole permitia à mulher exercer, dentro do seu lar, um poder e uma autoridade dos quais ela raramente dispunha no mais da vida social. Identificada com um papel que lhe era culturalmente atribuído, ela valorizava-se socialmente por uma prática doméstica, quando era marginalizada por qualquer atividade na esfera pública (DEL PRIORE, 2009, p.16). 334 Regina Bergamaschi Bley Corroborando as ideias de Del Priore, Boff e Muraro (2002, p. 13), analisando a relação histórica entre o feminino e o masculino, descrevem que nas sociedades de caça iniciam-se as relações de força e o masculino, que passa a ser o gênero predominante, vem a se tornar hegemônico no período histórico – há oito mil anos -, quando destina a si o domínio público e à mulher, o privado. A relação homem-mulher passa a ser de dominação e violência, tornando-se estas a base das relações entre os grupos e entre a espécie humana e a natureza. “Então é o princípio masculino que governa o mundo sozinho”. No fim do século XX, ainda de acordo com os autores, com a segunda revolução industrial, a mulher entra para o domínio público porque o sistema competitivo “faz mais máquinas do que machos”: No início do século XXI as mulheres são praticamente 50% da força de trabalho mundial, ou seja, para cada homem que trabalha, uma mulher também trabalha.Isso, ao menos teoricamente, está fechando o ciclo da história: o ciclo patriarcal. Esta abriu-se no período histórico junto com a sociedade escravista, quando as mulheres foram reduzidas à sua função procriadora (BOFF e MURARO, 2002, p. 13). Em sua análise, Boff e Muraro, (2002, p.14) destacam que hoje as mulheres trazem para o sistema produtivo e para o Estado algo radicalmente novo. “Foi apenas o homem que se tornou competitivo, porque se destinou ao domínio público. É ela quem traz os novos/arcaicos valores simbólicos de solidariedade da família para o sistema produtivo e para o Estado. Desta forma, a entrada da mulher no domínio público masculino é condição essencial para reverter o processo de destruição”. Nessa seara, merecem destaque as diversas críticas que o movimento feminista tem feito ao patriarcado, entendendo ser este o sistema masculino de opressão das mulheres. Coerentemente, pregam a necessidade de sua eliminação para que a desigualdade entre homens e mulheres seja reduzida, e se possa criar uma sociedade mais igualitária, menos discriminatória, e, por conseguinte, mais justa. 2. O Estado e as Politicas de igualdade de gênero É fato que a sociedade brasileira, historicamente, vem lutando pela construção de uma verdadeira democracia. Isso pressupõe a igualdade de todos perante a lei, conforme garantido no texto constitucional, e justiça social. Também é fato que houve no Brasil, nos últimos anos, uma evolução no que diz respeito à conquista dos direitos e dos instrumentos de defesa das mulheres, conforme já referenciado. Exemplo disso é a Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha, que se constitui em importante instrumento jurídico 335 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES de defesa das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Os avanços obtidos, todavia, não descaracterizam a gravidade do problema social no qual a violência contra a mulher se constitui, tanto no Brasil quanto no mundo. Muito pelo contrário, o problema se traduz ainda hoje como uma das principais formas de violação dos direitos humanos da população feminina. A Organização Mundial da Saúde – OMS, já em 2011, declarou que a violência contra a mulher se alicerça em uma prioridade urgente de saúde pública. Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), ação criada pela Organização das Nações Unidas, em 2000, para reduzir os maiores problemas mundiais até o ano de 2015, estabelece como Meta de Número 3, promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher. Quanto a esta Meta, o Governo Federal destaca alguns dados, conforme seguem2: No que diz respeito ao acesso à educação, o Brasil já alcançou as metas previstas: meninas e mulheres já são maioria em todos os níveis de ensino. Entretanto, mesmo tendo havido melhorias nos indicadores, a desigualdade das mulheres em relação aos homens ainda persiste no mercado de trabalho, nos rendimentos e na política. A violência doméstica é outro fator de preocupação, na medida em que continua atingindo milhares de mulheres brasileiras. Entre 2003 e 2011, a População Economicamente Ativa (PEA) feminina cresceu 17,3%, enquanto a PEA masculina aumentou 9,7%. A participação das mulheres na PEA passou de 44,4%, em 2003, para 46,1%, em 2011. No mesmo período, as mulheres aumentaram sua participação na população ocupada, passando de 43,0% para 45,4%. Diminuíram as diferenças entre os rendimentos do trabalho. Entre 2003 e 2011, o rendimento real médio das mulheres cresceu 24,9%, variação superior à observada entre os homens. A remuneração média das mulheres passou a corresponder a 72,3% da masculina, em 2011, situação menos desigual que em 2003, quando esta proporção equivalia a 70,8%. No Paraná, a iniciativa dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio integra o Movimento Nós Podemos Paraná, coordenado pelo Sistema FIEP – Federação das Indústrias do Paraná, que, no que diz respeito à Meta 3, apresenta o seguinte panorama3: As mulheres, hoje, no Paraná, já são a maioria nas escolas e universidades e, entre os jovens, já possuem maior escolaridade. 2 Disponível em http://www.portalodm.com.br 3 Disponível em htpp://www.fiepr.org.br 336 Regina Bergamaschi Bley Entretanto, as disparidades ainda são grandes no mercado de trabalho. No emprego formal, o salário da mulher é apenas 78% do salário do homem. Entre as pessoas com 12 anos ou mais de estudo, os homens ganham, por hora, 70% a mais que as mulheres. A participação da mulher nos processos políticos também é baixa: o número de candidatas a vereadora é pouco mais do que o estabelecido por lei (20%), das quais apenas 11% se elegeram no último pleito. Em apenas 6% dos municípios paranaenses foram eleitas mulheres como Prefeitas. Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto do conjunto das desigualdades sócio-históricas e culturais herdadas, pressupõe-se que o Estado evidencie a disposição e a capacidade para redistribuir riqueza, assim como poder entre mulheres e homens, classes, raças, etnias e gerações. Para tanto, “é necessário compreender que as políticas públicas com recorte de gênero são as que reconhecem a diferença de gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam ações diferenciadas dirigidas às mulheres” (SPM, 2012). Esta configuração faz com que a mobilização, para dar maior visibilidade a este problema, passe a se tornar um compromisso social que os governos devem, necessariamente, assumir, tomando para si a responsabilidade de enfrentar a desigualdades de gênero em suas mais diversas formas de manifestação. Para isso, é imprescindível que se discuta o papel do Estado na definição e estruturação das políticas públicas em geral, e, em particular, as de igualdade de gênero, objeto do presente artigo, com vistas a contribuir para a justiça social. Referimo-nos aqui ao Estado, na perspectiva de Boneti (2011, p. 17), como sendo uma instituição não neutra. Ou seja, perpassada por valores ideológicos, éticos e culturais que apresenta, organiza, institucionaliza um conjunto de regras, normas e leis de interesse social. Entende-se, também, na perspectiva do mesmo autor, as políticas públicas como sendo as ações derivadas de um processo de construção social. Ou seja, as ações “resultantes da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e organizações da sociedade civil”. Essas relações vão determinar um conjunto de ações que serão atribuídas ao Estado. O que provoca o direcionamento ou redirecionamento de investimentos e de intervenção administrativa na realidade social (BONETI, 2011, p.18). Partindo-se dessa perspectiva, pode-se dizer, portanto, que o papel do Estado, diante das políticas públicas, é, não única, mas, precipuamente, o 337 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES de agente de organização e de institucionalização de decisões surgidas a partir do debate público, conforme bem lembra Boneti. Essa concepção de Estado e de políticas públicas compatibiliza-se com o momento histórico e a nova configuração social, perpassada não só por interesse de classes, mas também pelos interesses de vários outros segmentos constituintes da sociedade civil. Ou seja, essa concepção desconstrói a ideia funcionalista das políticas públicas pensadas exclusivamente a partir do ordenamento jurídico e/ou administrativo. Além disso, ela leva em conta a participação dos integrantes da sociedade civil como sendo agentes definidores das políticas públicas. Tomando de empréstimo as palavras de Boneti (2011, p. 17), na perspectiva acima apresentada, “é impossível se pensar como comumente se faz, o Estado e a sociedade civil como duas instituições separadas”. Se assim fosse, “as políticas se apresentariam como se se constituíssem de outorgas de direitos atribuídas à sociedade civil pela instituição estatal. Os direitos sociais e as políticas públicas, porém, se constituem, na verdade, de construções coletivas e sociais”. Como resultado de causas estruturais e historicamente construídas ao longo da vida em sociedade, a complexidade das questões que envolvem mulheres, em especial as que se encontram em situação de violência e, as causas que desencadeiam essa própria violência, assim como seu resultado, devem ser objeto de debates. Mas e principalmente de ações concretas que devem ser coletivamente pensadas e implementadas. Entendendo a violência de gênero como sinônimo de violação dos direitos humanos e com vistas a contribuir de forma mais efetiva para o respeito à dignidade da pessoa humana e, nesta perspectiva, também no enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres em suas mais diversas formas de manifestação, o Estado tem a responsabilidade de propor um repertório de ações concretas e efetivas. Para que as ações da política pública para as mulheres sejam estruturadas e implementadas, é imprescindível o esforço conjunto dos governos federal, estadual e municipais. É, da mesma forma, fundamental que a sociedade civil, em especial o movimento de mulheres e os Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Mulher, proponham, conheçam e acompanhem a execução das ações propostas. 3. A participação social na garantia dos Direitos das Mulheres A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 passa a considerar como cidadãos não somente aqueles detentores dos direitos 338 Regina Bergamaschi Bley civis e políticos, mas todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de um Estado. E deste Estado recebem uma carga de direitos (civis e políticos; sociais, econômicos e culturais) e também deveres. A Constituição Federal institui o Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fundada na harmonia social. Estabelece em seu primeiro artigo, o fortalecimento da Federação, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, declara seus princípios fundamentais e afirma a soberania popular, além de instituir o princípio da democracia participativa. Com isso, a sociedade assume um papel de co-responsabilidade na definição de leis e políticas garantidoras dos seus direitos. A Carta Magna traz um capítulo específico que trata dos direitos do homem (Direitos e Garantias Fundamentais) reunidos em 5 grupos: individuais; coletivos; sociais; de nacionalidade; políticos.Ela passou a comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com a concepção contemporânea de cidadania. Na concepção de Hannah Arendt, a essência dos direitos humanos “é o direito a ter direitos”, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Nessa perspectiva, “ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, é participar no destino da sociedade, votar, ser votado, participar da riqueza socialmente produzida, ter direito à educação, à saúde, à uma velhice tranquila” (Hannah Arendt, 2007). A participação, na visão de Gohn, passou nos anos 1990, a ser vista sob o prisma de um novo paradigma – a “participação cidadã”, baseada na universalização dos direitos sociais, na ampliação do conceito de cidadania e numa nova compreensão sobre o papel e o caráter do Estado. A partir disso, na análise da autora, a participação passa a ser concebida como intervenção social periódica e planejada, ao longo de todo o circuito de formulação e implementação nas estratégias de desenvolvimento, transformação e mudança social. Essa participação cidadã, na concepção da autora, funda-se numa concepção democrática radical que objetiva fortalecer a sociedade civil no sentido de construir ou apontar caminhos para uma nova realidade social - sem desigualdades, exclusões de qualquer natureza. Busca-se a igualdade, mas reconhece-se a diversidade cultural. Há um novo projeto emancipatório e civilizatório por detrás dessa concepção que tem como 339 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES horizonte a construção de uma sociedade democrática e sem injustiças sociais. Nessa perspectiva, com vistas a efetivação da participação social, é imprescindível que sejam garantidos os espaços de diálogo entre o Estado e a sociedade civil, tais como os conselhos, as conferências, os comitês, os canais de denúncias, dentre outros. Ao fazer referência aos conselhos, Gohn (2002, p. 103) diz que eles são importantes, pois são fruto de demandas populares e pressões pela redemocratização do país. Estão inscritos na Constituição de 1988 na qualidade de “conselhos gestores”, suas estruturas inserem-se em esferas públicas e, por força de lei, integram-se com órgãos públicos vinculados ao Poder Executivo. De acordo com a autora, eles diferem dos conselhos comunitários, populares ou de fóruns civis não-governamentais, porque estes últimos são compostos exclusivamente de representantes da sociedade civil, cujo poder reside na força da mobilização e da pressão e não possuem assento institucional no poder público. Embora reconheça a incontestável importância dos conselhos no processo de construção e de efetivação da democracia participativa no Brasil, conforme já exposto, Gohn (2002,p.25) aponta, em seus estudos, o que ela chama de “necessidades e lacunas” e destaca os seguintes pontos: (1) falta uma definição mais precisa das competências e atribuições dos conselhos gestores; (2) deve-se cuidar da elaboração de instrumentos jurídicos de apoio às suas deliberações; (3) deve haver uma definição mais precisa do que é participação. Para que tenham efetividade é necessário, ainda, na visão da autora, o aumento efetivo de recursos públicos nos orçamentos; devem ser paritários não apenas numericamente, mas também nas condições de acesso e de exercício da participação; deve-se criar algum tipo de pré-requisito mínimo para que um cidadão se torne conselheiro, principalmente no que diz respeito ao entendimento do espaço que ele vai atuar, dentre outros (GOHN, 2002, p. 107). A autora complementa dizendo que “não se trata, em absoluto, de integrá-los, incorporá-los à teia burocrática. Elas têm o direito de conhecer esta teia para poderem intervir de forma a exercitarem uma cidadania ativa e não regulada, outorgada, passiva”. 3.1. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CEDM Criado pela Lei 17.504/20134, o Conselho Estadual dos Direitos da 4 Com a publicação desta Lei, foram revogados os Decretos: n° 6.617/1985; n° 700/1995 (nos arts. 9° ao 12° 340 Regina Bergamaschi Bley Mulher integra a estrutura da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Paraná. Tem por finalidade possibilitar a participação popular, propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas de igualdade de gênero, assim como exercer a orientação normativa e consultiva sobre os direitos das mulheres no Estado do Paraná. 3.1.1. Breve histórico da criação do Conselho Estadual da Mulher no Estado do Paraná5 O Conselho Estadual da Mulher foi criado por meio do Decreto n° 6617/1985, originalmente com a denominação de Conselho Estadual da Condição Feminina. Sua finalidade é a de “assegurar melhores condições à mulher, visando o exercício pleno de seus direitos, sua participação e integração no desenvolvimento econômico, social, político e cultural”. Assumiu, por meio do Decreto n° 3.030/1997, a denominação de Conselho Estadual da Mulher do Paraná vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania – SEJU, passando, porém, a integrar a estrutura organizacional da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania - nível de Direção Superior - somente em novembro de 2003, por meio do Decreto n°. 2.085. A forma de composição do Conselho e do mandato das Conselheiras, inicialmente regulamentado no art. 32 do Decreto n° 2085/2003, foi alterada por meio do Decreto n° 2631/2004, de maneira a permitir uma recondução desta composição e nomeando efetivamente as componentes do Conselho Estadual da Mulher do Paraná com mandato de dois (02) anos. Em 2010, dois novos Decretos foram instituídos: o de n° 7626/2010, que atualizou a composição do Conselho e propôs novos requisitos para a suplência, agora com a participação da sociedade civil, bem como o mandato do Conselho; e o de n° 8940/2010, que nomeou a presidente do Conselho Estadual da Mulher. Conforme observado no documento do Ministério Público, a criação e regulamentação do Conselho foram sempre fundamentadas em Decretos. Isso contraria o texto da Constituição do Estado Paraná que, em seu Capítulo VII, artigo 219, define o então Conselho Estadual da Condição Feminina como órgão governamental instituído por lei com o objetivo de do Anexo); n° 3.030/1997; n° 604/1999; o n° 7.626/2010; e os arts. 39° ao 46° do Anexo do Decreto 5.558/2012. 5 Extraído do Documento “Análise da Legislação referente à Instituição do Conselho dos Direitos da Mulher do Paraná, elaborado pelo Ministério Público do Paraná, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais e apresentado como parte da programação da Conferência Temática, dentro do painel “CEMP/PR: história, desafios e perspectivas para sua organização e regulamentação”. 341 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES zelar pelos direitos da mulher propondo estudos, projetos, programas e iniciativas contra a discriminação da mulher, em integração com os demais órgãos do Governo, com estrutura administrativa e dotação orçamentária. Somente em 2013, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher foi, portanto, regularizado mediante a aprovação da Lei 17.504/13, conforme já mencionado. 3.1.2. Composição do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher Compõem o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDM 26 (vinte e seis) membros e respectivos suplentes, dos quais 50% (cinquenta por cento) são representantes do Poder Público e 50% (cinquenta por cento) são representantes da sociedade civil organizada. A Presidência do Conselho tem alternância em sua gestão, sendo um mandato presidido por uma representante do Poder Público e o outro por uma representante da sociedade civil organizada.A Presidente, a Vice-Presidente e a SecretáriaGeral do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDM são eleitas pela maioria qualificada do Conselho. 3.1.3. A 3ª Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres Com o tema “Mulher, Poder e Autonomia Econômica”, foi realizada em novembro de 2011 a 3ª Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres do Paraná. Deste evento, participaram aproximadamente 500 pessoas, destas 171 eram delegadas governamentais e 235 eram delegadas representantes da sociedade civil, além de autoridades, convidados e observadores. Dos 399 municípios do Estado do Paraná, 250 (63%) estiveram representados na 3a Conferência6. Na oportunidade foram aprovadas 142 propostas7, divididas em cinco eixos temáticos: (1) autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho com inclusão social: direito à terra; direito à moradia; desenvolvimento sustentável no meio rural, na floresta e na cidade; 6 SECRETARIA DE JUSTIÇA CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Final da 3a Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres. Curitiba:2011 7 Do total de propostas aprovadas na 3ª Conferência, 39 delas são relativas à busca de “autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social: direito à terra, à moradia e ao desenvolvimento sustentável”; 17 são referentes à “educação inclusiva, não sexista, não homofóbica e não lesbofóbica”; 24 propostas referemse à “saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e enfrentamento das diferenças geracionais, sociais e étnicas/raciais”; 22 propostas tratam da “participação das mulheres e espaços de poder e decisão, considerando disputa de cargos eletivos e organização de espaços de definição de políticas para as mulheres”; e 40 propostas referem-se ao “enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo a discriminação de gênero, etnia/raça, orientação sexual promovida pelo veículos de comunicação e de disseminação da cultura” ( SECRETARIA DE JUSTIÇA CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Final da 3a Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres. Curitiba:2011) 342 Regina Bergamaschi Bley (2) educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica e não lesbofóbica; (3) saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos e enfrentamento das diferenças geracionais, sociais e étnicas/raciais; (4) participação das mulheres em espaços de poder e decisão, considerando a disputa de cargos eletivos, organização de espaços de definição de políticas para as mulheres; (5) enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo a discriminação de gênero, etnia/ raça, orientação sexual promovida pelos veículos de comunicação e de disseminação da cultura. Ao final da Conferência foram eleitas 113 representantes paranaenses, sendo: 68 representantes da sociedade civil organizada, 34 dos governos municipais e 11 do governo estadual, que, na condição de delegadas, participaram da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres realizada em Brasília, em dezembro de 2011. 4. A violência contra as mulheres e as politicas públicas de enfrentamento A violência contra a mulher constitui-se em um grave problema social de grandes proporções tanto no Brasil quanto no mundo. Isso se traduz como uma das principais formas de violação dos direitos humanos da população feminina, conforme anteriormente apontado. Esta configuração faz com que a mobilização para dar maior visibilidade a este problema venha se tornando um compromisso social que os governos devem, necessariamente, assumir. Para isso, devem tomar para si a responsabilidade de enfrentar e prevenir a violência contra as mulheres em suas mais diversas formas de manifestação, razão porque dedico parte do presente Artigo à esta temática. No Brasil, o conceito de violência contra a mulher, recepcionado pela Política Nacional, é aquele estabelecido na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher8 – realizada em 1994 na cidade de Belém/PA. Seu teor enfatiza que a violência contra a mulher deve ser compreendida como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Dentro deste amplo conceito que envolve, inclusive, a diversidade de situações associadas às variadas formas de violência praticadas contra as mulheres, a Política Nacional pode ser considerada um importante avanço, pois, hoje, as ações de enfrentamento a este tipo de violência não 8 Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos estados Americanos, em 06 de junho de 1994, e ratificada pelo Brasil, em 27 de novembro de 1995. Ver mais em http://www.pge.sp.gov.br/centrodedestudos/biblioteca/ instrumentos/belem.htm 343 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES ficam restritas às áreas de segurança e assistência social, mas abarcam os diversos setores do Estado que, em ações articuladas, podem combater com maior rigor a tradicional concepção de desigualdade e discriminação de gênero e os arcaicos padrões sexistas/machistas que ainda encontram eco na sociedade brasileira, propagando a violência contra a mulher. Além da Convenção de Belém do Pará, o Brasil é, também, signatário de outras convenções e tratados internacionais, tais como: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/ ONU,1981) e a Convenção Internacional contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas (Convenção de Palermo, 2000). Na seara da Justiça este compromisso se traduz com a criação de mecanismos legais que se concretizam em ações de enfrentamento à violência contra a mulher. Um exemplo disso foi a criação da Lei nº. 11340/2006 – Lei Maria da Penha –, principal instrumento legal de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres no Brasil, cujo objetivo é o de coibir a violência doméstica e familiar e punir o agressor na forma da lei. Dada a importância da temática, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres está contemplada em um capítulo específico dentro do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Este foi elaborado a partir das propostas deliberadas na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada no ano de 2004. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, o Caderno Complementar 1: Homicídios de mulheres no Brasil, do Mapa da Violência, publicado em 20129, - resultado de uma pesquisa que trata da vitimização feminina por homicídios no Brasil, com base no Sistema de Informações de Mortalidade – SIM, do Ministério da Saúde -, aponta que, no período de 1980 a 2010, 91.932 mulheres foram vítimas de homicídio. Só no período de 2000 a 2010, 43.486 mulheres foram assassinadas. Esse estudo aponta ainda que 40% dos incidentes que originaram as lesões que levaram à morte da vítima, ocorreram dentro da residência. No Paraná, a situação não é diferente. O mesmo estudo indica uma elevada taxa de homicídios, o que o coloca na terceira posição dentre os 27 estados brasileiros analisados, conforme demonstrado na tabela abaixo. Regina Bergamaschi Bley Taxas de homicídios femininos (em 100 mil mulheres) por UF. Brasil, 2010* UF N Taxa pos. UF n Taxa pos. Espírito Santo 171 9,4 1º Amapá 16 4,8 15º Alagoas 134 8,3 2º Acre 17 4,7 16º Paraná 338 6,3 3º Sergipe 45 4,2 17º Paraíba 117 6,0 4º Rio Grande Sul 226 4,1 18º Mato Grosso Sul 74 6,0 5º Minas Gerais 393 3,9 19º Pará 225 6,0 6º Rio Grande Norte 62 3,8 20º Distrito Federal 78 5,8 7º Ceará 165 3,7 21º Bahia 399 5,6 8º Amazonas 65 3,7 22º Mato Grosso 81 5,5 9º Santa Catarina 112 3,6 23º Pernambuco 249 5,4 10º Maranhão 114 3,4 24º Tocantins 35 5,1 11º Rio de Janeiro 272 3,2 25º Goiás 157 5,1 12º São Paulo 663 3,1 26º Roraima 11 5,0 13º Piauí 41 2,6 27º Rondônia 37 4,8 14º Tabela 1 - Fonte: SIM/SVS/MS * 2010: dados preliminares O Mapa da Violência também analisou a taxa de homicídios femininos (em 100 mil mulheres) em municípios com mais de 26 mil mulheres e identificou que 7 municípios paranaenses estão entre os 60 primeiros municípios que mais homicídios. São eles: Piraquara, Araucária, Fazenda Rio Grande, Telêmaco Borba, União da Vitória, Foz do Iguaçu e Curitiba. 4.1. O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, lançado em 2007, constituiu-se em uma estratégia de gestão, prevendo, a partir de ações coordenadas e pactuadas entre os Governos Federal, Estadual e Municipal, o enfrentamento à violência contra as mulheres, no sentido de garantir a prevenção e o combate à violência, a assistência e a garantia de direitos às mulheres. Inicialmente, este Pacto foi estruturado com base em quatro eixos; em 2011, essa estrutura foi ampliada, passandose a adotar como eixos estruturantes: (1) garantia e aplicabilidade da Lei Maria da Penha; (2) ampliação e fortalecimento da rede de serviços para mulheres em situação de violência; (3) garantia da segurança cidadã e acesso à justiça, com foco na mulher encarcerada; (4) garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, enfrentamento à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; (5) garantia da autonomia das mulheres em situação de violência e ampliação de seus direitos. 9 WAISELFISZ, J.Jacobo.Mapa da Violência, Caderno Complementar 1: Homicídio de Mulheres no Brasil, São Paulo:Instituto Sangari, 2012 344 345 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES O referido Pacto parte do entendimento de que a violência constitui um fenômeno de caráter multidimensional que requer a implementação de políticas públicas amplas e articuladas nas mais diferentes esferas da vida social. Entre elas a educação, o mundo do trabalho, a saúde, a segurança pública, a assistência social, a justiça. Destaca-se que, no Paraná, esta articulação tem sido feita entre o Governo do Estado, o Tribunal de Justiça, por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar– CEVID, o Ministério Público, a Defensoria Pública e os Municípios do Estado, além de representação da sociedade civil, por meio do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher. Esta conjunção de esforços deve resultar em ações que, simultaneamente, desconstruam as desigualdades e combatam as discriminações de gênero, interfiram nos padrões sexistas/machistas ainda presentes na sociedade brasileira e promovam o empoderamento das mulheres. O Pacto em tela compreende, assim, não apenas a dimensão do combate aos efeitos da violência contra as mulheres, mas também as dimensões da prevenção, assistência, proteção e garantia dos direitos daquelas em situação de violência, bem como o combate à impunidade dos agressores. As ações nele propostas fundamentam-se em três premissas: (1) a transversalidade de gênero, que visa garantir que as questões de violência contra a mulher perpassem as diferentes políticas públicas setoriais; (2) a intersetorialidade, que compreende duas dimensões: a primeira, envolvendo o estabelecimento de parcerias entre organismos setoriais e atores em cada esfera de governo (ministérios, secretarias, coordenadorias etc.); e a segunda, que requer uma articulação mais ampla entre políticas nacionais e locais nas diferentes áreas (saúde, justiça, educação, trabalho, segurança pública etc.); (3) a capilaridade, que conduz a uma proposta de execução de uma política nacional de enfrentamento à violência contra a mulher até os níveis de governo. O Estado do Paraná assinou, em novembro de 2010, o Termo de Acordo e Cooperação Federativa para implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Esse Acordo, publicado no Diário Oficial da União No 233, Seção 3, de 7 de dezembrode 2010, e com prazo de vigência de 04 (quatro) anos, tem por objetivo manifestar a intenção dos partícipes de estabelecer um regime de colaboração mútua para execução de ações cooperadas e solidárias visando à implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres. 346 Regina Bergamaschi Bley Em 26/07/2013, o Governo do Estado do Paraná reiterou o compromisso de implementar políticas efetivas de enfrentamento à violência contra as mulheres ao repactuar, por meio de Termo de Adesão, o Acordo de Cooperação para Implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Alinhando aspectos técnicos, sociais, culturais, políticos e conceituais sobre o assunto, orientando procedimentos, construindo protocolos, normas e fluxos capazes de institucionalizar e garantir a legitimidade aos serviços prestados e às políticas implementadas, o Acordo se propôs a organizar as ações no enfrentamento à violência contra mulheres a partir de quatro áreas de atuação, a saber: a) consolidação da Política Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres e Implementação da Lei Maria da Penha; b) proteção dos direitos sexuais e reprodutivos e implementação do Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da AIDS; c) combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; e d) promoção dos direitos humanos das mulheres em situação de prisão. Para isso, criou, por meio do Decreto n° 7554/2013, a Câmara Técnica Estadual de Gestão e Monitoramento do Pacto, a qualconstitui-se em espaço de planejamento e execução das ações, dos avanços e dos desafios para a implementação do Pacto Nacional no âmbito estadual e de avaliação política do processo. No sentido de dar conta da complexidade do fenômeno da violência contra a mulher, a Câmara Técnica é marcada pela intersetorialidade, tanto no que se refere à representação de diferentes setores, como à definição de ações que incluam os diferentes atores sociais envolvidos no enfrentamento do problema. Uma das competências fundamentais desta Câmara é a constituição, fortalecimento e monitoramento da rede estadual de atendimento às mulheres em situação de violência. Em que pese os inegáveis avanços alcançados com a Lei Maria da Penha, ainda, assim, de acordo com dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, o Brasil apresenta, hoje, 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que o coloca em 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime. Isso sem contar os impactos e os custos da violência contra as mulheres em termos de resultados intangíveis,tais como: a saúde reprodutiva, a vida profissional e o bem-estar de seus filhos, conforme Estudo divulgado pelo Banco 347 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Interamericano de Desenvolvimento (BID)10. Isso nos dá a dimensão do problema e demonstra a necessidade imediata de ações públicas que contemplem as dimensões da prevenção, da assistência e do combate à violência praticada contra as mulheres. 5. Considerações finais O Estado deve ser instrumento a serviço da dignidade humana e não o contrário. Falamos aqui a partir das análises e do entendimento das políticas públicas como sendo as ações que nascem do contexto social, mas que passam pela esfera estatal como uma decisão de intervenção pública numa determinada realidade social, baseados na análise de Boneti, conforme já exposto, cabendo ao Estado, portanto, gerenciar as demandas e os interesses dos diversos agentes. Por essas razões, o princípio da dignidade da pessoa humana exige o compromisso do Poder Público e o firme repúdio a toda forma de tratamento degradante do ser humano, tais como a escravidão, a tortura, a perseguição ou o mau trato por razões de gênero, etnia, religião, orientação sexual ou qualquer outra. Quando observa-se os dados que apontam que somente na última década foram assassinadas no Brasil mais de 40 mil mulheres; o resultado do balanço de 2013, da Central de Atendimento à Mulher – Disque 180, serviço prestado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR)11 -, aponta que os autores das agressões relatadas são, em 81% dos casos, pessoas que têm ou tiveram vínculo afetivo com as vítimas; que em 2011, o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, registrou que: 37.717 mulheres, entre 20 e 59 anos, foram vítimas de algum tipo de violência no Brasil; a maioria das agressões ocorre dentro da própria residência (60,4%); o Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil, revela que mulheres com idade entre 15 e 24 anos foram as principais vítimas de homicídio na última década, pode-se ter a ideia da gravidade do problemae os desafios para o seu enfrentamento. Regina Bergamaschi Bley Esses desafios devem ser traduzidos em ações, tais como: avanços legislativos que permitam alterar as relações de trabalho entre homens e mulheres, já que a dupla jornada de trabalho das mulheres é, sem dúvida, uma das principais responsáveis pelas condições desiguais entre mulheres e homens no mundo do trabalho; estabelecimento de estratégias que objetivem a autonomia das mulheres; a ampliação dos seus direitos; o acesso à educação, à cultura, à saúde, à segurança e à justiça; a participação política. Para finalizar, lembro que Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique Independente e ex-presidente da Frente de Liberdade de Moçambique, ao falar sobre a necessidade da emancipação da mulher, durante a realização da Conferência das Mulheres Moçambicanas, em 1973, destacou que “ a emancipação da mulher não é um ato de caridade, não resulta de uma posição humanitária ou de compaixão. A libertação da mulher é uma necessidade fundamental da revolução, uma garantia da sua continuidade, uma condição de seu triunfo”. Destacou, ainda, que “a revolução tem por objetivo essencial a destruição do sistema de exploração, a construção de uma nova sociedade libertadora das potencialidades do ser humano e que o reconcilia com o trabalho, com a natureza”. E que “é dentro desse contexto que surge a questão da emancipação da mulher”. Machel era casado com Josina Muthemba, uma guerrilheira do Destacamento Feminino, criado por ele para envolver as mulheres moçambicanas na luta pela libertação. Por óbvio que o presidente Machel se referia, materialmente, à luta pela independência de Moçambique do domínio português, mas também, e fundamentalmente, falava da opressão, da exploração, do poder, da resistência. Onde há poder, há resistência, por certo diria Foucault. Passados 41 anos e com todas as inegáveis conquistas no que diz respeito à ampliação dos direitos, tão bravamente, alcançado pelos movimentos feministas, pelos movimentos de mulheres; pelo reconhecido avanço em direção à ampliação dos direitos das mulheres consagrados e garantidos na e pela Constituição Federal de 1988, não se pode deixar de perceber o quanto o discurso feito por Machel, durante aquela Conferência, ainda é atual. 10 O estudo mostra a violência doméstica afetando importantes resultados na saúde das crianças cujas mães sofreram violência. Também apresenta evidências que apontam que a educação e a idade das mulheres podem reduzir o efeito negativo da violência doméstica nos resultados de saúde dos seus filhos, dentre outras coisas. Demonstra que as próprias vítimas da violência apresentam níveis mais baixos de hemoglobina e uma maior incidência de anemia. Disponível em inglês no site do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID http:// www.iadb.org/ ou em pdf: Causal Estimates of Intangible Costs of violence against women in Latin America and the Caribbean, por Jorge M. Agüero (BID, 2013). 11 Disponível em www.spm.gov.br. 348 349 ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Referências ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 2007, 568p. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 2009, 936p. BLEY, Regina; JOSVIAK, Mariane. Programa de aprendizagem para o adolescente em conflito com a lei. In: ARAÚJO, Adriane Reis e FONTENELE-MOURÃO, Tânia. Trabalho de mulher: mitos, riscos e transformações. São Paulo: LTr, 2007, 245p. BONETI, Lindomar W. Políticas públicas por dentro.3 ed.rev.Ijuí: Ed. Unijuí,2011,104p. DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009, 304p. FOUCAULT, Michel. 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PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.555p. RODRIGUES, Maria de Lourdes Alves. Formação de conselheiros em direitos humanos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007. 140p. MACHEL, Samora; LAFARGUE,Paul; KOLLONTAI, Alexandra; KAPO,Vito; CHING-LING,Soon; THI TU, Mai; POSADAS,J. A libertação da mulher. São Paulo: Global Editora, 1980, 142p. SCOTT, Ana Silvia. O Caleidoscópio dos arranjos familiares. In: PINSKY, Carla Bassanezi. PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.15-42p. WAISELFISZ, J.Jacobo. Mapa da violência, Caderno Complementar 1: Homicídio de Mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2012. ________. Mapa da violência 2013. Homicídios e juventude no Brasil. Secretaria-Geral da Presidência da República, Brasília, 2013, 98p. 350 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS Giovanna Bonilha MILANO1 José Antônio Peres GEDIEL2 A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, encerra o ciclo ditatorial iniciado em 1964 e contém princípios que visam à superação de problemas há muitos vividos pela sociedade brasileira. Entre eles, pode-se citar, o racismo e a discriminação racial, principalmente em relação aos negros descendentes de trabalhadores africanos submetidos ao regime de escravidão. Esse propósito constitucional se traduz em regras que dão prioridade aos direitos fundamentais de cunho individual e social previstos nos incisos do artigo 5º, dispostos no Título II dessa Constituição, todos de observância obrigatória pelo Estado, pela sociedade e suas instituições, e pelos indivíduos. Nessa perspectiva, a Constituição busca enfrentar, com instrumentos normativos, questões sociais que resultam em opressões específicas e desigualdades estruturais e que dificultam a efetivação da igualdade material e a plena fruição dos direitos fundamentais. Assim, a proibição e a busca de superação de qualquer forma de preconceito - seja ele de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação encontra-se entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, IV), e o racismo é previsto como crime inafiançável (art. 5º, XLII). A Constituição de 1988 provoca, nessa matéria, uma verdadeira ruptura com as Constituições anteriores ao expressar com clareza a existência dessas questões, ao combater o racismo e a discriminação e ao articular a igualdade racial com os demais objetivos da República com os direitos fundamentais individuais e coletivos, econômicos sociais e culturais. O caráter compromissório da Constituição já se fazia antever nas propostas retiradas dos movimentos sociais, no que toca à igualdade racial, elaboradas pelos movimentos negros, conforme registros da 1 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Professora de Direito Civil da Universidade Positivo. 2 Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná. 351 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS Assembleia Constituinte: 1-Insere, onde couber, no Capítulo I (Dos Direitos Individuais), do Título II (Dos Direitos e Liberdades Fundamentais), os seguintes dispositivos: Art. Todos, homens e mulheres são iguais perante a lei que punirá como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos humanos estabelecidos nesta Constituição. Parágrafo Único — É considerado forma de discriminação subestimar, estereotipar ou degradar grupos étnicos raciais ou de cor, ou pessoas a eles pertencentes por palavras, imagens e representações através de qualquer meio de comunicação. 2- Acrescente, onde couber, no Título X (Disposições Transitórias), o seguinte artigo: Art. Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes de Quilombos, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem como documentos referentes à história dos Quilombos no Brasil.3 Para a Constituição de 1988, a concretização da igualdade racial tem como ponto de partida a proibição de todas as formas de preconceito e discriminação, mas exige o compromisso de, por parte do Estado e da sociedade, ampliar as políticas públicas e as estratégias,para permitir o acesso diferenciado dos negros à cidadania plena e aos direitos fundamentais, como saúde, educação, trabalho, moradia e terra. Em virtude da indissociabilidade e interpenetração dos conteúdos de todas as dimensões dos direitos fundamentais, a efetivação da igualdade racial requer, também, o acesso a bens de cunho imaterial e material. Isso se traduz, no caso dos quilombolas -portadores de uma identidade não somente cultural mas também econômica e socioambiental - no direito ao acesso e manutenção da terra e de seus modos de vida. Débora Duprat afirma o caráter diferenciado da Constituição brasileira sobre esse tema: A Constituição brasileira, na linha do direito internacional, rompe a presunção positivista de um mundo preexistente e fixo, assumindo que fazer, criar e viver se dão de formas diferentes em cada cultura, e que a compreensão do mundo depende da linguagem do grupo. Nesse cenário, a Constituição reconhece, expressamente, direitos específicos a índios e quilombolas, em especial seus territórios, mas não só a eles. Também são destinatários de direitos específicos os demais grupos que tenham formas próprias de expressão de viver, criar e fazer.4 Nessa mesma linha de entendimento, situa-se a reflexão de Flávia Piovesan, ao explicitar a mudança operada na Constituição Federal de 3 BRASIL: Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 1987. Disponível em www.senado.gov.br. p. 2865. 4 DUPRAT, Deborah. O Direito sob o Marco da Plurietnicidade/Multiculturalidade. In: RAMOS, Alcida Rita (org.) Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 232-233. 352 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel 1988, com relação aos direitos fundamentais e aos diferentes sujeitos destinatários desses direitos, na sociedade contemporânea: Com efeito, torna-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Os povos indígenas, as mulheres, as crianças, as populações afrodescendentes, os migrantes, as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e a à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. [...] À luz de uma interpretação evolutiva e dinâmica, a Corte tem reconhecido aos povos indígenas e às comunidades integradas por descendentes de escravos negros (em tudo similares aos remanescentes de quilombo brasileiros) o direito à propriedade coletiva da terra, como uma tradição comunitária e como um direito fundamental à sua cultura, à sua vida espiritual, à sua integridade e à sua sobrevivência econômica. Tem ainda realçado que para estes povos a relação com a terra não é somente uma questão de possessão e produção, mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras.5 Sem essa compreensão do caráter compromissório e finalístíco da Constituição, a igualdade racial, a identidade cultural dos sujeitos discriminados e o direito de acesso aos bens socialmente produzidos, ficam reduzidos ou são ineficazes. No que se refere especificamente às terras quilombolas, o texto sofreu inúmeras modificações e foi aprovado com um conteúdo que dificulta sua conexão com os direitos fundamentais e sugere interpretações de cunho meramente histórico ou patrimonial, como se lê no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos6. Além desse dispositivo, os aspectos culturais das comunidades quilombolas são tratados no artigo 216, § 5º, Seção II, Capítulo III, Título VIII, que se refere ao tombamento dos documentos referentes à história 5 BRASIL. Procuradoria Geral da República. Do Parecer na ADI nº 3.239 da lavra do Procurador Regional da República Daniel Sarmento e da Professora Flávia Piovesan, no intuito de contribuir para o julgamento do tema veiculado na mencionada ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2227157. 6 Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. BRASIL, Constituição da República Federativa de 1988 — Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 68. É possível citar alguns outros países nos quais também houve o reconhecimento de direitos territoriais a estes sujeitos, com destaque para a Colômbia (Constituição Política de 1991, Art. 55); Nicarágua (Lei n.º445/2002) e Equador (Constituição Política de 1998, Art. 83). 353 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS dos quilombos no Brasil7. Conforme apontado anteriormente,o tratamento da matéria referente às terras quilombolas destoa do tratamento adotado em relação aos fundamentos da República e aos direitos fundamentais, como expõe Ilka Boaventura Leite,ao criticar a expressão “remanescentes das comunidades de quilombos”.Segundo a autora,esta terminologia reduz o alcance de aplicação do texto constitucional, tornando-o restritivo e impedindo-o de servir para reparar o processo de cidadania incompleto, que incluiria uma diversidade de situações relacionadas aos negros, para restringir-se a uma concepção de cultura imobilizada, estanque e excessivamente vinculada a um fenômeno pretérito8. A superação da visão imobilista, falsamente comprometida com a recuperação do caráter histórico das comunidades quilombolas, requer a compreensão da permanência dessas comunidades e sua inserção na sociedade brasileira como destinatárias dos direitos fundamentais e humanos, tal qual aponta Alfredo Wagner: O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento da ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações e práticas dos próprios agentes sociais que viveram e construíram tais situações em meio a antagonismos e violências extremas. A meu ver, o ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas com os grupos sociais e as agências com que interagem. Esse dado de como os grupos sociais chamados ‘remanescentes’ se definem é elementar, porquanto foi por essa via que se construiu e afirmou a identidade coletiva.9 Além das controvérsias e ambiguidades intrínsecas ao processo de elaboração constituinte que marcaram a aprovação do artigo 68 do ADCT, o texto final imprimiu caráter normativo a um conjunto de demandas e tem enfrentado várias espécies de dificuldades em sua implementação: 7 Art 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV — as obras, objetos,documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (...) §5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. (...) BRASIL, Constituição da República Federativa de 1988 —Art. 216. 8 LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. p. Artigo publicado no sítio eletrônico do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas — NUER/UFSC. Disponível no endereço http://www.nuer.ufsc.br/artigos/osquilombos.htm, Acesso em 07/10/2010. 9 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 67-68. 354 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel Mesmo levando em consideração que esse poder está efetivamente expresso em uma forma legal, ou nessa linguagem de poder, existem enormes dificuldades na implementação de arranjos legais dessa ordem, especialmente nas sociedades autoritárias e naquelas que se fundam no colonialismo e no escravismo, como é o caso do Brasil. Nos últimos quinze anos, desde a promulgação da Constituição Federal, ações isoladas e relativamente dispersas prevaleceram, com foco em fatores étnicos, mas sob a égide de outras políticas governamentais, tais como as políticas agrárias e as políticas de educação, saúde, moradia e segurança alimentar.10 Alfredo Wagner também indica outros obstáculos ao reconhecimento da titularidade das terras aos quilombolas e a outros povos e comunidades, como a fragmentação e inadequação, ou o caráter muito recente das estruturas administrativas, obstáculos que aproximam, em certa medida, a situação pós Constituição de 1988 com o período anterior, no que diz respeito à titulação de terras tradicionalmente ocupadas, especialmente as terras indígenas. Além de todos esses empecilhos à aplicação do artigo 68 do ADCT, somente em 1995 foi aprovado o primeiro ato administrativo normativo destinado ao tratamento da questão territorial quilombola: a Portaria n.º25 editada pela Fundação Cultural Palmares11, que contém normas procedimentais para demarcação e titulação das áreas de terras ocupadas por comunidades quilombolas12. Nesse mesmo ano, a Portaria n. º307/9513 foi editada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA -, estabelecendo os procedimentos de medição, demarcação e titulação das comunidades quilombolas localizadas em áreas públicas federais, além dispor sobre a criação do Projeto Especial Quilombola. Essa Portaria foi revogada pela décima primeira edição da Medida Provisória n.º 1911/99,que delegou ao Ministério da Cultura a competência para realizar as titulações dos quilombos. Essas alterações de atribuição de competência administrativa nessa matéria comprovam as observações de Alfredo Wagner, no que tange a atuação do Estado brasileiro no reconhecimento e regularização das 10. Even taking into account that power is effectively expressed under a legal form or that language of power is the law, there are enormous difficulties in the implementation of legal arrangements of this order, especially in authoritarian societies and those with colonial and slaveholding foundations, such as in the case of Brazil. Over the past fifteen year, since the promulgation of the Federal Constitution, isolated and relatively dispersed actions have prevailed, which focus on ethnic factors but under the aegis of other government policies, such as agrarian policies and the policies of education, health, housing, and food security. Texto traduzido pelos autores. P. 34. 11 Refere-se à Portaria n.º 25, datada de 15 de agosto de 1995 e editada pela Fundação Cultural Palmares vinculada ao Ministério da Cultura. 12 Para o aprofundamento sobre o processo de consolidação do marco jurídico de reconhecimento dos territórios quilombolas, consultar: MILANO, Giovanna Bonilha. Território, Cultura e Propriedade Privada: direitos territoriais quilombolas no Brasil. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2011. 13 Corresponde à Portaria n.º307 de 22 de novembro de 1995, editada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária — INCRA. 355 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS terras quilombolas. Em 2000, doze anos após a promulgação da Constituição Federal, a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, realizou inúmeras titulações de territórios quilombolas,mas apenas em áreas não tituladas classificadas como terras devolutas da União ou dos Estados. Sem, contudo, realizar qualquer desapropriação de áreas privadas, anulação de títulos, ou desocupação nas áreas afetadas. Conforme avaliação apresentada pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, o resultado dessas medidas foi o acirramento dos conflitos em quase todas as comunidades “beneficiadas”, ensejando posterior intervenção do INCRA para o cumprimento das desapropriações e assentamentos devidos14. Com a edição do Decreto Federal n.º 3.912/2001, foi ratificada a competência da Fundação Cultural Palmares para atuar em todo o processo administrativo de identificação e titulação dos remanescentes das comunidades de quilombos, e se estabeleceram restrições às hipóteses de aplicação do artigo constitucional.Segundo o artigo 1º, Parágrafo único, do referido Decreto “só pode ser reconhecida a propriedade sobre as terras que: I — eram ocupadas por quilombos em 1888, e II — estavam ocupadas por remanescentes de comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988”15. Manifestamente inconstitucional, o marco regulatório proposto pelo Governo Federal acabava por impor às comunidades remanescentes de quilombos critérios de temporalidade absolutamente incongruentes com as dinâmicas de ocupação territorial experimentadas, historicamente, por estes sujeitos. Isto porque adotou, como exigências normativas para comprovação da ocupação, duas datas arbitrárias, correspondentes a mudanças jurídicas do Estado brasileiro, a abolição da escravidão e a promulgação constitucional. Esse mesmo argumento, absolutamente inconstitucional, que não encontra qualquer ponto de referência no artigo 68 do ADCT/CF, foi estranhamente retomado no voto do Ministro Antonio Cezar Peluso do Supremo Tribunal Federal16. 14 Os dados disponíveis no sítio eletrônico da Comissão Pró-Índio de São Paulo informam que dez das doze comunidades “beneficiadas” nesse “pacote” de titulações, realizado pela Fundação Cultural Palmares, no ano 2000, ainda sofrem com conflitos de terras e não têm acesso livre aos recursos naturais dos territórios que ocupam. Disponível em http://www.cpisp.org.br/htm/leis/legislacao_federal.aspx?LinkID=54 Acesso em 25/10/2010. 15 BRASIL. Decreto n.º3.921, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. 16 BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239. Relator Ministro Cezar Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&pro cesso=3239. 356 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel Em sentido contrário, Marcelo Beckhausen argumenta que a expressão “estejam ocupando”, utilizada pelo artigo 68 do ADCT/CF, não excluiu, sob nenhuma interpretação, àquelas comunidades que foram submetidas a um processo de espoliação de suas terras e compulsoriamente tiveram de efetuar a desocupação desses espaços, porque tal direito quilombola diz respeito justamente a processos de ocupação territorial constituídos a partir da resistência coletiva e da construção identitária moldada nos conflitos travados historicamente e que encontram na luta pela terra um fator relevante de disputa17. Assim, a comprovação de permanência nas terras se mostra inconstitucional ao restringir direitos constitucionalmente assegurados. Walter Claudius Rothenburg ataca o conteúdo do Decreto, nos seguintes termos: O equívoco no decreto aqui é evidente e não consegue salvar-se nem com a melhor das boas vontades. Do ponto de vista histórico, sustenta-se a formação de quilombos ainda após a abolição formal da escravatura, por (agora) ex-escravos (e talvez não apenas por estes) que não tinham para onde ir ou não desejavam ir para outro lugar. Então as terras em questão podem ter sido ocupadas por quilombolas depois de 1888. Ademais, várias razões poderiam levar a que terras de quilombos se encontrassem, em 1888, ocasionalmente desocupadas. Imagine-se um quilombo anterior a 1888 que, por violência de latifundiários da região, houvesse sido desocupado temporariamente em 1888 mas voltasse a ser ocupada logo em seguida (digamos, em 1889), quando a violência cessasse. Então as terras em questão podem não ter estado ocupadas por quilombolas em 188818. Como consequência do tratamento jurídico restritivo dispensado aos territórios quilombolas, por meio do Decreto 3.912/2001, deu-se a estagnação completa no processo de regularização fundiária das áreas, fato perceptível pela ausência absoluta de titulações no período de vigência do instrumento. Tal situação prolongou-se até o ano de 2003, com a inauguração de um novo marco jurídico, o Decreto Federal n.º 4.887/03. Destaque-se que a eliminação das exigências temporais para ocupação das terras e, sobretudo, a conceituação dos sujeitos quilombolas, destinatários da norma, em consonância com as advertências 17 BECKHAUSEN, Marcelo A inconstitucionalidade do Decreto 3912, de 10 de setembro de 2001. p.22-23 In DUPRAT, Deborah. (Org.) Pareceres Jurídicos — Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais. Manaus: UEA, 2007. 18 ROTHENBURG, Walter Claudius. O processo administrativo relativo às terras de quilombos: análise do Decreto n° 3.912, de 10 de setembro de 2001. In Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão pró Índio de São Paulo, 2001. p. 18-19. 357 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS antropológicas, com os critérios dispostos na Convenção n. º169 da OIT, alinha o marco normativo brasileiro e com a dinâmica da realidade concreta, que sustenta a aplicação do artigo constitucional. Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade19. As questões dos sujeitos beneficiários das políticas públicas de afirmação de direitos territoriais são reflexo e se refletem sobre a sociedade e as instituições estatais. Mas podem ser superadas se o Estado brasileiro, em especial o Poder Judiciário, levar a sério as disposições contidas tanto no Decreto 4.887/2003, quanto na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho - OIT20 - aprovada, em 1989, que trata de diversos aspectos dos direitos dos povos, como ressalta Alfredo Wagner: O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios sujeitos se autor-representam e quais os critérios políticos organizativos que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produtos de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da atividade coletiva e das categorias sobre as quais ela se apoia.”21 Destaque-se que essa Convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro no ano de 2004 e deslocou o eixo da discussão, ao utilizar a autoidentidade dos povos como critério fundamental na delimitação da 19 BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 20 Em que pese a inquestionável relevância desse dispositivo internacional para o tratamento jurídico relativo aos povos indígenas e tribais, não é possível deixar de pontuar o fato da iniciativa de sua edição estar vinculada à um organismo internacional que se ocupa originalmente com as relações de trabalho na sociedade industrial.Criada em 1919, a Organização Internacional do Trabalho corresponde a uma Agência do Sistema das Nações Unidas e possui como objetivos estratégicos: “formular normas internacionais do trabalho; promover o desenvolvimento e a interação das organizações de empregadores e de trabalhadores e prestar cooperação técnica principalmente nas áreas de formação e reabilitação profissional; políticas e programas de emprego e empreendedorismo; administração do trabalho; direito e relações do trabalho; condições de trabalho; desenvolvimento empresarial; cooperativas; previdência social; estatísticas e segurança e saúde ocupacional”.Cf. dados do sítio oficial da OIT no Brasil. Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/inst/fund/mandato/index.php Acesso em 22/10/2010. 21 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 67-68. 358 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel inclusão ou exclusão dos grupos, em relação à determinada classificação para fins de políticas públicas que favoreçam a efetivação de direitos fundamentais. Isso significa, em outras palavras, que “nenhum estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou tribal que como tal ele próprio se reconheça”22. A validade jurídica atribuída ao autorreconhecimento, pela Convenção 169 da OIT, altera o norte não só do direito de acesso à terra de povos, comunidades e grupos sociais, mas toda a condução das políticas de igualdade racial e de afirmação de pluralismo. Dalmo Dallari aponta a necessidade de se integrar, efetivamente, a Convenção nº 169 da OIT ao direito brasileiro e indica elementos doutrinários para sua integração: Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos. [...] Além dessa base legal para o decreto regulamentador, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra a legislação brasileira desde 1992, determina que os Estados signatários, entre os quais o Brasil, adotem todas as providências necessárias para a eficácia daqueles direitos. Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos. E foi justamente para a garantia efetiva dos direitos individuais e sociais dos quilombolas que o governo federal editou o decreto n 4887, de 2003, que deve ter aplicação imediata, garantindo-se a supremacia e a eficácia da Constituição.23 Apesar da fragmentação e imobilismo administrativo assinalados por Alfredo Wagner, o Governo Federal altera o quadro normativo com a edição do Decreto 4.887, em 2003, antevendo a ratificação da Convenção nº 169 da OIT em 2004, e estabelecendo o retorno da competência para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras de remanescentes de comunidades de quilombos ao Ministério do Desenvolvimento Agrário — por meio do INCRA. Caberá ao Ministério da Cultura e à Fundação Cultural Palmares acompanhar os processos e 22 Convenção n.º169 sobre os povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à OIT sobre povos indígenas e tribais. 2ª ed. Brasília: OIT, 2005. p. 11. A Convenção refere-se explicitamente ao critério do autorreconhecimento em seu artigo 1º: “2. A autoidentificação como indígenas ou tribais deverá ser considerada como critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.” 23 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Orgs); LEITE, Eliane Cantarino O ‘Dwuer. Territórios quilombolas e conflitos. Cadernos de debates Nova Cartografia Social, vol. 01, nº 02. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições, 2010. p. 313-314. 359 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS intervir, nos casos em que houver contestação ao procedimento, por meio de subsídio técnico, resultou em um avanço favorável aos direitos das comunidades quilombolas24. No que diz respeito à conceituação das terras que devem ser tituladas, abrangeu-se, corretamente, não apenas o local de moradia dos membros da comunidade, mas todo o espaço utilizado para a “garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”, determinando-se a demarcação, a partir dos critérios de territorialidade indicados pelos próprios sujeitos quilombolas25. Em relação a forma de titulação da terra em favor dessas comunidades, determina-se a emissão de títulos coletivos, pró-indivisos, gravados das cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, em nome das comunidades que deverão estar devidamente representadas por uma associação. Diante da possibilidade da alteração de uma interpretação favorável às comunidades quilombolas, interpretação essa baseada nos instrumentos normativos recém reeditados e aprovados, novas investidas foram feitas para desconstruir qualquer avanço nessa matéria. Sendo a mais representativa, o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 3.239, pelo Partido da Frente Liberal (PFL)26, no dia 25 de agosto de 2004, em face do decreto nº 4.887/03, com pedido de concessão de medida cautelar para suspensão imediata da eficácia do instrumento, sob a alegação de existência de risco de dano iminente à segurança jurídica. Dentre os argumentos apresentados pelo autor, merecem destaque, neste contexto, àqueles que ilustram mais significativamente o campo de disputas e interesses que orbitam em torno da categoria política “quilombo”, quais sejam: a impossibilidade de realização de desapropriações de terras particulares pelo INCRA; a ausência de legitimidade na utilização do critério de autoatribuição para definição dos sujeitos destinatários da norma; o descabimento da caracterização das terras quilombolas de forma demasiadamente ampla; a inidoneidade 24 Art. 3º: Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (...) Art. 5º: Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto. BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003. 25 Art. 2º, §3º: Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. BRASIL. Decreto nº4887, de 20 de novembro de 2003. 26 No ano de 2007, o Partido da Frente Liberal (PFL) alterou a denominação de sua legenda para Democratas (DEM). 360 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel da adoção dos parâmetros de territorialidade a serem definidos pelos próprios quilombolas27. As alegações do Partido da Frente Liberal atacam os dois pilares centrais que fundamentam constitucionalmente a garantia dos direitos territoriais das comunidades quilombolas, os quais se referem ao reconhecimento dos sujeitos destinatários da norma, pela autoidentificação e à garantia da propriedade do território que ocupam, como condição sine qua non de sobrevivência de toda a comunidade. Essa argumentação do autor, além de sugerir que os sujeitos de direito legitimados constitucionalmente corresponderiam apenas aos “remanescentes” e não aos “descendentes” de quilombos, sustenta que o objeto da titulação deve ser “a área cuja propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão-somente o território em que, comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formaram”28. A partir de 2007, outras ações contestatórias promovidas por setores conservadores tornaram-se ainda mais acirradas, diversificando seus fundamentos, ao apontar a titulação dos territórios quilombolas como ameaça à salvaguarda da segurança jurídica e ao direito de propriedade. Ressalte-se que, no Estado do Paraná, a Ação Ordinária nº 2008.70.00.000158-3, promovida em 07/01/2008, volta-se contra o processo de desapropriação da área conhecida como Invernada Paiol de Telha ou Imóvel Fundão, situado no município de Reserva do Iguaçu, comarca de Pinhão, hoje destinado à agricultura pela Cooperativa Agrária Agroindustrial29. Parte desse imóvel foi objeto de doação a ex-escravos libertos, pela Sra. Balbina Ferreira de Siqueira, no ano de 1860. A partilha em que constava essa doação não foi regularizada pelos donatários nos moldes exigidos pela Lei de Terras de 1850. Em 1875, Pedro Lustosa Siqueira incorpora, 27 Além destes pontos estruturais, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239-9 questiona também a legitimidade do Decreto n.º4.887/2003, na medida em que tal matéria constitucional só poderia ser regulamentada por instrumento legislativo e não por decreto presidencial. Diz o texto da ADIN: “(...) O texto constitucional dá aos decretos e regulamentos, segundo o disposto no art. 84, IV, da Constituição a função de fiel executar as leis, conferindo-lhe, portanto, natureza de instrumento normativo secundário, que tem sua validade dependente da lei formal. Ao dispensar a mediação do instrumento legislativo e dispor ex novo, o ato normativo editado pelo Presidente da República invade esfera reservada à lei, incorrendo em manifesta inconstitucionalidade.” Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&processo=3239. Acesso em 28/10/2010. Não assiste razão a tais alegações, todavia, uma vez que o artigo 68 do ADCT versa sobre direitos fundamentais e consequentemente é dotado de autoaplicabilidade, inexistindo a necessidade de mediação legislativa para sua aplicação. O Decreto n.º4.887/2003 cumpre, nessa perspectiva, apenas a função de operacionalizar e estabelecer as regras e procedimentos para sua concretização pelo Poder Público. 28 Cf. Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239-9, ajuizada em 25 de agosto de 2004. p. 11 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&proc esso=3239 Acesso em 20/10/2009. Tal ADIN permanece em trâmite junto ao Supremo Tribunal Federal – STF – aguardando data para julgamento. 29 ITCG. Instituto de Terras, Cartografia e Geociências. Terra e Cidadania: Terras e territórios quilombolas. Grupo de trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005-2008. Curitiba: ITCG, 2008. p.92-93. 361 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS a título de usucapião, 5.712 hectares, dos 8.700 hectares originais, mas essa titulação foi contestada judicialmente, na década de 1940, pelos herdeiros dos donatários que remanesceram na área. Na década de 1960, esses remanescentes começaram a ser expulsos por grileiros, jagunços e pistoleiros, com aval de autoridades locais. Na década de 1970, alguns moradores ainda resistiam na área, mas o Estado do Paraná desapropriou 10 (dez) mil hectares de terra para a instalação de uma colônia de imigrantes, que se organizou sob forma da atual Cooperativa Agrária Agroindustrial, acirrando o conflito. Nesse mesmo período, ocorreram novas expulsões e violências contra os descendentes dos donatários. Na década de 1990, alguns dos membros da comunidade Paiol de Telha, que se encontravam acampados próximo ao imóvel, foram deslocadas para o assentamento Vila Socorro. Outra parte permaneceu acampada próximo ao imóvel, e os dois outros grupos pertencentes a essa comunidade se estabeleceram nas periferias das cidades de Guarapuava e Pinhão. A imprecisão dos dados da área objeto da doação e da ocupação das famílias descendentes dos donatários gerou, ao longo do século XIX, conflitos fundiários entre descendentes da família da doadora e dos donatários. No início do século XX, esse conflito aumentou pela pretensão de fazendeiros ocuparem parte da área. E, finalmente, na segunda metade do século XX, o conflito incluiu a presença do Estado com projetos de colonização e desenvolvimento, que não levaram em consideração a ocupação das famílias descendentes dos ex-escravos libertos que lá viviam. No Paraná, os autores da Ação Ordinária 2008.70.00.00158-3 também promoveram a arguição de inconstitucionalidade nº 500506752.2013.404.0000/TRF 4ª Região, em 14/03/2013, com caráter prejudicial de mérito, questionando a constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003. Em 28/11/2013, foram realizados os julgamentos da presente arguição, conduzidos pela Relatora Des. Federal Marga Inge Barth Tessler, havendo pedido de vista. O julgamento retomado em 19/12/2013 resultou na rejeição da presente arguição, por maioria de votos. Esse resultado parcial favorável à constitucionalidade do Decreto não afetou o curso da ação direta de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, que permanece aguardando o prosseguimento do julgamento. 362 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel A baixa prioridade das titulações quilombolas na agenda governamental também pode ser atestada na avaliação da execução orçamentária para esta questão. Segundo dados apresentados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos — INESC —, o maior programa destinado a esse setor da população corresponde ao “Programa Brasil Quilombola” (Decreto n.º 6.261/2007), que prevê a Agenda Social Quilombola (ASQ) e envolve uma série de atores institucionais para sua execução, como a Casa Civil da Presidência da República (CC/PR); o Ministério da Cultura (MinC); o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); o Ministério de Minas e Energia (MME); o Ministério da Integração Nacional (MIN); o Ministério dos Transportes (MT); e Ministério das Cidades (MCID). A fragmentação administrativa e o desconhecimento da matéria pelos órgãos da Administração Pública, antes apontada por Alfredo Wagner, é potencializada baixa realização orçamentária na implementação de políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas, previstas no Programa Brasil Quilombola.Nos anos de 2008 e 2009, o valor líquido utilizado não ultrapassou a marca dos 24% em relação ao orçamento autorizado30. Tendência que permeia o conjunto do orçamento de políticas para Igualdade Racial e combate ao racismo, previstos para o quadriênio 2008-201131. Essa discrepância entre o recurso disponível para realização das políticas e sua utilização real torna-se mais alarmante na avaliação dos resultados obtidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que lograram aplicar apenas 13,26% do recurso autorizado, em 2008, e 15,02%, no ano de 200932. Nesse quadro de mau aproveitamento orçamentário, o fator de maior peso tem sido a não utilização adequada da rubrica destinada à “indenização aos ocupantes de terras demarcadas e tituladas aos remanescentes de quilombos”, integralmente devolvida ao Tesouro Nacional no ano de 2008, totalizando R$ 33, 672 milhões, e aproveitada em 6,52% de sua disponibilidade, em 2009. Também os gastos destinados ao “reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de remanescentes de quilombos” obtiveram índices de aproveitamento de 55,73%, em 2008 30 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/ publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010. 31 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º179. Novembro de 2010. “O orçamento das políticas federais de promoção da igualdade racial e combate ao racismo: baixa prioridade e execução ”. p. 4-5. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20 -%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 08/06/2014. 32 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/ publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010. 363 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel — de um montante de R$ 7,4 milhões e 33,46% dos R$10, 287 milhões aprovados para o exercício de 200933. Por certo, esses números apresentados não correspondem à ausência de demandas para titulação de áreas quilombolas, as quais totalizam inúmeros processos administrativos em trâmite nas Superintendências Regionais do INCRA de todo o país34. No período compreendido entre janeiro de 2008 e junho de 2010, registraram-se 24 titulações de territórios quilombolas, compreendendo 40.815,7673 hectares e abrangendo um total de 1.591 famílias beneficiadas. Nesse conjunto de titulações, todavia, apenas duas contaram com a expedição dos títulos pelo INCRA, sendo as vinte e duas titulações restantes realizadas pelos institutos de terras estaduais35. A sistematização dessas informações nos permite constatar que, desde o início, as titulações quilombolas estão circunscritas a opções políticas do Governo Federal, que privilegiam a regularização de áreas compreendidas em “terras devolutas”; “públicas estaduais” e “terras sem grande dificuldade de aquisição”, não enfrentando, com isso, a reação dos proprietários rurais e do agronegócio, tornando pouco a pouco ineficaz o instrumento da desapropriação. Essas constatações são comprovadas no exame do caso da comunidade Paiol de Telha, no Estado do Paraná, no qual seria necessário realizar desapropriação por se tratar de terra titulada pelo próprio Estado. Além disso, nenhuma outra área foi desapropriada no Estado do Paraná, a despeito da presença expressiva dessas comunidades em quase todas as regiões do Estado, com maior concentração na região do Vale do Ribeira e Centro-Sul, como se vê no quadro abaixo: COMUNIDADES TRADICIONAIS NEGRAS E REMANESCENTES QUILOMBOLAS NO PARANÁ *CRQ´s e CNT´s Cidade Comarca **R/U Famílias Habit. Adrianópolis Bocaiuva Sul R 15 66 CRQ SETE BARRAS Adrianópolis Bocaiuva Sul R 18 73 CRQ CÓRREGO DAS MOÇAS: Sede Adrianópolis Bocaiuva Sul R 14 49 CRQ CÓRREGO DAS MOÇAS: Córrego Malaquias Adrianópolis Bocaiuva Sul R 6 19 CRQ SÃO JOÃO Adrianópolis Bocaiuva Sul R 17 62 CRQ CÓRREGO DO FRANCO Adrianópolis Bocaiuva Sul R 70 124 CRQ ESTREITINHO Adrianópolis Bocaiuva Sul R 12 33 CRQ TRÊS CANAIS Adrianópolis Bocaiuva Sul R 4 13 CNT DO BAIRRO DOS ROQUE Adrianópolis Bocaiuva Sul R 8 40 CNT DE TATUPEVA Adrianópolis Bocaiuva Sul R 6 23 CRQ DO VARZEÃO Doutor Ulysses Cerro Azul R 8 30 CNT DE QUEIMADINHOS Doutor Ulysses Cerro Azul R 5 25 CRQ DE AREIA BRANCA Bocaiuva do Sul Bocaiuva Sul R 16 30 CRQ PALMITAL DOS PRETOS Campo Largo Campo Largo R 27 108 CNT SETE SALTOS Campo Largo Campo Largo R 10 53 CRQ DA RESTINGA Lapa Lapa R 37 271 CRQ DO FEIXO: Vila dos Pedroso Lapa Lapa R 50 203 CRQ DO FEIXO: Maria Antonia Lapa Lapa R 32 127 CRQ DA VILA ESPERANÇA Lapa Lapa R 7 74 CRQ RIO VERDE Quaraqueçaba Antonina R 22 80 CRQ DE BATUVA Quaraqueçaba Antonina R 24 94 CRQ DA SERRA DO APON: Faxinal do São João Castro Castro R 10 31 CRQ DA SERRA DO APON: Lagoa dos Alves Castro Castro R 6 17 CRQ DA SERRA DO APON: Serra do Apon Castro Castro R 20 84 CRQ JOÃO SURÁ: Sede Adrianópolis Bocaiuva Sul R 24 88 CRQ JOÃO SURÁ: Poço Grande Adrianópolis Bocaiuva Sul R 5 26 CRQ DA SERRA DO APON: Paiol do Meio Castro Castro R 3 12 CRQ JOÃO SURÁ: Guaracuí Adrianópolis Bocaiuva Sul R 12 35 Castro Castro R 7 23 CRQ PRAIA DO PEIXE Adrianópolis Bocaiuva Sul R 6 26 CRQ DA SERRA DO APON: Santa Quitéria CRQ DA SERRA DO APON: Castro Acordo Castro R 3 9 CRQ DA SERRA DO APON: Castro Lagoão de Dentro Castro R 10 31 CRQ DE MAMÃS – Núcleo Castro Castro: Imbuial Castro R 8 27 33 Idem. p. 4-5 34 Em 24 de março de 2009, contabilizaram-se 831 processos administrativos para titulações de áreas quilombolas, em trâmite nas diversas Superintendências Regionais do INCRA, excetuando-se Roraima, Acre e Marabá. 35 Estas 24 titulações localizam-se majoritariamente no Estado do Pará (16); Maranhão (04); Piauí (02) e Rio Grande do Sul (02). Cf. INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 5. Disponível em http://www.inesc. org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010. 364 CRQ PORTO VELHO 365 IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS POR QUILOMBOLAS CNT PAVÃOZINHO Agudos do Sul Fazenda Grande CNT LAGOA DAS ALMAS Contenda CNT SERRINHA CRQ DE MAMÃS – Núcleo Cerro Azul Cerro Azul: Ribeirão do Meio Cerro Azul R 7 22 CRQ DE MAMÃS – Núcleo Cerro Azul Cerro Azul: Pinhalzinho Cerro Azul R 3 13 CRQ DE MAMÃS – Núcleo Cerro Azul Cerro Azul: Pinhal Grande Cerro Azul R 1 3 CRQ DO LIMITÃO Castro Castro R 30 106 CRQ DO TRONCO Castro Castro R 15 62 CRQ DO SUTIL Ponta Grossa Ponta Grossa R 41 144 CNT COMUNIDADE BARREIRO CRQ DE SANTA CRUZ Ponta Grossa Ponta Grossa R 11 39 TOTAL CRQ DESPRAIADO Candói Guarapuava R 42 210 CRQ VILA TOMÉ Candói Guarapuava R 21 110 CRQ CAVERNOSO 1 Candói Guarapuava R 12 86 CRQ INVERNADA PAIOL DE Guarapuava TELHAS: Assentamento Guarapuava R 66 230 CRQ INVERNADA PAIOL DE TELHAS: Periferia da cidade Guarapuava (trabalho a ser efetuado) Guarapuava U CRQ INVERNADA PAIOL DE TELHAS: (trabalho a ser Pinhão efetuado) Guarapuava U CRQ INVERNADA PAIOL DE Guarapuava TELHAS: Barranco Guarapuava R 19 95 CRQ ADELAIDE MARIA DA Palmas TRINDADE BATISTA Palmas R 88 391 CRQ CASTORINA MARIA DA Palmas CONCEIÇÃO – (FORTUNATO) Palmas R 20 74 ***CNT TOBIAS FERREIRA – Palmas (LAGOÃO) Palmas R 19 98 CRQ CAMPINA MORENOS Turvo Guarapuava R 10 66 CRQ SÃO ROQUE Ivaí/Imbituva Imbituva R 51 203 CRQ RIO DO MEIO Ivaí/Imbituva Imbituva R 22 84 Guaíra R 7 42 CRQ QUILOMBOLA APEPÚ São Miguel do São Miguel do R Iguaçu Iguaçú 6 44 CRQ ÁGUA MORNA Curiúva Comarca Curiúva R 19 61 CRQ GUAJUVIRA Curiúva Comarca Curiúva R 38 132 CNT BARROCA Antonina Antonina R 4 21 CNT FARTURA Antonina Antonina R 16 60 DOS CRQ MANOEL CIRIACO DOS Guaíra SANTOS 366 Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel Rio R 5 24 Lapa R 24 118 Contenda Lapa R 8 46 CNT POÇO DOS CRUZ Contenda Lapa R 10 40 CNT ÁGUA CLARA Jaguariaíva Jaguariaíva R 3 12 Palmeira Palmas R 12 39 Tijucas do Sul São José dos R Pinhais 8 20 138 619 CNT CERRADO DO *CRQ – Comunidade Remanescente Quilombola CNT – Comunidade Negra Tradicional ** Rural/Urbano ***Não consta no mapa da ITCG A análise da elaboração normativa e jurisprudencial e a não efetivação dos direitos territoriais quilombolas no Brasil contemporâneo demonstra, com clareza, as limitações que o Estado e a sociedade brasileira enfrentam para a construção da democracia baseada na igualdade, no reconhecimento da alteridade,no pluralismo jurídico e na superação de suas origens aristocráticas fundiárias e escravagistas. A superação dos entraves existentes para a efetiva aplicação do artigo 68 do ADCT deve enfrentar, por um lado, a necessidade do reconhecimento do dever do Estado, em relação a setores da população que ainda sofrem com um processo de cidadania inacabado, herdado da ausência de políticas para igualdade pós-abolição e, de outro, a indispensável realização da redistribuição e desconcentração das terras no país. Referências ALFONSIN. Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Orgs); LEITE, Eliane Cantarino O ‘Dwuer. Territórios quilombolas e conflitos. Cadernos de debates Nova Cartografia Social, vol. 01, nº 02. 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Através da mediação da cultura, a uma só vez, ponto de partida e de chegada do círculo hermenêutico das trajetórias negras na América Latina, a denúncia contra sociedades que, embora complexas, recusam-se a assumir sua pluralidade constitutiva, articula-se em diversos níveis de formação discursiva: político, mítico, científico, simbólico. Destacados ou superpostos, cada um deles descortina uma epistéme própria, uma paisagem social cujo enunciado – e, mais do que isso, cuja via de enunciação específica – revela, sobretudo, o lugar ocupado pelos enunciadores num amplo mosaico de resistência negra no Novo Mundo. Um lugar de descolonização. As múltiplas tradições implicadas na religiosidade afro-brasileira4, como o candomblé5 e a umbanda6, também participam dessa teia cultural. Nelas, 1 O presente artigo é um resumo da Monografia de Graduação em Direito intitulada Òrìsá Láarè: por uma iconografia jurídico afro-brasileira, defendida na Universidade Federal do Paraná, no ano de 2010. 2 Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles – Núcleo Curitiba. Membro do Instituto Brasileiro de História do Direito e do Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana. 3 “Zuela” de caboclo recolhida no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, Zona Sul da cidade de São Paulo, em 2009. 4 Não faltam estudos buscando retraçar as origens africanas das culturas negras na América, levando em conta mesmo as permanências existentes em cada tradição religiosa. Exemplo dessa perspectiva, que, embora útil, consideramos insuficiente é o estudo de Pollak-Eltz (POLLAK-ELTZ, 1970). 5 O termo seria uma corruptela de candonbe, espécie de tambor utilizado pelos negros de Angola. Outrossim, Moura fala de um emprego jurídico mais técnico da palavra: “nome pelo qual era conhecida, judicialmente, a “tralha” e os pertences, de um feiticeiro africano” (MOURA, 2004, p. 81). Ou então, como afirmam outros, um derivado do verbo “rezar; louvar” em quimbundo (-ndonbe), indicando o local do culto. 6 “A umbanda é a religião de maior expressão no Rio de Janeiro, de onde se irradiou para os estados de Minas Gerais e São Paulo, bem como para a região Sul do país. Por ser de origem banta, apresenta muitas similaridades com outras matrizes religiosas africanas, apesar de algumas variações na forma de culto aos ancestrais e da incorporação de influências de outras origens, como a do espiritismo da linha de Allan Kardec. (...) no culto da umbanda, os pretos-velhos e caboclos se manifestam ou incorporam por meio das sacerdotisas e dos sacerdotes. 371 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras nada foi automático e nada está definitivamente resolvido. No avesso do determinismo, o signo se torce e se retorce à sombra da casa-grande, nas casas de farinha dos quilombos, nas casas de santo7 na periferia das metrópoles. Nelas, África não se recorda tão somente, África se inventa. Da travessia dos negros escravizados sobre o infinito de Kalunga, deusoceano banto, lembrança e esquecimento nadam contra a maré da história ocidental. O “mar salgado” de Fernando Pessoa desconsidera o quanto do seu sal não são lágrimas de Angola, Congo, Daomé, Ketu e Oyó. Se tudo valeu a pena não é um juízo que nos cabe ousar. Desejamos aqui tão somente oferecer algumas contribuições para o fortalecimento de uma leitura política das experiências religiosas de matriz africana no Brasil, a partir da análise de seu discurso, sua prática e sua iconografia8; de suas continuidades, rupturas, intercâmbios e deslocamentos, cujo foco deve ser a natureza das tensões atualmente vigentes entre elas o imaginário social hegemônico. 1. Replantar o Irôko: a matriz africana como reordenação sócio-simbólica na diáspora Quando se funda um novo terreiro, uma nova comunidade religiosa, diz-se que se “plantou o seu axé”. Esse axé, conceito central de todo o pensamento mítico afro-brasileiro, refere-se à força vital presente em todas as coisas, mas que anima também a tradição cultural. Um axé, nesse sentido, é uma determinada linhagem espiritual que remete até aos fundadores africanos do culto no Brasil, uma cadeia simbólica que, como uma árvore, ramifica-se e deve ser alimentada constantemente para dar continuidade à matriz ancestral de civilização. A refundação dessa matriz (ou, para usar uma expressão consagrada por R. Bastide, dessa “estrutura de civilização”)9 nos desvãos da diáspora colonial negra segue o mesmo padrão imagético. Se a metáfora da árvore é poderosa – as raízes estão cravadas na África, mas suas ramificações roçam o Novo Mundo – Bastide (...) Para Marco Aurélio Luz existem dois tipos de umbanda: a umbanda de morro e a umbanda de asfalto. Suas diferenças se caracterizam pelos diversos discursos ideológicos de seus integrantes. (...) No entanto, apesar dessas divergências ideológicas, tanto a linguagem como a estrutura simbólica e ritual africanas caracterizam a umbanda.” (THEODORO, 2008, p. 79-80). Analisaremos conjuntamente discursos advindos da umbanda (com enfoque na “umbanda de morro”) e do candomblé, pois, a despeito de idiossincrasias litúrgicas, no plano das alianças e interações sociais, seus membros compõe um mesmo “povo-de-santo”, de modo que os conceitos circulam culturalmente entre templos de ambos os cultos, muitos deles mantendo mesmo ambas as práticas. Para uma releitura histórica da umbanda desde o sec. XIX, consultar: BARBOSA, 2008. 7 Casa-de-santo, casa-de-orixá, Ilê Axé, Abassá, barracão de candmblé ou terreiro são alguns dos nomes dados à totalidade (física e simbólica) do local/espaço/território das comunidades religiosas afro-brasileiras. 8 O material de cunho etnográfico apresentado é resultado de trabalho de campo empreendido entre os anos de 2008 e 2010 em terreiros de umbanda e candomblé (nações ketu, angola e candomblé de caboclo) nas cidades de São Paulo e na Região Metropolitana de Curitiba, além daquele derivado da própria inserção religiosa do autor. 9 Novamente encontramos esse ponto de vista, objeto atual de uma série de críticas e debates, em Bastide : “On risque, en effet, si on examine le monde des candomblés uniquement à travers lês candomblés, de laisser échapper ce qui, pour nous, est l’essentiel: la structure de la civilisation africaine” (BASTIDE, 2000, p. 87). 372 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino demonstra que ela é mais que uma alegoria: Encontrei mesmo num terreiro o mito simbólico de uma árvore, cujas raízes atravessariam o Oceano para religar os dois mundos [África e Brasil]; seria ao longo dessas raízes que os Orixás viriam, assim que fossem chamados. (BASTIDE, 2000, p. 90) Esta árvore é o Irôko, a sagrada gameleira branca (Ficus Gomelleira) do candomblé brasileiro, cuja fixação no solo do terreiro é um dos seus primeiros atos de consagração e estruturação litúrgica. Irôko igualmente é o nome do orixá que nela habita, insinuando que não são somente os corpos objeto de iniciação: a terra (espaço profano), depois de iniciada como uma noviça, transmuta-se em território (espaço sagrado). Por força das polarizações envolvidas nesse jogo de sentidos, o que ocorre é um processo de “africanização da pátria do exílio, ou se preferirmos, o candomblé como um pedaço da África” (BASTIDE, 2000, p. 91). Frente a esse fragmento, o sentido original do termo religião ganha nova dimensão: não se trata mais de apenas “re-ligar” o mundo dos homens ao dos deuses, mas sobretudo de tornar próximos novamente o território presente (Brasil) e o território dos ancestrais (Ilú Ayê, a “terra da vida”, a África). Por isso mesmo é que todo ritual se inicia com uma invocação a Exu, o mensageiro, que deve ser “despachado”, isto é, enviado para buscar seus irmãos do outro lado do Atlântico: “agô, agô l’onan” – nos dê licença nos caminhos, abra os caminhos para que os deuses possam retornar a nós. Da mesma forma, por empreender a travessia de entre-mundos é que esse elemento de conexão aparece amiúde associado ao mar (chamado “Kalunga grande”, na umbanda, em comparação ao cemitério, a “Kalunga pequena”)10: Verekête da colônia Ele é rei do mar Verekête da colônia Ele é rei do mar11 O sentido “colonial” – o encobrimento, e não o descobrimento, do Outro (DUSSEL, 1993) – da relação de poder estabelecida no comércio triangular (Europa-África-América)12 transatlântico não deixa de 10 O termo é encontrado em inúmeras etnografias de grupos bantos. Citamos exemplificativamente o interessante estudo (de cunho igualmente mítico-político) de Melo entre os hambas de Angola: “Crendo na existência de vida após a morte, entendem que o espírito do indivíduo deve libertar-se do corpo, despedir-se e, só assim, afastar-se da família para repousar e participar, com os outros, no outro mundo, do kokalunga.” (MELO, 2008, p. 185). 11 Cântico de invocação a Averekête, vodun da tradição jêje no Brasil, cultuado também como jovem divindade de conexão. Recolhido em cerimônia de tambor-de-mina, em Marajó (2009) e também citado por Bastide (BASTIDE, 2000, p. 235). 12 Para uma análise detida da conjuntura político-econômica do tráfico escravista, vide: LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Edufba, 2000, pp. 148-167. 373 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras transparecer nos enunciados da mitologia afro-brasileira, de modo que os polos Brasil-África, subitamente, transbordam dos seus limites geográficos para se projetarem na ordem simbólica da geopolítica do imaginário, acarretando dicotomias como escravidão/liberdade, morte/vida13, negação/afirmação, branco/negro etc. Se, para o escravizado, branco era o ayê14, negro o òrún15. Negro também esse Atlântico de modernidade e anti-modernidade, colonialidade e resistência, espaço de contraste. O modelo interpretativo do “Atlântico negro”, desenvolvido por P. Gilroy a partir do mote da travessia do mar, presente na memória coletiva de todas as comunidades afro-americanas, reposiciona inúmeras “ecologias do pertencimento” produzidas em suas narrativas sobre o passado, presente e futuro da tradição (matriz africana), de modo que (...) as culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolidação através da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contraestéticas e uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer. (GILROY, 2001, p. 13) Nesses termos, insistimos na necessidade de se manter no horizonte de análise que, diferentemente dos povos indígenas16, grupos autóctones da América Latina, quando nos referimos à tradição religiosa afro-brasileira vislumbramos não uma chamada “cultura originária”, mas uma semântica existencial diaspórica, isto é, um conjunto de práticas, representações e sentidos não meramente perpetuados no tempo, mas reconstruídos por sujeitos forçosamente postos no exílio. A ressignificação, já não resta dúvida, é fenômeno patente em qualquer tradição (não há neste campo fixidez nem pureza), porém, no caso específico dos conteúdos da matriz africana, isso traz uma série de desdobramentos e exige outro tanto de vigilância do observador, porquanto as formas culturais do candomblé e da umbanda ganham sentido apenas em perspectiva, ou seja, como uma espécie de reorganização sócio-política de comunidades e territórios em espaço alheio17. É o que Dussel conceituará como a transterritoriedade 13 Bastide, entre outros autores, recolheram material suficiente para comprovar a presença de uma representação entre o povo-de-santo que afirma que, embora se viva no Brasil, retorna-se à África depois da morte (BASTIDE, 2000, p. 90). 14 O mundo físico, material o mundo dos homens e dos acontecimentos históricos. 15 O mundo dos orixás e dos egúns, os ancestrais mortos. A relação política entre o mito e o espaço, ou, em outros termos, a territorialização do mito, torna-se evidente, por exemplo, na utilização, pelos umbandistas, do termo Aruanda (corruptela de Aluanda/Luanda, localidade no Reino de Angola e hoje capital do país), para designar a “cidade”, a “vila” ou a “aldeia” dos ancestrais entre os bantos e, atualmente, dos “guias”, entidades e espíritos. Aí temos a passagem, portanto, da geografia à geopolítica e desta a uma cartografia do imaginário. 16 Obviamente, não se deve desprezar igualmente o caráter móvel de parcela dos povos indígenas originários na América Latina. Sabe-se que também nas trajetórias de muitos deles estão presentes fluxos migratórios e dispersões populacionais, narradas mesmo em sua riquíssima cosmologia. Parte importante dos conflitos fundiários hoje experimentados pelos povos guarani, por exemplo, encontra-se atrelado ao seu nomadismo ritualístico-profético, que integra uma determinada cosmovisão sobre as relações territoriais. 17 Por um lado, como transparece do imaginário mítico afro-brasileiro, são os povos indígenas os considerados 374 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino afro-latino-americana dos escravizados: O “tráfico” imolará ao novo deus do Sexto Sol, o capital, cerca de treze milhões de africanos. Não é este o segundo “holocausto” da Modernidade? (...) A resistência dos escravos foi contínua. Muitos deles alcançaram a liberdade pela luta. Testemunho disso são os “quilombos” no Brasil (...) as “costas do Pacífico” na América Central (...) Esses escravos “trans-terrados” que no Caribe, quando nascia uma criança, guardavam seu cordão umbilical numa caixinha e o enterravam na terra, criaram sincreticamente nova cultura. Na América Latina, desde o Vodu haitiano até o candomblé ou a Macumba brasileira, são expressões religiosas afro-latino-americanas dessa trans-territoriedade dos escravos. (DUSSEL, 1993, p. 162-164) Trata-se, já em si, de um movimento não apenas diacrônico, mas, sobretudo, diatópico, uma vez que a dinâmica da escravidão americana trouxe para o Novo Mundo habitantes das mais variadas partes da África, aportando consigo culturas, hábitos, idiomas, crenças, formas de ser distintas. Impreterível que façamos aqui um aparte: é urgente destruir a imagem de uma África una e culturalmente indistinta. Para que tenhamos uma noção geral da escala de diversidade que representou a convivência intercultural na sociedade escravocrata, recordemos que L. Viana Filho (VIANA FILHO, 2008, p. 59-66) identifica, no Brasil, uma sucessão de quatro ciclos históricos do tráfico negreiro, os quais, de 1540 a 1851, abarcariam o aporte desde grupos sudaneses a bantos (Ciclo da Guiné, no sec. XVI; Ciclo de Angola, no sec. XVII; Ciclo da Costa da Mina e Golfo do Benin, no sec. XVIII e até 1815; e uma “fase de ilegalidade” de parcos dados sobre procedência geográfica, mas provavelmente com predominância sudanesa)18. Quantitativamente, isso nos assinala uma cifra estimada de 3.902.000 africanos entre 1500 e 1867 (40,6% do total de escravos vendidos para as Américas), fazendo do Brasil o que é hoje: o segundo país mais negro do mundo. Assim, seguindo a proposição de Mintz e Price, uma discussão antropológica de caráter menos restrito/descritivo (etnográfico) da herança afro-americana e mais ambicioso deveria dar maior atenção aos “princípios gramaticais” dessa linguagem (uma linguagem ritual e mítica), que a cada uma de suas mínimas variações locais: Uma herança cultural africana (...) terá de ser definida em termos menos concretos, concentrando-se mais nos valores e menos nas formas socioculturais, e até tentando identificar princípios “gramaticais” “donos da terra”, seus originais habitantes, enquanto, pela força, o espaço produtivo/tecnológico é entendido como lugar de tortura e sofrimento (o “engenho”), como espaço branco, embora essa propriedade absolutizada seja sempre apontada como ilegítima e injusta, numa crítica, portanto, ao patriarcalismo brasileiro. 18 Para novas perspectivas sobre o tráfico escravista dos sec. XVIII e XIX, vide: FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira e SILVA, Daniel Domingues da. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). In: Revista Afro-Ásia, n. 31 (2004), pp. 83-126. 375 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras inconscientes que pudessem estar subjacentes à reposta comportamental e fossem capazes de moldá-la. Para começar, pleitearíamos um exame do que Foster chamou “orientações cognitivas”, por um lado, como pressupostos básicos sobre as relações sociais (...) e, por outro, os pressupostos e expectativas básicos sobre o modo de funcionamento fenomenológico do mundo (...) (MINTZ e PRICE, 2003, p. 27-28) Conforme não só a antropologia afro-americana, como também a historiografia da diáspora negra têm indicado, esses modos de compreensão culturais de nível profundo operam como estruturantes da cosmovisão africana no Novo Mundo e “podem ter servido de catalisadores nos processos pelos quais indivíduos de diversas sociedades forjaram novas instituições” (MINTZ e PRICE, 2003, p. 33). Colocar em evidência essas institucionalidades (re)inventadas revela o próprio caráter móvel, histórico (e, logo, político) das tradições: As tradições na realidade são sempre discriminatórias. Tendem a constituir um sistema de referências que estabelece distinções entre o que é tradicional e o que não é. Inscrever-se numa tradição significa, portanto, marcar uma diferença, sendo preciso interrogar as funções políticas das tradições: elas não são simples sistemas de ideias ou de conceitos, e sim verdadeiros modelos de interação social. (CAPONE, 2004, p. 29) No que tange à religiosidade afro-brasileira, marcar essa diferença implica operar um “sistema de referências” que toma a África como metáfora, como norte simbólico para configurar o que P. S. Pinho classifica de “identidades afro-referenciadas” (PINHO, 2004, p. 78-84). É sobre esse suporte imagético que se constrói a tradicionalidade da umbanda e, particularmente, do candomblé no Brasil, na medida em que instauram efetivamente espaços diferenciais no seio de uma sociedade supostamente homogênea, não como produtos de preservação, mas de resistência, interação e de inovação cultural. Essas institucionalidades negras criativas ensejaram formas de organização social encarnadas em territórios muito próprios, que apenas agora a historiografia, a geografia e a antropologia começam a tomar por objeto. É o caso não só das religiões de matriz africana, mas também de experiências como a do Quilombo de Palmares. Conforme identifica Cerqueira, “o Estado de Palmares se constituía num momento especial na história do pluralismo jurídico no Brasil, pluralismo este de caráter progressista e, mais que isso, libertador” (CERQUEIRA, 1998, p. 214). A ênfase na diferença, aliás, é o que permite a esse imaginário mitológico de justiça fundamentar uma contracultura negra na diáspora ou um discurso político contra-hegemônico e descolonial, que Gilroy chamou de “contracultura da Modernidade” (GILROY, 2001, p. 33). Ela 376 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino coloca-se como alternativa e em oposição à tradição ética da civilização ocidental, a qual perdeu sua legitimidade filosófica “pela cumplicidade óbvia que tanto a escravidão da plantation como os regimes coloniais revelaram existir entre a racionalidade e a prática do terror racial” (GILROY, 2001, p. 98). O papel das teorias racialistas e racistas (fazemos distinção entre os termos) na cristalização da dominação ocidental está escancarado (SILVEIRA, 1999). Por isso mesmo, a unidade que prevalece na epistéme negra entre ética e estética é uma forma de negação dessas grandes rupturas epistemológicas da modernidade: Sua ética bastante fundamentada oferece, entre outras coisas, um comentário contínuo sobre as relações sistemáticas e generalizadas de dominação que condicionam sua existência. Sua estética, também bastante fundamentada, nunca se isola num domínio autônomo onde as regras políticas familiares não possam ser aplicadas (...) (GILROY, 2001, p. 98). Uma negação, porém, longe da crítica niilista ou de qualquer temido fanatismo “tribalista”. Ao contrário, ela se construiu historicamente em diálogo com os próprios questionamentos ocidentais e pressupostos do establishment, como reapropriação e síntese desde a perspectiva dos outsiders. Ela vem acompanhada de um projeto civilizacional calcado na experiência da escravidão e da opressão racial, fundantes da subjetividade diaspórica: A memória da escravidão, ativamente preservada como recurso intelectual vivo em sua cultura política expressiva, ajudou-os a gerar um novo conjunto de respostas para essa indagação. Eles [os negros na América] tiveram de lutar – muitas vezes por meio de sua espiritualidade – para manterem a unidade entre ética e política, dicotomizadas pela insistência da modernidade em afirmar que o verdadeiro, o bom e o belo possuíam origens distintas e pertenciam a domínios diferentes do conhecimento. Primeira a escravidão em si mesmo e, depois, sua memória induziram muitos deles a indagarem sobre as bases da fundação da filosofia e do pensamento social modernos, quer viessem eles dos teóricos dos direitos naturais que procuravam distinguir entre as esferas da moralidade e da legalidade, dos idealistas que desejavam emancipar a política da moral de sorte que aquela se tornaria uma esfera de ação estratégica, ou dos economistas políticos da burguesia que primeiro formularam a separação da atividade econômica tanto da ética como da política. Os excessos brutais da plantation escravista forneciam um conjunto de respostas morais e políticas para cada uma dessas tentativas. (GILROY, 2001, p. 99) Assim, no espaço hermenêutico do terreiro – comunidade de axé: ética e estética – poiésis, poética e política se conjugam de formas insuspeitas. Ser e dever-ser articulam-se ritual, mítica e pragmaticamente no cotidiano do povo-de-santo, em processos de produção e reprodução da vida 377 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras coletiva: “a razão é assim reunificada com a felicidade e a liberdade dos indivíduos e o reino da justiça no âmbito da coletividade” (GILROY, 2001, p. 99). 2. “Eu nasci no Brasil, brasileiro sou eu”: resistência cultural e negociação da identidade Estamos diante, portanto, de um discurso político minoritário e de uma cultura de resistência negra à dominação avalizada pelo Estado brasileiro (entre outros países da América escravocrata), uma forma de contestação das suas instituições “monoétnicas”: El proyecto fundacional del Estado con hegemonía monoétnica excluyó definitivamente a los pueblos indios [os americanos como os africanos]. El desarrollo del capitalismo por la via oligárquica era compatible con el etnocidio practicado en las guerras de exterminio. (ROSENMANN, 2007, p. 200) Contudo, ao processo contínuo de vitimação produzido pelo regime escravista, as comunidades de vítimas19, organizadas como comunidades religiosas, puderam responder das mais variadas maneiras, fomentando desde revoltas memoráveis, como foi a dos Malês na Bahia (1835)20, até diagramas de negociação intercultural e interétnica. Mas, no “instante de perigo” benjaminiano em que a controvérsia sobre a validade dos feriados e das datas celebratórias da memória negra se acha instalada em algumas localidades21, é imprescindível alinhavar os conflitos do presente com leituras argutas do passado, como a de Reis: Zumbi, Mãe-Preta e Pai-João, são apenas ênfases historiográficas. Concretamente, na história real, cada cativo, segundo um destino que muito raramente podia controlar (...) teria sua porção de ambos, maior ou menor, segundo cada caso, cada oportunidade. Na história, Pai-João não foi a ausência de luta, mas uma estratégia de luta sob condições extremamente desfavoráveis. (REIS, 1989, p. 78). A essência política dessa resistência negociada e dessa resposta cultural, gestada e maturada na espiritualidade (e na sociabilidade) marginalizada da tradição mística afro-brasileira22, ainda que não possa ser considerada 19 “A consensualidade crítica das vítimas promove o desenvolvimento da vida humana. (...) A partir da exterioridade das vítimas a totalidade é subsumida (negada e assumida) e transformada.” (DUSSEL, 2002, p. 415-6). 20 Negros de religião muçulmana, bastante organizados e combatentes na Bahia do século XIX (REIS, 2003). 21 No momento de produção deste artigo, tramitava perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.011.923-6, de autoria da Associação Comercial do Paraná, impugnando a Lei Municipal nº 14.224/2013 de Curitiba, que instituiu o Dia da Consciência Negra como feriado local. 22 J. J. Carvalho emprega a expressão “tradição mística afro-brasileira” para destacar um corpus de práticas e discursos (liturgia e textualidade) que circulam socialmente entre os membros de cultos afro-brasileiros a partir de suas experiências místicas individuais. No entanto, o autor em questão avança para além da dimensão ideológica de análise desses materiais (“tudo o que eles indicam sobre a natureza das relações sociais, raciais, políticas, sexuais 378 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino uma experiência de enfrentamento messiânico, irradia-se como “religião dos oprimidos”, congregando elementos que se repetem igualmente em inúmeros movimentos de libertação presentes nas sociedades póscoloniais: Na realidade, na raiz de toda a revolta política e militar de povos indígenas encontram-se outros movimentos premonitórios de renovação religiosa, os cultos proféticos de libertação. (...) Aliás, a própria natureza dos movimentos de renovação que nos interessam aqui denuncia uma característica própria das culturas nativas: elas, por uma tradição cultural amadurecida em experiências de todo tipo de miséria e sujeição, são levadas a reagir contra a opressão, a inquietação, a frustração, muito mais no terreno religioso que no organizacional-político. (...) O mal reside no choque – com os seus múltiplos aspectos – entre uma minoria hegemônica, opressora, depredadora e hipócrita e a população nativa oprimida: na sua raiz está a subtração da terra aos nativos. (LANTERNARI, 1974, p. 15-17). Embora Lanternari faça referência expressa aos movimentos nativistas na África, princípios gerais de sua análise cabem em parte às tradições da diáspora. Neste caso, não foi a terra subtraída aos nativos, mas os nativos à sua terra. Se originariamente “estrangeira”, todavia, a cultura de matriz africana veio a tornar-se também afro-brasileira, derivando daí as dificuldades referentes ao duplo vínculo (tensão nacionalidadeidentificação) formulado por DuBois. De fato, vale repisar que “o problema de ponderar as afirmações de identidade nacional contra as variedades contrastantes de subjetividade e identificação ocupa um lugar especial na história intelectual dos negros no Ocidente”23. Ser, a um só tempo, brasileiro e afrodescendente, isto é, ser afro-brasileiro, exige ocupar um espaço “inacabado” de identidade, como demonstraremos a seguir. Uma questão de lente, de foco, de escala, de grau. A partir dessa primeira reflexão, entendemos com Brumana que duas têm sido as perspectivas centrais até hoje adotadas no estudo desse tipo de religiosidade: enquanto uma enfatiza sua africanidade, outra procura dar conta da brasilianidade de um campo religioso reconhecidamente subalterno (ou seja, politicamente minoritário). Durante esta breve empreitada, colocamo-nos ao lado da segunda, de modo que sobressaia mais a originalidade criativa das culturas negras do que um suposto continuísmo de conteúdos originais, embora não se possa afastar a etc., que envolvem a vida dos membros”) e enfrenta uma dimensão místico/religiosa do tema, em perspectiva comparada com outras grandes tradições religiosas (CARVALHO, 1998). 23 “Esforçar-se por ser ao mesmo tempo europeu e negro requer algumas formas específicas de dupla consciência. Ao dizer isto não pretendo sugerir que assumir uma ou ambas identidades inacabadas esvazie necessariamente os recursos subjetivos de um determinado indivíduo. Entretanto, onde os discursos racista, nacionalista ou etnicamente absolutista orquestram relações políticas de modo que essas identidades pareçam ser mutuamente exclusivas, ocupar o espaço entre elas ou tentar demonstrar sua continuidade tem sido encarado como um ato provocador e mesmo opositor de insubordinação política.” (GILROY, 2001, p. 33-34). 379 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras relevância do afro-centrismo que desponta em outras paragens24. Disso decorre um esvaziamento, ou, para sermos menos enfáticos, uma relativização instrumental, da própria noção de etnicidade para a compreensão da realidade dos cultos afro-brasileiros. Efetivamente, não é a regra, ainda que se verifiquem casos singulares, a existência de uma continuidade biológica da comunidade-terreiro. O que ocorre, em vez disso, é a perpetuação simbólica da linhagem de cada casa de santo, de modo que se operam sucessões constantes nos cargos deixados vagos pela morte ou outro tipo de afastamento de seus ocupantes anteriores. Segundo explicitam Poutignat e Streiff-Fenart, essa conversão de uma fronteira étnica em fronteira cultural implica no recurso à etnicidade como parentesco fictício: Quando a filiação de membros não-nativos torna-se um traço permanente e um método sistemático de recrutamento de um grupo que representa a si mesmo como uma comunidade étnica, este se dota geralmente de mecanismos culturais que permitem traçar um parentesco fictício entre os nativos e os assimilados. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 2011, p. 161) A filiação mítica de qualquer indivíduo (isto é, de um indivíduo de qualquer origem étnica) a um orixá, ao lado da sua filiação iniciática a um sacerdote, através das chamadas obrigações-de-santo (com inclusão necessária numa linhagem mística e numa comunidade ritual – o terreiro) é o mecanismo que permite a absorção (“recrutamento”) de sujeitos externos, aliás numerosos, no candomblé e na umbanda. É o que a “teoria nativa” (o discurso mítico) afro-brasileira abarca sob a expressão famíliade-santo, entendida por Bastide como uma “sociedade de assistência pecuniária e moral, (...) de seguro mútuo, de união fraternal, que mantém o espírito comunitário africano” (BASTIDE, 2000, p. 80). Devemos, nesse contexto, secundar R. L. Segato ao afirmar a raça como signo, antes num sentido político que genético. Desde esse marco identitário aberto ou “disponível”, o candomblé caracterizara (...) uma tradição africana que atraiu e incluiu eficientemente a população branca em suas fileiras, constituiu uma estratégia decisiva de suas lideranças históricas para garantir sua sobrevivência – crescer a expensas do Branco significou sobreviver (...). Se, por um lado, as diferentes religiões de matriz africana oferecem o que chamei de códice africano no Brasil como conjunto de premissas estáveis de uma filosofia, construção de gênero e formas de organização e sociabilidade diferenciadas dentro da nação, esse códice é mantido pelos seus especialistas como um códice aberto, no sentido de disponível (enquanto códice de matriz afro-brasileira) para toda 24 “Nos Estados Unidos (e também em outros países), o rótulo agora se aplica tanto a aspectos da cultura popular quanto a posições assumidas individualmente por professores e outros intelectuais, ou coletivamente (no caso norte-americano) por alguns departamentos universitários.” (FARIAS, 2003, p. 319). 380 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino a população e qualquer visitante que pretenda fazer uso das orientações que ele contém. Nesse sentido, não pode se dizer que exista propriamente um povo afro-brasileiro dentro da nação (exceto no caso restrito dos quilombolas), mas uma etnicidade afro-brasileira disponível, que se doa, ao povo brasileiro. (SEGATO, 2005, p. 3-4) Qualquer conceito minimamente convincente de “afro-brasilidade”, portanto, deve levar em conta a dimensão mais simbólica da etnicidade afro do que propriamente étnica, em acepção racialista. Parece sensato adotar, secundando Viana em seu estudo sobre as mestiças “irmandades de pretos e pardos” da Colônia, a categoria de identidade socioreligiosa (VIANA, 2007, p. 42), como alternativa às peculiaridades analíticas das relações étnico-raciais. “Afro-brasileiro” e “afrodescendente”, longe de serem sinônimos, são expressão desencontradas, não necessariamente sobrepostas ou caminhando lado a lado na estrada tortuosa pela cidadania negra. Não à toa destaca Capone o fato de que Até os cultos que se consideram depositários de uma tradição africana, como o candomblé nagô, não são mais, e isso há muito tempo, o apanágio dos descendentes de africanos. Na verdade, mesmo nos terreiros mais tradicionais da Bahia encontramos iniciados brancos e até nisseis. A identidade “africana” está, portanto, completamente dissociada de toda origem étnica real: é possível ser branco, louro de olhos azuis e dizer-se “africano”, por ter sido iniciado em um terreiro tido como tradicional. (CAPONE, 2004, p. 48) Essa “disponibilidade” cultural pode ser entendida como reflexo da natureza fundamentalmente contrastiva da etnicidade, na medida em que “esta se exprime como um sistema de oposições ou contrastes” (PINHO, 2004, p. 72) nunca estanque, mas sempre relacional. A identidade não é um diagrama absoluto, mas um jogo relativo, pressupondo polos de atração, repulsão e interlocução que são sua conditio sine qua non. Tão constrastiva é que desemboca em situações inusitadas, qual a da “etnia” dos “brasileiros” (descendentes de ex-escravos negros que retornaram à África no século XIX) no Togo, em Gana, no Benim25. Assim, embora tenhamos nos referido anteriormente à ideia de uma “matriz africana”, o fato é que subsistem inúmeras africanidades dentro do território do Estado-nação brasileiro. Não se trata apenas de reconhecer a diversidade das origens e cosmovisões que compuseram 25 Nesse período, de 3.000 a 8.000 afro-brasileiros retornaram à África. “De fato, o que fizeram foi estabelecer uma colonização informal que criou enclaves de comunidades afro-brasileiras na costa da África Ocidental, em territórios que hoje são chamados de Benin, Togo, Nigéria e Gana. Algumas destas comunidades que floresceram no século XIX existem ainda hoje naqueles países. Celebrações de festas brasileiras, nas quais a bandeira brasileira é exibida com orgulho, ainda têm lugar no Benin. Comidas brasileiras tais como feijoada, kosidou (corruptela de cozido) e concada (corruptela de cocada) são ainda consumidas com satisfação em áreas francófonas da África Ocidental por pessoas que se proclamam “brésiliens”. (AMOS e AYESU, 2005). É o caso, também, dos agudá no Benin (GURAN, 2002). 381 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras o contingente populacional e o paradigma epistêmico de genealogia negra, mas principalmente de identificar as variações e possibilidades inscritas no corpo da própria tradição. Essas marcas e fronteiras tornamse evidentes desde a categoria nativa da “nação” (LIMA, 1976). De acordo com a fala do povo-de-santo, existiriam diversas nações de candomblé no Brasil, cada qual com suas especificidades em relação à liturgia, à língua ritual, ao panteão e aos mitos (nação xambá do culto xangô do Recife, nação angola, nação congo, nação jêje ou jêje-nagô, nação kétu, etc.). O emprego sincrético do termo, de plano, uma releitura eloquente, já que tais “nacionalidades africanas” têm um sentido marcadamente colonial: O uso inicial do termo “nação” pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses, no contexto da África ocidental, estava determinado pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monárquicos europeus dessa época [sec. XVII e XVIII] (...) esses estados soberanos europeus encontraram um forte e paralelo sentido de identidade coletiva nas sociedades da África ocidental. (PARÉS, 2007, p. 23) Esse tipo de designação “metaétnica”, contudo, é significativo de um espaço de mobilidade e hibridismo, sendo a própria “nação”, nesses termos, um artefato cultural26. O discurso remete não apenas a uma diferenciação interna ao campo de interação dos cultos afros, mas a um recorte dentro da nação entendida como sociedade global, a “nação brasileira” como lugar de exercício da soberania do Estado. Sob essa ótica, o uso do termo “nação”, que sugeriria, a priori, a internalização de uma relação de colonialidade, apresenta-se como uma apropriação ativa, um contra-uso descolonial da figura para recortar uma diferença em relação ao status quo. Somos levados, assim, a resgatar a análise de Ramos sobre o emprego político do conceito nas lutas e táticas dos povos indígenas: “Nação” é uma palavra que entrou de contrabando, clandestina, como diz Bourdieu (1989), na retórica indigenista brasileira. Nos Estados Unidos o uso de “nações indígenas” serviu como uma espécie de senha para a tomada de territórios pelo nascente Estado norte-americano através de declarações de guerra e assinaturas de tratados, ainda que fantoches, com os donos desses territórios. Já no Brasil, o termo “nações indígenas” é recente e surgiu da consciência de que nunca se reconheceu nas culturasetnias indígenas um mínimo de vulto que merecesse crédito político. (RAMOS, 1993, p. 5) As mesmas considerações nos servem para propor uma analogia com as nações de candomblé. Tema hoje razoavelmente explorado 26 “Havia naturalmente, entre os negros, as diferenças étnicas, a diversidade das “nações” na diáspora. Isto se entrevia especialmente na esfera do trabalho de “ganho” (ferraria, sapataria, barbearia, carpintaria), em que os negros, forros ou não, se organizavam etnicamente através de pontos de trabalho, conhecidos como “cantos”, espalhados pela Cidade de Salvador e existentes até os primeiros tempos do século vinte.” (SODRÉ, 1988, p. 54) 382 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino pela historiografia brasileira27, permanece, contudo, um terreno de disputas e desacordos intermitentes28. Aqui, a nosso ver, é preciso combinar à metáfora da fronteira, a metáfora da origem (PINHO, 2004, p. 73). Diferenças contextuais integram esse panorama, é claro, porém estamos, de qualquer maneira, diante de idiomas políticos sincréticos, que incorporam conceitos advindos do histórico contato interétnico para fortalecer a própria contraposição do negro no plano simbólico-político. Num mesmo golpe, é necessário afastar o olhar ideologizado de parte do campo de pesquisa atual sobre o assunto, que insiste em sobredimensionar o lugar da “pureza” na tradição, arbitrariamente identificando-a aos terreiros de rito nagô-ketu. Essa interferência de uma elite intelectual do candomblé, em associação a atores da academia, vem sendo destacada como processo de consolidação duma “nagocracia” ou “quetocracia” no Brasil29: A ideia de pureza religiosa como vemos é um mito que alguns adeptos procuram vivenciar no candomblé e que estudiosos procuraram evidenciar. Este ideal de pureza é de fato mais um mito que influencia a realidade religiosa. No passado, foi acentuado por intelectuais, e apesar das críticas que recebe, retorna hoje no processo de reafricanização ou dessincretização. (FERRETI, 1995, p. 71) Mas, se é fato que o mito goza de materialidade e veracidade para as ciências sociais, devemos seguir o rastro da tradição já não em busca de uma pureza irredutível, mas da “pureza” enquanto categoria nativa, ou seja, como veículo de poder, na medida em que subsidia dispositivos discursivos e argumentos de legitimação entre diferentes nações, tradições e “modos de fazer” no campo religioso afro-brasileiro. O paradoxo do tradicional, no entanto, implora para ser resolvido, já que “a crítica à pureza não pode ignorar a tradição preservada em muitos grupos” (FERRETI, 1995, p. 71). Invocamos, em nosso auxílio, o conceito de sincretismo, para testá-lo. Até que pondo ele nos será de alguma valia? Concordamos com Sodré no que tange ao caráter inclusivo do candomblé 27 Depois dos trabalhos vanguardistas de R. Bastide (BASTIDE, 1974) e J. Thorton (THORNTON, 2004), em ensaio de fôlego, R. Silveira apresenta o “estado da arte” nesse campo: J. Lorand Matory, “Jeje: repensando nações e transnacionalismos”, Mana, vol. 5, nº 1, (1999), pp. 57-80; Mary Karasch, “‘Minha nação’: identidades escravas no fim do Brasil colonial”, in Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), Brasil: colonização e escravidão (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000); Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil colonial 1500-1808, (Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2000); Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000; Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002; Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Líbano Soares & Flávio dos Santos Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX, (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005); Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas, Editora da Unicamp, 2006 (SILVEIRA, 2008, p. 246). 28 Revisitando R. Vainfas, Silveira propõe, entre outras coisas, que “nação era uma palavra que exprimia a diferença” (SILVEIRA, 2008, p. 282), mais do que a identidade, o que nos pode servir de alerta contra a uniformização republicana. 29 Uma revisão dos autores que tem trabalho a problemática encontra-se em: FERRETI, 1995, p. 64-71. 383 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras brasileiro, que, em sua formação – estruturado de maneira relativamente estável somente em meados do sec. XIX – teve de incorporar múltiplas tradições numa estrutura suficientemente plástica, que o autor defende ser o padrão jêje-nagô (SODRÉ, 1988, p. 53). Assim, ao levar em conta culturas advindas de inúmeras localidades na África, além dos outros parceiros no xadrez colonial (brancos, índios, mestiços, etc.), o próprio candomblé seria por natureza um “acordo” (SODRÉ, 1988, p. 53) cultural, testemunha da diversidade e produto de transações diatópicas: No Brasil, esse “grupo zelador de orixá” não é já-dado ou natural, mas construído. (...) A construção do grupo “negro de terreiro” no Brasil obedeceu, como já se observou, a uma reterritorialização condensadora. (...) Aqui, portanto, reelaboravam-se ou redefiniram-se as regras originais com o objetivo de preservar uma matriz fundadora. (...) [Pois] a posição litúrgico-existencial do elemento negro foi sempre a de trocar com as diferenças, de entrar no jogo da sedução simbólica e do encantamento festivo, desde que pudesse, a partir daí, assegurar alguma identidade étnico-cultural e expandir-se. Não vige aí o princípio lógico do terceiro excluído, da contradição: os contrários atraem-se, banto também é nagô, sem deixar de ser banto. (SODRÉ, 1988, p. 53) Nesse sentido, apenas, é possível falar de sincretismo, como acordo, como apropriação ativa (e não imposição passiva) de elementos de alteridade na lógica simbólica estruturalmente “imexida”, jamais como uma mistura sumária e sem coerência no balaio da história. Africanos e seus descentes nas Américas tiveram contato com um universo religioso culturalmente distinto do seu, embora o catolicismo barroco (com seus múltiplos santos e devoções), não fosse de todo ilegível segundo os próprios padrões africanos. Não podemos excluir o impacto daqueles (especialmente negros libertos) que, dentre eles, (...) se tivessem abrasileirarado e escolhido experimentar uma dupla inserção religiosa, uma vez que sua religião de origem não exigia exclusivismo devocional. Seu catolicismo, porém, povoado desses interesses celestes, era tipicamente popular, gravitava em torno de uma “economia religiosa do toma-lá-dá-cá” entre devoto e devoção, como a caracterizou Laura de Mello e Souza. Um catolicismo, enfim, que se aproximava da lógica do candomblé. (REIS, 2008, p. 281) Em grande medida, portanto, foi o catolicismo popular que se africanizou durante o Brasil colonial, e não somente o oposto. Enegreceuse o cristianismo barroco e consubstanciou-se em mais um ato performativo de politização30. Apesar disso, da parte do povo-de-santo, 30 É o que identifica, ainda hoje, Rubens Alves da Silva identifica, por exemplo, nas práticas ritualístico-festivas do Congado mineiro: “Em suma, através do “mito de origem” do Congado os sujeitos desse ritual falam das relações raciais no espaço onde vivem e, pelo que se percebe, sem estarem iludidos quanto ao racismo e à discriminação que sofrem quotidianamente por serem – nos dizeres poéticos – “pretos ou quase pretos”. Se estou correto, devo 384 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino esses dois registros são claramente diferenciados, de modo que se tem bastante lucidez sobre qual o santo a ser cultuado em cada contexto, com cada sistema de signos. A hibridização, é verdade, é sempre um processo de mão-dupla, gostem ou não os puristas, ainda que por vezes ela ocorra em assimetria de condições/posições. Isso não se expressa apenas na interface entre o cristianismo e as religiões de matriz africana. De fato, existiram relações mais horizontais em nossa história. A figura do “caboclo” – tradução mítica do elemento indígena – no candomblé e na umbanda pode exemplificar nossa visão. A solidariedade histórica e as trocas políticas entre negros e índios são rememoradas nos cultos afro-brasileiros na forma de uma “posição comum de respeito e homenagem aos donos originais da terra, aos ancestrais do território” (SODRÉ, 1988, p. 60). Seja nas cerimônias chamadas de toré, seja nas “mesas de jurema” famosas especialmente nas regiões Norte e Nordeste, seja ainda nos “candomblés de caboclo” da Bahia e ramificações, ou cotidianamente nas giras de umbanda, a verdade é que “a participação dos Caboclos enquanto entidades que se incorporam nas cerimônias de transe dos cultos afro-brasileiros é comum em todo o país”31. Recuperando o início desta discussão, a presença dos caboclos, os quais se afirmam e são afirmados como os autênticos brasileiros (em detrimento, inclusive, do elemento branco, também considerado estrangeiro, invasor de terras alheias e seu ilegítimo possuidor – e por este motivo, cantigas como a que abre este texto enfatizam que o verdadeiro sentido do encontro entre povos se deu entre autóctones americanos e africanos no Novo Mundo, estes vindo conhecer a sagrada juremeira daqueles), atesta a tensão duboisiana entre subjetividade e nacionalidade. Nesse sentido, espanta o patriotismo ligado à figuração do “caboclo”, palco de intercâmbios e negociações implicadas na identidade afro-brasileira: Tudo o que eu tive foi Deus quem me deu. Eu nasci no Brasil, brasileiro sou eu.32 acrescentar que, através da prática do ritual em pauta, eles fazem a sua crítica, expressam o seu desejo, a sua aspiração e esperança de um dia ainda viverem numa sociedade sem tantos sofrimentos, discriminações e exclusão social. Por certo, esta é a imagem ou forma de representação que projetam deste nosso Brasil.” (SILVA, 2010, p. 180). 31 Na Bahia, eles podem “baixar” até mesmo em candomblés de Eguns, cujo ritual, altamente rígido, segue a tradição africana do culto aos ancestrais mortos. “No terreiro de Babá Aboulá, um Egum caboclo, Baba Iaô, quase sempre encerra a festa. Nessa ocasião toda a assistência, já do lado de fora do barracão, canta em língua brasileira em homenagem a um dos mais festejados Eguns daquele terreiro.” (GANDON, 1997, p. 150). 32 “Chula” recolhida durante cerimônia de candomblé-de-caboclo realizada no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, em 2010. Sobre este tipo de cântico, afirma C. Ribeiro: “É comum ouvir-se, nos candomblés-de-caboclo, cantigas mencionando nos seus versos uma certa exaltação ao lugar de nascimento dos índios. Por exemplo: “Sou brasileiro/Sou brasileiro, imperador/Sou brasileiro, o que é que eu sou?”. Outra: “Minha mãe é brasileira/o meu pai 385 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras O caboclo surge como o protótipo do brasileiro nato, tanto quanto brasileiros natos o próprio candomblé e a umbanda. Serve de espelho, ainda, à conversão político-territorial do africano ladinizado sob a vergasta da escravidão, sem outra opção senão reinventar-se: Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade ou como herança histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no mundo branco. E logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem ser católicos. Podiam preservar suas crenças no estrito limite dos grupos familiares, muitas vezes reproduzindo simbolicamente a família e os laços familiares através da congregação religiosa, daí a origem dos terreiros e das famíliasde-santo. (PRANDI, 1996, p. 56) Conjunto de práticas e de discursos de resistência e de mediação, a religiosidade afro-brasileira baliza a leitura de uma das três ditas “vertentes civilizadoras” do Brasil sobre o choque intercultural americano (considerando o teor também ficcional do próprio “mito das três raças”). Tendo de partilhar um mesmo território com europeus e povos indígenas, os africanos foram autores notáveis de uma narrativa sobre suas relações com estes Outros: Três pedras, três pedras, três pedras dentro desta aldeia, uma maior, outra menor a mais pequena é que nos alumeia33 A interpretação de Ribeiro sobre o cântico vai justamente nesse sentido: Sentimos neste verso a citação das três raças: a negra, a branca e a indígena, sendo que essa última está mencionada na derradeira estrofe “a mais pequena é que nos alumeia”, em relação à minoria em que ficaram reduzidos mas, no entanto, na condição de donos da terra, consideram-se a pedra mais luminosa. (RIBEIRO, 1983, p. 78) A mais luminosa de todas, entretanto, é a pedra da memória. Flexível pedra, que recebe inscrições e superposições quase sem espanto. É na interseção da memória individual com a memória coletiva que podemos deslindar o nó no fio de Ariadne da tradição e da mudança. Pois o narrador conjura e esconjura reminiscências seletivamente, conforme um imperador/ Eu sou brasileiro. Brasileiro o que é que eu sou?”. Mais uma: “Brasileiro é sinal que Deus me deu/nasci no Brasil/Brasileiro sou eu”. Existe uma saudação à Bandeira do Brasil, à moda do índio. Eis: “O verde é esperança/ O Amarelo é desespero/ O Azul é a liberdade dos caboclos brasileiros.” (RIBEIRO, 1983, p. 78) 33 Cantiga recolhida no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, exatamente nos mesmos termos em que encontrada por Carmem Ribeiro na década de 1980, em Salvador. Isso pode ser explicado pelo fato de ser baiano o babalorixá responsável pela referida casa, demonstrando que à dispersão migratória corresponde uma dispersão de padrões rituais que desembocam, eles mesmos, num modelo de negociação com os estabelecidos da metrópole paulistana no período, isto é, as casas e terreiros de umbanda, então em ascensão. 386 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino olhar significador do presente. Por outro lado, ele é também ator quando a arkhé encarna-se na história vivida, ao passo que esta enriquece e expande a fronteira da mitologia: “os mitos constroem em seus discursos as diretrizes cognitivas e comportamentais dos indivíduos em sociedade” (TRINDADE, 2000, p. 165). Esse processo dialético de recombinações se opera segundo uma lógica de bricolagem (TRINDADE, 2000, p. 160), porém não aleatoriamente. É preciso encontrar homologias e metáforas para a passagem da história ao mito e vice-versa: O mesmo ocorre no momento de lembrar essas experiências do passado nos esquemas da memória, quando as dimensões mítica e histórica se interpenetram, passando do nível mítico para o histórico: ao evocar as situações passadas, o tempo cronológico e os espaços social e geográfico descritos coexistem no tempo e espaço mítico de evocação. (TRINDADE, 2000, p. 155-156) O trabalho de L. Trindade sobre a memória da escravidão ressalta o lugar do preto-velho34, por exemplo, no imaginário de descendentes de africanos, constatando que a perspectiva “sincrética”, ou, analógica, explicita-se numa determinada forma de recordar (“recortar”) o mundo e de “ser-no-mundo”: “os indivíduos delegam às divindades a ação histórica e, mediante rituais, eles atuam como divindades” (TRINDADE, 2000, p. 165). À semelhança da protonarrativa de teor mitológico, recuperada por C. Ford sobre os traumas sociais do povo bacongo (SÃO BERNARDO, 2006, p. 66), tanto o caboclo como o preto-velho são elementos míticos articulados para contar uma história não sobre a África distante, mas sobre o Brasil, seus traumas, desencontros e desigualdades. De um lado, a constância das divindades entre os homens e, de outro, a transformação dos homens em divindades esgarçam o limiar entre mito e histórica, mas reforçam a fronteira entre o Ocidente e seus enclaves de diferença, a cidade e o terreiro, levando uma ebômi35 a afirmar sobre si mesma: “Meu nome é Maria da Silva da parte de lá, Oyá Ladè da parte de cá”36 (FREITAS, 1995, p. 80). 3. “Pequenas Áfricas”: o terreiro contra a cidade Na fala de Maria da Silva, qual é a linha divisória entre “a parte de lá” e “a parte de cá”? O portão (ou a porteira, como preferem os membros do culto) e os muros do terreiro. Segundo a leitura de Bastide, 34 Eles mesmos, figuras cujo lastro histórico remete ao período pós-1885, ano de edição da Lei dos Sexagenários. Abandonados por seus senhores, em grande medida dispensados das obrigações de sustento dos cativos idosos, muitos libertos e libertas encontraram na comercialização de saberes mágicos, fitoterápicos e medicinais a única fonte de renda para sobreviver numa sociedade que desestimulava as redes de sociabilidade negra. 35 Adepta de alta hierarquia, com mais de sete anos de santo, isto é, de iniciação. 36 Ressalte-se que Oyá Ladè seria a denominação (o dito “nome de santo”, orukó ou djina) que recebeu aquela iniciada depois de cumpridos os ritos de incorporação à comunidade religiosa, chamados raspagem ou feitura. 387 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras o terreiro, espaço sagrado, é uma espécie de “África em miniatura”, de “microcosmo da terra ancestral”37 (BASTIDE, 2000, p. 93). Tendo em vista que o candomblé, da forma como hoje se encontra estruturado, é um fenômeno eminentemente urbano, vale a pena findar nosso interlúdio com um rápido sightseeing pelos marcos da territorialidade negra gravada a sangue e suor no coração da cidade desigual. 3.1. O negro no egbé negro O território do terreiro é um espaço concorrente com o território da nação. Este o primeiro ponto que queremos visitar. São dois momentos: afirmar o espaço do terreiro como território e afirmar esse território como espaço diferencial no seio da sociedade envolvente. Não se olvide que, entre os iorubás, a instituição da família ampliada (linhagem) era central: O ebi (família, linhagem) constituía a organização social básica, geralmente sob a forma de linhagem agnatícia ou patrilinear. Ao ebi – e não ao indivíduo-membro – pertenciam os bens de produção e até mesmo os títulos de nobreza. Seus membros viviam juntos no agbô-ilê (conjunto de casas, grande comunidade). A cidade ou a vila (ilu) era formada por vários agbô-ilê (SODRÉ, 1988, p. 49). Pela impossibilidade de manutenção da forma social clânica no Brasil é que se pode afirmar o terreiro, o egbé (comunidade litúrgica organizada), como unidade substitutiva, responsável pela transferência e salvaguarda de grande parte do patrimônio cultural negro-africano, que aqui firmouse como “território político-mítico-religioso” (SODRÉ, 1988, p. 50). Nem é por outra razão que existem (qual pudemos comprovar a campo diversas vezes) de dois principais espaços dentro da comunidade com características funcionais distintas: um é urbano, de uso público e privado do culto, outro virgem, compreendendo árvores, fontes, nascentes e “mato” em geral. Contudo, o egbé não coincide com os limites físicos do terreiro: O “terreiro” ultrapassa os limites materiais (por assim dizer polo de irradiação) para se projetar e permear a sociedade global. Os membros do egbé circulam, deslocam-se, trabalham, têm vínculos com a sociedade global, mas constituem uma comunidade “flutuante”, que concentra e expressa sua própria estrutura nos “terreiros” (SANTOS, 2008, p. 33) Como espaço partilhado de vida (vida sempre, mesmo além e a despeito da morte física), o terreiro é organizado como um polo diferencial, regulado pela lei da arkhé (o princípio da tradição) no meio da sociedade capitalista, 37 “L’espace sacré, c’est donc l’espace clos entre les murs ou les limites du terreiro” [O espaço sagrado é, portanto, o espaço cerrado entre os muros ou os limites do terreiro] (BASTIDE, 2000, p. 99). 388 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino regulada pela lei do mercado. Se o espaço do terreiro não é apenas terra, mas território político, é porque se entende como extensão, um postoavançado da África no além-mar, depois de ritualmente demarcado: Inscrito no corpo da terra, o terreiro é o espaço-lugar de uma potência sagrada, mas, também, marco tópico de uma diferença. É um espaço diferente do espaço da classe-etnia dominante. Um lugar que se fez imantar por outros signos. Que, por isso mesmo, possui uma identidade distinta da dos lugares comuns da cidade e de sua periferia. Ali está o ponto onde o escravo já não é escravo, mas filho de um deus ou de uma deusa, de uma entidade sagrada africana, de um orixá. (RISÉRIO, 2007, p. 174) É por isso que se convocam os deuses a habitarem naquele espaço, todo disposto e pensado segundo a cosmologia dos orixás. O santo, não por mero acaso, deve ser “assentado”, fixado em sua nova morada no exílio. Isso é possível pela capacidade do axé (força, tradição e força da tradição) de “gerar espaços” (SODRÉ, 1988, p. 96), de instituir ordens. “Pouco importa a pequenez (quantitativa) do espaço topográfico do terreiro, porque ali se organiza, por intensidades, a simbologia de um Cosmos” (SODRÉ, 1988, p. 52). O lugar é crua paisagem, na ausência da cultura, mas apropriado a serviço de uma lógica humana, o espaço ganha um uso político, fazendo dele território. O mesmo território torna-se contra-hegemônico na medida em que fortalece a lógica do lugar próprio (o local) em detrimento da lógica dos não-lugares ou dos lugares impostos (o global). Para Milton Santos, Há um conflito que se agrava entre o espaço local, espaço vivido por todos os vizinhos, e um espaço global, habitado por um processo racionalizador e um conteúdo ideológico de origem distante e que chegam a cada lugar com os objetos e as normas estabelecidos para servi-los. (SANTOS, 1996, p. 18) A dicotomia entre o “dentro” e o “fora” da comunidade (a “parte de cá” e a “parte de lá” do terreiro), o lugar (centro de diversidade humana) e o mundo (centro de homogeneidade cultural). É verdade, não cabe enclausurar a análise tão somente na fricção pertinente, porém contextualizada, do local x global, mesmo porque foi, em grande medida, a manutenção de relações transnacionais entre Bahia e Costa da África que permitiu o fortalecimento do culto ancestral no Novo Mundo (VERGER, 2002). Tal tensão, embora não permanente, é produto candente de nossa temporalidade angustiada sob um projeto de colonialismo geográfico. Todo ordenamento, inclusive o jurídico, começa por ordenar o espaço da vida. Assim, como expressão amadurecida do Lebenswelt (o “mundo da vida” na ética habermasiana), a organização (o éthos ou Ettlichkeit) do terreiro responde a uma composição alternativa: 389 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras É uma solidariedade para além das dimensões do individualismo burguês, com raízes na divindade (princípios cósmicos) e na ancestralidade (princípios éticos). Por meio da aglutinação grupal, acumulam-se de preferência homens, seres-forças, ao invés de bens regulados pelo valor de troca. (SODRÉ, 1988, p. 108) A casa de santo, o ilê axé (“casa da força”), o terreiro de candomblé instauram heterotopias38, espaços de convergência de muitos espaços e de lógicas contra-hegemônicas (da sociabilidade popular), a partir de uma inscrição solidária/solitária na territorialidade alheia, sendo, ainda hoje, um dos epicentros da cultura negra no mundo dos brancos. 3.2. O negro na urbs branca Contrariamente ao espaço transcultural do terreiro, o espaço da cidade ocidental, subjugado à normalização do Estado-nação moderno - que dele se apoderou ao longo de verdadeiras “guerras espaciais” pelo monopólio do direito de cartografar39 - atende a uma dinâmica em que imperam, mormente, as verticalidades40 e não as horizontalidades: A especificidade do relacionamento entre espaço e força tem consequências sobre a natureza do poder exercido. Assim, o poder da Polis – assentado em forças cosmológicas, em deuses – difere do poder romano da Urbs, que associa espaço de poder político com espaço fundiário. Subjaz ao poder romano a ideia do moderno Estado-nação, que busca a unificação à base de denominadores comuns redutores das diferenças, avessos à pluralidade étnico-cultural. (SODRÉ, 1988, p. 91) Prova disso foram todas as tentativas, ao longo do tempo, de “limpeza étnica” ou de “desafricanização” (FERREIRA FILHO, 1998-1999) das ruas, das praças, dos portos, com o álibi do regramento oficial. É patente nos governos e na legislação do sec. XIX a preocupação em, ao lado das elites brancas, projetar o Brasil como nação desenvolvida. Médicos higienistas, seguidores da literatura francesa, darão início a verdadeira cruzada contra 38 O conceito, originalmente apresentado por Michel Foucault na conferência “Utopia e heterotopias”, é assim assumido por Joaquim Herrera-Flores na esfera da Teoria Crítica dos Direitos Humanos: “A heterotopia, à diferença do impulso utópico, não se baseia na esperança de um novo começo histórico situado no futuro. A densidade conceitual da heterotopia reside, ao contrário, no impulso de situar-nos em meio à história, aos processos e desde aí considerar todo o existente como algo em devenir e transformação constante. Quer dizer, a heterotopia, como outro lugar a partir do qual se construirá o radicalmente novo, não supõe situar-nos mais além da história, do fluir dos processos, das mutações da realidade, mas, ao contrário, reapropriar-nos desse fluir e dessa possibilidade de mutação para conseguir condições que nos permitam devenir outra coisa, devenir algo novo no marco da realidade e da época histórica na qual vivemos.” (HERRERA FLORES, 2009, p. 35) 39 “A modernização dos arranjos sociais promovidos pelas práticas dos poderes modernos [pelo Estado] visava ao estabelecimento e perpetuação do controle assim entendido. Um aspecto decisivo do processo modernizador foi portanto a prolongada guerra travada em nome da reorganização do espaço. O que estava em jogo na principal batalha dessa guerra era o direito de controlar o ofício de cartógrafo.” (BAUMAN, 1999, p. 37). 40 “Na democracia de mercado, o território é o suporte de redes que transportam regras e normas utilitárias, parciais, parcializadas, egoísticas (do ponto de vista dos atores hegemônicos), as verticalidades; enquanto as horizontalidades, hoje enfraquecidas, são obrigadas, com suas forças limitadas, a levar em conta a totalidade dos atores.” (SANTOS, 2008, p. 143). 390 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino as formas populares de usufruto da cidade, um risco, acreditavam, para a “saúde pública”. A racionalização do espaço público através de políticas sanitaristas e ordenadoras, impondo limites à formas de ser, de estar e de morar negras (SANTOS, Y. 2010), esteve presente com ênfase nos Códigos de Posturas Municipais do período e posteriores. A política do “botaabaixo” no Rio de Janeiro do início do sec. XX desabrigou cirurgicamente os negros cariocas: Com as reformas urbanas, o prefeito Pereira Passos pretendia combater as doenças endêmicas que infestavam os lares e ruas, remodelar e arejar a cidade com grandes avenidas e dar fim aos cortiços. A população migrantenegra-baiana que ocupava essas habitações populares passou a residir no espaço registrado na história cultural da cidade como “Pequena África”, que consta nos mapas como Cidade Nova. (DINIZ, 2008, p. 39-40) Mas não apenas sobre a antiga Corte o “embranquecimento” lançou seu olhar. O desmonte do Centro Velho em São Paulo exemplifica o mesmo tipo de estratégia biopolítica: (...) a legalidade urbana foi construída a partir de um padrão único e supostamente universal, que genericamente correspondia ao modo de vida das elites paulistanas no momento em que os instrumentos legais foram propostos. A análise detalhada desses territórios revela como o direito urbanístico, enquanto discurso e processo, funciona como mecanismo de criação de um espaço (ainda que imaginário) definidor de limites, domínios e hierarquias, condenando singularidades divergentes. (ROLNIK, 1997, p. 61) Saltam dessa análise a minúcia e o rigor com que se buscava assegurar cada vez mais a “tranquilidade” e “salubridade” nos centros urbanos em expansão, reflexos de todo um discurso “civilizatório” que permeia as políticas oitocentistas. Como recursos retóricos insistentes, vemos o apelo à ordem e saúde públicas empregados na batalha ferrenha contra a mais enraizada cultura popular. No imaginário europeizado e “embranquecedor” das elites brasileiras não cabiam folguedos pagãos, exóticos tambores, procissões mulatas, nem grandes funerais de reis negros, como tantas vezes retratou Debret em suas obras. Para colocar no seu lugar os calundus e candomblés, para sanear a cidade, numa palavra, para nos modernizar é que estavam aí tanto as leis como os fiscais, a pena dos doutores e o peia dos feitores. Em nossos dias, o impasse da segregação sócio-espacial permanece: favelas, periferias, vilas, aldeias e quilombos são mais objeto de criminalização que de atenção propositiva dos poderes públicos. O programa de branqueamento pactuado entre as elites, ao lançar os 391 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras marcos inaugurais da nação brasileira, foi recepcionado no ideário das instituições estatais, traduzindo-se em ação repressiva ou omissão expressiva (SKIDMORE, 1976). E sob o influxo da urbanização e da industrialização, na segunda metade do século XX, chegou-se mesmo ao ponto de se decretar a “morte branca do feiticeiro negro”, supostamente sepultado pelo processo de racionalização interna experimentado por uma parcelada do campo religioso afro-brasileiro, como a umbanda (ORTIZ, 1999). Tentemos vencer essa miragem. 3.3. O negro na polis multicromática De um modo geral, as religiões de matriz africana, sem reinventarem-se, estariam há muito condenadas na cidade que lhes é inóspita. A ampliação da democracia, na perspectiva desses grupos, não tem propriamente a ver com a laicização do espaço público, mas com a possibilidade de seu reencantamento por meio do acesso plural aos seus (des)vãos. Porque, ainda que o espaço físico seja o mesmo, não é a mesma avenida aquela em que passa o cortejo militar e aquela em cuja esquina se deposita uma oferenda. Se a casa e a rua já foram lidas pela antropologia cultural na chave de uma dicotomia estruturante das relações sociais no Brasil (DAMATTA, 1997), para o candomblé elas surgem sem solução de continuidade, conquanto atendendo a funcionalidades cosmológicas distintas. Aqui caberia uma investigação de semiótica, de “poética” do espaço (BACHELARD, 1988), pela qual não nos agora toca incursionar. O que podemos é evidenciar a maneira como cada código de práticas sociais determina uma singular (e, não raro, conflituosa) apropriação dos lugares comuns: As religiões afro-brasileiras têm enfrentado oposição em várias cidades brasileiras também sobre onde depositar os “despachos”, ou oferendas aos deuses. Em nome da proteção ambiental e da consciência ecológica, os locais tradicionalmente utilizados para depósito dos sacrifícios - lagoas, rios, cachoeiras, matas - têm sido protegidos, ou pelo menos negociados em sua utilização com outras entidades do estado ou da sociedade civil. De qualquer maneira, há um avanço político aqui: até trinta anos atrás, jogar despachos na rua, nas esquinas ou mesmo em terreno baldio era visto como um ato de poluição simbólica por parte dos adeptos do catolicismo que se sentiam soberanos em representar a sociedade brasileira como um todo. E era também um “símbolo do atraso” em termos do relógio da modernidade: provocava vergonha para aqueles que olham o laicismo como um sinal de “evolução” e “desenvolvimento social”. Agora a discussão pode superar o preconceito e transformar-se numa negociação entre iguais em torno de um bem comum, qual seja, a área pública. (CARVALHO, 1999, p. 15-16) 392 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino A diferenciação tangenciada discursivamente se realiza espacialmente: a nação, ao imprimir a tradição e a cultura sobre uma determinada fração de terra, institui um território (Onilé41), considerado ele mesmo em descompasso com território nacional. Há e não há integração entre o terreiro e a cidade. Num primeiro momento analítico, ele representa um recorte diferencial em termos civilizacionais. Não obstante, logo em seguida, podemos distinguir na nebulosa quase homogênea da metrópole, sinais e marcas no tecido da polis que revelam a presença do mítico no âmago daquilo que deveria ser a expressão mais bem-acabada de racionalidade ocidental, de modernização, de secularização. Conforme buscamos demonstrar, o ritual politiza o espaço da cidade à medida que dele se apropria. A paisagem urbana se conforma na produção conflituosa do espaço, como se dá na Festa do Bonfim42. A seu modo, a etnografia de Silva sobre os usos místicos do urbano pelas religiões afro-brasileiras traz mais aportes para sustentar a tese de que a superação do modelo político-urbanístico da urbs monocromática por uma verdadeira polis pluriétnica e multicultural passa pela ressignificação da cidade e de seus exclusivismos, ora quando a tradição religiosa recompõe os espaços naturais indispensáveis à realização do culto, ora quando reconhece nos nichos do artifício humano (esquinas, cemitérios, etc.) o domínio de seus deuses: A presença do terreiro na cidade é, pois, o resultado dessa dinâmica relacional entre o dentro e o fora da religião construída através do diálogo entre os dois universos. E nesse diálogo entre o candomblé e a cidade, a incorporação de um universo pelo outro permite que os deuses (e os seus ritos) se transformem para habitar a cidade (como espaço físico e social) e que esta se faça cada vez mais apropriada para recebê-los e protegê-los como parte de seu amplo mercado de bens simbólicos. (SILVA, 2000, p. 122) Não se deve desprezar a força política dessa reterritorialização, a intensidade mística e insurgente da simbolização como manifesto reivindicativo de direitos e isonomias. Toda essa escrita do imaginário fundamenta-se numa determinada concepção marginal de justiça, de cidadania e de dignidade humana, objetos de disputa e de permuta entre Thémis e Xangô. 41 Ou seja, a própria terra, o solo, que deve ser periodicamente alimentado e consagrado ritualmente. 42 “(...) estudando as manifestações festivas e religiosas que ocorriam na península de Itapagipe, pudemos observar a dinâmica da longa e multifacetária história da Bahia. Uma história de luta, que envolveu questões relacionadas com religião, a política, a moralidade, continuidades e rupturas da tradição, valores do catolicismo, religiosidade africana e a realidade do amplo processo de miscigenação cultural (...) Embora fugaz, pois se realiza apenas uma vez por ano, a festa do Bonfim confere à cidade um significado particular, apresentando uma linguagem própria” (SANTANA, 2009, p. 227). 393 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras 4. Quando Thémis encontra Xangô: encruzilhadas da justiça e dos direitos Logo ali, na encruzilhada onde Thémis – síntese da herança grecoromana do direito ocidental – esbarra com Xangô – ícone da justiça de dinastia nagô-iorubá – Ogum, divindade de (van)guarda, busca abrir o caminho estreito rumo a uma cidadania negra, ainda hoje mais margeado de mocambos que de sobrados. Antigos são os dilemas, contemporâneos os debates que os pretendem enfrentar. Velhos são os deuses, novos são os mundos que passaram a habitar. Todavia, conforme discorre Kwame Appiah, não são irredutivelmente inconciliáveis, nem no plano cognitivoepistemológico, nem no plano ético-político, aquilo que, na falta de termos mais adequados, poderíamos caracterizar como “tradicionalidade” e “modernidade” (APPIAH, 1997, p. 191-192). Enquanto a intolerância, a estigmatização e a expectativa dos direitos instituídos, porém negados43, fustigam o povo-de-santo brasileiro, em Gana, um pássaro encara o próprio rabo. Este não é um koan chinês, mas um ideograma adinkra. O pássaro, por sua vez, é Sankofa, imagem que lembra: “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”, noutras palavras, “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”: O ideograma Sankofa remete à missão e ao momento de recuperar a dignidade humana desses povos. Espalhados pelo mundo, africanos e seus descendentes se reconhecem herdeiros de uma civilização que engendrou a escrita, a astronomia, a matemática, a engenharia, a medicina, a filosofia e o teatro. O conhecimento e o desenvolvimento permeiam a história da África, em sistemas de escrita,, avanços tecnológicos, estados políticos organizados, tradições epistemológicas. (...) Nele, o princípio Sankofa significa conhecer o passado para melhorar o presente e construir o futuro. (NASCIMENTO e GÁ, 2009, p. 22) Numerosas são, neste viés, as convergências entre o repertório jusepistêmico afro-brasileiro e os desafios atuais para a confirmação de uma perspectiva não mais universalista, mas multicultural, dos direitos humanos, com destaque para as sociedades cindidas por heranças coloniais de desigual distribuição de oportunidades e de acesso a bens jurídicos e a capital simbólico/cultural. A contribuição proporcionada pelo imaginário da justiça afro-brasileira para enriquecer o estatuto da democracia contemporânea diz respeito à introjeção, na equação da teoria clássica do direito, de vetores de descolonização, haja vista a 43 Como exemplos de direitos cuja defasagem de implementação avulta para os religiosos de matriz africana, em relação a outras devoções, são a previdência social para seus sacerdotes (ALVAREZ e SANTOS, 2006) e a imunidade tributária dos respectivos templos e locais de culto relativa ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Sobre este último ponto, remetemos ao parecer elaborado pela Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia, entregue ao Município de Salvador para pleitear, com sucesso, o benefício constitucional em favor do Ylê Axé Oxumarê, importante casa de santo da cidade (in: Revista da AATR, 2004). 394 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino simbiose não abolida entre a matriz judaico-cristã de pensamento e as fabulações do direito moderno: La referencia a Dios es sin duda uno de los rasgos más arcaicos, pero también más recurrentes, del pensamiento jurídico, aun cuando la secularización progresiva de nuestros derechos occidentales y la “emancipación” al menos parcial del derecho “humano” en relación al derecho “divino” redujo aparentemente la actualidad de este fenómeno (...) Kelsen lo afirma con nitidez: entre Dios y el Estado no se establece sólo un paralelo lógico; existen relaciones reales que los aproximan (OST e KERCHOVE, 1991, p. 73-76) Além da imbricação estrutural entre teologia cristã, teoria do Estado e filosofia política que se revela ainda (oni)presente (no fundamento transcendental da autoridade do ordenamento jurídico, na sua organização piramidal hierarquizada, na sistemática de “absolutidão” e ausência de anomia etc.), indícios menos monumentais, mas nem por isso menos sintomáticos, assomam nos símbolos religiosos em exposição nas repartições públicas, nas casas de leis, nas salas de justiça. Uma permanência justificada, a despeito dos imperativos angustiados da laicidade, como traço cultural do povo brasileiro. Cultura que, a propósito, salvaguardada nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, deixa, pouco a pouco, de ser patrimônio de contemplação narcísica, para tornar-se instrumento de empoderamento dos povos e comunidades tradicionais, categoria esta que abarca também o povo de terreiro, por expressa disposição do Decreto n. 6.040/2007. Na contramão das imanências naturalizadas, novas metodologias e projetos eclodem por todas as latitudes: fala-se em jurisdições indígenas e negras em diversos países da América Latina, fala-se em autogoverno. No Brasil, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei Federal n. 12.288/2010), entre outras matérias de relevo, dedicou à liberdade de crença especial atenção: Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende: I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins; II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões; III - a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas; IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica; V - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à 395 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras difusão das religiões de matriz africana; VI - a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das respectivas religiões; VII - o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões; VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais. Art. 25. É assegurada a assistência religiosa aos praticantes de religiões de matrizes africanas internados em hospitais ou em outras instituições de internação coletiva, inclusive àqueles submetidos a pena privativa de liberdade. Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de: I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas; II - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas; III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público. Ao tempo em que comunidades-terreiro começam a sair da invisibilidade através da replicação, em escala nacional e com expressivo êxito, de procedimentos de mapeamento participativo como os adotados pelo projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, pais e mães-de-santo, mediadores por natureza entre mundos, compõem cotidianamente conflitos, demandam perante os tribunais, constroem alianças, integram-se ao planejamento e à execução de políticas públicas e dialogam com o establishment cada vez mais intensamente. O povo-de-santo não passa em branco. Veem e fazem-se vistos, encarnando o dizer dos antigos: “quem não é visto não é lembrado”. E o fazem desde seu olhar sobre a justiça, da sensibilidade jurídica44 que lhes é peculiar. Nada obstante, impende reconhecer: mais do que ao encontro, Thémis e Xangô estão habituados ao embate pelos sentidos da legalidade. E não 44 Na arquitetura teórica de Clifford Geertz, a sensibilidade jurídica de cada grupo social seria “o primeiro fator que merece atenção daqueles, cujo objetivo é falar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito. Pois essas sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir (...) e, profundamente, nos meios que utilizam – nos símbolos que empregam, nas estórias que contam, nas distinções que estabelecem – para apresentar eventos judicialmente.” (GEERTZ, 1997, p. 261-262). 396 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino é preciso ir longe para verificar a tensão que subsiste entre os valores de dignidade assumidos pelo Estado Democrático de Direito, alicerçado em uma ficcional laicidade, e a prática segregacionista de suas instituições. Permanecem vigentes em nosso ordenamento tipos como o do anacrônico artigo 284 do Código Penal (embora haja alentos de mudança em seu atual processo de revisão), a ensejar constante criminalização da umbanda, do candomblé, do batuque, do tambor de mina, do xangô e de seus congêneres. Em tese, ao menos, e interpretado sem o necessário giro de constitucionalização, o dispositivo inviabilizaria qualquer espécie de manipulação litúrgica ou fitoterápica prescrita pela medicina tradicional afro-brasileira. Venhamos ao pé da letra: Art. 284 - Exercer o curandeirismo: I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa Nítido é o resquício de disciplinarização, de “ortopedia moral” – na expressão foucaultiana – que reside na forma como se encontra dada a redação do artigo. Trata-se de autoritária reminiscência que não merece sobreviver, uma vez que remete sintomaticamente a (...) um confuso conjunto de todos os comportamentos que não correspondiam à vertical disciplina policial da sociedade industrial, traduzível na livre punição do mero portador dos signos do estereótipo. Esse foi o fundamento do estado perigoso sem delito, por meio do qual se pretendia apenar os desocupados, mendigos, ébrios, consumidores de drogas, prostitutas, homossexuais, jogadores, rufiões, gigolôs, adivinhos, magos, curandeiros, religiosos não-convencionais, etc., sem que cometessem qualquer delito, em função de sua pretensa periculosidade pré-delitual. (ZAFFARONI, 2003, p. 577) A partir da análise do material jurisprudencial compilado por A. L. P. Schritzmeyer, abrangendo quase um século de pesquisa (1900-1990), é-nos lícito concluir, desde logo, que, ao contrário da opinião corrente nos meios jurídicos, o crime de curandeirismo segue dando azo à persecução penal, ainda quando absorvida pela Lei n. 9.099/1995, diante de seu menor potencial ofensivo. Continuam tendo lugar, portanto, os episódios, amiúde burlescos, que contrapõem ditos “curandeiros”, seus acusadores e os magistrados nos palcos dos tribunais, mobilizando sentidos, no mais das vezes, antagônicos. Esses espaços, por isso mesmo, constituem profícuos 397 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras “observatórios” sociológicos, refletindo, por extensão, vicissitudes das relações de poder dramatizadas cotidianamente na sociedade brasileira como um todo. Identifica-se, nos casos em que são parte adeptos de religiões afro-brasileiras, a incidência frequente das chamadas metaregras, isto é, vetores hermenêuticos derivados de um código oficioso, nãoescrito (second code) mas operante no processo concreto de imputação da culpa (BARATTA, 2002). Trocando em miúdos, os juízos formulados sobre a conduta descrita no art. 284 valem-se, via de regra, de conceitos hermeneuticamente vagos, deixando transparecer pré-concepções e preconceitos de um viés colonizado. Assim, curas empreendidas por confissões judaico-cristãs são socialmente classificadas como “milagres”. Já curas empreendidas por tradições outras são judicialmente travestidas como “crimes”: Não havia, por tudo isso, em relação à liberdade de culto, possibilidade de garantir espaço oficial para crenças e religiões que fossem, simultaneamente, doutrinárias e práticas, ou seja, tivessem ao mesmo tempo um pé na modernidade teórico-científica e na busca de princípios e pressupostos lógicos (causas e efeitos comprováveis) e outro pé no empirismo de tradições legitimadas por reiteradas atribuições de significado a acontecimentos cartesianamente desconectados. (SCHRITZMEYER, 2004, p. 138-139) Mas a prática da repressão consegue inovar sempre, mostrando-se ainda mais perversa. No Município de Registro (SP), em 2003, durante os procedimentos de iniciação de uma criança, administrados por motivos de saúde, cinco fiéis do candomblé foram presos em flagrante, acusados de “cárcere privado”. A ironia do caso é que fora o sacerdote à frente do terreiro quem, que, de inteira boa-fé, pedira à mãe biológica que comunicasse o Conselho Tutelar sobre a autorização concedida para o tratamento religioso, no intuito de agir da forma mais transparente possível com as autoridades locais. Sua postura, porém, não evitou que mais de 150 pessoas presentes à festa de saída da nova yawô fossem conduzidas à delegacia para prestar esclarecimentos, num quadro persecutório inegável (JÚNIOR, 2008, p. 184). Não à toa, se os juristas invocam argumentos de ordem legal, o povode-santo invoca a ordem sobrenatural, invoca “babá tenù no mo ré” (“o pai que aplica o direito”), entoando: Justiça, meu pai, justiça Justiça para os filhos teus Justiça, meu pai, justiça Ganhou justiça quem mereceu45 45 Cantiga de Xangô recolhida, em 2008, no Terreiro de Umbanda Reino de Aruanda, então situado em Curitiba. 398 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino Seus ecos ainda muito terão de se ouvir. Pois, se, nas últimas décadas, o candomblé pôde fortalecer-se na aproximação com as esquerdas políticopartidárias e com os movimentos sociais, retroalimentando um conjunto de leituras e demandas reivindicativas destes últimos (HOFBAUER, 2006), os anos 1990 testemunharam um “rearranjo global do campo religioso no Brasil” (MONTES, 2012, p. 12), trazendo à baila novos atores e novas correlações de força entre as esferas privada e pública do sagrado. A proliferação dos cultos neopentecostais marcaram uma inflexão de escalante belicosidade contra as religiões afro-brasileiras, reformulando o projeto de embranquecimento em sua modalidade cultural46, africanofóbica: A demonização das religiosidades afro-brasileiras que se produz nesse contexto assume características de verdadeiro etnocídio, porque se estende, para além do universo religioso, à totalidade de um patrimônio cultural negro, preservado ou recriado ao longo de século de história no Brasil, e que sempre constituiu um universo de significados partilhados, permitindo a construção positiva de uma identidade de contraste. Diante de uma religião que se apropria em negativo de todo o conjunto de símbolos que conformam o etos e a visão de mundo próprios às religiosidades afrobrasileiras, na situação limite em que a violência se transforma em terror, o que é grave é que não sobra às pessoas nenhuma opção, sejam elas brancas ou negras. Ou se serve aos desígnios do Maligno, ao se manter qualquer contato com esse universo cultural demonizado, ou se está do lado de Deus, que agora só tem uma única face. (MONTES, 2012, p. 87) Enquanto, pragmaticamente, o reencantamento do mundo praticado pelos religiosos afro-brasileiros sem esteio numa reflexão explicitamente política presta-se a disputar o cotidiano do espaço público, em sua feição mais concreta, como as matas e os logradouros de uso comum, o povo de santo começa a esboçar um discurso articulado em termos propriamente constitucionais, reivindicando do Estado a laicidade formalmente positivada, mas nunca efetivada na vida das instituições públicas brasileiras. Esse movimento dá-se, em grande medida, como reação ao imbricamento conservador entre público e privado, em curso na guerra santa de posições empreendida por setores protestantes mais radicais: A mídia garante visibilidade à igreja e aos candidatos e a filantropia estabelece um vínculo clientelista, pois as figuras que aparecem como gerentes da redistribuição de benefícios são também os candidatos a cargos públicos. A ação política institucional não se resume somente à disputa por mandatos políticos, mas estende-se a outras posições institucionais que estão sendo alvo dos quadros da Igreja Universal [do Reino de Deus], com a disputa mais recente em vários Estados por mandatos nos Conselhos 46 A despeito disso, não se pode descartar a possibilidade de acomodação de outro espectro de questões identitárias ligadas à raça no seio do protestantismo neopentecostal, como sublinham certos estudos (BURDICK, 2001). 399 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões afro-brasileiras Tutelares, com a finalidade de garantir um enraizamento maior nas instituições públicas. (ALMEIDA, 2007, p. 176) concepção jurídica de patrimônio, há também uma incorporação dessa noção à sua cosmologia. (BITAR, 2010, p. 173) Tal “plano de poder”, assim definido pelas próprias lideranças da Igreja Universal do Reino de Deus (MACEDO e OLIVEIRA, 2008), tem promovido deslocamentos nos modelos de interação social e nas estratégias de sobrevivência razoavelmente consolidados e exitosos das religiões afro-brasileiras, passando a ameaçar sua manutenção e expansão, destacadamente nas principais metrópoles do país. Num cenário em que as cadeiras Poder Legislativo são progressiva e difusamente ocupadas por parlamentares oriundos das vertentes neopentecostais, descontinuamente organizados sob as bandeiras de uma “bancada evangélica”, os Poderes Executivo e Judiciário têm sido chamados a estabelecer alianças contramajoritárias com as religiões de matriz africana, haja vista a emergência contemporânea de uma espécie de “jurisdição dos conflitos religiosos como mais uma faceta das transformações que tendem ao pluralismo religioso utilizando-se cada vez mais da regulação externa ao campo religioso” (ALMEIDA, 2007, p. 184). Além de fortalecer o acesso do povo-de-santo aos espaços públicos para fins de trabalho, o registro do acarajé agregou prestígio ao alimento em sua versão tradicionalmente litúrgica, num contexto de acirramento das tensões entre os cultos afro-brasileiros e as igrejas neopentecostais, que se apropriaram da comida votiva rebatizando-a como “Bolinho de Jesus”. É fato que as trocas e entrechoques do candomblé com as classes políticas não são, a rigor, uma novidade, fazendo parte de sua história desde e os primórdios, com indisfarçável aprofundamento a partir da década de 1930 (SANTOS, 2005). Todavia, o debate atual sobre os usos e abusos do acarajé ganhou amplitude nacional e reinseriu na agenda pública a urgência de se refletir sobre os modelos de interação e de regulação do campo religioso, tendo como carros-chefes as pautas da “autoria”, da autenticidade e da tradicionalidade da cultura. Quanto ao estreitamento de laços com o Poder Executivo, à parte o direcionamento de políticas com recorte étnico-racial no marco das ações afirmativas promovidas pelo governo, destacadamente na esfera federal e na última década (GUIMARÃES, 2008), interessantes possibilidades foram entreabertas do reconhecimento oficial de práticas religiosas afro-brasileiras como patrimônio cultural. Se a dimensão material dos candomblés vinha recebendo atenção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde a década de 1980 – sendo o ano de 1986 o divisor de águas nessa aproximação, com o tombamento da Casa Branca do Engenho Velho –, não foi desprezível o avanço da conjuntura recente com relação ao patrimônio imaterial. Prova disso é o conjunto de processos de inventariamento de terreiros em curso em diversos estados, como no Distrito Federal (BRASIL, 2009), ao lado do registro do ofício das baianas de acarajé, levado a cabo em 2004, no Livro dos Saberes. Os efeitos desse expediente não são meramente simbólicos, com a adoção formal por toda a nação brasileira de um elemento tipicamente associado ao culto de Iansã/Oyá, mas repercutem nas lutas cotidianas dos que fazem do acarajé um meio de subsistência: O registro do “ofício” aparece, para as baianas, como um instrumento de legitimação do seu trabalho, diferenciando-as primeiramente dos “ambulantes”. Mas, em outras ocasiões, essas baianas questionam: “para que serve o registro?”. Há uma preocupação das baianas de acarajé pela “utilidade” do registro. Na maioria dos casos, ele é acionado para a vencer dificuldades de legalização do ponto. Não obstante, para além de uma 400 Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino No que toca ao exercício da jurisdição, há que se mencionar duas decisões emblemáticas, a primeira de cunho cível, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e a segunda do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assentando, em disputado julgamento, a inconstitucionalidade da proibição dos sacrifícios rituais de animais nos cultos afro-brasileiros. A Ação de Indenização nº 8.215.479/01, da 17ª Vara Cível e Comercial de Salvador, foi movida pelo espólio da yalorixá Gildásia dos Santos, mãe espiritual do Ilê Axé Abassá de Ogum. A sacerdotisa foi ameaçada e moralmente agredida depois que a Folha Universal, veículo da Igreja Universal do Reino de Deus, publicou matéria altamente ofensiva aos cultos de matriz africana, utilizando sem qualquer autorização imagem sua. A sentença de primeiro grau, datada de janeiro de 2004, condenou a requerida ao pagamento de mais de um milhão de reais. Embora o