Jalal Toufic - Associação Cultural Videobrasil

Transcrição

Jalal Toufic - Associação Cultural Videobrasil
Se você nos pica, nós não sangramos? Não
Dedicado à memória viva de Gilles Deleuze, um filósofo não-vingativo
Nós não temos olhos? Não: “Você não viu nada em Hiroshima” (Duras); “mas Ele
ordenou-lhes que não dissessem a ninguém o que tinha acontecido” (Lucas 8:56). Nós
não temos mãos [?] Não — o homem sem mãos em “L’Ange”, de Bokanowski. Órgãos
[?] Não — Daniel Paul Schreber “viveu muito tempo sem estômago, sem intestinos…
sem vesícula”; e para Artaud, “o corpo é o corpo/ ele é tudo por si mesmo/ e não
precisa de órgãos”. Dimensões, sentidos [?] Não, no caso de um iogue que atingiu
pratyahara, o estado de eliminação dos sentidos. Afeições [?] Não — voltando dos
campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, Septimus, de Virginia Woolf, “não
conseguia sentir”. Paixões [?] Não, para quem atingiu o terceiro tipo de sabedoria de
Spinoza. Alimentados com a mesma comida [?] Não: “não há outro remédio para saciar
a fome do que um bolo de arroz pintado” (Dogen). Feridos pelas mesmas armas,
sujeitos às mesmas doenças, curados pelos mesmos meios [?] Não, Judge Schreber é
ferido e curado por raios divinos. Aquecidos e resfriados pelo mesmo inverno e verão
que um simples cristão? Não: “Viciados sempre se queixam do que chamam O Frio,
virando para cima as golas de seus casacos pretos e apertando seus pescoços
murchos… pura enganação junk. Um viciado não quer ficar aquecido, ele quer ficar
frio—mais frio—FRIO. Mas ele quer O Frio como quer Sua Droga — NÃO FORA, onde
não lhe adianta nada, mas dentro, para que possa ficar sentado por aí com a espinha
como se fosse um macaco hidráulico congelado… seu metabolismo se aproximando do
Zero Absoluto” (Burroughs). — Se você nos pica, nós não sangramos? Não: durante as
cerimônias de andar sobre o fogo na comunidade indiana ao sul de Suva, Fiji, os
participantes perfuram suas bochechas, testas, línguas e/ou orelhas sem que o sangue
escorra. Meu vídeo “‘Âshûrâ’: This Blood Spilled in My Veins”, de 1996, com sua
documentação de sangria ritualística, foi uma demonstração de que xiitas também
podem sangrar? Se é de fato uma demonstração, ela seria unicamente em proveito dos
israelenses e americanos, de maneira que pudessem verificar que nós também
sangramos sem ter de nos bombardear no sul do Líbano. Eu, como xiita, certamente
não preciso de tal demonstração, uma vez que já sinto que até mesmo o sangue em
minhas veias é sangue derramado, independentemente de quaisquer feridas sofridas
em minha vida; uma vez que já sinto que estou sangrando em minhas veias. Mas
“‘Âshûrâ’: This Blood Spilled in My Veins” não é de fato uma demonstração de que, se
picados, sangramos: eu não sou uma pessoa vingativa. Uma certa perturbação já é
introduzida nesta fórmula por aqueles que, embora sangrem, o fazem sem ser picados
ou feridos: os estigmas de muitos santos e muitos histéricos; o sangue derramado das
veias de muitos xiitas. Em “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, o advogado
informa ao judeu Shylock que ele certamente tem permissão, pelo contrato assinado
por seu devedor Antônio, de cortar uma libra de carne do corpo deste, mas que tem de
fazê-lo sem verter um pinguinho de sangue, pois, caso contrário, seria perseguido por
tentar assassinar um cristão. A estipulação do advogado é um lembrete de que Antônio
sangra. Ela implicaria que, enquanto especificava o contrato, Shylock se esquecera de
pensar que, na eventualidade de ser picado, Antônio sangraria. Eu precisaria chegar à
última parte do discurso de Pórcia-como-advogado, quando ela enumera todas as
punições que Shylock deve sofrer, para entender que ela é uma pessoa vingativa? Não
seria suficiente que ela sugerisse a Shylock durante sua defesa de Antônio: “Se você
nos pica [nós, cristãos], nós não sangramos?”. A desistência de Shylock de fazer uma
incisão na carne de Antônio para dela tirar uma libra — no temor de verter sangue e
possivelmente causar a morte de um cristão — ainda é um gesto vingativo. Caso
Antônio tivesse começado a sangrar através de estigmas, isso teria interrompido a
vingança por lembrar a Shylock que Antônio também sangra? Caso o sangramento
através de estigmas tivesse acontecido em outros pontos que não os contornos da área
designada para sofrer a incisão, isso, ao contrário, seria um gesto vingativo. A vingança
realmente poderia ter sido detida? Se a peça de Shakespeare prosseguisse não com a
recusa do advogado à proposta tardia de Shylock para acertar a questão com dinheiro,
e a subseqüente longa e vingativa lista de punições, variando de religiosas — a
conversão — a financeiras, imposta a ele pelo advogado, mas, para surpresa de todos,
incluindo Antônio, com o repentino sangramento deste através de estigmas nos
contornos precisos da área especificada no contrato — fosse à maneira dos santos ou
histericamente —, a vingatividade de ambos os lados possivelmente poderia ter sido
detida. O sangramento de Antônio através de estigmas nos contornos precisos da área
especificada para a incisão teria dado a Shylock a oportunidade de empreender
vingança, já que então ele poderia ter cortado a libra de carne e nada teria provado
incontestavelmente, que o sangue derramado teria se originado dos ferimentos a ele
infligidos e não dos estigmas (nesta peça em que uma mulher e sua criada assumem o
papel de um advogado e de seu subordinado, e em que a filha de Shylock se disfarça
de homem etc., o sangue de uma ferida externamente infligida teria se disfarçado de
sangue vertendo através de estigmas). O sangramento através de estigmas naquelas
áreas precisas teria tornado aparente para todos os presentes, incluindo Shylock e o
advogado, que Antônio não sangra no ponto da incisão, que quando picado ele não
sangra devido a isso. Tal sangramento teria dado a Shylock a oportunidade de se
vingar, enquanto lhe destituía da vingativa lógica da similaridade. O sangramento
psicossomático teria impedido as falanges cristãs, e seu cúmplice e suserano, o
exército israelense, de massacrar os palestinos em Sabra e Shatila? Eu acho que não.
Se você nos faz cócegas, nós não rimos? Quanto a mim, não, e não porque esteja
deprimido, mas porque em geral acho esse período histórico tão ridículo que, se
começasse a rir, temo que não conseguiria parar. Lembro como, quando ficava chapada
de maconha, minha ex-namorada ria nervosamente de tudo sem parar. Eu nunca tive
esse tipo de acesso de riso prolongado nas poucas vezes em que fumei maconha.
Mesmo assim tenho certeza de que se começasse a rir desse modo em meu estado
normal de consciência, minhas risadas certamente ofuscariam as dela. Quanto a ela,
não havia perigo de começar a rir e não conseguir parar até passar mal: ela não achava
as sociedades contemporâneas tão ridículas. Tudo que peço a este mundo, ao qual já
dei três livros, é que se torne menos risível, de modo que eu consiga rir novamente sem
morrer por causa disso. E que ele faça isso logo, antes que minha melancolia se torne
uma segunda natureza. Esta época me tornou melancólico não só por todas as
barbáries e todos os genocídios que vem perpetuando, mas também por ser tão risível.
Mesmo neste período de suma tristeza para um árabe, em geral, e para um iraquiano,
em particular, tenho mais medo de morrer de rir do que de um suicídio melancólico, e
assim sou mais propenso a abrir minha guarda quando se trata de estar triste do que
de rir de fenômenos risíveis. O cômico pensador Nietzsche deve ter vivido numa época
menos risível do que esta para ainda permitir-se à sublimidade de “Ver trágicas
naturezas afundarem e conseguir rir delas, a despeito da profunda compreensão, da
emoção e da compaixão que se sente — isso é divino”. Numa época risível, nem
mesmo as divindades estão imunes a essa morte provocada pelo riso: não foi desse
modo, de acordo com Nietzsche, que os deuses morreram ao ouvir um deles declarar
que era o único Deus (“Assim Falou Zaratustra”, “Dos Apóstatas”)? Neste ponto da
história, alguém ainda consegue rir lendo Nietzsche, Beckett, Bernhard? Esta época
não roubou de nós uma grande faceta dessas obras: seu humor? As pessoas
contemporâneas dotadas de humor ainda acham o trabalho de Richard Foreman, ou até
mesmo meu trabalho inicial, risível — sem morrer por isso? Todas as pessoas
engraçadas de épocas ridículas não são suficientemente cômicas; para descobrir as
pessoas com mais humor numa época dessas é preciso procurar entre as sérias, as que
precisam dessa seriedade para não morrer de rir. A esse respeito, atingi um ponto
crítico em 20 de junho de 1996. Eu estava numa fila bem longa num caixa do
supermercado Ralphs, em Wilshire and Bundy, Los Angeles. O funcionário acabara de
ir até um dos corredores mais distantes para verificar o preço de um dos itens trazidos
por um cliente. No meio de muitas revistas na estante ao lado, vi a última edição da
“Time”. A chamada de capa era: “As 25 Pessoas Mais Influentes da América”.
Folheando as páginas à procura dessa matéria, fui repentinamente tomado por uma
apreensão beirando a ansiedade: se começasse a rir ao ler alguns dos nomes citados,
não conseguiria parar, e até minha estimulada seriedade desta vez se mostraria incapaz
de funcionar como um mecanismo de defesa. Quatro meses depois, continuo sem saber
se o intenso receio que senti naquela situação foi justificado. Mas daquele dia em
diante uma vigilância ainda mais intensificada contra começar a rir tornou-se uma das
características salientes da minha vida.1 Se você nos envenena, nós não morremos?
Não, nós não podemos morrer, seja porque temos assuntos não resolvidos (numa
perspectiva restrita: o velho rei Hamlet; ou outra ampliada: os ciclos da morte e do
renascimento do Budismo Hinayana); ou porque nos tornamos fundamentalmente
liberados de quaisquer assuntos não resolvidos, e agora, quando em vida, estamos
plenamente na vida, quando em morte, estamos inteiramente na morte, o nascimento
não levando à morte, a morte não levando à vida (“Birth and Death” [“Shoji”], de
Dogen). Fossemos nós somente os vivos, que em alguma data futura morreremos
biologicamente e deixaremos de ser, haveria apenas a moralidade vingativa da
identificação — nós também não choramos, rimos e biologicamente morremos etc.? —
a nos impedir de nos matarmos uns aos outros e a impedir os outros de nos matarem. O
que mais deveria nos persuadir contra o assassinato é que antes somos seres mortais,
portanto não mortos enquanto vivemos, e que como seres não mortos somos
submetidos a todo nome na história é eu. A vingativa questão retórica “Nós também
não sangramos, rimos e (biologicamente) morremos?” deveria ser substituída por “Eles
podem nos fazer chorar, rir, eles podem nos matar — isso é tudo”. A pergunta que
segue diretamente as precedentes de “O Mercador de Veneza” é: E se você nos fizer
mal, nós não devemos nos vingar? Que perspicácia de Shakespeare ao detectar e
sugerir que essa maneira de pensar, que discorre sobre a similaridade, é vingativa. É
vingativa não apenas porque uma pessoa só pode se vingar de algo que tem afeições,
sentidos etc., ou seja, de alguém que possa ser afetado pela vingança, nem só porque
vingança é mais uma similaridade — se somos como você no resto, nos pareceremos
com você nisso (Ato III, cena I, 53-62); mas como tal. Sim, em última análise, todo
discurso que invoca uma similaridade fundamental é vingativo, é um discurso de
vingança. Nietzsche escreveu em algum lugar que é humano se vingar e inumano não
fazê-lo. Isso não seria também porque o humanismo (nós também não rimos,
sangramos, [biologicamente] morremos…?) é vingativo, mesmo independentemente de
qualquer mal sofrido, mesmo ou especialmente quando isso invoca uma coexistência
tolerante baseada numa similaridade fundamental? E não são muitas as maneiras antes
mencionadas de dizer Não a tais questões vingativas tentativas de escapar, deixando
de exercer a generalizada vingatividade em toda parte? — infelizmente, em alguns
casos fracassando e resultando ainda em outros tipos de vingança.
Jalal Toufic
Extraído de “Forthcoming” (Berkeley, CA: Atelos, 2000), pp. 41-46.
1 Ainda não está claro para mim por que essa apreensão anômala aconteceu neste
caso e não, digamos, em reação às notícias que se seguiram ao massacre que um
extremista judeu infligiu a dezenas de palestinos que estavam rezando na mesquita em
Hebron. Um toque de recolher foi imposto à população palestina de 130 mil pessoas e
não aos 450 colonos judeus em seu meio (alegadamente para se proteger contra
potenciais represálias por parte dos palestinos). Também não entendo por que isso não
se deu em vista da leitura dos principais jornais norte-americanos dizendo que o Iraque
está “invadindo” seu norte.
Jalal Toufic
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