Carlos Wizard - Editora Gente

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Carlos Wizard - Editora Gente
que Antônio aprendeu duas profissões, a de comerciante e a de motorista.
1. O menino que sonhava partir
Com o passar dos anos, assumiu o posto do caixeiro e passava a semana
oferecendo mercadorias para uma clientela já formada no interior do
Ouro, meu Deus! Ouro. Hilda estremeceu. Precisava de alguma
estado. Mais tarde seu Gilberto comprou uma caminhonete e o trabalho de
coisa de ouro. Se não, como dar banho no recém-nascido? A bacia de
Antônio ficou mais empolgante. Sentir-se evoluindo o deixava orgulhoso.
latão estava cheia de água morna, ela tinha pressa. O que possuía de ouro
“Em 1950, meu patrão mudou-se para Curitiba, fui com ele, para montar
para colocar na água do banho? Naquela casa modesta de caminhoneiro
o Café Maracanã. Até ajudei a construir o prédio da fábrica”, diz Antônio.
não havia nem sombra do metal precioso, Hilda não tinha joias, colares,
“Logo eu me tornei o vendedor número um, tinha jeito para a coisa. Não
correntinhas, nada.
havia mês em que a venda não atingisse os 30 mil quilos de café em pó,
Então sorriu. Claro que tinha ouro. A solução estava em suas mãos.
uma quantidade enorme para a época.” Ele se lembra do contentamento
Por mais remediada que fosse, a aliança de ouro do casamento era ponto
que teve quando o patrão comprou um caminhão novinho, Chevrolet, e
de honra. Hilda tirou o anel do dedo e o colocou na bacia para o primeiro
colocou nas mãos dele.
banho de Carlos. Segundo a crença dos imigrantes italianos do Paraná
O Paraná que tinha completado 103 anos de emancipação política
daquela época, o primeiro banho de uma criança deveria ter na água um
vivia já um período de declínio da agricultura cafeeira, enquanto a do mate
objeto de ouro para trazer boa fortuna e prosperidade. Qualquer um. Se
prosseguia, ao passo que a desenfreada extração da madeira prenunciava
bem não fizesse, mal não haveria de fazer. Assim foi dado o banho de ouro
o esgotamento das reservas. Havia uma indústria incipiente e a imigração
no recém-nascido. Era 19 de setembro de 1956.
seguia seu curso com o Paraná recebendo levas de poloneses, ucranianos,
O pai de Carlos, Antônio Oriondes Martins, natural de Clevelândia
alemães, japoneses, italianos, sírio-libaneses. Quando Carlos nasceu,
(PR), deixou a mãe e a cidade de Pinhão aos 13 anos, para mergulhar na
Curitiba vivia uma década de desenvolvimento. Se em 1950 contava com
vida. Era a necessidade de dias melhores. João Martins, o avô de Carlos,
180 mil habitantes, em 1960 atingira quase o dobro, 362 mil.
tinha morrido quando Antônio estava com apenas 10 anos. Sozinha, Dulce,
Entre os italianos que começaram a chegar ao Paraná no final do
a mãe, vivia em dificuldade para sustentar os filhos pequenos. Antônio foi
século XIX, estavam os Sforza, os Andreatta, os Ferrarini, bisavós maternos
levado para trabalhar com o seu Gilberto, agora seu patrão, um caixeiro
de Carlos. Fixaram-se na colônia
-viajante que vendia de tudo um pouco. Antônio começou a vida como
Farias, município de Colombo. Quanto aos avós paternos, João
aprendiz aos 13 anos percorrendo o Paraná, de cidade em cidade, de vila
Martins e Dulce, ele morreu cedo, como se viu. Dulce viveu até os 85 anos.
em vila. Ocasionalmente iam para São Paulo pela estrada de ferro, nos
João e Dulce eram fascinados pela constelação de Órion, uma
tempos da Maria Fumaça, a fim de comprar artigos no atacado e revendê
das mais visíveis no céu, principalmente nas noites escuras do interior
-los no interior. O adolescente ganhava 85 cruzeiros por mês e, conforme
paranaense, quando as estrelas se destacavam.
as vendas, recebia 5 cruzeiros a mais a cada mês. Foi com o seu Gilberto
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Eram míticas principalmente as Três Marias, que fazem parte do
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sistema e que encerram histórias e lendas. Não se sabe se eles tinham
muito novo. As visões ficam mais claras depois que a família mudou-se
noção do mito grego de Orion, filho de Poseidon (ou Júpiter), deus dos
para o Boa Vista, um bairro novo, em um descampado na periferia da
mares, por quem Artemis, irmã de Apolo, se apaixonou. Apolo, enciumado,
cidade. Ele tinha 3 anos e foram morar na casa de tia Paulina, irmã da
tanto fez, tantas artimanhas criou, que Artemis acabou matando o amado.
mãe. A essa altura, já eram nascidas as duas irmãs, Sônia e Sandra. Mais
Foi quando, trespassada pela dor, ela o transformou numa constelação.
tarde, o pai comprou o terreno vizinho e começou a construir uma casa
Para João e Dulce, esse nome Orion era sonoro, compreendia algo de
de madeira. Carlos acompanhava com curiosidade a chegada de tábuas,
misterioso e belo. Os filhos que nasciam foram ganhando os nomes de
caibros, vigas, sarrafos, telhas, assoalhos, que, como mágica, iam dando
Oriondes, Oriondino, Oriondina e Oriovaldo.
forma à nova casa. Ele era proibido de se aproximar do poço cavado no
quintal para abastecer a obra e, no futuro, a casa. Podia somente brincar
Preparar um filho para servir a Deus
com seus carrinhos de madeira na areia da construção. Era preciso usar
Hilda casou-se aos 17 anos e nove meses depois deu à luz o primeiro
muita imaginação, inventar os próprios brinquedos.
filho, Carlos. Morando hoje nos Estados Unidos, ela vem ao Brasil visitar
Finalmente, a casa que foi construída pelo avô Chico ficou pronta.
o filho uma vez por ano e nos encontramos em Campinas. Ela contou que
Mas para ele só ficou mesmo depois que ergueu a cerca de madeira em
semanas depois do nascimento do filho, sentiu, de repente, um imenso
volta. Não víamos a hora de deixar aquele quarto na casa de tia Paulina,
temor. O de que não pudesse criar o menino. Era uma jovem que sabia
onde morávamos amontoados. Agora, havia a nossa casa. Comparado
pouco da vida, não tinha sido preparada, e com o marido fora de casa
com o quartinho onde estávamos era como se estivéssemos nos mudando
a semana inteira sentia-se em absoluta solidão, cheia de angústia,
para uma mansão. Minha mãe gostava de dizer: “a nossa casa”. Meu pai
desamparada. Vivia uma sensação de impotência.
sorria e feliz dizia: “Essa é a primeira, depois vamos construir outras no
Certa noite, lembrou-se de uma Bíblia, presente de casamento.
quintal para alugar”. Era uma sala, o quarto dos pais, o quarto das crianças
Leu trechos e começou a sentir-se reconfortada. Pediu a Deus: “Salve a
com uma única cama, cozinha, banheiro. Os irmãos vinham vindo, todos
vida dessa criança, Senhor! Não permita que nada de mal lhe aconteça.
para o mesmo quarto. Como vinham, de onde vinham? Sei lá. Diziam que
Prometo criá-lo para que possa servir a Ti. Que esse menino cresça para
chegavam trazidos pela cegonha. Como saber? Nunca vi uma na vida. Tudo
servir a Deus. Vou fazer tudo para orientá-lo, encaminhá-lo nesse destino”.
era um grande mistério para mim, marcado por alguns símbolos. Lembro
Até hoje,
-me apenas de cenas difusas, minha mãe dizendo ao tio Pedro: “Corra,
Carlos, aos 56 anos, lembra-se de a mãe ter repetido dezenas de
vá chamar a parteira”, e ele saía rua afora, caminhava alguns quilômetros
vezes essa história. “Aquele momento teve forte influência sobre mim. Ao
em busca de um telefone público. Eram poucos, distantes, funcionavam
oferecer seu filho ao Senhor ela criou vínculo e compromisso entre mim e
mal, geralmente instalados em pontos de táxi ou em algum bar. Pagava
Deus.”
-se pela ligação. Passadas algumas horas, eu via chegar uma senhora
Do bairro do Portão, onde nasceu, Carlos não tem recordações, era
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negra trazendo sua bolsinha secreta, que entrava no quarto e trancava a
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porta. Será que trazia a criança na bolsa? Afastavam os pequenos, aquilo
todas as crianças subiam na carroceria do caminhão e seguiam pela
era assunto para gente grande. Por quê? Nessas horas nem perguntar
BR‑116 rumo à Colônia Faria, distante 35 km.
ao pai eu podia, ele estava sempre viajando com seu caminhão. Assim,
misteriosamente foram entrando em casa Célia, Luis, Oriondes e Sérgio.
Era nossa maior diversão e encantamento, visitar os avós maternos
que moravam em uma chácara e promoviam encontros dos parentes
Ao se lembrar desse tempo, Hilda diz: “Sempre tive dois filhos que
italianos e amigos com música, dança, muita comida. Meus avós criavam
não andavam, dois de mamadeira e dois de fralda. E Carlos me ajudando
galinhas, patos, gansos, coelhos, porcos, uma ou duas vacas que
a dar conta”.
garantiam o consumo de leite. Havia um enorme pomar com uva, ameixas,
A partir da construção daquela casa de madeira, outras famílias
peras, maçãs, e a criançada com os primos não saíam das árvores, comia
chegaram no Boa Vista e uma escola começou a ser erguida bem em
-se muita fruta. Só descobri que pêssego e ameixa não tinham bicho depois
frente de sua casa. Era uma obra simples, de madeira, como a maioria
que cresci. Até então, era apanhar pêssego, pera, goiaba ou pera direto
das construções do Paraná na época. Carlos sentava-se ao portão e ficava
do pé e tirar os bichos de dentro enquanto saboreavam as frutas. Como
olhando os trabalhadores erguerem as novas paredes. “Vi nascer e crescer
criança, eu pensava que toda fruta tinha bicho dentro.
as salas em que mais tarde eu viria estudar”, acentua com orgulho. Assim
Quando chegávamos à Colônia Faria, parecia que tínhamos chegado
que inaugurou, Carlos foi dos primeiros matriculados na Escola Ermelino de
à Itália, lá só se falava o italiano. Até hoje as palavras em italiano que sei,
Leão, nome de um político que exerceu várias vezes o cargo de presidente
aprendi na infância. O cardápio se repetia a cada domingo, macarronada
da então Província do Paraná, no século XIX, e era também historiador.
feita em casa, frango e maionese. A comida era simples, supergostosa. Os
mais velhos podiam tomar vinho feito na chácara. À tarde, tinha a polenta
Descobrindo que frutas não têm bicho
frita na chapa do fogão a lenha com café e leite. Lembranças que nunca
Brincadeiras da época, em um tempo em que ainda não existia a
vão me sair da memória.
indústria atual que dispõe milhares de produtos nas lojas, eram bolinha
O domingo acabava e estava na hora de voltar para casa. O pai
de gude, pular corda, esconde-esconde, cavalinho de pau com cabo de
começava a carregar o caminhão para, segunda-feira, partir para a estrada
vassoura, rodar arco, rodar peão, brincar com pneu velho nas ruas, soltar
e a mãe cuidar dos sete filhos pequenos.
pipa, jogar bola – quando aparecia uma –, fazer caminhão e trens de tocos
A vida inteira, ela carregou um sentimento de solidão, mas essa
de madeira, subir em árvore e, para desespero das mães, aventurar-se
sensação de ausência e solidão não era sentida pelas crianças. Isso vinha
num córrego próximo à casa por onde corria também o esgoto do bairro.
à tona em certos momentos, quando algum filho, ou mesmo minha mãe,
Nos fins de semana, a família estava completa e muito alegre. O pai
ficava doente e daí tínhamos de recorrer aos tios ou aos vizinhos por
retornava sempre trazendo sacos de comida. Trazia sacos de 60 quilos de
socorro. Afinal, naquela periferia não tínhamos contato com outros modelos
arroz, feijão, farinha de milho, latas de mel, latas de banha recheada de
de convivência.
carne de porco, queijo, goiabada etc. O passeio favorito acontecia quando
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Diante daquela condição constante de solidão, minha mãe incutiu em
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mim o senso de responsabilidade: “Você é o mais velho, meu braço direito,
Ford F‑600. Em meio às mercadorias, havia um pequeno baú de madeira
tem de cuidar dos irmãos”. Aquilo me dava satisfação, mas também me
com mantimentos para uma semana, panelas, frigideira, pratos, talheres,
preocupava, era um peso. Sabia que se tudo desse certo o crédito seria
copos de plástico e um fogareiro.
dos irmãos que eram “bonzinhos” e se comportavam bem. Se alguma coisa
Na hora do almoço ou da “janta”, parávamos o caminhão na
desse errado a “culpa” era minha que não tinha cuidado bem dos menores.
proximidade de um rio, eu ia buscar água em um garrafão de plástico e
O interessante é que, hoje em dia, ensino o mesmo conceito no mundo
meu pai ficava descascando batatas, abrindo as latinhas de feijoada,
corporativo: o líder divide o crédito da vitória com a equipe e assume a
preparando o arroz e as linguiças para fritar. Quando voltava com água
responsabilidade se os objetivos não forem atingidos.
fresquinha, eu fazia o Ki-suco para acompanhar a refeição.
Sempre tive grande respeito e carinho por minha mãe, pois apesar de
Essas viagens com meu pai eram a grande aventura que somente eu
todas as suas limitações e desafios, ela encontrava tempo para alimentar
vivia. Nenhum de meus irmãos ou amigos passava por algo igual. Aprendia
minha autoestima. Com frequência me dizia: “Pense grande, acredite em
a viver, conhecia a dureza, não tinha medo.
você, tudo que desejar na vida você alcançará, querer é poder”. Era como
À noite, quando Antônio não aguentava mais de sono, paravam,
se ela quisesse reforçar em mim a promessa Quando meu irmão Luis
abriam dois colchonetes na traseira do caminhão, estendiam lençóis e
nasceu, ficamos muito ligados, a relação que temos até hoje é muito forte.
cobertores, dormiam na estrada. Antônio, apesar de ser um homem bom
Já meus irmãos Oriondes e Sérgio desde pequenos foram muito próximos,
e doce, não era de muita conversa. Durante o dia ouviam rádio o tempo
essa amizade se estendeu pela adolescência e hoje são sócios em um
inteiro. Pai e filho divergiam nas preferências musicais, mas a vontade do
negócio próprio em Utah.
genitor era soberana e prevalecia. Carlos queria ouvir a Jovem Guarda,
Roberto e Erasmo Carlos, Vanderleia, Martinha, enquanto Antônio era fã
Acompanhando o pai pelas estradas
de Pedro Bento e Zé da Estrada, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho
Na altura dos 10 anos, durante as férias escolares, às vezes o pai
e de tantas outras duplas sertanejas da época.
No interior do Paraná não havia asfalto, as estradas eram poeira
chamava: “Vamos viajar!”.
Esse convite era música para os ouvidos de Carlos, pois a viagem
nas secas, lama nas chuvas. Nada mais comum que ficar encalhado, as
com o pai representava “férias” de verdade, porque enquanto estava em
rodas afundadas no barro. Caminhões e carros levavam grossas correntes
casa sua rotina consistia em arrumar os pratos para as refeições, limpar
que “encapavam” os pneus e protegiam razoavelmente dos encalhes. Ao
a mesa, ajudar a lavar e secar a louça, varrer a casa, passar o escovão
parar em estradas de pouco movimento, o jeito era munir-se de paciência
com palha de aço no assoalho da casa, auxiliar a encerar o chão, passar a
e esperar que passasse alguém, a pé ou a cavalo, que pudesse buscar
enceradeira na casa e, claro, cuidar dos irmãos menores.
socorro. Podia-se ficar encalhado por horas, ou dias.
Carlos subia no caminhão com um sorriso nos lábios pronto para uma
Deixávamos o tempo correr até chegar alguém de boa vontade
semana de emoções e aventura. Ele começava por carregar o caminhão
para nos socorrer com um trator e nos livrar do atoleiro. Esse espírito de
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camaradagem e apoio mútuo era fundamental. Aprendi a não me deixar
o pai, que abriu os olhos e não deu a mínima: “Toque em frente filho, você
dominar pela ansiedade, não ficar angustiado, saber que a solução viria,
está indo bem…”.
de alguma forma. Não tinha consciência seja do perigo, seja do transtorno.
Carlos, orgulhoso, contou para a mãe que tinha dirigido. “Como é que
A velocidade do tempo era outra; os instantes, longuíssimos; o silêncio,
ele me faz uma coisa dessas?”, gritou Hilda. Dali em diante, cada vez que
quebrado pelas músicas sertanejas do rádio ou por pássaros e animais,
o menino partia com o pai, “eu não tinha mais sossego, não dormia à noite,
ainda havia muito mato, era um Paraná em desenvolvimento, repleto de
só rezava”, confessa Hilda.
araucárias.
Descobrindo a autonomia, a iniciativa
Alguns anos mais tarde em uma dessas viagens, a surpresa. De
Na semana seguinte, os dois saíam novamente na segunda-feira,
repente, naquela vastidão vazia, o pai disse: “Meu filho, está na hora de
você aprender a dirigir”. “Eu? Só tenho 12 anos.” “Está na hora.”
vendendo de cidade em cidade, regressavam na sexta, o caminhão vazio.
Susto e contentamento. Dizem que quem aprende em estrada
Havia momentos em que, diante de uma mercearia ou armazém Antônio
de terra acaba sendo o melhor dos motoristas, porque vive de tudo,
ficava sentado ouvindo rádio no caminhão e mandava o filho ir à luta.
enfrenta qualquer situação. O pai encolheu-se junto à porta, à esquerda,
Carlos descia e seguia as recomendações.
espremido, e o menino tomou a direção. Era incômodo, mas empolgante.
“Filho, preste atenção. Desça, vá falar com o dono. Verifique o que tem
A direção pesada e Carlos feliz. Antônio orientava: “Mais para a esquerda,
no estoque, o que não tem, o que ele precisa. Preencha o pedido e venha
filho. Cuidado na curva. Tire o pé do acelerador. Pise no freio. Pise na
buscar as mercadorias no caminhão.
Entregue o produto, receba o dinheiro e venha entregar tudo para o
embreagem. Engate a segunda marcha. Devagar, devagar… cuidado…
estamos subindo… O câmbio, mude a marcha”. Estrada deserta, Carlos
olhando fixo a sua frente, a estrada rodeada de árvores, qualquer desvio
pai.”
Naqueles momentos nem pai nem filho percebiam que estavam
criando um modelo.
o pai estava ali
para corrigir. O menino tão contente nem percebeu o silêncio. Ao
Era algo inconsciente para as duas partes. Ele me dava autonomia,
volante, ele se “achava”. O caminhão subia, descia, virava, cruzava com
liberdade. Meu pai despertava a responsabilidade e gerava em mim o
gente a cavalo, com charretes. O pai quieto. Uma hora, o menino virou
espírito de iniciativa. Foi assim que aprendi a não ter medo das pessoas.
-se e deu com Antônio no maior ronco, a cabeça encostada na porta. Ele
A não ter medo de ouvir “não”. Sem saber, estava aprendendo a vender,
diminuiu a velocidade, que já não era muita, tossiu, fez barulho. Sentia
a negociar, oferecer produto, controlar estoque, realizar cobranças,
calafrios. Estava sozinho. “Nossa, isso aqui é de verdade, estou dirigindo
documentar a venda, receber a grana e finalmente prestar conta ao chefe.
este caminhão enorme sozinho. Onde está meu professor? Eu pensava
Meu pai ficava tranquilo esperando o resultado, não ia junto. Confiava, não
que meu pai estava me acompanhando”. Ele era o motorista. A parceria
interferia; as decisões eram minhas. Lição para toda a vida.
estava interrompida, o instrutor dormia. E como parar? Apavorado, acordou
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Anos mais tarde, Carlos compreendeu algumas imagens que tinham
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permanecido em sua memória, dos tempos em que viajava com o pai. Ele
corte e costura e passou a confeccionar roupas infantis em casa. Quando
observava que alguns estabelecimentos comerciais tinham representantes
havia uma quantidade razoável, entregava uma sacola para Carlos e outra
e distribuidores em várias cidades no interior do Paraná. Mais do que
para sua irmã Sônia e as duas crianças saíam a vender roupas de crianças
isso, ele notava que na maioria das cidades havia lojas das Casas
pelas ruas de Curitiba. A maior alegria dos dois pequenos vendedores era
Pernambucanas, da Riachuelo ou da Hermes Macedo. Eram redes sempre
acabar a tarde com as sacolas vazias, tendo comerciado todas as peças, e
presentes e seguiam o mesmo padrão visual.
voltar para casa com os bolsos cheios de dinheiro.
A pergunta que já circulava em minha mente era: como essas
Nessa época surgem os traços do empreendedor. Um dia Carlos pediu
empresas conseguem ter tantos pontos, tantos representantes, clientes?
ao pai que comprasse um saco de batatas, alguns pés de alface e cenoura.
Com minha curiosidade natural e meu senso de observação aguçado,
Além de roupa, ele queria vender verduras de porta em porta. O pai ia ao
começava a perceber que era um modelo de negócio, porém só daria conta
mercadão central e com o caminhão trazia o pedido, o menino colocava
disso racionalmente anos mais tarde.
num carrinho de mão e partia pelas ruas do bairro. Formou uma freguesia
Quando voltava para casa às sextas-feiras, Antônio chamava o filho
no Boa Vista. A cada dia, separava o lucro das vendas e no fim de semana
e lhe entregava um saco de estopa cheio de dinheiro que ficava atrás do
pedia ao pai que trouxesse mais mercadorias do mercado. De maneira
banco do caminhão. Ao passar pelos fregueses, recebia o dinheiro e atirava
minúscula estava reproduzindo a experiência aprendida com o pai, porém
as notas dentro do saco. Ao entregá-lo a Carlos recomendava: “Este é o
em vez de dirigir o caminhão, ele conduzia o carrinho de mão. Além disso,
dinheiro da semana. Tire do saco, separe nota por nota, desamasse, conte,
o menino era polivalente, e também passou a vender sorvetes na porta das
divida em pacotinhos”.
escolas. Não parava, queria crescer.
Desamassar muitas vezes era passar a ferro, e o normal era o ferro
A necessidade de uma busca espiritual
em brasa.
Para mim, esse exercício era uma sensação de responsabilidade,
Houve um instante na trajetória de Carlos que determinou seu futuro,
uma demonstração de confiança, e ao mesmo tempo uma distração como
sua maneira de agir e de ver as coisas. Hoje, olhando para trás, ele pode
se eu estivesse montando um quebra-cabeça ou completando um jogo.
situar esse momento perto dos 12 anos. Seus pais tinham tido educação
Separava tudo, as notas de 10, de 50, 100, 200, 500 e 1.000 cruzeiros e
católica, tanto que duas de suas tias, Doracy e Lourdes, irmãs de sua mãe,
fazia macinhos com aquelas notas coloridas, colocava o elástico. Anotava
entraram para o convento e tornaram-se freiras. Verdade que mais tarde
e entregava tudo ao meu pai que na segunda-feira levava aquele sacão de
abandonaram o hábito e se casaram.
dinheiro à empresa, para prestar contas. Não havia a sensação de perigo,
nem se cogitava que pudesse ser roubado. Isso não existia.
A essa altura, para aumentar a renda familiar, Hilda fez um curso de
Meus pais sempre tiveram muita fé em Deus. Pessoas sensíveis,
viviam uma inquietação espiritual, formulavam perguntas, não obtinham
respostas, havia um vazio dentro deles. Lembro-me dessa busca. No fim
da década de 1960, eles diziam que já havia muita maldade no mundo
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e que as pessoas estavam perdendo a noção entre o certo e o errado,
estavam perdendo a noção de princípios, valores, ética e respeito mútuo.
na década de 1930 e se instalaram no Sul, a pedido das comunidades
Imbuídos desse espírito, eles passaram a buscar uma religião que pudesse
germânicas; embora americanos, eles aprendiam o alemão para vir ao
ajudá-los a criar os filhos e manter a família unida. Recordo-me de que
Brasil. Nas décadas seguintes, passaram a aprender o português e o
cada domingo frequentávamos um culto, uma cerimônia, uma missa. Em
trabalho se estendeu pelo país inteiro.
um havia longos sermões; no outro música e cânticos; no outro guitarras
Os jovens prometeram e realmente voltaram. Não eram fiscais, não
e tambores, ou flautas. Para nós, crianças, tudo isso parecia apenas
eram nem brasileiros. Eram norte-americanos missionários, os Mórmons.
uma diversão de fim de semana, mas para meus pais era a busca mais
Através de Elder Fitzer e Elder Mangum, dois rapazes com uma dedicação
importante para o futuro da família, e muitas vezes ao terminar cada visita
extraordinária e um grande amor pelo próximo, ainda que falando um
o vácuo interior continuava, dominava a alma.
português rudimentar, conhecemos o evangelho de Jesus Cristo de uma
Certa noite, bateram em nossa porta dois rapazes vestidos de terno,
maneira diferente, tanto na prática quanto no ensinamento. Um novo
camisa branca e gravata. Na lapela do paletó havia um emblema com a
capítulo se iniciou em nossa vida familiar, e certamente em minha visão
bandeira do Paraná com a inscrição: Aqui se trabalha. Quando perguntei o
pessoal. Meus pais encontraram o que inconscientemente buscavam havia
que queriam, eles disseram que queriam falar com meu pai.
tempos, uma igreja que pudesse ajudá-los a manter a união familiar. Um
— Meu pai não está em casa.
dos fundamentos básicos dos Mórmons é a manutenção da família. A partir
— Que horas ele vai voltar?
dali passamos a ter, individual e coletivamente, uma noção maior do que
— Ele está viajando e só volta no fim de semana.
era o mundo, a sociedade, a integração, a comunidade.
— Então, voltaremos outro dia para falar com ele.
Pode-se dizer que foi uma iluminação. Meus pais compreenderam
Quando voltei para dentro, minha mãe perguntou:
todo o passado e o presente. Eles tinham vivido distantes dos pais em
— Quem eram aqueles homens de terno no portão?
ambientes inadequados, com princípios e valores confusos. Aos 10
— Não sei, eles queriam falar com o pai.
anos, minha mãe deixou a chácara na Colônia Faria onde morava com
— O que eles fazem?
a família e seus doze irmãos e foi levada por uma senhora à capital, para
— Não sei, acho que são fiscais do imposto de renda, pois tinham um
ser empregada doméstica. Nunca mais morou com a mãe e a família. Ela
emblema da bandeira do Paraná na lapela do paletó.
lembra que todas as noites, deitada na cama, chorava de saudade de casa,
— E agora, meu filho?
sem saber por que tinha de viver aquela separação. Meu pai, aos 13 anos,
— Eles disseram que vão passar de novo aqui para falar com o pai
deixou a casa da mãe e seguiu com um caixeiro-viajante para aprender a
ganhar a vida, tentar a sorte grande na capital.
quando ele voltar de viagem.
Na época, no Paraná, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias tinha poucos adeptos. Os primeiros missionários chegaram ao Brasil
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