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Artigos ESPIRITUALIDADE CENTRADA EM JESUS José Antonio Pagola * RESUMO: Buscar uma nova espiritualidade é algo que se impõe aos cristãos dos tempos atuais - tempos de luz e de sombra. Ante a mediocridade espiritual, impõe-se a necessidade de um novo vigor espiritual, que exige uma conversão sem precedentes. Então, é preciso, buscar a espiritualidade profética de Jesus, centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana. O exemplo da espiritualidade de Jesus nestes momentos de sombra, poderá levar o ser humano a uma espiritualidade saudável, criativa, libertadora e geradora de esperança. Marcada pelo Espírito de Jesus, ela será uma presença alternativa, portadora da indignação profética de Jesus. Transforma-se em imaginação e fôlego para pensar no futuro a partir da liberdade de Deus, amigo da vida. Aberta à esperança e incentivada pela compaixão, ela há de aprender a olhar o rosto dos outros, sobretudo das vítimas. PALAVRAS CHAVE: Espiritualidade e compaixão; Indignação profética; Esperança, Reino de Deus e a Justiça. ABSTRACT: Get a new spirituality is something that is imposed on Christians of modern times times of light and shadow. Before the spiritual mediocrity, it imposes the need for a new spiritual force, which requires a conversion unprecedented. So, we must seek the prophetic spirituality of Jesus, focusing on the Kingdom and the service of a more humane life. The example of the spirituality of Jesus in these moments of shadow, could lead the human being to a healthy spirituality, creative, liberating and generating hope. Marked by the Spirit of Jesus, it is a presence alternative bearer of prophetic indignation of Jesus. Becomes in imagination and stamina to think about the future, the starting point of God’s freedom, friend of life. Opened the hope and encouraged by compassion, she will learn to look at the faces of others, especially the victims. KEY WORDS: Spirituality and compassion; Indignation prophetic; Hope; Kingdom of God and Justice. * Mestre em Teologia, pela Pontificia Universidade Gregoriana, Roma, diplomado em Ciências Bíblicas, pelo Instituto Bíblico de Roma e pela École Biblíque, de Jerusalém, autor de mais de 20 livros, sendo o mais importante: Jesus, uma aproximação histórico. Petrópolis: Vozes, 2010. 51 Torna-se urgente buscar, com humildade, novos caminhos de espiritualidade. Neste tempo de mudança epocal, a Igreja precisa de uma conversão centrada na espiritualidade do Espírito, uma conversão para o Espírito que animou a vida inteira de Jesus. I. é, um estilo particular de vida que se alimenta do seu Espírito, é reconhecido por suas escolhas e sua prática, e a conduza viver a serviço de uma vida mais digna e mais aberta à esperança no Mistério bom de Deus. Três aspectos caracterizam a espiritualidade profética de Jesus, que está centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana: a presença alternativa, a indignação profética e a abertura à esperança. Incentivada pela compaixão, buscando curar sempre, tendo paixão pelo reino de Deus, como Jesus, e a sua compaixão por todas as vítimas 52 Buscar novos caminhos para uma nova espiritualidade, hoje se torna uma tarefa importante. E o faço a partir da convicção de que nada é mais urgente na Igreja de hoje do que voltar a Jesus para focar com mais verdade e mais fidelidade a nossa espiritualidade em sua pessoa e em seu projeto do Reino de Deus. Faço-o também a partir da consciência de que não é possível hoje fazer uma oferta de caminhos novos de espiritualidade, mas a partir de uma atitude de “humildade, nudez e amor”1. No livro de Isaías diz-se que no exílio, os israelitas, vivendo em um povo estranho, longe da sua terra, perguntam ao profeta:“Sentinela, que vês na noite?”. E ele replica de forma enigmática: “Chegou a madrugada e também a noite. Se você quiser perguntar, pergunta ...”2. O que podemos perguntar neste tempo de luz e sombra? Para que noite se encaminha o niilismo moderno, esquecido da interioridade e sem um horizonte capaz de orientar e estimular a existência? Começa a clarear alguma luz desde essa constelação de espiritualidades que nasce, cresce e se cruza dentro desse fenômeno complexo da “Nova Era” (New Age)3? É possível vislumbrar um amanhecer nessa noite fechada de uma humanidade desumana que se afunda na fome e na miséria milhões de homens e mulheres, enquanto continua a destruir de forma incontrolável a casa de todos, e colocando em risco a trama mesma da vida? Estará renascendo realmente um novo dia com o nascimento dessa espiritualidade laica disposta a substituir em um futuro não muito distante as religiões e crenças do passado? Enquanto isso, na opinião de não poucos observadores e pastoralistas, é cada vez mais patente na Igreja Católica a «mediocridade espiritual» que 1 2 3 Marià Corbí, Hacia una espiritualidad laica. Sin creencias, sin religiones, sin dioses. Herder, Barcelona, 2007, p.191-294 Isaías 21, 12. Jean Vernette, Jésus dans a Nouvelle Religiosité, Desclée, 1987. denunciava há anos Karl Rahner com tanta lucidez. Nossa Igreja não possui hoje o vigor espiritual que precisa para enfrentar os desafios do momento atual. Depois de vinte séculos de cristianismo, o coração da Igreja precisa de conversão e purificação. Nestes tempos em que se está acontecendo uma mudança sóciocultural sem precedentes, a Igreja precisa de uma conversão sem precedentes. Não estou pensando num «aggiornamento», sempre necessário, nem também algumas reformas religiosas; mas em uma conversão para o Espírito que animou a vida inteira de Jesus. Se nas próximas décadas não se produzir um clima novo de conversão humilde, gozoso, radical ao Espírito de Jesus, o cristianismo entre nós corre o risco de diluír-se em formas religiosas cada vez mais decadentes e sectárias, e cada vez mais distantes do que foi movimento inspirado e querido por Jesus. Estou convencido de que Jesus pode ser, nestes momentos difíceis, mas apaixonantes, fonte e caminho humilde de uma espiritualidade saudável, criativa, libertadora e geradora de esperança. Entendo por «espiritualidade de Jesus» um estilo particular de vida que se alimenta do seu Espírito, é reconhecido por suas escolhas, e sua prática conduz aos que continuam a viver a serviço de uma vida mais digna e mais aberta à esperança no Mistério do bondoso Deus4. Não pretendo elaborar uma exposição sistemática. Quero plantar neste texto a inquietude por Jesus para despertar as nossas consciências e para começar a acreditar que Jesus pode hoje acender entre nós esse fogo que veio atear no mundo.5 1. Espiritualidade enraizada na paixão profética. A primeira coisa que temos de captar bem é que a espiritualidade de Jesus se enraíza na experiência bem conhecida dos profetas de Israel. Jesus não é um sacerdote do templo ocupado no serviço religioso. Ninguém o confunde também com um mestre da lei dedicada a defender a ordem social legal. Os camponeses da Galiléia vêem em seus gestos e palavras a atuação de um homem impulsionado pelo espírito profético: “Um grande profeta surgiu entre nós” 6. Jesus, como os profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem religiosa. Não é nomeado por nenhuma autoridade, não é ordenado nem ungido 4 5 6 Não vou falar da mística cristiá que tem as suas raízes na cristologia jovanea; tão pouco da “cristologia interior” que é possivel desenvolver desde a experiencia paulina de“viver em Cristo”, nem dos diversos caminhos que se ensaiam hoje para acessar à espiritualidade oriental dedde a pedsoa de Jesus. Pode-se ler XAVIER MELLONI. El Cristo interior. Herder, Barcelona, 2010. “Luz eu vim trazer à terra: e o que mais queria eu que ele já estivesse ardendo!” (Lucas 12, 49); “O que está perto de mim, está perto da luz. O que está longe de mim, está longe do reino” (Evangelho apócrifo de Tomás) Lucas 7, 16; ver Marcos 6, 15; 8, 27-28. 53 por ninguém. Sua vida é marcada pelo Espírito de Deus empenhado em conduzir o povo pelos caminhos da justiça7. Três aspectos caracterizam a espiritualidade profética: presença alternativa, indignação profética, a abertura à esperança. 1.1. Presença alternativa 54 Em meio a uma sociedade injusta que os poderosos não têm consciência de estar arrebatando o pão dos pobres, onde os privilegiados buscam seu próprio bem-estar silenciando o sofrimento dos que choram, o profeta apresenta uma forma alternativa de compreender e de viver a realidade à luz da compaixão de Deus e seus desejos de justiça. Por outro lado, quando a religião se acomoda a um estado de coisas injusto, quando os interesses religiosos não são iguais porque os interesses da justiça de Deus, quando a crítica não pode ser praticada a partir do templo, porque desapareceu a paixão pelo Deus dos pobres, substituído pelo Deus da ordem e do culto ,..., faz-se presente o profeta com o seu jeito de ler e de viver a realidade a partir da verdade de Deus. Assim temos que captar a presença profética de Jesus no meio da cultura dominante de indiferença na sociedade judaica dos anos trinta. A vida inteira deste homem que percorre as aldeias da Galileia impulsionado pelo Espírito de Deus é um grito: as coisas não são como o Pai as quer. Na Galiléia não reina a justiça. Faz tempo que a política de Roma e de seus vassalos herodianos vem oprimindo os mais fracos, enquanto os líderes religiosos do templo se fazem de desentendidos diante de seu sofrimento. 1.2. Indignação profética A indignação é a primeira reação de quem vive desde o Espírito de Deus, diante dos abusos e injustiças que afligem os inocentes. Esta indignação expressa a raiva e a impotência das vítimas, traz à luz as causas que se ocultam sob tanto sofrimento, sacode a indiferença, o conformismo e o autoengano generalizado. Esta indignação é necessária para que não se apague a confiança na vida, nem a esperança em Deus. Abra as feridas da sociedade, não para destruir os culpados, maspara iniciar a cura. Quandooutrosficam caladospor inconsciência, cegueira ou covardia, Jesus grita a sua indignação: o sofrimento dos inocentes deve ser tomado a sério, não pode ser aceito como algo normal, pois é inaceitável perante Deus. 7 O profeta é “nabi”, quer dizer alguem que foi chamado por Deus para escutar uma mensagem que deverá comunicar no seu nome. Chama-se também“ro’eh” e “hozeh”, quer dizer, um vidente que, desde Deus, ve o que outros não vem. Movido por seu espírito profético, Jesus levanta a sua voz: “Os chefes dos povos os tiranizan, e os poderosos os exploram. Mas entre vocês não pode ser assim” (Mt 20, 25-26a). Deus é contra o poder opressor. Grita também:“Na cadeira de Moisés sentaram os escribas e os fariseus ... atam fardos pesados e os colocam nas costas dos outros, mas eles não põem um dedo para carregá-los” (Mt 23, 2-4). Não deve ser assim. Deus é contra a religião opressora. A indignação de Jesus é a sua reação profética diante de uma sociedade não suficientemente indignada. 1.3. Abertura à esperança Quando a sociedade não permite apenas expectativas de mudança para os pobres, quando a religião fecha a passagem a toda novidade considerando como uma ameaça ao estabelecido, quando ninguém sabe como e onde poderia germinar uma esperança nova para os últimos e essa sociedade cínica e indiferente que lhes dá as costas ,..., aparece o profeta lutando contra o ceticismo, criticando a ilusão de eternidade e absoluto que paralisa a religião, e lembrando a todos que só Deus é dono do futuro. Então, a indignação profética torna-se imaginação e fôlego para pensar o futuro a partir da liberdade de Deus, amigo da vida. Assim temos que ler a história profética de Jesus. O império romano pretende que a pax romana é a paz plena e definitiva, a religião do templo defende que a Torá de Moisés é imutável e eterna. Enquanto isso, os excluídos do império e os esquecidos pela religião, estão condenados a viver sem esperança. Pode haver alguma melhora na pax romana, pode cumprir de maneira mais escrupuloso a Torá de Moisés, mas nada decisivo muda para os pobres: o mundo não se torna mais humano. Não é possível imaginar um novo começo. Jesus rompeu esse mundo fechado anunciando a chegada do reino de Deus. Essa situação sem alternativa ou esperança é falsa. Essa política que não permite uma crítica de fundo, essa religião segura de si que nem sequer suspeita a interpretação de Deus a partir dos pobres, não respondem à verdade do Pai. É possível lutar pelo reino de Deus e a sua justiça. O mundo amado pelo Pai vai além dos direitos do César e para além do estabelecido pela lei. Impulsionado por esse espírito, Jesus contagia a sua esperança com os seus gritos subversivos:“os últimos serão os primeiros e os primeiros últimos”8, “os que se exaltam serão humilhados e os que se humilham serão exaltados”9. Os publicanos e as prostitutas entram no reino de Deus antes de os dirigentes religiosos (Mt 21,31). É grande quem se põe a servir aos últimos (Mc 10, 43-44). 8 9 Este dito aparece com pequenas modificações em Marcos 10,31; Mateus 19,30; 20,16; Lucas 13,30. Lucas 14, 11; 18,14; Mateus 23,12 55 Esta espiritualidade profética, marcada pela presença de alternativa, pela indignação e abertura à esperança, é o âmbito da espiritualidade de Jesus e de todo aquele que segue inspirado pelo seu espírito. 2. Espiritualidade centrada no reino de Deus 56 Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos dizendo algo que nenhum profeta de Israel se atrevera a declarar: Deus já está aqui, com sua força criadora de justiça, tentando reinar entre nós. Marcos resume bem a mensagem: «O tempo está cumprido e vem o reino de Deus, ele está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova» (Mc 1, 15). Começa um tempo novo. Deus não nos quer deixar sozinho diante de nossos problemas, desafios e sofrimentos. Gostaria de construir, junto a nós, uma vida mais humana. Temos aprendido a viver esta boa notícia. Neste grande símbolo do reino de Deus, Jesus recolhe as aspirações e expectativas mais profundas de Israel: o anseio que encontrou no coração de seu povo, que está vivo em todos os povos, e que Jesus soube recriar a partir da sua própria experiência de Deus, dando-lhe um horizonte novo e surpreendente. Este projeto do Reino de Deus constitui o princípio estruturante da sua espiritualidade. 2.1. Buscar o reino de Deus e sua justiça O centro da experiência mística de Jesus e da sua atividade profética não ocupa propriamente Deus, senão o reino de Deus, pois Jesus não separa nunca Deus de seu projeto de transformar o mundo. Não o contempla encerrado em seu mistério insondável, alheio ao sofrimento humano. Experimenta, como a presença bondosa de um pai que procura abrir caminho no mundo para humanizar a vida. Este é o horizonte da espiritualidade de Jesus. Por isso, não convida seus seguidores a buscar a Deus por caminhos de perfeição e santidade, mas a «procurar o reino de Deus e a sua justiça» (Mt 6, 33). Não chama à conversão a Deus, voltando à observância da Lei, mas que convida a entrar no reino de Deus10. 2.2. Os caminhos do reino de Deus O reino de Deus não é uma religião. É muito mais. Acolher o reino de Deus vai além da aceitação das crenças, preceitos e ritos de uma religião. É uma 10 Os profetas de Israel chamam à conversâo (teshubá), que consiste em abandonar os caminhos desviados para voltar (shub) ao Deus da Aliança. Jesus chama para entrar no reino de Deus saindo de outros reinados (Dinheiro, César,...). experiência nova de Deus que o ressitua tudo de modo novo. Temos que aprender a captar e buscar a presença humanizadora de Deus no âmbito da religião, mas na experiência de uma vida cada vez mais saudável, mais justa, mais liberta, de acordo com o que quer o Pai para seus filhos e suas filhas. Costumam-se citar as palavras de Jesus que podem distorcer gravemente o seu pensamento11 pois a expressão original de Lucas “entos hymin” admite duas leituras possíveis. Seguindo uma primeira possibilidade, traduziu-se tradicionalmente assim: “O reino de Deus está dentro de vós” com o risco de reduzir o reino de Deus a uma realidade íntima e espiritual, que ocorre no interior da pessoa quando se abre à ação de Deus. Hoje, no entanto, de acordo com outra possibilidade mais provável, tende a traduzir: “O reino de Deus está entre vós” com o risco de fazer do reino de Deus um projeto ideológico ou político, alheio à transformação das ciências. Na verdade, Jesus está pensando numa transformação que abrange a totalidade da vida e humanizar todas as dimensões do ser humano. De ordinário, o acolhimento do reino começa dentro da pessoa que se torna o Deus revelado em Jesus, e vaise tornando realidade social onde a vida se vai tornando mais humana12. 57 2.3. A oração do buscador do reino de Deus Jesus deixou em herança a seus seguidores uma oração, a única que lhes ensinou para alimentar a sua atitude espiritual. Esta frase constitui o núcleo da sua identidade, de homens e mulheres empenhados na tarefa do reino. É uma oração confiante ao Pai de todos, que nos enraíza na fraternidade universal reunindo três grandes anseios centrados no reino de Deus e três gritos saídos desde as necessidades mais básicas do ser humano13. “Santificado seja o Vosso Nome” do Padre. Que ninguém o despreze violando a dignidade de seus filhos e de tuas filhas. Que sejam desterrados os nomes dos ídolos que matam os seus pobres. Que todos bendigam o seu nome de Pai bondoso. “Que venha o teu reino”. Que abramos caminhos para a sua justiça, à verdade e à sua paz. O que não reinem os ricos sobre os pobres, que os poderosos não abusem dos fracos, que os homens não dominem as mulheres. “Faça-se a tua vontade na terra como no céu”. Que não encontre tanta resistência em nós. Que na criação inteira se faça o que o Pai quer, e não o que procuram os poderosos da Terra. Que se vá tornando realidade entre nós o que Deus quer em seu coração de Pai. 11 Lucas 17, 21 12 O evangelho apócrifo de Tomás atribui precisamente a Jesus estas palavras: “O reino de Deus está dentro e fora de vós” (3). 13 Lucas 11, 2-4 // Mateus 6, 9-13. Provavelmente Jesus a entendia como uma oração para ser rezada cada día. “Dá-nos o pão de cada dia”. Que a ninguém falte pão. Não que peçamos bem estar bem abundante só para nós, mas pão para todos. Que os famintos da Terra possam comer, que os seus pobres deixem de chorar e começar a rir, que possamos ver a viver com dignidade. “Perdoa-nos as nossas dívidas”. Precisamos do seu perdão e sua misericórdia. Estamos em dívida com Deus pelo nosso vazio imenso de resposta ao seu amor libertador. Que o teu perdão transforme o nosso coração e nos faça viver perdoando-nos uns aos outros. “Não nos deixes cair em tentação” de afastar-nos definitivamente do seu reino. Somos fracos e estamos expostos a riscos e crises que podem arruinar a vida humana. Não nos deixeis cair derrotados. “Livra do mal”. Arranca-nos da frustração. 58 Esta frase repetida diariamente, a sós e em comunidade, fortalece o nosso espírito, configura-nos como seguidores de Jesus e compromete-nos na busca do reino de Deus e a sua justiça. Recuperar a espiritualidade de Jesus é focar a religião cristã na busca do reino de Deus, colocar a Igreja ao serviço de um mundo mais justo, mais digno e mais feliz para todos, começando pelos últimos, entender e viver o seguimento de Jesus colaborando com todos os homens e mulheres que caminham e trabalham nessa direção. 3. Espiritualidade a serviço de uma vida mais humana Para entender e viver esta espiritualidade do reino de Deus, devemos captar bem a intenção de fundo do projeto de Deus, que não é outra senão tornar a vida mais humana, digna e ditosa. Isso é o decisivo. 3.1. A paixão por Deus, amigo da vida. Jesus não discute sobre Deus com nenhum grupo judeu: todos acreditam no mesmo Deus, o Criador dos céus e da terra, o Libertador de seu povo querido. A diferença é que, enquanto os advogados e os dirigentes do templo associam a Deus com o seu sistema religioso, Jesus vincula-o com a vida14. Os setores mais religiosos de Israel se sentem chamados por Deus a assegurar os sacrifícios rituais, o cumprimento da lei e o cumprimento do sábado. Jesus, pelo contrário, sente-se impulsionado por Deus a promover a vida: “Eu vim para que tenham vida e para que tenham abundantemente”15. Para Jesus, o primeiro é a vida das pessoas, não o culto; a cura dos doentes, não no sábado; a reconciliação social, não as oferendas que leva cada um para o altar; o acolhimento amigável para o pecado e o perdão sanador, não os rituais de expiação. 14 Christian Duquoc, Dios es diferente. Sígueme, Salamanca, 1978, 39-55. 15 João 10,10. O quarto evangelista resume bem ou recordou aquilo que ficou de Jesus. Ao que parece, Jesus tinha o hábito de despedir os doentes curados e os pecadores perdoados com o cumprimento: “Va em paz” 16 e desfrute da vida. Jesus deseja-lhes o melhor: saúde integral, bem-estar completo, uma convivência ditosa em casa e na aldeia, cheia de bênçãos de Deus. O termo hebraico Shalom indica o mais oposto a uma vida indigna, infeliz, maltratada pelas desgraças ou a pobreza. O Deus de Jesus é amigo da vida17. 3.2. Em direção aos pobres O espírito de Deus empurra Jesus para os últimos. Os primeiros a experimentar essa vida mais digna e liberada devem ser aqueles para quem a vida não é vida. Nessa direção vive-se a espiritualidade de Jesus. Lucas captou isso muito bem quando o apresenta na sinagoga de Nazaré aplicando-se a si mesmo as palavras de Isaías 62, 1-2: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele foi quem me ungiu para proclamar a Boa Nova aos pobres. mandou-me para lhes anunciar a liberação para os aprisinados e a vista aos cegos, para dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor “18. Fala-se aqui de quatro grupos de pessoas: os pobres, os presos, os cegos e os oprimidos. Eles simbolizam e resumem-se a primeira preocupação espiritual de Jesus: o que leva mais dentro do seu coração profético. Nós falamos de democracia, direitos humanos, progresso, bem estar, ... Aqui sugere-se uma vida nova e liberta que pode emergir precisamente entre os últimos. Onde se cultiva uma espiritualidade marcada por Jesus, cedo ou tarde, de um modo ou de outro, o Espírito se comunica e difunde como Boa Nova para os pobres, como libertação para os que vivem cativos de tantas escravidão, como luz para os que caminham às cegas e em trevas, como liberdade para os oprimidos e graça para os desgraçados. Embora o eliminemos praticamente de nossa consciência cristã, conhece-se o homem ou a mulher espiritual pela sua proximidade aos pobres, pela defesa dos últimos e por sua prática libertadora. 3.3. Lutando contra os ídolos que produzem a morte O Deus de Jesus, Amigo da vida, está sempre junto a seus filhos e suas filhas, contra o mal, o sofrimento e a morte. Para Jesus, vive-se Deus como uma força contra o mal, uma Presença bondosa que abençoa a vida e atrai todos 16 Marcos 5, 34; Lucas 7, 50; 8, 48 17 Sabedoría 11, 26. 18 Lucas 4, 16-22. A cena é provavelmente uma composição do evangelista, porém recolhe bem a experiencia profética de Jesus e o seu programa de impulsar o reino de Deus entre os últimos. 59 a lutar contra o quem faz mal ao ser humano e ao mundo inteiro: o «antimal» na expressão feliz de E. Schillebeeckx19. Assim o experimenta Jesus e assim o comunica através de toda a sua vida. Por isso, luta contra ídolos como o poder e o dinheiro, que desumanizam aos que lhes rendem culto e exigem sempre mais vítimas para subsistir. “Devolver a César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus”20. Se você quiser dar culto a Tibério, retirado já na ilha de Capri, devolve-lhe seu dinheiro injusto, que é o seu único bem, mas não dê a nenhum César o que só pertence a Deus, os pobres, os excluídos da cidadania romana, os esquecidos por todos. «Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro»21. Não é possível viver acumulando dinheiro e bem-estar, e estar ao mesmo tempo a serviço do Deus da vida que não pode reinar no mundo senão fazendo justiça a quem ninguém faz. Quem vive do Espírito de Jesus luta contra ídolos, poderes, sistemas, hábitos ou movimentos que fazem mal ao ser humano, desumanizam o mundo e introduzem morte. 60 Recuperar a espiritualidade de Jesus é entender e viver a sua Igreja como um espaço a partir do qual se defende e difunde vida, de onde se luta para torná-la melhor. Ao fazer das comunidades cristãs um lugar dos seguidores de Jesus, aprendemos a viver de modo mais humano e humanizador. Nem a prática religiosa nem os códigos morais nos farão esquecer que seguir a Jesus é viver tornando a vida mais humana. Poucas tarefas podem ser mais apaixonantes. 4. Espiritualidade incentivada pela compaixão Esta espiritualidade a serviço de uma vida mais humana é incentivada por uma compaixão ativa e solidária. Não devemos esquecer. Na trajetória das atividades de Jesus a serviço do reino de Deus, como princípio dinamizador, encontramos a compaixão pelas vítimas. 4.1. A compaixão como princípio de atuação Jesus capta e vive a realidade insondável de Deus como bondade e compaixão. O que define a Deus não é o poder nem a sabedoria, mas as suas entranhas maternais de Pai. A compaixão é o modo de ser de Deus, o seu jeito de olhar o mundo e de reagir perante as suas criaturas. O Pai vive principalmente a 19 “Jesus, fenomeno pessoal inédito em Israel, experimenta a Deus como uma potencia que abre futuro, que é contraria ao mal, que só quer o bem, que se opõe a tudo o que é mal e doloroso para o homem... e, portanto, quer redimir a historia da dor humana” (Jesús, la historia de un viviente, Cristiandade, Madrid, 1981, 209-232). 20 Lucas 16,13 // Mateus 6,24 21 Lucas 20,25 // Mateus 22,21 partir da compaixão. Esta é a experiência de Deus que Jesus comunica em suas parábolas mais emocionantes22. Movido por esta experiência, ele proclama um novo princípio de atuação. A espiritualidade mais estimada na sociedade judaica, contemporânea de Jesus, arrancava uma exigência básica, aceita por todos os setores e formulada assim no Levítico: “Sede santos, porque santo sou eu, o Senhor, vosso Deus” (Lv 19, 2). O povo de Deus vai imitar a santidade de Deus do templo: um Deus que escolhe o seu povo e recusa os pagãos, abençoa os justos e recusa os pecadores, acolhe os puros e rejeita os impuros. A santidade é a qualidade essencial de Deus. O ideal é ser santos como Deus é santo. Paradoxalmente, esta imitação da santidade de Deus, entendida como separação do não-santo, do impuro, do contaminante, foi criando de fato uma sociedade discriminadora e excludente. O povo judeu procura a sua própria identidade santa e pura excluindo as nações pagãs e impuras. Mas, além disso, dentro do povo escolhido, os sacerdotes desfrutam de um intervalo de pureza superior ao resto do povo pois estão a serviço do templo onde habita o Santo de Israel. Os homens pertencem a um nível mais alto de pureza que as mulheres sempre suspeitas de impureza por sua menstruação e pelos partos. Os que gozam de saúde estão mais perto de Deus do que os leprosos, cegos, aleijados e excluídos do acesso ao templo. Esta busca de santidade gerava barreiras e discriminações; não promovia a mútua acolhida, a fraternidade e a comunhão. Depressa Jesus percebeu isso. Esta visão religiosa não corresponde à sua experiência de um Deus misericordioso e acolhedor. Então, com uma audácia e lucidez surpreendentes introduz um novo princípio que transforma em tudo: «Sede compassivos como o vosso Pai é cpmpassivo»23. É a compaixão e não a santidade o princípio que irá inspirar a conduta dos filhos e das filhas de Deus. Jesus não nega a santidade de Deus, mas o que qualifica essa santidade não é a separação do impuro ou a rejeição do santo. Deus é grande e santo, não porque rejeita e exclui pagãos, pecadores e impuros, mas porque ama a todos sem excluir ninguém da sua compaixão. Esta compaixão ativa não é uma virtude a mais; mas a única maneira de olhar a vida, de sentir as pessoas e de reagir perante o seu sofrimento, que nos aproxima do Pai das Misericórdias. Nesta compaixão podemos distinguir três elementos. Em um primeiro momento, por assim dizer, Jesus interioriza o sofrimento alheio, deixa que 22 Parábola do pai bondoso (Lc 15, 11-32); parábola do dono boa da vinha (Mt 20, 1-15); parábola do fariseu e o cobrador de impostos que subirão ao templo a orar (Lc 18, 9-14). 23 Lucas 6, 36. Na versão paralela de Mateus 5, 48 traduziu-se tradicionalmente assim:“Sede perfetos (teleioi) como o vosso Pai do céu é perfeto” justificando e promovendo uma espiritualidade de aperfecionamento progressivo em santidade. É melhor traduzir: “Sede bons de todo como é bom de todo o vosso Pai do céu” ou“Não ponhais limites à vossa bondade como tampouco põe límites a sua bondade o Pai do céu” (David Flusser) 61 penetre em suas entranhas, em seu coração, em seu ser: fá-lo seu, dói nele. Em um segundo momento, esse sofrimento interiorizado, provoca nele uma reação, torna-se ponto de partida de um comportamento ativo e comprometido; vem a ser um princípio de ação, um estilo de vida. Por último, o princípio de ação vai se concretizando em ações e compromissos, destinados a erradicar o sofrimento ou, pelo menos, alivá-lo. 4.2. O olhar compassivo 62 As tradições sobre Jesus conservaram a lembrança do seu olhar compassiva para com os doentes, leprosos e marginalizados e, sobretudo, o seu olhar comovido pelas gentes. «Assim, quando desembarcaram, encontrou uma grande multidão. Ele, comovido, curou a todos os doentes» (Mt 14, 14), «Mas, vendo a multidão, sentiu uma profunda compaixão por ela, porque estavam todos desanimados e esmorecidos como ovelhas sem pastor «(Mt 9, 36). Ao entrar em Nain, encontrou os que iam enterrar o filho único de uma viúva: «Ao ver o Senhor compadeceu-se e disse-lhe: Não chores»24. Johan Baptist Metz lembrou que, frente a “mística de olhos fechados” mais própria da espiritualidade do Oriente, voltada sobretudo para o interior, quem se inspira em Jesus é chamado a criar uma «mística de olhos abertos» e uma espiritualidade de responsabilidade absoluta para os que sofrem. A espiritualidade de Jesus leva os seus seguidores a viver atentos ao sofrimento das pessoas, ou como diria o filósofo francês Emmanuel Levinás, atentos ao aparecimento do rosto do outro, que expressa, mesmo sem palavras, o caráter vulnerável e frágil do ser humano. A compaixão não afasta da atenção à lei e do respeito aos direitos humanos; mas cria, a partir do olhar atento, o compromisso com o que sofre. Olhar para o rosto do que sofre liberta-nos de ideologias que bloqueiam a nossa compaixão ou de marcos normativos que nos fazem viver com a consciência tranquila. Esse olhar arranca-nos da indiferença, nos recorda a nossa própria condição vulnerável, desperta em nós a solidariedade fraterna25. Em quase todos os caminhos espirituais privilegia-se a importância da consciência, a atenção para o aqui e o agora, a experiência de unidade, o silêncio 24 Lucas 7, 13. Os evangelistas empregam o termo “splanchnizomai” que expressa uma reação visceral, uma comoção nas entranhas. 25 Joan-Carles Mélich Ética de la compasión, Herder, Barcelona, 2010; Xosé María Castillo, La sensibilidad de Jesús, em VVAA, El grito de los excluidos. Seguimiento de Jesús y teología, Estella, Verbo Divino, 2006, 153-172. interior ... e com razão26. Entretanto, me atrevería dizer que o caminho mais eficaz para sintonizar com a espiritualidade de Jesus é aprender a olhar com atenção o rosto do outro com compaixão. 4.3. Gestos de bondade O bom samaritano da parábola é, para Jesus, o modelo de homem compassivo que vive imitando a compaixão do Pai do céu, vê o ferido da estrada, sente compaixão e aproxima-se dele: vendo as suas feridas, joga nelas azeite e vinho, fá-lo montar em sobre a sua própria cavalgadura, leva–o à pousada, cuida dele, se compromete a pagar as despesas ...27 Este homem não se sente obrigado a cumprir um determinado código moral; responde ao sofrimento do ferido inventando todo o tipo de gestos destinados a aliviar o sofrimento e recuperar a vida do ferido. A resposta aos que sofrem é sempre insuficiente, inadequada e imperfeita; mas o decisivo é viver semeando gestos de bondade e inventando respostas ao sofrimento. Assim é Jesus que, “ungido por Deus com o Espírito Santo, passou a vida fazendo o bem” (Feito 10, 38). Ele não tem poder político, não tem nenhuma potestade religiosa, não pode resolver as imensas injustiças que se cometem naquele canto do império; mas caminha pela Galileia e Judeia, movido pelo Espírito de Deus semeando gestos de bondade28. Abraça as crianças e as meninas da rua porque não quer que os seres mais frágeis daquela sociedade vivam como órfãos, abençoa os doentes e as doentes para que não se sintam malditos de Deus por não poderem receber a bênção do templo; toca nos leprosos e acaricia a sua pele para que ninguém os exclua da convivência; cura mesmo no dia de sábado para que todos saibam que nem a lei mais sagrada está acima do atendimento aos que sofrem. Acolhe os indesejáveis e come com pecadores desprezados por todos, porque, na hora de praticar a compaixão, o mau e o indigno têm tanto direito para serem acolhidos com bondade, como o bom e piedoso. Estes gestos não são convencionais. Nascem em Jesus de sua vontade de fazer um mundo mais amável e solidário, em que as pessoas se ajudam e se cuidam mutuamente. Não importa que, com freqüência, sejam gestos pequenos. Deus tem em mente o «copo de água» que damos a quem tem sede. São gestos 26 Ver a formosa síntese de Willigis Jäger, Sabiduría eterna. El misterio que se esconde detrás de todos los caminos espirituales, Verbo Divino, Estella, 2010. 27 Lucas 10, 30-37. Surpreende o carater detallado e minucioso com que Lucas descreve a reação «maternal» do samaritano. 28 Marcos 2, 27. Deus criou o sábado por amor ao ser humano e não ao ser humano por amor ao sábado. 63 destinados a afirmar a vida e a dignidade dos seres humanos. Lembram-se que sempre é possível intervir para tirar bem do mal que existe no mundo. São gestos que vão além da resposta técnica e administrativa dos problemas. Acompanham a indignação profética abrindo caminhos diretos e imediatos frente à passividade e à indiferença social, para não deixar abandonado em sua desgraça a nenhum doente. 5. Espiritualidade curadora A espiritualidade de Jesus, alentada pela compaixão ativa, tem uma dimensão claramente terapêutica, orientada para curar a vida tanto a nível individual como social. Os evangelhos sublinham que Jesus é um profeta curador: «Como Deus ungiu com o Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus estava com ele» (Feito 10, 38). 64 5.1 Curar a vida A chave mais importante a partir da qual Jesus vive para Deus e trabalha para abrir caminhos do seu reino de paz e de justiça, não é o pecado, a moral ou o culto, mas o sofrimento, a doença, a deterioração da vida, as condições insanas da sociedade, a falta de justiça e compaixão solidária. A gente teve que captar o contraste enorme que havia entre o Batista e Jesus. A trajetória profética do Batista é inspirada e orientada pela luta contra o pecado. É a sua preocupação suprema: denunciar os pecados do povo, chamar à conversão e purificar pelo rito do batismo aos que vão ao Jordão. O Batista não cura a nenhum paciente, não toca os leprosos, não libera os possuídos por espíritos malignos, não alivia o sofrimento. Não faz gestos de bondade. Não cura a vida. Os evangelhos, ao contrário, apresentam a Jesus caminhando pela Galiléia, e não em busca de pecadores para convertê-los de seus pecados, mas aproximando-se dos enfermos dos caminhos e das aldeias para curá-los de seus sofrimentos. Sua trajetória profética é destinada primordialmente a aliviar os que vivem sufocados pelo mal e excluídos de uma vida saudável. Quando os enviados do Batista lhe perguntam se está agindo em nome de Deus, Jesus responde com a sua atuação curativa: «Os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres está sendo anunciada a Boa Nova. E feliz quem não se escandaliza de mim29. 29 Mateus 11, 4-6. Não nos escandaliza pois que para Jesus o pecado que oferece maior resistencia ao reino de Deus é precisamente causar injustamente sofrimento ou tolerá-lo com indiferença fazendo-nos desentendidos dele. “Jesus proclama a proximidade do reino de Deus curando, anunciamdo a salvação de Deus”, introduzindo saúde no mundo. Este é o novo. E é necessário recordá-lo porque, com frequência, a teologia cristã acentuou até o extremo a sua atenção ao pecado atenuando a tragédia do sofrimento. JB Metz denunciou repetidamente o grave deslocamento: “A doutrina cristã da salvação dramatizou muito o problema do pecado enquanto relativizou o problema do sofrimento” 30. 5.2. Oferta de saúde integral Os doentes que Jesus encontra em seu caminho são, sem dúvida, o setor mais desvalido e marginalizado daquela sociedade. Muitos deles são incuráveis. Abandonados à sua sorte, incapacitados para ganharem o seu sustento, muitas vivem arrastando uma vida de mendicância que roça à miséria e à fome. Não experimentam a sua desgraça como um problema médico, mas como exclusão injusta da vida: não podem viver como os outros. São cegos que não conseguem captar a vida de seu domínio, surdos e mudos que não podem se comunicar, nem cantar nem bendizer a Deus, paralíticos que não podem se movimentar, trabalhar ou peregrinar a Jerusalém, doentes de pele repugnante que são afastados do lar e da aldeia, desprezados que perderam o domínio de suas vidas. A maior tragédia destes doentes é sentirem-se esquecidos por Deus: parece que o Espírito criador de vida os abandonou provavelmente por causa de algum pecado grave. Por isso, precisamente, são marginalizados e excluídos, em maior ou menor grau de convivência social e religiosa. A exclusão do templo é a confírmação de que vivem no fundo da sua doença: Deus não os quer, não podem confiar nele. Para entender em toda a sua profundidade a atuação curadora de Jesus, devemos notar que ele se aproxima de idosos e doentes esforçando-se por sanálos desde as suas raízes. Não procura apenas resolver um problema orgânico de caráter físico ou psíquico, mas sim reconstruir a sua vida inteira. A saúde física ou psíquica vai incluída dentro de uma ação sanadora mais integral. Os diferentes relatos sugerem com diversos aspectos que o processo de curas realizadas por Jesus é uma experiência de recuperação da vida, afirmação da própria dignidade, crescimento de liberdade, de reconciliação com Deus, a integração no convívio social. Jesus coloca o doente em contato com essa parte do seu ser que está ainda saudável para suscitar o desejo de vida que se esconde em todo ser humano: «Você, você quer ser saudável?» (Jo 5, 6). Desperta em seu interior a confiança 30 Ver a obra de Johann Baptist Metz Memoria passionis. Una evocación provocadora en una sociedad pluralista, Sal Terrae, Santander, 2007, 160-183 65 em Deus como uma força curadora: «Levanta e vá-. Salvou-te a tua fé» (Lc 17, 19). Liberta da culpa e do medo de Deus, oferecendo a sua paz e o seu perdão Reconciliador: «Meu filho: estão perdoados os teus pecados» (Mc 2, 5). Desata as amarras e escravidão para viver em liberdade: «Mulher, estás livre de tua doença» (Lc 13, 12). Faz retornar novamente a convivência: «Pega a tua maca e volta para a tua casa» (Mc 2, 11). Orienta-os para uma existência nova vivida desde o louvor e agradecimento a Deus: «Vai para a sua casa, volta para os seus, e conta-lhes tudo o que o Senhor, compadecido, fez com você»31. 5.3. Promover um processo de cura social 66 Jesus nunca pensou em suas curas como uma forma fácil de eliminar o sofrimento no mundo, mas apenas como um sinal para indicar a direção em que devemos trabalhar para acolher e introduzir entre nós o reino de Deus. Por isso Ele põe em marcha um processo de cura tanto individual como socialmente, com o intuito de fundo: curar a vida doente. Toda a sua atuação é feita no sentido de encaminhar a sociedade para uma vida mais saudável. Pensemos em sua preocupação de curar a religião rebelando-se contra tantos comportamentos patológicos de raiz religiosa (legalismo, hipocrisia, rigorismo, culto vazio de justiça e amor)32. Jesus é um grande curador da religião: liberta de medos de religião, não os alimenta; faz crescer a liberdade não as servidões; atrai para o amor de Deus, não para a lei; desperta a compaixão, não o ressentimento. Pensemosem seus esforçospara conseguir uma convivência maissaudável, criando relações mais humanas entre pessoas para que se respeitem mais, que se compreendam melhor, e que se perdoem sem condições33, defendendo a mulher do domínio possesivo do homem34, convidando a uma vida liberta da escravidão do dinheiro e da obsessão pelas coisas35, oferecendo o perdão a pessoas afundadas no fracasso moral e na ruptura interior36. É significativo, que ao confiar a missão a seus discípulos, Jesus fala invariavelmente de uma dupla tarefa: “Ide e anunciai o reino de Deus”, “Ide e 31 32 33 34 35 36 Marcos 5, 19; Lucas 13, 13; 17, 15; 18, 43 Lucas 40-42; Mateus 23, 23-24. Mateus 5, 21-26; 7,15; 18, 21-22. Marcos 10, 1-9; João 8, 1-11. Mateus 6, 21; 6, 24. Marcos 2, 1-12; Lucas 7, 36-50; João 8, 1-11 curai”37. O anúncio missionário e a tarefa sanadora são parte da mesma dinâmica que irá abrir caminho para o reino de Deus. Jesus convida a promover a cura como horizonte, canal e conteúdo da ação evangelizadora38. 6. A modo de conclusão A existência profética de Jesus atinge sua culminação ao ser crucifi nos arredores da cidade santa de Jerusalém. Na cruz revela-se de maneira defi a a sua paixão pelo reino de Deus e a sua compaixão por todas as vítimas, assumindo a sua afl até o fi O seu pedido de perdão ao Pai para os algozes que o crucifi é, ao mesmo tempo, um gesto sublime de compaixão e uma crítica suprema à insensatez do poder político e religioso que crucifi os inocentes: “Pai, perdoa; eles não sabem o que fazem “(Lc 23, 34). Por outro lado, o seu grito a Deus, identifi com todas as vítimas, pedindo alguma explicação para tanta injustiça e abandono, e sua entrega confi te ao Pai fi nos lábios do Crucifi reclamando uma resposta de Deus para além da morte: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste? “. Por que nos abandonaste? “Pai, às tuas mãos encomenda o meu espírito», Pai, em tuas mãos estão as nossas vidas 39. A ressurreição do Crucifi , desautorizando o representante do império romano e as autoridades do templo, é a intervenção defi a de Deus, que abre um futuro novo para a história humana. Só é possível acolher e proclamar a esperança nova que apresenta Jesus para e no mundo a partir da fé em um Deus que não abandona as vítimas. Pois, ele é um Deus livre e libertador; é o amor salvador do qual não temos que acomodar as pretensões dos poderosos, nem seguir os caminhos que marcam os donos do mundo. A atuação curadora de Jesus fornecendo saúde nos doentes da Galiléia já está anunciando a salvação eterna que nós oferecemos Deus. A acolhida aos que vivem excluídos já é promessa de armazenamento defi o e do perdão reconciliador de Deus. Suas refeições com pecadores, prostitutas e indesejáveis antecipam já o banquete do reino em torno do Pai. Deus tem a última palavra sobre a história humana. Quando o projeto do reino é impedido pelo mal, fracassa pelo nosso pecado, ou fi a meio do caminho interrompido pela morte; mas, Deus o leva a sua plenitude, para além da morte. Um dia as 37 Lucas 9, 2; 10, 8-9; Mateus10, 7-8. 38 Sobre a atuação sanadora de Jesus permito-me citar o meu estudo: Id y curad. Evangelizar el mundo de la salud y la enfermedad, PPC, Madrid 2004, sobretudo 9-50. 39 Marcos 15, 34; Lucas 23, 46. 67 REFERÊNCIAS aventuranças de Jesus serão cumpridas. Deus será tudo em todos. Ele “enxugar todas as lágrimas dos nossos olhos, e a morte já não existirá mais. Não haverá mais luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram” (Ap 21, 4). Então ouvirá do Ressuscitado as palavras mais consoladora que podemos ler nas Escrituras cristãs: “A quem tem sede, eu darei de beber gratuitamente água das fontes da vida” (Ap 21, 6). 68