S A B E D O R I A

Transcrição

S A B E D O R I A
© THINKSTO
CK.COM
n SABEDORIA
Por DOMINIQUE DUBOIS, SRC
I
ntegrar plenamente o valor, o significado
e a pertinência de uma palavra significa
antes de tudo ter o tempo de acolhê-la para
medir seu impacto. É deixá-la nos invadir a
ponto de interpretar seu sentido pelos nossos
sentidos e de vibrar inteiramente no coração
de suas profundezas até entrar em ressonância
com sua razão de ser. É deixá-la nos submergir a ponto de comungar em consciência com
sua essência até viver, por fim, a dimensão que
ela veicula. Uma única palavra pode, pois, ser
finalmente portadora de toda uma mensagem,
de uma emoção ou de seu oposto. A pena, por
exemplo, é traduzida como um sentimento de
38
O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2015
mágoa e de prostração, de onde a expressão
errar como uma alma cheia de pena! A compaixão, por sua vez, é no mais das vezes definida como uma sensibilidade aos sofrimentos
de outrem a ponto de incitar a reagir.
Pena e compaixão – eis aqui duas palavras
que não são sinônimos, mas complementares
em suas acepções. Pela atração que exercem
uma sobre a outra, elas determinam a mescla
de respostas intuitivas, emotivas e afetivas
próprias aos seres vivos e à sua necessidade
inata de bem-estar, de amor e de contentamento, a ponto de projetar esses seres no seio
de uma mesma realidade.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) enunciou
perfeitamente essa fusão íntima das psiques
na seguinte frase, dedicada ao sofrimento
animal: Como é que deixamo-nos emocionar
por piedade senão pelo ato de nos transportarmos para fora de nós e nos identificando
com o animal que sofre – deixando, por assim
dizer, o nosso ser para assumir o dele?
Tudo se passa no tempo de um sorriso, de
um gesto ou de uma prece, mas também às
vezes simplesmente de um silêncio, onde a empatia espontânea e o eclipse total de um para
o outro confundem momentaneamente duas
personalidades-almas distintas, ou mesmo dois
seres vivos de naturezas ou de reinos distintos.
Esse élan sincero e instintivo, marcado
simultaneamente por discernimento e benevolência, prodigalizará um imenso reconforto ao
ser náufrago ao inflamá-lo com o facho de luz
e de calor próprio do amor desinteressado, são
e inequívoco. Esse sentimento, ao mesmo tempo fortificante e apaziguador de ser compreendido, aceito tal e qual em toda a sua fragilidade, é um bálsamo oferecido à dor, um esboço
de cura, uma clareira no precipício da solidão
e do aprisionamento, o hino à vida que ressuscita com um fermento de fé. Esse parêntese
roubado ao espaço-tempo é também a carícia
e o sopro abençoados da providência que já
talvez não sejam esperados e que, pelo fato de
se ter sabido resistir e sobreviver à falibilidade
– às vezes reduzido ao nada em plena fortaleza
em ruína – e existir ao menos pela esperança,
pelo bem ou pela utopia, repentinamente nos
recompensa pela certeza sem ilusões de uma
saída acessível e pela santificação da espera de
uma mão estendida para a salvação.
Durante a efusão física, mental, psíquica e
espiritual que acompanha a realização de tal
ato de compaixão, aquele que recebe, embe-
bendo-se na fonte de afeição do ser misericordioso, se liberta incontestavelmente de um
fragmento de seu sofrimento em benefício
de um novo ganho de energia e de confiança,
ao passo que aquele que oferece, abraçando
por sua devoção a aflição do primeiro, alivia
seu próprio coração, liberta um pouco mais a
sua alma do domínio do ego e se enriquece,
acima de tudo, da história e da vivência do
primeiro. Tal é a principal característica das
semeaduras e das colheitas da compaixão:
uma simbiose e um duplo benefício.
Assim que a intensidade da conexão desses dois seres por um instante fusionados se
abranda – que o enlace é suavizado e que a
projeção sem mescla de um para o outro é
interrompida –, o vazio perturbador da separação e o espectro igualmente insuportável
de um novo abandono são instantaneamente suprimidos e anulados sob os auspícios
da compaixão pela poderosa evocação dos
laços indissolúveis do ato de partilha e de
compromisso sem dependência que acaba
de acontecer. Eles
doravante têm
consciência de que
todos os reinos são
atravessados por
uma mesma corrente vital – uma
mesma sinergia
–, que nenhuma
vida está isolada
das outras e que a
miríade dos seres
forma uma mesma
família motivada
por um mesmo
destino. Depois da
coincidência dos contrários, do sofrimento
e da felicidade, se manifesta agora um doce
sentimento de universalidade. A via transformadora e humanista da compaixão operou
pela fraternidade e para a fraternidade.
© THINKSTOCK.COM
O gesto de
compaixão
PRIMAVERA 2015 · O ROSACRUZ
39
n SABEDORIA
Agora sabemos que uma mesma energia
impregna todas as coisas e que somos todos
oriundos da mesma fonte, posto que somos
todos compostos de átomos – eles próprios
provenientes de minúsculas partículas originárias do universo. Somos cada qual um elemento, uma célula do corpo desse universo,
um ser vivo e sensível, e estamos de acordo
quanto ao fato de evoluirmos para uma perspectiva universal enquanto irmãos e irmãs de
uma entidade global. Graças à nossa natureza
dupla, material e imaterial, corpo e alma, eu e
Eu, isso se cumpre sob a égide de um elo impalpável, porém inalterável entre o visível e o
invisível – entre a terra e os céus.
Ora, geralmente, nas sociedades modernas e desenvolvidas, a maioria das pessoas
permanece preocupada apenas com o aumento de seus bens e de suas futuras aquisições, com a preservação de seus privilégios,
daqueles de sua família e eventualmente
de seus amigos, sem se dar conta de que os
sentimentos que nutrem por esse círculo íntimo dizem também respeito muitas vezes ao
apego, ao preconceito e à possessão. Por essa
obsessão pelo desenvolvimento material, o
homem destrói tudo em sua passagem, até os
mais fracos dentre os seus semelhantes. Tendo se tornado paralelamente impermeável às
necessidades existenciais e fundamentais da
vida mineral, vegetal, animal e ambiental, às
quais, entretanto, tudo deve e das quais seu
futuro depende integralmente, ele se compraz em suas falibilidades e negligencia deliberadamente a maior e mais fascinante parte
de si mesmo: a de sua própria vida interior.
Quanto à compaixão, o problema não
está no fato de se acumular riquezas e querer
fazer seus próximos felizes, pois o bem-estar,
a felicidade e a alegria são ideais vitais ao
40
O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2015
© THINKSTOCK.COM
A compaixão
universal
redor dos quais todos nós gravitamos. Trata-se antes de ter consciência de que os mais
desfavorecidos e os mais aflitos aspiram ao
mesmo estado de leveza e de liberdade, ou
mesmo de impermanente frivolidade. Sentir
necessidade e encontrar o impulso de partilhar essa felicidade com eles oferece uma
nova perspectiva, qual seja, a de vencer o
caráter agora infundado de um sistema estabelecido sobre a base da lei do mais forte,
da ignorância e da inconsciência absolutas. É
definitivamente reconhecer que a felicidade
de uns não deve acarretar o infortúnio dos
outros, mas que – exatamente ao contrário
– deve contribuir para a plenitude deles.
Para se opor ao individualismo que prevalece e aspirar abertamente à autêntica
compaixão, a filosofia budista preconiza que
se medite sobre a igualdade de direitos a fim
de suplantar o apego ao seu próprio círculo
racional, seja ele familiar, social ou profissional, para abri-lo progressivamente aos outros
até expandir-se à infinidade dos seres vivos e
ao conjunto dos reinos. Os inimigos também
são considerados tendo direito à felicidade e
ao não-sofrimento; em outras palavras, à paz,
independentemente da atitude que tenham
para com o ser misericordioso.
Por sua vez, a filosofia rosacruz se apoia
sobre a alquimia espiritual, utilizada principalmente para a transmutação dos defeitos da
natureza humana em suas qualidades opostas. O essencial da prática rosacruz consiste,
portanto, em se trabalhar para o aprimoramento individual a fim de se tornar melhor,
a ponto de manifestar um verdadeiro ideal
de comportamento para com todos. Trata-se,
pois, de melhorar o mundo reformando-se a
si mesmo até se atingir um estado de espírito
propício a cada vez mais humanismo e fraternidade, colocando, dessa forma, a cultura da
compaixão e do auxílio mútuo no centro de
suas preocupações maiores.
Dessas duas concepções, evidencia-se
que a compaixão solicita mais do desenvolvimento das qualidades humanas e da
prática de um comportamento virtuoso
para com todos aqueles que sofrem do que
da fé ou da crença propriamente
ditas, o que lhe confere, incontestavelmente, uma
conotação mais filosófica do que religiosa. É
o que levou o Dalai
Lama a dizer, em
seu livro intitulado
O Poder da Compaixão: Não precisamos nos tornar
religiosos. Não precisamos de ideologia.
O que nos é necessário
é o desenvolvimento
das qualidades humanas.
Da mesma forma, Serge
Toussaint, Grande Mestre da
AMORC, destaca em seu blog na
internet: Não é necessário de forma alguma ter fé para se compadecer do sofrimento de outrem e para agir na tentativa
de aliviá-lo ou fazer com que desapareça.
Basta – se ouso dizê-lo – ser humanista.
“
De tudo o que precede, vemos bem que a
compaixão exige um esforço particular: o de
estender seus sentimentos de benevolência
e de altruísmo para todo o planeta, ou seja,
bem além do seu círculo íntimo de relações.
Trata-se verdadeiramente de um engajamento – de uma suplantação de si pela inteligência e pelo movimento do coração. Enquanto
ser sensível, aquilo que o outro sente todo
mundo é passível de sentir um dia, pois nossa natureza é fundamentalmente a mesma.
Conscientemente ou não, somos todos ensombrados e desacelerados pela infelicidade
dos outros, ao passo que a verdadeira felicidade só pode ser engrandecida na proporção
da felicidade deles. Em seu livro intitulado
A Montanha no Oceano, Jean-Yves Leloup
declara: Meu próprio corpo é o corpo do universo e se, nesse universo, um único membro
estiver sofrendo, não posso conhecer a plenitude ou, em termos cristãos, a beatitude... Fazer o bem a um elemento do universo é fazer o
bem ao universo inteiro.
Por essa malha de
almas e sua ressonância suprassensível de
uma entidade à outra, toda experiência
tem um sentido e
serve ao conjunto.
Se alguém sofre e se
restabelece de uma
provação com a ajuda
de outrem, qualquer
que seja o grau de dificuldade dessa provação, juntos
abrem um rastro luminoso. Essa
via redentora acelerará o processo de
cura e de transformação daqueles que, um
dia, serão levados a viver a mesma coisa e ajudará a suplantar o obstáculo mais facilmente
até abolir definitivamente a necessidade dessa
experiência. É a razão pela qual todo sofri-
a felicidade
de uns não
deve acarretar o
infortúnio dos
outros…
”
PRIMAVERA 2015 · O ROSACRUZ
41
© THINKSTOCK.COM
n SABEDORIA
mento abrandado e superado é um presente
para si mesmo e uma oferenda para outrem.
Eis a razão pela qual a história não precisa
sempre se repetir, pois, enquanto se repete
ela reflete a falta de despertar e de consciência das mentalidades. Eis porque a filosofia,
o misticismo e a espiritualidade têm todos o
seu lugar e devem, ao contrário, se renovar,
perdurar e brilhar para estimular as almas
e impulsionar a regeneração de uma humanidade desgarrada e em busca. Eis porque é
indispensável propor amplamente o acesso
ao Conhecimento – para que os homens cessem, em todas as circunstâncias, de abusar
uns dos outros, para que se motivem a se
tornarem atores de um mundo melhor, os
precursores de uma utopia e os instauradores
de uma autêntica fraternidade mundial e de
uma nova humanidade tão esperadas.
Existe em nós uma dimensão de doação, acolhimento e receptividade tal que
dissimulá-la ou ignorá-la é forçosamente
prejudicial à saúde física, mental e psíquica, e é tanto em nome do bem individual
quanto do bem comum que ela merece ser
descoberta, encarnada e fortificada. Não
42
O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2015
utilizar essa força e renegá-la redunda em
obscurecer a mente, impedir o movimento
do coração, coagir o corpo e sacrificar a
alma. Nesse mundo perturbado e brutalizado sempre há uma ocasião para se manifestar atenção, afeto e empatia, não apenas a
alguém em particular, mas também a todos
os seres vivos e a todas as formas de vida.
Nesse sentido, nossos pensamentos, nossas emoções, nossas preces e nossos élans,
quando são marcados pela sinceridade e pela
benevolência, podem ser destinados a uma
pessoa particular, mas também dirigidos
para todos os reinos e todos os elementos
que compõem o nosso planeta. Nesse último
caso, mesmo que não vejamos objetivamente o fruto de nossos atos de compaixão,
eles jamais são vãos e permanecem sempre
oportunos e legítimos. Confiados ao Cósmico e guiados pelo sopro providencial da
universalidade, são sempre garantidos pelo
mais justo destino e pela maior eficácia.
No fio do processo
de compaixão,
uma alma viva
Para compreender bem a ligação entre o
ato de compaixão e a participação do Cósmico, é importante definir o processo de
compaixão e depois tomar consciência da
dupla natureza do homem e da interação
entre a alma individual e as leis divinas.
O processo de compaixão se manifesta
por uma série de sensações que vão da empatia (faculdade intuitiva de se colocar no
lugar de outrem e perceber aquilo que ele
sente) à pena, depois da pena à simpatia
(participação benévola na alegria ou na dor
de outrem) e, por fim, da simpatia ao impulso de auxílio. Nesse estágio, não convém
mais considerar a empatia e a compaixão
como eventuais sinônimos, mas sim perceber
que uma é apenas um componente da outra
– sua forma passiva, seu esboço. Com efeito, o fato de perceber intuitivamente aquilo
que o outro sente não induz, forçosamente,
a uma necessidade de agir. É quando ocorre
a manifestação de um desejo de consolo,
de uma vontade de compreensão, de acompanhamento e de apoio que a compaixão
assume todo o seu significado sob a forma
ativa de auxílio. Para tomarmos um atalho,
podemos considerar a compaixão como a
resultante da empatia e do auxílio reunidos.
Elevada a esse nível, a compaixão revela
todo o seu valor, pois traz em si o gérmen da
nobreza e do domínio próprio às virtudes, no
sentido do serviço e da ética; em outras palavras, próprio aos sentimentos de humanismo e
de fraternidade tão caros à filosofia, à espiritualidade e ao misticismo. Esclarecida em todo o
seu sentido, sua natureza benévola nos protege
e nos distancia logo da armadilha opaca da
piedade, da condescendência ou da indiferença
para nos conduzir – munidos simbolicamente
das chaves da consciência, do livre-arbítrio e
da alma – ao umbral das leis divinas.
É precisamente nesse momento que nos é
dado perceber em nós outra dimensão – um
espaço virgem ao mesmo tempo subjacente
e incriado, uma energia emergente até então
insuspeita e, no entanto, onipresente, onipotente e onisciente. Além dos limites do
racional e do espaço-tempo, sentimos logo,
em todo o nosso ser, a presença vibratória de
uma essência ao mesmo tempo íntima, intensa, sutil e sublime a que chamamos “alma”.
Certamente, penetramos o seio de um
território desconhecido do qual nunca nos
falaram no mais das vezes – uma atmosfera
algo abstrata para a qual não fomos preparados. Todavia, a despeito de certo problema
passageiro, uma janela acaba de se abrir
inexoravelmente para a evidência da dualidade da natureza humana e, por conseguinte,
para a existência de um princípio divino no
homem, o qual o religa infalivelmente ao
Cósmico. Afirmando-se, assim, em sua dupla
natureza, o homem percebe que não é apenas
um ser vivo, mas também, e, sobretudo, uma
alma viva. Tal como um guia espiritual interior, ela o convida então a se engajar na via
da prece e da meditação a fim de sentir, de
captar a corrente divina em movimento e em
ação em toda a Criação e de se associar a ela
para melhor restituí-la em seu cotidiano.
O desenvolvimento
das virtudes e o
despertar do eu
Tendo sua busca pelo bem sido confortada,
seu poder de auxílio metafísico ampliado
consideravelmente, sua capacidade de doação
aprimorada e seu amor pela humanidade e
pela vida reforçado, o homem pode então refletir, em seu comportamento, a luz brilhante
da obra à qual sua consciência, seu livre-arbítrio e sua alma se consagram, ou seja, o
advento de um mundo melhor.
Ao longo de toda essa progressão, é preciso constatar que uma única virtude manifestada pode bastar para iniciar o homem ao
objetivo ontológico da vida – da sua vida –,
contribuindo, assim, para o despertar, a realização e a perfeição de seu ser interior. Sem
essa fusão cósmica entre a alma individual e
a Alma Universal, o eu, ainda muito sequioso
de amor, permaneceria prisioneiro de seu
próprio ego e inibiria qualquer veleidade de
compaixão a longo prazo, ao passo que o eu
estagnaria sufocado, não podendo revelar
sua natureza essencial feita de consciência e
altruísmo universais. Eis em que o desenvolvimento das virtudes é o suporte evolutivo
da alma e a alma a inspiradora espiritual do
desenvolvimento das virtudes.
PRIMAVERA 2015 · O ROSACRUZ
43
n SABEDORIA
do Cósmico e oficia doravante com Ele a
serviço da Compaixão e do Bem universais.
Se o despertar das qualidades inerentes
ao desenvolvimento da compaixão se mostra primordial, isto se deve ao fato de que a
compaixão contribui incontestavelmente
para o estabelecimento de um mundo
melhor. Ora, em seu livro intitulado A
Utopia Rosacruz, Serge Toussaint lembra
que, de acordo com a UNESCO, 70% da
população são pobres, 95 países do planeta
são igualmente pobres e 80 outros estão
em vias de desenvolvimento. Ele confirma
também que a pobreza grassa nos países em
que o nível de vida é, todavia, considerado
confortável e atesta que tal situação não
pode satisfazer a quem aspira à felicidade
de todos os homens. Paradoxalmente, na
introdução do livro de Steve Melanson, Jung
e a Mística, é dito que o homem ocidental
sofre no interior: Como se todas as graças
materiais que ele concedeu a si mesmo em
menos de um século não pudessem jamais
bastar para preencher sua alma, ele traz
o vazio e muitas vezes, escondendo-o de si
mesmo, permanece ignorante de sua lacuna.
Contudo, essa vacuidade poderia ser
proporcionalmente coberta por todo o
bem que deixamos de fazer. O bom e o
justo se apoiam sempre sobre uma ou
várias qualidades superiores particulares
“
…a pobreza
grassa nos países
em que o nível de
vida é, todavia,
considerado
confortável…
Dessa simbiose até então incriada surge
uma chama viva, nascida do despertar do
eu e suscetível de abrir uma eclusa de luz
propícia a deter o ciclo das repetições, a
curar todos os males e a agir de modo que,
a despeito de circunstâncias desesperadas
e de situações abomináveis, o mundo ainda se mantenha de pé, se equilibre bem ou
mal e se eleve apesar de tudo em espírito.
Evidentemente, cada qual tem a escolha
de contribuir ou não com essa alquimia formidável que se opera entre o eu e o Eu. Em
função de seu próprio livre-arbítrio, cada
qual pode permanecer surdo às aspirações
de sua alma ou a satisfazer suas exortações
abrindo-se à sua divindade. É precisamente sondando a imensidade de seu coração
que ele se torna o artesão individual de
seu próprio despertar, livre para escolher
a obra que vai servir e as ferramentas de
contribuição que vai desenvolver para a
sua consecução. Agindo assim, ele dá uma
orientação resolutamente espiritualista à sua
existência, considera o mundo inteiro como
seu único filho, se beneficia dos auspícios
44
O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2015
© THINKSTOCK.COM
”
© THINKSTOCK.COM
que todos possuímos no fundo de nós
mesmos. Além disso, é bem sabido que
ninguém é jamais totalmente mau. Disso
decorre que toda personalidade dispõe
de uma aptidão particular que já contém
em si a quintessência do despertar do eu.
Trata-se de uma sólida fundação para a
construção de outra ideia do homem e
de outro olhar sobre o mundo. Se esse
não fosse o caso, como explicar o fato de
que, depois de mais de cem mil anos de
existência e persistência de nossa espécie
humana, tenha ela atingido um nível de
consciência sem precedente e ainda esteja
apta a prosseguir com sua evolução? Sem
a multiplicação de atos de compaixão,
simplesmente não estaríamos mais aqui.
Porém, se por um lado a compaixão é
uma virtude que o homem deve se esforçar
para despertar no decurso de seu percurso
interior, por outro o desejo e a vontade de
ajudar os outros, as qualidades comportamentais e a prática mística ainda não são
absolutamente suficientes para a sua justa
aplicação. Ela pressupõe um perfil psicológico equilibrado e uma estrutura mental
clara, capazes de suplantar o sentimentalismo excessivo, a boa consciência, a piedade
ou a indiferença. A esse respeito, o Dalai
Lama escreveu: A compaixão não é apenas
uma resposta emocional, mas um sólido engajamento construído sobre a razão... Nossa
definição de compaixão deve ser clara.
Nossa presença na Terra por si só dá
testemunho de nossa imperfeição. A tomada de consciência das distorções de toda
espécie que perturbam nossa ascensão para
a expressão de sentimentos puros, simples
e desinteressados, ao invés de nos levar à
desconsideração de nós mesmos ou mesmo à
culpabilidade, deve, ao contrário, nos incitar
a trabalhar incessantemente para pôr fim a
isso. É esse trabalho sobre nós mesmos que
nos fará por fim descobrir nossa verdadeira
natureza e nos aproximar dela com uma
consciência muito mais justa. Nesse sentido,
a alquimia espiritual se associa maravilhosamente bem com a psicologia, assim como
a toda iniciativa de desenvolvimento pessoal
que contribua para a revelação de si mesmo.
Concretizar essa resolução redunda em assinar um pacto de paz com sua personalidade-alma e revelá-la ao mundo inteiro outorgando-se simplesmente a liberdade de amar
o seu próximo cada dia um pouco mais.
De tudo isso que precede, não é em vão
dizer que o progresso na senda mística, e,
portanto, na via do amor, não pode ser realizado sem esforços consideráveis. Esse caminho convoca incontestavelmente a determinação, a constância e, sobretudo, o desapego.
A profundidade de cada palavra se envolve logo em solenidade e os textos que
lhes servem de suporte realçam o sagrado.
Manter-se de pé, estender a mão, abrir seus
braços e oferecer seu coração estão longe
de não significar nada: significam aceitar
libertar a alma do amor que até então estava
aprisionada. Essa libertação pelo amor, símbolo de um coração sem limites, é o brilho
da rosa no centro da cruz que, assim como
os círculos inundados de sol na água, se desabrocha e brilha pela graça e pelo sopro do
Espírito Santo. É a unificação dos contrários,
a pacificação das oposições e a transcendência das diferenças, pois a inteligência que
ama e o Verbo Divino que iluminam essa
rosa eterna – essa alma do amor – espalham
por toda parte a mesma mensagem universal
de misericórdia e, sobretudo, de verdade. 4
PRIMAVERA 2015 · O ROSACRUZ
45