Prefácio - A Esfera dos Livros

Transcrição

Prefácio - A Esfera dos Livros
Prefácio
é o único lugar onde se pode aprender a liderar». Era um
«Este
tema ao qual frequentemente regressava o coronel, nas palestras
que fazia a uns quantos nas noites de instrução semanais do Corpo
de Treino de Oficiais, em Oxford. Depois da parada, seguida de um
par de horas de lições e treino (um pouco de tudo, desde leitura de
mapas, guerra química, primeiros socorros e táctica de pequenas unidades, até como escrever uma carta – ou, mais tarde, quando entrei
para o grupo RA, cansativas mas entusiasmantes sessões práticas de
montagem e desmontagem de armas ligeiras), devíamos encher um
grande e luxuoso auditório pertencente ao (pelo menos segundo a
lenda) fabulosamente rico Esquadrão Aéreo da Universidade. Por esta
altura, a maior parte estava impaciente por que os deixassem ir para
a messe, mas, tanto por ser abstémio como por me interessar por
história militar, eu apreciava bastante essas sessões. Durante cerca
de trinta minutos, o coronel, com a cadência de um mecanismo bem
oleado, falava sobre os atributos de um bom líder, contando histórias
sobre Marlborough, Nelson e Slim, e, por vezes, mesmo sobre os heterodoxos métodos de Lawrence e Wingate. Por vezes, mostrava-nos
um esquema ou diagrama representando as competências requeridas
para liderar, mas insistia sempre no facto de os líderes não aprenderem grande coisa com leituras, instruções ou teoria, mas na prática,
fazendo. Tal não queria dizer que uma instrução formal e o treino
não tivessem valor, mas somente que, por si sós, eram insuficientes.
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A experiência era sempre a melhor mestra e, naturalmente, qualquer
sistema de treino não passava de uma tentativa de combinar noções
adquiridas por experiência própria ou alheia.
Os líderes são importantes. Como o são, para o bem e para o mal,
cada pessoa envolvida numa actividade ou projecto, mas aqueles que
possuem um maior poder ou responsabilidade para dirigir uma operação têm inevitavelmente uma maior influência no curso dos acontecimentos. Não sou soldado, nem na minha solitária actividade de
escritor me solicitam que dirija seja quem for – uma questão que interiorizei quando, durante a escrita do presente livro, proferi uma conferência sobre estilos de liderança romanos a um grupo de oficiais do
Exército Britânico. Dois anos no CTO da Universidade de Oxford
representam a totalidade da minha experiência militar e, embora os
tenha considerado esclarecedores e gratificantes, duvido que tenham
alterado o meu estatuto fundamentalmente civil. Serviram certamente
para me alertar para quanto é difícil coordenar os movimentos de
umas escassas centenas de homens e ajudaram-me a perceber todo o
atrito que pode surgir, mesmo no decurso de um exercício – o conhecido tema do «Despachem-se e esperem», tão familiar a todos aqueles
que alguma vez vestiram um uniforme. Talvez com maior utilidade
para o presente estudo, forneceram-me muitos exemplos da diferença
que os líderes podem fazer. O mais importante nem é particularmente
visível, nem sequer especialmente verbalizado, é mais a noção de que
tudo parece decorrer com fluidez sempre que eles estão presentes na
acção. Um Corpo de Treino de oficiais da Universidade está cheio de
cadetes jovens e inexperientes, inclui inevitavelmente um vasto leque
de talentos. Havia uma minoria de líderes naturais, instintivamente
bons a motivar e dirigir os outros, enquanto a grande maioria tem de
aprender a fazê-lo gradualmente, cometendo os inevitáveis erros de
percurso. Um punhado deles provavelmente nunca aprenderá e, em
diversos aspectos, é muito mais óbvia a presença de um mau líder do
que a de um bom.
Este livro é sobre alguns dos mais bem sucedidos generais romanos
e suas vitórias. A preocupação principal consiste em estabelecer o que
terá acontecido durante essas campanhas concretas, batalhas e cercos
e, particularmente, nos modos como o comandante desempenhou as
suas tarefas de controlo e comando do exército. Os generais romanos
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prefácio
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não recebiam um treino formal antes de serem nomeados para os altos
comandos, e aquilo que tivessem aprendido sobre o assunto tê-lo-iam
feito por experiência própria, por conversas informais e pelo estudo.
Eram também escolhidos mais – provavelmente, muito mais – pelos
seus antecedentes familiares e pelas ligações políticas, do que pela sua
presuntiva capacidade. Na moderna acepção, eram amadores, portanto, sem competências específicas e não preparados para a função.
Uma das ideias deste livro consiste na rejeição deste pressuposto, uma
vez que os chefes militares romanos revelavam-se, por norma, bastante bons. Ainda que os objectos de estudo do presente livro sejam,
em muitos aspectos, os melhores de entre os melhores, tornar-se-á
evidente que estes homens não agiram de um modo significativamente
distinto dos outros generais romanos. Os melhores comandantes limitaram-se a fazer o mesmo de sempre, mas melhor do que os demais.
Os generais romanos eram forjados pela experiência prática e pelo
bom senso, dois elementos que nenhum sistema de produção de líderes ou gestores deve alguma vez negligenciar.
A História ocupa-se das acções e interacções dos seres humanos;
como tal, o estudo de qualquer aspecto do passado diz-nos algo
sobre a natureza humana e, portanto, ajuda-nos a compreender o
nosso tempo. Estou convicto que podemos aprender alguma coisa
pelo estudo das campanhas dos generais romanos, mas esse não é o
objectivo do presente livro – não tive o desejo de escrever nada que
se pudesse intitular «O modo romano de criar lideranças bem sucedidas». Muitos dos que procuram estabelecer regras fixas para uma
efectiva liderança transmitem-nos a ideia de que não possuem nenhum
dos necessários atributos para o seu exercício. Muito do que foi feito
pelos generais bem sucedidos parece ser fácil e evidente, quando friamente transcrito para uma folha de papel, do mesmo modo que qualquer lista de «regras da guerra» parece pouco mais do que mero senso
comum. A dificuldade reside em pôr em prática, em pôr em campo
correctamente, essas regras. Milhares poderão copiar as acções ou os
maneirismos de César ou Napoleão e falhar redondamente, tornando‑se ridículos.
Não tenciono perder tempo nos próximos capítulos a dissecar cada
uma das decisões dos comandantes em campanha, muito menos em
propor «melhores» alternativas da minha lavra, geradas no conforto
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do meu escritório. Também não pretendo ordenar, por capacidade
demonstrada, os homens aqui tratados, nem discutir os seus méritos e defeitos ou compará-los com famosos comandantes de outros
períodos históricos. A minha preocupação orienta-se mais concretamente para assuntos como: o que foi verdadeiramente feito, por que
foi feito, o que pretendia alcançar, como foi posto em prática e quais
foram as consequências reais. O objectivo é conhecer o passado no seu
contexto; para um historiador isto constitui um fim em si. Uma vez
apresentado, os que a tal se sentirem inclinados poderão com proveito
juntar os episódios descritos ao rol de informações que ajudam cada
um de nós a compreender como funcionam as pessoas no mundo que
nos rodeia. A experiência, seja pessoal ou alheia, tem igual valor para
o líder ou para o seguidor. Difícil é usá-la bem.
Neste momento queria expressar a minha gratidão a vários familiares e amigos e, especialmente, a Ian Hughes, que leu e comentou o
manuscrito nas suas várias fases. Também queria agradecer a Keith
Lowe e à equipa de Weidenfeld & Nicholson por apoiarem imediatamente a ideia deste livro e por o terem acompanhado até à publicação.
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Introdução
No Início: De Chefe e Herói
a Político e General
’
O dever do general é percorrer a cavalo as diversas patentes, mostrar-se aos que estão em perigo, enaltecer os bravos, ameaçar os covardes, encorajar os inertes, preencher os vazios, transferir uma unidade se
for necessário, dar apoio aos amedrontados, antecipar a crise, a hora e
o desfecho1
A
sumária descrição do papel do general no campo de batalha,
foi escrita por Onasander em meados do século i da nossa era,
mas reflecte um estilo de comando que persistiu pelo menos durante
setecentos anos e que era tipicamente romano. O general ali estava,
dirigindo a batalha, para inspirar os soldados, fazendo-os sentir que
estavam a ser observados e que qualquer acto visível de coragem seria
recompensado, na mesma medida em que seria punida a covardia.
Não lhe competia mergulhar na refrega, de espada ou lança na mão,
lutando à cabeça dos seus homens, partilhando os riscos. Os romanos
sabiam que Alexandre o Grande tinha conduzido os seus macedónios
deste modo, vitória atrás de vitória, mas não se esperava dos seus
comandantes uma emulação desse heroísmo. Onasander era grego e
um homem sem experiência militar, escrevendo num género literário
estabelecido no período helenístico, mas todos os estereótipos literários usados para descrever o chefe militar no seu O General eram
decididamente romanos. O livro foi escrito em Roma e dedicado a
Quinto Verânio, um senador romano que morreria no comando de
um exército, na Britânia no ano de 58 da nossa Era. Os romanos
orgulhavam-se de ter copiado dos inimigos externos muitas das suas
tácticas e do seu equipamento militar, mas a sua dívida para com os
outros era muito menor nos domínios da estrutura básica do seu exército e nas funções desempenhadas pelos seus comandantes.
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Este livro debruça-se sobre generais, especificamente sobre quinze
dos mais bem sucedidos comandantes romanos, desde os fins do século
iii a. C. a meados do século vi da nossa era. Alguns deles são ainda
relativamente conhecidos pelo menos entre os historiadores militares
– Cipião Africano, Pompeio e César serão seguramente passíveis de
figurar na lista dos mais hábeis comandantes da História – enquanto
outros se encontram esquecidos. Todos, com a possível excepção de
Juliano, eram, no mínimo, generais competentes, que ganharam relevante sucesso, mesmo nos casos em que terminaram derrotados, mas,
na sua maioria, eram bastante talentosos. A selecção baseou-se na sua
relevância, tanto no domínio da história de Roma, na sua generalidade, como no desenvolvimento do modo romano de fazer a guerra,
e também na existência de um suficiente número de fontes de informação que permitisse descrever com algum detalhe a sua acção. Para
os séculos ii, iv e vi da nossa era, temos uma única individualidade,
e nenhuma para os séculos iii e v, simplesmente porque a informação para esses séculos é muito pobre. Pela mesma razão, não podemos analisar em detalhe nenhuma campanha de um qualquer general
romano antes da Segunda Guerra Púnica. Apesar de tudo, o leque é
suficientemente vasto e as personalidades escolhidas ilustram cabalmente as transformações, quer na natureza do exército romano quer
no relacionamento entre o general em campanha e o Estado.
Mais do que seguir uma carreira individual no seu todo, cada capítulo centrar-se-á em um ou dois episódios concretos das suas campanhas, observando com algum detalhe os modos como cada um interagiu e controlou o seu exército. A ênfase será colocada sempre nas
acções do comandante em cada fase de uma operação e em quanto
contribuiu para o resultado final. Esta abordagem, com elementos
biográficos e uma especial atenção ao papel desempenhado pelo general – na estratégia, nas tácticas e seu desenvolvimento, na lide­rança –,
corresponde a um estilo bastante tradicional de história militar. Inevitavelmente, envolve uma forte componente narrativa e descritiva
dos mais relevantes episódios das guerras, batalhas e cercos, trombetas e espadas. Embora popular entre o grande público, este tipo
de história perdeu respeitabilidade académica nas últimas décadas.
Os académicos preferem olhar para um mais vasto cenário, tentando
captar os factores económicos, sociais ou culturais, tidos como de
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mais relevante influência no desenrolar dos conflitos, do que as decisões individuais ou os acontecimentos guerreiros. Para tornar este
tópico ainda mais fora de moda, este é também no essencial um livro
sobre aristocratas, uma vez que os romanos pensavam que somente
os bem-nascidos e privilegiados mereciam ser encarregados dos altos
comandos. Mesmo um «homem novo» (novus homo) como Mário,
desprezado pela elite do Senado, onde pretendia forçar a sua entrada,
pelas suas origens vulgares, vinha simplesmente da baixa aristocracia,
não sendo de todo um representante da população indiferenciada.
Pelos padrões actuais, todos os comandantes romanos eram essencialmente soldados amadores. A maioria passou apenas uma parte da
sua carreira – habitualmente menos de metade da sua vida adulta –
no serviço militar. Nenhum recebeu qualquer treino formal para o
comando e eram nomeados somente com base no seu sucesso político
que, por sua vez, derivava largamente dos factores do nascimento e
riqueza. Mesmo um homem como Belisário, que serviu como oficial a
maior parte da sua vida, foi promovido pela sua reconhecida lealdade
para com o imperador Justiniano e não passou por nenhum sistema
organizado de treino e selecção. Em nenhum momento da história
de Roma existiu alguma coisa que se pudesse vagamente assemelhar
a uma «Academia Militar», que formasse os comandantes e os seus
oficiais subordinados. Obras sobre teoria militar foram comuns em
alguns períodos, mas muitas delas não passavam de manuais práticos
(frequentemente descrevendo as manobras das falanges helenísticas,
cujas tácticas eram obsoletas há séculos) e todos eram falhos em detalhes. Alguns generais romanos consideravam-se supostamente preparados para o exercício de altos comandos, porque tinham lido essas
obras, embora tal nunca tenha sido considerada a melhor forma de
aprender. Presumia-se que um aristocrata romano aprenderia como
liderar um exército, tal como aprendia a comportar-se na vida política, pela observação dos outros e pela experiência pessoal, adquirida
no exercício de funções menos relevantes2.
Para os nossos olhos, a selecção de generais baseada na sua influência política e na presunção de que teriam suficientes conhecimentos para desempenhar bem um comando militar, quando a tal fossem chamados, parece absurdamente aleatório e ineficaz. Por isso se
presumiu com frequência que os generais romanos seriam homens
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de talentos extremamente limitados. No século xx, o major general
J. F. C. Fuller caracterizou os generais romanos como pouco mais do
que mestres da prática, enquanto que W. Messer declarou que alcançavam um consistente nível de mediocridade. (Talvez seja oportuno
recordar o comentário de Moltke segundo o qual «na guerra, com
o seu enorme atrito, mesmo a mediocridade constitui um sucesso»).
O inegável êxito do exército romano durante tantos séculos é muitas
vezes considerado como algo que aconteceu, apesar dos seus generais,
mais do que graças a eles. Para muitos estudiosos, o sistema táctico
das legiões parece desenhado para retirar as responsabilidades ao alto
comando, transferindo-as para as mãos dos oficiais subalternos. Os
mais importantes de entre estes últimos seriam os centuriões, tidos
como altamente profissionais e, portanto, bons nas suas funções. Ocasionalmente, surgiram homens como Cipião ou César, que eram muito
mais talentosos do que o típico aristocrata comandante, mas a sua
competência seria um simples reflexo do seu génio instintivo, que não
era passível de ser copiado por outros. O tema deste livro poderia ser
visto como a abordagem destas aberrações, a escassa minoria de genuínos grandes comandantes, gerados pelo sistema romano, no meio de
uma vasta maioria de não personalidades e reconhecidos incompetentes. De igual modo, o exército britânico do século xviii e dos primórdios do século xix, com o seu sistema de recrutamento e patrocínio,
produziu os raros Wellington ou Moore, entre a vasta gama de fracos
líderes como Whitelocke, Elphinstone e Raglan3.
Contudo, um exame mais cuidado da evidência disponível sugere
que muitas destas afirmações são, por vezes, bastante exageradas e,
frequentemente, erradas. Mais do que retirar o poder aos seus generais, o sistema táctico romano concentrava-o nas suas mãos. Os oficiais
subalternos, como os centuriões, desempenhavam um papel importante, mas dentro de uma hierarquia, que tinha no topo o comando
militar, com mais controlo dos acontecimentos do que se poderia supor.
Alguns comandantes foram seguramente melhores nas suas tarefas
do que outros, mas as actividades desenvolvidas por um ­Cipião, por
um Mário ou por um César, em campanha, não parecem ter sido
profundamente distintas das desempenhadas pelos seus contemporâneos. Na generalidade, os melhores generais romanos comandavam
e controlavam os seus exércitos do mesmo modo que os restantes
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aristocratas, e a diferença radica basicamente na competência com
que o fizeram. Por norma, em muitas épocas, os comandantes romanos foram bastante bons, atendendo à sua falta de preparação específica. Ao longo dos séculos, Roma produziu a sua quota de incompetentes, que conduziram legiões a desastres evitáveis, mas o mesmo se
poderá dizer de todos os exércitos ao longo da História. É bastante
improvável que mesmo os sofisticados métodos modernos de selecção
e preparação de oficiais de alta patente não gerem, ocasionalmente,
indivíduos que venham a demonstrar-se gritantemente inapropriados
para o alto comando. Outros poderão aparentar todos os atributos
necessários para serem generais bem sucedidos, mas falharem amplamente, por factores aparentemente fora do seu controlo. Muitos dos
vitoriosos generais romanos proclamaram que foram afortunados,
reconhecendo que (como César escreveu) a fortuna desempenha um
papel ainda mais importante na guerra do que nas restantes actividades humanas.
Estudar a conduta guerreira e o papel do comandante pode não ser
um tema da moda, mas isso não significa que seja um tema negligenciável ou totalmente inútil. A guerra desempenhou um papel central
na história de Roma, pelo que significou o sucesso militar e pelo que
representou na longa manutenção do império. Mais amplos factores
– como as atitudes em face da guerra, a capacidade de Roma e o seu
desejo de consagrar enormes recursos humanos e materiais ao esforço
de guerra – enquadram e explicam o sucesso do exército romano, mas
não o tornam inevitável. Na Segunda Guerra Púnica, esses factores
explicam a capacidade demonstrada pela República para encaixar a
série de trágicos desaires infligidos por Aníbal, mas a guerra só foi vencida quando se encontrou o modo de derrotar o inimigo no campo de
batalha. Os sucessos de uma campanha, e especialmente de batalhas e
cercos, eram obviamente influenciados por esse mais amplo contexto,
mas eram ainda, como os romanos bem sabiam, fortemente imprevisíveis. Em qualquer batalha, e acima de tudo em batalhas travadas
basicamente com armas de ponta, a conclusão é sempre incerta e é
determinada por muitos factores, sendo a moral um dos mais importantes de entre eles. A menos que o exército romano pudesse derrotar
os seus opositores no campo de batalha, as guerras não poderiam
ser vencidas. Compreender como o fizeram (ou não fizeram) nunca é
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uma mera questão de recursos, ideologia ou mesmo equipamentos e
tácticas, porque requer uma mais vasta apreciação do comportamento
humano, tanto em termos individuais como de grupo.
Toda a História, incluindo a História Militar, é, em última análise,
a das pessoas – as suas atitudes, emoções, acções e interacções com os
outros – e é mais facilmente compreensível quando definimos o que
realmente aconteceu, antes de procurarmos explicar por que aconteceu. Concentrarmo-nos nos mais amplos factores de enquadramento
pode ser tão enganador como a velha moda de esboçar as batalhas
como algo que se travou entre símbolos num mapa, e onde a vitória
se inclinou para o lado que aplicou com maior pureza as tácticas ditadas nos pré-estabelecidos «princípios da guerra». As mais criativas
tácticas têm escasso valor se o comandante for incapaz de dispor o
seu exército – composto de milhares ou mesmo de dezenas de milhares
de soldados singulares – nos lugares certos, no tempo certo, para as
aplicar. A tarefa prática de controlar, manobrar e abastecer um exército ocupa muito mais tempo ao seu comandante do que o delinear de
astutas estratégias ou tácticas. As acções de um general influenciam
o curso de uma campanha ou batalha, mais do que as de qualquer
outro indivíduo. Para o bem ou para o mal, o que faz ou não faz um
comandante, importa.
Fontes
Indubitavelmente, a maior parte das nossas informações sobre as
carreiras dos generais romanos provêm dos relatos escritos, em grego
ou latim, das suas acções. Por vezes, conseguimos suplementar esta
informação com esculturas ou outros legados artísticos relativos a
estes comandantes, ou com inscrições, registando os seus feitos e, em
raros casos, com a escavação dos traços conservados das operações
dos seus exércitos, como os vestígios das obras de cerco. Por muito
úteis que estes indícios sejam, é somente pelos relatos escritos que
podemos saber dos feitos concretos dos generais e de como manobraram os seus exércitos. Como já foi referido, a selecção de temas dos
capítulos que se seguem devem muito à sobrevivência das descrições
adequadas à análise das campanhas. Somente uma pequena fracção
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das obras escritas na Antiguidade sobreviveu. De muitos outros livros
conhecemos apenas o título ou fragmentos tão diminutos que não chegam a ter utilidade. Temos a imensa sorte de dispor dos Comentários,
escritos pelo próprio Júlio César, onde se descrevem as suas campanhas na Gália ou durante a Guerra Civil. Naturalmente, esses relatos são altamente favoráveis ao seu autor, mas a riqueza de detalhes
que contêm permite esboçar uma inigualável imagem de um general
em campanha. Naturalmente, fornece também importantes esclarecimentos sobre os atributos e concretizações, tidos por mais relevantes
num comandante militar, para uma audiência constituída pelos seus
contemporâneos romanos. Muitos, talvez mesmo a maioria dos restantes generais romanos, terão também escrito os seus Comentários,
mas nenhum desses relatos sobreviveu sob qualquer forma utilizável.
Na melhor das hipóteses, conseguimos encontrar rasto dessas obras
perdidas em narrativas de historiadores mais tardios, que as usaram
como fontes de informação.
As operações de César são conhecidas fundamentalmente a partir
dos seus próprios relatos que somente em algumas ocasiões podemos
completar com informação de outros autores. As grandes vitórias do
seu contemporâneo Pompeio o Magno estão descritas somente por
alguns autores, que escreveram mais de um século depois da sua morte.
Este fosso entre os acontecimentos propriamente ditos e os registos
mais antigos que se conservaram dos mesmos é habitual para a maior
parte da história grega e romana. É muito fácil esquecer que as mais
detalhadas fontes de que dispomos sobre Alexandre o Grande foram
escritas mais de quatrocentos anos depois do seu reinado. Ocasionalmente, somos mais afortunados e dispomos de um trabalho escrito por
uma testemunha presencial de muitos dos acontecimentos narrados.
Políbio esteve com Cipião Emiliano em Cartago, em 147‑146 a. C. e
poderá também ter estado em Numância, ainda que, na realidade, o
grosso da sua descrição destas operações só se encontre preservado
em passagens escritas por outros autores. Mais concretamente, Josefo
estava com Tito durante o cerco de Jerusalém, Amiano serviu sob
Juliano o Apóstata, por escasso tempo, na Gália e na expedição persa,
enquanto Procópio acompanhou ­ Belisário durante as suas campanhas. Por vezes, outros autores referem relatos análogos de outras
testemunhas presenciais que se perderam, mas não é habitual que os
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historiadores antigos apresentem a lista das suas fontes de informação. Na maior parte dos casos, dispomos somente da narrativa escrita
muitos anos depois da ocorrência dos acontecimentos narrados, cuja
fiabilidade é por norma impossível de confirmar ou infirmar.
Muitos historiadores da Antiguidade abrem as suas obras pro­
testando a sua intenção de se manterem fiéis à verdade. Contudo,
para estes autores é mais importante produzir um texto de leitura
agradável e pleno de dramatismo, uma vez que a história era entendida como algo que se destinava a entreter tanto ou mais do que a
informar. Por vezes, preconceitos pessoais ou políticos levam à consciente distorção da verdade, enquanto em outras ocasiões, fontes inadequadas ou mesmo inexistentes, foram supridas pelo recurso à pura
invenção, tantas vezes recorrendo a temas tradicionais da retórica.
Em outras ocasiões, a ignorância de um autor em temas militares
leva-o a confundir-se com as suas fontes, como sucedeu com Lívio
que, traduzindo incorrectamente a descrição de Políbio da falange
macedónia baixando as suas lanças para a posição de combate, afirmou que deixavam cair as lanças e combatiam com as espadas. Mas
este é um caso raro em que sobreviveram tanto a fonte original como
a versão mais tardia, é um luxo raro que tal aconteça. Para algumas
campanhas, dispomos de mais do que uma fonte descrevendo os mesmos acontecimentos e então podemos comparar os seus detalhes, mas
com demasiada frequência estamos confinados a uma única narrativa. Se rejeitamos esse testemunho, ficamos sem qualquer alternativa.
No limite, estamos condenados a fazer pouco mais do que avaliar a
plausibilidade de cada narrativa e eventualmente a expressar diversos
graus de cepticismo.
Política e guerra: das origens a 218 a. C.
Os romanos não começaram a escrever a História antes de finais do
século iii a. C. e foram quase ignorados pelos escritores gregos, praticamente até essa mesma época. Foi somente após a derrota de Cartago
em 201 a. C. que as Histórias de Roma começaram a fixar‑se. Para
os tempos anteriores às memórias vivas, havia apenas alguns registos
formais de leis, magistrados eleitos em cada ano e a ­celebração de
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f­ estivais religiosos, mas literalmente nada que possibilitasse acrescentar alguma carne a essa ossatura esquálida, para lá de memórias
populares, poemas e canções, muitos dos quais celebravam os feitos das grandes famílias aristocráticas. Mais tarde, esta rica cultura
oral ajudaria a inspirar as histórias que Lívio e outros escritores latinos contariam sobre os primórdios de Roma, da fundação da cidade
por Rómulo e dos seis reis que se lhe seguiram, até ao derradeiro ser
expulso e Roma se tornar numa República. Haverá por certo muitos
remotos ecos de verdade intercalados com alguma invenção romântica nestes contos, mas é presentemente impossível separar uns das
outras. Preferimos, por isso, ensaiar somente uma olhadela às tradições relacionadas com lideranças militares em Roma4.
Tradicionalmente fundada em 753 a. C., Roma foi durante séculos
apenas uma pequena comunidade (ou provavelmente várias pequenas
comunidades que, com o tempo, se fundiram em uma só). A guerra
empreendida pelos romanos nestes tempos desenvolvia-se na correspondente pequena escala, e consistiria sobretudo em pequenos raids e
roubos de gado, com ocasionais escaramuças como batalhas. A maior
parte dos líderes romanos seriam chefes guerreiros nos moldes heróicos (embora as histórias sobre a sensatez e piedade do rei Numa sugiram que outros atributos poderiam também ser considerados dignos de respeito). Esses reis e chefes eram líderes porque em tempo de
guerra combatiam com notória coragem. Em muitos aspectos deveriam assemelhar-se aos heróis da Ilíada de Homero, que combatiam
para que o povo deles dissesse «ignominiosos não são os nossos reis
que governam / a Lícia, eles que comem as gordas ovelhas e bebem /
/ vinho selecto, doce como mel, pois sua força é também / excelente,
visto que combatem entre os dianteiros dos Lícios»5.
A revolução que converteu a monárquica Roma em República,
não parece ter implicado profundas modificações na natureza das
lideranças militares, uma vez que se esperava das mais proeminentes
figuras do novo estado que continuassem a combater de um modo
ostensivamente visível. O ideal heróico era correr à frente dos restantes guerreiros e lutar com os chefes inimigos, vencendo-os diante
de todos. Em algumas ocasiões estes duelos podiam ser formalmente
acordados com os inimigos, como quando os três irmãos Horácios
­combateram como campeões contra os três irmãos Curiácios da vizi-
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nha Alba Longa. Segundo a lenda, dois dos romanos foram rapidamente abatidos, mas não sem antes terem ferido os seus opositores.
O último Horácio simulou a fuga, lançando os Curiácios na sua perseguição, logrando separá-los, voltou então atrás e matou cada um deles
separadamente. Regressando a Roma, entre as aclamações do exército
e dos seus concidadãos, o vitorioso matou a sua própria irmã, por
ela não o ter recebido com suficiente entusiasmo – era a noiva de um
dos Curiácios. Esta é somente uma das histórias de heroísmo singular
– mesmo que a sequela seja brutal e usada para documentar a gradual
regulação dos comportamentos violentos masculinos pelo grosso da
comunidade. Outra envolve Horácio Cocles, o homem que barrou a
passagem a todo o exército etrusco, enquanto a ponte sobre o Tibre
era derrubada nas suas costas, e depois escapou a nado para a salvação. Haja ou não alguma verdade nestes contos, eles testemunham um
tipo de guerra prevalecente em muitas sociedades primitivas6.
Um dos temas destas histórias da Roma primitiva consiste na
abertura a aceitar gente estranha à comunidade, algo que é raro no
mundo antigo. Roma cresceu rapidamente em dimensão e população
e, à medida que se expandiu, cresceu a escala das suas guerras. Os
bandos de guerreiros que seguiam líderes heróicos deram lugar a um
vasto grupo constituído por todos aqueles que tinham capacidade
para adquirir para si o indispensável equipamento de combate. Com
o tempo – não conhecemos bem este processo no caso de Roma, nem
no das cidades gregas ou itálicas – os romanos começaram a combater
como hoplitas numa compacta formação, conhecida como falange.
Os hoplitas usavam um escudo redondo, chapeado a bronze, com
cerca de 90 cm de diâmetro, usavam elmo, couraça e grevas e lutavam
fundamentalmente com uma longa lança. A falange hoplita não dava
grandes oportunidades para notórios actos de heroísmo individual,
porque a densidade de guerreiros em formação não permitia ver o
que se passava para lá de uma linha de escassos metros. Uma vez
que os campos de batalha deixaram de ser dominados pelo escasso
número de heróis e os confrontos passaram a ser decididos por muitas centenas, por vezes milhares, de hoplitas lutando ombro a ombro,
alterou-se a balança política no seio da comunidade. Como antes os
reis e chefes justificavam a sua proeminência na guerra, agora o grupo
dos hoplitas requeria uma intervenção no Estado, em conformidade
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com o seu papel nos campos de batalha. Com o tempo, começaram
a eleger os seus próprios líderes para o governo do Estado, tanto em
tempo de guerra como na paz. Muitos destes homens provinham de
um pequeno grupo de famílias, na sua maioria descendentes da velha
aristocracia guerreira, que na realidade não abdicou do poder. Depois
de algumas experiências com diferentes sistemas de magistraturas,
ficou estabelecida a prática de escolher por eleição dois cônsules, que
funcionavam como a suprema magistratura executiva da República.
A votação tinha lugar numa assembleia conhecida por Comitia Centuriata, na qual os cidadãos votavam por grupos definidos pelas suas
funções no exército.7
Os cônsules detinham um poder análogo (imperium), porque os
romanos receavam conceder a autoridade suprema a um só homem,
mas usualmente cada um recebia um campo de acção independente.
No século iv a. C. poucos inimigos poderiam requerer a atenção da
totalidade dos recursos militares romanos sob ambos os cônsules.
Constitui um bom indício da crescente dimensão da República e da
crescente escala das suas guerras o facto de em muitos anos a guerra
ter sido conduzida simultaneamente contra dois inimigos distintos.
A palavra Leão (legião) significava, na origem, simplesmente incorporação e referia-se à totalidade da força reunida pela República
em tempo de guerra. Provavelmente, desde os primeiros tempos do
consulado tornou-se prática normal dividir a incorporação em dois
grupos, para proporcionar a cada magistrado uma força para comandar e, com o tempo, «legião» tornou-se o nome de cada uma das
subdivisões. Mais tarde, o número cresceu de novo e a organização
interna de cada legião tornou-se mais sofisticada. A República romana
continuou a crescer, derrotando os etruscos, os samnitas e a maioria
dos restantes povos itálicos, antes de submeter as colónias gregas da
península itálica nos inícios do século iii a. C.
Contudo, em muitos aspectos a Itália era militarmente atrasada
e os romanos, tal como os restantes povos itálicos, eram de algum
modo primitivos nos seus modos de fazer a guerra. Nos finais do
século v a. C. a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta e seus
aliados superou muitas das convenções da guerra hoplita. Pelo século
iv a. C. muitos dos estados gregos socorriam-se crescentemente de
pequenos grupos de soldados profissionais ou mercenários, em lugar
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da tradicional falange recrutada em caso de necessidade entre todos
os cidadãos com capacidade para possuir armamento de hoplita. Os
exércitos tornaram-se mais complexos, englobando diferentes tipos
de infantaria e, por vezes, também cavalaria, enquanto as campanhas duravam muito mais tempo do que no passado e frequentemente
envolviam cercos. Este tipo de guerra requeria mais dos seus generais
do que a dos simples tempos das duas falanges que se entrechocavam
numa planície, quando o comandante se limitava a tomar o seu lugar
na linha da frente, para inspirar os seus homens.
Embora muitas destas inovações tenham surgido pela primeira vez
nos estados gregos, seriam os bárbaros reis do norte, da Macedónia, a
criar um muito mais eficiente exército, onde a cavalaria e a infantaria
combatiam em apoio mútuo, marchando rapidamente para surpreender os adversários, sendo igualmente capaz de tomar cidades fortificadas, sempre que necessário. Filipe II e Alexandre dominaram toda a
Grécia, antes de o segundo passar à Ásia e mergulhar para leste através
da Pérsia até à Índia. Consta que Alexandre dormia com uma cópia da
Ilíada sob a almofada e pretendia emular o maior herói de Homero,
Aquiles. Antes da batalha, Alexandre manobrava cuidadosamente o
seu exército, de modo a que o mesmo pudesse avançar, colocando
pressão conjugada sobre toda a extensão da frente inimiga. Então, no
momento crítico, conduzia a sua companhia de cavalaria numa carga
contra a parte mais vulnerável da linha contrária. Deste modo, inspirava os seus soldados a redobrar o valor, mas, uma vez começada a
batalha, não podia exercer grande influência sobre o seu curso. Assim,
confiava nos seus oficiais subalternos para um efectivo controlo das
tropas nos diferentes sectores do campo de batalha, embora seja notável o facto de ter feito sempre muito pouco uso de reservas, em boa
parte porque não teria capacidade de lhes transmitir ordens uma vez
começada a refrega. Alexandre era um líder de excepção, pagando o
preço do seu estilo de comando com um longo catálogo de ferimentos,
muitos recebidos no decurso de combates singulares8.
Poucos dos generais sucessores, os que retalharam o império de
Alexandre, nas décadas que se seguiram à sua morte, foram tão destemidos, contudo, muitos sentiram-se na obrigação de comandar pessoalmente cargas, em determinados momentos. O rei Pirro de Epiro,
que se proclamava descendente directo de Aquiles, foi um dos poucos
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a lutar corpo a corpo e terá sido morto quando comandava os seus
homens no assalto a uma cidade. Foi também um intelectual soldado,
que escreveu um manual de liderança militar, que infelizmente não chegou até nós. No campo de batalha, Plutarco proclamou que embora
«(…) se expusesse em combates singulares e derrotasse todos os que o
defrontavam, conservava uma noção precisa do progresso da batalha
e nunca perdia a presença de espírito. Dirigia a acção como se estivesse
a observá-la à distância e todavia estava sempre em toda a parte, sempre disponível no apoio às suas tropas onde a pressão fosse maior»9.
O heroísmo pessoal continuava a ser simultaneamente apropriado e
digno de admiração num comandante militar, sobretudo quando se
tratava de um monarca, mas era também esperado que ele dirigisse o
seu exército directamente e em proximidade. As maiores vitórias de
Alexandre foram obtidas sobre inimigos menos eficazes em combate
directo do que os macedónios, mas os seus sucessores passaram parte
do seu tempo a combater entre si e, portanto, confrontavam-se com
exércitos praticamente análogos aos seus, em equipamento, tácticas e
doutrina. Sem superioridade intrínseca sobre o inimigo, os comandantes tinham de buscar alguma vantagem parti­cular que lhes assegurasse
a vitória. A teoria militar que floresceu neste período preocupava-se
sobretudo com as correctas condições em que um comandante deveria
ordenar batalha.
Os romanos defrontaram-se pela primeira vez com um moderno
exército helenístico, em 280 a. C., quando Pirro foi em socorro da
cidade grega de Tarento, no sul da Itália, em conflito com Roma.
Depois de duas importantes derrotas, os romanos conseguiram finalmente bater o rei de Epiro em 275, em Malventum, mas este sucesso
deveu-se mais à teimosa capacidade de resistência dos legionários
romanos do que a qualquer inspiração das suas chefias. Em muitos
aspectos, o estilo de comando romano pertencia a uma velha e muito
mais simples era, com muito menor expectativa em complexas e prolongadas manobras de campo, do que em desenfreada batalha, onde
cada lado buscava a obtenção de quantas pequenas vantagens fosse
capaz de lograr. Contudo, uma vez iniciada a refrega, o comportamento do general romano diferia claramente do seu opositor helenístico. Um magistrado não era um rei, logo, o romano não tinha uma
posição predeterminada na batalha, nem tinha uma guarda real à
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frente da qual se esperava que carregasse. O cônsul colocava-se onde
julgava ser mais importante a sua presença para o decorrer da batalha
e movia-se, na retaguarda, ao longo da linha de batalha, encorajando
e dirigindo as suas tropas. Os exércitos helenísticos raramente recorriam a reservas, mas a formação básica da legião romana mantinha
metade a dois terços dos seus efectivos atrás da linha da frente, no
início das batalhas. Competia ao general colocar estas tropas frescas
a reforçar os locais onde a situação o recomendasse.
É claro que Roma não abandonou totalmente as tradições heróicas
e por vezes os seus generais envolviam-se no combate. Muitos aristocratas gabavam-se do número de vezes em que tinham travado e
vencido combates singulares, embora, pelos finais do século iii a. C.,
o mais provável fosse que o tivessem feito quando ainda eram oficiais
de nível inferior. Em 295 a. C., em Sentino, um dos dois cônsules que
comandavam o exército – uma força excepcionalmente grande que
enfrentava uma confederação de inimigos samnitas, etruscos e gauleses – realizou um arcaico rito de sacrifício individual, dedicado à
Terra e aos deuses infernais, ao serviço do exército do Povo de Roma.
Este homem, de nome Públio Décio Musa, cumpriu os rituais e depois
esporeou o seu cavalo numa carga solitária contra o exército gaulês
e foi prontamente morto. Lívio afirma que entregou formalmente o
comando a um subordinado antes de cumprir este suicídio ritual (um
gesto que tinha algo de tradição familiar, uma vez que o seu pai tinha
feito o mesmo em 340 a. C.). Sêncio terminou em dura batalha, com
difícil vitória romana10.
Um dos mais importantes atributos de um aristocrata romano era
a virtus, de que a moderna expressão virtude constitui uma redutora
tradução. Virtus inclui todas as mais importantes qualidades marciais,
incluindo não só a coragem física e a destreza com as armas, mas também a coragem moral e outros dons de um comandante. Esperava-se
de um aristocrata romano que fosse capaz de dispor um exército em
ordem de batalha e de o controlar durante a refrega, prestando atenção
aos pequenos detalhes de cada unidade e ao seu empenhamento em
combate. Deveria ter a confiança e o bom senso de tomar as decisões
apropriadas, desenvolvê-las com firmeza ou ter a coragem de reconhecer um erro, se fosse caso disso. Acima de tudo, nunca deveria duvidar
da vitória final de Roma. Este ideal permitia um vasto leque de inter-
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pretações. Naturalmente, alguns destes homens poderiam continuar a
valorizar bastante o heroísmo individual, mas eram claramente uma
minoria nos tempos da Primeira Guerra Púnica, quando pela primeira
vez poderemos começar a ter uma vaga imagem do comportamento
em campo dos comandantes romanos. Mesmo aqueles que ainda aspiravam aos feitos individuais, não pensavam que isso os dispensasse
de uma efectiva direcção do exército, pois esses actos seriam sempre
uma fonte adicional de glória, que não deveria afectar o papel mais
importante do comandante11.
O contexto do comando
Guerra e política estavam indissoluvelmente ligadas em Roma
e esperava-se dos seus líderes que fossem capazes de dirigir a vida
pública no Fórum ou um exército em campanha, conforme fosse
necessário. Uma vez que os inimigos externos constituíam a maior
e mais notória ameaça à prosperidade do Estado, por vezes mesmo
à sua própria existência, a derrota militar de um inimigo era considerada como o maior feito de um qualquer líder e também aquele
que conferia maior glória. Dado que por muitos séculos os senadores
asseguraram as mais importantes magistraturas e altos comandos, a
capacidade para desempenhar uma chefia militar bem sucedida tornou-se um aspecto fundamental para a imagem da ordem senatorial.
Mais tarde, mesmo os imperadores menos dados aos temas bélicos
– e não devemos esquecer que a palavra «imperador» deriva da voz
latina imperator ou general – exibiam-se em parada, à frente dos seus
bem sucedidos exércitos ou sofriam rudes golpes no seu prestígio se as
guerras não corriam de feição. Até à Antiguidade Tardia, os homens
que comandaram os exércitos de Roma seguiam uma carreira, o cursus honorum, que os fazia passar por um leque diversificado de postos
civis e militares. Dependendo da situação, esperava-se que o governador de uma província ministrasse a justiça ou conduzisse uma guerra.
Contudo, constitui um erro grosseiro ver o sistema romano com o
nosso olhar actual e, por isso, afirmar que os comandantes romanos
não eram verdadeiros soldados, mas sim políticos, uma vez que aqueles homens eram, de facto, as duas coisas. A glória militar ajudava a
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carreira política de um homem e, por sua vez, esta proporcionava-lhe
novas oportunidades de comandar exércitos em situações de guerra.
Mesmo aqueles cujos talentos fossem mais adequados ao combate ou
ao exercício político deveriam ter, no mínimo, alguma competência em
ambos, se queriam ter uma oportunidade para exibir os seus talentos.
Os generais de sucesso habitualmente obtinham ganhos financeiros
nas suas campanhas, mas, em certos aspectos, os ganhos de prestígio
eram maiores. Depois de uma vitória no terreno, um comandante era
formalmente aclamado como imperator. No regresso a Roma, poderia
esperar que lhe fosse concedido o direito de celebrar o triunfo, quando
ele e as suas tropas percorriam a Via Sacra, que conduzia ao centro da
cidade. O general deslocava-se na sua quadriga, com a face pintada de
vermelho e vestido de modo a parecer-se com as velhas estátuas de terracota de Júpiter Óptimo Máximo. Nesse dia, era tratado quase como
se fosse um ser divino, embora um escravo permanecesse por detrás
dele, na quadriga, segredando-lhe constantemente que não esquecesse
que era apenas um mortal. Um triunfo era uma grande honra, algo
que a família haveria de continuar a comemorar, durante várias gerações. Muitos dos grandes edifícios de Roma foram construídos ou
restaurados por generais de sucesso, usando os ganhos obtidos na
guerra, enquanto a sua casa de família deveria sempre permanecer
decorada com os símbolos circulares do triunfo. Somente uma minoria dos senadores pôde celebrar um triunfo, mas mesmo este pequeno
grupo digladiava-se entre si para provar que o seu triunfo tinha sido
o mais importante de todos. As inscrições que evocavam os feitos dos
comandantes militares tendem a ser bastante detalhadas e a maioria
procura quantificar o sucesso, listando quantos foram os inimigos
mortos ou reduzidos à servidão, as cidades tomadas ou os barcos de
guerra capturados. Para um aristocrata romano era sempre importante obter vitórias maiores e melhores do que os outros senadores.
O cursus honorum variou, na forma e flexibilidade, ao longo dos
séculos, mas seguiu sempre um ciclo político anual. No tempo da
Segunda Guerra Púnica, deveria começar ou com dez anos completos
ou com dez campanhas de serviço militar na cavalaria, no grupo de um
membro da família ou amigo, ou como oficial, por exemplo, tribuno.
Depois, podia candidatar-se às eleições para uma função como a de
quaestor, fundamentalmente com responsabilidades de âmbito finan-
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ceiro, embora também pudesse actuar como segundo comandante de
um cônsul. Outros postos se seguiriam, depois de um ano como quaestor, tais como tribuno da plebe e edil, sem responsabilidades militares, mas, em 218 a. C. a praetura implicava por vezes um comando de
campo. As mais importantes campanhas eram sempre destinadas ao
cônsul desse ano. Todas estas magistraturas eram exercidas somente
por doze meses e não se esperava que alguém fosse reeleito para o
mesmo cargo antes de passado um intervalo de dez anos. Os magistrados investidos de comando militar tinham imperium, o poder de
dar ordens a soldados e de ministrar justiça. Quanto mais importante
fosse a magistratura, maior seria o imperium de que se revestia quem
ocupava o cargo. Por vezes, o Senado decidia prolongar o comando de
um cônsul ou de um praetor por mais um ano, então o seu nível passaria a ser o de procônsul ou propraetor, respectivamente. As eleições
em Roma eram ferozmente competitivas e muitos dos cerca de trezentos membros do Senado nunca desempenharam qualquer magistratura. O sistema de voto dava um peso desproporcionado às classes
mais ricas da sociedade e tendia igualmente a favorecer os membros
das mais velhas e ricas famílias da aristocracia. Um pequeno número
de famílias de senadores dominava habitualmente o exercício dos consulados; somente um pequeno número de indivíduos fora deste grupo
alcançou estes postos. Contudo, o sistema político romano não era
inteiramente rígido. Embora tenha havido sempre uma elite familiar
dentro do Senado, a sua composição foi-se modificando ao longo das
décadas, porque algumas linhagens familiares se extinguiam ou eram
substituídas por outras. Também seria sempre possível alguém exercer
o consulado, mesmo que fosse originário de uma família cujos membros nunca haviam alcançado os mais altos cargos.
Num livro com estas características não é possível descrever com
detalhe o desenvolvimento do exército romano, mas é obviamente
importante fornecer alguma informação sobre as forças ao dispor de
cada general. No princípio da nossa abordagem, o exército de Roma
era recrutado de entre todos os cidadãos do sexo masculino, possuidores de propriedade suficiente para lhes permitir equipar-se para a
guerra. Os mais ricos serviam na cavalaria, uma vez que podiam assegurar a manutenção do seu cavalo, armadura e armas. O núcleo do
exército era composto por infantaria pesada, com a maior parte dos
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seus efectivos recrutada de entre os pequenos proprietários rurais. Os
mais pobres constituíam a infantaria ligeira, que não carecia de armadura, podendo ainda servir como remadores na marinha. Cada legião
compunha-se destes três elementos – 300 cavaleiros, 3000 homens na
infantaria pesada e 1200 na infantaria ligeira (velites). A infantaria
pesada era depois dividida em três linhas, baseadas na idade e expe­
riência militar de cada homem. Os mais jovens 1200 eram designados
hastati e deveriam combater na primeira linha. Os que se encontravam na flor da idade eram conhecidos por principes e proviam
a segunda linha, enquanto 600 veteranos, ou triarii, guarneciam a
retaguarda.
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Cada linha compunha-se de dez unidades tácticas ou manípulos,
consistindo em duas unidades administrativas ou centúrias, cada uma
comandada por um centurião. O centurião da unidade da direita era
o oficial superior, que comandava todo o manípulo se ambos os centuriões estivessem presentes. Os manípulos de cada linha dispunham-se
a intervalos iguais aos da frente, entre cada unidade e a seguinte. Os
intervalos eram cobertos pelos manípulos da linha seguinte, de modo
a que a formação da legião se assemelhasse a um tabuleiro de xadrez
(quincunx). Em campanha, a legião romana era apoiada por uma asa
ou ala de aliados latinos ou itálicos, composta por aproximadamente
o mesmo número de infantes, mas com mais do triplo de cavaleiros.
Um cônsul recebia normalmente duas legiões e duas alae. A formação
típica apresentava as legiões ao centro, com uma ala em cada flanco,
sendo, por isso mesmo, habitualmente designadas como a Ala direita,
ou esquerda, em conformidade com a sua disposição. Algumas das
tropas aliadas – usualmente um quinto da infantaria e um terço da
cavalaria – eram retiradas das alae, para formar os extraordinarii,
colocados à disposição do comandante do exército. Os extraordinarii
eram frequentemente usados como vanguarda da coluna, em situações
de progressão, ou funcionavam como retaguarda, durante a retirada 12.
Os soldados romanos não eram profissionais, eram homens
que serviam no exército, como um dever para com a República.
O exército é frequentemente definido como uma milícia, mas parece
melhor designá-lo como um exército de incorporação, uma vez que
os homens passavam muitas vezes numerosos anos consecutivos nas
legiões, embora nenhum deles devesse ser chamado ao serviço por
mais de dezasseis anos. O serviço militar constituía um interlúdio da
vida normal, embora não parecesse ser algo que criasse ressentimentos. Uma vez no exército, os cidadãos submetiam-se de livre vontade
a um sistema de disciplina extremamente severo, onde perdiam muitos
dos seus direitos legais até serem desmobilizados. Mesmo infracções
menores podiam ser severamente punidas, enquanto sérias quebras
de disciplina eram punidas com a morte. O exército romano permanecia basicamente uma força não permanente, com as legiões a serem
desmobilizadas quando o Senado decidia que já não eram necessárias. Embora os soldados pudessem ser chamados de novo a servir a
República, não o faziam nas mesmas unidades nem sob os mesmos
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comandantes. Cada incorporação militar, ou de legião, era única e
incrementava gradualmente a sua eficiência pelo treino continuado.
As legiões que se mantinham em actividade eram frequentemente eficazes e disciplinadas, mas logo que eram desmobilizadas o processo
teria de recomeçar do nada, com os novos exércitos. Havia apesar de
tudo uma curiosa mistura de disciplina e organização tão estrita como
as de muitos exércitos profissionais com a ausência de um ciclo contínuo de recrutamento, treino e desmobilização, para logo recomeçar
tudo de novo, uma vez mais.
Finalmente, parece relevante considerar alguns dos factores que
condicionavam a acção dos generais durante o período aqui considerado. Um dos mais importantes era a limitada velocidade de circulação
da informação. Na prática, nunca era mais rápida do que a marcha de
um cavaleiro. Há registos de casos em que indivíduos terão feito grandes viagens em pouco tempo e, sob o Principado, o correio imperial
foi criado para garantir a existência de mensageiros, com montadas
frescas, a intervalos regulares. Foi sempre mais fácil fazer circular
estas mensagens através de províncias devidamente estruturadas e ao
longo de estradas construídas e regularmente mantidas. A rede viária
que os romanos construíram servia essas comunicações e o movimento
de pessoas e mercadorias em geral, mas só tinha valor real dentro das
províncias. As ofensivas empreendidas para lá das fronteiras do Império eram normalmente conduzidas numa rede muito mais simples de
estradas e caminhos. Por vezes, o exército romano também recorria
a sistemas de sinalização, usando bandeiras ou, com mais frequência,
faróis, mas estes dispositivos só permitiam as mensagens mais simples
e, de qualquer modo, eram mais adequados para um exército que
ocupava posições fixas, quer ao longo de uma linha de fronteira quer
em acção ocasional de cerco.
A consequência mais importante desta limitação era a considerável
liberdade de acção de que gozava um general em campanha, uma vez
que se tornava impraticável dirigir em concreto as operações a partir do centro do poder em Roma. Era também extremamente difícil
controlar as distintas divisões de um exército, quando se espalhavam
por um território, mesmo que a modestas distâncias, o que encorajava
os comandantes a manter as forças concentradas, nas mais variadas
circunstâncias. O mundo antigo era um mundo quase sem mapas,
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certamente, com poucos (se havia algum) com suficiente detalhe e pormenor para apoiar a planificação de operações militares. Os comandantes podiam colher informações sobre a paisagem a partir de um
leque diversificado de fontes – se o combate decorresse no interior de
uma província, a quantidade e qualidade dessas informações seria
obviamente muito mais precisa – mas para a maioria dos objectivos
práticos, dependia de enviar alguém à frente para observar. Os generais faziam muitas vezes pessoalmente o reconhecimento, do mesmo
modo que interrogavam eles próprios os prisioneiros ou falavam com
mercadores ou membros das populações locais, para obter novas.
O comparativamente escasso leque de armamento, que permanecia no
essencial um reflexo do poder muscular humano, era extremamente
limitado, e esse facto, aliado à dimensão dos exércitos, garantia ao
general a possibilidade de ocupar uma posição a partir da qual poderia ver, durante a batalha, tudo o que se relacionava com os exércitos,
o seu e o do inimigo. A visibilidade só estava condicionada pelo terreno, pelo estado do tempo e pela capacidade do olhar humano, sem
o benefício do mais simples objecto óptico, como um óculo.
Os comandantes romanos tinham, pois, a capacidade de dirigir
as operações a um nível muito mais directo e pessoal do que é possível nas guerras mais recentes. Em campanha ou durante as batalhas
e cercos, os generais romanos mantinham uma intensa actividade,
passando muito do seu tempo próximo do inimigo, com risco de ferimentos ou morte por projécteis ou súbitos atacantes. Embora já não
fossem líderes nos moldes heróicos de um Alexandre, estavam de certo
modo próximos dos seus homens, partilhando a dureza da campanha,
de um modo que poderemos considerar como caracteristicamente
romano. Fosse qual fosse a realidade política e social, persistia o ideal
do general como um concidadão, como um companheiro de armas
(commiles), que comunga com o exército uma empresa comum13.
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