Imprimir este artigo - revista

Transcrição

Imprimir este artigo - revista
PATRIMÓNIO E ARQUEOLOGIA SUBAQUÁTICA
O Património Histórico submerso vale menos que o terrestre?
Gonçalo de Carvalho
Resumo
O património cultural não deixa de ser património cultural quer esteja em terra, em meio
húmido ou debaixo de água. Porquê então o abandono a que por vezes são votados os
vestígios submersos do nosso passado? Dentro desta problemática de desrespeito pelo
património histórico submerso destaca-se a actuação de grupos que, alegando estarem a
efectuar um trabalho arqueológico, se interessam apenas pelo resgate dos artefactos com
valor comercial. São os ‘caçadores de tesouros’.
A arqueologia é o estudo dos vestígios do passado, dos testemunhos deixados pelo Homem
e que só através dela chegam até nós, principalmente na ausência de documentos escritos.
A destruição desses vestígios significa o desaparecimento de informações imprescindíveis
para o conhecimento do passado, e por isso é crucial que eles sejam preservados. Não faz
portanto sentido que seja permitida a actuação desses caçadores de tesouros que, embora
devidamente autorizados pelas autoridades políticas de alguns países, são condenados por
toda a comunidade arqueológica e vão contra os ideais defendidos por organismos
internacionais como a UNESCO.
‘É o pior investimento do mundo’, dizia um arqueólogo, fazendo referência aos prejuízos
económicos e culturais resultantes da caça ao tesouro. Os tesouros nos navios afundados
deverão ser deixados no local onde se encontram há dezenas ou centenas de anos, até que
surja a oportunidade para serem devidamente escavados por arqueólogos profissionais que
não tenham por objectivo a procura de artefactos com valor comercial.
Abstract
Our Cultural Heritage is important independently of being on land or underwater. So why
the maritime heritage does not benefit from the same level of protection as the terrestrial
one? The main threat to the remains of our past that lie submerged are some groups that
call themselves archaeologists but are only interest in valuable artefacts to sell. They are the
“treasure hunters”.
Archaeology, the study of our past through the remains and traces of the human activity, is
important to the “writing” of our History, mainly when there are no written documents.
Therefore, it does not make sense that some countries allow the activity of these “treasure
hunters”, going against ... international organizations like UNESCO.
Treasure hunting is the “World’s worst investment”, said a well known archaeologist
defending the need to convince the authorities that there is more to gain by keeping the
recovered artefacts than through the sale of them abroad. Wrecks should be left alone
unless there is a justification for their excavation wich should be done only by professional
archaeologists.
INTRODUÇÃO
Para onde vai a Arqueologia Subaquática?
O património cultural subaquático (ou submerso) está sujeito a inúmeras ameaças vindas de
todos os quadrantes, constituindo o Homem o seu principal inimigo. Para além dos danos
resultantes de causas naturais como marés, furacões, maremotos e outras catástrofes,
inevitáveis e relativamente às quais pouco se pode fazer a não ser pôr em prática algumas
medidas de protecção e, à posteriori, de mitigação, existem os que são provocados
directamente pelas actividades humanas.
Relativamente a estes últimos, é possível fazer a distinção entre os danos resultantes do
desenvolvimento e crescimento das comunidades (construções, turismo, portos, dragagens,
pesca de arrasto, colocação de cabos submarinos, oleodutos e gasodutos, mineração, etc.) e
a destruição provocada pela ‘caça ao tesouro’ ou por indivíduos que procuram
simplesmente recolher algumas ‘recordações’. Quer sejam empresas com equipamentos
mais ou menos sofisticados que procuram artefactos com valor comercial, que apelido de
caçadores de tesouros, ou simplesmente inocentes cidadãos que nos seus tempos livres
buscam objectos antigos para colecção, o efeito sobre o património arqueológico submerso
é desastroso.
Em certos casos pode dizer-se que são esses caçadores de tesouros os piores inimigos do
património.
Fig. 1 Arqueologia também são 'cacos'. Fragmentos de ânfora romana nos Cortiçais, Peniche - Portugal. Foto G. de
Carvalho (2006).
Prevalece uma atitude generalizada de grande indiferença perante esta actividade
simplesmente porque ela é executada debaixo de água e fora dos olhares da maior parte
dos cidadãos. Em terra o património cultural está protegido por legislação. A escavação e
consequente danificação ou destruição de um ‘velho’ edifício histórico – uma igreja, uma
fortaleza ou um túmulo, por exemplo – na procura de artefactos, provocaria de imediato a
condenação pública e levaria certamente à punição dos seus autores. E quanto à nossa
História que jaz no fundo do mar ou de um curso de água? Será que o património cultural
submerso é menos importante do que o terrestre?
Organismos culturais internacionais como a UNESCO (United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization) e o ICOMOS (International Council on Monuments and Sites Conselho Internacional para Monumentos e Sítios) e o seu Comité Internacional, o ICUCH,
estão a tentar de diversas formas proteger o património que é de todos. Em 2001 a UNESCO
adoptou a Convenção para a Protecção do Património Cultural Subaquático. Este tratado
2
internacional que entrou em vigor a 2 de Janeiro de 2009 depois de ter sido assinado ou
ratificado por 20 países é, juntamente com a Carta sobre a Protecção do Património
Mundial, Cultural e Natural (ratificada em 1966 pela 11ª Assembleia Geral do ICOMOS, em
Sofia, Bulgária) e as legislações nacionais, o melhor instrumento para a protecção do nosso
património. Infelizmente essa Convenção de 2001 da UNESCO ainda não foi ratificada por
muitos países, dos quais se destacam a Grã-Bretanha e os Estados Unidos.
Este texto aborda a questão dos caçadores de tesouros, concentrando-se na actividade de
uma empresa, constituída em Portugal, que já andou pelas águas de Cabo Verde e que
opera actualmente em Moçambique e na Ásia, ao mesmo tempo que procura estender a sua
actividade ao Brasil. Trata-se da Arqueonautas Worldwide - Arqueologia Subaquática, SA (ou
Arqueonautas WW) que, na sua página na Internet, se apresenta como um grupo de
arqueólogos a prestar um grande serviço ao património cultural (Fig. 2).1
Os seus membros têm conseguido convencer os dirigentes de vários países a darem-lhes
liberdade de movimentos, celebrando contratos que lhes permitem fazer prospecções e
escavar ao longo das suas costas e depois exportar e vender os melhores (com valor
comercial) artefactos encontrados.
Fig. 2 Página de apresentação da Arqueonautas WW na Internet.
1
http://www.arq.de/index.php?id=138&L=2 – página consultada no dia 10.10.10
3
SALVADOS MARÍTIMOS E CAÇA AO TESOURO
Vêm de longe no tempo estas actividades de recuperação de salvados marítimos e de caça ao
tesouro e torna-se por vezes difícil distinguir uma da outra. Desde há milénios que os naufrágios
têm levado a operações mais ou menos sofisticadas para a recuperação das embarcações
afundadas ou das suas cargas.
As actividades subaquáticas são mencionadas na literatura grega desde pelo menos o séc. IV a.C.
na Ilíada de Homero, que fala dos mergulhadores de Tróia e dos apanhadores de ostras do Mar
Egeu.
Entre os Romanos também havia mergulhadores – os denominados urinatoris – que eram
utilizados em missões especiais como a recuperação de cargas de embarcações afundadas a
pouca profundidade.
Nos tempos medievais ficaram registados avanços relacionados com o mergulho. Inventores do
início da Renascença experimentaram novos equipamentos, incluindo tubos respiratórios e sinos
de mergulho.
Com o desenvolvimento de tecnologia que permite ao ser humano permanecer longos períodos
submerso – o escafandro autónomo aperfeiçoado por Michel Gagnant e Jacques Costeau nos
anos 60 do século passado – e, mais recentemente, o ROV (remote operated vehicle) que pode
operar a grandes profundidades –, a recuperação de salvados intensificou-se e presentemente
nenhum naufrágio está fora de alcance. Com o avanço da tecnologia os seres humanos
conseguem ir a milhares de metros de profundidade em submarinos ou enviar ROVs ainda mais
fundo, para efectuar reconhecimentos ou recuperar artefactos de qualquer naufrágio. Um dos
exemplos mais extremos e também mais mediáticos foi a localização dos destroços do Titanic, no
meio do Atlântico a uma profundidade de quase quatro mil metros, por Robert D. Ballard.
No presente, a caça ao tesouro pode ser descrita como ‘a procura de objectos intrinsecamente
valiosos de sítios históricos ou arqueológicos para lucro pessoal ou finalidade comercial’. Esta a
definição que aparece na Encyclopedia of Underwater and Maritime Archaeology editada por
James P. Delgado (Delgado, 1988: 424).
Há muitas empresas dedicadas a esta actividade e alguns nomes tornaram-se legendários, como
os de Mel Fisher, Bob Marx, Frank Goddio, Michael Hatcher e Greg Stemm. Mas estes são apenas
alguns dos indivíduos que têm aparecido à frente destas empresas empenhadas na busca e
exploração de destroços de navios com tesouros, para a comercialização da carga e artefactos
recuperados. A UNESCO possui uma longa lista com dezenas destes grupos em actividade por
todo o mundo, pelo menos desde os anos 60 do século passado.
Portugal continental e as suas ilhas atlânticas, com uma vasta faixa costeira e uma longa história
marítima, são um alvo naturalmente apetecível para estas empresas de caça ao tesouro. O país
tem hoje legislação moderna e avançada que protege o seu património histórico submerso da
cobiça de tais empresas. Mas, recuando um pouco no tempo, em 1993 foi adoptada legislação
que abria caminho à exploração comercial do património submerso (Decreto-lei 289/93 publicado
a 21 de Agosto de 1993). De imediato vários grupos interessados pediram concessões e, com o
mesmo objectivo, em 1994 foi criada uma nova empresa, a Arqueonautas WW, registada no
offshore da Madeira em 1995 para aproveitar as ‘excelentes oportunidades financeiras criadas
por esta nova legislação’ (Soares, 2008).2
Tudo parecia favorecer estes grupos, mas a introdução da lei de 1993 provocou uma tal reacção
negativa por parte de arqueólogos e de cidadãos das mais diversas formações cientes da
nocividade dos seus pressupostos, que ela acabou por ser suspensa pelo governo seguinte, sendo
‘A Odisseia de Nikolaus’, in Pública, suplemento do diário português Público, de 10 Agosto 2008),
http://www.arq.de/fileadmin/Downloads/2008_publico.pdf – página consultado no dia 10.10.10.
2
4
depois revogada em 1997. E a Arqueonautas WW foi forçada a emigrar para outras paragens
onde as suas actividades não fossem consideradas tão polémicas.
Uma outra empresa que esteve recentemente no centro das atenções ao anunciar a descoberta e
recuperação de uma enorme quantidade de moedas de prata com valor comercial avaliado em
mais de 300 milhões de dólares, a Odyssey Marine Exploration, Inc, está também de certo modo
relacionada com Portugal, para além de ter ligações com a Arqueonautas WW. 3 O sítio de onde
recuperaram essas moedas, mantido secreto pela Odyssey, que lhe atribuiu o nome de código de
Black Swan, estará localizado a sul da costa do Algarve, ao largo de Faro, e tratar-se-á da fragata
espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, afundada pelos ingleses em 1804. Imediatamente o
governo de Madrid reclamou os seus direitos sobre as 17 toneladas de moedas de prata e outros
artefactos que a empresa entretanto tinha transportado para a sua sede na Florida, nos Estados
Unidos. Alguns jornais publicaram a fotografia do presidente executivo da Odyssey, Greg Stemm,
rodeado de caixotes num enorme armazém observando as moedas que se diz valerem milhões de
dólares norte-americanos.
As autoridades espanholas na altura apresaram duas embarcações da Odyssey nas proximidades
de Gibraltar e Madrid iniciou sem demora um processo judicial contra a empresa, exigindo a
devolução de todo o espólio retirado do sítio. Em Junho de 2009 o juiz do Tribunal de Tampa, na
Florida, que está a julgar o caso, ordenou a devolução imediata do ‘tesouro’ a Espanha, tendo a
Odyssey prometido apelar da sentença.4
As moedas terão sido retiradas dos destroços da fragata espanhola Nuestra Señora de las
Mercedes, um dos quatro ‘navios do tesouro’ (treasure ships), como descreveu a imprensa inglesa
da época, que regressavam das Américas em 1804 quando foram emboscados por uma esquadra
de quatro fragatas inglesas. No confronto a
Nuestra Señora de las Mercedes foi afundada
perto da costa setentrional portuguesa
(Castro, 1998), não muito longe do Cabo de
Santa Maria, Faro. De acordo com os registos
de bordo dos navios da armada inglesa
envolvidos nesta batalha naval, pouco tempo
antes do naufrágio da Nuestra Señora de las
Mercedes, a esquadra inglesa encontrava-se a
5 léguas NNW do Cabo de Santa Maria (Fig.
3). A narrativa da batalha diz que a fragata
espanhola explodiu com grande violência
provocando a morte da maior parte dos que
Fig. 3 Diários de bordo das fragatas Lively (esq.) e
seguiam a bordo.
Indefatigable (dir.) que participaram no afundamento do
Nuestra Señora de Las Mercedes. Documentos dos arquivos do
PRO, em Kew, Inglaterra. Foto de G. de Carvalho.
A Espanha, país proprietário da fragata
afundada, adoptou uma posição de força em defesa do seu património histórico e, como já foi
referido atrás, já teve uma decisão favorável do juiz federal do tribunal de Tampa, na Florida. No
entanto o litígio ainda não terminou e também os governos do Peru e da Bolívia, países de onde
seria proveniente a prata, reclamam o tesouro.
LEGISLAÇÃO
O EXEMPLO DE PORTUGAL
3
Acordo negociado no terceiro trimestre de 2008 com a Arqueonautas WW para os direitos de comercialização mundial exclusivos das
moedas de qualidade provenientes dos destroços do São José.
4
http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/us_and_americas/article6433155.ece - The Times/The Sunday Times, página consultada
no dia 09.10.10.
5
A protecção do património histórico submerso, tal como acontece com o terrestre, é
responsabilidade de cada Estado.
Em Portugal havia desde 1970 legislação que protegia o Património Cultural Subaquático – o
Decreto-Lei nº. 416/70, reforçada seis anos mais tarde com a introdução do Decreto-Lei nº.
577/76. Entretanto, em 1974 dá-se o 25 de Abril – a chamada Revolução dos Cravos – e, nos anos
conturbados que se seguiram, a questão do Património Cultural Subaquático também viveu
tempos agitados. No mês seguinte, em Maio de 1974, o caçador de tesouros belga Robert Sténuit
chega ao arquipélago da Madeira e escava na ilha de Porto Santo os destroços de um navio
holandês, o Slot ter Hooge (Sténuit, 1975; Monteiro, 1998).5 Dessa escavação nunca foi publicado
qualquer relatório científico e desconhece-se a verdadeira dimensão dos achados de Sténuit
(Delgado, 1998: 389).
O que se sabe é através de notícias de jornais e de um artigo escrito por Sténuit e publicado na
edição de Agosto de 1975 da National Geographic Magazine (Sténuit, 1975). E isto é um bom
exemplo do estreito relacionamento entre a ‘irmandade’ dos caçadores de tesouros e algumas
organizações e publicações bem reputadas, que leva muita gente a acreditar que esses caçadores
de tesouros prestam um bom serviço à cultura.
O navio Slot ter Hooge, que seguia para Batavia (Java) com um carregamento de três toneladas de
lingotes de prata, afundou-se em Novembro de 1724, tendo a sua carga sido parcialmente
recuperada entre 1725 e 1734 por John Lethbridge, sob contrato da Companhia das Índias
Orientais Holandesas (VOC).
A escavação dos destroços de Porto Santo por Sténuit foi possibilitada pelo Decreto-Lei nº.
416/70 que estipulava que os objectos encontrados no mar só eram propriedade do Estado se
não fosse conhecido o seu proprietário. O tesouro recuperado chegou a ser embargado pela
alfândega mas o belga colocou o caso em tribunal e este deu-lhe razão. A operação levada a cabo
por Robert Sténuit foi possível porque o Slot ter Hooge foi considerado pertencente ao Estado
holandês e este tinha celebrado com ele um acordo cedendo-lhe a propriedade dos destroços em
troca de 25% do total recuperado. E foi perante esta realidade que as autoridades portuguesas
concederam a Sténuit a licença exclusiva para avançar com a escavação e exportar o que
conseguisse recuperar (Sténuit, 1975: 266). O Museu de Porto Santo ficaria com uma pequena
percentagem dos achados, um magro espólio que viria a ser enriquecido mais tarde com a
compra, pelo Governo da Região Autónoma da Madeira, de mais algumas peças no mercado
internacional.
A situação iria mudar em 1985 com a aprovação e introdução do Decreto-Lei nº. 13/85 de 6 de
Julho. A partir dessa altura os vestígios históricos passam a ter tratamento idêntico, sejam eles
terrestres ou subaquáticos. E, pela primeira vez, as entidades públicas e privadas passam a ser
igualmente responsabilizadas pela preservação do património histórico que possa ser colocado
em perigo por trabalhos de construção, dando-se origem ao aparecimento da arqueologia
preventiva no país.
Portugal continental e as suas ilhas atlânticas da Madeira e Açores nunca deixaram de constituir
um forte atractivo para as empresas de caça ao tesouro, mas o seu património subaquático estava
mais ou menos protegido pela legislação em vigor. No entanto o panorama viria a alterar-se
radicalmente em 1993 com o aparecimento do já mencionado Decreto-Lei nº. 289/93 de 21 de
Agosto, a abrir caminho à exploração comercial do património subaquático.
Este decreto, como afirmou o arqueólogo Francisco Alves, o grande impulsionador da arqueologia
marítima e subaquática em Portugal, ‘veio recompensar os caçadores de tesouros e empresas de
‘Robert Sténuit went to Porto Santo Island, Madeira Archipelago, and found the remains of the Slot ter Hooge, a VOC ship wrecked
there. He dug a big hole and recovered some 100-plus silver bars. All that is left are 3 of those bars in a Porto Santo Museum and a
glossy article in the National Geographic Magazine.’ Monteiro in My Quest Against Treasure Hunting.
5
6
salvados marítimos nos seus próprios termos’ (Alves, 1998a: 258). 6 Isto deu origem ao que Alves
considerou ser a ‘era negra’ da arqueologia náutica portuguesa que provocou grande indignação,
principalmente quando os media revelaram que um dos autores desta legislação, Rui Gomes da
Silva, tinha relações profissionais com alguns dos mais conhecidos caçadores de tesouros.
Três dias depois da publicação da nova lei, um grupo chamado Companhia das Naus começava a
enviar faxes para potenciais investidores no estrangeiro convidando-os a participar em projectos
de escavação subaquática, com a promessa de ‘excelentes oportunidades financeiras
proporcionadas pela nova legislação’. Para garantir o sucesso, esta empresa associou-se a uma
outra, a Carreira das Índias Lda., cujo departamento jurídico era presidido pelo mesmo advogado
e legislador, Rui Gomes da Silva. Mas as afinidades não se ficavam por aqui! Um outro caçador de
tesouros, o conhecido Robert Marx, que também estava interessado nos naufrágios na costa
portuguesa, tinha igualmente como advogado Rui Gomes da Silva (Monteiro, 2005; Soares, 2008:
45).
Este Robert Marx era bem conhecido nos Açores. Dele se conta que em 1972, quando foi
impedido de escavar sem qualquer controlo os destroços de um naufrágio, gritou ‘You don’t own
the ocean. I have enough money to by this f***g island and kick you out of here’ (Monteiro, 1998).
Durante este período vários indivíduos e empresas pediram concessões para a exploração
comercial de naufrágios em águas territoriais portuguesas: a Lex Rhodia, empresa portuguesa sob
a direcção de um almirante e com ligações à Alemanha; a Marex, companhia americana dirigida
por Herbert Humphrey; a New Era, sob a direcção do norte-americano Jack Kelly e do português
José Saldanha, que pretendia procurar o Nuestra Señora de Las Mercedes ao largo da costa do
Algarve; Robert Marx, interessado em obter uma concessão nos Açores; e a Arqueonautas SA
(mais tarde Arqueonautas WW), empresa acabada de criar e que também estava interessada no
arquipélago dos Açores.
Outra das consequências do Decreto-Lei nº. 289/93 foi a paralisação quase total da arqueologia
subaquática em Portugal numa altura em que esta disciplina estava a ganhar força. Todo o
trabalho desenvolvido graças à iniciativa de Francisco Alves (então ainda director do Museu
Nacional de Arqueologia, de Lisboa) e da associação ARQUEONÁUTICA-Centro de Estudos
praticamente parou.
Mas a situação voltaria a mudar passado pouco tempo. Em finais de 1995 realizaram-se eleições
gerais que colocaram no poder um novo governo e o panorama em relação ao património
histórico submerso alterou-se outra vez – para melhor. Em 1996 seria criado o CNANS (Centro de
Arqueologia Náutica e Subaquática) sob o nome de COAS (Centro de Operações de Arqueologia
Subaquática), organismo que teve o seu grande baptismo de fogo com a escavação na barra do
rio Tejo, em Lisboa junto ao forte de São Julião da Barra, de um navio da Carreira das Índias que
se presume ser o Nossa Senhora dos Mártires, afundado em 1606. O espólio recuperado na
escavação foi o tema central do Pavilhão de Portugal na Exposição Mundial de 1998, a EXPO’ 98,
em Lisboa (D’Intino 1998; Castro, 2003). A EXPO’ 98 financiou a campanha arqueológica na
totalidade e equipou o CNANS preparando este centro para todas as actividades que se seguiram.
‘the previous law of 1993 (D-L nº. 289/93) which rewarded treasure-hunters and maritime salvage companies-often the same thing-on
their own terms.’
6
7
ARQUEONAUTAS WW
O INÍCIO
A vida da Arqueonatas Worldwide S.A. (Arqueonautas WW) está, como vimos, estreitamente
ligada à história da legislação portuguesa relativa ao património cultural subaquático. A empresa
foi formada em Portugal em 1994 e registada em 1995 na Madeira, pouco depois de ter sido
introduzida nova legislação (o Decreto-Lei nº. 298/93 de 21 de Agosto de 1993) permitindo a
exploração comercial dos destroços dos naufrágios ao longo das costas do território continental e
dos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
A Arqueonautas WW foi então criada para, nas suas palavras, ‘recuperar de modo
economicamente viável a carga em perigo de navios históricos afundados’. 7 O Conselho de
Acompanhamento da empresa, na altura da sua formação, tinha como presidente Dom Duarte
Pio, Duque de Bragança, o herdeiro da Coroa portuguesa, e incluía o contra-almirante Isaías
Gomes Teixeira e várias personalidades ligadas ao mundo da política, da finança e da cultura. Uma
dessas personalidades era Maria João Bustorff que, anos mais tarde, viria a ser Ministra da
Cultura de um governo dirigido por Pedro Santana Lopes, acumulando o cargo com o de
consultora da Arqueonautas WW. Quanto a Santana Lopes, era o mesmo que desempenhava as
funções de Secretário de Estado da Cultura quando entrou em vigor em 1993 a tal legislação
permitindo a exploração comercial do património submerso.
Mas as coincidências não ficam por aqui. Um dos autores do referido Decreto-Lei nº. 298/93 de
21 de Agosto de 1993 foi Rui Gomes da Silva, deputado da Assembleia Nacional que depois seria
Ministro dos Assuntos Parlamentares e Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro, no Executivo
chefiado por Santana Lopes. Rui Gomes da Silva viria a chefiar o departamento legal da
Arqueonautas WW (Soares, 2008).
Todas estas ligações foram amplamente divulgadas nos meios de comunicação social portugueses
e isso talvez tenha contribuído para a enorme celeuma então provocada, que levaria à suspensão
da lei (suspensa em 1995 e revogada em 1997) pelo governo seguinte.
A mudança de leis levou a Arqueonautas WW a procurar novos objectivos, tendo Cabo Verde sido
o primeiro. Apresentada às autoridades do arquipélago pelo então Presidente do Conselho de
Acompanhamento, Dom Duarte Pio, a empresa assinou com o Ministro da Cultura um contrato
para a exploração exclusiva dos mares do arquipélago.
Foi um negócio que pode ser classificado como desastroso para Cabo Verde, pois o país não
exerceu qualquer controlo real sobre as actividades dessa empresa, teve de pagar metade das
despesas incorridas por ela e viu fugirem-lhe muitos dos artefactos recuperados que acabariam
por ser leiloados no estrangeiro ou colocados à venda através da Internet. Durante os sete anos
de actuação, a Arqueonautas WW diz ter localizado e documentado uma centena de naufrágios e
efectuado uma dúzia de operações de recuperação.
As operações em Cabo Verde duraram até 2001. A empresa assinara entretanto em 1999 um
contrato com o governo de Moçambique e, ainda em 2001, iniciou as suas operações naquele
país.
Presentemente, em finais de 2010, a Arqueonautas WW continua a operar em Moçambique e, ao
mesmo tempo, na Ásia enquanto tenta estender os seus tentáculos ao Brasil.
‘Arqueonautas Worldwide S.A. (AWW) recovers cargoes from endangered historical shipwrecks in an economically viable manner’.
‘Declaração de Missão’ no portal da empresa na Internet (http://www.arq.de/), página consultada do dia 01.10.10.
7
8
ÁFRICA E ÁSIA
Impossibilitada de iniciar as suas actividades em Portugal, devido ao encerramento pela legislação
da ‘mina de ouro’ que eram a faixa costeira e ilhas atlânticas do país, a Arqueonautas WW teve de
emigrar para lugares mais favoráveis. O seu primeiro alvo foi então em 1995 o arquipélago de
Cabo Verde que lhe abriu as portas permitindo-lhe ocupar o lugar de uma outra empresa, a
Afrimar da África do Sul, que operava desde 1993 no país.8
Em 1995 o Ministro cabo-verdiano da Cultura António Jorge Delgado assinou com a Arqueonautas
WW um contrato de três anos, que seria depois estendido até 31 de Dezembro de 2001. Durante
cerca de seis anos a Arqueonautas WW teve direitos exclusivos sobre as águas de todas as ilhas
do país. A empresa diz ter localizado os destroços de 146 naufrágios e escavado 12 (Fig. 4).
Para além desses doze navios escavados, os mergulhadores da Arqueonautas WW também
Fig. 4 Lista dos navios escavados em Cabo Verde, no portal da Arqueonautas WW na Internet. (Página consultada a
03.10.10)
recuperaram artefactos de um local que
designaram como ‘ancoradouro’ em frente da
Cidade Velha. Desses objectos têm aparecido
alguns à venda na Internet. (Fig. 5)
Depois de Cabo Verde seguiu-se Moçambique
onde, associada a uma empresa ligada ao
governo, a Património Internacional SARL,
obteve a concessão para a exploração
exclusiva de 700 km de costa, ao longo da
província
de
Nampula,
incluindo
a
emblemática Ilha de Moçambique – que a
UNESCO classificou, em 1991, como Fig. 5 Crucifixos do 'ancoradouro' da Cidade Velha à venda
na loja online da Arqueonautas WW. (Página consultada a
Património Mundial. Apesar de todos os
03.10.2010)
protestos, nomeadamente por parte da
Universidade Eduardo Mondlane de Maputo, a concessão tem vindo a ser regularmente
renovada.
8
Das actividades da Afrimar, que a partir de 1993 andou a prospectar as águas de Cabo Verde e a fazer recuperações, quase nada se sabe
pois não se encontra nada publicado.
9
Segundo as informações disponibilizadas pela empresa no seu portal na Internet, até ao momento
foram detectados os destroços de 79 navios históricos, dos quais 22 serão ‘de excepcional valor
cultural e histórico’.9
Das suas actividades em Moçambique tiveram até agora especial repercussão as escavações em
dois sítios, um na Ilha de Moçambique e outro nas suas proximidades, que levaram à recuperação
de artefactos de grande valor comercial, posteriormente colocados à venda em casas de leilões
ou na Internet.
A Arqueonautas WW não se ficou por África e já se encontra a operar no continente asiático,
nomeadamente na Indonésia desde 2007 e no Vietname10 desde pelo menos 2004, enquanto que
no Brasil está a fazer alianças com grupos locais para futura intervenção.
http://www.arq.de/index.php?id=64&L=2 – consulta no dia 10.10.10
http://www.scubaglobe.com/main-stories/deep-exploration-vietnam.html, http://www.arq.de/index.php?id=77&L=2 e
http://www.businesspress24.com/pressrelease1012967.html – páginas consultadas no dia 11.10.10
9
10
10
CONCLUSÃO
É possível conciliar a actividade das empresas de ‘caça ao tesouro’ com a arqueologia? Por tudo o
que foi exposto, pela definição de ‘caça ao tesouro’ na Encyclopedia of Underwater and Maritime
Archaeology (Delgado, 1998: 424) e pela observação de Charles D’Oliveira, que seguiu de perto a
Arqueonautas WW em Cabo Verde, isso é de todo impossível. D’Oliveira, conhecido como
Monaya, com base nas suas observações quando, como fiscal do governo da Praia, acompanhou
as actividades da Arqueonautas WW, pôde constatar isso mesmo. No seu livro (D’Oliveira, 2005:
151) afirma: ‘Não é tarefa fácil rentabilizar economicamente um empreendimento de perfil
arqueológico ou cultural. A enorme dificuldade em conciliar as vertentes cultural e comercial
prejudicou seriamente o país e, de certo modo, a própria empresa.’. Este pequeno excerto e o
parágrafo que o antecede na mesma página da obra citada11 são um exemplo claro da
impossibilidade de empresas dedicadas à exploração comercial de navios naufragados fazerem
arqueologia.
Os interesses dessas empresas, que investem recursos financeiros elevadíssimos, obtidos
geralmente graças à boa-fé de investidores, não se compadecem com os extremos cuidados que
devem rodear obrigatoriamente uma escavação arqueológica. Além disso, como estabelece a
Convenção de 2001 da UNESCO sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático (que Cabo
Verde ainda não ratificou) no seu Artigo 2.º parágrafo 6 – ‘Os elementos do património cultural
subaquático recuperado serão depositados, conservados e geridos de forma a assegurar a sua
preservação a longo prazo’; além disso, de acordo com o parágrafo 7.º do mesmo Artigo, ‘O
património cultural subaquático não será objecto de exploração comercial’.
Faz todo o sentido comparar uma escavação arqueológica à leitura de um livro em que se rasgam
as páginas à medida que estas vão sendo lidas. Escavar, mesmo seguindo toda a metodologia
científica, é destruir. É portanto necessário registar cuidadosamente toda a informação contida no
sítio. E para isso é necessário tempo... o tempo de que não dispõem as empresas comerciais de
‘caça ao tesouro’.
E se isto é válido para o património histórico em terra, muito mais o é para o património
submerso pois escavar em meio aquático exige muitos mais meios e equipamentos que se
traduzem em custos elevadíssimos. O património tem portanto que ser escavado cientificamente
de modo a que todas as informações sejam registadas para futuro estudo e compreensão do seu
significado.
Para Cabo Verde, país arquipelágico no oceano Atlântico, que teve um papel extremamente
importante como escala e como entreposto no período da Expansão Marítima e que tem um
vasto património histórico debaixo de água, o cumprimento destas regras é de primordial
importância para o conhecimento do passado.
‘No tipo de prospecção praticado pela Arqueonautas era notória alguma contradição. Mostrava-se muito exigente, por vezes,
cumprindo todas as regras e mais alguma no âmbito dos registos, documentação e conservação, mas, por outro lado, deixava
transparecer a grande preocupação em recuperar unicamente os objectos de valor comercial... A forma indiscriminada como as
concreções eram atacadas com martelo e escopo ou como deslocavam os canhões para facilitar a busca de artefactos, não deve ser a mais
recomendável nas técnicas de escavação arqueológica.’
11
11
Relativamente às actividades da Arqueonautas WW, o que é que fica para a posteridade? Que
informações foram recolhidas para enriquecimento do saber? Pouco ou quase nada parece ser a
resposta mais correcta. Dos 6 ou 7 anos em que andaram por Cabo Verde, durante os quais dizem
ter escavado 12 embarcações afundadas, foram
deixados alguns artefactos às autoridades caboverdianas e no portal da empresa na Internet foram
publicados quatro trabalhos de índole científica
sobre alguns dos artefactos recuperados.12 Três
deles são sobre manillas (manilhas ou dinheiropulseiras): um estudo feito por Ana Benito e Miguel
Ibáñez e o resultado de uma análise química feita
num laboratório de Espanha a uma dessas pulseiras.
E o quarto trabalho (Smith, 2002) é um estudo feito
por B. S. Smith do astrolábio banhado a prata
recuperado dos destroços de Passa Pau e que foi
vendido num leilão efectuado em Londres em
Dezembro de 2000 pela casa Sotheby’s (Fig. 6).
Sobre as escavações propriamente ditas nada se
sabe, nada existe. A Arqueonautas WW apresenta no Fig. 6 Previsão da venda do astrolábio de Passa Pau
na página da Sotheby´s na Internet.
seu portal umas breves informações sobre a
identidade dos navios que diz ter, ou que pensa ter escavado mas não existe mais nada.
O que se foi tornando do conhecimento público foi a venda de artefactos em leilões e através da
Internet. O caso mais falado foi o do astrolábio de Passa Pau, vendido pela Sotheby’s ao Mariners
Museum de Newport, nos Estados Unidos, por US $161.000. A peça, exemplar único banhada a
prata e datada de 1645, ficou pelo menos a salvo num museu. Mas não teria ficado muito melhor
em Cabo Verde ou, em último caso, em Portugal, o país de origem da peça?
Nesse leilão na Sotheby´s foram também vendidos os artefactos da fragata norte-americana USS
Yorktown cuja propriedade os Estados Unidos contestaram. Na sequência do protesto a Sotheby´s
conseguiu reaver pelo menos alguns dos objectos vendidos, devolvendo-os às autoridades
americanas.
De Cabo Verde, como já anteriormente referido, continuam a encontrar-se peças à venda na
Internet, nomeadamente artefactos retirados do ancoradouro da Cidade Velha, que é hoje
Património da Humanidade. Nessa altura, quando os mergulhadores da Arqueonautas WW por lá
andavam a escavar, já tinha sido desencadeado o processo que levaria à candidatura da Cidade
Velha (Ribeira Grande de Santiago) para inclusão pela Unesco na sua lista A do Património
Cultural da Humanidade, o que viria a acontecer a 26 de Junho de 2009 (Rodrigues, 1991: p. 64)13.
O interesse em proteger o património histórico pouco depois de ali mesmo ao lado ter sido
permitido o seu saque constitui uma contradição, que se está a repetir em Moçambique.
Naquele país da África oriental, junto ao Índico, a Arqueonautas WW anda há mais de dez anos a
explorar os muitos destroços existentes ao longo da costa da província de Nampula, incluindo em
volta da Ilha de Moçambique que é, desde 1991, considerada Património Cultural da Humanidade
pela Unesco. Aí, a poucos metros da fortaleza de São Sebastião, foi escavada uma nau não
identificada que proporcionou uma enorme quantidade de porcelanas Ming e de objectos de ouro
que foram leiloados na casa Christie’s de Amesterdão em Maio de 2004, rendendo €117.289. 14
12
Informações obtidas no dia 10.10.10, no portal da Arqueonautas WW na Internet, no endereço http://www.arqpublications.com/html/cape_verde.htm
13
‘Em 1989 solicitámos a inscrição da Cidade Velha na lista do Património Mundial, processo que está correndo os seus trâmites’ , dizia
Nélia Maria Rodrigues na sua comunicação no III Encontro de museus de países e comunidades de língua portuguesa, em 1991 em
Bissau.
14
http://www.christies.com/LotFinder/searchresults.aspx?intSaleID=19334#action=refine&intSaleID=19334&sid=f49cf54d-3bc9-4adda16d-d23d7778b13d – página consultada no dia 10.10.10
12
E volta a colocar-se a pergunta: se a Fortaleza de São Sebastião e a Ilha de Moçambique são
Património Cultural da Humanidade, o que está a poucos metros já não o será só por estar
debaixo de água?
Não muito distante da Ilha de Moçambique, uma outra escavação começada em 2004 e de que se
falou foi a do navio São José, afundado em 1622, porque rendeu muitos milhares de moedas de
prata que têm sido vendidas em leilões e através da Internet.
Tal como aconteceu com Cabo Verde, também da actividade desenvolvida aqui, ao longo de todo
este tempo, não há estudos académicos que tragam alguma luz sobre a navegação ou a
construção naval dos navios escavados.
Dois dos destroços ficaram particularmente conhecidos pelo espólio produzido: a cerâmica Ming
e ouro retirados junto ao Forte de São Sebastião e vendidos num leilão na Holanda e os milhares
de moedas de prata do navio São José que foram colocadas à venda na Internet.
A empresa colocou alguns relatórios no seu portal que não têm qualquer rigor científico.15 Não foi
feito nenhum registo arqueográfico, não existe qualquer tentativa de análise comparativa
consistente relativamente às fontes da arquitectura naval portuguesa (um vez que os destroços
são de embarcações portuguesas) e os desenhos apresentados são de muito baixa qualidade. Em
nenhum desses relatórios se nota a mínima preocupação em tentar proteger as estruturas de
madeira colocadas a descoberto e que depois foram simplesmente abandonadas. A cobertura de
areia que as protegeu durante centenas de anos foi retirada e sem ela não irão resistir muito
tempo.
Perdem-se assim informações valiosas sobre a construção naval portuguesa do período da
Expansão Marítima, informações que são escassas em grande parte devido ao terramoto de 1755
de Lisboa que destruiu grande parte dos arquivos.
Já dizia Peter Throckmorton que a caça ao tesouro ‘é o pior investimento do mundo’ numa
referência aos prejuízos económicos e culturais que os países e as comunidades locais sofrem com
esta actividade. No seu trabalho Throckmorton demonstra que só há a ganhar com a realização de
escavações científicas e a guarda dos artefactos e materiais recuperados, depois de tratados e
estudados, em museus que, para além de gerarem empregos, atraem visitantes, contribuindo
assim para o desenvolvimento da região (Throckmorton, 1998).
E um outro ponto importante distingue a caça ao tesouro da arqueologia: é que um arqueólogo
nunca vende o objecto do seu estudo. Mas a verdade é que é difícil convencer o público em geral
da incompatibilidade entre a arqueologia e a caça ao tesouro.
O próprio George Bass, um dos grandes percursores da arqueologia subaquática, foi incapaz de
encontrar argumentos durante um programa de televisão nos Estados Unidos, que convencessem
o apresentador de que a arqueologia não pode aceitar de modo nenhum a caça ao tesouro
(Cockrell, 1998).
E assim como os arqueólogos não devem aceitar os convites dos caçadores de tesouros para
embarcarem nas suas iniciativas, dando-lhes assim uma aura de credibilidade, também os museus
não devem aceitar ofertas de objectos cuja proveniência seja duvidosa, nomeadamente os
originados em escavações que não tenham registos nem tenham sido publicadas (Renfrew, 2006).
Estas são situações bem conhecidas e que até aparecem descritas por autores consagrados. Por
exemplo Delgado (1998), na sua definição de caçador de tesouros, diz que este usa na sua
linguagem termos do jargão arqueológico e que tenta aliar-se a instituições académicas e a
arqueólogos de prestígio para legitimar a sua actividade.
A pesquisa que os grupos de caçadores de tesouros fazem em arquivos, as prospecções
efectuadas depois no local dos naufrágios e os registos feitos durante e após a escavação e ainda
o tratamento dado aos artefactos recuperados, são tudo operações essenciais nesta actividade. A
investigação feita é necessária não só para localizar os destroços dos navios naufragados como
para determinar a sua identidade. Desse modo, com base em documentos em arquivos, é possível
15
http://www.arq-publications.com/html/mozambique.htm – página consultada no dia 11.10.10
13
ter-se uma ideia do valor da carga que transportavam para determinar se é rentável a sua
escavação. E finalmente, o conhecimento da identidade do navio naufragado e a sua história
fazem aumentar substancialmente o valor comercial dos artefactos retirados dos seus destroços.
Tudo isto se aplica à Arqueonautas WW que diz que a sua missão é ‘proteger o Património
Marítimo Mundial e recuperar artefactos e carga em perigo de navios históricos afundados.’ Na
realidade, porém, a Arqueonautas WW e todos os outros caçadores de tesouros é que são os
verdadeiros perigos para o património submerso.
No caso dos navios de Moçambique, datados principalmente dos séculos XVI, XVII e XVIII, os seus
destroços encontram-se debaixo de água há centenas de anos, a maioria deles necessitando de
um grande esforço, em material e em tempo, para serem localizados e, posteriormente, de
equipamentos especializados e extremamente caros para se proceder à escavação. As populações
locais não têm meios para lá chegar. É pois preferível que se deixem os destroços onde estão. Se
houver necessidade de se estudar um naufrágio então organiza-se uma verdadeira campanha
arqueológica e, se o país em questão não tiver meios económicos e técnicos para isso, há sempre
instituições académicas nas nações mais avançadas na arqueologia dispostas a colaborar nesse
estudo.
Em certas situações pode acontecer uma maré viva ou uma tempestade mais violenta que ponha
a descoberto um naufrágio que não tinha sido detectado antes. Então poderá justificar-se uma
escavação de emergência para salvar o que for possível antes que o mar acabe por destruir tudo
ou que as populações locais sejam tentadas para o local na mira de lucro fácil.
A arqueologia é a disciplina que estuda o passado dos seres humanos através dos seus vestígios
materiais, o património cultural. Uma definição simples que serve tanto para o património
terrestre como para o submerso. E se relativamente ao património terrestre se aplicam regras
para a sua protecção, porque é que o mesmo não se passa relativamente ao património
submerso?
Um defensor acérrimo do património histórico tem sido o arqueólogo Zahi Hawas, recentemente
nomeado, em Fevereiro de 2011, Ministro das Antiguidades do Egipto. Numa entrevista
concedida no Cairo à BBC, em Fevereiro de 2006, quando colocado perante o que se estava a
passar em Moçambique, com o governo de Maputo a autorizar a “escavação” de naufrágios na
sua costa, nomeadamente junto à Ilha de Moçambique, e a venda dos objectos encontrados, a
sua reacção não deixou margem para dúvidas. “Nenhum país pode fazer isso. Qualquer país que
venda o património é como uma mulher que vende o seu corpo. O património pertence a todos!
Não se pode vender. Isso é prostituição. Não posso de maneira nenhuma concordar… Os países
têm a obrigação de proteger o seu património. É o seu património! Porque os que conservam o
seu passado podem ter um bom futuro. Os países que vendem o seu património não podem ser
respeitados... Esses países vão ficar no caixote do lixo da história!16
Fig. 7 ‘Ancoradouro’ da Cidade Velha, agora
Património da Humanidade, que foi um dos alvos
dos caçadores de tesouros em Cabo Verde. Foto
G. de Carvalho.
16
http://www.bbc.co.uk/portugueseafrica/news/story/2006/03/060308_egyptarchgc.shtml - página consultada no dia 24.10.11
14
BIBLIOGRAFIA
ALVES, Francisco (1998). "Portugal: new legislation advances research." The International Journal of
Nautical Archaeology 27(3): 258-264.
ALVES, Francisco, CASTRO, Filipe, RODRIGUES, Paulo, GARCIA, Catarina, ALELUIA, Miguel (1998).
Archaeology of a Shipwreck. Nossa Senhora dos Mártires: The Last Voyage. A. A. MARTINS. Lisboa,
Pavillion of Portugal / Expo' 98 and Editorial Verbo: 182-215.
ARQUEONÁUTICA (1995) Arqueologia ou Caça ao Tesouro? Livro Branco: Para um debate sobre a
legislação do património arqueológico subaquático em Portugal. 30
ARTICA, M. I., BENITO, Ana (2005). ""Premonedas" portuguesas destinadas al comercio del oro en la costa
africana en el siglo XVI: estudio de las "manillas" y calderos hallados en un pecio de getaria (Guipúzcoa)."
Gaceta numismática(157): 18.
BALLARD, R. D., Ed. (2008). Archaeological Oceanography. Princeton, New Jersey, USA, Princeton
University Press.
BASS, G. F., HOPE-SIMPSON (1985). "Perspectives." Journal of Field Archaeology 12(2): 256-260.
BASS, G. F., Ed. (2005). Beneath the Seven Seas: Adventures with the Institute of Nautical Archaeology.
London, Thames & Hudson Ltd.
BLOT, Jean-Yves (2002). New Courses in Maritime Archaeology in Portugal. International Handbook of
Underwater Archaeology. C. V. RUPPÉ, BARSTAD, Janet F. New York, Kluwer Academic / Plenum
Publishers: 465-495.
BOWENS, A., Ed. (2009). Underwater Archaeology: The NAS Guide to Principles and Practice. Chichester,
Blackwell Publishing.
BRODIE, N., DOOLE, Jenny, WATSON, Peter (2000). Stealing History: the illicit trade in cultural material.
Cambdridge, The McDonald Institute for Archaeological Research.
CARMAN, J. (2005). Against Cultural Heritage: Archaeology, Heritage and Ownership. London, Gerald
Duckworth & Co. Ltd.
CASTRO, Filipe (2003). "The Pepper Wreck, an early 17th-century Portuguese Indiaman at the mouth of
the Tagus River, Portugal." The International Journal of Nautical Archaeology 1(32): 6-23.
CASTRO, F. V. de (1998). "O naufrágio da fragata espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, afundada
pelos ingleses ao largo do Cabo de Sta. Maria,
em 1804." Revista Portuguesa de Arqueologia 1(2): 219-230.
CHRISTIE'S (2004). The Fort San Sebastian Wreck. Christie's. Amsterdam, Christie's Catalogues.
COCKRELL, W. A. (1998). Why Dr. Bass Couldn't Convince Mr. Gumbel: The Trouble with Treasure
Revisited, Again. Maritime Archaeology : A Reader of Substantive and Theoretical Contributions. L. E.
BABITS, TILBURG, Hans Van. New York, Plenum Press: 85-96.
CUNO, J. (2008). Who owns antiquity? Museums and the battle over our ancient heritage. New Jersey,
15
USA, Princeton University Press.
D'INTINO, R., Ed. (1998). Nossa Senhora dos Mártires - A última viagem. Lisboa, Pavilhão de Portugal /
Expo' 98 / Editorial Verbo.
D'OLIVEIRA, E. C. (2005). Cabo Verde na rota dos naufrágios. Cidade da Praia, Cabo Verde, Autor e Filho.
DA SILVA, R. V. (2002). Governo e Arqueonautas negoceiam destino do património marítimo. A Semana.
Cidade da Praia, Cabo Verde: 1.
DELGADO, J. P., Ed. (1998). Encyclopedia of Underwater and Maritime Archaeology. New Haven and
London, Yale University Press.
DOMINGUES, F. C. (2003). Arqueologia Naval Portuguesa: (Séculos XV e XVI) História, conceito,
bibliografia. Lisboa, Comissão Cultural da Marinha.
FABIÃO, C. (1989). "Para a História da Arqueologia em Portugal." Penélope. Fazer e Desfazer História Vol
nº. 2(Fev 1989): 9-26.
FILGUEIRAS, O. L. (1987). Algumas reflexões para a definição duma política de defesa do nosso património
arqueológico subaquático. Sessão da Academia de Marinha. Lisboa, Academia de Marinha: 54.
FINE, J. C. (2006). Treasures of the Spanish Main. Guilford, Connecticut, USA, The Lyons Press.
FLATMAN, J. (2007). "The Origins and Ethics of Maritime Archaeology - Part I." Public Archaeology 6(2):
77-96.
FORTES, T. S. (2001). O seu ao seu dono. A Semana. Cidade da Praia, Cabo Verde: 2.
GIANFROTTA, P. A., POMEY, Patrice (1981). Archeologia Subacquea: storia, techniche e reliti. Milano,
Arnoldo Mondadori Editore S.p.A.
GREEN, J. (2004). Maritime Archaeology: A Technical Handbook. San Diego, London, Elsevier Academic
Press.
HALL, J. L. (2007). "The Fig and the Spade: Countering the deceptions of treasure hunters." AIA
Archaeology Watch: 1-10.
JOHNSTON, P. F. (1993). "Treasure salvage, archaeological ethics and maritime museums." The
International Journal of Nautical Archaeology 22(1): 53-60.
KINGSLEY, S. (2009). Into the Abyss: Deep-sea shipwrecks, science & scandal. Current World Archaeology.
London. 33: 34-43.
LESHIKAR-DENTON, M. E., ERREGUERENA, Pilar Luna, Ed. (2008). Underwater and Maritime Archaeology
in Latin America and the Caribbean. One World Archaeology. Walnut Creek, CA, Left Coast Press, Inc.
MARX, R. F. (1990). The History of Underwater Exploration. New York, Dover Publications, Inc.
MILES, M. M. (2008). Art as Plunder: The Ancient Origins of Debate about Cultural Property. New York,
Cambridge University Press.
16
MONTEIRO, A. (2004). "A Arqueonautas avant la Lettre." Naufragium. Consulta 03 Novembro 2010,
http://naufragium.blogspot.com/2004_05_01_naufragium_archive.html#108552730189760590.
MONTEIRO, P. (1998, 12 July 2009). "My Quest Against Treasure Hunting." Nordic Underwater
Archaeology. Consulta 03 Novembro 2010, http://www.abc.se/~pa/publ/monteiro.htm.
MUCKELROY, K. (1978). Maritime Archaeology. Cambridge, Cambridge University Press.
MUCKELROY, K. (1981). Discovering a Historic Wreck. London, National Maritime Museum.
NHHC (2009). "Wanted: Artifacts Removed from the USS Yorktown debris Site Without Permission of the
U.S. Navy and in Violation of the U.S. Law." Retrieved 19 July 2009, from
http://www.history.navy.mil/branches/org12-9b.htm.
PYDYN, A., FLATMAN, Joe, Ed. (2008). Collaboration, Communication and Involvement: Maritime
Archaeology and Education in the 21st Century. Torun, University Press, Nicolaus Copernicus University.
QUATORZE, M., DA GRAÇA, Machado (2004). Sunken treasure brings tidal wave of trouble. The Sunday
Independent & Independent Online Ltd. South Africa: 3.
RENFREW, C. (2006). Loot, Legitimacy and Ownership. London, Gerald Duckworth & Co. Ltd.
ROBSON, E., TREADWELL, Luke, GOSDEN, Chris, Ed. (2007). Who owns objects? Oxford, Oxbow Books.
RODRIGUES, N. M. (1991). Os Museus em Cabo Verde. III Encontro de museus de países e comunidades
de língua portuguesa. Bissau, Bissau: Sec. Est. Cultura, Juventude e Desportos: 61-64.
RUPPÉ, C. V., BARSTAD, Janet F., Ed. (2002). International Handbook of Underwater Archaeology. The
Plenum Series in Underwater Archaeology. New York, Kluwer Academic / Plenum Publishers.
SCARRE, C., SCARRE, Geoffrey, Ed. (2006). The ethics of archaeology: Philosophical perspectives on
archaeological practice. Cambridge, Cambridge University Press.
SKEATES, R. (2000). Debating the Archaeological Heritage. London, Gerald Duckworth & Co. Ltd.
SMITH, A. B. (1988). "When is Marine Salvage 'Archaeology'?" South African Archaeological Bulletin 43:
122-123.
SMITH, B. S. (2002). "An astrolabe from Passa Pau, Cape Verde Islands." The International Journal of
Nautical Archaeology 31(1): 99-107.
SOARES, A. (2008). A Odisseia de Nikolaus. Pública. Lisboa, Público: 44.
SOTHEBY'S (2000). Important Clocks, Watches, Scientific Instruments and The Arqueonautas Collection of
Marine Archaeology. Sotheby's. London, Sotheby's.
SPIREK, J. D., SCOTT-IRETON, Della A., Ed. (2003). Submerged Cultural Resource Management: Preserving
and interpreting our sunken maritime heritage. The Plenum Series in Underwater Archaeology. New York,
Kluwer Academc / Plenum Publishers.
17
STANIFORTH, M., MICHAEL, Nash, Ed. (2006). Maritime Archaeology: Australian Approaches. The Plenum
Series in Underwater Archaeology. New York, Springer Science+Business Media, Inc.
STÉNUIT, R. (1975). The Treasure of Porto Santo. National Geographic Magazine. August 1975: 260-275.
THROCKMORTON, P. (1977). Diving for treasure. London, Thames and Hudson Ltd.
THROCKMORTON, P. (1998). The world's worst investment: The economics of treasure hunting with real
life comparisons. Maritime Archaeology : A Reader of Substantive and Theoretical Contributions. L. E.
BABITS, TILBURG, Hans Van. New York, Plenum Press: 75-83.
TOKELEY, J. (2006). Rescuing the Past: The Cultural Heritage Crusade. Exeter, Imprint Academic.
UNESCO (2001). UNESCO Convention on the Protection of the Underwater Cultural Heritage, UNESCO
General Conference.
VARMER, O. (1999). "The Case Against the "Salvage" of the Cultural Heritage." Journal of Maritime Law
and Commerce 30(2): 279-302.
VAZ, J. P. (2002). A "Pesca de Naufrágios": elementos para a história das recuperações subaquáticas na
Época Moderna. Al Madan. Almada, Portugal, Centro de Arqueologia de Almada: 25-32.
VAZ, J. P. (2003). A "Pesca de Naufrágios": II - história e arqueologia do mergulho em navios afundados na
Época Moderna. Al Madan. Almada, Portugal, Centro de Arqueologia de Almada: 25-39.
VAZ, J. P. (2005). Pesca de naufrágios: As recuperações marítimas e subaquáticas na época da Expansão.
Lisboa, Tribuna da História.
ZIMMERMAN, L. J., VITELLI, Karen D., HOLLOWELL-ZIMMER, Julie, Ed. (2003). Ethical Issues in
Archaeology. Walnut Creek, CA, Altamira Press.
18

Documentos relacionados